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Este artigo está licenciado com a licença: Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
Nilda Stecanela, Caroline Caldas Lemons
Direito à educação: da conquista ao reconhecimento
Right to education: from conquest to recognition
Derecho a la educación: de la conquista al reconocimiento
Nilda Stecanela
*
Caroline Caldas Lemons
**
Resumo
O texto apresenta uma tessitura conceitual-analítica do direito à educação e tem na Ciência Jurídica e na Teoria
do Reconhecimento suas principais fundamentações teóricas. As reexões sobre o direito à educação articulam
aspectos que envolvem tanto a natureza do direito, sua validez e expressão legal quanto fatores atuantes para
que esse seja reconhecido, de modo especíco, no âmbito da educação escolar. À análise macro da temática
acresce-se uma apresentação panorâmica do atual período histórico que demarca os trinta anos da conquista
do direito à educação no Brasil como bem comum. De caráter bibliográco, o estudo procurou aprofundar a
discussão em torno do pressuposto que é preciso reetir acerca da natureza, validez e expressão legal do direito
para que o direito à educação possa ser reconhecido no âmbito da educação escolar. O argumento desenvolvido
considera que, embora a conquista jurídica seja importante, quando se trata de assegurar um direito, isolada-
mente é incapaz de garantir seu reconhecimento.
Palavras-chave: Direito à Educação. Direito subjetivo. Educação escolar. Reconhecimento de direitos.
Abstract
The text presents a conceptual-analytical framework of the right to education and has in Legal Science and in the
Theory of Recognition its main theoretical foundations. Reections on the right to education articulate aspects
that involve both the nature of the law, its validity and legal expression as well as acting factors so that it is rec-
ognized, specically, in the scope of school education. To the macro analysis of the theme is added a panoramic
presentation of the current historical period that marks the thirty years of the conquest of the right to education
in Brazil as a common good. With a bibliographic character, the study sought to deepen the discussion around
the assumption that it is necessary to reect on the nature, validity and legal expression of the right so that the
right to education can be recognized within the scope of school education. The developed argument considers
*
Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs, Brasil) com estágio pós-doutoral em
Educação, como bolsista Capes, no Institute of Education/University of London (EUA). É Pró-Reitora Acadêmica e
docente do corpo permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Caxias do Sul
(UCS, Brasil). É bolsista CNPq de Produtividade em Pesquisa. ORCID https://orcid.org/0000-0001-9946-0848. E-mail:
nildastecanela@gmail.com
**
Mestre em Educação e Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
de Caxias do Sul (UCS, Brasil). Bolsista Capes/Prosuc. Professora da Educação Básica da Rede Municipal de Ensino de
Caxias do Sul. ORCID https://orcid.org/0000-0003-4178-8036. E-mail: caroline.lemons35@gmail.com
Recebido em 26/03/2019 – Aprovado em 22/08/2019
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i1.10580
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Direito à educação: da conquista ao reconhecimento
that, although legal achievement is important, when it comes to securing a right, it alone is incapable of guar-
anteeing its recognition.
Keywords: Right to education. Subjective right. Schooling. Recognition of rights.
Resumen
El texto presenta una textura conceptual-analítica del derecho a la educación y tiene en la Ciencia Jurídica y la
Teoría del Reconocimiento sus principales fundamentos teóricos. Las reexiones sobre el derecho a la educación
articulan aspectos que involucran tanto la naturaleza del derecho, su validez y expresión legal, como factores
que actúan para su reconocimiento, especícamente, dentro del alcance de la educación escolar. Al análisis ma-
cro del tema se agrega una presentación panorámica del período histórico actual que marca los treinta años de
la conquista del derecho a la educación en Brasil como un bien común. Con un carácter bibliográco, el estudio
buscó profundizar la discusión en torno al supuesto de que es necesario reexionar sobre la naturaleza, validez
y expresión legal del derecho para que el derecho a la educación pueda ser reconocido dentro del alcance de la
educación escolar. El argumento desarrollado considera que si bien el logro legal es importante, cuando se trata
de garantizar un derecho, por sí solo no puede garantizar su reconocimiento.
Palabras clave: Derecho a la educación. Derecho subjetivo. Educación escolar Reconocimiento de derechos.
Contextualização inicial
O que efetivamente significa ter direito à educação? Na dimensão escolar, sob
quais condições ele pode ser reconhecido? Estas são algumas das questões mo-
bilizadoras das reflexões almejadas neste texto, que trata das origens do direito
subjetivo no qual se insere o direito à educação, de sua concepção na filosofia hon-
nethiana e seu reconhecimento na dimensão da educação escolar.
A dimensão escolar da educação remete àquela que ocorre em uma instituição
de ensino, pública ou privada, em que o ensino é planejado, os currículos previa-
mente organizados e na qual são definidos espaços e tempos para a construção dos
conhecimentos. Por ser um processo institucionalizado e específico, situado entre o
primeiro ano de escolarização da criança até o final do Ensino Superior do adulto,
pensar o direito à educação e também sua vivência no âmbito da Educação Básica
implica ao menos três coisas: (a) refletir acerca da natureza do direito, sua validez
e expressão legal, incluindo-se aí a diferença entre conquistá-lo e tê-lo reconhecido;
(b) considerar os processos educacionais que envolvem a organização curricular, a
formação de professores e a infraestrutura oferecida pelas escolas; e (c) problema-
tizar as práticas ou modos de apropriação das políticas educacionais e dos recursos
materiais e humanos disponíveis, especialmente por parte dos docentes.
