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Ensino de leitura em prol do desenvolvimento humano: o
lugar da BNCC
Reading teaching for human development: the place of BNCC
Enseñanza de la lectura a favor de desarrollo humano: el lugar de la
BNCC
Carina Andrade de Freitas
*
Angela Cristina di Palma Back
**
Resumo
O presente artigo apresenta resultados de pesquisa documental, em que se priorizaram reunir, anali-
sar e discutir conteúdos relacionados ao ensino de leitura nas séries iniciais e finais no documento da
BNCC Base Nacional Comum Curricular, homologado em dezembro de 2018. Defende-se, neste
trabalho, que o estudo sobre e da leitura seja uma atividade de construção do sentido, que, de acordo
com Kleiman (2009), pressupõe um leitor que seja um sujeito ativo, deixando de ser apenas um mero
receptor de informações para passar a ser um recriador de significado, tendo como consequência o
conhecimento. A metodologia caracteriza-se como uma pesquisa qualitativa, assentada na perspectiva
interativa da leitura, no processo de ensino/aprendizagem de língua portuguesa por meio de desen-
volvimento de competências mencionadas na BNCC. A pesquisa investigou o conceito de leitura a
fim de perceber se o desenvolvimento da competência leitora, posto no documento, contribuirá para
o ensino, com vistas a emancipar o leitor, perfazendo, assim, o pensamento crítico, reflexivo tor-
nando-o um leitor proficiente. Assim, mapearam-se, no documento, a percepção de competência
leitora e as habilidades em leitura que se apresentavam. Nesse caso, toda vez que aparecem pistas
explícitas associadas à noção de competência leitora, bem como habilidades de leitura postas na
BNCC, realizaram-se as análises. Como resultado, estabeleceu-se um conceito de competência que
promove o conhecimento na perspectiva de desenvolvimento humano frente ao aprendizado. Com
isso, durante a análise do documento, percebeu-se que leitura se enquadra no campo da prática social,
trazendo modestamente discussões acerca das especificidades da leitura, esta envolvendo a dimensão
cognitiva do desenvolvimento, que precisam ser sistematicamente ensinadas, sobressaindo no docu-
mento conceitos polissêmicos de competência.
Palavras-chave: Leitura; Ensino; Competência; Habilidade; BNCC.
Recebido em: 13.04.2020 Aprovado em: 10.10.2022
https://doi.org/10.5335/rep.v29i2.10852
ISSN on-line: 2238-0302
*
Mestra em Educação na linha de Pesquisa Educação, Linguagem e Memória, PPG em Educação/UNESC. Orcid:
https://orcid.org/0000-0001-7621-2702. E-mail: carinaandrade.freitas@gmail.com.
**
Doutora em Linguística pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora do Mestrado em Educação
(PPGE) e do Curso de Letras da UNESC. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4060-340X. E-mail: acb@unesc.net.
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Abstract
This article presents results of documental research, which prioritizes to collect, to analyze and to
discuss related content related to reading teaching in the Middle School in the BNCC - Common
National Curriculum Base, approved in December 2018. The study of reading is defended as an
activity of construction of meaning, which, according to Kleiman (2009), presupposes a reader who
is an active subject who ceases to be only the receiver of knowledge and becomes a (re) creator of
meaning, resulting in knowledge. The characteristic of the methodology is as a qualitative research
on the Interactive Perspective of Reading in the teaching/learning process of the Portuguese language
through the development of competences mentioned in the documental. The research investigated
the concept of reading to understand if the development of reading competence, put in the docu-
ment will contribute to teaching, with the purpose of emancipating the reader; thus finding critical,
reflective thinking critical, reflective thinking developing a proficient reader. Thus, we mapped in
the document, the perception of reading competence and the reading skills that the document pre-
sented. In this case, whenever explicit clues appear associated with the notion of reading competence
as well as reading skills placed in the BNCC, the analyzes were performed. We established as a result
the concept of competence that promotes knowledge in the perspective of human development based
on learning. With that during the analysis of the document it was noticed that reading falls within
the field of social practice modestly bringing discussions about the specifics of reading, this involves
the cognitive dimension of development, that need to be systematically taught, standing out in the
document polysemic concepts of competence.
Keywords: Reading; Teaching; Competence; Ability; BNCC.
Resumen
El presente trabajo presenta resultados de una investigación documental en la que se buscó recopilar,
analizar y discutir contenidos relacionados con la enseñanza de la lectura en los grados inicial y final
en el documento BNCC - Base Curricular Común Nacional, aprobado en diciembre de 2018. Se
argumenta, en este trabajo, que el estudio de y de la lectura es una actividad de construcción de
sentido, lo que, según Kleiman (2009), presupone un lector que es un sujeto activo, ya no un mero
receptor de información. convertirse en un recreador de sentido, resultando en conocimiento. La
metodología se caracteriza como una investigación cualitativa sobre la Perspectiva Interactiva de la
Lectura en el proceso de enseñanza/aprendizaje de la lengua portuguesa a través del desarrollo de las
competencias mencionadas en el documento. La investigación investigó el concepto de lectura con
el fin de comprender si el desarrollo de la competencia lectora, puesta en el documento, contribuirá
a la enseñanza, con miras a emancipar al lector, formando así un pensamiento crítico y reflexivo,
convirtiéndolo en un lector competente. Así, en el documento se mapeó la percepción de la compe-
tencia lectora y las habilidades lectoras que se presentaron. En este caso, siempre que aparecen
indicios explícitos asociados a la noción de competencia lectora así como habilidades lectoras ubica-
das en la BNCC, se procedió a realizar los análisis. Como resultado, se estableció un concepto de
competencia que promueve el conocimiento desde la perspectiva del desarrollo humano basado en
el aprendizaje. Así, durante el análisis del documento, se percibió que la lectura se inserta en el campo
de la práctica social, trayendo modestamente discusiones sobre las especificidades de la lectura, esta
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involucrando la dimensión cognitiva del desarrollo, que necesita ser enseñada sistemáticamente, des-
tacando conceptos polisémicos. en el documento de competencia..
Palabras clave: Lectura; Enseñanza; Competencia; Habilidades; BNCC.
Introdução
Escrever sobre leitura requer cuidados sobre o que se pretende defender acerca
do ato de ler. Nesse caminho complexo, há diversas teorias que explicam a leitura e é
nesse contexto, por vezes controverso, que se inseriu a pesquisa. Todavia, o que se pre-
tende com este trabalho de socialização da pesquisa é fazer uma discussão, a fim de
refletir de que forma o documento da Base Nacional Comum Curricular (doravante
BNCC) compreende as diretrizes da educação nacional e as atesta com o propósito de
contribuir para a formação do leitor. Associada à complexidade da leitura, há alguns
desafios no ensino da leitura: o de ler propriamente dito; porque é a partir do que se
deriva do ato de ler que podemos formar cidadãos autônomos, capazes de refletir e
dialogar, de resolver situações cotidianas, superando-as, e, para além disso, é por meio
da leitura que se constitui um dos principais caminhos que levarão à apropriação de
conhecimentos novos.
Para esta pesquisa, defendeu-se o estudo sobre a leitura como uma atividade de
construção do sentido, que, de acordo com Kleiman (2009), proporciona que o leitor
seja um sujeito ativo, colocando-se em uma posição de recriador de significado, cujo
processo cognitivo de construção de sentido para um texto faz com que o leitor utilize
diversas estratégias cognitivas, baseadas em conhecimentos prévios e em interações das
mais diversas, daí a concepção interativa de leitura.
