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Práticas de cuidado de si no isolamento social
Practises of self care in the social isolation
Prácticas autocuidado en aislamiento social
Fernanda Antônia Barbosa da Mota*
Heraldo Aparecido Silva**
Resumo
Este artigo tem como objetivo reetir sobre a contribuição do cuidado de si para a ressignicação da prática
docente no panorama atual de isolamento social ocasionado pela pandemia do coronavírus. Traremos algumas
noções acerca das práticas do cuidado de si dos períodos helenístico e romano dos séculos I e II d.C., para reetir
sobre o isolamento social e explicitar como as referidas práticas podem contribuir para a saúde de si, mesmo no
momento em que a biopolítica age sobre os corpos docentes como se fossem máquinas, para ampliar as suas
aptidões e extorquir suas forças. Para reetir sobre a estética da existência e o cuidado de si como um modo de
dar contornos éticos à existência de uma forma bela, utilizamos Foucault (2011, 2018), Veiga-Neto (2003, 2016),
Hadot (2004), Gallo (2008, 2013), Pagni (2011, 2012), entre outros. As práticas de si podem contribuir para lidar
melhor com a situação pandêmica, pois somente com o cuidado de si podemos cuidar do outro, ao proporcionar
melhores condições físicas e mentais para o enfrentamento de um contexto adverso no qual as novas metodolo-
gias educacionais foram subitamente inseridas na vida dos docentes, que tiveram que se reinventar no cenário
contemporâneo de crise.
Palavras-chave: cuidado de si; isolamento social; estética da existência.
* Graduada em Pedagogia. Mestrado em Educação e doutorado em Educação pela Universidade Federal do Piauí
(UFPI). Atualmente é professora efetiva da UFPI, atuando principalmente nos seguintes temas: Formação de Profes-
sores, Prática Pedagógica, Formação Humana, Filosoa da Educação e Infância, Educação e Filosoa, Filosoa France-
sa Contemporânea (Deleuze e Foucault), Filosoa da Diferença, Estética da existência, Subjetivação e Práticas de si.
Orcid: http://orcid.org/0000-0001-5991-100X. E-mail: fabmota13@yahoo.com.br
** Professor Associado na UFPI, vinculado ao Departamento de Fundamentos da Educação - DEFE/CCE e ao Programa
de Pós-Graduação em Filosoa - PPGFIL/CCHL (UFPI). Doutor em Filosoa pela Universidade Federal de São Carlos
(UFSCAR). Temas de pesquisa: losoa da educação; losoa prática; história da losoa; pragmatismo; neopragma-
tismo; losoa contemporânea, losoa e literatura; histórias em quadrinhos; cultura pop; desenhos animados; do-
cumentários; seriados; lmes; experiência e cultura (Walter Benjamin); subjetivação e práticas de si (Michel Foucault);
linhas de segmentaridade e literatura menor (Gilles Deleuze e Félix Guattari); narrativa e redescrição (Richard Rorty);
desleitura e literatura sapiencial (Harold Bloom); arte do romance, estética, cultura e existência (Milan Kundera); Ri-
chard Shusterman (somaestética e cultura pop). Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5533-0726. E-mail: heraldokf@
yahoo.com.br
Recebido: 26/10/2020 – Aprovado: 12/08/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i3.11784
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Abstract
This article aims to reect on the contribution of self-care to the reframing of teaching practice in the current pa-
norama of social isolation caused by the coronavirus pandemic. We will bring some notions about the self-care
practices of the Hellenistic and Roman period of the 1st and 2nd centurys d.C., to reect on the social isolation
and to explain how these practices can contribute to the subjects’ health of themselves at the moment when
biopolitics acts on teaching sta as if they were machines, to expand their skills and extort their strength. To re-
ect on the aesthetics of existence and self-care as a way of giving ethical outlines to existence in a beautiful way,
we used Foucault (2011, 2018), Veiga-Neto (2003, 2016), Hadot (2004), Gallo (2008, 2013), Pagni (2011, 2012),
among others. Self-practices can contribute to better deal with the pandemic situation, since only with self-care
can we take care of the other, by providing better physical and mental conditions to face an adverse context in
which the new educational methodologies they were suddenly inserted into the lives of teachers who had to
reinvent themselves in the contemporary crisis scenario.
Keywords: self care; social isolation; aesthetics of existence.
Resumen
Este artículo tiene como objetivo reexionar sobre la contribución del autocuidado al replanteamiento de la
práctica docente en el panorama actual de aislamiento social provocado por la pandemia de coronavirus. Apor-
taremos algunas nociones sobre las prácticas de autocuidado del período helenístico y romano de los siglos I y
II d.C., para reexionar sobre el aislamiento social y explicar cómo estas prácticas pueden contribuir a la salud de
los sujetos en el momento en que la biopolítica actúa sobre el profesorado como si fuera una máquina, para am-
pliar sus habilidades y extorsionar su fuerza. Para reexionar sobre la estética de la existencia y el autocuidado
como una forma de dar trazos éticos a la existencia de una manera hermosa, utilizamos a Foucault (2011, 2018),
Veiga-Neto (2003, 2016), Hadot (2004), Gallo (2008, 2013), Pagni (2011, 2012), entre otros. Las autoprácticas pue-
den contribuir a enfrentar mejor la situación pandémica, ya que solo con el autocuidado podemos cuidar al
otro, al brindar mejores condiciones físicas y mentales para enfrentar un contexto adverso en el que las nuevas
metodologías educativas se insertaron repentinamente en la vida de los docentes que tuvieron que reinventarse
en el escenario de crisis contemporáneo.
