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Instrução educativa e interesse múltiplo em Herbart: aproximações com a formação do sujeito ético em Foucault
v. 28, n. 3, Passo Fundo, p. 995-1015, maio/ago. 2021 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
* Graduado em Estudos Sociais e em Filosoa e especialista em Educação pelo Instituto Educacional Dom Bosco. Mes-
tre em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria e doutor em Educação pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul. Professor Adjunto da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Tem
experiência na área de Educação, com ênfase em Fundamentos da Educação, atuando principalmente nos seguintes
temas: pedagogia, losoa da educação, Habermas, ação comunicativa, paradigma da comunicação e agir comuni-
cativo. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3926-5164. E-mail: jospebou@unijui.edu.br
** Mestre em Educação nas Ciências pela Unijuí; doutoranda em Educação nas Ciências na Unijuí; bolsista da Capes.
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-5575-2248. E-mail: fran.anjos@hotmail.com
Recebido em: 27/01/2021 – Aprovado em: 26/11/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i3.12223
Instrução educativa e interesse múltiplo em Herbart: aproximações com a
formação do sujeito ético em Foucault
Instrucción educativa e interés múltiple en Herbart: aproximaciones con la formación del sujeto
ético en Foucault
Educational instruction and multiple interest in Herbart: approaches with the formation of the
ethical subject in Foucault
José Pedro Boueuer*
Franciele da Silva dos Anjos Strohhecker**
Resumo
Este artigo retoma de Johann Friedrich Herbart as noções de instrução educativa e de multiplicidade do interes-
se, em um esforço de releitura do seu potencial pedagógico pela sua articulação com o caráter hermenêutico
da condição humana. Tal caráter leva ao entendimento de que há uma dimensão ética e formativa presente nos
saberes/conhecimentos escolares e que tornam possível a constituição de um modo ético de existir. De Herbart,
pela via da reexão hermenêutica, o artigo estabelece aproximações com Michel Foucault, de cuja obra recu-
pera o sentido formativo do cuidado de si e do saber da espiritualidade a ele vinculado. Assim, compreende-se
que o saber/verdade pode trazer ao sujeito uma transformação de si, à medida que se constitui para ele como
modalização espiritual. Tem-se, assim, algo muito próximo da noção espiritual de interesse de Herbart e do ob-
jetivo de sua instrução educativa, que é forjar uma disposição espiritual, um interesse múltiplo no sujeito pelo
mundo e pelas relações humanas. A formação para a multiplicidade do interesse amplia o universo simbólico
do sujeito, permitindo-lhe compreender a si, ao outro e ao mundo de modo alargado, o que é fundamental para
uma vida ética.
Palavras-chave: educação; conhecimento; condição hermenêutica; ética.
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Resumen
Este artículo retoma de Johann Friedrich Herbart las nociones de instrucción educativa y multiplicidad del inte-
rés, en un esfuerzo por releer su potencial pedagógico a través de su articulación con el carácter hermenéutico
de la condición humana. Tal carácter lleva a entender que existe una dimensión ética y formativa presente en
los saberes/ conocimiento escolar y que posibilitan la constitución de una forma ética de existir. Desde Herbart,
mediante la reexión hermenéutica, el artículo establece similitudes con Michel Foucault, cuya obra recupera
el sentido formativo del autocuidado y el conocimiento de la espiritualidad ligado a él. Así, se entiende que el
conocimiento / verdad puede traer al sujeto una transformación de sí mismo, ya que se constituye para él como
modalización espiritual. Así, hay algo muy cerca de la noción espiritual de interés de Herbart y al objetivo de
su instrucción educativa, que es forjar una disposición espiritual, un interés múltiple en el sujeto por el mundo
y por las relaciones humanas. La formación para la multiplicidad del interés expande el universo simbólico del
sujeto, permitiéndole comprenderse a sí mismo, al otro y al mundo de una manera más amplia, fundamental
para una vida ética.
Palabras clave: educación; saber/conocimiento; condición hermenéutica; ética.
Abstract
This article takes up Johann Friedrich Herbarts notions of educational instruction and multiplicity of interest,
in an eort to re-read their pedagogical potential through their articulation with the hermeneutic character
of the human condition. Such character leads to the understanding that there is an ethical and formative di-
mension present in school knowledges/learnings and that they make it possible the constitution of an ethical
way of existing. From Herbart, through hermeneutic reection, the article establishes approaches with Michel
Foucault, recovering, from his work, the formative sense of self-care and the knowledge of spirituality linked to
it. Thus, it is understood that the knowledge/truth can bring the subject a transformation of himself insofar as
it is constituted for him as spiritual modalization. Therefore, there is something very close to Herbart’s spiritual
notion of interest and to the goal of his educational instruction, which is to forge a spiritual disposition in the
subject, a multiple interest in the world and human relations. Formation to the multiplicity of interest enlarges
the subjects symbolic universe, allowing him/her to understand him/herself, the other and the world in a broad
way, which is fundamental to an ethical life.
Keywords: education; learning/knowledge; hermeneutic condition; ethics.
Introdução
Eis o que queríamos dizer sobre o modo da disposição do espírito que o ensino múltiplo
ambiciona preparar – na medida em que o saber do tempo o torne possível. Nela se reúne o
prazer de viver com a elevação da alma (HERBART, 2003, p. 141, grifo do autor).
A quais finalidades a educação se orienta? E no caso da educação escolar, o seu
caráter formativo pressupõe alguma especificidade do saber que nela se comunica
ou nela se constrói? Tais perguntas têm levado a respostas as mais diversas ao lon-
go de nossa tradição pedagógica. Por óbvio, a educação é um tema da humanidade,
anterior e que transcende à escola como instituição social. Mas é em torno dessa
instituição que o debate sobre a formação humana tem assumido uma importância
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toda especial, haja vista o caráter sistemático e intencional do seu fazer, o que pres-
supõe uma explicitação e uma sustentação de seus processos e de suas finalidades.
Considerando o tempo escolar como um tempo destinado ao cuidado formativo
para com as novas gerações, nosso foco de discussão será a dimensão ética e subje-
tivadora do saber aí mobilizado. Nesse sentido, tomamos a escola como um tempo
em que o “eu” dos sujeitos se torna objetivo formativo, algo com que se ocupam
os professores e também os próprios alunos – mesmo que, por certo tempo, não
tenham consciência disso. Assim, é na escola que se apresenta uma oportunidade
ímpar de o sujeito se ocupar consigo mesmo, com a sua subjetivação. Esse tempo,
porém, tem se tornado cada vez mais funcional, cada vez mais produtivo e ajustado
às demandas de uma ordem social e econômica estabelecida. E é justamente nessa
direção que ganham força diversos discursos sobre a escola que entendem como
sendo tarefa sua a capacitação e a habilitação das novas gerações para que possam
ingressar de forma qualificada no mercado de trabalho e, com isso, virem a se inse-
rir com “eficiência” na ordem de um mundo e de um sistema vigentes. Nesse viés,
também entram em cena disputas político-ideológicas quanto ao que é digno ou não
de ser ensinado, ou melhor, quanto ao que é útil ou não de ser aprendido.
