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A atualização da skholé e a escola contra a socialização
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A atualização da skholé e a escola contra a socialização
An update of skholé and school against socialization
La actualización de la skholé y la escuela contra la socialización
Cleriston Petry
*
Resumo
Argumento, no presente artigo, sobre a relação entre socialização e educação, considerando a primeira como
“processos de introdução na sociedade e a segunda como a “introdução das novas gerações no mundo. O pro-
blema que orientou a investigação refere-se à existência ou não de incompatibilidade entre ambos os objetivos,
se é razoável socializar” considerando a “sociedade em que crianças e jovens são inseridos e se a “socialização
contribui ou não para a realização da skholé, caracterizada como “tempo livre, distinto do “tempo produtivo da
sociedade. Nesse sentido, defendi que a skholé só é possível quando a socialização não é a tarefa central da
escola (porque a socialização desescolariza a escola) e nem a educação reduzida à socialização. A atualização
da skholé e de sua institucionalização escolar é fundamental para a introdução das “novas gerações” no “mundo
e, talvez, a única oportunidade que os seres humanos terão, nas condições atuais, de experienciar o “tempo
livre que suspende as injunções da família, da sociedade (economia, trabalho, divertimento, lazer, descanso,
aprendizagem) e da política.
Palavras-chave: educação; socialização; skholé.
Abstract
I argue, in this article, about the relationship between socialization and education, considering the rst as “pro-
cess of introduction into society” and the second as “the introduction of new generations into the world”. The
problem that guided the investigation refers to the existence or not of incompatibility between both objectives,
whether it is reasonable to socialize considering the “society” in which children and young people are inserted
and whether “socialization contributes or not to the realization of skholé, characterized as “free time” distinct
from society’s “productive time. In this sense, I argued that skholé is only possible when “socialization is not
the central task of the school (because socialization unschools the school) or neither education reduced to
socialization. The updating of skholé and its school institutionalization is fundamental for the introduction of
“new generations” into the “world” and, perhaps, the only opportunity that human beings will have, under the
current conditions, to experience the “free time” that suspends injunctions of the family, society (economy, work,
entertainment, leisure, rest, learning) and politics.
Keywords: education; socialization; skholé.
*
Doutor em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Passo Fundo (UPF). Profes-
sor do Departamento de Teoria e Fundamentos da Educação da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e do
Mestrado Prossional em Filosoa (PROF-FILO), núcleo UFMT. Orcid: http://orcid.org/0000-0001-8900-6633. E-mail:
cleripetry@hotmail.com
Recebido em: 29/07/2020 – Aprovado em: 06/01/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i1.11458
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Resumen
Discuto, en este artículo, la relación entre socialización y educación, considerando el primer como “procesos
de introducción en la sociedad” y el segundo como “la introducción de nuevas generaciones en el mundo. El
problema que ha conducido la investigación se reere a la existencia o no de incompatibilidad entre ambos
objetivos, si es razonable “socializar” considerando la “sociedad” en la que se insertan niños y jóvenes y si la
socialización contribuye o no a la realización de skholé, caracterizada como “tiempo libre” distinto del “tiempo
productivo de la sociedad. En este sentido, sostuve que el skholé solo es posible cuando la “socialización no
es la tarea central de la escuela (porque la “socialización no escolariza la escuela) o la educación se reduce a
socialización. La actualización del skholé y su institucionalización escolar es fundamental para la introducción
de “nuevas generaciones en el “mundo y, tal vez, la única oportunidad que los seres humanos tendrán, en las
condiciones actuales, para experimentar el “tiempo libre” que suspende los mandatos de la familia, la sociedad
(economía, trabajo, entretenimiento, ocio, descanso, aprendizaje) y política.
Palabras-clave: educación; socialización; skholé.
Introdução
Só os homens sensatos e ESCLARECIDOS veem as coisas
como são em si e trabalham para mantê-los em seu ser
(RODRÍGUEZ, 2016, p. 99, grifos do autor).
A essência da educação é a natalidade, o fato de que seres nascem
para o mundo (ARENDT, 2007, p. 223, grifos da autora).
Socialização e educação são termos que podem ser compreendidos como com-
plementares, excludentes ou numa relação dialética. Para escrever sobre a socia-
lização e a atualização da skholé, penso tais conceitos a partir, com e para além
de Hannah Arendt. Mesmo que a autora não tenha se dedicado à elucidação do
primeiro, seguirei pistas teóricas que me conduzirão, plausivelmente, às conside-
rações que tecerei. Se pensarmos em socialização como “processos de introdução
na sociedade”, é preciso indagar: O que se entende por “introdução”, isto é, como
ela se realiza? Em qual sociedade os indivíduos serão introduzidos? Socialização é
a finalidade da educação ou uma atividade complementar à educação e, por vezes,
independente da educação?
Faço a opção por Arendt por desejar contribuir ao debate acerca da (não)rela-
ção entre “socialização” e educação. Para tanto, penso que considerar a “socializa-
ção” como “processos de introdução na sociedade” é uma definição geral que tipifi-
ca as diversas definições sociológicas do termo e do “fenômeno” para o qual todos
passamos ou passaremos. As distinções conceituais feitas por Arendt, ademais,
contribuem para esclarecer o sentido da escola, que advém de sua especificidade,
especialmente quando a educação está em crise, a escola sob suspeita e a “educa-
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ção remota” como uma prática para enfrentar (ou não) o problema educacional em
meio à pandemia. Não nascemos membros da sociedade, e a “socialização” exige
“interiorização”, a compreensão dos outros atores sociais, da realidade social e da
vida que os outros já vivem, escrevem Peter L. Berger e Thomas Luckmann (2004,
p. 174). Mas, o que ambos os sociólogos compreendem por sociedade é atribuível
ora ao “mundo” ora à “vida”, segundo a conceituação arendtiana. Por isso, e para
manter a pretensa originalidade do presente artigo, pretendo tratar da relação
entre “socialização”, “educação” e skholé, tomando como ponto de partida um con-
ceito amplo e geral de “socialização” e me localizando no espírito de pensamento de
Hannah Arendt.
“Sociedade” é um conceito apropriado pela Sociologia, na Modernidade, para
dar conta de sua especificidade e objeto de estudo, ou seja, aquilo que compõe a
sociedade ou o que a sociedade é: um organismo vivo (em processo de evolução), a
união de indivíduos a partir de um contrato, o conjunto das relações e ações sociais,
uma realidade de situações partilhadas e nexo de motivações, etc. Evidentemente,
o conceito de “sociedade” é anterior às Ciências Sociais, mas com estas houve uma
abordagem científica do conceito/fenômeno. Com a Modernidade, a sociedade pas-
sou a significar o “auge da administração doméstica, suas atividades, problemas e
planos organizativos” (ARENDT, 2005, p. 61)
1
. Essa caracterização, destoante da
tradição sociológica, implica considerá-la como uma esfera em que os indivíduos,
famílias e grupos se ocupam com as necessidades vitais, em que houve uma res-
significação para a vida individual e para a cidadania. Para compreender melhor a
sociedade, enquanto conceito, é importante considerar que ela se opõe à política e
ao privado, embora houve uma ressignificação do privado e do político com a emer-
gência da sociedade. O que era privado, os interesses vitais, isto é, as necessidades
relacionadas à sobrevivência, passou a ser público, e o que era público, os assuntos
humanos, a política, deixou de ser relevante. A política, então, se converteu numa
administração pública dos interesses privados, relativos ao acúmulo de capital,
à defesa da “propriedade” privada e aos interesses individuais. O social passa a
constituir a esfera pública e, por conseguinte, ocupar os interesses dos atores edu-
cacionais.
O advento da sociedade acarretou transformações também para a escola, que
se desescolarizou. A sociedade, com a canalização pública do processo vital, a vitó-
ria do animal laborans e a publicização de suas atividades, acarretou na impos-
sibilidade, lógica, da ação e do pensamento, donde a “socialização” significou ade-
quação, conformação, nivelação, normalização e, no limite, solidão sob o império do
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comportamento. Na escola, o currículo também se altera com a transformação da
“linguagem da educação” em “linguagem da aprendizagem”, explicitada, no Brasil,
pela adoção da Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
A sociedade também é caracterizada pelo “tempo produtivo”, tempo dedicado
à “vida”, ao metabolismo vital, à sobrevivência, aos negócios, à askholia. Nesse
sentido, a relação entre “socialização” e “educação” só pode ser de oposição, quando
pelo segundo se compreender que sua essência é a “natalidade”, isto é, o fato de que
seres nascem no “mundo”, não na sociedade, não no trabalho, não na vida, não na
família, e que a tarefa da escola é introduzir as “novas gerações” no “mundo” e não
socializa-las. Para tanto, tal introdução demanda um tempo específico, a skholé,
forma-ideia que inspira e pode constituir as escolas ante processos de desescolari-
zação.
