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Crianças oncológicas e as experiências do adoecer e das práticas pedagógicas em
ambiente hospitalar
Oncological children and the experiences of illness and pedagogical practices in a hospital
environment
Niños oncológicos y las experiencias de enfermedad y de prácticas pedagógicas en un entorno
hospitalario
Osdi Barbosa dos Santos Ribeiro*
Alessandra Alexandre Freixo**
Resumo
O presente artigo objetivou compreender os sentidos atribuídos pelas crianças de um centro de oncologia ao
processo de adoecimento e às práticas pedagógicas no ambiente hospitalar. Este estudo se apoia numa abor-
dagem qualitativa do tipo descritiva. Como técnicas de pesquisa, foram utilizadas a observação sistemática, o
diário de campo e a entrevista semiestruturada. O universo de participantes envolveu crianças do Centro de
Oncologia Infanto-Juvenil do Hospital Estadual da Criança (HEC), em Feira de Santana, Bahia. Paralelamente à
observação sistemática das práticas pedagógicas, foram realizadas entrevistas com onze crianças. Os dados co-
letados foram analisados com base na análise de conteúdo. Foi evidenciada, nas falas das crianças, a percepção
do hospital como um lugar de dor e de cura. Porém, é na brinquedoteca que as crianças encontram elementos
que as aproximam do ambiente escolar, como a prática pedagógica de contação de histórias. Essa prática surge
como uma forma de tirar a criança de uma realidade de silêncio e isolamento, para ingressar em um mundo no
qual o sonho é possível, em que a fantasia tem o papel de transpor os limites impostos pela doença.
Palavras-chave: pedagogia hospitalar; prática pedagógica; centro de oncologia.
Abstract
This article aimed to understand the meanings attributed by children of an Oncology Center to the process of
illness and pedagogical practices at hospital environment. This study is based on a descriptive qualitative ap-
proach. As research techniques, systematic observation, eld diary and semi-structured interview were used.
The universe of participants involved children from the Oncology Center of State Childrens Hospital (HEC), in
Feira de Santana, Bahia. In parallel to the systematic observation of pedagogical practices, interviews were con-
ducted with eleven children. The collected data were analyzed based on content analysis. The perception of the
hospital as a place of pain and healing was evidenced in the childrens speeches. On the other hand, it is in the
* Mestra em Educação pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Professora da Faculdade Maria Milza, em
Cruz das Almas, Bahia. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3815-5502. E-mail: osdi.art@hotmail.com
** Doutora em Ciências pela Biológicas e doutorado em Ciências sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Professora titular do Departamento de Educação da Universidade Estadual de Feira de Santana. Docente do Programa
de Pós-Graduação em Educação da UEFS. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3566-8302. E-mail: aafreixo@uefs.br
Recebido em: 15/06/2020 – Aprovado em: 18/08/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i2.11183
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toy library that children nd elements that bring them closer to the school environment, such as the pedagogi-
cal practice of storytelling. This practice emerges as a way to take the child from a reality of silence and isolation
into a world where the dream is possible, in which fantasy transposes the limits imposed by the disease.
Keywords: hospital pedagogy; pedagogical practice; oncology center.
Resumen
El presente artículo objetivó comprender los sentidos atribuidos por los niños de un Centro de Oncología al
proceso de enfermedad ya las prácticas pedagógicas en el ambiente hospitalario. Este estudio se apoya en un
enfoque cualitativo del tipo descriptivo. Como técnicas de investigación, se utilizaron la observación sistemá-
tica, el diario de campo y la entrevista semi-estructurada. El universo de participantes fue niños del Centro de
Oncología Infanto-juvenil del Hospital Estadual del Niño (HEC), en Feira de Santana, Bahia. Paralelamente a la
observación sistemática de las prácticas pedagógicas, se realizaron entrevistas con once niños. Los datos reco-
gidos se analizaron sobre la base del análisis de contenido. Se evidenció, en las conversaciones de los niños, la
percepción del hospital como lugar de dolor y de curación. Por otro lado, es en la sala de juegos que los niños
encuentran elementos que les acercan al ambiente escolar, como la práctica pedagógica de contar historias.
Esta práctica surge como una forma de sacar al niño de una realidad de silencio y aislamiento para ingresar en
un mundo donde el sueño es posible, en que la fantasía hace ese papel de transponer más allá de los límites
impuestos por la enfermedad.
Palabras clave: pedagogía hospitalaria; práctica pedagógica; centro de oncología.
Introdução
A pedagogia hospitalar se configura como uma modalidade da pedagogia,
emergindo da relação entre educação e saúde. Com legitimidade, tem ocupado seu
espaço nas discussões sobre a educação como um direito fundamental da criança
em situação de adoecimento e hospitalização. Nesses termos, vem-se ampliando
a possibilidade de o profissional da educação atuar junto às crianças afastadas
do ambiente escolar na perspectiva de melhor compreendê-las e ajudá-las nesse
momento vivido.
A inserção do profissional de educação nos hospitais tem sido discutida em
fóruns diferenciados de educação e saúde, sobretudo na perspectiva de garantia
desse direito, como indicado por Fonseca (2008). Seja a partir de classes hospita-
lares, com vistas à continuidade da escolarização, seja na brinquedoteca, visan-
do a vertente lúdica de humanização, nos discursos há um consenso em torno da
necessidade de um atendimento integral a essa demanda existente nos hospitais
brasileiros.
