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Este artigo está licenciado com a licença: Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
Daniele Vanessa Klosinski, Adriana Salete Loss
Educação infantil: espaço do brincar e da interação da criança
Child education: Space of play and child interaction
Educación infantil: Espacio de juego e interacción infantil
Daniele Vanessa Klosinski
*
Adriana Salete Loss
**
Resumo
O presente artigo objetiva problematizar a condição subjetiva da criança enquanto sujeito num contexto forte-
mente inuenciado pelos pressupostos neoliberais. Desse modo, o estudo qualitativo e de abordagem explora-
tório-interpretativa buscou reetir sobre a necessária construção conceptual da criança como sujeito histórico e
de interação, no sentido de superar as inuências paradigmáticas neoliberais da Educação Infantil. Desse modo,
a metodologia de estudo englobou a pesquisa bibliográca, alicerçada em autores como: Ariès (1981); Sarmento
(2005); Dewey (1979); Teixeira (1934); Dardot e Laval (2016); Larrosa (2015). A pesquisa constituiu-se da contrapo-
sição do paradigma neoliberal de infância pela concepção da subjetivação infantil, tendo em vista as interações,
as experiências e o brincar. Por m, as reexões chamam atenção para o fato de os espaços educacionais rompe-
rem com a dogmatização pedagógica neoliberal, de modo a rmar-se na concepção da criança com direitos de
aprendizagem por meio do brincar.
Palavras-chave: Infância. Subjetividade infantil. Cultura neoliberal. Interações. Brincar.
Abstract
This article aims to problematize the subjective condition of the child as subject in a context strongly inuenced
by neoliberal assumptions. Thus, the qualitative study and exploratory-interpretative approach, seeks to reect
on the necessary conceptual construction of the child as a historical and interaction subject, in order to overcome
the neoliberal paradigmatic inuences of early childhood education. Thus, the study methodology was through
bibliographic research, which had its foundations in authors such as: Ariès (2006); Sarmento (2005); Dewey (1979);
Teixeira (1934); Dardot and Laval (2016); Larrosa (2015). The research consisted of the counterposition of the neo-
liberal paradigm of childhood by the conception of child subjectivation, through interactions, experiences and
play. Finally, the reections draw attention to the fact that educational spaces break with neoliberal pedagogical
dogmatization, so as to be grounded in the conception of children with learning rights through play.
Keywords: Childhood. Child Subjectivity. Neoliberal culture. Interactions Play.
*
Doutoranda em Educação no PPGEDU/UPF. Coordenadora Pedagógica no SENAI Erechim/RS e Professora do Ensino
Superior na Faculdade Anglicana de Erechim/RS (FAE), Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-3219-9806. E-mail:
daninessa_604@hotmail.com
**
Doutora em Educação pela PUC/RS com estágio no Instituto de Educação da Universidade de Lisboa/Portugal (2008-
2009). Pós-doutorado em Educação pelo Instituto de Educação da Universidade de Lisboa (2014-2015). Professora as-
sociada da Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS, Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5576-0929. E-mail:
adriloss@us.edu.br
Recebido em 04/10/2019 – Aprovado em 15/01/2020
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i2.11433
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Educação infantil: espaço do brincar e da interação da criança
Resumen
Este artículo tiene como objetivo problematizar la condición subjetiva del niño como sujeto en un contexto
fuertemente inuenciado por los princípios neoliberales. Así, el estudio cualitativo y el enfoque exploratorio-in-
terpretativo, busca reexionar sobre la necesaria construcción conceptual del niño como sujeto histórico y de
interacción, para superar las inuencias paradigmáticas neoliberales de la educación de la primera infancia. Así,
la metodología de estudio fue a través de la investigación bibliográca, que tuvo sus fundamentos en autores
como: Ariès (2006); Sarmento (2005); Dewey (1979); Teixeira (1934); Dardot y Laval (2016); Larrosa (2015). La
investigación consistió en la contraposición del paradigma neoliberal de la infancia mediante la concepción de
la subjetivación infantil, a través de interacciones, experiencias y juegos. Finalmente, las reexiones llaman la
atención sobre el hecho de que los espacios educativos rompen con la dogmatización pedagógica neoliberal,
para fundamentarse en la concepción de los niños con derechos de aprendizaje a través del juego.
Palabras clave: Infancia. Subjetividad infantil. Cultura neoliberal. Interacciones. Jugar.
Introdução
Fortemente influenciadas pelos pressupostos neoliberais, as culturas infantis
e as infâncias acabam por destituir a condição subjetiva da criança como sujeito a
partir de contexto social predeterminante, o que as obriga, desde a mais tenra idade,
a se constituírem como seres que já projetam em si a possibilidade de uma função
profissional que seja vista com esmero e potencialize um capital econômico farto.
A sociedade como um todo acaba por negligenciar a infância, ao mesmo tempo
em que a insere em dinâmicas sociais simplistas, não dando a devida importância
a esse momento vivido pelos sujeitos. Todo adulto já viveu a infância que, por vezes,
acaba sendo perdida por se projetar a partir de um viés individualista, de trabalho,
agendas cheias, comandado exclusivamente pelos compromissos em prol da produ-
ção e do mercado.
