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Este artigo está licenciado com a licença: Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
A prática docente e as relações de gênero e sexualidades: conversando com professoras e professores
A prática docente e as relações de gênero e sexualidades: conversando com
professoras e professores
Teaching practice and gender relationships and sexualities: talking with teachers and teachers
Práctica docente y relaciones de género y sexualidades: hablando con profesoras y profesores
AndersonFerrari
*
Claudete Imaculada de Souza Gomes
**
Cláudio Magno Gomes Berto
***
Resumo
Qual tem sido o trabalho com gênero e sexualidade realizado por professores e professoras em 3 escolas na
cidade de Juiz de Fora? Essa é a pergunta foco que direciona as análises neste artigo em torno das questões
surgidas em uma pesquisa de mestrado realizada entre os anos de 2015-2016. Como gênero e sexualidade são
organizadores sociais, resultado de construção histórica e cultural, ouvir e dialogar com professoras e professo-
res é reforçar a ideia de que escolas não são essências, mas fruto de relações entre indivíduos e sociedade. Nesse
sentido, estamos assumindo a perspectiva teórico-metodológica pós-estruturalista, inuenciada pelos estudos
foucaultianos, principalmente a partir da noção de problematização, vinculada à história do pensamento, que,
não se propondo a oferecer soluções, proporciona a oportunidade de ampliar o debate sobre pesquisa no cam-
po educacional. Como processo metodológico aplicamos um questionário nas escolas da cidade para identicar
que professoras e professores assumiam fazer um trabalho com gênero e sexualidade. Dos 36 professores e
professoras que assumiram tal trabalho, somente 5 aceitaram participar dos grupos focais em que discutimos as
respostas ao questionário. São com essas falas construídas nos grupos focais que vamos trabalhar. Dois aspectos
aparecem como resultados das conversas. O primeiro é a evidencia de que as professoras e os professores ad-
quirem e colocam em prática conhecimentos que se referem às relações de gênero e sexualidade e conseguem
fazer articulações com o seu fazer docente. O segundo é a demonstração de que as escolas que trabalham reali-
zam um trabalho com gênero e sexualidade.
Palavras-chave: Escolas. Gênero. Sexualidades.
*
Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp, Brasil). Professor adjunto de Ensino de His-
tória da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF, Brasil). ORCID https://orcid.org/0000-
0002-5681-0753. E-mail: aferrari13@globo.com
**
Mestre em Educação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF, Brasil). Professora de Ciências e Biologia na edu-
cação básica, Secretaria de Estado de Educação (SEE/MG), e na formação de professores na Faculdade de Educação
da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF, Brasil). Professora de Ciências e Biologia no Colégio de Aplicação João
XXII/UFJF. ORCID https://orcid.org/0000-0003-2499-9659. E-mail: cl_claudete@hotmail.com
***
Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG, Brasil) e integrante do Núcleo de Pesquisas
e Práticas em Psicologia Social, Políticas Públicas e Saúde (Núcleo PPS - UFJF) e do Núcleo de Cidadania e Direitos
Humanos LGBT (Nuh - UFMG). ORCID https://orcid.org/0000-0002-1660-1519. E-mail: cl-magno@hotmail.com
Recebido em 28/02/2019 – Aprovado em 29/07/2019
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i1.10583
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AndersonFerrari, Claudete Imaculada de Souza Gomes, Cláudio Magno Gomes Berto
Abstract
What has been the work with gender and sexuality performed by female teachers in 3 schools in the city of Juiz
de Fora? This is the focus question that directs the analyzes in this article around the issues raised in a master’s re-
search conducted between 2015-2016. As gender and sexuality are social organizers, the result of historical and
cultural construction, listening and dialogue with teachers is to reinforce the idea that schools are not essences,
but the result of relationships between individuals and society. In this sense, we are taking the poststructuralist
theoretical-methodological perspective, inuenced by Foucaultian studies, mainly from the notion of proble-
matization, linked to the history of thought, which, not proposing to oer solutions, provides the opportunity
to broaden the debate about research in the educational eld. As a methodological process we applied a ques-
tionnaire in the city’s schools to identify which teachers assumed to do work with gender and sexuality. Of the
36 teachers who took on such work, only 5 agreed to participate in the focus groups in which we discussed the
questionnaire responses. It is with these lines built in focus groups that we will work. Two aspects appear as a
result of conversations. The rst is the evidence that teachers have acquired and put into practice knowledge
that refers to gender relations and sexuality and can articulate with their teaching practice. The second is the
demonstration that working schools do gender and sexuality work.
Keywords:schools, gender, sexualities
Resumen
¿Cuál ha sido el trabajo con género y sexualidad realizado por maestras en 3 escuelas de la ciudad de Juiz de
Fora? Esta es la pregunta principal que dirige los análisis en este artículo en torno a los temas planteados en una
investigación de maestría realizada entre 2015-2016. Como el género y la sexualidad son organizadores sociales,
el resultado de la construcción histórica y cultural, la escucha y el diálogo con los docentes es reforzar la idea de
que las escuelas no son esencias, sino el resultado de las relaciones entre los individuos y la sociedad. En este
sentido, estamos tomando la perspectiva teórico-metodológica postestructuralista, inuenciada por los estu-
dios foucaultianos, principalmente desde la noción de problematización, vinculada a la historia del pensamien-
to, que, al no proponer soluciones, brinda la oportunidad de ampliar el debate sobre investigación en el campo
educativo. Como proceso metodológico, aplicamos un cuestionario en las escuelas de la ciudad para identicar
qué maestros asumían que trabajaban con género y sexualidad. De los 36 maestros que asumieron dicho traba-
jo, solo 5 aceptaron participar en los grupos focales en los que discutimos las respuestas al cuestionario. Es con
estas líneas integradas en grupos focales que trabajaremos. Dos aspectos aparecen como resultado de las con-
versaciones. La primera es la evidencia de que los maestros han adquirido y puesto en práctica conocimientos
que se reeren a las relaciones de género y la sexualidad y que pueden articularse con su práctica docente. La
segunda es la demostración de que las escuelas que trabajan hacen trabajo de género y sexualidad.
Palabras-clave: Escuelas. Género. Sexualidades.
Introdução
Segundo Joan Scott (1995), podemos e devemos assumir o gênero como cate-
goria de análise, o que significa dizer que podemos olhar o mundo e problematizar
a realidade a partir das relações de gênero. É possível conceber, ainda, os gêneros
como organizadores sociais. Tomando como ponto de partida essa proposta, gênero
e sexualidade variam ao longo da história e se referem ao que a sociedade atribui
como feminino ou masculino. Nas ações docentes, a construção de gênero se dá co-
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tidianamente, mesmo que não haja uma intenção ou clareza disso por parte das/os
professoras/es. As aulas colocam em circulação diferentes noções de gênero e seus
atravessamentos com as sexualidades, que são atribuídas aos sujeitos. Os gêneros
estão presentes nas escolhas de imagens, textos, cores, lugares, músicas e perfor-
mances para afirmar essa demarcação entre o que constitui homens e mulheres,
seus corpos e desejos.
