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A faceta negativa na ação pedagógica e seu caráter formativo
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A faceta negativa na ação pedagógica e seu caráter formativo
A faceta negativa en la acción pedagógica y su carácter formativo
The negative facet in pedagogical action and its formative character
Odair Neitzel*
Resumo
A presente investigação resulta de uma revisão bibliográca, de perspectiva epistemológica hermenêutica e
analítica. Aborda o tema da dimensão negativa nos processos de formação humana. Tem por objetivo reetir
e chamar a atenção para a importância da investigação e compreensão desta faceta da ação pedagógica, suas
implicações e presença de modo geral na constituição e existência humana. Pretende oferecer uma reexão
sobre o caráter ontoantropológico da negação no processo de constituição dos sujeitos e sinalizar em que me-
dida a presença da negação pode ser formativa ou prejudicial para o desenvolvimento humano. Para tanto, faz
aproximação com o conceito de disciplina formativa da Pedagogia Geral de Johann Friedrich Herbart, que pode
ser compreendida como suspensão do habitual, do já aceito, das crenças, proporcionando essencialmente um
momento de descontinuidade e abertura para o mundo, permitindo aos sujeitos se tomarem em reexão e re-
construção, visando o fortalecimento da capacidade de decisão moral. Constata-se assim, que a faceta negativa
da ação pedagógica, ao se caracterizar não como negação do sujeito, mas como descontinuidade e consequen-
te estranhamento e perplexidade, proporciona um momento de grande riqueza formativa fundamental para o
conhecimento e às práticas pedagógicas.
Palavras-chave: Herbart; disciplina formativa; ética; conhecimentos e práticas educacionais.
Resumen
Esta investigación es el resultado de una revisión de la literatura, desde una perspectiva hermenéutica y analítica
epistemológica. Trata de la dimensión negativa en los procesos de formación humana. Su objetivo es reexionar
y llamar la atención sobre la importancia de la investigación y la comprensión de esta faceta de la acción peda-
gógica, sus implicaciones y su presencia en general en la constitución y la existencia humana. Tiene por objeto
ofrecer una reexión sobre el carácter ontoantropológico de la negación en el proceso de constitución de los
sujetos y señalar en qué medida la presencia de la negación puede ser formativa o perjudicial para el desarrollo
humano. Para ello, se aproxima al concepto de disciplina formativa de la Pedagogía General de Johann Friedrich
Herbart, que puede entenderse como una suspensión de lo habitual, de lo ya aceptado, de las creencias, propor-
cionando esencialmente un momento de discontinuidad y de apertura al mundo, permitiendo a los sujetos que
se tomen a sí mismos en reexión y reconstrucción, con el n de reforzar la capacidad de decisión moral. Así, el
lado negativo de la acción pedagógica, al caracterizarse no como negación del sujeto, sino como discontinuidad
y consecuente alejamiento y perplejidad, proporciona un momento de gran riqueza formativa fundamental para
el conocimiento y las prácticas pedagógicas.
Palabras clave: Herbart; disciplina formativa; ética; conocimiento y prácticas educativas.
* Doutor em Educação (Universidade de Passo Fundo/Universität Kassel). Professor Adjunto na Universidade Federal Fron-
teira Sul – campus Chapecó. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-8121-1149. E-mail: odair.neitzel@us.edu.br
Recebido em: 29/01/2021 – Aprovado em: 25/11/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i3.12234
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Abstract
This research results from a literature review, from a hermeneutic and analytical epistemological perspective.
It deals with the negative dimension in human formation processes. It aims to reect and call attention to the
importance of research and understanding this facet of pedagogical action, its implications and presence in
general in the constitution and human existence. It intends to oer a reection on the ontoanthropological cha-
racter of denial in the process of the subjects’ constitution and to signal to what extent the presence of denial can
be formative or harmful to human development. To this end, it approaches the concept of formative discipline
of the General Pedagogy of Johann Friedrich Herbart, which can be understood as a suspension of the usual,
the already accepted, of beliefs, essentially providing a moment of discontinuity and openness to the world,
allowing subjects to take themselves in reection and reconstruction, aiming at strengthening the capacity of
moral decision. Thus, it can be seen that the negative side of the pedagogical action, by characterizing itself not
as a denial of the subject, but as discontinuity and consequent strangeness and perplexity, provides a moment
of great formative richness fundamental to knowledge and pedagogical practices.
Keywords: Herbart; formative discipline; ethics; knowledge and educational practices.
Introdução
Crianças necessitam da presença de outras crianças, principalmente na pri-
meira infância. Esta afirmativa poderia ser corroborada e justifica por inúmeros
argumentos, mas a apresentamos aqui como ponto de partida e provocação, para
que o leitor seja remetido em seus pensamentos, para alguma memória ou cenas de
crianças brincando em uma praça, talvez na beira da praia, na escola, em alguma
rua, mas sempre brincando com outras crianças. Crianças precisam estar com outras
crianças, atividade que é fundamental, desejada e salutar para o seu desenvolvimen-
to e aprendizado. Não é necessária muita coisa para que rapidamente as crianças
se coloquem a brincar. Geralmente saber o nome da outra criança é suficiente para
iniciar a interação. De forma quase mágica, as diferenças, suas dificuldades e neces-
sidades, classe ou status sociais são pausadas e sessam se assim for permitido pelos
adultos. A brincadeira é um mecanismo essencial em torno do qual as crianças se
ocupam com as coisas, descobrem-se mutuamente e fantasiam juntas1.
Diante dessa provocação inicial gostaríamos de levar o leitor à pergunta que
não é nova, mas que se repete de tempos em tempos no pensamento filosófico e na
tradição pedagógica: com esses seres recém-chegados ao mundo, a princípio tão
semelhantes em suas necessidades e condições, podem constituir-se em adultos tão
múltiplos – não em formas físicas –, mas em sonhos, objetivos, modos de ser, em
caráteres? Ademais, como crianças inocentes tornam-se adultos bons ou maus? É
mais desconcertante perguntar, quando observamos as crianças em tenra idade,
como tornar-se adultos capazes de praticar o mau, a desonestidade, o preconceito,
a xenofobia, a ganância, etc.? Por que se tornam egoístas e egocêntricas, incapazes
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de sensibilizar-se com os outros? Ou em uma outra perspectiva, como tornam-se
adultos capazes de ser solidários, sensíveis aos outros, sábios e capazes de decidir
com criticidade, inteligência, lógica, de fazer uso de boas razões, ou ainda, dedicar
suas vidas em favor das causas humanitárias, das pessoas que vivem em situações
de fragilidade, risco ou desamparo?
Independente das muitas possíveis repostas que se possa oferecer, certamente
é decisivo para as crianças e aquilo que virão a ser, o percurso formativo no desen-
volvimento de sua própria identidade e de seu caráter. Obviamente não é objetivo
deste ensaio dar conta de todas estas questões, mas pretende, de alguma forma,
refletir sobre alguns aspetos e contribuir com a investigação dos processos formati-
vos das novas gerações. Afinal, esses questionamentos não possuem uma resposta
única, simples e definitiva, pois são um problema constante do pensamento huma-
no. O que nos tornamos e continuamos a nos tornar mesmo como adultos, resulta de
um conjunto de ações formativas aos quais os sujeitos estão inscritos. São processos
interativos, comunicativos e sintéticos pelos quais um sujeito se constitui em um eu.
