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Nathalye Nallon Machado, Anderson Ferrari
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*
Doutora em Educação pela UFJF. Mestra em Educação pela UFJF. Professora e Coordenadora da Rede Municipal de
Educação de Juiz de Fora, pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Gênero, Sexualidade, Educação e Diver-
sidade (GESED/UFJF). Orcid: https://orcid.org/0000-0003-2406-0027. E-mail: Natha_30@hotmail.com
**
Professor associado da Faculdade de Educação da UFJF, professor permanente no PPGE/UFJF, coordenador do Grupo
de Estudos e Pesquisas em Gênero, Sexualidade, Educação e Diversidade (GESED/UFJF). Pós-doutorado em Educação
e Cultura Visual pela Universidade de Barcelona/Espanha. Doutor em Educação pela Unicamp. Mestre em Educação
pela UFJF. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-5681-0753. E-mail: aferrari13@globo.com
Recebido em: 31/07/2020 – Aprovado em: 21/05/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i1.11518
Dispositivo de feminilidade, juventudes e imagens de si como processos
educativos e de socialização
Femininity device, youth and images of the self as educational and socialization processes
Dispositivo de feminidad, juventud e imágenes del yo como procesos educativos y de socialización
Nathalye Nallon Machado
*
Anderson Ferrari
**
Resumo
O artigo é resultado de uma pesquisa na área da Educação, realizada com sete mulheres jovens, estudantes de
uma escola pública, interessada na relação entre as imagens seles – que são publicadas nas redes sociais. O
foco de análise diz dos dispositivos de feminilidade e juventude que são acionados e postos em circulação para
a construção de imagens de si como mulheres jovens. Isso aproxima o trabalho da perspectiva foucaultiana
que entende gênero como atravessado por relações de saber-poder e que diz dos processos de subjetivação
como processos educativos. A metodologia se organizou em grupos focais e nas observações nas páginas do
Facebook e do Instagram, para trazer para discussão falas e análises a partir do que foi construído por esses
procedimentos metodológicos. Como resultado principal, arma-se que os dispositivos vão atuando sobre elas,
ao mesmo tempo que apresentam linhas de visibilidade, de força e de subjetivação.
Palavras-chave: gênero; feminilidade; juventudes; imagens de si; educação.
Abstract
The article is the result of a research in the eld of Education, carried out with seven young women, students
from a public school, interested in the relationship between the seles images - which are published on social
networks. The focus of analysis is on the devices of femininity and youth that are triggered and put into circula-
tion for the construction of images of themselves as young women. This brings the work closer to the Foucaul-
dian perspective that understands gender as crossed by knowledge-power relations and that says about the
processes of subjectivation as educational processes. The Methodology was organized in focus groups and in
the observations on the Facebook and Instagram pages, to bring up discussions and speeches based on what
was built by these methodological procedures. As a main result, it is stated that the devices are acting on them,
at the same time that they present lines of visibility, strength and subjectivity.
Keywords: gender; femininity; youth; images of the self; education.
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Resumen
El artículo es el resultado de una investigación en el campo de la Educación, realizada con siete mujeres jóvenes,
estudiantes de una escuela pública, interesadas en la relación entre las imágenes de seles, que se publican en
las redes sociales. El foco del análisis está en los dispositivos de feminidad y juventud que se activan y ponen
en circulación para la construcción de imágenes de sí mismas como mujeres jóvenes. Esto acerca el trabajo a la
perspectiva foucaultiana que entiende el género como atravesado por las relaciones conocimiento-poder y que
dice de los procesos de subjetivación como procesos educativos. La Metodología se organizó en grupos focales
y en las observaciones en las páginas de Facebook e Instagram, para traer discusiones y discursos basados en lo
construido por estos procedimientos metodológicos. Como resultado principal, se arma que los dispositivos
están actuando sobre ellos, al mismo tiempo que presentan líneas de visibilidad, fuerza y subjetividad.
Palabras clave: género; feminidad; juventud; imágenes de si; educación.
Introdução
Os conceitos de “feminilidade” e “juventudes” que compõem o título deste arti-
go nos colocam diante da necessidade de esclarecer os seus entendimentos e usos.
Dois conceitos que nos remetem, imediatamente, aos atravessamentos de gênero e
faixa etária, na impossibilidade de falar do feminino como algo homogêneo, natural
ou essência. Nesse sentido, nos aproximamos da perspectiva feminista que cons-
truiu uma crítica “ramificada e sistemática”, como classifica Nancy Fraser (2019,
p. 27), ao revisar as ondas do movimento feminista para afirmar que os ideais femi-
nistas de igualdade de gênero demonstram o caráter paradoxal da luta das mulhe-
res. Por um lado, eles representam uma conquista que, hoje em dia, “são populares
e fazem parte do imaginário social” (FRASER, 2019, p. 26). Por outro lado, esses
mesmos ideais de igualdade necessitam ser colocados em prática cotidianamente.
Com isso, Fraser (2019) está afirmando o sentido de construção das relações de
gênero e a necessidade constante de luta, de maneira que estamos assumindo os
conceitos de feminilidade e juventude como resultado dessas negociações e confron-
tos permanentes entre sujeitos, saberes e discursos atravessados por relações de
poder, que se renovam constantemente. Corroborando com esses entendimentos,
Michel Foucault (1988) e Joan Scott (2019) defendem que “as palavras, assim como
as ideias e as coisas que elas significam, têm uma história” (SCOTT, 2019, p. 49),
de tal forma que tomar como foco de análise as construções do gênero feminino e
das juventudes através das imagens que as mulheres produzem de si significa co-
locar em investigação as descontinuidades históricas dessa ação de falar e produzir
imagens de si como efeito das relações de gênero e seus processos educativos.
Isso nos obriga a ficarmos atentos para as forças atuais que agem nessas cons-
truções para problematizarmos as questões da atualidade na constituição de mu-
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lheres e suas feminilidades como resultado de processos educativos de constituição
de si. Mulher e menina constituem o que vem a ser o feminino como construto
performativo (BUTLER, 2001, 2003). Trazer Judith Butler para essa discussão
é uma forma de tensionar o conceito de gênero como aquele que é produzido por
uma sequência de atos. Seguindo as provocações de Judith Butler (2001, 2003),
queremos tomar feminino para pensar o sujeito em processos constantes de produ-
ção nas relações entre os indivíduos e os saberes. A autora tensiona o feminismo,
argumentando que as teóricas feministas assumiram a existência de um sujeito
feminino – mulher – quase como uma essência. Para ela, a categoria mulher diz de
um sujeito em processo, que é resultado dos discursos e dos atos que executa.