No Brasil, a relação entre gênero e sexualidade diz de um embaralhamento entre
eles, visto que ser homem ou mulher significa ser heterossexual (LOURO, 1997). A
sexualidade passa a ser um componente de constituição do gênero. Nesse sentido, é
importante deixar claro o que estamos entendendo como sexualidade. Estamos nos
inspirando em Michel Foucault (2011) que entende sexualidade como dispositivo.
Para o autor, desde o século XVI o Ocidente moderno ligou o sexo à verdade dos sujei
-
tos, de maneira que somos incitados a confessar (pelo menos para nós mesmos) sobre
os nossos desejos, paixões, emoções, num processo de exame de consciência, vigilância
para saber e responder o que somos. “E, através desse dispositivo, pôde aparecer algo
como a “sexualidade” enquanto verdade do sexo e de seus prazeres” (FOUCAULT,
2011, p. 67). Afirmar que a sexualidade como um dispositivo é uma forma de entendê
-
-la como resultado de uma rede heterogênea de relações de poder que envolve práticas
discursivas e não discursivas. As escolas são parte dessa rede e desse processo de
constituição de sujeitos nos atravessamentos entre gênero e sexualidade.
Além do aspecto da construção histórica, outro ponto de ancoragem do gêne-
ro é o seu entendimento como um conceito relacional, que traz a ampliação das
discussões não só em torno da constituição das feminilidades, mas também da
constituição das masculinidades, uma vez que homens e mulheres são constituídos
a partir das interações e referências recíprocas que ambos estabelecem. Judith
Butler (2015) nos convida a pensar como vamos construindo gênero como se ele
sempre estivesse lá, pronto para ser acionado. Problematizando essa forma de li-
dar, a autora descreve como gênero é um processo que não tem nem origem e nem
fim, de maneira que é algo que fazemos e não algo que somos. Gênero e sexualidade
não são inatos. É quando gênero se afasta daquilo que estabelecemos como sua
sexualidade “natural” que parece ser o “problema”. O sentido de normalidade tam-
bém ocorre no encontro entre gênero e sexualidade, de tal maneira que ser homem
ou mulher está diretamente ligado a ser heterossexual. A heterossexualidade é
tomada como a norma. As diferenças são construídas discursivamente no distan-
ciamento a essa norma. A noção de “problema” se relaciona com o entendimento
do que Butler (2006) vai denominar de “matriz heterossexual”, como aquela que
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coloca em circulação a “[...] grade de inteligibilidade cultural por meio da qual os
corpos, gêneros e desejos são naturalizados” (BUTLER, 2015, p. 216).
Para desenvolver essa ideia, Butler (2015) analisa as estruturas jurídicas con-
temporâneas como aquelas que cristalizam as identidades de gênero e sexualidade
nos termos da coerência da matriz heterossexual. Dessa forma, a presunção de
uma identidade masculina e feminina estaria servindo também para excluir outros
corpos, sujeitos e identidades que não se enquadram nessa normatividade. Nosso
interesse é problematizar esse jogo de construção das relações de gênero no encon-
tro com as sexualidades nas falas das professoras/es.
Para isso, vamos tomar as falas de cinco professoras/es como provocativas
para nossa escrita. Cinco participantes de uma pesquisa de mestrado – realizada
entre 2015 e 2016 – que tinha como objetivo geral a problematização dos saberes e
práticas a respeito das relações de gênero e sexualidades colocadas em vigor nas au-
las. Na tentativa de identificar professoras/es que afirmavam trabalhar com essas
temáticas, foi elaborado e aplicado um questionário com quatro questões abertas
1
a docentes de três escolas públicas municipais de Juiz de Fora-MG que aceitaram
participar dessa fase inicial da pesquisa. De posse da análise dos questionários,
convidamos as/os 36 professoras/es que responderam a participar de grupos focais
em que discutiríamos a relação entre gênero, sexualidades e educação a partir do
agrupamento das respostas em categorias de análise como “respeito”, “preconcei-
to”, “diversidade”, “conteúdo”, “silêncios”, “formação docente”, que apareceram nas
respostas. Portanto, este texto é um convite a pensar as questões que organizam
as falas das/os docentes das três escolas participantes da pesquisa. De um total de
36 professoras/es que responderam ao questionário, somente cinco aceitaram e as-
sinaram o termo de consentimento: Luiz
2
, professor de Inglês; Ana e Paulo, profes-
sores de História; Marília, de Geografia e Cristiano, de Educação Física. Docentes
de faixas etárias variadas, com tempo de trabalho que oscilava entre 8 e 23 anos.
O foco de problematização que elegemos para organizar este artigo foi o en-
contro entre a ação docente e a insegurança com o trabalho, levando-nos a pensar
o aspecto paradoxal e complexo do trabalho com gênero e sexualidade na sala de
aula. Paradoxal porque, ao mesmo tempo em que reconhecem a importância do
trabalho, as/os professoras/es não conseguem identificar o protagonismo na ação,
não percebendo o gênero e a sexualidade como atravessados nas suas disciplinas.
Tais pontos apareceram na pesquisa a partir da convocação das/os professoras/es
para que nos contassem sobre o faziam, como faziam e seus desdobramentos na
relação com as temáticas e com os desafios e potencialidades da ação docente. É
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relevante dizer, ainda, que as narrativas se referem a situações e atividades ocor-
ridas no cotidiano dessas três escolas pesquisadas, ou seja, não se pretende uma
generalização da educação municipal de Juiz de Fora. A organização da escrita diz
dos tópicos relacionados diretamente aos assuntos mais abordados, aos quais as/
os docentes dedicaram maior tempo e/ou demonstraram maior empenho e atenção.
Diante dessas colocações introdutórias, queremos situar nossa escrita na pers-
pectiva dos estudos foucaultianos, no trabalho com a noção de problematização
como um caminho para frente, vinculado à história do pensamento, e que não se
propõe a oferecer soluções, proporcionando a oportunidade de ampliar o debate
sobre pesquisa no campo educacional e buscando a problematização como possibili-
dade de fazer pesquisa em educação. A problematização está inscrita na história do
pensamento para questionar por que pensamos o que pensamos, como construímos
nossas formas de pensar e agir e como somos resultados desses saberes e poderes.
A perspectiva pós-estruturalista amplia o conceito de poder como proveniente não
somente das esferas do Estado, mas presente “em toda parte”.
Segundo Guilherme Lima Cardozo (2014, p. 128), essa perspectiva inova,
[...] ao trazer ao campo as questões de identidade/alteridade/diferença, considerando a
subjetividade dentro da pesquisa científica, dando espaço às relações de saber e poder
influenciando na cultura e na sociedade, onde tensões advindas de gênero, raça, etnia e
sexualidade trazem à tona o multiculturalismo. Sobre isso, o pós-estruturalismo trouxe
colaboração ímpar à educação.
