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Estado, mercado e formas de privatização: a inuência dos think tanks na política educacional brasileira
Estado, mercado e formas de privatização: a inuência dos think tanks na política
educacional brasileira
State, market and forms of privatization: an inuence of think tanks on
brazilian educational policy
Estado, mercado y formas de privatización: la inuencia de los think tanks en la política
educacional brasileña
Valdelaine da Rosa Mendes
*
Vera Maria Vidal Peroni
**
Resumo
Há, especialmente no século XXI, uma proliferação dos think tanks que operam como produtores e inuenciado-
res de ideias acerca do mercado, que defendem a redução do intervencionismo estatal nas tomadas de decisões.
Este estudo tem como objetivo discutir a inuência que têm exercido na organização das políticas educacionais
de forma a alargar e intensicar a penetração dos interesses do mercado na área educacional. Para alcançar este
propósito, é realizada uma discussão sobre as formas de privatização que têm levado a lógica do mercado para o
interior das políticas educacionais. É traçado um panorama da distribuição dessas organizações no mundo, com
as características de seus nanciadores e apoiadores. Por m, são apresentados os princípios que orientam as
ações de três think tanks: um estadunidense e dois brasileiros, com foco nas questões educacionais. Este estudo
demonstrou que os interesses do capital, representados por organizações nanciadas por grandes empresas
(com capacidade de penetração na imprensa, nos governos, nas universidades, nas mídias sociais, na indústria
cultural), pretendem claramente determinar ao Estado uma perspectiva privada na denição e na concepção
das políticas educacionais.
Palavras-chave: Política educacional. Think tank. Privatização. Mercado.
*
Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP, Brasil), com estágio pós-doutoral em Educação pela Uni-
versidade de São Paulo. É professora associada da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas (UFPel,
Brasil). ORCID http://orcid.org/0000-0003-4376-1080. Pós-doutorandano Programa de Pós-graduação em Educação
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: valdelainemendes@outlook.com
**
Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC SP, Brasil), com estágio pós-doutoral
pela Universidade do Minho (Uminho, Portugal). Professora convidada do Programa de Pós-graduação em Educação
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs, Brasil) e professora visitante na Universidade Federal de Pelotas
(UFPel, Brasil). ORCID http://orcid.org/0000-0001-6543-8431. E-mail: veraperoni@gmail.com
Recebido em 13/04/2019 – Aprovado em 29/08/2019
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i1.10575
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Valdelaine da Rosa Mendes
Abstract
There is, especially in the 21st century, a proliferation of think tanks that operate as producers and inuencers of
market ideas, advocating the reduction of state interventionism in decision making. This study aims to discuss
the inuence they have exerted on educational policies in order to broaden and intensify the penetration of ma-
rket interests in the educational area. To achieve this purpose, a discussion is held on the forms of privatization
that have brought the logic of the market into educational policies. An overview is given of the distribution of
organizations in the world, with characteristics of their funders and supporters. Finally, the principles that guide
the actions of two think tanks are presented, one American and two Brazilian, which focus on educational issues.
This study has shown that the interests of capital, represented by organizations funded by large corporations
(which are able to gain entrance into the press, governments, universities, social media and the cultural industry)
are intended to clearly determine the State a private perspective in the denition and design of educational
policies.
Keywords: Educational policy. Think tank. Privatization. Market.
Resumen
Existe, especialmente en el siglo XXI, una proliferación de think tanks que operan como productores e inuen-
ciadores de ideas acerca del mercado, que deenden la reducción del intervencionismo estatal en la tomada
de decisiones. Este estudio tiene como objetivo discutir la inuencia que han ejercido en la organización de las
políticas educacionales de forma a estrechar e intensicar la penetración de los intereses del mercado en el área
educacional. Para alcanzar este propósito realizamos una discusión acerca de las formas de privatización que
han permeado la lógica del mercado en el interior de las políticas educacionales; se ha trazado un panorama de
la distribución de esas organizaciones en el mundo, con las características de sus nanciadores y apoyadores.
Por n, son presentados los principios que orientan las acciones de dos think tanks: un estadunidense y dos
brasileños, con foco en las cuestiones educacionales. Este estudio ha demostrado que los intereses del capi-
tal, representados por organizaciones nanciadas por grandes empresas (con capacidad de penetración en la
prensa, en los gobiernos, en las universidades, en los medios de comunicación social y en la industria cultural),
pretenden claramente determinar al Estado una perspectiva privada en la denición y concepción de las políti-
cas educacionales.
Palabras-clave: Política educacional. Think tank. Privatización. Mercado.
Introdução
Os think tanks são organizações que existem desde o século XIX e atuam como
formuladoras de ideias e opiniões, produtoras de conhecimento e influenciadoras
de políticas públicas nas mais diversas áreas de atuação. Essas organizações estão
presentes em diferentes partes do planeta e operam muito próximas das instâncias
governamentais. Trata-se de um tipo de atuação capaz de dar o direcionamento
para os fundamentos das ações tanto no legislativo quanto no executivo.
Na segunda década do século XXI, há um crescimento significativo do número
de think tanks no mundo e, mais especificamente na América Latina, em áreas
como saúde, defesa, meio ambiente, educação, política externa, libertarianismo,
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entre outras. Essas organizações agem de forma articulada com outros grupos de
interesse e, mesmo com registro em uma nação, criam ramificações em diferentes
países, para exercer influência na formação de políticas e de opinião pública.
O Brasil assiste, em especial na segunda década do século XXI, o crescimento
dos think tanks pró-mercado, que podem operar eminentemente com as questões
econômicas, ou ter uma atuação ampliada para outras esferas da vida social como
meio ambiente, saúde, educação, violência, segurança pública, entre outras, atre-
ladas aos valores gerencialistas do mercado.
Ainda são poucos os estudos no país que se debruçam sobre a interpretação
do papel que essas organizações têm na educação brasileira. Observamos, tanto
dentro quanto fora do meio acadêmico, a urgência de aprofundamento sobre a am-
plitude, o tamanho e a capilaridade dessas organizações.
Este estudo tem como objetivo discutir a influência que os think tanks têm
exercido na organização das políticas educacionais, de forma a alargar e intensifi-
car a penetração dos interesses do mercado na área educacional. Neste artigo, em
um primeiro momento, é realizada uma discussão sobre as formas de privatiza-
ção que têm levado a lógica do mercado para o interior das políticas educacionais,
como reflexo de uma disputa por um projeto societário. Para entender o papel que
desempenham os think tanks, neste momento de desenvolvimento do capitalismo,
e sua influência nas políticas externas e internas dos países, logo em seguida, é
traçado um panorama da distribuição dessas organizações no mundo, com as ca-
racterísticas de seus financiadores e apoiadores. Depois de construída essa funda-
mentação, são apresentados os princípios que orientam as ações de think tanks, um
estadunidense e dois brasileiros, com foco nas questões educacionais.
