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As práticas de judicialização no cotidiano escolar:
atravessamentos entre a escola e o conselho tutelar
Prácticas de judicialización en la vida diária escolar: relaciones
entre la escuela y el consejo tutelar
Judicialization practices in school daily life: crossings between
school and tutelary council
Ingrid de Faria Gomes
*
Luiz Fernando Conde Sangenis
**
Pâmela Suélli da Motta Esteves
***
Resumo
O artigo tem como objetivo problematizar o processo de judicialização da vida escolar, na
contemporaneidade, a partir da análise das práticas e dos discursos produzidos nos atravessamentos
entre a escola e o conselho tutelar. Apesar de o conselho tutelar ser um órgão não jurisdicional, esses
atravessamentos têm sido operados por lógicas judicializantes, muitas vezes reguladas pela lógica
penal. Sob a orientação metodológica da pesquisa-intervenção, inspirada no método da cartografia,
e tendo como contexto de pesquisa o município de São Gonçalo (RJ), coloca-se em análise essas
relações sem o intuito de proferir juízos ou parâmetros de verdade. Para tanto, foi realizado
entrevistas semiestruturadas com conselheiros/as tutelares e pedagogas que atuam no conselho
tutelar, e observação do cotidiano de uma escola pública estadual, localizada no mesmo município,
acompanhada da tessitura do diário de campo. Com esses analisadores, destaca-se um conjunto de
forças presente para discutir a lógica judicializante e processo de capilarização do saber-poder jurídico
no espaço escolar que geram outros modos de regulação e de controle. Por fim, no exercício de
tensionar essas produções, convocam-se brechas que possam trazer à tona insurgências pela afirmação
da vida como potência.
Palavras-chave: judicialização; escola; conselho tutelar.
Recebido em: 15.05.2020Aprovado em: 18.02.2023
https://doi.org/10.5335/rep.v29i3.11023
ISSN on-line: 2238-0302
*
Doutoranda em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), bolsista Capes. Bacharela e Licenciada
em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0005-6920. E-mail:
ingridfgomes@gmail.com.
**
Doutor em Educação pela UFF, Professor Associado da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro - FFP/UERJ. https://orcid.org/0000-0002-2833-0365. E-mail: lfsangenis@gmail.com.
***
Doutora em Ciências Humanas e Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-RJ. Professora adjunta do
Departamento de Educação da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - FFP/UERJ.
Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação, Comunicação em Periferias Urbanas - PPGECC - UERJ/FEB. Orcid:
https://orcid.org/0000-0002-9555-2099. E-mail: pamelasme84@gmail.com.
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Abstract
The article aims to problematize the process of judicialization of school life in contemporary times
from the analysis of practices and discourses produced in the crossings between the school and the
tutelary council. Although the tutelary council is a non-jurisdictional body, these crossings have been
operated by judicializing logic, guided by criminal logic. Under the methodological orientation of
intervention research, inspired by the cartography method, and having the municipality of São
Gonçalo (RJ) as the research context, these relationships are analyzed without the intention of
making judgments or parameters of truth. For that, semi-structured interviews were carried out with
guardianship counselors and pedagogues who work in the guardianship council, and observation of
the daily life of a state public school, located in the same municipality, accompanied by the fabric of
the field diary. With these analyzers, a set of forces stand out to discuss the judicializing logic and
the capillarization process of legal knowledge-power in the school space that generate other modes
of regulation and control. Finally, in the exercise of tensioning these productions, gaps are called for
that can bring up insurgencies for the affirmation of life as a power.
Keywords: judicialization; school; tutelary council.
Resumen
El artículo tiene como objetivo problematizar el proceso de judicialización de la vida escolar en la
contemporaneidad a partir del análisis de prácticas y discursos producidos en los cruces entre la
escuela y el consejo tutelar. Si bien el consejo tutelar es un órgano no jurisdiccional, estos cruces han
sido operados por la lógica judicializadora, guiada por la lógica penal. Bajo la orientación
metodológica de la investigación de intervención, inspirada en el método de la cartografía, y teniendo
como contexto de investigación el municipio de São Gonçalo (RJ), estas relaciones son analizadas
sin la intención de hacer juicios o parámetros de verdad. Para ello, se realizaron entrevistas
semiestructuradas a orientadores de tutela y pedagogos que actúan en el consejo de tutela, y
observación del cotidiano de una escuela pública estadual, ubicada en el mismo municipio,
acompañada del tejido del diario de campo. Con estos analizadores, se destaca un conjunto de fuerzas
para discutir la lógica judicializadora y el proceso de capilarización del saber-poder jurídico en el
espacio escolar que generan otros modos de regulación y control. Finalmente, en el ejercicio de
tensionar estas producciones, se convocan resquicios que pueden suscitar insurgencias por la
afirmación de la vida como poder.
