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Este artigo está licenciado com a licença: Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
O lugar das práticas curriculares diante do avanço da lógica privada sobre o setor público: o Emiti em Santa Catarina
*
Doutora em Educação - Psicologia da Educação, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP, Brasil). É
professora titular da Universidade da Região de Joinville (Univille, Brasil). ORCID https://orcid.org/0000-0002-0353-
4310. E-mail: berenice.rocha@univille.br
**
Doutora em Educação - Psicologia da Educação, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP, Brasil).
Atualmente é professora titular da Universidade da Região de Joinville (Univille, Brasil). ORCID https://orcid.org/0000-
0003-2180-5476. E-mail: jane.mery@univille.br
Recebido em 19/05/2019 – Aprovado em 26/09/2019
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i1.10578
O lugar das práticas curriculares diante do avanço da lógica privada sobre o setor
público: o Emiti em Santa Catarina
The place of curriculum practices before the advance of private logic on the public sector:
the Emiti in Santa Catarina
El lugar de las prácticas curriculares ante el avance de la lógica privada sobre el sector público:
el Emiti en Santa Catarina
Berenice Rocha Zabbot Garcia
*
Jane Mery Richter Voigt
**
Resumo
Fatores políticos e, principalmente, econômicos têm afetado as políticas educacionais, inuenciando o funcio-
namento dos sistemas de ensino, que numa visão utilitarista e economicista vêm promovendo um avanço da
lógica privada sobre o setor público. A questão de pesquisa a ser abordada centra-se no que representa a adoção
de uma proposta educacional advinda de uma instituição privada no contexto da educação pública. O presente
artigo tem como objetivo discutir o lugar das práticas curriculares dos professores no Ensino Médio Integral em
Tempo Integral (Emiti), considerando a parceria da Secretaria de Educação do Estado de Santa Catarina com o
Instituto Ayrton Senna (IAS). A pesquisa, de abordagem qualitativa, foi desenvolvida por meio de entrevistas
com professores de uma escola de Ensino Médio da rede pública do referido estado. O referencial teórico con-
templa os estudos curriculares no que tange às políticas e às práticas. A discussão está pautada na percepção
desses docentes a respeito das suas práticas curriculares diante da proposta do IAS. Os resultados apontam para
as diculdades na adaptação da infraestrutura para viabilização de propostas que não reconhecem as realidades
locais e para a restrição da autonomia curricular dos professores.
Palavras-chave: Políticas educacionais. Práticas curriculares. Ensino integral em tempo integral. Parceria público-
privada.
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Berenice Rocha Zabbot Garcia, Jane Mery Richter Voigt
Abstract
Political and, mainly, economical factors have been aecting educational policies, inuencing the functioning
of education systems, which in a utilitarian and economist point of view has promoted an advance of private
logic over the public sector. The issue to be addressed focuses on the meaning of the adoption of an educational
proposal from a private institution in the context of public education. This article aims to discuss the place of
teachers’ curricular practices in integral High School- Full Time High School (Emiti), considering the partnership
of Santa Catarina State Department of Education with the Ayrton Senna Institute. The research, with a qualitative
approach, was developed through interviews with teachers of a public high school in the state. The theoretical
framework contemplates curriculum studies, in terms of policies and practices. The discussion is based on the
perception of these teachers about their curricular practices regarding the proposal of the Ayrton Senna Institu-
te. The results indicate diculties in adapting the infrastructure to enable proposals that do not recognize local
realitiesand to restriction of the curricular autonomy of the teachers.
Keywords: Educational policies. Curriculum practices. Integral full time education. Public-private partnership.
Resumen
Los factores políticos y principalmente econômicos, han afectado a las políticas educativas, inuyendo en el fun-
cionamiento de los sistemas educativos, que desde una perspectiva utilitaria y economista han promovido un
avance de la lógica privada sobre el sector público. La pregunta de investigación que debe abordarse se centra
en la adopción de una propuesta educativa de una institución privada en el contexto de la educación pública.
Este artículo tiene como objetivo discutir el lugar de las prácticas curriculares de los maestros en la escuela
secundaria a tiempo completo (Emiti), considerando la asociación del Departamento de Educación del Estado
(Provincia del Brazil) de Santa Catarina con el Instituto Ayrton Senna (IAS). La investigación, con un enfoque
cualitativo, se desarrolló a través de entrevistas con maestros de una escuela secundaria provincial. El marco
teórico incluye estudios curriculares sobre políticas y prácticas. La discusión se basa en la percepción de estos
maestros con respecto a sus prácticas curriculares en vista de la propuesta de IAS. Los resultados apuntan a las
dicultades para adaptar a la infraestructura para permitir propuestas que no reconocen las realidades locales y
a la restricción de la autonomía curricular de los docentes.