Estado, mercado e formas de privatização
Este texto tem como base pesquisas acerca da relação entre o público e o pri-
vado na educação, entendida como parte de um processo de correlação de forças
que ocorre na sociedade. Partindo do conceito de políticas sociais como parte da
materialização do Estado, em um período particular do capitalismo, buscamos en-
tender como se efetiva a relação entre o público e o privado na educação, por meio
de sujeitos que defendem projetos societários distintos. Assim, o foco deste artigo é
mostrar como atuam dois sujeitos, via think tanks, vinculados ao mercado e qual o
conteúdo de suas propostas para a educação.
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Os processos de privatização do público podem ocorrer via execução e direção,
em que o privado opera diretamente na oferta da educação, ou quando a atuação do
privado ocorre na direção das políticas públicas ou das escolas, sendo que a proprie-
dade permanece pública (PERONI, 2016). Nesse sentido, reiteramos que na nossa
concepção, a relação público-privada não está vinculada apenas à propriedade, mas
à projetos societários em disputa em uma perspectiva de classe. Classe aqui enten-
dida como “uma relação e não uma coisa” (THOMPSON, 1981, p. 11), sendo que
“[...] não é esta ou aquela parte da máquina, mas a maneira pela qual a máquina
trabalha” (THOMPSON, 2012, p. 169).
Assim, os processos de privatização do público, materializam-se principalmen-
te através da disputa pelo conteúdo da educação, assim como, pelo fundo público.
Rikowski (2017) ressalta que existem duas formas básicas de privatização: a pri-
vatização direta, que se refere à propriedade e trata da conversão da receita do
Estado em lucro privado; e a privatização da educação, que se refere a formas de
controle sobre a educação por parte das empresas. É importante distinguir a na-
tureza da privatização, pois pode trazer diferentes consequências para a educação.
A privatização na educação envolve o controle das escolas e ocorre quando
não há mudança de propriedade, mas o privado assume o conteúdo da educação
com pautas como o individualismo, a competição, a meritocracia. Envolve o que
Rikowski (2017) chama de capitalização da educação, que ocorre quando o privado
transforma a receita estatal em lucro:
[...] a privatização da educação não é realmente sobre educação: trata-se de se beneficiar da
receita do Estado e transformá-la em lucro. [...] A política de privatização educacional (ou
de qualquer outra forma) é a obtenção de lucros, que por sua vez se baseia na capitalização
de instituições e serviços educacionais; educação tornando-se capital. Trata-se do desenvol-
vimento capitalista na educação (2017, p. 401).
Esta pauta é parte do diagnóstico neoliberal, pactuado pela terceira via (atual
social- democracia), de que o Estado é o culpado pela crise e o mercado deve ser o
padrão de qualidade. Nessa perspectiva, a responsabilidade pela execução e dire-
ção das políticas sociais deve ser repassada para a sociedade civil com ou sem fins
lucrativos.
A terceira via, desloca das bases teóricas históricas da social-democracia, a
questão da igualdade social para a meritocracia, passando de uma proposta coleti-
vista para uma individualista vinculada ao mercado, sem evidenciar a profundida-
de dessa mudança e suas consequências para a efetivação dos direitos sociais (PE-
RONI, 2013). Para Giddens (2007, p. 253), “os social-democratas precisam revisar
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não apenas sua abordagem, mas também seu conceito de igualitarismo [...] não há
futuro para o igualitarismo a todo custo, que absorveu por tanto tempo os esquer-
distas”. Nesse sentido, a terceira via defende o empreendedorismo como elemento
estruturante da sociedade para o enfretamento dos problemas sociais.
O empreendedorismo civil é qualidade de uma sociedade civil modernizada. Ele é neces-
sário para que os grupos cívicos produzam estratégias criativas e enérgicas para ajudar
na lida com problemas sociais. O governo pode oferecer apoio financeiro ou proporcionar
outros recursos a tais iniciativas (GIDDENS, 2007, p. 26).
A terceira via defende que a social-democracia deve passar dos princípios de
direitos sociais universais para uma concepção individualista. O objetivo geral “de-
veria ser ajudar os cidadãos a abrir seu caminho através das mais importantes
revoluções do nosso tempo: globalização, transformações na vida pessoal e nosso
relacionamento com a natureza” (GIDDENS, 2001b, p. 74). Assim, cada um é res-
ponsável por, individualmente, abrir o seu caminho de modo que as transformações
aconteçam na esfera pessoal e não societária. Essa concepção exacerba o que sem-
pre foi um princípio do capitalismo, o individualismo.
Harvey (2008), ao tratar da neoliberalização, que é o balanço da teoria neoli-
beral na prática, destaca que o mercado regula o bem-estar humano e a competição
é o mecanismo regulador. Assim, o sucesso e o fracasso são considerados indivi-
duais, resultado das virtudes empreendedoras do indivíduo. Para essa teoria, as
classes inferiores pioraram por razões pessoais e culturais, na tarefa de aprimorar
o capital humano e, consequentemente, a dedicação à educação. Tudo pode ser
tratado como mercadoria. A mercadificação presume a existência de direitos de
propriedade sobre processos, coisas e relações sociais. É o que o autor chama de
“mercadificação de tudo”.
Para Harvey (2008), as questões das liberdades individuais, no contexto atual,
trouxeram perdas para um projeto societário baseado na coletividade, justiça social
e democracia:
[...] os valores ‘liberdade individual’ e ‘justiça social’ não são necessariamente compatíveis.
A busca da justiça social pressupõe solidariedades sociais e a propensão a submeter von-
tades, necessidades e desejos à causa de uma luta mais geral em favor de, por exemplo,
igualdade social ou justiça ambiental (HARVEY, 2008, p. 51).
Verificamos, assim, que o individualismo é uma posição comum ao neolibera-
lismo e à terceira via. De alguma forma, as duas teorias propõem o repasse para a
sociedade, em alguma medida, da direção e da execução das políticas sociais.
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Valdelaine da Rosa Mendes
Atualmente, além do privado vinculado ao mercado também vivenciamos o neo-
conservadorismo. Conforme Moll Neto (2010, p. 65), a “ideologia neoconservadora
resgatou e reconstruiu pressupostos de correntes conservadoras que os antecederam,
basicamente do velho conservadorismo e do libertarianismo”. Conforme o autor, os
intelectuais que construíram as bases ideológicas do neoconservadorismo resgataram
do tradicionalismo a ênfase moral que, a partir da década de 1960, serviu para atacar
o Estado de Bem-Estar Social e os movimentos sociais liberais; e do libertarianismo,
a ideia de que a sociedade era uma relação contratual entre indivíduos e não um or
-
ganismo que guarda interesses e objetivos coletivos. Para eles, “[...] nada justificava
projetos estatais que interferissem na vida das pessoas e limitassem as liberdades,
sobretudo a econômica” (MOLL NETO, 2010, p. 67). A partir da crise da década de
1970, inicia-se uma mobilização neoconservadora por meio da criação de think tanks
em que “os empresários da nova direita organizaram fundações para reunir capital
para apoiar e financiar universidades, pesquisas e centros de estudo (think tanks) a
fim de elaborar projetos políticos nacionais” (MOLL NETO, 2010, p. 69).
