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Patrícia Ketzer, Ana Paula Scheer
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Socialização feminina, protagonismo humano e educação:
uma análise a partir de Christine de Pizan
Female socialization, human protagonism and education: an analysis from Christine de Pizan
Socialización femenina, protagonismo humano y educación: un análisis a partir de Christine de Pizan
Patrícia Ketzer
*
Ana Paula Scheer
**
Resumo
Christine de Pizan (1364-1430) defendeu uma educação de qualidade como ferramenta potencial para impul-
sionar o protagonismo humano, além de promover a igualdade. Armava a necessidade de se educar meninos
e meninas igualmente, no processo de socialização, de modo a possibilitar o desenvolvimento intelectual das
mulheres. Com o objetivo de investigar quais os principais pontos defendidos por Christine de Pizan em prol de
uma educação igualitária, realizou-se uma pesquisa bibliográca, buscando discorrer sobre a importância da
educação igualitária no protagonismo humano. O artigo em questão foi estruturado em duas etapas: em um
primeiro momento, discorre-se sobre quem foi Christine de Pizan e em que contexto ela estava inserida. Em um
segundo momento, objetiva-se analisar a contribuição de Pizan para a Educação, bem como compreender a vi-
são da autora acerca da temática, relacionando-a com o contexto educacional atual. Como considerações nais,
destaca-se a educação como cerne estruturante no protagonismo humano, em conjunto com o seu potencial
libertador.
Palavras-chave: Christine de Pizan; educação; socialização feminina; protagonismo; igualdade.
Abstract
Christine de Pizan (1364-1430) has advocated for education as a potential tool for the advancement of human
protagonism and equality. According to Pizan, during the socialization process, there is a necessity to equintau-
ally educate girls and boys to enhance womens intellectual capabilities. In order to investigate which are the
main points defended by Christine de Pizan in favor of an egalitarian education, a bibliographic research was
carried out, seeking to discuss the importance of egalitarian education in human protagonism. This article was
*
Graduação e mestrado em Filosoa pela Universidade Federal de Santa Maria e doutorado em Filosoa pela Pon-
tifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Atualmente é professora da Universidade de Passo Fundo. Tem
experiência na área de Filosoa, com ênfase em Epistemologia, atuando principalmente nos seguintes temas: injusti-
ças epistêmicas, epistemologia feminista, questões de gênero. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9742-0076. E-mail:
patriciaketzer@gmail.com
**
Graduada em Arquitetura e Urbanismo e em losoa pela Universidade de Passo Fundo; mestre em Engenharia Civil
e Ambiental pela Universidade de Passo Fundo. Tem experiência na área de Arquitetura e Urbanismo, atuando princi-
palmente nos seguintes temas: sustentabilidade, arquitetura, meio ambiente, mobilidade sustentável e infraestrutu-
ra. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-5146-7853. E-mail: 119642@upf.br
Recebido: 27/07/2020 – Aprovado: 21/05/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i1.11405
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structured in two stages: rst, Christine de Pizan was presented in its social and historical context; afterward,
Pizans contribution to education was explained, analyzed and, nally, paralleled with today’s educational prac-
tice. The nal considerations highlighted is that education constitutes an indispensable foundation for human
protagonism and human autonomy.
Keywords: Christine de Pizan; education; female socialization; protagonism; equality.
Resumen
Christine de Pizan (1364-1430) defendió la educación de calidad como una herramienta potencial para impulsar
el protagonismo humano, además de promover la igualdad. Armó la necesidad de educar a los niños y niñas
por igual, en el proceso de socialización, para permitir el desarrollo intelectual de las mujeres. Con el n de in-
dagar los principales puntos defendidos por Christine de Pizan a favor de una educación igualitaria, se realizó
una investigación bibliográca, buscando discutir la importancia de la educación igualitaria en el protagonismo
humano. El artículo en cuestión se estructuró en dos etapas: al principio, se discute quién era Christine de Pizan
y en qué contexto se insertó. En un segundo paso, el objetivo es analizar la contribución de Pizan a la educación,
así como comprender la posición de la autora sobre el tema, relacionándolo con el contexto educativo actual.
Como consideraciones nales, se destaca la educación como un núcleo estructurante en el protagonismo hu-
mano, junto con su potencial liberador.
Palabras clave: Christine de Pizan; educación; socialización femenina; protagonismo; igualdad.
Introdução
Educação de qualidade é um dos 17 objetivos do desenvolvimento sustentável
promovidos pela Organização das Nações Unidas (ONU) em prol de um mundo
mais justo e fraterno. Mais especificamente, o objetivo número 4 preconiza “asse-
gurar a educação inclusiva e equitativa de qualidade, e promover oportunidades
de aprendizagem ao longo da vida para todos” (ONU, 2015, não paginado). Para
tanto, uma série de metas são estabelecidas dentre elas: eliminar as disparidades
de gênero e garantir a igualdade de acesso a todos os níveis de educação. Em pleno
século XXI, apesar dos enormes desafios para a efetivação desse objetivo, deve-se
destacar o reconhecimento e a busca por educação de qualidade em prol do prota-
gonismo humano e da igualdade, panorama que nem sempre se apresentou de tal
perspectiva.
Christine de Pizan, uma mulher escritora do período Medieval, projetou para
além de seu tempo uma visão igualitária principalmente no âmbito da questão de
gênero e da educação. Discorre a respeito de inúmeros temas que mexem com o
imaginário humano, ajustando a realidade para um cenário ideal e, a partir disso,
fazendo refletir e repensar os dogmas sociais impostos no período.