Neste artigo, ensaiei aproximações entre Arendt (1993, 2001, 2005, 2007,
2009, 2012), Rodríguez (2016) e Masschelein e Simons (2013), para repensar a
atualização da skholé na América Latina como resposta às demandas da “socie-
dade” e às injunções da socialização. Fiz isso buscando a plausibilidade dos argu-
mentos, abstendo-me da esperança de um “veredito final”, ciente de que a última
palavra não foi dada e que há outras possibilidades de se pensar a “socialização”,
embora nenhuma escape da “sociedade”.
A investigação que resultou no presente artigo apresenta como “prova” a de-
monstração do relacionamento lógico entre os conceitos e argumentos: “o pesqui-
sador qualitativo toma sobre seus ombros o fardo da plausibilidade” (SENNETT,
2014, p. 72). Sei que entre Arendt e Rodríguez há aspectos de convergência e de
divergência, e que o conceito de “social” para o segundo tem um sentido de público/
político que não há em Arendt, autora que vislumbrou isso que denominou de “as-
censão da sociedade”. Mas o debate não é entre Arendt e Rodríguez, mas entre os
argumentos e os que lerem o artigo. Meu compromisso não é defender autores, mas
pensar com, a partir, para além e contra eles, ou seja, pensar os pensamentos deles
para pensar melhor os meus.
A emergência da sociedade e a educação como socialização
A “canalização pública do processo da vida” (ARENDT, 2005, p. 68) significa
que as preocupações com as necessidades relacionadas à manutenção da vida es-
tabelecem um domínio público próprio, numa forma de mútua dependência, e a
transformação de todos os indivíduos em trabalhadores e do trabalho (labor) em
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uma atividade digna para aparecer em público. Na Modernidade, com o advento da
sociedade, ou seja, com a absorção de todos os indivíduos na sociedade, houve a “vi-
tória do animal laborans”, do indivíduo (pré)ocupado exclusivamente com a “vida”
e a perda de “mundo”, isto é, de tudo o que é construído e constituído pelos homens
por meio do discurso e da ação. Se nos resta laborar, o “mundo” está condenado à
ruína do ciclo vital da natureza, da destruição. Nesse contexto,
[...] o único necessário foi trabalhar, com o fim de assegurar a continuidade da existência
individual e de sua família. O não necessário, o não requerido pelo metabolismo da vida
com a natureza, ou bem era supérfluo ou apenas podia justificar-se como peculiaridade do
humano para diferenciá-lo de qualquer outra vida animal (ARENDT, 2005, p. 338).
Em meados de 1830, Honoré de Balzac (2013, p. 339) teceu críticas à sociedade
francesa, na qual todos os segmentos sociais excediam sua existência para ganhar
o ouro que os fascinava e/ou gozar de poderosos prazeres: “Sem as tabernas, o
governo não seria derrubado todas as terças feiras?”. Com o advento da sociedade,
tudo se torna “tempo produtivo”: a sensação de “não ter tempo”, de um tempo devo-
rado, arrasado, consumido, destruído, dedicado aos negócios, a askholia. Outra in-
dagação de Balzac (2013, p. 345) é reveladora: “onde coloca essa gente o coração?”.
Com a Modernidade e a sociedade, chamamos “privado” uma esfera de intimidade,
e o escritor francês percebe, no século XIX, o ataque e a desconsideração com o
lugar no qual se é autêntico.
Anos antes, na mesma época, Rousseau se rebelou contra a sociedade e não
contra o Estado (ARENDT, 2005, p. 62), e isso repercutiu em seu projeto educa-
tivo: é preciso formar o homem antes do cidadão (ROUSSEAU, 2017, p. 44); uma
“educação natural” que principia pelos sentidos, na qual viver é o ofício a ensinar
ao educando (ROUSSEAU, 2017, p. 46). A opção por uma educação doméstica visa
proteger a criança da sociedade, dos vícios e costumes corrompidos, mas não das
condições sob as quais ela poderia ter de viver. Ademais, a educação aconteceria
no campo, pois “as cidades são o abismo da espécie humana” (ROUSSEAU, 2017,
p. 67), um ambiente de corrupção em que se deseja o que não se pode
2
, se busca o
gozo acima de tudo, acarretando a infelicidade diante da realidade: vide o exemplo
da riqueza como fim, um fim quimérico porque ela exige mais riqueza, num acúmu-
lo ininterrupto, na “ilimitada apropriação” defendida por Locke em Dois tratados
sobre o governo (2005).
É essa perpetuação do “metabolismo vital”, o ciclo da vida e do capital, que é
tornado público com o advento da sociedade na Modernidade, em detrimento do
que é público (político) e privado. A alternativa de Balzac e Rousseau, a proteção da
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intimidade, não é suficiente para ocupar o espaço essencial da esfera privada, nem
pode ser um substituto à esfera pública/política. Não é e não pode ser um substi-
tuto porque a intimidade e o que lhe é reservado não possui a realidade e a tangi-
bilidade possível de uma esfera entre, especificamente a pública. Por outro lado, o
ideal educativo de Rousseau, como também o de Locke (2019), não é um “antídoto
razoável” à destruição do mundo e ao sentimento de solidão, próprio da sociedade,
na medida em que se trata de um projeto individualista, típico da Modernidade. É
possível que o educando de Locke e de Rousseau conclua a etapa formativa como
um indivíduo virtuoso e disso não advém que será um cidadão, mas alguém equi-
pado com um conjunto adequado de conhecimentos, habilidades e disposições, “sem
formular perguntas sobre suas relações com os outros e sobre o contexto social e
político em que aprendem e agem” (BIESTA, 2013, p. 158). Assim, uma crítica ao
conceito de socialização deve ser, também, uma crítica à Modernidade, ao projeto
educativo do Iluminismo e à concepção de tempo que lhe é própria.
A organização política da Sociedade é (foi) o Estado Nação e tem (e teve) a
burocracia enquanto forma de governo. A burocracia é o governo de ninguém, a
mais social forma de governo, escreve Arendt (2005). O “governo de ninguém” não
é um não-governo, mas pode resultar numa de suas versões mais cruéis e tirânicas
(ARENDT, 2005, p. 63). O governo do escritório, da administração, impessoalizado,
atento às estatísticas, à frieza dos números e aos regulamentos, racional, portan-
to, governa uma sociedade de indivíduos atomizados e conformados. Para Arendt
(2005, p. 63), há um conformismo inerente a toda sociedade e exigências tipica-
mente niveladoras do social, em que a sociedade “sempre exige que seus membros
atuem como se fossem de uma enorme família com uma só opinião e interesse”. A
sociedade exclui a possibilidade da ação e a substitui por comportamentos, que se
distinguem da primeira pela previsibilidade, expectativa e conformação às normas
sociais. Há a tendência à “normalização”, isto é, ao enquadramento dos indivíduos
e suas singularidades num “coletivo”, inviabilizando e excluindo o surgimento do
novo, do inédito, do inesperado, do revolucionário. Neste contexto, a educação como
socialização se torna um agente conformador, nivelador, adaptador das crianças e
jovens à sociedade, seu modelo de organização e experiência de tempo. A “igualiza-
ção”, fenômeno social, tornou a distinção e a diferença assuntos privados, relativos
à intimidade e não à ação, isto é, a atuação na esfera pública por meio de palavras
e ações.
Nesse sentido, o império do conformismo é a sociedade, espaço/tempo do sur-
gimento da Sociologia, da Economia e da Estatística. Para Arendt, a Economia só
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pode adquirir um caráter científico quando os homens se constituem seres sociais,
sob o critério judicativo da normalidade e da anormalidade. A estatística, como
técnica de tratamento matemático da realidade, pressupõe que os acontecimentos
são raros na vida das pessoas e todos são convertidos em números que demonstram
tendências aptas a serem usadas por governos ou gestores
3
.
A Economia, ademais, foi cooptada pela “racionalidade neoliberal”, uma racio-
nalidade “totalitária” no sentido de que abrange todos os aspectos da vida e visa
a formação de um sujeito adaptado a sua lógica (DARDOT; LAVAL, 2016). Além
disso, os economistas neoclássicos não têm um apego aos fatos e pouco importa que
as “soluções” e “estratégias” apresentadas deem errado em todos os lugares (ou não
conquistem o que publicamente declaram ser a intenção). A economia neoclássica,
escreve Joaquín Estefanía (2017, p. 83), “é responsável não apenas por não haver
antecipado a Grande Recessão, mas por ser intrinsecamente errônea e nociva, ao
haver contribuído a multiplicar as calamidades que intentava prever”
4
. No Bra-
sil, a pandemia expôs a nu o fracasso do neoliberalismo, a humilhação pessoal
da ideologia do indivíduo como empresário de si, ao mesmo tempo em que, num
movimento contrário, a crueza da vida se tornou assunto público e expôs a luta
pela sobrevivência, a fragilidade dos nossos corpos e a idiotice de nossa existência.
Se “o modo mais cômodo de conhecer uma cidade é averiguar como se traba-
lha nela, como se ama e como se morre” (CAMUS, 2003, p. 9), talvez tenhamos de
concordar com o jovem Marx (2006), que, no ensaio Sobre o suicídio, escreve não se
tratar de uma sociedade, mas de um deserto habitado por bestas selvagens, exceto
que a sociedade não seja deserto, mas algo distinto.