Direcionamos nosso olhar para a criança em idade escolar acometida pelo
câncer e imersa em uma realidade diferenciada necessária ao tratamento. Tal pa-
tologia, aguda ou crônica, exige mudanças no modo de vida da criança. O trata-
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mento acontece por um longo período, com processos de internações, reinterações,
procedimentos e acompanhamentos médicos necessários, todos ocasionadores de
rupturas, como o afastamento do convívio familiar, escolar e do grupo de amigos.
Em decorrência disso, a criança necessita deixar o que fazia parte de sua vida coti-
diana, como as brincadeiras, os estudos e as aventuras de viver. Especificamente, a
situação de afastamento do convívio escolar decorrente da necessidade de lidar com
procedimentos pertinentes ao tratamento requer atenção especial à criança, que
pode apresentar alguma limitação transitória por estar impedida de frequentar a
escola por um tempo indeterminado.
As Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica, Re-
solução CNE/CEB n. 2/2001 (BRASIL, 2001), no artigo 3º, asseguram o direito ao
atendimento pedagógico do educando com necessidades especiais provisórias, de
modo a garantir a continuidade da sua aprendizagem e do seu desenvolvimento. O
artigo 13 dispõe sobre o imperativo de uma ação integrada entre educação e saúde
para o atendimento do educando, enquanto está impossibilitado de voltar à esco-
la em decorrência das limitações impostas por adoecimento e hospitalização. Por
sua vez, a Lei n. 13.716/2018 acrescenta à Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (BRASIL, 1996), o artigo 4º, que assegura o atendimento educacional ao
aluno da educação básica que se encontra em tratamento de saúde e internado em
hospitais.
As discussões acerca da pedagogia hospitalar vêm se expandindo, com vistas
à possibilidade de pensar a educação para além do contexto escolar, em particular
no hospital. Nesse contexto, a inserção e a atuação do pedagogo no ambiente hos-
pitalar podem contribuir de modo pontual para o bem-estar da criança em questão,
uma vez que o pedagogo, enquanto profissional da educação, busca aproximar as
crianças de um cotidiano rompido pelo tratamento à doença.
Na discussão dessas questões, fazemos referência ao estudo fundante de Ma-
tos e Mugiatti (2014, p. 32), ao considerarem que a pedagogia hospitalar tem como
aporte “[...] a pesquisa de envolvimento teórico e prático entre a realidade acadêmi-
ca/hospitalar [...]”, uma vez que busca construir conhecimentos acerca da educação
no contexto hospitalar. Nessa ótica, evidenciamos o papel do pedagogo enquanto
um profissional da educação que “[...] lida com fatos, estruturas, contextos, situa-
ções, referentes à prática educativa em suas várias modalidades de manifestações
[...]” (LIBÂNEO, 2010, p. 45), em nosso estudo, particularmente, a modalidade da
pedagogia hospitalar.
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Diante dessa problemática, emerge como objetivo deste artigo compreender
os sentidos atribuídos pelas crianças de um centro de oncologia ao processo de
adoecimento e às práticas pedagógicas no ambiente hospitalar. Considerando que
esse objeto de estudo ainda hoje é pouco investigado no Brasil, buscamos reflexões
e diálogos com os autores que têm dedicado seus estudos a dar visibilidade ao es-
paço da educação na instituição de saúde, para que as crianças com doença crônica
sejam contempladas com o atendimento pedagógico e os cuidados necessários em
contexto hospitalar.
Percurso metodológico da investigação
A presente pesquisa configura-se a partir da abordagem qualitativa aplicada
à pesquisa em educação, cuja especificidade, a particularidade dos seus correspon-
dentes métodos, possibilita o entendimento de que “[...] o investigador trabalha
com o reconhecimento, a conveniência e a utilização dos métodos disponíveis, em
face do tipo de informações necessárias para se cumprirem os objetivos do traba-
lho” (MINAYO, 2016, p. 54), obtendo impressões e orientações referentes ao cami-
nho a ser seguido. Optamos por “[...] uma metodologia de investigação que enfatiza
a descrição, a indução, a teoria fundamentada e o estudo de percepções pessoais
[...]” (BOGDAN; BIKLEN, 1994, p. 110), tendo em vista que os dados coletados se
constituem essencialmente descritivos, apresentando uma riqueza em descrições
de acontecimentos, de pessoas e de situações (LÜDKE; ANDRÉ, 1986).
O Centro de Oncologia Infanto-Juvenil do Hospital Estadual da Criança
(HEC) se constituiu como lócus desta pesquisa. A escolha pelo centro dessa insti-
tuição hospitalar se deu após uma consulta realizada em Feira de Santana e nas
cidades circunvizinhas, na busca por hospitais que possibilitassem a efetivação do
estudo. O hospital em questão foi inaugurado em 2010 e está localizado na cidade
de Feira de Santana, Bahia, sendo vinculado ao Sistema Único de Saúde (SUS) e
uma referência no atendimento ao público infanto-juvenil, especificamente crian-
ças e adolescentes com câncer, geralmente oriundos do município feirense e de
outras cidades do estado.
