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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Carlos Alberto Barbosa
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Notas sobre interação e socialização em Simmel:
uma reexão sobre educação e intolerância
Notes on interaction and socialization in Simmel: a reection on education and intolerance
Notas sobre interacción y socialización en Simmel: una reexión sobre educación e intolerancia
Carlos Alberto Barbosa
*
Resumo
Nos últimos anos de sua vida, Georg Simmel lecionou na Universidade de Estrasburgo, onde também foi res-
ponsável por ministrar palestras sobre pedagogia aos futuros licenciados, as Palestras sobre pedagogia escolar
(Lectures on Schulpädagogik). Apesar de o tema da pedagogia não gurar entre seus interesses teóricos, que
estavam mais orientados às interações e às formas de socialização, o que se depreende das discussões no entor-
no das palestras de Simmel é a relação que elas guardam com os processos de interação e socialização. Para ele,
a formação (Bildung) não pode prescindir desses dois processos, sob pena de não se realizar na sua plenitude.
Por sua vez, o processo de interação pressupõe a diferenciação entre os indivíduos de um mesmo círculo. As
diferenças são o combustível que torna possível as interações e, consequentemente, a socialização e a formação
(Bildung). Ao entender formação como um processo de socialização, e a diferenciação como elemento basilar de
toda essa dinâmica, este artigo discute a necessidade de manutenção da diversidade de ideias e das diferenças
nos ambientes de ensino, especialmente em um momento no qual a intolerância à diversidade e à pluralidade
de ideias invade os mais variados espaços, inclusive os espaços de ensino e reexão.
Palavras-chave: socialização; educação; interação; Georg Simmel.
Abstract
Throughout the last years of his life, Georg Simmel taught at the University of Strasbourg, where he was also
responsible for giving lectures on pedagogy to future graduates, the Lectures on Schulpädagogik. Although the
theme of pedagogy is not among their theoretical interests, which were more oriented towards interactions and
forms of socialization, what emerges from the discussions surrounding Simmel’s lectures is the relationship they
have with the processes of interaction and socialization. For him, education (Bildung) cannot do without these
two processes, under penalty of not being fully realized. In turn, the interaction process presupposes the dier-
entiation between individuals in the same circle. Dierences are the fuel that makes interactions possible, and
therefore socialization and the education (Bildung). When understanding training as a socialization process, and
dierentiation as a basic element of all this dynamic, this article discusses the need to maintain the diversity of
ideas and dierences in teaching environments, especially at a time when the practice of intolerance to diversity
and plurality of ideas invades a diversity of environments, including those dedicated to teaching and reection.
Keywords: socialization; education; interaction; Georg Simmel.
*
Pós-doutorando da Faculdade de Educação da USP, com pesquisa sobre socialização em Georg Simmel. Doutor em De-
sign pela Universidade Anhembi Morumbi. Mestre em Filosoa pela PUC-SP. Pesquisador do Grupo de Pesquisa GPS -
Práticas de Socialização Contemporâneas. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-8477-4673. E-mail: carlosalberto.barbosa@
gmail.com
Recebido em: 30/07/2020 – Aprovado em: 15/04/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i1.11489
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Resumen
En los últimos años de su vida, Georg Simmel enseñó en la Universidad de Estrasburgo, donde también fue
responsable de dar conferencias sobre pedagogía a futuros graduados (Lectures on Schulpädagogik). Aunque
el tema de la pedagogía no se encuentra entre sus intereses teóricos, que estaban más orientados hacia las
interacciones y formas de socialización, lo que surge de las discusiones que rodean las conferencias de Simmel
es la relación que tienen con los procesos de interacción y socialización. Para él, la fromación (Bildung) no puede
prescindir de estos dos procesos, bajo pena de no realizarse plenamente. A su vez, el proceso de interacción
presupone la diferenciación entre individuos en el mismo círculo. Las diferencias son el combustible que hace
posibles las interacciones y, por lo tanto, la socialización y la formación (Bildung). Al entender la capacitación
como un proceso de socialización y la diferenciación como un elemento básico de toda esta dinámica, este
artículo analiza la necesidad de mantener la diversidad de ideas y las diferencias en los entornos de enseñanza,
especialmente en un momento en que la intolerancia a la diversidad y la pluralidad de ideas invade espacios más
variados, incluyendo espacios de enseñanza y reexión.
Palabras clave: socialización; educación; interacción; Georg Simmel.
Introdução
A realidade empírica, porém, continua ali, incontornável, e deixa estupefatos os
que não souberam mudar a tempo de ideias. Quanto aos outros, tão próximos
da farsa e da hipocrisia, empregam-se, com constância, a deturpar o sentido
do acontecimento para fazê-lo entrar, pela força, no prêt-à-porter de uma
verdade dogmática elaborada pela circunstância (MAFFESOLI, 2011, p. 15).
