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Complexidade e educão: a pedagogia de Herbart e seus conceitos próprios
v. 28, n. 3, Passo Fundo, p. 877-904, set./dez. 2021 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Complexidade e educação: a pedagogia de Herbart e seus conceitos próprios1
Complejidad y educación: la pedagogía de Herbart y sus propios conceptos
Complexity and education: Herbart pedagogy and its own concepts
Ignazio Volpicelli*
Resumo
O presente artigo é fruto de revisão bibliográca, de perspectiva hermenêutica e analítica. O autor busca re-
construir as reexões de Johann Friedrich Herbart, sinalizando para como esse pensador situa a pedagogia na
complexa relação, interna e externamente, com outras áreas e outros campos epistemológicos. Johann Friedrich
Herbart pode ser considerado o pai da pedagogia acadêmica ao sistematizar e alçá-la ao campo epistêmico e
de investigação. Para tanto, exige a necessidade de a pedagogia ocupar-se com a formulação e a construção de
conceitos próprios que deem conta da especicidade de seu objeto. Porém, tal tarefa exige que a nascente pe-
dagogia acadêmica se exercite no complexo diálogo com outros campos de saber, principalmente no exercício
losóco, evitando justamente a prática parasitária de importar conceitos de outros campos de saber.
Palavras-chave: Herbart; educação; ciência; reexão losóca.
Resumen
Este artículo es el resultado de una revisión de la literatura, desde una perspectiva hermenéutica y analítica.
El autor busca reconstruir las reexiones de Johann Friedrich Herbart, señalando cómo este pensador sitúa la
pedagogía en la compleja relación interna y externa con otras áreas y campos epistemológicos. Johann Frie-
drich Herbart puede ser considerado el padre de la pedagogía académica al sistematizarla y elevarla al campo
epistémico y de investigación. Para ello, exige que la pedagogía se ocupe de la formulación y construcción de
sus propios conceptos que tengan en cuenta la especicidad de su objeto. Sin embargo, esto requiere que la
naciente pedagogía académica se ejercite en el complejo diálogo con otros campos del conocimiento, especial-
mente en el ejercicio losóco, evitando precisamente la práctica parasitaria de importar conceptos de otros
campos del conocimiento.
Palabras clave: Herbart; educación; ciencia; reexión losóca.
* Doutor em educação. Professor Adjunto no Departamento de História, Patrimônio Cultural, Formação e Sociedade
da Università degli Studi di Roma “Tor Vergata” – Itália. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5209-5118. E-mail: ignazio.
volpicelli@uniroma2.it
Recebido em: 29/01/2021 – Aprovado em: 25/11/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i3.12238
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Abstract
This article is the result of a literature review, from a hermeneutic and analytical perspective. The author seeks
to reconstruct the reections of Johann Friedrich Herbart, signaling how this thinker situates pedagogy in the
complex internal and external relationship with other areas and epistemological elds. Johann Friedrich Herbart
can be considered the father of academic pedagogy by systematizing and elevating it to the epistemic and re-
search eld. To do so, he demands that pedagogy be concerned with the formulation and construction of its own
concepts that take into account the specicity of its object. However, this requires that the nascent academic
pedagogy exercise itself in the complex dialogue with other elds of knowledge, especially in the philosophical
exercise, avoiding precisely the parasitic practice of importing concepts from other elds of knowledge.
Keywords: Herbart; education; science; philosophical reection.
Introdução
No início do ano letivo de 1859-1860, Johann Friedrich Daniel Sanio, Rei-
tor da Universidade Albertina, proferiu o discurso comemorativo à memória de
Johann Friedrich Herbart enquanto professor na Universidade de Königsberg (Zur
Erinnerung an Herbart als Lehrer der Königsberger Universität). Reconstruindo,
em termos gerais, os momentos marcantes da biografia intelectual do seu colega
falecido, ele expressou sua convicção de que, para penetrar plenamente no núcleo
fundador do pensamento herbartiano, seria necessário “prestar particular aten-
ção à íntima interdependência entre os seus conceitos pedagógicos e filosóficos”
(SANIO, 1871, p. 10). Nesse sentido, deveria ser cuidadosamente considerado até
que ponto “as observações, experiências e tentativas pedagógicas que, assim que
deixou a escola de Fichte, fez como professor particular na Suíça, nos anos de 1797
a 1800, e a consequente reflexão pedagógica sobre os conceitos fundantes e o fim
da educação”, que tiveram “influência no desenvolvimento de seu conjunto peculiar
de pensamentos no curso de sua pesquisa e, portanto, indiretamente, na gênese de
seu sistema filosófico”(SANIO, 1871, p. 10). De fato, nos escritos de Herbart, são
encontrados numerosos vestígios atestando que a “ocasião e o estímulo” de suas
investigações no campo filosófico foram muitas vezes alimentados “por sua reflexão
propriamente pedagógica”(SANIO, 1871, p. 10).
A declaração de Sanio, expressamente dirigida a um hipotético futuro biógrafo
de Herbart, indica uma perspectiva hermenêutica que deve ser seguida até o fim.
Por isso, não limita o horizonte da pesquisa a uma confirmação das inúmeras pas-
sagens das obras pedagógicas de Herbart que se referem a ou recordam questões
especificamente filosóficas. Tais passagens também se relacionam a todas aquelas
referências que pontuam toda a extensão de sua reflexão filosófica sobre aspectos
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de crucial relevância pedagógica e que mostram claramente como a atenção aos
problemas educacionais formam uma espécie de fio condutor que atravessa todos os
escritos de Herbart, mesmo aqueles que não são explicitamente pedagógicos. Isso
constitui um testemunho inequívoco da centralidade que a questão pedagógica ocu-
pa no complexo da reflexão herbartiana. Segundo o próprio Herbart (H16, p. 89)2:
Minha filosofia – deixe-me traduzir a expressão para que não soe muito forte – minha
busca pela verdade – não gira simplesmente em torno de ideais; ela gostaria, antes de tudo,
entender – portanto também ver, mas não meramente ver – o que é o homem, como ele era,
e como ele pode se tornar outra coisa.
Compreender e ver o que é o homem, o que ele era e como era, e também
tentar identificar, além de ver, como ele pode tornar-se outra coisa (mehr werden)
são os motivos inspiradores da busca da verdade, ou seja, da filosofia de Herbart.
Ele próprio escreveu isso numa passagem significativa de uma carta datada do
final de junho de 1798 e dirigida aos pais de seus pupilos de Berna, atestando ine-
quivocamente como concebeu imediatamente a demonstração da possibilidade da
educação como tarefa central e fundamental de sua filosofia.
Herbart declarou em 1814, em resposta à revisão crítica feita por Reinhold
Bernhard Jachmann para Pedagogia geral derivada do fim da educação (Allgemei-
ne Pädagogik aus dem Zweck der Erziehung abgeleitet), que: “A minha pedagogia
não seria nada sem minhas concepções de metafísica e filosofia prática” (H2, p.
163). E, novamente, em 1812, na Investigação psicológica da força de uma deter-
minada representação em função da sua duração (Psychologische Untersuchung
über die Stärke einer gegebenenen Vorstellung als Function ihrer Dauer betrachtet):
“Devo expressamente observar, se alguém no futuro desejar submeter minha peda-
gogia a um exame, que eu espero dele o conhecimento da minha filosofia prática,
dos meus principais pontos de metafísica e do presente trabalho” (H3, p. 123).
A Pedagogia é, para Herbart, uma ciência que toma forma e se estrutura atra-
vés da cuidadosa e constante reflexão e elaboração de “conceitos próprios” que se
inserem no seu âmbito. E a tarefa de refletir e elaborar tais conceitos é uma questão
de filosofia. “Somos da opinião de que sem filosofia não se pode falar de pedagogia
geral, e consideramos a pedagogia em seus princípios como filosofia” (H2, p. 146).
Foi assim que Jachmann julgou na sua revisão crítica da Pedagogia geral de
Herbart, com referência evidente a uma passagem da obra, como se esta tivesse
avançado em sua tese da “autonomia” da pedagogia em direção a uma arrogante
“moda filosófica de seu tempo”3 (Modephilosophie dieser Zeit). E se Herbart podia,
em princípio, compartilhar o sentido dessa afirmação, ele não deixou, ao mesmo
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tempo, de enfatizar firmemente a peculiaridade da abordagem filosófica que sus-
tentava a sua pedagogia. Ele próprio responde: “Tudo bem e precisamente por isso
o revisor deveria ter consultado não a sua filosofia, mas a minha, como fonte da
minha pedagogia, e deveria ter esclarecido esta última” (H2, p. 169; H3, p. 347). A
Georg Ludolf Dissen, Herbart escreveu em 29 de julho de 1812: “Estou convencido
de que a pedagogia, precisamente porque é uma ciência derivada, será formada em
cada cabeça segundo concepções filosóficas peculiares”. Uma convicção que o levou
imediatamente a afirmar: “Devemos melhorar os fundamentos filosóficos, então
cada um melhorará também a sua pedagogia” (H17, p. 93).