É necessário deixar claro, neste momento, que o nosso esforço de investigação
e de análise é por essa constituição dos sujeitos nos seus processos performativos/
educativos, o que nos serve para ampliar o sentido de educação que estamos colo-
cando em circulação como aquele que não diz somente do que acontece nas escolas e
nas relações entre professora/professor e aluna/aluno, mas que envolve as relações
entre sujeitos nos mais variados espaços sociais que educam, locais em que apren-
demos e ensinamos como ser mulheres e homens jovens. Dito isso, é importante
dizer, ainda, que este artigo tem vínculos com uma pesquisa mais abrangente, na
área da Educação, especificamente no campo das relações de gênero, sexualidade e
educação, realizada entre 2016 e 2019, com um grupo de sete mulheres jovens, alu-
nas de uma mesma escola, que aceitaram o convite de contar sobre suas relações
com as imagens que constroem de si e publicam nas redes sociais. São elas: Carla,
Aurélia, Amélia, Laura, Vânia, Kátia, Diana
1
.
Além do gênero e da juventude, outro fator as une: são sete mulheres jovens,
alunas e ex-alunas de uma mesma escola. Portanto, a pesquisa teve como locus de
investigação as redes sociais Facebook e Instagram – espaços virtuais em que
cada uma das jovens vai se constituindo. Mas a escola também está presente. É
onde elas se encontravam cotidianamente, para conversar, combinar as postagens
das fotos que vão para as redes, assim como é o local em que comentavam, bri-
gavam, de maneira que a escola e as redes sociais se integravam na constituição
dessas mulheres jovens. A escola em que as jovens estudam localiza-se em um
bairro na periferia da cidade. Trata-se de uma pequena escola municipal, com,
aproximadamente, 270 alunas e alunos, 38 profissionais entre professoras, pro-
fessores, equipe diretiva e funcionárias (números de dezembro de 2018). Nesse
espaço, convivem desde crianças de 04 anos na Educação Infantil, até jovens entre
14 - 16 anos no último ano do ensino fundamental.
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Metodologicamente, a pesquisa foi realizada através da observação nas pági-
nas construídas e públicas das participantes, além da organização de nove encon-
tros de grupos focais (entre agosto de 2017 e outubro de 2018) em que discutimos
algumas temáticas, tais como a construção de um autorretrato, as discussões em
torno da rede de sociabilidade na definição das imagens a serem publicadas, den-
tre outras. Para além das imagens que produzem de si, também provocamos as
narrativas de si nesses grupos focais. As narrativas de si são aqui entendidas como
as maneiras pelas quais, nós, sujeitos de nossas histórias, nos utilizamos da ética
e do cuidado consigo próprios para individualizar o que vivemos. Michel Foucault
(2018, p. 141) problematiza a escrita de si como uma possibilidade de exercício
pessoal:
A escrita como exercício pessoal praticado por si e para si é uma arte da verdade contras-
tiva; ou, mais precisamente, uma maneira reflectida de combinar a autoridade tradicional
da coisa já dita com a singularidade da verdade que nela se afirma e a particularidade das
circunstâncias que determinam seu uso.
Narrar-se, ter cuidado consigo mesma/o, dominar a arte da existência pode,
em primeira mão, sugerir o afastamento dos convívios e voltar-se para si, entretan-
to, não é o que ocorre. Paradoxalmente, quanto mais trocas cada uma/um de nós é
capaz de fazer com as/os outras/os, mais exercitamos o cuidado conosco mesmas/
os. Cuidar de nós mesmas/os em um ambiente social nos leva a escolhas que sejam
mais próximas às nossas aspirações éticas, estéticas, aos nossos anseios, permi-
tindo o acolhimento e o conhecimento que temos. Assim vamos nos subjetivando,
seguindo e/ou questionando regras, construindo conhecimentos sobre si. Seguindo
essa linha de análise, as jovens eram provocadas a se pensar, a colocar sob investi-
gação seus modos de constituição.
De imediato, uma preocupação tomou forma: como chamar e nos referir às
pessoas que fazem esta pesquisa? Acreditávamos que não podíamos nos referir a
elas a partir dos nossos enquadramentos, mas que seria importante saber como
se viam, se chamavam e se enquadravam nos seus atravessamentos. Não nos
agradava denominá-las como meninas, tampouco como adolescentes, em função do
viés ideológico, carregado de sentidos médicos, psicologizantes e preconceituosos
que esses termos trazem. Colocada essa preocupação para as sete participantes da
pesquisa, Vânia elabora uma resposta que, rapidamente, foi acolhida pelas demais
e que, portanto, justifica nossa escolha pelo termo “mulher jovem” para nos referir-
mos a elas ao longo da escrita.
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Penso que sou uma mulher, acho que todas nós também somos porque a maioria aqui já
namora e toma as suas próprias decisões. Assim, quero dizer que sou mulher, mas sou jovem
também (Vânia).
O critério de Vânia para sua definição enquanto mulher liga-se ao fato de já
ter uma vida afetiva concretizada por um relacionamento e por tomar “suas pró-
prias decisões”. Mas ela só se define como “mulher” no coletivo, na medida em que
identifica que as outras também vivem algo semelhante, o que permite que fale
por todas: “acho que todas nós também somos”, de forma que a categoria “mulher”
parece ser algo que se constrói na relação entre os gêneros, mas também no interior
do gênero feminino. No entanto, se filiar a um gênero não basta, há necessidade de
um atravessamento etário, visto que dizer que “é mulher” está associado à ideia de
fase da vida, rompendo com períodos anteriores como criança e menina (ligados à
infância e à adolescência, respectivamente) e anunciando uma etapa mais adulta.
Daí a necessidade de Vânia acionar, conjuntamente, um discurso de juventude:
“quero dizer que sou mulher, mas sou jovem também”, estabelecendo, para si e para
as outras, a categoria “mulher jovem” que, consequentemente, difere das mulheres
adultas. Esses atravessamentos são constituídos e divulgados em diferentes modos
de circulação do conhecimento, chegando até essas participantes, que tomam para
si essa necessidade de se enquadrar em um gênero e faixa etária, dois organizado-
res sociais eficientes. Diante das afirmativas e concordâncias de que se consideram
mulheres e jovens, a pesquisa que este artigo apresenta, foi feita com mulheres
jovens entre 13 e 18 anos
2
, que utilizam cotidianamente as redes sociais para dizer
de si e para construir imagens de si, demonstrando que esse é um espaço educativo
importante para a construção do feminino e das juventudes, nas suas continuida-
des e descontinuidades.
Queremos demonstrar que a sujeição que a imagem de si possibilita aconte-
cer ativa e é ativada por dispositivos de feminilidades que atuam nas publicações
de cada uma delas. Michel Foucault (1988), no exercício de pensar a sexualidade
como um dispositivo, nos coloca diante da “unidade do dispositivo” como uma for-
ma de controle que, historicamente, perpassou as monarquias, as formas da lei,
avançando para o poder e os “dispositivos de aliança” que, por meio de discursos
e domínios, principalmente no que se referia à sexualidade, estrategicamente, nos
conduziam a uma ou outra forma de viver. Embora o filósofo não tenha falado
especificamente dos dispositivos de feminilidades, este trabalho lança o olhar para
esses mecanismos de construção e reconstrução de si, que encontram suporte no
dito e no não-dito dos discursos, em imagens, na mídia, nos aparatos tecnológicos,
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entre outros, para discutir as maneiras pelas quais as mulheres são mais ou menos
afetadas por esses construtos sociais. Estamos considerando que os dispositivos de
feminilidades são mecanismos pedagógicos - pois ensinam e educam -, que podem
ser imagéticos, textuais, comportamentais, discursivos, entre outros que atuam na
maneira como as mulheres aprendem a ser mulheres. Em cenas sociais, na mídia,
nas roupas, maquiagem, cabelo, gestos, palavras, aceitações, recusas e pertenci-
mentos, cada uma delas vai sendo capturada por representações do feminino que
são aprendidas.
