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Marilandi Maria Mascarello Vieira, Maria Cristina Pansera de Araújo, Josimar de Aparecido Vieira
Práticas formativas na educação prossional: a emergência de uma
didática especíca?
Formative practices in professional education: the emergency of a specic didactics?
Prácticas formativas em la educación professional: ¿lá emergência de una didáctica especíca?
Marilandi Maria Mascarello Vieira
*
Maria Cristina Pansera de Araújo
**
Josimar de Aparecido Vieira
***
Resumo
Este trabalho tem por objeto a discussão acerca da existência de uma didática especíca para a Educação Pro-
ssional e seu propósito central foi identicar como autores referenciais dessa área, dentre eles Kuenzer (1998,
2010), Machado (2008, 2010), Ramos (2011, 2014), Barato (2004, 2008), Araujo (2008, 2010) Gruber, Allain; Wollin-
ger (2017) e Wollinger; Allain; Gruber, (2017) compreendem essa temática. A abordagem metodológica foi orien-
tada pela pesquisa qualitativa do tipo bibliográca, analisando os trabalhos dos autores na tentativa de respon-
der a seguinte indagação: Como os autores referenciais da área apresentam a discussão acerca da didática para
a educação prossional e como têm caracterizado as práticas formativas que nela são desenvolvidas em suas
produções acadêmicas? Os resultados indicam que, como expresso na primeira seção, as categorias gerais da
didática, como as nalidades, os conteúdos, a metodologia e a avaliação são objetos de análise nos trabalhos,
porém, embora se advogue a necessidade da elaboração de uma didática própria, posição defendida por auto-
res analisados na segunda seção do trabalho, a educação prossional não conta com conhecimentos sucientes
sobre os processos de produção e de aprendizagem dos saberes técnicos, especialmente dos processos opera-
cionais, que subsidiem a formulação de proposições para elaboração dessa didática especíca.
Palavras-chave: Educação Prossional. Didática. Cursos técnicos.
*
Doutora em Educação nas Ciências pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNI-
JUI, Brasil). Professora do Programa de Mestrado em Educação da Unochapecó. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-
5531-9946. E-mail: mariland@unochapeco.edu.br
**
Doutora em Genética e Biologia Molecular pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs, Brasil). Professora
pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências na Universidade Regional do Noroeste do
Estado do Rio Grande do Sul (Unijui, Brasil).ORCID http://orcid.org/0000-0002-2380-6934. E-mail: pansera@unijui.
edu.br
***
Doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS, Brasil). Professor do Institu-
to Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul, campus Sertão. (IFRS, Brasil). ORCID https://orcid.
org/0000-0003-3156-8590. E-mail: josimar.vieira@sertao.ifrs.edu.br
Recebido em 29/05/2019 – Aprovado em 30/09/2019
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i1.10581
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Práticas formativas na educação prossional: a emergência de uma didática especíca?
Abstract
This paper aims to discuss the existence of a specic didactics for Professional Education and its main purpose
was to identify how reference authors of this area, among them Kuenzer (1998, 2010), Machado (2008, 2010), Ra-
mos (2011, 2014), Cheap (2004, 2008), Araujo (2008, 2010) Gruber, Allain; Wollinger (2017) and Wollinger; Allain;
Gruber, (2017) understand this theme. The methodological approach was guided by qualitative research of the
bibliographic type, analyzing the works of the authors in an attempt to answer the following question: How the
referential authors of the area present the discussion about the didactics for professional education and how
they have characterized the formative practices that in it are developed in your academic productions? The
results indicate that, as expressed in the rst section, the general categories of didactics, such as the purposes,
the contents, the methodology and the evaluation are objects of analysis in the works. However, although the
need for the elaboration of its own didactics is advocated, position defended by authors analyzed in the second
section of the paper, vocational education does not have sucient knowledge about the processes of produc-
tion and learning of technical knowledge, especially the operational processes, which support the formulation
of propositions for the elaboration of this specic didactics.
Keywords: Professional Education. Didactics. Technical courses.
Resumen
Este documento tiene como objetivo discutir la existencia de una didáctica especíca para la Educación Profe-
sional. Su objetivo principal es identicar cómo autores de referencia de esta área, entre ellos Kuenzer (1998,
2010), Machado (2008, 2010), Ramos (2011, 2014), Barato (2004, 2008), Araujo (2008, 2010) Gruber, Allain; Wollin-
ger (2017) y Wollinger; Allain Gruber, (2017) entienden este tema. El enfoque metodológico fue guiado por la
metodología cualitativa del tipo bibliográco, analizando los trabajos de los autores e intentando responder la
siguiente pregunta: ¿Cómo los autores-referencia del área presentan la discusión sobre las didácticas para la
educación profesional y cómo han caracterizado estas prácticas formativas en sus producciones académicas?
Los resultados indican que, como se expresó en la primera sección, las categorías generales de didáctica, como
los propósitos, los contenidos, la metodología y la evaluación son objetos de análisis en los trabajos. Sin embar-
go, aunque se aboga por la necesidad de elaborar sus propias didácticas, posición defendida por los autores
analizados en la segunda sección del artículo, la educación profesional no desarrolla conocimientos sucientes
sobre los procesos de producción y aprendizaje de saberes técnicos, especialmente los procesos operativos, que
apoyan la formulación de propuestas para la elaboración de esta didáctica especíca.