Palabras clave: judicialización; escuela; consejo tutelar.
A lógica de judicialização da vida e a produção de controles no espaço
escolar
A judicialização da vida vem se intensificando no cenário contemporâneo brasi-
leiro, marcando modos de convivência e afirmando práticas de julgamento e de
criminalização das condutas em diferentes esferas sociais, inclusive, no campo da Edu-
cação. Diante disso, algumas indagações provocam a pensar: como se configura a
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judicialização da vida escolar hoje? Como se tornou um tema em voga no nosso tempo
presente? Quais forças seguem atuando nesse processo? Que significações e efeitos isso
produz?
Uma das âncoras, talvez, com maior visibilidade e expressividade da judicializa-
ção é a tendência em associar, estritamente, o conceito judicialização com a ideia de
encaminhamento de situações-problema da vida cotidiana para instituições superiores
especializadas que prezam por preceitos legalistas, afirmando/fiscalizando condutas em
nome da lei, para proferir uma sentença final diante de um “caso”.
Para estender esse fio condutor, é possível problematizar a lógica judicializante
percebendo-a o quanto está presente em nós, de forma naturalizada, quando nossos
atos são conduzidos por vertentes de enquadramento, de classificação, de punição, de
denúncia, de julgamento de si e dos outros. Tal lógica, marcada por modelos judiciá-
rios, se espraia nos espaços da vida social, como nas escolas. O clamor social
reivindicando, constantemente, por justiça, por castigos, por leis, por práticas punitivas
constituem a “adesão subjetiva à barbárie” (BATISTA, 2012, p. 308) que capilariza o
funcionamento de procedimentos judiciários no tecido social, perpetuando um modo
de policizar/legislar/tribunalizar a vida humana.
Com Nascimento (2014, p. 460), entendemos a judicialização da vida como
“[...] uma construção subjetiva que implanta a lógica do julgamento, da punição, do
uso da lei como parâmetro de organização da vida”. Por essa via de pensamento, a
judicialização opera como um modo subjetivo impulsionado por um conjunto de for-
ças que engendra e conforma a gestão da vida, sob a égide hegemônica da lei. Há uma
proliferação do exercício de tribunais cotidianos que conjuga a tríade vítima, cul-
pado/a e juiz para deliberar uma sentença, com base nos preceitos de uma lógica
judiciária e nas práticas de julgamento moral, de tal modo “fazendo-nos ora juízes, ora
acusados, algozes e vítimas, alimentando um sem fim de repetições modorrentas que se
espelham e reproduzem as práticas do tribunal” (AUGUSTO, 2012, p. 33).
A racionalidade jurídica se expande produzindo práticas ditas protetivas, que
operam pela regulação e culpabilização das condutas. A judicialização, sustentada por
forças que convocam e moldam modos de existir, produz subjetividades judicializadas,
institucionalizando-as. Ao ser aplicada a lei, num movimento atrelado ao enquadra-
mento, há o acionamento de uma forma padronizada, regulando desejos e definindo
modelos como, por exemplo: a definição do papel da família, das práticas disciplinares
dentro da escola, do que se entende como justo, enfim. Dessa forma, a lei instaura uma
concepção naturalizada de vida judicializada. Em outras palavras, a judicialização de-
fine modos de vida e de existência no bojo da tradição legalista.
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Há uma participação coletiva na cultura da vigilância, do julgamento e na busca
por culpados/as disseminada no espaço escolar, que não é protagonizada apenas pela
gestão da escola, mas clamada por estudantes e suas famílias. “O sistema de punições e
recompensas se ampliou com uma nova e mais eficiente linguagem de normas e leis,
tornando, com isso, menos nítida sua face temerosa, pelo estímulo à participação”
(PASSETTI; AUGUSTO, 2008, p. 88). Nesse modo mais sofisticado, as práticas
dos/as estudantes se alinham ao governo das condutas sob o regime da norma e da lei
(FOUCAULT, 2010), fazendo funcionar o constante controle no espaço da escola. De
maneira capilar nesse fluxo, o controle se horizontaliza naturalizando a judicialização
da vida. As câmeras e os procedimentos que subjazem a ela compõem mais um espectro
na arte do enquadramento.
A instituição escolar segue ocupando um lugar estratégico nos processos de regu-
lamentação da vida, operando como dispositivo com suas práticas judicializantes.
Conforme Heckert e Rocha (2012, p. 86), “A escola constitui-se como um dos dispo-
sitivos do poder disciplinar, atuando de forma estratégica no aumento da capacidade
produtiva dos corpos e de sua capacidade política de resistência”.
Na obra Microfísica do poder, Foucault (1979, p. 244) define o dispositivo como:
A intervenção está associada à construção e/ou utilização de analisadores, conceito-ferramenta,
formulado no percurso do institucionalismo francês, que funcionam como catalizadores de
sentido, desnaturalizando o existente e suas condições e realizando a análise (ROCHA; AGUIAR,
2003, p. 71).
