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*
Doutora e mestra em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal
de Juiz de Fora (PPGCSO/UFJF). Orcid: http://orcid.org/0000-0002-8281-4491. E-mail: vadecastro@hotmail.com
**
Professor Associado do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal
de Juiz de Fora (UFJF). Bolsista de Produtividade CNPq. Orcid: http://orcid.org/0000-0001-7892-4017. E-mail: ftavares@
caed.uf.br
Recebido em: 22/07/2020 – Aprovado em: 15/04/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i1.11366
Percursos escolares exitosos entre alunos de camadas populares:
socialização familiar e trajetórias sociais
Successful school paths among students from lower class:
family socialization and social trajectories
Recorridos escolares exitosos entre estudiantes de estratos populares:
socialización familiar y trayectorias sociales
Vanessa Gomes de Castro
*
Fernando Tavares Júnior
**
Resumo
Investigam-se processos de socialização primária e secundária associados a percursos escolares exitosos entre
alunos provenientes de camadas populares. Analisam-se casos bem-sucedidos entre a geração escolar que in-
gressou no primeiro ano do ensino fundamental em 2006, em uma escola municipal no interior de Minas Gerais,
sendo a primeira coorte submetida às leis de ampliação da duração do ensino fundamental para nove anos,
com ingresso aos 6 anos de idade. Para aprofundar a análise, foram pesquisadas as histórias de vida de três alu-
nos aprovados continuamente até a conclusão do ensino médio em 2017, representando exceções em meio a
uma geração majoritariamente afetada por reprovações e evasões ao longo de seus percursos. Observou-se que
processos de socialização primária (familiar) e secundária (extrafamiliar) podem se apresentar como elementos
favoráveis, que se mostram associados a percursos escolares exitosos, corroborando a relevância de atitudes
especícas dos adultos sobre as trajetórias sociais das gerações mais novas.
Palavras-chave: educação; socialização; percursos escolares; trajetórias sociais; sucesso escolar.
Abstract
This paper investigates primary and secondary socialization processes associated with successful school paths
among students from lower classes. Successful cases are analyzed among the generation that entered the rst
year of basic school in 2006 in a municipal school in Minas Gerais, the rst group submitted to the laws that
extended basic school from 8 to 9 years, entering at the age of 6. To deepen the analysis, the life stories of three
students continuously approved until the graduation from high school in 2017 was researched, representing
exceptions in the middle of a generation mostly aected by reprobation and evasion throughout their path. It
was noted that the processes of primary (family) and secondary socialization (school and “neighborhood”) may
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be favorable elements associated with successful school paths, stressing the relevance of adults specic actions
over the trajectories of younger generations.
Keywords: education; socialization; school trajectories; school success.
Resumen
Son investigados procesos de socialización primaria y secundária asociados a trayectorias escolar exitosas entre
estudiantes provenientes de estratos populares. Son analisados casos exitosos entre la generación que entró al
primer año de la educación basica em 2006, em una escuela del interior de Minas Gerais, el primer grupo sujeto
a las leyes de extensión de la educación basica para nueve años, com ingreso a los 6. Para profundizar el análisis,
fueron investigados las historias de vida de tres estudiantes continuamente aprobados hasta la conclusión de
sus estudios en 2017, representando excepciones a uns generación mayoritariamente marcada por evasión y
reprobación al largo de sus trayectorias. Se observó que los procesos de socialización primaria (família) y secun-
daria (escuela y “barrio”) pueden presentarse como elementos favorables, que se mustran asociados a trayecto-
rias escolares exitosas, corroborando la relevancia de actitudes especicas de los adultos sobre las trayectorias
sociales de generaciones más nuevas.
Palabras-llave: educación; socialización; recorridos escolares; trayectorias sociales; éxito escolar.
Introdução
O debate relativo à equalização de oportunidades educacionais tem recebi-
do atenção de pesquisas inspiradas na Teoria do Capital Humano e em diversas
abordagens da Sociologia da Educação desde a década de 1960, fomentando amplo
debate em torno dos efeitos potenciais da expansão educacional. Nesse sentido, a
Sociologia da Educação tem evidenciado que as oportunidades educacionais são
bens sociais escassos, distribuídos desigualmente na sociedade, entre as classes
sociais, os grupos e os indivíduos, conforme apontado por Bourdieu e Passeron
(1970), Jencks et al. (1972), Boudon (1973, 1977), Hirsch (1976), Bourdieu (1979)
e outros.
No Brasil, uma sociedade com passado colonial e escravocrata, os processos
de “modernização” se iniciaram de fato apenas nos anos 1930, momento em que a
educação gratuita, obrigatória e laica entrou na agenda de políticas públicas na-
cionais, vindo a se efetivar como um direito social somente na segunda metade do
século XX, quase um século depois de vários países industrializados. Na Constitui-
ção Federal de 1988 e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996,
o direito à educação gratuita e de qualidade foi ratificado, sinalizando o processo
de democratização das oportunidades educacionais e redesenhando a estrutura e
funcionamento dos sistemas de ensino. Não obstante, o processo de Reforma Edu-
cacional continuou em marcha, com a aprovação de uma série de mudanças nos
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anos seguintes. Diversas políticas públicas e legislações educacionais, sobretudo
nos últimos anos do século XX e início do século XXI, aprofundaram as tendências
de reforma educacional, no sentido de democratizar ainda mais o acesso, ampliar a
permanência e retomar os esforços para elevar a qualidade do ensino como expres-
sões do direito à educação e equalização das oportunidades educacionais e sociais.
No entanto, apesar das medidas oficiais, constata-se que muito ainda precisa ser
feito em termos de qualidade e equidade, tendo em vista, principalmente, os grupos
em contexto social e econômico desfavorecido.
Nesse sentido, as principais iniciativas voltam-se para a promoção da aprendi-
zagem e a elevação da aprovação. Com a democratização do acesso, tanto os indica-
dores de proficiência (desempenho), quanto os relativos à aprovação (rendimento),
passaram a ser evidenciados e questionados. Desde o final dos anos 1980, diver-
sas pesquisas, como aquelas desenvolvidas por Fletcher e Ribeiro (1987), Ribeiro
(1991), Klein e Ribeiro (1995), apontam o grave problema da repetência massiva ao
longo da educação básica, enquanto mecanismo que reforça a distribuição desigual
da educação na sociedade, sendo um dos principais problemas do sistema de ensino
do país.