Nesta escrita, propõe-se um aprofundamento da discussão em torno do pri-
meiro pressuposto: o de que é preciso refletir acerca da natureza, validez e expres-
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são legal do direito para alargar o entendimento jurídico e, assim compreender os
processos que envolvem o reconhecimento social do direito à educação no âmbito
da educação escolar.
Para tanto, adotou-se como metodologia a pesquisa bibliográfica. Seu de-
senvolvimento deu-se a partir do aprofundamento conceitual-analítico do direito
à educação em duas perspectivas complementares, a da Ciência Jurídica e a da
Filosofia. Enquanto por intermédio da Ciência Jurídica, fundamentada em Bobbio
(1992), foi possível definir o direito supracitado como um direito subjetivo para
o qual se voltam obrigações morais; na perspectiva da Filosofia contemporânea,
especificamente da Teoria do Reconhecimento discutida por Honneth (2003), foi
possível ressaltar as questões práticas relacionadas ao reconhecimento do direito à
educação no âmbito da educação escolar.
Diante dessas considerações, inicia-se refletindo sobre os pressupostos ju-
rídicos e filosóficos dos direitos subjetivos; em seguida, apresenta-se a Teoria do
Reconhecimento de Honneth (2003) em correlação com o direito à educação e, por
fim, antecipando as conclusões, situa-se parte do caminho percorrido – entre a
conquista e o reconhecimento – pelo direito à educação no Brasil.
Direitos subjetivos
Para qualquer realidade social em que exista o estabelecimento de relações
entre os seres humanos presume-se a existência de regras ou garantias jurídicas.
O ordenamento jurídico ou o Direito somente pode ser concebido em relação a uma
coletividade, pois para essa coletividade se volta no sentido de salvaguardar e am-
parar a convivência social.
Toda regra de Direito visa a um valor, reconhecido dentre toda a pluralidade
de valores que o ser humano representa. A partir desses valores são fundadas as
normas jurídicas, com a pretensão de assegurar uma forma de vida compatível
com a dignidade humana em termos de saúde, segurança, educação, habitação,
alimentação etc.
Assim como a sociedade se renova, se reorganiza e se redefine, o ordenamen-
to jurídico também não permanece estático. Seu movimento se opera a partir de
demandas da própria sociedade e sua imperatividade está condicionada à diretriz
expressada e considerada obrigatória pela coletividade.
A imperatividade do Direito está acompanhada de ações e exigências a serem
cumpridas no meio social e, sendo assim, para cada norma anunciada há uma
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exigência de comportamento coletivo. Essa exigência opera como um dever ser,
compreendendo tanto a obrigatoriedade quanto a possibilidade da não obediência,
omissão ou violação da norma jurídica, para as quais resultam consequências ou
sanções.
Nas palavras de Reale:
A imperatividade de uma norma ética, ou o seu dever ser não exclui, por conseguinte, mas
antes pressupõe a liberdade daqueles a quem ela se destina. É essa correlação essencial en-
tre o dever e a liberdade que caracteriza o mundo ético, que é o mundo do dever ser, distinto
do mundo do ser, onde não há deveres a cumprir, mas previsões que têm de ser confirmadas
para continuarem sendo válidas (REALE, 2002, p. 36, grifos do autor).
A existência da norma ou a previsão de sanções pelo seu descumprimento não
basta para que ela possa vir a ser. Também é preciso que seja explicitado o que
deve ser feito e de que maneira deve ser feito para que a norma seja aquilo que se
propõe socialmente. A explicitação do como deve ser da norma jurídica visa escla-
recer as normas éticas e as condutas esperadas. Ela também deve prever, havendo
situações de desobediência, omissão ou violação, o uso da força via Judiciário, con-
siderando que deve ser rigorosamente impedida toda e qualquer transgressão aos
dispositivos que a coletividade considera indispensáveis à paz social.
As normas jurídicas não estão, portanto, destinadas a atender as pretensões
individuais dos sujeitos, mas a coletividade, definindo juridicamente o que todos
devem cumprir. Na acepção de Reale, o caráter heterônomo do Direito indica que:
A lei pode ser injusta e iníqua, mas, enquanto não for revogada, ou não cair em manifesto
desuso, obriga e se impõe contra a nossa vontade, o que não impede que se deva procurar
neutralizar ou atenuar os efeitos do “direito injusto”, graças a processos de interpretação
e aplicação que teremos a oportunidade de analisar (REALE, 2002, p. 49, grifos do autor).
Há que se destacar, entretanto, que o direito obriga, impõe, define – nem sempre
de forma explícita – o que deve ser feito ou constituído. A falta de clareza em alguns
aspectos, sobretudo no que diz respeito às lacunas ao enunciar ou expor as condições
para o cumprimento da obrigação, abre espaço para diferentes interpretações.
Por obrigar ao que deve ser feito, nem sempre definindo os caminhos, a norma
jurídica costuma valer-se de uma série de disposições complementares que traçam
os rumos da ação e distribuem as competências e as atribuições para aqueles – ór-
gãos públicos, por exemplo – que devem ordenar e pôr em funcionamento a obriga-
toriedade prevista.
Mesmo visando finalidades comuns de uma coletividade e sendo o Direito le-
gislado racional, heterônomo, de execução imediata por força de sua obrigatorieda-
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de (desde que não haja elementos condicionantes ou impedientes à sua executorie-
dade), alguns questionamentos emergem: Como assegurar que as relações sociais
convirjam na direção do cumprimento da obrigatoriedade jurídica – e quiçá moral
– das normas jurídicas? Como é possível saber o que cabe a cada um dos membros
de uma comunidade?