A instituição social “família”
1
, à qual a criança pertence desde o seu nascimen-
to, reproduz uma prática cultural que determina precocemente como este sujeito
será inserido num contexto sociocultural e de valores. Sua limitação, portanto, é
percebida nos primeiros anos de vida, ao passo que se determina onde, com quem,
com o que e de que maneira brincar, omitindo, assim, sentimentos, especialmente o
choro, que é sua principal forma de expressão. Nessa perspectiva, chega-se ao pon-
to de negar-lhe a sua imaturidade, potencial capacidade de seu desenvolvimento.
Ao brincar, a criança tem em si a maneira precípua de se perceber como sujeito
pertencente ao seu meio social. Nesse sentido, é por meio das brincadeiras, que a
criança potencializa vontades, anseios, escolhas e desejos, manifesta-se, bem como
expressa e reconstrói sua percepção de mundo, reconhecendo-se como protagonista
de sua própria história na interação com o mundo que a cerca. Todavia, ao passo
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que se nega à criança o elemento condutor e potencializador da sua infância que é
o brincar e sua essência, passa-se a desconstruir as identidades infantis a partir
de uma lógica neoliberal que nega o direito primordial que é ser criança em sua
ingenuidade, imaturidade e inocência.
A infância, aqui entendida como categoria social, apresenta as crianças, me-
ninos e meninas, em suas subjetividades, entendidas como atores sociais, dotados
de voz e perspectivas próprias, ativos em suas escolhas e manifestações, enfim,
cidadãos de direitos e co-construtores do momento vivido. Categoria na qual as
crianças são vistas a partir das relações estabelecidas com os adultos e seus pares,
numa dinâmica de respeito aos seus anseios e vontades, mesmo que ainda interde-
pendentes de grupos sociais como a família e as instituições escolares (MARTINS
FILHO, 2016). Ou seja, uma categoria que propaga o não esquecimento da infância
como integrante do desenvolvimento do ser humano e da sociedade, na percepção
do quanto as crianças necessitam compreender os sentidos das relações que são
estabelecidas nos grupos de sua convivência, a significação, a pauta do diálogo e
suas vivências.
Sob essa ótica, o texto que segue objetiva refletir sobre a necessária superação
paradigmática neoliberal de infância para a construção da concepção da infância
como território de subjetivações, do ser criança protagonista de sua história e de
suas experiências pelas interações e pelo brincar.
O artigo está organizado em três partes. A primeira parte apresenta os fun-
damentos teóricos que embasam o estudo; a segunda expõe uma breve contextua-
lização do percurso metodológico; a terceira e última parte põe em evidência as
reflexões pertinentes à pesquisa.
Dos fundamentos teóricos: conceitos de infância e criança
Ao longo da história, o conceito de infância passou por transformações signifi-
cativas, tanto é que, na antiga Grécia, as crianças, assim como mulheres e escravos,
não eram consideradas cidadãs. As crianças eram introduzidas no mundo adulto,
sem o devido respeito pelas características e necessidades da infância. Ademais,
havia a diferenciação da educação dos meninos e das meninas.
Na idade média, de acordo com Ariès (1981), as crianças eram denominadas
seres de Deus, com bondade, singeleza, perfeição e necessitavam de cuidado si-
giloso e correção. Segundo o autor, a partir do século XVII, as crianças passam a
vivenciar um processo de convivência social denominado escolarização. Nesse viés,
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Educação infantil: espaço do brincar e da interação da criança
“A escola confinou uma infância outrora livre num regime disciplinar cada vez
mais rigoroso que nos séculos XVIII e XIX resultou no enclausuramento total do
internato” (ARIÈS, 1981, p. 195), tendo em vista que a escola para a aprendizagem
disciplinar não era o espaço para todas as crianças, pois as da classe subalterna
continuavam junto com adultos aprendendo um ofício.
Na modernidade, período da urbanização e comercialização, a escola passa a
ser necessária para todos, para a aprendizagem da leitura, da escrita e do cálculo.
Ou seja, todas as crianças, indistintamente de classe social, precisam ir à escola.
Tal período é marcado por transformações sociais, de concepções do modo de produ-
ção, da vida familiar e propriamente do papel da criança na sociedade.
Entre as transformações, podem ser citadas as contribuições da filosofia rou-
sseauniana que influenciam na concepção da infância e na compreensão do desen-
volvimento da criança. Nesse sentido, aduz Rousseau (2004, p. 4):
Não se conhece a infância; no caminho das falsas ideias que se têm, quanto mais se anda,
mais se fica perdido. Os mais sábios prendem-se ao que aos homens importa saber, sem
considerar o que as crianças estão em condições de aprender. Procuram sempre o homem
na criança, sem pensar no que ela é antes de ser homem.
Nessa direção, Rousseau (2004) explicita que a “natureza” quer que as crian-
ças sejam crianças antes de serem homens, pois a infância tem maneiras de ver,
de pensar que lhe são próprias. O autor ainda adverte que é necessário ensinar à
criança tudo o que é útil para a sua idade; que não aprenda ela a ciência, mas a
invente, pois o ar científico mata a ciência.
A infância é historicamente construída, a partir de um processo de longa duração que lhe
atribuiu um estatuto social e que elaborou as bases ideológicas, normativas e referenciais
do seu lugar na sociedade. Esse processo, para além de tenso e internamente contraditório,
não se esgotou. É continuamente actualizado na prática social, nas interacções entre crian-
ças e nas interacções entre crianças e adultos. Fazem parte do processo as variações demo-
gráficas, as relações económicas e os seus impactos diferenciados nos diferentes grupos etá-
rios e as políticas públicas, tanto quanto os dispositivos simbólicos, as práticas sociais e os
estilos de vida de crianças e de adultos. A geração da infância está, por consequência, num
processo contínuo de mudança, não apenas pela entrada e saída dos seus actores concretos,
mas por efeito conjugado das acções internas e externas dos factores que a constroem e das
dimensões de que se compõe (SARMENTO, 2005, p. 365-366).
