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Este artigo está licenciado com a licença: Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
Infâncias e diretos na contemporaneidade: em foco as crianças do campo
Infâncias e direitos na contemporaneidade: em foco as crianças do campo
Children and rights in contemporaryity: focus on eld children
Infancias y derechos en la contemporaneidad: centrarse en los niños del campo
Franciele Clara Peloso
*
Najela Tavares Ujiie
**
Resumo
Este estudo tem como objetivo reetir sobre as infâncias e as crianças, seus direitos e a constituição de suas
identidades, considerando a pluralidade de espaços em que a infância acontece e dando destaque às crianças do
campo. Trata-se de um ensaio teórico. A justicativa deste escrito está voltada à necessidade de problematizar,
bem como dar visibilidade às diferentes infâncias e legitimar as experiências vivenciadas pelas crianças partícipes
de contextos históricos marcados pela desigualdade social. As principais considerações deste estudo sublinham
a coexistência de distintas infâncias e formas de ser crianças. Da mesma forma, evidenciam a invisibilização e o
ocultamento de experiências infantis bem como a efetivação de direitos para crianças que foram segregadas ao
longo da história e continuam sendo, quando homogeneizadas por uma concepção de infância de origem europeia,
branca, cristã e urbana. A principal contribuição deste estudo consiste em problematizar junto às discussões relativas
à infância a condição da experiência infantil das crianças no campo para que tenham seus direitos legitimados e a
constituição de suas identidades reconhecidas com base na pluralidade de espaços em que suas vidas se fazem.
Palavras-chave: Infância. Criança do campo. Direitos.
Abstract
This study aims to reect on childhood and children, their rights and the constitution of their identities
considering the plurality of spaces in which childhood happens and highlighting the children of the countryside.
It is a theoretical essay. The justication of this writing is focused on the need to problematize, as well as to
give visibility to diferente childhoods and to legitimize the experiences lived by children who participate in
historical contexts marked by social inequality. The main considerations of this study underline the coexistence
of diferente childhoods and ways of being children. Similarly, they higlight the invisibility and concealment of
childrens experiences, as well as the realization of rights for children that have been segregated throughout
history and continue to be homogenized by a conception of childhood of European, white, cristian na urban
origin. The main contribution of this study is to problematize together the discussions related to childhood
the condition of the childrens experiencie in the countryside so that they have their rights legitimized and the
constitution of their identities recognized from the plurality of spaces in which their lives are made.
Keywords: Childhood. Country Child. Rights.
*
Doutora em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Docente permanente do PPG em Desen-
volvimento Regional da UTFPR, Campus Pato Branco, Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-9647-001X. E-mail:
fclara.15@gmail.com
**
Pedagoga. Doutora em Ensino de Ciência e Tecnologia (UTFPR/PG). Professora Assistente da Universidade Estadual
do Paraná, Campus de Paranavaí, Brasil. E-mail: najelaujiie@yahoo.com.br
Recebido em 14/10/2019 – Aprovado em 06/03/2020
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i2.11424
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Resumen
Este estudio tiene como objetivo reexionar sobre las infancias y los niños, sus derechos y la constitución de
sus identidades considerando la pluralidad de espacios donde ocurre la infancia, poniendo énfasis en los niños
del campo. Se trata de un ensayo teórico. La justicativa de este escrito está direccionado a la necesidad de
problematizar, bien como dar visibilidad a las diferentes infancias y legitimar las experiencias vivenciadas por
los niños partícipes de contextos históricos marcados por la desigualdad social. Las principales consideraciones
de este estudio subrayan la coexistencia de distintas infancias y maneras de ser niños. Del mismo modo, ponen
en relieve la invisibilidad y el ocultamiento de experiencias infantiles, bien como el cumplimiento de derechos
para niños que fueron segregados a lo largo de la historia y siguen siendo cuando homogeneizados por una
concepción de infancia de origen europea, blanca, cristiana y urbana. La principal contribución de este estudio
consiste en problematizar junto a las discusiones relacionadas a la infancia la condición de la experiencia
infantil de los niños en el campo para que tengan sus derechos legitimados y la constitución de sus identidades
reconocidas a partir de la pluralidad de espacios en que sus vidas se hacen.
Palabras clave: Infancia. Niños del Campo. Derechos.