A pesquisa e seus achados não necessariamente “representam aproximação da
verdade, mas uma de suas múltiplas possibilidades” (COSTA, 1996, p. 5) de conhecer
e construir sentidos para o que é realizado pela escola e pelas/os professoras/es. As
-
sim, nossa intenção é contribuir para as discussões do campo de conhecimento de Gê-
nero, Sexualidade e Educação, trazendo para a escrita o que surge das narrativas de
professoras/es quando são convidadas/os a refletir sobre o fazer docente nas escolas.
O que aparece quando se fala de gênero e sexualidades com docentes?
Abrir a escuta às/aos professoras/es exige certo cuidado e atenção. Cuidado
para buscar as formas de organização dos sujeitos pela/na fala, pelas/nas formas
de pensar e dizer, de concordar e discordar do outro, de maneira que possam ficar à
vontade para se colocarem em diálogo. A análise das falas também demanda aten-
ção para sentir e dar lugar às resistências, aos detalhes e para aguçar os sentidos
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e ver o que comumente não conseguimos enxergar. Cabe ressaltar, portanto, como
aponta Alfredo Veiga Neto (2013, p. 112-113):
A leveza de um estilo de investigação que, mesmo rigorosa, se abre para suas fronteiras na
esperança de ultrapassar a si mesma e de conseguir enxergar nas regiões de indecidibilida-
de que até então permaneciam na penumbra [...] usando o que Foucault nomeia como uma
“maneira de ver as coisas”, “um modo de ver”.
Para Veiga Neto (2013, p. 114), o comprometimento de Foucault “está em co-
locar sob escrutínio práticas que permitem entender as relações do ser consigo e
com os outros”. Assumindo essa perspectiva de análise, procuramos entrever nas/
os parceiras/os de pesquisa essas diferentes e ricas formas de se relacionar com os
saberes, os acontecimentos e os discursos presentes em suas escolas. As respostas
das/dos professoras/es possibilitaram trazer para a discussão suas/seus alunas/os,
as vivências no/com o cotidiano da escola, para interrogar como as/os professoras/es
se veem em relação a suas práticas, diante da provocação desencadeada pelas falas
de seus companheiros de trabalho, de seus pensamentos e ações em seus contextos
profissionais. Nesse sentido, foi importante deixar que cada uma/um definisse, en-
tre os termos e assuntos sugeridos a partir das respostas dadas aos questionários,
em que direção gostaria de conduzir a conversa.
Durante os grupos focais, o ponto mais marcante para as/os professoras/es
foi a recorrência à palavra “respeito” quando falavam do trabalho com gênero e
sexualidade. Partimos, então, da ideia de “respeito”, que já havia despertado nossa
atenção desde as primeiras análises, ainda nos questionários. O uso da palavra
“respeito”, relacionada às diferenças, foi recorrente, quando perguntadas/os sobre
a convivência nos espaços das escolas. O que significa esse “respeito”? Porque essa
palavra surge quando perguntamos sobre a convivência das diferenças na escola?
O professor Paulo afirma que “de início o que aparece não é o respeito, mas o des-
respeito às diferenças. Uma orelha maior, um nariz ou o cabelo, tudo vira motivo
de piada”
3
, ao que a professora Marília complementa dizendo que “o visual atrai
mais”, identificando, na prática discriminatória, algo comum direcionado à aparên-
cia das/dos alunas/os e outras pessoas presentes nesses espaços. Segundo Paulo,
o desrespeito aparece e a partir dele começa a se trabalhar a questão do respeito,
desde a aparência até a opção sexual”. O docente sinaliza que é importante estar
atento às temáticas que surgem nas conversas cotidianas de alunas e alunos e,
partindo delas/es, suscitar discussões que coadunem com o que cada uma/um vive
na escola e na sociedade.
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A prática docente e as relações de gênero e sexualidades: conversando com professoras e professores
Respeito é acionado para falar das relações estabelecidas neste espaço de dis-
puta e negociação que é a escola. O respeito é entendido como necessário para as
relações entre alunos e alunas como adequadas, pacíficas, sem conflitos e sobretu-
do, como forma de aceitação das diferenças. Respeito pode ser entendido como re-
sultado das relações de saber-poder em Foucault (2011). Aquilo que sabemos diz de
formas de conhecer ancoradas historicamente e que nos constitui. Somos sujeitos,
resultado de saberes, atravessados por relações de poder, de maneira que respeitar
alguém está diretamente ligado a construção de si e do outro.
As falas demonstram que as/os professoras/es estão atentos ao que ocorre na
escola, identificam situações em que respeito e desrespeito estão em negociação
entre os alunos e as alunas, percebendo-se com interlocutores importantes para
problematizar essas construções. Também conseguem citar os aspectos causadores
do que estão classificando como desrespeito. Enfim, eles e elas constroem um qua-
dro que aponta para uma dicotomia representada pelos termos respeito/desrespei-
to, que não havia aparecido nos questionários respondidos. Ampliando um pouco
mais a análise, podemos sugerir que as/os alunas/os constroem suas identidades
(e seus pertencimentos) nas diferenças. Isso chega à escola, lugar de confronto e
negociação. A/O professora/or age e, ao agir, ela/e põe em prática um projeto de
“ser professor(a)”, “ser escola” e do aluno(a) “ideal”. Para esses docentes, a ética e o
respeito ao outro e às suas subjetividades devem ser praticados por todos e todas,
alcançando professoras/es e alunas/o, assim como sugerem que o desrespeito tam-
bém vem de ambos, o que deve ser repensado, conforme Marília e Paulo. Tal ponto
de vista é compartilhado pelo professor Luiz, que declara que
[...] o respeito deve ser ponto de partida em qualquer escola, pois os professores precisam
saber que os indivíduos têm suas escolhas [...] a questão da homossexualidade, por exemplo,
a gente percebe que tem muita criança que tem uma tendência ao homossexualismo e isso...o
ser humano tem que ter o direito de nascer do jeito que nasceu e ser do jeito que é.
De acordo com essas falas, é possível inferir que, nessas escolas, a partir des-
ses docentes, existe a preocupação em desenvolver, durante suas aulas, a prática
do respeito ao outro. Ferrari e Castro (2013b, p. 296) enfatizam a relevância de
[...] deixar claro que os discursos e práticas sobre os quais e desde os quais vamos trabalhar
partem do pressuposto de que as sexualidades não são fatos naturais, mas sim resultados
de articulação histórica, discursiva e socialmente construída.