Esse tema sempre urgente, ganha força diante do desenvolvimento progres-
sivo de dispositivos de vigilância, enquadramento e sujeição na sociedade contem-
porânea, para o prejuízo da autonomia, da defesa da liberdade e do autogoverno
dos sujeitos, que são enfraquecidos e fragilizados em sua capacidade de decidir e
fazer juízos de modo autônomo. A impressão é que progressivamente as pessoas
têm pautado suas tomadas de decisão com base em mecanismos de controle e vi-
gilância. Enfraquece-se a capacidade de decidir moralmente com autonomia sobre
o que é mais acertado para si e para os outros. Ou seja, as pessoas passam a se
orientar em suas ações de acordo com o alcance dos dispositivos de policiamento e
vigilância, por medo da punição, da censura e de ser marginalizado pelo sistema. O
medo é sempre da punição imediata.
A capacidade de compreensão destes sujeitos é, consequentemente, mais res-
trita, inviabilizando a compreensão das implicações sociais e políticas em cada ação
tomada. Essa incapacidade de discernir se coloca na contramaré dos ideais clássi-
cos de formação como a Paideia grega e a Bildung alemã. Trata-se de um encurta-
mento ou atrofiamento do alcance da decisão moral, que não consegue escapar ao
encapsulamento egoísta de uma sociedade capitalista imediatista e consumista.
A sociedade contemporânea é marcada por uma potencialização de seus recursos
informativos e suas múltiplas formas de expressão e linguagens, em múltiplos
meios e canais de acesso à conteúdos, conhecimentos, jamais vistos e disponíveis
na história humana. Nos impressiona que, paradoxalmente, esse cenário não tem
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se vertido em qualificação do “senso comum” ou da capacidade crítica de avaliação
moral por parte da sociedade2.
Se a educação é dinâmica, sempre inscrita no contexto histórico e circunstan-
cial, é nesse espaço-tempo que o sujeito assume diferentes feições e perspectivas.
A história da educação humana se configura por correntes e perspectivas teóricas
diversas e divergentes entre si; mas também com temas e pontos de convergências.
Diante destas teorias e investigações corre-se o risco de abandonar apressadamen-
te temas por darem impressão de já resolvidos. Da mesma forma, poderíamos afir-
mar que há temas, conceitos, fundamentos que não deveriam ser negligenciados e
que sempre se encontram atravessados nas investigações do campo educacional,
por seu caráter fundamental e ontológico. Há ainda temas que ficam suspensos ou
assumem status de intocáveis, suspeitos e beirando a certos tabus.
Por esta razão é sempre vital que sempre retornemos à pergunta nuclear sobre o
qual se assentam as reflexões educacionais: qual é a característica ontoantropológica
do ser humano? Em um possível rol de conceitos que buscam definir as necessidades
e a condição humana, está o conceito basilar sob o qual se sustenta a pedagogia, a
saber: a educabilidade do educando; ela é a condição primordial de todo ser humano
que emerge neste mundo. A capacidade de ser educado é o fundamento da pedago-
gia. É sobre ela que funda e sustenta toda teoria educacional, permitindo pensar e
crer que seja possível educar e ser educado. Herbart afirmava, categoricamente, que
o “fundamento da pedagogia é a educabilidade do educando” (Der Grundbegriff de
Pädagogik ist die Bildsamkeit des Zöglings) (HERBART, 1902, p. 69).
Muitos pensadores se ocuparam com essa questão e, dentre eles, Johann Frie-
drich Herbart (1776-1841). Para o autor da Pedagogia geral – provavelmente o
maior clássico da pedagogia no século XIX –, a educabilidade do ser humano é o
fundamento da pedagogia e é sob ela que reside a dimensão ontológica que permi-
te a existência da ação pedagógica, do ato de educar e tudo que a ela se vincula.
Radicalizando essa afirmação, poder-se-ia dizer que não haveria mundo humano
sem essa propriedade humana. A educabilidade é a abertura ontológica pelo qual o
homem acessa o mundo e a si mesmo e realiza o processo de construção da biografia
de um eu.
Para defender essa tese, Herbart – que em certa medida segue os passos de
Kant – discorda de seu precursor na cátedra de Königsberg sobre o caráter trans-
cendental da liberdade. A liberdade do sujeito é algo que é educado nos sujeitos. É
a formação para uma vontade fortalecida. Em Herbart não se educa para o dever,
mas para o querer. Para ele, o caráter de transcendentalidade da liberdade nega a
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possibilidade de edificar qualquer proposta pedagógica, pois exclui a possibilidade
de conceber a educação como um processo de construção da liberdade moral. Sendo
caracterizado ontoantropologicamente como sujeito educável, a ação pedagógica
deve zelar pela formação, a partir do fomento da abertura humana, desenvolvida e
educada à medida que o homem se constitui como um ser no mundo.
Para tanto, deve desenvolver a liberdade interior através da ação pedagógica
e pelos processos formativos. A liberdade interior é que possibilita ao ser humano
a capacidade de moralidade ou a força do caráter moral3. É a formação consistente
do caráter do sujeito, esclarecido, que permite que se posicione criticamente contra
a barbárie e tudo que é destrutivo para a vida de modo geral.
É por esta razão, entre outras, que a pedagogia de Herbart ganha em atuali-
dade e se torna nuclear na tarefa de educar a liberdade interior do sujeito para que
se constitua em um sujeito moral (ENGLISH, 2013, p. 7). A compreensão adequada
da liberdade interior é que torna possível ao educador desenvolver uma ação peda-
gógica formativa para a liberdade moral. Cabe a este se perguntar como é possível
educar um sujeito para que se torne capaz de fazer escolhas a partir de si mesmo,
elegendo o bem para si e para os outros e refutando o mal? Nesse sentido, tal per-
gunta busca por aquilo que torna um sujeito capaz, a partir dos processos formati-
vos, de deliberar, realizar juízos morais, abandonar e resistir as inclinações egoístas
e perigosas à própria vida singular e coletiva, orientando-se para o bem de todos.
O fato é que a reflexão passa pelo tema da educabilidade (Bildsamkeit), ca-
racterística pela qual é facultado ao ser humano aprender todas as coisas e é a
condição pela qual é possível educar um ser humano em sua liberdade interior. A
educabilidade que em Rousseau é a faculdade das faculdades, é a capacidade de
aprendizagem livre e aberta ao mundo, que nos distingue das demais espécies de
animais4. É ela que permite ao ser humano educar-se e encontrar seu autogoverno
e autodomínio frente a sua natureza impetuosa e às necessidades próprias de sua
constituição e às necessidades resultantes de artifícios humanos.
A noção de Bildsamkeit de Herbart enfatiza essa capacidade humana de romper consigo
mesmo e ir contra inclinações egoístas como base para a capacidade humana de se tornar
moral. Esta ruptura consigo mesmo, a que podemos chamar uma forma de autoalienação,
relaciona-se com a forma como aprendemos através de encontros com coisas no mundo
que são desconhecidas, inesperadas e estranhas. Esse é um tipo de interação ou formação.
Ambos os termos, Bildung e Bildsamkeit, derivam da palavra raiz bild, que significa forma,
e o termo bildsam pode ser associado ao uso do termo Bildsamkeit por Herbart, que reflete
estes significados. O conceito capta a capacidade do indivíduo de se formar e ser formado
e, assim, se conecta ao movimento de Bildung (ENGLISH, 2013, p. 12, tradução nossa)5.