A pandemia da Covid-19 evidencia a hipótese das ciências do comportamento,
que “reduzem os homens, em todas as suas atividades, ao nível de um animal, de
conduta condicionada” (ARENDT, 2005, p. 67). Entre A Peste e a Pandemia, fomos
jogados no lar ou na humilhação do subemprego, do desemprego, da mortalidade
como condição fundamental e não da natalidade. Em Camus (2003, p. 10), é a mor-
talidade que, ao aparecer como espetáculo pelas ruas de Orán, desnuda uma exis-
tência sem sentido, em que “nada é mais natural hoje em dia que ver as pessoas
trabalhar de manhã à noite e em seguida escolher, entre o café, o jogo e a conversa,
o modo de perder o tempo que nos resta por viver”. Todos morremos, uma de nossas
condições fundamentais, mas a peste tornou-a pública e, junto com ela, o absurdo
de dedicar-se à vida, isto é, à manutenção da vida biológica, ao labor, trabalho,
consumo, divertimento, descanso, num ciclo ininterrupto até a morte. Essa é uma
das oportunidades da crise sanitária (por vezes, modo de governar): reconsiderar,
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repensar o que estamos fazendo. O “tempo livre” em Orán é um tempo matado,
tempo de sobra entre o sono e o trabalho. Um tempo, portanto, não mais livre, mas
ocupado, funcional ao labor, “tempo produtivo”, tempo da sociedade.
O “tempo produtivo” é, também, cíclico, como o “metabolismo vital”. Todos
precisamos do labor, pois temos necessidades, somos seres vulneráveis, e essa con-
dição de necessitados compartilhamos com outras formas de vida animal, o que
não se considerava dignamente humano, na experiência greco-romana. “Ainda que
estejam feitas pelo homem, vem e vão, são produzidas e consumidas, em consonân-
cia com o sempre repetido movimento cíclico da natureza” (ARENDT, 2005, p. 118).
Deste modo, não são especificamente humanas. E dedicar-se toda a existência ao
labor, consumo, descanso, lazer, sono e trabalho não era considerada uma forma
de vida apta à excelência (areté), a deixar uma marca e converter a existência
individual em algo mais permanente que a própria vida. Por outro lado, o tempo
é “produtivo” quando o homem “fabrica”, faz ou produz objetos visando sua utili-
dade ou quando o critério de julgamento para o “mundo” e a “vida” é a utilidade.
Nesse aspecto, o tempo não é mais cíclico, mas a passagem de um passado-presen-
te-futuro com a preponderância do futuro, donde a utilidade se realizará em seu
próprio ciclo sem sentido. Deste modo, a mentalidade do fabricante moderno é a
instrumentalidade e a utilidade, ambos que localizam os indivíduos num “tempo
produtivo” porque o importante não é a atividade, o aqui, o isso, mas o produto
final, o futuro e como ele será utilizado, vendido, tornado instrumento.
Trabalho (labor) e fabricação (work) são distintos, pois o primeiro é uma ativi-
dade que corresponde ao processo biológico do corpo humano e ao “metabolismo vi-
tal”, ligado às necessidades da vida. A fabricação, por outro lado, diz respeito ao não
natural da existência do homem, à artificialidade do mundo de coisas (ARENDT,
2005). Com a fabricação, se constrói um mundo humano, mundo comum, mundo
da arquitetura, das artes, da literatura, das ciências. Mas os instrumentos e as
obras da fabricação não estão impedidos de serem usados para a produção de bens
de consumo ou para atividades dedicadas ao tempo de lazer. A fabricação produz
objetos culturais que podem durar e, por isso, constituir um mundo comum, tes-
temunha do passado ao futuro, o que durará mais que a própria vida. Porém, com
o último estágio de desenvolvimento da sociedade, a sociedade de massas, não se
sente necessidade de cultura, mas de diversão “e os produtos oferecidos pela in-
dústria de diversões são com efeito consumidos pela sociedade exatamente como
quaisquer outros bens de consumo” (ARENDT, 2007, p. 257). Imersos num “tempo
produtivo”, de sempre estar atarefado, com negócios a resolver, o homem moderno
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não se dedica aos assuntos humanos nem ao pensamento. Balzac (2013, p. 346)
argumenta que:
[...] obrigados a falar sem cessar, trocam todos o pensamento pela palavra, o sentimento
pela frase, e suas almas transformam-se em laringe. Gastam-se e se desmoralizam. [...].
Deslizam sobre as coisas da vida e vivem cada instante impelidos pelos negócios da grande
cidade.
É a sensação de não ter tempo, de estar sempre atrasado que atinge o ápice
com a sociedade e a vitória do animal laborans, aquele que dedica toda sua existên-
cia a sobreviver e a alimentar o ciclo vital. A educação como socialização se conver-
te num espaço/tempo de treinamento de aprendizes aptos a exercer uma função na
sociedade. Do mesmo modo, a sociedade é considerada a partir de suas funções, e a
estima dos indivíduos se deriva do lugar e do papel que exercem.
A escola e os indivíduos devem ter uma função, um lugar a ocupar na socie-
dade para definir suas identidades. Ao mesmo tempo, essa sociedade que exige
funções que localizam o indivíduo em seu seio apenas lhe dá frágeis garantias de
autoestima e consciência de si, porque os indivíduos não aparecem na modalida-
de do discurso e da ação, mas como trabalhadores, consumidores, acumuladores,
acionistas, empreendedores. Numa crise sanitária, quando muitos são obrigados
a ficar em casa, a trabalhar menos ou de outros modos, a crise se torna existen-
cial: afinal, quem sou eu? Pergunta que não pode ser respondida na escuridão da
vida privada, muito menos numa atividade de introspecção. Se na introspecção
me deparo com o pensar, com o pensar sobre meus pensamentos; se o pensar é um
diálogo silencioso comigo mesmo, ao pensar não sou só um, mas dois. Portanto,
aquele que busca saber quem é pensando se deparará com a dualidade instaurada
pelo pensar. “Até o próprio Sócrates, tão apaixonado pela praça pública, tem de vol-
tar para casa, onde estará só, para encontrar o outro indivíduo” (ARENDT, 2009,
p. 212). Diferentemente de Sócrates, a maioria dos brasileiros voltou para casa e
se deparou com a sobrevivência, com os assuntos domésticos, com a privatividade
do lar. Publicamente, por outro lado, restava o espetáculo da pandemia que envol-
veu tudo: “já não havia destinos individuais, mas uma história coletiva que era a
peste e sentimentos compartilhados por todo mundo” (CAMUS, 2003, p. 149). Ter-
reno fértil para governos autoritários. Diferente do “social” e da “sociedade” está
a esfera privada. Privado significou estar desprovido de algo, das mais elevadas e
humanas capacidades, argumenta Arendt (2005). Esse traço privativo do privado
implicava estar privado de “coisas essenciais a uma verdadeira vida humana: estar
privado da realidade que provém de ser visto e ouvido pelos demais e estar priva-
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do da <<objetiva>> relação com os outros” (ARENDT, 2005, p. 78), que acontece
quando há um espaço-entre que une e separa os indivíduos, um mundo comum.
A realidade se constitui pelos múltiplos pontos de vista nos quais os indivíduos
ocupam o espaço com sua cultura, sua história, costumes, etc. Estar no mundo, na
esfera pública, é ter a oportunidade de corrigir os sentidos pessoais com o “senso
comum”, o bom senso, no qual compartilhamos o mundo ao mesmo tempo em que
ele se “objetiva” para nós.
A educação como socialização, ao adaptar os indivíduos à sociedade ou intro-
duzi-los na sociedade não lhes garante a possibilidade de acessar o mundo comum
e de se distinguir e atingir a excelência num espaço no qual compartilhamos o
que é comum, nem de revisar nossos pontos de vista que podem ser equivocados,
dado que “ponto de vista” não é a “verdade”, e sozinho um indivíduo não constitui
a realidade e, socialmente, é incapaz de levar uma vida excelente e singularizar-
-se. Na sociedade, ou na solidão da intimidade, carente de laços profundos com
os outros, as teorias conspiratórias e alucinações fomentam a extrema-direita e
saídas autoritárias para a carência de laços que unem os indivíduos. A alucinação
é “uma distorção efetiva da capacidade de pensar fundada na necessidade de sa-
turar a realidade com desejos que não suportam frustração, bem como no impacto
corrosivo dos mecanismos psíquicos ligados ao ódio sobre o próprio pensamento”
(AB’SABER, 2018, p. 129).
Socializado, talvez o homem seja incapaz de realizar algo mais permanente
que a própria vida. Por isso, o homem privado e o homem socializado não apare-
cem, é como se não existissem (ARENDT, 2005, p. 78). O homem privado do mundo
e do espaço público realiza coisas que carecem de significado e “consequência para
os outros, o que lhe importa não importa aos demais” (ARENDT, 2005, p. 78). Daí
que a solidão seja uma experiência cada vez mais comum na “sociedade” e, espe-
cialmente, na “sociedade de massas” de indivíduos atomizados, jogados em suas
vidas privadas, ocupados com seus negócios e a sobrevivência, condição importante
para a ascensão de movimentos fascistas e totalitários, afinal, quando se está só
o coletivo se apresenta como um simulacro do calor familiar, em que o indivíduo
importa porque faz parte, sabe o que é nessa vida sem sentido.