Para a delimitação das crianças participantes da pesquisa, inicialmente, con-
tamos com as informações dadas por uma pedagoga, pontuadas a partir dos seus
registros: ano de escolaridade, tipo de câncer diagnosticado e condição de saúde das
crianças hospitalizadas no centro de oncologia no mês de novembro de 2017. Pos-
teriormente, foi realizado um levantamento nos prontuários das crianças, a fim de
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reforçar as informações sobre o motivo da hospitalização, a exemplo de quando foi
diagnosticado o câncer, a situação do tratamento, a idade e os relatórios de acom-
panhamento pedagógico. Essas informações foram importantes para compreender
as necessidades e as especificidades referentes à condição de saúde de cada parti-
cipante. A partir de então, foi delimitado o universo da pesquisa: 11 participantes,
em idade escolar correspondente aos anos iniciais do ensino fundamental, que pas-
saram por situação de internação e participaram da prática pedagógica de conta-
ção de histórias desenvolvida por uma pedagoga do centro durante a observação
em campo.
Adotamos a observação sistemática, a entrevista semiestruturada e o diário
de campo em virtude de o estudo qualitativo trazer como possibilidade a variedade
de instrumentos e técnicas possíveis a serem empregados para a coleta de dados
(MINAYO, 2016). As observações da prática pedagógica e as entrevistas foram efe-
tivadas entre novembro de 2017 e fevereiro de 2018. No centro de oncologia, as
práticas pedagógicas não estavam sendo desenvolvidas desde o mês de fevereiro de
2017. As atividades foram retomadas juntamente com a efetivação desta pesquisa
em campo.
Em respeito à rotina da equipe da oncologia, as entrevistas foram realizadas
após um agendamento prévio. As crianças foram entrevistadas individualmente,
na companhia do seu responsável. No momento das entrevistas, buscamos manter
a tranquilidade e a privacidade dos depoentes, evitando a influência de outros, fa-
vorecendo o diálogo e a produção de informação por meio das falas. As entrevistas
foram gravadas sob a autorização dos participantes e de seus responsáveis.
Objetivando assegurar o diálogo com as crianças, foi elaborado um roteiro da
entrevista, organizado em blocos, com perguntas exploradas com todos os entrevis-
tados. As crianças participantes falaram sobre a prática de contação de histórias,
do que chama a atenção delas nas histórias, dentre outras questões que mobiliza-
ram as falas durante a entrevista.
Posteriormente, as entrevistas foram transcritas e analisadas. A transcrição
consistiu em uma etapa que demandou tempo, atenção e cuidado, para manter
fielmente as particularidades das falas. Segundo Flores e Silva (2005, p. 42), a
transcrição consiste na “fala passada a limpo”, permitindo observar as diferenças
entre o que se fala e o que se escreve. Assim, as entrevistas foram revisadas após
transcrição, de acordo com as regras ortográficas e gramaticais da língua portugue-
sa, de modo a minimizar a exposição do entrevistado.
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Em virtude da natureza deste estudo, os aspectos éticos foram considerados,
em observância ao que preconizam as Resoluções n. 466/2012 e n. 510/2016. A
partir das orientações desses documentos, no termo de consentimento livre e es-
clarecido e no termo de assentimento livre e esclarecido, os participantes foram
informados sobre a autonomia na participação, a possibilidade de desistência da
pesquisa a qualquer momento, a confidencialidade, os benefícios, os riscos e a rele-
vância do estudo. O projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da UEFS
e aprovado sob o protocolo CAAE 76789417.5.0000.0053.
Os dados coletados foram então analisados com base nos pressupostos teó-
rico-metodológicos da análise de conteúdo de Bardin (2011). Devido à natureza
dos dados, adotamos a análise de conteúdo por meio da construção de categorias
temáticas, considerando algumas etapas. Na primeira etapa, após a organização
dos materiais, na pré-análise, realizamos a leitura flutuante dos textos escolhidos
e dos documentos que definem o corpus da pesquisa. A etapa seguinte, para a ex-
ploração do material, consistiu na análise dos documentos, na busca de organizar
os dados coletados de forma sistemática e articulados em unidades de registro. Já
na última etapa, realizamos o tratamento dos resultados obtidos e a sua interpre-
tação. Para isso, foram definidas as dimensões do conteúdo em que o tema surge,
agrupando-o para a discussão de acordo com os critérios do pressuposto teórico ou
empírico (BARDIN, 2011).
A criança e as experiências vivenciadas em ambiente hospitalar
Ao longo da realização das entrevistas, observamos, a todo momento, um dire-
cionamento dos depoimentos para a relevância dada à dor, ao sentido e à referência
do diagnóstico em suas próprias vidas. Sendo assim, para compreender como elas
vivenciam a referida prática no contexto em estudo, abordaremos a perspectiva
em torno do diagnóstico da doença, na intenção de entender o pano de fundo que
permeia as falas das crianças em questão.