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Nisso se evidencia um aspecto fundamental do processo formativo do mundo
humano que é o encontro com o outro. Interessante notar, segundo Andrea English
(2013, p. 12-13), que essa concepção processual de formação de certo modo atraves-
sa a história das ideias pedagógicas, estando presente na tradição do pensamento
filosófico educacional como o alemão remontando até o pensamento clássico grego
nas enigmáticas figuras de Sócrates6. Nesta tradição do pensamento pedagógico é
nuclear a concepção de desenvolvimento interior do sujeito moral, circunscrito ao
encontro com os outros na alteridade.
Nesse sentido, pode-se afirmar que, se o sujeito se devolve na interação com
objetos no conhecimento do mundo, assim, na interação social humana, se desen-
volvem as capacidades éticas e políticas. Ou seja, no encontro com outros humanos
iguais a si e, paradoxalmente, diferentes. Iguais no caráter ontoantropológico de
seres dotados de capacidade de aprender e abertos ao mundo, mas diferente como
a outridade fora do “mim” e que, em sua presença, confronta e desafia o eu.
Esse encontro com o outro é transformador por vários aspectos, como carregar
potencialmente a negação e proporcionar um distanciamento do sujeito em relação a
si mesmo, ou seja, das próprias convicções, conceitos e valores assumidos habitual-
mente7. O encontro com o outro pode proporcionar a percepção dos limites e falhas,
qualidades e acertos e, permitir que no olhar do outro o sujeito encontre a si mesmo.
Importante ter clareza de que esse encontro como potencializador da negação, só é
formativo se não subjugar, excluir ou negar o outro da e na relação. O encontro não
pode nesse caso, negar ou afirmar o outro ou a si mesmo, mas causar suspensão de
uma percepção, valor ou algo habitual, provocando o estranhamento ou perplexida-
de. A alteridade proporciona o que Herbart denomina de luta interior (inerer Kampf).
Afirma que cada “individualidade é e permanece um camaleão; e a consequência
disto é que cada sujeito está por vezes em luta interior8 (HERBART, 1887, p. 93).
O encontro deve proporcionar um estado de reflexão pelo qual o sujeito põe à
prova suas perspectivas e modos de compreender as coisas, reafirmando/refutando
e, reconstruindo-se nesse embate. É nesse processo constante que desenvolvemos
um calor moral ou inclinação para o bem (HERBART, 1887) e que não pode ser
realizado de modo solipsista e autopoético; mas resulta de um processo comunica-
tivo e interativo, do sujeito que se vê defronte do outro e do mundo externo que o
confronta e, que de alguma forma, oferta resistências e, instaurando rupturas em
relação a si mesmo, desencadeia um processo reflexivo.
Isso nos permite visualizar que a educação em Herbart é, em última instân-
cia, um movimento de colocar o sujeito em autorrelação consigo mesmo. Exige-se
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dele distinguir entre aquilo que se apresenta como diferente, aquilo que é novo ou
habitual e, em um processo dialético, reconstruir-se a partir desses elementos. É
nesse sentido que se inscreve progressivamente o espaço do encontro das crianças
como brevemente sinalizado no início dessa nossa reflexão, no qual o sujeito re-
cém-chegado ao mundo debuta. É o espaço da alteridade em que a educabilidade
se põe em jogo e, nesse jogo, no encontro com o outro, se faz sentir e perceber, na
negação enquanto abertura para além de si mesmo e do mundo que lhe é familiar
e habitual. É um momento formativo pelo qual o sujeito aprende, sendo desafiado
a olhar o mundo para além de si mesmo e da sua circunscrição9.
É justamente esse momento negativo da ação pedagógica que coloca em jogo
a educabilidade ou Bildsamkeit e que nos interessa aqui. Neste conceito, que ocu-
pa lugar nuclear em pensadores como Herbart (1902), Rousseau (1988, 2014) e
John Dewey (1979, 2010), acreditamos encontrar um elemento negativo da ação
pedagógica enquanto formativa, distinta de propostas que tomam a negação como
objetificação do sujeito. Esses pensadores se distinguem de teorias tradicionais que
entendem os educandos como humanos incompletos e lacunares, pequenos adultos,
que carecem ser completados de algo, não enxergando na criança um outro.
Herbart (1887, 1902) concebe o educando como sujeito aberto ao mundo. Sua
condição ao nascer ou emergir neste mundo é de educável e através do processo
formativo será potencializado na capacidade e fortaleza de deliberação moral. É
através do processo formativo que se desenvolve a liberdade interior tornando pos-
sível a edificação de uma autêntica esfera ética e política humana. A Bildsamkeit
é a capacidade humana de aprender sem ser possível determinar exatamente os
limites e alcances de seu potencial, subscrita às circunstâncias dadas nas quais
somos inserimos e nos limites singulares de cada individualidade.
É a partir do estatuto humano de educável que Herbert edificou sua proposta
de uma Pedagogia geral (1806/1887). Para o pensador educar a liberdade interior
passa pela ação pedagógica do governo das crianças, da instrução educativa e, por
fim, da disciplina formativa. Esta estrutura tripartida da pedagogia de Herbart
têm um profundo cuidado com o fomento da liberdade interior e da preservação da
capacidade de desenvolvimento de uma individualidade autônoma. O fato é que a
manutenção dessa liberdade interior, essa abertura ao mundo, não se dá somente
pelo aspecto afirmativo, positivo, construtivo, propositivo da ação pedagógica, mas
também pela descontinuidade, pela interrupção e suspensão do habitual e daquilo
que é fluido10. Essa faceta da ação pedagógica e do processo formativo é o que se
pode denominar de caráter negativo da ação pedagógica ou negação.
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É com essa faceta da ação pedagógica e da educabilidade humana que nos
ocuparemos na sequência. Afinal, educar para a liberdade individual, desenvol-
ver uma ação pedagógica de fomento à liberdade interior, não pode ser realizada
adequadamente como ação somente positiva/propositiva de apresentar coisas pelo
ensino, de instruir, mas incorpora em si uma dimensão ontológica negativa, de
descontinuidade e que é de fundamental importância para o processo formativo.
A dimensão negativa da ação pedagógica
Para Koch (2005), o homem é o único ser que tem a possibilidade de realizar
um juízo negativo. Sustentado nos experimentos de Gehlen, afirma que a ação
ciente de negar algo dado, de remover um obstáculo, são caraterísticas exclusivas
do ser humano. A possibilidade de livre escolha pela negação é um elemento antro-
pológico exclusivo do ser humano. Segundo Koch (2005, p. 91), essa constatação é
de tal relevância que “a posição especial do homem, tantas vezes duvidado, poderia
ser determinada de forma mais crível do que de qualquer outra forma, consideran-
do que ele é o único que sabemos ser capaz de negatividade no reconhecimento e
na ação”11.
Koch defende a tese de que no aspecto negativo da ação pedagógica em suas
diferentes manifestações (Spielformen) é possível identificar algo fundamental
para o pensamento pedagógico mesmo que não tenha sido absorvida e incorpora-
do adequadamente pelas teorias educacionais. Exemplos clássicos da presença e
da consideração da faceta negativa da ação pedagógica podem ser rastreados em
Rousseau, em sua educação negativa do Emílio, ou em Herbart e sua concepção de
disciplina formativa12 (KOCH, 2005, p. 88).