A escolha por investigar o ensino de leitura junto à BNCC deveu-se à necessidade
de se entender essas concepções do documento, dada a sua natureza de recentidade
normativa, tendo por objetivo estabelecer o conteúdo mínimo que deve ser lecionado
em cada etapa do ensino. A análise teve o foco na Educação Básica, mais especifica-
mente no Ensino Fundamental, anos iniciais e anos finais.
Junto ao documento, observam-se os fundamentos pedagógicos pautados no de-
senvolvimento de competências. Nele, há uma seção específica enfocando o
desenvolvimento de competências e habilidades, em que será mobilizado o conceito de
competência, sobretudo no que se refere à competência leitora, e se a competência aí
compreendida, se desenvolve ou se ensina.
Percebe-se, na análise do documento, que as competências devem ser desenvol-
vidas ao longo de toda a Educação Básica, mais especificamente em cada etapa da
escolaridade, levando em consideração os direitos de aprendizagem e desenvolvimento
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de todos os estudantes. Diante das análises feitas, o conceito de competência, em que
o documento se apoia, aponta para uma concepção de capacidade, e equivale à expec-
tativa de aprendizagem e ao que os alunos devem aprender. Em linhas gerais, o conceito
de competência adotado pela BNCC parece ser aquele que indica o que os alunos de-
vem saber fazer ao término do ano letivo. Nesse sentido, consideram-se os
conhecimentos, as habilidades e as atitudes em detrimento do saber (conhecimento),
com vistas a colocar em evidência o saber fazer (resolução de problemas). A competên-
cia é, nesse caso, definida no documento como a “mobilização desses conhecimentos,
habilidades, atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do
pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho” (BRASIL, 2018, p. 13).
À medida que se aprofundam os estudos na BNCC, fica evidente a competência
leitora que se ensina e este ensino não polariza com o desenvolvimento. Isso se certifica
a partir do esboço junto às seções em que se trata de competência e habilidade na
BNCC. Depreende-se daí que as habilidades têm sua centralidade no ensino para o
desenvolvimento da competência. Ensinam-se habilidades para que a competência se
desenvolva.
Logo, competência desenvolve-se e ensina-se por meio das habilidades. A partir
dessa premissa, portanto, o ensino de leitura envolve um processo constante de produ-
ção e verificação de inferências, entre as quais estão as diferentes estratégias que levam
à construção da compreensão; e, ao compreender, o leitor autônomo é capaz de posi-
cionar-se no diálogo com o outro. Nesse sentido, ler nem sempre será prazeroso e não
é um processo fácil, uma vez que envolve várias ações cognitivas.
Por ser uma atividade complexa, a leitura precisa ser ensinada, assim como são
ensinadas outras atividades de conteúdo no cotidiano da escola, por meio das práticas
pedagógicas. A leitura constitui-se como base para muitas aprendizagens escolares e,
subsequentemente tornando-se um elemento essencial para o sucesso no mundo aca-
dêmico, profissional e social (MORAIS, 1997; FONSECA, 1999). Se a formação
leitora de nossos alunos for frágil, repercutirá as dificuldades para o ensino subsequente.
Desta forma, o insucesso na leitura ocasiona, muitas vezes, o insucesso escolar; logo,
poderá acarretar consequências marcantes em nível da autoestima, do desenvolvimento
social e das oportunidades para ascender a níveis superiores de ensino ou emprego
(CRUZ, 2004). Isso posto, o leitor precisa ser protagonista no processo de leitura, para
que, no processo, desenvolva ações cognitivas apropriadas em um dado momento à
ação de ler, que vai para além da decodificação de palavras, a fim de construir signifi-
cado na leitura. Esse significado é a junção do que se sabe com o que se aprende de
novo (SOLÉ, 1998; KATO, 2007; KLEIMAN, 2001a).
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Neste sentido, a ação do professor precisa fazer com que o aluno seja agente na
construção do seu conhecimento. Depreende-se daí que as práticas pedagógicas do pro-
fessor necessitam promovê-las, não tendo espaço para comportamentos repetitivos e
mecanizados, ou seja, ações com reflexões, como o pensar sobre, para que ocorra a
apropriação do conhecimento. Nesse contexto, trabalhar a leitura em sala de aula tor-
nou-se um grande desafio aos professores, haja vista que a leitura que circula, quando
efetivamente se lê, nem sempre é a que forma leitores críticos. Assim, as práticas peda-
gógicas acerca da leitura podem ocasionar uma atitude reducionista frente à leitura,
limitando-se à codificação, ou ficando apenas na superfície textual.
Importa, portanto, ponderar como se dá o ensino da leitura na fase inicial (está-
gio de alfabetização). É nesse período que a criança começa a se interessar pelas palavras
e esse primeiro contato a levará à leitura. Segundo Dehaene (2012, p. 16), aprendiza-
gem da leitura não se efetua suavemente, seja qual for a língua, encontram dificuldades
no momento de aprender a ler. Daí que ensinar a ler se torna ainda mais relevante, pois
se constitui de um processo que requer cuidados por parte do professor, envolvendo
fatores, entre outros, de natureza cognitiva tais como: visão, memória, percepção, aten-
ção, dentre outras.
Vale ressaltar o lugar teórico de leitura neste trabalho: aquela que envolve o có-
digo. Segundo Brito (2012), nem tudo pode ser considerado leitura, haja vista que
leitura é um processo complexo que envolve uma série de conexões acerca do reconhe-
cimento da palavra e seu significado. Em face disso, defende-se que a leitura se ensina
por meio do desenvolvimento de habilidades, que irão contribuir para o desenvolvi-
mento da competência leitora e, logo, para um leitor proficiente que seja autônomo e
que se aproprie do conhecimento.
Diante do exposto neste intróito, o trabalho emerge de uma pesquisa qualitativa,
reunindo, analisando e discutindo informações, e por que não conhecimentos, publi-
cados no documento: BNCC, homologada em dezembro de 2018. No documento,
mapeou-se o conceito de leitura a fim de verificar de que forma seu ensino poderá ser
ministrado, por meio do desenvolvimento das habilidades, nas aulas de Língua Portu-
guesa na Educação Básica, no Ensino Fundamental anos iniciais e finais, em prol do
desenvolvimento humano. Para tanto, foram feitos recortes do documento, acerca de
competência leitora e as habilidades em leitura. Nesse caso, toda vez em que apareceram
pistas explícitas associadas à noção de competência leitora, bem como de habilidades
em leitura postas na BNCC, realizaram-se as análises.
Esta introdução, portanto, pretendeu colocar as bases do trabalho em tela, a se-
guir têm-se as seguintes seções: i) leitura: da concepção ao ensino; ii) competência na
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BNCC: conceito, sentidos construídos e implicações para uma prática da leitura; iii) a
proposta metodológica, e iv) as considerações finais.
2 Leitura: da concepção ao ensino
2.1 Da concepção
A abordagem interativa procura desvendar os processos cognitivos subjacentes à
capacidade de ler, em que a leitura se constitui como um processo de representação, o
qual envolve, entre outras características, o sentido da visão; assim, conforme Leffa
(1996, p. 10), ler é olhar para uma coisa e ver outra.