Palabras clave: Políticas educativas. Prácticas curriculares. Enseñanza Integral. Escuelas de tiempo completo. Aso-
ciación público-privada.
Introdução
A reforma do Ensino Médio, proposta pela Lei n. 13.415/2017, introduz modi-
ficações na organização do currículo do Ensino Médio, como a introdução de itine-
rários formativos e da formação técnica profissional de nível médio de forma mais
abrangente do que nas políticas anteriores. Além disso, essa lei também fomenta a
implementação de escolas de ensino médio em tempo integral.
Em meio a esse cenário, o estado de Santa Catarina aderiu ao programa de
Fomento à Implementação de Escolas em Tempo Integral, instituído pela Portaria
MEC n. 1.145, de 10 de outubro de 2016 (BRASIL, 2016). Esse programa transfere
recursos para que as secretarias estaduais de educação implementem o programa
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O lugar das práticas curriculares diante do avanço da lógica privada sobre o setor público: o Emiti em Santa Catarina
Ensino Médio Integral em Tempo Integral (Emiti). De acordo com informações do
site oficial da Secretaria de Estado da Educação de Santa Catarina
1
, em 2017, 16
escolas da rede pública estadual, que atendiam aos critérios da referida portaria,
adotaram o programa, e em 2019, o programa já conta com 31 escolas. A imple-
mentação do Emiti em Santa Catarina tem como parceiro o Instituto Ayrton Senna
(IAS) e apoio do Instituto Natura, o que caracteriza uma parceria público-privada.
A parceria com o IAS representa a adoção de um modelo educacional que con-
templa uma proposta pedagógica, a adoção de um material didático, acompanha-
mento e formação de professores. A proposta do IAS tem como premissa a inte-
gração curricular. O currículo é dividido em Áreas de Conhecimento (Linguagens,
Matemática, Ciências da Natureza e Ciências Humanas) e Núcleo Articulador
(Estudos Orientados; Projeto de Intervenção e Pesquisa, Projeto de Vida). Atual-
mente, é uma das propostas ofertadas no Guia de Implementação do Novo Ensino
Médio
2
como itinerário formativo na Base Nacional Curricular Comum (BNCC).
Considerando a parceria já em execução e a proposta do Emiti, há questões
que precisam de atenção, primeiramente a oferta de carga horária diária de 7 ho-
ras, tornando necessária a reorganização do quadro de professores e funcionários.
Outro aspecto é a flexibilização e a integração curricular, além da introdução de
componentes técnico-profissionais na matriz curricular do nível médio. Todas essas
reestruturações têm efeito direto sobre as práticas curriculares, na medida em que
cabe aos docentes e gestores a tarefa de atender aos novos objetivos e pressupostos
metodológicos que tal política pública fomenta e, ao mesmo tempo, estar em conso-
nância com o que preconiza o projeto proposto pelo IAS.
O foco da nossa discussão recai, sobretudo, sobre aspectos que dizem respeito
às práticas curriculares dos professores, procurando entender de que forma elas
são afetadas pela parceria firmada entre a Secretaria de Estado da Educação de
Santa Catarina e o IAS, no que tange à adoção de uma proposta educacional ad-
vinda de uma instituição privada no contexto da educação pública. Dessa forma,
o objetivo deste artigo consiste em discutir o lugar das práticas curriculares dos
professores no Emiti, considerando a referida parceria.
Esta investigação também leva em conta as modificações sociais, políticas,
econômicas e culturais pelas quais estamos passando, uma vez que somente assim
é possível criticar as atuais políticas curriculares e sermos capazes de “dar respos-
tas a essas modificações, empreender novas interpretações sobre as questões de
nosso tempo” (LOPES, 2004, p. 110).
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Para isso, foi realizada uma pesquisa, de abordagem qualitativa, que, segundo
André (2013), se fundamenta numa perspectiva em que o conhecimento é socialmente
construído pelas pessoas, que transformam a realidade e ao mesmo tempo transfor
-
mam a si mesmas. A investigação ocorreu em uma das escolas que implantou o pro-
grama do Emiti, numa cidade da região norte de Santa Catarina. Nessa escola, foram
ouvidos quatro professores, por meio de entrevista semiestruturada, sobre diversos
aspectos referentes às suas práticas curriculares. Após a transcrição das entrevis
-
tas, os dados foram analisados por intermédio de análise de conteúdo, que permite
“conhecer os textos e as mensagens contidas, deixando-se invadir por impressões,
representações, emoções, conhecimentos e expectativas” (FRANCO, 2012, p. 44).