Em conformidade com o referido autor, compreende-se a infância como cate-
goria social e as crianças como atores sociais. Para defini-las como atores sociais,
é necessário conceber o estudo dessas a partir de si mesmas, reconhecendo o seu
olhar e suas representações sociais.
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Pressupostos neoliberais e infância
A compreensão do papel da infância, na sociedade, vem sendo descrita por
vários estudiosos, nos últimos anos, sendo que muitos deles chamam a atenção
para a compreensão da infância como construção social. Nessa perspectiva, Prout
e James argumentam: “a imposição crescente de uma concepção muito ocidental
da infância para todas as crianças, cujo efeito foi mascarar o fato de que a infância,
como tal, nada mais é, na realidade, que uma construção social” (PROUT; JAMES
1990 apud MONDATON, 2001, p. 51).
Sob essa ótica, a construção social da infância passa a ser vista a partir das
relações estabelecidas nos diferentes grupos, especialmente a partir da sensibilida-
de do adulto que percebe a criança e o seu meio. Ou seja, um adulto que considera
as relações entre a criança e seus pares e com os próprios adultos, valorizando a
maneira dessa reagir perante as situações cotidianas, seu ponto de vista sobre os
assuntos de seu interesse, entre tantos outros aspectos que surgem por meio de
vivências que lhes são possibilitadas.
Prout e James (1990 apud MONDATON, 2001) apresentam algumas proposi-
ções que servem de aporte para o entendimento da relação entre infância e socie-
dade, pois, segundo os autores, os elementos que constituem essa relação, especial-
mente quando é concebida como construção social, são consequências de um novo
paradigma. Assim sendo, não há apenas uma infância, mas diferentes infâncias ao
longo de diversos grupos sociais que se estabelecem nos mais diferentes contextos.
1. A infância é uma construção social.
2. A infância é variável e não pode ser inteiramente separada de outras variáveis como a
classe social, o sexo ou o pertencimento étnico.
3. As relações sociais das crianças e suas culturas devem ser estudadas em si.
4. As crianças são e devem ser estudadas como atores na construção de sua vida social e da
vida daqueles que as rodeiam.
5. Os métodos etnográficos são particularmente úteis para o estudo da infância.
6. A infância é um fenômeno no qual se encontra a dupla hermenêutica. Das ciências sociais
evidenciadas por Giddens, ou seja, proclamar um novo paradigma no estudo sociológico da
infância é se engajar num processo de reconstrução da criança e da sociedade (PROUT;
JAMES, 1990 apud MONDATON, 2001, p. 51).
Essa quebra de paradigma exige da sociedade a percepção das infâncias, o que
parece um tanto distante em vários momentos da vida em sociedade. Por conse-
guinte, o controle exaustivo pelo comportamento das crianças acaba sufocando-as.
O mesmo ocorre quando há uma exacerbada busca por meritocracia desde muito
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Educação infantil: espaço do brincar e da interação da criança
cedo, com uma negação aos seus anseios e vontades, como assevera Elias: “o esforço
da longa jornada pode ser tão grande que a pessoa perca a capacidade de desfrutar
a realização ou de vê-la como uma realização satisfatória” (1994, p. 105).
A justificativa, ou melhor, a compreensão das atitudes adultas nas infâncias
visa ao estabelecimento de um padrão de elementos que potencializem esses sujei-
tos para que, desde muito cedo, saibam se “autogestar” a partir de um padrão mer-
cadológico e de competitividade que inunda e contamina as respectivas infâncias.
Esse padrão imposto pelo atual cenário social e econômico, por vezes, não na
sua integralidade, toma conta de uma grande parcela da sociedade, atingindo cer-
teiramente os grupos minoritários, nos quais se destacam as crianças. Dessa forma,
elas são submetidas às escolhas e aos ordenamentos sociais predeterminados para
o seu desenvolvimento, devendo se adequar aos grupos de interesse manifestados
por aqueles que as conduzem.
Evidencia-se, assim, uma nova lógica de organização social que promove um
novo modelo ou estímulos que têm o objetivo de reproduzir ou treinar os sujeitos
e pensamentos, para que estejam alinhados aos comportamentos de mercado e
às suas relações de interesses. Numa perspectiva de liberdade subjetiva e num
arranjo de processos de normatização e de técnicas disciplinares, as quais Dardot e
Laval (2016) denominam “dispositivo de eficácia”, cuja finalidade é a de organizar
uma estratégia sem estrategistas, passam a configurar “os tipos de educação da
mente, de controle do corpo, de organização do trabalho, moradia, descanso e lazer
que seriam a forma institucional do novo ideal de homem, a um só tempo indivíduo
calculador e trabalhador produtivo” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 324). Essa estraté-
gia se destina a conduzir as preferências mercadológicas por uma “mão invisível”,
que guia o sujeito a escolhas que são proveitosas a todos e a um, constituindo-se
sujeito produtivo, cada vez mais individualista, governado, em outras palavras,
pelas regras ditadas pela economia por seu capital.