De modo geral, cabe ao sujeito a faculdade de pretender ou fazer o que a norma
lhe atribui, quer tratando-se de direito objetivo ou de direito subjetivo, porquan-
to complementares
1
. Reale faz o convite à compreensão do direito subjetivo como
sendo “o interesse protegido que dá a alguém a possibilidade de agir. É, portanto, o
interesse protegido enquanto atribui a alguém um poder de querer” (REALE, 2002,
p. 255, grifos do autor).
O Direito subjetivo, portanto, constitui algo independente do fato de ser ou
não reconhecido pelo Estado, mas para que seja garantido e protegido juridicamen-
te é preciso observar se a vontade é possível ou potencial, uma vez que ele expressa
aquilo que é devido em função de uma normativa jurídica
2
.
O Direito subjetivo está dentro de uma situação subjetiva que “é a possibili-
dade de ser, pretender ou fazer algo, de maneira garantida, nos limites atributivos
das regras de direito”. (REALE, 2002, p. 259, grifos do autor). Pode-se atestar que
só existe direito subjetivo quando é possível pretender aquilo que é a exigibilidade
do próprio direito objetivo, como explica Reale:
Assim sendo, a possibilidade de pretender ou fazer algo, - tal como se acha enunciada
na regra de direito -, não tem alcance meramente descritivo ou puramente formal, mas
representa, ao contrário, uma visão antecipada dos comportamentos efetivos, aos quais é
conferida uma garantia. Isso corresponde, aliás, a um dos princípios já enunciados como
sendo da essência do Direito: a sua realizabilidade garantida. Direito, não destinado a con-
verter-se em momento de vida, é mera aparência de Direito. Norma de direito que enuncia
numa possibilidade de fazer ou pretender algo, sem que jamais surja o momento de sua
concretização na vida dos indivíduos e dos grupos como ação ou pretensão concretas, é uma
contradição em termos. É próprio do Direito prever comportamentos prováveis, configu-
rando, por antecipação, nos modelos jurídicos instaurados, aquilo que normalmente deverá
ocorrer (REALE, 2002, p. 258, grifos do autor).
Conforme esclarece o autor, a pretensão está entre a norma – orientada para a
realidade social – e a experiência, explicitando que se é possível pretender alguma
coisa que está prevista na norma jurídica, deve ser possível exigir a garantia dessa
pretensão.
Avançando na direção do entendimento histórico da questão dos direitos sub-
jetivos, sabe-se que a primeira previsão e a redação desses direitos ocorreram a
partir da segunda metade do século XVIII quando a França, por intermédio da De-
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claração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), passou a cuidar dos direitos
públicos dos seres humanos em uma perspectiva política.
Mais tarde, em 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos
(DUDH) proclamada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas
(ONU), esses direitos foram ampliados e complementados pelos direitos sociais
dos indivíduos e dos povos. Naquele período histórico inaugural, tais Declarações
conservaram um caráter jurídico-político, não se estendendo para além do estabe-
lecimento de garantias das ações dos indivíduos no Estado ou contra ele e, apenas
tardiamente, incorporaram perspectivas sociais e econômicas.
Logo após, contudo, muitas nações passaram a redigir seus ordenamentos ju-
rídicos e a pautar suas políticas públicas na contemplação dessas previsões inter-
nacionais. Os desdobramentos da DUDH não convergiram para um único texto ju-
rídico de alcance mundial, mas variaram de um país para outro e diferenciaram-se
pela extensão das garantias previstas, bem como em seus processos de proteção.
No Brasil, os direitos públicos subjetivos fundamentais estão assegurados na
Constituição Federal de 1988, no Título II, em especial nos capítulos I, II e IV, dentre
os quais estão minuciosamente elencados os direitos e os deveres individuais e coleti
-
vos, os direitos sociais e políticos, da saúde, da previdência, da educação e da cultura.
Certamente o Direito, mesmo sendo lei, passa por interpretação lógica a fim de
acompanhar as vicissitudes sociais num sentido compreensivo, correlacionando-as
às fontes originais, aos outros dispositivos jurídicos e aos novos valores históricos,
sem os quais seria inútil e prejudicial à coletividade. Nas palavras de Reale (2002)
seria uma visão dupla (retrospectiva e prospectiva) da norma que resultaria na
possibilidade de sua concretude, visto que seu significado inteligível é o que asse-
gura que o caráter imperativo ou prescritivo da norma poderá ser aplicado.
Por ser atribuição daqueles que dela estão legalmente investidos, a aplicação
da lei traz consigo o desafio da interpretação e da aplicabilidade em decorrência do
princípio de sua realizabilidade ou efetividade. Para Reale, “a aplicação do Direito
envolve a adequação de uma norma jurídica a um ou mais fatos particulares, o
que põe o delicado problema de saber como se opera o confronto entre uma regra
‘abstrata’ e um ‘fato concreto’ [...]” (REALE, 2002, p. 300-301, grifos do autor).
Sendo possível, pelo próprio indicativo dos direitos subjetivos e, na medida
em que a sociedade lhe confere reconhecimento, exigir de maneira garantida o que
é de direito (objetivo), os direitos subjetivos tendem a alargar-se, mas também a
tornarem-se mais complexos, pois, retomando o questionamento anterior: Como
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assegurar que as relações sociais convirjam na direção do cumprimento da obriga-
toriedade jurídica – e quiçá moral – das normas jurídicas?
Bem, reconhecer os direitos públicos subjetivos, alicerçados sobre garantias
eficazes, constitui o pilar característico do Estado Democrático de Direito, no qual a
garantia efetiva e concreta não coexiste simplesmente como questão jurídica, mas
vai além dessa esfera para vestir-se de questão fundamentalmente política.