Diante disso, o presente trabalho tem como objetivo investigar trajetórias
educacionais e processos de socialização adjacentes entre alunos provenientes das
camadas populares, os quais participaram da primeira coorte de estudantes sub-
metida às leis que anteciparam a idade de ingresso no ensino fundamental para
6 anos de idade e ampliaram essa etapa da educação básica de 8 para 9 anos, res-
pectivamente Leis nº 11.114/2005 e nº 11.274/2006, no escopo das Reformas Educa-
cionais supracitadas. Esses alunos ingressaram no 1º ano do ensino fundamental
em 2006 e deveriam concluir o 3º ano do ensino médio em 2017. Realizaram-se
assim, três estudos de caso com alunos que foram aprovados em todas as etapas,
concluindo a escolarização básica na idade adequada, constando como exceções à
sua coorte, cuja maioria sofreu retenções, interrupções, evasões e reprovações ao
longo de suas trajetórias educacionais.
É importante frisar que um dos focos principais das Leis nº 11.114/2005 e nº
11.274/2006 é a inclusão social, cujos maiores beneficiados são as crianças oriundas
das classes populares, ou seja, aquelas que se encontram em contexto social e eco-
nômico desfavorável. De modo geral, essas legislações educacionais implantadas
no Brasil a partir de 2006 constituem um esforço legítimo para ampliar as opor-
tunidades a mais crianças, a partir do direito de frequentar mais cedo uma escola
pública, gratuita e de qualidade (BRASIL, 2005; BRASIL, 2006; SAVELI, 2008).
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De outro lado, é conhecido que os problemas do ensino fundamental se refle-
tem no ensino médio. Nesse sentido, o ensino médio já passou por sucessivas refor-
mas, muitas das quais não lograram tanto êxito, em grande parte em função dos
desafios herdados dos níveis anteriores. Para alunos oriundos de segmentos sociais
médios e altos, cursar o ensino médio com caráter propedêutico tornou-se natural,
visto que o diploma superior faz parte de sua estrutura de capitais culturais e
simbólicos, tanto em função do caráter reprodutivo (BOURDIEU, 1979), quanto do
consumo defensivo (HIRSCH, 1976). Para esses jovens, há uma motivação intrín-
seca às recompensas e à própria trajetória de seu grupo social de referência, bem
como um amplo aparato de apoio (familiar, escolar, etc.) à sua trajetória educacio-
nal (CASTRO; TAVARES JR., 2016).
A questão central recai, portanto, sobre os jovens oriundos de camadas sociais
mais pobres, para os quais o ensino médio não faz parte de seu capital cultural e
sua experiência familiar. Não há grandes expectativas nem investimentos especí-
ficos relativos à continuidade aos estudos. Para esses jovens, a realização dos obje-
tivos modernos e democráticos da educação é limitada pelos empecilhos impostos
por suas origens sociais, aliados às desigualdades de oportunidades. Isso se reflete
no rendimento nesta etapa. Embora o número de alunos matriculados no ensino
médio tenha aumentado significativamente nos últimos anos, menos de 60% dos
jovens conseguem terminar essa etapa, sobretudo no tempo e idade adequados,
sem reprovação ou evasão (CASTRO; TAVARES JR., 2016).
Frente a esse quadro, torna-se importante compreender os sentidos que os
jovens das camadas populares atribuem à sua escolarização, considerando tanto
a classe social e o background familiar, quanto as experiências, singularidades,
temporalidades e biografias, no contexto da socialização familiar e interação social.
Dayrell e Jesus (2016), ao investigarem processos de exclusão escolar entre jovens
adolescentes de 15 a 17 anos, cursando o ensino médio no Brasil, através de grupos
focais e entrevistas, defendem que, para compreender as trajetórias escolares e
os múltiplos fatores que vêm gerando a exclusão dos jovens é fundamental situá-
-los como sujeitos socioculturais. Isso implica compreendê-los enquanto indivíduos
que possuem uma historicidade, visões de mundo, escalas de valores, sentimentos,
emoções, desejos, projetos, lógicas de comportamentos e hábitos que lhes são pró-
prios, apesar da macroestrutura apontar, a princípio, um leque mais ou menos
definido de opções em relação a um destino social, bem como as experiências que
cada um dos jovens adolescentes terá acesso (DAYRELL; JESUS, 2016).
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Diante dos múltiplos fatores que incidem sobre a produção social de trajetó-
rias escolares, as pesquisas em Sociologia da Educação, desde os anos 1960, têm
apontado as correlações entre origem social e a realização educacional. Dentre al-
guns estudos que alcançaram maior notoriedade internacional está a Reprodução,
de Bourdieu e Passeron (1970) e a Distinção, de Bourdieu (1979), que apontam
as diferenças culturais como decisivas para reprodução das estruturas de capitais
– incluindo escolares. Além das análises baseadas na escolha racional, que relacio-
nam as desigualdades educacionais à posição social e aos campos decisórios, inspi-
radas nos trabalhos de Boudon (1973, 1977). Contemporaneamente, acrescentam-
-se os trabalhos dedicados às diferenças na socialização e interação familiar, bem
como as pesquisas de Lahire (1997) e Lareau (2007). Evidenciando-se, também, as
pesquisas sobre as representações e atitudes de professores, gestores escolares e
famílias acerca das probabilidades de sucesso ou fracasso escolar dos indivíduos,
sistematizadas por meta-análises como as de Hattie (2009, 2012), entre outras.
Visando contribuir com os conhecimentos científicos sobre a produção social
da educação e suas desigualdades, esse trabalho investiga processos de socializa-
ção adjacentes a trajetórias escolares exitosas, isto é, cujos sujeitos concluíram a
educação básica sem defasagem, apesar dos contextos sociais desfavoráveis. Posto
isso, importa destacar que o objetivo do presente trabalho é tomar os conceitos de
socialização e interação social para compreender processos associados às trajetó-
rias escolares bem-sucedidas entre indivíduos das camadas populares. Todavia, os
processos de socialização e interação social vão muito além das práticas evidencia-
das por essa pesquisa.
Processos de socialização e trajetórias escolares
Os processos de socialização e interação social têm sido amplamente eviden-
ciados pela Sociologia, desde o seu surgimento ao final do século XIX até os dias
de hoje. Durkheim (1987), considerado um dos fundadores desta ciência moderna,
se preocupou, dentre outras questões, com os processos de socialização primária
e secundária das novas gerações. Nesse sentido, a educação escolar, no âmbito da
socialização secundária ou extrafamiliar, teria como função o preparo sistemático
das crianças e dos jovens, visando a sua integração ao grupo, a coesão social, a
divisão do trabalho, a solidariedade e o bom funcionamento da sociedade. Weber
(1992), por sua vez, voltou-se ao estudo da ação social, representada pela interação
recíproca entre duas ou mais pessoas, em que o sentido está relacionado ao com-
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portamento do outro, tendo como base os significados socialmente compartilhados
(racionalidades, valores, emoções e tradições). Na ação social, a educação é um
instrumento de poder, estando relacionada à classe social e ao status.