Na defesa do respeito, as/os professoras/es demonstram ter conhecimento de
que as questões de discriminação e preconceito dizem de construções sociais, daí
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o entendimento sobre a necessidade de a escola implementar ações no sentido de
combater práticas que discriminam e desrespeitam, visando à construção de uma
sociedade menos preconceituosa e violenta. As narrativas das professoras/es estão
ancoradas na concepção de que a escola e a ação docente estão ligadas à construção
dos sujeitos. Como reflexo disso, tentam fazer as/os alunas/os se colocarem no lugar
do “outro”, como percebemos na afirmação do professor Luiz:
Pra mim, tudo passa pelo respeito. [...] eu falo muito com os meninos: “e se fosse com você?”
Quem se coloca no lugar [...] Eu sempre falo com eles “se coloque no lugar do outro, indepen-
dente de que situação seja, antes de julgar, de qualquer coisa, se fosse com você, como você
ia reagir a isso?
O professor coloca em prática uma forma de saber que, atravessada por rela-
ções de poder, diz dos encontros e desencontros entre sujeitos, buscando promover
o combate às discriminações e ao preconceito por meio do incentivo à empatia.
Partindo do princípio de que o gênero é um organizador social e de que a escola é
produto e produtora dessa divisão binária dos gêneros que marca nossa sociedade,
podemos pensar que uma das dificuldades enfrentadas no conjunto respeito/des-
respeito diz das relações de gênero. Com isso, queremos dizer que as questões de
enquadramento do gênero ocorrem cotidianamente, o que nos convida a pensar os
modos como os discursos funcionam para construir sujeitos detentores de um gêne-
ro e de uma sexualidade. A necessidade de respeito passa a ser uma reivindicação
das professoras e professores como ataque ao desrespeito.
Assim, respeito e desrespeito às expressões de gênero podem ser entendidos
como discursos que cumprem alguns propósitos políticos em nomear os sujeitos
generificados. Mais do que isso, diz dos embaralhamentos entre gênero e sexuali-
dade. Para Judith Butler (2018), os gêneros são resultados de atos performativos,
atos que, insistente e repetidamente, constituem homens e mulheres de acordo com
as normas de gênero que cada sociedade vai construindo. A escola e as relações que
se desenvolvem no seu interior são parte desse processo de construção de homens e
mulheres. Ao se apresentarem no espaço público, de forma geral, e nas escolas, em
especial, os corpos generificados não apenas demonstram sua existência, mas rei-
vindicam reconhecimento e valorização, exercendo o direito de aparecer e colocar
em prática a liberdade, reivindicando, em última instância, o direito a uma vida
que possa ser vivida (FOUCAULT, 2011a).
“Uma vida que possa ser vivida” é uma expressão cunhada por Michel Fou-
cault que nos convida a pensar nos modos de vida que experimentam outras for-
mas de ser e estar no mundo. Inspirado no arcabouço foucaultiano, Jamil Cabral
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A prática docente e as relações de gênero e sexualidades: conversando com professoras e professores
Sierra (2013) toma a vida de Gilda, uma travesti que viveu nas ruas de Curitiba da
década de 1980 para colocar sob investigação o modo de viver uma vida como sua
manifestação da verdade. Sierra (2013) argumenta que o investimento em vidas
que possam ser vividas diz do “trabalho de elaboração de uma noção sobre estética
da existência e modos de vida para, com isso, arriscar outras experimentações de
vivibilidade diante dos limites que individualizam o sujeito na lógica objetivadora
das identidades” (SIERRA, 2013, p. 103). Quando o professor Luiz provoca os/as
alunos/as a se colocarem no lugar do outro, ele as/os está incitando a viverem ou-
tras vidas, outras formas de ser e estar no mundo. Para isso, cada uma/um terá que
acionar formas de conhecer sobre o “outro”, que possibilitem se aproximar desse
outro que é o diferente.
Temos na escola um ambiente fértil, no qual é possível conduzir as mais va-
riadas discussões. As temáticas surgem o tempo todo, cruzando o currículo formal
com as demandas trazidas pela comunidade escolar, pelas/os funcionárias/os, pais,
alunas/os e docentes que percebem a necessidade de incluir novas problematiza-
ções e situações do interesse coletivo. O que as/os professoras/os nos dizem é que
a escola não fica limitada aos conteúdos prévios e programados, mas que há um
movimento vivo de construção do currículo a partir do que emerge no cotidiano
escolar, presente em discussões informais surgidas durante as aulas e/ou no tempo
de permanência na escola, elaborando, assim, um currículo oculto. Segundo Mar-
lucy Paraiso e Lucíola Santos,
A expressão “currículo oculto” tem sido muito utilizada, significando o conjunto de normas
e valores implícitos nas atividades escolares, porém não mencionados pelos professores
ou não intencionalmente buscados por eles. São, portanto, aprendizagens ou efeitos de
aprendizagens não intencionais que se dão como resultado de certos elementos presentes
no ambiente escolar. É constituído tanto de práticas como de mensagens não explicitadas
(SANTOS; PARAÍSO, 1996, p. 84)
A esse respeito, Antonio Flávio Moreira e Vera Candau (2007) acrescentam
que rituais e práticas fazem parte do currículo oculto, assim como relações hierár-
quicas, regras e procedimentos, modos de organizar o espaço e o tempo na escola,
modos de distribuir as/os alunas/os por grupamentos e turmas, assim como mensa-
gens implícitas nas falas dos/as professores/as e nos livros didáticos. Esse currículo
é o reflexo social e cultural de uma determinada forma de ver o mundo, trazida por
todas/os que constroem a educação no dia a dia de cada escola, configurando-se
como um instrumento político ligado à ideologia e às relações de poder institucio-
nalizadas nesses grupos e lugares e que se operacionaliza nas salas de aula.
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Para a professora Marília, “a escola reflete tudo, ela é o celeiro, tudo para ali,
e é normal que as diferenças apareçam... e por isso eu acho que a escola precisa tra-
balhar isso”. Ao dizer da necessidade de trabalhar com aquilo que chega à escola,
Marília se refere a um entendimento do currículo como algo vivo, em construção e
imprevisível, capaz de acolher e tratar dos temas e espaços que dialogam com a es-
cola. Recorrentemente, os/as alunos/as trazem temas que entrecruzam com gênero
e sexualidade, tais como bullying, preconceito, relações afetivas, dentre outros que
convidam as/as professoras/os a abordarem as relações de gênero e sexualidades,
assim como a manterem o diálogo aberto para outras questões trazidas para as
aulas, tendo “como desafio ‘manter viva a pergunta’, o que significa que os(as)
professores(as) não se tornem a própria ‘personificação do conhecimento’ sabendo
lidar com a dúvida, com as ‘novidades’ vivenciadas pelos(as) alunos(as)” (FERRA-
RI; CASTRO, 2013a, p. 76).