Koch apresenta possíveis razões pelas quais a tradição pedagógica ignorou em
certa medida uma investigação mais atenta à dimensão negativa na ação pedagó-
gica, das quais cabe destacar: (1) a predicação apressada e equivocada da negação
como algo mau, vazio, dispensável, prejudicial e; (2) a associação, no contraponto,
de positivo com a ação edificante, propositiva, boa, propulsora de conhecimento e
do saber. Estas seriam, entre outras, duas razões que teriam levado a investigação
pedagógica a negligenciar a dimensão negativa também na ação pedagógica, im-
plicando também no modo como se pensa, prática e organiza a educação. O fato é
que este aspecto e seu lugar nos processos formativos não são claramente definidos
pelas teorias educacionais, principalmente, se levarmos em consideração a propor-
cionalidade da preocupação propositiva em relação à reflexão sobre o aspecto ne-
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gativo, tornando problemático a existência de um não ser (Nicht-Sein) pedagógico
(KOCH, 2005, p. 89).
Isso nos leva a crer que a dimensão negativa no ato pedagógico se encontra
obscurecida e precisa ser mais bem compreendida. Segundo Koch (2005), a rever-
são desse processo torna-se fundamental e pode ser operada através de ações que
inicialmente descortinem a presença irrefutável da dimensão ontológica da nega-
ção na vida, de modo geral. Ou seja, através de constatações por meio de premissas
lógicas elementares, como na expressão “A chuva não chegou”, ou ainda, “A perna
não está quebrada”. Essas sentenças evidenciam de modo simples o equívoco de
se associar a negação com o que é mau ou prejudicial e mostram que a dimensão
negativa proporciona possibilidades múltiplas de alternativas ou, ainda, de ser
algo bom.
A intenção é mostrar que a negação, num sentido de interrupção, descontinui-
dade e de um não-ser não pode ser tomada necessariamente como um ato falho,
equivocado ou prejudicial. Na medicina, por exemplo, o diagnóstico de um câncer
que se apresente negativo é uma boa notícia e é libertadora. Isso significa que
tanto a sentença positiva quanto a negativa precisam primeiramente ser contex-
tualizadas e tomadas em um sentido adequado para definir o que é e o que não
é. Nisso reside um primeiro aspecto pedagógico em relação à negatividade, e que
diz respeito a prudência em tomar a negatividade com algo mau ou ruim de modo
imediato e acrítico.
A partir disso, Koch pensa, de modo geral, que os princípios (Urteilen) negati-
vos implicam diretamente nos processos de conhecimento. Trata-se de compreen-
der a relação entre negatividade e conhecimento. Koch traz presente a afirmação
de Hegel Et determinatio negatio est (Toda afirmação repousa sobre uma negação).
Esse pressuposto pretende deixar claro que uma coisa só pode ser afirmada, deter-
minada ou distinguida a partir de um outro semelhante. Essas distinções são em
si juízos determinantes (Urteilen) negativos (KOCH, 2005, p. 89). Como exemplos
podemos tomar as sentenças-juízos “A negatividade não é maldade”, ou ainda “A
terra não é um disco”. Consequentemente, somos levados a afirmar que “sem juízos
negativos não podemos distinguir. Sem distinguir, tudo o que sustentamos conhe-
cer, submerge em indistinção”13 (KOCH, 2005, p. 90).
A negação é que permite que se distinga as coisas em uma multiplicidade
de elementos. A dimensão negativa assume uma função de extrema importância
para o nosso conhecimento, que não pode ser ignorado e, segundo Koch (2005), está
ligado à nossa capacidade de realizar abstrações. No caso da distinção, não seria
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possível conhecer/reconhecer a nós mesmos ou as outras coisas e pessoas sem nos
“separar de algo”. Dito de outro modo, não nos seria dado a possibilidade de nos
distanciar, de nos afastar e abstrair das coisas.
Esses argumentos nos levam de volta à ideia de uma antropologia negativa
e à afirmação de que somente o ser humano é capaz de realizar juízos negativos.
Um animal pode ser treinado para realizar certas escolhas e ações impeditivas,
mas não para justificar as opções pela negação. Ou seja, o ser humano é um ser
“capaz de dizer não”, oferecendo suas razões. Assim, a negatividade, como uma
característica antropológica humana se sustenta no argumento de que é facultado
ao ser humano estar em permanente protesto contra toda mera realidade14. Uma
antropologia negativa de alguma forma evidencia-se como desvio, diferença, mas
nuclearmente, como abertura.
É justamente esse aspecto de proporcionar abertura pelas características de
distinção, interrupção, da não associação apressada da negação com o que é mau,
que a negação se torna formativa. Cabe destacar que se trata de uma negação
relativa, já que não é facultado ao ser humano, em sua razoabilidade, a possibili-
dade de uma negação absoluta. Mas, de outra parte, não possibilita ao ser humano
esquivar-nos ou situar-se fora da dimensão negativa da existência.
Segundo Koch (2005, p. 91), sendo o ser humano antropologicamente capaz de
julgamento negativo, somente torna-se humano à medida que se dispor a causar a
“ontologia negativa” (negativern Ontologie). A negação como dimensão formativa é
sempre um ato espiritual do sujeito que opera a partir de si mesmo, provocado pelo
mundo; é uma negação ou um nada (eine Nichts) que está relacionado a algo. Esse
é o único nada, segundo Koch, possível de ser imaginado, pois o nada absoluto não
pode ser conceituado (KOCH, 2005, p. 91)15. Essa abertura ontológica para o nada
(Nichts), porém, permanece sempre interminável, fonte de especulação, levando o
ser humano a pensar a ausência, a privação, e, enquanto tal, reclamar e reivindi-
car aquilo que está ausente. Por outro lado, é esse caráter ontoantropológico que
permite trazer à presença o que foi negado.
Podemos, portanto, tornar presente ou ainda prolongar a ausência negando o
presente indesejado através de uma prática de negação. Assim afirma Koch (2005,
p. 92):
Pode-se classificar as ações negativas, que correspondem a um “nada” relativo, de forma
refinada, de três maneiras: como ação preventiva que evita o indesejável, como ação profi-
lática que atrapalha o indesejável ou como ação catártica que remove o indesejável e assim
proporciona um nihil privativum16.
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Mesmo as ações positivas carecem de um diagnóstico de ausência e, sem essa
percepção de que não há algo a ser preenchido, conhecido, apropriado, não po-
deriam ser. Assim, os julgamentos negativos nos tornam capazes de descriminar,
abstrair e agir de acordo com a percepção.
As ações ou práxis negativas, por outro lado e pelo seu caráter de suspensão,
nos asseguram e protegem de cometermos erros, preconceitos, equívocos e paixões
destrutivas. Dados esses argumentos sobre os aspectos da presença ontológica da
negação na existência humana e suas implicações para o processo formativo, como
poderia a ação pedagógica ignorar a negação na educação das novas gerações?
Em Herbart (1887), a dimensão negativa da ação pedagógica se mostra fun-
damental para a formação do caráter. Koch (2005, p. 93) identifica na disciplina
formativa de Herbart a presença dos aspectos negativo da ação pedagógica distinta
da parte positiva caracterizada pela oferta do ensino dos conhecimentos sobre o
mundo das coisas e dos homens. O momento negativo visa evitar erros, enquanto o
momento propositivo visa expandir o conhecimento e o interesse múltiplo.