Com base nessas e em inúmeras outras indicações difundidas em seus vários
escritos, é ainda mais problemático apoiar a tese de uma efetiva “autonomia da
pedagogia de Herbart”4, a ponto de considerá-lo como o teórico convicto da “peda-
gogia como ciência autônoma” (KLAFKI, 1971, p. 99), sem relação orgânica com a
filosofia.
As considerações desenvolvidas por Herbart em 1806, destinadas a conceber a
pedagogia como um campo de reflexão cuja compreensão poderia, de algum modo,
realizar-se mesmo independentemente de um aprofundamento preciso dos pressu-
postos que constituem o seu fundamento natural precisam ser devidamente com-
preendidas. Elas são enquadradas, para serem claras, num contexto discursivo for-
temente caracterizado pelo firme desejo de preservar a esfera educativa do “risco”
de se transformar numa simples “esfera das seitas” (Spielball der Secten) (H2, p. 8)
e ser, desta forma, degradado como um mero banco de ensaio de qualquer sistema
filosófico.
Na passagem da Pedagogia geral (Allgemeine Pädagogik), à qual se fez refe-
rência, bem conhecida e discutida pelos críticos5, Herbart (H2, p. 8) escreveu:
Seria muito melhor se a pedagogia refletisse com a maior precisão possível sobre os concei-
tos que lhe são próprios (auf ihre einheimischen Begriffe) e cultivasse de uma forma mais
independente de pensar; desta forma, tornar-se-ia o ponto central de uma esfera de pesqui-
sa e não correria mais o risco de ser governada por um estrangeiro (von einem Fremden)
como uma província conquistada remotamente.
Em que o estrangeiro (Fremd) não seria tanto filosofia em geral, mas mais
propriamente todas aquelas concepções filosóficas que não só não seriam capa-
zes de definir as condições de possibilidade da prática pedagógica concreta, como
também, mesmo em filosofias avançadas, cujo exemplo são Espinoza e Kant, re-
velaram, aos olhos de Herbart, uma natureza de todo antipedagógica6. Conforme
Herbart (H2, p. 230):
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Em que relação você acha que a filosofia deve se colocar no que se refere às outras ciências
e à vida? Seria bom para você ser percebido como um poder de longe, armado com armas
estrangeiras (tremendo), desconhecido, odioso, mas terrível? Ou você gostaria de ser con-
siderado como autônomo (einheimisch) em sua esfera de ação, e definido como parente e
amigo, e constantemente reconhecido e testado?
Nesses termos, Herbart fez sua estreia em Über philosophisches Studium, um
escrito de 1807, certamente “fundamental” para a compreensão de sua “concepção
de filosofia” (BLASS, 1972, p. 289), que é também importante “chave para a inter-
pretação da Allgemeine Pädagogik (HILGENHEGER, 1993, p. 111).
Nas obras que acabamos de citar, as expressões “estranho” (fremd) e próprio
(einheimisch) são usadas para definir mais extensivamente o tipo de relação entre
a filosofia e as várias outras ciências. O adjetivo fremd é usado, em um sentido
específico, para qualificar mais geralmente uma filosofia “estrangeira” ao universo
de conhecimento que se desenvolve na vida real em relação direta com a experiên-
cia e o contato humano. Portanto, diz respeito à uma filosofia que não resultaria
do “conhecimento multifacetado dos problemas, diretamente provenientes da vida
e das ciências”, certamente assumido por Herbart como a única “fonte autêntica
de filosofar” (H2, p. 236). “Essa filosofia com a qual estamos lidando – ele de fato
especificou – não está de forma alguma fora (ausser) do resto do conhecimento, mas
é produzida com e dentro dele, como sua parte constituinte inseparável; ela tem um
relacionamento com ele que não é de forma alguma imanente” (H2, p. 230). “Fora
do demais saber”, portanto, nenhuma legitimação é possível para a filosofia, que
não só se constitui a si mesma e adquire substância, afastando-se do conhecimento
implícito das ciências individuais, mas também deve, precisamente através delas,
ser “constantemente reconhecida e posta à prova” (H2, p. 230).
Fiel a tais premissas, Herbart, se, por um lado, criticou resolutamente a abor-
dagem da filosofia concebida segundo o modelo do idealismo fichtiano, como doutri-
na transcendental da ciência, por outro, reconheceu o fato de que em toda a ciência
é imanente um “espírito filosófico” e que toda tentativa de explicação científica é,
portanto, em si mesma uma parte constitutiva e integral da reflexão ou sem dúvida
do Studium, isto é, de ocupação, de compromisso filosófico. Com esta postura, Her-
bart confirmou a plena legitimidade não simplesmente da possível reação (Zuruck-
wirkung), mas também de real reversão (Umkehrung) da relação entre ciências
particulares e filosofia e, em particular, entre pedagogia e filosofia. Nessa linha,
além da perspectiva voltada para a construção da pedagogia procedente deduti-
vamente das premissas filosóficas, Herbart foi também o porta-voz de abordagem
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diferente que concebeu a pedagogia como campo de reflexão destinado a cultivar
autonomamente, colocando no centro de sua esfera de pesquisa os “conceitos que
lhe são próprios (ihre einheimischen Begriffe)” (H2, p. 8).
Herbart falou mais sobre o motivo da “reviravolta” (Umkehrung) na revis-
ta Erziehungslehre de 1832, cuja primeira edição apareceu em 1829, do teólogo
Friedrich Heinrich Christian Schwarz. Um ano antes da publicação do Allgemeine
Pädagogik, em 1805, no Lehrbuch der Pädagogik und Didaktik, Schwarz (1805,
p. 5-6) começou por afirmar que queria manter sua teoria educacional “em uma
certa independência dos sistemas dominantes”; isso não só porque não haveria “ne-
nhum sistema filosófico absolutamente completo”, mas também porque a maioria
dos sistemas filosóficos mostrou que eles levaram pouco em conta a especificidade
do fato educacional.
Herbart iniciou sua discussão sobre o Erziehungslehre de Schwarz referindo-
-se, em primeiro lugar, a certas declarações de August Hermann Niemeyer. Com
referência explícita a Kant – que, num artigo de 1793 intitulado Über den Geme-
inspruch: Das mag in der Theorie richtig sein, taugt aber nicht für die Praxis, tinha
levantado a questão da relação entre teoria e prática – Niemeyer afirma, na tercei-
ra parte da quinta edição da sua Grundsätze der Erziehung und des Unterricht für
Eltern, Hauslehrer und Erzieher, de 1806:
Nós nos compreendemos sobre uma quantidade de objetos, sobre os quais surgem continua-
mente mal-entendidos assim que começamos a filosofar e especular sobre eles, quando os
consideramos na vida comum, independentemente de um determinado sistema. E isto é
certamente o que acontece com frequência também no que diz respeito à pedagogia (NIE-
MEYER, 1829, p. 187, v.1; H13, p. 218).
Herbart inspira-se nessas afirmações para destacar como o “conflito violento”
(H2, p. 8) das “teorias muito divergentes” (H13, p. 220) não se enquadrava de todo
“no terreno da pedagogia (Erziehungslehre)” (H13, p. 218). Ele também enfatizou
nessa ocasião a importância de todo aquele inestimável “tesouro” de “experiências
e ensinamentos” que, acumulado durante uma longa e contínua “prática pedagó-
gica”, era quase como “um terreno comum” para todos aqueles que concebem “a
sagrada questão da educação” como algo “profundamente sério” (H13, 218).
Na sequência da revisão, Herbart também questionou Friedrich Daniel Er-
nst Schleiermacher, cuja posição em relação a Schwarz aparece, de certa forma,
indubitavelmente atribuível ao final de uma passagem significativa das notas das
Vorlesungen, realizadas em Berlim em 1813-1814. Afirma que a pedagogia “é uma
disciplina que brota da ética, que depende dela por um lado, mas que, por ou-
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tro, funda sobre si mesma a sua própria realidade” (SCHLEIERMACHER, 2000a,
p. 211). A pedagogia (Erziehungslehre), de fato, tinha argumentado Schleierma-
cher com referência explícita ao trabalho homônimo de Schwarz (1802) em uma
passagem do Grundlinien einer Kritik der bisherigen Sittenlehre de 1803, constitui
uma das “ciências derivadas” (abgeleiteten Wissenschaften) da ética, mas deveria
“contribuir também para trazê-la para fora mesmo que em um modo fragmentário
(diese selbst zerstückelt mit hervorzubringen)” (SCHLEIERMACHER, 2002, p. 335-
336; Cf. H13, p. 232).