Subjaz ao desejo de tornar a escola funcional à ordem estabelecida o entendi-
mento do conhecimento como ferramenta, como meio necessário para se chegar a
determinado fim, em regra, consubstanciado em alguma forma de produtividade
no sistema de mercado. Como consequência disso, temos o esvanecimento e até
mesmo o esquecimento – intencional, como projeto político-educacional – do sen-
tido formativo da educação escolar. Frente a isso, a dimensão ética da formação
humana e a preocupação com as formas de subjetivação acabam sendo relegadas
a segundo plano – na melhor das hipóteses. O nosso intento, aqui, é justamente
colocar em primeiro plano a dimensão formativa da escola – e da educação em
geral –, que consiste na tarefa de constituir subjetividades autônomas, éticas e
comprometidas com o mundo comum e com as relações humanas. Nessa direção, e
já numa perspectiva assinalada por Herbart, o saber que na escola se comunica e
se constrói assume um lugar extremamente importante como fundamento de uma
compreensão de si, do outro e do mundo.
Para a realização deste nosso intento, tomaremos como referência, num pri-
meiro momento, a obra de Johann Friedrich Herbart (1776-1841)1 e as noções, por
ele cunhadas, de instrução educativa e de multiplicidade do interesse. Como her-
deiro da mais alta cultura pedagógica da Aufklärung, o pedagogo e filósofo alemão
possui uma obra que acreditamos ter muito a contribuir para pensar sentidos da
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formação ainda, e especialmente, para os dias de hoje. Isso porque, ao desenvolver
uma Pedagogia geral (2003) que tem como finalidade primeira a constituição do
caráter moral, Herbart coloca em questão o compromisso ético para com a formação
das individualidades, o que implica oportunizar uma experiência em que o sujeito
vai constituindo para si um modo autônomo, livre e interessado de se situar diante
do mundo, do outro e de si. Mesmo que soe estranho esse “situar-se diante de si”,
é possível, conforme o autor, o sujeito construir uma espécie de senso interior, que
o torne capaz de voltar o olhar para si, para seus pensamentos, para suas ações, o
que assume o caráter de uma reflexão ética.
A formação ética em Herbart tem como objetivo maior a consolidação de uma
vontade moral por parte do educando, entendida esta como o exercício ético de
escolha, de tomada de decisão consciente sobre as questões que dizem de como se
deve viver junto aos outros. A consecução desse objetivo, conforme o autor, torna-se
possível mediante a formação de uma individualidade multiplamente interessada.
Assim, cabe ao ensino (à instrução), como sua tarefa primeira, fundamentar esses
interesses. A questão que se põe, portanto, é ver de que forma o ensino é capaz de
produzir uma vontade moral através da formação do interesse múltiplo. Conforme
Herbart, é o próprio conteúdo do ensino que permite a criação desse interesse que,
por sua vez, possibilita uma existência assentada em pressupostos éticos.2
Faremos nosso esforço de releitura das contribuições de Herbart para a educa-
ção em sua dimensão formativa na recorrência à reflexão hermenêutica acerca da
condição humana, situando-nos, para isso, na esteira das contribuições de Heidegger
e Gadamer e que, em nosso entender, confluem para a compreensão de um mundo
humano simbolicamente estruturado. Esse aporte da hermenêutica permitirá, como
pretendemos mostrar, aproximações com autores contemporâneos, dentre os quais
destacamos Michel Foucault. Assim, veremos que as noções de instrução educativa
e de constituição de uma vontade moral através do desenvolvimento do interesse
múltiplo remetem a uma compreensão de formação em que o conteúdo da educação,
ou o saber que nela é comunicado ou construído, já não se separa de sua finalidade
formativa de constituição de uma subjetividade eticamente orientada. Ou seja, tais
noções remetem àquilo que se tem compreendido como articulação íntima, e já não
separada, entre saber e ser. Essas tematizações nos levam a questões específicas do
modo humano de ser, da nossa condição hermenêutica de seres que existem e se for-
mam a partir da experiência da compreensão e das aprendizagens singularizantes.
Especificamente na aproximação para com Foucault veremos como as noções
herbartianas destacadas convergem com suas reflexões sobre o saber da espiritua-
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lidade, que traz ao sujeito uma espécie de retorno, de devolutiva ou “recompensa”,
resultando na transformação de seu modo de ser. Trata-se, aqui, das reflexões fei-
tas pelo filósofo francês durante os cursos dos anos de 1981 e 1982 no Collège de
France, publicadas na obra A hermenêutica do sujeito (2010). A noção de saber da
espiritualidade e sua relação com a dimensão formativa do cuidado de si e a pa-
raskheué (preparação ou instructio) tem tudo a ver, em nosso entender, com o sen-
tido de instrução formativa tal como proposto por Herbart. Assim, tanto Herbart
como Foucault nos levam a pensar como os saberes escolares podem se tornar pro-
fícuos e interessantes para o ser mesmo do sujeito, para a formação do seu ethos.
Assim, nosso primeiro movimento teórico será destinado à interpretação da no-
ção formativa e ética de instrução educativa e da multiplicidade do interesse como
finalidade da pedagogia e, também, como seu caminho (método), o que faremos,
basicamente, a partir, da obra Pedagogia geral (2003) de Herbart. Em seguida, tra-
remos alguns elementos acerca da nossa condição hermenêutica, que imaginamos
uma via teórica que nos permite pensar o lugar fundante do saber nos processos
de formação das subjetividades e de configuração do mundo humano comum. Essa
reflexão será o fio condutor para as aproximações que buscaremos estabelecer, na
sequência, de Herbart para com Foucault, acerca da dimensão formativa, ética e
interessante do conhecimento escolar. Com esse percurso buscaremos sustentar
o que entendemos ser uma dimensão formativa do saber escolar que permite a
ampliação dos horizontes interpretativos, culturais, éticos e estéticos dos sujeitos.
Esta é uma pesquisa bibliográfica que, sob inspiração e condução da herme-
nêutica filosófica, busca produzir uma compreensão acerca do fenômeno da forma-
ção humana através da interpretação da tradição de dois grandes pensadores do
humano e de sua constituição/formação.
A dimensão ética da pedagogia de Herbart: a instrução educativa e a
multiplicidade do interesse
Herbart desenvolve as noções de instrução educativa e de multiplicidade do
interesse em sua obra Pedagogia geral deduzida da finalidade da educação (2003),
publicada inicialmente no ano de 1806. Este escrito representa o esforço do peda-
gogo e filósofo em construir um caminho pedagógico com vistas a alcançar aquelas
que seriam as duas finalidades da pedagogia, a saber, a formação do sujeito dotado
de vontade moral (ou de um modo ético de existir) e multiplamente interessado.
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Esta segunda finalidade formativa era considerada pré-requisito para a consolida-
ção da primeira, por isso foi considerada um fim imediato atribuído ao processo de
instrução educativa.