Palabras-clave: autocuidado; aislamiento social; estética de la existencia.
Introdução
O novo cenário de pandemia assola o mundo inteiro, inclusive o Brasil. É pre-
ciso ressaltar que não fomos preparados para o enfrentamento do isolamento so-
cial, o qual nos arrancou de nossas rotinas diárias, de convívio com a coletividade,
seja em casa, no trabalho ou em qualquer âmbito social, ou seja, um convívio que
nos constitui e que dá contornos à nossa existência. A importância do momento se
dá não somente no âmbito pessoal, mas sobretudo no profissional, de modo que
o cuidado com nossa saúde física e mental se torna imperioso para o desenvolvi-
mento de atividades diárias, mas que tiveram uma reconfiguração para atender as
necessidades do momento.
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Em meados de março de 2020, fomos submetidos ao isolamento social como
uma medida de enfrentamento em relação ao problema da disseminação do vírus.
Tal medida foi considerada necessária, inclusive para não colapsar o sistema de
saúde. A determinação, amplamente divulgada nos meios de comunicação e nas
redes sociais, era “fique em casa”, subentendendo-se para cuidar de si e do outro.
No entanto, esse cuidado se referia ao distanciamento para o não contágio, no en-
tanto, o cuidado a que nos referimos aqui é de nos mantermos no distanciamento,
mas com a mente sã.
Desse modo, buscamos refletir o atual momento em que vários professores se en-
contram com dificuldades de se adaptarem às novas exigências de ter que trabalhar
em ensino remoto sem treinamento adequado, com aulas improvisadas e tendo que
manter vida pessoal e profissional em um mesmo ambiente, algo preocupante para a
saúde mental. Assim, apontamos aqui as técnicas do cuidado de si, para o auxílio das
necessidades do momento. Recorremos às referidas práticas do cuidado de si dos pe-
ríodos helenístico e romano dos séculos I e II d.C., para compreensão de tais práticas,
traremos os ensinamentos do “Foucault professor”, assim denominado porque os tex-
tos do seu último domínio teórico, da chamada estética da existência, são constituídos
predominantemente pelas aulas ministradas pelo notório filósofo francês. Nessa pers-
pectiva, Muchail (2011, p. 10) observa que: “Ao pronunciar as aulas, Foucault-profes-
sor faz muitos outros falarem”. Essa miríade de outros autores engloba os filósofos da
antiguidade greco-romana, cujos ditos e escritos são reatualizados incessantemente
através de Foucault, como um convite para pensarmos nossas atitudes, práticas, re-
lações pessoais e interpessoais, além da própria provisoriedade da vida.
Diferentemente da filosofia moderna, que enfatiza a racionalidade científica,
a filosofia antiga se caracterizava pela ênfase nos ensinamentos sapienciais, vol-
tados para nortear a conduta de modo ético. Na contemporaneidade, em virtude
da excepcionalidade pandêmica, acreditamos que um retorno ao cultivo de hábitos
edificantes da espiritualidade filosófica antiga proporcionaria mais benefícios às
pessoas individual e coletivamente do que uma imersão ainda maior no mundo
claustrofóbico e densamente administrado das relações fugazes, hiperativas e tec-
nológicas. Nesse sentido, as práticas de si podem representar uma forma de gover-
no contrária aos preceitos políticos e biopolíticos de disciplina e controle dos nossos
corpos, que sujeita, dociliza e exaure as forças, causando exaustão e adoecimento.
Nas vertentes estoica e cínica, sob a forma de técnicas ou práticas de si, tais
ensinamentos acessíveis indistintamente a todas as pessoas podem ser definidos
como uma filosofia de vida, cujas relevância e utilidade podem ser corroboradas nos
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dias atuais. A retomada das práticas de si filosóficas faz-se necessária porque, no
momento atual de crise, acarretada pela pandemia mundial de coronavírus, torna-
-se ainda mais nítido o fato de que aquilo que afeta a saúde dos indivíduos também
afeta o desenvolvimento dos processos educativos com os quais os docentes estão
diretamente envolvidos. Desse modo, o caráter interdisciplinar da filosofia clássica
pode ser bastante útil para mediar algumas reflexões em torno da delicada relação
entre educação e saúde.
A biopolítica e o governo sobre o corpo
A partir da análise foucaultiana sobre o advento da noção de biopolítica no
final do século XVIII, podemos explicitar que o problema priorizado na presente
discussão não é especificamente sobre os efeitos deletérios de vida e morte acar-
retados pela pandemia. Trata-se, não obstante, de um problema mais abrangente
e sistemático, porque, conforme argumentamos, a crise pandêmica conferiu mais
visibilidade aos mecanismos de controle social sobre a vida, uma vez que as tênues
barreiras entre o espaço coletivo e o espaço individualizado foram transgredidas,
hibridizando lar e trabalho em um único ambiente de clausura. A percepção de uma
suposta proteção que muitos indivíduos encontravam no conforto de seus respec-
tivos lares, considerados como refúgios pessoais para amealhar novas forças para
a retomada laboral dos dias (ou tardes e noites) seguintes, foi solapada com uma
intrusão de sobrecarga de trabalho em casa. Este rompante na rotina cotidiana dos
sujeitos foi amenizada midiaticamente pela simpática expressão home office, que
induz ao equívoco de que todos os sujeitos protagonistas do trabalho docente têm
as condições ideais de um escritório em casa: acesso estável à internet, com pacote
de dados compatível ao seu efetivo uso laboral, estrutura e recursos materiais pró-
prios, treinamento específico para o uso eficaz de aplicativos compatíveis com seus
computadores, celulares ou notebooks e domínio das tecnologias de informação e
comunicação, para o decorrer exitoso das atividades remotas ou híbridas. Como po-
demos notar, não se trata de uma descrição compatível com a realidade brasileira e,
especificamente, no que concerne ao segmento educacional, parte considerável dos
docentes e discentes está inserida na situação de vulnerabilidade socioeconômica.
