ESPAÇO
PEDAGÓGICO
DIÁLOGO COM
EDUCADORES
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Ângelo Ricardo de Souza
Diálogo com educadores
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Ângelo Ricardo de Souza
A sessão Diálogo com Educadores tem o prazer de contar com a colaboração do
professor doutor Ângelo Ricardo de Souza da Universidade Federal do Paraná. A
sua participação no presente dossiê justifica-se pela trajetória política e intelectual
em defesa da educação pública, mas, também, pelos vínculos que tem com o Pro-
grama de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Passo Fundo. A defesa
de uma educação pública de qualidade e uma gestão democrática da educação têm
caracterizado a trajetória do professor Ângelo, de modo particular na construção
do Plano Nacional de Educação aprovado em 2014. Um dos grandes embates foi o
caráter público da educação e o papel do Estado no seu financiamento.
As questões que orientaram o presente diálogo com o professor Ângelo per-
mitem uma reconstrução da sua formação acadêmica, a inserção em atividades de
gestão, as pesquisas em andamento e os desafios da pós-graduação stricto sensu.
Sua vasta produção acadêmica é materializada na publicação de mais de 60 artigos
em periódicos, em torno de 30 capítulos de livros, em livros autorais e como orga-
nizador, em dezenas de trabalhos apresentados e publicados em eventos científicos
no Brasil e no exterior. Toda essa produção é transversalizada por temas como:
gestão democrática da educação; financiamento da educação; formação docente;
pesquisas em políticas educacionais, avaliação, entre outros.
Desejamos que essa experiência nos ajude a refletir sobre os desafios de uma
educação pública de qualidade num contexto de crescente privatização dessa.
REP – Você é hoje um pesquisador reconhecido no Brasil e na América Latina.
Conte-nos um pouco de sua trajetória de vida e a formação acadêmica. Qual foi o
percurso de sua formação até chegar ao campo das políticas?
Ângelo Sou licenciado em Educação Física, e assim que me graduei fui tra-
balhar, após aprovação em concurso público logo no final da graduação, na Rede
Recebido em 14/06/2019 – Aprovado em 30/09/2019
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i1.10587
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Municipal de Ensino de Curitiba, como docente para os anos iniciais do ensino
fundamental, na época 1º grau, em 1991.
Dois anos depois, assumi outro concurso na Rede Estadual de Ensino do Pa-
raná, para trabalhar com a educação física para alunos dos anos finais do ensino
fundamental e para o ensino médio. Atuei por vários anos na docência e então, por
motivo de problemas de saúde com nossa candidata, acabei assumindo uma candi-
datura à direção na escola municipal na qual trabalhava.
Uma vez eleito, mas ainda não empossado, fui convocado para assumir uma
vaga na UFPR, por conta de um concurso para professor que eu havia feito no
departamento de educação física da universidade. Fiquei muito dividido, mas optei
por permanecer na rede de educação básica, pelo compromisso com a comunidade
que acabava de participar do processo eletivo e construído junto conosco uma pro-
posta de mudança para a escola. Desisti, portanto, daquela vaga para professor na
UFPR.
Permaneci na direção da escola por seis anos, tendo sido reeleito após o pri-
meiro mandato de três anos.
Quando estava no segundo mandato, iniciei meus estudos de mestrado na
PUC-SP, e focalizei minha investigação no campo da Política e Gestão da Educa-
ção, especialmente nas questões atinentes à gestão escolar. Com isto, eu sabia que
adentrava outro campo, o qual poderia inclusive me distanciar definitivamente da
educação física.
Após o mestrado, já no final do período de gestão da escola pública, prestei ou-
tro concurso na UFPR, agora no Departamento de Planejamento e Administração
Escolar, para o qual fui aprovado. Afastei-me da escola e da rede de educação bási-
ca, na qual havia retornado às aulas de educação física e fui trabalhar na educação
superior.
Ali dei sequência à formação acadêmica e continuei estudando a gestão escolar,
ampliando nos estudos de doutorado o alcance da investigação, e se no mestrado
eu havia investigado a gestão escolar a partir de um estudo de caso, no doutorado
elaborei um dos primeiros perfis sobre a gestão escolar no Brasil, tomando dados
nacionais para tanto.
Esta formação agregada à temática do departamento no qual me insiro na
UFPR trouxe-me ao campo da política e gestão da educação.