Em tempos de pandemia, para além do coronavírus, invisível e que não res-
peita fronteiras, um outro vírus nefasto está em circulação, e não é de hoje. Este
outro vírus, a exemplo do coronavírus, também é pandêmico, cruza fronteiras e se
estabelece em diferentes regiões do planeta. Trata-se do vírus da intolerância, que
não admite as diferenças e olha o não idêntico a si mesmo como suspeito e inimigo a
ser vencido. O mundo ideal do vírus da intolerância é uma sociedade sem oposição
de ideias, sem debates e sem diversidade de pensamentos e opiniões. No Brasil,
entre tantas vítimas do vírus da intolerância, a educação passou a ser dos seus
alvos preferidos nos últimos tempos.
A despeito dos preceitos constitucionais de “[...] igualdade de condições para
acesso e permanência na escola” e do “[...] pluralismo de ideias e de concepções
pedagógicas [...]” (BRASIL, 1988, não paginado), o que se tem testemunhado são
tentativas de barrar o pensamento diverso nos ambientes de ensino, sob os mais
variados pretextos. Ora se observa um discurso incentivando o ensino domiciliar,
o chamado homeschooling, que pode levar à exclusão de crianças de uma expe-
riência de convívio com as diferenças e com a diversidade de pensamentos, ora são
evidenciadas tentativas que visam dificultar o acesso à universidade e a cursos de
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pós-graduação de minorias e populações em condições econômicas menos favoreci-
das. Não cabe a este artigo uma discussão sobre as motivações que levaram a tais
tentativas de ataque ao ensino, tentativas que têm sido barradas pelos poderes
Legislativo e Judiciário. O risco de especular sobre tais motivações poderia fazer
com que a questão de fundo sobre uma educação para a autonomia venha a se
perder. Igualmente não é propósito desse artigo proceder uma discussão acerca
das minúcias jurídicas e dos aspectos constitucionais ou inconstitucionais que ro-
deiam esses ataques. Ao contrário, vale lembrar as palavras de Max Weber (1979,
p. 252) sobre a necessidade de “[...] precaver-nos contra a crença de que os princí-
pios ‘democráticos’ de justiça são idênticos à ‘adjudicação racional’”, e fazer valer
tais princípios a partir de uma discussão sobre o mal que a intolerância causa no
processo de formação. O que este artigo propõe é uma reflexão sobre a importância
da diferença e da diversidade na educação, e seu argumento central está pautado
no reconhecimento dessa importância.
Para auxiliar nessa reflexão, o artigo parte de alguns comentadores que abor-
dam a temática da educação nos textos de Simmel, os quais tomam as relações
entre diferenciação e interação, bem como suas implicações nos processos de indi-
vidualização e socialização. A diferenciação é entendida como pressuposto dos pro-
cessos de interação e socialização, o que permite centrar o olhar sobre os espaços de
educação e formação como espaços de interação, desde que esses espaços sejam pro-
vocados pelo estranhamento das diferenciações, sejam eles os espaços tradicionais
de salas de aula ou os espaços onde ocorrem diferentes interações e socializações,
como, por exemplo, os ambientes de difusão cultural.
No final do século XIX e início do século XX, Simmel questionou o conheci-
mento consolidado na forma de um pensamento totalizante, apontando para os
problemas advindos de uma teoria ensimesmada, alheia à realidade circundante.
Nesse sentido, o pensamento simmeliano pode ser um ponto de apoio importante
na discussão de temas caros ao presente, tais como os já citados conceitos de inte-
ração e socialização, participantes na construção da individualidade, da subjetivi-
dade e da sociedade. Sociedade que, nas palavras de Simmel (2006, p. 18), “[...] não
é, sobretudo, uma substância, algo que seja concreto para si mesmo”.
As preocupações teóricas levadas a cabo por Simmel ao refletir sobre os fun-
damentos e condições de sociabilidade (Gesselingkeit) de uma sociedade (Gesells-
chaft) que só podem existir em meio aos processos de interação (Wechselwirkung)
e socialização (Vergesellschaftung)
1
, estabelecem estreita relação com processos de
formação (Bildung)
2
, os quais não podem prescindir das diferenciações entre indi-
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víduos que participam de um mesmo círculo. Dessa forma, entende-se que qual-
quer movimento na direção de fazer perseverar a intolerância à diversidade de
ideias acaba por tornar-se uma tentativa de apequenar os processos de socialização
e, consequentemente, da própria formação.