A criança em torno da descoberta da doença
No momento da realização da entrevista, em resposta às indagações acerca
da prática pedagógica, as crianças chamam para conversar sobre o diagnóstico do
câncer, ou seja, a descoberta da “doença”, assim denominado por elas. Dessa forma,
iniciamos essa abordagem considerando os sentidos em torno do diagnóstico que
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influenciam o olhar das crianças sobre as práticas, a partir da riqueza de detalhes
explicitados nos seus próprios relatos:
Eu fui internada [começou a chorar]. Eu tive tristeza, muita tristeza quando descobri. Não é
fácil. Minha mãe sofria muito, chorava. Minha avó veio me visitar. Tive muita tristeza quando
descobriu essa doença e eu cheguei aqui. Eu estava na ambulância. Eu cheguei aqui era tudo
estranho. As agulhas, esse lugar. Foi no sábado que eu vim para cá e eu fiquei quase um mês.
Eu não ia para casa, nem via a minha família, eu sentia saudade. Eu não conseguia voltar
para a escola. Eu perdi de ano [a entrevistada não conseguia conter as lágrimas, sugeri que
continuássemos em outro momento, ela pediu que continuasse, pois estava bem]. Eu gostava
de fazer a atividade que a escola mandava. Aí eu só queria ir para brinquedoteca, lá eu ficava
brincando, esquecia um pouco o que eu sentia, não é mãe? (Juliana1).
Quando se reporta ao diagnóstico da doença, além de relatar o que tem vivido,
enquanto doente e hospitalizada, a criança fala sobre sua vida cotidiana quando
possuía saúde. A essa questão, Matos e Mugiatti (2014) indicam o diagnóstico como
uma situação diferenciada, uma vez que produz uma ruptura na vida da criança,
devido ao afastamento causado nas relações com a família, com o grupo de amigos
e com a escola. Diante da descoberta da doença, as crianças compreendem que a
vida muda, como também explicitado por Abraão, ao falar sobre a necessidade de
lidar com essa situação:
Eu tinha saúde. Eu brincava com meus amigos, irmãos e vizinhos, eu sempre fui muito alegre,
ia para a escola, via a professora, os meninos que estudavam lá, corria, andava de bicicleta,
tudo isso. Estudava, passei para o ano seguinte daí, parei depois disso. Minha vida era normal,
mas depois que eu adoeci e descobri, deu uma coisa que me chocou, chocou. Assim, era uma
coisa que eu não queria para mim. Eu não queria porque eu sabia que teria de fazer isso tudo.
Antes eu aprontava demais. Quando eu vi que adoeci, eu não consertei minha vida. Você vê.
Eu sou gaiato ainda? Sou. Mas, eu não sou gaiato mais como eu era antes. Antes eu brincava
com qualquer pessoa, mas hoje não. Hoje não é com toda pessoa que eu brinco. Minha vida
mudou muito (Abraão).
O tratamento exige limitação dos espaços e das relações de convivência, como
mencionado por Abraão. Seu jeito “gaiato” e brincalhão de ser e lidar com as pes-
soas ao seu redor não era visto com bons olhos, não consistia em uma ação inerente
a uma criança na situação de doente no ambiente hospitalar. Dessa forma, além
encarar o diagnóstico e duas recidivas da doença durante o tratamento, ele percebe
que precisa mudar o modo de lidar com as pessoas que começam a fazer parte de
sua vida.
Ainda refletindo sobre o relato de Abraão, Matos (1998) orienta que a doença
modifica o modo subjetivo de a criança se situar no mundo. Na situação de adoeci-
mento e hospitalização, são evidenciados três tipos de experiências: a de privação
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da saúde, conforme a doença impossibilita o bem-estar da criança; a de frustração,
considerando que a vida fica limitada à doença em si e ao tratamento; e a experiên-
cia dolorosa, uma vez que a doença e a dor causam medo, sofrimento, desconfortos
e aversão à hospitalização.
Em busca da restauração da saúde, as crianças começam a enfrentar os limi-
tes impostos pelo tratamento. As brincadeiras, o estudo e as aventuras são subs-
tituídos por atenção e cuidados com a doença no ambiente hospitalar. Sobre essa
questão, o Ministério da Educação (BRASIL, 2002, p. 10) chama a atenção para
o fato de que “[...] a experiência de adoecimento e hospitalização implica mudar
rotinas, separar-se de familiares, amigos e objetos significativos; sujeitar-se a pro-
cedimentos invasivos e dolorosos e, ainda, sofrer com a solidão e o medo da morte”.
Mediante as informações coletadas, com a inserção no ambiente hospitalar, as
crianças interagem com o inesperado e o estranho. Surge, assim, a necessidade de
conviver com pessoas desconhecidas, lidar com a hospitalização, com idas e vindas
constantes ao hospital, para consultas médicas, realização de exames, medicações
e cirurgias, dentre outros procedimentos realizados durante o tratamento.
Aqui não dá nem para ver o mundo. Eu gostaria que fosse um lugar que a gente viesse ruim e
voltasse bom para casa. Voltasse curada para continuar fazendo as coisas que gostava. Mas
a gente precisa voltar. Aí as plaquetas baixam, interna a gente de novo. Tem a comida. Aí vêm
as agulhadas [risos]. Não pode perder o acesso! E quando perde tem que furar de novo, dói,
eu choro, sinto dor, tenho medo. Não queria que fosse assim (Isabela).