A noção de instrução educativa merece uma atenção especial, pois se trata de
um novo paradigma do pensamento e da ação pedagógica inaugurado por Herbart,
baseado na sua experiência como preceptor e professor e numa reflexão filosófica
em que “a educação preocupa-se em formar e aprimorar o ser humano” e a “instru-
ção veicula uma representação do mundo, transmite conhecimentos novos, aperfei-
çoa aptidões pré-existentes e faz despontar capacidades” (HILGENHEGER, 2010,
p. 14, grifos do autor). Assim, o sucesso da educação depende de uma adequada
instrução, sendo esta condição para a educação e um potente elemento formativo.
Em Herbart a instrução educa, forma um modo de ser ético do indivíduo,
porque é assentada na multiplicidade do interesse. Multiplicidade que permite
ao sujeito escolher com maior liberdade como agir. No fundo, trata-se da possível
dependência da formação moral em relação à instrução, aos saberes, ou aos inte-
resses, como se refere Herbart. “Importante notar como a formação moral se liga
com as restantes partes da formação, ou seja, como ela pressupõe estas mesmas
como condições, e só com elas, pode ser criada com segurança” (HERBART, 2003,
p. 45). Disso deriva a Pedagogia Geral, conforme a qual esses outros elementos da
educação, dentre os quais o conhecimento, são condições para a moralidade. Perce-
bemos aí o vínculo potente entre saber e ser, entre conhecimento e ética, em acordo
com o sentido de instrução educativa de Herbart. “A ideia mestra da pedagogia de
Herbart é que o único fundamento de toda a educação é a instrução. Não existem
mais, portanto, duas educações distintas: uma educação intelectual e uma moral....
Instruir a mente é, julga ele, construí-la” (EBY, 1978, p. 414).
Herbart define o interesse como caminho pedagógico para a realização dos
objetivos da instrução educativa. Isso porque “o interesse cria as primeiras liga-
ções entre o sujeito e o objeto e determina, assim, o ‘horizonte’ do homem como
campo daquilo que ele percebe ou não do mundo” (HILGENHEGER, 2010, p. 20).
Desse modo, o interesse assume na pedagogia de Herbart um duplo movimento,
ou melhor, ocupa dois lugares: como objetivo formativo, expresso pela noção de
multiplicidade do interesse, e como meio pedagógico que possibilita alcançar esta
finalidade, isto é, o interesse como caminho pedagógico.
À instrução cabe a construção de interesses pela humanidade e pelo mundo. A
pluralidade desses interesses forja, por sua vez, uma multiplicidade de interesses
na alma dos sujeitos, o que lhes possibilita escolher com maior clareza como agir
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no mundo, tornando possível uma ação ética. Diferentemente dos ideais de educa-
ção difundidos em sua época – e também de um certo ideário pedagógico atual –,
Herbart propõe uma inversão do sentido de interesse, considerado até então como
motivação para o estudo. Defende, por isso, que os estudos é que devem servir para
fazer surgir o interesse para seu objeto, porque “os estudos só devem durar um cer-
to tempo, enquanto que o interesse deve subsistir durante toda a vida” (HERBART
apud HILGENHEGER, 2010, p. 24).
Vejamos, agora, de forma mais específica, como o conceito de multiplicidade
de interesse aparece na obra Pedagogia geral. Esse conceito aparece no momento
em que Herbart (2003, p. 47) considera os objetivos da educação, que se repartem
pelos objetivos do livre arbítrio do educando e pelos objetivos da moral. Com isso,
Herbart imagina que a educação deva oferecer ao educando as possibilidades para
este livre arbítrio, ou, em outras palavras, as condições para que, em sua vida
adulta, consiga se ocupar daquilo que for de sua vontade. Ele reconhece a necessi-
dade de a educação tratar da “múltipla receptividade”, que “só pode existir a partir
de múltiplas tentativas da própria aspiração” (2003, p. 48). Entendemos que aqui
Herbart se refere às possibilidades de se ocupar de algo, para o que a educação
deve se preocupar em oferecer um “quantum”, uma quantidade significativa de in-
teresses que permitam ao sujeito escolher com liberdade aquele ou aqueles que são
de sua vontade. Trata-se da formação de uma multiplicidade de forças espirituais,
designada pelo termo multiplicidade do interesse, e que deve ser formada harmo-
niosamente. Põem-se, assim, os “objetivos possíveis” da educação que o educando
possa, um dia, querer seguir numa maior ou menor extensão.
Herbart (2003) também aponta os “objetivos necessários” da educação, que é a
formação da moralidade. Para ele, a moralidade tem sua sede na vontade própria,
o que o leva a entender que a educação moral não tem que produzir uma exterio-
rização das ações, “mas sim a compreensão, juntamente com a respectiva vontade,
na alma do educando” (2003, p. 48). Diz ele que:
O objetivo da formação moral não pretende outra coisa senão que as ideias de justiça e bem,
em todo o seu rigor e pureza, se tornem os verdadeiros objetos da vontade, e que, de acordo
com elas, se determine o conteúdo íntimo e real do caráter, bem como o cerne profundo da
personalidade, relegando para último lugar qualquer outra arbitrariedade (2003, p. 50).
É de se destacar que Herbart considera a multiplicidade de interesses como
condição para a moralidade, como núcleo onde residem as possibilidades éticas da
existência. Cabe, por isso, à educação permitir o alargamento da multiplicidade
em cada sujeito. Isso leva Herbart a concluir e a afirmar que a moralidade – Her-
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bart também a chama de caráter moral – tem que ter raízes na multiplicidade,
derivando disso a primordialidade do ensino para sua pedagogia, bem como a de-
finição de um método pedagógico para alcançar tal objetivo formativo3. A partir de
tais exposições, Herbart elege as categorias de aprofundamento e reflexão como
procedimentos pedagógicos necessários para a construção dessa individualidade
multiplamente formada.
A atividade de aprofundamento cria condições para o surgimento do interesse.
E por interesse se entende a atividade espiritual que forja o horizonte – simbólico,
diríamos nós – do sujeito, seu gosto por este ou aquele assunto, por este ou aquele
modo de agir. O aprofundamento é, assim, o movimento de pausa, de meditação, de
entrega a algum assunto humano, de debruçar-se sobre algo. Herbart (2003, p. 63)
também o define como penetração, e compara o aprofundamento à experiência es-
tética, pois,
Assim como cada quadro necessita de luz própria, assim como os críticos do bom gosto
exigem de cada observador de uma obra de arte uma disposição própria – assim tudo o que
é digno de ser observado, pensado e sentido, exige um cuidado próprio para que se capte de
forma exata e integral, ou seja, para que se penetre no seu íntimo.
O autor ainda indica que quem alguma vez se entregou com amor a um objeto
da arte humana sabe o significado de aprofundamento, e vê nela, na pausa, no
debruçar-se sobre algo, a vantagem da formação. Com isso, percebemos a aposta
no conhecimento como algo interessante por si, como algo que merece atenção,
que é digno do nosso tempo, da nossa experiência. Assim, aprofundar-se em algo,
permitir-se penetrar por algum assunto que diz do nosso mundo, ou das relações
humanas, é uma espécie de cuidado que temos para conosco mesmos e um exer-
cício ético em relação à tradição que nos constitui. É como se, ao nos entregarmos
ao aprofundamento em algo, estivéssemos reconhecendo nossa dívida para com a
tradição, para com a cultura, ao mesmo passo que reconhecendo nosso direito em
compreender esse passado a partir do qual fomos forjados.