A luta iniciada por Christine de Pizan, na defesa de educação igualitária para
ambos os sexos, não finda em nossa sociedade contemporânea. Teóricas feministas
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têm reforçado a necessidade tanto de um processo de socialização quanto de uma
educação que contemple igualmente meninos e meninas, desenvolvendo as poten-
cialidades de ambos. Ao invés disso, o que se constata ainda hoje é uma educação
que reforça os ideais da sociedade heteropatriarcal capitalista de supremacia bran-
ca em que vivemos.
Deste modo, este artigo se propõe a investigar quais os principais pontos de-
fendidos por Christine de Pizan em prol de uma educação igualitária, além de
discorrer sobre a sua importância no protagonismo humano. Para cumprir tal ob-
jetivo, o artigo foi estruturado em duas etapas, a saber: em um primeiro momento,
visa-se compreender a respeito da biografia da autora e o contexto de sua existên-
cia, que possibilitou o desenvolvimento de sua obra. Em um segundo momento,
busca-se identificar sua contribuição para a educação, explicitando as dificuldades
contemporâneas de sua efetivação, que se dão em função de preconceitos e visões
distorcidas acerca do gênero. Para, por fim, oferecer uma alternativa, baseada na
noção de educação como prática da liberdade, que promove verdadeiramente o pro-
tagonismo humano.
Para além do seu tempo: Christine de Pizan
Em geral, a capacidade intelectual feminina foi menosprezada, sendo as mu-
lheres escamoteadas da História da Filosofia e, em função disso, há informações
desencontradas e confusas acerca dessa filósofa de tamanha monta do período
Medieval. Além disso, conceitos epistemológicos foram construídos a partir de es-
tereótipos de masculinidade, como o conceito de razão e de objetividade (LLOYD,
G., 1984; LLOYD, E. 1995; ROONEY, 1991), o que as excluiu da produção do saber
científico e filosófico.
Esses conceitos servem a uma dupla função: epistemológica e política (LON-
GINO, 2012, p. 511), pois influenciam diretamente todo o ideal de cientificidade,
que é pautado em cima de ambos. Conceitos centrais que pautaram as discussões
sobre o conhecimento e a ciência foram construídos com base em estereótipos de
gênero. Apesar disso, Christine de Pizan e sua obra chegaram até nós, mesmo com
as tentativas de apagamento. Por meio do presente trabalho, também se possibilita
o resgate de sua biografia, de sua história e de seu pensamento.
Escritora do período Medieval, Christine de Pizan obteve destaque pelo seu
grau de protagonismo e posicionamento crítico no que tange o campo da concepção
feminina, suas atribuições e, principalmente, ao discorrer a respeito da influência
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que a educação possuía na condição social da mulher. Nasceu em Veneza em 1364,
filha de Thomas de Pizan; sobre sua mãe não há relatos (LEITE, 2008). Calado
(2006, p. 03) e Karawejczyk (2017, p. 190) atribuem a função do pai como astrólogo,
Leite (2008, p. 12) descreve a profissão de Thomas como Professor da Universidade
de Bolonha, ao passo que Cardoso (2017, p. 135) o caracteriza como astrólogo e
médico.
Em 1368, sua família passa a residir em Paris a convite da corte do Rei Char-
les V, que solicita os serviços de Thomas de Pizan. Tal mudança favoreceu a edu-
cação de Christine, que se situava em uma esfera promissora, possuindo também
acesso à biblioteca real. Ao completar quinze anos (1379), seu pai escolhe Etienne
Castel, futuro secretário do rei, para ser marido de Pizan (LEITE, 2018).
Segundo Leite (2008) a década de oitenta foi um período conturbando para a
França em função do falecimento do rei, ao passo que para Christine, representou
a perda de seu pai em 1386, e de seu marido três anos depois. Pizan assume a
responsabilidade sobre seus três filhos, além de auxiliar nos cuidados de sua mãe.
“Nesse momento de desespero, ela encontra refúgio nos estudos para suas aflições”
(LEITE, 2008, p. 12).
O conhecimento e as informações passaram a circular com maior frequência
no período em que Christine viveu, atribuindo às mulheres mais espaço e poder.
Ao contrário do imaginário popular, durante os primeiros séculos da Idade Média,
as mulheres gozavam de alguns direitos, garantidos pela lei e pelos costumes. Po-
diam exercer praticamente todas as profissões, tinham direito de propriedade e de
sucessão. Havia, inclusive, mulheres que atuavam politicamente, participando de
assembleias, com direito ao voto (ALVES; PITANGUY, 2017).
Devido a constantes guerras, longas viagens e recolhimento aos monastérios
por parte dos homens, as mulheres tornaram-se a maioria da população adulta,
assumindo os negócios da família. Deste modo, fazia-se necessário que entendes-
sem de contabilidade e legislação, para realizarem as transações comerciais e se
defenderem em juízo. Um olhar histórico nos possibilita a constatação de que a
participação da mulher na esfera pública esteve, frequentemente, ligada ao afasta-
mento do homem por motivo de guerras (ALVES; PITANGUY, 2017).
Nas primeiras décadas da Idade Média se têm registros de mulheres exercen-
do tarefas ditas masculinas, como a serralheria e a carpintaria, ainda que se con-
centrassem majoritariamente em profissões femininas como tecelagem, costura e
bordados. Participavam do comércio, juntamente com os seus maridos e, após a sua
morte assumiam os negócios. Entretanto, a indústria doméstica, ligada às mulhe-
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res, costumava ser a principal fonte de renda ou uma complementação necessária
para o orçamento familiar. Podendo exercer o direito de sucessão, não era incomum
uma herdeira gerir sua própria renda, mesmo casada (ALVES; PITANGUY, 2017).