A negação se apresenta como suspensão formativa do habitual, do fluido, pro-
movendo um momento de abertura para a deliberação do pensamento. Koch (2005,
p. 93) afirma com base em Herbart, que o aspecto formativo da negação pode ser
visto como momento de censura na ação pedagógica, porém, com efeito positivo,
construtivo e de grande valia para a ação pedagógica (höchst Schätzenswertes). É
importante ter claro que em hipótese alguma a dimensão negativa da ação pedagó-
gica implica a negação do sujeito educando. Isso seria a perversão da compreensão
do tema em pauta. A ação pedagógica da disciplina formativa e de qualquer ato
pedagógico só se justifica se sua pretensão for formativa. A censura ou momento
negativo se dá em relação a um saber, um conceito, ou uma ação, mas não repre-
senta em nenhuma hipótese a negação do sujeito em si.
E, nesse sentido, a educação não deve ignorar a dimensão da negação na ação
pedagógica e seu potencial formativo, assim como também não deve concentrar
seus esforços unicamente no ensino instrutivo. A negação com formação também é
corroborada pela percepção de Dietrich Benner (2005), que a percebe nas vivências
diárias como nos sentimentos de irritação e frustração, que são experiências nega-
tivas formativas e nos revelam o outro lado das coisas, das sociedades, da natureza,
de nós mesmos e daquilo que se apresenta de maneira diversa em relação às nossas
expectativas ou ao que estamos habituados.
Disso é possível reter que o momento negativo é um modo de relação com o
mundo, de agir, realizar juízos, de realizar a ação pedagógica formativa. A ação
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pedagógica é constituída pela faceta negativa da existência humana e não pode ne-
gligenciar tal existência. A negatividade é constitutiva do processo formativo, que
proporciona um distanciamento e abertura ao mundo. Diante disso, somos levados
a concordar com Dietrich Benner (2005, p. 7) que as “interações formativas entre
as pessoas e entre as pessoas e o mundo são mediadas por experiências negativas
e não podem ter êxito nem ser pensadas sem elas”17.
A negação como suspensão e abertura
Importante ressaltar que as dimensões ontológicas, tanto negativas como po-
sitiva, são constitutivas de qualquer ação humana. Em muitas situações e dentro
de certas perspectivas teóricas ignora-se que toda ação possui em si a tensão entre
afirmação e negação. E ignorar essas duas esferas pode ser desastroso, principal-
mente para a formação humana. Com isso não queremos subscrever nossa reflexão
em uma perspectiva maniqueísta ou algo do gênero. Mas é fato ser impossível pen-
sar a existência humana e, consequentemente, a própria formação humana sem
considerar a necessária relação e equilíbrio entre ambas. Se vivemos um momento
de excesso de positividade e fluidez no mundo contemporâneo, faz-se necessário um
reequilíbrio através de suspensão, distanciamento e negação da opinião e da ime-
diatidade. É importante que se suspenda e se ofereça rupturas ao que se tornara
usual e corriqueiro como o descortinamento de outras possibilidades. A suspensão
permite a renovação paradigmática do saber e do entendimento sobre o mundo,
permitindo drenar aquilo que se tornou insustentável ou também reafirmar aquilo
que se tornou nuclear e sustentável.
Disso podemos deduzir que toda ação humana repousa sobre o equilíbrio entre
a afirmação e a negação da natureza de algo. Dito de outro modo, pedagogicamen-
te, é preciso buscar o equilíbrio através de ações afirmativas quando se apresenta
a negação de algo ou um saber; em contrapartida, quando há um excesso de posi-
tividade, é necessário equilibrar ações através de momentos de descontinuidade e
suspensão do habitual e daquilo que se tornou corriqueiro. Precisa ser visto, por-
tanto, não como dissolução ou eliminação, mas como distanciamento para a refle-
xão crítica, assemelhando-se assim com o processo de colocar o juízo sob crítica, no
sentido kantiano da expressão.
A concepção de uma faceta ontológica negativa é potente para pensar a forma-
ção humana. A questão é brilhantemente abordada também por English (2013) com
base na concepção de disciplina formativa de Herbart18. Esse conceito de disciplina
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com o sentido de aconselhamento ou orientação moral (Zucht) de Herbart19, foi mal
compreendida, mal colocada e subentendida não só em relação à proposta de Her-
bart, mas também em relação as teorias pedagógicas em geral. O desconhecimento
dessa dimensão da formação humana em muitas situações levou a uma compressão
confusa da noção de disciplina em Herbart, identificando-a erroneamente com o au-
toritarismo e com ações pedagógicas repressivas. Herbart repudiava veementemen-
te as concepções perversas de disciplinamento justamente porque negam o sujeito,
a criança e a própria infância. São concepções e lugares distintos de negação.
Herbart tinha clareza de que a ação pedagógica é constituída por uma dimen-
são negativa fundante e que está presenta na ação pedagógica, principalmente na
disciplina formativa. Klafkowski (1982, p. 34) sinaliza para isso, afirmando que:
[...] a disciplina em especial deve ser considerada um meio de prevenir paixões e evitar a
formação de manifestações e efeitos nocivos. A tarefa da disciplina é garantir um estado
de espírito adequado do aluno em todos os momentos. A disciplina deve ajudar desde
cedo no desenvolvimento das melhores motivações do indivíduo e, portanto, a suportar
as dificuldades20.
Para tanto, cabe ao educador na ação pedagógica, nos processos formativos,
pela descontinuidade desafiar e provocar o educando para realizar novas experiên-
cias pedagógicas. Experiências que em Herbart (1806/1887) podem ser caracteri-
zadas em duas dimensões, como instrução para a formação do interesse múltiplo e
como aconselhamento ou disciplina formativa.
A instrução corresponde ao desenvolvimento da capacidade de orientar o espí-
rito e seu olhar em múltiplas direções e horizontes de saberes. Compete à instrução
desenvolver o círculo de pensamentos (Gedankenkreis) que subsidia a formação de
juízos próprios sobre as mais diversas coisas e fenômenos. Porém, somente pela ação
pedagógica da disciplina formativa é que os educandos desenvolvem e fortalecem seu
caráter moral, tornando-se capazes de realizar juízos morais. Ou seja, se a instrução
fortalece a capacidade de construir entendimento das coisas humanas e do mundo, a
disciplina visa desenvolver no educando sua capacidade de realizar juízos morais. É
importante observar também que ambas se complementam com o fim de fortalecer o
espírito, sendo que a instrução alimenta o pensamento com conhecimentos e a disci-
plina, por sua vez, converte estes em força moral, em fortaleza interior. A disciplina
opera sempre, nesse sentido, a partir da interioridade do sujeito, sobre o interesse
múltiplo, não se tratando, portanto, de uma força de coação externa21.
O objetivo é desenvolver um espírito capaz de orientar-se criticamente e de
modo autônomo. Se o tema for, por exemplo, o desemprego (Arbeitslosigkeit), os
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jovens apropriam-se dele a partir do saber constituído social e cientificamente e
desenvolve, pela disciplina, sua própria interpretação político-moral, como modo
de avaliar o tema, autorregulando-se a partir do tensionamento com a vida social
(RUCKER, 2014, p. 3).
A disciplina formativa (Zucht) assume, enquanto ação pedagógica, o papel
de fortalecer o caráter sob duas perspectivas: primeiramente, atuando para gerar
tensão ou situação de conflito interior diante de novas situações que se apresen-
tam. Isto é, não como força que se impõem incondicionalmente, mas que mobiliza,
colocando em movimento o espírito ao gerar a luta interior (innerlichen Kampfe)
(HERBART, 1887, p. 93). Em segundo lugar, opera sobre as memórias que cons-
tituem o interesse múltiplo para que o caráter ganhe em força nas tomadas de
decisão do sujeito.