Sintetizando, o presente artigo traz uma breve introdução, para apresentar
a lei que implementa o Emiti, seus desdobramentos e implicações em relação à
parceria com o IAS. Em seguida, foram trazidas questões referentes às políticas
curriculares e à inserção da lógica privada sobre o setor público e como essa lógica
chega até os professores participantes da pesquisa, trazendo a percepção desses
professores acerca da aplicação da proposta do Instituto.
Considerando as falas dos referidos docentes, fez-se uma divisão em duas catego-
rias para análise, sendo elas: infraestrutura necessária para a efetivação das práticas
curriculares no Emiti; e práticas curriculares e a autonomia curricular no Emiti.
As considerações trazem algumas discussões que precisam ser retomadas
diante do atual cenário nacional em relação ao avanço da lógica privada sobre a
pública.
Políticas curriculares e o avanço da lógica privada sobre o setor público
Para refletir sobre as atuais políticas curriculares para o Ensino Médio, não
podemos deixar de mencionar os desafios que se colocam a partir do caráter de
padronização e de homogeneização advindo da proposta de um currículo nacio-
nal. De acordo com Apple (2011, p. 71), o currículo não é um conjunto neutro de
conhecimentos, “ele é sempre parte de uma tradição seletiva, resultado da seleção
de alguém, da visão de algum grupo acerca do que seja conhecimento legítimo”. A
questão é: Como unificar um currículo numa sociedade tão desigual? Considerando
que vivemos numa época denominada por Apple (2011, p. 73) de “restauração con-
servadora”, diante de uma proposta de currículo unificado, o princípio de educação
pública e de currículo que atenda às culturas e histórias de toda a população pode
estar ameaçado.
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O lugar das práticas curriculares diante do avanço da lógica privada sobre o setor público: o Emiti em Santa Catarina
O currículo nacional para a Educação Básica já é realidade em muitos países.
Conforme Pacheco (2002, p. 88), estabelecer um currículo nacional faz parte de um
“processo de construção da identidade coletiva”, que pode servir para a regulação
e a seleção de objetivos de aprendizagem e de organização do conhecimento oficial.
Todavia, numa perspectiva conservadora, um currículo nacional poderá represen-
tar a criação de critérios de controle da aprendizagem dos alunos e das práticas do-
centes. Nesse cenário, encontram-se as recentes políticas curriculares no Brasil, e
entre elas destacamos o Emiti, que, em Santa Catarina, está sendo implementado
por meio de uma parceria público-privada. Esse tipo de parceria pode representar
a perda da autonomia da rede pública de ensino e, como afirmam Comerlatto e
Caetano (2013, p. 246), a “coisificação humana”, atribuindo aos professores a tarefa
de executar propostas previamente definidas pela lógica privada.
Para Lopes (2004, p. 111), uma política curricular é
[...] uma política de constituição do conhecimento escolar: um conhecimento construído si-
multaneamente para a escola (em ações externas à escola) e pela escola (em suas práticas
institucionais cotidianas). Ao mesmo tempo, toda política curricular é uma política cultu-
ral, pois o currículo é fruto de uma seleção da cultura e é um campo conflituoso de produção
de cultura, de embate entre sujeitos, concepções de conhecimento, formas de entender e
construir o mundo.
Se partirmos do pressuposto de que a política curricular é um campo de dispu-
tas, de concepções de mundo, não podemos deixar de mencionar que é também um
espaço público. Por essa razão, a escola também é um local de tomada de decisões,
pois é lá que a política se consolida, o que exige o posicionamento dos professores,
dos pais, dos alunos e de todos os demais profissionais que atuam nas escolas. Eles
são produtores de discursos e dão significado a tudo o que acontece no âmbito es-
colar (PACHECO, 2000). De acordo com o documento da BNCC (BRASIL, 2018), a
autonomia dos sistemas e das redes de ensino consiste em adequar as proposições
da base nacional à realidade local, ao contexto e às características dos alunos. A
nossa questão é: se o Instituto Ayrton Senna é parceiro na implementação do Emiti
em Santa Catarina, qual será de fato a autonomia curricular dos professores e da
escola? De que forma os contextos locais serão considerados no currículo?
Ao refletir sobre a autonomia das escolas e dos professores, Barroso (2013) diz
que esse conceito pode ser visto de duas formas, a primeira por permitir ultrapas-
sar a rigidez e o caráter homogêneo de oferta do currículo, “através do recurso à ter-
ritorialização das políticas educativas, ao desenvolvimento de projetos educativos
próprios, ao reforço da participação e à diversificação da oferta” (BARROSO, 2013,
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p. 48). Na segunda, a autonomia delegada pela introdução de características da
oferta privada torna a escola e os professores reféns da regulação e da concorrência,
gerando segmentação e segregação dos setores públicos.