Inicialmente, quando acompanhamos a argumentação foucaultiana, depara-
mo-nos com a constatação de que, de tempos em tempos, a humanidade é afligida
por eventos letais e extemporâneos que modificam a tessitura das relações pessoais
e sociais, visto que as pandemias introduzem com imprevisibilidade milhares de
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mortes no sistema ordenado do maquinário das sociedades. Esse impacto é descrito
nos seguintes termos foucaultianos:
Doenças mais ou menos difíceis de extirpar, e que não são encaradas como as epidemias, a
título de causas de morte mais frequente, mas como fatores permanentes – e é assim que
as tratam – de subtração das forças, diminuição do tempo de trabalho, baixa de energias,
custos econômicos, tanto por causa da produção não realizada quanto dos tratamentos que
podem custar. Em suma, a doença como fenômeno da população; não mais como a morte
que se abate brutalmente sobre a vida – é a epidemia – mas como a morte permanente,
que se introduz sorrateiramente na vida, a corrói perpetuamente, a diminui e a enfraquece
(FOUCAULT, 2005, p. 290-291).
Nessa perspectiva, podemos afirmar também que o modus operandi a partir
do qual rotineiramente vivemos é consideravelmente afetado, porque grande parte
da população, desnorteada pelo medo da morte, suspende indefinidamente suas
atividades nos diversos setores produtivos. Em termos ligeiramente coloquiais, po-
demos descrever a referida situação como um descontrole de corpos, um frenesi de
corpos ou uma generalizada apatia de corpos. O uso proposital de tais expressões
pode ser elucidado a partir do prisma foucaultiano.
Desse modo, a partir da distinção estabelecida originalmente pela análise de
Foucault (1988) acerca do poder político exercido sobre a vida, temos uma anáto-
mo-política e uma biopolítica.
Concretamente, esse poder sobre a vida desenvolveu-se a partir do século XVII, em duas
formas principais; que não são antitéticas e constituem, ao contrário, dois polos de de-
senvolvimento interligados por todo um feixe intermediário de relações. Um dos polos, o
primeiro a ser formado, ao que parece, centrou-se no corpo como máquina: no seu adestra-
mento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo
de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controle eficazes e econô-
micos — tudo isso assegurado por procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas:
anátomo-política do corpo humano. O segundo, que se formou um pouco mais tarde, por
volta da metade do século XVIII, centrou-se no corpo-espécie, no corpo transpassado pela
mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos
e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade, com todas as condições
que podem fazê-los variar; tais processos são assumidos mediante toda uma série de inter-
venções e de controles reguladores: uma biopolítica da população. As disciplinas do corpo
e as regulações da população constituem os dois polos em torno dos quais se desenvolveu a
organização do poder sobre a vida (FOUCAULT, 1988, p. 131).
Em ambos os conceitos, de anátomo-política e de biopolítica, podemos verificar
que a centralidade da noção de corpo serve para compreender de modo mais apro-
fundado as sutilezas e as crueldades das sociedades modernas e contemporâneas,
bem como de suas políticas para o governo dos corpos. Assim, em linhas gerais, o
poder sobre a vida é exercido em duas vertentes interligadas: em um primeiro mo-
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mento, o corpo é disciplinado para desempenhar funções socialmente produtivas,
através de técnicas criadas para a docilização dos corpos; em um segundo momen-
to, o corpo é controlado biologicamente tanto para durar mais ou menos quanto
para gerar mais ou menos outros corpos ou, inversamente, para não gerar de modo
algum. O poder disciplinar da anátomo-política se certifica de preparar os corpos
para serem adequadamente integrados ao maquinário do sistema econômico ca-
pitalista, exercendo a dupla função de trabalhador e consumidor. Já a biopolítica
exerce um controle biológico sobre os corpos, determinando os limites e a qualidade
de vida, o controle de natalidade e a longevidade populacional.
Este bio-poder, sem a menor dúvida, foi elemento indispensável ao desenvolvimento do ca-
pitalismo, que só pôde ser garantido à custa da inserção dos corpos no aparelho de produção
e por meio de um ajustamento dos fenômenos da população aos processos econômicos. Mas,
o capitalismo exigiu mais do que isso, foi-lhe necessário o crescimento tanto de seu reforço
quanto de sua utilizabilidade e sua docilidade; foram-lhe necessários métodos de poder capa-
zes de majorar as forças, as aptidões, a vida em geral, sem por isto torná-las mais difíceis de
sujeitar; se o desenvolvimento dos grandes aparelhos de Estado como instituições de poder,
garantiu a manutenção das relações de produção, os rudimentos de anátomo e de biopolítica,
inventados no século XVIII como técnicas de poder presentes em todos os níveis do corpo
social e utilizadas por instituições bem diversas (a família, o Exército, a escola, a polícia, a
medicina individual ou a administração das coletividades), agiram no nível dos processos
econômicos, do seu desenrolar, das forças que estão em ação em tais processos e os sustentam;
operaram também, como fatores de segregação e de hierarquização social, agindo sobre as
forças respectivas tanto de uns como de outros, garantindo relações de dominação e efeitos
de hegemonia; o ajustamento da acumulação dos homens à do capital, a articulação do cres-
cimento dos grupos humanos à expansão das forças produtivas e a repartição diferencial do
lucro, foram, em parte, tornados possíveis pelo exercício do bio-poder com suas formas e pro-
cedimentos múltiplos. O investimento sobre o corpo vivo, sua valorização e a gestão distribu-
tiva de suas forças foram indispensáveis naquele momento (FOUCAULT, 1988, p. 132-133).