Introdução
Somos duas pedagogas, professoras/educadoras da Educação Superior, que se
dedicam a pesquisas na área da educação da infância. Nossos processos formativos
e também de pesquisa se desenvolveram em circunstâncias e com objetivos diferen-
tes. Uma estudando os processos pedagógicos, mais especificamente, a formação de
professores para educação infantil. A outra estudando especificamente a infância
enquanto categoria filosófica bem como os distintos contextos em que as crianças
constituem suas infâncias. Ao nos aproximarmos, iniciamos o diálogo e percebemos
a intersecção de nossos estudos na área da educação da infância: a experiência das
crianças, a garantia de diretos e a constituição de suas identidades.
Assim, objetivamos neste trabalho, que se caracteriza como um ensaio teórico,
refletir sobre as infâncias e as crianças, seus direitos e a constituição de suas iden-
tidades considerando a pluralidade de espaços em que a infância acontece, dando
destaque às crianças do campo.
Estudiosos da infância (FREITAS, 2011; FREITAS, KUHLMANN JUNIOR,
1998; SARMENTO, 2000 e outros) destacam que existem diferentes abordagens
sobre essa temática, uma vez que cada contexto social, cultural e econômico é ca-
paz de criar uma maneira particular de concepção a respeito desse tema. Nesse
sentido, para realizar reflexões sobre as crianças e suas infâncias se faz necessário
compreender essa fase da experiência humana de maneira global, não limitada aos
seus fatores biológicos, e sim relacionada aos contextos em que a vida se faz em
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todas a suas nuances. Trata-se de uma temática que apresenta uma abordagem
plural e multifacetada.
Frente ao exposto, podemos inferir que as formas de se relacionar com a infân-
cia resultam de uma complexa rede de valores e regras predominantes no ambiente
ao qual ela está inserida. Müller (2007) afirma que o lugar social das diversas
categorias de infância e, por consequência, de crianças, aparece a partir da ideia
do que é naturalmente aceito ou considerado normal. A autora explica que, até
o século XVIII, situações de pobreza ou riqueza eram consideradas autênticas e,
assim, justificadas naturalmente às trajetórias distintas de crianças de diferentes
condições sociais.
Contudo, é preciso afirmar que a concepção de normalidade a respeito da in-
fância e das crianças nunca representou a totalidade de realidades infantis, uma
vez que a infância das crianças brancas, de origem europeia, cristãs, urbana e de
classes abastadas pautou e unificou, historicamente, a concepção de infância. Po-
demos citar aqui uma das obras clássicas escritas sobre o tema: História Social da
Criança e da Família, de Philippe Ariès. Tal obra referenciou durante muito tempo
os estudos sobre a infância. Na contemporaneidade as discussões a respeito dessa
temática e os avanços na área de estudos sobre a infância (PINTO e SARMENTO,
1997; SARMENTO, 2000; 2008; ARROYO, 2008; 2012a; 2012b; MÜLLER, 2007 e
outros) nos permitem ampliar o olhar e considerar diversas infâncias acontecendo
simultaneamente em vários contextos geográficos. As infâncias e seus entornos ga-
nham destaque por meio desses estudos que, além de expor e definir as concepções
da infância, valorizam as experiências infantis, bem como empreendem denúncias
e anúncios sobre as crianças e suas infâncias.
De maneira geral, a intenção desse escrito é contribuir para a ampliação desse
campo de estudos ao problematizar sobre as infâncias, mais especificamente sobre
as crianças do campo, no sentido de provocar uma discussão que oportunize refletir
sobre o reconhecimento de seus direitos e a legitimação das identidades das dis-
tintas infâncias. Para tanto, num primeiro momento, abordamos as questões da
infância e das crianças, numa perspectiva histórica, dando ênfase nos processos de
constituição das concepções de infâncias. Na sequência, trazemos à baila a proble-
matização sobre as infâncias do campo. Por fim, nas considerações finais, retoma-
mos aspectos que julgamos primordiais discutidos ao longo do texto e afirmamos a
urgência de se colocar no cenário das discussões relativas à infância a condição da
experiência infantil das crianças do campo para que tenham seus direitos legiti-
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mados e a constituição de suas identidades reconhecidas a partir da pluralidade de
espaços em que suas vidas se fazem.
Infância e criança em foco: perspectivas contemporâneas
A partir da modernidade, tendo em vista o crescimento das cidades, da popu-
lação, do comércio, da inserção da mulher no mercado de trabalho dentre outros
fatores, a infância começa a ser vista como questão social, política e educacional
emergente. Alguns estudiosos e teóricos começam a se preocupar com a concepção
de infância e de criança, surge o sentimento de infância (ARIÈS, 2006).