Diariamente, essa lógica mercadológica, capitalista e neoliberalista controla
as crianças e suas infâncias, assim como os autores descrevem, por uma “mão in-
visível” a qual se encontra fortemente presente nos grupos sociais frequentados
pelas crianças, de modo especial, o espaço institucional da escola.
A escola constitui-se em um espaço contraditório que, em um curto espaço de
tempo, vem se tornando uma reprodutora do sistema multifacetado da sociedade
vigente. É nesse espaço, pois, que se faz necessário preparar as crianças para os
papéis adultos que irão desempenhar em um tempo futuro, o que acarreta uma
“remodelação do comportamento infantil”, partindo de um processo civilizatório
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individualista, com vistas a prepará-las para viver em sociedade, visando seguir
carreiras pré-estabelecidas.
Esse desenho de sociedade data de meados do século XIX, período em que as
instituições eram organizadas para enquadrar os sujeitos rebeldes a uma lógica
acumuladora do capital, exercendo, sobre si mesmos, o esforço de maximização de
prazeres e dores, requeridos pelas relações de interesse. Em continuidade a essa
discussão, Dardot e Laval (2016, p. 326), enfatizam:
Por oposição, o momento neoliberal caracteriza-se por uma homogeneização do discurso do
homem em torno da figura da empresa, essa nova figura do sujeito opera uma unificação
sem precedentes das formas plurais da subjetividade que a democracia liberal permitiu que
conservasse e das quais sabia aproveitar-se para perpetuar a sua existência.
Os autores estruturam alguns pressupostos neoliberais que contribuem para
a análise das mudanças que ocorreram e para a emergência de um novo sujeito
que eles definem como “sujeito empresarial”, “sujeito neoliberal” ou simplesmente
“neossujeito”. O que há de novo, então? Há um sujeito com envolvimento total de si
mesmo. Nesse sentido, o objetivo é governar um ser, para que sua subjetividade seja
envolvida exclusivamente no exercício de sua atividade, ao passo que ele trabalhe
para a empresa como se trabalhasse para si mesmo, convencido de ter eliminado
qualquer sentimento de alienação. A busca, portanto, é pela aproximação entre o
indivíduo e a empresa. Esse sujeito moldado pela racionalidade neoliberal produz
os meios para governá-lo. Em consequência disso, ele propriamente se conduz, o
tempo todo, como uma entidade competitiva, tendo em vista a maximização de seus
resultados e a inteira responsabilidade por seus fracassos, conforme asseveram
Dardot e Larval:
Sujeitos empreendedores que por sua vez produzirão, ampliarão e reforçarão as relações de
competição entre eles, o que exigirá, segundo a lógica do processo autorrealizador, que eles
se adaptem subjetivamente às conduções cada vez mais duras que eles mesmos produziram
(2016, p. 320, grifo dos autores).
A valorização do trabalho, por parte do indivíduo, tornou-se, assim, um princí-
pio absoluto, haja vista que todas as relações passam a ter, em sua base, a relação
empresarial, pois tudo deve ser pensado e realizado sob o âmbito de uma lógica em
-
presarial. Isso porque o sujeito é visto como um ser ativo e autônomo que desenvolve
elementos para operar sobre si mesmo. Desse modo, constrói “estratégias de vida”,
intuindo aumentar o seu capital humano e valorizá-lo da melhor maneira possível,
centralizando e complexificando as relações sociais que se estabelecem na sociedade.
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Na medida em que as sociedades vão se tornando mais complexas e centrali-
zadas, aumentam as especializações e especificidades das necessidades que vão se
constituindo nos diferentes grupos sociais, o que gera o efeito da diversificação de
carreiras profissionais as quais necessitam de maior tempo de preparação e forma-
ção para seu desempenho. Nessa lógica, desenvolvem-se barreiras que separam o
mundo interior do exterior, ao mesmo tempo em que se tem um controle sobre os
processos exteriores de forma naturalizada. Todavia, cada vez mais, dificuldade
para se estabelecer relações com as pessoas, com os grupos sociais (ELIAS, 1994).
Não se pode deixar de pensar que a sociedade, cada dia que passa, modela as
infâncias a partir daquilo que é de interesse de grupos e classes sociais, como já se
mencionou. Isso posto, percebe-se que, quanto mais complexa a sociedade, mais es-
pecialistas ela necessita, o que, consoante Elias (1994), diz respeito à transição das
fases de vida do indivíduo, uma vez que esse necessita de experiências frequentes
a partir de novas vivências. Isso é o que lhe possibilita, portanto, variadas formas
de se relacionar consigo e com o outro. Notoriamente, o que ocorre é uma fissura
eminente, enfrentada com ou sem acolhimento por parte dos sujeitos.
Segundo Dewey (1979), o desenvolvimento humano se dá em sua complexi-
dade devido à relação com o outro e com o grupo social, no entendimento que cada
sujeito é diferente em sua constituição. Logo, seu crescimento se fundamenta a
partir da sua imaturidade – capacidade e potencialidade para aprender, evoluir,
controlar seus instintos naturais, além das suas peculiaridades constitucionais,
determinantes pelas estruturas sociais nas quais está inserido.