Por outro lado, Arendt (2005) apresenta traços não privativos do privado que
os constitui como partes importantes se preservado o comum e o público, isto é,
sem o privado, o comum careceria de sentido. Do mesmo modo, a necessidade é
fundamental para a existência da liberdade. A eliminação da necessidade não acar-
reta a liberdade, como evidencia a busca pela riqueza e por poderosas diversões. O
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privado é o único lugar seguro e oculto do mundo. É nele onde as crianças podem
se desenvolver sem a luz pública, sem os julgamentos da aparência, e para cons-
tituírem-se a si mesmas antes de enfrentar a esfera pública, dos acontecimentos
e da publicidade. Para Arendt (2005, p. 86), “uma vida que transcorre em público,
na presença dos outros, se faz superficial”. Na pandemia e, consequentemente, na
crise sanitária, as pessoas sem um espaço privado de proteção estão condenadas
a viver publicamente, a expor-se ao contágio, sem qualquer proteção. Estão sob os
olhares de todos, mas são invisíveis, porque não importam, não são respeitadas
5
.
O espaço público, antes do advento da sociedade, era uma esfera de igualdade
e de distinção, que se alcança ao agir em conjunto com outros seres humanos iguais
e livres. Só no espaço público os homens podem mostrar quem são, e na esfera
privada e social de suas vidas apenas são um que, isto é, exercem funções, atuam
não como singulares, mas pertencentes a uma classe profissional, ao papel relati-
vo à sobrevivência e à atenuação das necessidades. Nascemos únicos, mas nossa
unicidade aparece na esfera pública que é o espaço da aparência, a qual constitui a
realidade. Para Arendt (2005, p. 71), tudo o que aparece em público pode ser visto
e ouvido e tem a mais ampla publicidade possível. Com o auge do social, o que se
torna público são os interesses privados; e os indivíduos se tornam trabalhadores
e/ou produtores. São os outros, numa esfera pública da ação e do discurso, que ga-
rantem a realidade do mundo e de nós mesmos. Sem a publicidade, é como se não
existíssemos como singulares.
Público também significa o próprio mundo enquanto comum a todos e dife-
renciado do lugar que ocupamos privadamente nele. Se socialização significa os
processos de introdução na sociedade, a educação como socialização acarreta numa
perda de mundo e da aparência necessária para que cada um apareça como único,
com sua dignidade própria.
Num contexto socializado, a pandemia conta seus mortos estatisticamente e,
por conseguinte, é carente de realidade quem morre. Sabemos apenas o que morre:
corpos, espécimes humanos. É muito mais fácil matar (e deixar morrer!) quando
não há indivíduos singulares, mas números
6
. Um amontoado anônimo. Escreve Ca-
mus (2003, p. 39): “mas, o que são cem milhões de mortos? Quando se fez a guerra
ninguém sabe o que é um morto. E ademais, um homem morto apenas tem peso
quando se viu um morto; cem milhões de cadáveres jogados através da história,
não são mais que fumaça na imaginação”.
Com a pandemia e as aulas on-line, as crianças tiveram de ficar em casa e
foram privadas do acesso ao mundo ou, simplesmente, à sociedade. Evidentemente
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que o acessam pela internet, mas essa ferramenta não é um espaço-entre, trata-se
de uma tecnologia que media a relação dos seres humanos entre si e com o mundo.
As redes sociais, especificamente, não são espaços públicos, e os indivíduos que lá
“aparecem” controlam as personas bem como o ambiente de interação (como o am-
biente é controlado pelos interesses comerciais dos donos das plataformas). Portan-
to, a internet não é pública porque é dominada por empresas privadas que utilizam
nossos dados para lucrar e criar algoritmos, gerar tendências, comportamentos
e turbinar vendas; não é espaço público porque o mundo virtual não é o mundo
real. Ter fotos do Mont-Saint-Michel não me torna proprietário, muito menos me
confere a possibilidade de realizar uma experiência estética profunda semelhante
ao estrangeiro que o visita, nem o espaço se torna comum. A internet nos deu um
simulacro do “público”, e as redes sociais são somente sociais: a publicização de
interesses privados e personagens que não se revelam, é o aparecer (quando não
a mentira) do que são. Os alunos, presos em casa para sobreviver, são privados da
escola e do que é específico da skholé, pois em casa se comportam conforme funções,
têm o passado e o futuro de expectativas nas costas e estão numa esfera com sua
linguagem e lógica própria.
Quando a socialização é mais importante que a educação, a escola é domada
pela sociedade, pelas expectativas sociais, pelas demandas do trabalho, do consu-
mo, do lazer e da economia, isto é, a escola passa a ser uma função da “vida”, da so-
brevivência da espécie e da manutenção do ciclo vital. “Domar a escola implica go-
vernar seu caráter democrático, público e renovador. Isso envolve a reapropriação e
reprivatização do tempo público, do espaço público e do ‘bem comum’ possibilitados
por ela” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2013, p. 106). Não por acaso, Bolsonaro vem
atacando a educação pública desde que assumiu o poder, nomeando ministros que
degradam as instituições públicas, reiteram o corte dos investimentos e aniquilam
a educação nos termos apresentados.
A escola, sob a égide da socialização, é vista como um meio para resolver pro-
blemas sociais, e numa sociedade de trabalhadores sua função é a de criar condições
para formar o empreendedor, o indivíduo empresário de si mesmo, e o faz, entre
outros meios, utilizando a “linguagem da aprendizagem”. Para Gert Biesta (2013),
a linguagem constitui a realidade e as relações que os indivíduos estabelecem en-
tre si e com o mundo. Há, nos últimos anos, a alteração de uma “linguagem da
educação” para uma “linguagem da aprendizagem”, em que ensinar “foi redefinido
como apoiar ou facilitar a aprendizagem, assim como a educação é frequentemente
descrita como propiciadora de oportunidades ou experiências de aprendizagem”
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(BIESTA, 2013, p. 32). No Brasil, a linguagem da aprendizagem, do “aprender a
aprender”, é a lógica que estrutura a BNCC, discutida no governo Dilma e apro-
vada no governo Temer. É interessante que esse documento, que unifica a base de
conhecimentos para todo o território do Estado brasileiro, não utilize nenhuma vez
a palavra “educação”: tudo se transforma em aprendizagem. Outro dado importan-
te é que “democracia” também é omitido. Ademais, há a lógica do desempenho, da
performance e não mais do acesso ao mundo, às verdades.
A BNCC possui uma concepção reduzida de conteúdo: habilidades e competên-
cias visam garantir a permanência e a aprendizagem dos estudantes respondendo
às suas aspirações (BRASIL, 2018, p. 461). A “linguagem da aprendizagem”, con-
forme Biesta (2013), é muito mais individualista, embora esteja dentro da ideia de
“socialização” como “processos de introdução na sociedade”. Neste viés, a sociedade
em que os jovens serão inseridos é uma sociedade do “tempo produtivo”, da solidão
e, mais recentemente, da “racionalidade neoliberal” que tende a ocupar todos os es-
paços da existência (público, privado, política, economia, lazer, educação, consumo,
esportes), mas não o “tempo livre”, porque é capaz de destruí-lo, não colonizá-lo.
O afastamento da BNCC do “mundo” é explicitado quando o documento disserta
sobre as aprendizagens necessárias:
[...] em lugar de pretender que os jovens apenas aprendam o que já sabemos, o
mundo deve lhes ser apresentado como campo aberto para a investigação e inter-
venção quanto a seus aspectos sociais, produtivos, ambientais e culturais (BRA-
SIL, 2018, p. 463).
A “apresentação” do “mundo” é uma boa intenção que se anula pelo modo como
ele é apresentado: algo a ser aprendido por meio de habilidades e competências
adquiridas no percurso escolar. A primeira consequência dessa “educação como
socialização” é o abandono das crianças e jovens aos seus próprios recursos e a
substituição do aprendizado (educacional) pelo fazer (habilidades e competências).
Arendt (2007, p. 232) argumenta que reformas semelhantes nos Estados Unidos
tiveram a intenção não de ensinar conhecimentos, mas de inculcar habilidades,
transformando as instituições escolares em instituições vocacionais, tornando-se
incapazes de fazer com que a criança adquirisse os pré-requisitos normais de um
currículo padrão. Em segundo lugar, essa educação marca o encontro da economia
com a escola, a confusão da linguagem econômica e educativa que transforma as
“políticas educativas” em políticas de adaptação ao mundo do trabalho, acarretan-
do a perda de autonomia da escola e a estigmatização da educação pública (LAVAL,
2004, p. 66).