Ampliando os entendimentos da “necessidade de trabalhar isso”, como suge-
rido pela professora Marília, queremos pensar o porquê de o currículo oficial não
contemplar esses temas e como a escola lida com essa ausência. Alexsandro Ro-
drigues (2009, p. 66) afirma que “as pessoas desconfiam/reagem/resistem a esses
efeitos normatizantes de condutas e comportamentos, que são impressos nos tex-
tos/discursos do currículo e, ao reagirem, produzem”, ajudando-nos a entender os
enxertos cotidianos de temas nos currículos praticados, que extrapolam e superam
o currículo oficial, buscando atender às demandas de cada escola e de seus sujeitos.
O autor ainda acrescenta que, durante suas vivências nas escolas, as/os profes-
soras/es percebem e sentem que “a partir dos muitos fios de saberes das redes
cotidianas do fazer escola, que professores e alunos transgridem o receituário das
tecnocracias impressas no currículo prescritivo, oficializado, alterando-o e impri-
mindo seus significados” (RODRIGUES, 2009, p. 67).
O que as/os professoras/es nos dizem, de forma enfática, é que a escola propõe
algo, ela tem um planejamento que se relaciona com o que é oficial, com os currí-
culos, com os limites dos conteúdos e das disciplinas, com a pressão das provas em
larga escala. No entanto, esse planejamento não está garantido, sendo, o tempo
todo, afetado por aquilo que as alunas e os alunos trazem de fora, que diz dos seus
interesses e que, muitas vezes, está ligado às questões de gênero e sexualidades,
aos desejos, às paixões, aos conflitos, enfim, algo que é vida, que diz dos sujeitos e
suas aproximações e diferenças. Para Anna Paula Vencato (2014,
p. 24),
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A prática docente e as relações de gênero e sexualidades: conversando com professoras e professores
Embora a existência de diferenças possa ocasionar conflitos na escola, é preciso que tenha-
mos claro que o problema a ser enfrentado não são as diferenças, mas as desigualdades.
Diferenças devem ser entendidas como um sinônimo de riqueza, e devem ser valorizadas
dentro da escola e das práticas pedagógicas. É importante que estejam incluídas nos con-
teúdos, currículos, debates e nas relações entre os diferentes sujeitos que circulam nesse
ambiente. É preciso compreendê-las, conhecê-las e respeitá-las.
Ao trabalhar com as falas das professoras/es, queremos tomá-las como convite
ao pensamento, à história do pensamento que organiza nossas formas de ver o
mundo e de lidar com os sujeitos e conosco. É possível pensar novas abordagens a
partir da reação docente a episódios que categorizam, classificam e excluem. Para
Ferrari e Castro
(2013b, p. 316),
A formação docente pode ser um espaço/tempo em que os/as professores/as têm a oportuni-
dade de desconstruir concepções naturalizadas, abalar certezas prontamente construídas,
revisar seus próprios valores, colocá-los sob suspeita, repensar os currículos escolares e as
práticas pedagógicas, com vistas à ampliação das noções de saberes legítimos.
O olhar docente diz da percepção das possibilidades que cada sujeito traz
consigo e que exige problematizar as características visíveis relacionadas à sua
aparência, situação econômica e social numa perspectiva histórica, construindo, a
partir desse olhar sensível, novas formas de ver e viver no mundo do qual fazem
parte.
A construção de gênero na escola
Partindo da necessidade de problematizar os lugares que mulheres e homens
ocupam na sociedade atual, podemos colocar em perspectiva o papel desempe-
nhado pela escola na construção e na perpetuação do modelo que constrói e fixa
esses lugares, como sendo adequados para uns e não para outros. Sobre isso, as/
os docentes declaram que “as construções sociais estão dentro da escola, e a gente
mesmo precisa ter cuidado com isso, porque a gente mesmo às vezes brinca com o
aluno e essas brincadeiras reforçam o preconceito e reforçam o desrespeito com o
outro” (Paulo). Ou ainda: “a menina já tem que ter um caderno mais arrumadinho,
a gente já carrega isso pra dentro da escola”; “se você elogia a letra de um aluno,
o pessoal fica gozando...e a gente precisa combater isso”; “tem isso de isso não é
coisa de menina, isso não é coisa de menino” (Marília). Enfim, falas que conduzem
para o entendimento dos gêneros como construção relacional entre ser homem e
ser mulher. Tais aspectos são defendidos por autoras como Judith Butler (2015),
que afirma que o gênero se constrói por diferentes discursos os quais, para além
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de descrevê-los, atuam formando o que ele é. O gênero de cada criança, ao nascer,
já aparece vinculado à sua genitália de forma contundente, como se tivesse sua
origem a partir de um pênis ou uma vulva, quando não se pode mais negar que
essas construções se dão por meio dos reiterados discursos (hetero)normativos que
nos dizem cotidianamente como ser uma “mulher de verdade” ou um “homem de
verdade”.
Segundo o professor Cristiano, “quando a gente tem casos de gêneros distintos,
de opções sexuais, o desrespeito aflora mais”. Esse professor relata o caso de um
aluno, numa turma de faixa etária de cerca de 11 anos de idade, que “tinha um
corpo de menino, mas se identificava como menina e assumiu essa identidade, e os
outros faziam piadas, brincadeiras entre si, ou outros brincavam com desrespeito”,
e reforça que, nesses casos, em que o desrespeito “aflora” ele precisa ser combatido
mais efetivamente. Nas respostas e comentários, as/os entrevistadas/os ressaltam
que é comum entre as/os docentes, de uma forma geral, a falta de conhecimento,
por exemplo, sobre os processos de transgeneridades
4
. No exemplo utilizado, o pro-
fessor afirma que “muitos colegas e funcionários da escola não sabiam como tratar
esse aluno”, chamando-nos a problematizar as oportunidades de discussão que as/
os docentes têm a respeito das múltiplas possibilidades de gênero, para além dos
binarismos que compõem a norma padrão e os exercícios possíveis da sexualidade
para além da heterossexualidade compulsória.
A esse respeito, Vencato (2014, p. 29) ressalta a importância da discussão na
formação de professoras/es:
Não é novidade nos cursos de licenciatura a ausência, para a formação de docentes, de
subsídios que lhe proporcionem a construção de um arcabouço teórico-metodológico que
lhes ajude a lidar com as diferenças. Essa ausência se amplia ainda mais quando a diferen-
ça refere-se a questões de gênero, das sexualidades – ou orientações sexuais, termo mais
comumente (re)conhecido na arena das políticas públicas – e da raça/etnia.
As/os docentes entrevistadas/os percebem, de forma efetiva, que a construção
de gênero se dá nos espaços das escolas em que cada uma/um atua. Também reco-
nhecem o incômodo diante de situações nas quais esse estabelecimento de papéis
dirigidos a um ou a outro gênero binário se converte em recursos discriminatórios,
em meios opressivos contra aquelas/aqueles que não se enquadram às normas e
regras sociais previamente estabelecidas. Segundo Butler (2018, p. 41), “a preca-
riedade está, talvez de maneira óbvia, diretamente ligada às normas de gênero,
uma vez que sabemos que aqueles que não vivem seu gênero de modos inteligíveis
estão expostos a um risco mais elevado de assédio, patologização e violência”.