Nesse contexto social, o neoliberalismo vê o sujeito como empreendedor de si
mesmo, devendo potencializar suas competências e capacidades, para que suas re
-
lações sejam gestadas a partir da lógica do capital, numa sociedade complexificada
e, cada vez mais, individualizada a qual entende que, desde muito cedo, é necessário
treinar os sujeitos para esse modelo social. Contrapondo esse pensamento, Dewey
(1979) faz referência à necessidade de desenvolvimento dos sujeitos nas relações so
-
ciais estabelecidas com o outro, destacando a importância da distinção entre os su-
jeitos e seu desenvolvimento, bem como do respeito para com suas individualidades.
Nesse sentido, faz-se necessário compreender a criança como sujeito de inte-
ração e de experiências, pois, como afirma Teixeira, “[...] Não é mais o adulto, com
seus interesses, a sua ciência, a sua sociedade, que governa a escola; mas a criança,
com as suas tendências, os seus impulsos, as suas atividades e os seus projetos”
(1934, p. 49). Dessa forma, a criança aprende e se desenvolve pelas experiências,
haja vista que, em conformidade com Dewey (1979) o ato de aprender se dá por
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experiências. Logo, na lógica deweyana, a interação, a continuidade e os afetos são
princípios fundantes e inseparáveis das experiências. No entanto, para que isso se
efetive na prática, é fundamental que a criança seja respeitada como criança, em
suas necessidades, seus desejos e interesses, como também em suas vontades.
Percurso metodológico do estudo
O estudo qualitativo e de abordagem exploratório-interpretativa busca refletir
sobre a necessária construção conceptual da criança como sujeito histórico e de
interação, no intuito de superar as influências paradigmáticas neoliberais da Edu-
cação Infantil. Assim, o estudo norteador deste artigo se deu pelo viés da pesquisa
bibliográfica que, de acordo com Boccato (2006, p. 266),
[...] busca a resolução de um problema (hipótese) por meio de referenciais teóricos publi-
cados, analisando e discutindo as várias contribuições científicas. Esse tipo de pesquisa
trará subsídios para o conhecimento sobre o que foi pesquisado, como e sob que enfoque e/
ou perspectivas foi tratado o assunto apresentado na literatura científica. Para tanto, é de
suma importância que o pesquisador realize um planejamento sistemático do processo de
pesquisa, compreendendo desde a definição temática, passando pela construção lógica do
trabalho até a decisão da sua forma de comunicação e divulgação.
Tendo como base essa concepção, a pesquisa bibliográfica embasou seus fun-
damentos em autores como: Ariès (1981), Sarmento (2005), Dewey (1979), Teixeira
(1934), Dardot e Laval (2016) e Larrosa (2015), de modo a problematizar a condi-
ção subjetiva da criança num contexto fortemente influenciado pelos pressupostos
neoliberais. Relevante salientar que esses incidem na instrumentalização de meios
tecnológicos por meio de programações com fortes apelos mercadológicos de con-
sumo, destituindo, assim, o direito de brincar e a desconstrução das identidades
infantis. O estudo bibliográfico buscou contrapor o paradigma neoliberal de infân-
cia (assistencialismo e cognitivista), com abordagem da subjetivação da infância
direcionada à interação e ao brincar, como também à criança como sujeito histórico
e protagonista de suas experiências.
Educação Infantil: espaço para a subjetivação da infância
Nas sociedades, a individualização da infância acaba por se tornar um pro-
cesso de “domar” suas funções internas, visando a modos de moralidade e civiliza-
ção, como se buscasse uma evolução das crianças para, posteriormente, viverem
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Educação infantil: espaço do brincar e da interação da criança
em conformidade com as regras sociais estabelecidas. Destarte, os processos que
ocorrem não são mais tidos como experiências de vida social, como sujeitos que
vivenciam diversas possibilidades e delas buscam seu conhecimento próprio e do
grupo em que se inserem.
A dualidade que se apresenta na infância está na imperícia dos adultos per-
ceberem a importância da imaturidade das crianças para seu desenvolvimento. À
vista disso, surge a disputa acirrada pelo controle rígido de seus dóceis corpos, além
do treinamento para atendimento das demandas mercadológicas, o que evidencia
uma incapacidade de se perceber que as relações sociais estabelecidas em grupos
estão com dificuldades de encontrar um equilíbrio, uma harmonização. Para Elias
(1994), tais dificuldades se dão entre anseios e normas, entre desejos pessoais e
objetivos comuns, o que massacra e aliena as crianças, uma vez que a infância já
não é vista como tempo de liberdade, nem mesmo a imaturidade e a ingenuidade
como elementos que compõem o desenvolvimento do ser.
Não obstante, o que se verifica é que os espaços e tempos de brincar e das brin-
cadeiras infantis estão sendo substituídos por compromissos diários, com um ar-
cabouço de horários para a realização de tarefas e atividades que limitam o tempo
de ser criança. Treinamentos, escolas especializadas em desenvolver uma profissão
futura são a “sensação do momento” e, cada vez mais, os adultos e responsáveis
pelas crianças têm buscado esses espaços com a falsa impressão de, desde cedo,
incutir na cabeça das crianças a profissão futura, direcionando-a a um sucesso
futuro perante o mercado de trabalho.
A infância se caracteriza pelo elemento social que é a brincadeira, isto é, existe
pelo fato do brincar e vice-versa. No ano de 1959, a Organização das Nações Uni-
das (ONU) estabeleceu o brincar como ato essencial e garantido por lei por meio
da aprovação da Declaração dos Direitos Universais da Criança, em Assembleia
Geral. Essa Declaração foi reiterada em 1989, com a Convenção dos Direitos da
Criança a qual declara que toda criança tem o direito de brincar e se divertir. Para
tanto, é dever da sociedade e das autoridades públicas garantir esse direito.