Como argumentamos anteriormente, a provisória saída dos sujeitos da comple-
xa engrenagem social, propiciada à revelia de nossos desejos e vontades pela situação
pandêmica atual, possibilita um olhar diferenciado sobre muitos aspectos da vida.
Nesse sentido, as práticas de si podem representar uma forma de governo contrária
aos preceitos políticos e biopolíticos de disciplina e controle dos nossos corpos.
Governar é agir sobre si mesmo, em vistas de se posicionar criticamente diante de quais-
quer ações de condução. Inexistem relações de governo que não sejam aquelas exercidas
sobre sujeitos livres, que dispõem de um campo plural de possibilidades e alternativas.
Essas alternativas se estendem, desde a aceitação de uma determinada condução até a
constituição de contracondutas ao modo como ela é exercida. As contracondutas são eleva-
das a novo ponto de partida, diante das diferentes relações de governo; elas designam um
cuidado político de si, porque o sujeito é constituído como tal em virtude da relação política
do governo de si mesmo em face do governo dos outros (CANDIOTTO, 2010, p. 161).
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Nessa perspectiva, a noção de governo engloba não somente nossas ações e
relações diretamente ligadas ao efetivo exercício político, mas também tudo aquilo
que nos afeta e que afetamos: família, estudos, trabalho, afetividade, etc. Isso por-
que, no seu aspecto político, o conjunto das técnicas do cuidado de si encerra uma
medida alternativa no âmbito do jogo estratégico de forças entre indivíduos livres,
ao proporcionar modelos diferentes de constituição e governo de si, denominadas
por Foucault (1995) como contracondutas ou formas de resistência do sujeito. No
âmbito especificamente educacional, é importante destacar a relevância da inser-
ção de práticas docentes heterodoxas ou inovadoras, como a retomada das práticas
de si na contemporaneidade, pois, embora tal proposta não seja vista com serenida-
de, é necessário “[...] pensar práticas de liberdades nos meios escolares e fora deles,
em um tempo em que os mecanismos da biopolítica exercem um controle quase
absoluto” (GALLO, 2013, p. 356).
A prática docente no contexto da pandemia
O isolamento social causado pela pandemia do novo coronavírus trouxe para
o centro do debate educacional o ensino por meio de plataformas virtuais. As ati-
vidades docentes, durante a pandemia, tiveram que ter continuidade, só que de
modo remoto. Diante da excepcionalidade da situação, considerada calamitosa em
virtude do sistemático agravamento e da abrangência verificados em escala mun-
dial, o Ministério da Educação (MEC) publicou, no Diário Oficial da União, na data
de 17 de março de 2020, a Portaria n. 343, que dispunha sobre a substituição das
aulas presenciais por aulas em meios digitais, com período de duração indefinido,
pois estabelecia que a substituição perduraria enquanto persistisse a pandemia de
Covid-19. Assim, em conformidade com o artigo 1º, o MEC resolveu:
Autorizar, em caráter excepcional, a substituição das disciplinas presenciais, em andamen-
to, por aulas que utilizem meios e tecnologias de informação e comunicação, nos limites
estabelecidos pela legislação em vigor, por instituição de educação superior integrante do
sistema federal de ensino, de que trata o art. 2º do Decreto nº 9.235, de 15 de dezembro de
2017 (BRASIL, 2020, p. 01).
Dessa forma, os professores tiveram que se adaptar ao momento com habi-
lidades e demandas totalmente novas que não faziam parte da sua rotina diária.
Tudo isso para efetivar o estabelecimento da comunicação com seus alunos através
de plataformas, redes sociais e aplicativos, a fim de continuar o processo educativo
e minimizar os impactos da suspensão das aulas. Em muitos casos, tais medidas
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paliativas foram feitas de modo improvisado, com recursos pessoais, materiais es-
cassos e estrutura física precária, já que os professores tiveram que fazer adapta-
ções em suas residências para o estabelecimento das aulas online. De repente, os
professores tiveram que aprender a lidar com tecnologias que antes estavam no
âmbito da vida pessoal, nada profissional, gerando uma sobrecarga de trabalho.
Essas novas demandas, que mesclaram os âmbitos profissional, social e pessoal,
trouxeram novas exigências ao sobrecarregado contexto do trabalho docente.
Muitas vezes os trabalhadores docentes são obrigados a desempenharem funções de agente
público, assistente social, enfermeiro, psicólogo, entre outras. Tais exigências contribuem
para um sentimento de desprofissionalização, de perda de identidade, da constatação de
que ensinar às vezes não é o mais importante. Tal situação contribui ainda para a desvalo-
rização e suspeita por parte da população de que o mais importante na atividade educativa
está por fazer ou não é realizado com a competência esperada (OLIVEIRA, 2010, p. 24).
Com essa nova configuração do trabalho docente, surgiram também as cobran-
ças da escola para adaptação do currículo às novas metodologias, ao atendimento
do aluno com dificuldades ou com poucos recursos. Além disso, somaram-se novas
sobrecargas laborais, como a responsabilidade de preparar as aulas, gravar vídeos,
adaptar atividades e avaliações. Enfim, uma inédita e súbita reconfiguração do
trabalho docente para o atendimento das diversas e novas dificuldades que se apre-
sentaram nesse momento de crise, cuja complexidade torna-se ainda mais aguda
se adicionarmos ao contexto outros fatores, tais como: a cobrança dos pais para o
cumprimento da carga horária, para um melhor atendimento aos filhos, as deman-
das da sociedade para uma performance de excelência, além de outras exigências.