Destacamos, assim, que a retirada de direitos sociais e trabalhistas, com a
lógica de mercado na esfera pública, bem como o avanço do neoconservadorismo
não foi simplesmente aceito pela população, foi um longo trabalho de sujeitos in-
dividuais e coletivos, organizados ou não em redes nacionais e internacionais. A
seguir, traremos o papel dos think tanks nesse processo de convencimento.
Rocha (2015, p. 262), define think tanks: “[...] como instituições permanentes
de pesquisa e análise de políticas públicas que atuam a partir da sociedade civil,
procurando informar e influenciar tanto instâncias governamentais como a opinião
pública no que tange à adoção de determinadas políticas públicas”. Desde o início
da sua atuação, a pretensa excelência dos think tanks pró-mercado estava em per-
tencer à sociedade civil, no sentido de não serem públicos, de serem apolíticos e
isentos, partindo do ideário neoliberal de que a crise é do Estado, sendo o mercado
o parâmetro de qualidade, como já apresentamos neste texto.
[...] estas organizações não sofreriam interferência ou pressão de grupos de interesse es-
pecíficos, como ocorreria em agências estatais, governos, universidades ou partidos, o que
lhes facultaria a possibilidade de conduzir suas atividades-fim de forma mais ‘neutra’,
‘científica’ e ‘desinteressada’, e por isso mais ‘confiável’ em comparação a outros locais de
pesquisa e produção de ideias e políticas públicas [...] (ROCHA, 2017, p. 97).
Apesar de se colocarem como neutros e apolíticos, os think tanks têm clara
perspectiva de classe. Moraes (2016) ressalta que os milionários americanos disse-
minaram a cultura de mercado, entre outros fatores, como parte do esforço de mu-
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dar a imagem do empresariado perante a opinião pública e influenciar o ambiente
político, por meio dos think tanks:
[...] a ‘novíssima direita’ cria e multiplica think tanks e aparatos de mídia (impressa, eletrô-
nica, virtual etc.) para modelar o ambiente político. De outro lado, operando também como
lobbies (pressionando para aprovação de certas políticas ou para o direcionamento das já
existentes), eles conseguem esse mesmo objetivo: policies make polity, diz a sentença. Assim,
por exemplo, ocorre com o fato de determinados programas públicos (provisão de saúde,
educação etc.) serem financiados pelo público, mas ‘entregues’ através de canais privados:
isto os faz, ainda que públicos, reconhecíveis pelo usuário como privados (2016, p. 240).
A seguir, abordaremos como atuam os think tanks, quem são, como estão dis-
tribuídos internacionalmente, quem são seus apoiadores e financiadores.
A distribuição dos think tanks no mundo
A Universidade da Pensilvânia, localizada nos Estados Unidos da América
(EUA), elabora anualmente um relatório dos think tanks mais influentes no mun-
do. Esses relatórios são produzidos desde o ano de 2007 e estão disponíveis para
consulta no site da universidade. Os critérios definidos pela instituição para ava-
liar cada think tank são: comprometimento e liderança de suas equipes; reputação
acadêmica; número, qualidade e alcance das publicações; presença nas redes so-
ciais; habilidade de recrutar e manter analistas de renome e desenvolver parcerias
com outras organizações, entre outros.
Os think tanks têm como propósito exercer influência tanto na política interna
dos países onde estão sediados, quanto nas políticas externas. Para tanto, criam
redes de relações e propagam-se por diversas nações. No ano de 2018, a Europa era
a região do planeta que concentrava o maior número de think tanks, acompanhada
da América do Norte, conforme pode ser visto na tabela a seguir:
Tabela 1 – Distribuição de think tanks no mundo em 2018
Região Quantidade
América do Norte 2.058
América do Sul e Central 1.023
África Subsaariana 612
Europa 2.219
Leste e Norte da África 507
Ásia 1.829
TOTAL 8.248
Fonte: University of Pensylvania Scholarly Commons. Global Go To Think Tank Index Reports, 2018.
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Essa é uma distribuição que mostra a presença de número significativo de
think tanks em todas as partes do mundo, entretanto, uma análise direcionada
para cada região revela que alguns países concentram a existência dessas orga-
nizações. De um total de 8.248, em 2018, um único país, os EUA, sediava 1.871
think tanks, o que representa quase um quarto da totalidade dessas organizações.
A tabela a seguir mostra os 25 países com maior número de think tanks nos anos
de 2008, 2017 e 2018.
Tabela 2 – Os 25 países com o maior número de think tanks, 2008, 2017, 2018
País
2008 2017 2018
Quantidade Colocação Quantidade Colocação Quantidade Colocação
Estados Unidos 1.777 1.872 1.871
Reino Unido 283 444 321
Alemanha 186 225 218
França 165 197 203
Argentina 122 146 227
Índia 121 293 509
Rússia 107 103 215
Japão 105 116 128
Canadá 94 100 10º 100 12º
Itália 87 10º 100 10º 114 10º
África do Sul 78 11º 92 12º 92 13º
China 74 12º 512 507
Suíça 72 13º 76 14º 78 17º
Suécia 68 14º 89 13º 90 14º
Holanda 55 15º 76 14º 83 16º
México 54 16º 74 16º 86 15º
România 53 17º
Espanha 49 18º 63 21º 66 22º
Bélgica 49 19º 61 23º
Israel 48 20º 67 18º 69 19º
Ucrânia 45 21º
Hungria 40 22º
Polônia 40 23º 60 24º
Brasil 39 24º 93 11º 103 11º
Nigéria 38 25º
Áustria 68 17 º 74 18º
Olívia 66 19 º 66 20º
Chile 63 21 º 64 22º
Colômbia 64 22º
Irã 64 20 º 64 22º
Taiwan 58 25 º 61 25º
Fonte: University os Pesylvania Scholarly Commons. Global Go To Think Tank Index Reports, 2008, 2017 e 2018.
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Na Tabela 2, é possível observar que os cinco países com maior número de
think tanks somam quase 44% do total existente no mundo. Os EUA, o primeiro co-
locado, não muda de posição e tem um crescimento dessas organizações de aproxi-
madamente 5% de 2008 para 2018, diferentemente do que ocorre com Índia, China
e Brasil que têm um crescimento expressivo e mudam de posição na classificação
da Universidade da Pensilvânia. A Índia ocupava a 6ª colocação em 2008, com 121
think tanks, e passa a ocupar a 2ª posição em 2018, com 509, o que significa um
aumento de 322%. A China ocupava a 12ª colocação em 2008, com 74 think tanks,
e passa a ocupar a 3ª em 2018, com 507, o que representa uma expansão de 585%.