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A defesa da escola, numa sociedade do trabalho e do desemprego, se funda-
menta numa reforma educacional que visa oferecer uma mão de obra adaptada e
concebe os alunos não mais que futuros trabalhadores, responsáveis por si mes-
mos, pela sua aprendizagem e pelo constante reinvestimento de suas capacidades
e habilidades. O que acontece com a escola quando a socialização é o critério va-
lorativo e o princípio avaliativo é que há um “processo de aclimatação a valores e
comportamentos esperados de todos os ‘colaboradores’ da empresa” (LAVAL, 2004,
p. 79). A “educação como socialização” não desconecta os jovens do tempo ocupado
da família, da economia, do trabalho, em suma, da sociedade, da “vida”. Nesse sen-
tido, contra a socialização, é preciso pensar a educação e a possibilidade do “tempo
livre” como alternativas ao modelo escolar desescolarizado.
A desaparição da skholé e a revitalização dos muros da escola
Entendo que para pensar a escola e as atividades que a compõem é preciso
considerar e refletir sobre a origem da palavra e da experiência dela derivada,
skholé. Segundo Kostas Kalimtzis (2017), skholé foi um conceito fundamental para
a Filosofia Ocidental, especialmente em Platão e Aristóteles, para os quais signi-
ficava tempo livre para homens livres, isto é, o tempo do filosofar. Arendt (2005,
p. 40) compreende a skholé antecipada pela liberdade da necessidade e da coação
dos demais, além de um cesse de atividade política e liberdade de preocupações e
cuidados. Nesse sentido, a skholé pode ser o espaço/tempo de atividades que não
estejam ligadas às necessidades da “vida”, à utilidade da produção e à política,
aos assuntos daqueles que também estão liberados das necessidades e vivem um
tempo especial de liberdade e igualdade com outros cidadãos.
Kalimtzis (2017), por outro lado, argumenta que no período Bizantino o concei-
to se metamorfoseou, passou por um processo de perda da valoração positiva e, por
conseguinte, desapareceu do grego moderno, embora o verbete skholé, apresentado
pelo autor, deixa claro a sua transformação no sentido de “institucionalização”, isto
é, no grego moderno, skholé passa a significar as instituições de aprendizagem e
pesquisa. No caso brasileiro, a escola é a instituição que compreende toda a forma-
ção básica dos cidadãos. A “institucionalização” da skholé exige uma diferenciação
entre a escola “real”, a que se realiza na prática dos atores, e a forma/ideia, que mo-
biliza o pensamento e estabelece parâmetros para o que poderia ser o escolar. Como
educadores e pesquisadores, “devemos questionar se essa escola que encontramos é
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realmente uma escola, se o que encontramos na instituição escolar responde ao que
é uma escola” (KOHAN, 2015, p. 132).
Apesar da metamorfose da skholé, há elementos nas tradições subsequentes
que podem inspirar uma atualização e ressignificação do conceito para constituir-
mos uma nova experiência. Em Filón (apud KALIMTZIS, 2017, p. 5-6), filósofo
greco-judaico, skholé é uma atividade apropriada ao sabath; atividade moral dedi-
cada a Deus, “retirada da turbulência dos assuntos públicos e terrenos”; um modo
de habitar, por meio da contemplação (theôrein); dedicar-se à Filosofia, no sentido
da avaliação e melhora moral. Dessas definições, skholé é uma atividade moral,
religiosa, um retirar-se dos negócios da askholia para contemplar – embora a con-
templação não seja uma atividade, tal como a compreendemos segundo Arendt
(2005). O que se destaca é a “retirada” temporária, a saída dos negócios, daquilo
que ocupa o tempo corrente e as relações habituais. Uma parada e, no sentido
moral, um “pare e pense”.
Para os Padres da Igreja, especialmente São Basílio, skholé significa quietude,
a recomendação, obviamente centrada na vita contemplativa, de deter o que se está
fazendo, deixar de fazer o que está ocupando-o, parar de se ocupar com o que é apa-
rente, e a retirada moral em Deus (KALIMTZIS, 2017, p. 9). Novamente, a ideia de
deter o ordinário, o corriqueiro, os negócios e ocupações relativas à sobrevivência, à
riqueza, ao não fundamental para uma vida digna compõe a experiência da skholé.
Com Gregório de Nisa, sempre a partir dos estudos de Kalimtzis (2017, p. 12-14), a
skholé desaparece com seu conteúdo normativo que, de algum modo, derivava das
experiências gregas e dá lugar à plegaria, especialmente no Oriente Bizantino. Tal
conceito implica a atividade da oração na qual nos mantemos em comunidade com
Deus, um dever para os cristãos. A askholia passou a significar os assuntos huma-
nos, daqueles que se esquecem de Deus, que se ocupam com o corpo. Se há escola,
nesses termos, ela tem de servir ao ideal da plegaria, não da skholé que ganha um
sentido ambíguo e negativo.
O desaparecimento da significação originária de skholé conduziu a transfor-
mações de seu significado e a institucionalização do conceito, ou seu formalismo,
isto é, mera forma conceitual para abarcar uma série de processos relacionados à
educação e à formação das “novas gerações” entre muros. A escola Moderna, após
revoluções democráticas, massificou o acesso à educação escolar, ao mesmo tempo
em que conformou os indivíduos ao seu estatuto, especialmente o de compreen-
der “o tempo como progresso, ou seja, a superação do passado [...] O mecanismo
da superação implica uma relação necessária entre novidade e negação” (LÓPEZ,
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2014, p. 84). A Modernidade é autoconsciente de sua condição de ruptura com a
tradição e a contemporaneidade. Os eventos e acontecimentos, a partir do século
XX, radicalizaram essa ruptura: rompe-se com o passado, que é considerado sinal
de atraso. A busca constante por novos conhecimentos e capacitações, consequência
da ressignificação do passado, repercute na formação e na educação.
Trata-se, segundo Sennett (2006, p. 47), da formação de uma “individualidade
idealizada: um indivíduo constantemente adquirindo novas capacitações, alterando
sua ‘base de conhecimento’”. A BNCC repercute essa tendência numa crítica ideo-
lógica ao “excesso de componentes curriculares”, à exigência de as aprendizagens
responderem aspirações individuais presentes e futuras (2018, p. 461), às “rápidas
transformações decorrentes do desenvolvimento tecnológico” num contexto “cada
vez mais complexo, dinâmico, fluido” e de incertezas (2018, p. 462) que exigem
dos estudantes a abertura criativa ao novo. Neste contexto, os conteúdos, isto é, o
passado, deixa de ser fonte de inspiração e guia. O “novo” é a negação do passado e
a afirmação de algo distinto, o tempo como progresso.
A simples transposição da skholé grega à escola moderna só é possível com a
suspensão do ideário inerente a ambas. A escola moderna incorpora o “outro” como
uma de suas funções civilizatórias e a skholé grega excluiu o outro, o bárbaro, o
estrangeiro, que, quando incorporado, o é no sistema relegado aos serviços, não ao
tempo livre ou a política, lugar dos excelentes. A escola moderna está relacionada
ao processo civilizatório e de “humanização” que “só é possível por meio da inven-
ção de uma in-humanidade alheia, que dá à máquina ‘antropológica’ seu caráter
dinâmico e produtivo” (LÓPEZ, 2014, p. 89, grifos do autor). Assim, a atualização
da skholé tem de lidar com um duplo desafio: a exclusão grega e a assimilação mo-
derna. Para tanto, a skholé precisa ser um tempo de suspensão.
Em primeiro lugar, a skholé é o tempo de suspender os modos habituais de
nos relacionarmos com o tempo, com a linguagem e com os outros. Assim, na escola
escolar se suspende a noção e a ideologia do progresso que assimila os “estranhos”
ao mesmo tempo em que a ruptura com a tradição desemboca numa “linguagem da
aprendizagem”. “Humanizar” se converte num “socializar”, conforme argumentei
no tópico anterior. O outro, agora, aparece em sua radicalidade porque a suspen-
são do “progresso”, e da lógica colonial inerente, implica a acolhida do outro como
singular e a ideia de que um “nós” não antecede nem é proeminente ao quem de
cada indivíduo que aparece por meio do discurso e da ação. Sendo assim, não há
um quem antes da ação e nem isoladamente. Precisamos dos outros para termos
realidade e os outros de nós.
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A suspensão, portanto, implica que “a escola dá às pessoas a chance (tempora-
riamente, por um curto espaço de tempo) de deixar o seu passado e os antecedentes
familiares para trás e se tornarem um aluno como qualquer outro” (MASSCHE-
LEIN; SIMONS, 2013, p. 31). Tornar-se “aluno” não quer dizer ser anulado em
sua singularidade, mas significa que é possível iniciar, começar outra vez, inserir-
-se no mundo como um novo ser humano e reconhecer-se como novo em relação a
si mesmo e aos demais. Para atingir esse objetivo, a escola precisa suspender os
requisitos, as funções, as expectativas sociais, econômicas, políticas e familiares.
“A suspensão, tal como entendemos aqui, significa (temporariamente) tornar algo
inoperante, ou, em outras palavras, tirá-lo da produção, liberando-o, retirando-o de
seu contexto normal” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2013, p. 32-33).