Essa forma de ver e de ser vista na internet é bastante habitual entre muitas
jovens em período de escolarização, fazendo com que as escolas estejam implicadas
na produção de imagem (FERRARI, 2013). Viemos de um passado em que nos ca-
tálogos de venda de pneus até na publicidade de divulgação de imagens turísticas
do Brasil no exterior, corpos femininos eram usados para atrair, vender, agradar,
o que nos permite pensar que há uma historicidade nesses processos de ver, de
ser vista e de produzir imagens de si. Essas imagens que existiam muito antes da
internet já divulgavam mulheres em poses muito próximas às que encontramos
nas páginas das jovens, provocando-nos a pensar que elas vão educando o olhar e
o corpo ao longo dos tempos e ensinando a ser mulher, num investimento do que é
ser feminino. Como desconstruir essa história de governo, exploração e abuso dos
corpos femininos é uma tarefa que ainda não terminamos de fazer, podemos pensar
que essas poses estão internalizadas na memória e nas práticas que unem modos
de pensar e agir no processo de educação dos sujeitos. As imagens que compõem as
páginas dessas mulheres jovens nas redes sociais integram um conjunto de meca-
nismos de governo da conduta dos indivíduos nos nossos dias, aos moldes do que
Michel Foucault (1999) chama de governo de si e dos outros. Não é irrelevante
dizer que existe um recorte de gênero que aponta a forma de posar, de se mostrar
e de aparecer para uma foto, sendo mulher. Para Guacira Lopes Louro (2017, p.
116), as mulheres, “possivelmente mais do que homens, têm sido educadas para
viver na expectativa de serem julgadas. Parece que faz parte das pedagogias da
feminilidade o receio de não corresponder ao que, supostamente, delas é esperado”.
Essas mulheres jovens não representam a verdade do que é ser jovem hoje, o
que não significa dizer que estamos trabalhando com uma ideia de que haja uma
verdade sobre o que é ser jovem. Elas são jovens que, junto a tantas outras, dão
forma e dizem de uma realidade situada, instável e provisória. Metodologicamen-
te, temos caminhado com esse sentido, ou seja, reconhecendo a instabilidade que
existe na constituição dessas mulheres em suas performances de gênero feminino e
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dentro do corte geracional que as coloca como jovens. Assim como outras categorias
etárias, a juventude e, consequentemente, as/os jovens fazem parte dessas dispu-
tas teóricas que tendem a maneiras distintas de entender essas pessoas. Nesse
sentido, nos interessa problematizar as jovens e as juventudes como construtos
sociais produzidos e que, no decorrer da história, vão mudando, transformando-se.
Isso porque:
[...] cada sociedade estabelece, por meio de suas práticas, o que é ser jovem. Isso se dá em
um processo que é histórico e se modifica ao longo dos tempos. A categoria juventude deve
ser entendida em seu dinamismo fluidez, instabilidade e provisoriedade. Os modos de ser
jovem não são fixos, nem permanentes (SALES, 2018a, p. 85).
Nessa provisoriedade e instabilidade que as jovens encontram como condição
para viver suas vidas, a dimensão cultural é potente para a produção das suas
juventudes. Essa dimensão cultural, nos dias em que vivemos, passa, inevitavel-
mente, pelas vivências digitais, proporcionadas pela internet. Jovens que estão se
constituindo em diferentes espaços – físicos ou virtuais – e que nos provocam a pen-
sar os diferentes discursos que educam essas mulheres jovens. Estar na internet
produzindo a si mesmas através das imagens diz de um processo maior que atinge
e tem efeitos em outras mulheres jovens e não somente entre as participantes da
pesquisa.
Dispositivo de feminilidade
Os dispositivos atuam na nossa vida nos organizando e nos constituindo. Essa
é uma afirmação seguindo as trilhas das investigações foucaultianas que nos per-
mitem dizer que os dispositivos estão ligados às relações de poder, aos saberes e às
“verdades” dos sujeitos. Michel Foucault (2018) amplia o entendimento de disposi-
tivo como aquele composto por discursos, leis, construções arquitetônicas, práticas
médicas e jurídicas, postulados científicos, enfim, uma rede que se constitui entre
esses elementos. São essas redes que podemos tecer entre esses elementos que nos
interessa, quando pensamos nas feminilidades como dispositivo. Ao entendermos
isso, torna-se possível problematizar que os discursos e também outras formas não
discursivas de organização da sociedade contribuem para a construção desse meca-
nismo. Entender que as feminilidades estão em permanente construção, como es-
tamos defendendo, significa tomar essa rede como objeto de investigação nos seus
processos de constituição dessas mulheres jovens e seus desafios e potencialidades
na atualidade.
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Na atualidade de uma sociedade imagética, as imagens selfies são, ao mesmo
tempo, partes e disparadoras dos dispositivos da feminilidade, das juventudes, das
subjetividades, uma vez que colocam em funcionamento o processo de produção,
discussão, divulgação, aceitação e/ou rejeição que dele advém. As participantes da
pesquisa sentem prazer em ter um aparelho celular nas mãos e em poder produzir
imagens de si. Prazer que se traduz no poder de ter o controle sobre a produção de
si, de apagar as fotografias que julgam como inadequadas para uma construção
favorável e valorizada de si. Prazer que dialoga com poder o tempo todo, desde o
poder em disputar o melhor celular e, portanto, mais potente para a valorização das
fotografias, até o poder em conseguir realizar uma imagem que, primeiramente,
passe pela avaliação, pela aprovação das outras amigas para se concretizar em nú
-
meros de curtidas e comentários nas redes sociais. Esses prazeres, os sentimentos
de valorização e de participação de um contexto juvenil em rede, assim como as
trocas e construção de laços entre mulheres vão estabelecendo e fortalecendo o dis
-
positivo da feminilidade, que inclui, em sua composição, formas discursivas e não
discursivas, além de aliar instância de saber e de poder que atuam sobre as pessoas,
constituindo-as. As redes sociais são dispositivos na vida dessas mulheres jovens.
Para mim, selfie é aquela foto que você mesma tira e decide se você gosta ou não, mas a selfie
perfeita é aquela que você acha que ficou bonita e pergunta para as amigas se está boa e elas
falam que está. Para as meninas a selfie tem que estar perfeita (Amélia).
Num lugar com árvore, o brilho certo, um carão bem top! Fazer montagem, colocar emojis
3
.