Além dos três países que se encontram nas primeiras colocações vale aqui
observar a posição da Argentina e do Brasil. A Argentina ocupava a 5ª colocação
em 2008, com 122 think tanks, e conserva a mesma posição em 2018, mas com 227
organizações e um crescimento de 86%. O Brasil, que particularmente interessa a
este estudo, ocupava em 2008 a 24ª colocação e passa a ocupar a 11ª em 2018, com
um aumento de 165% no número de think tanks. Apenas três países da América
Latina aparecem entre os 25 primeiros colocados na classificação quantitativa do
Relatório da Pensilvânia. Além de Argentina e Brasil, o Chile figura em 22º lugar,
com 64 think tanks, no Relatório de 2018.
O quantitativo de organizações internas pode não representar exatamente a
força de influência dos think tanks nas políticas locais, já que o relatório analisa a
organização com base na informação de localização de sua sede e não na atuação
internacional. Muitas dessas organizações possuem sede em um país, mas operam
em dezenas de outras nações, exercendo grande influência na política interna dos
países.
Na tabela 2, é possível perceber que justamente os países que compõem o
G20
1
, em sua maioria, figuram entre aqueles com maior número de think tanks. As
duas maiores economias do mundo EUA e China ocupam as primeiras colocações
no ranking. Há, indubitavelmente, uma correlação entre think tanks e a conser-
vação do modo de produção capitalista. Prevalece na atuação dos think tanks pró-
-mercado (conservadores e libertários) a lógica da defesa da liberdade econômica,
sendo os libertários mais avessos a qualquer intervenção do Estado na promoção de
políticas sociais (TEIXEIRA, 2007). Há produção e difusão de conhecimentos para
alavancar políticas públicas alicerçadas nos princípios da liberdade individual, em
detrimento da organização de políticas que promovam a redução da concentração
de riqueza. É o que Harvey (2008) chama de projetos incompatíveis com a justiça
social.
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Valdelaine da Rosa Mendes
Essas organizações atuam nas mais variadas áreas para influenciar econô-
mica, social e culturalmente os povos, tanto na elaboração de políticas, quanto na
formação da opinião pública, para fazer valer os interesses dos grupos que represen
-
tam e dos que financiam essas instituições, aspecto que revela o perfil do think tank.
Eles realizam pesquisas, produzem materiais, sistematizam dados, concedem en
-
trevistas em canais de TV e escrevem artigos para jornais, como forma de inculcar,
em parcela significativa da sociedade, suas formas de interpretação da realidade.
Para Ravitch (2011), em gerações de acadêmicos e jornalistas foram incubadas
ideias pró-mercado por essas organizações. A autora faz uma análise da realidade
estadunidense e mostra que a defesa dos interesses do capital não ficará restrita ao
período de um governo, pois ao serem assimiladas por gerações, serão defendidas
por indivíduos ou grupos, mesmo ao término dos mandatos.
A seguir, apresentaremos a relação de um think tank internacional, Instituto
Brookings com um think tank brasileiro, Fundação Getúlio Vargas (FGV). Esco-
lhemos este exemplo, pois, o Instituto Brookings é o think tank mais bem avaliado
no Relatório da Universidade Pensilvânia, por vários anos, e tido como o mais
influente no mundo e, a FGV, por ser o think tank mais influente na América do
Sul e Central, no mesmo Relatório, e por abrigar o Centro de Excelência e Inovação
em Políticas Educacionais (Ceipe), primeiro think tank especializado em política
educacional no Brasil.
Instituto Brookings e Fundação Getúlio Vargas: parceiros no Brasil
O Instituto Brookings, sediado em Washington, foi fundado em 1916 e, de
acordo com Teixeira (2007, p. 123), nas últimas décadas, concentrou esforços “para
desenvolver novas abordagens para saúde, políticas fiscais, educação, bem-estar
social, serviço público, financiamento de campanhas eleitorais e o novo ambien-
te de segurança internacional resultante do fim da Guerra Fria e da integração
global”. A autora ainda lembra que, após o 11 de setembro de 2001, passaram a
ganhar maior atenção da organização temas como: terrorismo, democracia, segu-
rança x liberdade individual, assim como questões de governança e liderança.
O Instituto Brookings “é uma organização sem fins lucrativos dedicada a pes-
quisas independentes e aprofundadas que levam idéias pragmáticas e inovadoras
sobre como resolver problemas enfrentados pela sociedade” (BROOKINGS INSTI-
TUTE, 2018, não paginado). É uma organização que se define como independente
e neutra em relação às questões que analisa.
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Estado, mercado e formas de privatização: a inuência dos think tanks na política educacional brasileira
Essa é uma característica que pode ser observada nos thinks tanks pró-mer-
cado, como se a interpretação dos dados de pesquisa pudesse estar desconectada
dos pressupostos epistemológicos que fundamentam os processos investigativos
(GAMBOA, 2012); como se a própria escolha de um tema ou foco para análise não
estivesse carregada de intenções e interesses e pudesse ser considerada indepen-
dente e neutra. A pretensa neutralidade das organizações pode ser analisada a
partir da composição dos seus financiamentos, conforme observamos no gráfico 1,
que apresenta dados do Instituto Brookings:
Gráfico 1 – Composição do orçamento do Instituto Brookings
Fonte: Brookings, quality, Independence, impact, 2018, annual report.
Destacamos que a composição orçamentária de um think tank é muito impor-
tante para entender os interesses que determinam e definem as ações a serem exe-
cutadas, o que coloca “em xeque” a independência dessas organizações. As fundações
privadas exercem, nos EUA, uma influência importante nas reformas educacionais,
já desde a segunda metade do século XX. Se, por longo tempo, os investimentos pri-
vados, oriundos de doações e subvenções, não representavam uma ameaça porque
eram destinados às instituições educacionais, que decidiam autonomamente como
alocar esses recursos, isso se modifica, a partir dos anos 1990, quando as reformas
educacionais naquele país passam a sofrer a influência direta dos “filantropos”, que
usam seus recursos para promover seus objetivos na área educacional e “defender
estratégias de reforma que espelhavam sua própria experiência em adquirir grandes
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fortunas, como a competição, a escolha escolar, a desregulamentação, os incentivos e
outras abordagens de livre-mercado” (RAVITCH, 2011, p. 224).
As prioridades educacionais são antagônicas às prioridades do mercado, po-
rém “a oferta de uma doação multimilionária por uma fundação é o bastante para
fazer com que a maior parte dos superintendentes e conselhos escolares largue
tudo e reorganize suas prioridades” (RAVITCH, 2011, p. 224).
O grande perigo da presença dessas instituições nos sistemas educacionais
é que elas não são organizações públicas, a sua intervenção nas escolas e redes
não está sujeita ao controle público do cidadão. Sobre esta questão, Ravitch (2011,
p. 225) analisa o papel da intervenção das fundações privadas nos EUA e afirma
que “elas assumiram por si mesmas a tarefa de reformar a educação pública, tal-
vez de maneiras que nunca sobreviveriam ao escrutínio dos eleitores em qualquer
distrito ou estado. Se os eleitores não gostam da política de reforma da fundação,
eles não podem votar para que ela saia do cargo”.