Com o sentimento de infância, surge também à preocupação com a educação
da criança, seu bem-estar físico e social, sua formação integral para o exercício da
cidadania. Kuhlmann Jr. (1998, p. 31) afirma que:
Pensar a criança na história significa considerá-la como sujeito histórico, e isso requer
compreender o que se compreende por sujeito histórico. Para tanto, é importante perceber
que as crianças concretas, na sua materialidade, no seu nascer, no seu viver ou morrer,
expressam a inevitabilidade da história e nela se fazem presentes, nos seus mais diferentes
momentos.
Assim, constata-se que a concepção de infância e criança tem relação direta
com o contexto histórico, político e social. Kohan (2003) em uma abordagem filosó-
fica evidencia que a infância se caracteriza por uma dinâmica de quatro momentos:
1) inferioridade – sujeitada e desnecessária; 2) superfluidade – pequena e sem fun-
ção 3) possibilidade – projeção do adulto e futuro; e, 4) material da política – sujeito
social e de direitos.
Pondera-se que o ser humano passa por fases ao longo de sua vida, sendo a pri-
meira delas a infância. Nesse sentido, com base no Art. 2º do Estatuto da Criança
e do Adolescente (BRASIL, 1990), compreendemos infância como o período entre
zero e doze anos de idade incompletos. A pessoa que está nessa fase é denominada
criança, a qual é um ser em desenvolvimento físico, psicológico, intelectual e social,
é dotada de direitos garantidos por lei, faz parte da sociedade e do contexto históri-
co, brinca, estuda, imagina, cria e é dotado de competências múltiplas.
Kuhlmann Jr, (1998, p. 16) pontua que a:
Infância tem um significado genérico e, como qualquer outra fase da vida, esse significado
é função das transformações sociais: toda sociedade tem seus sistemas de classe de idade e
a cada uma delas é associado um sistema de status e de papel.
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Infâncias e diretos na contemporaneidade: em foco as crianças do campo
Frente ao exposto é contundente evidenciar que o contexto vivido e o período
histórico têm forte influência na concepção de infância e criança que toma corpus.
Nesse sentido, Lajolo (1997) é tenaz ao considerar que, hoje, existem tantas in-
fâncias quantas forem ideias, práticas, discursos, que em torno dela e sobre ela se
organizem.
De acordo com Oliveira (2002), etimologicamente a palavra “infância” é ori-
ginária do latim (in-fans) e significa “não fala”. No entanto, essa definição na con-
temporaneidade é inadequado, pois a leitura de mundo eminente nos dá a conhecer
que o bebê tem capacidade de comunicar-se com outras pessoas por meio do choro,
do sorriso e de gestos, além do que a fala estruturada é adquirida entre o segundo
e terceiro ano de vida. Portanto, o infante contemporâneo e a criança têm fala,
embora ignorada social e culturalmente por alguns.
A visão naturalizada de que a infância é um período específico, pelo qual todos
passam, é que pode ser questionável, pois ser criança não significa necessariamen-
te ter infância. Pode-se perceber que estamos num processo de alienação da infân-
cia: crianças pobres que precisam trabalhar e crianças da classe média e ricas que
os pais as ocupam com inúmeras atividades que antecipam a fase adulta. É preciso
oferecer à criança aquilo que lhe é próprio: o direito de brincar, criar e aprender.
A infância vem sendo alvo de frequentes estudos relacionados ao meio social
onde está inserida. De acordo com Müller (2006), as concepções sobre a infância va-
riam historicamente e as crianças ao serem parte da sociedade são mutantes, por
um lado, adaptáveis, mas por outro, criativas e criadoras. Portanto, não podemos
enquadrá-las como seres passivos, mas sim como agentes ativos que constroem
suas próprias culturas e conhecimentos.
Nesse contexto, busca-se respaldo na Sociologia da Infância, na concepção de
Sarmento e Gouvêa (2008, p. 11) que prima por “considerar a criança como sujeito
que tem produção simbólica diferenciada produzida na interlocução com a cultura
mais ampla, produção que define uma cultura infantil com identidade própria”.
A infância, dentro desse enfoque, passa a ser concebida como uma categoria
social geracional, isto é, sua ação no contexto de pertença não é passiva e fruto da
reprodução da ordem social, é elaboradora, transformadora e produtora de cultura.
Nesse contexto, os personagens sociais envolvidos e implicados com a criança
têm por compromisso político e pedagógico observar as interações infantis, anali-
sá-las e concebê-las como fonte de apoio para a atuação consciente e intencional de
educadores responsáveis pelo enriquecimento e diversificação dos repertórios das
crianças, a fim de favorecer a construção da cultura da infância.