A despeito desse contexto relativamente favorável, a ascensão do trabalho fe-
minino provou a oposição dos trabalhadores homens, pois a competição rebaixava o
nível salarial geral. Em função disso, surgiram restrições à participação da mulher
no mercado de trabalho, como em Londres, no ano de 1344, quando a organização
de alfaiates proibiu seus membros de empregarem mulheres que não fossem suas
esposas ou filhas (ALVES; PITANGUY, 2017).
Apesar da participação da mulher na vida social e econômica da Idade Média,
a concepção que foi disseminada era a de uma mulher frágil e apática, entretida
em seus bordados, à espera do cavalheiro. Segundo Alves e Pitanguy (2017), essa
imagem exclui a grande massa de mulheres da representação simbólica, além de
refletir uma visão distorcida do que seria seu cotidiano nesse período. Trata-se de
uma defasagem entre a posição concreta da mulher em sua vida diária e a repre-
sentação simbólica que se tinha dela.
É nesse contexto que Christine de Pizan, após perder o marido e o pai, decide
se tornar escritora. Em um primeiro momento, começa a escrever poesias parti-
cipando de concursos. A boa recepção de seus textos lhe indicara o caminho para
seguir na profissão. Segundo Leite (2018), uma boa parcela de seu público se inte-
ressava em saber a respeito do conteúdo abordado por uma mulher, ao passo que
a outra parcela lia por admiração à escritora e aos seus temas. Christine escreveu
em torno de quinze obras.
Segundo Karawejczyk (2017, p. 197), Christine inovou ao concentrar sua aten-
ção em mulheres de diversos níveis sociais “mulheres que viviam ao lado de reis,
de nobres, de mercadores, artesãos e trabalhadores, que trabalhavam dentro e fora
das paredes domésticas, podendo ser cultas ou iletradas, humildes ou poderosas,
ricas ou pobres”. Entre os inúmeros temas: mitologia, tratados de moral, educação,
política e ética, um deles se destaca até hoje por sua originalidade: a questão do fe-
minino (LEITE, 2018). Pizan defendia que a desigualdade entre homens e mulhe-
res é derivada do processo de socialização, alegando que se as mulheres tivessem
acesso à educação teriam papéis tão importantes e úteis para a sociedade quanto
os homens (LEITE, 2018).
É dentro desse cenário que Pizan apresenta percepções contrárias a visão e os
costumes recorrentes na época e faz da educação sua aliada. Torna-se a primeira
mulher a ser indicada à poeta oficial da corte. Muitas a consideram uma das pri-
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meiras feministas, visto que possuía um discurso conscientemente articulado em
defesa dos direitos da mulher.
Entrou em polêmicas com escritores de renome da época, defendendo a igual-
dade entre os sexos. Um deles foi Jean de Meung, que escreveu a segunda parte de
o Romance da Rosa. Pizan o critica por seu tom misógino, dando origem a primeira
disputa escrita da literatura francesa.
A autora afirmou a urgência em fornecer às meninas uma educação idêntica
à dos meninos, defendendo que se fosse costume as mandar à escola e as ensinar
ciências, elas aprenderiam da mesma forma que os meninos e compreenderiam as
sutilezas das artes e ciências (ALVES; PITANGUY, 2017). Em 1422, Pizan vive os
últimos momentos de sua vida no mosteiro de Poissy, onde vem a falecer em 1430
com 66 anos (CARDOSO, 2017).
O processo de socialização feminino e o protagonismo humano por meio da
educação
No século XII, os teóricos começam a olhar para a educação analisando o com-
portamento das crianças e das mulheres que passam a ser analisadas como incons-
tantes, o que faz com que seu comportamento necessite ser regulado. É a partir do
Concílio de Latrão, de 1179, que todas as igrejas passam a ser obrigadas a manter
uma escola, que ensine aritmética, geometria, gramática, música e teologia. Tam-
bém se podia contar com a boa vontade dos Senhores Feudais, caso tivessem o
interesse de fundar uma escola, ou com a união de um grupo de habitantes que
resolvesse se associar e pagar um professor para ensinar aos seus filhos.
Era por volta dos sete ou oito anos que as crianças começavam a frequentar a
escola, os estudos seguiam-se por dez anos, até adentrarem a universidade. O aces-
so a livros era raro, o que contribuiu para que predominasse a cultura da oralidade.
O professor lia e comentava os autores clássicos para os alunos, os quais debatiam
com o mestre. Esse método estimulou a memorização e o debate em todos os níveis
de ensino (LEITE, 2008).
Entre sete e oito anos as crianças ainda podiam brincar juntas, ainda que
sempre sob vigilância. Posteriormente, a educação de meninos e meninas passava
a diferir, destacando-se as diferenças nos processos de socialização entre os gêne-
ros. Havia também, certamente, uma diferença significativa entre a educação dos
nobres e camponeses. Aos cinco anos, os nobres já sabiam montar, praticavam jogos
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voltados para formação do cavaleiro, e tinham aprendizados específicos, na escola
ou em casa com um preceptor. A esse preceptor era destinada a tarefa de socializar
o jovem, ensinando-o a falar adequadamente, a ter boas maneiras, ser um bom an-
fitrião, e conhecer diferentes livros. Leite (2008) destaca o fato de se tratar de uma
educação utilitária, pois tinha uso específico na vida do pequeno nobre.