No quadro a seguir, são apresentados alguns dos doadores do Instituto Broo-
kings, devidamente alocados na sua faixa de doação.
Tabela 3 – Doadores Instituto Brookings
Faixa de doação em U$ Nome da Instituição Total de Doadores
2.000.000 ou mais Bill & Melinda Gates Foundation
Anne T. and Robert M. Bass
06
1.000.000 – 1.999.999
Laura and John Arnold Foundation
BHP Foundation
10
500.000 – 999.999
Ford Foundation
LEGO Foundation
16
250.000 – 499.999
Bank of America
Microsoft Corporation
The Rockefeller Foundation
38
100.000 – 249.999
Shell
Facebook
Hewlett-Packard Company
Omidyar Network
PepsiCo
Volvo Research and Educational Foundation
92
50.000 – 99.999
Amazon.com
Intel Corporation
Visa Inc.
88
25.000 – 49.999 Airlines for America 67
10.000 – 24.999* 94
5.000 – 9.999* 40
Up to 4.999* 176
Total 527
Fonte: Brookings 2018, Annual Report 
* nessas faixas não são mencionados os nomes, apenas a quantidade de doadores.
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Estado, mercado e formas de privatização: a inuência dos think tanks na política educacional brasileira
Na Tabela 3, aparecem empresas que operam no ramo financeiro, automobi-
lístico, aéreo, de combustíveis, de brinquedos, de bebidas, de e-comerce. Empresas
com atuação diversificada no mercado e que estão presentes em diferentes partes
do planeta, tanto no comércio quanto na produção de mercadorias. Foram 527 doa-
dores no ano de 2018 para o Instituto Brookings. São volumosos aportes finan-
ceiros feitos diretamente por empresas, ou fundações vinculadas a empresas ou a
grandes acionistas, para financiar think tanks que levam as forças pró-mercado e
os valores capitalistas para diversos campos da vida social.
Neste estudo, interessa compreender como se constitui e como atua o Instituto
Brookings, tanto pelo lugar que ocupa como um think tank no mundo, quanto pela
parceria que firma com uma importante organização brasileira que realiza amplo
trabalho na área educacional, a Fundação Getúlio Vargas (FGV). No relatório da
Universidade da Pensilvânia, a FGV aparece em primeiro lugar, como o think tank
mais influente na América do Sul e Central.
No ano de 2016 é inaugurado no Brasil o Ceipe, lotado na Escola de Adminis-
tração Pública e de Empresas (Ebape) da FGV. O Ceipe está vinculado ao Progra-
ma de Política Educacional Internacional da Universidade de Harvard e conta com
o apoio do Instituto Brookings. No Brasil seus parceiros são: a Fundação Lemann,
o Instituto Unibanco, o Instituto Natura, o Itaú Social, a Fundação Maria Cecília
Souto Vidigal, o Itaú BBA e a Omidyar Network. Compõem o conselho da organiza-
ção representantes da Fundação Lemann, da Fundação Maria Cecília Vidigal, do
Instituto Unibanco, da Aondê Educacional, da Granergia, do Todos pela Educação
e representantes da FGV.
De acordo com os dados disponibilizados pela FGV, trata-se do primeiro think
tank brasileiro especializado em política educacional que pretende influenciar a
organização das políticas nas secretarias de educação no país.
O Ceipe tem como missão contribuir para que o Brasil tenha uma educação pública equitati-
va, inovadora e de qualidade por meio do apoio às Secretarias no desenho e implementação
de políticas educacionais, da produção de conhecimento aplicado em políticas educacionais
e da formação de líderes (FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS, 2019).
Com o declarado propósito de melhorar a educação brasileira, o Ceipe concen-
tra suas atividades em três áreas de trabalho: apoio às redes públicas de ensino,
produção de conhecimento aplicado e formação de líderes. Como já mencionado,
está lotado na Ebape, uma unidade da FGV, que, tradicionalmente, forma admi-
nistradores de empresas em uma perspectiva afinada com a lógica do mercado.
Conceitos como meritocracia, concorrência, liderança e liberdade individual orien-
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tam o trabalho dessa organização e da formação acadêmica dos estudantes que
frequentam cursos de graduação e pós-graduação na instituição.
O Ceipe apresenta-se como um think tank que pretende contribuir diretamen-
te na qualificação da educação básica ao afirmar: “possuímos uma visão ambiciosa:
almejamos nos tornar um centro de referência nacional e internacional em políti-
cas educacionais, contribuindo de forma significativa e duradoura para a melhoria
da educação básica brasileira” (FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS, 2019, não pagi-
nado). Mesmo com o curto período de existência o Ceipe já atuou em quatros mu-
nicípios brasileiros: Pelotas/RS, Lajeado/RS, Guarulhos/SP e Taubaté/SP. Entre as
ações desenvolvidas estão: gestão pedagógica, gestão da rede e gestão financeira.
Esse braço da FGV tem menos de três anos de existência, mas merecerá um
acompanhamento da comunidade acadêmica, pois sustenta suas propostas e proje-
tos na lógica do mercado e pretende exercer grande influência na organização das
políticas educacionais. Para as organizações que pautam sua atuação na defesa
incondicional à propriedade privada e à economia de mercado, o monopólio do Es-
tado na definição e indução dos modelos educacionais para uma nação, representa
uma ameaça à perpetuação de valores e princípios que promovam a conservação
das estruturas sociais.
A seguir, abordaremos o Instituto Millenium, que se define como um think
tank representativo dos interesses das classes dominantes brasileiras (CASIMI-
RO, 2018a), com estrutura e meios organizacionais que pretendem a penetração
em instâncias de decisão estatais e, a área educacional, é uma delas.
Instituto Millenium: o liberalismo e o mercado na educação
O Instituto Millenium foi lançado em 2006, durante a realização do XIX Fórum
da Liberdade, em Porto Alegre/RS. De acordo com Casimiro (2018b), o discurso em
defesa do mercado e dos princípios liberais atraiu membros que atuavam em meios
de comunicação de largo alcance no país, como TV Globo; Grupo Abril; Jornais Fo-
lha de São Paulo, O Estado de S. Paulo e Valor Econômico. Para Casimiro (2018b,
p. 44) “uma fração representativa desses jornalistas e empresários está ligada a
inúmeras universidades brasileiras e, de alguma forma – seja como colunista, re-
dator ou como dirigente –, a outros importantes veículos de comunicação da grande
mídia brasileira”, o que significa o alcance de milhões de pessoas, de diferentes
grupos e camadas sociais, com grande capilaridade no tecido social brasileiro.
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Estado, mercado e formas de privatização: a inuência dos think tanks na política educacional brasileira
Uma publicação no site do Instituto Millenium do ano de 2009, intitulada “O
que significa um think tank no Brasil hoje” permite a compreensão de qual é a
concepção dessa organização.