A afirmação do filósofo e teólogo alemão foi bem explicada no seu modo de
conceber a pedagogia como um campo que, por um lado, revela-se estritamente su-
bordinado à dimensão ética, por outro, parece gozar de ampla esfera de autonomia,
constituindo, de fato, ela mesma, a verdadeira e própria pedra de toque da verdade
de cada sistema ético particular. Schleiermacher (2000b, p. 456) havia reiterado
em suas Vorlesungen de 1820/1821 que: “Cada sistema de ética só pode mostrar
que possui a verdade se for possível desenvolver um método capaz de implementar
o próprio sistema. A pedagogia é a prova da ética”.
Na reflexão de Schleiermacher sobre a ligação entre pedagogia e ética é,
como foi observado, “claramente uma relação mútua”, segundo a qual “um mo-
mento de dependência e um momento de independência estão implícitos em am-
bos” (BLASS, 1978, p. 101). De fato, as duas dimensões parecem unir-se numa
relação singularmente dupla, hermenêutica, circular, constituindo assim de facto
uma premissa necessária da outra e vice-versa. Se é verdade, para Schleierma-
cher (2000c, p. 31), que cada teoria pedagógica tem suas raízes “no âmbito de
uma concepção ética particular” e que também “cada concepção ética” parece
“susceptível de mudar”. Contudo, é verdade que a mesma dimensão pedagógica
pode contribuir decisivamente para a melhoria ética de toda a estrutura social
em direção ao bem maior.
Foi precisamente com referência às indicações de Schleiermacher que, na re-
formulação posterior do seu Erziehungslehre, Schwarz avançou na tese de uma
“reversão” da relação entre pedagogia e ética, alegando, em torno da hipótese que
visava “fundar a pedagogia pela ética”, que “poderia muito bem ser válido o contrá-
rio pelo mesmo caso” (H13, p. 232-233; SCHWARZ, 1829, p. 33).
Em sua própria revisão, Herbart não se limitou, no entanto, a apresentar a
tese de Schwarz, mas afirmou a si mesmo que tinha tomado posição análoga na
Allgemeine Pädagogik, e de forma muito mais radical.
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É evidente que tal inversão, se fosse possível, levaria muito além. Se a pedagogia, em vez de
pressupô-las, deve fazer emergir (hervorbringen) as suas próprias ciências auxiliares, então
isto aplica-se não só à ética, mas também à psicologia [...]. É sobretudo por esta razão que
o abaixo-assinado por muitos anos (no seu Allgemeine Pädagogik) exigiu que os conceitos
apropriados (die einheimischen Begriffe) da pedagogia fossem cultivados e colocados no
centro de uma esfera de pesquisa (H13, p. 233).
No que se refere à Allgemeine Pädagogik, Wilhelm Flitner (1958, p. 37) apon-
tou, referindo-se a algumas das passagens já mencionadas, que Herbart alertaria
contra “tornar a pedagogia dependente da filosofia”. Essa afirmação pode certa-
mente ser partilhada, desde que não seja lida de modo algum como legitimação da
interpretação destinada a apoiar a firme intenção de Herbart de avançar na defesa
da completa independência da pedagogia em relação à filosofia. Pois, isso confirma-
ria a tese da presença simultânea no seu pensamento de “dois modelos conceptuais
divergentes” sobre o fundamento da pedagogia, de que ele não teria, em qualquer
caso, percebido “a natureza contraditória”.
Desse modo, um modelo estaria destinado a exibir a pedagogia como “uma
ciência aplicada” que deriva seu status científico da ética, “ciência normativa” e
da psicologia, “ciência das condições de viabilidade”. O outro modelo, antitético
ao primeiro, apresentaria a pedagogia como “ciência independente”, desenhando
seus próprios “princípios científicos peculiares”, independentemente de suas “re-
lações constitutivas” referentes a outras disciplinas (KLAFKI, 1971, p. 85-86). Tal
interpretação parece ser muito pouco generosa para o filósofo e pedagogo alemão,
sempre cuidadosamente medido, nos seus vários escritos, no uso de cada expres-
são individual em relação ao seu preciso contexto conceptual de referência. O uso
conceitual cuidado origina-se da compreensão pontual dos diferentes níveis e pro-
blemas inerentes à questão da Begründung da pedagogia enquanto Wissenschaft.
Se a pedagogia, e consequentemente a concepção que deve guiar o educador na sua
ação educativa, não pode de modo algum ser configurado, segundo Herbart, sim-
plesmente como o resultado de uma dedução de princípios filosóficos a priori que
não são de todo estranhos ao nível da realidade atual, é também verdade que, como
a reflexão sobre a formação do ser humano, a pedagogia não pode ser concebida
como campo que é de todo autônomo e independente da reflexão filosófica em geral.
Não há dúvida de que as expressões de Herbart destinadas a legitimar o tema
da autonomia da pedagogia devem ser enquadradas, pelo menos no que diz res-
peito à Introdução da Pedagogia geral, num contexto discursivo fortemente empe-
nhado em delinear as possibilidades concretas e reais de despertar entre os jovens
educadores uma clara consciência pedagógica não obscurecida pelas aberrações
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dos mais recentes sistemas filosóficos. Lemos numa passagem do Nachschrift de
1804 para a segunda edição da Idee eines ABC der Anschauung de Pestalozzi que
“Infelizmente é quase impossível mencionar a ideia pura da pedagogia sem sus-
citar novos conflitos vivos. Onde está, de facto, esta ideia? De que filósofo é que
ela deve ser emprestada?” (H1, p. 253). Por um lado, a filosofia, particularmente
a filosofia do idealismo alemão, não apareceu aos olhos dos velhos burgueses em
posição de embasar uma teoria capaz de explicar a possibilidade e os limites da
“relação causal pedagógica”(H10, p. 16)7 como uma relação. Por outro, a influência
tout court assimilada, no modelo das ciências físicas naturais, a “um fato, um even-
to natural”, cuja viabilidade, como lemos em Ueber die ästhetische Darstellung der
Welt, als das Hauptgeschäft der Erziehung, acabou por ser “um efeito inevitável de
certas causas espirituais [...] como qualquer efeito no mundo físico” (H1, p. 261)8.
Certamente, então, como Herbart se opôs repetidamente contra Kant, Fichte e
Schelling, foi necessário não só destacar os riscos e perigos que a adesão a tal
abordagem filosófica implicava necessariamente na base da fundação da teoria
pedagógica, mas também era apropriado examinar se e em que medida a própria
pedagogia poderia, por sua vez, constituir um antídoto para expor seus equívocos.
Não foi por acaso, nesta perspectiva, que a Selbstanzeige da Allgemeine Päda-
gogik, deve ser lida, como o próprio autor sugeriu, como uma espécie de “prefácio”
à obra. Herbart trata antecipadamente aí da questão do “caminho certo” para pro-
ceder “em relação à exposição” de uma pedagogia geral. Tal tratamento é precedido
pela rejeição da “escolha” oferecida por Rousseau para enfrentar “mais tarde o
que precisa ser feito a seguir” - seguindo e descrevendo passo a passo as fases do
desenvolvimento psicofísico de Émile durante seu processo evolutivo. Também é
precedido pela posição daqueles que propunham dividir “a obra nas suas partes
constituintes”, tratando-a de forma “claramente separada”, a ponto de justapor
a “cultura intelectual” com a “cultura estética” e, portanto, tanto com a “cultura
moral” e assim por diante9, em relação à opção de deduzir “toda a educação como
uma única tarefa dos princípios filosóficos”. Enfim, contra isso, Herbart especificou
que este “método” não podia “estabelecer uma pior relação com os leitores”. De que
sistema filosófico deveria o autor da obra de fato deduzir a educação?. A pergunta,
colocada por Herbart nesses termos, pretendia sublinhar, estigmatizando-os, os
riscos e perigos que uma rígida dedução da pedagogia do idealismo especulativo, ou
em todo o caso de hipóteses e princípios insuficientemente comprovados, implicava
no campo da prática educativa concreta.