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Franciele Clara Peloso, Najela Tavares Ujiie
A partir do final do século XX e início do século XXI, a criança e seu desenvolvi-
mento passam a ter concepções valorizadas por estudiosos, entre os quais podemos
destacar Steinberg e Kincheloe (2001, p. 12) que apresentam a seguinte afirmação
sobre a infância no decorrer da história “é uma criação da sociedade sujeita a mu-
dar sempre que surgem transformações sociais mais amplas”.
Desse modo, a criança passa do anonimato para uma contextualização que a
destaca como um sujeito histórico, construtor de identidade e produtor de cultura,
que possui significações próprias do mundo diferenciando-se dos adultos. Sendo
assim, a visão da sociologia da infância oferece reflexões que possibilitam o reco-
nhecimento da criança como produtora de sua própria identidade.
Pode-se destacar que a infância é muito mais que um período vivenciado ra-
pidamente pelas crianças é a fase na qual conquista sua aprendizagem e indepen-
dência, independência que está relacionada à consciência de ser um sujeito que
produz pensamentos e cultura. A infância é um tempo em si, com características,
especificidades e vivências próprias.
Nesse sentido, Arroyo (1994, p. 91) afirma:
A infância já cidadã, é um ser vivo, é ser cultural já, é ser social já. E enquanto ser social
que já é, na medida em que ela viver com mais intensidade e que ela é, estará se preparan-
do para um dia viver com intensidade futuras idades, futuras fases de sua vivência, de sua
formação.
Com base no autor supracitado, a infância não é categoria estática, é constru-
ção permanente, é categoria social. Dessa forma, tendo em vista a incorporação da
educação infantil, como primeira etapa da educação básica, a partir da Constitui-
ção Federal (BRASIL, 1988) e da LDB 9394 (BRASIL, 1996), a nossa preocupação
com a educação da infância deve se dar por compreensão da obrigação pública que
temos frente à infância, considerando que a criança passou a ser sujeito de direitos
e, consequentemente, o Estado passa a ter compromissos educacionais e sociais
para com elas, bem como nós também enquanto profissionais implicados com a
dinâmica educacional.
Como afirmam Sarmento e Gouvea (2008, p. 19), “ao estudar a infância, não é
apenas com as crianças que a disciplina sociológica se preocupa, e sim com a tota-
lidade da realidade social o que ocupa a sociologia da infância”.
Sendo assim, se faz necessário entender as modificações ocorridas na trajetó-
ria da infância até a contemporaneidade e, nesta perspectiva, este texto prima por
dar uma singela contribuição.
Corsaro, citado por Sarmento (2008, p. 29) afirma:
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Infâncias e diretos na contemporaneidade: em foco as crianças do campo
As crianças, na sua interação com os adultos, recebem continuamente estímulos para integra-
ção social, sob a forma de crenças, valores, conhecimentos, disposições e pautas de conduta,
que, ao invés de serem passivamente incorporados em saberes, comportamentos e atitudes,
são transformados, gerando juízos, interpretações e condutas infantis que contribuem para
configuração e transformação das formas sociais. Deste modo, não são apenas os adultos que
intervêm junto das crianças, mas as crianças também intervêm junto aos adultos.
Pode-se afirmar que as crianças integram o meio social, constroem, interpre-
tam e transformam essa herança cultural que é transmitida pelos adultos, são
sujeitos determinantes e determinados.
O olhar das crianças permite revelar fenômenos sociais que o olhar dos adultos deixa na
penumbra ou obscurecem totalmente. Assim, interpretar as representações sociais das
crianças pode ser não apenas um meio de acesso à infância como categoria social, mas as
próprias estruturas e dinâmicas sociais que são desocultadas no discurso da criança (PIN-
TO, SARMENTO, 1997, p. 25).
Nessa dinâmica compreende-se que o preceito fundamental do estudo da cul-
tura infantil, segundo os autores é a interpretação da autonomia da criança em
relação aos adultos, que oportunizam significações próprias, estruturam e consoli-
dam sistemas simbólicos.
Como evidencia Müller (2006, p. 557), “com certeza, as crianças realizam pro-
cessos de significação que são específicos e diferentes daqueles produzidos pelos
adultos”. Pode-se, assim, definir cultura própria da criança como aquela interpre-
tação realizada de forma imaginária, um mundo de fantasias, com significado con-
dizente com sua inocência.
