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Pedagogia da ameaça: uma análise dos padrões comunicativos de socialização no
WhatsApp bolsonarista
Pedagogy of threat: an analysis of communicative patterns of socialization in Jair Bolsonaros
WhatsApp support groups
Pedagogía de la amenaza: análisis de patrones comunicativos de socialización en grupos de
apoyo al presidente Jair Bolsonaro en WhatsApp
Rodrigo Pelegrini Ratier
*
Resumo
O objetivo deste trabalho é analisar aspectos da socialização nos grupos públicos bolsonaristas no aplicativo
WhatsApp. O foco são os padrões comunicativos recorrentes nesse espaço. Utilizando como material de análise
mensagens textuais e visuais, animações, memes e vídeos veiculados em comunidades virtuais de apoio ao pre-
sidente Jair Bolsonaro, indica-se a existência de uma pedagogia da ameaça”, com uxo comunicativo centraliza-
do, ausência de debates e nenhum espaço para o contraditório. A análise de conteúdo aponta intensa circulação
de mensagens apoiadas em três padrões comunicativos fundamentais: 1- binômio amigo-inimigo, 2- apelo à
emoção e 3- estratégias de desinformação. Defende-se que a plataforma virtual em tela se congura como uma
mídia ideológica na acepção proposta por Thompson (1995), a de sentido a serviço do poder. Ao emular um
estado de ameaça constante, o WhatsApp bolsonarista ambiciona reunir, alertar e convocar a militância para a
defesa do presidente diante de perigos e intimidações.
Palavras-chave: WhatsApp; socialização; nova direita; bolsonarismo.
Abstract
The aim of this work is to analyze aspects of socialization in WhatsApp public groups that support Brazilian
president Jair Bolsonaro. The focus is on the recurrent communicative patterns in this space. Considering textual
and visual messages, animations, memes and videos published in pro-Bolsonaro digital communities, we point
to the existence of a “pedagogy of threat”, with centralized communicative ow, absence of debates and no
space for contradictory opinions. The content analysis indicates intense circulation of messages based on three
main communicative strategies: 2- friend-enemy binomial; 2- appeal to emotion; 3- misinformation strategies.
It is argued that the virtual platform on screen is congured as an ideological medium in the sense proposed by
*
Doutor em educação pela Universidade de São Paulo. Pesquisador do Grupo de Pesquisa Práticas de Socialização
Contemporâneas (GPS-FEUSP) com participação no Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior, fomentado pela
Capes, na Université Lumière Lyon 2. Professor assistente do curso de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero (FCL).
Jornalista e professor universitário na Faculdade Cásper Líbero. Colunista na plataforma ECOA | UOL (https://www.
uol.com.br/ecoa/colunas/rodrigo-ratier/). Coordenador do blog coletivo Entendendo Bolsonaro (entendendobolso-
naro.blogosfera.uol.com.br). Fundador e gestor do curso online contra fake news Vaza, Falsiane (www.vazafalsiane.
com). Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9733-7563. E-mail: rratier@gmail.com
Recebido em: 30/07/2020 – Aprovado em: 09/06/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i1.11465
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Thompson (1995), that of meaning in the service of power. By emulating a state of constant threat, the Bolsonar-
ist WhatsApp aims to gather, alert and summon militancy to defend the president in the face of dangers and
intimidation.
Keywords: WhatsApp; socialization; alt-right; Jair Bolsonaro.
Resumen
El objetivo de este trabajo es analizar aspectos de la socialización en grupos públicos de apoyo al presidente
brasileño Jair Bolsonaro en WhatsApp. La atención se centra en los patrones comunicativos recurrentes en este
espacio. Utilizando como material de análisis mensajes textuales y visuales, animaciones, memes y videos difun-
didos en comunidades virtuales, se indica la existencia de una “pedagogía de la amenaza, con un ujo comuni-
cativo centralizado, ausencia de debates y sin espacios para opiniones opuestas. El análisis de contenido mues-
tra una intensa circulación de mensajes sustentada en tres patrones comunicativos fundamentales: 1- binomio
amigo-enemigo, 2- apelación a la emoción y 3- estrategias de desinformación. Se argumenta que la plataforma
virtual se congura como un medio ideológico en el signifcado propuesto por Thompson (1995), el de sentido al
servicio del poder. Al emular un estado de amenaza constante, los grupos de apoyo de Bolsonaro tienen la inten-
ción de reunir, alertar y convocar a la militancia para defender al presidente ante los peligros y las intimidaciones.
Palabras clave: WhatsApp; socialización; nueva derecha; Jair Bolsonaro.
Introdução
O presente estudo, de caráter exploratório, dá continuidade à pesquisa desen-
volvida desde 2018 sobre o WhatsApp bolsonarista por este autor. Insere-se no con-
texto de socialização plural (LAHIRE, 2002, 2004, 2012) e considera a importância
da mídia na circulação de valores, padrões e formas de comportamento (SETTON,
2004, 2012). Como as demais instâncias de socialização da contemporaneidade – fa-
mília, escola, igreja, trabalho etc. –, apresenta referenciais identitários, articulados
pelo indivíduo, por vezes tensa e conflituosamente, em diferentes combinatórias.
Resultam em disposições de habitus híbridos, não necessariamente homogêneas ou
coerentes, acionadas conforme os contextos de ação (SETTON, 2002, 2005, 2009).
Do ponto de vista da socialização contemporânea, as mídias são espaços edu-
cativos, na medida em que disseminam informações e valores que auxiliam a estru-
turação de modos de ser, agir e pensar nos indivíduos. Educação, aqui, não designa
forçosamente processo virtuoso ou restrito à escolarização formal. Considera-se o
entendimento ampliado proposto por Libâneo (1998) para reconhecer que as mí-
dias possuem uma função pedagógica e, muitas vezes, ideológica (SETTON, 2012).
Educação é o conjunto das ações, processos, influências, estruturas, que intervêm no desen-
volvimento humano de indivíduos e grupos na sua relação ativa com o meio natural e social,
num determinado contexto de relações de grupos e classes sociais (LIBÂNEO, 1998, p. 22).
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Discutir a natureza pedagógica de uma mídia, o WhatsApp, faz parte do escopo
amplo deste estudo. O aplicativo se insere no contexto de ascensão das redes sociais,
que levou a extensas transformações na produção e adaptações nos comportamen
-
tos de consumo tanto de indivíduos quanto de instituições sociais. Em uma pers-
pectiva mais “integrada”, McNair (2009) aponta que o desenvolvimento tecnológico
potencializou as condições para uma democracia participativa sem precedentes. Em
uma visão menos edulcorada, Jenkins (2006) enfatiza que a audiência passa a ser
ativa, barulhenta, migratória, menos leal e socialmente conectada, redesenhando
as regras por meio das quais a própria vida cívica opera. Num polo “apocalíptico”,
Han (2018), define a mídia digital como uma mídia de afetos, de uma cultura de
falta de respeito e de indiscrição, fracamente ocupado pelo poder e pela autoridade.