Palabras clave: Educación profesional. Didáctica Cursos técnicos.
Introdução
O uso de expressões ligadas à didática da/na educação profissional ou a meto-
dologia de ensino são frequentes em vários âmbitos: intitulam cursos de formação
continuada, são objeto de série de livros e constituem o currículo de cursos de es-
pecialização destinados a professores dessa modalidade de ensino. Além disso, as
práticas educativas da educação profissional têm constituído pauta de trabalhos
acadêmicos especialmente a partir de 2008, com a criação dos Institutos Federais
de Educação, Ciência e Tecnologia - Ifes e consequente expansão do oferecimento
de cursos de educação profissional.
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Essas referências indicam que se busca delinear procedimentos de ensino
para essa modalidade devido às suas características distintivas: objeto de ensino,
formas de organização, modalidades de oferta dos cursos e perfil dos estudantes
e professores. Se ela é peculiar, a prática educativa que nela se efetiva também é
diferenciada.
Em decorrência disso, este trabalho trata da emergência das discussões sobre
o tema, circunscrito pela seguinte questão: Como os autores referenciais da área
apresentam a discussão acerca da didática para a educação profissional e como têm
caracterizado, em suas produções acadêmicas, as práticas formativas que nela são
desenvolvidas?
Para lançar luzes sobre essa indagação, empregou-se a pesquisa qualitativa
de natureza interpretativa por meio de revisão bibliográfica de produções de au-
tores referenciais na educação profissional, como Kuenzer (1998, 2010), Machado
(2008, 2010), Ramos (2011, 2014), Barato (2004, 2008), Araujo (2008, 2010) Gruber,
Allain; Wollinger (2017) e Wollinger; Allain; Gruber, (2017) com a intenção de iden-
tificar pressupostos metodológicos que auxiliam na educação dos trabalhadores. A
opção pelos autores citados deve-se ao fato de serem referências na área da edu-
cação profissional, sendo que a maioria deles tem uma vasta produção acadêmica
sobre educação profissional, abordando suas diferentes facetas e, dentre elas, a
preocupação com a organização do ensino.
Assim, para apresentar o presente trabalho, optou-se por uma estrutura tex-
tual organizadas em duas seções: a primeira parte, escrita a partir das produções
de Kuenzer (1998, 2010) e Machado (2008, 2010), trata das categorias gerais que
constituem a didática articuladas às práticas formativas da educação profissional e
a segunda seção aborda como os autores apresentam a discussão acerca da didática
para a educação profissional e como têm caracterizado as práticas formativas que
nela são desenvolvidas em suas produções acadêmicas. Por fim, apresenta-se as
considerações finais.
Categorias gerais da didática na educação prossional
Antes de adentrar no tema de abordagem do presente trabalho, impende ex-
plicitar o que se compreende por didática e por educação profissional. Em relação
ao primeiro vocábulo, utilizamo-nos das reflexões de Pimenta (2003, p. 51) que
conceitua a didática como a área da pedagogia que “investiga os fundamentos,
as condições e os modos de realizar a educação, através do ensino”, e de Libâneo
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(1994, p. 16) que a caracteriza como “[...] uma disciplina que estuda os objetivos, os
conteúdos, os meios e as condições do processo de ensino tendo em vista finalidades
educacionais, que são sempre sociais”.
Em relação à educação profissional, tomamos como referência Ferreti (2010,
p. 1) que afirma que o termo educação profissional “refere-se aos processos educati-
vos que têm por finalidade desenvolver formação teórica, técnica e operacional que
habilite o indivíduo ao exercício profissional de uma atividade produtiva” (grifos
nossos). O autor faz referência ao conceito de Militão (2000, p. 133 apud Ferreti,
2010, p. 1), que estabelece diferenciação entre as expressões educação profissio-
nal e formação profissional, pois essa última enfatiza o “saber fazer” enquanto
a primeira valoriza, em tese, “a formação integral do profissional”, o que reflete
diferentes concepções acerca da sua função na sociedade atual.
Demarcados os conceitos fundamentais do trabalho, situamos a discussão so-
bre a existência ou a necessidade de elaboração de uma didática específica para
a educação profissional, tema de pesquisa de Barato (2004, 2008), Ramos (2014),
Araujo (2010), Gruber; Allain; Wollinger (2017) e Wollinger; Allain; Gruber (2017).
Entretanto, outros autores ligados à educação profissional têm contribuído nesse
sentido, explicitando elementos centrais da didática advindos das pesquisas que
realizam no campo da educação e trabalho, como é o caso de Kuenzer (1998, 2010)
e de Machado (2008, 2010) que apontam categorias gerais da didática que podem
contribuir para o esclarecimento do tema.
As pesquisas de Kuenzer, em sua maioria, tratam de temas como as mudanças
ocorridas no mundo do trabalho na transição da base de produção do modelo taylo-
rista/fordista para o novo paradigma tecnológico, o regime de acumulação flexível,
ou seja, a passagem da base eletromecânica para a base microeletrônica, anali-
sando as articulações entre conhecimentos científicos e práticas laborais. Em seus
trabalhos a autora procura estabelecer a relação entre esse cenário e o trabalho
pedagógico, enfocando as relações de trabalho, conhecimento e educação no contex-
to da educação profissional, como podemos verificar em Kuenzer (2003, 2007, 2004)
que analisaremos a seguir a título de exemplificação.