Ainda, segundo o autor, “a leitura não se dá pelo acesso direto à realidade, mas
por intermediação de outros elementos da realidade”. Nesse sentido, as ações envolvi-
das no processo encontram-se em, pelo menos, dois modelos de leitura controversos:
“ler para ‘extrair’ significado do texto, bem como ler a fim de ‘atribuir’ significado ao
texto” (LEFFA, 1996, p. 11). Contrapondo os dois conceitos ‘extrair’ e ‘atribuir’, têm-
se compreensões distintas para a leitura: junto a ‘extrair’, a ênfase está no texto, e a
‘atribuir’, a ênfase estará no leitor.
Na perspectiva de extração de informação do texto, também conhecida como
leitura ascendente (‘bottom-up’), o processamento privilegia as palavras e as expressões
do texto, que, conforme Souza e Garcia (2012), é baseado em uma concepção estrutu-
ralista da linguagem. Já, na perspectiva de atribuição de significado, modelo
descendente de leitura ('top-down'), o processo ocorre por hipóteses, considerando o
conhecimento prévio do leitor, centrado na psicolinguística (SOUZA; GARCIA,
2012).
Parece-nos que ambas as compreensões, de extração e de atribuição de sentidos,
possuem elementos que podem contribuir à formação leitora; posto isso, a presente
pesquisa apoia-se na perspectiva de leitura defendida por Leffa (1996, p.17) em que a
leitura é entendida como um processo de interação entre o leitor e o texto, envolvendo
simultaneamente, mas não só, extração e atribuição de sentidos, resultando na intera-
ção. Logo a interação “não permite que se fixe em apenas um dos seus polos, com
exclusão do outro”. Desse modo, a leitura significativa acontece quando há a interação
dos processos ascendentes e descendentes, os quais se dão simultaneamente ou alterna-
damente. Assim, considera-se que os processamentos centrados no texto (ascendentes)
e os centrados no leitor (descendentes) devem interagir quando se lê: tendo em vista
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que ambos são necessários por um lado para a construção dos conhecimentos envolvi-
dos e, por outro, à formação do leitor autônomo que passa a se apropriar dos processos
cognitivos avançando para compreendê-lo em nível da consciência.
Para Leffa (1996), nesse processo complexo há o envolvimento das características
do texto, assim como há de se considerar as características do leitor. O encontro entre
leitor e texto, segundo o autor, deve levar em consideração, no mínimo, três aspectos
essenciais: o texto, o leitor e as circunstâncias em que se dá o encontro.
Tendo em tela a perspectiva cognitiva que aqui se delineou, a leitura não pode
ser reduzida a um processo funcional, mecanizado no sentido de resolver questões ime-
diatas (como encontrar nome do autor, data de uma obra, sujeito sintático entre tantos
outros exercícios). De acordo com Kleiman (2001b), não pode haver uma única leitura:
correta, autorizada; de modo que o envolvimento cognitivo é gradualmente controlado,
ou seja, é aquele em que o leitor, durante o processo, vai mobilizando um conjunto de
saberes que o levará a um resultado proveitoso e, sobretudo, significativo.
Segundo Kleiman (2001a), o processo de leitura aciona ações cognitivas como:
‘percepção, atenção e memória’. São essas ações que propiciam soluções para proble-
mas, uma vez que trazem à mente uma gama de informações, as quais temos de
selecionar as necessárias e descartar as que não servirão, naquele momento, para a reso-
lução de nosso problema. Nessa perspectiva, ao aplicar algum conhecimento a uma
situação nova, o engajamento de muitos fatores é essencial se queremos construir sen-
tido a partir do que se lê. Por isso, a leitura, além de processo, precisa ser entendida no
âmbito do resultado de sentido. Para Kleiman (2001a, p. 10),
Leitura é um ato social, entre dois sujeitos leitor e autor que interagem entre si, obedecendo
a objetivos e necessidades socialmente determinados. Essa dimensão interacional, que para nós
é a mais importante do ato de ler, é explicitada toda vez que a base textual sobre a qual o leitor
se apoia precisa ser elaborada, pois essa base textual é entendida como a materialização de signi-
ficados e intenção de um dos interagentes à distância via texto escrito.
Ainda segundo Kleiman (2009), ao considerarmos a leitura como uma ação de
interação, teremos uma distância entre leitor e autor por meio do texto. “A ação do
leitor já foi caracterizada: o leitor constrói, e não apenas recebe, um significado global
para o texto; ele procura pistas formais, antecipa essas pistas, formula e reformula hi-
póteses, aceita ou rejeita conclusões” (KLEIMAN, 2009, p. 65).
Para Kleiman (2009), a leitura deve ser entendida como um processo em que se
conceba o texto como inacabado, de forma que o leitor leia preenchendo as lacunas
com o seu conhecimento prévio ou mesmo com o seu conhecimento compartilhado de
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mundo ou, ainda, por intermédio da mediação de ‘outrem’, para que se possa, a partir
do conhecimento que emerge, interagir com a informação presente no texto a fim de
chegar a uma compreensão.
Uma leitura significativa demanda compreensão, esta, por sua vez, está atrelada
ao conhecimento prévio do leitor. Há vários níveis de conhecimento que são acionados
durante a leitura; portanto, o entendimento que se tem em uma leitura se dá em um
processo interativo. Segundo Kleiman (2001a), o conhecimento linguístico é um deles,
que vai desde o vocabulário, regras da língua até seu uso. Nesse processo interativo, a
memória torna-se um componente fundamental, haja vista que a memória e a apren-
dizagem caminham juntas, há uma forte inter-relação nesse processo que é fundamental
para o processamento de informações.
Segundo Souza e Garcia (2012), junto à memória está o armazenamento, de
onde se é possível a evocação de informação adquirida a partir de experiências; a aqui-
sição de memórias denomina-se aprendizado. Em face disso, memória e aprendizagem
estão na base da construção do conhecimento: a primeira responsável pela aquisição de
novos conhecimentos, e a segunda, pela retenção dos conhecimentos aprendidos
(PIPER, 2015).
Se a memória é responsável pelo processo de aquisição de novos conhecimentos,
logo as lembranças e os esquecimentos fazem parte desse processo. Para Souza e Garcia
(2012, p. 27), “a memória pode ser compreendida como processos de lembranças e
esquecimentos, que envolvem recepção, percepção, codificação, armazenamento, con-
solidação, acesso e a recuperação de informações”.
Assim, ao evocar a memória, podemos recuperar os registros já aprendidos e de-
vidamente armazenados. No acervo de nossas memórias, estão nossas experiências,
individuais e coletivas, que fazem parte de nossa existência e que nos constitui como
“seres únicos e irreplicáveis” (SOUZA; GARCIA, 2012, p. 28).
A memória individual é fundamental para a atividade de leitura, uma vez que
exige a exploração e o exercício constante. De acordo com Souza e Garcia (2012) a
leitura é uma atividade nervosa que exige muito, em tão pouco tempo, do cérebro, em
particular da memória. O funcionamento da memória é feito por meio de células ner-
vosas; segundo o autor, essas células, os neurônios, são evocadas pelas redes de
armazenamento ou por outras redes dependendo do que estimula a ativação. É impor-
tante levar em consideração que as questões emocionais e a consciência são fatores que
as regulam. Por isso, é comum quando estamos dispostos, envolvidos e/ou em alerta,
aprender ou recuperar algo com mais facilidade; já se estivermos preocupados, cansados
e desmotivados a dificuldade em aprender aumenta (SOUZA; GARCIA, 2012).