Num lugar legal, paisagem legal, igual às fotos da Maria Venture
4
(Vânia).
Selfie para mim é uma foto top, uma foto tirada por mim mesma que representa a pessoa,
mostra se ela gosta de viajar, o que gosta de comer, que tipo de lugares que ela gosta de
frequentar (Kátia).
Eu acho a selfie importante para mostrar como a pessoa parece ser, o jeito dela, o que ela
gosta de fazer, além de ser importante ficar bonita e mostrar para as pessoas (Carla).
Selfie é uma coisa que gosto muito, é como a gente guarda lembranças. Tem que ter o local
perfeito, luz ideal. Pessoas que são boas em selfies são o Victor Hugo, Maria Venture e Ana
Gabriela que são todos Youtubers (Laura).
Selfie para mim é importante e eu gosto muito de tirar. Ficar bonita, com um bom fundo para
ficar boa. Eu gosto de me inspirar na Mari Maria
5
(Diana).
As selfies compõem as páginas dessas mulheres jovens. Ao pesquisarmos nas
páginas pessoais das participantes da pesquisa, constatamos que a fotografia de
apresentação, com suas poses, com os acessórios que escolheram, com as pessoas
que compõem a imagem, passam informações que querem construir de si nesse
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momento, considerando que essas fotografias podem mudar e mudam na medida
em que iniciam ou encerram determinados momentos da vida pessoal. Quando
aparecem de corpo inteiro, as roupas são justas, com decotes, saias mostrando as
pernas, num ar de sensualidade que marca o corpo feminino. Quando aparecem
em fotografias de rosto, o mesmo ar de sensualidade é marcado pelo olhar, estando
sempre muito bem maquiadas, demonstrando um investimento nas fotografias. Os
acessórios que utilizam também contribuem para a construção do feminino ou do
que convencionamos como próprio do gênero feminino. Assim, as fotografias utili-
zam espelhos, coroas e tiaras em tons de dourado, símbolos de coração, imagens em
que aparecem abraçadas com namorados, fotos tiradas por ocasião da suas festas
de 15 anos, definindo vínculos com a juventude a partir desse rito de passagem.
Essas são interpretações possíveis daquela/e que olha e que vai preenchendo o
espaço do vazio entre a foto e nossos olhares, utilizando, para esse preenchimento,
os valores, os saberes e os discursos que os corpos, os gêneros, os símbolos e as poses
vão acionando naquela/e que olha e que é chamada/o a ler as imagens através desse
diálogo entre que sentidos queriam passar e o que somos capazes de elaborar. Para
além dos grupos focais, ouvíamos, em outras ocasiões de sociabilidade e conversas
informais, essas jovens mulheres fazendo referência ao que fora postado em redes
sociais. Assim, podíamos perceber que essa circulação e construção de si nesse am
-
biente eram algo do cotidiano e de importância para as relações de trocas entre elas.
Inclusive, durante a pesquisa, as jovens falaram sobre os status
6
do WhatsApp como
um espaço de “mandar recado” para as “amigas e inimigas”. Mandar recado parece
ser uma forma de controlar as outras mulheres jovens e a si mesmas na constituição
desse coletivo de feminilidade no estabelecimento de regras do que é permitido e
proibido. Numa conversa sobre esse controle pelas imagens, Kátia afirma: “Agora
‘tô’ namorando e as coisas mudam um pouco. Não posto tantas fotos e nem sempre
vou ficar dançando aqui na escola”. Concordando com essa mudança de comporta
-
mento na internet, Amélia, reforça: “Quando a gente namora, a gente posta muito
menos. Esse espaço captura a atenção e faz a vigilância ser uma constante entre
as jovens. Manter-se ativa nas redes sociais significa ter uma boa foto, com uma luz
adequada, saber o horário adequado para inseri-la, ter muitos contatos.
Para isso, pode-se começar a pensar o gênero baseado numa visão teórica foucaultiana,
que vê a sexualidade como uma “tecnologia sexual”; dessa forma, seria possível propor
que também o gênero, como representação e como autorrepresentação, fosse produto de
diferentes tecnologias sociais, como cinema, por exemplo, e de discursos, epistemologias e
práticas críticas institucionalizadas, bem como das práticas da vida cotidiana (LAURETIS,
2019, p. 123).
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Ampliando a citação de Teresa de Lauretis (2019), no seu diálogo com a pers-
pectiva foucaultiana, tomamos a construção do gênero, especificamente o lugar de
mulher jovem desse grupo pesquisado, como construído significativamente nas re-
des sociais. Coletivamente, através das redes sociais, do que produzem de si e que
confirmam nas publicações das demais participantes, vão construindo a si mesmas
como mulheres jovens, pertencentes ao que é a representação desse gênero e dessa
faixa etária. Carla, ao dizer que “a reação das pessoas às minhas fotos é importante
porque me sinto especial”, parece nos apontar para a relevância que a reação de
uma outra/um outro possui nessa feminilidade em construção.
Emprestar energia a uma imagem diz de um esforço que existe em se ver
representada, em uma rede de significações que criam personagens mais ou me-
nos populares nas redes sociais. Nessa busca pela popularidade e aceitação das
demais, Carla traz à tona um certo uso dos mecanismos de produção dessa popu-
laridade: “Eu até me importo com as curtidas, mas, se é pra ter curtidas, é só você
buscar um aplicativo no Google que é pra aumentar seus likes. Você coloca o tanto de
curtidas que quer e o aplicativo vai lá e coloca”. Questionada sobre as razões dessa
estratégia, ela completa: “É porque as pessoas vão ver sua rede cheia de curtidas,
vão curtir também. Aí você passa a ser alguém como muitos seguidores”. Sentir-se
especial nas redes sociais tem a ver com ser gostada/o, possuir uma imagem que
seja simpática às/aos demais, significa ser aprovada/o. E, para serem aprovadas,
no caso das jovens participantes, elas vão balizando suas condutas em uma ou
outra maneira que lhes seja satisfatória.
Temos os nossos grupos de WhatsApp que mostramos nossas roupas e maquiagens antes de
sair, ou até mesmo antes de postar a foto na internet, porque as amigas do grupo são aquelas
que são mais, que são próximas, então a gente vai lá e pergunta. Manda a foto e pergunta.
Dependendo do que ela responder aí a gente pode até trocar a roupa, mudar tudo mesmo.
(Diana).
Esperando a aprovação das outras meninas e, posteriormente, das suas se-
guidoras e seguidores, elas nos convidam a pensar que o feminino não é algo que
já está pronto, mas, ao contrário disso, é algo que diz de um investimento, que tem
uma temporalidade. Como ressalta Butler (2019), gênero não é uma propriedade
do corpo e, tampouco, algo que existe a priori nos sujeitos. A ação das mulheres
jovens com a produção e a divulgação de imagens de si nos convida a problematizar
a construção do feminino como o conjunto de efeitos produzidos nesses corpos (não
por acaso, as poses se repetem, com pouca variação entre elas), nos comportamen-
tos que valorizam e desvalorizam, que reproduzem ou negam e nas relações sociais
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que vão construindo em torno dessa amizade como desdobramento dessa complexa
tecnologia política que é o gênero. “Neste sentido, saber o significado de alguma
coisa é saber como e por que ela importa, sendo que “importar” significa ao mesmo
tempo “materializar” e “significar” (BUTLER, 2019, p. 63-64).