Embora Kuenzer não faça referências a uma pedagogia/didática ou metodolo-
gia da educação profissional, dos resultados das suas pesquisas emergem princí-
pios didáticos que ajudam a direcionar e organizar o trabalho docente na educação
profissional, como ilustra o excerto transcrito a seguir:
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Embora, no limite, esta competência só vá ser desenvolvida pelo aluno no transcurso da
prática laboral, não será possível o professor mediar aprendizagens significativas apenas
no plano teórico; ele precisará organizar situações de aprendizagem em que o aluno arti-
cule os conhecimentos à prática laboral, desenvolvendo sua capacidade de análise, síntese,
diagnóstico e solução de problemas. Isto não será possível se o docente não articular conhe-
cimento científico e conhecimento tácito (KUENZER, 2010, p. 509.)
Outrossim, Kuenzer (1998), faz referência a uma “nova pedagogia do traba-
lho”, que se desenvolve no âmbito das forças sociais e produtivas determinadas
pelo mundo do trabalho e que, segundo a autora, auxiliam a compreensão acerca
do que denominou “nova pedagogia escolar”. A autora sintetiza os resultados das
pesquisas analisando categorias fundantes dessa nova pedagogia - os conteúdos, as
formas metodológicas, os espaços e atores educativos e as novas formas de controle
-, que, em última análise, constituem as categorias gerais da didática.
Em relação aos conteúdos, Kuenzer (1998) afirma que não é necessária a in-
clusão de novos conhecimentos para a formação da classe trabalhadora, mas a
democratização do saber socialmente produzido, transformado em saber escolar
1
.
Ela sintetiza:
Os conteúdos são os mesmos: a forma de selecioná-los, organizá-los e trabalhá-los é que é
diferenciada, uma vez que os tratamentos fragmentados por área do conhecimento e que
tomam a memorização como habilidade fundamental, típicos do taylorismo/fordismo, estão
superados (p. 39).
[...] as transformações no mundo do trabalho exigem, mais do que conhecimentos e habi-
lidades demandadas por ocupações específicas, conhecimentos básicos, tanto no plano dos
instrumentos necessários para o domínio da ciência, da cultura e das formas de comuni-
cação, como no plano dos conhecimentos científicos e tecnológicos presentes no mundo do
trabalho e das relações sociais contemporâneas (p. 36).
Relacionado a essa exigência no tratamento do conteúdo, Kuenzer (1998) res-
salta a importância da transformação das formas metodológicas de ensino que, em
linhas gerais, superem a ênfase na memorização de conteúdos, privilegiando o de-
senvolvimento de habilidades cognitivas, tais como “[...] localizar informações, tra-
balhar produtiva e criativamente com elas na construção de soluções para proble-
mas postos pela dinâmica da prática social e produtiva” (KUENZER, 1998, p. 40).
Nessa direção, o papel do professor e da escola é abordado quando trata dos
espaços e atores educativos e afirma que é o engenheiro o novo pedagogo do pro-
cesso pedagógico que ocorre no espaço da fábrica. Que implicações isso traz para
o professor e a sala de aula? Kuenzer (1998) defende a necessidade de a escola ar-
ticular-se com o lócus de produção: o mundo das relações sociais e produtivas. Ela
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afirma que o novo papel do professor é fazer a mediação entre os alunos e a ciência
na práxis social e produtiva, gerenciando, portanto, o processo de aprender, que
não ocorre mais no âmbito individual, “[...] mas por meio de relações que são sociais
e, portanto, articulam as dimensões individual e coletiva, subjetiva e objetiva, teó-
rica e prática, que caracteriza o trabalho humano enquanto categoria fundante dos
processos de produção do conhecimento” (KUENZER, 1998, p. 41).
Quanto às formas de controle, Kuenzer (1998) concluiu que essa foi a dimen-
são que mais sofreu alteração no espaço produtivo e a nova pedagogia do trabalho
visa ao “desenvolvimento de uma nova subjetividade, que viabilize a internalização
do processo de controle, o estabelecimento do controle inter-pares e a apropriação
dos conhecimentos necessários para que esta participação ativa se realize” (KUEN-
ZER, 1998, p. 41). Assim, a autora defende que a nova pedagogia escolar invista no
contrário, ou seja, “[...] na formação da consciência crítica por intermédio dos novos
conteúdos, métodos, espaços e atores pedagógicos, incorporando novas sistemáti-
cas de avaliação” (p. 41).
Inventariando as produções de Machado, identifica-se que ela aborda as prá-
ticas educativas na educação profissional apresentando duas categorias gerais da
didática, como os conteúdos e princípios metodológicos para o seu ensino.
Ao tratar do ensino médio integrado, Machado (2010) menciona que o currícu-
lo dessa etapa da educação básica é constituído por conteúdos gerais ou básicos e
profissionais ou tecnológicos que, entretanto, não se encontram em polos opostos:
“[...] esta diferenciação não pode, a rigor, ser tomada como absoluta ainda que haja
especificidades que devem ser reconhecidas” (MACHADO, 2010, p. 2). Para a au-
tora (2010), as principais contribuições dos conteúdos básicos para a formação dos
sujeitos são: os fundamentos para uma concepção científica da vida, o desenvolvi-
mento das faculdades cognitivas e capacidades, a autonomia e capacidade para a
autoaprendizagem contínua e crítica, a criatividade, o espírito de inovação e dispo-
sições à versatilidade que os atuais processos produtivos requerem.