Todavia, sempre que possível pego uma turma do curso de licenciatura em
educação física, para ministrar a disciplina de Políticas Educacionais, pois assim
consigo manter próximas minhas duas paixões acadêmicas.
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REP – De 1999 a 2001, você realizou seu mestrado da PUC/SP, defendendo
a dissertação “A escola, por dentro e por fora: a cultura da escola e o programa de
descentralização financeira em Curitiba/PR”; e, de 2003 a 2007, realizou o douto-
rado também na PUC/SP, defendendo uma tese sobre “O Perfil da gestão escolar no
Brasil”, com a orientação do professor José Geraldo Silveira Bueno. Quais aspectos
importantes poderiam ser ressaltados nessas duas pesquisas e suas contribuições
para sua formação como pesquisador e na produção acadêmica atual?
Ângelo – Eu fui estudar essa temática provocado pelas experiências profis-
sionais na gestão da escola pública de educação básica. Sempre tive interesse em
conhecer melhor as pessoas que dirigem as escolas e os processos de condução des-
sas instituições.
No mestrado, tomei a discussão da gestão financeira da escola, pois tendo
sido diretor escolar, verifiquei mudanças significativas no cotidiano da gestão, com
fortes impactos na política escolar, advindas dos câmbios promovidos pela transfe-
rência de recursos financeiros. Assim, minha questão ali se articulava ao quanto
a organização e a cultura (de gestão) escolar é impactada pelas políticas educacio-
nais, particularmente as de natureza financeira. Minhas conclusões indicam que
a gestão escolar constitui modos próprios de acolher e, ao mesmo tempo, rejeitar
aspectos das políticas educacionais, ressignificando-as e adaptando-as às suas ne-
cessidades e tradições.
Já na pesquisa de doutorado, meu foco foi produzir um panorama amplo da
gestão da escola pública no Brasil, buscando identificar se o perfil dos sujeitos e
processos de gestão escolar se articulam, e em que proporção, ao perfil das ideias e
conceitos consagrados no campo na história do Brasil. Isto é, interessava-me saber
se os dirigentes escolares e a administração escolar eram devedores em qual pro-
porção da história das ideias sobre gestão escolar no país. Após um levantamento
amplo, com base de dados nacionais, identifico uma correlação entre o perfil dos
sujeitos, dos processos e das ideias, mas com marcas temporais um tanto definidas,
tendo em vista especialmente a natureza político-pedagógica na gestão escolar.
Este ponto, por sinal, é o elemento que ainda hoje persigo em meus estudos.
Meu foco recai, em estudos mais aggiornados, sobre a condição política de se condu-
zir uma escola de educação básica, uma vez que as relações sociais e a disputa por
poder que atravessam diuturnamente a gestão escolar são marcantes.
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REP – Como você avalia os avanços e as dificuldades em fazer pesquisa no
campo das políticas educacionais no atual cenário brasileiro?
Ângelo – Nosso objeto é a conjuntura. Em políticas educacionais estudamos a
relação entre as demandas sociais por educação e a resposta (na forma de ação ou
não-ação) do Estado diante dessas demandas.
Sempre haverá demanda educacional, explícita, latente ou potencial, e o Es-
tado não pode argumentar que a desconhece. O atendimento a dada demanda,
também gera, em boa proporção, não atendimento a outras demandas, isto é, o
Estado promove escolhas que se articulam ao movimento próprio da luta política.
Vivemos tempos complexos e difíceis, nos quais o Estado escancara priorida-
des outras, em detrimento do atendimento a muitas demandas sociais por educa-
ção. Nossos estudos ganham, assim, um novo cenário, uma nova conjuntura. Nem
por isto, ao contrário, justamente por isto, temos diante de nós um novo movimento
da política, que precisa ser explicado. Nosso ofício de pesquisador, neste caso, é
conseguir explicar bem quais processos políticos têm se alterado na educação (vin-
culados ou não à macro política), como isto tem ocorrido, porque temos visto essas
opções políticas e, em especial, quais decorrências desses processos são perceptí-
veis e/ou previsíveis.
Ou seja, nossa função diante desta conjuntura é auxiliar o entendimento do
contexto e movimentos, de maneira a amparar as ações das pessoas (gestores pú-
blicos, docentes, sindicalistas, cidadãos em geral, pesquisadores mesmo) no enfren-
tamento dos problemas.