Contextualizando, na atualidade, a Sociologia da Infância volta seu olhar para
a criança de forma que a vê como um ser que possui capacidade de construir sua
identidade e de dar significado às mudanças que ocorrem no meio a que pertence,
isto acontece por meio de suas experiências. “No caso das experiências das crianças
nas sociedades contemporâneas são inegáveis as radicais transformações nas suas
formas de inserção, revelando como a categoria infância vem sendo ressignificada”
(SARMENTO, GOUVEA, 2008, p. 11).
Entretanto, Sarmento e Gouvea (2008) salientam que, ainda que a criança
seja autora de sua forma de interpretação, também recebe influência das cate-
gorias geracionais, ou seja, a dependência daquilo que já está constituído pelas
últimas gerações com as quais cria laços de pertença. São sujeitos de direitos e
históricos determinantes e determinados pelo âmbito social e cultural de inserção.
Segundo Steinberg e Kincheloe (2001), existe uma cultura produzida para
criança, a qual se funda na infância ainda como tempo de inocência e dependência
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dos adultos, explorando a fantasia e o desejo infantil, em prol de ideologias do
mercado. E uma cultura da criança construída em um processo de produção cor-
porativa criança-meio-adulto. A cultura infantil é, pois, constituída por elementos
transmitidos e aceitos da cultura do adulto e elementos elaborados pelas próprias
crianças.
Dentro dessa dimensão, as autoras e Müller (2006) apontam para a necessi-
dade do reconhecimento por parte dos educadores da infância da cultura infantil,
uma vez que seu entendimento tem ligação direta com as concepções que as crian-
ças fazem do mundo, da vida e de si. Eis aí a importância da discussão fomentada,
a qual primou por respaldar a compreensão de dar voz e vez às crianças dentro
de seu contexto de pertencimento, a fim de balizar a proteção integral como foco e
critério de validade para a infância, a criança e o adolescente no cenário social e
educacional mais amplo.
Arroyo (2008, p. 134) em seus estudos bane a visão tradicional da infância e
demarca:
[...] uma infância com voz, pensamento, cultura, autonomia, capacidade de fazer escolhas e
de construir seu universo. [...] apresenta as crianças como atores sociais, morais e culturais
plenos, consequentemente sujeitos da construção de suas formas de ser. As crianças não se
-
riam passivas da conformação social de seu tempo, sofrem a diversidade de efeitos dos aspec-
tos estruturais, mas também suas ações são estruturantes e através delas se autoconstroem.
Enfim, toda criança tem direito de ser criança, de ter infância e de ter uma
educação de qualidade, comprometida com a cidadania e com a formação de uma
sociedade democrática, que a reconheça como um ser social e histórico, pois, em-
bora alguns progressos tenham acontecido em relação à criança, ainda há mui-
tas conquistas a serem alcançadas e que perpassam pelo compromisso coletivo de
agentes educacionais, jurídicos e sociais.
Frente ao exposto, podemos afirmar que na história sempre existiu distintas e
diversas infâncias e formas de ser criança. No entanto, buscou-se, por muito tem-
po, generalidade de concepção sobre infância. A ideia de uma concepção genérica
esteve vinculada junto aos estudos acadêmicos, à religião, à política, dentre outros
campos. Essa concepção passou a ser dominante e desconsiderou aspectos como
sexo, classe social, cultura, espaço físico e geográfico onde a criança vivia/estava, a
relação estabelecida com as pessoas adultas, a época em que se era criança.
Pensar a infância na contemporaneidade é dar visibilidade às crianças que
participam de diferentes espaços, que recriam outras culturas e, a partir disso,
nos permitem outras compreensões de infância. Sob esse olhar, se faz necessário
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Infâncias e diretos na contemporaneidade: em foco as crianças do campo
pensar e reconhecer outros tempos e espaços de produção da infância e educação
das crianças, espaços que têm emergido como formas de organização da própria
sociedade civil, bem como requerem pela garantia de seus direitos.
Nesse entender, tem-se a intenção de chamar a atenção para o fato de que as
crianças, do e no Brasil, construíram história – com sua cultura, seus sofrimentos,
sua desvalorização, sua exploração –, mesmo com a ausência de direitos que as
tivessem como sujeitos principais, e algumas continuam construindo sua história
e a história cultural do país em seu ocultamento, como as crianças que têm sua
infância experienciada nos contextos do campo.
É importante citar, a partir das políticas públicas, quais são consideradas as
infâncias do campo: agricultores familiares, extrativistas, pescadores artesanais,
ribeirinhos, assentados e acampados da reforma agrária, quilombolas, caiçaras,
indígenas e os povos e comunidades tradicionais (BRASIL, 2008). Como essas in-
fâncias têm seus direitos garantidos?