Nessa linha metodológica, colocamos em análise os efeitos das práticas e dos dis-
cursos dos/as conselheiros/as tutelares que atuam no município de São Gonçalo,
localizado no estado do Rio de Janeiro, a partir da realização de entrevistas semiestru-
turadas
2
com os/as mesmos/as, em 2017. O roteiro das entrevistas direcionados aos/às
conselheiros/as foi formulado a partir de cinco blocos temáticos, sendo eles: 1) trajetó-
ria profissional dos/as entrevistados/as; 2) o contexto dos conselhos tutelares de São
Gonçalo (RJ); 3) a relação do conselho tutelar com as escolas no município; 4) a com-
preensão sobre judicialização; 5) considerações finais. Assim, buscou-se identificar
aspectos que colaborassem para compreender os motivos pelos quais as escolas acio-
nam/encaminham demandas ao conselho tutelar, bem como compreender a concepção
dos/as conselheiros/as e das pedagogas diante dessas demandas.
O processo de escolha dos/as sujeitos/as entrevistados/as se deu por conveniência.
O primeiro contato se deu presencialmente, com ida aos conselhos tutelares sendo,
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ao todo, três unidades em São Gonçalo (RJ) que atendem as diferentes áreas de abran-
gência do município , junto com uma Carta de Apresentação, concedida pela
coordenação do programa de pós-graduação ao qual a pesquisa estava vinculada, para
marcar agendamento com conselheiros/as e pedagogas. Tal procedimento se estabele-
ceu de acordo com a disponibilidade e predisposição do/a conselheiro/a e pedagoga,
que estava presente no dia da visita, a conceder a entrevista em outra data, a ser agen-
dada. A princípio, o interesse era entrevistar somente conselheiros/as, mas a ideia de
entrevistar pedagogas decorreu de sugestões dos/as próprios conselheiros/as por se tra-
tar de questões vinculadas às escolas.
Foram entrevistados/as um membro de cada conselho tutelar após agendamento
prévio. Todas as entrevistas foram realizadas nas salas de atendimento do conselho tu-
telar, com duração de aproximadamente 1 hora, registradas em gravação de áudio.
Posteriormente, as entrevistas foram transcritas na íntegra e revisadas. Asseguramos os
preceitos da ética da pesquisa, com destaque para o Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido que foi firmado em comum acordo entre a pesquisadora e os/as entrevista-
dos/as, garantindo o anonimato e a confidencialidade.
Para tanto, ressaltamos que o interesse aqui não é o de colocar em questão a
validade do que foi dito nem proferir juízos, mas sim desdobrar o que isso possibilita
como problematização na produção de rupturas, de implicações e de atravessamentos
nesses territórios. De antemão, algumas questões nos instigaram: quais demandas das
escolas chegam ao conselho tutelar? Como o conselho tutelar se posiciona diante dessas
demandas e que formas de encaminhamentos são ativadas? Quais produções de subje-
tividades circulam nesses territórios com os indivíduos que ali habitam? O que por
entre as vias e os entrelaçamentos entre a escola e o conselho tutelar torna-se judiciável?
Com essas inquietações e tendo como objetivos compreender as relações entre
a escola e o conselho tutelar tendo em vista a produção da judicialização; e problema-
tizar como se configuram as práticas judicializantes na escola, também buscamos
aproximação com a escola, e não no sentido de descobrir uma fonte de verdade entre
essas instituições. Para isso, também foi realizado a observação do cotidiano de uma
escola pública estadual de São Gonçalo (RJ), acompanhada da tessitura do diário de
campo.
As práticas cotidianas do conselho tutelar e da escola, assim como, as relações
que se atravessam entre esses dois territórios produzem efeitos e subjetividades que estão
continuamente em processos. Tais processos não estão dados, fechados nem completos,
mas sendo construídos historicamente ao longo dos tempos.
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Atravessamentos entre a escola e o conselho tutelar: as práticas
de judicialização
A partir da promulgação da lei 8.069 de 13 de julho de 1990, que dispõe sobre
o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), foi impulsionado um processo de rup-
tura com a histórica trajetória de autoritarismo adotado nas políticas públicas brasileiras
voltadas para a infância e juventude. Prezou-se pela descentralização do poder político-
administrativo e por princípios participativos, com a cooperação da sociedade civil.
Nesse contexto de abertura de espaços democráticos, temos o caso inovador da pro-
posta de criação do conselho tutelar com atuação direta no município, articulado por
cinco conselheiros/as eleitos/as pelo voto popular. O conselho tutelar representa um
órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, cujas funções correspondem à pro-
teção e à garantia integral do cumprimento dos direitos legais previstos no ECA em
toda a sociedade.