Simmel (2006), outro importante autor da Sociologia, percebe a sociedade como
resultante das múltiplas formas de interação, orientadas por padrões culturais e
valores sociais dominantes. A interação entre sujeitos é considerada uma forma de
sociação, constituída pelas motivações, interesses e objetivos dos indivíduos. Para
Elias (1994), a sociedade está baseada em redes de interdependência entre os indi-
víduos, com complexas configurações. Desde a mais tenra idade, os indivíduos são
socializados nessas redes, por exemplo, através das formas de educação. Goffman
(2011) também contribuiu com a compreensão da interação social, em que os ato-
res, situados no tempo e espaço, se encontram face a face em situações sociais, se
relacionando, se comunicando, agindo conforme as regras apreendidas através dos
processos de socialização. Na Psicologia Social, Mead (1972) evidenciou a relação
entre o indivíduo e a sociedade, a interação social e a constituição do self, através
de processos comunicativos embasados em identidades, aprendizagens familiares,
religiosas, educacionais e outros processos de socialização.
Na Sociologia da Educação, as investigações sobre os processos de socialização
e interação social, principalmente relacionados às práticas e às estratégias fami-
liares por trás das trajetórias escolares dos indivíduos, recebem histórica atenção.
As investigações sobre as desigualdades perante o ensino deixaram de se caracteri-
zar, exclusivamente, por abordagens macrossociológicas, e passaram a aprofundar
processos microssociológicos inerentes à família e à vida escolar. São pesquisadas
desde as estratégias educacionais das famílias e dos indivíduos para alcançar o
sucesso escolar da prole, até a fenomenologia e a etnometodologia envolvendo o
cotidiano da família, da escola e da sala de aula (FORQUIN, 1995; NOGUEIRA;
FORTES, 2004).
Nessa direção, Lareau (2007) investigou nos Estados Unidos, nos anos 1990,
através de etnografia, como a interação familiar poderia oferecer aos membros do
grupo recursos materiais e simbólicos voltados à sua formação escolar. Observou
um grupo de famílias de classe média, negras e brancas, identificando, entre es-
sas, estratégias mais visíveis de racionalização da formação escolar dos filhos, por
exemplo, através de atividades extraescolares, o uso adequado da linguagem, pouco
envolvimento com a família estendida. Já entre as famílias da classe trabalhado-
ra, negras e brancas, no que tange a interação com os filhos e sua formação escolar,
a autora identificou a seguinte estratégia: com amor, comida, apoio, segurança os
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filhos terão trajetórias escolares e sociais bem-sucedidas. Nesses casos, existiam
poucas atividades organizadas, bastante ênfase nos talentos especiais dos filhos e
ligações mais ricas e profundas com suas famílias estendidas. Lareau (2007) con-
clui que os pais que compartilham a mesma classe social, também compartilham
maneiras semelhantes de lidar com a trajetória escolar dos filhos, independe da
cor, observando, assim, semelhanças nos processos de socialização.
Lahire (1997) investigou na França, nos anos 1990, através de estudos de
caso, o sucesso escolar “improvável” nos meios populares, buscando analisar pro-
cessos de socialização familiar por trás dos jovens que tiveram o percurso escolar
longínquo, rumo a cursos universitários prestigiados, indo além do esperado, dado
seu baixo background familiar e social. Lahire (1997) identificou e descreveu as
configurações familiares, a cultura da escrita, as condições econômicas, as formas
de autoridade familiar e de investimento pedagógico. Concluiu que somente a exis-
tência objetiva de capital cultural no seio de uma família não diz nada sobre as re-
lações sociais, a frequência das relações sociais e as maneiras através das quais se
transmite (ou não) o capital cultural. A experiência de vida dos indivíduos não po-
deria ser deduzida do seu pertencimento a uma única coletividade ou classe social,
tornando-se necessário considerar os processos de socialização e interação social.
No Brasil, Nogueira (1998, 2005, 2006, 2010) tem investigado a lógica que
regula as estratégias das famílias no que tange à escolarização dos filhos, sejam
as famílias das camadas populares ou mesmo as estratégias das elites. Segundo
Nogueira (2005), as estratégias das famílias buscam manter ou melhorar a po-
sição social do grupo familiar. Estariam relacionadas ao senso prático, sendo as
prováveis respostas dadas pelos indivíduos e grupos segundo as suas disposições e
predisposições adquiridas em seu meio social de origem. Portanto, relaciona-se ao
habitus de classe, à posse de capitais materiais e simbólicos, sob a égide do clássico
argumento bourdiesiano.
Nesse sentido, Viana (1998) analisou ao longo dos anos 1990 o sucesso escolar
“inesperado” ou “estatisticamente improvável” nas camadas populares. O principal
indicador de sucesso utilizado foi o acesso ao curso superior. Buscou compreender o
que tornou possível uma escolarização prolongada de indivíduos cuja probabilida-
de de chegar à universidade é estatisticamente reduzida. Investigou universitários
oriundos de famílias com dificuldades econômicas e baixo nível de escolaridade.
Concluiu que famílias populares participam da construção do sucesso escolar dos
filhos, de modo diferenciado, ainda que nem sempre voltado explícita e objetiva-
mente para tal fim, ressaltando as diferenciações nos processos de socialização.
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Zago (2000) também examinou aspectos da socialização familiar, sobretudo o
envolvimento dos pais, especialmente das mães, nas trajetórias escolares dos filhos,
nos meios populares. Sua pesquisa foi realizada entre os anos de 1991 e 1993. Em
suas conclusões, aponta que a mobilização das famílias para que os filhos tenham
uma trajetória escolar bem-sucedida não é o único determinante dos seus destinos
escolares, embora possa desempenhar um papel importante e mesmo fundamental
na carreira escolar do filho. A mobilização das famílias não é condição suficiente
para garantir sua permanência na escola e reduzir as desigualdades escolares.
Outros autores, como Portes (2001), Piotto (2008) e Lacerda (2014), também
investigaram processos de socialização e mobilização familiar nos meios populares,
em direção à trajetória educacional dos filhos, chegando a resultados congruentes.
Além desses, destacam-se trabalhos recentes, como aqueles que constam nos livros
organizados por Romanelli, Nogueira e Zago (2013) e Piotto (2014), que demons-
tram as variações dos padrões atitudinais de pais e filhos conforme a classe social,
o nível de instrução, o tipo de família, a divisão de papéis educativos entre pai e
mãe, as relações sociais e afetivas no cotidiano da família, dentre outros aspectos
em direção à realização escolar.