Reflexões que, desde um ponto de vista sociológico, apontam para o aprofundamen
-
to de um universo de autoridades múltiplas (LAHIRE, 2012), em que os sistemas de
saberes peritos se encontram em crise e convocam, cada vez mais, a reflexividade
individual nos processos de socialização (GIDDENS, 1991, 1997).
Em trabalho anterior (RATIER, 2020b), procuramos demonstrar as configu-
rações fundamentais da rede de grupos públicos bolsonaristas no WhatsApp. A to-
pologia das redes indica conjuntos de grupos fortemente interconectados, tanto por
meio de convites para participação em outras comunidades quanto pela similitude
dos conteúdos disseminados. Surgiram também indícios de centralização na produ-
ção de informação e de mecanismos de controle das heresias, com o banimento, pela
ação dos administradores de grupos, dos indivíduos que apresentassem opiniões
contrárias à defesa do presidente. Em outro lugar (RATIER, 2020a), aprofundamos
a análise desses achados, confirmando a existência de uma “elite falante” – peque-
no grupo de usuários que domina a produção de mensagens –, a predominância de
postagens encaminhadas ou copiadas e a baixa qualidade da informação circulan-
te, com predomínio de perfis em redes sociais ou sites hiperpartidários simpáticos
ao presidente.
No presente estudo, a intenção é identificar, classificar e analisar as formas
simbólicas predominantes e os padrões comunicativos prevalentes nos grupos
bolsonaristas. Considerando a pedagogia como uma teoria prática da educação
(DURKHEIM, 1965), buscam-se observáveis da materialização do ato educativo
no aplicativo em tela. Para tanto, apoiamo-nos na hipótese de Cesarino (2019a) de
que as funções comunicativas no ecossistema bolsonarista poderiam ser reduzidas
a poucas estratégias elementares que visariam, de um lado, a reforçar a conexão
entre o “líder” e o “povo” e, de outro, a estabelecer uma fronteira amigo-inimi-
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go, atribuindo aos adversários políticos afetos negativos – medo, repulsa, pânico.
Defende-se que a reiteração de tais estratégias conforma o que denominamos de
“pedagogia da ameaça”, ambicionando reunir, alertar e convocar a militância para
a defesa do presidente diante de perigos e intimidações.
O artigo se encontra dividido em seis seções. Esta introdução e uma conclusão;
a fundamentação teórica, em que discute-se a natureza do WhatsApp, apresenta-se
o fenômeno da “nova direita” brasileira em geral e do bolsonarismo em particular,
culminando com sua atuação digital e a instrumentalização do WhatsApp para fins
políticos; a metodologia de pesquisa; a apresentação dos resultados; a discussão
dos achados, em que se sublinham os três padrões comunicativos mais recorrentes
no conteúdo disseminado nos grupos analisados: 1- apelo à emoção; 2- binômio
amigo-inimigo; 3- estratégias de desinformação. A análise recupera a influência da
psicologia de massas em regimes autoritários (ADORNO, 2020; REICH, 1988) e a
contribuição das teorias políticas de Laclau (2013) e Schmitt (2009), para amparar
a hipótese de uma mídia ideológica na definição proposta por Thompson (1995), a
de sentido a serviço do poder.
Fundamentação teórica
Mais bem-sucedido aplicativo de troca de mensagens no mundo, o WhatsApp
se disseminou pelo mundo seguindo a popularização dos smartphones e as veloci-
dades crescentes de conexão à internet. Lançado em 2009, foi arrematado em 2014
pelo Facebook por 19 bilhões de dólares. É uma das redes sociais que mais crescem
no mundo. Segundo dados da companhia proprietária, atingiu 2 bilhões de usuá-
rios, atrás apenas do próprio Facebook, que possui 2,5 bilhões de contas ativas. No
Brasil, são cerca de 130 milhões de usuários.
Formalmente, o aplicativo rejeita ser classificado como rede social. A definição
oficial é de um serviço de mensagens instantâneas, desenvolvido para interações
um a um (WHATSAPP, 2019). Para afastar o qualificativo, a empresa afirma que
90% das mensagens são trocadas entre dois usuários. Os outros 10% são dissemi-
nados em grupos, funcionalidade criada em 2011 para proporcionar comunicação
coletiva. Podem abrigar até 256 contatos telefônicos e assumir três tipos diferen-
tes: lista de transmissão, de caráter unidirecional, em que apenas os administra-
dores podem publicar; grupos fechados, com contatos inseridos manualmente pelos
administradores; e grupos públicos, quando o administrador publica o endereço
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de acesso ao grupo em páginas da internet ou o envia para contatos convidados.
Qualquer pessoa que possua o link pode acessar um grupo dessa natureza.
A bibliografia afirma que a introdução da comunicação coletiva alterou a natu-
reza bilateral do aplicativo (GARIMELLA; TYSON, 2018; SEUFERT et al., 2016).
Farooq (2018) indica a facilidade de criar e compartilhar conteúdo e a mobilidade
do WhatsApp como aspectos favoráveis para atingir grandes audiências. Já Viei-
ra et al. (2019) identificam semelhanças entre a disseminação de mensagens pelo
aplicativo e mídias tradicionais, como rádio e TV.
Há registros do uso de grupos de WhatsApp para a comunicação e propaganda
política em diversas partes do mundo (FAROOQ, 2018). No Brasil, o aplicativo
vem sendo utilizado mais amplamente pelo espectro político denominado de cam-
po antipetista (RIBEIRO; ORTELLADO, 2018), nova direita (DUDA DA SILVA,
2018) ou extrema-direita (MIGUEL, 2018). Miguel (2018) enxerga a um só tempo
elementos de aglutinação (libertarianismo econômico, fundamentalismo cristão
e anticomunismo) e heterogeneidade, afirmando se tratar da confluência de gru-
pos diversos em união pragmática contra um inimigo em comum – ou inimigos, a
“ideologia de gênero” e o “avanço do comunismo”, segundo Kalil (2018), ou ONGs
e movimentos sociais, partidos de esquerda e movimentos identitários, conforme
Ribeiro e Ortellado (2018).