Sala de aula e espaço de interação
Em 2019, o Simmel Studies
3
dedicou um dossiê à discussão do papel de Georg
Simmel como educador. Naquele dossiê, intitulado Simmel as Educator, o ponto de
partida dos artigos foram as Palestras sobre pedagogia escolar (Lectures on Schul-
pädagogik), originadas de uma série de anotações de aulas feitas por de Simmel,
que foram recolhidas, organizadas e publicadas postumamente pelo seu assistente
(AMAT; D’ANDREA, 2019). Embora as aulas de Simmel tenham sido um enorme
sucesso entre os alunos, em especial no período em que ele lecionou em Berlim
4
,
os temas ligados à pedagogia não foram parte central dos seus interesses teóricos
(D’ANDREA, 2019; GONON, 2019; MÜLLER, 2019; VERNIK, 2019). A realização
das Palestras sobre pedagogia escolar não foi de sua livre escolha, mas fruto de
uma tarefa compulsória de ministrar aulas sobre procedimentos pedagógicos e di-
dática para alunos da Universidade de Estrasburgo, onde ele lecionou filosofia por
um curto período, em seus últimos anos de vida (GONON, 2019).
O fato de a pedagogia não ser um dos destaques entre os muitos interesses
de Simmel, não foi o único motivo pelo qual o tema não ocupou parte significativa
do seu tempo e da sua produção intelectual. Além dos diversos outros interesses
teóricos que atraíram sua atenção, existiam também questões ligadas à organiza-
ção das disciplinas acadêmicas do seu tempo, que fizeram com que as discussões
sobre educação não ocupassem lugar de destaque no cenário teórico simmeliano.
Na Alemanha do início do século XX, a própria pedagogia não havia se firmado
ainda como disciplina autônoma, o que só ocorreu em meados daquele século. O
período também coincide com o momento em que ganharam força na Alemanha
as discussões sobre a construção da sociologia como disciplina (GONON, 2019).
Simmel estava especialmente dedicado a essa segunda causa, tendo sido ele um
dos organizadores dos encontros da Sociedade Alemão para a Sociologia (Deutsche
Gegesellschft für Soziologie) (GONON, 2019).
Se, por um lado, o tema da pedagogia não foi central na sua produção, de ou-
tro, os textos do dossiê demonstram como suas palestras sobre educação guardam
relação com outras questões teóricas, essas sim mais ao seu gosto, tais como ques-
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tões ligadas à interação e à socialização. Simmel entendia que a própria aula cons-
tituía “[...] um tipo de relação, uma troca de efeito recíproco (Wechselwirkung) entre
o professor e sua audiência”
5
(VERNIK, 2019, p. 67, tradução nossa). Um exemplo
da intensidade dessa troca de efeito recíproco em suas aulas pode ser percebido no
depoimento de Emil Ludwig, quando lamenta a saída de Simmel da Universidade
de Berlim, em 1914, para assumir a cátedra em Estrasburgo:
Nós não poderemos mais ouvi-lo em Berlim, nós não o veremos mais: e isto é triste
porque [...] só se pode compreendê-lo inteiramente, não quando se o lê, mas só
quando se o ouve, se o vê [...] ele pensa de modo visível [...] ouvir significa então al-
guma coisa como: construir em conjunto. Na verdade não se ouve: antes se pensa,
se pensa em conjunto (LUDWIG apud WAIZBORT, 2013, p. 573).
Essa relação recíproca, ou interação (Wechselwirkung), tem papel importante
no pensamento simmeliano, especialmente no que diz respeito ao entendimento
das dinâmicas que envolvem diferenciação e os processos de socialização
6
. Como
lembra o próprio Vernik (2019, p. 67, tradução nossa), o conceito de interação é
central na “[...] sociologia relacional de Simmel [...] bem como no seu pensamento
global, incluindo seu propósito pedagógico”. Segundo Häußling (2018, p. 588 apud
VERNIK, 2019, p. 67, tradução nossa), interação:
Significa que um ator social (um indivíduo, um grupo, ou uma configuração social) está
fazendo, percebendo, ou esperando, tem impacto no que outro ator social está fazendo, per-
cebendo ou esperando. Toda interação (Wechselwirkung), apesar do seu conteúdo livremen-
te selecionado, deve selecionar formas determinadas de socialização (Vergesellschaftung),
a fim de se articular “socialmente”. A Wechselwirkung não seleciona as formas arbitra-
riamente, mas a partir de uma estrutura geral dinâmica, a qual Simmel conceitua como
socialização.
O dinamismo dessa estrutura apontado por Häußling é chave no conceito sim-
meliano de interação e de socialização. O dinamismo faz referência ao movimento
que ocorre em toda a estrutura, em um fluxo incessante, no qual:
[...] os indivíduos estão ligados uns aos outros pela influência mútua que exercem entre si
e pela determinação recíproca que exercem uns sobre os outros. A sociedade é também algo
funcional, algo que os indivíduos fazem e sofrem ao mesmo tempo, e que, de acordo
com esse caráter fundamental, não se deveria falar de sociedade [Gesellschaft], mas de
sociação [Vergesellschaftung]. Sociedade é, assim, somente um nome para um círculo de
indivíduos que estão, de uma maneira determinada, ligados uns aos outros por efeito das
relações mútuas, e que por isso podem ser caracterizados como uma unidade – da mesma
maneira que se considera uma unidade um sistema de massas corporais que, em seu com-
portamento, se determinam plenamente por meio de suas influências recíprocas (SIMMEL,
2006, pp. 17-18, grifo nosso).