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A prática docente e as relações de gênero e sexualidades: conversando com professoras e professores
De acordo com o professor Paulo, os lugares estão marcados. Como, na escola,
essas marcações não estão sendo colocadas sob suspeita, são pouco questionadas:
“para o menino, é o lugar da rua, a menina é o lugar da casa. Então, eu acho que
essa marca da nossa sociedade, ainda, ela acaba por definir isso”. Os lugares de
gênero parecem confirmados na escola, tanto para meninos quanto para meninas.
Porém, identificar esse processo não garante a atuação nele, ou seja, parece que
confirmam o que já sabem e, ao encontrarem essa confirmação, não se sentem
chamados a atuar sobre ela. A professora Marília corrobora com a afirmação do
colega, dizendo que “ela é mais cobrada, ela é mais vigiada mesmo”, referindo-se
à condição em que as meninas são colocadas em seus cotidianos, incluindo-se, aí,
a escola.
As/os docentes chamam a atenção também para a vigilância promovida pe-
las/os próprias/os professoras/es, quando parte destas/es assume o discurso que
naturaliza a heteronorma, tendo efeito de controle sobre os corpos, o que é exem-
plificado na fala de Paulo: “Não adianta fazer o discurso politicamente correto e
chegar na sala de aula e falar: ‘você fez isso, ah veado!’, e a gente vê isso na escola”.
A professora Ana argumenta, ainda, que essa construção é aliada à discriminação,
muitas vezes presente, sobretudo, no curso noturno de sua escola:
No noturno, a gente percebe muito. Que ainda tem: “não, isso não é coisa de homem.” […] É
o chorar. “Nossa, fulano… Nossa, isso não é coisa de homem, não. Homem não chora, não”.
E se a gente for parar pra pensar, esse tipo de comentário, ele já vem recheado de muito tipo
de preconceito. Eu sinto por parte de alguns professores algumas piadas que a gente… meio
que… aceita como comum entre, quando você está falando, quando vários homens estão
conversando e tudo… Mas, principalmente, a gente percebe o desviar do assunto. É mais fácil
não abordar do que enfrentar. É mais fácil você em momento algum se indispor. Mas isso é
muito uma postura de direção. Pra que promover um debate?
O professor Cristiano também contribui para a discussão, ao trazer o relato
sobre a presença dessas falas em sua escola:
E a questão das piadinhas, isso também é muito comum, é muito comum: “Não, isso é coisa
de mulher, isso é coisa de homem”; “ó, não abraça o colega não que isso é coisa de viado”;
“ó, pô, você é viadinho, pelo amor de Deus, vira homem”. O “vira homem”, então, você escuta
cotidianamente na escola aluno falando com outros alunos e professor na hora da aula.
O professor Paulo complementa, dizendo também a respeito de tais práticas
na escola em que atua: “lá a gente escuta professor falando com aluno: ‘vira ho-
mem’”, traduzindo e reafirmando práticas as quais reforçam o modelo binário que
está imposto na escola, ao declarar que existe uma forma de ser homem, não várias
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formas de ser, além de outras opções e possibilidades para além do que se configura
como ser homem.
Retornando às falas da professora Ana, ela constrói várias situações que
nos permitem problematizar as relações em sua escola, envolvendo alunas/os e
professoras/es, cujas posições de discriminação às vezes se confundem, se repe
-
tem e/ou coincidem. Quem educa também deseduca, ou educa para o preconceito,
quando deixa de combater as posturas e os discursos de discriminação. Também
chama a atenção para o que é comentado por outras/os docentes a respeito da
prática de ignorar o ocorrido, o que se ouve, fingir que não aconteceu e deixar
como está, sugerindo, inclusive, ser esta uma postura da direção da escola que,
segundo ela, prefere se abster a tomar posições contrárias às práticas sexistas e
homofóbicas.
Ela nos conta, ainda, de outra prática de sua escola: “a chamada é separada:
meninos primeiro, meninas depois. [...] É estranho esse tipo de organização. Porque,
se você segue a questão alfabética, é o mais correto. É o lógico”. O gênero é uma
forma de organizar o social. Assim como a fila ou a ordem alfabética dos diários,
o gênero pode ser utilizado para organizar a realidade. Segundo Larissa Pelúcio
(2014, p. 114),
O desafio de se trabalhar fora dos marcos identitários e das referências binárias relativas
aos gêneros e à orientação sexual é exigente, pois demanda torções na nossa forma de
perceber as dinâmicas sociais que oferecem esses termos classificatórios capazes de definir
e fixar identidade.
Nesse sentido, cabe, então, questionar: o que faz alguém definir essa divisão
como organização de uma burocracia escolar? Como investir em outras maneiras
de lidar com os corpos sem a manutenção da divisão binária? Essas são questões
que incomodam, ou que deveriam incomodar, as/os professoras/es que estão coti-
dianamente participando da reprodução dessas separações autoritárias do gênero.
As/os professoras/es reconhecem sua formação social enquanto sujeitos e como isso
é atravessado pelo gênero, ao mesmo tempo em que reconhecem também que a
escola é o local de pensar e investir em outras formas de ser e estar no mundo.
A insegurança docente: “não me sinto preparada/o para tratar esses assuntos”
O roteiro utilizado nos grupos focais, elaborado a partir das respostas dos
questionários, trazia para a discussão o sentimento de despreparo que professo-
ras e professores afirmaram vivenciar. Em muitos momentos de suas declarações,
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A prática docente e as relações de gênero e sexualidades: conversando com professoras e professores
deixaram claro que existe demanda por formação, assim como a possibilidade e
a necessidade de discutir relações de gênero e sexualidades na escola. Durante
esses encontros, quando vieram à tona as respostas que deixavam clara essa
sensação de despreparo, uma nova questão emergiu, quando o professor Paulo
afirma:
[...] quanto à falta de capacitação, eu acho que, sim, falta capacitação, mas falta principalmen-
te interesse e disposição pra se colocar o debate porque muitas vezes essa capacitação é
oferecida, mas não há um interesse pela procura dessa capacitação.
Já o professor Cristiano complementa:
Eu penso que falta realmente vontade e falta, às vezes, [...] conhecimento e falta também a
pessoa querer fazer esse trabalho porque muitas vezes a pessoa, ela já tem determinados
preconceitos, determinados pensamentos relacionados às discussões… relacionados à di-
ferença, a gênero e outras mais, e a partir dessa vontade dela de não abordar esse assunto
porque vai ser polêmico, vai trazer determinadas situações pra sala de aula, ela simplesmente
não aborda. E talvez por isso falte o interesse na capacitação porque a pessoa realmente não
quer trazer pra sala de aula algo que é polêmico.