Visões otimistas do aplicativo como lugar de discussão democrática, hori-
zontal e plural têm sido problematizadas pela bibliografia. Christie (2019) aponta
inclinação à polarização política, à autorradicalização e à distribuição de infor-
mações falsas. Por prisma semelhante, Litzendorf Netto e Peruyera (2018) enxer-
gam esse tipo de estratégia como ferramentas de propaganda política na internet.
Resende et al. (2019) nomeiam como “guerra de informação” a disseminação de
desinformação durante a campanha presidencial de 2018. Na ocorrência mais agu-
da, a jornalista Patrícia Campos Mello noticiou enviou massivo de propaganda con-
trária ao candidato Fernando Haddad (PT). A ação, supostamente financiada por
empresários simpáticos ao bolsonarismo, pode ter impactado centenas de milhões
de usuários e vedada pelos termos de uso do aplicativo e pela legislação eleitoral
(CAMPOS MELLO, 2018). Cerca de um ano depois, o WhatsApp reconheceu o uso
impróprio do aplicativo (CAMPOS MELLO, 2019).
A ação não se confunde com os grupos públicos bolsonaristas. Construídos e
mantidos por apoiadores desde antes das eleições, tornaram-se canais importantes
de comunicação do então candidato e atual presidente, sendo parte de um ecos-
sistema digital que Piaia e Alves (2019) classificam como “rede de comunicação
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subterrânea”. Em 2019, diversos estudos indicaram que tal rede seguia ativa (NE-
MER, 2019) e mesmo em crescimento (RATIER, 2020b).
Em termos topográficos, a aparente planitude da rede de grupos supostamen-
te horizontais e autônomos contrasta com a centralização dos fluxos comunicati-
vos. Nossas pesquisas anteriores (RATIER, 2020a, 2020b) dão conta de que apenas
uma pequena parcela dos integrantes é responsável pela grande maioria das men-
sagens. Estas, por sua vez, reproduzem argumentos vocalizados pelas figuras mais
visíveis do bolsonarismo – parlamentares da base, membros do governo, jornalis-
tas, blogueiros e youtubers alinhados e o próprio clã. Durante as eleições, a campa-
nha de Bolsonaro vendeu a ideia de uma militância digital orgânica, apoiando vo-
luntariamente o então candidato. A tese se fragilizou com a revelação da existência
de um suposto “gabinete do ódio” (ARBEX; URIBE, 2019). Trata-se de estrutura,
cuja existência sempre foi negada pelo governo (WAJNGARTEN, 2020), liderada
pelo vereador licenciado Carlos Bolsonaro, o “filho 02” do presidente.
Composto por um trio de assessores especiais da presidência e instalado no
terceiro andar do Palácio do Planalto, o gabinete do ódio seria responsável pelas
principais linhas narrativas de defesa do governo e de ataque aos adversários. For-
neceria tanto insumos prontos para a replicação nas redes quanto inspiração para
as produções da militância de carne e osso, ávida por ser compartilhada por parla-
mentares ou quem sabe pelo próprio presidente. Evidencias concretas da atuação
do grupo surgiram em julho de 2020, quando o Facebook removeu uma rede com
73 contas, ligadas ao gabinete presidencial, a filhos de Bolsonaro e a deputados
bolsonaristas. Facebook e Instagram localizaram páginas de anônimas de ataques
a adversários políticos ligadas a Tércio Arnaud Tomaz, assessor especial da presi-
dência e suposto integrante do gabinete do ódio (SOPRANA; ONOFRE; CAMPOS
MELLO, 2020).
Em depoimento à CPMI das fake news, a deputada federal Joice Hasselmann,
ex-aliada e atual desafeta do bolsonarismo, corroborou a tese de um ecossistema de
comunicação digital em uma estrutura piramidal. No topo estariam a família Bol-
sonaro e assessores próximos, incluindo o gabinete do ódio. Uma vez definidos os
alvos, começariam as publicações em massa nos perfis de políticos (família Bolso-
naro, deputados e ministros bolsonaristas) e influenciadores (o filósofo autodidata
Olavo de Carvalho e discípulos). Em seguida começaria o “movimento de manada”:
replicação e mimetização dos conteúdos por sites hiperpartidários, perfis anônimos
e movimentos de extrema direita. Em redes como o Twitter, perfis robôs ajudariam
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com o crescimento artificial das pautas, por meio do impulsionamento de hashtags,
por exemplo.
Os grupos públicos bolsonaristas no WhatsApp se situariam no nível inicial
do movimento de manada, replicando conteúdos produzidos centralmente e, ampa-
rados pela criptografia da rede, publicando peças de teor mais agressivo que nas
redes sociais abertas. De lá, a informação atinge a base da pirâmide via viraliza-
ção, percolando em grupos particulares (de família, amigos, trabalho) e atingindo,
potencialmente, uma vasta camada da população.
Metodologia
As características específicas da plataforma WhatsApp acarretam complexi-
dades metodológicas e éticas para a pesquisa. A criptografia confere ao aplicativo
um caráter opaco ao controle social. No caso dos grupos bolsonaristas, um compli-
cador adicional é a recorrência de estratégias de expulsão de supostos opositores.
Não raro circulam listas de “infiltrados” com a recomendação de que os administra-
dores promovam varreduras constantes nos contatos para exclui-los.
Optou-se, assim, pela pesquisa encoberta, definida pela resolução 510/2016 do
Conselho Nacional de Saúde (CNS). Trata-se de modalidade em que o pesquisador
se junta aos grupos sem divulgar identidade ou objetivo da pesquisa. Não há publi-
cação e distribuição dos termos da pesquisa e de seus procedimentos, o que impede
que os integrantes optem pela participação livre e esclarecida. Segundo Chagas,
Modesto e Magalhães (2019), a ausência do direito de não ser pesquisado é a prin-
cipal controvérsia ética. Apesar disso, citando Padilha et al., os autores afirmam
que o método “não deve ser rejeitado, visto que a coleta de dados por outras formas
é inviável” (CHAGAS; MODESTO; MAGALHÃES, 2019, p. 2). Entende-se que é o
caso aqui, inclusive em virtude de possíveis hostilidades ao pesquisador. Ressalte-
-se, porém que 1- o levantamento se deu apenas em grupos públicos, cujos links de
acesso podem ser encontrados outros grupos semelhantes e em páginas de apoio a
Bolsonaro na internet e 2- as precauções relativas à privacidade incluíram o não
armazenamento de informações pessoais dos pesquisados, à exceção dos números
telefônicos, cujo fornecimento a outros integrantes dos grupos não fere as políticas
de uso do WhatsApp. –, preservaram-se todos os demais dados privados dos sujei-
tos pesquisados.