Os relatos informam que, no contexto em estudo, a experiência vivida em tor-
no do diagnóstico e do tratamento influencia a vida das crianças a ponto de fazê-las
compreender, apropriar-se e naturalizar os termos técnicos da área médica, que
seriam desconhecidos por elas caso não estivessem nesse contexto. O uso do termo
“acesso”, ressaltado pelos entrevistados, refere-se a um procedimento utilizado no
hospital, que consiste em introduzir um objeto do tipo cateter (tubo ou sonda mi-
limétrica) na veia para coletar amostras sanguíneas, injetar medicamentos, entre
outras finalidades. Gomes et al. (2013) destaca que esses termos fazem parte do
cotidiano da criança devido ao contato frequente com os profissionais da área de
saúde durante o tratamento.
Por vezes, para a criança, a sensação de estar no ambiente hospitalar cau-
sa desconfortos e medo dos procedimentos realizados. Os objetos estranhos que
furam – tratados por elas de modo geral como agulhadas e furadas – assustam e
tornam desagradável a estadia nesse ambiente. Desse modo, em todas as falas, são
evidenciados os sentidos atribuídos ao hospital como um lugar de dor. Todavia, o
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hospital também consiste em um lugar importante para as crianças, como podemos
perceber no ponto de vista a seguir:
Eu precisava tomar medicamento. O medicamento ardia muito na veia, não sei o porquê, mas
ardia igual a pimenta na veia. Eu ficava com medo, aqui era estranho. Ficavam umas manchas
na pele. Umas marcas que ainda não saíram. A coisa mais difícil era tomar sangue na veia.
Mas, hoje eu vejo que era para o meu bem [risos]. Aqui, no HEC é um lugar que a gente vem
e sente dor. Mas, que a gente vem para tratar da doença. E agora estou curada. Estou muito,
muito feliz (Amora).
Apesar das marcas da doença, a criança expressa a alegria em torno do diag-
nóstico de cura do câncer. Amora, pelo corredor do centro, falava com as outras
crianças para não desistirem diante dos desafios impostos pelo tratamento e pela
doença: “Assim como eu me curei, vocês também serão curados, tenham fé em
Deus, eu venci” (Amora), em comemoração elas se abraçavam, choravam e sorriam.
Nesse sentido, Abraão reconhece a importância do ambiente hospitalar na
perspectiva de continuar superando os desafios impostos ao longo do tratamento
em busca da cura do câncer:
Eu reclamava muito mais de dor. Mas, hoje me sinto bem, porque de qualquer maneira é para
o meu bem, como tomar remédios e fazer tudo certinho. E se eu estou aqui é para o meu bem
e para continuar a viver. Mesmo com todas as cirurgias, olha aqui minha cabeça como está. Eu
luto para não deixar essa doença me vencer. Nesse momento estou triste e só estou pensando
em tomar plaquetas e passar o Natal em casa. Nada para Deus é impossível.
Considerando os relatos, as crianças buscam no hospital cuidados necessários
para minimizar a dor e encontrar a cura. Na perspectiva de recuperar a saúde,
as crianças enfrentam os efeitos agressivos do tratamento, dentre esses efeitos,
observamos que elas se sentem enjoadas e enfraquecidas, rejeitam a alimentação,
permanecendo a maior parte do tempo nos leitos, em silêncio. Além disso, elas
emagrecem, incham, perdem os cabelos e a alegria, sentem medo e dor. Por vez, as
reações causadas pelos efeitos colaterais do tratamento e pela doença em si podem
provocar risco iminente à vida ou deixar sequelas irreversíveis.
Eu pensava que ia melhorar logo . Fiquei muito tempo aqui internado. Depois voltei para casa,
mas ficou tudo difícil. Quando a gente esquecia alguma coisa na casa de minha avó [interrom-
pe a fala e demostra tristeza], eu ia com minha mãe buscar. Agora, tenho que ficar sozinho
em casa. Eu fico com medo enrolado na coberta [...]. Eu não ando mais, aí não posso sair. Só
saio para vim para o hospital, mas é de carro, de ambulância que vem me pegar. Aí eu fico lá
e cá. Interno e depois volto. Eu estou chateado, triste, sei lá. Você sabe o que aconteceu, não
é? Naquele dia que bati a mão na bandeja dos medicamentos que a enfermeira ia me dar, não
queria falar com a psicóloga, nem com ninguém (Diego).
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Embora volte para casa após as constantes hospitalizações, Diego já não pode
viver as aventuras de outrora. Em decorrência do agravo da doença, perdeu os mo-
vimentos dos membros inferiores. Inconformado, começou a rejeitar a alimentação,
os procedimentos e atendimentos dos profissionais de saúde. De acordo com Go-
mes, Amador e Collet (2012), embora com os avanços da tecnologia e da ciência, o
diagnóstico do câncer está associado à ideia de uma situação irreversível, trazendo
ao longo do tempo o estigma de sentença de morte.