Ainda com relação aos direitos subjetivos:
[...] podemos dizer que eles se impõem ao reconhecimento e ao respeito do Estado, sobre-
tudo quando correspondem ao que temos denominado invariantes axiológicas, isto é, a
valores universalmente proclamados e exigidos pela opinião pública como absolutamente
essenciais ao destino do homem na face da Terra. Passa-se mesmo a falar em um Direito
planetário consagrador de valores transnacionais e transestatais que conferem um novo
fundamento aos direitos públicos subjetivos no plano do Direito Interno e do Direito Inter-
nacional. (REALE, 2002, p, 276, grifos do autor).
Por serem direitos públicos subjetivos eles exigem a parte do outro: seja ele in-
divíduo, coletivo ou Estado, uma vez que os deveres que correspondem a quaisquer
direitos são partilhados pelas coletividades e pelas individualidades. Nesse sentido,
para a realização do Estado Democrático de Direito é imperativo que o Estado as
-
suma deveres e os faça corresponder à efetividade dos direitos públicos subjetivos.
A justiça, que “vale para que todos os valores valham” (REALE, 2002, p. 375,
grifos do autor), não é gratuita nem acabada, mas é primordialmente intenção ra-
dical de garantir ao ser humano sua humanidade em uma convivência harmônica,
plural e integral.
Reconhece-se, contudo, que a implantação das normas jurídicas de caráter so-
cial é bastante problemática porque algumas condições não dependem tão somente
dos governantes (ainda que sejam políticas), mas dependem de ações individuais
que as sustentem. Conforme afirma Bobbio, “o problema fundamental em relação
aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los.
Trata-se de um problema não filosófico, mas político” (1992, p. 24, grifos do autor)
e é nesse ponto que muitas nações estão estagnadas.
A proteção e o reconhecimento são adiados dia após dia e relegados à vontade
dos sujeitos que, muitas vezes, quando o fazem, fazem da forma como lhes apraz,
apenas para o cumprimento de uma obrigação moral ou política. Por todas essas
razões pode-se afirmar que somente boas intenções não resolvem o problema da
sustentação dos direitos sociais e, em muitos desses casos, somente por intermédio
da pressão da opinião pública ou mesmo da exigência social é que eles podem ser
ao menos equilibrados.
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Da conquista do direito à luta por reconhecimento
Apesar de o reconhecimento não ser um tema novo nas discussões e teorias
filosóficas, uma das reatualizações contemporâneas sobre o assunto o aborda a
partir das deficiências deixadas por modelos teóricos tradicionais, acrescentando
ao não reconhecimento o caráter propulsor para as mudanças sociais.
Em Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais, Honneth
(2003) explicita como os indivíduos se colocam nas sociedades contemporâneas a
partir das experiências de não reconhecimento
3
vivenciadas por eles. Embora o
assunto tenha sido tratado de forma muito ampla é possível inferir que o filósofo
situa o conflito social no centro da discussão sobre o reconhecimento, pois para
ele as possibilidades de emancipação dos sujeitos não estão apenas inseridas na
própria realidade social, mas são dela projetadas.
Assim, de acordo com o autor, seriam três as etapas do reconhecimento recí-
proco
4
buscadas pelo sujeito e as quais ele muitas vezes vê-se privado: o amor, o
direito e a estima social. O amor, encontrado na dedicação emotiva (tanto nas rela-
ções primárias de amizade, quanto nas de amor), quando bem atendido - por meio
da satisfação mútua dos indivíduos - gera autoconfiança no sujeito, mas quando
violado ou maltratado, afeta sua integridade física e sua personalidade. O direi-
to, encontrado no respeito cognitivo presente nas relações jurídicas, quando bem
atendido gera no indivíduo autorrespeito, mas, ao sentir-se dele desprovido, tem
inteligência social atingida. A estima social, encontrada na solidariedade da comu-
nidade de valores, gera autoestima no indivíduo, embora a degradação e a ofensa
comprometam sua dignidade.
Como todas essas formas de reconhecimento são imprescindíveis para que
o indivíduo desenvolva a autorrelação prática de que necessita para tornar-se
membro de uma coletividade digna (autoconfiança, autorrespeito e autoestima),
o desrespeito a qualquer uma concorre para impulsionar os conflitos sociais e, por
intermédio desses, as mudanças sociais. Nas palavras de Salvadori:
A ruptura dessas autorrelações pelo desrespeito gera as lutas sociais. Portanto, quando
não há um reconhecimento ou quando esse é falso, ocorre uma luta em que os indivíduos
não reconhecidos almejam as relações intersubjetivas do reconhecimento. Toda luta por
reconhecimento inicia por meio da experiência de desrespeito (SALVADORI, 2011, p. 191).
Ainda nessa perspectiva, Salvadori (2011) corrobora a teoria honnethiana,
afirmando que as tensões sociais e as motivações morais dos conflitos advêm das
três formas de reconhecimento malsucedidas ou desrespeitadas e que a superação
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dessas condições pelos indivíduos passa pelo reconhecimento de si e, posteriormen-
te, pelo reconhecimento de si no outro.
O pressuposto de que o indivíduo, depois de reconhecer a si, passa a reconhe-
cer-se no outro traduz o princípio da horizontalidade entre os seres humanos. Esse
princípio faz com que pela luta social todos os direitos individuais fundamentais
sejam ampliados na direção de uma medida maior de igualdade e para um número
progressivo de membros da sociedade que passariam também a considerar – e a
exigir - condições de seguridade iguais. Para Honneth:
[...] os confrontos práticos, que se seguem por conta da experiência do reconhecimento de-
negado ou do desrespeito, representam conflitos em torno da ampliação tanto do conteúdo
material como do alcance social do status de uma pessoa de direito (HONNETH, 2003,
p. 194, grifos do autor).