Em termos práticos, os dados foram coletados por meio de smartphone es-
pecífico associado aos grupos. A amostra não probabilística por conveniência foi
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extraída de um universo de 30 grupos públicos de WhatsApp monitorados pelo
pesquisador desde 2018. Para a seleção da amostra, foram excluídos grupos com
nomes não relacionados ao bolsonarismo (Senta a Púa, Stellacruz etc.), ligados à
direita em geral (direita Brasil etc.), regionais (direita Goiás, Paulista etc.), veícu-
los informativos, mesmo que alinhados ao bolsonarismo, grupos ex-bolsonaristas
(apoio a lava-jato, nacionalismo) e de pautas setoriais (limpeza no Judiciário). Fo-
ram mantidos 18 grupos cujos nomes expressassem, presentemente, apoio explí-
cito ao presidente Bolsonaro, fosse com seu nome, apelidos (mito etc.), slogans por
ele usados (pátria amada, Brasil; Brasil Acima de Tudo etc.), pautas caras a seu
mandato, seu projeto de partido (Aliança pelo Brasil etc.) ou figuras satélite do
bolsonarismo (Michelle Bolsonaro).
Após o ingresso nos grupos, ajustou-se a metodologia de Garimella e Tyson
(2018), que consiste no monitoramento manual de dados, a importação da amostra
para planilhas de análise e a caracterização dos atributos essenciais da comunica-
ção. Passou-se à contagem das mensagens enviadas nos grupos selecionados, entre
os dias 6 e 8 de julho de 2020, perfazendo um período de coleta de 48 horas. Obte-
ve-se um total de 3.211 mensagens, média de 178 por grupo (n. máx. = 504, n. mín.
= 8). Em comparação com outros dois momentos de coleta (RATIER, 2020a, 2020b),
observa-se diminuição na atividade dos grupos: em junho de 2019, foram em média
236 mensagens trocadas diariamente. Em fevereiro de 2020, 140 mensagens, e em
julho de 2020, 89.
O intervalo coincide com a progressiva deterioração das condições de governa-
bilidade de Jair Bolsonaro. O front da comunicação foi atingido com revelações da
CPMI das fake news e pelo inquérito do Supremo Tribunal Federal sobre o mesmo
tema. Em junho de 2020, youtubers bolsonaristas teriam apagado 3.463 vídeos de
seus perfis (ALVES, 2020). A retirada sucede operações de busca e apreensão e a
prisão de um blogueiro aliado. Também ocorreu no período a prisão de Fabrício
Queiroz, amigo pessoal do presidente há três décadas, ex-assessor parlamentar do
então deputado estadual Flávio Bolsonaro, acusado de ligações com milícias e de
liderar um esquema de “rachadinhas” na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.
A detenção de Queiroz levou à diminuição de manifestações públicas de Jair Bolso-
naro e de um abrandamento de tom em seu perfil no Twitter.
O período selecionado para a amostra, por sua vez, registrou no noticiário
relativo a Bolsonaro a soltura do blogueiro simpatizante Oswaldo Eustáquio Filho
e de dois apoiadores que fizeram atos contra o ministro do STF, Alexandre de Mo-
raes. Na economia, queda na arrecadação federal pelo 5º mês consecutivo. No meio
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ambiente, um pedido de combate ao desmatamento de 36 grandes companhias ao
vice-presidente Hamilton Mourão, presidente do Conselho Nacional da Amazônia
Legal. As notícias sobre a pandemia de covid-19 davam conta de um aumento nos
óbitos em casa e em vias públicas, fato atribuído a falhas no enfrentamento ao coro-
navírus. O próprio presidente, após minimizar a doença, acabou testando positivo
no dia 8 de julho, iniciando no próprio momento do anúncio apologia ao medica-
mento hidroxicloroquina, sem eficiência comprovada cientificamente no tratamen-
to dos sintomas.
Tabuladas as interações entre os grupos, destacou-se o grupo cujo número de
mensagens mais se aproximasse da média (179 interações). As conversas foram
enviadas para tabulação pela opção “exportar conversas sem mídia” do aplicativo,
resultando em um arquivo de texto convertido para o software Excel. As peças so-
noras, visuais ou audiovisuais foram examinadas posteriormente uma a uma pelo
pesquisador para os procedimentos de categorização do conteúdo.
Apresentação dos resultados
No período da coleta de dados, o grupo contava com 201 integrantes, excluindo
o pesquisador. Foi criado em 05 de dezembro de 2018 por um número telefônico
registrado nos Estados Unidos, embora a descrição do grupo informe que o “criador
e administrador” é um homem supostamente de João Pessoa, Paraíba. O grupo
conta com 6 administradores. No período de análise, dois integrantes abandona-
ram o grupo, sendo excluídas as duas sinalizações de saída do total de mensagens
(n=177).
Quanto aos participantes, verificaram-se tendências expressas, em estudo
anterior (RATIER, 2020b), de que: 1- a grande maioria dos usuários não interage
no grupo; 2- os fluxos comunicativos estão concentrados em uma “elite falante”
de integrantes. Ao longo das 48 horas analisadas, apenas 23% dos integrantes
(n=47) postaram algum conteúdo. A atividade de postagem, por sua vez, tam-
bém se encontra desigualmente distribuída. Apenas 4% dos usuários (n=9) são
responsáveis por 50% das mensagens enviadas, sendo que 17% do conteúdo
é produzido ou compartilhado por apenas dois números de telefone. Ressalte-se,
ainda, que a “elite administrativa” pouco postou: apenas 3 das 179 mensagens
(1,6% do total) partiram de 2 dos 6 celulares cadastrados como responsáveis pelo
grupo (Tabela 1).
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Tabela 1 – Usuários e mensagens enviadas
Número de usuários % do total de usuários Número de mensagens % do total de mensagens
154 77% 0 0%
47 23% 177 100%
9 4% 90 50%
2 1% 31 17%
Fonte: elaboração própria.
Também há congruência com Ratier (2020b) quanto à natureza das mensa-
gens: 90% delas (n=158) foram produzidas por terceiros, sendo 41% encami-
nhadas (n=72) e 49% copiadas
1
(n=86). Apenas 7% das mensagens podem ser
consideradas como autorais (n=12), sendo basicamente emojis (n=2) e textos de
resposta (n=10). Muito curtos (média de 53 caracteres por resposta, 20% do limite
das postagens no microblog Twitter), apresentavam tom de concordância a alguma
postagem anterior. Não foi possível identificar a natureza de 4% das mensagens.