Nesse jogo entre o que importa e o que é valorizado, Carla nos provoca a pen-
sar sobre a imagem nas redes sociais ao ter em sua capa, no Facebook, uma foto de
seu aniversário de 15 anos. Entre tantas coisas que se pode dizer sobre ela mesma,
Carla escolheu a imagem em que está representada por elementos que a colocam
em um padrão aceitável para si e para as outras e outros, uma mulher feminina.
Entende que usar maquiagem, acessórios, trajar um vestido e salto alto a coloca em
um lugar que talvez seja o aceitável, desejável. O dispositivo de feminilidade acio-
nado, no caso de Carla, em sua festa de 15 anos, teve a ver com a padronização des-
sa feminilidade que conhecemos a partir desse rito de passagem que comumente é
associado ao feminino. Assim como Aurélia, que também pediu, como presente de
aniversário de 15 anos, um dia de princesa como o que viveu Carla. As fotos desse
“momento de princesa”, nos dois casos, foram muito divulgadas nas redes sociais
das duas jovens, conquistando muitas curtidas e comentários, o que foi motivo de
prazer e poder, criando uma rede de amizades que se ampliou nesse momento na
escola, fornecendo um outro lugar na escola e entre as jovens.
Shirley Sales (2018b, p. 117) afirma que as condutas juvenis “passam pelo
julgamento das/os outras/os internautas que avaliam constantemente a conduta
dos pares, em um ciclo permanente de práticas de governo de si e das/os outras/os”.
A internet é um território de existência e as fotos selfies possibilitam que as jovens
façam contato, interajam, se expressem e compartilhem o conhecimento acerca de
si e de como é ser mulher. Ao experimentarem o poder que a imagem representa,
estão construindo e compartilhando saberes sobre beleza, sedução, comportamen-
to, roupas, acessórios, enfim, saberes que dialogam com outros espaços de apren-
dizagem do que é ser mulher jovem, como cinema, televisão, revistas, publicidade.
Carla está atenta ao que se passa em suas redes, o que pode ser observado
por meio de memes
7
que posta em sua timeline. Essa constatação de que há um
código de aceitação que também circula na internet foi percebido por Carla. Ela,
entendendo que há uma certa hegemonia nas imagens publicadas, nas mensagens
postadas, utiliza esse conhecimento como balizador de sua figura on-line. Esse
tipo de aprendizagem que as redes sociais ensinaram à Carla possibilitou que ela
se aventurasse em testar sua aceitação ou popularidade por meio de memes que
necessitam de respostas sobre ela. O código da popularidade também passa pela
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aceitação do que é postado, mesmo que não seja imagem da própria pessoa. Ser
popular também passa por postar bons memes, estar atenta às novidades musicais
e das celebridades da TV e da internet.
Eu gosto muito do BTS
8
e na escola não é todo mundo que gosta. Eu sigo a página deles e
tudo que existe para saber mais sobre eles. Às vezes quem gosta das coisas que eu posto
nem é gente daqui, porque aqui na minha sala o povo gosta mais de funk (Carla).
Carla diz que o grupo musical do qual é fã não é o mesmo da maioria de suas/
seus companheiras/os da escola, entretanto, na internet, esse tipo de postagem
confere a ela popularidade e aceitação. Ser popular e aceita tem sentido de per-
tencimento e permanência na internet, nas redes sociais e isso modifica as formas
como cada uma das jovens se movimenta no espaço virtual, de maneira que elas se
tornam espelho daquilo que admiram.
Sustentar uma imagem na internet significa lidar com a vigilância, que, de
acordo com Foucault (2009), tem ligação com a vontade de saber: é uma forma de
dispositivo muito utilizada pela sociedade. A vigilância em torno da sexualidade
funciona como um dispositivo, ou seja, diz do “prazer da verdade do prazer, prazer
de sabê-la, exibi-la, descobri-la, de fascinar-se ao vê-la, secretamente, desalojá-la
por meio de astúcia; prazer específico do discurso verdadeiro sobre o prazer” (FOU-
CAULT, 2009, p. 81). O dispositivo da sexualidade auxilia no controle dos corpos e
na manutenção de uma ordem sobre o corpo, o desejo e as vontades. As falas das
participantes apontam que o desejo e a vontade de postar passam pelo julgamento
da outra em torno da “foto perfeita”. “Às vezes eu acho que a selfie ficou perfeita,
ficou bonita, aí eu vou perguntar para as minhas amigas se ‘tá boa mesmo’, se elas
falarem que está boa, eu vejo que a foto está mesmo perfeita” (Laura). Os critérios
de beleza são construídos e compartilhados nesse grupo, pela aprovação ou não das
fotos, de modo que vão ensinando umas às outras o que é ser uma mulher jovem
bonita. Sobre essa rede estabelecida entre elas, Vânia conclui: “Eu acho importante
a opinião das outras pessoas sobre as minhas fotos porque às vezes elas veem coisas
que talvez eu não veja”.
Podemos sugerir que as redes sociais são locais de visibilidade e também de dis-
curso no nosso cotidiano. Fazer-se mulher passa, de maneira mais ou menos intensa,
por se produzir como tal, espelhar-se como tal, entender-se como tal, discursivamen
-
te, entendendo-se como tal. Com isso, queremos dizer que não há uma identidade ou
subjetividade fixa nessa construção de ser mulher e ser jovem. Não somente Carla,
mas também as outras mulheres incessantemente estão construindo-se e descon
-
truindo-se de acordo com os discursos que lhes afetam. Um exemplo dessa afetação
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foi a transformação de Kátia ao entrar em um relacionamento sério, tomando como
verdade o discurso da fidelidade e do amor eterno, referendado também por Diana,
que, desde o início de nossa pesquisa, já possuía um anel de compromisso no dedo
anelar direito. À medida que assumiram o “relacionamento sério”, rapidamente, al
-
teraram o status nas suas páginas para “namorando”, assim como modificaram seus
comportamentos diminuindo as postagens, dando preferência às imagens em que
estavam com os namorados. As subjetivações pelas quais passou Laura, ao mudar
de escola e ingressar no Ensino Médio em uma escola maior, também foram para
as suas páginas, com fotos de novas amizades e espaço de circulação. As questões
ligadas ao corpo gordo que antes não apareciam em suas falas e que muito nos cha
-
mavam a atenção passaram a fazer parte de um discurso mais presente:
Laura: (...) você viu que a Kátia ‘tava falando que ‘tá gorda?
Entrevistadora: Claro que ouvi! [risos]. Pensei em mim na hora!