Nossa intenção na próxima seção é ampliar essa discussão e problematizar
sobre as infâncias, mais especificamente sobre as infâncias do campo.
Infâncias e crianças do campo: alargando as perspectivas contemporâneas
Pensar a criança em diferentes contextos como sujeito de direitos significa
pensá-la na história, como sujeito que afirma sua identidade nas relações sociais
e nos contextos de que participa. Sob essa perspectiva, é preciso reconhecer que a
experiência da infância não pode ser padronizada, uma vez que tem características
diferentes que variam de acordo com a classe social, com a cultura, com a etnia,
com o gênero, com a experiência socioeconômica e política de cada sujeito em seu
tempo histórico e da sociedade de que participa.
Mesmo com todo o esforço teórico proveniente de estudiosos da área (PIN-
TO, SARMENTO, 1997; SARMENTO, 2000; 2008; ARROYO, 2008; 2012a; 2012b;
MÜLLER, 2007 e outros) para explicar e compreender a situação da infância, a
realidade apresenta muitas crianças desrespeitadas, oprimidas ou invisíveis em
suas formas de ser e estar no mundo. Podemos dizer que existem, ainda, infâncias
e crianças que são compreendidas a partir de uma concepção única permeada pela
ideia de homogeneidade, que desconsidera a herança histórica de cada sujeito, bem
como condicionantes econômicos, geográficos, culturais, sociais, étnicos, dentre ou-
tros aspectos que constitui suas identidades.
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Há crianças que não têm acesso ao atendimento mantido pelo Estado (conside-
rando a política pública brasileira), seja ele de saúde, educação, assistência social,
cultura, lazer e tantos outros. Essas infâncias não existem? Essas crianças não
participam de processos de socialização ou os processos sociais de participam foram
negados historicamente por não pertencerem à cultura branca, europeia, urbana e
cristã? Como os direitos dessas crianças são assegurados na prática?
Diante disso, consideramos imprescindível pensar sobre como se dá a infância
das crianças do campo e como se afirmam suas identidades. Essas crianças vivem e
convivem em um cenário distinto, muitas vezes marcado pela dificuldade de acesso
aos serviços oferecidos pelo Estado, tais como escola e saúde públicas.
Whitaker (2002) nos ajuda a afirmar que a infância do campo sempre existiu.
A autora sinaliza que ao que concerne ao território brasileiro, talvez tenha surgido
antes mesmo da infância urbana. A estudiosa afirma, ainda, que a ciência contem-
porânea é urbana-centrada e, a partir dessa raiz, estabeleceu padrões universais.
Esses padrões criaram dicotomias hierarquizadoras, tais como masculino x femi-
nino; cultura x natureza; urbano x rural; homem branco x homem não branco,
dentre outros. Sob essa perspectiva, os estudos de Whitaker (2002) sustentam que
o primeiro polo, de acordo com a ciência contemporânea é sempre valorizado em
detrimento do segundo.
Com base na afirmação de Whitaker (2002), consideramos que a concepção de
infância, aquela compreendida como universal ou generalizada, também foi cons-
truída no alicerce de uma cultura e/ou ciência urbano-centrada. Logo, a infância
do campo ficou subjugada a essa concepção e não foi considerada a partir de sua
realidade, de seu contexto e de seus sujeitos.
A partir dos estudos provenientes da sociologia da infância, conforme destaca-
mos ao longo deste texto, podemos compreender a infância em sua pluralidade de
condições, o que sugere o reconhecimento de diferentes formas de viver esse período
da vida. Como parte desse reconhecimento, há também a certificação de categorias
que demarcam a existência dessas diferentes infâncias, suas culturas, suas formas
de ser e estar no mundo. Silva, Felipe e Ramos (2012) destacam que estariam in-
cluídas nessas categorias: crianças pobres e ricas, africanas e europeias, brancas e
negras, do campo e da cidade, dentre outras. Num primeiro momento, essa distin-
ção pode parecer excludente, no entanto, seu reconhecimento nos permite ampliar
o olhar para as diferentes infâncias; olhá-las a partir delas mesmas, de suas espe-
cificidades. Esse movimento, demarca a existência de cidadanias contemporâneas,
as quais passam a requerer também a legitimação e/ou garantia de seus direitos.
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Infâncias e diretos na contemporaneidade: em foco as crianças do campo
No que tange à garantia da cidadania na infância, vale destacar que se trata de
uma construção que deve ter seu alicerce pautado na realidade das crianças, em
sua individualidade, bem como ao seu grupo de pertença e experiências que se
constituem na vivência cotidiana.