Diante disso, a racionalidade de mercado é delineada pelos instrumentos de
regulação: a escola, o currículo e a avaliação.
Desse modo, o mercado não dispensa o Estado, esperando que este se responsabilize pelos
aspetos mais questionados do currículo – os conteúdos e a avaliação – e estabeleça os crité-
rios para que a qualidade escolar seja determinada pelos pais, transformados em consumi-
dores e clientes (PACHECO, 2002, p. 85).
Nessa perspectiva, a avaliação torna-se um instrumento fundamental no pro-
cesso, como afiança Hypólito (2010, p. 1.339):
A introdução de sistemas de avaliação da educação e do desempenho docente é crucial
para essa regulação por parte do Estado, que passa a controlar e a avaliar desde longe,
por meio da contratação de terceiros para realizar a avaliação externa – considerada como
prestação de contas à sociedade civil (accountability). Tais modelos gerenciais são baseados
na qualidade e no mérito e os problemas da educação ficam reduzidos a problemas técni-
co-gerenciais.
Nesse cenário, a escola assume o lugar central, faz as escolhas, porém dá a
contrapartida por meio das avaliações externas. Na realidade é isso o que ocorre
com a BNCC; o Estado definiu o modelo, os itinerários formativos, as aprendi-
zagens essenciais e cabe aos sistemas e às redes de ensino e às escolas operacio-
nalizar, construir um currículo e reelaborar os projetos pedagógicos de modo que
possam dar as respostas por intermédio das avaliações.
Ao analisar as parcerias estabelecidas entre o Estado e instituições privadas,
de que autonomia estamos falando? Para Barroso (2013), há um impulso do setor
público em estabelecer as parcerias, o que está acarretando mudanças na educação
“sem que isso signifique forçosamente uma privatização global do sistema” (BAR-
ROSO, 2013, p. 52). No entendimento do autor, com a hibridização do público e
do privado, observamos a diluição das fronteiras, a complexificação das relações.
Portanto, ainda não há como classificar esse movimento, é necessário acompanhar
e investigar. Além disso, ressaltamos um aspecto relevante defendido por Barroso
(2013, p. 53):
No contexto atual da crise do Estado Providência (e do modelo social a que deu origem),
torna-se necessário reforçar a dimensão pública da escola pública, o que obriga a reafirmar
os seus valores fundadores perante a difusão transnacional de uma vulgata neoliberal, que
vê no serviço público a origem de todos os males da educação e na sua privatização a única
alternativa.
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O lugar das práticas curriculares diante do avanço da lógica privada sobre o setor público: o Emiti em Santa Catarina
Além dos aspectos relacionados às parcerias público-privadas, ressaltamos
que os avanços da lógica privada na educação podem ocorrer de outras maneiras.
Moreira e Ramos (2015), ao refletirem sobre as questões curriculares, chamam
a atenção para a mercantilização da educação, quando empresas educacionais
oferecem sistemas apostilados, plataforma digitais, sistemas avaliativos e muitos
outros produtos. Muitos docentes já sentem os impactos dessas mudanças, que
acarretam empobrecimento de suas práticas curriculares, pois os objetivos se dire-
cionam apenas para o bom desempenho (dos alunos e dos professores) nas avalia-
ções em larga escala. Isso está afetando as práticas curriculares dos docentes que
atuam na educação básica.
Outro aspecto a ser observado é que o capital privado está cada vez mais pre-
sente por meio de education business na prestação de serviços educacionais, muitas
vezes em nome do Estado. Ball (2014) ressalta que é cada vez mais frequente a
criação de redes educacionais internacionais, com o objetivo de garantir o acesso
em massa das crianças à educação básica, especialmente em países onde a popu-
lação é de baixa renda. Para o autor, ainda não é possível ter noção dos impactos
dessas redes de negócios para as políticas de educação. Nota-se que existe uma
crescente desestatização e mercantilização da educação e que os bens públicos es-
tão se convertendo em bens privados. As pesquisas vêm mostrando que as parce-
rias público-privadas trazem novas práticas, novos valores e novas sensibilidades
para a educação (BALL, 2014).
De acordo com Peroni (2013), as parcerias público-privadas estão aliadas ao
fortalecimento do terceiro setor, no qual “o privado acaba influenciando ou definin-
do o público, não mais apenas na agenda, mas na execução das políticas, definindo
o conteúdo e a gestão da educação, com profundas consequências para a democra-
tização da educação” (PERONI, 2013, p. 30).
Acrescenta-se a essa reflexão que o controle social e a valorização do coletivo
na tomada de decisões, importantes num processo democrático, acabam cedendo
espaço para instituições privadas e organismos internacionais na definição das
políticas educacionais e na definição dos currículos (PERONI, 2013).