Concebendo que possuir direitos significa levantar pretensões que já se con-
sideram socialmente justificadas, somente quando os direitos básicos universais
não forem mais estendidos ao coletivo de maneira díspar a pessoa de direito terá
o princípio de reconhecimento concretizado. Como explica o filósofo alemão, ainda
que o indivíduo consiga tornar aceitas suas pretensões individuais por meio do
direito, “é o caráter público que os direitos possuem [...] que lhes confere a força de
possibilitar a constituição do autorrespeito” (HONNETH, 2003, p. 197).
O caráter público, referido por Honneth por meio da terceira forma de re-
conhecimento, a da estima social, implica na compreensão de duas questões. A
primeira delas é que a estima social ou a solidariedade, como denomina Honneth,
significa “[...] numa primeira aproximação, uma espécie de relação interativa em
que os sujeitos tomam interesse reciprocamente por seus modos distintos de vida,
já que eles se estimam entre si de maneira simétrica” (HONNETH, 2003, p. 209).
É como se os sujeitos autônomos vissem em si mesmos, e nos outros, capacidades e
propriedades e compartilhassem reciprocamente os valores que consideram signi-
ficativos para a coletividade.
A segunda é que, embora essa forma de reconhecimento já tenha tido histori-
camente outros sentidos
5
, na modernidade e na discussão proposta, a estima social
estaria relacionada de forma mais específica com a questão da dignidade e da inte-
gridade humanas, excluindo qualquer privilégio jurídico relacionado às qualidades
morais outrora valorizadas, e se vincularia às finalidades sociais que a comunidade
interpreta como sendo valiosas. Na contemporaneidade, portanto, ser reconhecido
ou estimado socialmente exigiria a conquista da atenção pública.
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Assim sendo, a experiência de desrespeito, seja ela por violação, degradação,
denegação, privação, negação, recusa, ofensa ou rebaixamento a qualquer uma das
formas de reconhecimento afetaria a integridade psíquica do sujeito e provocaria
nele a perda da autoconfiança. Os abalos psíquicos e as reações emocionais nega-
tivas, tais como a vergonha, a ira e o desprezo, provocadas pela percepção do não
reconhecimento dos direitos, que para o sujeito é algo injustificado, acabariam por
converter-se em propulsão para a luta por reconhecimento.
Isso significa que, ao sentir-se ferido em suas pretensões e tomado por senti-
mentos negativos, o indivíduo problematizaria suas expectativas, ou seja, diante
do insucesso e tomado por sentimentos de culpa e de indignação moral – em geral,
paralisantes –, ele tomaria consciência e seria impulsionado para a ação. Esse pro-
cesso assinala que as experiências individuais iniciais de desrespeito se flexibiliza-
riam e seriam superadas pela constituição de uma identidade coletiva.
Honneth (2003) explica que da experiência inicialmente particularizada do in-
divíduo emergiria a compreensão de que ela é sentida e vivida potencialmente por
muitos outros sujeitos. Diante dessa descoberta, o indivíduo passaria a pensar na
luta pelo reconhecimento jurídico e social não mais como uma questão de interesse
individual, mas coletivo.
Tendo sido esclarecido que (a) o impulso do indivíduo para a luta por reco-
nhecimento é decorrente de sua identidade lesada ou destruída pela infração da
expectativa de ser estimado socialmente, (b) que a negação experienciada o apro-
xima do coletivo e que (c) é no coletivo que ele encontra as condições para lutar
pela autorrealização, adentra-se na análise dos caminhos percorridos pelo direito à
educação no Brasil, no âmbito da educação escolar.
Antecipa-se que a luta pelo reconhecimento jurídico do direito à educação no
Brasil, alcançado por intermédio de governos representativos, movimentos políti-
cos e pressões sociais, ainda demanda movimentos. Contudo, é para o reconheci-
mento social que os esforços se voltam neste momento, pois sua concretude é mais
difícil do que a jurídica, exigindo investimentos por parte de quem o pode legitimar
na(s) prática(s).
Direito à educação no Brasil
Na perspectiva honnethiana, as experiências morais – por sua alta carga
emotiva e cognitiva – são as propulsoras das lutas sociais e dos movimentos cole
-
tivos pelo reconhecimento dos direitos. A título de exemplo e também de análise
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tem-se o caso do direito à educação no Brasil em que da negação inicial à violação
atual nasceu o impulso para a luta pelo reconhecimento, tanto jurídico quanto
prático.
Embora socialmente justificada durante vários séculos, a tratativa jurídica e
a regulamentação do assunto somente ocorreu com a promulgação da Constituição
Federal de 1988. Sua inserção no texto da Carta Magna decorreu tanto da pressão
popular exercida pelos movimentos sociais quanto da movimentação dos repre-
sentantes políticos do país. Essa semântica coletiva que conduziu os processos de
socialização na direção da garantia da educação escolar abriu espaço para a alfa-
betização da população e também para o exercício de outros direitos como o direito
ao voto, à saúde e a assistência social, a ampliação do conhecimento cultural e ao
acompanhamento dos progressos técnicos e científicos contemporâneos.