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Dessa forma, refletir sobre a complexidade dos processos envolvidos na leitura
requer compreender os aspectos que estão correlacionados; é importante destacar que
o leitor está engajado antecipando o material até a formulação de uma imagem. Diante
disso, pode-se dizer que a leitura é considerada um processo interativo, no sentido de
que os diversos conhecimentos do leitor interagem a todo o momento em busca da
compreensão (KLEIMAN, 2001a).
Por fim, compreender um texto lido requer relacionar fatores relevantes do
mundo que nos cerca, todavia mensurar se a compreensão obteve êxito é algo complexo
para o professor. “A ênfase não está no processo da compreensão, na construção de
significados, mas no produto dessa compreensão” (LEFFA, 1996, p.13). A esse pro-
duto espera-se um conhecimento novo que leve o leitor a uma reflexão crítica, bem
como à leitura proficiente para que se tenha sucesso nas diversas áreas do saber.
Na próxima seção, será abordado o ensino de leitura, sobretudo como as práticas
em leitura podem contribuir para o desenvolvimento da competência leitora.
2.2 Do ensino
Ler permite conhecer e perceber as forças e as relações existentes no mundo da
natureza e no mundo dos homens, pensando, é claro, em uma sociedade em que o
código linguístico se apresenta nas mais variadas situações da produção humana, com
profundo enraizamento cultural. Segundo Silva (1985, p. 22) “o processo de leitura
apresenta-se como uma atividade que possibilita a participação do homem na vida em
sociedade, em termos de compreensão do presente e passado e em termos de possibili-
dades de transformação cultural”. Nessas sociedades, portanto, a prática da leitura se
faz presente na vida das pessoas desde o momento em que passam a compreender o
mundo a sua volta, o que, por vezes, mascara a complexidade aí envolvida, naturali-
zando o processo.
Assim, conforme Silva (2011), é papel do professor refletir, coletivamente, sobre
a bagagem cultural, cruzando novos horizontes e acionando o mecanismo de aprendi-
zagem, a fim de integrar interdisciplinaridade e planejamento com harmonia e
coerência. Para tanto, Silva (1985, p. 62) afirma que o ato de ler deve ser visto como
“um instrumento de conscientização e libertação, necessário à emancipação do homem
na busca incessante de sua plenitude”.
Essa busca incessante pela plenitude/emancipação pode estar no ato de ler. Para
Britto (2012), se considerarmos o âmbito do alfabetismo básico, ensinamos a ler para
que o indivíduo desenvolva o domínio do código escrito, a fim de realizar as tarefas
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cotidianas. Já, na dimensão do envolvimento do indivíduo com a cultura, ensinar a ler
“promoverá a formação de pessoas, por meio da experiência e da vivência intensa, me-
tódica e consistente com o conhecimento em suas diversas formas de expressão”
(BRITTO, 2012, p. 43). Ao lado de todo esse aspecto de emancipação que toma o ato
de ler, ensinar a leitura contribui para a construção de conhecimento relativos ao
mundo e a si mesmo. Conforme já posto na seção anterior, para Kleiman (2009), a
leitura é um processo interativo no sentido de que os diversos conhecimentos do leitor
interagem com o que vem da página para chegar à compreensão. É preciso, portanto,
que junto ao ensino se traga para o nível da consciência todas essas dimensões para
promovê-lo de modo a ser superador. Assim, a leitura deve ser vista como um conjunto
de comportamentos que se regem por processos cognitivos armazenados na memória
do indivíduo, os quais são acionados durante o contexto da atividade leitora.
O ensino de leitura, enquanto ligada ao código, tem como base o reconheci-
mento de que os símbolos (letras/grafemas) representam unidades, que, por sua vez,
formam palavras no sistema de escrita. Logo, essa representação de símbolos é um pro-
cesso complexo que envolve vários aspectos cognitivos. É percorrendo diferentes etapas
ou fases da leitura que se chega a ser leitores hábeis, capazes de usufruir da leitura como
prática.
De acordo com Kleiman (2009, p.151), “ensinar a ler é criar uma atitude de
expectativa prévia com relação ao conteúdo referencial do texto”. Em face disso, torna-
se imprescindível que se ensine como lidar com essas expectativas na busca pela com-
preensão do texto. É nesse momento que as estratégias de leitura podem contribuir
para uma leitura significativa. Isso significa que o aprendiz precisa avaliar constante-
mente seu processo de leitura, a fim de atender suas expectativas, e entender que pode
se perder nesse caminho do entendimento. Em outras palavras, utiliza-se um conjunto
de estratégias para criar uma atitude que faz da leitura a busca pela coerência em prol
de um novo conhecimento.
Diante do exposto, o professor exerce um papel de grande importância ao pro-
piciar não somente a aprendizagem em leitura, mas também ao propor modelos e
procedimentos que coloquem o aluno em atividade de leitura e, por sua vez, proporci-
onem a compreensão em leitura. O processo de ensinar seria uma forma de possibilitar
ao estudante desenvolver estruturas conceituais e procedimentais que implementem
seu desempenho. Logo, o papel do professor é ensinar o aluno a ler, a desvendar, a
desvendar o implícito, a fazer questionamentos sobre o texto, a interagir com o autor.
Desse modo, as estratégias de leitura fazem com que o aluno seja agente do seu processo
de leitura (KLEIMAN, 2009).
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3 Competência na BNCC: conceito, sentidos construídos e im-
plicações para uma prática da leitura
A premissa de que temos tratado de leitura como uma competência a ser ensi-
nada, faz-se necessário ponderar sobre o que estamos chamando de ‘competência’ e
como a temos interpretado junto à BNCC. Para tanto, voltamos no tempo e chegamos
à noção de competência, introduzida, na linguística, por Chomsky, em suas obras por
volta de 1965, a qual é entendida como uma capacidade de compreender inúmeras
sentenças bem como identificar aquelas que são desviantes (agramatical) e conseguir
atribuir uma interpretação sobre elas (CIZESCKI, 2013, p.47). Chomsky (1978) teo-
riza que todo indivíduo é competente para falar, justamente por partir de uma
concepção inatista, afirmando, portanto, que o que diferencia esses indivíduos são: o
desempenho e as questões biológicas envolvidas.
A partir da concepção de competência estabelecida por Chomsky, outras noções
foram estabelecidas e incorporadas ao conceito de competência. O que chama atenção
é o fato de que nos anos 70 a palavra competência aparece, demasiadamente, nos dis-
cursos da educação profissional, conscientemente, fora o período também em que
Chomsky abordara a competência linguística (ROPÉ, 1997).
A reflexão que se pretende ter acerca da competência leitora é de que essa com-
petência seja a capacidade de refletir sobre o que se lê, mobilizando os saberes
necessários a fim de levar à apropriação do conhecimento. Para isso, há de se fazer uso
de inúmeras técnicas de leitura, porém, é preciso ir além. O que se apresenta hoje acerca
da noção de competência, principalmente para o senso comum, é que a competência
se tornou um ‘saber fazer’ em busca de uma resolução de problemas, tendo, portanto,
um deslocamento de sentido e aproximando-se assim, do que Chomsky chamaria de
performance (desempenho) de modo a sobrepor-se ao conhecimento e importando
mais que o aluno saiba utilizar a ‘competência’, mas o pensar sobre o que se faz fica em
segundo plano.