Laura: Já pensou se a Kátia for gorda? Se ela for gorda, nem sei o que eu sou!
Kátia: E eu engordei mesmo, gente! Desde que comecei com o Iuri, eu aumentei cinco quilos.
Em nossos encontros anteriores, Laura não sinalizava nenhum incômodo ou
fazia qualquer referência à obesidade. Nas redes socais também não se colocava
como pessoa gorda. Isso nos faz pensar que os dispositivos de feminilidade aciona-
dos por padrões podem estar capturando Laura no entendimento de que um corpo
bonito é um corpo magro. Na sua fala encontramos a sedução que um corpo magro
desperta em nossa sociedade. Ela se utiliza da comparação ao corpo magro de Ká-
tia como referência para o corpo obeso dela. Esse jogo de sedução que nos enquadra
e nos diminui, embora sejamos grandes em tamanho, também captura Kátia, que
não deseja ficar maior do que já está, mesmo sendo esse ganho de peso resultado da
calmaria de um namoro que vem acompanhado de lanches e mais comida junto ao
namorado. Subjetivamo-nos de maneira mais ou menos intensa tendo os dispositi-
vos de feminilidade como componentes nesta tarefa que é tornar-se mulher jovem.
Continuidade e descontinuidade no dispositivo da feminilidade
Continuidade e descontinuidade foram aspectos que marcaram as redes es-
tabelecidas entre as jovens participantes, demonstrando que o gênero não é uma
construção estável, “mas uma identidade tenuamente constituída no tempo - iden-
tidade instituída por meio de uma repetição estilizada de certos atos” (BUTLER,
2019, p. 213-214, grifos da autora). Ao mesmo tempo em que determinadas ações
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eram contínuas entre elas, como as poses que se repetiam nas selfies, outras mar-
cavam uma descontinuidade como, por exemplo, a relação com a sexualidade, rom-
pendo com a associação gênero/heterossexualidade. Mas trabalhar com continui-
dade e descontinuidade no dispositivo da feminilidade nos remete ao arcabouço
foucaultiano e à sua influência nos estudos de gênero e sexualidade, principal-
mente no que se referem à perspectiva histórica da construção desses conceitos e,
consequentemente, ao rompimento com a ideia de essência.
A descontinuidade aparece no trabalho de Michel Foucault (1986, 1988, 2007),
sendo considerada um dos eixos fundamentais quando se dedica à análise histórica.
Para ele, a história é descontinuidade. Nesse sentido, a descontinuidade passa a ser
a estratégia utilizada para descontruir os essencialismos com que lidamos no nosso
tempo, ao mesmo tempo que serve para ironizar a ideia de origem e, por último,
para desestabilizar os lugares de verdade e suas relações de saber-poder no discurso
do conhecimento, visto que a história é marcada pelas rupturas e descontinuidades.
Na sua análise histórica, Michel Foucault criticava a história por sua insistência
pela continuidade, pela crença em uma origem essencial que subsiste ao tempo e
que comanda os destinos dos sujeitos. Um pensamento que contribuiu para a for
-
mulação das teorias de gênero, retirando-o de um modelo essencial e aproximando
suas análises à necessidade de uma postura que considere a sua historicidade como
descontinuidade, sobretudo em relação a uma certa temporalidade social.
Se os gêneros são instituídos por atos descontínuos, essa ilusão de essência não é nada
mais além de uma ilusão, uma identidade construída, uma performance em que as pessoas
comuns, incluindo os próprios atores sociais que as executam, passam a acreditar e perfor-
mar um modelo de crenças. Se a base da identidade de gênero é a contínua repetição esti-
lizada de certos atos, e não uma identidade aparentemente harmoniosa, as possibilidades
de transformação dos gêneros estão na relação arbitrária desses atos, na possibilidade de
um padrão diferente de repetição, na quebra ou subversão da repetição do estilo mobilizado
(BUTLER, 2019, p. 214).
A citação de Butler (2019) reforça a ideia de gênero como “instituído por atos
descontínuos”, ao mesmo tempo em que afirma a necessidade de uma certa conti-
nuidade para a construção da “identidade de gênero”. Podemos pensar que a des-
continuidade e a continuidade marcam a construção dos gêneros e das identidades
de gênero. As participantes performam e colocam em circulação um “modelo de
crenças” em torno do que é ser mulher jovem, sobretudo porque falam de si em meio
à metodologia do grupo focal, em que a fala de uma se encontra com as demais.
Num dos encontros que tivemos, Amélia “revela-se” grávida, esperando sua
filha, Emília, para janeiro de 2019. Falar de si agora é falar do processo de ser mãe:
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Amélia: ‘Tô ansiosa, ‘tô com medo, ‘tô com tudo. Mas também é uma sensação muito boa,
às vezes eu me estresso muuuitooo (sic), mas agora consigo me controlar mais um pouco; é
porque tem muito hormônio.
Entrevistadora: Daqui uns dias a Emília vai estar aqui com a gente [na escola] correndo com
quatro anos. Nem acredito, parece que sou avó, porque te vi aqui, Amélia, com quatro anos.
Amélia: Tem horas que nem eu acredito.
A gravidez de Amélia a desloca dentro da própria juventude e confere a ela um
lugar outro que não seja somente de jovem, estudante, compromissada, periférica,
negra. Essa descontinuidade é marcada pelo tempo, ou seja, só é descontinuidade
porque, social e discursivamente, não se espera gravidez na adolescência, construí-
da como um problema. Ao mesmo tempo que marca sua descontinuidade no grupo,
visto que se trata de um grupo de mulheres jovens, Amélia também anuncia um
futuro, reforça um desejo nas demais participantes, inclusive na entrevistadora,
que, rapidamente, estabelece uma identidade de se “sentir avó”, marcando uma
continuidade com Amélia a partir da escola, do seu vínculo com entre educação e
família. Após o nascimento da criança, ela também se transforma em mãe da Emí-
lia e isso fica muito evidente nas muitas imagens da filha que divulga nas redes
sociais. A sua nova identidade como mãe é construída, performativamente, nas
redes sociais, junto com as imagens da filha, com roupas femininas, com acessórios
femininos, enfim, como se estivesse “brincando” de boneca, possivelmente como
aprendera desde muito jovem. Amélia também vem construindo a imagem de Emí-
lia na internet: divulga fotos, faz postagens, declarações e publicações sobre a filha.
A criança e o discurso de maternidade conferem à Amélia uma nova subjetividade:
a de mãe jovem. O discurso, além de uma prática de produção de sujeitos, é tam-
bém uma prática social que controla a produção, a circulação e a apropriação dos
enunciados, como explora Foucault (1986). Nas palavras do autor, discursos são:
[...] práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam. Certamente os discur-
sos são feitos de signos; mas o que fazem é mais que utilizar esses signos para designar
coisas. É esse mais que os torna irredutíveis à língua e ao ato da fala. É esse “mais” que é
preciso fazer aparecer e que é preciso descrever (FOUCAULT, 1986, p. 56).