O conceito de think tank faz referência a uma instituição dedicada a produzir e difun-
dir conhecimentos e estratégias sobre assuntos vitais – sejam eles políticos, econômicos ou
científicos. Assuntos sobre os quais, nas suas instâncias habituais de elaboração (estados,
associações de classe, empresas ou universidades), os cidadãos não encontram facilmente
insumos para pensar a realidade de forma inovadora (INSTITUTO MILLENIUM, 2009).
Na perspectiva do Instituto Millenium os think tanks são capazes de fornecer
respostas aos problemas coletivos de forma mais eficiente que os governos. Há uma
reivindicação da condução e da formulação das políticas por parte dessas organi-
zações. Isso representa uma brutal ameaça à democracia na medida em que essa
condução é repassada para instâncias privadas sem a legítima delegação do voto.
No referido artigo é afirmado, se “comparado com a realidade dos Estados Uni-
dos e dos principais países europeus, o Brasil é hoje quase um deserto de think tanks”.
De fato, de acordo com a Tabela 2, apresentada anteriormente, no ano de 2008 o
Brasil, figurava na 24ª colocação, com 39 think tanks no Relatório da Pensilvânia,
número pequeno se comparado aos países que ocupavam as primeiras colocações.
O Instituto Millenium propõe-se a atuar como um verdadeiro intelectual co-
letivo (CASIMIRO, 2018a) voltado para a difusão da ideologia
2
do mercado, sus-
tentado na crítica ao intervencionismo do Estado como responsável pela criação de
obstáculos ao crescimento econômico do país. Essa percepção pode ser identificada
no seguinte trecho da publicação da organização, “nas sociedades modernas e cada
vez mais complexas, [...], há a necessidade de espaços que reúnam pessoas de des-
taque, com autonomia suficiente para se atreverem a contestar criativamente as
tendências dominantes, especialmente quando elas se tornam anacrônicas” (INS-
TITUTO MILLENIUM, 2009).
Para alavancar ideias e propor soluções para os problemas brasileiros, a ne-
gação da ideologia e a defesa da neutralidade do pensamento são declarados como
princípios que devem orientar o comportamento daqueles que integram um think
tank pró mercado:
[...] um think tank está obrigado a colocar as ideologias num segundo plano. Seus membros
não podem nunca guiar seus comportamentos de forma ideológica, se quiserem cumprir seu
papel. As ideologias podem dar eventualmente subsídios importantes para pensar a realida
-
de, mas na hora de emitir juízos e elaborar estratégias, antes de qualquer ideologia, se coloca
a análise crua e concreta da dinâmica da realidade. Por assim dizer, os think tanks devem,
assumir seus valores de forma científica e pragmática (INSTITUTO MILLENIUM, 2009).
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Para assegurar credibilidade e confiabilidade a um think tank pró-mercado
é defendida a sua competência técnica, desprovida de intencionalidade política.
Esse discurso se mantem mesmo quando integrantes da organização vão ocupar
cargos importantes em uma gestão governamental. A CEO do Instituto Millenium,
Priscila Pereira Pinto, quando questionada sobre a escolha de nomes como Paulo
Guedes, Salim Mattar, Marcos Troyjo e Paulo Uebel, ligados ao instituto, para
compor a equipe do governo Jair Bolsonaro declarou:
A gente está sentindo um orgulho enorme. O Instituto Millenium contribui há mais de dez
anos com conteúdo para um público bem amplo. Ao longo desses dez anos, essas pessoas fize
-
ram parte da nossa rede de articulistas, rede de entrevistados, rede de conselheiros. Foi muito
empolgante para o instituto ver que esse conteúdo, isto é, as ideias que eles compartilhavam
no nosso site, nas nossas redes sociais, nos nossos eventos e no “Imil na sala de aula”, chega
-
ram ao governo. Por essas pessoas serem muito técnicas e preparadas acabam sendo convi-
dadas a executar propostas específicas com todo esse conhecimento que têm (PINTO, 2018).
É relevante destacar que mesmo ocupando funções importantes em um gover-
no, com declarada e evidente afinidade com viés político conservador, a CEO insiste
no pressuposto da competência técnica, como requisito eminentemente necessário
para a execução e indicação para as funções.
Em uma busca no site, para compreender a composição orçamentária do Ins-
tituto Millenium, localizamos um quadro com receitas e despesas de 2009 a 2018 e
relatórios de atividades de exercícios de 2015 a 2018. São documentos resumidos,
mas permitem identificar que as receitas duplicam de 2009 para 2018 e que são
predominantemente formadas por doações.
Tabela 4 – Evolução das despesas e receitas do Instituto Millenium
Natureza da Receita 2009 2018
Doações 524.000,00 952.083,76
Financeiras 54.000,00 305.947,18
Eventos 42.000,00 6.000,00
DESPESAS 632.000,00 1.041.565,13
Operacionais 393.500,00 845.563,25
Website 37.500,00 135.822,38
Eventos e ações 154.000,00 23.136,64
Redes 34.500,00 33.871,02
Financeiras e outras 12.800,00 3.171,84
SALDO 12.000,00 222.465,81
FUNDO PATRIMONIAL 160.000,00 316.884,63
TOTAL DE RECEITAS 620.000,00 1.264.030,94
Fonte: INSITUTO MILLENIUM.
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Estado, mercado e formas de privatização: a inuência dos think tanks na política educacional brasileira
O predomínio das despesas está na faixa “operacional”, no entanto, não é onde
se evidencia a maior concentração de gastos, já que nos relatórios de exercício os
eventos são as atividades que prevalecem no Instituto Millenium. Os referidos re-
latórios de exercício, disponíveis para consulta, limitam-se à exposição dos eventos
promovidos e/ou apoiados pela organização, com dados como: nome do evento, data,
público presencial, palestrante e tema. Não há um detalhamento de onde vêm os
recursos, quem são os doadores ou apoiadores.
Interessa particularmente a este estudo destacar o “IMIL na sala de aula” que
são atividades realizadas no interior de instituições de ensino superior no país,
com o objetivo de “discutir com os jovens valores como liberdade, Estado de direi-
to, economia de mercado e democracia” (INSTITUTO MILLENIUM, 2018). São
atividades promovidas gratuitamente pelo Instituto Millenium para possibilitar
o encontro entre “especialistas de sua rede e alunos dos cursos de graduação”. A
especificidade de um think tank de difundir valores e formar a opinião pública
– contrariando a pretensa neutralidade – se explicita nesta declaração: “O Insti-
tuto Millenium acredita que é de fundamental importância difundir seus valores
entre o público jovem, pelo seu importante papel na construção de um Brasil mais
próspero e jovem” (INSTITUTO MILLENIUM, 2018). A CEO da organização, faz
algumas considerações ao avaliar essa ação do Instituto.