A extensão progressiva do acesso à escola, que pode ser acompanhada (a) nos
índices de matrícula dos estudantes em idade escolar nas instituições públicas e
particulares de ensino do país nos últimos anos, bem como por meio (b) do fluxo
de entrada e saída dos estudantes do Ensino Fundamental para o Ensino Médio,
(c) da proporção entre as taxas de reprovação, abandono e aprovação e (d) da defa-
sagem idade/escolaridade, relacionados nas Tabelas 1 a 4, permite que se fale em
uma quase universalização da Educação Básica.
Nas tabelas a seguir, é possível observar o total de matrículas no Ensino Fun-
damental em 2016 e no Ensino Médio nos anos de 2016 e 2017.
Tabela 1 – Total de matrículas no ensino fundamental
2016
1 º ano 2.866.919
2 º ano 2.987.495
3 º ano 3.293.034
4 º ano 3.179.597
5 º ano 3.114.994
6 º ano 3.421.168
7 º ano 3.182.329
8 º ano 2.831.086
9 º ano 2.814.856
Fonte: QEdu (2019).
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Tabela 2 – Total de matrículas no ensino médio
2016 2017
1 º ano 2.986.788 2.901.789
2 º ano 2.436.965 2.362.706
3 º ano 2.151.914 2.080.294
Fonte: QEdu (2019).
Pelas Tabelas 1 e 2, percebe-se que, entre o 1º e o 3º ano, o número total de
matrículas no Ensino Fundamental sofreu acréscimos consideráveis; tendo na se-
quência, na passagem do 3º para o 4º ano e do 4º para o 5º ano, um decréscimo e,
do 5º para o 6º ano, novo crescimento. A partir daí os dados nacionais demonstram
um decréscimo progressivo em direção ao 9º ano. Tais acréscimos e/ou decréscimos
na passagem de um ano para outro indicam pontos de retenção e/ou avanço de es-
tudantes e merecem discussão mais aprofundada, visto que entendê-los extrapola
a dimensão da educação escolar.
Na comparação sobre o total de matrículas entre os níveis de ensino, obser-
va-se que o total de matrículas no 1º ano do Ensino Médio em 2017 (2.901.789) foi
superior em 3% ao total de matrículas de estudantes no 9º ano do Ensino Funda-
mental no ano de 2016 (2.814.856), indicando uma possível matrícula de estudan-
tes repetentes no 1º ano do Ensino Médio.
Outra observação que merece atenção diz respeito ao total de estudantes ma-
triculados e concluintes do Ensino Médio, pois de um total de 2.436.965 estudantes
matriculados no 2º ano em 2016, que deveriam ter concluído esta etapa de ensino
em 2017, somente 2.080.294 haviam se matriculado para o 3º ano do Ensino Médio.
Isso representa apenas um pouco mais de 85%; sem considerar aqueles que não
frequentaram ou não concluíram o ano letivo.
Na tabela a seguir, outras questões convidam a reflexão. Em todas as etapas
da Educação Básica, a situação de reprovação ou abandono tem melhorado nacio-
nalmente. Entretanto, somadas, ainda representavam, em 2016, o porcentual de
6,8% nos anos iniciais, 14,5% nos anos finais e 18,6% no Ensino Médio (em 2015
eram respectivamente 6,8%, 14,3% e 18,4%; e em 2014, 7,3%, 15,2% e 19,8%).
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Tabela 3 – Proporção de estudantes com reprovação, abandono ou aprovação
2014 2015 2016
R Ab Ap R Ab Ap R Ab Ap
Anos iniciais 6,2% 1,1% 92,7% 5,8% 1,0% 93,2% 5,9% 0,9% 93,2%
Anos finais 11,7% 3,5% 84,8% 11,1% 3,2% 85,7% 11,4% 3,1% 85,5%
Ensino médio 12,2% 7,6% 80,2% 11,6% 6,8% 81,6% 12,0% 6,6% 81,5%
Fonte: QEdu (2019)
Legenda: R (Reprovação); Ab (Abandono); Ap (Aprovação).
Ainda que as últimas três décadas tenham sido marcadas por avanços nos ín-
dices de matrícula na Educação Básica, observam-se enormes proporções de estu-
dantes com defasagem idade/escolaridade que precisam ser superadas. Analisando
as informações na tabela a seguir – em que são dispostos os dados referentes a
proporção de estudantes com defasagem idade/ano de dois anos ou mais –, fazendo
um retrospecto um pouco mais distanciado do momento atual e relacionando-o a
dados mais recentes, pode-se dizer que há uma população discente afastada dos
ideais educacionais de idade/escolaridade.
Tabela 4 – Proporção de estudantes com defasagem idade/ano de dois anos ou mais
2008 2014 2016
Anos iniciais 18% 14% 12%
Anos finais 27% 27% 26%
Ensino médio 24% 28% 28%
Fonte: QEdu (2019).
Em nível nacional, de 2008 para 2016 o porcentual de estudantes com esse
descompasso nos anos iniciais do Ensino Fundamental diminuiu 6%, sendo 1%
nos anos finais e 4% no Ensino Médio. Reunidas e analisadas essas questões, cabe
ainda trazer alguns números para observar a educação escolar no país. Em 2010,
segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a partir dos dados
coletados no Censo Demográfico (decenal), havia mais de 2,8 milhões de crian-
ças e adolescentes em idade escolar fora da escola
6
. Detendo-se sobre os números
líquidos, torna-se mais palpável perceber que não ter essa expressiva quantida-
de de crianças matriculadas e frequentando adequadamente a escola, no período
determinado para isto, é mais desafiador do que se pode pensar em um primeiro
momento.