Em termos de mídia, predomínio dos recursos audiovisuais: 55% (n=97),
sendo 32% vídeos (n=56), 20% imagens (n=35) e 3% áudios (n=6). Postagens com
links externos são 28% (n=50), textos, 13% (n=23) e emojis, 4% (n=7). Ao todo, 59%
das postagens são nativas do WhatsApp (n=106), o que significa alta acessibi-
lidade para planos de internet móvel populares que possibilitam navegação ilimi-
tada no aplicativo, mas não em recursos fora dele. Links externos (41%, n=71),
por sua vez, apontam sobretudo para sites hiperpartidários, de apoio ex-
plícito a Bolsonaro. Eles são 58% do universo de links externos (n=41), enquanto
a mídia profissional representa apenas 7% (n=5). O restante dos links aponta para
redes sociais como o YouTube (24%, n=17), Facebook (7%, n=5) e Twitter (3%, n=2).
Novamente, as ordens de grandeza são semelhantes às encontradas em estudo
anterior.
A análise de conteúdo se deu na mesma amostra entre os dias 10 e 14 de ju-
nho. Das 177 mensagens originais, foram consideradas 174 cujos links e mídias se
encontravam ativos no momento da análise.
Pode-se identificar o gênero discursivo em 163 postagens. Seguindo Chapar-
ro (1998), operou-se a distinção basal dos gêneros jornalísticos, a separação entre
informação e opinião – reconhecendo-se, para tanto, o aspecto proeminente em
cada uma das postagens. Houve predominância do gênero opinativo em 60%
das postagens (n=98), sempre favoráveis a Bolsonaro. O gênero informativo es-
teve presente em 32% postagens (n=52), o publicitário em 5% (n=8) e outros em
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3% (n=5), porcentagens semelhantes, uma vez mais, a estudo anterior (RATIER,
2020a).
Entre os opinativos, destacam-se os vídeos de dois tipos. Os que remetem a
links do YouTube são mais longos, entre 13 minutos e 2 horas de duração, e costu-
mam recorrer à estrutura opinativa clássica: um comentarista em plano americano,
falando diante de um cenário caseiro ou em chroma key (fundo virtual), abordando
algum assunto polêmico ou realizando um “giro de notícias” opinativo. Já os vídeos
nativos para WhatsApp são mais curtos (máximo de 8 minutos) e priorizam edições
de trechos maiores – discursos de políticos, testemunhos de populares, excertos de
programas de TV ou vídeos em redes sociais. Tendem a ser discursivamente mais
agressivos, confirmando a vocação da plataforma para peças mais radicais.
As postagens informativas são sobretudo links de veículos informativos hi-
perpartidários, com pauta de defesa do presidente Bolsonaro (Goiás 365, Tudo OK
Notícias, Duna Press etc.). As reportagens não trazem apuração própria e são, em
geral, de fonte única e oficial: reaproveitamento de falas do presidente em posta-
gens na internet, releases de ministérios do governo, do site gov.br ou da estatal
Agência Brasil, cópias de veículos como O Antagonista, CNN e Jerusalem Post. A
maioria dos textos não é assinada. As postagens classificadas como publicitárias,
por sua vez, são vídeos com ações do governo na pavimentação de estradas e entre-
ga de equipamentos às polícias, seguindo a estrutura padrão de narração em off,
lettering (inserções de texto no vídeo) e imagens de cobertura.
Padrões de conteúdo, tema e estratégias discursivas
Em sua pesquisa online em grupos públicos de WhatsApp durante o período
eleitoral em 2018, Cesarino (2019a) apresenta funções metalinguísticas básicas
que, segundo a autora, “cobrem praticamente todo o conteúdo coletado” nas redes
bolsonaristas: 1- fronteira antagonística amigo-inimigo; 2- equivalência líder-po-
vo; 3- mobilização permanente através de ameaça e crise; 4- deslegitimação de
instituições para a produção de um canal midiático exclusivo
2
. Considerou-se que
seriam boas balizas para a classificação do conteúdo e a indicação de eventuais
padrões de recorrência.
Com efeito, 79% das postagens (n=138) apresentava uma ou mais das
quatro funções básicas apresentadas pela autora. Desse total, 28% (n=49)
apresentaram duas funções e 6% (n=11), três funções (Gráfico 1):
177
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Gráfico 1 – padrões de estruturação de conteúdo (respostas múltiplas)
79%
63%
25%
20%
11%
6%
Presença de alguma estratégia
amigo-inimigo
equ iv an cia líd er-p ov o
ameaça iminente
deslegitimação de instituições
ambiência conservadora
Fonte: elaboração própria.
Entre as estratégias analisadas, destaca-se a fronteira antagonística amigo-i-
nimigo, com 63% (n=109). Em seguida a equivalência líder-povo, com 25% (n=43),
mobilização permanente através de ameaça e crise 20% (n=35) e deslegitimação
de instituições para a produção de um canal midiático exclusivo, com 11% (n=19).
Identificou-se, ainda, um quinto padrão de produção de conteúdo que denominamos
ambiência conservadora, com 6% (n=10). São sobretudo postagens de cunho reli-
gioso (leituras de evangelho e sua exegese, músicas evangélicas etc.), que sugerem
aspecto relevante a compor identidade conservadora e ligada a valores tradicionais
ambicionada por Bolsonaro.
Quanto aos temas, predominância das postagens que orbitam em torno de
temas da atualidade (covid-19, 31%, n=54, em geral com críticas à oposição e elo-
gios ao governo) e do líder (Bolsonaro, 25%, n=44). A seguir é possível identificar
um bloco de “neoinimigos” (20%, n=34), representados pelos outros poderes (STF,
congresso) e demais níveis de governo (governadores, prefeitos) e mesmo o “fogo
amigo” no executivo (ministros e militares que não estariam apoiando Bolsonaro o
suficiente). Os “velhos inimigos” (PT e Lula, esquerda, Venezuela e Maduro) perfa-
zem 11% (n=19). Outros antagonismos (Globo, meio ambiente, China), 8% (n=13),
e as menções de cunho religioso, 5% (n=8) (Gráfico 2).
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Gráfico 2 – Temas das postagens (respostas múltiplas)
31%
25%
20%
11%
5%
3%
3%
2%
covid-19
Bolsonaro
"neoinimigos" (STF, congresso)
"ve l hos i nimigos" (PT, esquerda…)
religião
China
meio ambiente
Globo
Fonte: elaboração própria.