Por sua vez, a educação profissional tem, na tecnologia, seu foco fundamental,
a qual Machado (2008, p. 16) define como a ciência transdisciplinar “das atividades
humanas de produção, do uso dos objetos técnicos e dos fatos tecnológicos”, e que
estuda o trabalho humano e suas relações com os processos técnicos. Os conheci-
mentos tecnológicos são referências obrigatórias ao exercício de atividades técnicas
e de trabalho e não podem ser confundidos com saberes empíricos, mas com os
quais esses se relacionam.
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Ela afirma não ser mais aceitável a crença que os “conteúdos considerados
gerais não seriam profissionalizantes; isto porque uma sólida formação geral tem
sido reconhecida não só como um requisito de qualificação profissional no atual
mundo do trabalho, como, talvez, o mais importante” (MACHADO, 2008, p. 82).
No que concerne à metodologia, Machado (2010) defende propostas de ações
didáticas integradas que relacionem esses conteúdos tipificados como diferenciados,
pois, segundo a autora, “por razões didáticas, se divide e se separa o que está unido.
Por razões didáticas, também se pode buscar a recomposição do todo. Tudo depende
das escolhas entre alternativas de ênfases e dosagens das partes e das formas de
relacioná-las” (p. 82). Ela sustenta a necessidade de o professor saber contextualizar
esses conteúdos, o que envolve “[...] um processo de construção de conhecimentos,
situado historicamente e socialmente, que provém e se desenvolve em íntima relação
com a prática social” (p. 88) e ainda “dar centralidade à relação teoria e prática,
integrar áreas de conhecimento e desenvolver as capacidades de observação, experi-
mentação e raciocínio” (idem). Nesse sentido, reconhece que o processo educacional
[...] se transforme num processo investigativo, o qual inclui o planejamento, a colocação
em prática de processos pedagógicos ordenados, lógicos e coerentes e a avaliação contínua.
Qualquer que seja ele, este processo não se resume, porém, a procedimentos técnicos e a
sistemas de instruções predefinidas aos quais cabem professores e alunos se adaptarem. Os
conteúdos, métodos, processos, meios e técnicas pedagógicas estão subordinados às finali-
dades do processo educativo. Eles não são, portanto, um mero resultado da racionalidade
do planejamento (MACHADO, 2010, p. 92).
Os espaços educativos de formação para o trabalho também são mencionados
por Machado (2010), que advoga que a escola “precisa atuar com suas fronteiras
ampliadas, pois os relacionamentos com o ambiente externo podem lhe proporcio-
nar diversos benefícios. Sua estabilidade está também vinculada à sua inserção,
relação e envolvimento com a realidade local e regional” (MACHADO, 2008, p. 91).
Explicitadas as categorias gerais da didática articuladas às práticas forma-
tivas da educação profissional expressas nos artigos analisados, a próxima seção
está direcionada a identificar a emergência do debate acerca da elaboração de uma
didática específica para essa modalidade de ensino.
A didática da educação prossional como campo em construção
A primeira dificuldade para elaborar uma possível didática para a educação
profissional está ligada à resposta que é possível formular para a seguinte questão:
que didática é requerida para qual educação profissional?
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Essa dificuldade está ligada ao fato que as opções que se faz para promover
a formação dos trabalhadores – como a seleção dos conteúdos e metodologia de
ensino, por exemplo –, não são neutras, mas reveladoras de um projeto político e
de uma concepção de educação que se materializam por meio delas, já que, numa
sociedade capitalista como a brasileira, segundo Ramos (2011, p. 45):
A formação da classe trabalhadora em suas dimensões tanto geral e cultural quanto especí-
fica para o exercício da vida produtiva, está no plano de disputa por hegemonia pelas clas-
ses burguesa e trabalhadora. Na perspectiva da primeira, a educação dos trabalhadores
subsume-se à necessidade do capital em reproduzir a força de trabalho como mercadoria.
Ao contrário, a classe trabalhadora disputa um projeto educativo que possibilite sua forma-
ção como dirigentes visando à superação de sua dominação pela classe antagônica.
Assim, vários autores apontam, na história da educação brasileira e profissio-
nal, a disputa entre dois projetos de educação profissional, que exemplificamos com
o excerto de Araujo (2008, p. 55).
[...] o pragmático, que busca subordinar a educação aos interesses imediatos da realidade
dada, e o de uma pedagogia da práxis, que se orienta para um tipo de formação compro-
metida com a construção de um futuro mais justo e que busca um modelo de formação
que favoreça os processos de qualificação dos trabalhadores. Estes projetos se estruturam
respectivamente sobre uma filosofia da educação com bases no pragmatismo e sobre os
princípios da filosofia da práxis (Grifos nossos).