Herbart compreende que somos orientados moralmente pelo conjunto de in-
teresses que compõem o nosso círculo de pensamentos.4 Por isso, ressalta a impor-
tância de que a instrução educativa nunca perca de vista a necessidade de reunir
os múltiplos interesses construídos através do o ensino, para que a alma não fique
fragmentada e, por isso, dispersa. Trata-se de pensar em uma formação que não
restrinja os sujeitos ao universo dos desejos momentâneos, mas que amplie a sua
concepção de mundo e do outro, daí a necessidade de estar “fundida” em uma mul-
tiplicidade de interesses.
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Ainda que as múltiplas orientações do interesse se devam dividir de forma tão variada quan-
to nos pareçam variados e múltiplos os seus objetos, todos se devem dispersar a partir de
um ponto. Ou então as múltiplas facetas devem representar os lados da mesma pessoa, tal
como as diversas superfícies de um corpo. O facto é que na pessoa todos os interesses têm de
pertencer a uma consciência e nunca devemos perder essa unidade (HERBART, 2003, p. 62).
Para o autor, essa unidade da pessoa é mantida através de um processo de re-
flexão em que os aprofundamentos se articulam. A partir da reflexão, esses interes-
ses podem relacionar-se com outros já existentes, formando um sujeito multipla-
mente interessado. Com isso, podemos entender as razões de os aprofundamentos
e a reflexão criarem o interesse, visto que este nasce justamente da possibilidade
criada pelos estudos, pelos aprofundamentos, pela atenção, pela reflexão, o que é
radicalmente diferente de algumas teorias do interesse que permeiam o ideário
pedagógico atual e que apostam que o interesse é algo que a criança já possui sobre
algum tema, algo quase que espontâneo ou, ainda, que é preciso muita inovação
pedagógica, muito “brilho” nas aulas, para que o interesse seja criado.
A multiplicidade do interesse é composta por dois grupos de interesses, a
saber, os “interesses do conhecimento” e os “interesses da simpatia” que, para
Herbart, são estados de espírito. A simpatia é justamente o interesse acerca das
relações, que compreende os interesses na humanidade, na sociedade, na relação
entre ambas e para com o ser supremo. Os interesses do conhecimento, por sua vez,
também são indispensáveis para a formação de individualidades multiplamente
interessadas, dotadas de senso crítico e de liberdade interior. Isso porque esses
interesses do conhecimento – quais sejam, da variedade, da sua regularidade e das
suas relações estéticas – permitem compreender a dinâmica em que percebemos e
representamos o mundo. Em outras palavras, trata-se de conhecer a estrutura do
conhecimento acerca das objetivações humanas, seja no que se refere aos fenôme-
nos da natureza, à constituição da matéria das coisas, aos conceitos, aos contrastes,
às interligações das ideias que estruturam o mundo, ou, então, no que se refere à
construção para si de um juízo estético das coisas humanas, o que requer um mer-
gulho ou um aprofundamento nos objetos do conhecimento.
Para Herbart, esses interesses do conhecimento e da simpatia são indispen-
sáveis para formar o bom cidadão, uma vez que, para o autor, os sujeitos precisam
também se ocupar com as dinâmicas da vida em sociedade, mesmo que o compro-
misso da instrução seja primeiramente a individualidade e suas possibilidades de
liberdade e de autoformação. Nesse sentido, Herbart condena o ensino que pretende
roubar a individualidade dos educandos pela inculcação de saberes funcionais, in-
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teresses restritos, conhecimentos meramente instrumentais, o que evidencia ainda
mais a importância e atualidade de sua obra para a temática da formação humana.
Em síntese, em Herbart percebemos uma aposta na instrução educativa como
caminho para a construção de um existir ético, algo que pode ser realizado mediante
a formação para a multiplicidade do interesse. A relação da multiplicidade do inte-
resse com a moralidade, ou seja, do ensino (instrução) com a finalidade da educação,
está no fato de que são os interesses que guiam a vontade do sujeito. Daí a impor-
tância de uma formação em interesses múltiplos, já que “só o que é suficientemente
forte e com uma interligação múltipla é que se apresenta frequentemente à alma
e o que mais se salienta é que conduz à ação” (HERBART, 2003, p. 25). Herbart
(2003, p. 81) acredita que o ensino consegue “penetrar mais fundo na oficina das
ideias” e que sua multiplicidade permite aos sujeitos escolher com maior liberdade
com que se ocupar. A respeito disso, Eby (1978, p. 412) pontua que “somente aquele
indivíduo que tenha a mais ampla ordem de experiências e interesses, que tenha
estudado a vida sob maior número de aspectos, pode fazer, com confiança, as me-
lhores escolhas”. Trata-se de uma aposta na educabilidade dos sujeitos, ou melhor,
na sua autoeducação mediante o alargamento do círculo de pensamentos, o que se
dá a partir da criação de múltiplos interesses possibilitados pela instrução (ensino).
Por fim, essa instrução que é educativa em Herbart permite o reconhecimento
da unidade entre ser e conhecer, no sentido de que aquilo que sei, aquilo que me in-
teressa, aqueles saberes que constituem o meu modo de pensar, impactam o modo
como existo e o modo como tomo minhas decisões. Esse é um ponto a ser destacado,
pois se relaciona com o sentido de saber da espiritualidade de Foucault, que será
abordado mais adiante.
O caráter formativo da instrução educativa de Herbart à luz da compreensão
hermenêutica da condição humana
Uma visualização mais evidente da potencialidade reflexiva e normativa da
noção de instrução educativa de Herbart – especialmente, do ensino como fun-
damento do interesse e desse como disposição do espírito capaz de orientar uma
existência ética – pensamos ser possível com base no reconhecimento do caráter
hermenêutico da condição humana. Isso porque entendemos que tal caráter nos
convoca a pensar sentidos para a formação humana e para os conhecimentos mo-
bilizados em espaços como a escola, sentidos esses que demandam compreensão, o
que é próprio dos seres de nossa espécie.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Instrução educativa e interesse múltiplo em Herbart: aproximações com a formação do sujeito ético em Foucault
v. 28, n. 3, Passo Fundo, p. 995-1015, maio/ago. 2021 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
A hermenêutica (filosófica de Gadamer e da facticidade de Heidegger) enten-
de que a compreensão é a experiência do/de ser no mundo, do ser-aí, “é o modo
originário da vida humana mesma” (GADAMER, 2006, p. 40). Tudo o que sabe-
mos sobre o mundo é compreensão e tudo o que somos deriva dessa compreensão
que nós e os outros fizemos/fazemos de nós mesmos, pois “o compreender é o modo
de ser do ser-aí que o constitui como ‘saber-ser’ (savoir-être) e ‘possibilidade’”
(2006, p. 40). Esse é o peso ontológico que Heidegger atribui à compreensão, dirá
Gadamer. Com isso, pode-se entender por compreensão a experiência de compri-
mir/internalizar em si uma verdade – ou um discurso com pretensão de verdade.