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Os apontamentos de Herbart foram inseridos, na linha indicada, num contex-
to discursivo fortemente caracterizado por uma preocupação constante e insistente
com as consequências perniciosas de uma má filosofia, e o tema de Umkehrung
assumiu neste sentido a função de um papel de tornassol para medir não só a sua
validade e legitimidade, mas também para desmascarar e corrigir eventuais erros
e defeitos. A pedagogia, portanto, também tinha, aos olhos de Herbart, o poder de
retificar a especulação filosófica, exercendo sobre ela uma ação integral e corretiva.
Assim lemos no final do primeiro capítulo de Aphorismen zur Pädagogik que “A
pedagogia deve ser tratada filosoficamente: certo! Também é certo que a partir da
pedagogia, se for tratada adequadamente, isto é, como exige a natureza peculiar
da tarefa educativa, até mesmo uma filosofia corrompida pode ser gradualmente
levada ao restabelecimento” (HERBART, 1850, p. 422).
O conteúdo do aforismo que faz as expressões acima mencionadas se repetirem
e no qual motivo do Umkehrung é novamente reproposto, ou seja, da “autonomia”
da pedagogia, é extremamente eloquente. Justifica, em todo caso, a forma como
Herbart definiu os termos de sua fundamentação (Begründung) como uma ciência
derivada da ética e da psicologia. Sua posição mostra-se, deste modo, contrária a
postura de Niemeyer, a qual se deixa resumir nos seguintes termos:
Como é certo que a filosofia deve falar da determinação e da natureza do homem: igualmen-
te certo é que a pedagogia deve e deve imperativamente (sein soll und sein muss) ser uma
ciência filosófica. Deve ser, porque o homem deve ser educado na virtude, no sentido pleno
e amplo do termo; deve necessariamente ser, porque sem conhecer a natureza do homem,
fica-se completamente obscuro da possibilidade de sua formação e deformação (NIEME-
YER, 1829, p. 421).
As posições de Herbart aparecem em numerosas e repetidas obras, mesmo
em obras distantes umas das outras numa perspectiva temporal, com o objetivo de
sublinhar o papel fundamental da reflexão filosófica no campo da educação. Lemos
na primeira das Vorlesungen über Pädagogik de 1802,
[…] que quem se aproxima da educação sem a filosofia, pode facilmente imaginar que fez
reformas de grande alcance, pelo facto de ter feito algumas pequenas melhorias na forma
como [educou]. Em nenhum outro lugar uma visão filosófica (Umsicht) é tão necessária
através de ideias gerais como aqui onde o exercício diário e a experiência individual, im-
pressos de tantas formas diferentes, restringem tão fortemente a esfera visual (Gesicht-
skreis) (H1, p. 285).
Um pouco mais adiante, explicando qual era o objetivo principal de suas pales-
tras, Herbart insistiu no papel central da filosofia para a construção da pedagogia
como ciência (Wissenschaft). Escreveu de fato:
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[...] minha tentativa visa desenvolver e animar em você uma certa sensibilidade pedagógi-
ca, que deve ser o resultado de certas ideias e convicções sobre a natureza e a formabilidade
do homem. Terei que dar à luz essas idéias, terei que justificá-las, terei que conectá-las,
construí-las, fundi-las de modo a dar origem a essa sensibilidade [...]. Mas dar à luz, jus-
tificar e construir ideias é uma tarefa filosófica, e na verdade uma das mais nobres, mas
também uma das mais difíceis [...] (H1, p. 288).
Lemos, no início do Selbstanzeige da Allgemeine Pädagogik: “Pedagogia como
ciência é a tarefa da filosofia, e na verdade de toda a filosofia, tanto teórica como
prática, e igualmente da mais profunda pesquisa transcendental a partir do racio-
cínio que simplesmente conecta fatos de toda espécie” (H2, p. 143). Tais afirmações
indicam que a reflexão de Herbart sobre a possibilidade de uma inversão (Um-
kehrung) da relação entre ciências particulares e filosofia e, portanto, entre peda-
gogia e filosofia, não é de modo algum equivalente a uma atestação implícita do
seu próprio espaço de autonomia. Elas referem-se, antes disso, ao reconhecimento
do princípio de que as “outras” ciências, incluindo pedagogia e filosofia, devem ser
constituídas numa estreita relação de validação mútua.
Ilustrativo, nesse sentido, é o que Herbart escreveu em uma passagem en-
contrada em um escrito de 1821 intitulado Ueber einige Beziehungen zwischen
Psychologie und Staatswissenschaft. Nele, o oldenbuguense, referindo-se às teses
de Platão que visam ligar “psicologia e ciência política” nos “seus livros da Re-
pública” (H5, p. 27), estabeleceu uma estreita analogia entre os mecanismos que
determinam a vida do espírito (Geist) no microcosmo da esfera individual e aque-
les que governam, no nível do macrocosmo, o espírito do povo. No contexto de tal
abordagem, Herbart antecipando em alguns aspectos, um motivo chave da Völ-
kerpsychologie de Heymann Steinthal e Moritz Lazarus, indicou na psicologia um
núcleo fundador, ou seja, “uma ciência auxiliar”, da “ciência política” como campo
de pesquisa destinado a determinar as condições para a melhor configuração do
Estado em vista da melhoria progressiva das condições de vida e cultura dos povos.
Depois de destacar o papel significativo da psicologia como uma ciência auxi-
liar da ciência do Estado (Staatswissenschaft), Herbart especificou:
Agora, se a psicologia constitui uma parte do fundamento sobre o qual a ciência do Estado
deve assentar para ser plenamente fundada, ao mesmo tempo se estabelece uma relação
entre elas em sentido inverso (umgekehrte Verhältniss). É precisamente neste sentido que
a ciência derivada (abgeleitete Wissenschaft) serve de contraprova (Rechnungsprobe) para
aquilo de que ela depende. Portanto, os erros que poderiam estar contidos na psicologia
serão revelados na medida em que na ciência política nada aparece que seja válido e que
possa corresponder a eles (H5, p. 38-39).
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O que se aplica à ciência política também se aplica à ciência da educação, ou
seja, à pedagogia cujo paralelismo com a política já foi destacado por Herbart no
De Platonici systematis fundamento commentatio de 1805 (H1, p. 314). A pedagogia
como a política, portanto, também ajuda a dar legitimidade a sua ciência auxiliar
(Hilfswissenschaften) (H13, p. 233), ao mesmo tempo em que recebe legitimidade,
como a própria ciência política.
Mas essa relação – observou Herbart – também é recíproca; os princípios corretos da arte
da política vão assim além das ideias práticas; as determinações do que deve ser, devem
ser verdadeiras, no que diz respeito à praticabilidade e eficácia das normas que lhes são
prescritas por razões psicológicas devem servir de suporte, caso contrário são da mesma
forma suspeitas de erro (H5, p. 39).
Seguindo esta indicação interpretativa, nos ajuda a destacar imediatamente
que a reflexão filosófica e a reflexão pedagógica não são, para Herbart, planos es-
sencialmente separados, distintos, divididos, mas coessenciais, interdependentes,
em íntima, estreita correlação e constante intercurso entre eles. Isso ocorre a tal
ponto de se constituírem, mutuamente, a base um do outro e vice-versa, como ex-
pressões de uma aspiração idêntica, tanto para tornar os dados da experiência
teoricamente compreensíveis, em termos de não contrariedade, como para ilustrar,
de um ponto de vista prático, os fundamentos da ética, e para delinear em termos
pragmáticos os limites e condições relativos à possibilidade de uma relação causal
pedagógica. Um relatório que visa não só promover “a transição da indeterminação
para a estabilidade (Uebergehen von der Unbestimmtheit zur Vestigkeit)” (H10, p.
59), mas também para assegurar que esta passagem, na qual está inserido o de-
senvolvimento progressivo da maleabilidade do homem (Bildsamkeit) no processo
da sua evolução espiritual, não seja dirigida para a obtenção de uma forma de
estabilidade. Ora, é esta forma de estabilidade que, mesmo nunca concluída e sem-
pre em progresso, que Herbart resumiu na Pedagogia Geral através da expressão
fortalecimento do caráter moral (Charakterstärke der Sittlichkeit).
Segundo Herbart, a resposta a tal questão não pode deixar de envolver toda
a filosofia, na medida em que é a filosofia que deve dar à pedagogia e, em última
análise, à prática educativa a chave para definir as possibilidades e os limites da
formação (Bildsamkeit) humana e para indicar as possíveis estratégias otimizadas
para alcançar a passagem da indeterminação à estabilidade.