Com efeito, a ideia da criação desse órgão executivo municipal pautou-se em
uma prática não judiciária do atendimento de direitos individuais ou coletivos violados
(ou sob ameaça de violação) atinente ao referido público. Pois o poder de representação
cabe aos/às conselheiros/as tutelares, eleitos/as pela sociedade civil através do voto po-
pular para atuarem com autonomia nas práticas de garantia de direitos infantojuvenis.
Cabe ao conselho tutelar receber denúncias (muitas das vezes, anônimas) e reali-
zar os encaminhamentos das respectivas notificações, quando necessários, aos órgãos
de assistência, ao Juizado da Infância e da Juventude, ao Ministério Público ou a qual-
quer outro órgão que dispõe de serviços à sociedade para que os direitos sejam
garantidos. Em contrapartida, a lei prescrita está vinculada com as práticas do Poder
Judiciário, “[...] como um dispositivo produtor de discursos, de verdades, de domina-
ção, de possibilidades virtualidades constituintes de novas formas de subjetividades”
(SCHEINVAR, 2009, p. 73). Quem, pretensamente, não se enquadra à lei, ao violar
preceito legal, é passível de sofrer as punições previstas, o que corresponderia à aplicação
da justiça. A lei para ser aplicada reclama as práticas do poder judiciário. Tal perspectiva
também se torna corolária às práticas do conselho tutelar. Diante disso, como seria a
atuação deste órgão para aplicar a lei desvinculando-se das práticas do Judiciário? Ape-
sar de ser um órgão não jurisdicional, muitas das práticas dos sujeitos que ali atuam se
revelam pautadas na lógica jurídica, conforme afirmam, Nascimento e Scheinvar
(2007), sobre a juridicialização das práticas, que a:
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[...] presença de modelos de atuação característicos do Poder Judiciário, que acabam sendo
adotados, mesmo em espaços que não detêm tal poder, mas que, por serem revestidos de certa
autoridade e terem como fundamento para a sua prática o termo da lei, assumem tais formas
como as adequadas para o seu exercício. Do nosso ponto de vista, é esta a lógica que tem pautado
algumas das práticas dos conselhos tutelares (NASCIMENTO; SCHEINVAR, 2007, p. 153).
A criação do conselho tutelar remete à tentativa de desjudicialização, tendo os
seus agentes nomeados pela sociedade civil, para garantir a proteção de direitos às cri-
anças e adolescentes. O que se apresenta, porém, é um conjunto de procedimentos
regulamentadores da vida escolar que enquadram os conflitos em legislações e norma-
tizações construídas fora do espaço escolar, fortalecidas pela lógica judicializante. O
conselho tutelar é uma ponte entre a escola e as instâncias jurídicas no caminho da
judicialização. Há um entrelaçamento do campo pedagógico com o campo jurídico,
mediante ações de tecnologias de coerção e vigilância das ações infantojuvenis. Por essa
ponte, algumas situações tomam relevo na discussão.
Um dos encaminhamentos mais notórios realizado pela escola ao conselho tute-
lar é a comunicação de infrequência, através da nomeada FICAI (Ficha de
Comunicação de Aluno Infrequente), que se refere aos/às estudantes ausentes às aulas,
com um sucessivo número de faltas. As escolas, paradoxalmente, têm recorrido aos
conselhos tutelares, não apenas com o intuito de informar as faltas reiteradas de seus
alunos, mas também de atribuir ao órgão municipal a tarefa de perquirir as famílias
sobre as causas das referidas faltas das/os estudantes. Não obstante realizarem essa ta-
refa, os/as conselheiros/as entrevistados/as afirmam que a atribuição dessa tarefa, antes,
caberia com maior propriedade às escolas e não ao conselho. Trata-se de exemplo des-
crito pelos/as conselheiros/as da patente abdicação que fazem as escolas em cumprir o
seu papel pedagógico. O recurso ao conselho significa que as questões intraescolares,
ainda que atinjam aos/às responsáveis dos/as estudantes e a comunidade, deixam de ser
resolvidas pelas dinâmicas particulares da instituição escolar, privando-as de trato mais
adequado e eficiente. Diante da FICAI, o procedimento acionado pelo conselho tutelar
se dá através de advertências aos/às responsáveis sob a justificativa de que todos/as fi-
lhos/as em idade escolar devem obrigatoriamente frequentar a escola. Nas palavras da
conselheira Rosana
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durante a entrevistada, é afirmado:
E evasão escolar também é muito alta, que a gente chama aqui de FICAI (Ficha de Aluno
Infrequente), que essa ficha a escola encaminha pra gente. A gente vai até a residência, a gente
notifica os responsáveis pra saber o porquê essa criança ou adolescente não está indo. Que às
vezes eles mudam de bairro, de escola e não avisa. Aí, por isso que a estatística acaba aumentando
muito e às vezes nem é a realidade. Mas a evasão escolar aqui é muito alta. (conselheira Rosana).