Nesse sentido, infere-se que todo sujeito em desenvolvimento precisa viven-
ciar possibilidades, isto é, tudo aquilo que é de sua capacidade e potencialidade.
Sendo assim, o espaço para brincar é seu por direito, para que tenha condições de
se desenvolver a partir do respeito ao tempo de sua maturidade infantil.
Comumente, perde-se muito tempo com o que a criança não tem, projetando-
-lhe um futuro incerto e um tanto insano se a consideração se voltar à perspectiva
do tempo presente, sobretudo, da evolução tecnológica que se modifica em segun-
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dos. A sociedade, como um todo, esquece-se facilmente da infância vivida, ou de tão
“doutrinados” e “preparados” para a vida adulta, deixaram-na passar despercebi-
da, como corrobora Dewey:
Se as crianças pudessem se exprimir clara e sinceramente contar-nos-iam coisas mui di-
versas; e entre os adultos acha-se bastante autorizada a convicção de que, para certos fins
morais e intelectuais devem eles, os adultos, tornar-se verdadeiras crianças (1979, p. 45).
No Brasil, o brincar na infância é amplamente garantido na Constituição
Federal vigente, em seu artigo 227, reiterado na legislação que atende à infância
e adolescência - Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seus artigos 4 e
16, os quais determinam que o direito à liberdade e ao brincar constitui um dos
seus principais agentes. Já as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Infantil (DCNEI, 2009), em seu artigo 4º, propõem que as crianças, dentro das
propostas curriculares, sejam respeitadas em suas especificidades, sem deixar de
considerar as infâncias inseridas nos espaços escolares, mediante um processo de
produção de culturas que objetivam contemplar, em seus direitos, a diversidade e o
respeito.
As propostas pedagógicas da Educação Infantil deverão considerar que a criança, centro do
planejamento curricular, é sujeito histórico e de direitos que, nas interações, relações e prá-
ticas cotidianas que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina,
fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta, narra, questiona e constrói sentidos sobre
a natureza e a sociedade, produzindo cultura (BRASIL, 2009, n.p).
Todavia, o que vem se confirmando é uma reprodução constante dos processos
de cunho neoliberal da sociedade dentro das escolas e da infância, com propostas
de escolarização precoce que se reduzem a um esforço gigantesco de achar “o me-
lhor entre os melhores”, numa disputa individualista e competitiva, com “direito”
à preparação para a alfabetização, potencializando quem “sabe mais” ou “o quanto
de letras e números” se sabe com a mais tenra idade. Enfim, uma doutrinação de
corpos à obediência insana por parte de adultos.
Outrossim, as crianças são vistas como se fossem sujeitos irracionais, inca-
pazes de constituírem os grupos sociais dos quais fazem parte, “ensinados”, então,
a omitir seus sentimentos, desejos, angústias ou dúvidas, compreendidas como
fraquezas do ser humano. Em conformidade com Elias (1994), esse processo de
controle geral dos afetos desencadeia a negação e a transformação dos instintos
de isolamento e encapsulação dos indivíduos em suas relações uns com os outros.
As DCNEIs (2009), em seu artigo 9, especificam como eixos norteadores das
propostas curriculares para as infâncias as “interações e brincadeiras” as quais
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garantem às crianças experiências de si e do mundo que as rodeia, bem como sua
imersão nas diferentes linguagens, possibilitando vivências éticas e estéticas com
outras crianças e demais grupos sociais, além da ampla e ilimitada inserção nas
tradições culturais brasileiras.
Voltar-se às infâncias é dar oportunidade às crianças de se reinventarem, re-
descobrirem-se, desenvolverem-se a partir de experiências promovidas por suas
próprias vivências, contrariamente à posição de seres impotentes que se mantêm a
cargo de outros. Ademais, é acreditar em sujeitos em potencial, com uma dependên-
cia acompanhada por um desenvolvimento de aptidões, sem parasitismos, distante
da construção de muralhas em torno da impotência e da dependência constante
pelo outro ou por algo, como assevera Dewey (1979, p. 47):
A aptidão especial de um imaturo para crescer constitui sua plasticidade. Esta coisa mui
diversa da plasticidade do mástique ou da cera. Não é propriedade de mudar de forma
conforme pressão exterior. Parece-se mais com elasticidade com que algumas pessoas assu-
mem a cor de seu ambiente, conservando, ao mesmo tempo, as próprias inclinações. Mas é
algo mais profundo do que isto. Em sua essência, é a aptidão de aprender com a experiên-
cia, o poder de reter dos fatos alguma coisa aproveitável para solver as dificuldades de uma
situação ulterior. Isto significa – poder modificar seus atos tendo em vista os resultados de
fatos anteriores, o poder de desenvolver atitudes mentais.
Aprender com a experiência constitui algo de maior profundidade, de maior
significação, é um aprender a aprender com as próprias vivências e com os desafios
apresentados, reaprendendo se necessário ou quando o aprendido já não dá conta
de resolver as situações enfrentadas.
Ao se referir à experiência, Larrosa, em seus escritos, explicita, com certa
clareza, o que se entende por tal conceito.
A experiência é o que nos passa, nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, o que
acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo quase
nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo que se passa está organizado para que nada nos
aconteça. Walter Benjamin, em um texto célebre, já observava a pobreza de experiências
que caracteriza o nosso mundo. Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada
vez mais rara (LAROSSA, 2015, p. 12).