De acordo com Pires (2002), o conceito de competência tornou-se polissêmico.
Para a autora, o conceito de competência levando em consideração o senso comum, é
uma construção social, coberta de significados cultural e socialmente construídos. Em-
bora, não se tenha um consenso que determine o que é de fato a competência, esse
conceito vem ganhando espaço em diferentes áreas: na psicologia, no âmbito empresa-
rial e nas ciências da educação. Segundo Pires (2002), e como já dissemos, o conceito
de competência surgiu no campo da psicolinguística, a partir do trabalho desenvolvido
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por Chomsky, na década de sessenta. Desde então, essas diferentes áreas vêm se apro-
priando. E, consequentemente, construindo novos sentidos.
Ropé e Tanguy (1997) apresentam estudos de casos realizados na França, nos
anos 70, identificando a polissemia do conceito de competência, que não tem o mesmo
sentido da noção de competência chomskianas. Segundo as autoras, o conceito de com-
petência compreendia uma diversidade de significados, ora como sinônimo de
qualificação, ora como sinônimo de capacidades. Ropé e Tanguy (1997, p.22) chamam
a atenção para a noção de competência, pois “no limite do senso comum e do científico,
a noção de competência apresenta o risco de enfeitar qualquer proposição que lhe dê
uma aparência de cientificidade”. Em face disso, inevitavelmente, algumas questões
emergem, como de que conceito de competência está se tratando quando falamos de
leitura (competência leitora), sobretudo no documento da BNCC para o qual nossa
atenção está voltada. um grande receio de que o documento da BNCC não cor-
responda à noção de competência científica, e sim, de que se trabalhe com uma noção
de senso comum, e, nesse caso, há riscos de não contribuir para a formação de um leitor
proficiente/autônomo. Por isso, advoga-se uma noção de competência na óptica da
promoção do desenvolvimento humano, e de que essa promoção contribua para uma
leitura que liberta.
No final do século XX e início do século XXI, o sociólogo suíço Philippe Perre-
noud publicou várias obras em que defende um ensino por competências, tornando-se
um autor de referência, também, aqui no Brasil. Perrenoud (1999, p.30) aborda, na
linha das ciências cognitivas, que competência é a faculdade de mobilizar um conjunto
de recursos cognitivos (saberes, capacidades, informações, etc.) para solucionar com
pertinência e eficácia uma série de situações. Vale ressaltar que, essa noção de compe-
tência é a que está posta no documento da BNCC, porém, no que diz respeito à
competência leitora advoga-se para uma concepção de competência que supere a reso-
lução de problemas e que propicie à apropriação do conhecimento, é o saber sobreposto
ao saber-fazer.
Para Perrenoud (1999), a competência é a possibilidade, de cada indivíduo, mo-
bilizar, de maneira interiorizada, um conjunto integrado de recursos com vistas a
resolver várias situações-problema. Nesse conjunto integrado de recursos, estão os co-
nhecimentos que foram construídos ao longo do tempo por meio da experiência e da
formação. Com essa noção, reafirma-se, portanto, que se corre o risco de usar o conhe-
cimento reduzindo-o à resolução de problemas, sem que se tenha a capacidade de
pensar sobre o que se está resolvendo, dando uma concretude de visibilidade a esse
problema.
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A questão da visibilidade da competência estabelecida por Perrenoud também é
outro aspecto que se distancia da concepção de competência de Chomsky, haja vista
que o autor considera competência como conhecimento, então não há visibilidade do
ponto de vista de sua concretude, o que pode ser visível é a performance do indivíduo,
ou seja, é o desempenho, o saber-fazer, que se pode ser visto. Acerca disso, assumimos,
nesta pesquisa, o posicionamento de que as habilidades são desenvolvidas para que a
competência seja de fato alcançada. Então, a habilidade é visível e a competência, que
é o conhecimento, não pode ser visível e nem mensurada. O que determina que somos
competentes são as ações feitas por meio das habilidades. Nesse caso, as habilidades são
as práticas, o indivíduo é hábil porque consegue executar uma habilidade que desen-
volve em prol de uma competência.
Diante do exposto sobre a concepção de competência, advoga-se para o seguinte
conceito: competência é o conhecimento que possuímos, é a capacidade de acionar
tais conhecimentos para criar e/ou recriar novos conhecimentos. Assim, um leitor com-
petente é aquele que, por meio da capacidade de programar e reprogramar (plasticidade
cerebral) as informações, estabelece relações entre o desenvolvimento e a aprendizagem
em prol da apropriação de novos conhecimentos.
Junto à próxima seção, portanto, trataremos da habilidade leitora, pois é por
meio do desenvolvimento das habilidades em leitura que se desenvolve a competência
leitora.
3.1 Habilidade leitora
A habilidade leitora advogada nesta pesquisa é aquela que possibilita a relação
entre o desenvolvimento e a aprendizagem a fim de alcançar a apropriação do conhe-
cimento. Para tal defesa, aborda-se o argumento de Vygotsky, Luria e Leontiev (2001)
sobre a aprendizagem: aprender desperta uma série de processos de desenvolvimento
interno que só começa quando a criança interage com as pessoas em seu ambiente e
com seus pares.
Assim, argumenta-se que o desenvolvimento da habilidade leitora precisa estar
atrelado à apropriação do conhecimento. Segundo Vygotsky (2001) é no processo de
apropriação que os sujeitos fazem uma rede de relações e significados, que constitui a
matriz do pensamento categórico e discursivo, introduzindo a coisa nomeada em um
sistema de complexos enlaces, constituindo um meio para analisar os objetos, abstrair
e generalizar suas características. Desse modo, é no trato de suas habilidades práticas e
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funções psicológicas, que a criança não só aprende por imitação das ações dos outros,
como também se apropria de sua linguagem.
Nessa perspectiva, a luz de Vygotsky (2005) aprendiz deve ser capaz de identifi-
car o conhecimento, habilidades e valores que foram interiorizados inicialmente, e
assim o aprendiz habilitado inicia um novo ciclo de aprendizagem a um nível cognitivo
mais elevado (VYGOTSKY, 2005). Deriva-se que, em um primeiro momento, faz-se
a interiorização para depois ocorrer a apropriação do conhecimento, e isso se dá por
meio do desenvolvimento das habilidades que contribuirão para a eficácia da compe-
tência leitora. Vale ressaltar que a competência leitora sobre a qual se faz a defesa é o
conhecimento, que se desenvolve durante a aprendizagem por meio das habilidades.
A noção de habilidade que se depreende junto à BNCC, no entanto, não corres-
ponde, exatamente, ao que se defende neste estudo acerca de leitura, não se pode
conceber habilidade como sinônimo de competência e de capacidade. Certamente,
competência e habilidade estão associadas ao ponto em que o desenvolvimento das
habilidades é determinante para a eficácia de uma competência; reitera-se, porém, que
esses conceitos não são sinônimos. Para acionar e mobilizar as competências, é neces-
sário o uso das habilidades.