As implicações dessa agenda repercutem nas práticas curriculares dos profes-
sores e na formação das subjetividades dos estudantes da educação básica.
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As práticas curriculares no Emiti e o avanço da lógica privada sobre o setor
público: a percepção dos professores
A presente pesquisa, cujo objetivo é discutir o lugar das práticas curriculares
dos professores do programa Emiti, considerando a parceria da Secretaria de Edu-
cação do Estado de Santa Catarina com o IAS, foi realizada em uma das escolas
que implantou o programa, numa cidade da região norte de Santa Catarina. Nessa
escola, foram ouvidos quatro professores, por meio de entrevista semiestruturada,
sobre aspectos referentes às suas práticas curriculares.
É necessário explicitar que, embora a instituição de ensino tenha implemen-
tado a carga horária de 7 horas diárias como parte do programa Emiti em 2017,
os arranjos curriculares chamados itinerários formativos ainda não tinham sido
colocados em prática no momento da pesquisa, o projeto estava na primeira fase de
implementação e a BNCC ainda não estava em vigor. De acordo com os Cadernos
de Sistematização do IAS
3
, o currículo do Emiti está dividido em duas grandes
áreas: Área de Conhecimento, que contempla as Linguagens, Matemática, Ciên-
cias da Natureza e Ciências Humanas; e Núcleo Articulador, que envolve Estudos
Orientados (EO); Projeto de Intervenção e Pesquisa (PIP) e Projeto de Vida (PV).
Os EOs são voltados para o estudo mais aprofundado de assuntos de interes-
se dos alunos, e o reforço dos conteúdos abordados nas disciplinas acontece com
participação voluntária. O PIP visa engajar os estudantes em temas relevantes e
encorajá-los a conduzir pesquisas científicas, expor os dados encontrados e relacio-
ná-los com os aspectos significativos para eles e para a comunidade que circunda
a escola. A participação nesse projeto é compulsória para os alunos da modalidade
de Emiti. Além disso, os PIPs são divididos em duas fases: na primeira, os alunos,
sob a supervisão de um professor designado para tal, conduzem a pesquisa sobre
o tema selecionado; na segunda parte, os alunos entram em contato com a comu-
nidade a fim de relacionar seus achados e as realidades que os cercam. Por fim, o
PV consiste em uma reunião com um grupo reduzido de estudantes para falar de
assuntos que os atinjam de alguma maneira, como problemas na família, projetos
pessoais e profissionais (SED; IAS, 2017?).
Com base nos resultados das entrevistas feitas com os professores do Emiti,
considerado o cenário descrito anteriormente, observaram-se duas categorias nas
falas, são elas: infraestrutura necessária para a efetivação das práticas curricula-
res no Emiti; e práticas curriculares e a autonomia curricular no Emiti.
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Infraestrutura necessária para a efetivação das práticas curriculares no Emiti
Levando em conta a análise de dados da pesquisa, pode-se afirmar que exis-
tem dificuldades que não devem ser ignoradas quando da efetivação de um currí-
culo oferecido em período integral de forma ampla, pois há que se considerar as
condições materiais das escolas e suas realidades. Nesse foco, parece-nos evidente
que o professor B, ao descrever sua percepção diante da obrigatoriedade do tempo
integral, identifica uma das limitações em relação à implementação do referido
currículo:
Às vezes, a gente tem alguns documentários que podem passar direto da internet, baixar
lá e tal. Vamos assistir isso aqui e fazer uma baita de uma aula. Uma aula ampla, dinâmica,
diferenciada, se tu tiveres ferramentas. Então a gente não tem. A parte estrutural das escolas,
não é só da nossa, vamos dizer assim, a visão geral, é muito defasada.
Ao observar a fala do professor B, a possibilidade de trabalhar o conteúdo por
meio da web é uma ótima oportunidade, porém as escolas não oferecem a infraes-
trutura necessária, limitando a ação docente e também a sua possibilidade de fazer
escolhas para suas aulas.
O professor C percebe dificuldade semelhante, haja vista compreender que o
tempo integral prevê atividades para além do espaço da sala de aula:
é mais a questão estrutural. A questão de você ter, de repente, uma quadra coberta, um giná-
sio, de ter uma internet que funcione [...] então, assim, o que a gente sente é essa questão da
estrutura.
Da mesma forma, o professor A ratifica a percepção dos outros, quando afirma:
Dentro de um modelo desse, que é de pesquisa, se não tiver internet... essas novas escolas,
que estão na manchete ali. Essas novas escolas já estão berrando. Como vocês trazem para
nós um projeto que depende 80% de pesquisa e tem escola que não tem internet. E a gente
está no segundo ano aqui. [...] É um problema maior esse de estrutura, de não ter o material
que precisa para esse modelo. Não é pedagógico.