Buscou-se, ainda, mapear as principais estratégias discursivas, relacionadas
à forma das postagens. Pode-se apontar três vetores principais. Um primeiro, vol-
tado à descontextualização (45%, n=78), reúne técnicas como edição enviesada, edi-
torialização, falsa equivalência, inversão de acusação, indeterminação de agentes,
caricaturização e metáforas. Um segundo, que poderíamos chamar de formas alter-
nativas de veridição (44%, n=76), abarca, conforme Cesarino (2021), estratégias de
questionamento ao paradigma jornalístico da objetividade: informações falsas, teo-
rias da conspiração e experiências imediatas – notadamente, vídeos testemunhais.
Um terceiro, o do apelo à emoção (42%, n=73), compreende vitimização, chamado à
ação da militância, hipérboles e desumanização. Ressalte-se o uso dos três recursos
em nível muito superior a outras estratégias discursivas mais clássicas como a
linguagem de notícia (21%, n=36, em geral de fonte copiada da grande mídia ou de
fonte oficial do governo), humor (3%, n=6), propaganda (3%, n=5) e argumentação
(2%, n=4) (Gráfico 3):
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Gráfico 3 – Padrões de estratégias discursivas (respostas múltiplas)
45%
44%
42%
21%
3%
3%
2%
descontextualização
formas alternativas de veridição
apelo à emoção
no tícia
hu mo r
propaganda
arguentação
Fonte: elaboração própria.
Discussão dos resultados
Defende-se que a materialização de uma “pedagogia da ameaça” nos grupos
bolsonaristas se alicerça em um conjunto de padrões de comunicação, sobressain-
do-se três: 1- binômio amigo-inimigo, 2- apelo à emoção e 3- estratégias de desin-
formação.
O gênero preferencial do WhatsApp bolsonarista é o opinativo – explicito ou
disfarçado pelo formato de “giro de notícias”, ainda que o conteúdo seja evidente-
mente editorializado. Sua roupagem usual são os vídeos em que um comentarista,
posicionado diante de um cenário caseiro ou fundo do tipo chroma key (são fre-
quentes montagens virtuais com estantes de livros), exprime pontos de vista sobre
um ou mais assuntos. O polemismo é a marca, com uso extensivo do ad hominem
para identificar adversários e defender o presidente. O youtuber bolsonarista Mau-
ro Fagundes chama Sergio Moro, ex-aliado e atual desafeto dos bolsonaristas, de
“afeminadozinho”, “abaitolado” que “botou os mamilos de fora” e que, na realidade,
seria um “agente do PCC”. Os vídeos nativos do aplicativo tendem a ser mais cur-
tos e mais virulentos. Em um deles, homem não identificado, com maquiagem de
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palhaço e camisa do exército, critica com palavrões, linguagem bélica e expressões
ameaçadoras os generais que, supostamente, não defendem Bolsonaro. “Ninguém
tem obrigação de ficar babando o ovo [dos generais]. Tem mais é que sacanear para
eles caírem na real”.
O binarismo amigo-inimigo aparece com frequência nos memes que circu-
lam pelo grupo. Em seu estudo sobre o WhatsApp bolsonarista, Cesarino (2019a,
2019b) recorre à definição “técnica” de Laclau (2013) para sublinhar os dois traços
fundantes do populismo: a equivalência entre líder e povo e a demarcação evidente
de aliados e inimigos. Esses últimos, mais que adversários, são grupos que, ao se
oporem ao líder, põem em risco a própria existência social (uma vez que o líder é o
povo), devendo por isso ser eliminados. A referência incontornável é a obra política
de Carl Schmitt (2009), cientista político iliberal para quem a “essência” do político
é a organização coletiva de um grupo contra inimigos internos e externos. A guerra,
manifestação extrema da inimizade, é o pressuposto existente como possibilidade
sempre real. Estratégias discursivas desumanizadoras são peça chave na constru-
ção da imagem do inimigo político, pois ele:
É precisamente o outro, o desconhecido e, para sua essência, basta que ele seja, em um
sentido especialmente intenso, existencialmente algo diferente e desconhecido, de modo
que, em caso extremo, sejam possível conflitos com ele, os quais não podem ser decididos
nem através de uma normalização geral empreendida antecipadamente, nem através da
sentença de um terceiro “não envolvido” e, destarte, “imparcial” (SCHMITT, 2009, p. 28).
Concorda-se com Cesarino (2019a, 2019b) que a equivalência líder-povo e a
antítese amigo-inimigo são características evidentes na memética bolsonarista. Se
a lista de inimigos abarca hoje virtualmente toda a institucionalidade, a triparti-
ção de poderes e os sistemas de freios e contrapesos constituintes da democracia
moderna, a esquerda segue sendo o alvo tradicional.
Nos dois exemplos a seguir, texto e arte sugerem, por meio de uma cadeia
de associação, a correspondência entre esquerda e malfeitos. O apelo à emoção
é evidente na primeira imagem, com a equiparação de Lula a autores de crimes
violentos de forte impacto na opinião pública. Descontextualizado, o texto traz a
sugestão de que todos teriam sido contemplados com a impunidade judicial (Figu-
ra 1). No segundo, o significante “PT” é alargado – à moda do significado elástico
de “comunismo”, que conforme Adorno (2020) perde sua concretude e adquire um
caráter místico e abstrato –, de modo a abarcar a centro-direita do ex-presidente
Michel Temer (MDB) e do deputado federal Aécio Neves (PSDB). Passa, na práti-
ca, a significar todo o sistema político (a “velha política”) e seus defensores. Num
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entorno ameaçador, a complexidade da escolha se reduz à opção entre bem e mal
(Figura 2). O tuíte de Allan dos Santos (Figura 3) estende o malefício aos demais
poderes da institucionalidade democrática (STF, Congresso). A ameaça iminente
justifica um chamado enfático à ação. O senso de urgência é evidenciado pelo uso
de letras maiúsculas nas expressões “precisa”, “efetivo” e “mais do nunca”:
Figura 1 – Cadeia de associações
Fonte: grupos de WhatsApp pró-Bolsonaro.
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Figura 2 – Oposição amigo-inimigo
Fonte: grupos de WhatsApp pró-Bolsonaro.
Figura 3 – Plasticidade da categoria “inimigo
Fonte: grupos de WhatsApp pró-Bolsonaro.