O Imil na sala de aula é o meu “bebê”. É um projeto que eu criei em 2011 para o Instituto
Millenium. Antes de virar CEO do Instituto, dava palestras para universidades, lidava
diretamente com jovens, e percebia que faltava conteúdo em sala de aula, até nas apresen-
tações dos professores, para que pudessem debater qualquer assunto. Por exemplo, direitos
humanos, microeconomia. Havia um déficit de conteúdo tanto material quanto oral. Os
professores só tinham uma visão estabelecida. Entravam em sala de aula, só pas-
savam essa visão e os alunos compravam a ideia, mas no fundo ficavam em dúvida se só
tinha isso mesmo funcionando no Brasil. Como tínhamos uma rede de 120 especialistas
no Instituto Millenium, nos perguntamos sobre e por que não convidar essas pessoas para
palestrar nas salas de aula. Muitos não são professores, sequer palestrantes, mas
são especialistas, técnicos na área em que atuam. Essas pessoas podiam entrar em
sala de aula e conversar, por exemplo, sobre o que é o tripé econômico, o que é a liberdade
de expressão, o que são as fake news. O alvo inicial eram as universidades públicas, tanto
federais quanto estaduais. Mas o projeto ficou de tal tamanho que até os particulares co-
meçaram a convidar o Instituto Millenium a entrar. O nosso relacionamento é direta-
mente com os alunos: a gente não passa pela burocracia da reitoria, de conversas
com mil departamentos entre universidades. Não é essa a proposta (PINTO, 2018,
grifo nosso).
Esse é um dado que merece reflexão, pois nas instituições públicas de ensino
superior os eventos são, normalmente, discutidos, analisados e avaliados em várias
instâncias, justamente para assegurar tanto o conhecimento e o registro, quanto
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a pertinência da ação no interior da instituição. São registros públicos que podem
ser acessados por qualquer cidadão de forma transparente. Não se trata de mera
burocracia, mas de uma forma de organização do trabalho que possibilite o controle
social sobre a coisa pública e impeça que cada indivíduo tome suas decisões e faça
suas escolhas, como o faz no âmbito privado da sua existência. Ao buscar atuar
diretamente com os alunos e fazer uma crítica à organização das universidades,
o Instituto Millenium procura, na realidade, introduzir outra forma de agir em
uma organização pública, mais individualista e privada e menos transparente e
democrática.
O “IMIL na sala de aula” já realizou 135 edições, em instituições públicas
3
e
privadas, que ocorreram nas regiões sul, sudeste, nordeste e centro oeste do país.
Há um pequeno predomínio dessa promoção nas instituições privadas, que recebe-
ram pouco mais da metade dos palestrantes do Instituto Millenium, com destaque
para as católicas, como Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e
Universidade Católica de Brasília, que tiveram sete e cinco eventos, respectiva-
mente. Entre as públicas a Universidade de São Paulo, a Universidade Federal do
Mato Grosso do Sul e a Universidade Federal do Rio de Janeiro concentraram os
maiores números de atividades com nove, oito e sete palestras, respectivamente.
Os temas das palestras são bastante variados e versam sobre macroeconomia,
capitalismo de Estado, liberalismo, empreendedorismo, criatividade, inovação, me-
ritocracia. Com relação aos palestrantes observamos que prevalece uma diversida-
de de expositores. Contabilizaram-se nas 135 edições 68 palestrantes diferentes
para conduzir as atividades, sendo destes apenas nove mulheres. Em sua maioria,
são realizadas individualmente, já que, em apenas oito edições, atuaram duplas
ou trios de palestrantes. Merece destaque a atuação de Vitor Wilher, com a partici-
pação em 18 momentos diferentes, expondo sobre temas variados como: economia
de mercado; criatividade, inovação e desenvolvimento econômico; meritocracia e
cobrança de mensalidades nas universidades.
Na edição 128, do “IMIL na sala de aula”, realizada na Universidade Federal
de Pelotas, no ano de 2019, com o tema “Cobrança de mensalidades nas universida-
des”, o palestrante Vitor Wilher, logo no início da sua exposição, afirmou que aquela
palestra encontraria muitas barreiras em uma instituição pública alguns anos an-
tes. Isto porque, na sua opinião, certamente grupos identificados com partidos de
esquerda promoveriam manifestações para impedir a realização de um evento, que
pretendesse discutir a cobrança de mensalidades, em uma universidade pública,
mas reconhece, com evidente satisfação, que se trata de um outro momento em que
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Estado, mercado e formas de privatização: a inuência dos think tanks na política educacional brasileira
– ao se falar sobre um tema como esse, que ataca um dos pilares mais importantes
da educação pública brasileira, dentro de uma instituição federal de ensino – não
se encontra resistência, impedimento ou mesmo manifestação contrária.
Barreiras antes intransponíveis agora são atravessadas. Cumpre o seu papel
o think tank de “difundir seus valores entre o público jovem pelo seu importante
papel na construção de um Brasil mais próspero e livre” (INSTITUTO MILLE-
NIUM, 2018).
[...] a questão crucial, sob o domínio do capital, é assegurar que cada indivíduo adote como
suas próprias as metas de reprodução objetivamente possíveis do sistema [...] no sentido
verdadeiramente amplo do termo educação, trata-se de uma questão de “internalização”
pelos indivíduos [...] da legitimidade da posição que lhes foi atribuída na hierarquia social,
juntamente com suas expectativas ‘adequadas’ e as formas de conduta ‘certas’, mais ou me-
nos explicitamente estipuladas nesse terreno. (MÉSZAROS, 2005, p. 44, grifos do autor).
Na análise de cada edição do “IMIL na sala de aula” percebemos que a quan-
tidade de presentes varia de instituição para instituição. Há eventos com 650
participantes em uma edição e eventos com 7 em outra. De modo geral, há um
predomínio de palestras com menos de 60 pessoas. Porém, ainda que o número de
presentes possa ser um indicador importante para avaliar a amplitude do público
atingido e, consequentemente, pela possibilidade de exposição de determinados va-
lores e conhecimentos, o que talvez mereça uma atenção maior é a receptividade
que determinados temas passam a ter nas instituições de ensino, o que minimiza
a relevância do número de participantes e amplia a importância da penetração e
de um possível enraizamento de determinados valores e princípios no interior das
instituições de ensino, como ocorreu na Universidade Federal de Pelotas.
A produção e a disseminação de material é uma das estratégias utilizadas pe-
los think tanks para convencer as pessoas sobre suas formas de enxergar o mundo,
suas convicções e suas propostas de intervenção na realidade, ainda que insistam
na premissa de que são neutros, desprovidos de ideologia, apartidários
4
. Entre os
materiais disponíveis para consulta no site do Instituto Millenium foram aqui se-
lecionados aqueles que representam mais fortemente a força que o capital exerce
na formação humana, justamente pelo tipo de público que almeja atingir. Além do
“Imil na sala de aula” foi, para este estudo, analisada a produção e divulgação de
dois livros infantis. O link em destaque dentro do site do Instituto Millenium cha-
mado “Turminha da Liberdade” remete para a divulgação de dois livros produzidos
pelo Instituto Liberdade e Justiça (ILJ), seguido de ampla matéria, produzida pelo
Instituto Millenium, sobre as características e o conteúdo dos livros: “Antônio e o
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segredo do universo em breves lições” e “Anya e o mistério do sumiço do cãozinho
Galt” (INSTITUTO MILLENIUM, 2019).