Enquanto isso, os filhos de camponeses não frequentavam a escola, cabendo
aos pais os ensinar sua profissão, enquanto a mãe lhes ensinava os elementos da
fé cristã. “A mãe era responsável pela formação moral e social. Os contos épicos e
histórias diversas conduziam o jovem à resignação, à honra e à coragem” (LEITE,
2008, p. 174). Outro espaço de aprendizagem possível eram os conventos. Havia
conventos para meninos e outros para meninas, mas também haviam espaços mis-
tos nos primeiros anos de ensino.
Em relação à educação das meninas, a maioria dos teóricos defendia que de-
veria voltar-se para o conhecimento prático. A camponesa deveria desenvolver a
capacidade de cuidar do lar, enquanto a burguesa e a nobre deveriam ter uma cul-
tura um pouco mais aprimorada, que lhes possibilitasse comandar os empregados
e empregadas. Também deviam saber ler e escrever de acordo com suas responsa-
bilidades sociais. Em comum, havia a necessidade de que soubessem costurar, fiar,
tecer e bordar. A educação de toda menina deveria ser orientada, principalmente,
para o casamento, o cuidado da casa, dos maridos e dos filhos (LEITE, 2008).
Vincent de Beauvais, no século XIII, destina um capítulo de seu livro de vinte
e um capítulos às mulheres. Nesse capítulo, destaca sua preocupação com a casti-
dade feminina, e defende que as mulheres deviam aprender a ler para acessar os
preceitos morais e assim evitar maus pensamentos. Note-se que a educação femi-
nina era voltada para a formação de um caráter dócil, que servia para controlar
seu maior bem: a virgindade. Caberia aos pais dar os ensinamentos necessários
para que a mulher “cumprisse” com os deveres sexuais adequadamente depois do
casamento. Leite (2008, p. 177) destaca ainda que:
Quanto à vida de casada, indica que a mulher devia suportar os defeitos do marido, evitar
o ciúme, não usar ornamentos, pintura etc. Pode-se perceber que a formação feminina não
objetivava a exaltação do espírito intelectual da mulher, e sim sua adequação aos moldes
estipulados pelos homens.
É nesse contexto que Christine de Pizan se torna uma escritora que questiona
o lugar social atribuído à mulher. Uma das obras de relevância de Pizan é La cité
de dames, escrita em 1405, e traduzida no Brasil por Luciana Eleonora de Freitas
Calado, em 2006, como A Cidade das Damas. Nessa obra, a autora idealiza uma
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cidade de mulheres, na qual desenvolve histórias da vida feminina que, por meio
de seu progresso intelectual, conseguiram ocupar espaços na esfera pública. Pizan
buscou explicitar as capacidades intelectuais das mulheres, sem deixar de consi-
derar que a condição à qual estavam submetidas as afastava do conhecimento.
Defendeu abertamente que os assuntos que dizem respeito à vida social também
deveriam ser debatidos pelas mulheres.
Em A Cidade das Damas, Pizan faz uso de alegorias para revelar a
estratégia narrativa de luta das mulheres medievais contra os ataques
misóginos que sofriam. As Damas alegóricas Razão, Retidão e Justiça são
apresentadas de modo a desarticular o discurso misógino. As Damas assu-
mem o posicionamento em prol da condição feminina dando voz às mulheres
e valorizando o feminino. Assim, possibilitando a conscientização das mu-
lheres enquanto agentes de seu próprio destino. A verdade era uma pers-
pectiva masculina, possível somente aos homens, visto que acessada pelo
poder da escrita, desse modo reforçava a misoginia e impunha às mulheres
os ditames sociais da fragilidade de sua condiçã
o (SILVA, 2016).
O diálogo narrado entre as três Damas e a narradora-personagem ocorre con-
juntamente com a construção da Cidade, que simboliza um espaço de proteção
a elas. A defesa do feminino, em Pizan, reivindica a igualdade entre os sexos na
busca de direitos e oportunidades iguais para todos. Pizan defende o direito à edu-
cação, ao conhecimento, à vida pública. “Em suma, o direito de ser mulher; favo-
recendo-as no que diz respeito à formação humanística e à participação ativa na
sociedade” (SILVA, 2016, p. 36).
Segundo Leite (2018), pode-se destacar como ideias principais do livro III da
Cidade das Damas, que: 1) a diferença entre homens e mulheres é de origem social
porque as mulheres não têm acesso à educação; 2) deve-se mudar a ideia de que só
o homem é o detentor da palavra; 3) provam-se a dignidade e a utilidade da mulher
para a sociedade.
Já Calado (2006) considera que, para Pizan, a educação vai além do saber
adquirido designado à própria formação e ao aprimoramento e se integra ao social,
tendo um papel de condutora e intermediária do saber. Em sua obra Cidade das
Damas, o enfoque central se constitui na “busca das relações de gênero ao longo
dos tempos, por meio do resgate da memória feminina, esquecida pela história”
(CALADO, 2006, p. 83), redefinindo alguns mitos constituintes de uma imagem
deformadora do feminino, como por exemplo, o mito da origem, do pecado original
(CALADO, 2006).
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Ainda, em Cidade das Damas, Pizan incita seus leitores e leitoras a “resolver
suas questões, baseando, não apenas pelas leituras dos livros, mas também pela
leitura de mundo, ou seja, por sua própria experiência, seu saber empírico, obtendo
seus próprios julgamentos” (CALADO, 2006, p. 92). Além disso, a autora enfatiza
que Pizan, por meio da alegoria criada na Cidade das Damas, ensina a não acredi-
tar em um saber absoluto de parte das grandes autoridades, uma vez que a falha e
o erro fazem parte do humano.