No presente trabalho, os processos de “socialização” representam as relações
construídas face a face no contexto doméstico e extradoméstico. “Trajetórias escola
-
res” se referem aos percursos dos indivíduos através do sistema de ensino, tanto du-
rante o interstício de escolaridade compulsória, isto é, entre o 1º e o 9º ano do ensino
fundamental, bem como o 1º ao 3º ano do ensino médio. Considera-se bem-sucedida
a trajetória ininterrupta, sem reprovação ou evasão escolar, que não gera defasa
-
gem idade-série e eleva as probabilidades de continuidade dos estudos. O perfil
investigado volta-se para alunos que percorreram a educação básica em escolas pú
-
blicas de redes municipais e estaduais. As “camadas populares” são representadas
por grupos sociais cujas circunstâncias gerais de inserção social apresentam limites
ao acesso a melhores condições de escolarização/socialização, como origem familiar
com baixo nível socioeconômico e baixa escolaridade. A literatura sociológica nos en
-
sina que a origem socioeconômica do aluno pode facilitar ou dificultar sua trajetória
escolar. Fatores como as características individuais, o background familiar, a socia
-
lização, a interação social, a estrutura de oportunidades educacionais e a legislação,
interferem nos destinos escolares dos indivíduos e grupos, assim como na produção
e reprodução social das desigualdades perante o ensino.
Exposto esse quadro teórico e conceitual, o presente trabalho teve por objetivo
investigar os processos de socialização associados a trajetórias escolares de alu-
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nos, oriundos de famílias das camadas populares, que obtiveram sucesso escolar
na educação básica. Essas trajetórias participaram da primeira coorte de alunos
matriculados em uma determinada escola pública da rede municipal, totalmente
submetida às leis que instituíram a matrícula obrigatória no 1º ano do ensino fun-
damental aos 06 anos de idade e a ampliação desta etapa para 09 anos. Logo, esses
alunos ingressaram no 1º ano do ensino fundamental em 2006 e deveriam concluir
essa etapa em 2014, ingressando no 1° ano do ensino médio em 2015, concluindo
este nível da educação básica em 2017. Realizaram-se estudos de caso com três
alunos que não foram reprovados ou evadidos ao longo do percurso, concluindo a
escolarização básica na idade adequada, com sucesso.
O local e os sujeitos da pesquisa
O início das trajetórias escolares, isto é, seu ingresso no 1º ano do ensino fun-
damental, foi pesquisado em uma escola pública da rede municipal de uma cidade
de porte médio no interior de Minas Gerais. Tal escola possui similitudes com boa
parte das escolas urbanas das periferias brasileiras. Seu Índice de Desenvolvimen-
to da Educação Básica (Ideb) variou entre 4.4 (menor índice) e 6.0 (maior índice),
entre 2005 e 2015, nos anos iniciais do ensino fundamental; e entre 3.3 (menor
índice) e 5.2 (maior índice), entre 2005 e 2015, nos anos finais do ensino funda-
mental. Segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira (Inep), em 2015, a escola contava com, aproximadamente, 506 matrículas,
25 turmas, 11 salas de aula, 46 professores, 03 turnos de funcionamento, atuando
nas modalidades pré-escola (poucas turmas), anos iniciais e finais do ensino funda-
mental e educação de jovens e adultos (noturno).
A escolha desta escola se deu por suas características típicas, tendo sido se-
lecionada para integrar a amostra do Projeto “Determinantes do Sucesso Educa-
cional no Brasil”, que teve o apoio do Observatório da Educação: parceria entre a
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), o Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e a Secreta-
ria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi). Esta
escola apresenta potencialidades e desafios similares à boa parte das escolas de
ensino fundamental de porte médio no Brasil, situada em um bairro popular, onde
é possível observar as trajetórias escolares típicas das camadas populares.
A primeira fase da pesquisa investigou trajetórias escolares de todos os alunos
ingressantes no primeiro ano em 2006, submetidos às leis que instituíram a matrí-
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cula obrigatória no 1º ano do ensino fundamental aos 6 anos de idade e a amplia-
ção desta etapa para 9 anos. Buscou-se examinar se tais mudanças contribuíram
com a regularidade da maioria das trajetórias percorridas em uma determinada
escola pública, entre 2006 e 2014. Acompanharam-se os alunos através de diários
de classe e atas de resultado final, monitorando a cada ano os alunos aprovados,
reprovados, evadidos e transferidos, entre o 1º e o 9º ano do ensino fundamental.
Assim, a partir dos resultados desse primeiro estudo longitudinal/documental,
constatou-se que, no contexto investigado, dos 53 alunos matriculados no 1º ano do
ensino fundamental em 2006, apenas 20 conseguiram concluir o 9º ano em 2014
com sucesso, ou seja, percorreram esta etapa no tempo e idade adequados, sem
reprovação ou evasão. Por outro lado, identificou-se que, em 2014, quando todos os
alunos monitorados deveriam concluir o 9º ano ensino fundamental, a reprovação
escolar havia atingindo, pelo menos, 21 trajetórias ao longo desta etapa, sendo o
ponto mais nevrálgico dos percursos escolares no contexto observado, impedindo
praticamente metade dos alunos de concluir o ensino fundamental no tempo e ida-
de adequados.
Diante dos poucos casos de sucesso, dada a massiva reprovação, bem como
os múltiplos fatores que concorrem para a reprodução de desigualdades educacio-
nais, o presente trabalho buscou identificar fatores relacionados à socialização e à
interação social por trás de algumas trajetórias escolares relativamente bem-su-
cedidas. Nesse sentido, uma vez identificados os alunos que foram aprovados em
todos os anos do ensino fundamental, do 1º ao 9º, de 2006 a 2014, rastrearam-se
seus status educacionais em 2017, quando deveriam estar concluindo o 3º ano do
ensino médio, realizando-se estudos de caso com alguns desses alunos sobre seus
processos de socialização: objeto do presente trabalho.
Metodologia
Através de estudos de caso e histórias de vida, buscou-se examinar detalha-
damente a construção de trajetórias escolares de alunos oriundos das camadas
populares, no âmbito dos processos de socialização primária e secundária. Para
tanto, realizaram-se entrevistas com os alunos cujas trajetórias foram bem suce-
dias até o final da educação básica, atentando-se para a manifestação de fatores
considerados pela literatura cientifica como determinantes dos destinos escolares,
isto é: fatores individuais, como sexo e cor; fatores familiares, os quais remetem à
posição social da família e à posse de capital econômico, cultural e social, como a
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escolaridade de avós, pais e irmãos, à ocupação dos avós e dos pais, ao incentivo
familiar aos estudos, bem como ao acesso a oportunidades sociais, além de fatores
relacionados aos processos de socialização, como a participação em grupos extrafa-
miliares, o ingresso no mundo do trabalho, etc.
As trajetórias foram investigadas longitudinalmente. Monitoraram-se todos
os alunos da coorte selecionada a cada ano, verificando aqueles que foram apro-
vados, reprovados, evadidos e transferidos, com base em diários de classe e atas
de resultado final. Em 2017, rastrearam-se, dentre os alunos que concluíram com
sucesso o ensino fundamental em 2014, aqueles que chegaram com êxito ao 3º ano
do ensino médio em 2017. Selecionaram-se 03 casos exemplares que foram entre-
vistados espontaneamente acerca de suas trajetórias escolares, dos atores e insti-
tuições envolvidos, as relações sociais, além de eventos marcantes em suas vidas.