A equivalência líder-povo, por sua vez, procura equiparar uma espécie de su-
jeito coletivo da nação ao caudilho ressaltando aspectos do culto à personalidade de
Bolsonaro (simplicidade, conservadorismo, disciplina, religiosidade). Construída
pela síntese entre imagem e título telegráfico, o meme não assinado sugere humil-
dade e fé. O apelo à emoção e o reforço ao binarismo amigo-inimigo se ampliam no
texto encaminhado que acompanha o meme: “ajoelhado em frente ao Santíssimo
Sacramento, buscando forças para combater os comunistas e outros inimigos da
Igreja e do Brasil. Que Jesus e Maria o abençoe [sic], grande presidente!” (Figura
4). Valores vagos e carregados de emoção – homem de família, patriota, honesto
e antiabortista – são evocados no meme ilustrado em verde amarelo e com a ban-
deira do Brasil, opções recorrentes na estética bolsonarista. Mesmo que o nome do
presidente não esteja explicitamente evocado, a associação pelo contexto é evidente
(Figura 5). A gramática simples baseada em oposições do tipo certo-errado (amare-
lo versus vermelho, bandeira do Brasil versus bandeira vermelha, semblante ale-
gre versus cara fechada, torcida pela cloroquina versus torcida pelo coronavírus) é
a base para a charge sobre a epidemia da covid-19 (Figura 6):
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Figura 4 – Equivalência líder-povo
Fonte: grupos de WhatsApp pró-Bolsonaro.
Figura 5 – Valores emocionais vagos
Fonte: grupos de WhatsApp pró-Bolsonaro.
Figura 6 – Gramática da oposição simples
Fonte: grupos de WhatsApp pró-Bolsonaro.
O enquadramento emocional e a manipulação do medo são evidenciados por
Serelle e Soares (2019), Chagas, Modesto e Magalhães (2019) como estratégias ba-
sais na comunicação digital da chamada nova direita. Não soa descabido falar em
reavivamento de técnicas de psicologia de massa do fascismo (REICH, 1988) ou do
radicalismo de direita (ADORNO, 2020). Citando Hitler, Reich (1988, p. 48) afirma
que o próprio ditador nazista acentua a tática de, nos comícios diante das massas,
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abrir mão da argumentação, manejando de forma efetiva as emoções e apontando
apenas o “grandioso objetivo final”. Em Mein Kampf, o ditador nazista afirma que
que os pensamentos e ações do povo “são determinados muito mais pela emoção e
sentimento do que pelo raciocínio” e guiados por uma espécie de binarismo ava-
liativo: “não há muitas nuanças; há sempre um positivo e um negativo; amor ou
ódio, certo ou errado, verdade ou mentira, e nunca situações intermediárias ou
parciais” (REICH, 1988, p. 61). Adorno também vê um esquema do tipo estímulo-
-resposta na latência do fascismo na Alemanha do final dos anos 1960. Afirma que
todas as manifestações ideológicas do radicalismo de direita estão marcadas pela
necessidade de convocar o que chama de “personalidade autoritária” – estímulo
de ressentimentos, medos, chamados à ordem e à disciplina –, estratégia capaz de
“levar as audiências ao ponto de ebulição” (ADORNO, 2020, não paginado). Para
Adorno, o estado de agitação permanente é tudo o que o fascismo poderia oferecer:
o radicalismo de direita seria marcado por ausência de propostas e desejo de catás-
trofe, flertando de forma muito profunda com a psicose.
Por fim, uma parcela do binarismo amigo-inimigo é construída com base em
informações fraudadas, falsas, distorcidas ou descontextualizadas – para Adorno
(2020), esse último recurso é a principal técnica por meio da qual a verdade se põe a
serviço da falsidade. O texto que acompanha a imagem em branco e preto, suposta
ganhadora do Prêmio Pulitzer, fala em um proprietário de terra, abençoado por
um padre, morto por fuzilamento porque “se recusou a trabalhar para o regime
de Fidel Castro”. A ameaça “comunista” representada por Cuba e Venezuela – e,
mais recentemente, Argentina, que “quis pagar o preço para ver o resultado de
um governo esquerdista ligado ao Foro de São Paulo de novo”, como diz uma das
mensagens do período –, é frequente, costumeiramente inserida numa cadeia de
equivalência com violência, ditadura, censura, pobreza e ineficiência estatal. No
exemplo em tela, serviço de checagem de fatos indica que se trata de uma fake
news com versões em português de Portugal e em espanhol. A fotografia de Andrew
Lopez é efetivamente vencedora do Pulitzer, mas retrata um cabo do exército do
regime ditatorial de Fulgencio Batista, derrubado pela Revolução Cubana (Figura
7). Foi executado após ser considerado culpado por um tribunal militar por crime
de guerra (MORAES, 2019). Não há registro de que a ordem tenha partido de Er-
nesto “Che” Guevara. Outra postagem do período desmentida (MATSUKI, 2020) é
“URGENTE! TRIBUNAL CONSTITUCIONAL MILITAR!”, que fala na iminência
da assinatura presidencial para um decreto que cria “um novo tribunal ACIMA
DO STF, para processar e julgar TODOS os bandidos e criminosos que estão nos
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Poderes da República”. A postagem também termina com uma exortação à militân-
cia digital: “Gostou da notícia!? Então compartilhe ao máximo! E vamos subir com
urgência a hashtag: #TribunalConstitucionalMilitarJá!!!”.
Figura 7 – Desinformação
Fonte: grupos de WhatsApp pró-Bolsonaro.
Concordando com Pinheiro e Brito (2014) e conferindo à desinformação um
sentido amplo – informação de baixo valor cultural ou utilidade para a participa-
ção no processo político e a tomada de decisões cotidianas –, tem-se que grande
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parte do conteúdo do WhatsApp bolsonarista pode ser encaixado nessa categoria.
Incluem-se aí diferentes estratégias de descontextualização (informações falsas,
edições enviesadas, produções ofensivas etc.) e o que se pode chamar de formas
alternativas de veridição. Segundo Cesarino (2020, no prelo), tratam-se de episte-
mologias populares que tendem a funcionar como estratégias de legitimação de um
determinado relato.
Tal contexto se torna possível diante da crise do sistema de peritos (univer-
sidade, jornalismo, ciência) e de um ecossistema midiático altamente poluído.
Cesarino (2020, no prelo) define a pós-verdade como uma situação de desordem
informacional, enquanto Romero-Rodriguez, De-Casas e Pedreira (2018) criam
o neologismo infoxicação – junção de informação e intoxicação – para designar o
consumo indiscriminado de informação de baixa qualidade. Para os autores, não
se trata de conjuntura episódica, mas de “situação estrutural” das mídias na con-
temporaneidade:
Nace así la era de la “infoxicación” em la que se le da a la audiencia el contenido que esta
desea – generalmente de infoentretenimiento – con el fin de asegurar cuotas de publi
-
cidad, a la vez que los propios receptores son incapaces de realizar un correcto filtrado
de las informaciones, aceptando como ciertas aquellas que incluso son contrarias a otras
que ya han aceptado como verdadeiras. Parece entonces que hemos llegado a comprender
que la desinformación es uma situación estructural del ecosistema mediático y que las
audiencias, paradójicamente, emergen como víctimas propiciatorias de este fenómeno
3
(ROMERO-RODRIGUEZ; DE-CASAS; PEDREIRA, 2018, p. 74-75).