Percebes que mesmo os maiores filósofos, aqueles que tu invocas contra teu próprio sexo,
não conseguiram distinguir o certo do errado, e se contradizem e se criticam uns aos outros
sem cessar, como tu mesma viste em Metafísica de Aristóteles, no qual ele critica e refuta
igualmente as opiniões de Platão e de outros filósofos citando-os. E presta atenção ainda
que Santo Agostinho e outros doutores da Igreja fizeram o mesmo em certas passagens de
Aristóteles, considerando o Príncipe dos filósofos, e a quem devemo-lo as mais altas doutri-
nas da filosofia natural e moral (PIZAN apud CALADO, 2006, p. 92).
O protagonismo da educação é enfatizado em conjunto com diferentes olhares
diante do papel feminino: “se fosse costume enviar as mocinhas à escola e ensiná-
-las metodicamente as ciências, como é feito para os rapazes, elas aprenderiam e
compreenderiam as dificuldades de todas as artes e de todas as ciências tão bem
quanto eles” (PIZAN apud KARAWEJCZYK, 2017, p. 195). Cristine de Pizan tam-
bém evidencia uma nova visão do feminino, reivindicando uma mudança de olhar
sobre a mulher para além da posição de sedutora. Segundo Leite (2018, p. 118),
[...] essa divisão singular proposta por Christine propõe uma nova forma de ver a
mulher não mais sob o critério religioso da castidade, mas como um ser humano
com um papel a ser cumprido e respeitado na sociedade tanto na esfera privada
como na pública. A mulher deixa de ser vista somente a partir de sua função bio-
lógica para assumir uma atividade social.
A defesa dessa concepção igualitária perpassa séculos de lutas e ainda perma-
nece, em pleno século XXI, no qual o preconceito e a desigualdade ainda são temas
recorrentes que necessitam da educação como antídoto. Tal é a necessidade de al
-
cançarmos igualdade de gênero que a ONU estipulou como o objetivo cinco, dos de-
zessete objetivos do desenvolvimento sustentável. Segundo a ONU (2015), é preciso:
5. Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas. 5.1 Acabar
com todas as formas de discriminação contra todas as mulheres e meninas em toda parte;
5.2 Eliminar todas as formas de violência contra todas as mulheres e meninas nas esferas
públicas e privadas, incluindo o tráfico e exploração sexual e de outros tipos; 5.3 Elimi-
nar todas as práticas nocivas, como os casamentos prematuros, forçados e de crianças e
mutilações genitais femininas; 5.4 Reconhecer e valorizar o trabalho de assistência e do-
méstico não remunerado, por meio da disponibilização de serviços públicos, infraestrutura
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e políticas de proteção social, bem como a promoção da responsabilidade compartilhada
dentro do lar e da família, conforme os contextos nacionais; 5.5 Garantir a participação
plena e efetiva das mulheres e a igualdade de oportunidades para a liderança em todos os
níveis de tomada de decisão na vida política, econômica e pública; 5.6 Assegurar o aces-
so universal à saúde sexual e reprodutiva e os direitos reprodutivos, como acordado em
conformidade com o Programa de Ação da Conferência Internacional sobre População e
Desenvolvimento e com a Plataforma de Ação de Pequim e os documentos resultantes de
suas conferências de revisão; 5.a Realizar reformas para dar às mulheres direitos iguais
aos recursos econômicos, bem como o acesso a propriedade e controle sobre a terra e outras
formas de propriedade, serviços financeiros, herança e os recursos naturais, de acordo com
as leis nacionais 5.b Aumentar o uso de tecnologias de base, em particular as tecnologias
de informação e comunicação, para promover o empoderamento das mulheres; 5.c Adotar e
fortalecer políticas sólidas e legislação aplicável para a promoção da igualdade de gênero e
o empoderamento de todas as mulheres e meninas em todos os níveis.
Nota-se que a luta iniciada, talvez ainda antes de Pizan, não chegou ao fim. As
teóricas feministas do século XXI seguem afirmando a necessidade destacada por
Christine de Pizan, no século XIV e XV, de se oportunizar espaços de socialização e
educação igualitários para meninas e meninos. Em 1949, quando escreve a primei
-
ra edição de seu mais famoso livro, O Segundo Sexo, Simone de Beauvoir (2009, p.
267) afirma que “ninguém nasce mulher: torna-se mulher”. Para Beauvoir, existe
um “fazer-se mulher”, a partir de normas e valores socioculturais que são ensinados
e reiterados nos gestos, comportamentos e preferências. Ela completa “nenhum des
-
tino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no
seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário
entre o macho e o castrado que qualificam o feminino” (BEAUVOIR, 2009, p. 267).
O ser mulher, ou ainda, os papéis que cabem a mulher, são determinados so-
cialmente e culturalmente, não sendo algo adquirido pelo biológico, como defendem
abordagens mais tradicionais da psicologia, religião, medicina e filosofia. Existem
inúmeras dimensões que põem em xeque a visão reducionista de que ser mulher ou
homem depende estritamente do sexo biológico.
Louro (2008, p. 18) afirma que “não é o momento do nascimento e da nomeação
de um corpo como macho ou fêmea que faz deste um sujeito masculino ou feminino”,
mas a construção do gênero ocorre ao longo de toda vida. Uma argumentação desta
ordem exige se colocar contra a naturalização do feminino e do masculino, constituin
-
do-se como desafio perante uma tradição cultural fortemente fixista e estereotipada.