Para Anderson (1995), adquirimos muitas habilidades ao longo da vida, e vamos
variando os degraus de proficiência. Aprendemos habilidades para subir nesses degraus
de proficiência. Segundo o autor, essas habilidades incluem falar nossa língua nativa,
ler, ter conhecimentos básicos de matemática interagir com outras pessoas, dentre ou-
tras
No que se refere a uma habilidade leitora, compreende-se tratar de automatização
que propicia uma leitura autônoma, em outras palavras, o leitor proficiente é aquele
que automatizou várias habilidades leitoras em prol da apropriação do conhecimento.
Como por exemplo, uma das habilidades de um leitor proficiente é ser ativo na cons-
trução de sentidos.
Assim, as habilidades são desenvolvidas por meio das relações entre o conheci-
mento, o pensar sobre o conhecimento e o que fazer com esse conhecimento. Seguindo
na visão de Vygotsky, Luria e Leontiev (2001), o desenvolvimento e a aprendizagem
são diferentes, porém, articulados entre si, numa relação dialética. Nesse caso, a apren-
dizagem influencia o desenvolvimento, assim como o desenvolvimento influencia a
aprendizagem, para Vygotsky, Luria e Leontiev (2001, p. 115),
[...] a aprendizagem não é, em si mesma, desenvolvimento, mas uma correta organização da
aprendizagem da criança conduz ao desenvolvimento mental, ativa todo um grupo de processos
de desenvolvimento, e esta ativação não poderia produzir-se sem a aprendizagem. Por isso, a
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aprendizagem é um momento intrinsecamente necessário e universal para que se desenvolvam na
criança essas características humanas não-naturais, mas formadas historicamente.
Em suma, no desenvolvimento das habilidades, faz-se necessário a organização
sobre o que sabemos, ou seja, torna-se fundamental organizar o conhecimento a fim de
desenvolver habilidades. Vygotsky, Luria e Leontiev (2001) não abordam o conceito
de habilidade, o que se faz aqui é uma analogia entre habilidade e o desenvolvimento,
porque defende-se que habilidade se desenvolve, e, consequentemente, proporciona
que a competência também se desenvolva. Ao tratarmos de habilidade leitora estamos
nos referindo a uma ação de leitura que poderá contribuir para a competência leitora.
Ora, para um leitor ser competente é necessário que ele desenvolva várias habilidades
em torno do ato de ler, esse desenvolvimento de habilidades colaborará para que se
tenha um leitor proficiente, autônomo. Isto ocorre não apenas em um espaço reservado
e único, mas na vivência social. Por isso, a ação pedagógica na prática de leitura precisa
garantir o desenvolvimento de habilidades, que em certa medida será individual, mas
ancorada pelas contribuições do social.
4 Leitura em análise: das evidências de uma habilidade para
uma prática o estabelecimento da competência
Em princípio, a análise foi iniciada com o olhar atento a todas as entradas do
termo competência, postas na BNCC, a fim de investigar de que forma a leitura seria
abordada por meio das competências, bem como com qual concepção de leitura se
declarava junto ao documento, mesmo que implicitamente. Nesse sentido, percebeu-
se que as competências estão organizadas no documento, de forma mais geral até a mais
específica, em: i) Competência Gerais da Educação Básica, ii) Competência Específicas
de Áreas e iii) Competências Específicas dos Componentes (disciplinas). Com a apro-
priação das noções teóricas e a aproximação do corpus coletado, a leitura afinco do
documento, e com os experimentos (tentativas pedagógicas de pôr em prática o que se
tem no documento), percebeu-se que a leitura era abordada de forma implícita nas
competências, e, de forma explícita nas habilidades do eixo leitura.
O desenvolvimento das dez competências básicas (por meio das habilidades)
ocorre ao longo de toda a Educação Básica, isso significa dizer que elas perpassam todos
os anos, podendo ser mobilizadas sempre que necessário. Para o desenvolvimento delas
não há, de acordo com o documento, a responsabilidade de uma única disciplina, tão
pouco o documento descreve quais são, exatamente, as habilidades que desenvolverão
as dez competências.
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Educação Básica, [...], inter-relacionam-se e desdobram-se no tratamento didático proposto para
as três etapas da Educação Básica (Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio),
articulando-se na construção de conhecimentos, no desenvolvimento de habilidades e na forma-
ção de atitudes e valores, nos termos da LDB (BRASIL, 2018, p. 08 e 09).
Com isso, compreende-se que os arranjos de todas as habilidades, em diferentes
disciplinas, serão responsáveis na formação, ao longo da educação básica, de um aluno
com as capacidades citadas nas competências gerais.
O documento escrito proporciona ao professor um trabalho interligado entre a
competência geral, específica por áreas e específica por disciplina. As seis competências
específicas da área das linguagens para o ensino fundamental anos iniciais e finais dizem
respeito às disciplinas de Arte, Educação Física, Língua Inglesa e Língua Portuguesa.
Na figura 01, há o recorte da competência específica de linguagens que, segundo a
orientação do documento, “[...] em articulação com as competências gerais da Educa-
ção Básica, a área de Linguagens deve garantir o desenvolvimento de competências
específicas” (BRASIL, 2018, p. 64).
Figura 1 - Competências específicas de linguagens para o ensino fundamental.
Fonte: Brasil, 2018, p. 65.
Assim, ao desenvolver a competência específica 3, consequentemente, desenvol-
ver-se-á a competência geral 4, conforme a figura 2 apresenta.
Figura 2 - Competência geral para o ensino fundamental.
Fonte: Brasil, 2018, p. 65.
A competência em destaque, junto à figura 1, tem relação com a competência
geral 04 que reitera o uso das diferentes linguagens para que o aluno possa se expressar
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e partilhar informações, experiências, ideias e sentimentos em diferentes contextos e
produzir sentidos que levem ao entendimento mútuo. Há, na competência geral, a
menção da área da matemática, linguagens artísticas e tecnológica, que, consequente-
mente, também serão utilizadas pelas áreas afins. E, nesse sentido, percebe-se o
imbricamento dessas competências com vistas aos seus desenvolvimentos, haja vista
que as disciplinas que envolvem a área da linguagem trabalham a fim de desenvolver as
seis competências por meio das habilidades específicas, o que, se supõe, conduzirá ao
desenvolvimento das competências gerais.
No que diz respeito à leitura, percebe-se, subjetivamente, que as dez competên-
cias caminham em direção à formação de um leitor que saiba utilizar a leitura em seu
cotidiano, a fim de resolver situações problemas, ou seja, a leitura vista em uma pers-
pectiva. A leitura como função é importante na formação do leitor, no entanto, não
deve se limitar a ela, há de se considerar a complexidade cognitiva, instalada no processo
de leitura, para que se desenvolva o leitor proficiente, autônomo e que se aproprie do
conhecimento.
A primeira competência em Língua Portuguesa está diretamente ligada à com-
preensão e não à leitura; porém, não se descarta o desenvolvimento dessa competência
por meio da leitura. De acordo com Giraldello e Finger-Kratochvil (2018, p. 3),
A leitura é o processo interativo de (re)construção da significação textual que tem amparo na
utilização do conhecimento prévio os (extra)linguísticos, (meta)cognitivos e (inter)textuais. O
processo de leitura inicia-se com a decodificação grafêmico-fonológica, envolve diversas habili-
dades (meta)cognitivas e culmina com a compreensão leitora.