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O procedimento pautado na notificação aos/às responsáveis se apresenta como
um mecanismo de fiscalização. Dependendo da quantidade de notificações, a punição
é agravada. A culpa recai sobre os/as responsáveis que não se encarregam dessa atribui-
ção. Na mesma perspectiva de garantir a obrigatoriedade de frequência à escola, outra
demanda que chega ao conselho tutelar, por parte das famílias, é a falta de vagas na
escola.
[...] o responsável vai até a escola, fala que não tem vaga. Não tem vaga. Então, se
ele ficar nessa que não tem vaga, ele volta pra casa e a criança não estuda. Aí,
quando vem aqui, a gente faz uma solicitação porque é garantia de direito. A gente
tá aqui pra garantir o direito da criança e do adolescente estudar. Não era pra ser
assim, eles não precisavam ter vindo aqui, né, mas como a gente tá aqui pra
garantir, a gente vai, faz a solicitação, aí consegue a vaga pra pessoa que veio aqui.
Só que, geralmente, às vezes, não é perto de casa, como manda o estatuto,
também. Às vezes, consegue garantir o direito de estudar, mas não na escola mais
próxima. (conselheira tutelar Rosana).
É uma das atribuições do conselho tutelar assegurar o direito à educação. Con-
tudo, no mesmo momento em que o direito à educação é instituído, paradoxalmente,
ele é obstaculizado por barreiras que impedem o/a estudante de matricular-se em uma
escola próximo à sua residência. A distância de casa exige que o/a estudante dependa
de transporte público, não raro necessitando de duas conduções para realizar um dos
traslados até a escola. São notórias as condições dos transportes públicos na cidade de
São Gonçalo, restritas ao transporte rodoviário realizado por ônibus: atrasos nos horá-
rios, longos intervalos, poucos veículos circulando dependendo da linha. Segundo o
IBGE, São Gonçalo, a segunda cidade mais populosa do estado do Rio de Janeiro, tem
o maior fluxo de trabalhadores do estado e o segundo do Brasil. Cerca de 120 mil
trabalhadores se deslocam diariamente em direção a Niterói e ao Rio de Janeiro, de
modo a provocar engarrafamentos diários e ônibus superlotados (G1, 2015). Em espe-
cial, os que têm direito à gratuidade, como no caso dos/as estudantes da rede pública
de ensino, muitas vezes, são ignorados/as nos pontos de ônibus ou enfrentam outras
dificuldades no embarque, a exemplo da citada superlotação. Para além do direito à
educação, aqui, nos deparamos com o problema da restrição ao direito à cidade para
pessoas com menor poder aquisitivo. É preciso colocar em questão: trata-se de uma
forma efetiva de direito à educação ou mais uma produção de controle? O que significa
ser sujeito de direitos diante da ausência de igualdade de condições sociais para perma-
nência na escola?
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A afirmação de que todos/as devem frequentar obrigatoriamente a escola advém
de um momento histórico em defesa da suposta democratização da educação. É um
dos direitos assegurados na Constituição Federal do Brasil de 1988. O que estaria im-
plicado na justificativa da imposição pela cobrança da frequência regular à escola? Mais
uma questão entra nesse embate: o sentido da cobrança seria, de fato, uma forma de
garantir e assegurar um direito legal ou se trataria de mais um dos procedimentos de
controle e vigilância sobre a escola e as relações entre famílias e estudantes, segundo
interesses do Estado, por meio do ECA e da Constituição?
Há um flagrante descompasso entre a afirmação do “direito à educação” e a rea-
lidade do cotidiano das escolas. No espaço escolar, há estudantes em séries destoantes
do seu nível de aprendizagem. O/a estudante segue avançando nas séries, mas não al-
cança o conhecimento considerado básico da leitura e da escrita. A escola projeta a
carga da dificuldade de aprendizagem sobre o/a próprio/a estudante, culpabilizando-
o/a e fazendo-o/a sentir-se incompetente. Essa estratégia exime a responsabilidade de
dimensão social, política e econômica, ao passo que produz no/na próprio/a estudante
o sentimento de culpa e incompetência. O que se destaca é a prioridade na promoção
e não na aprendizagem.
À escola é atribuída a função de servir de espaço de socialização e lugar de prepa-
ração dos estudantes para a inserção no mercado de trabalho, por meio do controle das
condutas, de modo que se tornem produtivos/as na sociedade capitalista. A garantia do
sucesso parece depender da inserção no mercado de trabalho, mesmo que seja em con-
dições precarizadas, situação que certamente minora a cobrança social da qualificação
do processo de ensino-aprendizagem na formação escolar.