Nesse contexto, a despeito da excepcionalidade da situação, naturalmente, há
quem defenda com entusiasmo este súbito advento das ferramentas tecnológicas
no âmbito do ensino sem considerar devidamente outras nuances, relacionadas aos
aspectos mais humanos da situação.
[...] o ensino presencial físico (mesmos cursos, currículo, metodologias e práticas pedagógi-
cas) é transposto para os meios digitais, em rede. O processo é centrado no conteúdo, que
é ministrado pelo mesmo professor da aula presencial física. Embora haja um distancia-
mento geográfico, privilegia-se o compartilhamento de um mesmo tempo, ou seja, a aula
ocorre num tempo síncrono, seguindo princípios do ensino presencial. A comunicação é
predominantemente bidirecional, do tipo um para muitos, no qual o professor protagoniza
vídeo-aula ou realiza uma aula expositiva por meio de sistemas de webconferência. Dessa
forma, a presença física do professor e do aluno no espaço da sala de aula geográfica são
substituídas por uma presença digital numa sala de aula digital. No ensino remoto ou aula
remota o foco está nas informações e nas formas de transmissão dessas informações (MO-
REIRA; SCHLEMMER, 2020, p. 9).
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Como é possível perceber, mesmo se o momento fosse outro, a transição do
ensino presencial mediado por práticas e metodologias conhecidas para o ensino re-
moto mediado por práticas e metodologias desconhecidas dificilmente poderia ser
efetuada com êxito, em decorrência da falta de investimento apropriado em termos
de: disponibilização de recursos materiais tecnológicos necessários para o ensino
remoto; de organização institucional para que escolas e universidades pudessem
se adequar paulatinamente ao novo contexto; e, principalmente, de preparação
formativa em longo prazo, com planejamento e oferta de cursos de formação con-
tinuada adequados para o uso de tecnologias digitais, plataformas virtuais, apli-
cativos pedagógicos e outros recursos voltados para as diversificadas necessidades
educacionais que compõem o amplo espectro do ensino e da aprendizagem nas suas
várias instâncias.
Todavia, após sete meses da publicação da Portaria n. 343 do MEC, constata-
-se que as demandas necessárias para o exercício do ensino remoto, permeado por
meios e tecnologias informacionais e comunicacionais, constituem uma distante
idealização num cenário político em que tanto a educação quanto a saúde, a despei-
to das propagandas oficiais veiculadas, não são consideradas como áreas prioritá-
rias. Nesse sentido, longe da concepção ingênua segundo a qual o espaço escolar é
meramente um local consagrado ao ensino, à aprendizagem e ao compartilhamento
de saberes e experiências, é relevante lembrar “[...] que pensar qualquer mudança
no âmbito da escola implica pensar como as coisas estão se passando no âmbito da
sociedade” (VEIGA-NETO, 2003, p. 109). A partir dessa constatação, não devemos
descartar a ideia de que, embora o ensino remoto tenha sido adotado, em caráter
emergencial, como medida paliativa de enfrentamento à pandemia, especifica-
mente para minimizar eventuais perdas relativas ao aprendizado dos conteúdos
curriculares no ensino presencial, os efeitos de tal flexibilização não se restringem
meramente ao âmbito escolar. Isso porque, metaforicamente, como o espaço escolar
e seus agentes se materializaram de forma súbita nas residências dos docentes e
discentes, consequentemente, tal ocorrência acabou nublando a distinção entre os
aspectos públicos e privados das vidas das pessoas.
Tal constatação é relevante porque as instituições escolares são tradicional-
mente projetadas como parte fundamental de “[...] uma maquinaria capaz de mol-
dar nossas subjetividades para algumas formas muito particulares de viver o tem-
po e o espaço” (VEIGA-NETO, 2003, p. 107). Como parte das funções atribuídas ao
denso maquinário institucional de docilização de corpos, conformação de emoções e
homogeneização de pensamentos, está a sistemática e ampla regulação social pro-
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porcionada a partir dos processos educativos ainda norteados pela racionalidade
moderna e inspirados pelo modelo capitalista fabril, ambos voltados para a produ-
ção de sujeitos normatizados, aptos a exercerem funções específicas e produtivas
na sociedade. Em tempos considerados normais, o fato de sermos condicionados no
espaço escolar para o futuro exercício de funções sociais consideradas essenciais e
produtivas, conforme o cronograma do sistema capitalista e a lógica cientificista,
tende a ser contestado muito pouco fora do âmbito da crítica especializada e dos
segmentos político-culturais organizados da sociedade.
Todavia, nos tempos hodiernos de adoecimento coletivo, a imprevista mudan-
ça de cenário que hibridizou os espaços público e privado pode ter contribuído para
explicitar o fato de que as práticas docentes tradicionais não nos auxiliam a viver
melhor, pois estão inseridas num processo mais amplo de produção de subjetivida-
des homogeneizadas. Tal como compreendemos esse aspecto da delicada situação
pandêmica que vivenciamos, o impacto da transformação em nossas rotinas habi-
tuais serviu para dar mais visibilidade ao referido processo: “Na medida em que
a educação nos molda precoce e amplamente, passamos a ver como naturais os
moldes que ela impõe a todos nós” (VEIGA-NETO, 2003, p. 107).