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A ideia de sociedade para Simmel é uma abstração conceitual que torna ma-
nifesta uma unidade que só se realiza na instabilidade das relações mútuas, como
um corpo que põe em movimento uma bicicleta. O conjunto ciclista e bicicleta só
se equilibra a partir da dinâmica das diferentes partes do corpo humano sobre
um outro corpo externo a ele que é a bicicleta. É a dinâmica das diferentes partes
do corpo humano que dá movimento à bicicleta, e a torna efetivamente funcional.
Nesse sentido, a ideia de sociedade é como uma fotografia que tenta retratar em
um instantâneo o intenso movimento que o antecede, como a imagem captada de
um ciclista sobre sua bicicleta, que congela as diferentes partes do corpo do ciclista
em movimentos coordenados, e a própria dinâmica do conjunto para forjar uma
unidade que ocorre somente na mudança e instabilidade entre as partes do corpo
do ciclista, e do conjunto envolvendo essa totalidade móvel que contém o ciclista e
a bicicleta. Escavar e revelar o movimento que está na origem desse instantâneo é
parte do interesse de Simmel, que discute como são possíveis a individualidade e
a própria sociedade (MÜLLER; CAVALLI; FERRARA, 2018). Simmel realiza esse
instantâneo a partir de observações da vida cotidiana expostas em textos em um
estilo ensaístico (WAIZBORT, 2013; VANDENBERGHE, 2018), provocador, e que
busca nas experiências do mundo os indícios de generalizações das formas de so-
cialização. O cotidiano é fonte de matéria-prima para Simmel, que “[...] não pôde
ignorar a multiplicação dos microgrupos que, apesar de apenas nascentes, vinham
sendo difundidos nas metrópoles modernas” (MAFFESOLI, 2014, p. 245). A força
de sua microssociologia está presente na maneira aguçada como ele retira da vida
comum e dos acontecimentos prosaicos e inesperados os elementos para reflexão
teórica, como, por exemplo, a moldura de um quadro (SIMMEL, 2016). Simmel
(2006, p. 18) faz dessas peculiares observações de campo os eventos reveladores
de uma sociedade, a qual, conforme já citado, “[...]os indivíduos fazem e sofrem ao
mesmo tempo[...]”.
Essa “estrutura geral dinâmica” que caracteriza a socialização, bem como a
condição peculiar do indivíduo diante de uma sociedade que ele “faz e sofre ao
mesmo tempo”, revelam que a interação ocorre sempre sob um sistema instável, ou
melhor, que ela é parte de uma dinâmica que visa o aspecto unitário de um sistema
que é, por força da própria interação que o constitui, instável. Um sistema que se
vê às voltas com indivíduos constantemente trocando de posições, intercambian-
do ideias e valores (D’ANDREA, 2019). A visão de Simmel sobre a dinâmica que
envolve o processo de socialização e formação da sociedade implica em uma pers-
pectiva crítica de uma modernidade identificada com a possibilidade de apreensão
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da totalidade. Uma Modernidade Iluminista
7
, que não se dá conta do fato “[...] de
que todo esse processo que leva a um equilíbrio estático, onde tudo permanece
mais ou menos o mesmo, é pelo menos ingênua, pois deixa de levar em conta o
dinamismo essencial da realidade [...]” (D’ANDREA, 2019, p. 56, tradução nossa).
Para o pensamento simmeliano, crítico da estabilidade que essa visão ingênua que
a Modernidade Iluminista pretende cravar,
Em vez de uma abordagem estática, deve-se imaginar um relacionamento dinâmico em que
todos os elementos deem sentido uns aos outros, sem que seja necessária a existência do
todo, que muda e permanece o mesmo, em uma espécie de dança em espiral que pode até
ser pensada como a imagem da vida (D’ANDREA, 2019, p. 57, tradução nossa).
No limite, a ingenuidade da ideia da possibilidade de uma apreensão do todo
acaba por desconsiderar as partes, uma vez que essa apreensão tende a imobilizar
as interações movidas pelas diferenciações entre indivíduos, e os próprios fenôme-
nos observados, que passam de móveis e instáveis para a condição de estáticos.
Na Modernidade Iluminista, o instante fotográfico que congela a realidade passa
a ser, ele mesmo, o objeto de interesse, deixando em segundo plano o processo que
ele pretendia revelar.
Ao final, a tentativa de apreensão do todo acaba por neutralizar a própria
individualidade e a subjetividade, quando, ao contrário disso, a interação deveria
“[...] ser interpretada não apenas como a fonte de uma rede relacional fundamen-
tal, mas como um movimento criativo através do qual a substância subjetiva surge
e se desenvolve” (D’ANDREA, 2019, p. 57, tradução nossa).