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Direito à educação: da conquista ao reconhecimento
Apesar de os números de matrículas serem mais animadores do que os que
foram verificados em décadas anteriores, não se pode falar em universalização da
Educação Básica, visto que não se conseguiu ainda atingir a totalidade da popu-
lação de crianças e jovens em idade escolar. O índice de 92% sinaliza que o acesso
e a permanência, que, por vezes, parecem resolvidos, ainda demandam esforços
políticos, de gestores escolares e de professores, pois há indícios de que estejam
relacionados a fatores endógenos e exógenos que adentram a escola e o sistema
escolar.
As situações de crianças fora da escola decorrem de inúmeras questões (pobre-
za, violência, gravidez, trabalho etc.) e não se tem aqui a pretensão de determiná-
-las. Destaca-se, entretanto, a grande dificuldade que é assegurar o acesso a todos,
a permanência, a superação da defasagem idade/escolaridade e, especialmente, a
aprendizagem
7
, disputada com os porcentuais de reprovação e abandono.
Outro dado importante e que merece ser observado diz respeito ao índice de
analfabetismo da população com 15 anos ou mais, divulgado pelo IBGE em maio
de 2018, uma vez que caiu de 7,2% em 2016 para 7,0% em 2017, longe dos 6,5% es-
tipulados no Plano Nacional de Educação (PNE
8
) para o ano de 2015 e, mais longe
ainda de atingir a meta estabelecida pelo PNE de zerar os mais de 11 milhões de
pessoas que não sabem ler nem escrever, até o ano de 2024.
Certamente, o atendimento do direito à educação inclui o aumento de matrícu-
las, mas acompanha várias preocupações em relação à aprendizagem, a qualidade
do ensino e as experiências proporcionadas aos estudantes. Ter direito à educação
não se restringe a possibilidade de acessar e frequentar a escola. Ocorre que o
direito à educação é histórico, nascido em determinado contexto e estendido gra-
dualmente à medida que se tornou requerido. Trinta anos atrás, o desejo maior era
pela conquista, ou seja, pelo reconhecimento jurídico. Hoje, contudo, a exigência é
por reconhecimento social e por novas formas de proteção.
As emergências contemporâneas caminham em direção ao alargamento do
direito e da discriminação das obrigações públicas e individuais, pois uma vez sa-
tisfeita a conquista jurídica (ainda que não na totalidade), os envolvidos sentem a
necessidade de lutar por padrões ampliados de reconhecimento. Para consegui-los,
engajam-se em ações políticas e deixam para trás a situação passiva ou acomoda-
da em que se encontravam. Emerge, assim, uma autorrelação nova e positiva de
si mesmo que restitui ao indivíduo, ao menos em parte, o autorrespeito perdido.
Como pondera Honneth:
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[...] sentimentos de desrespeito formam o cerne de experiências morais, inseridas na estru-
tura das interações sociais porque os sujeitos humanos se deparam com expectativas de re-
conhecimento às quais se ligam as condições de sua integridade psíquica; esses sentimentos
de injustiça podem levar a ações coletivas, na medida em que são experienciadas por um
círculo inteiro de sujeitos como típicos da própria situação social (HONNETH, 2003, p. 260).
O não reconhecimento, além de privar os atingidos daquilo que era uma preten-
são legítima, os deixa tomados por um sentimento de inferioridade de valor. É im-
portante lembrar que para autorrealizar-se o indivíduo depende do reconhecimento
de si como um membro único e insubstituível de uma coletividade, com capacidade
de contribuir para a manutenção e reprodução da vida social de forma positiva.
Assim, para o reconhecimento moral dos direitos, não basta que apenas se
considere o outro com o mesmo respeito que tem para com si mesmo, mas que não
se ofereça a ele um reconhecimento distorcido ou limitado. Para Honneth, a con-
tingência recorrente da não consideração de que as condições que um sujeito tem
para alcançar sua autorrealização são parte do reconhecimento, permite afirmar
que “[...] a experiência da privação de direitos se mede não somente pelo grau de
universalização, mas também pelo alcance material dos direitos institucionalmen-
te garantidos” (HONNETH, 2003, p. 217).
Essa perspectiva é suficiente para afirmar que há uma tendência a certa
naturalização do direito, ou seja, depois das pretensões individuais tornarem-se
coletivas, da conquista jurídica ter sido alcançada por meio da luta, que institui
legalmente o exercício da cidadania, há um processo de estagnação. Para sair desse
estado e assegurar a manutenção do direito, novas intervenções são requeridas.
Como todo direito induz a uma obrigação moral correspondente, na medida
em que, ao saber-se sujeito de direitos, o indivíduo entende que tem obrigação para
com o outro na mesma proporção que tem para consigo, há o encaminhamento para
a luta por condições concretas de realização que permita a todos saber mais sobre
as condições e as possibilidades da autorrealização.
A intensa defasagem no campo dos direitos sociais dá-se em razão da dificul-
dade de assegurar às condições intersubjetivas (atendimento do amor, do direito e
da estima social), a incorporação de elementos materiais adjacentes (materialidade
necessária para que as capacidades e habilidades sejam externadas), sem deixar de
contemplar as condições históricas.
Observa-se finalmente que o direito não pode limitar-se à existência das normas
jurídicas. Para o exercício democrático do Direito, é preciso que se coadunem o aper
-
feiçoamento jurídico e as possibilidades de sua aplicação, ou seja, considerar mais as
condições particulares dos indivíduos, sem perder de vista o conteúdo universalista.