As crianças do campo estão inseridas em uma geografia específica e em uma
rede heterogênea. Quando pensamos nessas infâncias, há algo que é comum a to-
das elas: fazem parte de grupos socioculturais historicamente excluídos, oprimidos,
explorados. Por isso, aparecem no cenário social numa linha tênue entre a inclusão
e a exclusão. Incluídas num processo de exclusão.
O campo é o espaço/território de vida, onde pessoas moram, trabalham,
estudam e precisam ter sua dignidade reconhecida a partir do seu lugar, da sua
identidade cultural. As relações estabelecidas no campo vão além da produção
agropecuária e agroindustrial, do latifúndio e da grilagem de terras. O campo é
lugar de relações, é espaço de camponeses, de quilombolas, de indígenas, de ribei-
rinhos e de todas as populações tradicionais do campo. No entanto, a história do
campo brasileiro e dos povos do campo nem sempre foi compreendida, estudada e
socializada como espaço de relações, de cultura e de produção de vida e de educa-
ção. Fernandes (2011) enfatiza que o campo deve ser concebido a partir de toda a
dimensão humana que contempla, bem como das distintas formas de existência
presentes nessa dimensão.
Quando pensamos, especificamente, nas crianças do campo, no contexto brasi-
leiro, historicamente, podemos identificar infâncias que foram negadas e/ou invizi-
bilizadas pela distribuição desproporcional das riquezas, tanto simbólicas quanto
materiais. Essa situação produziu e produz condições sociais desfavoráveis para
uma parcela da população. Essas condições sociais dizem respeito ao acesso a bens
culturais, à educação formal de qualidade – desde a educação infantil, aos pro-
cessos de socialização potencializadores de práticas humanizadoras. Poderíamos
problematizar várias práticas dessas condições desfavoráveis, tais como: acesso à
educação infantil (creche) para crianças do campo, transporte para chegarem até
as escolas, alguns casos de falta de saneamento básico, acesso a diferentes conheci-
mentos culturais, dentre outros. Destaca-se, assim, a necessidade de pensar sobre
essas infâncias, para que sejam reconhecidas suas marcas, sobretudo superados os
processos que as submetem à exploração, à crueldade e, sobretudo, à negação de
direitos.
Frente ao exposto, é possível afirmar que as populações do campo tiveram seus
direitos sociais e humanos violados. No Brasil, esses direitos são garantidos pela
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Constituição de 1988 e, no caso das crianças, (re) afirmados no Estatuto da Criança
e do Adolescente de 1990, bem como na LDB 9394/96. Os documentos citados ope-
ram em favor das crianças como sujeitos de direitos, que devem ser reconhecidos e
consumados pela sociedade e pelo Estado. Esses documentos legitimam os direitos
para todas as crianças em igual teor, no entanto, alguns estudos (ARENHART,
2007; SILVA, 2012; SILVA, 2013; ROSSETI-FERREIRA, 2012) denunciam que na
prática as crianças do campo carecem ainda de terem seus diretos garantidos.
O reconhecimento das distintas condições em que a infância acontece nos per-
mite autenticar a pluralidade de infâncias existente no campo, bem como reconhe-
cer as crianças que participam desse contexto como aquelas que precisam ter seus
diretos garantidos a partir do respeito à sua identidade. Essa autenticação denun-
cia a disparidade existente nas distintas formas de ser crianças e viver o período da
infância. Consequentemente, os processos de humanização das crianças do campo
são pautados na compreensão dessa realidade complexa, plural e desigual.
A desigualdade entre campo e cidade ainda são marcantes. As crianças do
campo têm uma infância marcada, muitas vezes, pela falta de elementos básicos
para seus processos de socialização. Dentre esses elementos, os mais precários e,
por vezes, ausentes, é o acesso a serviços públicos de saúde e educação escolar,
mesmo que existam políticas públicas específicas para ambas.
No caso dos processos de educação formal, a escola localizada no campo
sofre com o descaso em relação a sua infraestrutura, desqualificação profissional
e com o pouco investimento na implementação das políticas públicas (ARROYO,
2007; 2012a). Geralmente, as escolas do campo comportam classes multisseriadas
e não têm profissionais para todas as demandas da instituição (zeladora/es, meren-
deira/os, corpo docente e gestão escolar). É preciso destacar que as discussões sobre
a Educação do Campo contribuíram para a implantação de Políticas específicas e
alavancaram a qualidade da educação que se oferece no e para o campo. Igualmen-
te, promoveram estudos e abriram uma discussão sobre formação de profissionais
coerente com as práticas do campo (ARROYO, 2007; 2012a). No entanto, é preciso
destacar que essa discussão, bem como a implementação dessas Políticas de Edu-
cação do Campo ainda são incipientes.