Os problemas, dificuldades, antinomias que surgem na pedagogia não são,
portanto, simples e abstratamente algo pertinente à filosofia (Sache der Philoso-
phie) em geral. Eles envolvem consideravelmente toda a filosofia (der ganzen Phi-
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losophie) (H2, p. 143). O campo de reflexão ao qual o educador pensador (denkende
Erzieher) deve constantemente voltar a sua atenção coincide de facto com o campo
da filosofia na totalidade e complexidade dos seus aspectos: “[..] tanto da teoria
como da prática, e igualmente da mais profunda investigação transcendental como
do raciocínio que simplesmente conecta factos de todo o tipo” (H2, p. 143). A filo-
sofia, em todas as suas dimensões, deve dar apoio e legitimidade à reflexão peda-
gógica. Daí a distância resoluta de Herbart da filosofia em moda (Modefilosofia)
do seu tempo como uma filosofia que não teria “até agora feito muito pelo pensa-
mento pedagógico” porque não é capaz de constituir a “prova” através da qual se
“torna concebível (begreiflich macht)” a “relação causal pedagógica (pädagogische
Causalverhältnis)” entre educador e educando (H3, p. 151). Pois, é em virtude de
tal relação que a educação se manifesta como atividade intencional que se propõe
especificamente a agir “nas profundezas da alma, não para provocar nenhuma ati-
vidade, mas para dirigir a existente para tudo o que é excelente” (H1, p. 299).
“A Pedagogia está, portanto, relacionada com uma filosofia completamente dife-
rente da filosofia Kantiana, Fichtiana e Schelliniana” (H3, p. 151). Essas concepções
filosóficas parecem a Herbart como incapazes e impotentes para definir as condições
da gênese da moralidade ao longo do tempo e fortemente inclinadas ao fatalismo.
Herbart, que tinha apenas vinte anos, tinha escrito numa carta ao seu amigo Johann
Smidt em dezembro de 1796, quase como que para sublinhar a centralidade que a
questão pedagógica assume, desde o início, na economia global da sua reflexão:
Sou extremamente modesto nas minhas pretensões quanto à liberdade do homem, e dei-
xando-a à filosofia de Schelling, e no máximo também a Fichte, para lidar com ela; prefiro
tentar determinar um homem de acordo com as leis da sua natureza e razão, para lhe
oferecer o que pode colocá-lo em condições de fazer algo consigo mesmo (H16, p. 44).
Wilhelm Dilthey, referindo-se às expressões de Kant, que bem expressam uma
crença profundamente difundida e enraizada na cultura pedagógica na virada dos
séculos XVIII e XIX, segundo a qual “Na educação é reposto o grande segredo da
perfeição da natureza humana” (KANT, 1923, p. 444), sustentou que “a grandeza e
o fim de toda filosofia autêntica é a pedagogia no sentido mais amplo, da teoria da
formação do homem” (DILTHEY, 1934, p. 7). Isto significa que as questões básicas
da pedagogia coincidem em parte com as que estão na base da própria filosofia e
que, portanto, qualquer tentativa de reflexão pedagógica autônoma a partir das
suas ligações com a reflexão filosófica e, vice-versa (Umgekehrt). Quem concebe
esta última como separada e estranha da pedagogia, apenas separa e divide de
forma suspeita aquilo que está intimamente relacionado e articulado.
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É a totalidade (ganze) da filosofia, para voltar ao tema das relações entre re-
flexão filosófica e reflexão pedagógica, que deve contribuir para definir as condições
de possibilidade da passagem da “educabilidade à formação (von der Bildsamkeit
zur Bildung)” (H10, p. 177). Só através desta clarificação preliminar será possível
legitimar uma atividade como a educação, que visa teleologicamente ter um im-
pacto efetivo na determinabilidade (Bestimmbarkeit) do ser humano. Para além
das limitações devidas às ‘circunstâncias de lugar e tempo” e para além das ca-
racterísticas específicas da “individualidade” (H10, p. 69), que podem condicionar
“a maior ou menor facilidade” com que o “estado de espírito muda” (H2, p. 102), o
ser humano constitui na sua indeterminação original e radical, entendida como a
possibilidade de assumir formas diferentes e variadas, sua principal característica
distintiva em relação a qualquer outro ser vivo.
O que caracteriza o homem, em comparação com qualquer outro organismo vivo,
o que o distingue antropologicamente, tornando-o único na sua espécie, reside na ex-
trema versatilidade das potencialidades de sua formação espiritual. Tal versatilidade
não se sujeita à uma “regularidade” tal como a de se igualar “plenamente ao firma-
mento” (H4, p.273), pois se assim o fosse se transformaria em testemunho inequívoco
da intencionalidade de todo modelo interpretativo destinado a conceber o espírito
humano como um organismo no qual as formas de seu desenvolvimento futuro seriam
encontradas predeterminadas, preformatadas e predefinidas desde sua origem.
Observou Herbart numa passagem de Diktate zur Pädagogik, que a “nature-
za não diz o que quer do homem. Simplesmente mostra-lhe a sua infinita educabili-
dade. Cabe a ele ver como pode se beneficiar melhor e buscar a maneira de realizar
sua própria educabilidade” (HERBART, 1913, p. 130, v. 1).
Os argumentos de Herbart parecem fortemente inspirados, também do ponto
de vista terminológico, pelas posições expressas por Fichte em 1796 na Grundlage
des Naturrechts nach Prinzipien der Wissenschaftslehre, na qual ele avançou na
tese da determinabilidade infinita (Bestimmbarkeit ins unendliche) do homem, ir-
redutível na sua indeterminação dentro dos limites da “formação (Bildung)”, que é
um princípio formal predefinido.
Todos os animais são perfeitos e acabados, o homem é apenas insinuado, esboçado [...].
Cada animal é o que é: só o homem é originalmente nada. O que ele tem de ser, tem de se
tornar. E como ele deve ser um ser para si mesmo, deve tornar-se um através de si mesmo.
A natureza completou todas as suas obras, só pelo homem retratou a mão e por isso mesmo
a confiou a si mesma. Como tal, o carácter da humanidade é a sua educabilidade (Bildsam-
keit) (FICHTE, 1966, p. 379).
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Para dizer a verdade, segundo Herbart, o conceito de educabilidade
(Bildsamkeit) não seria de todo responsável, para usar a expressão de Fichte, de
uma determinabilidade no infinito (Bestimmbarkeit ins unendliche) se, como ele
reconheceu no parágrafo 4º do Umriss pädagogischer Vorlesungen, “não for de todo
legal para a pedagogia assumir qualquer educabilidade ilimitada (unbegränzte
Bildsamkeit)” (H10, p. 69). No entanto, a esfera das possíveis determinações do
homem revela-se ampla e aberta a inúmeras metamorfoses, de modo a permitir-
-lhe, na sua indeterminação, como um ser que “é continuamente formado (geformt)
pelas circunstâncias”, ser capaz de “tornar-se uma besta selvagem ou razão per-
sonificada” (H1, p. 308), tomando a forma de “um anjo (Engel)” ou, vice-versa, em
“um animal (Vieh)” (HERBART, 1850, p. 432, v. 11)10.
Assim como a rosa, “rainha das flores”, declarou Herbart na Allgemeine Päda-
gogik usando uma imagem sugestiva, “requer muito pouco cuidado do jardineiro”;
assim “a maneira como cada planta [...] cresce em cada clima, alimenta-se de cada
alimento, aprende com extrema facilidade a levar ajuda e se beneficiar de tudo”
(H2, p. 5-6), a natureza do ser humano é tal que se adapta às mais diversas circuns-
tâncias. É isso que condiciona a forma de seu desenvolvimento espiritual e, por
isso, é necessário projetar as oportunidades, as circunstâncias favoráveis, em vez
de deixá-las ser confiadas ao acaso, de modo a estimular a receptividade, refinar o
modo de sentir, promover o interesse múltiplo, lançando as bases para a formação
do caráter. Sentenciou Herbart (H1, p. 307): “A energia humana (Kraft) simples-
mente elabora o que recebe e precisamente por isso o que lhe é dado torna-se muito
importante”.
A “área” (Amt) da educação, especificou o filósofo e pedagogo alemão, com
acentos claramente polêmicos para um modelo pedagógico que tinha em Rousseau
seu teórico mais convicto,
[...] não é de forma alguma simples vigilância e cuidado, como uma jardinagem, que se preo-
cupa apenas com as plantas. Neste último caso, é importante apenas que sejam promovidas
circunstâncias favoráveis e desfavoráveis, que a chuva e o calor, o solo e a atmosfera sejam
adequados para que cada espécie vegetal se desenvolva. O homem, por outro lado, que não
exige um clima determinado [...] precisa da arte, que o eleva, o constrói, para que receba a
forma acertada (H1, p. 307-308).