É a partir deste lugar que a decisão e a vontade como ação se sustentam para
Herbart. Em relação a isso, é importante observar como Herbart se preocupa em
manter a integridade do educando, sensível em não comprometer o que é funda-
mental para a formação humana, ou seja, a liberdade interior do sujeito e, conse-
quentemente, a pretensão de formação para o autogoverno (NEITZEL, 2019a).
Em Herbart, a reflexão sobre a dimensão da negatividade da ação pedagógica
está presente principalmente no conceito de governo das crianças e na disciplina.
Nos concentraremos na dimensão da negatividade presente na ação pedagógica da
disciplina, ou no aconselhamento, como prefere interpretar Andrea English (2005,
2013), ou no assessoramento, como prefere Dietrich Benner (1993, 2007). Trata-se
duma censura da ação, do habitual, da crença ou representação. Se, no caso, a ação
pedagógica se coloca como censura e impõe um não-ser, ela somente se justifica
pelo efeito positivo ou formativo que causa, gerando a luta interior e a tensão li-
bertadora. Somente por suspender no sujeito os juízos apressados ou cristalizadas,
desencadeia um processo de reelaboração de si, potencializando sua capacidade de
emitir juízos acertados22. Essa ruptura provocada pelo momento de negação é com-
preendida por English (2013) como momento privilegiado de abertura ao mundo e a
si mesmo. Essa abertura é essencial para o processo formativo, sendo denominado
pela referida autora como discontinuity in learning (2013, p. 9). A descontinuidade
representa um momento importante para a aprendizagem moral.
Afirma English (2013, p. 9):
Esta forma de descontinuidade é significativa para a compreensão da ideia de educação em
direção a autodeterminação: a luta marca o ponto em que há uma abertura na experiência
do indivíduo, um espaço em que ele tem a escolha de romper com escolhas passadas e agir
diferentemente no futuro23.
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Pela ação pedagógica da disciplina formativa enquanto suspensão provoca-se
um conflito interior, uma crise moral que proporciona ao sujeito tomar-se em refle-
xão. Essa reflexão causada pela nova situação permite que o sujeito se ocupe consigo
mesmo e se reconstrua em suas percepções. Dito de outro modo, consiste em operar
sobre si mesmo e, nesse processo, é importante que o sujeito ouça a si mesmo, que
acesse as verdades que aqui são entendidas como memórias da vontade e, assim, seja
capaz de se ocupar com elas, reformulando as mesmas, quando necessário. Pois, não
é a refutação direta das crenças e valores do sujeito, mas a pretensão de provocar a
reflexão sobre esses valores, tanto para refutar quanto afirmar os mesmos.
A disciplina como negação e abertura torna-se empoderamento que confere
firmeza de caráter ao sujeito. Ou seja, a disciplina que se apresenta como uma
censura ou negação do hábito desencadeia o processo reflexivo pelo qual o sujeito
é levado a refrear sua ação, tomando-se em reflexão. Nessa censura, o sujeito pode
suspender princípios de ação, valores, entendimentos ou, ainda, reafirmar os mes-
mos. Essas novas decisões passam a tomar parte de suas memórias de vontade,
reorientando seus princípios, decisões, tomadas de ação, num constante processo
de subjetivação de si.
A disciplina se caracteriza por uma “atuação direta sobre a alma da juventude
com a intenção de formar”24 (HERBART, 2010, p. 180). A ação de aconselhamento/
assessoramento deve sempre pretender acionar as forças internas do próprio su-
jeito. Cabe ao mestre ofertar argumentos, subsídios, indicar situações e provocar o
contínuo processo de redobrar-se sobre si mesmo. Ou seja, provocar no educando o
estranhamento, não passageiro, mas constante, de modo extenso, contínuo, de len-
ta assimilação (HERBART, 2010, p. 184). Ou seja, a ação pedagógica da disciplina
pretender ser parte integrante da formação no sentido clássico da Bildung. Em todo
caso, a disciplina não pode se furtar da pretensão de educar e precisa deixar isso
claro em sua pretensão de querer ser “formativa” (HERBART, 2010, p. 186). Como
pano de fundo, está a necessidade da relação de sinceridade e cumplicidade entre
educador e educando, ou seja, a própria dimensão ética e política da ação pedagógica.
A condução da disciplina é, para Herbart, uma arte que se assemelha, de certa
forma com a arte ou com o tato/sensibilidade de governar os homens. Assim, a
“ductibilidade social há de ser uma condição importante do educador” (HERBART,
1983, p. 217). Ductibilidade (Geschmeidigkeit) pode ser entendida como capacidade
de gerir situações. Geschmeidigkeit é traduzida na edição portuguesa da Pedagogia
Geral por “flexibilidade” (HERBART, 2010, p. 187). Isso significa que o educador
de alguma forma deve afirmar, assegurar ou contrair sua posição de anteriorida-
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de pedagógica sobre o educando. Sua autoridade deve fazê-lo sentir como “força
educadora”, como um caminho “natural” de sua formação. A disciplina não possui
eficiência até que se consiga ressaltar no educando o seu “eu melhor” (HERBART,
1983, p. 217) ou “sein besserest Selbst” (HERBART, 1965, p. 130).
Sendo a censura uma ação sobre o espírito do sujeito, ela não terá efeito se não
for preparado no sujeito um “sentimento de si mesmo”, o que no original Herbart
denomina de “Selbstgefühl” (HERBART, 1965, p. 131). Ela se daria no vazio caso
não exista já uma percepção do eu. O processo educacional deve zelar para que a
ação da disciplina seja possível, desenvolvendo no aluno essa percepção de si en-
quanto um melhor de si, para que a disciplina possa se apoiar sobre a mesma. Ou
seja, a disciplina em Herbart não é uma negação do sujeito, mas é força definidora.
Mas é preciso também ter clareza em relação a essa avaliação profunda do eu me-
lhor, para que este seja coerente, de modo a não fomentar um eu no educando dife-
rente do que efetivamente pode ser. Segundo English (2013, p. 16), somente “desta
forma os alunos podem começar a experimentar o poder da liberdade interior que
ocorre quando eles veem que podem distanciar-se das suas inclinações iniciais e
optar por não as seguir”.
Os processos de formação humana não são incondicionados. Sempre partem de
um conjunto de representações construídas e a serem constituídas. Se apropriar do
saber e do conhecimento sempre acontece no espaço fronteiriço entre o conhecer e o
não conhecer, entre saber e não saber, um campo de tensão entre o que é conhecido
e ainda não conhecido. O educando vive nesse espaço entre aquilo que lhe é seguro
e inusitado ou como espaço potencial (GIDDENS, 2002). O sujeito tende à acomoda-
ção, tema amplamente discutido pela sociologia, pois na rotina está aquilo que ga-
rante certa estabilidade, regularidade e segurança. Porém, sem se lançar ao espaço
potencial das novas experiências, a educação e processo formativo serão limitados25.