Vianna e Finco (2009, p. 268) em sua pesquisa referente às relações de gênero
e poder presentes nos processos de socialização de crianças pequenas, na educação
infantil, questionam:
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Refletir sobre os fundamentos dessas afirmações no âmbito da educação e, mais especifi-
camente, da educação infantil exige o questionamento de suas origens e do peso do caráter
biológico na construção das diferenças. Isso pressupõe, por exemplo, indagar a respeito da
interferência e do papel da cultura nos processos de socialização e de formação de meninas
e meninos desde suas primeiras experiências de vida na instituição escolar.
Mas, de onde vem as orientações e ensinamentos de como devem se comportar
os gêneros masculino e feminino? São os especialistas de diversas áreas que dizem
o que deve ser vestido, comido, conquistado, como se apresentar para conseguir
emprego, como ser aceito socialmente. As diferentes agências de socialização, re-
presentadas pela família, pela mídia, pela igreja, determinam nosso ser e estar
no mundo. A ciência também tem forte papel nesse processo. Contudo, apesar da
aceitação sistemática dessas normas e papéis de gênero, “é indispensável observar
que, hoje, multiplicaram-se os modos de compreender, de dar sentido e de viver os
gêneros” (LOURO, 2008, p. 18).
Não é novidade que os grupos que lutam por igualdade de gênero sofrem inú-
meras repressões, são vítimas de ataques constantes de setores conservadores e
vítimas de violência física, justamente por defenderem e buscarem espaço social e
direitos iguais para todos e todas. Os movimentos sociais organizados compreen-
deram que era necessário “ocupar os espaços culturais como a mídia, o cinema,
a televisão, os jornais, os currículos das escolas e universidades” (LOURO, 2008,
p. 20) para alterar essa situação, pois a voz predominante nesses espaços sempre
foi majoritariamente do homem branco heterossexual. E, por isso, passaram a ser
verdades incontestáveis que a mulher era hierarquicamente o segundo sexo, inca-
paz de raciocínio lógico e de objetividade.
Resta-nos questionar: como ocorre, ainda hoje, a construção e legitimação des-
se discurso que inferioriza mulheres? A atribuição de diferentes papéis e status
sociais aos gêneros, contribui para a consolidação desse discurso. Normalmente, ao
aguardar o nascimento de um bebê, prepara-se um ambiente de acordo com o sexo.
Geralmente, o azul é para os meninos e o rosa para as meninas. Os brinquedos
oferecidos também são diferentes, sendo que aos meninos se entregam carrinhos,
super-heróis, armas, jogos de montar, e às meninas, bonecas, panelinhas, fogõezi
-
nhos, fantasias de princesas e maquiagens. Deseja-se que desde cedo as crianças re-
produzam os papéis sociais dos adultos. Muitos dos brinquedos dados às crianças já
induzem a uma determinada profissão, que deverá ser exercida conforme o gênero.
Outro exemplo, é com relação a determinadas atitudes e comportamentos
proibidos às meninas ou aos meninos. Com frequência se diz às meninas que certas
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atitudes que tiveram não são adequadas para uma menina: feche as pernas; sente
direito. Aos meninos, afirma-se que homens não choram, transmitindo a noção de
que devem reprimir seus sentimentos. E, se porventura, apresentarem algum com-
portamento tido como de mulher pela sociedade, são estereotipados e vítimas de
deboches e outras agressões.
Tendemos a pensar que essas são coisas naturais. Justificamos que há poucas
mulheres nas engenharias porque as mulheres são mais propensas à inteligência
linguística, e que mais mulheres ocupam cargos ligados ao cuidado, como a enfer-
magem, a pedagogia, a psicologia, etc., em função de diferenças genéticas. Mas,
como afirma Singer (2002, p. 43-45):
Os indícios de uma base biológica das diferenças de aptidão visual-espacial são um pouco
mais complicados, mas consistem, em grande parte, em estudos genéticos que sugerem
ser essa aptidão influenciada por um gene recessivo ligado ao sexo. Como resultado disso,
estima-se que aproximadamente cinquenta por cento dos homens tenham uma vantagem
genética em situações que exigem aptidão visual-espacial, mas essa mesma vantagem só é
compartilhada por vinte e cinco por cento das mulheres. Os argumentos favoráveis e con-
trários a um fator biológico subjacente a maior capacidade verbal das mulheres e ao melhor
raciocínio matemático dos homens são ainda frágeis demais para que se possa sugerir uma
conclusão que os corrobore ou invalide. [...]. As diferenças de forças e fraquezas intelectuais
dos sexos não podem explicar mais do que uma ínfima proporção da diferença de posições
que homens e mulheres ocupam na nossa sociedade. Poderia explicar, por exemplo, por
que existem mais homens que mulheres em profissões como a arquitetura e a engenharia,
profissões que podem exigir aptidão visual-espacial; mas, mesmo nestas profissões, a mag-
nitude das diferenças em termos numéricos não pode ser explicada pela teoria genética de
aptidão visual-espacial. Esta teoria sugere que metade das mulheres são tão favorecidas
geneticamente nesta área quanto os homens, o que explicaria a menor contagem média
das mulheres nos testes de aptidão visual-espacial, mas não seria capaz de explicar o fato
de que não há simplesmente duas vezes mais homens do que mulheres na arquitetura e
engenharia – na verdade, há dez vezes mais, e em muitos países, esse número é ainda
maior. Além do mais, se a aptidão visual-espacial superior explica o predomínio masculino
na arquitetura e na engenharia, por que não se verifica uma vantagem feminina correspon-
dente em profissões que exigem elevada capacidade de verbalização? [...]. Assim, mesmo se
aceitarmos as explicações biológicas para a determinação dessas aptidões, podemos argu-
mentar que as mulheres não têm as mesmas oportunidades que os homens para exercer em
mais alto grau as aptidões que possuem.