Nesse sentido, a falta ou o não cumprimento do que preveem as políticas pú-
blicas fortalece a ideia de atraso a que o campo foi/é associado e, na mesma me-
dida, invisibiliza seus sujeitos, seus processos de desenvolvimento e acesso aos
bens materiais e culturais; logo, invisibilizam-se as crianças e desconsideram-se as
distintas formas de viver a infância.
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Retomando as afirmações de Whitaker (2002), podemos inferir que, histori-
camente, houve a reprodução de uma hierarquia – do urbano sobre o rural. Morar
no campo é sinônimo de inferioridade, de pobreza, de falta de instrução e de mo-
dernidade, de inferioridade social e cultural. Nessa relação complexa, marcada por
forças ideológicas e políticas, a infância é afetada e as crianças marcadas por uma
disseminação aviltante da vida no campo. As crianças do campo são chamadas de
caipiras, peões, bregas, colonas, dentre outros termos. Além disso, a vida no campo
é marcada pela sua desvalorização social nos espaços urbanos frequentados, públi-
cos ou privados: supermercados, comércios, instituições escolares, dentre outros.
Direitos para quem?
Stropasolas (2012) afirma que os processos de invisibilidade e exclusão mar-
cam a condição social da infância no Brasil. Especificamente sobre as infâncias do
campo, Arroyo (2012a) destaca que os estudos da infância passaram a denunciar
a invisibilização de distintas formas de viver a infância na história. No entanto, o
mesmo autor destaca que há infâncias tidas não apenas como invisibilizadas, mas
inexistentes, cita como exemplo aquelas que pertencem a coletivos sociais, raciais e
étnicos que não são reconhecidas como parte da história social, econômica, política,
cultural e pedagógica do país.
A história social, política e cultural reconhecida e validada é aquela feita por
e para algumas pessoas, geralmente brancas, de origem europeia, cristã e urbana.
Essas pessoas são definidas pela história como racionais, cultas, laboriosas, enfim,
superiores. As demais, aquelas que não são legitimadas no registro da história,
são definidas como primitivas, improdutivas e irracionais. É preciso refletir sobre
o acesso aos diretos de todas as pessoas subjugadas a esses processos excludentes
e como a infância transita nessas relações tão enraizadas historicamente. Nesse
sentido, questionamos, quais são os alcances e as formas que as crianças do campo
encontram para exercer seus direitos? Destacamos aqui a necessidade de se pensar
na efetivação dos direitos que, historicamente, foram negados às crianças do cam-
po, de modo a respeitar a constituição de suas identidades, sobretudo o direito de
legitimação da especificidade de suas infâncias.
Considerações
Esse escrito objetivou refletir sobre as infâncias e as crianças, seus direitos e
a constituição de suas identidades considerando a pluralidade de espaços em que a
infância acontece e dando destaque às crianças do campo.
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As reflexões feitas ao longo deste texto, transparecem a evidência de que, quan-
do colocamos as infâncias do e no campo na esteira da discussão, somos convidados/
as a repensar nossas concepções. Conhecer as infâncias do campo nos possibilita
construir outra discussão sobre a infância e seus espaços de experiência, legiti-
mando a concretude histórica das crianças que constituem suas identidades nesses
espaços. Nesse sentido, quando colocamos as crianças do campo e suas distintas
infâncias nos holofotes, a história da infância ganha outras leituras, bem como, são
outras as compreensões relativas aos direitos da população infantil. As leituras a
que nos referimos se dão a partir de uma infância situada, real, menos abstrata,
com outros tensionamentos. Uma infância que adquire outros significados e exige
outras teorias para sua compreensão e problematização.
Encerramos esse artigo afirmando a necessidade de colocar no cenário das
discussões as crianças do campo em suas infâncias e, dessa forma, colaborar para
o registro de nossa história social e cultural, para a legitimação dos direitos des
-
sas crianças e o reconhecimento do lugar onde suas identidades são forjadas.
Acreditamos que, sem levar ao conhecimento os processos de marginalização,
invisibilidade e inferiorização a que alguns grupos de crianças foram expostos
durante nossa história nacional – e, como exemplo, podemos citar as crianças dos
povos do campo em toda sua diversidade –, essa história é incompleta. É preciso
problematizar as formas de socialização e construção da cidadania. Que direitos?
Para quais crianças?
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