A escola e o conselho tutelar configuram territórios que Foucault (2003) definiu
como instituições de sequestro, ou seja, que controlam os corpos e o tempo em nome
da força produtiva. Conforme afirma: “Que o tempo de vida se torne tempo de traba-
lho, que o tempo de trabalho se torne força produtiva; tudo isto é possível pelo jogo de
uma série de instituições que esquematicamente, globalmente, as define como institui-
ção de sequestro” (FOUCAULT, 2003, p. 122).
Em entrevistas realizadas com conselheiros/as, foi informado que muitos enca-
minhamentos das escolas ao conselho tutelar estavam relacionados com casos de
bullying, como mencionado neste trecho relatado:
Agora, assim, bullying sempre existiu. Só que agora tá em alta, né? Virou moda.
Então, tem muitos casos de bullying na escola, muita coisa. [...] É, porque ela não
aguentava mais a colega falar sobre algo no corpo dela, e aquilo foi passando. Foi
passando, até que um dia ela projetou que aquilo ia acabar. Como que acabaria
isso? Ela machucando a colega. Graças a Deus, não chegou até o final.
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Contaram. Alguma coleguinha contou pra professora, a coordenadora, não recordo,
que fulano estava com algo cortante na mochila. Aí, elas não podem mexer, né. E
aí, ela foi chamada na secretaria. A menina mesmo mostrou que estava. E aí, a
ronda escolar junto com a direção, mais a família vieram aqui no conselho. [...]
Graças a Deus que a outrazinha que se sentia ameaçada, que levou o canivete, não
conseguiu chegar até o final com o tal do canivete. [...] A gente ouve. A gente quer
saber o que tá desencadeando isso na cabeça de uma criança, de uma adolescente
dessa. Chegar ao ponto, né. Antigamente, briga era o quê? Puxar o cabelo, gritar.
Hoje, não. Hoje já partem pra arma mesmo, né, porque isso é uma arma, arma
branca. E aí, nós chamamos a família, notificamos a família, as duas famílias, né,
são ouvidas. Passamos, aí vai pra pedagoga, vai pro psicólogo, se precisa de
acompanhamento. Tudo aqui dentro. Se a psicóloga avaliar que precisa estender
esse acompanhamento, ela vai dar o encaminhamento e a família vai dar, mas a
gente tá por trás, e a escola junto com a gente, sempre. Não é chegar aqui e toma.
(conselheira tutelar Helene).
O termo bullying, tão presente na voz dos/as profissionais da educação e dos/as
estudantes, também é evocado pelos/as conselheiros/as como um dos exemplos de en-
caminhamentos acionados pela escola e pelas famílias dos/as estudantes. A lógica
naturalizada do termo é reproduzida pelos discursos generalizados da mídia que o faz
funcionar como parâmetro de verdade. A banalização do termo se materializa com as
expressões “agora tá em alta” e “virou moda”. Refere-se às situações de violências, hu-
milhação, enfrentamentos e comportamentos rotulados como agressivos que ocorrem
no espaço escolar entre as/os estudantes. Que modos de subjetivação são produzidos
por esses discursos naturalizados? Quais as implicações e os efeitos disso?
Há um efeito de verdade construído por esses discursos traduzido na naturaliza-
ção do bullying no espaço escolar. A ênfase no termo traz à cena o sujeito marcado
como vítima ou agressor: os chamados violentos, agressivos, de um lado, e do outro,
como vítimas ou coitados. Assim, para o agressor, o procedimento é o da punição e
para vítima, o da proteção. Deste modo, a escola é estigmatizada como espaço de vio-
lência, de perigo e de risco que necessita de intervenção dos conselhos tutelares, da
Ronda Escolar
4
e da justiça para lidar com essas situações. Nas palavras de Marafon
(2013, p. 113):
Junto à afirmação de bullying, afirmam-se lugares estanques, essencializados e
opostos, tais como as noções de criança vítima e agressor, as quais, por sua vez,
retroalimentam a lógica binária que as sustenta, pois são constantemente evocadas
para legitimar e comprovar a existência de bullying (já sob um enquadre estanque
e restrito).
O episódio narrado acima trata de uma situação de risco iminente à integridade
física de uma adolescente que poderia ser atingida por um canivete por outra colega de
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classe. Uma estudante estava sofrendo de forma recorrente com comentários sobre o
seu corpo feitos por uma colega de classe. Depois disso acontecer de forma insistente,
ela reagiu com um ato violento, com a tentativa do uso de um canivete. A reação da
estudante não significa que ela em si seja rotulada como violenta. O auge da insupor-
tabilidade por ser atacada verbalmente conduziu a sua reação. A situação tomou
proporções que fizeram a escola acionar a Ronda Escolar, o conselho tutelar e a família.