Internalizar um entendimento a tal ponto que o sujeito consiga operar com ele,
pensar com/a partir dele, ao modo de uma construção/internalização que pos-
sibilite existir de um modo diferente, como um “saber-fazer”, um “poder”, uma
“capacidade para”, como indica Gadamer (2006, p. 41) ao pensar os sentidos do
verbo “compreender”. Gadamer (2006, p. 41) também entende que “quem ‘com-
preende’ um texto, para não dizer uma lei, não apenas se projeta, no esforço da
compreensão, em direção a um significado, mas adquire pela compreensão uma
nova liberdade de espírito”.
Dada essa nossa condição hermenêutica, estar no mundo já é sempre um “es-
tar compreendendo”, o que é possibilitado, por sua vez, por um “estar interpretan-
do”. A condição hermenêutica, por sua vez, se vincula à nossa condição de seres de
linguagem que, por sua vez, permite a interpretação e a compreensão, fazendo de
nós uma espécie simbólica. Nosso mundo enquanto realidade significada se torna
a base sob a qual realizamos nossas vidas. Acrescente-se a isso que nós só temos
mundo (humano) porque temos os signos (o simbólico) que operam ao modo de re-
des (de significados) que nos permitem alguma visão das coisas, já não uma visão
do que as coisas são em si, mas como elas se nos apresentam pela mediação desses
signos que criamos e compartilhamos uns com os outros.5 Disso resulta que o mun-
do não se nos dá, mas que nós o interpretamos em conformidade com o potencial de
nossa capacidade de significá-lo.
Para todos os efeitos, e conforme esse modo hermenêutico de pensar, nós hu-
manos inventamos um mundo não natural, um mundo constituído por signos da
cultura, da civilização, das sociedades e que necessitam ser aprendidos por cada
novo ser que aqui chega. Dessa forma, cada um de nós, para se tornar humano,
necessita da experiência de compreender esses signos que estruturam o mundo, ao
modo de um aprendizado que constitui determinada forma de ser sujeito através da
construção de significados acerca dessas “realidades” mundanas. Com isso, pode-se
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inferir que a compreensão alcança toda experiência humana de mundo – designada
pela noção de hermenêutica –, sobretudo se entendida em seu sentido ontológico.
Assume-se, com isso, o entendimento de que nosso modo de ser e compreender
a nós mesmos, o outro e o mundo é possibilitado por uma compreensão em senti-
do ontológico, por uma espécie de aprendizagem singularizante, indispensável a
nossa espécie pelo fato de termos estruturado um mundo simbolicamente. É um
sentido de aprendizagem que, de acordo com Mario Osorio Marques (1995, p. 10),
deve ser “entendida não como simples adaptação ao que existe, ou mero acréscimo
de conhecimentos e habilidades, mas posta na ótica de concreta configuração, re-
construção autotranscendente do ser do homem singularizado entre os homens”.
A aprendizagem singularizante pode ser pensada como uma espécie de disposição
humana, sem a qual o humano não se realiza. Uma compreensão, para todos os
efeitos, já não assentada em pressupostos metafísicos, como se o humano fosse
obra de alguma força sobrenatural, mas em que ele é percebido em meio às suas
possibilidades imanentes que se lhe colocam como ser de linguagem e que lhe fa-
culta ter um mundo. Assim, humano e mundo existem como realidade mental, ou
seja, existem por que estão inscritos em cada um de nós. Inscrição que se dá pela
aprendizagem. Recorrendo novamente a Marques (1995, p. 15), temos um humano
cuja existência:
[...] não é por inteiro dada ou fixa; ele a constrói a partir de uma imensa gama de possibi-
lidades em aberto. Nasce no seio de uma cultura viva, que só é tal à medida que assumida
como desafio de permanente reconstrução pela atribuição dos sentidos que imprime a seu
convívio em sociedade e na estruturação da própria personalidade.
Dentre as possibilidades de “existir” que a nossa condição humana nos faculta
temos a singularização, isto é, a possibilidade de nos tornarmos sujeitos median-
te automodelagem e pela criação de mundo, o que se dá a partir de um processo
disruptor em que o sujeito se torna capaz de sustentar eticamente e argumenta-
tivamente os seus desejos e as suas ações, em um movimento de autonomia, de
maioridade em relação a sua existência e sua relação com o outro e com o mundo.
Em uma linha de aproximações possíveis, em Herbart, os interesses possibi-
litados pelo ensino dão ao espírito novas disposições, ampliando o círculo de pen-
samentos e os horizontes compreensivos dos alunos. Conforme o autor, ainda, os
interesses permitem uma nova forma de se ocupar com o mundo, consigo, e, de-
pendendo do interesse que compõe essa nova ocupação, é possível que possibilitem
uma forma diferente de sentir e se relacionar com o outro – o que tem a ver com os
interesses do conhecimento e da simpatia. De alguma forma, isso que visualizamos
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Instrução educativa e interesse múltiplo em Herbart: aproximações com a formação do sujeito ético em Foucault
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como perspectiva comum entre a concepção de formação de Herbart e o modo como
ela é compreendida pela hermenêutica confere com o modo como Marques (1993,
p. 108) conceitua a educação, isto é, como “alargamento do horizonte cultural, rela-
cional e expressivo, na dinâmica das experiências vividas e na totalidade da apren-
dizagem da humanidade pelos homens”.
Também podemos ver aproximações da concepção herbartiana com o enten-
dimento acerca da formação expresso por José Sérgio Fonseca de Carvalho (2017,
p. 26-27), para quem uma experiência se torna formativa através de sua dimensão
afetiva, quando vivê-la transforma algo em nós e inaugura uma nova forma de nos re-
lacionarmos com o mundo. Ainda, o que se espera como resultado da formação é “uma
forma de se relacionar com o saber” (LEFORT apud CARVALHO, 2017, p. 27), sendo
que a relação com o saber é necessariamente uma forma de relação com o mundo,
com seus objetos culturais e com as relações que estabelecemos como humanos. Nessa
linha de aproximações indicadas, pode-se dizer que a formação precisa produzir uma
forma de ser, o que se dá mediante a compreensão do modo humano de ser que, por
sua vez, está expresso nos signos que construímos intersubjetivamente ao longo da
tradição histórica e cultural, o que também designamos por conhecimento/saber.
A instrução educativa e a constituição de um modo ético de ser: aproximações
entre Herbart e Foucault
Para nos ajudar a pensar a constituição da subjetividade e de um modo ético
de ser a partir do desenvolvimento de um interesse múltiplo pelos diferentes temas
que configuram o mundo humano – os conteúdos do ensino – recorremos a Fou-
cault, porque ele se ocupou em investigar as relações entre o sujeito e a verdade, ou
de como nos subjetivamos a partir da verdade/saber/conhecimento. É importante
justificar a plausibilidade do recurso ao pensamento de Foucault para pensar o sen-
tido ético da formação humana, e o fazemos com base no entendimento de que ele
se ocupou notoriamente em compreender de que modo nos tornamos o que somos,
realizando uma hermenêutica do sujeito. Os esforços desse autor em compreender
como nos subjetivamos e, em especial, os estudos dos últimos anos de sua vida
acerca da ética da existência – em que o cuidado de si aparece como possibilidade
de uma “ética do eu” – são indiscutivelmente relevantes para a educação, conside-
rando que o seu esforço consistiu em criar possibilidades para a (trans)formação da
subjetividade em subjetivação de si.