Com as dificuldades enfrentadas nas escolas, o professor se vê limitado pela
regulação e com dificuldades de implantar o que está proposto nos materiais didá-
ticos do Instituto. Essa percepção não é apenas em relação ao Emiti, mas ocorre
em todas as ofertas curriculares de Ensino Médio, conforme a fala do professor 1:
“Olha, no Ensino Médio é assim. Em relação ao Estado, nós temos uma defasagem na parte
estrutural. É o único problema tanto no regular, no integral: é a falta de estrutura”.
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Nas afirmações dos professores participantes desta pesquisa, está claro que a
proposta do Instituto Ayrton Senna traz opções de pesquisa e de realização de pro-
jetos, porém a proposta pode não ter condições de viabilidade e isso limita a prática
e a autonomia curricular do professor, impedindo outras escolhas e possibilidades.
Para Lopes (2004), isso mostra que, se por um lado o currículo é o centro de uma
reforma, nesse caso do Ensino Médio, por outro, as escolas ficam limitadas à sua
capacidade, que muitas vezes não atende às mudanças propostas.
Para a implementação de uma política curricular e para que a autonomia cur-
ricular do professor possa ocorrer, Morgado (2003) diz que são necessárias algumas
condições, entre as quais está o acesso a recursos necessários para a implantação
das mudanças e condições que permitam a escola ser um espaço de decisão curricu-
lar, e não apenas de implementação.
Práticas curriculares e a autonomia curricular no Emiti
Em suas reflexões sobre as práticas curriculares, Sacristán (2017) ressalta
que sempre que se tem uma política curricular há um conjunto de forças atuando
na determinação do currículo materializado por meio dos conteúdos, das práticas
pedagógicas e da avaliação. No caso da presente pesquisa, temos o Instituo Ayrton
Senna, a Secretaria de Estado da Educação, a direção da escola e os professores; to-
dos compõem essas forças. “O equilíbrio de forças resultante dá lugar a um peculiar
grau de autonomia de cada um dos agentes na definição da prática” (SACRISTÁN,
2017, p. 100). Por essa razão,
[...] o currículo que se realiza por meio de uma prática pedagógica é o resultado de uma sé-
rie de influências convergentes e sucessivas, coerentes e contraditórias, adquirindo, dessa
forma, a característica de ser um objeto preparado num processo complexo, que se transfor-
ma e constrói nesse processo (SACRISTÁN, 2017, p. 100).
A percepção de professores do Emiti ratifica essas forças convergentes e con-
traditórias presentes num ensino público com uma lógica privada. A fala do profes-
sor B exemplifica tal lógica:
O Instituto Ayrton Senna, que elabora todos os cadernos, a parte pedagógica. Então vêm algu-
mas coisas prontas, só que a gente tem essa abertura que a gente pode reelaborar as aulas
dentro do assunto, não fugindo muito, e também incluindo alguma coisa que a gente acha
pertinente tocar no assunto no primeiro e segundo ano, porque algumas coisas vêm meio fora,
tanto no currículo do Estado quanto do Instituto também.
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O lugar das práticas curriculares diante do avanço da lógica privada sobre o setor público: o Emiti em Santa Catarina
Nessa fala, também há um aspecto contraditório, pois, ao mesmo tempo em
que o professor B afirma que é possível “reelaborar as aulas”, ele também relata
que isso deve ser feito “dentro do assunto, não fugindo muito”. Por meio dessa
contradição nota-se que pode estar faltando clareza no tocante ao que representa
a presença do IAS na escola, uma vez que o Instituto elabora todos os cadernos e
define o papel do professor, implicando limitação da prática e da autonomia curri-
cular docente. Dessa forma, o professor não é o protagonista da decisão curricular
e acaba tornando-se um executor de tarefas.
Morgado (2003) define autonomia curricular como sendo a possibilidade de os
professores tomarem decisões no âmbito do desenvolvimento curricular, tanto no
que diz respeito à adaptação ao currículo prescrito quanto às necessidades de seus
alunos e às especificidades do contexto no qual a escola está inserida. Isso ocorre
numa perspectiva de territorialização das políticas educativas na escola. A auto-
nomia curricular, tanto da escola como do professor, efetiva-se quando o currículo
é considerado um projeto, com a possibilidade de construir intenções pensadas de
forma colegiada. Esse processo é sempre permeado pelas tensões e contradições,
necessárias e pertinentes (MORGADO, 2011).