Essa suspensão é uma espécie de “perdão” que a skholé fornece como possibi-
lidade àqueles machucados, marcados pelos papéis, funções, julgamentos e expec-
tativas sociais, familiares, econômicas e políticas. Mas o perdão, embora dirigido
aos “novos”, não pressupõe culpa ou responsabilidade. No fundo, se perdoa porque
sem o perdão não há como começar outra vez; se perdoa porque os adultos são os
representantes do mundo e responsáveis pelo desenvolvimento das crianças e sua
introdução na existência adulta. Infelizmente, poucos estão dispostos, sabem ou se
interessam por isso. Daí, a skholé se instaura como um pedido de perdão para que o
novo possa surgir e os atores continuem suas histórias. Portanto, o perdão também
é uma suspensão.
Sem ser perdoados, liberados das consequências do que fizemos, nossa capacidade para
atuar ficaria, por dizer assim, confinada a um só ato do qual nunca poderíamos recobrar-
-nos; seríamos para sempre vítimas de suas consequências, semelhantes ao aprendiz de
bruxo que carecia da fórmula mágica para romper o feitiço (ARENDT, 2005, p. 256-257).
Evidentemente que o “perdão” que advogo não é no sentido do penitente e/ou
culpado/responsável, mas daqueles que não podem ser responsabilizados porque
estão em processo de formação e educação. Cada professor instaura a skholé em
sua aula. Não há skholé a priori na escola. Ela precisa ser escolarizada. O per-
dão, como suspensão, permite que a aula comece. As dores, frustrações, juízos e
avaliações são suspensas, colocadas de lado, os alunos são separados do contexto.
A suspensão que rompe com “a solidão e a vergonha do aluno que não compreen-
de, perdido num mundo em que todos os demais compreendem” (PENNAC, 2008,
p. 34); a suspensão dos juízos sobre a valia de si e as previsões acerca do futuro,
“crianças que não chegarão a nada” (PENNAC, 2008, p. 49); e a possibilidade de
começar outra vez, prática do perdão:
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[...] o que entra na sala de aula é uma cebola: umas capas de pesadelo, de medo, de inquie-
tude, de rancor, de cólera, de desejos insatisfeitos, de furiosas renúncias acumuladas sobre
um fundo de vergonhoso passado, de presente ameaçador, de futuro condenado. Olhe-os,
aqui chegam, com o corpo a meio fazer e sua família na mochila. Na realidade, a aula só
começa quando deixam o fardo no chão e a cebola foi descascada. É difícil explicar, mas
frequentemente só basta um olhar, uma palavra amável, uma frase de adulto confiado,
claro e estável, para dissolver esses pesares, aliviar os espíritos, instalá-los no presente
(PENNAC, 2008, p. 58).
O perdão é um autoperdão daqueles que não têm culpa E, orientados pelo
professor, o adulto, podem começar outra vez, aqui, agora, nisso. A skholé, que
suspende a sociedade e os mecanismos da socialização, acontece no “tempo pre
-
sente”, liberando os alunos da carga do passado e das injunções do futuro. Aqui
podem começar outra vez, dedicados nisso, independente do que foram ou do que
a sociedade, a família, o trabalho, a economia ou a política espera. Um tempo
especial de aprendizagem (PENNAC, 2008, p. 59), desvinculado do papel social,
das funções. Tempo do respeito, isto é, tempo em que todos são considerados como
importantes, são vistos e ouvidos, aparecem e respondem ao mundo. Não são pa
-
cientes da educação, mas atuantes. E a atuação não é apropriação, mas respos-
ta. “Enquanto a aprendizagem como aquisição consiste em obter mais e mais, a
aprendizagem como resposta consiste em mostrar quem você é e em que posição
está”, argumenta Biesta (2013, p. 47). Evidencia-se a diferença da escolarização
como skholé da escolarização como socialização possibilitada, em nosso contexto,
por uma “linguagem da aprendizagem”.
A atualização da skholé também implica a suspensão das hierarquias e desi-
gualdades sociais: “ela se dirige a todos por igual; nela o mundo pode ser renovado
pelas novas gerações”, argumenta Kohan (2017, p. 593). De algum modo, havia
comentado sobre essa especificidade quando escrevi sobre a suspensão das tentati-
vas de domar a escola pela sociedade e pela família (e, hoje, a economia e a política
criam hierarquias sociais tão verticais quanto as do Ancien Régime). Essa suspen-
são rompe com o discurso (e a prática) de que a escola reproduz as desigualdades
sociais. A escola escolar, a escola fundada na skholé, é a instituição mais apro-
priada para romper com a desigualdade social de fato, e não apenas de direito. Ao
localizar as crianças, adolescentes e jovens no “tempo presente”, a escola os liberta
do peso das dinâmicas sociais sob o princípio e o fato da igualdade, isto é, do “todos
são capazes de”. A igualdade, na Modernidade, “necessita estar prometida, mas
jamais realizada, pois o dispositivo extrai sua força do desejo de igualdade, e não
da igualdade efetiva” (LÓPES, 2014, p. 90). Por isso, a skholé é revolucionária e
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perigosa, é a materialização de uma crença utópica (KOHAN, 2017, p. 592), e a es-
cola pública, espaço privilegiado para a skholé. A escola, segundo sua forma-ideia,
é um espaço em que é possível “perder tempo”, “perder-se no tempo”, distinto dos
espaços externos em que as pessoas são funções, exercem papéis e não têm tempo
a perder, pois estão dedicadas aos negócios, à produção, ao consumo, ao trabalho, à
askholia. O tempo da skholé é tempo de estudo, de dedicação a si mesmo, de culti-
var-se (KOHAN, 2015, p. 134).
É inevitável, portanto, mencionar a experiência de Simón Rodriguez, educador
e filósofo latino-americano que empreendeu uma educação popular no continente
para contribuir com a formação de uma nascente República. Rodríguez sabia que a
ruptura com o passado colonial e monárquico da Espanha se fazia, também, com a
formação, e a escola poderia ser o princípio de um projeto para uma nova América
– sem, com isso, entender que a educação deva assumir a responsabilidade utópica.
Para Durán e Kohan (2016, p. 17),
[...] a igualdade na escola é declarada como princípio, e não como um objetivo a ser alcan-
çado. Em seu interior, a igualdade se afirma e é praticada sem condições. A afirmação de
uma realidade igualitária cancela, dentro da escola, a desigualdade que impera na cidade.
Por isso, a educação não pode se resumir a socialização, a introduzir os jovens
na sociedade. Como introduzi-los numa sociedade desigual, fundada na lógica da
sobrevivência, da publicização do labor, da existência encaixada inteiramente no
“tempo produtivo”? Tal educação não é educação, mas uma condenação sumária
das crianças e jovens, na medida em que não permite que elas apareçam como
seres singulares. Neste sentido, igualdade não é “igualização”, pois a igualdade,
como princípio e ponto de partida, permite a todos aparecerem como singulares,
e não a anulação das singularidades por uma “igualdade” que reduz as crianças e
jovens a exemplares de uma espécie. Argumentam Masschelein e Simons (2013,
p. 71) que “a escola e o professor que visam manter as mentes dos alunos no início
da aula partem do pressuposto de que todos têm igual capacidade”, o que não sig-
nifica acessar o mundo do mesmo modo nem responder às demandas, questões e
insinuações do mundo e dos outros igualmente. O professor e a escola introduzem
as “novas gerações” no mundo, o tornam público, colocando “todos numa posição
inicial igual e fornece a todos a oportunidade de começar” (MASSCHELEIN; SI-
MONS, 2013, p. 71), ou seja, de agir. Na educação como socialização não há ação,
mas comportamento. A igualdade, se houver, é um fim, não o princípio da ação
pedagógica. Ir à escola não é natural às crianças. Trata-se de uma convenção, uma
criação humana para garantir a continuidade do mundo e a formação. Como ar-
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gumentei anteriormente, a escola é um fenômeno do mundo, não da vida, no qual
a skholé garante a especificidade de uma instituição sob ataque e tentativas de
domínio. E a escola precisa da “suspensão” porque, como a escola de Rodríguez,
a skholé também inverte ou cancela os valores da sociedade, suspende a ordem
social e oferece uma nova prática pedagógica e um novo modo de existir. Por isso, a
escola precisa de seus muros, muros de concreto e muros simbólicos: “a separação
do mundo é a condição de possibilidade do escolar” (KOHAN, 2017, p. 593).
A igualdade na escola, princípio e prática, assume seu aspecto público: se to-
dos são capazes, todos têm acesso ao que é (ou deve ser) público, o comum. Em
Rodríguez, o Estado tem interesse na formação de todos os cidadãos porque não
é possível excluir alguém se todos os ofícios e atividades implicam conhecimento.