Destacam-se as teorias da conspiração. Em vídeo nativo do aplicativo, comen-
tarista sugere que a China, a quem o governador João Doria estaria “entregando
São Paulo”, criou um “vírus muito letal para o resto do mundo” com um “braço
comunista” – a Organização Mundial da Saúde (OMS). Em outro vídeo nativo,
narrador não identificado compara a Covid-19 à dominação nazista. Afirma que
o “sonho encantado dos comunistas” do Brasil era implantar o regime. “Para isso,
precisa antes empobrecer a população para que ela venha comer aos pés dos gover-
nantes”. Ambas a produções contêm forte apelo à emoção. O vídeo sobre a China
tem música de suspense e tela inicial de alerta; o do nazismo, montagens e imagens
fortes do holocausto.
As experiências imediatas também se encaixam nessa categoria. Em áudio
atribuído a Alexandre Garcia, o jornalista ex-TV Globo e neoconvertido ao bolso-
narismo lamenta a “politização da hidroxicloroquina”: “Eu, como marido de mé-
dica, recebo informação dos médicos. Em Brasília no mínimo 130 médicos estão
aplicando a hidroxicloroquina. Ouço todos os dias depoimento de gente que teve
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uma gripezinha graças à hidroxicloroquina [...]. As pessoas não estão mais indo
na conversa de gente que vive de semear o pânico”. O lettering que acompanha o
áudio testemunhal (“O louco estava certo”, “a mídia te manipulou e você acredi-
tou”) aposta na deslegitimação da mídia, estratégia que vai em par com as formas
alternativas de veridição.
Conclusões
No deberíamos subestimar estos movimentos por su ínfimo nível intelectual
ni por su falta de teorización. Sería uma enorme falta de visión política pensar
que por eso no van a tener éxito. Lo característico de estos movimentos es más
bien um extraordinária perfección de los médios, y concretamente em primer
lugar los médios propagandísticos em el sentido más amplio, combinada em
semejante perfección de las técnicas y los médios, mientras que se escamotea
de passo el fin que realmente se persigue para la sociedade em general
4
(ADORNO, 2020, não paginado).
Mesmo instigado pela curiosidade que anima a pesquisa, acompanhar um
grupo público de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro é uma atividade penosa.
Minha experiência pessoal é de repulsa: o smartphone exclusivo em que monitoro
os grupos fica desligado exceto em momentos de ida a campo, sempre psicologi-
camente penosos. É de se imaginar o que uma instância de socialização opaca ao
controle social, de baixa confiabilidade informativa, centrada no emissor, com pe-
dagogia e gramática reforçadoras de um imaginário de ameaça permanente, possa
acarretar às formas de ser, agir e pensar de uma relevante camada da população. A
experiência no WhatsApp bolsonarista e a vivência de sua pedagogia da ameaça re-
convocam termos e estratégias que pareciam superados tanto no campo da sociali-
zação quanto no da comunicação. É possível falar, por exemplo, em manipulação ou
socialização ideologizada, no sentido de ideologia proposto por Thompson (1995):
mensagens que reforçam estruturas de dominação, hierarquias e relações de po-
der. Ainda que sejam necessários estudos de recepção para que se entenda com
maior clareza os significados que as audiências constroem a partir da mediação do
ecossistema midiático bolsonarista, o sucesso eleitoral e a resiliência de sua base
de apoio, a despeito de uma administração claudicante, são indícios da eficácia da
produção de conteúdos.
É de se pensar sobretudo na manipulação fundamental operada pelo bolsona-
rismo. Com a estratégia de construção de um canal midiático exclusivo, simula-se
um ambiente informativo, de troca de ideias e, por que não, de democracia direta,
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uma vez que existe a ilusão do contato direto, via tecnologia, do militante com o
líder (CESARINO, 2019b). Entretanto, o que existe concretamente, mais do que as
já conhecidas “bolhas semânticas” geradas pela algoritmização das redes sociais,
é a instrumentalização de uma mídia pela propaganda – agravante: seu caráter
tóxico. O binarismo amigo-inimigo cria indivíduos e grupos a serem eliminados.
Campanhas difamatórias, apelo a emoções como ressentimento, ódio e medo, ali-
mentadas por desinformação e culto à personalidade, distraem das discussões es-
senciais e têm o potencial inflamatório da polarização. A ausência do contraditório
e do controle social sobre o conteúdo veiculado favorece uma socialização da radica-
lização, disseminando modos de ser, agir e pensar que atuam no sentido contrário
da construção de consensos e questionam a própria existência da esfera pública
enquanto arena do debate racional de ideias.
Notas
1
Consideram-se como copiados links, vídeos e imagens claramente não produzidos pelos integrantes que
postaram o conteúdo e textos cuja presença foi notada em outros grupos monitorados pelo pesquisador.
2
Julgou-se que uma quinta função metalinguística apresentada por Cesarino (2019b), o “espelhamento do
inimigo e inversão de acusações”, dizia respeito mais à forma que ao conteúdo das mensagens. A opção foi
incluir a estratégia na análise das estratégias discursivas.
3
Tradução do autor: “nasce assim a era da infoxicação, na qual a audiência recebe o conteúdo que deseja
– geralmente de infoentretenimento – a fim de garantir cotas de publicidade, ao mesmo tempo em que
os próprios destinatários são incapazes de realizar uma filtragem correta de informação, aceitando como
certas aquelas que são até contrárias a outras que já aceitaram como verdadeiras. Parece então que che-
gamos a compreender que a desinformação é uma situação estrutural do ecossistema midiático e que as
audiências, paradoxalmente, emergem como vítimas propiciatórias desse fenômeno”.
4
Tradução do autor: “Não devemos subestimar esses movimentos devido a seu ínfimo nível intelectual ou à
falta de teorização. Seria uma enorme falta de visão política pensar que é por isso que eles não terão suces-
so. A característica desses movimentos é antes uma extraordinária perfeição da mídia, e especificamente
em primeiro lugar a mídia propagandística no sentido mais amplo, combinada em tal perfeição de técnicas
e mídia, enquanto se escamoteia o fim que realmente é perseguido pela sociedade em geral”.
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