Discursiva e performativamente, Amélia vai tornando-se mãe. A gravidez, na
medida em que ocorre, também se transforma em investimento nas redes sociais.
Amélia passa a postar imagens de si na transformação do corpo e, assim, vai se
subjetivando como mulher jovem grávida para, depois, investir em imagens de si
como mulher, negra, jovem mãe. Para isso, é fundamental imagens da filha segui-
da de mensagens como “Amor que não se mede”, “filha”, “apaixonada”. A partir de
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Foucault, podemos pensar que Amélia não constrói sentidos de ser mãe de maneira
livre, mas ela é subjetivada como mãe a partir de sistemas de restrição e incitação
a ser mãe, como aquela que ama incondicionalmente, que está apaixonada pela
filha, atos que se repetem. O saber-poder de ser mãe em sua positividade vai pro-
duzindo verdades para Amélia mãe.
A ação de postar imagens da filha nos possibilita problematizar as redes sociais
em processos de subjetivação. Emília está crescendo e sendo educada por meio de
imagens que são divulgadas de si mesma, ainda que não tenha consciência disso.
O macacão que Amélia escolhe para vestir Emília, com a estampa do Instagram,
demonstra que a inserção nesse mundo conectado se inicia antes mesmo que a pessoa
tenha escolha para dele participar. Agora Amélia também é mãe: a única mãe do
grupo. Problematizando sobre gravidez e juventude, Helena Altmann (2007) destaca
a questão do biopoder de Michel Foucault como mecanismo de controle e dominação
dos corpos. Altmann (2007) faz uma análise em que nos coloca em contato com o senso
comum para compreender que circula na sociedade a ideia de que uma jovem grávida
encerra possibilidades na vida. Partindo dessa questão, problematiza a ideia de que
tanto a juventude quanto a gravidez são construções sociais que sofrem mudanças ao
longo da história. Não é natural e essencial que a mulher queira ser mãe. Entretanto,
o que observamos com Amélia e as demais jovens é que essa condição alterou seu
lugar no grupo. A mudança de Amélia dentro do grupo e também das outras jovens
em relação a ela, nos faz olhar para a gravidez e a maternidade não somente como
fenômenos biológicos, mas sobretudo culturais, históricas, sociais e afetivas.
Esse entendimento de que Amélia teve sua subjetividade alterada com a che-
gada de Emília, outra mulher que se apresenta nesta pesquisa, nos deixa perceber
que esse acontecimento trouxe elementos para o discurso de Amélia, até então
ausentes. Quando ela diz que “tá ansiosa, tá com medo e as outras escutam com
atenção e respeito, isso vai dando um sentido de mulher não só para Amélia, mas
para todas, inclusive para as leitoras mulheres deste artigo. Os discursos de mater-
nidade, em nossa sociedade, vão constituindo o lugar do feminino, de tal maneira
que é “esperado” que mulheres tenham filhos fazendo o discurso de maternidade
ser uma prática social que só existe como ato. Daí o sentimento de completude que
é experimentado por aquelas (não todas) que se descobrem grávidas e o sentido de
incompletude quando não se consegue engravidar. A maternidade está inscrita em
um tipo de saber-poder que produz mulheres grávidas e não grávidas, que divide,
inclui e exclui, que só pode ser entendido em meio a essas relações entre os gêneros
e no interior do gênero feminino.
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Esse discurso circulante no grupo contribui para a construção do gênero entre
mulheres que estão vivenciando a maternidade de Amélia de perto. No interior do
próprio gênero, vão se entendendo como mulheres que podemos escolher entre ma-
ternar ou não. Ainda no interior do gênero, formam uma rede que vai fornecendo
sentidos para a gravidez, a juventude e a escola, uma rede que acolhe e rechaça,
que constrói desejo de repetição e possibilidades de outros caminhos, enfim, reforça
o entendimento de gênero como resultado de atos descontínuos e das performativi-
dades que estão presentes nesses elementos.
Amélia traz muitos sentidos para o dispositivo da feminilidade que circula no
grupo e atravessa de maneira contundente a todas as jovens mulheres participan-
tes. A história de gravidez que Amélia está construindo faz todas elas se olharem
e se pensarem e, mais do que isso, a criarem expectativas em torno de projetos de
casamento e filhos, sem a garantia de cumprimento, mas Amélia parece anunciar o
“destino manifesto” das mulheres, como se fosse algo homogêneo. Esses projetos em
torno do casamento e da maternidade estão inscritos no dispositivo da feminilidade
operando em todas as participantes na forma como planejam suas histórias de vida
em relação a outras mulheres, a outras histórias que conhecem, que compartilham
e que passam a desejar. No entanto, o imponderável é parte desse processo, não ga-
rantindo que as histórias se repitam. O fato de não se repetir não significa que não
exista, mesmo que tenha sido uma verdade momentânea, existe enquanto possibi-
lidade, enquanto desejo socialmente valorizado, gerado por um discurso que parece
verossímil para um determinado momento da vida. A gravidez de Amélia aciona,
em todas as participantes do grupo, o dispositivo da feminilidade que permite a
cada uma delas se olhar através de Amélia e sua gravidez, principalmente Kátia
e Diana, que acolheram a gravidez de maneira mais próxima. Michel Foucault
(2007, p. 16-17) reflete sobre esses processos de transformação dos sujeitos:
[...] práticas reflexivas e voluntárias pelas quais os homens não somente se fixam regras
de conduta, mas procuram se transformar a si próprios, se modificar em seu ser singular
e fazer de sua vida uma obra que sustente certos valores estéticos e responda a certos
critérios de estilo.
E quais não foram os acontecimentos que vieram e mudaram os modos de pen-
sar, como as novidades, como práticas históricas, irromperam a linearidade de um
destino? Esses acontecimentos afetam as formas com as quais nos subjetivamos,
forçando-nos a não sermos mais as mesmas ou os mesmos. Essas regras de existên-
cia que damos a nós mesmas/os vão ganhando contornos morais e éticos que fazem
parte do processo de subjetivação. Foucault (1994) entende que essa ética como
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cuidado de si existe porque cada uma/um de nós reflete sobre si mesma/o de acordo
com regras que vão dando contorno às existências, na medida em que o “cuidado
de si atravessou verdadeiramente todo o pensamento moral” (FOUCAULT, 1994,
p. 262). Essa relação existente entre moral e ética, que atravessa a constituição dos
sujeitos, passa, inevitavelmente, pela presença das/os outras/os. Assim, é potente
perceber que a/o outra/o é alguém que contribui para que sejamos o que somos,
uma vez que desestabiliza nossas certezas. O sujeito ético entende que dar sentido
à própria vida significa trabalhar sobre si mesmo e interagir com os demais; cuidar
de si é uma maneira de enfrentar as opressões e de se posicionar em resistência
contra os poderes políticos que ameaçam novas formas de subjetividade.