Mesmo para a “vida”, tal ideia é fundamental, pois “que progresso farão os homens
sem instrução?” (RODRÍGUEZ, 2016, p. 40). Por outro lado, uma educação repu-
blicana é fundamental numa República, donde uma instrução técnica (ou para a
técnica) é incompleta. A escola republicana, sob o axioma da igualdade, conta com
um adulto competente, versado na sua “matéria”, apto a oportunizar a todos a
experiência de “ser capaz de”. Na escola escolar, ou seja, na skholé não é qualquer
professor, material, livro, avaliação, estrutura ou relação que serve. O desafio, em
nosso continente, não é socializar, nem imitar ou adaptar as diretrizes dos organis-
mos internacionais para produzir trabalhadores mais competitivos. Contudo, en-
tre Arendt e Rodríguez há uma controvérsia. Para o venezuelano, segundo Kohan
(2015, p. 89), a verdadeira educação acontece entre iguais, pois entre desiguais
há antipatia, submissão. O professor, então, deve considerar os estudantes como
iguais. Sem dúvida, são iguais enquanto “seres capazes de”, ambos são estudantes
(KOHAN, 2015, p. 87) e um se inspira no outro e o mobiliza para o desejo de saber.
Contudo, para Arendt, a autoridade do professor, que implica desigualdade e hie-
rarquia, é constitutiva da relação pedagógica, entre adultos e crianças, pois os pro-
fessores são os representantes do “mundo” frente às crianças, e são responsáveis
pelo “mundo” e pelo desenvolvimento das crianças. Sem as especificações da igual-
dade entre professor e alunos que apresentei acima, igualdade formal, a igualda-
de de fato entre professores e alunos rompe com relações tipicamente geracionais
e acarreta o “banimento” das crianças do mundo e uma desresponsabilização do
adulto. Portanto, às afirmações de Rodriguez, é fundamental acrescer as condições
de Arendt, que complementam e preservam as distinções que cuidam, conduzem e
introduzem as crianças no mundo, essência da escola (ARENDT, 2007).
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A atualização da skholé e a escola contra a socialização
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A skholé latino-americana deve ser inventada, a partir de experimentos e ex-
periências de educadores em suas aulas, onde acontece a ação, em que os seres hu-
manos aparecem como singulares. Para Rodríguez (2017, p. 54-55, grifos do autor),
[...] a América está chamada (se os que a governam entendem) a ser modelo de boa socieda-
de, sem mais trabalho a adaptar. Tudo está feito (na Europa especialmente). Peguem o que
é bom – deixem o que é mau – imitem com juízo – e o que lhes faltar INVENTEM.
Para inventar uma skholé latino-americana, é preciso esquecer o que enten-
demos por escola “para passar a considerá-la a partir de sua etimologia grega,
skholé, como uma forma particular de tempo, um ‘tempo livre’ sem destino, sem
objetivo ou fim” (OLARIETA, 2014, p. 51). Do mesmo modo, a experiência grega e
as metamorfoses do conceito não nos servem, não atendem as exigências de nosso
contexto. É preciso atualizar a skholé conforme venho argumentando, salvando o
mundo das ruínas da laborização da existência e, num contexto em que tudo é pas-
sível de apropriação, profanar o sagrado, isto é, o que era privado de acesso público
(AGAMBEN, 2007), liberar para o “livre uso”, sem as injunções das funcionalida-
des previstas socialmente, laboralmente, economicamente, tecnicamente, profis-
sionalmente. Tal “profanação” quer dizer uma ressignificação que ocorre quando
algo é desligado de seu uso habitual e fica acessível para todos (MASSCHELEIN;
SIMONS, 2013, p. 39). As crianças e jovens, ao profanar, mediados e orientados
pelo professor – o representante do mundo –, têm a possibilidade de experimentar
a si mesmas como “nova geração”, e ao mundo como algo distinto de si mesmo, que
confronta, desafia e exige respostas.
Mas uma skholé latino-americana não quer dizer que deva ser uma escola
fundada em experiências indígenas ou negras, mas uma escola para todos e todas,
uma escola para os despossuídos de terra, de cultura, de linguagem, de pensamen-
to, de vida, de mundo (KOHAN, 2015, p. 55). É importante que cada um possa ser o
que é e aparecer como quem é, ou seja, que sejam índios, negros, com suas línguas
e culturas valorizadas e tornadas “comum”, ao mesmo tempo em que a cultura
europeia, estadunidense, asiática e que constituem nossa herança tenham espaço
e tempo. Não se trata de pensar uma skholé americanizada, mas para a América
Latina. O que Rodríguez quer para a América quer para todos, “e a inventiva que
pede para a América se justifica porque o que ela necessita não existe noutro lugar”
(KOHAN, 2015, p. 76).
Nesse sentido, a skholé é o tempo da “experiência” que só é possível no tempo
presente e no tempo livre. Na educação em que é preciso estudar para fazer pro-
vas, preparar-se ao vestibular, formar-se para o trabalho ou para a localização na
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sociedade, não há tempo para realizar experiências com o mundo e com os outros.
O “mundo”, liberado de seus “usos”, aparece na escola como “matérias”, por isso a
escola “profana”. Um livro de Camus sai das mãos científicas de um pesquisador
universitário dos departamentos de Filosofia e Literatura e passa a ser manuseado
livremente pelos alunos, orientados pelos professores a realizar experiências com o
texto, confrontados com a leitura e, assim, consigo mesmos. “Ler um texto”, escreve
Larrosa (2017, p. 128) “é, fundamentalmente, escutar a interpelação que nos dirige
e fazer-se responsável por ela”. Portanto, cabe ao professor fazer boas perguntas,
mobilizar os alunos ao texto, introduzi-los no texto e, assim, numa parte do mundo.
Ao mesmo tempo, cabe ouvi-los, pô-los em relação, na construção do “senso comum”.
“Senso comum” e “mundo” estão articulados. A tarefa da educação, já anun-
ciada, é a de introduzir as “novas gerações” no “mundo”, realizando a transição do
domínio familiar à esfera pública, espaço do comum. “O fundamento do Sistema
Republicano está na opinião do povo, e esta não se forma sem instruí-lo”, escreve
Simón Rodríguez (2016, p. 55). A escola republicana desprivatiza os conhecimen-
tos, torna-os públicos, de acesso geral. Por isso, defender a escola pública e gratuita
é condição necessária para a existência da República e da continuidade do mundo.
Rodríguez (2016, p. 117) defende que “os conhecimentos são PROPRIEDADE PÚ-
BLICA”, donde num regime de apropriação de tudo por todos, que é o capitalismo
neoliberal, a escola exerce uma tarefa fundamental em relação à defesa do “mun-
do” e do “comum”. Do mesmo modo, a República se fundamenta na opinião dos
cidadãos, e isso não significa um “império da opinião”, da absolutização da “liber-
dade de opinião”. “A liberdade de opinião é uma farsa, a não ser que a informação
fatual seja garantida e que os próprios fatos não sejam questionados” (ARENDT,
2007, p. 295). Por isso, a educação exige o ensino que se volta ao passado, e todo
conhecimento se refere ao que passou. Por isso, a BNCC e a “linguagem da aprendi-
zagem” põem em risco o “mundo” e a existência do sistema republicano. “O homem
não é verdadeiramente desprezível senão por sua ignorância” (RODRÍGUEZ, 2016,
p. 53). Do mesmo modo, é a partir dos eventos e acontecimentos que mobilizamos
o pensamento. Mas, para pensar, é preciso sair temporariamente do “mundo”, da
“sociedade”, dos afazeres cotidianos.
É na escola que dedicamos a atenção ao “mundo”, convertido em “matéria.
Estar atento quer dizer dedicar-se a isso, aqui e agora durante um período. Essa
dedicação, na escola, é o estudo que exige o conhecimento e o pensamento. O co-
nhecimento possibilita a inserção no “mundo”, no que é essencial para saber locali-
zar-se nele. O pensamento, por seu turno, busca o significado daquilo que acontece,
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rompe com clichês, frases feitas, estereótipos, pré-juízos e pré-conceitos que têm a
função de nos proteger da realidade, de evitar a realização de experiências. E se,
para pensar, é preciso sair temporariamente do “mundo”, e a escola não é o mundo
(ARENDT, 2007), é também a escola, quando fundada na skholé, um espaço/tempo
do pensar que interrompe toda a ação, todas as atividades habituais (ARENDT,
1993, p. 149). Nesse contexto, a escola desnaturaliza o que a socialização tende a
naturalizar na forma de comportamentos. Se o pensamento interrompe o cotidiano,
a skholé estabelece uma ruptura temporal e espacial: tempo e espaço para pensar.
E nesse aspecto, a atualização da skholé para a escola recupera sentidos perdi-
dos da skholé na Antiguidade para atualizá-los na formação e educação de crianças
e jovens. Na educação como socialização não há espaço e tempo para o pensar,
porque “o pensar representa perigo igual para todos os credos, e não dá origem, por
si mesmo, a nenhum novo credo” (ARENDT, 1993, p. 159).
A socialização, como processos de introdução na sociedade, se fundamenta em
intencionalidades (dos agentes concernidos), mas não em reflexão, em “pare e pen-
se”, em “suspensão”: isso inviabilizaria o processo de socialização. Por outro lado,
isso não significa que a socialização seja autoritária, totalitária. Seu problema é
introduzir na sociedade e não no “mundo”. A escola pode dedicar-se a ambos, desde
que não esqueça que a maior parte do tempo e de seu espaço deve ser de skholé,
do “tempo livre”, não do “tempo produtivo”. Porém, se a escola suspende o “tempo
produtivo” e o tempo da sociedade é “produtivo”, então não há condições, lógicas,
para a socialização na escola, e dela, da socialização, cabe ocupar-se outra esfera.