Da forma como compreendemos esse determinado aspecto problemático, essa
nova percepção da realidade e das relações interpessoais, acarretada pela mudança
do cenário escolar, pode ser descrita como um efeito de desterritorialização. Para De-
leuze e Guattari (2010), o ato de pensar deve ser entendido como sinônimo do movi-
mento de se desterritorializar, visto que o pensamento genuíno só acontece mediante a
eclosão de algo novo. Em outros termos, diferentemente da recognição, que é somente
uma das funções do pensamento, o pensamento novo somente pode ocorrer na medida
em que nos afastamos de territórios previamente conhecidos, isto é, os pensamentos
habituais que são considerados como territórios fixos. Então, é quando saímos de
forma voluntária ou involuntária de um território familiar em direção a um território
desconhecido, que nosso pensamento efetivamente cria e não apenas reproduz.
Nessa perspectiva, segundo Gallo (2008), podemos descrever a nossa leitura
filosófica da realidade pandêmica, considerando os polos da saúde e da educação,
como um procedimento de deslocamento conceitual do pensamento, visto que o
movimento que fazemos translada noções filosóficas antigas (desterritorialização)
para pensar criticamente problemas educacionais presentes (reterritorialização).
Assim, tanto as lições foucaultianas quanto as práticas de si dos filósofos antigos
são vistas como contribuições de intercessores tanto para auxiliar na saúde física e
mental dos professores quanto para inspirar práticas docentes alternativas.
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Diante do exposto, quando mencionamos previamente o aspecto humano da
situação dramática acarretada pela pandemia, referimo-nos especificamente à fi-
gura docente e ao seu papel formativo singular. Isso porque o que quase ninguém
fora do contexto da docência pergunta é como está a saúde do professor para o en-
frentamento dessas situações novas e dramáticas que lhe foram apresentadas? O
que os professores têm feito para resolver esses problemas urgentes, considerando
que a nova metodologia de trabalho adentrou o espaço pessoal, ou seja, a casa, o
lugar de descanso do professor?
Neste novo cenário, todo o trabalho invadiu o pequeno espaço da vida pessoal
do docente, acarretando um considerável prejuízo para o equilíbrio emocional, o
bem-estar físico e a saúde mental. O distanciamento que antes se fazia necessário,
no momento atual de pandemia, não foi mais possível manter e, como consequência,
a vida pessoal e a profissional se misturaram. Assim é que vem à tona problemas
que estão além do plano físico, trazendo, segundo a definição dos filósofos gregos e
romanos antigos, o adoecimento da alma. As transformações bruscas trazidas pelo
ensino remoto, que exigiram o desenvolvimento de habilidades e competências em
grande velocidade, desencadearam sintomas de estresse, angústia e exaustão; um
conjunto de fatores que geram as sensações de fracasso, impotência e frustação,
emoções negativas que levam ao adoecimento emocional, físico e mental.
É nessa perspectiva que, seguindo os passos do filósofo e professor Michel Fou-
cault, buscamos, nos ensinamentos dos filósofos gregos e romanos, recursos ou téc-
nicas acessíveis para a nossa prática cotidiana contemporânea. Tais práticas de si
são exercícios acessíveis e necessários para, em tempos atribulados, tentar manter
o equilíbrio e cuidar de nós mesmos. Esse cuidado de si não deve ser confundido com
o egoísmo, visto que se tratam de conceitos diferentes. As práticas de si se baseiam
no princípio filosófico-pedagógico que enfatiza a necessidade de cuidarmos de nós
mesmos, para podermos cuidar dos outros. Para quem atua na docência, uma ativi-
dade distintivamente caracterizada desde os primórdios pela relação entre mestres
e discípulos, esse primado continua bastante atual, porque o inverso também é ver-
dadeiro: descuidar de si é descuidar do outro. Em seguida, discorreremos acerca do
cuidado de si, para refletirmos sobre sua contribuição na prática docente.
Foucault e o legado losóco helenístico-romano
Segundo o filósofo francês Michel Foucault (2018), o tema do cuidado de si é
tratado em vários momentos da história da humanidade. É importante ressaltar
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que esse tópico do cuidado de si é abordado na parte de sua produção teórica que
é considerada como o legado tardio da vasta obra foucaultiana (FREITAS, 2012).
Nesses últimos escritos, temos a figura de Foucault como professor, ministrando
aulas nas quais a articulação temática entre a filosofia e a educação é mais explíci-
ta do que nas obras anteriores (VEIGA-NETO, 2016). Assim, para trabalharmos o
tema das práticas de si no contexto do isolamento social pandêmico, reportar-nos-
-emos aos escritos foucaultianos que tratam do período denominado de “Idade de
Ouro” do cuidado de si e que se deu nos séculos I e II d.C., nas culturas helenística
e romana, especificamente entre estoicos e epicuristas (MUCHAIL, 2011).
As práticas de cuidado de si desses períodos se tornam de grande relevância,
no contexto do momento atual, tanto para refletirmos sobre os novos rumos que
nossas vidas tomaram quanto para buscarmos práticas que nos auxiliem na convi-
vência com os outros e no fortalecimento pessoal. Tais práticas são úteis porque nos
capacitam para o enfrentamento do isolamento e de suas consequências, algo que
tem trazido sentimentos negativos para muitas pessoas, justamente por elas não
saberem como lidar com as situações novas, visto que se trata de uma necessidade
de se reinventar em um cenário que não tem data para acabar.