A existência desses dois projetos, na educação profissional, se materializa em
pedagogias diferenciadas: de um lado, a formação pragmática de Roberto Mange,
baseada no Taylorismo e na aplicação das séries metódicas de ensino e, posterior-
mente, como herdeira dessa tradição, a pedagogia das competências e, de outro
lado, a educação politécnica
2
, termo esboçado, inicialmente, por Karl Marx, em
meados do século XIX. Em torno dos dois projetos educacionais, gravitam duas
possibilidades de construção da didática da educação profissional já que seus ele-
mentos constitutivos – finalidades/objetivos educacionais, conteúdos curriculares,
métodos de ensino e avaliação – se estruturam de forma diversa, de acordo com
projeto que o professor se propõe a efetivar.
Feita essa advertência, passa-se a analisar a pesquisa de Araujo (2010), que
partiu da premissa da necessidade de elaboração de uma didática especial para en-
sinar os saberes profissionais, dada as suas especificidades. O projeto de pesquisa
“As práticas formativas em educação profissional do estado do Pará: em busca de
uma didática da educação profissional” (2010, p. 2), teve como propósito identificar
a existência de uma didática da educação profissional e foi orientado, em síntese,
por dois objetivos centrais:
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Levantar, organizar e sistematizar a produção brasileira da área de tra-
balho e educação que reflita sobre propostas e estratégias formativas em
educação profissional;
Analisar as estratégias formativas de trabalhadores efetivadas nas institui-
ções sediadas na Região Metropolitana de Belém.
Para a consecução do primeiro objetivo analisou os artigos publicados na Revis-
ta Trabalho e Educação, entre os anos 2000 a 2006, e o Boletim Técnico do SENAC
(2000 a 2008), e em trabalhos apresentados nas reuniões da ANPED no período de
2000 a 2007 para neles identificar as características da didática da educação pro
-
fissional. Foram elencados, como categorias de análise, os elementos constituintes
da didática: finalidades, conteúdos, métodos de ensino e de avaliação da educação
profissional que foram analisados a partir dos pressupostos do materialismo histó
-
rico. A pesquisa apontou, nos trabalhos analisados, a existência de duas concepções,
a pragmática e a filosofia da práxis, que Araujo (2010, p. 86, p. 112 e p. 156) chamou
de Pedagogia do Capital e Pedagogia do Trabalho e, como exemplo, reproduzimos as
suas conclusões quanto às finalidades da educação profissional:
O discurso da formação do cidadão produtivo, da educação para a empregabilidade e da
referência fundamental no mercado se coloca enquanto elemento discursivo da perspectiva
pragmática, enquanto o homem amplamente desenvolvido serve como principal referência
para a pedagogia da práxis (ARAUJO, 2008, p. 56).
O segundo objetivo de Araujo (2010, p. 167) foi o de “identificar, na realidade
paraense, elementos das práticas pedagógicas dos professores de diferentes insti-
tuições de educação profissional que permitissem uma caracterização (e posterior
análise) acerca de uma didática da educação profissional”. Para tanto, entrevistou
professores de quatro instituições de EP do Pará e os dados foram categorizados
da mesma forma que os artigos. A conclusão também se repetiu, pois identificou
finalidades/objetivos, conteúdos e métodos de ensino e de avaliação ligados aos dois
projetos políticos. Araujo (2010, p. 208) conclui que: “[...] mesmo questões técnicas
da didática são definidas, explicadas e entendidas em função dos projetos políti-
co-filosóficos aos quais elas se assentam e se articulam. Não há forma de ver a
dimensão pedagógica dissociada da dimensão política”.
Também se buscou em Ramos (2014), indícios de existência de uma didática
da educação profissional. Embora a autora não use essa denominação – seu objeti-
vo é elucidar como a filosofia da práxis pode contribuir para a formação dos traba-
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Práticas formativas na educação prossional: a emergência de uma didática especíca?
lhadores na escola – afirma que o planejamento e execução da proposta pedagógica
são orientados pelas perguntas: ensinar por quê? (finalidades/objetivos), o que?
(conteúdos), como? (metodologia e avaliação), o que inclui os elementos constituin-
tes da didática. Segundo ela, as respostas a essas indagações são divergentes em
função do projeto político a que se está a serviço, mas ela toma como balizadora da
formação de trabalhadores a filosofia da práxis e a pedagogia histórico-crítica e, a
partir delas, aponta os princípios, finalidades, conteúdos e metodologias de ensino
da educação profissional.
Quanto aos princípios, Ramos (2014) referencia o trabalho como princípio edu-
cativo, a formação omnilateral e a formação politécnica. Em relação às finalidades,
defende que deveria ser a formação profissional politécnica, a escola unitária que,
a princípio, não inclui a profissionalização. Entretanto, compreende ser essa uma
necessidade conjuntural do Brasil e, por isso, argumenta que a adoção de uma polí-
tica consistente de profissionalização no ensino médio “[...] desde que condicionada
à concepção de integração entre trabalho, ciência e cultura, pode ser a travessia
para a organização da educação brasileira com base no projeto de escola unitária,
tendo o trabalho como princípio educativo” (RAMOS, 2014, p. 210).
No que concerne aos conteúdos e métodos da educação profissional, aponta os
conhecimentos científicos e os de ordem ética e estética, que conformam o elemento
cultural dos grupos sociais, traduzidos em teorias e conceitos. Porém, tomando
como referência a dialética marxista, adverte que esses têm a totalidade como exi-
gência metodológica, pois
[...] teorias, conceitos e fatos isolados são abstrações; são momentos artificialmente sepa-
rados do todo. Eles só adquirem concreticidade quando inseridos no todo correspondente.