A arte de edificar (erbauen), de construir (construiren), nada mais é, neste
caso, do que a arte da educação que, para usar termos recorrentes no léxico pedagó-
gico herbartiano, propõe explicitamente hervorbringen, erzeugen, machen – isto é,
gerar, produzir, fazer – o homem, na convicção de que “o ser humano se torna como
nós o fazemos” (H4, p. 598).
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Em Vorlesungen über Pädagogik, publicado em 1803 por Friedrich Theodor
Rink, Kant resumiu em três expressões lapidares o sentido, significado e importân-
cia da educação, destacando magistralmente seu profundo valor ético: “O homem
é a única criatura que deve ser educada [...]. O homem só pode tornar-se homem
através da educação. Ele não é nada mais do que a educação faz dele (Er ist nichts,
als was die Erziehung aus ihm macht)” (KANT, 1923, p. 441–443). Naquela ocasião,
portanto, também Kant parece endossar a razão para uma ação causal da educação
sobre o homem como sendo suscetível de ser formada. Mas não surpreende que
Herbart revisite anonimamente em fevereiro de 1804 o livreto kantiano (Büchlein),
escrito, como ele mesmo assinalou, com “simplicidade antiga” e caracterizado “por
olhares e brilhantes acenos”. No entanto, queixou-se, especialmente no que diz
respeito à educação moral, que o seu autor tinha finalmente reiterado “dos seus
princípios bem conhecidos” em vez de indicar a possibilidade de que o todo “ocorre
como consequência da nossa influência sobre a alma do aluno” (KANT, 1803, p.
260–261). Nas palavras de Kant, na educação moral tudo depende de tornar “in-
teligível e aceitável” (begreiflich und annehmlich), e que é necessário “ter cuidado
para que (dahin sehen) a criança [...] aja de acordo com máximas”11 de fato. Tais pa-
lavras soam a Herbart como “palavras vazias”, sobretudo, na medida em que foram
pronunciadas por um filósofo que, tornando-se um afirmador decisivo do conceito
de liberdade transcendental, tinha, de fato, tornado não só inconcebível, no campo
da educação ética, a possibilidade de qualquer “vínculo causal (Causalnexus)”, mas
também negado a “pedagogia inteira (alle Pädagogik)” (KANT, 1803, p. 261).
A criança, escreveu Herbart no Allgemeine Pädagogik, esboçando os traços
essenciais de sua própria concepção de uma fenomenologia da vida ética, “vem ao
mundo sem vontade: portanto incapaz de qualquer relação moral” (H2, p. 18). Ape-
nas “com o passar do tempo surgirá nele uma vontade” (H2, p. 18). E que isto será
determinado pelo “modo de decidir (Art der Entschlossenheit)” não simplesmente
na forma de “este ou aquele outro caráter” (H2, p. 98) mas, como esperava Herbart,
na forma de um caráter rigorosamente inspirado em seus princípios pelas ideias
modelo de ética, isto constituiu, com respeito à ampla “necessidade dos fins futu-
ros [...] simplesmente possível” e “legítima” (HERBART, 1913, p. 141), o “primeiro
e único” “negócio principal da educação” (“Hauptgeschäft der Erziehung”) (H1, p.
259), isto é, o “fim necessário” que o educador “não poderia jamais perdoar a si mes-
mo por ter negligenciado” (H2, p. 28). Assim, rejeitando como nada “presunçosa a
ideia de que alguém pode ser moralmente bom imediatamente (auf der Stelle gut
sein) em virtude da sua própria decisão simples” (H12, p. 151), Herbart sublinhou a
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necessidade de conceber a transição da relativa “indeterminação da criança” para a
relativa “estabilidade do adulto” (H12, p. 69). Trata-se, então, da modificabilidade
(Veränderlichkeit) ao constante (Stetigkeit), como polaridades antropológicas que
são antitéticas mas complementares, como resultado de um “lento desenvolvimen-
to que passa por graus dificilmente distinguíveis” (H3, p. 18). O “cada grau”, tor-
nado possível por sua vez pelos graus evolutivos anteriores, constitui, por sua vez,
o fundamento necessário para os sucessivos desenvolvimentos posteriores, numa
contínua transição e alternância entre momentos e fases de relativa resolução e fa-
ses ou momentos de abertura para possíveis metamorfoses espirituais posteriores,
de modo que “o homem se vê resolvido em cada grau, mas globalmente ainda móvel
entre os mesmos graus” (HERBART, 1913, p. 524, v. 3).
O processo que caracteriza o caminho evolutivo do sujeito em seu próprio de-
senvolvimento formativo, portanto, ocorre de acordo com fases intimamente corre-
lacionadas e interligadas, das quais uma constitui a condição, isto é, o pré-requi-
sito necessário da outra. A principal tarefa da educação é encorajar e facilitar este
processo na ordem mais de acordo com as capacidades e grau de desenvolvimento
já alcançado, aproveitando a “modifiabilidade natural da alma humana” e “a sua
capacidade de alcançar uma certa estabilidade e constância” (HERBART, 1913,
p. 130, v. 1). Dessa forma, promove as inclinações e predisposições mais adequadas
para o alcance daquele fim da educação (Zweck der Erziehung) que constitui, numa
perspectiva teleológica, o termo de referência da dedução (Ableitung) realizada por
Herbart em 1806 de sua Pedagogia Geral (Allgemeine Pädagogik). “O pré-requi-
sito básico para a formação do carácter”, especificou Herbart, “é a construção das
inclinações”(HERBART, 1913, p. 524, v. 3) entendido como aquele complexo de
qualidades ou disposições da alma, tudo menos inato ou ontologicamente inerente
à estrutura original do sujeito, que a educação deve promover apropriadamente
através de um processo de movimento constante de “predisposição para predispo-
sição”, correspondente ao mesmo processo de transição progressiva e gradual do
indivíduo para diferentes níveis de formação (Bildung).
A hipótese é que o processo educacional deve coincidir no final com a mera
prestação do devido cuidado e atenção ao desdobramento natural das potencia-
lidades presumidas inerentes à constituição orgânica do espírito do homem em
geral (Mensch überhaupt). O ser humano é, então, concebido como um “agregado de
faculdades da alma” (H4, p. 334), como teatro de um verdadeiro “bellum omnium
contra omnes (H5, p. 199) entre poderes, predisposições, diferentes e opostas. Sub-
-repticiamente ele é assumido como original com base em “conceitos não cientifica-
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mente ressuscitados, do que acontece em nós” (H4, p. 303), não estando de acordo
com a abordagem educativa que visava, na esteira de Pestalozzi, sublinhar o dever
do educador de “não fazer, como se a criança já tivesse uma experiência, mas pro-
curar que ela a receba”. Sendo assim, tal postura contribuiria para edificar (bauen)
seu espírito (Geist) e “construir (construiren) nela [na criança] uma experiência
intuída de maneira determinada e clara” (H1, p. 309).
Os argumentos de Herbart sobre a noção de educabilidade (Bildsamkeit),
que ele considerava, para todos os efeitos, o primeiro postulado da educação, não
estavam de modo algum reduzidos aos limites da pedagogia. Reconheceu que o
âmbito (Umfang) deste conceito era de fato muito mais amplo, estendendo-se até
aos elementos da matéria (H10, p. 69). Esta extensão ocorria a tal ponto que na
segunda parte sistemática da Metafísica Geral (Allgemeine Metaphysik), tratando
dos Elementos de uma filosofia da natureza, o próprio Herbart dedicou um capítulo
inteiro à investigação sintética da educabilidade da matéria (Von der Bildsamkeit
der Materie). Ele o fez a fim de enuclear o conjunto de suposições que seria a base
de sua possível transformação constante e variada na “passagem gradual de uma
condição para outra” (H8, p. 278). No entanto, a noção de educabilidade (Bildsam-
keit) no ser humano assumiu em Herbart significado e papel muito diferentes do
que aqueles assumidos em outras manifestações naturais, revelando-se em con-
ceito chave para ultrapassar a aparente dicotomia entre “determinismo e ética”
(H1, p. 273) e, ao mesmo tempo, lançar as bases para uma definição das condições
de possibilidade da “formabilidade da vontade na perspectiva moral” (H10, p. 69).