Após o ocorrido, essas instâncias foram acionadas para buscar soluções. Não nos inte-
ressa aqui problematizar o ocorrido por um viés de prevenção ou de prestar alguma
solução, mas questionar lógicas impregnadas. Chama-nos atenção o interesse “em saber
o que tá desencadeando isso na cabeça de uma criança, de uma adolescente dessa” (con-
selheira Helene). Por essa ótica, parece que o problema é de dimensão
psicológica/neurológica. Busca-se a causa de um modo individualizado. Não foi colo-
cada em questão a contínua perturbação que a adolescente vinha sofrendo com o seu
corpo. A situação ficou focada na reação da adolescente que usou o canivete, num en-
quadramento de bullying. Para as consideradas vítima e agressora, é comum o
encaminhamento a profissionais especialistas de tratamento psicológico e/ou psiquiá-
trico.
Outro aspecto relevante diz respeito às culpabilizações e às rotulações sobre as
famílias dos/as estudantes, sendo comumente chamadas como “desestruturadas” e/ou
“negligentes”.
[...] que que tá acontecendo hoje que eu percebo, nós percebemos no conselho.
Tudo começa na família, né. Uma família que não tá estruturada, você acaba
trazendo uma criança, um adolescente não estruturado e aí acaba berrando. E aí,
não é transferência de papel, mas aí a família não consegue, joga pra escola ou pra
igreja, que seja, mas aqui [na entrevista] o foco é escola. A escola, hoje em dia,
mais ainda, está cada vez mais se sentindo limitada, né, e por pouco, por pouco que
consegue já joga pro conselho, né. (conselheira tutelar Helene)
Uma forma da gente ter de ajudá-los [criança e adolescente], muitas das vezes, a
sair dessa situação de agressão, de drogas, de abandono, né, porque muita das
vezes, os pais são mais negligentes que os filhos. (conselheiro tutelar Tadeu)
Os discursos das/o conselheiras/o são um modo simplista de categorizar a origem
de algum problema que chega ao conselho tutelar, estigmatizando as famílias que não
correspondem ao modelo hegemônico estabelecido na sociedade capitalista, com con-
dições socioeconômicas definidas como inadequadas. A falta de responsabilização da
família é o alvo para justificar a conduta desviante do/a estudante. Por esse modelo, se
entende que a conduta é desviante porque a família não soube cuidar, desconsiderando
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o seu contexto social enquanto problema estrutural. A todo instante a cobrança recai
sobre a família (idealizada) por não ter se responsabilizado pela educação de seus/suas
filhos/as. Cabe também questionar o que significa família e a composição idealizada de
família no ECA. Afinal, quais parâmetros enquadram o que se chama de família na
perspectiva de atuação do conselho tutelar, da escola e do Estado?
Sendo este “ideal” de família,
“[...] calcado no modelo burguês-cristão que prima pelas boas condições financeiras, morais e
religiosas [...] o processo de desqualificação das famílias pobres que, pela condição de
miserabilidade em que vivem, perdem a tal dignidade por se encontrarem, na maioria das vezes,
distantes do referido ‘padrão ideal” (BARBOSA et al., 2002, p. 202).
Portanto, é um ideal de família que atende aos interesses do Estado.
Esse modo de operar na interlocução do conselho tutelar entre a escola e a família
é o que compreendemos como “individualização das questões sociais
(NASCIMENTO; SCHEINVAR, 2010, p. 27), ou seja, um modo de intervenção com
referência na competência técnica: “[...] o conselheiro se apega à sua autoridade, às suas
verdades particulares, aos seus princípios morais, por serem as únicas possibilidades ou
os recursos disponíveis” (NASCIMENTO; SCHEINVAR, 2010, p. 29). Por esse
modo se produz a desqualificação da família pobre/vulnerável e a sua negação enquanto
uma outra possibilidade de configuração familiar.
O conselho tutelar opera pela regulação, disciplinarização e controle das condu-
tas das famílias que recorrem ao órgão ou que são encaminhadas pelas escolas por meio
de mecanismos de enquadramento. A lógica dos direitos prescritos no ECA é uma es-
tratégia de controle da vida das crianças, dos/as adolescentes e de suas famílias,
sobretudo pobres, aos interesses do Estado. Há uma ampliação de forças que fortalece
o Estado como interventor na regulação das vidas na sociedade capitalista. As técnicas
disciplinares se expandem na sociedade de controle travestidas por discursos de segu-
rança e proteção.
O discurso pautado na moralização das condutas familiares (e da sua condição
de pobreza) reproduz as mesmas lógicas de controle que são operadas pelo conselho
tutelar. “Entender a família como um espaço instrumental é uma maneira de despo-
tencializar o seu conteúdo político, a dimensão política inscrita tanto na relação interna
da família, quanto na relação que as formas de gestão política estabelecem com a famí-
lia” (SCHEINVAR, 2008, p. 2).