Contudo, tal conjuntura traz um componente que torna nosso trabalho mais
difícil, que são os cortes de recursos para a ciência e a tecnologia, os quais gerarão
a interrupção ou cancelamento de pesquisas e da formação de novos pesquisadores,
comprometendo aquele objetivo que destaquei anteriormente.
REP – Em 2014-2015 você realizou um Pós-Doutorado na University of Bristol
da Inglaterra. Como foi essa experiência e o que destacaria de significativo nas
pesquisas inglesas sobre as políticas de educação?
Ângelo – Esta experiência de pesquisa foi muito importante para minha for-
mação, pois conheci pessoas, realidades e abordagens de pesquisa bastante dife-
rentes do que estava acostumado.
Em essência, os objetos de pesquisa que percebia no grupo em que estive in-
serido, sob comando dos professores Roger Dale e Susan Robertson, na University
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of Bristol, abarcam temáticas muito amplas, pois em tal grupo havia pessoas de
vários lugares do mundo, com contextos muito diversos, portanto, com políticas
educacionais peculiares.
Contudo, como o grupo tem por eixo o debate sobre Globalização e Educação,
tínhamos quase todos uma “amarra” comum: o reconhecimento sobre a influência
das macropolíticas internacionais no desenho de políticas educacionais nacionais
ou locais. No mundo todo, temos observado o crescimento da transferência de res-
ponsabilidades educacionais do Estado para a sociedade civil e/ou a aproximação e
assunção de tarefas educativas por agentes privados, tanto na educação superior,
onde isto é mais evidente, quanto na educação básica.
Assim, estudos sobre planejamento educacional, como o que eu próprio de-
senvolvia, ou sobre livros didáticos, ou sobre financiamento da educação superior,
ou sobre reformas curriculares, ou sobre políticas de formação docente, etc., en-
contrávamos um eixo comum, que mais que supranacional é transnacional, isto é,
alcança aspectos culturais da conformação e organização dos sistemas educativos,
chegando, portanto, às pessoas que atuam em cada classe de aula.
Na Inglaterra, em particular, as discussões sobre a chamada economia do
conhecimento e a força do capital privado na educação superior continuam, as-
sim como a questão da responsabilização docente e a questão dos impactos sobre
a organização escolar provocados pelas políticas de avaliação. Mas, é crescente o
debate sobre educação e questões étnicas, educação e desigualdade, educação e
diversidade, dentre outros temas correlatos, tendo em vista as pressões geradas
pelas demandas sociais como a crise dos refugiados, o número muito elevado de
estrangeiros (e seus filhos que vão à escola) sem o domínio da língua inglesa, etc.
REP – Atualmente, você está desenvolvendo dois projetos de Pesquisa: “Aná-
lise comparada das políticas educacionais nas Américas: contextos, movimentos e
direito à educação” e “Políticas públicas e mudanças sociais”. Ambos os projetos
contam com inúmeros pesquisadores. Conte-nos um pouco destes dois projetos e de
que forma a pesquisa realizada nos PPG em Educação podem contribuir com as
políticas públicas na educação básica?
Ângelo – São dois projetos que articulam grupos de pesquisa. O primeiro
deles, “Análise Comparada das PE...”, congrega pesquisadores do Brasil, Chile,
Argentina, EUA e Uruguai. Este projeto de pesquisa se propõe a investigar com-
parativamente os movimentos da macropolítica e suas decorrências no alcance
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e na efetivação do direito à educação básica e superior nos países mencionados,
considerando as consequências das continuidades e descontinuidades das políticas
educacionais elaboradas em contextos democráticos após trocas nas orientações po-
líticas e ideológicas nos governos desses países. Vimos nos quatro primeiros países
mencionados um câmbio ao conservadorismo nas últimas eleições e gostaríamos de
saber as resultantes deste movimento da macropolítica na política educacional. O
Uruguai entra na pesquisa como uma espécie de contraprova.
O segundo projeto, “Políticas Públicas e Mudanças Sociais”, é um projeto de
pesquisa, mas antes é um projeto institucional e foi criado no âmbito do edital
Capes-PrInt. Este projeto propõe o desenvolvimento de processos inovadores de
análises comparadas, desenvolvimento de metodologias, avaliações e propostas de
implementação de políticas públicas, em particular as de caráter social. Metodolo-
gicamente, a proposta indica troca de experiências no plano da pesquisa empírica,
comparando realidades diferentes; produção cooperada de modelos analíticos e; no
campo epistemológico, na consolidação de teorias explicativas que permitam arti-
cular a complexidade das relações entre Estado, mercado e sociedade civil organi-
zada em contexto de globalização, destacadamente atentando-se para os elementos
contribuintes do desenvolvimento da democracia e da cultura, como a Educação.