Com tal conceito se reafirma a centralidade da “relação-causal (Causal-Verhält-
niss) entre educador e educando” (H1, p. 299; H3, p. 151). Ou seja, atribui à relação
educativa a capacidade plástica efetiva em conformidade com as leis, princípios e
normas que definem o desenvolvimento da vida psíquica. A educabilidade contesta,
ao mesmo tempo, qualquer concepção que vise à hipótese de que na alma já existe
uma estrutura orgânica pré-formada que deve ser desenvolvida, como já estivesse
constituída a ponto de querer fazer dela algo diferente, e isso “seria tão louco como
querer produzir um jacinto a partir de um bulbo de tulipa” (H6, 330-331). Herbart
assimilou a formação do caráter a um “fato (Ereigniss)”, a um “evento natural (Na-
turbegebebenheit)” que “necessariamente acontece, como um efeito inevitável de
certas causas espirituais [...] tão necessariamente como qualquer efeito no mundo
físico”. Procedendo nesta direção, ele estabeleceu um paralelo significativo entre
educador (Erzieher) e astrônomo (Astronom), ambos empenhados em tentar identi-
ficar “quais são as leis que governam o curso dos fenômenos que estão antes deles,
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e assim descobrir como é possível modificar esse curso de acordo com um fim e um
plano” (H1, p. 261; H6, p. 332).
Embora confirmando a legitimidade de seu compromisso em construir a psico-
logia como ciência exata da alma, no modelo das ciências físico-naturais, Herbart
estava bem consciente da profunda diferença que passa entre as “leis físicas (da
gravidade, do impacto, etc.)” e as que regem a mobilidade do espírito humano (Be-
weglichkeit des Menschengeistes). Sendo assim, o aparente estreitamento do fosso
entre as duas dimensões resultou, neste caso específico, motivado sobretudo pela
postura polêmica decisiva em relação àquela “falsa antítese entre leis naturais
(Naturgesetz) e leis da liberdade (Freiheitsgesetz)” (H13, p. 224). Tal antítese estava
menos disposta a reconhecer não apenas que a liberdade não está necessariamente
em contradição com o determinismo, mas que ela, como Herbart insistiu mais uma
vez em polêmicas abertas em relação ao conceito kantiano e fichtiano de liberdade,
constituía a condição necessária.
É necessário eliminar as razões do:
[...] mal-entendido de que quase todos, assim que percebem a terrível expressão do deter-
minismo, geralmente se conectam a ele como se desta forma a vontade fosse negada; a
reflexão e a resolução foram declaradas aparência e engano; a mesma avaliação ética como
inspiração extrínseca. Quem quer que entenda isto com determinação afirma, com razão,
que desta forma a moralidade (Sittlichkeit) é representada como uma quimera, desconside-
rando que esta, a moralidade, sem dúvida, tem seu fundamento em julgar e querer autono-
mamente. Mas aqueles que não têm outro conceito de determinismo além deste, não terão
necessariamente chegado ainda a uma reflexão madura sobre este tema (H3, p. 228-229).
Os conceitos de liberdade e determinismo não são tão antitéticos que não sejam
capazes de “promover a paz um com os outro (mit einander Frieden machen)”. Na
contramão disso, Herbart (H10, p. 305) argumentou que a “a liberdade é adquirida
com base nas condições a que a palavra determinismo se refere, na medida em que
a educação segue a correta autoeducação”. Se é verdade, de fato, como já o lemos,
que o ser humano precisa de uma arte que “o edifica, o construa, para que receba
a forma certa(H1, p. 305), também é verdade que “se torna menos ele mesmo,
quanto mais se impõe ou até mesmo simplesmente se apresenta com uma forma
estranha” (H9, p. 455). Tais afirmações são apenas aparentemente paradoxais e
contraditórias, cuja explicação é esclarecida pela função diferente que a educação
assume, segundo Herbart, no decurso do seu próprio desempenho.
Herbart desafia todas as hipóteses que visam defender “a representação de
que as chamadas disposições do homem constituem um complexo orgânico que se
desenvolve segundo leis internas, ao qual se pode, sim, oferecer cuidado e alimento,
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mas ao qual nenhum outro desenvolvimento pode ser imposto, exceto aquele que é
originalmente seu” (H3, p. 155). Também rejeita, consequentemente, a ideia rous-
seauniana de educação destinada a assegurar “crescimento livre e alegre para to-
das as manifestações de vegetação no homem” (H2, p. 5). Tal crescimento é concebi-
do como simples atenção, vigilância, cuidado, assistência, deixar crescer (Aufsicht,
Wartung, Pflege, Nahrung, Wachsenlassen). Em contraposição ao “desenvolvimento
que ocorre espontaneamente (aus sich selbst hervorgehende Entwickelung)” (SCH-
WARZ, 1829, p. 3, v. 2; H13, p. 231) no decurso do processo de desenvolvimento
progressivo e natural de uma condição original já pré-delineada, Herbart foi defen-
sor convicto da imagem de ser humano como susceptível de transformações, meta-
morfoses e mudanças. Concebido assim, o ser humano “é constantemente formado”
através da combinação de múltiplas “circunstâncias” (H1, p. 308) que constituem
no seu conjunto o pressuposto de seu desenvolvimento espiritual no quadro de sua
indeterminação original.
Quem assume a delicada tarefa de “elevar uma criança, estando no meio da
realidade, a uma existência melhor (zu einem bessern Daseyn)” (H2, p. 6-7), Her-
bart declarou nesta linha, sublinhando o papel do “destino”, das “circunstâncias”,
do “mundo que educa junto, em parceria (die miterziehende Welt)”, deve estar bem
consciente “que ele não é o verdadeiro educador que convém ao seu aluno, mas toda
a força de tudo o que os seres humanos ouviram, experimentaram e pensaram; e
que ele foi designado para a criança simplesmente como um intérprete inteligente
e digno companheiro” (H2, p. 7).
Prosseguindo nessa linha, Herbart não deixou de apontar que a relativa e
hipotética indeterminação original do ser humano - tanto mais hipotética e re-
lativa quanto o “educador não encontra de modo algum a alma jovem como uma
mesa branca, ainda não escrita” (HERBART, 1913, p. 521, v. 3) – abre a tal alma
jovem uma gama infinita igualmente hipotética e relativa de formações possíveis.
Embora esta gama infinita seja gradualmente encolhida com o passar do tempo, na
medida em que o processo da Bildung em curso assume conformação mais e mais
específica e peculiar, ela assume a objetividade de um caráter bem definido. Nas
palavras de Herbart (H1, p. 308):
Assumindo, portanto, que a arte ou o acaso, independentemente de qual dos dois, real-
mente começaram e continuam a fazer o que a natureza não faz – desde que o ser humano
esteja em constante formação e, portanto, em permanente educabilidade, ou seja, com um
ser ainda em aberto (noch halb offener Bildsamkeit) – nessa condição intermediária ele já
é claramente assimilável à planta.
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A passagem em questão pode ser encontrada na parte final de Ueber den
Standpunct der Beurteilung der Pestalozzischen Unterrichtsmethode, de 1804, que
consistiu originariamente em uma breve palestra proferida no Museu da Cidade
Livre de Bremen. Partindo de uma reflexão sobre os métodos didáticos de Pestalo-
zzi, Herbart deu algumas indicações importantes sobre sua maneira de conceber
questões pedagógico-filosóficas cruciais, entre as quais a questão controvertida e
amplamente discutida na cultura filosófico-científica da época entre preformismo
e epigenismo. Ou seja, trata-se aí da disputa entre, por um lado, a concepção do
desenvolvimento, neste caso específico, da espiritualidade do homem que pode ser
traçada até à presença de estruturas já, mais ou menos, preestabelecidas e, por
outro, a hipótese que visa traçar esse desenvolvimento, pelo menos até aos seus
primórdios, a um imponderável complexo de circunstâncias. Muito bem! Herbart
rejeita antecipadamente, deste modo, o paralelismo rousseauniano entre cultura
das plantas e educação humana (culturas des plantes et éducation des hommes),
argumentando que “na natureza humana” não há, ao contrário “da planta”, qual-
quer “disposição natural estável”. Ele recusa com isso qualquer possibilidade de
assimilar a atividade educativa à “simples vigilância e cuidado” nos termos como
aconteceria na “jardinagem”. Por seu turno, veio de forma aparentemente parado-
xal sustentar, como acabamos de ler, não só certa assimilação entre ser humano
e planta, como também uma real afinidade entre “Arte de educar” (Kunst der Er-
ziehung) e “arte da jardinagem” (Gartenkunst) (H1, p. 307-308).
O raciocínio desenvolvido por Herbart se deixa confirmar ainda em uma pas-
sagem de Über die dunkle Seite der Pädagogik:
Para dizer a verdade, cada círculo de pensamentos e sentimentos, à medida que se expan-
de, encadeia de forma mais íntima o que já está ligado, tornando-se cada vez mais como um
organismo, eliminando o que repele e assimilando o que acha adequado. No entanto, não
há originalmente na alma humana constituição orgânica, assim como em geral não é per-
mitido assumir nela um múltiplo seja ele qual for. Uma liberdade muito maior permanece
para a atividade do educador, que precisamente na sua juventude inicial forma em grande
parte a semente a partir da qual se produz o que mais tarde se revela ser aparentemente
orgânico (H3, p. 151-152).