Diferenciação e socialização
Parece ser claro até aqui, e nunca é demais repetir, que a dinâmica observada
no processo de socialização decorre da interação do indivíduo com um outro não
semelhante a ele. São as diferenciações entre os membros de um mesmo círculo so-
cial que impulsionam de maneira decisiva as interações, e sustentam os processos
de individualização. Para que a bicicleta ande, as partes do corpo do ciclista devem
guardar as diferenças entre si, revelando as distintas funcionalidades de cada uma
delas, assim como o ciclista, na sua totalidade de diferenças, deve se identificar
como um corpo que se distingue da bicicleta. Assim, para Simmel (2006, p. 45-46),
as diferenciações são elementos fundamentais na dinâmica social:
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Seja como fato ou como tendência, a semelhança com os outros não tem menos importância
que a diferença com relação aos demais; semelhança e diferença são, de múltiplas manei-
ras, os grandes princípios de todo desenvolvimento interno e externo. Desse modo, a his-
tória da cultura da humanidade deve ser apreendida pura e simplesmente como a história
da luta e das tentativas de conciliação entre esses dois princípios. Bastaria dizer que, para
a ação no âmbito das relações do indivíduo, a diferença perante outros indivíduos é muito
mais importante que a semelhança entre eles. A diferenciação perante outros seres é o que
incentiva e determina em grande parte a nossa atividade.
Para Vernik (2017), ao colocar a diferenciação como dinâmica presente em
um círculo de indivíduos, Simmel também traz à tona a condição que permite a
individualização e a existência de uma relação direta entre o número de círculos
aos quais o indivíduo pertence e as oportunidades de individualização. Partindo
desta observação, pode-se entender que o processo de formação da individualidade
demanda dois níveis distintos de diferenciação. O primeiro deles é interno a um
círculo de indivíduos, e diz respeito às diferenças entre os indivíduos dentro desse
mesmo círculo. O segundo nível de diferenciação diz respeito à mobilidade entre os
diferentes círculos frequentados por um indivíduo. Quanto maior o número de cír-
culos frequentados por ele, maior as chances de individualização, ou ainda, a indi-
vidualização pode ocorrer em maior grau de dessemelhança em relação aos demais
indivíduos. Por fim, há de se considerar que o trânsito entre diferentes círculos é
facilitado quando cada um dos círculos é composto por integrantes de outros tantos
círculos, que fornecem condições específicas de interação entre os distintos círculos
por onde esses indivíduos transitam, levando novos integrantes para alimentar as
diferenciações em cada um deles. Dito de outra forma, quanto maior o número de
círculos frequentados pelo indivíduo, e mais frequente for o seu trânsito entre os
diferentes círculos marcados por dessemelhanças, em tese, maior serão as chances
de promoção de interações a partir de movimentos de aproximação e separação
entre indivíduos e círculos distintos, e maiores as possibilidades de individualiza-
ção. Este trânsito e interação entre indivíduos que guardam diferenciações entre
si, auxiliam na formação de um cenário que propicia a construção da identidade
por semelhança e diferenciação. Tal circunstância oferece parâmetros para que o
indivíduo seja submetido em menor escala ao crivo de aprovação, ou rejeição, de
determinado círculo específico, tendo em vista a diversidade de visão de mundo que
o indivíduo tem acesso ao transitar entre diferentes círculos.
Portanto, desligar-se dos círculos ou evitar que as diferenciações ocorram no
interior de cada círculo não parecem ser bons caminhos para a individualização
e a autonomia. Ao contrário, o pertencimento a um ou mais círculos nos quais o
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convívio entre semelhantes e dessemelhantes é uma realidade, e o trânsito entre
diversos círculos, nos quais as dessemelhanças estejam presentes, é o que garante
minimamente os processos de interação, individualização e da elaboração de uma
subjetividade, levando a uma aproximação da experiência da autonomia, mesmo
que instável e transitória.
Diferenciação e formação (Bildung)
Todo movimento do espírito que caminha na direção oposta do reconhecimen-
to das diferenciações e de suas provocações, acaba por percorrer um caminho de
apequenamento dos processos de individualização. A individualização não deve
confundir-se com o pensamento ensimesmado e o isolamento. Simmel, ao consi-
derar a sala de aula como espaço de interação (VERNIK, 2019), entende que na-
quele microcosmo transitam partes de diferentes círculos, envolvendo indivíduos
que se relacionam pelas diferenças e semelhanças, e é a partir dessas diferenças
e semelhanças que os processos de individualização ocorrem. A mobilidade entre
diferentes círculos promove um maior número de interações e produz diversidade
de processos de socialização, que são condições para a individualização e, conse-
quentemente, para a ampliação da possibilidade de autonomia do indivíduo. O
espaço da sala de aula, ao expor o indivíduo às diferenças e ao trânsito entre cír-
culos, abriga essa diversidade e promove socializações. Não se trata unicamente
de aceitar as diferenças e o multiculturalismo de forma normatizada, mas como
uma perspectiva epistemológica. Trata-se de abraçar a mudança que transforma a
consciência, como aponta Bell Hooks (2017).