Não é possível simplificar as decisões e as atitudes das/dos docentes a um sen-
so comum, de “quero ou não quero”, pois a possibilidade de formação vem associada
a vários outros fatores presentes na vida cotidiana dos sujeitos. Ser professora e
professor traz consigo o ser mulher/homem, mãe/pai, esposa/o, namorada/o, ami-
ga/o, estar muitas vezes em mais de uma escola ou outro espaço profissional, que
não apenas à docência, espaços de lazer e prazer, viagens, família e tantas outras
possibilidades de viver no mundo que cada pessoa traz em si e para si. A esse res-
peito, Antônio Nóvoa (1992, p. 12-13) afirma que
[...] a formação de professores tem ignorado, sistematicamente, o desenvolvimento pessoal,
confundindo “formar” e “formar-se”, não compreendendo que a lógica da atividade educa-
tiva nem sempre coincide com as dinâmicas próprias da formação [...] Urge por isso (re)
encontrar espaços de interação entre as dimensões pessoais e profissionais, permitindo aos
professores apropriar-se dos seus processos de formação e dar-lhes um sentido no quadro
das suas histórias de vida.
Podemos inferir, portanto, que há demanda real e extensa por formação, mas
há, ainda, a necessidade de olhar com sensibilidade para as questões subjetivas
das/dos docentes, que as/os formam e transformam em professoras/es. Nóvoa (1992)
considera que os indivíduos trazem consigo suas bagagens emocionais, culturais,
religiosas e outros fatores de formação que, juntos, constituem cada uma/um. A
formação está em diálogo com esses aspectos que constituem cada indivíduo, que
não pode e nem consegue despir-se totalmente disso, que é parte da sua individua-
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lidade, em pouco tempo ou de um momento para o outro. Sobre os professores, Ma-
rília diz: “Eles têm a opinião formada e ela tem que se despir de todo o preconceito”.
Podemos dizer, então, que ser docente é um exercício de aprendizagem constante,
em oportunidades que se somam no cotidiano de cada sujeito, enquanto este se
forma e se transforma como ser humano e profissional.
A professora Ana insiste a respeito da necessidade de formação, seja na gra-
duação, seja na formação continuada. A docente relata ser comum ouvir de alunas/
os e na mídia termos cujo significado ela desconhece, demonstrando, também, a
preocupação com a linguagem que chamou de “politicamente correta”, pois “a cada
dia a gente ouve a mesma coisa sendo dita de outro jeito”. E complementa sua fala:
Falta, falta. Falta sim. Principalmente com relação ao que eu te falei, a questão dos termos,
terminologia… Outro dia a gente estava comentando exatamente isso, como você chama uma
criança que tem isso de uma forma não preconceituosa? Ah, mas a partir do momento que
você rotula que tem isso, você já está sendo preconceituoso, então… Eu falei até na questão
de necessidades especiais aqui dentro da escola. Um dia, eu lembro que eu comentei com
uma amiga minha: nossa, vai ter um deficiente visual na Malhação. E ela: nossa, demorou
tanto pra falar cego. Que eu parei e pensei assim, até que ponto o politicamente correto não
está fazendo a gente deixar de discutir muita coisa? Porque, às vezes, você percebe na fala do
outro, que tem um conhecimento maior, igual colocou aqui da questão do… amor afetivo (Ana).
Essas falas demonstram que não é o caso de apenas construir a formação
numa dimensão pedagógica. É preciso investir em produção de saberes e, nesse
sentido, pensar na criação de redes de formação, em que seja permitido atuar com
o sujeito, sugerindo a troca de informações, experiências e partilha de saberes, na
construção do espaço de formação.
Outra ideia que surgiu e suscitou debate foi a busca pela sensação de “estar
preparado” para lidar com as questões que propusemos. Contudo, podemos inda-
gar: que preparo é esse? Existe uma forma de estar preparada/o para esta ou outras
abordagens ou o aprendizado se dá nas relações que se estabelecem no cotidiano?
A esse respeito, Ferrari e Castro (2013b, p. 299) contribuem com nossa discussão,
ao também indagarem:
É mesmo necessário que professoras e professores recebam formação para lidar com as
homossexualidades nas escolas? Se for o caso, como deve ser essa formação? Por que foi
possível formular essas questões? O que elas dizem de nós? Essas são reflexões que buscam
problematizar o interesse pelas homossexualidades, pela formação docente, relacionando-
-as às questões da sexualidade e das homossexualidades e anunciando algumas possibili-
dades para a construção de olhares plurais e “desconstrutivos” sobre as identidades sexuais
nas escolas.
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A prática docente e as relações de gênero e sexualidades: conversando com professoras e professores
Variadas afirmações ouvidas durante esse trabalho de escuta e pesquisa su-
gerem que, nos currículos de formação de professoras/es, não havia, até recente-
mente, espaço para as discussões de gênero e sexualidades. De acordo com Kelly
da Silva (2015), a abordagem do tema e sua introdução nos currículos de formação
das universidades, na forma de disciplinas eletivas/optativas, é bastante recente e,
como disciplina obrigatória, ainda é uma novidade e uma esperança.
Perguntadas/os se haviam discutido na formação acadêmica esses temas, a
resposta foi negativa. Todas/os, sem exceção, afirmaram que nunca se depararam
com a discussão durante seus processos de formação acadêmica. Segundo Cristia-
no, graduado em Educação Física:
Não que eu me lembre. Assim, de tratar o tema, de trazer a discussão, do tema gênero e
sexualidade, não. Diferença, sim, uma discussão numa matéria de Educação Física adaptada,
mas mais voltada pra questão do aluno deficiente.
Marília, professora de Geografia, lembrou que, em sua área de formação, havia
poucas mulheres nas turmas: “e meu curso já é um curso que a maioria é homem,
né? Eu lembro quando eu entrei eram quatro mulheres na sala. Então, a Geografia
tem uma predominância masculina muito grande. Aí então não discutia mesmo”. E
essa informação é reforçada por Paulo, ao dizer: “História também, na minha época,
quando eu formei… Na minha época, o meu curso tinha mais homem”. É possível
perguntarmos, por meio dessas falas: por que em turmas nas quais predominam
estudantes do gênero masculino, espera-se que não haja a discussão relacionada
a gênero e sexualidades, como sugerem a e o entrevistada/o? Será a discussão de
gênero e sexualidades um assunto para docentes mulheres?
Pensando na formação dos conhecimentos, Silva Junior (2013, p. 71) afir-
ma que “o reforço dos controles e das resistências encadeiam-se uns aos outros,
segundo algumas grandes estratégias de saber e poder”. Recorrendo também à
perspectiva de desvelamento do que está implicado na sexualidade, como Foucault
(2011, p. 100) defende, podemos ter, como um ponto de partida, a premissa de que
vivemos ancorados em normas que impõem o binarismo de gênero. Estamos vendo
esse processo acontecer nos cursos de formação, em que ainda temos áreas que são
tidas como mais de mulheres e outras de homens. Segundo Kelly da Silva (2015),
é possível perceber que as discussões de gênero e sexualidades estão chegando
às instituições de formação de professoras/es, porém, ainda precisamos perguntar
como isso está se dando nos diferentes conteúdos. A autora demonstrou, em seu
trabalho, que, nos cursos de Pedagogia, as disciplinas já estão acontecendo, embora
ainda haja demanda por mais espaço nos currículos desses cursos.