Assim, o processo cognoscitivo da realidade é um movimento circular em que a investigação
parte dos fatos e a ele retorna, num movimento de interpelação, interpretação, avaliação e
crítica dos fatos. Os conteúdos de ensino são, portanto, conceitos explicativos de fenômenos
e relações que constituem a totalidade concreta (RAMOS, 2014, p. 211).
Para a autora, o desafio metodológico é articular as particularidades – expres-
sas nos processos produtivos objetos da formação profissional com a totalidade,
que se refere às relações sociais próprias ao modo de produção capitalista. Ainda
no campo metodológico, defende que os processos de ensino se baseiem na categoria
da práxis, tomando o sujeito que aprende e as suas atividades como elementos cen-
trais “[...] pela proposição de desafios, problemas e/ou projetos, desencadeando, por
parte do aluno, ações resolutivas, incluídas as de pesquisa e estudo de situações, a
elaboração de projetos de intervenção, dentre outros” (RAMOS, 2014, p. 213).
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Destarte, Barato (2004, 2008) procurou identificar a existência de uma didá-
tica para a educação profissional e sua abordagem é especificamente em relação
ao ensino do saber técnico. Ele reporta a existência de uma tipologia de saberes –
fatos, conceitos, princípios e processos –, e defende que o ensino de cada um deles
demanda formas diferenciadas de tratamento: os três primeiros podem ser ensina-
dos no plano discursivo, enquanto os processos exigem demonstração. Para o autor,
a didática utilizada na educação profissional ainda é acentuadamente semelhante
à da educação geral, que dá conta satisfatoriamente do ensino de fatos, conceitos e
princípios, mas não é adequada para o ensino de processos, que envolvem a execu-
ção de técnicas profissionais e, por isso, requerem tratamento didático específico.
Barato (2004, 2008) não faz referência às concepções e finalidades da educação
profissional, mas aborda os conteúdos e métodos de ensino. No que concerne aos
conteúdos, afirma que há a valorização do conhecimento científico, em detrimento
do empírico, ou seja, a educação profissional desvaloriza os saberes constituídos no
e pelo trabalho.
Barato (2008) trata dos métodos de ensino e, nesse sentido, aponta como pro-
blema central da didática da EP a falsa dicotomia teoria e prática, em que o saber
técnico – que chama de “saber como” – é visto como prática e essa precisa estar
fundada em teorias consistentes – o “saber que”. Ele explica: “O saber como é cons-
tituído por processos de execução que dão fluência à ação. O saber que é constituído
por proposições que explicam as coisas, define-as, estabelecem critérios de verdade.
Cada uma dessas dimensões tem status epistemológico próprio” (BARATO, 2008,
p. 9, grifos do autor). Via de regra, segundo ele, a teoria é ensinada por meio da
linguagem, enquanto o aprendizado da prática se efetiva pela mediação do corpo,
com explorações visuais e táteis. A concepção predominante na educação profissio-
nal é de que:
Teoria é verbo, explicação, discurso sistematizado. Qualquer experimentação, execução,
manipulação está fora do jogo. Depois de bem assentada a teoria, supõe-se que os alunos
estarão preparados para aplicá-la. E a aplicação constitui a prática, um fazer guiado pela
teoria. Uma prática sem teorização prévia é um ato desprovido de inteligência. Em si mes-
mo, o fazer não é inteligente (BARATO, 2008, p. 8).
Entretanto, Barato (2004, p. 53) discorda dessa concepção por defender que
teoria e prática são duas instâncias distintas: a prática não é a aplicação da teoria,
o saber fazer, “saber como” exige processos cognitivos diferentes do “saber que”:
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Práticas formativas na educação prossional: a emergência de uma didática especíca?
Ao que tudo indica, as aprendizagens que demandam execução engajam os aprendizes em
modos de pensar necessários para que se constitua um conhecimento que represente o
fazer. Falar e fazer [...] requerem diferentes formas de pensar. [...] o fazer demanda um
conhecimento específico, próprio, em vez de ser aplicação de um conhecimento que dele
pode ser desvinculado.
Para o autor, o reconhecimento dessas diferenças entre aprender a teoria e a
prática tem implicações para o ensino porque:
[...] explicações bem estruturadas não são garantia de execuções fluentes e corretas. Estas
últimas requerem uma aprendizagem própria, pois o saber que lhes é intrínseco não é
aplicação da teoria, mas uma dimensão de conhecimento cuja base é um entendimento
[geralmente não-verbal] da ação (BARATO, 2008, p. 10).
A exigência de competências operacionais básicas da profissão, portanto, ra-
tifica a importância das aulas práticas em cursos técnicos, que tem como um dos
seus objetivos o desenvolvimento de habilidades para o exercício de práticas pro-
fissionais. Por isso, Barato (2004), embora advirta que não se propõe a esmiuçar
prescrições sobre como ensinar processos, apresenta uma sequência de passos para
esse ensino: 1. Apresentação sintética do processo; 2. Análise de passos e opera-
ções; 3. Demonstração comentada; 4. Praticagem dos aprendizes; 5. Avaliação.