Esse espaço que promove o encontro das diferenças e da interação, é também
o espaço que instiga a Bildung, como formação mais plena e livre, desde que, se-
gundo Simmel, se observe a dupla finalidade da sala de aula, como a abordagem
de conteúdos funcionais e o fortalecimento e elevação moral do aluno (GOLDMAN,
2013). A questão da moral enunciada por Goldman marca o desdobramento da
ordem do subjetivo que passa a constituir uma realidade objetiva ao agir sobre o
mundo em um movimento ético-estético (SIMMEL, 2004 apud MÜLLER, 2019), e
se confronta com a subjetividade dos outros indivíduos.
Berger e Luckmann (1985) apontam a realidade social como uma dialética
marcada por três momentos: exteriorização, objetivação e interiorização. A exte-
riorização corresponde ao plano estético que comunica a subjetividade de um indi-
víduo. Ao depositar essa exterioridade no mundo, na forma de um objeto (concreto
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ou abstrato), ganha espaço o processo de objetivação, como processo portador da
subjetividade exteriorizada, que pode ser tomada como fenômeno por outros indi-
víduos. Por fim, a interiorização ocorre quando o indivíduo faz o caminho contrário,
e recolhe do mundo os objetos carregados de sentidos, fruto das subjetivações de
outrem.
Embora os autores marquem que não existe uma sequência linear e cronoló-
gica nesse processo, visto que os três momentos estão contidos na realidade social
observável, didaticamente eles apontam que:
O ponto inicial deste processo é a interiorização, a saber a apreensão ou interpretação
imediata de um acontecimento objetivo como dotado de sentido, isto é, como manifestação
de processos subjetivos de outrem, que desta maneira torna-se subjetivamente significativo
para mim (BERGER; LUCKMANN, 1985, p. 174).
A estrutura traçada por Berger e Luckmann (1985) apresenta nuances de uma
síntese que, se não se realizou na sua plenitude, ao menos aponta para a sociedade
como síntese de uma dialética clássica, segundo os caminhos weberianos. Nesse
ponto, a perspectiva de Simmel sobre a dinâmica de uma dialética do social guarda
certa distância. Para ele, a instabilidade do sistema é a regra, “[...] que se resume
da melhor maneira através do (meta)conceito do dualismo, da dualidade em inte-
ração ou da dialética sem síntese” (VANDENBERGHE, 2018, p. 53). Um sistema
instável no qual “É a ação recíproca entre os indivíduos, e não a ação individual
ou a totalidade social que é a unidade elementar da sociologia simmeliana” (VAN-
DENBERGHE, 2018, p. 100), e “O que interessa à Simmel é o jogo das interações
como substrato vivo do social, como cadinho da sociedade” (VANDENBERGHE,
2018, p. 94). Essa dialética sem síntese vai ao encontro da experiência vital da qual
fala Paulo Freire (2020, p. 50), ao afirmar que: “Onde há vida, há inacabamento”, e
“[...] o inacabamento de que nos tornamos conscientes nos fez éticos” (2020, p. 58).
De qualquer maneira, o didatismo do esquema de Berger e Luckmann apon-
tam, mais uma vez, para a importância do reconhecimento do outro como diferente,
como condição para que o próprio mundo concreto adquira sentido, ou múltiplos
sentidos. Desde o plano estético de uma subjetividade que encarna no mundo na
forma de objetos a serem tomados por outros indivíduos como fenômenos ricos de
sentidos, o que é revelado nesse jogo dialético é, por um lado, uma ideia de socie-
dade como uma estabilidade fugidia, e, por outro lado, o indivíduo que se assoma
do mundo, tomando fenomenologicamente os objetos como a encarnação de signi-
ficados a serem desvelados, ao mesmo tempo em que ele, indivíduo, realiza sua
individualidade.
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Da mesma forma, Simmel observou que “A Bildung, no sentido clássico ale-
mão, é alcançada se as coisas não são apenas conhecidas em si mesmas [...]” (MÜL-
LER, 2019, p. 34), mas uma formação que visa o espírito, e se desdobra novamente
na realidade concreta circundante, dando seguimento a uma relação conflituosa
entre sociedade e indivíduo, conflito que “[...] prossegue no próprio indivíduo como
luta entre partes de sua essência” (SIMMEL, 2006, p. 84). Ou ainda, a Bildung é:
[...] o fortalecimento, o refinamento, a amplitude de oscilação do espírito, sua elevação éti-
co-estética, o direcionamento da alma ao encontro do espiritual e do valioso. Bildung é a
síntese desses dois objetivos. Porque Bildung não é o mero conteúdo cognoscível, nem o
mero ser como a constituição de uma alma sem conteúdo (SIMMEL, 2004, p. 356 apud
MÜLLER, 2019, p. 34-35).