Para o mesmo autor, decisões coletivas de o que, para quem, quando e como
ensinar e avaliar são imprescindíveis. Com isso, é possível mobilizar os docentes
em torno dos objetivos de cada área do saber, entendidos também como “capa-
cidades, atitudes e competências a desenvolver pelos estudantes, bem como dos
modelos metodológicos que devem presidir ao desenvolvimento dos processos de
ensino-aprendizagem” (MORGADO, 2011, p. 397). Além desses aspectos, a parti-
cipação dos professores na elaboração do projeto faz com que a escola se torne um
local de reconstrução do currículo, e não apenas o de implementação de algo pres-
crito. Portanto, a implementação de um projeto como o do Instituto Ayrton Senna
pode limitar a autonomia curricular, comprometendo a construção de um projeto
educacional coletivo e democrático.
Para reforçar essa visão, há que se considerar também o relato do professor C:
A gente tem esse... essas OPAs [Orientações para Planos de Aula], que são as apostilas que
vêm do Instituto que, como eu falei para ti, é o esqueleto, e aí a gente tem suporte dos livros
didáticos que vêm, e aí a gente senta, conversa, internet. A gente procura amarrar de todos
os lados para fazer esse planejamento, mas vem um suporte já, um esqueleto mais ou menos
pronto do Instituto Ayrton Senna, e aí a gente vai inserindo outras atividades, vai enriquecendo
com vídeos, com links, então você vai conseguindo fazer esse processo todo. É bem legal.
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Se considerarmos a realidade das escolas brasileiras e as condições de traba-
lho oferecidas aos professores, como baixos salários, carga horária excessiva, pouco
acesso à formação continuada, é possível compreender a razão pela qual o professor
C acha “bem legal” o movimento feito por ele e seus colegas, justamente pela pos-
sibilidade de um momento de diálogo e discussão de suas práticas em sala de aula.
Esse mesmo sentimento é expressado pela professora D:
Então a gente sempre conversa para adaptar, e essa adaptação muitas vezes o professor não
consegue, por isso as formações com o Instituto Ayrton Senna, para ensinar esse professor a
adaptar.
O que pode passar despercebido para os professores é o que representa uma
proposta advinda de uma instituição privada no contexto da educação pública. Os
professores parecem aceitar a proposta da parceria, porém não compreendem que
a lógica que a sustenta é a de uma formação com base em princípios conservadores,
que valoriza a aplicação prática dos conhecimentos, de formação para o mercado de
trabalho, pouco abertos para uma prática curricular que contemple o caráter pú-
blico e democrático do currículo e da escola. Uma das principais implicações dessas
parcerias consiste na redução da autonomia do professor,
[...] desde quando recebe o material pronto para utilizar em cada dia na sala de aula e tem
um supervisor que verifica se está tudo certo até a lógica da premiação por desempenho,
que estabelece valores como o da competitividade entre alunos, professores e escolas (PE-
RONI, 2013, p. 27-28).
Para os professores da escola investigada, há autonomia na escolha de alguns
projetos, como mencionado pela professora D:
Nós temos essa liberdade, também essa autonomia de “Ah, eu quero trabalhar isso. Isso é
pertinente”. Vamos supor, eu quero trabalhar a questão do meio ambiente e reciclagem. Posso
trabalhar isso. Por mais que o caderno vá numa linha, eu posso trabalhar, adaptar ele dentro
dessa linha.
Essa abertura para o trabalho com projetos é possível em decorrência da
ampliação da carga horária no Emiti; os professores podem planejar e executar
projetos que não estão previstos no material didático, ainda que eles devam estar
relacionados ao conteúdo. Podemos considerar que há uma autonomia curricular
controlada. Diante dessas possibilidades relatadas pelos professores, verifica-se
que na implementação de uma política curricular, de acordo com Lopes (2004,
p. 113), os professores “têm diferentes histórias, concepções pedagógicas e formas
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O lugar das práticas curriculares diante do avanço da lógica privada sobre o setor público: o Emiti em Santa Catarina
de organização, que produzem diferentes experiências e habilidades em responder,
favoravelmente ou não, às mudanças curriculares, reinterpretando-as”.
Nas parcerias analisadas por Cormelatto e Caetano (2013, p. 248), referindo-
-se justamente ao Instituto Ayrton Senna, alguns aspectos da lógica dessas parce-
rias são apresentados: “como os programas do Instituto são prontos, padronizados,
a função do professor fica restrita a um técnico atuando apenas como executor
das decisões já estabelecidas”. As autoras alertam, ainda, no mesmo estudo, que
os “programas em larga escala são heterônomos e não possibilitam a participação
dos reais interessados, a comunidade escolar” (CORMELATTO; CAETANO, 2013,
p. 236). As autoras asseveram ainda que a ausência de participação dificulta o
exercício da gestão democrática da educação, cujos princípios se pautam na auto-
nomia, na participação e no diálogo.