Os dois livros são inspirados nas ideias defendidas por nomes do liberalismo
como Ludwig Von Misses. O livro “Antônio e o segredo do universo em breve lições”,
pretende “trazer para o universo infantil os ensinamentos contidos no livro ‘As seis
lições’, do economista Ludwig von Mises” (INSTITUTO MILLENIUM, 2019). O
autor do livro, Giuliano Miotto, afirma na matéria que deseja “levar o liberalismo
aos pequenos” (INSTITUTO MILLENIUM, 2019), e destaca a importância de tra-
balhar valores, desde os primeiros anos de vida escolar e não escolar das crianças,
que favoreçam a conservação das estruturas do capital. Em uma declaração
5
o au-
tor do livro afirma:
Acredito na importância dos valores que a Turminha defende. O que está sendo passado
para as crianças são valores errados e coletivistas e que retiram a importância e a res
-
ponsabilidade do indivíduo. A meritocracia, por exemplo, é mal-entendida. Muitos acham
que o mérito dos outros tem que ser dividido com todos. Portanto, ensinar meritocracia, no
ambiente escolar, é fundamental, já que a escola vem privilegiando a mediocridade”, critica
Miotto, salientando a ineficiência do sistema também com os professores: É um sistema todo
errado que premia mal os bons profissionais. Os bons professores da rede pública não têm
estímulo nenhum para serem bons ou investirem o tempo deles em conhecimento e em uma
boa didática. A meritocracia é fundamental para que o sistema educacional brasileiro saia
deste buraco onde ele está. A educação precisa de liberdade, inclusive didática. Ter mais
liberdade de conteúdos e não ficar tão amarrada a uma agenda governamental, que é tam
-
bém um fator que prejudica bastante a educação infantil (INSTITUTO MILLENIUM, 2019).
Essa produção para o público infantil é reveladora do propósito de internali-
zar
6
nas crianças os princípios e valores que orientam o capital, o que comprova
a existência de uma verdadeira batalha de ideias em disputa por um projeto de
educação para o país.
Nas duas ações do Instituto Millenium aqui analisadas evidenciamos uma crí-
tica ao trabalho dos professores, no primeiro (“Imil na sala de aula”), por apresen-
tarem uma única visão aos alunos sobre determinados temas; na segunda (livros
infantis), por não estarem sujeitos a um sistema de bonificação e compensação pelo
esforço individual e pelo mérito, não teriam qualidade.
Considerações nais
Já foi amplamente demostrado pela literatura educacional brasileira (SAVIA-
NI, 2018; PARO, 2012; PERONI 2016) a incompatibilidade entre os valores que
orientam a ação do mercado e os que sustentam um projeto de educação democráti-
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Estado, mercado e formas de privatização: a inuência dos think tanks na política educacional brasileira
ca. Se, no primeiro, a exploração da força de trabalho, as relações de mando e sub-
missão, a valorização da concorrência, a criação de rankings e o estabelecimento de
classificações são inerentes a um sistema que tem como finalidade o aumento da
taxa de lucro e da riqueza; no segundo, tais premissas se constituem verdadeiros
entraves à formação de sujeitos independentes. Neste caso, à escola cabe contribuir
para criar as condições para uma percepção do lugar que cada um ocupa na socie-
dade e sua relação com as condições históricas que produziram as diferenciações de
posições. Um projeto de educação democrática busca uma formação que possibilite
uma intervenção qualificada na vida social na luta por uma sociedade mais justa
e menos desigual.
Os think tanks pró-mercado, na condição de “laboratório de ideias”, têm cum-
prido o papel de desconstruir e destruir qualquer projeto que se volte para a cole-
tividade. A eliminação das hierarquias nas instituições de ensino, a formação de
coletivos, o compartilhamento de decisões, o abandono do princípio da avaliação
escolar classificatória, tão reivindicados pela sociedade brasileira (movimentos so-
ciais, sindicatos, organizações estudantis) nas últimas décadas, sofre um processo
de destruição interna. A valorização da colaboração dá lugar à competição, à res-
ponsabilização e ao individualismo. Os princípios adotados no mercado para obter
lucro, precisam agora fazer parte do universo educacional.
No caso brasileiro, olhamos neste estudo, para duas organizações que apare-
cem no Relatório da Pensilvânia como instituições que exercem influência interna
no país, para identificar algumas premissas que orientam suas ações no campo
educacional. Foram escolhidos o Instituto Millenium e a Fundação Getúlio Vargas.
O primeiro, pela vinculação com as questões econômicas e por ter integrantes em
seus quadros que exercem funções nos governos. Esse perfil é relevante porque as
determinações das políticas econômicas repercutem em todas as áreas de atuação
do governo. Olhar para as políticas globais é necessário para entender como se
constituem as ações na área educacional. O segundo, pela sólida atuação no país e,
especialmente, por ter criado recentemente um segmento definido como o primeiro
think tank brasileiro de política educacional.
Observamos, ainda, as implicações para a democratização da educação, em
nosso país e as consequências para um projeto societário democrático, pela impor-
tância que tem a educação para essa construção. A existência de think tanks espa-
lhados pelo mundo com viés progressista, não atrelados aos interesses do capital,
não tem sido capaz de fazer frente à pesada influência de organizações que são
financiadas por grandes empresas com capacidade de penetração na imprensa, nos
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governos, nas universidades, nas mídias sociais, na indústria cultural. São gera-
ções formadas em um modelo pautado na aceitação dos princípios que reproduzem
os valores dominantes na sociedade e na resignação em relação à posição social
ocupada por cada indivíduo (MÉSZAROS, 2005).
Notas
1
Grupo das 19 maiores economias do mundo mais a união europeia.
2
Conceito refutado pela organização que se posiciona contra as ideologias.
3
Na análise das edições do IMIL na sala de aula foram contabilizadas atividades em 22 instituições de
ensino superior públicas diferentes (a maioria é federal) e em 34 privadas. Há um número inexpressivo
de palestras que foram realizadas em empresas, secretarias de algum estado ou em um evento. O último
levantamento foi realizado em 30 de julho de 2019.
4
“Apartidária, a organização já lançou livros, eventos, vídeos e podcasts” (Boletim da Liberdade, 2018).
5
O Instituto Millenium realiza uma entrevista com o autor do livro, Giuliano Miotto, para produzir a refe-
rida matéria de divulgação do material.
6
Expressão utilizada por Mészaros (2005) para tratar de valores e conceitos que são aceitos pelos indiví-
duos, a partir de longos processos de legitimação, dos quais as instituições educacionais fazem parte, de
expansão do modo de produção capitalista.
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