Mas essa amplitude de oscilação do espírito se vê ameaçada, conforme aponta
Simmel (2013, p. 110), em A crise da cultura, quando: “As vivências atuais pare-
cem intervir com significado mais tangível em outro desenvolvimento da cultura,
a elevação de meros meios a fins em si”. A consequência dessa troca de meio pelo
fim é a interrupção do processo dialético, quando a objetivação deixa de significar a
subjetividade que lhe deu origem, ou deixa de ser decodificada ou significada pela
subjetividade de outrem que a recolhe no fenômeno. O objeto então se cristaliza
como coisa no mundo, e deixa de ser um “conteúdo cognoscível” para ser tomado
por uma “alma sem conteúdo”.
O espaço da sala de aula, como espaço de interação, conforme apontou Simmel
(VERNIK, 2019), é um antídoto para este mal que interrompe a “amplitude de os-
cilação do espírito” presente na Bildung. Bildung entendida não como formação no
sentido estritamente técnico, ou de treinamento, o que foi alvo de críticas por parte
de Simmel (NORDENBO, 2002; D’ANDREA, 2019), mas Bildung como formação
mais ampla, como um “refinamento” do espírito, conforme apontado por Simmel, o
que pode ser observado também na mudança de percepção dos espaços destinados
aos processos de socialização e de formação.
A Bildung, como formação mais ampla, foi acompanhada também por uma
mudança sobre o entendimento dos espaços exclusivos dedicados ao ensino formal,
reconhecendo-se que “[...] as ações educativas não se realizam apenas nos espa-
ços institucionais tradicionais” (SETTON, 2005, p. 346), mas nos círculos onde o
consumo da vida objetivada possa se converter em processos de subjetivação, tal
como é oportunizado nos encontros de diferentes experiências e do choque da vida
interna subjetiva com a realidade externa, em uma variada gama de espaços de
socialização. A sala de aula pode ser um desses espaços nos quais os choques e as
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interações se realizam, e onde as diferenciações estão presentes e os processos de
socialização ocorrem, da mesma maneira como também ocorrem nos espaços cultu-
rais (SETTON, 2005; SETTON; OLIVEIRA, 2017). Todos esses cenários oferecem
as condições de sociabilidade que favorecem a produção da cultura “[...] na medida
em que há a aproximação de dois elementos: a alma subjetiva e o produto espiri-
tual objetivo; sendo que nenhum deles a contém por si” (SIMMEL, 2014, p. 81). A
preocupação de Simmel (2013, p. 87), segundo a qual “[...] os homens somente num
grau menor estão em condições de extrair, a partir da consumação dos objetos, uma
consumação da vida subjetiva”, pode ser aplacada, ao menos em parte, quando
o conjunto de diferentes círculos e o trânsito dos indivíduos entre esses círculos
ocorre, dando oportunidade e estímulo para que a conversão do objeto consumido
torne-se consumação de vida subjetiva, e a síntese provisória entre o “conteúdo
cognoscível” e a alma aconteça. O impedimento do acesso às diferenças nos espa-
ços onde as interações ocorrem, sejam salas de aula, espaços de lazer ou equipa-
mentos culturais, é danoso tanto para aquele que é impedido de frequentar esses
ambientes, quanto aos que lá já se encontram isolados e privados de provocações,
estímulos e interações que a diversidade pode promover. Tanto aqueles cujo acesso
às diferenciações é obstruído, quanto os que permanecem isolados em bolhas cultu-
rais, os quais enfrentarão dificuldades em extrair “da consumação de objetos, uma
consumação da vida subjetiva”.
Hoje, mais do que nunca, a recuperação da Bildung implica em dar voz à dico-
tomia indivíduo e sociedade, vida interna e externa (D’ANDREA, 2019). Ao discor-
rer sobre as implicações entre educação e cultura em Simmel, Goldman (2013, p.
28) lembra que: “Os conflitos mais delicados da vida moderna advêm da resistência
oferecida pelo indivíduo de ser nivelado, e da aspiração do homem em preservar
sua peculiaridade e autonomia diante da sociedade”, reeditando “o conflito entre a
sociedade e o indivíduo [...]” (SIMMEL, 2006, p. 84). Mas esse conflito não se resolve
cedendo ao nivelamento ou abandonando a aspiração à peculiaridade e à autono-
mia. Ao contrário, o fundamental é entender que a manutenção, quer da sociedade,
quer do indivíduo peculiar e autônomo, depende da clareza quanto ao fato de que
“A contraposição entre o todo [...] e a parte [...] não se resolve a princípio: não se
constrói uma casa a partir das casas, e sim a partir de pedras formadas; nenhuma
árvore cresce a partir de árvores, e sim a partir de células diferentes” (SIMMEL,
2006, p. 84). Para que o indivíduo note que sua peculiaridade e autonomia depen-
dem das subjetivações e, portanto, dos dessemelhantes a ele, é imprescindível que
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a cultura se apresente sempre no plural, promovendo o reconhecimento das dife-
renças para que elas sejam objeto de “consumação da vida subjetiva”.