Questionar-se eticamente frente às desigualdades e aos preconceitos do mun-
do, não aceitar a vida em sua forma limitada e estreita, não se conformar, assim
entendemos a estética da existência presente no pensamento de Michel Foucault e
que nos orienta na maneira como problematizamos os posicionamentos de Aurélia,
por exemplo. Ela se descobre com uma jovem mulher negra, que questiona a ausên-
cia de variedade em cosmética para o seu tipo de pele:
É difícil encontrar coisas para minha pele, por exemplo. Até o filtro solar é para pele de pessoas
brancas, mas eu uso mesmo assim. Algumas pessoas pensam que, por eu ser negra, não
preciso usar filtro solar, mas eu também me queimo! (Aurélia).
Cada uma dessas jovens traz as demais, as falas de cada uma delas reverbe-
ram nas outras, fazem com que se vejam e se revisitem. Elas existem como parte
desta investigação, nas relações que estabelecem entre si nas suas performativida-
des de gênero, em que características biológicas são descartadas no entendimento
de como nos tornamos mulheres, homens ou nenhum dois (BUTLER, 2018).
A feminilidade e seu dispositivo estão em atuação nessa construção e atuam
principalmente no entendimento de uma “identidade primária” ou original que
tende a ser entendida por uma grande maioria de pessoas como estável. Na relação
entre nós, que somos iguais, vamos construindo nosso gênero. O dispositivo da
feminilidade nos une e é acionado na construção do gênero e no interior do próprio
gênero, é algo que nos precede e faz parte de uma norma cultural a que estamos
expostas. Judith Butler (2018, p. 71) nos diz que:
O fato de que as normas agem sobre nós implica que somos suscetíveis à sua ação, vulne-
ráveis a uma certa nomeação desde o início. E isso se inscreve em um nível que antecede
qualquer possibilidade de volição. [...] A performatividade de gênero não caracteriza apenas
o que fazemos, mas como o discurso e o poder institucional nos afetam, nos restringindo e
nos movendo em relação ao que passamos a chamar de a nossa “própria” ação.
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Cada existência pode ser percebida como uma criação discursiva, uma inven-
ção dos sujeitos na movimentada tarefa que é constituir-se. As normas vão sendo
incorporadas pelo discurso, que existem antes mesmo de habitarmos este mundo,
ou seja, já chegamos ao mundo organizado discursivamente. Entretanto, a arte
de viver nos desafia e possibilita que alguns acontecimentos se tornem fortes o
bastante para mudar uma trajetória, um pensamento, uma forma de ver a vida.
Essas subjetivações dão suporte aos dispositivos de feminilidade que cons-
tituem o sujeito em espaços de ação. Dispositivo de feminilidade é um conceito e
investimento neste trabalho, tendo como fundamento o conceito de dispositivo de
Michel Foucault (1988), que nos indica haver uma rede que interliga vários aspec-
tos da vida social, agindo em cada um de nós, individualmente ou em conjunto, de
maneira a interferir na ação dos outros sobre mim e de mim sobre mim mesmo,
acionando os campos de saber, de poder e subjetividade. Fabiana de Amorim Mar-
cello (2004), abordando a presença do dispositivo na experiência da maternidade,
faz uma discussão a respeito do conceito que foi muito útil para a escrita deste
trabalho. Nas palavras da autora:
Já que Foucault se refere tão explicitamente a elementos tais como discursos, organizações
arquitetônicas, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, podemos entender que
as práticas discursivas e não-discursivas contribuem para a construção do dispositivo e, ten
-
do estes presentes, é possível afirmar ainda que o conceito em questão reúne as instâncias
do “poder e [do] saber numa grade específica de análise” (MARCELLO, 2004, p. 200).
A emergência do dispositivo da feminilidade pôde ser vista na relação entre
as jovens mulheres e suas muitas selfies publicadas nas redes sociais. Além disso,
também se apresentava como uma produção cotidiana de imagens feitas por meio
de celulares como parte da realidade de cada uma delas e que faz parte das suas
relações interpessoais. Apropriam-se do discurso, da imagem e da representação do
poder de uma foto e assim vão construindo suas subjetividades narradas on-line.
Nas narrativas de si, em que cada história é vista como uma forma de se colocar
frente ao mundo com suas pressões, opressões e naturalizações, fomos buscando
nossas formas de entendermos, por meio de nossas palavras, fomos construindo
nossos discursos. Foucault (2007, p. 92) assim diz:
Trata-se, então, de constituir-se e reconhecer-se enquanto sujeito de suas próprias ações,
não através de um sistema de signos marcando poder sobre os outros, mas através de uma
relação tanto quanto possível independente do status e de suas forças exteriores, já que ela
se realiza na soberania que se exerce sobre si próprio.
É o que somos capazes de construir discursivamente que vai constituindo nos-
sa subjetividade. Foucault trabalha com o que vem à tona e, quando direcionamos
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nossos olhares para as mulheres jovens e as maneiras como constroem suas pági-
nas, entendemos que elas estão dando vidas às suas vivências, estão construindo-
-se discursivamente. E isso nunca é igual, assim como as juventudes também não
são. As subjetividades dessas pessoas possivelmente passam pelas imagens que
também as constituem.
Por fim, queremos afirmar que, nessa problematização em torno das imagens
selfies e as constituições de subjetividades em mulheres jovens, os dispositivos vão
atuando sobre elas, modificando e forjando outras no seu interior. Ao mesmo tempo
que os dispositivos apresentam linhas de visibilidade, de força e de subjetivação, eles
também apontam descontinuidades nas fissuras e brechas possíveis, sobretudo na
potência de encontros como realizamos nos grupos focais, investindo na problemati
-
zação e apostando nas transformações advindas das falas de cada uma delas e nas
possibilidades de colocar sob suspeita suas formas de ser, pensar e estar no mundo.
Notas
1
Os nomes das participantes são fictícios. Buscamos, assim, preservar o anonimato em torno dessas mulhe-
res que, juntas, construíram esta pesquisa com suas falas, que aparecerão sempre em itálico para diferen-
ciar das demais citações.
2
Essas idades se referem ao ano de 2018.
3
Emojis são figurinhas que representam expressões.
4
Maria Venture é uma youtuber e influenciadora digital com quase um milhão de seguidores.
5
Mari Maria é também uma youtuber e influenciadora digital com mais de 1.200.000 seguidores e seguido-
ras no Instagram e 700 mil inscritos no seu canal do YouTube.
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Status do WhatsApp é uma ferramenta do aplicativo que permite a postagem de uma foto, frase, poesia,
para ficar ativa durante 24 horas, permitindo ao usuário e a usuária saber quem visualizou a publicação.
Esse recurso, oriundo do SnapChat, também está disponível no Instagram e Facebook.
7
Memes, termo oriundo do grego que significa imitação, são piadas, ou formas divertidas de falar sobre
determinado assunto que se tornou muito popular na internet.
8
BTS ou Bangtan Boys é um grupo musical sul-coreano composto por homens jovens que se tornou um
fenômeno mundial no ano de 2013.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Este artigo está licenciado com a licença: Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
Nathalye Nallon Machado, Anderson Ferrari
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