Primeiro caso: Gisele
1
Gisele ingressou no 1º ano do ensino fundamental em 2006, aos 7 anos de
idade. Percorreu os nove anos do ensino fundamental sem ser reprovada ou evadir
da escola. Gisele é do sexo feminino e se autodeclara negra. Em 2017, cursava o
3º ano do ensino médio em uma escola pública da rede estadual de ensino e não
trabalhava fora de casa. Aos 18 anos, era solteira e sem filhos. Morava com o pai e
o irmão caçula.
Nascida em Juiz de Fora, sua família era composta por pai, mãe e cinco ir-
mãos, com idades de 11, 19, 20, 23 e 25 anos. Se autodeclaravam católicos. Todos
nasceram em Juiz de Fora. Gisele teve contato somente com os avós paternos, que
eram analfabetos – seu avô trabalhava na roça e sua avó era dona de casa. Seu
pai estudou até a 4ª série do ensino fundamental e trabalhava como autônomo na
profissão de pedreiro. Sua mãe também estudou somente até a 4ª série do ensino
fundamental e trabalhava como doméstica, porém estava desempregada. Seu ir-
mão de 11 anos de idade estava cursando o 6º ano do ensino fundamental em 2017.
Sua irmã de 19 anos parou de estudar no 1º ano do ensino médio. Sua irmã de 20
anos parou de estudar na antiga 6ª série do ensino fundamental. Sua irmã de 23
anos parou de estudar no 1º ano do ensino médio. Seu irmão de 25 anos também
parou de estudar na antiga 6ª série do ensino fundamental.
Gisele ingressou no primeiro período da educação infantil aos 4 anos de idade,
na escola pública municipal próxima de sua residência. Aos 5 anos seguiu para o
segundo período da educação infantil e aos 6 anos concluiu o terceiro período. Aos
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7 anos de idade, ingressou no 1º ano do ensino fundamental nessa mesma escola,
em que permaneceu estudando até o 9º ano do ensino fundamental, concluído aos
15 anos de idade (um ano a mais em relação à idade ideal – 14 anos –, visto que
ela ingressou no ensino fundamental de 9 anos aos 7 anos de idade, isto é, acima
da idade ideal recomendada pelas reformas educacionais – 6 anos). Gisele nunca
foi reprovada ou evadiu da escola ao longo dessa etapa, cursando o ensino regular
diurno. Ao longo de sua escolarização, sua família chegou a receber Bolsa Família
por um determinado tempo.
Ao concluir o ensino fundamental, Gisele ingressou no ensino médio em uma
escola pública da rede estadual, situada em um bairro um pouco mais distante de
sua residência. Ela e sua família consideravam essa escola de maior qualidade
em relação à escola localizada no bairro em que moravam. Acreditavam que essa
escola mais prestigiada aumentaria as chances de aprovação em processos seleti-
vos para a universidade. Além disso, os amigos de seus pais também enviariam os
filhos para essa escola pública considerada melhor. Assim, Gisele cursou o ensino
médio pela manhã, no ensino regular. Estava matriculada no 3º ano do ensino
médio em 2017, aos 18 anos de idade recém-completos.
Ao longo do ensino médio Gisele prestou o Programa de Ingresso Seletivo Mis-
to (PISM) da Universidade Federal, módulo I e II. Ao final do ano de 2017 preten-
dia realizar o módulo III. Acreditava que teria nota suficiente para ingressar no
curso de Pedagogia na Universidade Federal. Também pretendia tentar o Exame
Nacional do Ensino Médio (Enem), caso não conseguisse obter nota pelo PISM para
os cursos de Pedagogia ou Psicologia. Ela é inscrita no grupo de cotas raciais e para
estudantes de escolas públicas. Estuda em casa, por conta própria, de acordo com
as tarefas diárias. Mora com o pai e o irmão mais novo, pois seus pais se divorcia-
ram e os irmãos mais velhos são casados residindo em outros lugares. Assim, ela é
encarregada das tarefas domésticas de sua casa.
A primeira atividade remunerada de Gisele foi como babá. Começou a exercer
essa atividade aos 14 anos de idade, quando ainda estava terminando o ensino fun-
damental. Ela conta que, na época, uma amiga de sua mãe pediu para ela cuidar de
seus filhos de modo remunerado. Ela aceitou, permanecendo nessa atividade até os
17 anos de idade, quando estava no final do 2º ano do ensino médio. Aos 18 anos, no
3º ano do ensino médio, dedicava-se principalmente aos estudos.
Em relação a cursos profissionalizantes, Gisele disse que chegou a ingressar
em um curso de informática, porém não concluiu, pois a família não teve condições
de arcar com o curso até o final. Ela também chegou a fazer cursinho em uma ins-
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tituição privada, para prestar processos seletivos militares, no entanto, não chegou
a realizar as provas. Segundo Gisele, inicialmente o pai arcava com o cursinho e,
posteriormente, ela arrumou uma atividade remunerada para ajudar a arcar. Con-
tudo, havia muitas taxas (como inscrições e etc.) não previstas no orçamento e, por
isso, ela não realizou os exames.
Para Gisele, o maior incentivador de sua trajetória escolar era o seu pai. Caso
não passasse nos processos seletivos para a universidade pública ao final de 2017,
o pai tinha se oferecido para arcar com uma faculdade particular para ela não ficar
um ano sem estudar. O pai não queria que a filha “perdesse um ano tentando no-
vamente”. Segundo Gisele, a mãe sempre participou de sua vida escolar, era quem
ia às reuniões da escola, porém, o pai era quem ajudava com os deveres de casa.
De acordo com ela, “meu pai diz que a gente tem que estudar para ser alguém na
vida”. Conta que o pai mantém o pulso firme com ela e o irmão mais novo, porque
os outros irmãos já se afastaram da escola. Seu pai diz que: “não conseguiu estudar,
mas quer que os filhos consigam”. Ela diz que o pai sempre arcou com tudo dentro
de suas possibilidades, como o transporte para a escola, eventos extraescolares etc.
Além do pai, Gisele contou que a mãe de seu namorado também incentivava
muito seus estudos, dizendo que: “ela tinha que ser uma mulher independente”.
Segundo Gisele, a escola era uma de suas principais fontes de informação sobre as
possibilidades de continuar os estudos. Ressaltou que os diretores e coordenado-
res conversavam com os alunos, indicavam processos seletivos, explicavam como
conseguir isenção para a inscrição etc. Em relação aos planos para o futuro, disse
que pretende concluir uma faculdade, conseguir um bom emprego, estabilizar-se e
depois construir uma família.