A partir do diagnóstico de câncer, as crianças lidam constantemente com a
experiência de perda na oncologia. Elas são envolvidas por medo e incertezas da
situação vivenciada, como afirmam Matos e Mugiatti (2014), pois, apesar dos avan-
ços e inovações no campo da medicina, o adoecimento ainda implica uma experiên-
cia dolorosa vivenciada nos hospitais, diante da possibilidade da morte. Nesses
termos, Rolim (2008, p. 18) esclarece que uma doença como o câncer “[...] traz em si
um provável risco de morte, o estar doente provoca a consciência dolorosa da inse-
gurança e da certeza da finitude da vida”. Em colaboração, Souza e Lima (2007, p.
162) entendem a doença como uma ameaça à vida e ao bem-estar, constantemente,
não sendo nada fácil conviver com ela, tão pouco aceitá-la.
Enquanto prática institucionalizada, evidenciamos o trabalho do pedagogo na
relação da criança com a equipe de saúde, considerando o destaque dado por Matos
e Mugiatti (2014) e Gomes, Amador e Collet (2012), em torno da importância de a
equipe multidisciplinar atuar coletivamente para o atendimento integral à criança,
no intento de tornar menos doloroso o momento do diagnóstico e a hospitalização.
Dentro de seu campo de atuação, a pedagogia hospitalar tem a intenção de
modificar tais situações, que não se confundem com o atendimento à doença. A
finalidade da prática pedagógica no ambiente hospitalar é própria do profissional
de educação, o pedagogo tem sua própria autonomia, de modo que não se opõe nem
se confunde com a medicina ou os demais profissionais de saúde (MATOS; MUGIA-
TTI, 2014). Na perspectiva de contribuir com o processo de recuperação da saúde
da criança, a prática pedagógica se integra ao trabalho da equipe multidisciplinar
do contexto em estudo como um apoio na relação da criança com os demais profis-
sionais da saúde.
A criança em torno da prática pedagógica
Apesar de o ambiente hospitalar ser compreendido como um lugar estranho,
na brinquedoteca as crianças encontram elementos que as aproximam das ativida-
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des cotidianas antes da descoberta da doença, como apontado por Cinderela: “Eu
gosto de ficar na brinquedoteca com a pedagoga porque ela conta história. Não têm
agulhadas, aí eu fico contente”. A esse respeito, Layla destaca que “[...] a pedagoga
traz coisas boas: conta história, dá massinha e pede para desenhar”. Logo, Ariel
acrescenta que: “Gosto quando estou com a pedagoga na brinquedoteca porque dá
para fazer coisas incríveis. Quando ela conta história [riso] eu me divirto. Eu gosto
muito, eu não fico tão sozinha [...]”.
Quando as crianças chegam ao hospital, são envolvidas por sentimentos de
angústia e medo, sofrem intervenções dolorosas, além de terem uma rotina to-
talmente alterada. Por entender o momento vivido pelas crianças, o profissional
pedagogo busca interagir com elas, a partir de “[...] pequenos gestos, como chamar
pelo nome, conversar sobre a doença, recuperação, conversas sobre a família, sua
escola ou de algum outro assunto de seu interesse” (BOTELHO, 2007, p. 119), sem
perder de vista a intencionalidade da prática pedagógica.
Os relatos destacam o conforto de participar da prática pedagógica na brin-
quedoteca, sendo uma oportunidade de pensar em algo que não sejam a doença e o
diagnóstico, como explicitado pelos entrevistados:
Eu me divirto aqui na brinquedoteca. E, é bem, legal! Aí eu brinco com minha mãe e com a
professora, eu fico imaginando que eu estou na escola estudando. Na escola a professora
conta história para mim. Gosto quando vou com a professora [tossindo muito] aqui ela conta
história, ensina fazer dever e dá desenho para pintar (Bela).
Gosto de brincar na brinquedoteca com a pedagoga que é tipo uma professora. E gosto de
ouvir história, porque é bom, as professoras alegram a gente. Ela lê história, ajuda a gente con-
versando, alegrando, brincando e ensinando o dever. Ajuda a fazer prova, faz tudo (Abraão).
Os entrevistados atribuem à brinquedoteca o sentido de um lugar de encontro
com a pedagoga e com outras crianças no centro de oncologia. Nesse ambiente,
as crianças se imaginam na escola, embora estando no hospital. A pedagoga é a
professora, ela não traz injeção, diagnóstico e medicamentos, mas, sim, a prática
pedagógica envolvendo o lúdico, proporciona o sorriso, a brincadeira, a contação
de histórias e a possibilidade de conversar com o outro. Assim como indicado por
Matos e Mugiatti (2014) e Fontes (2005), a prática pedagógica não isola o hospita-
lizado à condição de doente, por entender a necessidade de mantê-lo integrado às
atividades que faziam parte do seu cotidiano.
Quando estão na brinquedoteca, participando da prática pedagógica, as crian-
ças têm a sensação de estar na escola, com possibilidade de brincar, conversar,
aprender e se divertir. Assim, a brinquedoteca é o lugar da prática pedagógica, de
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alegria, de brincar, jogar, desenhar, pintar, fazer atividades da escola, ouvir histó-
rias, enfim, de sorrir e se sentir bem.