O recurso da judicialização das relações escolares despotencializa a instituição
escolar, provocando um esvaziamento da autonomia da escola quando episódios de
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conflitos e de outras naturezas entre estudantes ou entre estudantes e profissionais da
educação se deslocam cada vez mais do campo pedagógico para o campo (não) jurídico,
mediante a ações de tecnologias de coerção, vigilância e criminalização das ações infan-
tojuvenis. O conselho tutelar acaba apresentando-se como uma instituição punitiva
que consolida a lógica homogeneizadora da escola e desqualifica a sua função de acon-
selhamento.
Percebemos o temor que existe por parte dos/as estudantes e das famílias em
relação ao conselho tutelar devido ao caráter punitivo, como é caracteristicamente re-
conhecido. Essa observação se fez presente em todas as entrevistas. Enfatizam o medo
sentido pelas pessoas quando se fala sobre conselho tutelar ou quando veem os/as con-
selheiros/as ou sua equipe técnica.
Até porque quando chega o conselho [na escola], o conselho [tutelar] tem uma
imagem às vezes ruim pra criança e adolescente. Ela acha que ele vai chegar e vai
prender eles. E que não é esse, a gente tá lá pra garantir o direito deles. É o
contrário.
A gente chega na porta da escola com o carro escrito “conselho tutelar”, pra eles é
um pavor. E, na verdade, a gente tá ali a favor dele [estudante]. Não tá ali contra
ele, entende? Às vezes, a gente tenta reverter essa história porque quando a criança
e o adolescente tá fazendo alguma coisa em casa, e fala assim: ‘olha, eu vou
chamar o conselho tutelar pra te levar’, que não é verdade. Conselho tutelar não
leva ninguém. (conselheira tutelar Rosana)
Tal narrativa aborda as referências que a população tem sobre o conselho tutelar:
terror, medo, prisão, denúncia, punição, etc. É instigante pensar sobre essas impressões
acerca do órgão, uma vez que o sentido de punição e de criminalização se afasta da ideia
do conselho tutelar como um lugar de condição para o aconselhamento, para a reivin-
dicação ou para a luta de um direito violado.
Considerações finais
No nosso tempo presente, o clamor social por punição e castigo e práticas de
denúncia e vigilância, com a crença na lei como referência da vida, têm conduzido o
processo de judicialização da vida como produção subjetiva. Com um conjunto de for-
ças atuantes, percebemos a expansão capilarizada, com ênfase nos territórios da escola
e do conselho tutelar, dos procedimentos análogos aos tribunais no cotidiano da vida
humana, que ditam a regulação e o controle das condutas.
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Tendo em vista a reprodução análoga aos tribunais que operam com discursos e
práticas moralizantes, com sanções e com assujeitamentos diante desses fluxos cotidia-
nos nos mais diversos espaços da vida social, tivemos como interesse desdobrar as
problematizações e os efeitos nos atravessamentos entre a escola e o conselho tutelar,
percebendo a produção de posturas policialescas calcadas na lógica penal, com ênfase
nos trajetos de judicialização. Para além do reconhecimento de técnicas procedimen-
tais, como o encaminhamento de “casos” para instituições jurídicas, buscou-se
problematizar as lógicas judicializantes acionadas diante das questões escolares. Tais
lógicas endossam respostas por meio de práticas com base na ordem que pretende en-
quadrar a conduta de estudantes e de suas famílias. Contraditoriamente, a escola abre
mão de suas funções precípuas, ao transferir suas responsabilidades a agências externas,
prática que a despotencializa de sua autonomia no trato das questões pedagógicas, ao
mesmo tempo que enfraquece a dimensão política da instituição familiar.
Apostar na recusa à judicialização da vida nos convoca a abrir outras brechas,
pensar em outros planos de análise e reinvenções do conjunto de forças que permeia o
cotidiano escolar, rompendo, assim, com as capturas para mirar outros modos de exis-
tência que possam trazer à tona insurgências pela afirmação da vida como potência.
Notas
1
Segundo Lobo (2012), o conceito judiciável aparece em um artigo, pouco conhecido, intitulado “A
redefinição do judiciável”, produzido por Michel Foucault, e originalmente publicado em 1977, na
revista francesa “Justice”, referente a palestra realizada no Sindicato da Magistratura, no mesmo ano.
Por ocasião dos 20 anos da morte de Foucault, o texto foi reproduzido pela Revista Vacarme, em
2004.
2
As entrevistas foram realizadas no âmbito da pesquisa de mestrado intitulada “Educar e punir: a
judicialização da vida escolar” (GOMES, 2019).
3
Para garantir o anonimato dos/as entrevistados/as, foram dados nomes fictícios a todos/as os/as
conselheiros/as tutelares.
4
“O Grupamento da Ronda Escolar (GRE) foi criado no dia 11 de novembro de 1998, [...] para dar
proteção às escolas da rede municipal de ensino”. Disponível em:
https://www.rio.rj.gov.br/web/gmrio/ronda-escolar. Acesso em: 22 jan. 2020.
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