As diferenças entre homens e mulheres são melhor explicadas por diferenças
socioculturais, já que ao nascermos, imediatamente, se atribuem papéis a serem
desempenhados para cada sexo.
Nascemos com um sexo biológico, e isso sim depende da biologia, mas assim
que os pais descobrem que estão esperando um bebê, eles já começam a estabelecer
papéis para essas crianças desempenharem em sociedade. Esses papéis são aquilo
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que define uma identidade masculina e outra feminina e são socialmente construí-
dos, a isso denominamos gênero. Gênero são os comportamentos, as obrigações e o
caráter que se exige que homens e mulheres possuam (GARCIA, 2015), cada qual
com as características devidas, por terem nascido com determinado sexo. Gênero é
diferente de sexo, visto que sexo são as diferenças entre os corpos, o órgão genital,
o sistema reprodutor e os cromossomos, enquanto gênero são as normas e condu-
tas determinadas para cada sexo. O que se espera de cada gênero é algo que pode
variar dependendo da cultura, os papéis atribuídos a homens e mulheres não são
universais.
Margareth Mead (2000) demonstrou isso em seus estudos de antropologia, ao
observar a tribo Arapesh, notou que homem e mulher realizavam funções diferen-
tes, mas ambos eram dóceis, não havendo distinções em relação ao comportamento.
A maternidade não era uma obrigação feminina, mas uma relação compartilhada.
Já na tribo Mundugomor, tanto o comportamento masculino quanto o feminino
eram agressivos. Como eram as mulheres que cultivavam o fumo, em geral, elas
não queriam engravidar para não ter que dividir sua posição de poder. Por outro
lado, os homens desejavam ter filhas mulheres, porque assim teriam mais posses,
pelo cultivo do fumo e ainda poderiam trocá-las por novas esposas.
Na tribo Tchambuli, os comportamentos femininos e masculinos eram dis-
tintos. A mulher detinha o poder, escolhia seu parceiro e controlava o lucro nas
relações de comércio. Ainda que os homens fossem vistos como chefes da família,
quem impunha as regras eram as esposas. Os homens eram responsáveis pelas
atividades artísticas, atividades cerimoniais e ornamentos. Pode-se notar que o
sexo biológico não determina os papéis ocupados na sociedade, uma vez que eles
variam em diferentes culturas. O que impõe formas de comportamento é o gênero.
Considerando tais questões, relativas a distinção sexo/gênero, biológico/socio-
cultural, qual o papel dos espaços de educação formal para promoção da igualdade
de gênero? A discriminação de gênero ocorre nos mais variados espaços, desde as
construções familiares, religiosas, sociais, políticas e até mesmo em espaços esco-
lares. Cabe à escola oportunizar espaços que promovam a busca por igualdade de
gênero. Torna-se importante analisar o comportamento das professoras, professo-
res e gestores escolares e promover cursos de formação continuada que os possibili-
tem desconstruir preconceitos. Faz-se necessário realizar cursos de formação, bem
como analisar de maneira crítica as práticas pedagógicas que vêm sendo aplicadas,
e pensa-las de modo a promover a igualdade de gênero.
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A construção desta igualdade exige que se evitem processos de discriminação
no âmbito escolar. Apesar das polêmicas relacionadas aos estudos de gênero nas
escolas, para promoção da igualdade, torna-se imprescindível que ações sejam pra-
ticadas desde os primeiros anos da vida escolar. A atuação do corpo técnico docente
é fundamental para que a escola não se torne uma reprodutora de preconceitos e
discriminações, e sim um espaço de construção de igualdades. Deste modo, vale
analisar as posturas de meninos e meninas no ambiente escolar e as ações de pro-
fessoras e professores voltadas para a discussão de gênero. O debate de gênero,
quando bem conduzido, pode auxiliar os estudantes em seu processo de construção
de identidade.
Bell Hooks (2017) sugere que a superação do sexismo
1
na prática pedagógica
só é possível na medida que se adotam pedagogias anticolonialistas, críticas e fe-
ministas. É nessa interação complexa de múltiplas perspectivas que será possível
transpor fronteiras e questionar os sistemas de dominação da supremacia branca
capitalista e patriarcal em sala de aula. Defendemos que a partir de uma educação
como prática da liberdade, proposta por Bell Hooks, juntamente com as reflexões
apresentadas por Christine de Pizan, será possível superar as inequidades de gêne-
ro e promover uma educação que paute verdadeiramente o protagonismo humano.
Bell Hooks (2017) defende uma pedagogia engajada, e uma educação como
prática da liberdade, que só é possível quando as professoras veem os estudantes
como seres humanos integrais. A educação como prática da liberdade compreende
a ligação entre as ideias aprendidas em contextos de educação formal e as ideias
apreendidas pela prática da vida, e permite a partilha de conhecimentos. A educa-
ção como prática da liberdade representa a “ligação entre o que eles [os estudantes]
estão aprendendo e sua experiência global da vida” (HOOKS, 2017, p. 33). Assim
como Pizan (Cf. CALADO, 2006, p. 92), Bell Hooks considera a experiência, a leitu-
ra de mundo, como dimensão fundamental da aprendizagem.
Em uma sala de aula comprometida com a educação como prática da liberdade
será mais necessário explicar a filosofia, a estratégia e a intenção do curso do que
em uma sala da aula tradicional. Em muitos momentos, os estudantes podem se
sentir incomodados, e não entender o valor de certo ponto de vista. O retorno de
uma pedagogia engajada e de uma educação para igualdade de gênero não será
imediato. A professora precisará abrir mão da necessidade de um reconhecimento
imediato e compreender que cada estudante passa por um processo, e o reconheci-
mento de um aprendizado transformador pode vir muito tempo depois. Bell Hooks
(2017, p. 60-61) nos ensina a praticar a compaixão:
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Não esqueço o dia em que um aluno entrou na aula e me disse: ‘Nós fazemos seu curso.