Considerações nais
O que cabe ao educador no século XXI, em meio a crises econômicas, políticas,
sociais e sanitárias, é reivindicar e atuar “fazendo escola”, o que não significa cons-
truir uma instituição, dedicar-se à arquitetura ou engenharia, mas “que dê à escola
algo assim como sua condição, seu caráter mais próprio, algo que não está dado,
mas que é instaurado na vida escolar, na educação feita vida” (KOHAN, 2015, p.
25). Nos termos que argumentei aqui, trata-se de “fazer” skholé, ou melhor, realizar
skholé, tornar real mesmo que isso signifique tornar inoperante, temporariamente,
a socialização, a “introdução na sociedade”, para introduzir as “novas gerações” no
mundo, naquilo que é mais duradouro que a “vida” e que dota de sentido a existên-
cia. Mas não a existência em seu passado, presente e futuro. Apenas no aqui, no
isso, no agora. Não se trata de um projeto no qual as crianças, jovens e adolescentes
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são instrumentos de um objetivo adulto, mas de realizar o “tempo livre”, no “tempo
presente” que transforma a escola em skholé, na qual todos, que “são capazes de”,
podem desenvolver-se como indivíduos e cidadãos, isentos de qualquer obrigação
para com a sociedade (o trabalho, a economia, o consumo), a família ou a política
(MASSCHELEIN; SIMONS, 2013, p. 97).
Por isso, a skholé rompe com a instrumentalidade inerente às avaliações do
homo faber e com projetos que domam a escola a partir de fora. Inspiração latino-a-
mericana, Simón Rodríguez serviu como um dos fundamentos para pensar a igual-
dade que se realiza na relação pedagógica, pois o filósofo e educador venezuelano “é
um iniciador, um inspirador, um apostador. O que interessa está no que acontece,
no que provoca, não em um produto final” (KOHAN, 2015, p. 50). Isso caracteriza
as experiências de Rodríguez e nos serve de modelo para (re)pensar a escola e a
educação para além da “socialização”, dos processos de “introdução na sociedade”.
A escola, como argumentei, é um fenômeno do mundo, introduz as “novas gerações”
no mundo, e tal introdução acontece com a ação e o discurso, no qual o mundo,
transformado em “matérias” na escola, é objeto que indaga, confronta e exige res-
postas, posicionamentos, aparições. Por isso, “introduzir no mundo” é uma prática
destituída de seu caráter instrumental: não é “fazer a introdução”, mas “realizar”,
tornar real, possível, e isso acontece quando os professores apresentam o mundo às
crianças e dizem: “isso é o nosso mundo” (ARENDT, 2007, p. 239).
Para pensar a skholé, é preciso desabituar-se, assumir a perspectiva do estran-
geiro, do estranho, do outsider, para compreender distintamente e desnaturalizar
relações e práticas que não permitem a crianças, adolescentes e jovens aparecerem
como singulares ou tornarem-se o quem são (KOHAN, 2015, p. 34). Por isso, a
“socialização”, como “introdução na sociedade” não pode fazer parte da escola - ao
menos, não como a atividade principal -, porque, como argumentei, ela desescolari-
za a escola, inviabiliza a skholé.
Esses argumentos não conduzem, necessariamente, à exclusão da sociali-
zação, pois todos necessitamos, também, comportar-nos, atuar conforme regras,
estatutos, ordenamentos e leis, mas isso não deve ser um empecilho à ação, ao
pensamento, à imaginação e à inovação, tomando como condição as necessidades
pelas quais nos unimos em sociedade e a liberdade em associações. Para Rodríguez
(2016, p. 137),
[...] os homens não estão em sociedade para se dizer que possuem necessidades nem para se
aconselhar que busquem remediá-los... nem para se incentivar a terem paciência; mas para
se consultar sobre os meios de satisfazer seus desejos, porque não satisfazê-los é padecer.
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A atualização da skholé e a escola contra a socialização
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Nessa definição, o filósofo opta pelo plural, os homens e não o homem ou a
humanidade. Neste sentido, a sociedade se compreende como associação, que exige
dos homens a compreensão sobre como se entender entre si e criar instituições,
práticas e condutas eficazes para a satisfação das necessidades e dos desejos. Em-
bora eles não se refiram ao “mundo”, no sentido arendtiano, não se pode descartar
essa esfera como importante, porque não há como voltar atrás, para os indivíduos.
Importante, mas não fundamental para que uma vida individual exista como sin-
gularidade. A escola institucional transita, assim, da askholia para a skholé.
Assim, a escola também forma para a “vida”. Inspirado em Simón Rodríguez,
Kohan (2015, p. 80) argumenta que “é preciso formar todas as meninas e todos os
meninos desta terra para o mundo, para o trabalho, para a vida”, o que não signi-
fica desescolarizar a escola, a askholia usurpando a skholé: uma escola utilitária,
instrumental e técnica. Cabe à escola escolar criar condições para a realização das
experiências, do aprendizado pela experiência e da experiência como aprendizado.
Aprender a ler e escrever não é o bastante (RODRÍGUEZ, 2016, p. 93), é importan-
te uma educação dos sentidos e pelos sentidos – ideia que o filósofo venezuelano
compartilha com Rousseau (2017, p. 53): “preparai-as, portanto, para as ameaças
que um dia terão de suportar. Endurecei seu corpo às intempéries das estações,
dos climas, dos elementos: à fome, à sede, ao cansaço”. Pois é importante aprender
a viver para poder cuidar do mundo, ser introduzido no mundo e não sucumbir à
vida, à sobrevivência. Tudo isso faz parte da escola, embora nem tudo a faça esco-
lar. “Ensinar pela metade não é ensinar” (RODRÍGUEZ, 2016, p. 101).
A educação na América integra conhecimento, pensamento, ação e a vida.
São espaços (os escolares) em que é possível aparecer como singular e, a partir de
Arendt (2005), isso não acontece sem os outros que garantem a realidade do indiví-
duo e de si mesmos em relação, no espaço entre, o “mundo” ou a “matéria” “profana-
da”, “desprivatizada” pela escola. Eis a escola republicana: a que introduz todos no
mundo, torna público e comum. Uma educação política que não é instrumento da
política: “a educação é para todos ou para ninguém” (KOHAN, 2015, p. 85). Logo,
ela não é um fenômeno da vida, mas do mundo.
Notas
1
Todas as traduções são de nossa autoria.
2
Nesse aspecto, em termos educacionais, Rousseau (2017, p. 99) comenta: “sabeis qual o meio mais seguro
de tornar vosso filho miserável? É acostumá-lo a conseguir tudo, pois, com seus desejos crescendo conti-
nuamente pela facilidade de satisfazê-los, cedo ou tarde a impotência vos forçará a recusá-los contra a
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vossa vontade, e tal recusa inabitual causará maior tormento a vosso folho que a própria privação do que
ele quer”.
3
O fato de o Ministério da Economia, no Brasil de Bolsonaro, exercer preponderância, “superministério”,
só é possível com o advento da sociedade, na qual a economia (oikonomía) se tornou um assunto público,
quando, originariamente, dizia respeito a oikos, aos assuntos domésticos, relacionados às necessidades.
Quando a Economia administra a educação, negligenciando a tarefa específica que toda educação tem na
civilização, há a preponderância da socialização sobre a educação, da adaptação e do conformismo sobre a
ação, a introdução no mundo e a singularização.
4
Na continuidade do argumento, escreve Estefanía (2017, p. 85): “por que, apesar de tantos bem intencio-
nados economistas neoclássicos, quase todas suas recomendações e receitas favorecem aos ricos, mais que
aos pobres, aos capitalistas mais que aos assalariados, aos privilegiados antes que os despossuídos”.
5
Segundo Sennett (2012, p. 17), “a falta de respeito, ainda que menos agressiva que um insulto direto, pode
adotar uma forma igualmente que fere. Com a falta de respeito não se insulta a outra pessoa, mas tam-
pouco se oferece reconhecimento; simplesmente não se a vê como um ser humano integral cuja existência
importa”. Contudo, o desrespeito se converte em humilhação quando vê ao outro como fracassado, pregui-
çoso, parasita da sociedade. É o caso da Primeira Dama do Estado de São Paulo quando falou que morar
na rua é um atrativo e que os moradores de rua gostam de ficar lá. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/
sao-paulo/noticia/2020/07/03/bia-doria-diz-que-nao-se-deve-doar-marmitas-para-moradores-de-rua-por-
que-eles-gostam-de-ficar-nas-ruas-e-um-atrativo.ghtml.
6
Num artigo dos anos 1950, sobre as técnicas da ciência social e o estudo dos campos de concentração,
Arendt argumenta sobre os campos de concentração como laboratórios de uma experiência de domina-
ção total que visa eliminar a espontaneidade e transformar o homem num ser totalmente condicionando
mediante a destruição da pessoa jurídica, da pessoa moral e da própria individualidade (ARENDT, 2001,
p. 157).
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