Ao perceber que a proposta do Instituto traz uma realidade de outro estado,
necessitando de adaptações para a sua execução em Santa Catarina, já é um indí-
cio de que há alguma resistência por parte dos professores dessa escola. Isso pode
ser observado na afirmação da professora D:
o OPA, ele foi construído em cima de uma realidade de uma periferia no Rio de Janeiro, a
escola Chico Anísio, então nós temos que adaptar a nossa vivência aqui em Santa Catarina.
Para a mesma professora, o material não atende às necessidades locais, pois
ela observa no diálogo com os colegas do Emiti que as OPAs, por não atender à
expectativa, necessitam de melhorias e adaptações. Essa prática curricular é ne-
cessária para que os estudantes tenham a garantia de acesso aos conhecimentos e
de atribuição de sentidos às situações vivenciadas na escola (LEITE, 2012).
Ainda que se observe, com os resultados desta pesquisa, que as práticas curri-
culares são afetadas pelas parcerias público-privadas, no sentido de limitar a auto-
nomia do professor por meio de roteiros preestabelecidos e pela falta de condições
de infraestrutura, notamos o esforço dos professores em garantir o acesso dos estu-
dantes aos conhecimentos historicamente construídos. Mesmo que o Emiti seja um
projeto educacional operacionalizado numa parceria público-privada, com a oferta
de materiais didáticos, orientações, formação de professores, o caráter humano não
se perde, tendo em vista que os professores, em meio às contradições desse sistema,
exercem movimentos que levam à adaptação e modificação do currículo prescrito.
Assim, a proposta inicial não se efetiva na íntegra.
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Considerações
Em relação à discussão proposta pelo presente artigo, pode-se afirmar que a
parceria do Instituto Ayrton Senna é uma realidade no estado de Santa Catarina,
apesar da sua aplicação ser restrita às escolas do Emiti. Diante do cenário e do
referido avanço da inciativa privada sobre a pública, há que se considerar que os
professores participantes desta pesquisa se colocam de forma clara no que se refere
às limitações da infraestrutura existente nas escolas nas quais atuam e às adapta-
ções que são necessárias no âmbito da prática.
Esses docentes entendem que a proposta do Instituto pode ser inviabilizada
em função das condições, por hora, existentes em seus locais de trabalho. Apre-
sentam-se, assim, as implicações do que significa o não reconhecimento das ter-
ritorialidades e das realidades locais, refletindo no cotidiano básico das escolas e
dificultando as ações e as práticas pedagógicas. Para Morgado (2000, p. 71), “a ter-
ritorialização, traduzida globalmente pela possibilidade de interpretar e adequar
localmente as resoluções centrais, é a palavra chave de todo o processo”.
Quanto às implicações do que representa uma proposta baseada na lógica pri-
vada, no que tange à restrição da autonomia do professor, surge um fato contra-
ditório na fala dos participantes da pesquisa, pois eles afirmam que podem fazer
adaptações e sugestões no material recebido do Instituto e consideram tal possibi-
lidade muito boa, todavia, em vários momentos, percebe-se que as possibilidades se
restringem à inclusão de itens no que já está proposto. A inserção das sugestões a
que se referem os professores não está na base da proposta, mas sim na adaptação
dentro de uma lógica que não privilegia ou não permite construir uma identificação
entre professores, estudantes e gestores, os quais são os atores essenciais e real-
mente capazes de respeitar as subjetividades, conhecer as limitações e possibilida-
des de seus espaços de trabalho.
Assim, apresenta-se a necessidade urgente da exigência do respeito à autono-
mia e às decisões curriculares da comunidade escolar, por meio de trabalho coleti-
vo, permitindo atender às diferenças culturais de cada região do país
.
Diante das considerações aqui colocadas, reiteramos a ideia de que parcerias
público-privadas, como a do Emiti em Santa Catarina, não podem perder de vista
a defesa de uma escola pública, “de uma escola democrática e não segregativa,
baseada na universalidade do acesso, na igualdade de oportunidades, na partilha
de uma cultura comum e na continuidade dos percursos escolares” (BARROSO,
2013, p. 54).
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Notas
1
Disponível em: http://www.sed.sc.gov.br/. Acesso em: 10 jun. 2019.
2
Disponível em: novoensinomedio.mec.gov.br/#!/guia. Acesso em: 10 jun. 2019.
3
Disponíveis no site da Secretaria de Estado de Educação: <sed.sc.gov.br/programas-e-projetos/27909-ensi-
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