Os povos dos períodos helenístico e romano apontavam práticas como a me-
ditação, a escuta, a escrita de si e a parrhesía (falar franco) como técnicas que
auxiliam na vida, para que o indivíduo se constitua de um modo ético (FOUCAULT,
2018). As práticas do cuidado de si desses períodos são denominadas de estética da
existência, por constituírem um modo de vida que dá contornos à própria existên-
cia de uma maneira bela. Para isso, era necessário que o indivíduo efetuasse uma
inflexão sobre si mesmo, de modo a tentar construir sua vida buscando “modos de
existência cada vez mais livres” (PAGNI, 2012, p. 47).
No contexto filosófico da cultura greco-romana, fazer uso das técnicas espirituais
das práticas de si implicava problematizar os próprios modos atuais de existência,
principalmente, para combater os estados de dominação aos quais somos sujeitados e
buscar novos modos éticos de vida. É importante notar que as referidas práticas eram
atribuídas à toda a vida do indivíduo e não a uma única época; também, eram práti-
cas acessíveis a todos os indivíduos, independentemente de seu status social. Assim,
a constante prática ou cultivo de nós mesmos nos conduzia a um novo modo de vida,
no qual nossos antigos medos e preconceitos seriam desarmados, para darem lugar a
uma bem-vinda “transformação de si na relação com o outro” (PAGNI, 2011, p. 165).
Apresentaremos as práticas de cuidado de si que podem ser incorporadas à
rotina dos docentes como auxílio para um olhar para dentro de si mesmo, uma res-
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tauração de forças no momento atual, pois não requererem profissionais ou lugares
específicos, além de não terem nenhum custo financeiro. Os requisitos necessários
para qualquer pessoa são: vontade, disciplina e um pouco de tempo. A junção des-
ses elementos é necessária porque leva um pouco de tempo para que os exercícios
recomendados pelos filósofos antigos possibilitem que a pessoa adquira o fortaleci-
mento de si e, principalmente, o cuidado de si (GROS, 2006).
As práticas de si: meditação, escuta, escrita de si e parrhesía
Conforme Foucault (2018), existem três formas principais de exercícios filosó-
ficos de pensamento: a memória, a meditação e o método. Embora estejam inter-re-
lacionados, tais exercícios cumprem funções distintas. Respectivamente, enquanto
a memória propicia um acesso à verdade na forma de um reconhecimento, o método
serve para sistematizar e organizar um conhecimento objetivo e, por sua vez, a
meditação opera como “prova daquilo que se pensa, prova de si mesmo como sujeito
que pensa efetivamente o que pensa e age como pensa, tendo, como objetivo, uma
certa transformação do sujeito [...]” (FOUCAULT, 2018, p. 413).
Assim, como forma de reflexividade, meditar é buscar o silêncio em si mesmo,
sem as distrações da mente. Trata-se de um retiro em si mesmo, um momento em que
a consciência se encontra livre de condicionamentos. Como seres humanos, nossa ca-
racterística distintiva é a racionalidade, a consciência que temos sobre nós mesmos
e sobre o mundo. No entanto, vivemos assoberbados de tarefas que exigem que este-
jamos o tempo todo ligados, pensando em como resolver as atividades diárias e suas
atribulações. Ou seja, nosso pensamento está sempre voltado para a exterioridade.
É bem mais fácil pensar em algo que não nos faz bem do que não pensar em nada.
Assim, a meditação como um esforço de interiorização é relevante porque constitui
uma prática de encontro consigo. Como dispositivo de transformação, a meditação
equivale a um olhar sobre o próprio íntimo, sendo, por isso, considerada como a prova
constitutiva de si como sujeito ético da verdade (FOUCAULT, 2018).
Para os estoicos, a escuta se torna um dos sentidos de maior atenção, visto
que deve estar em permanente vigilância e porque é através dela que temos acesso
aos discursos verdadeiros e falsos. Assim, devemos cultivar o hábito de perscrutar
o dia, realizando o exame de nós mesmos, advertindo-nos e observando-nos, a fim
de adquirirmos a governabilidade de nossos movimentos. Como prática de si, a es-
cuta era considerada “um exercício de atenção (prosokhé) e de vigilância” (HADOT,
2004, p. 277).
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Na filosofia antiga, filósofos como Marco Aurélio e Epicteto sustentavam que a
escuta interior (vigilância) consistia em uma atenção constante do tempo presente,
como retorno para dentro de si e que funcionaria como defesa e reestabelecimento
das energias. O filósofo estoico Marco Aurélio coloca a necessidade de estar atento
ao momento presente, ao que se passa nesse momento, às realizações, colocando
toda atenção ao que se vai realizar com clareza e consciência de seus atos e controle
de seus pensamentos. A escuta passa a ser um elemento privilegiado, pois, a partir
dela, o indivíduo pode efetuar o olhar para si mesmo, a fim de perceber como se
encontra sua relação com a verdade (HADOT, 2004). Como afirma Foucault (2018,
p. 312), trata-se de um: “[...] olhar sobre si mesmo, em que memorizando o que se
acabou de ouvir, vê-se-o incrustar-se e aos poucos fazer-se tema no interior da alma
que acabou de escutar”.