A competência 1, como mostra a figura a seguir, menciona a compreensão da
língua, desconectando-a da leitura; porém poderia ser desenvolvida essa competência
por meio de habilidades de leitura que levem à compreensão. Isso quer dizer que, ao
ler textos sobre a “língua como fenômeno cultural”, o aluno poderá desenvolver a com-
petência leitora, pois, serão acionados diversos fatores cognitivos relacionados à leitura,
assim como as diversas habilidades, o que depreenderá da leitura a compreensão da
língua.
Figura 03 Primeira Competências Específica da Língua Portuguesa.
Fonte: Brasil, 2018.
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Nessa primeira competência, para o desenvolvimento da compreensão da língua
como fenômeno cultural, o professor poderia abordar esse fenômeno por meio de tex-
tos, que, nesse caso, desenvolver-se-ia como uma prática possível à competência leitora.
Para tanto, tem-se, como sugestão, a primeira habilidade,
Figura 04 Primeira Habilidade Ensino Fundamental 1º ano ao 5º ano de Língua
Portuguesa do Eixo Leitura.
Fonte: Brasil, 2018.
A primeira habilidade do eixo leitura remete a uma leitura de identificação, tendo
em vista os anos iniciais do ensino fundamental. Para tal, no processo de identificação
há de se considerar os aspectos que envolvem ações como: percepção, atenção e memó-
ria. As questões relacionadas à memória são muito relevantes para o desenvolvimento
da habilidade citada na figura 4, haja vista que o aluno acionará suas lembranças para
acesso e recuperação de informações a fim de identificar a função social do texto. Le-
vando em consideração que a leitura, nessa etapa escolar, está no processo inicial de
decodificação e codificação das letras e palavras, visando ao desenvolvimento da habi-
lidade supracitada, entende-se o engajamento de leitura (nas dimensões cognitiva,
funcional, com implicações pedagógicas) para o desenvolvimento pleno da primeira
habilidade, desse nível inicial (anos iniciais).
As habilidades dispostas no documento operam de forma articulada, a progres-
são, o desenvolvimento não se dá em curto espaço de tempo. Segundo a BNCC
(BRASIL, 2018), as habilidades são desenvolvidas de forma contextualizada, por meio
de leitura de diferentes gêneros textuais.
Dado o desenvolvimento de uma autonomia de leitura em termos de fluência e progressão, é
difícil discretizar um grau ou mesmo uma habilidade, não existindo muitos pré-requisitos (a não
ser em termos de conhecimentos prévios), pois os caminhos para a construção dos sentidos são
diversos (BRASIL, 2018, p. 76).
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Diante do exposto, as ações pedagógicas precisam estar relacionadas aos fatores
importantes, como já mencionados: memória, percepção, atenção, decodificação e co-
dificação, ou seja, no trato da leitura. Se a ação pedagógica desconsiderar algum desses
fatores, podemos correr o risco de não termos um leitor autônomo, pois ficaremos
apenas na identificação, que é importante para o início do processo da aprendizagem
em leitura, porém para o leitor autônomo é preciso ir para além da identificação.
A título de exemplo, apresenta-se, conforme a figura 5, uma das inúmeras possi-
bilidades pedagógicas que podem ser trabalhadas com algumas habilidades selecionadas
a fim de formar um leitor proficiente.
Figura 5 Habilidades Eixo Leitura Ensino.
(EF03LP11) ler e compreender
com autonomia, textos injuntivos
instrucionais (receitas, instruções
de montagem etc.) com a estru-
tura própria desses textos
(verbos imperativos, indicação de
passos a serem seguidos) e
mesclando palavras, imagens e
recursos gráfico-visuais conside-
rando a situação comunicativa e
o tema/assunto do texto.
(EF04PL09) ler e compreen-
der com autonomia, boletos,
faturas e carnês dentre outros
gêneros do campo da vida co-
tidiana, de acordo com as
convenções do gênero (cam-
pos, itens elencados, medidas
de consumo, código de bar-
ras) e considerando a situação
comunicativa e a finalidade do
texto.
(EF05LP09 ler e compre-
ender com autonomia,
textos instrucionais de re-
gras de jogo, dentre
outros gêneros do campo
da vida cotidiana, de
acordo com as conven-
ções do gênero e
considerando a situação
comunicativa e a finali-
dade do texto si
Fonte: Brasil, 2018. BNCC, p. 119.
Discute-se, então, uma dessas possibilidades, apresentadas como alternativas pe-
dagógicas: a habilidade EF04LP09, junto à coluna do meio, sugere que o professor
trabalhe com gêneros textuais da vida cotidiano, nesse caso, a leitura de boletos, faturas,
carnês e outros. A leitura desses textos aponta para uma leitura funcional instalada nas
condições sociais imediatas, ou seja, o aluno precisará entender qual a função dessa
leitura desses textos, bem como precisa aprender a ler para resolver as situações-pro-
blema emanadas desse contexto, do dia a dia, que fazem parte da participação do
homem em sociedade.
Levando em consideração que a habilidade analisada recomenda compreender a
situação comunicativa e a finalidade do texto, pode-se dizer então que a leitura como
função está presente nessa habilidade. A mesma habilidade requer a dimensão cogni-
tiva, tendo em vista a abordagem de ‘Ler e compreender, com autonomia’, faz-se
necessário acionar mecanismos de decodificação, codificação, memória, conhecimentos
prévios entre outros a fim de ler esses gêneros. Para que se desenvolva a habilidade
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EF04LP09, portanto, há de se considerar as implicações pedagógicas, em que necessa-
riamente pesam aspectos cognitivos da leitura, como por exemplo, as estratégias de
leitura, par e par, com os propósitos funcionais socialmente instalados.
Realizou-se também um levantamento de todas as habilidades do eixo leitura no
documento. Após a organização da quantidade definiu-se a categorização. Assim, de
acordo com o referencial teórico as categorias foram: Categoria 1: Foco na Perspectiva
Cognitiva, Categoria 2: Foco na Perspectiva Social e Categoria 3: Foco na Perspectiva
Pedagógica. O propósito da categorização é verificar qual a concepção de leitura pre-
domina no documento, a materialidade linguística textual significativa será tomada
como dado de análise. Nesse processo de coleta de dados, notou-se a importância de
uma categorização para melhor entender de que forma a leitura estava sendo abordada
e qual a concepção de leitura estava posta.
Figura 6 Planilha das habilidades Eixo Leitura.
Fonte: a autora.
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Figura 7 – Planilha das habilidades Campo da vida cotidiana e arstico-literário.
Fonte: a autora.
Figura 7 – Planilha das habilidades Campo da vida cotidiana Anos Iniciais.
Fonte: a autora.
Figura 7 Planilha das habilidades Resultado Final Anos Iniciais.
Fonte: a autora.
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Nessa organização em planilhas, os dados analisados com todas as habilidades de
leitura para o Ensino Fundamental apontam 50 habilidades de leitura para o Ensino
Fundamental Anos Iniciais e 58 habilidades de leitura para o Ensino Fundamental
Anos Finais. A análise feita é um exemplo pedagógico das inúmeras possibilidades que
se tem para se desenvolver as habilidades postas na BNCC.
Isso significa dizer que, uma habilidade categorizada com enfoque na leitura po-
derá ser trabalhada pelo professor, apenas no aspecto social (muitas vezes, apenas
funcional), acarretando prejuízos sobre o saber pensar, acionando mecanismos cogni-
tivos substantivos. Para tanto, o desenvolvimento das habilidades requer práticas
pedagógicas, que, em muitos casos, não foram abordadas na formação do professor.