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Direito à educação: da conquista ao reconhecimento
Por sorte – ou por luta –, nas sociedades desenvolvidas, as condições da au-
torrealização vêm sendo ampliadas. Experiências individuais ou coletivas de ne-
gação, desrespeito ou violação de direitos converteram-se em impulso para luta e
organização de movimentos políticos. Contudo, seu cumprimento demanda tempo,
paciência e, acima de tudo, mudança cultural que conduza a uma ampliação essen-
cial das relações de reconhecimento.
É difícil apontar o caminho mais rápido, eficaz ou seguro de reconhecimento e
realização dos direitos humanos, especialmente quando se trata de proteger um di-
reito subjetivo como é o direito à educação, mas é possível afirmar que as condições
de exequibilidade dos direitos proclamados é a meta a ser buscada.
Considerações nais
A opção por estabelecer aproximações entre Honneth (2003), a Ciência Ju-
rídica e o campo da Educação parte da compreensão de que os conflitos sociais
oriundos do desrespeito às formas de reconhecimento podem explicar a evolução ou
o desenvolvimento moral das sociedades. O desejo por mudanças educacionais pre-
cisa estar acompanhado tanto da segunda, quanto da terceira forma de reconheci-
mento, pois à medida que se avança na jurisprudência, novas relações práticas são
reivindicadas.
Diante da constatação de que, mesmo havendo uma justificada garantia ju-
rídica para o direito à educação, ele não está dado, entende-se que a legitimidade
precisa ser construída por meio de processos de luta resultantes de interações en-
tre sujeitos. Conclui-se que é pressuposto da garantia do direito à educação a luta,
passando pela conquista, para o exercício da cidadania e a requisição de interven-
ção para a sua manutenção.
O direito à educação, como um direito subjetivo que se legitima quando as con-
cessões legais e as relações intersubjetivas se transformam em ações práticas, re-
quer (muita) luta. Estendê-lo, garanti-lo e legitimá-lo sob o princípio da igualdade
universal independente das disposições econômicas, ainda é miragem. A propósito,
diante da imputabilidade moral referida e de novas situações sociais conflitantes em
que o sujeito se sinta lesado, cabe a ele a ampliação de suas pretensões jurídicas e a
luta pelo reconhecimento das propriedades universais das quais se considera digno.
Consoante com os dizeres de Bobbio de que “[...] uma coisa é um direito; ou-
tra, a promessa de um direito futuro. Uma coisa é um direito atual; outra, um
direito potencial” (1992, p. 83) e, observando a história das políticas educacionais
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no Brasil, é possível afirmar que hoje o direito à educação ainda está em processo
de aproximação entre o plano da conquista jurídica e o da legitimidade universal,
horizontal e inalienável.
É mais um vir a ser do que realmente o é, pois embora não dependa exclusi-
vamente das políticas públicas para existir, ainda requer, para a sua legitimidade
e manutenção, a intervenção do Estado e, no mesmo patamar de importância, dos
atores da educação, pois é na intimidade da sala de aula que as compreensões de
educação são postas em prática.
Notas
1
Ao direito objetivo corresponde a norma ou lei, tal como está redigida. Já ao direito subjetivo, pode-se dizer
genericamente, corresponde à vontade e ao interesse expressados e juridicamente protegidos.
2
Um direito é subjetivo na medida em que vai ao encontro do sujeito para quem o direito objetivo se realiza,
o que explica não ser possível que haja direito subjetivo sem que haja a regra jurídica.
3
Ainda que não esgote a questão, ao tecer sua versão da Teoria Crítica iniciada por Hegel, Honneth (2003)
explora detalhadamente as três formas de reconhecimento e o conceito de luta, trazendo para o centro do
debate filosófico a estrutura das relações sociais de reconhecimento. Busca na Psicologia Social essa atua-
lização para afirmar que os conflitos sociais são consequências do não reconhecimento a qualquer uma das
formas de reconhecimento explicadas na sequência do texto.
4
É importante considerar que qualquer uma das formas de reconhecimento exige o reconhecimento inter-
subjetivo e a complementaridade, uma vez que não apenas inexiste entre elas graduação, quanto o desres-
peito a uma delas, qualquer que seja, impede a autorrealização do sujeito. A autorrealização mencionada
corresponde: a) no amor, à autoconfiança; b) no direito, ao autorrespeito e c) na estima social, à autoestima.
5
Ser reconhecido no sentido da estima social teve por longo tempo (embora ainda presente em algumas
sociedades) o sentido de honra, ou seja, vinculado as expectativas socioeconômicas e de prestígio social, a
capacidade individual ou a reputação social a partir daquilo que o indivíduo realizava ou que era capaz em
função dos objetivos da sociedade.
6
Os dados fazem referência à faixa etária que vai dos seis aos dezessete anos de idade e não contempla as
crianças de quatro e cinco anos de idade, considerando que a obrigatoriedade de matrícula para crianças
nessa faixa etária somente ocorreu em 2016, por força da Lei nº 12.796/2013.
7
Neste momento não há condições de aprofundar tais questões, mas considera-se importante sinalizar para
uma problematização mais cuidadosa em torno das indagações que se referem ao acesso, a frequência,
sucesso ou insucesso escolar; do ponto de vista de como estão relacionadas às políticas educacionais que
por meio das mantenedoras - municipais e estaduais - adentram as escolas de Educação Básica do país.
8
É possível conhecer as metas do Plano Nacional de Educação (2014-2024), lei nº 13.005/2014, acessando o
site indicado nas referências.
Referências
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BRASIL, Lei 13.005, de 25 de junho de 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação – PNE
e dá outras providências. Disponível em: https://presrepublica.jusbrasil.com.br/legisla-
cao/125099097/lei-13005-14. Acesso em: 21 mar. 2019.
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