Segundo caso: Marina
Marina, o segundo caso, ingressou no 1º ano do ensino fundamental em 2006,
aos 7 anos de idade. Percorreu o ensino fundamental sem ser reprovada ou evadir
da escola. Marina é do sexo feminino e se autodeclara parda. Em 2017 estava cur-
sando o 3º ano do ensino médio e dedicava-se somente aos estudos. Aos 18 anos, era
solteira e sem filhos. Morava com os pais.
Nascida na cidade de Juiz de Fora/MG, sua família nuclear era composta por
pai, mãe e a filha única. Se autodeclaravam evangélicos. Seus avós maternos e pa-
ternos nasceram em outra cidade do estado de Minas Gerais. Seus avós maternos
eram analfabetos – sua avó materna era lavadeira e seu avô materno carpinteiro e
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pedreiro. Seus avós paternos estudaram até a 2ª série do ensino fundamental – sua
avó paterna era dona de casa e seu avô trabalhava com gado. Sua mãe estudou até
a 8ª série do ensino fundamental e trabalhava como costureira autônoma. Seu pai
estudou até a 4ª série do ensino fundamental e trabalhava como frentista e vigia
noturno.
Marina ingressou no primeiro período da educação infantil aos 3 anos de ida-
de, em uma escola particular de tempo integral, situada no bairro vizinho ao que
morava. Aos 4 anos seguiu para o segundo período e aos 5 anos de idade concluiu a
educação infantil. No entanto, quando os pais de Marina foram matricular a filha
no 1º ano do ensino fundamental, na escola pública municipal do bairro, uma vez
que ela havia ingressado na educação infantil abaixo da idade recomendada, ela
teve a sua matrícula indeferida, devido à coorte etária (idade mínima de 6 anos
completos). Diante disso, a escola propôs que ela cursasse novamente o segundo
período da educação infantil, até chegar à idade “adequada”, e assim ela o fez.
Aos 7 anos de idade, Marina ingressou no 1º ano do ensino fundamental. Nes-
se momento, ela já havia cursado o segundo período da educação infantil por duas
vezes e já tinha aprendido a ler e a escrever, e, até mesmo, esboçar letra cursiva,
destacando-se dos colegas de turma. Segundo ela, seus pais foram chamados à
escola diversas vezes, devido à filha ser adiantada em relação à turma. Marina
cursou o ensino fundamental diurno e regular, sem ser reprovada ou evadir da
escola, concluindo essa etapa em 2014.
Ao concluir o ensino fundamental, ela e sua família optaram por uma escola
pública estadual, em suas palavras, “de maior qualidade”, para cursar o ensino
médio, uma vez que consideravam a escola pública estadual do bairro ruim. Contou
que ela e os pais pesquisaram várias escolas, até mesmo particulares. Todavia,
sua família descartou a escola particular, principalmente devido às possibilidades
proporcionadas pelas políticas de cotas no ensino superior para estudantes de es-
colas públicas. Segundo ela, sua mãe sempre acreditou nos “nossos direitos”. “A
educação pública é um direito, temos que lutar”.
Assim, ela foi matriculada no ensino médio na escola pública estadual consi-
derada de maior prestígio. Ao ingressar no 1º ano do ensino médio, aos 15 anos de
idade, inicialmente, Marina teve problemas de adaptação à nova escola. Disse que
tinha medo, era tímida e demorou a se integrar à turma e fazer novas amizades.
Posteriormente, adaptou-se. Aos 18 anos de idade, cursava o 3º ano do ensino médio,
nunca foi reprovada ou evadiu da escola, cursando o ensino regular diurno. Seus pais
arcavam com o transporte, visto que a escola não era tão próxima de sua residência.
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Ao longo do ensino médio, Marina prestou o Programa de Ingresso Seletivo
Misto (PISM) da Universidade Federal. Já prestou o módulo I e II, e, em 2017,
prestaria o módulo III. Ela se inscreveu no grupo de cotas raciais e para estudantes
de escolas públicas. No 2º ano do ensino médio ingressou em um cursinho prepara-
tório para o PISM, o qual frequentava duas vezes por semana, em uma instituição
particular. Sua mãe era quem arcava com os custos. Marina acreditava que suas
notas eram adequadas e que conseguiria ingressar na universidade pública, no
curso de Odontologia.
Em relação a cursos diversos, disse que fez informática, quando tinha entre
9 e 10 anos de idade. Também disse que já cursou Inglês, por dois anos, durante o
ensino médio – ambos os cursos em instituições privadas, financiados pelos pais.
Além desses, Marina fez cursinho para prestar o exame do Instituto Federal de
Educação Ciência e Tecnologia do Sudeste, para o curso de Técnico de Metalurgia,
porém, alegou que não era bem o que ela queria, pois visava ter tempo para estudar
e ingressar na universidade. Assim, ela até obteve nota, mas não quis ingressar no
curso técnico, pois, se assim fosse, ela não teria tempo para estudar para o PISM.
Segundo Marina, os pais são os maiores incentivadores de sua trajetória esco-
lar. Além deles, ela diz ter uma amiga um pouco mais velha (que então cursava a fa-
culdade de enfermagem na Universidade Federal), considerada uma das principais
pessoas que incentiva e informava sobre as oportunidades, como o PISM e o Enem.
Essa amiga é quem falava sobre a importância de fazer uma faculdade. Marina diz
que é muito grata a essa amiga e que, se não fosse por ela, talvez nem estivesse na
escola. Foi essa amiga quem a levou para conhecer o campus universitário.
Além da família e da amiga, Marina diz que sempre contou com o apoio de al-
guns professores, principalmente aqueles com quem tinha mais afinidades. Conta
que teve graves problemas familiares ao final do ensino fundamental e início do
ensino médio, como a depressão da mãe, problemas de saúde e violência na família,
e, com isso, alguns professores específicos, dos quais ela se lembra dos respectivos
nomes com carinho, foram fundamentais em ajudar a passar por esse momento
difícil. Ela conta que também chegou a ter problemas na escola com outros profes-
sores, que não sabiam ou entendiam a situação pela qual ela passava.
Marina nunca exerceu atividades remuneradas, exceto algumas vezes em que
vendeu pulseiras na escola durante o ensino fundamental, ou, recentemente, quan-
do vendeu cupcake com sua madrinha em uma feira. Segundo ela, os pais nunca a
deixaram trabalhar. Ela conta que fez a carteira de trabalho, arrumou emprego,
mas os pais embargaram, pedindo para a filha única se dedicar somente aos estu-
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dos. Em relação aos planos para o futuro, diz que pretende concluir a faculdade e
montar seu consultório odontológico.
Terceiro caso: Pedro
O terceiro caso ingressou no 1º ano do ensino fundamental em 2006, aos 6 anos
de idade, percorrendo o ensino fundamental sem ser reprovado ou evadir da escola.