Sob esse prisma, é possível perceber que a infância está passando pelas crian-
ças sem, de fato, elas viverem experiências. Ou seja, a infância não lhes toca, não
lhes acontece; ao contrário, permanece em meio a estímulos imediatos, aproximan-
do-se da teoria skinneriana do estímulo – resposta. Nesse sentido, fundamental-
mente aquilo que é possibilitado à criança precisa imediatamente de um retorno
dela, como se isso mensurasse sua aprendizagem.
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Cotidianamente, nas sociedades, vive-se um aligeiramento de ações, trans-
pondo-se em informações imediatistas, que têm por característica o saber no senti-
do de estar informado e não de sabedoria. Esse excesso de informação não é expe-
riência, como afirma Larrosa (2015), pois não deixa lugar para tal. Ao anular suas
possibilidades, potencializa sujeitos fadados a nutrirem-se de informes tais como
se apresentam, sem questionamento ou, até mesmo, aprofundamento de temáticas
ali encontradas, opinando sobre tudo, sem efetivamente saber.
Esse parece ser o retrato da atual conjuntura social desenvolvida com as
crianças, especialmente ao que tange ao processo educacional da infância. As insti-
tuições infantis, em seu cotidiano, estimulam as crianças a esse processo aligeirado
de informações, jogando-lhes um turbilhão de possibilidades, sem refletir sobre
esses processos e sua adequação às crianças.
Dessa forma, as vivências restringem-se, cada vez mais, à obediência exacer-
bada de ordens pelo controle de seus corpos e ações.
Consequentemente, olha-se para as crianças numa perspectiva verticalizada,
de cima para baixo, impondo-lhes aquilo que o adulto e a sociedade consideram
conveniente. De maneira pertinente, Dewey (1979) contribui para essa reflexão:
Finalmente, a teoria da preparação obriga-nos a recorrer em grande escala ao uso de mo-
tivos artificiais de prazer e de dor. Como o futuro não tem poder estimulante e orientador
quando separado das possibilidades do presente, algo deve ser descoberto para exercer
aquela função. Empregam-se então promessas de recompensa e ameaças de punição. Traba-
lho sadio, realizado por motivos atuais e inerente ao próprio processo de viver, é, por assim
dizer, automático e inconsciente. O estímulo se acha na situação que se depara atualmente
a alguém. Mas desde que se atende a esta situação, precisa-se dizer aos alunos que, se não
procederem do modo prescrito, sofrerão a imposição de pena; e, caso obedeçam, podem es-
perar daí a algum tempo, no futuro, recompensas a seus sacrifícios presentes. Todos sabem
quão fartamente se houve de recorrer aos sistemas de punições nos métodos educativos que
esquecem as possibilidades presentes, em proveito da preparação para o futuro. Para que,
depois, o desgosto pela rudeza e esterilidade desse método faça o pêndulo oscilar para o ex-
tremo oposto e já agora, não apenas, mas atrações artificiais, engodos, rebuçados de açúcar,
que farão com que os alunos aceitem as doses de informações por que não se interessam,
mas que lhes devem ser misturadas em virtudes das necessidades futuras (p. 47).
Por fim, nota-se que muitas experiências são nulas na infância. Isso porque os
grupos sociais estão desenvolvendo sujeitos para atenderem às suas especialidades
e às necessidades impostas por um sistema capitalista que os obriga, desde cedo, a
serem responsáveis por si.
No paradigma neoliberal, é crucial a preparação das crianças o mais cedo pos-
sível, negando-lhes o espaço de vivências da infância, como também a imaturidade
como potencial em desenvolvimento. Assim, potencializam-se sujeitos individua-
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lizados em meio à sociedade que suprime sentimentos e emoções, impondo-lhes
uma “ilusão social” de que o melhor resolvido é aquele que não demonstra suas
fraquezas, que delibera sobre sua vida de forma autônoma, sem dependência.
Em contraposição ao paradigma neoliberal, a Educação Infantil deve direcio-
nar seu olhar às práticas pedagógicas com foco nas interações e na brincadeira.
Complementarmente, indicar que não se pode pensar no brincar sem as interações
com a professora, com as crianças, com os brinquedos e materiais, entre criança
e ambiente e entre a Instituição, a família e a criança. Interagir e brincar são,
portanto, duas ações fundamentais na Educação Infantil, pois, segundo Ambrogi,
“É pela interação com o outro que podem ser forjadas capacidades que vão sendo
internalizadas com base em seu repertório; assim, a criança é capaz de formular
novas possibilidades combinatórias [...]” (2011, p. 70).
Por configurar uma atividade lúdica de aprendizagem que favorece aspectos
sociais, cognitivos e emocionais, o brincar é indispensável à vida das crianças.
Logo, é pelo brincar que a criança compreende a si mesma, como também a rela-
ção com o meio, com o outro e com o objeto. Desse modo, o valor das brincadeiras
para o desenvolvimento infantil e para as vivências de experiências é primordial
às crianças.
Conforme Vygotsky (1998, p. 130), o brincar possibilita a imitação, a imagina-
ção e a criatividade em ação, criando, para as crianças, uma “zona de desenvolvi-
mento proximal”.
A criação de uma situação imaginária não é algo fortuito na vida da criança; pelo contrário,
é a primeira manifestação da emancipação da criança em relação às restrições situacionais.