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A recuperação da noção de cuidado de si nos permite conceber o conhecimento
em sua dimensão espiritual, isto é, não em sentido puramente racional e instru-
mental, como meio para fins de poder e dominação sobre o mundo e sobre os outros,
mas como tendo um fim em si mesmo à medida que possibilita uma transformação
do sujeito sobre si ao buscá-lo. A compreensão de Pedro Angelo Pagni (2015, p. 24)
sintetiza muito bem a amplitude existencial e ética do cuidado de si na concepção
de Foucault, destacando que o cuidado de si se configura como uma atitude para
consigo, para com os outros e para com o mundo; como forma de olhar para si que
demanda atenção ao que se pensa; como práticas espirituais de meditação e exercí-
cios espirituais sobre si que nos purificam, transformam configuram.
A temática da formação humana aparece justamente no momento em que Fou-
cault (2010, p. 43) mostra como a questão do cuidado de si, no diálogo platônico
Alcibíades, relaciona-se com a noção de paideia. Para o autor, a paideia é uma outra
forma de cultura “que gira em torno do que se poderia chamar de cultura de si, for-
mação de si, selbstbildung, como diriam os alemães”. Jaeger (2013) nos permite com-
preender a paideia como uma concepção alargada de cultura e, por isso, de formação
humana, que orientava a totalidade das manifestações de vida do cidadão da polis.
Era um princípio formativo do homem grego da antiguidade que buscava formar “um
elevado tipo de homem” (JAEGER, 2013, p. 5). Com isso, a formação representava
o sentido de todo o esforço humano. Resguardadas as devidas proporções, podemos
dizer que Herbart também se relaciona com esse ideal formativo, pois, como neo-hu-
manista6, cultiva uma imagem ideal de humano virtuoso e capaz de autoformar-se.
A alusão aos gregos se torna pertinente uma vez que eles se dedicaram a pensar
as suas próprias existências, o que os fez acreditar na necessidade de a educação se
constituir em um processo de construção consciente. Assim, a formação adequada
do homem grego deveria estar centrada no conhecimento de si mesmo, sobre/para
o corpo e o espírito. Ou seja, ao tomar a si como objeto de conhecimento e formação,
a paideia representava o esforço de cuidar de si, para o que o conhecimento ou a
verdade eram indispensáveis como uma forma de transformar-se, de praticar-se.
Isso diz de um modo específico de os sujeitos daquele tempo se relacionarem
com a verdade, com o conhecimento, dado que na Antiguidade não estiveram se-
paradas as questões de como ter acesso à verdade e a prática da espiritualidade.
Foucault (2010, p. 17) indica que também em Sócrates e Platão essas esferas não
estiveram separadas: “a epiméleia heautoû (cuidado de si) designa precisamente o
conjunto das condições de espiritualidade, o conjunto das transformações de si que
constituem a condição necessária para que se possa ter acesso à verdade”. Ou seja,
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a verdade/conhecimento era constitutiva do modo de ser dos sujeitos, mas que foi
transformado/esquecido/desvalorizado pela modernidade, junto com a desvaloriza-
ção da noção de cuidado de si. Perdemos, com isso, o sentido ético do conhecimento,
sua constituição como verdade que forma o modo de ser do sujeito.7 Como efeito
dessa perda, aquilo que o sujeito sabe, aquilo que ele diz, e, infelizmente, aquilo
que muitas vezes ensina, não se constitui para ele como uma verdade capaz de
produzir coesão entre ser, pensar e agir.
Pelo fato de Herbart e Foucault terem essa raiz grega em comum, torna-se
possível interpretar algumas das noções herbartianas a partir da hermenêutica
do sujeito de Foucault.8 Em Herbart, por exemplo, pode-se perceber o esforço em
pensar uma instrução que possibilite ao sujeito criar interesses múltiplos ao modo
de uma autoformação, dispondo aos jovens múltiplas formas de aprofundamento,
de afetação, de ocupação para consigo, com o outro, com o mundo. É nítido o desejo
desse pedagogo em possibilitar uma instrução educativa em que os sujeitos possam
ir construindo, como uma espécie de dispositivo, um senso crítico sobre si mesmos
e uma unidade entre aquilo que compõe o universo do sujeito e seu modo de ação.
Há, portanto, uma dimensão espiritual no interesse que o ensino é capaz de criar,
capaz de operar como condutor de sua reflexão ética.
Foucault acena para a noção de instructio no momento em que pensa o ele-
mento formador presente na ideia de prática de si, uma das dimensões do cuidado
de si. Esse elemento formador da prática de si aparece de forma mais marcante no
período helenístico e romano (séculos I e II) como desejo de preparar os jovens para
enfrentarem as intempéries da vida. Uma preparação que não visa a dotar o indi-
víduo de saberes para que se torne um “técnico em algo”, ou um bom governante,
como era o caso retratado no diálogo Alcebíades, mas um sentido de preparação que
se vincula ao ser do sujeito.
Esse outro sentido de preparação que se liga à prática de si é de interesse
primordial se quisermos pensar uma formação que se queira ética, pois se trata
de montar um mecanismo de segurança, como alegou Foucault (2010), e não de
inculcar um saber técnico e profissional ligado a uma atividade específica. Essa ar-
madura protetora capaz de armar os sujeitos para se defenderem das dificuldades
impostas pela vida em sociedade, pelos acidentes ou acontecimentos que possam
ocorrer ou se produzir, era chamada pelos gregos de paraskheué, traduzido por
Sêneca pelo termo instructio (FOUCAULT, 2010, p. 86).
Com Herbart podemos pensar uma instrução-preparação de si que se dá pelo
estudo, pela atenção, com o que se cria interesse, ou melhor, a disposição para
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um espírito multiplamente interessado. Interesse que designa “o tipo de atividade
espiritual que a instrução deve produzir...pois ela não deve se contentar com o
simples saber” (HERBART, 1985, p. 51). Em Herbart, o saber/conhecimento não é
para a instrumentalização do sujeito para um fim isolado, nem para doutriná-lo em
crenças, mas algo que lhe possibilita mover-se no mundo de modo autônomo, livre,
capaz de vontade moral. Algo muito próximo ao que Foucault concebe como saber
da espiritualidade.
A noção de saber da espiritualidade compreende, nas palavras do próprio Fou-
cault (2010, p. 16), a “necessidade de que o sujeito se modifique, se transforme, se
desloque, torne-se, em certa medida e até certo ponto, outro que não ele mesmo
para ter o acesso à verdade. A verdade só é dada ao sujeito a um preço que põe em
jogo o ser mesmo do sujeito”. Disso deriva que não pode haver verdade sem uma
espécie de conversão, sem uma espécie de retorno da verdade sobre o sujeito. E o
trabalho do sujeito sobre si mesmo é um dos movimentos que permite tal acesso
à verdade, um trabalho de transformação de si, de cuidado de si sobre si mesmo,
portanto, uma experiência ética de si.