Pedro é do sexo masculino e se autodeclara negro. Em 2017, aos 17 anos de idade,
estava cursando o 3º ano do ensino médio e trabalhava como auxiliar de transporte
escolar. Era solteiro e sem filhos. Morava com o pai, a mãe e os irmãos.
Nascido em Juiz de Fora, sua família nuclear era composta por pai, mãe, um
irmão de 14 anos e uma irmã de 24 anos de idade. Sua família se autodeclarava
católica. Seus avós paternos nasceram em Juiz de Fora. Sua avó paterna estudou
até o ensino médio e trabalhou como cozinheira e faxineira. Seu avô paterno era
trabalhador rural e Pedro não sabe sua escolaridade. Sua avó materna nasceu no
estado da Bahia, era analfabeta e dona de casa. Pedro não teve contato com o seu
avô materno. Seu pai nasceu em Juiz de Fora, estudou até o 2º ano do ensino médio
e trabalhava como técnico de purificadores. Sua mãe nasceu no estado da Bahia,
estudou até a 7ª série do ensino fundamental e trabalhava como copeira, porém
estava afastada devido a problemas de saúde. Pedro possui um irmão de 14 anos,
que, em 2017, estava cursando o 8º ano do ensino fundamental, e uma irmã de 24
anos, formada em direito, cursado em uma faculdade particular.
Aos 3 anos de idade, Pedro ingressou em uma creche pública no bairro vizinho.
Aos 4 anos de idade, ingressou no primeiro período da educação infantil, na escola
pública municipal do bairro. Aos 6 anos de idade, ingressou no 1º ano do ensino
fundamental nessa mesma escola. Cursou essa etapa no ensino regular diurno,
sem ser reprovado ou evadir da escola, concluindo em 2014, aos 14 anos de ida-
de. Ao concluir o ensino fundamental na escola pública municipal próxima de sua
residência, Pedro e sua família prefiram uma escola pública estadual situada em
outro bairro, com o ensino considerado “mais forte”, para ele cursar o ensino médio,
pois a escola do bairro era considerada muito precária. Contudo, também alegou
que sua irmã estudou na escola do bairro e foi para a faculdade. Além disso, diz ter
escolhido a “escola melhor”, porque seus amigos iriam estudar lá. Durante certo
período de sua escolarização, seus pais receberam Bolsa Família.
Aos 15 anos de idade Pedro ingressou no 1º ano ensino médio e, aos 17 anos,
estava cursando o 3ª ano. Nunca foi reprovado ou evadiu da escola, estudando no
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ensino regular diurno. Pedro diz que sempre foi um aluno “bagunceiro”, que gosta-
va de conversar com os colegas durante as aulas, mas que sempre foi compromis-
sado com a escola e não gostava de tirar notas vermelhas. Segundo ele, “deve ser
horrível repetir um ano inteiro”. Ao longo do ensino médio, prestou o PISM I e II e,
em 2017, prestaria o módulo III. Porém, alega que suas notas não são seriam su-
ficientes para o curso que optou de Engenharia de Produção. Além disso, também
pretendia prestar o Exame Nacional do Ensino Médio. Pedro é inscrito no grupo de
cotas raciais e para estudantes de escolas públicas. Segundo ele, caso não consiga
ingressar pelo PISM, continuará tentando ingressar na universidade pública pelo
Enem e, talvez, fará cursinho preparatório.
Pedro começou a exercer atividade remunerada durante o 2º ano do ensino
médio. Alegou que começou a trabalhar não porque precisava ajudar em casa, mas
para ter o próprio dinheiro. Seu pai incentivava o trabalho. Sua primeira atividade
remunerada, na qual permanecia atuando, era de auxiliar de transporte escolar,
exercida em meio turno, depois da escola. Durante o ensino médio, fez um curso
profissionalizante de elétrica automotiva, em uma instituição particular. O pai foi
quem ofereceu a oportunidade e arcou financeiramente com o curso. Pedro preten-
dia procurar um emprego na área no próximo ano, quando completasse 18 anos de
idade. Em relação a outros cursos, conta que, durante a infância e adolescência, fez
escolinha de futebol e aulas de Muay Thai, ambas em instituições privadas. O pai
sempre financiou suas atividades.
Segundo Pedro, o pai é o maior incentivador de sua trajetória escolar. Segun-
do ele, seu pai sempre diz: “se não estudar, vai levar uma coça”. A mãe também
incentivava a sua trajetória escolar. A mãe era quem ia às reuniões escolares, pois
o emprego do pai era menos flexível em termos de horário. Pedro conta que seu pai
diz: “você precisa estudar para não ficar igual a mim, trabalhando muito em um
trabalho cansativo. Tem que estudar para ter um futuro melhor”. Os pais o incen-
tivavam a cursar uma faculdade e buscavam se informar sobre as oportunidades,
por exemplo, sobre o PISM e o Enem. De acordo com Pedro, “Deus e a batalha dos
pais no dia a dia são seus principais motivadores”.
Em 2018, Pedro pretendia se alistar no serviço militar, uma vez que completa-
ria 18 anos. Ele quer servir, pois o seu pai já serviu e diz que: “é bom para aprender
a ter mais disciplina”. Pedro também vislumbrava a carreira militar e, ao final de
2017, prestaria o exame da ESA (Escola de Sargentos das Armas). Ele estudava
em casa por conta própria, depois do trabalho, porém contou que chegava em casa
cansado e queria fazer outras coisas, por exemplo, navegar na internet. Caso não
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passasse, no ano seguinte tentaria novamente. Em suas palavras o plano é “traba-
lhar, porque não tem outro jeito, e continuar tentando o Enem”.
Discussão sobre os casos e seus processos de socialização e interação social
Os casos analisados representam trajetórias escolares de jovens nascidos em
famílias de camadas populares. No entanto, apesar de semelhanças econômicas,
sociais e culturais entre as famílias, essas desenvolvem diferentes maneiras de
enfrentar as adversidades sociais relacionadas à origem. Em função de experiên-
cias próprias, as famílias desenvolveram estratégias originais de motivar e super-
visionar a trajetória escolar dos filhos, guardando traços comuns de um ethos que
valoriza a educação, a disciplina e as perspectivas de realização em longo prazo,
principalmente quando os filhos se mostram propensos. Em todos os processos de
socialização familiar, foi possível perceber indícios de que os pais transmitem, den-
tro de suas limitações, a importância da educação para o futuro dos filhos para,
pelo menos, conseguirem “um bom emprego” e “ser alguém na vida”. Todos os casos
entrevistados mencionaram a importância que a família atribui à educação, mes-
mo sem possuir altos níveis de escolaridade.