A escrita de si, também chamada de hypomnémata, constitui uma recompo-
sição do logos fragmentado, de memórias passadas, de momentos vividos e que,
através do exercício de autoauscultar, visita a si pela busca de respostas sobre o
que se está fazendo de si mesmo (FOUCAULT, 2018). Isso pode ser feito para si
mesmo ou para outrem. A técnica da escrita nos possibilita uma investigação sobre
nós mesmos e, de certo modo, é também um desabafo ensimesmado sobre o que
estamos passando. Trata-se de buscar, no fundo de nós mesmos, os sentimentos,
as inquietações ocultas de nossa alma, de modo a libertar-nos. A escrita de si como
técnica tem um poder transformador, pois liberta o indivíduo e confere a este o con-
trole sobre o seu próprio pensamento como forma de cuidado de si. E isso pode ser
feito em um caderno de anotações, sob a forma de cartas a um amigo ou familiar,
ou através de qualquer outro dispositivo que permita essa prática que requer certo
grau de concentração e sensibilidade. Desse modo, a escrita de si se constitui como
uma ferramenta bastante útil nas situações mais diversas, em que a presença de
um outro não seja possível ou, ainda, como uma forma de dirigir-se e advertir-se,
com atenção acerca dos momentos vividos.
O dizer veraz, a fala franca e o discurso verdadeiro são expressões que podem
ser consideradas como sinônimas da prática de si conhecida como parrhesía. A
franqueza, nesse sentido, não significa apenas falar a verdade para o outro, mas
também para si mesmo. A disposição moral para falar para si mesmo e para os
outros aquilo que se considera como verdadeiro é, sem dúvidas, uma atividade
complexa e que requer coragem (FOUCAULT, 2011). Isso porque a sociedade não
costuma considerar opiniões alternativas e perspectivas dissonantes com tolerân-
cia e respeito. Muitas pessoas preferem ocultar seus verdadeiros pensamentos e
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sentimentos para não serem obliterados e marginalizados socialmente. É mais
fácil e menos problemático sustentar opiniões amplamente aceitas e perspectivas
previamente validadas consensualmente. Desse modo, estar atento ao que se diz
para si mesmo e para os outros se configura como uma atitude ética daquilo que se
pensa e se faz, é não negar para si mesmo os seus próprios sentimentos, é reconhe-
cer em si a sua verdade e se subjetivar a partir dela, torná-la elemento primordial
para a constituição de sua subjetividade. Entendido desse modo, em suas ativi-
dades diárias, o docente se depara com retóricas que tentam lhe convencer sobre
verdades que estão além de suas atribuições; assim, torna-se imprescindível que
ele tenha coragem para desmistificar as ideologias que subjazem tais discursos,
para não cair nas falácias de convencimento de poderes instituídos como forma de
autopreservação da saúde mental.
As técnicas ou práticas de cuidado de si, tais como a meditação, a escuta, a
parrhesía e a escrita de si, tomadas em seu conjunto, articulam-se e atravessam-se
de modo a contribuir na elaboração e na transfiguração do sujeito, através de seus
pensamentos e de suas ações. A partir do momento em que o indivíduo “[...] adquire
tais técnicas, o seu modo de ser é transformado, e este torna-se melhor e consciente
dos seus atos. Isso porque a soberania que o indivíduo exerce sobre si mesmo, está
situada sobre si mesmo, numa relação de si para consigo” (FOUCAULT, 2018). Ou
seja, o sujeito passa a cuidar de si, estando apto também a cuidar dos outros.
Considerações nais
Ter o governo de si mesmo e se posicionar criticamente diante das ações de
governamentalidade impostas constituem um modo de se proteger das políticas
que docilizam os corpos e os mantêm em estado de sujeição. Considerando que o
isolamento social acarretado pela pandemia foi um acontecimento que surpreendeu
os docentes, modificando suas condições de trabalho de modo negativo, podemos
dimensionar melhor a utilidade das práticas de si para o enfrentamento do isola-
mento, se atentarmos para o seguinte significado do referido conceito: um aconte-
cimento não é um fato isolado, pois ele sempre tem duas partes complementares:
a efetuação e a contraefetuação. Assim, o acontecimento não é apenas a ocorrência
do evento em relação a nós, mas também a nossa reação pessoal em relação ao
referido evento (DELEUZE, 2011).
Por definição, em virtude da contingência da vida, existem certos acontecimen-
tos que não podem ser previstos. E se não sabemos que certas coisas vão acontecer,
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não podemos nos preparar devidamente para o seu enfrentamento. Cientes disso,
os filósofos gregos e romanos ensinaram que podemos nos preparar para momentos
fortuitos. Ou seja, para eles, era possível preparar-se a partir de práticas de si para
quando tais eventos ocorressem. Não havia a pretensão de superar os aconteci-
mentos difíceis, dolorosos ou trágicos dos quais, eventualmente, todo ser humano
padece. A intenção era diminuir o efeito devastador desses acontecimentos, prepa-
rando-se antecipadamente a eles. Aqui, apontamos as práticas do cuidado de si aos
docentes que se encontram assoberbados de tarefas e funções totalmente novas,
para as quais não tiveram preparo adequado, por uma lógica mercadológica que
impõe o que pode causar sentimento de angústia e frustação, desencadeando senti-
mentos negativos e causando adoecimento físico e mental. Através das práticas do
cuidado de si, o indivíduo poderia constituir um equipamento (paraskeué) similar
a uma armadura, para se proteger das intempéries da vida (FOUCAULT, 2018).
No atual momento de pandemia, o isolamento social tornou-se uma condição
necessária para cuidarmos de nós mesmos e dos outros. Nesse sentido, as referidas
práticas contribuem para a constituição de um sujeito ético, que esteja atento ao
que se passa consigo, no seu íntimo, buscando o equilíbrio para o enfrentamento
das situações inusitadas que o difícil momento atual impõe. O exercício de tais
práticas requer apenas poucos minutos diários, um momento de repouso para si
mesmo, para recompor as energias e ressignificar seus atos como uma continuida-
de de sua existência de maneira bela.
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