A questão da verdade do sujeito exige uma relação do sujeito para consigo mesmo, a qual
implica, por sua vez, um tipo de “conversão a si” que não pode ser pensada nos moldes da
constituição do si mesmo como objeto do conhecimento, mas sim como modalização espiri-
tual do saber” (DALBOSCO, 2010, p. 199).
Conceber o conhecimento como modalização espiritual remete ao fato de que
possuímos uma condição humana hermenêutica, de que nossas subjetividades são
forjadas por compreensões próprias e necessárias aos sujeitos que vivem nesse mun-
do estruturado/criado por saberes, por crenças, por verdades. A tematização sobre a
nossa subjetivação pelo saber, pela verdade, como compreende Foucault, é próxima,
ressalvadas as particularidades, daquilo que Herbart imaginou como tarefa forma-
tiva da instrução. Algo que se torna evidente ao querer fundamentar o interesse dos
sujeitos pelo mundo e pelo humano através do ensino. Herbart entende que o ensino
opera no sujeito, age sobre seu modo de ser, porque, tal como Foucault, concebe a
dimensão formativa, transformadora e ética da verdade sobre o sujeito. E vai além.
Herbart ousa defender a potencialidade da instrução de criar interesses múltiplos,
capazes, por sua vez, de guiar o modo de decisão e ação dos sujeitos, ou seja, capazes
de formar um modo de ser ético. Assim, podemos dizer que a instrução ao modo de
uma preparação em Herbart é uma espécie de trabalho do sujeito sobre si mesmo. O
tempo dedicado ao aprofundamento, ao estudo, traz ao sujeito um novo modo de com-
preensão que, na perspectiva de Gadamer (2006), aparece como uma nova forma de
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Instrução educativa e interesse múltiplo em Herbart: aproximações com a formação do sujeito ético em Foucault
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o sujeito se ocupar, como uma nova liberdade. Este retorno da instrução-preparação-
-do estudo é, poderíamos dizer, uma experiência de cuidado de si. Tal é a dimensão
ética e formativa possibilitada pelo saber/conhecimento.
Esse tempo de preparação/cuidado de si poderia ser capaz de preservar algu-
mas dimensões do mundo que acreditamos serem necessárias de preservação, como
as conquistas civilizatórias. Isso porque “as conquistas civilizatórias só se mantêm
ou conseguem ser aprimoradas se forem objeto de aprendizagem e de cultivo por
parte das novas gerações” (BOUFLEUER, 2019, p. 6). Ou, ainda, se puderem se
tornar objeto de interesse para as novas gerações. Para Herbart (2003, p. 25), vale
repetir, tudo o que a nós alguma vez se apresentou como interessante continuará
ocupando lugar em nossa mente, mas somente aquilo que é “suficientemente forte
e com uma interligação múltipla é que se apresenta frequentemente à alma e o que
mais se salienta é que conduz à ação”.
O verdadeiro âmago da nossa existência intelectual não pode ser formado com êxito seguro
através da experiência e do convívio. Certamente que o ensino penetra mais fundo na ofici-
na das ideias. Pense-se no poder de todas as doutrinas religiosas! Pense-se no domínio que
exerce tão facilmente e quase subitamente sobre um ouvinte atento uma palestra filosófica!
Junte-se a força fértil da leitura de romances, porque tudo isso faz parte do ensino, seja ele
bom ou mau (HERBART, 2003, p. 81).
Disso deriva que o ensino/instrução/preparação é o meio pelo qual a educação,
ou a formação integral do humano, pode ser possível. Isso implica reconhecer a
dimensão formativa do conhecimento, ou, ainda, o fato de que nos humanizamos
através de processos de compreensão. Para Hilgenheger (2010, p. 19), a instrução
de Herbart:
[...] visa, antes de tudo, a fazer convenientemente “compreender” o mundo e os homens.
Esta “compreensão do mundo” guiada pelo ensino, no entanto, não serve apenas à trans-
missão de conhecimentos e à formação de aptidões e qualificações; ela está, prioritariamen-
te, a serviço da “tomada de consciência moral” e do “reforço do caráter”. Pela instrução se
exerce uma influência na formação do caráter.
Isso nos leva a interpretar a instrução educativa como processo de compreen-
são e, por isso, de apropriação de si e do mundo. De si, porque Herbart está de-
masiadamente preocupado com a autoformação da individualidade, com a possi-
bilidade de os sujeitos tomarem a si como ponto de reflexão e ação, de guiarem
autonomamente e eticamente seus pensamentos e suas ações. E do mundo, porque
o caráter ético da instrução educativa, ou melhor, o fato de a formação da morali-
dade ser um objetivo necessário a ser alcançado pela instrução educativa já indica
o reconhecimento de que, como humanos, precisamos encontrar modos razoáveis,
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justos, solidários, éticos, que guiem o modo como compartilhamos o mundo. Isso
significa que a compreensão do mundo é um pré-requisito para a formação do “ser
ético”, porque é com base no que sabemos, acreditamos e sentimos que tomamos
nossas decisões e agimos. Enfim, “[...] as ideias se transformam em emoções que,
por sua vez, se transformam em princípios e modos de agir” (HERBART apud HIL-
GENHEGER, 2010, p. 19).
Considerações nais
O navio, cuja construção está feita com toda a arte para ceder às ondas e ao vento, espera
pelo piloto para lhe indicar o seu destino e conduzir o seu curso de acordo com as circuns-
tâncias (HERBART, 2003, p. 75).
De tudo o que aqui apresentamos, destaca-se o entendimento de que a dimen-
são formativa do saber deriva do fato de ele ser um dos fundamentos da subjeti-
vidade. Isso se articula com o reconhecimento de nossa condição hermenêutica,
de seres que “se fazem” através da experiência da compreensão, maculada pela
história e pelas relações humanas. Ou seja, aquilo que somos é, em boa medida, o
que sabemos sobre nós, sobre o outro, sobre o mundo.
Isso nos leva a compreender que, dada a nossa condição humana aberta, sem
sentidos naturalmente postos sobre como viver, somos compelidos a eleger ideais
que nos guiem na permanente reconstrução do mundo comum e de nossas subje-
tividades. A educação representa nossos esforços em continuar alimentando um
ideal de mundo e de humanidade. Resta sabermos se queremos que esses ideais
sejam éticos, assentados na liberdade dos sujeitos de construírem autonomamente
o ser que desejam para si, ou se queremos apenas conformar as novas gerações à
realidade que já está posta. E se a nossa resposta for em direção à primeira opção,
não restam dúvidas de que há muito a ser aprendido com a tradição grega, com a
tradição moderna da Aufklärung que se expressa em Herbart (2003), com os estu-
dos de Foucault (2010), e de outros tantos que se importaram com a ética da vida,
com as subjetividades e, por isso, com o mundo.