Diante do reconhecimento da importância da educação, pode-se dizer que as
famílias avaliam os benefícios futuros (longo prazo) da educação, buscando inves-
tir, dentro de suas possibilidades, também em cursos profissionalizantes, prepara-
tórios para processos seletivos, e atividades de outras naturezas, tais como espor-
tes, almejando melhorar a formação e inserção social dos filhos, somando-se a isso
o almejado diploma de nível superior. De um modo ou de outro, os investimentos
familiares em cursos profissionalizantes e de outras naturezas proporcionam am-
bientes diferenciados de socialização, que agregaram valores, motivações, expecta-
tivas, hábitos, atitudes e habilidades aos filhos. O núcleo familiar, principalmente
os pais, em todos os casos são apontados como os maiores incentivadores e finan-
ciadores da trajetória escolar dos sujeitos da pesquisa. Processos de socialização
extrafamiliar e a interação social com amigos, vizinhos, namorados e outras pes-
soas, que incentivam a educação, também ajudaram a direcionar suas trajetórias.
Destaca-se também a forma como é gerido o ingresso no mundo do trabalho.
Dentre os três casos examinados, dois já haviam exercido atividade remunerada
extrafamiliar, exceto aquele que era filho único, cujos pais não permitiam o tra-
balho extradoméstico. Os demais começaram a exercer atividades remuneradas
fora de casa durante o ensino fundamental e o ensino médio, mas sem que com-
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prometesse nem prejudicasse os estudos. O exercício de atividades remuneradas
é justificado pela necessidade de ter o próprio dinheiro, ter um poder de consumo
que a família não tem condições de proporcionar, dada a sua situação econômica e
social. O ingresso no mundo do trabalho foi relativamente precoce, mas em tempo
parcial e sem comprometer a escola, que continuou sendo prioritária. Aparece como
alternativa para preencher o tempo livre, como atividade que agrega disciplina,
socialização com pessoas mais maduras e o uso das habilidades e competências
aprendidas na escola. “No tipo ideal”, nessa idade os jovens deveriam se dedicar
somente aos estudos; mas, nesses casos, foi algo complementar e mutuamente re-
forçado. Nota-se também que aconteceu informalmente, isto é, a atividade é de-
sempenhada junto a um parente ou conhecido, por contrato somente verbal, com
baixa remuneração, mas relevante por razões simbólicas.
Quanto à estrutura de oportunidades educacionais e sociais, destaca-se que as
políticas públicas de expansão e democratização do ensino superior aparecem em
evidência em todos os casos examinados, que usufruíram da ampliação do acesso em
função de cotas sociais e raciais. Dentre as políticas sociais, também se destaca a
Bolsa Família. Em todos os casos, essas políticas se revelaram importantes para as
famílias, para a continuidade educacional e um possível acesso à educação superior.
Evidencia-se que jovens das camadas populares têm aspirações educacionais ele
-
vadas. Porém, são historicamente escassas as oportunidades. Quando surgem, elas
se tornam objeto de intenso desejo e projetos de vida de vários estratos populares.
Dentre as desigualdades que caracterizam a estrutura da sociedade brasilei-
ra, quando se inclui o recorte racial, seus contornos se tornam mais severos. Diante
disso, no que tange ao acesso à educação superior, os debates públicos sobre as
ações afirmativas têm sido polêmicos, gerando extensa produção acadêmica, tanto
sobre os princípios das ações afirmativas, como sobre os processos de implantação
das políticas de cotas nas instituições de ensino superior e os resultados dessa
medida. As cotas nas universidades públicas se justificam a partir da extrema desi-
gualdade racial existente no país, principalmente no que se refere ao acesso ao en-
sino superior, dadas, dentre outras coisas, a herança escravocrata, a manutenção
dos privilégios de classe, o investimento tardio na educação pública, bem como o
desigual acesso à estrutura de oportunidades, que caracteriza a sociedade brasilei-
ra. Assim, nos últimos anos, tem-se discutido de forma mais efetiva a implantação
de políticas sociais que visam a minimizar um quadro considerado inaceitável para
um país como o Brasil (LIMA, 2010, 2012).
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Por fim, observou-se que, por trás de trajetórias escolares bem sucedidas entre
alunos das camadas populares, além dos processos de socialização e interação fa-
miliar mais conhecidos, descritos e analisados, somam-se outros processos sociais
(GRANOVETTER, 1983), como oportunidades franqueadas por novas políticas pú-
blicas, além das experiências singulares como a forma de inserção no mercado de
trabalho, relacionamentos afetivos motivadores e a interação social positiva com
parentes, amigos, vizinhos e outros que incentivam a educação. Todos eles parti-
cipam, de maneiras mais sutis ou mais proeminentes, do processo de construção
dessas trajetórias escolares de sucesso.
Considerações nais
Este trabalho investigou processos de socialização associados a trajetórias es-
colares de sucesso, entre alunos provenientes das camadas populares. Foi privile-
giada a geração escolar 2006, que deveria concluir o 3º ano do ensino médio em 2017.
Realizaram-se estudos de caso com três alunos selecionados desta coorte que foram
aprovados continuamente do ensino fundamental ao ensino médio, representando
exceções. Observou-se que processos de socialização favoráveis concorreram para o
êxito dessas trajetórias. Foi possível identificar que, na socialização primária, ape-
sar da baixa escolaridade e condições socioeconômicas da família, sobressaem-se
os incentivos verbais, projeções de expectativas e diálogos relacionados à educação
dos filhos, bem como a explícita crença na importância da escola para o futuro
dos mesmos. A memorização/interiorização desses valores fica evidente nas falas
dos entrevistados. Nesse sentido, a interação familiar através do acompanhamento
da vida escolar dos filhos se mostra crucial. Acrescentam-se os financiamentos de
atividades educacionais extras, dentro das possibilidades de cada família, através
de cursos diversos, contribuindo com o desenvolvimento de habilidades técnicas e
pessoais, colaborando para uma inserção social mais promissora.
Nota-se também que, nos processos de socialização, as famílias e os indivíduos
cultivam semelhanças e singularidades em suas maneiras de conduzir os processos
educativos, com aspirações próprias e motivações ímpares. Destaca-se que as opor-
tunidades proporcionadas pelo núcleo familiar (materiais e simbólicas) são extre-
mamente importantes e grandes diferenciais nas trajetórias. Somam-se a elas as
oportunidades educacionais viabilizadas por meio de políticas públicas, fundamen-
tais para garantir o acesso educacional para aqueles que estão em condições des-
vantajosas. Assim, conclui-se que, apesar do background social dizer muito sobre
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os processos de construção de trajetórias escolares, também se tornou necessário
considerar os processos de socialização primária e secundária como capazes de re-
verter ciclos reprodutores negativos e transmitir valores positivos relacionados à
educação e aos seus benefícios.
Nota
1
Todos os nomes são fictícios para preservar a identidade dos entrevistados, o anonimato dos envolvidos, a
confidencialidade dos dados privados e o uso estritamente ético e acadêmico das informações.
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