Ele articula sete PPG da UFPR (Educação, Sociologia, Políticas Públicas, Educa-
ção Física, Enfermagem, Direito e Informática) com grupos de pesquisa dentro da
temática mencionada em 34 universidades estrangeiras.
Avalio que ambos trarão contribuições importantes. Neste segundo projeto, a
discussão mais ampla sobre a proposição, implementação e avaliação de políticas
públicas (em educação) contribuirá, potencialmente, com os estudos que o campo
vem desenvolvendo no Brasil, em especial na temática denominada de Avaliação
de Políticas Educacionais.
O outro projeto produzirá, esperamos, um panorama sobre o background no
qual a política educacional é desenhada e implementada. Nossa hipótese, todavia,
é que as macropolíticas produzem mudanças imediatas, mas com efeitos um tanto
retardados, o que amplia chances de resistências a tais mudanças.
REP – Você é, atualmente, coordenador adjunto da área de Educação na Ca-
pes. Fale-nos um pouco dessa experiência e de que forma você avalia o processo de
expansão e interiorização da pós-graduação ocorrido nas duas últimas décadas?
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Ângelo – Nossa área cresceu muito. Uma década atrás éramos 94 PPG, hoje,
chegamos a 184. Estamos em todos os estados da federação, e temos crescido tam-
bém a oferta dos níveis (89 doutorados) e modalidade (49 PPG profissionais). Con-
tinua havendo ainda forte disparidade regional, pois na região Norte temos apenas
13 PPG contra 73 no Sudeste e 47 no Sul, portanto, ainda há que se buscar melho-
rar a distribuição desta oferta no contexto nacional.
A pós-graduação em educação tem um papel significativo na qualificação de
quadros altamente especializados e, portanto, um potencial de contribuição signi-
ficativo para a formação docente da educação básica e superior.
Precisamos, contudo, ampliar a inovação nesta oferta, buscando produzir no-
vas formas mais criativas para a formação no nível da pós-graduação, pois temos
visto uma tendência de muita homogeneidade na área, no que se refere à proposta
e desenho curricular dos PPG.
Sou otimista quanto a isto, pois vejo potencial nas equipes que tocam os PPG.
O sistema de avaliação da Capes também tem um papel importante aqui, valori-
zando mais as iniciativas dos programas nesta direção.
REP – Como você avalia as medidas recentes de cortes do governo em cortar
recursos para o financiamento das pesquisas e das bolsas de mestrado e doutorado?
Ângelo – Os cortes de recursos podem inviabilizar boa parte dos trabalhos
que a pós-graduação desenvolve, não apenas nas bolsas de mestrado, doutorado e
pós-doutorado, mas no fomento ao funcionamento dos programas, tornando mais
complexa a inter-relação entre eles e, portanto, diminuindo as chances de aprendi-
zado mútuo e cooperação no desenvolvimento científico e tecnológico no país.
Penso que a comunidade acadêmica deve continuar a reivindicar a reposição
do quadro orçamentário anterior, lutando pela qualidade da ciência e, mesmo an-
tes, pela sobrevivência do sistema nacional de pós-graduação.
REP – Qual sua avaliação em relação às mudanças que estão sendo introduzi-
das no sistema de avaliação da Capes atualmente?
Ângelo – O sistema nacional de pós-graduação é construído gradualmente pe-
los organismos próprios na Capes, em constante diálogo com as diferentes áreas.
Assim, as mudanças que estão sendo propostas agora não são inovação de uma ou
outra gestão na Capes. Ao contrário, expressam as discussões e amadurecimentos do
CTC da Educação Superior, que reverberam também o desenvolvimento das áreas.
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As mudanças em curso sinalizam, dentre outros aspectos, para um Qualis
Periódicos referência, o que permitirá que não tenhamos mais diversas classifica-
ções para um mesmo periódico, acolhendo reivindicação antiga de todas as áreas.
Também aponta para uma nova ficha de avaliação, mais sintética e focalizada nos
aspectos mais relevantes, em especial, na centralização no entorno das ideias de
Formação e Impactos. Teremos também parâmetros para a avaliação que versam
sobre Internacionalização e Inovação, que são aspectos importantes para o dimen-
sionamento da qualidade da PG, mas que não possuem ainda um padrão avaliativo.