Cabe ressaltar, a partir da compreensão das crianças, o quanto a prática peda-
gógica na brinquedoteca é importante, pelo fato de tirá-las do isolamento e fazê-las
sorrir, sentir alegria. Ceccim (1997) e Botelho (2007) afirmam que os encontros nos
afetam, tanto pelos momentos de alegria como pelos de tristeza. Nesse sentido,
Botelho (2007) entende que a tristeza pode entravar, bloquear ou empobrecer nossa
vida, enquanto a alegria tem a capacidade de expandir-se, ampliar nossa forma de
olhar a situação vivida, apontando diferentes caminhos.
A melhor coisa era brincar na brinquedoteca com a pedagoga, porque eu tenho uma compa-
nhia. Assim, um distribui emoção para o outro, sentimentos, força para continuar lutando. Lê
historinha, ajuda a fazer as provas da escola e brinca (Amora).
Gosto de jogar Playstation e de pintar aqui na brinquedoteca com a pedagoga, porque a gente,
sozinho, não tem com quem a gente falar. Aí a gente não fica sozinho. Quando ela vem para
cá, conversa, conta história e outras coisas mais (Diego).
Analisando esses dados, compreendemos que, para os entrevistados, a brin-
quedoteca faz sentido com a presença da pedagoga que, em sua prática, faz coisas
incríveis, arranca sorrisos no momento de dor, medo e tristeza e ajuda a criança a
enfrentar a situação vivenciada. No estudo de Silva et al. (2016, p. 53), as crian-
ças compreendem o hospital como um lugar de tristeza, e, por vezes, na busca
de um ambiente menos agressivo, “[...] a brinquedoteca, conhecida por escolinha,
é reconhecida pelas crianças como um lugar agradável”, no qual elas participam
da prática pedagógica, com atividades lúdicas, tendo a oportunidade de brincar,
divertir-se e aprender.
Por meio da prática pedagógica, as crianças trazem a compreensão da brin-
quedoteca como um lugar mágico dentro do centro de oncologia. Trata-se de um
lugar em que se despontam sorrisos! As falas das crianças definem a brinquedoteca
como um lugar de alegria, de realizar atividades escolares (“dever” e provas), ler
um livro, jogar, desenhar, pintar, ouvir histórias, com possibilidade de transportá-
-las para um mundo imaginário, de pensar em outra coisa que não seja a doença,
encontrar-se com outras crianças e com a pedagoga, brincar um pouco, fazer o que
se gosta, conversar, falar de si e sorrir ao menos por um momento.
O profissional de educação não pode perder de vista que a criança hospitali-
zada é seu referencial dentro do hospital. Nessa perspectiva, a prática pedagógica
desenvolvida na perspectiva do enfoque educativo sugere flexibilidade e adapta-
bilidade, a fim de atender às peculiaridades da criança hospitalizada. Segundo
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Matos e Mugiatti (2014) e Silva e Andrade (2013), o pedagogo necessita estar apto
às mudanças ao lidar com a criança em idade escolar acometida por doença, de
modo que a prática pedagógica não esteja voltada apenas para a escolaridade, mas
considere outros aspectos decorrentes do afastamento do cotidiano.
No contexto em estudo, a vertente de escolarização, por meio do acompanha-
mento das atividades escolares, é valorizada pelas crianças, por seus acompanhan-
tes e pelos profissionais da oncologia – coordenadora, médicos, assistente social e
enfermeiros –, que solicitam com frequência a mediação da pedagoga junto à crian-
ça por entenderem que a doença e as necessárias hospitalizações causam atrasos
na escolarização. Cabe reforçar que, diante dos achados, existe a necessidade de
implantação de uma classe hospitalar nesse contexto, no intuito de realizar um
atendimento pedagógico mais pontual às crianças.
Além dessa perspectiva do acompanhamento escolar, a prática pedagógica
contempla mais enfaticamente a vertente do lúdico:
Na brinquedoteca a pedagoga faz atividade. Eu gosto muito de jogar Playstation e outra ativi-
dade que eu gostei de fazer foi a brincadeira de bingo. Eu e minha mãe ganhamos um monte
de brindes. Aí uma menina não ganhou e eu dei um para ela. Eu penso assim, está todo mundo
aqui junto brincando, não é? Outra atividade legal é o dia que vem pintar. É bom, quando conta
história, manda ilustrar, desenhar e pintar (Naruto).
De acordo com o relato supracitado, na prática pedagógica na perspectiva do
lúdico, com jogos como Playstation e bingo, contação de histórias, produção de de-
senhos e pinturas, têm-se atividades que motivam a saída do leito e a participação
na brinquedoteca: “[...] por trazer um momento de prazer de vida, seja por permitir
não pensar na doença, fazer uma pausa ainda que curta, aliviando o constante
estresse em que vive” (ROLIM, 2008, p. 70).
No entendimento de Naruto, nesses momentos de brincar, jogar, ouvir histó-
rias, ele tem oportunidade de compartilhar experiências e objetos materiais, por
entender que estão todos juntos no enfrentamento do câncer. Nesse sentido, para
as crianças, a prática pedagógica ajuda a esquecer, ao menos por um momento, a
vivência dolorosa enfrentada após a descoberta da doença. Para Silva e Andrade
(2013, p. 65), a prática pedagógica auxilia na recuperação da saúde, pois “[...] o ato
de brincar e aprender são capazes de espantar a tristeza, dando lugar à invenção
através da imaginação criadora. Tais práticas promovem, ainda, entretenimento,
informação, aprendizado e o desejo de continuar a viver”.