Com Herbart aprendemos que somos orientados/movidos/interessados e agi-
mos a partir do nosso círculo de pensamentos, ou do nosso horizonte de pensamen-
to, forjados pela experiência de sermos sujeitos no mundo, pelas aprendizagens
acerca desse mundo e das relações humanas nele estabelecidas. Aquilo que nos
interessa, que ocupa nosso espírito de forma mais significativa, é o que estará pre-
sente de forma mais constante no nosso pensamento, e por isso irá impactar no
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modo como decidimos agir. Dito de modo bastante simples, os saberes que mais
nos interessam irão se sobressair no momento em que somos convocados a decidir
sobre algo. Tal é a importância da instrução educativa de Herbart e daquilo que
é sua finalidade prática mais urgente, que é a multiplicidade do interesse, pois o
sujeito que foi instruído e educado com base na multiplicidade do interesse dispõe
de maior liberdade interior. Por isso a noção de multiplicidade do interesse de Her-
bart carrega o sentido ético de sua pedagogia, porque é uma noção espiritual, que
se liga à aposta no conhecimento como caminho para a formação do sujeito dotado
de vontade moral: um interesse que mobiliza no sujeito uma conduta ética. Ao
recuperar em Foucault as noções do cuidado de si, das práticas de si, da espiritua-
lidade como caminho para a transformação de si pela verdade, encontramos modos
de existir que inspiram a pensar os objetivos da formação humana. Afinal, só nos
dedicamos a essa tarefa porque acreditamos que não há um instinto que determi-
ne, pelo menos de todo, como devemos ser, sentir, agir. Logo, é preciso trabalhar
com ideias humanas sobre como formar humanos em humanos. E essas ideias não
nascem espontaneamente, tal qual toda e qualquer teorização acerca da educação.
Elas nascem da tradição histórica, cultural e social que nos constitui. Por essas
razões é que o esforço de Foucault em recuperar os movimentos desse modo de
vida – que marca o cuidado de si – é tão importante para quem pensa a formação.
Importante porque os sentidos formativos inerentes ao cuidado de si nos levam ao
reconhecimento do caráter de modalização espiritual que as compreensões acer-
ca das objetividades do mundo (ou das pretensões de verdades) nos possibilitam.
Compreensões que podem se materializar nos saberes/conhecimentos escolares e
criar condições para a formação ética das novas gerações, principalmente se sus-
tentadas pelos objetivos formativos da instrução educativa de Herbart, balizadas
pela multiplicidade do interesse.
Notas
1 Herbart nasceu na cidade de Oldenburg, situada ao norte da Alemanha, em 4 de maio de 1776, e morreu
em 11 de agosto de 1841em Göttingen. Aos 16 anos iniciou seus estudos acerca da moral kantiana, uma
inquietude que o seguiu durante toda a sua vida. De 1794 até 1797, foi aluno de Fichte, na Universidade
de Iena. Atuou como preceptor de uma família da Suíça durante dois anos, experiência que o levou a dedi-
car-se ao estudo da pedagogia. Nesse período contou com a influência de Pestalozzi, de quem também foi
amigo. Foi professor nas universidades de Göttingen e de Königsberg, onde sucedeu a Kant. Dedicou-se à
experimentação pedagógica criando, com a ajuda de Humboldt, um seminário pedagógico para a formação
de professores do ensino secundário, bem como uma escola modelo.
2 O caráter formativo da instrução educativa insere Herbart na tradição alemã da Bilgung, como indicam
Vilanou, Farrero e Arada (2018). Os mesmos autores também destacam que Herbart é conhecido por fun-
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damentar a pedagogia como ciência e por dedicar-se a pensar a formação da individualidade, propondo
uma solução estética para o problema da moral, “uma espécie de estética da sensibilidade estimativa que
nos faz aceitar ou rejeitar uma determinada ação moral” (2018, p. 226, tradução nossa).
3 Quanto ao método, Hilgenheger (2010, p. 20) explica que: “Herbart resolveu o problema do método peda-
gógico baseando-se em sua doutrina psicológica do ‘Interesse’. [...]. Ao contrário do desejo, que pode ser
aumentado pelo interesse, o interesse não dispõe ainda de seus objetos. Herbart define a estrutura ideal
do interesse pelo termo ‘multiplicidade’. O interesse se forma assim que o sujeito apreende uma ‘multipli-
cidade’ de objetos ‘em profundidade’ e liga os traços que estes aprofundamentos deixaram em sua memória
por meio de uma ’rememoração global’”.
4 Conforme Odair Neitzel (2019, p.21), o círculo de pensamentos é base da fortaleza do caráter ético.
5 Como já vimos anteriormente, para Herbart, na interpretação de Hilgenheger, é o interesse que estabelece
as primeiras ligações entre o sujeito e o objeto, determinando o horizonte no qual ele é capaz de perceber
ou não o mundo. Se para a hermenêutica o processo de significação equivale a trazer algo para o mundo
ou ampliar o mundo do sujeito, a ampliação do interesse, em Herbart, opera da mesma forma, permitindo
perceber ou não algo no mundo.
6 Conforme Thomas Ransom Giles (1983, p. 80-81, os neo-humanistas: “Admiram a Grécia e Roma antigas,
mas apenas como modelos que deverão servir para a criação de um novo ímpeto cultural, incorporando-o
aos novos quadros criados pelos avanços nas Ciências Naturais, bem como pelas contribuições do Iluminis-
mo. Em termos do processo educativo, tratava-se de criar o grego moderno”).
7 Com Dalbosco (2010) percebemos que essa separação entre o que poderíamos chamar de “ser e saber”
aparece de modo mais acentuado a partir daquilo que Foucault denomina de “momento cartesiano” da
filosofia, iniciado no século XVII, e que desqualifica a noção de cuidado de si ao transformar o acesso à ver-
dade na única questão importante do conhecimento. “Ao fazer isso, ela [a filosofia] considerou como insig-
nificante a questão das modificações sobre si mesmo que o sujeito deveria fazer para ter acesso à verdade”
(2010, p. 197). “O que Foucault reclama, contra o momento cartesiano, é que o problema da verdade não se
coloca só no âmbito da representação mental que o sujeito faz daquilo que está a sua volta. Tal problema
é algo mais abrangente, uma vez que, além da questão do domínio representacional de objetos, tem a ver,
também, com um tipo de saber voltado à pergunta ‘como fazer para viver como se deve?’” (2010, p. 197).
Trata-se aqui da recorrência ao sentido ético do conhecimento, sentido que se perdeu especialmente a par-
tir de uma filosofia da consciência que passou a tomar o conhecimento como algo diante do qual o sujeito
se encontra, algo que o sujeito domina e manipula com vistas a objetivos que venha a se colocar.
8 Odair Neitzel (2019, p. 77ss) entende que, possivelmente também inspirado na mesma noção latina de
instructio, recuperada por Foucault, Herbart formula a ideia de que não há educação sem instrução, nem
instrução sem educação, acenando para uma formação que reconhece a necessidade de preparar os jovens
para o mundo, não como prescrição metódica e doutrina absoluta, mas como condição de possibilidade
para que consigam tomar as suas vidas nas próprias mãos, para que consigam construir para si uma vida
afetada pelas relações humanas e com o mundo.
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Instrução educativa e interesse múltiplo em Herbart: aproximações com a formação do sujeito ético em Foucault
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