Ele reporta que esse procedimento não dispensa a “teoria” porque fatos, con-
ceitos e princípios podem ajudar a realização do processo e são retomados na etapa
da análise dos passos e operações. Em suas palavras: “[...] na aprendizagem de um
processo (saber como) certas explicações relacionadas com ciência (saber que) po-
dem clarear determinada decisão ou indicar o sentido de uma operação. Em muitas
construções teóricas o fazer precede a teorização e é necessário para que ela ocorra”
(BARATO, 2008, p. 9). Como se constata, o autor aponta indícios sobre a aprendi-
zagem dos saberes técnicos, especialmente processos.
Por fim, analisamos os trabalhos de Gruber; Allain; Wollinger (2017) e Wollin-
ger; Allain; Gruber (2017) que buscam identificar uma epistemologia da educação
profissional, com base nos aportes teóricos da didática profissional francesa, para a
criação de uma didática da educação profissional. Os autores, tomando como referên
-
cia o trabalho de Pastré; Mayen; Vergnaud (2006), situam a gênese dessa corrente
teórica na França na década de 1990 a partir da análise do trabalho e que tem por
objetivo formar as competências profissionais, criando uma aproximação entre a for
-
mação profissional e a atividade de trabalho. Essa didática da educação profissional
está apoiada nos princípios que norteiam a educação de adultos e em três correntes
teóricas: a psicologia do desenvolvimento, a ergonomia cognitiva e a didática.
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No tocante à educação de adultos, a didática profissional francesa toma como
referência a engenharia de formação, que segundo Pastré; Mayen; Vergnaud (2006,
p. 2),
É um campo de práticas que consiste em construir dispositivos de formação correspon-
dentes a necessidades identificadas para um dado público no âmbito de seu ambiente de
trabalho. A formação escolar tende a descontextualizar as aprendizagens. A engenharia
de formação vai insistir pelo contrário no contexto social no qual deve efetuar-se a apren-
dizagem de adultos em formação. Pois estes adultos são antes de mais nada pessoas que
trabalham e, quando resolvem fazer uma formação, esta é habitualmente concebida com
base no seu trabalho, e não a partir de recortes disciplinares, os quais geralmente fazem
pouco sentido para eles.
A ergonomia cognitiva toma como referência Leplat (1997), a psicologia do
desenvolvimento fundamenta-se nos trabalhos de Piaget e Vygotsky e na didática,
toma como aporte teórico os estudos de Guy Brousseau e de Régine Douady.
Gruber; Allain; Wollinger (2017, p. 6) identificam três orientações que susten-
tam a didática profissional francesa:
1) a análise das aprendizagens não pode estar separada da análise da atividade
dos atores, pois há uma continuidade profunda entre agir e aprender de e em sua
atividade; 2) para analisar a formação das competências profissionais é preciso
observá-las primeiro nos locais de trabalho; 3) vale a pena utilizar a teoria da con-
ceituação na ação para compreender como se articulam atividade e aprendizagem
num contexto de trabalho.
Essas orientações indicam a necessidade de ampliar os estudos acerca da
natureza da aprendizagem no processo do trabalho cotidiano para, a partir dela,
organizar as práticas educativas na educação profissional. Os autores ratificam o
pensamento de Pastré (2002), que defende não ser possível formar um profissional
sem antes recorrer à análise do trabalho e à compreensão da cognição do sujeito
trabalhador. Esse parece ser o maior desafio para a elaboração da didática da edu-
cação profissional, pois como bem explicitou Oliveira (2015, não paginado)
O que nos falta muito é conhecer realmente o processo de trabalho, tal como ele ocorre nas
áreas técnicas. Quer dizer, há pouco estudo sobre o trabalho cotidiano, por exemplo, saber
como o mecânico, o eletricista, a pessoa que trabalha com a informática, como ocorre a
relação desse sujeito com o objeto de conhecimento e de trabalho dele. Não há estudos sobre
como o sujeito aprende determinada atividade relativa a uma área técnica propriamente
dita, sobre essa construção do conhecimento do profissional na prática nas áreas técnicas.
Então, a forma como o professor acaba trabalhando em sala de aula é de dizer assim: “faz
primeiro isso, depois isso, depois isso”. O que ele faz? Ele passa a ensinar as etapas que ele
cumpre lá na atividade prática. Passa a ensinar para os seus alunos isso. Então entendo
que quando essas pesquisas – acho que a gente tem que incentivar pesquisas mesmo –, pas-
sarem a ter um corpo mais denso, isso vai nos ajudar na docência da educação profissional.
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Práticas formativas na educação prossional: a emergência de uma didática especíca?
Tomando como referência as categorias da didática, a exemplo do que se bus-
cou nos demais trabalhos analisados, partiu-se da explicitação do conteúdo da edu-
cação profissional. Gruber; Allain; Wollinger (2017) partem do pressuposto que a
educação profissional se distingue dos demais níveis e modalidades de ensino por-
que trata da formação para o trabalho e essa, por sua vez, se relaciona ao exercício
social da técnica. A concepção de técnica é tomada de forma mais alargada que
o domínio de um saber fazer, mas como [...] uma intervenção humana no mundo
para produzir a sua existência. Essa produção da existência refere-se tanto às suas
condições materiais de vida de ser humano, quanto à constituição de seu ser social,
cultural, identitário, entre outras dimensões envolvidas no Trabalho (GRUBER;
ALLAIN; WOLLINGER, 2017, p. 4).