Benner (2005) destaca as concepções temporais da aprendizagem geralmente
presentes nos discursos pedagógicos, onde a tensão entre conhecido e a conhecer
é relacionado e interpretado como o já conhecido e o ainda não conhecido. Afirma
que essa forma de compreender a aprendizagem é equivocada por compreender
a formação de forma linear. O momento da tensão é um momento entre dois, en-
tre o conhecido e o desconhecido. Conhecer o novo sempre se dá a partir do que
é conhecido, sendo que esse processo leva a perceber o conhecido como estranho
(BENNER, 2005, p. 9). Isso se dá com o sujeito dentro do mundo. É sempre sua
percepção e conhecimento do mundo a partir do mundo. Não pode ser nunca uma
negação do sujeito, mas uma suspensão daquilo que é fluido e habitual. Aquilo que
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é desconhecido sempre se coloca a partir do conhecido. Ou seja, o processo de trans-
formação do sujeito, de sua formação sempre se dá mais pelo processo pelo qual,
“algo desconhecido é experimentado por um conhecido e o desconhecido acaba por
ser parcialmente já conhecido em certos aspectos”26 (BENNER, 2005, p. 9).
Considerações nais
O que apresentamos neste ensaio é uma visão panorâmica de um aspecto do
processo formativo, que descortina um conjunto de elementos de investigação e
reflexão para as teorias educacionais. Afinal, como é possível tornar presente na
didática, na ação pedagógica do espaço escolar, a dimensão formativa da negação?
Trata-se de uma reflexão sobre a dimensão negativa do mundo humano e, conse-
quentemente, dos processos formativos, que não deixa de ser uma provocação.
As experiências negativas comuns ou presentes em nosso dia a dia nem sempre
são agradáveis e geralmente as pessoas buscam evitar as mesmas quando assim se
apresentam. Situações irritantes, a frustração com pessoas que nos são próximas,
doenças, a própria morte como negação da vida, a violência, ou ainda, catástrofes
naturais são elementos que compõem uma espécie de negação de marcos norma-
tivos existenciais. Porém, a negação como suspensão e descontinuidade é sempre
um elemento que descortina um mundo de possibilidades. A negação, portanto,
também é construtiva e edificante.
É preciso ter clareza de que a negação se sustenta fortemente em experiências
intersubjetivas, abarcando geralmente pessoas e mundo de coisas diferentes. Mas,
isso só se torna perceptível à medida que abandonamos a associação um tanto ma-
niqueísta de mundo dividido entre forças que negam e afirmam o cosmos. Do mesmo
modo, a dimensão formativa da negação só é perceptível ao superar a divisão entre
negação ou experiência negativa como algo necessariamente ruim e experiências
positivas como necessariamente propositivas. Superando essa associação ligeira
entre ambas, a experiência da negação nos mostra um aspecto extremamente re-
levante: sem a experiência da negação, não seria possível formação alguma, nem
para o trabalho, nem para a ética, política, religião, nem para a práxis pedagógica
e, menos ainda, para a ciência. Pois a negação proporciona a distinção entre as
coisas e torna possível o saber.
Aprender consiste em um processo de tornar conhecido aquilo que se apre-
senta como desconhecido. Esse processo inclui as experiências desconcertantes,
desconfortantes de negação de um saber e, nesse caso, de mobilização pela descons-
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trução da segurança do próprio sujeito em si mesmo. De acordo com a percepção
herbartiana sempre há a necessidade de um eu em torno do qual essas experiên-
cias devem ser firmadas e, por outro lado, todo esse processo não pode ser uma
negação do próprio sujeito. Então, o fato é que o lugar dessa aprendizagem, esse
lugar de tensão formativa, é delimitado como um campo aberto pela tensão entre
o aprendido e o não prendido, pelo o que se conhece e ainda não se conhece. Essa
delimitação é somente um campo fronteiriço, aberto para todas as interações.
Porém, esse lugar é mediano e precisa que o sujeito aja. É preciso que se ponha
a caminho. É o lugar daquilo que não é mais, mas também daquilo que ainda não o
é. Nesse sentido, o sujeito precisa retomar o que já se passou e que projeta ao mesmo
tempo para aquilo que ainda não é; para aquilo que se apresenta como horizonte e
como promessa; em síntese, para aquilo que se apresenta entre o passado e o futuro.
Tendo em vista o processo formativo, é preciso que o sujeito aja e, para tal,
precisa se fiar nas coisas que sabe, mas não dogmaticamente, permitindo associar-
-se sincreticamente à novas experiências ou permitindo confrontar-se por elas. Esse
processo amplia o horizonte de interesses e, nesse sentido, altera e desloca os limi-
tes e pressupostos aos quais está preso. Afirma Benner que o horizonte dessa busca
sempre se descola de modo que “o evento se desvia por sua própria vontade, torna-se
torcido, dobrado, meandroso”27 (BENNER, 2005, p. 8). O referido autor ainda que
as experiências que provocam a irritação formativa podem facilmente ser ignoradas
pelos agentes da ação pedagógica (BENNER, 2005, p. 9). No caso do educador, isso
acontece quando sua metodologia de ensino, o seu modo de ensinar, não mais dá
conta de sua tarefa pedagógica e, no caso do educando, quando aquilo que já conhece
e o modo como se apropria do saber, não mais é suficiente para aprender e resolver
os novos problemas e se apropriar daquilo que ainda não sabem.
O problema é quando o professor somente se dá conta de sua própria frustra-
ção. Isso porque geralmente o educador ou agente pedagógico já concebeu aquilo
que o estudante deve aprender. O educador ou o próprio sistema já apresenta de
antemão um conjunto de saberes dos quais o educando deve dar conta e a sua irri-
tação ou frustração está mais voltada para a percepção da negação de sua tarefa e
não tanto para a negatividade da experiência do educando.
Talvez aqui, para um processo eficiente de aprendizado, seja importante pen-
sar a conciliação entre as duas irritações. É preciso não somente pensar a irritação
do professor quando algo não se desenvolve conforme o esperado, nem também
somente pensar na irritação do aprendiz ao se defrontar com algo que se apresenta
como estranha. É preciso compreender a irritação do insucesso da pretensão do
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educador pode estar relacionada a irritação do aprendiz diante daquilo para o qual
é lançado em uma nova situação formativa.
O fato é que as novas experiências sempre são feitas a partir daquilo que já é
conhecido e daquilo que já sou capaz. Aquilo que serei capaz de fazer e aquilo que irei
conhecer só pode ser tomado pelo que já sou. Mas, à medida que o sujeito se apropria
já deixa de ser e, da mesma forma, aquilo que não era também já não é mais.
Os atores do processo educativo deveriam ver, então, as experiências de ne-
gação como um escopo espaço temporal do processo de aprendizagem. Se durante
a instrução, crianças e jovens são levadas a desenvolver a capacidade de fundar,
a desenvolver sua opinião sobre as coisas e fenômenos, desenvolvendo sua opinião
própria, eles são estimulados pela disciplina a regular suas fundamentações e so-
bre determinado tema. Ou seja, se a instrução fortalece a capacidade de entendi-
mento de determinado tema ou coisa, a disciplina é a ação que permite o educando
a balizar sua capacidade de julgar.
Notas
1 Destacamos aqui o importante estudo de Winnicott (1975) ressaltando a importância das atividades de
jogos e do brincar para o desenvolvimento psicoafetivo das crianças.
2 Sobre isso, pode-se destacar o texto de Konrad Paul Liessmann (2011) e sua tese de que a sociedade da
informação tem arrastado as pessoas para a deformação (Unbildung).
3 Importante destacar a distinção entre liberdade interior e liberdade moral. A liberdade interior é a con-
dição educável, que pelo processo pedagógico é educada (transformada) em liberdade moral. Portanto, a
perspectiva da liberdade transcendental nega a possibilidade de ser um produto do processo formativo.
4 Sobre isso, ver Dalbosco (2016), mais precisamente o Terceiro Ensaio, que trata da perfectibilidade e da
formação humana. Ver, também, o primeiro capítulo de Neitzel (2019a).