REP – Especificamente sobre a “Privatização da Educação” (temática do Dos-
siê da Espaço Pedagógico), que processos estão em curso no Brasil e em que medida
tais processos ameaçam a escola (educação??) Pública?
Ângelo – Cresce a olhos vistos a presença e participação privada na educação
básica, especialmente nas redes dos municípios menores e com menor capacidade
técnica. Em particular, tal presença se traduz: a) no conveniamento na educação
infantil e na educação especial; b) na venda de sistemas didáticos (apostilas, livros)
e de formação de professores; c) na venda de mecanismos de planejamento e gestão,
avaliação e controle; d) na definição de objetivos e metas da educação.
Mas, também, discute-se sem pudor alterações no modelo de financiamento da
educação superior, no que tange à cobrança de taxas nas Instituições Públicas de
ES e à retomada da ideia de priorização de algumas IES (Centros de Excelência)
em detrimento da maioria (Centros de Formação).
Minha percepção é que isto é parte de um processo mais complexo, que passa
pela ressignificação do papel do Estado para com a Educação. Assim, creio que
continuaremos vendo nos próximos anos: ampliação do atendimento assistencial
via educação na educação infantil e na educação especial por meio de parcerias
com o privado e com o informal; aprovação de mecanismos de desobrigação da fre-
quência escolar (home schooling); manutenção ou ampliação da isenção fiscal para
os usuários da escola privada; incentivo à política de transferências de responsa-
bilidades educacionais das redes públicas para a sociedade (Charter School; OS/
OSCIP; Políticas de voucher etc.); segmentação do ensino médio em dois grandes
modelos: escolas de formação ampla e de qualidade (privadas e algumas públicas) x
escolas com um itinerário e foco na singela formação profissional; mercantilização
absoluta da educação superior; risco sério de desmonte do SNPG.
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Ângelo Ricardo de Souza
REP – Até que ponto a expansão do setor privado empresarial no campo da
educação afronta os pressupostos do artigo 205 da Constituição de 1988 de uma edu
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cação como dever do Estado e da família, visando “ao pleno desenvolvimento da pes-
soa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”?
Ângelo – A Constituição Federal de 1988, segundo Jamil Cury, mudou um dis-
positivo importante na relação entre o público e o privado na educação: converteu
a ideia de concessão para autorização. Isto é, a partir de 1988, o segmento privado
precisa de autorização para oferta dos serviços educacionais, mas a educação deixa
de ser uma concessão do Estado, portanto, “enfraquece” neste momento o peso e
o poder no Estado na regulação e controle da oferta educacional pelo segmento
privado.
De toda forma, o segmento privado que mais cresce neste período é o empre-
sarial, ou o privado stricto sensu, e este lida com um elemento novo, pelo menos
oficialmente, na educação nacional: o lucro. Aqui temos um problema de fundo: é
possível uma instituição lucrativa acolher e desenvolver o princípio constitucional
de colocar a educação como ativo para o pleno desenvolvimento da pessoa e para o
exercício da cidadania?
Minha hipótese é que isto não parece possível. O mais complexo é que tem se
esparramado a ideia de que são essas as instituições educacionais de referência,
que devem servir de modelo não apenas pelos resultados escolares, mas pelos mo-
delos de gestão e pelas propostas pedagógicas. O risco que se corre aqui, com a di-
fusão de tal ideia, é o que Jorge Alarcon Leiva chama de privatização da alma, que
é representada pela diminuição tamanha do público que ele ficará em um gueto,
atendendo apenas aqueles que não podem, em absoluto, pagar por qualquer serviço
educacional, como tem se passado no Chile.
Minha esperança reside, todavia, no fato de que a história e a presença do Es-
tado na educação nacional é tamanha e, de outro lado, a resistência especialmente
dos educadores das redes públicas, organizados nos sindicatos docentes, tem força
suficiente para, junto conosco, nas universidades, possamos fazer frente a esta for-
te onda conservadora e privatista.
Nota
1
O presente Diálogo com Educadores contou com a mediação, em nome da Revista Espaço Pedagógico, do
Prof. Dr. Altair Alberto Fávero e do Prof. Dr. Telmo Marcon, integrantes do Programa de Pós-Graduação
em Educação da Universidade de Passo Fundo.