Aprendemos a olhar o mundo de um ponto de vista crítico, que leva em conta a raça, o sexo
e a classe social. E não conseguimos mais curtir a vida.’ Olhando para o resto da turma,
vi alunos de todas as raças, etnias e preferências sexuais balançando a cabeça em sinal
de assentimento. E vi pela primeira vez que pode haver, e geralmente há, uma certa dor
envolvida no abandono das velhas formas de pensar e saber e no aprendizado de outras
formas. Respeito essa dor. E agora, quando ensino, trato de reconhece-la, ou seja, ensino a
mudança de paradigmas e falo sobre o desconforto que ela pode causar.
Descontruir-se, repensar-se, desestabilizar os próprios privilégios é doloroso. Re-
ver os lugares sociais impostos a si e aos outros, abandonar preconceitos, reconhecê-los
nos outros, questioná-los, são processos complexos. Os novos modos de conhecer, pro
-
postos por uma educação como prática da liberdade, criam novos modos de ser, tanto
para professoras quanto para estudantes. Esses novos modos de conhecer e de ser se
voltam para a igualdade de gênero e para o protagonismo de todas/os envolvidos.
Questionarmos nossas ideias e questionarmos nossos hábitos, aliando teoria e
prática, como nos exige essa proposta não é fácil, não é simples, não é rápido, mas é
o único modo de transformar a realidade, tornando-a mais justa para todos e todas
e possibilitando uma educação para o protagonismo.
Conclusão
O trabalho em questão se propôs a investigar os principais pontos defendidos
por Christine de Pizan em prol de uma educação igualitária, além de analisar sua
importância para o protagonismo humano. Dividido em duas etapas, no primeiro
momento discorreu sobre a biografia de Pizan e o contexto em que a autora estava in-
serida. Pode-se observar que, distintamente da visão popular da Idade Média, como
a idade das trevas, o ambiente no qual Pizan se situava demonstra uma abertura
para o papel protagonista da mulher, comprovado pelas atribuições que Christine foi
adquirindo no decorrer dos fatos históricos, com destaque ao seu papel de escritora.
A importância de uma educação de qualidade, bem como o incentivo à leitura,
pode ser percebida na formação de Christine, que possuía acesso à biblioteca real,
um ambiente fértil na busca do saber. Tal questão contribuiu para um pensamento
além de seu tempo, que lhe possibilitou desenvolver uma percepção da mulher
como ser dotado dos mesmos direitos que o homem.
Em um segundo momento, o foco do trabalho voltou-se para compreensão de
como Christine dialogava com a educação. Diante do exposto, pode-se evidenciar
que os principais pontos defendidos no estudo apresentado foram a educação igua-
litária e o potencial protagonista da mulher quando detentora do conhecimento.
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Esses tópicos se fundamentaram na forma como ela utilizou a literatura, tra-
balhando com problemáticas reais e cenários ideais. Pizan via na educação a pos-
sibilidade de promover a igualdade entre os gêneros, bem como de inverter o papel
passivo da mulher, tornando-a protagonista.
Pizan demonstrou que muito além de questões biológicas, a definição da po-
sição humana inserida em uma sociedade é fundamentada pela educação. Além
disso, importantes questões em prol do desenvolvimento humano e equilíbrio no
contexto social foram apresentadas, como por exemplo, a ênfase em reconhecer
a inexistência de um saber absoluto. Tal percepção tem potencial de impulsionar
o pensamento distinto das verdades concretas impostas na época (e inclusive nos
dias atuais), além de flexibilizar os dogmas vistos como imutáveis.
No contexto atual, percebemos que a luta iniciada por Pizan, considerada por
muitas como a primeira feminista por reivindicar educação igualitária para meninos
e meninas e questionar produções literárias misóginas, mantém-se ativa. As teóri-
cas feministas, em pleno século XXI, ainda discutem os reflexos de um processo de
socialização que limita o desenvolvimento das meninas, enquanto estimula o dos me-
ninos. Por mais que tenhamos evoluído em alguns pontos, ainda há forte resistência
frente ao debate de gênero nas escolas e à defesa de uma educação igualitária.
Teóricas como Bell Hooks (2017) têm se dedicado a pensar uma prática peda-
gógica que dê conta de produzir uma educação libertadora, que possibilite o pro-
tagonismo de todas/os as/os estudantes. Essa autora considera que a leitura de
mundo e as experiências dos estudantes devem ser consideradas no processo de
aprendizagem, do mesmo modo que Pizan já defendia na Idade Média.
Diante da compreensão da importância da educação para o protagonismo hu-
mano, cujo movimento de educar com iguais condições ambos os gêneros propicia
equidade social, salienta-se a relevância de se alcançar os objetivos número 4 e 5
(ONU, 2015), que preconizam: “assegurar a educação inclusiva e equitativa de qua-
lidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos” e
“alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas”.
Notas
1
Bell Hooks, enquanto teórica negra, analisa a realidade a partir de uma estrutura interseccional,
desse modo considera que nossa sociedade é um heterocapitalismo patriarcal de supremacia branca.
As opressões que vivenciamos não devem ser consideradas separadamente, mas como intersecções.
Considera que a superação do sexismo, do racismo e dos preconceitos de classe devem ser pensados
conjuntamente.
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