5 Cf. “Herbart’s notion of Bildsamkeit emphasizes this human ability to break with oneself and go against
self-interested inclinatios as the basis for the human capacity to become moral. This break with oneself,
whitch we can call a form of self-alienation, relates to how we learn through encounters with things in the
world that are unfamiliar, unexpected, and strange. This type of interaction or formation. Both terms, Bil-
dung and Bildsamkeit, stem from the root word bld, which means form, and the term bildsam can be conne-
ted to Herbart’s use of the term Bildsamkeit reflects these meanings. The concept captures the individual’s
capacity to form and to be formed and thereby connects to the motion of Bildung” (ENGLISH, 2013, p. 12).
6 Pierre Hadot (2010), no capítulo terceiro de sua obra O que é filosofia antiga?, faz uma análise das diversas
figuras de Sócrates nos diálogos platônicos. Também ver o texto de Oliveira (2016).
7 Sobre esse tema, da suspensão do mundo como processos formativo numa aproximação entre Herbart e
Arendt, ver Schütz e Neitzel (2020).
8 Cf. “Jede Individualität ist und bleibt ein Chamäleon; und die Folge davon ist, dafs jeder Charakter man-
chmal in innerlichem Kampfe begriffen seyn wird” (HERBART, 1987, p. 93).
9 Aqui é fundamental ter em mente a proposta pedagógica tripartida da pedagogia de Herbart e a distinção
entre aquilo que antecede a educação geral – o governo da infância – e a educação propriamente dita da
instrução educativa. A educação no interesse múltiplo e enquanto fortalecimento do caráter só deve iniciar
à medida que é possível perceber indícios de uma vontade ou de uma personalidade na criança.
10 Byung-Chul Han (2015, 2017) afirma que a sociedade contemporânea é acometida de um excesso de posi-
tividade, de fluidez, o que acarreta a incapacidade de crítica e real percepção da vida.
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11 Cf. “Nach allem ließe sich die so oft bezweifelte Sonderstellung des Menschen glaubhafter als auf je-de
andere Art so bestimmen: Er ist das einzige der Negativität im Erkennen und Han-deln fähige Wesen, von
dem wir wissen” (KOCH, 2005, p. 91).
12 Cf. Apesar de: „Rousseuas Begriff der ‘negativen Erziehung’, troz Schleimachers Systematic abwehrender,
verhütender und gegenwirkender pädagogischer Handlungsformen, trotz Herbarts Theorie der negativen
Zucht, trotz Waitz Annahmen über negative Gemütsbildung oder Cohns Theorie der negativen Wirkungs
nicht in systematische Bemühungen aufgenommen worden“ (KOCH, 2005, p. 88).
13 Cf. “Ohne negative Urteile könnten wir nicht unterscheiden. Ohne Unterscheidung würde alles, was zu
erkennen streben, im Unbestimmten verscwimmen” (KOCH, 2005, p. 90).
14 Kohl em seu experimento com macacos destaca, que o maior e mais importante saber humano e que falta
para toda espécie de animal é do “sentido para a negatividade”, de tal modo que ignorância, deficiência e
vazio são nos animais associados a essa perspectiva, ou seja, a ausência da capacidade de dizer não. Gehler
conclui que os animais são capazes até de remover objetos que lhe impõem limites e são negações, mas é o
homem que cabe estabelecer fundamentos, juízos negativos sobre a razão para remover os obstáculos.
15 Cf. “Wir wissen um das Nichtsein als Fehlen, Mangel, Abwesenheit oder auch als Privation (wenn das
Fehlende zuvor da war, aber entfernt bzw. „geraubt“ wurde). Es kann Schatten herrschen, weil die Sonne
untergegangen ist oder weil jemand in die Sonne getreten ist. Die Abwesenheit von etwas kann als solche
anwesend sein” (KOCH, 2005, p. 91)
16 Cf. “Man kann die auf ein relatives ‘Nichts’ hinauslaufenden negativen Handlungen in verfeinerter Form
dreifach klassifizieren: als präventives Handeln, das dem Unerwünschten aus dem Weg geht, als prophyla-
ktisches Handeln, das ihm in den Weg tritt oder als kathartisches Handeln, welches das Unerwünschte aus
dem Weg räumt und so für ein nihil privativum sorgt” (KOCH, 2005, p. 92).
17 Cf. “Bildende Wechselwirkungen zwischen den Menschen sowie zwischen Mensch und Welt sind nämlich
über negative Erfahrungen vermittelt und können ohne diese weder gelingen noch gedacht werden” (BEN-
NER, 2005, p. 7).
18 O conceito de disciplina deve ser tomado como uma ação de aconselhamento segundo Benner. Sobre isso,
ver Neitzel (2019b).
19 Veja, também, o ensaio de English, neste volume.
20 Cf. “Die Zucht ist insbesondere als ein Mittel anzusehen, durch das Leidenschaften verhütet und Schä-
dliche Ausbrüche und Affekte vermeiden werden. Aufgabe de Zucht ist es, für eine angemessene Gemüt-
sstimmung des Zöglings dauernd zu sorgen. Die Zucht soll den besseren Regungen des Individuums zur
frühzeitigen Entwicklung und dadurch zum Übergewicht verhelfen” (KLAFKOWSKI, 1982, p. 34).
21 Disciplina e governo se distinguem entre outras coisas, pelo efeito da censura. O governo é tão somente
uma força externa ao sujeito, enquanto que a disciplina é uma ação de censura que visa desencadear no
espírito do próprio sujeito a reflexão sobre si mesmo. Para conhecer melhor o tema do governo da infância,
sugiro meu próprio livro sobre Herbart (NEITZEL, 2019b) e, também, o ensaio de Dalbosco (2018).
22 Herbart concebe o caráter ou o espírito do sujeito constituído por um lado objetivo e outro subjetivo. Não
como um espírito dual, mas como duas esferas da mesma alma. O lado objetivo corresponde a parte do
Selbst ou do si mesmo, constituído pelas memórias tomadas de decisões anteriores, pela historicidade do
sujeito, e que constitui a estrutura de pensamento e os padrões de tomada de decisão, e, portanto, base das
tomadas de decisão rotineiras e habituais.
23 Cf. “This form of discontinuity is significant for unterstanding the idea of education toward self-determi-
nation: the stuggle marks the point at which she has the choice to break with her past choices and act
differently in the future” (ENGLISH, 2013, p. 9).
24 Cf. “Unmittelbare Wirkung auf das Gemüt der Jugend, in der Absicht zu bilden, ist Zucht” (HOFMANN;
EBERT, 1976, p. 192). Ainda: “Alle Wechsel der Empfindungen, welche der Zögling erleiden muβ, sind nur
notwendige Durchgänge zu Bestimmungen des Gedankenkreises oder Charakters”(HOFMANN; EBERT,
1976, p. 193).
25 Para a continuidade da reflexão sobre esse tema, remeto o leitor para meu próprio trabalho (NEITZEL,
2019a).
26 Cf. “[…] einem Bekannten etwas Unbekanntes erfahren wird und Unbekanntes sich in bestimmten As-
pekten als zum Teil schon bekannten erweist” (BENNER, 2005, p. 9).
27 Cf. “[…] das Ereignis von sich aus abweicht, sich verschibt, sich faltet, sich schlängelt” (BENNER, 2005, p. 8).
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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A faceta negativa na ação pedagógica e seu caráter formativo
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