Segundo os autores, é ingênuo pensar o conhecimento técnico da educação pro-
fissional como aplicação do conhecimento teórico, de que a tecnologia é a aplicação
da ciência. Eles exemplificam essa posição:
As técnicas da eletrotécnica, enfermagem, química, radiologia, etc., envolvem saberes, ha-
bilidades, atitudes e valores que podem ter (ou não) origem nas disciplinas científicas, mas
que se constituem numa área técnica, numa tradição ou corporação profissional. As técni-
cas se conectam e se apoiam em conhecimentos científicos diversos, tanto das chamadas
ciências “exatas” como das “humanas”, mas suas especificidades extrapolam as ciências.
Sua riqueza aparece nos currículos de cursos técnicos e resiste à crença em uma formação
científica genérica que as englobaria (WOLLINGER; ALLAIN; GRUBER, 2017, p. 10).
Citando Tourmen et al. (2017, p. 18 apud WOLLINGER; ALLAIN; GRUBER,
2017, p. 9), os autores analisados concluem que “conhecimento e ação interagem: a
ação não é vista como uma aplicação do conhecimento formal, nem como separada
dele. Não existe ação sem conceitos, e os conceitos são construídos e usados em
ação.”
Do ponto de vista metodológico, essa ideia implica na compreensão de que a
didática de educação profissional tem por objeto o processo de intervenção e exer-
cício social do educando., como afirma os autores, “[...] tanto no que diz respeito
ao planejamento, às estratégias de ensino ou à avaliação, o conhecimento verbal/
teórico deixa de ser o centro das atenções e passa a ser elemento do processo”
(GRUBER; ALLAIN; WOLLINGER, 2017, p. 5). É a reflexão orientada pela ação
sobre o mundo e, mais objetivamente, sobre os processos e técnicas que, na educa-
ção profissional, não se esgota no plano discursivo.
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Considerações nais
O propósito deste trabalho foi identificar como autores referenciais da área da
educação profissional apresentam a discussão acerca da didática para essa moda-
lidade de ensino e como têm caracterizado as práticas formativas, em suas produ-
ções acadêmicas, que nela são desenvolvidas. Assim, ao analisar os trabalhos dos
autores identificou-se que Ramos (2011) e Araujo (2008) apontam para a existência
de duas pedagogias que representam posições diferenciadas quanto às finalidades
da educação profissional: a pedagogia pragmática e a educação politécnica. Assim,
tão importante quanto explicitar o que caracteriza essa didática é compreender a
que/quem ela se destina.
Quando tratam da didática na educação profissional, Kuenzer (1998, 2010)
e Machado (2008, 2010) apontam os seus elementos centrais, como os conteúdos,
as formas metodológicas, o espaço educativo e a avaliação. Defensoras do ensino
técnico integrado ao ensino médio, as autoras reafirmam a importância desses ele-
mentos para a formação geral dos educandos, articulando-os às exigências para a
formação profissional.
Dentre os autores referenciais que tratam de forma mais específica a didática
da educação profissional estão Ramos (2011, 2014), Barato (2004, 2008), Araujo
(2008, 2010) Gruber, Allain; Wollinger (2017) e Wollinger; Allain; Gruber, (2017)
que procuram explicitar os elementos que podem constituir uma didática específica
para a educação profissional.
Embora os trabalhos analisados demonstrem a necessidade de elaboração de
uma didática específica para a educação profissional – posto que ela se diferencia
dos demais níveis e modalidade de ensino – e apontem elementos significativos
para a sua constituição, não se pode advogar a sua existência, já que faltam pes-
quisas que, incidindo sobre os processos de produção e de aprendizagem dos sabe-
res técnicos, especialmente dos processos operacionais, subsidiem a formulação de
proposições para elaboração dessa didática. Esse é um tema que pode constituir
novos estudos nesta área.
Notas
1
Referimo-nos a saber escolar na perspectiva apontada por Chevallard (1998) que identificou três tipos de
saberes: saber sábio (ou de referência ou científico), o banalizado (do cotidiano) e o ensinável (o escolar).
O primeiro é elaborado pelo grupo dos especialistas que, por meio da investigação, procura respostas para
problemas concretos. Mas esse saber não pode ser transposto para o currículo escolar com as mesmas ca-
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racterísticas com que foi produzido, ou seja, precisa ser transformado para tornar-se saber ensinável que,
por sua vez, não pode se reduzir a versões simplificadas do conhecimento científico, que lhe deu origem
e transferidas para a sala de aula. Ele deve manter certa semelhança com o original, mas adquire signi-
ficado diverso de acordo com o contexto escolar no qual será ensinado. Para tornar-se objeto de ensino,
portanto, o saber sábio precisa ser deslocado do seu contexto de produção, simplificado, fragmentado em
unidades de estudo que comporão o currículo e que serão ensinadas num tempo pré-determinado, o tempo
escolar.
2
Tomamos como referência Saviani (2007, p. 10) para quem “Politecnia significa, aqui, especialização como
domínio dos fundamentos científicos das diferentes técnicas utilizadas na produção moderna”. A educação
politécnica, portanto, refere-se àquela que se contrapõe à formação profissional como adestramento, pre-
paração para o desempenho de determinadas funções ou atividades sem a compreensão dos fundamentos
dessas atividades e sua relação com o mundo do trabalho.
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