Além do que, para muitos, a leitura nos anos finais não é ensinada e, sim, “cobrada”! E
essa cobrança está diretamente ligada às questões sociais do imediato instalado no co-
tidiano escolar.
Enfim, a leitura passa da dimensão da habilidade para a de competência quando
automatizada. É isso que a análise tentou demonstrar, de modo que ler alcança a prática
quanto não a reduzimos a um saber-fazer (PERRENOUD, 1999), mas a tomamos,
sobretudo, como um saber-saber.
Por fim, com a análise do documento em relação à leitura, percebe-se que a lei-
tura fica no campo da prática social, o que se sobressai é o conceito de competência e
habilidades. Assim, o que se destaca no documento, especialmente, em relação à com-
petência leitora é o saber fazer que se resume a um produto final, e este produto se
sobrepõe ao conhecimento, ou melhor, ao processo de leitura sob a guarda do processo
de conhecer.
5 Considerações finais
As análises demonstraram que há várias possibilidades pedagógicas de se desen-
volver as habilidades de leitura e, consequentemente, a competência leitora. Espera-se
que os resultados apresentados suscitem a discussão no ambiente acadêmico e escolar,
sobre a necessidade de ressignificar as práticas do ensino de leitura, não reduzindo-as
ao saber fazer, a partir de leituras lacunadas da BNCC. Sobretudo, a reflexão de que a
leitura precisa ser uma atividade de construção de sentido, em que o aluno (re)construa
significados para a apropriação do conhecimento.
Almeja-se que a pesquisa desperte no leitor, principalmente, no professor a cons-
ciência de que leitura se ensina e se ensina sempre. E que, quando disseminado pelo
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senso comum de que leitura é difícil ou é sinônimo de prazer, que se tenha o entendi-
mento de que leitura é um processo cognitivo complexo que envolve vários fatores.
Esse processo, nem sempre será fácil ou prazeroso, por isso é fundamental que se ensine
leitura, mobilizando estratégias diversas que desenvolverão habilidades no leitor, a fim
de tornar o processo um pouco mais leve. E a partir daí caminhe para uma leitura
significativa e quiçá prazerosa!
A escolha em estudar a BNCC, em princípio, foi para investigar a concepção de
leitura que o documento abordava. Todavia, no percurso, descobriu-se que o conceito
de leitura não estava explicitado. O que se destacou no documento foram as compe-
tências e as habilidades a serem desenvolvidas para um leitor proficiente. Nesse
contexto, aprofundou-se o estudo sobre competência leitora, apreende-se que a com-
petência se desenvolve por meio das habilidades. O entendimento que se tem acerca de
competência leitora é de que essa competência seja a capacidade de refletir sobre o que
se lê, mobilizando os saberes necessários a fim de levar à apropriação do conhecimento.
Depreende-se, então, que caberá ao professor planejar suas aulas de modo que
faça o arranjo das habilidades (levando em consideração a que conteúdos as quais se
relacionam). Ao desenvolver as habilidades propostas em seu planejamento, diante de
diagnósticos, o professor contribuirá também para o desenvolvimento das competên-
cias gerais. Nesse contexto, o desenvolvimento das competências gerais está
direcionado à Educação Básica, desde a Educação Infantil ao Ensino Médio.
O Eixo Leitura no documento aborda uma concepção de leitura em que há a
interação entre o leitor e o texto, por outro lado, considera a leitura em um outro sen-
tido mais amplo “dizendo respeito não somente ao texto escrito, mas também a
imagens estáticas ou em movimento e ao som, que acompanha e ressignifica em muitos
gêneros digitais” (BRASIL, 2018, p. 72). Eis aí, uma problemática instalada, pois, nessa
dissertação defende-se a leitura como aquela que trata da especificidade do código lin-
guístico. Como citado por Britto (2012, p. 33) “se tudo for leitura, ler não será nada”.
Compreende-se, então, a importância da leitura numa perspectiva cognitiva, em que a
interação se dá num nível de conhecimento. Entretanto, não se descarta as demais com-
preensões que envolvem as linguagens para a apropriação do conhecimento. Defende-
se, portanto, que compreender os gêneros orais e digitais não é leitura, é compreensão.
Está-se, já se deparando com dois sentidos de leitura, associados a lugares teóricos dis-
tintos.
Em contrapartida, ao mesmo tempo que a BNCC enfatiza a leitura como sendo
algo mais amplo, considerando a leitura de imagens, há também a preocupação com a
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leitura que envolve a dimensão cognitiva no desenvolvimento das habilidades. “A de-
manda cognitiva das atividades de leitura deve aumentar progressivamente desde os
anos iniciais do Ensino Fundamental até o Ensino Médio” (BRASIL, 2018, p. 75). Isso
significa dizer que os aspectos cognitivos da leitura estão sendo considerados, e que as
habilidades serão desenvolvidas de forma progressiva e articulada no caminho da leitura
significativa.
Em suma, a pesquisa realizada investigou a manifestação, junto à BNCC, do
conceito de ensino de leitura nas séries iniciais e finais com o propósito de promover o
desenvolvimento humano. Ao investigar em que medida a competência se sobrepõe à
leitura, constatou-se que, nas competências, não estava explícito o ensino de leitura.
Esse ensino ficou em destaque nas habilidades.
Assim, o lugar da BNCC na contribuição do ensino de leitura em prol do desen-
volvimento humano, está nas ações pedagógicas que precisam levar em conta os fatores
importantes no ensino da leitura, como já mencionados: memória, percepção, atenção,
decodificação e codificação, ou seja, considerar a leitura cognitiva, social e pedagógica.
Se a ação pedagógica desconsiderar algum desses fatores, corre-se o risco de não
se ter um leitor autônomo, uma vez que se tem apenas a identificação, que é importante
para o início do processo de leitura, porém para o leitor autônomo é preciso ir além da
identificação.
Ainda sobre o lugar da BNCC, percebe-se que a leitura, subjetivamente, nas dez
competências abordadas no documento, caminha em direção à formação de um leitor
que saiba utilizar a leitura em seu cotidiano, a fim de resolver situações problemas, ou
seja, a leitura como premissa social. A leitura como função é importante na formação
do leitor, no entanto, não deve se limitar a ela, há de se considerar a complexidade
cognitiva, instalada no processo de leitura, para que se desenvolva um leitor proficiente,
autônomo e que se aproprie do conhecimento. Conhecimento esse que pode libertar.
Procurou-se no estudo da BNCC entender de que conceito de leitura o docu-
mento está tratando, bem como se, por meio do desenvolvimento da competência
leitora e das habilidades, apresentadas para a leitura, têm-se indivíduos capazes de lerem
de forma autônoma, sem se perderem na reprodução das vozes de outros leitores, fi-
cando apenas na reprodução mecânica do que se lê.
Um trabalho de pesquisa como este, busca contribuir para a reflexão acerca das
práticas docentes do ensino de leitura, de modo a pensar de que forma a BNCC poderá
contribuir na formação de leitores competentes. Espera-se que esse estudo desperte in-
teresse para futuras pesquisas, para que se tenha mais contribuições na formação de
leitores proficientes. Para os dados aos quais não se conseguiu dar visibilidade nesse
Ensino de leitura em prol do desenvolvimento humano: o lugar da BNCC
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que terão lugar em pesquisas e desdobramentos futuros.
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