O primeiro paradoxo contido no brinquedo é que a criança opera com um significado aliena-
do numa situação real. O segundo é que, no brinquedo, a criança segue o caminho do menor
esforço – ela faz o que mais gosta de fazer, porque o brinquedo está unido ao prazer – e ao
mesmo tempo, aprende a seguir os caminhos mais difíceis, subordinando-se a regras e, por
conseguinte renunciando ao que ela quer, uma vez que a sujeição a regras e a renúncia a
ação impulsiva constitui o caminho para o prazer do brinquedo (VYGOTSKY, 1998, p. 130).
Para a prática do brincar, da ludicidade e dos jogos, é imprescindível a com-
preensão da concepção de criança e de infância, assim como da organização dos
tempos e espaços, promotores das experiências. Nessa direção, a interação, com-
preendida como princípio educativo em unicidade com o princípio da continuidade,
requer, do ato pedagógico, a possibilidade da interação do sujeito com o outro e com
o objeto, mediatizado pelas situações que envolvem o respeito às necessidades, aos
desejos, às capacidades das crianças e ao contexto real vivido por elas.
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Sob essa ótica, por meio do brincar e pela interação, no sentido de realizar
experiências significativas, as crianças são orientadas a vivenciar situações de
aprendizagem contextualizadas, isto é, do mundo, da vida.
Nesse viés, Teixeira (1934) salienta que são os interesses e os propósitos das
crianças que governam a escolha das atividades. Dessa maneira, estas devem ser
reais e ter semelhança com a vida prática, para que as crianças as reconheçam.
À vista disso, pode-se afirmar que o ato de aprender depende profundamente de
situações reais de experiências.
Na Educação Infantil, os tempos e espaços são imbricados pelos princípios
da continuidade-interação-situação. Assim sendo, são pensados e organizados pe-
dagogicamente com base nos fundamentos de liberdade dos sujeitos, em que “o
professor perde a posição de chefe ou ditador, acima e fora do grupo, para se fazer
líder das atividades do grupo” (DEWEY, 1979, p. 55).
Para a compreensão do processo pedagógico com base na liberdade, as pala-
vras de Dewey (1979, p. 59) são basilares:
A única liberdade de importância duradoura é a liberdade de inteligência, isto é, a liber-
dade de observação e de julgamento com respeito aos propósitos intrinsicamente válidos e
significativos. O erro mais comum que se faz em relação à liberdade é o de identificar com
liberdade de movimento, ou com o lado físico e exterior da atividade. Este lado exterior
e físico da atividade não pode ser separado do seu lado interno, da liberdade de pensar,
desejar e decidir.
Nesses termos, a Educação Infantil deve constituir um espaço de vida e de
experiências reproduzido em um território do movimento, da ação e da prática da
subjetivação infantil.
Considerações nais
As questões, aqui explicitadas, são algumas das que se sobressaem nos pro-
cessos que ocorrem cotidianamente nos diferentes contextos sociais. Ou seja, espa-
ços educativos que deveriam ser de produções, relações e saberes infantis acabam
sendo influenciados fortemente pelos pressupostos sociais carregados de premissas
neoliberais que determinam precocemente como devem se constituir as identida-
des infantis. Tal evidência abre espaço para questionamento e reflexão a respeito
da sociedade que, como um todo, avança cegamente em seus aspectos sociais e cul-
turais para o viés neoliberal, voltando-se exclusivamente ao capital. Por extensão,
expõe a infância, cada vez mais, a essa ideologia.
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Desse modo, não se pensa mais na criança presente, mas sim, em uma proje-
ção de um sujeito futuro, utilizando-se, para isso, exercícios de repetição, controle
e dominação das mesmas como se fossem sujeitos que virão a ser. Por conseguinte,
rotinas rígidas e de significação nula são impostas, visando ao desenvolvimento
cultural das crianças e privando-as de seus direitos em várias situações. Logica-
mente parece que esses direitos não estão suficientemente claros dentro dos espa-
ços escolares, pois ainda há práticas retrógradas e opressoras com as crianças.
O desfio, portanto, é o de projetar o todo da sociedade nas relações que se esta-
belecem, tendo em vista uma harmonização entre as necessidades, as inclinações
pessoais e as exigências feitas para a eficiência do todo social (ELIAS, 1994). Não
obstante, cotidianamente o que se vivencia são as contradições, tensões e indivi-
dualizações dentro dos grupos sociais.
Em contraposição às concepções neoliberais (assistencialistas e cognitivistas)
que perpassaram (e ainda perpassam) as instituições educativas da primeira in-
fância, há um movimento mundial e nacional para a instauração de um novo olhar
à Educação Infantil.
É a esse movimento que educadores devem se aproximar para poderem refle-
tir sobre a função da Educação Infantil na vida das crianças. Função esta que diz
respeito a um território da experiência, da socialização, da estética, da criativida-
de, da liberdade, da imaginação, da fantasia, da investigação, enfim, a um espaço
de vida coletiva.
À guisa de conclusão, pode-se afirmar, então, que as experiências na Educação
Infantil precisam acontecer em processos educativos e formativos de significados
e sentidos.
Nota
1
A família e a escola historicamente sempre foram as duas mais importantes instituições socializadoras,
pelas quais a educação transformou-se no principal agente transmissor da cultura, numa perspectiva de-
terminista e predominantemente funcionalista, reprodutora da sociedade (MARTINS FILHO, 2016).
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