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AndersonFerrari, Claudete Imaculada de Souza Gomes, Cláudio Magno Gomes Berto
Para Ferrari e Castro (2013b, p. 312):
O “tornar-se professor(a)” não é algo que se possa fazer apenas durante um curso de for-
mação inicial ou através de cursos específicos de formação continuada. Esse é um processo
constituído a partir de inúmeras experiências, construídas no movimento e nas mudanças
que se dão ao longo do trajeto. Através da “viagem de formação”, o(a) professor(a) constrói
e reconstrói a sua subjetividade. Desse modo, as práticas de formação de professores(as)
não só produzem sujeitos, mas instauram uma relação reflexiva do(a) professor(a) consigo
mesmo(a).
Nesse sentido, Roney Polato de Castro (2014) argumenta a favor da problema-
tização das relações entre os currículos de formação docente e as temáticas das re-
lações de gênero e sexualidades, afirmando que isso deve ser feito “a partir de con-
dições de emergência de redes discursivas que vem se delineando no plano político,
de produção e conhecimentos e da vida cotidiana” (CASTRO, 2014, p. 73). É tempo
de repensar esses currículos, trazendo para seus espaços porosos novas formas de
discussão que possam fomentar a constituição de mais disciplinas e o trânsito dos
temas em questão pelas áreas que já existem. Isso pode trazer enriquecimento e
amplitude de abordagem aos cursos de formação.
Considerações nais
O conjunto das respostas demonstra que as/os professoras/es adquiriram, em
algum momento da vida, um conhecimento que se refere às relações de gênero e
sexualidade e conseguem fazer articulações com o seu fazer docente. Esse conhe-
cimento é, ao mesmo tempo, um reconhecimento das contribuições teóricas das
discussões de gênero e sexualidades. Para além disso, dizem também do processo
de fabricação dos sujeitos, sejam como professoras/es ou como alunas/os. Elas/eles
trazem à tona saberes sobre o que seria gênero e sexualidades e, assim, o que signi-
fica trabalhar com essas temáticas, acionando entendimentos de escola e educação.
A escola é esse espaço de fabricação dos sujeitos. Como gênero é um organi-
zador social, ele está presente na escola, convocando professoras/es a trabalhar
com ele, mesmo que não tenham clareza disso. Nesse sentido, o que é apontado
neste trabalho é que fazemos coisas com os gêneros e as sexualidades, que somos
subjetivados pelos saberes que nos povoam e que nos dizem dos sujeitos. Na sala de
aula, isso se soma às subjetividades de professoras/es, numa posição de sujeito que
convoca a questionar: “quem eu penso que sou?”, “quem eu penso que meus alu-
nos e alunas são?” e “quem eu quero ser?”, assim como “quem eu quero que meus
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A prática docente e as relações de gênero e sexualidades: conversando com professoras e professores
alunos e alunas sejam?”. O trabalho das/os professoras/es está implicado nesse
processo de investimento nos sujeitos. Não é por acaso que trazem para o debate
a associação com outras categorias como “diferenças”, “diversidade”, “preconceito”,
conceitos que se somam às discussões e que fornecerão o entendimento de gênero e
sexualidade; conceitos e saberes que são atravessados por relações de poder, como
nos lembra Foucault (2011).
O que estas/estes professoras/es nos dizem é que as escolas trabalham com
as relações de gênero e sexualidades de diferentes maneiras. Saem e nos tiram
do lugar de reclamação, que marca esse campo, de que a escola não discute e, por-
tanto, não trabalhamos com gênero e sexualidade nas escolas. Não negam que as
escolas – traduzidas nas suas ações, já que escola diz do conjunto da ação docente
em articulação com currículo, com a relação ensino/aprendizagem, etc. – têm difi-
culdades em discutir essas questões, mas isso não significa que não fazem nada.
Nesse sentido, o que a pesquisa demonstrou é que a questão mais importante não
é saber se fazemos ou não, mas o que fazemos sem, muitas vezes, nos darmos conta
de que estamos construindo ideias e sujeitos. As/os docentes abordam os temas re-
ferentes às relações de gênero e sexualidades porque reconhecem que as/os alunas/
os estão interessadas/os nas temáticas, elas dizem delas/es e trazem as questões.
As discussões de gênero e sexualidade suscitam a atenção para aquilo que “invade”
a escola, num olhar que se traduz na identificação das pequenas possibilidades de
fugas e resistências, micropoderes cotidianos que nos constituem, sendo possível
pensar outras formas de ser e estar no mundo.
Por isso, acreditamos na potencialidade deste trabalho ao refletir sobre o fa-
zer/ser professoras/es em meio às práticas cotidianas, que devem ser retomadas e
problematizadas para pensar outras formas de ser escola, de ser educação, de ser
sujeito. Existem resistências nas escolas, seja no voltar o olhar para o seu próprio
fazer docente para colocar sob suspeita o que pensamos e como agimos, seja no
voltar o olhar para o que as/os alunas/os estão propondo nos gestos, nas conversas,
nas dúvidas e que está presente no conjunto do que são as relações de gênero e se-
xualidades. Podemos, por fim, perceber, nas escritas das/dos professoras/es, como o
gênero e seus atravessamentos com a sexualidade estão diretamente ligados à no-
ção de verdade dos sujeitos, como vamos nos tornando sujeitos de uma sexualidade.
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Notas
1
As quatro questões foram: você aborda, durante suas aulas, os temas referentes a relações de gênero e
sexualidades? Se a resposta foi afirmativa, quais temáticas são abordadas dentro desses temas? A escola
é um bom espaço para as discussões de gênero e sexualidades? Você identifica problemas, preconceitos,
discriminações, ligadas a gênero e sexualidades em suas aulas? Descreva um pouco o que tem observado.
2
Todos os nomes são fictícios, respeitando o anonimato das/dos participantes.
3
O itálico está sendo usado para diferenciar excertos da pesquisa de citações bibliográficas.
4
Utilizamos o termo “transgeneridades”, seguindo a definição proposta por Magno (2017, p. 12), como ter-
mo “guarda-chuva”, referindo-se de forma genérica ao conjunto de identidades e/ou práticas de gênero
que rompem as expectativas de identificação e/ou performance baseadas no sexo/gênero designado ao
nascimento, englobando, assim, travestis, transexuais, crossdressers, pessoas de gênero não-binário, entre
outras.
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v. 27, n. 1, Passo Fundo, p. 223-243, jan./abr. 2020 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
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