Dessa forma, com base no enfoque educativo, uma prática lúdica cria condi-
ções para as crianças participarem e interagirem no hospital, com possibilidade de
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mudar a forma como elas olham para esse ambiente. Como indicado também por
Matos e Mugiatti (2014), a prática envolvendo o lúdico ajuda a criança a entender
e a colaborar melhor com o tratamento, à medida que percebe o hospital como um
lugar agradável.
Segundo a compreensão das crianças, a prática pedagógica traz um pouco do
que viviam antes, para dentro do ambiente hospitalar, sobretudo quando a pedago-
ga vem com a história, com a relação com o mundo imaginário. Para elas, em torno
do diagnóstico e da prática pedagógica, perpassam um dentro e um fora, que são
imaginários, trata-se do momento em que a criança está no hospital, mas se sente
fora dele. Sob esse aspecto, apesar de perceber seu espaço aparentemente pequeno
no ambiente hospitalar, a pedagoga tem um espaço imenso no universo da criança
do centro de oncologia.
Considerações nais
A prática pedagógica no ambiente hospitalar consiste em uma forma signi-
ficativa e precisa de acolhimento e atendimento ao escolar hospitalizado. Nesse
contexto, o pedagogo, enquanto profissional da educação, insere-se e atua junto
com profissionais de saúde, trazendo os conhecimentos e modos de fazer da área de
educação como uma expressão de direito educacional e processo de humanização
e cuidado à criança em questão. Com efeito, consideramos a contação de histórias
como prática pedagógica possível de desenvolver no ambiente hospitalar junto às
crianças em situação de adoecimento e hospitalização, sem perder de vista a aten-
ção às especificidades reveladas pela situação clínica da criança.
Percebemos que a compreensão das crianças sobre as experiências vivencia-
das no ambiente hospitalar está relacionada aos sentidos atribuídos aos ambientes
escolar e hospitalar, que trazem as marcas do processo de adoecimento, dos novos
modos de vida assumidos nas relações sociais constituídas. No que diz respeito à
escola, as crianças atribuem uma multiplicidade de sentidos ao compreenderem
como lugar de estudar, brincar, encontrar com a professora e os colegas, para con-
versar, fazer “dever” e atividades, viver aventuras, etc. No que tange ao hospital,
foi evidenciada, nas falas das crianças, uma dicotomia entre lugar de dor e de cura.
Mediante as análises, o diagnóstico e o tratamento oncológico deixam marcas
na vida da criança, não as marcas de um tombo ou aranhão brincando na esco-
la, que causam dor, mas algo diferente. Para as crianças, as marcas ocasionadas
pelo tratamento imprimem sofrimento, saudades, tristeza, cansaço, manchas na
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pele, cicatrizes de cirurgia, dor, perdas, além dos medos, sobretudo o de morrer.
As experiências de privação, frustação e dor, acompanhadas pelas perdas, como o
afastamento das relações de convívio e as referentes aos aspectos físicos (perdas do
cabelo e dos movimentos), tornam a criança fragilizada e paciente em meio ao que
está ocorrendo na sua vida.
As análises mostram que, quando se acentuam os efeitos do tratamento ou se
agrava a doença, o que antes a criança realizava de forma natural, como falar, es-
crever, desenhar, diante de tal situação, requer um esforço excessivo. Percebemos
nas crianças a vontade de participar das atividades propostas. Com vistas a supe-
rar limitações e dificuldades, com persistência, pediam ajuda quando precisavam,
demostrando o quanto a prática pedagógica fazia sentido naquele momento.
Por meio dos relatos de experiências, a brinquedoteca faz uma ligação entre
os sentidos atribuídos à escola e ao ambiente hospitalar. As crianças percebem o
contexto da brinquedoteca hospitalar como um lugar mágico, de encontro, alegria,
brincadeira, aprendizagem e fantasia, com a presença da pedagoga e da prática pe-
dagógica, em especial da contação de histórias, que se expressa com toda a potência
conforme possibilita viver além do que a doença estabelece.
Assim, é imprescindível pensar no desafio posto ao pedagogo em assumir o
compromisso de tornar-se parte desse processo de atendimento em hospitais, tendo
em vista a necessidade da devida abertura desse espaço ao profissional de educação
em busca de novas soluções dos dilemas enfrentados pelas crianças enfermas, das
tensões colocadas em torno desse espaço laborativo do pedagogo, ainda pouco conhe-
cido pela sociedade, dos aspectos legais que legitimam a pedagogia hospitalar e das
possibilidades de atuação desse profissional, no que concerne ao desenvolvimento de
práticas pedagógicas, ao desenvolvimento e ao acolhimento de crianças com câncer.
Nota
1 Todos os nomes apresentados neste artigo são fictícios, escolhidos pelas próprias crianças que participa-
ram deste estudo, para serem identificadas na pesquisa.
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