Conclusão
A partir da importância dos processos de interação e socialização para a for-
mação (Bildung), e tendo em vista a diferenciação como elemento fundamental
para tais processos, é possível afirmar que qualquer tentativa de barrar as dife-
renças nos ambientes de debates e discussão de ideias incorrerão no solapamento
dos processos de interação e socialização, e, consequentemente, na formação (Bil-
dung). Passar ao largo do reconhecimento e da tolerância das diferenças, sejam
quais forem as justificativas para tal, acabam por promover uma formação sem a
amplitude necessária para a constituição de forças mobilizadoras que garantam a
autonomia do sujeito, o que um objetivo da educação.
O que a intolerância às diferenças e a aversão à diversidade de pensamentos
promovem, por certo, é a dificuldade dos processos de interação e, consequente-
mente, das possibilidades do indivíduo se relacionar com as diferentes subjetivi-
dades, que são matéria-prima necessária para a exteriorização, objetivação e inte-
riorização, gerando novos processos de subjetivação, que mais uma vez se lançará
ao mundo. A interrupção do processo vivo que dá origem ao social a partir de uma
intensa dinâmica de interações, não mata apenas as ideias, mas também a própria
essência da formação e da vida social. Para ir além do plano jurídico-constitucional
que garante o acesso à escola e o pluralismo de ideias, uma sociedade saudável
deve manter o convívio entre as diferenças, que é tão vital para a sociedade quanto
o ato de pedalar é vital para manter a bicicleta em equilíbrio dinâmico.
Notas
1
Os termos em alemão Wechselwirkung, Vergesellschaftung, Gesellschaft e Geselligkeit são vertidos neste
texto por interação, socialização, sociedade e sociabilidade, respectivamente. Apesar de reconhecer a va-
lidade das discussões sobre a melhor forma de verter esses termos para o português, em especial as va-
riantes de Vergesellschaftung, optou-se por socialização para este último, mantendo a palavra sociação nos
casos das citações literais de obras em português que privilegiam essa forma de escrita. A anotação desses
termos no idioma alemão só será mantida quando a citação literal do texto utilizado optar por manter o
termo no original em alemão. Este é o caso de alguns dos textos do periódico Simmel Studies, presentes em
citações neste artigo.
2
Sobre a Bildung, ver artigo de Sven Erik Nordenbo, Bildung and the Thinking of Bildung, citado neste
artigo e indicado nas referências, no qual o autor traça um histórico do termo, desde o sentido de uma
educação técnica e funcionalista, criticada por Simmel, até a recuperação do seu uso como formação para
além dos conteúdos utilitários. Nordenbo também recupera a etimologia da palavra, verificando seu sen-
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Notas sobre interação e socialização em Simmel: uma reexão sobre educação e intolerância
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tido inaugural que remete à imagem, conforme pode ser observado no uso do termo na introdução de Über
sociale Differenzierung, de Georg Simmel. Ainda, a respeito do conceito de Bildung (e Halbbildung), ver
dossiê específico da Revista Espaço Pedagógico, v. 24, n. 3, 2017.
3
Publicação da Georg Simmel Gesellschaft, disponível na plataforma Érudit desde 2017. O dossiê Simmel
as Educator está disponível em: https://www.erudit.org/en/journals/sst/2019-v23-n1-sst04800/.
4
Para o sucesso e popularidade das aulas de Simmel, consultar a obra de Waizbort (2013, p. 571 ss.), em
especial o capítulo “A cátedra, os gestos e a memória dos que viram e ouviram”, onde são reproduzidos
depoimentos de época sobre a impressão que Simmel causava aos seus alunos em sala de aula.
5
O termo em alemão entre parêntesis está presente na citação original. Conforme indicado em nota ante-
rior, quando não se tratar de citação literal, o termo Wechselwirkung será vertido como “interação”.
6
A questão da sociabilidade (Geselligkeit), embora importante na obra de Simmel, especialmente no tocante
à autonomização dos conteúdos, conforme Questões fundamentais da sociologia (SIMMEL, 2006, p. 59 e
ss.), não será discutida à miúde neste texto. Porém, vale apontar ser este também um tema merecedor de
atenção, especialmente se for considerado que seus desdobramentos implicam na reflexão crítica sobre o
campo da educação e da formação (Bildung), e das relações de poder envolvidos nesse processo.
7
O termo Modernidade Iluminista é utilizado por D’Andrea a partir de obra citada de Louis Dumont (1991
apud D’ANDREA, 2019).
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