A afirmação contida nesta passagem confirma implicitamente a transição de
uma visão mecanicista, destinada a explicar a gênese das disposições, das capa-
cidades, das estruturas em que a peculiaridade característica de cada indivíduo
é estruturada e toma forma, a partir do entrelaçamento das várias experiências
cognitivas, emocionais e afetivas que ocorrem nas primeiras etapas da vida, para
um cenário voltado para conceber o espírito como um verdadeiro organismo inex-
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plicável a partir dos dinamismos que o colocaram em prática e estruturaram de
acordo com suas próprias leis. Neste contexto, parece oportuno referir-se à hipótese
desenvolvida por Herbart, na esteira de Leibniz, sobre a centralidade, na “geistige
Leben”, ou seja, da função psíquica da apercepção como dispositivo destinado a
“ligar o novo ao velho” (H11, p. 412). Por meio disso seriam esclarecidas então as
modalidades de apropriação ou “assimilação” de novas representações “através de
representações previamente adquiridas” (H10, p. 147).
Esse processo assume particular importância na economia global da reflexão
herbartiana e, de um modo mais geral, no contexto da teoria das capacidades de re-
conhecimento e compreensão. Pois, não só evidencia que cada uma de nossas novas
experiências é aceite por nós e feita nossa a partir dos elementos constitutivos da
experiência anterior, como evidencia também que compreender uma nova situação
significa evocar situações semelhantes que já foram elaboradas. Também susten-
ta a tese de que nossa própria experiência anterior, constantemente enriquecida
e ampliada através da assimilação de elementos sempre novos e dinamicamente
transformados, não é senão o produto da multiplicidade de sucessivos atos de assi-
milação ou apercepção que a constituem e a estruturam como tal. Isso significa, em
outras palavras, que continuamos, indefinidamente, a organizar e reorganizar as
nossas estruturas mentais incorporando nelas experiências sempre novas.
A partir destas premissas, Herbart considerou o processo concreto de Bildung
do ser humano, em antítese a qualquer cenário que visasse prefigurar abstrata-
mente a existência de um presumível Bildungstrieb ou nisus formativus original,
como a expressão de um conjunto extremamente complexo e articulado de atos
e momentos relativos a modalidades e graus de constante apropriação de novos
elementos e contínua reelaboração de elementos preexistentes. Tais premissas
também lhe permitem sustentar a ideia de formação humana como consequentes
acomodações e remodelações de massas previamente estruturadas e do desenvolvi-
mento de séries e, simultaneamente, como a constituição de redes de elementos es-
treitamente entrelaçados e capazes de atuar como estruturas próprias, até formar
gradualmente o núcleo original do “caráter objetivo” do homem.
Movendo-se nesse sentido, Herbart foi finalmente induzido a assimilar o pro-
cesso parcial de formação em andamento, ou seja, o resultado da halbe Bildung e,
consequentemente, da halbe Bildsamkeit ainda aberta, a uma “condição interme-
diária” (Mittelzustande) de desenvolvimento em que o ser humano já encontraria
um núcleo germinal de predisposições organizadas. Estas, atuando como massas
apercebidas consolidadas e em processo de posterior consolidação, não só seriam o
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pré-requisito para futuros desenvolvimentos, mas também representariam, para
todos os efeitos, a analogia de um organismo real, em virtude do qual a “forma-
bilidade” é gradualmente transformada de um processo de construção inicial de
“individualidade” (H1, p. 305) para outro processo de autodeterminação livre e es-
pontânea, isto é, de autodeterminação do próprio sujeito. Assim resume Herbart
(H1, p. 304-305):
Vamos antes de tudo olhar para a multiplicidade (auf das Mannigfaltige) que se encontra
junto à alma de um ser humano adulto. Consiste em conhecimento e imaginação, decisões
e dúvidas, sentimentos e inclinações bons, maus, intensos, fracos, conscientes e incons-
cientes. Constitui-se de maneira diferente no ser humano culto e no vulgo; diferente no
alemão do que no francês; no inglês em comparação ao turco, no preto e no habitante das
ilhas Samoa. A forma como é constituída determina a individualidade do ser humano. A
educação quer construir e melhorar isto, só que não sabe muito bem como deve começar e
quanto pode presumir alcançar.
Na “condição intermediária”, de formação em processo, como condição de hal-
be Bildsamkeit, ainda aberta,
[…] já existe, portanto, algo que se desenvolverá ainda mais de forma definida, se não for
impedido; algo que facilita ou contrasta de forma determinada com tudo o que retorna. Por
outro lado, o que acontece de novo deve também conformar-se com o que já existe, promo-
vendo-o e encorajando seu ulterior florescimento, na medida em que tal florescimento seja
desejável. A arte de continuar a educação já iniciada torna-se, portanto, cada vez mais
semelhante à jardinagem; os dons desta arte são transformados cada vez mais em simples
exposições, o tratamento torna-se cada vez mais um simples sopro; e vice-versa, o real dar
e receber diminui (H1, p. 308).
Herbart especificou numa passagem já referida antes e que devemos citá-la
agora novamente, na íntegra: “os seres humanos se tornam, como nós os fazemos
(wie man sie macht), e como eles próprios preparam sua formação (und wie sie
selbst ihre Bildung veranstalten)” (H4, p. 598). Machen (fazer), construiren (cons-
truir), bilden (formar), erzeugen (gerar), hervorbringen (produzir) são termos recor-
rentes no léxico pedagógico de Herbart, expressando e definindo todos eles a pró-
pria possibilidade da “causalidade pela educação” (H4, p. 331), constitutivamente
orientada para lançar as bases do desenvolvimento livre e autônomo do sujeito em
formação. “A educação seria tirania se não conduzisse à liberdade”, disse o jovem
Herbart, no primeiro de seus discursos de Berichte ao Sr. Von Steiger, em 4 de
novembro de 1797. “Mas, deve tentar certificar-se antecipadamente do uso desta
liberdade” (H1, p. 48). “Fazer homem”, então, para Herbart, “significa determinar
a autodeterminação” (BUCK, 1985, p. 102) e predispô-lo à liberdade. Deste ponto
de vista, a ação pedagógica se configura como uma forma de causalidade, isto é,
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uma forma de intervenção, que se propõe a lançar as bases para que “a criança (das
Kind)”, que se tornou adulta e “educada no uso da razão (zur Vernunft Gebildete),
assuma a tarefa do autogoverno no tempo” (H2, p. 18).
A “verdadeira e própria educação”, lemos numa passagem emblemática da Allge-
meine Pädagogik, concebida como “a arte de perturbar a alma de uma criança na sua
paz, de a ligar a si mesma com confiança e amor, de a deprimir e excitar à vontade,
e desmascará-la prematuramente na inquietação dos anos vindouros, seria a mais
odiosa de todas as artes do mal, se ela não tivesse que alcançar um fim, que poderia
servir para justificar o uso de tais meios também nos olhos dela, por quem seria para
ser temido a reprimenda” (H2, p. 25). “O ser humano”, resume Herbart novamente,
“precisa de uma arte que o eleve, construa-o, para que ele possa receber a forma ade-
quada (H1, p. 308). Educar, ou melhor, promover a passagem da indeterminação à
estabilidade, favorecendo uma “determinada construção de inclinações” através de
um constante “caminho” (Gang) (H3, p. 520), um “desenvolvimento (Entwickelung)
constante de predisposição à disposição” (H3, 519), que melhora, aumenta, eleva e
enobrece a atividade espiritual das crianças, constitui uma atividade que deve ser
proposta como tarefa primária. Em síntese, “fazer (machen) para que o aluno se
encontre (sich selbst finde) no ato de escolher o bem e rejeitar o mal” (H1, p. 261).
“A educação deve fazer (machen) com que a vida se torne uma grande obra de
arte, ainda que na sua maioria extemporânea, cuja excelência não deve ser procu-
rada na aparência externa, mas no sentimento interior e na consciência de cada
indivíduo envolvido” (H3, 519). Machen, que é “fazer que”, significa para Herbart,
como já foi mencionado, pôr em prática uma relação causal destinada a determinar
o homem pedagógico para se autodeterminar como ser capaz de agir livremente, na
crença de que “a relação causal entre educador e aluno” implica não só que “você
pode agir sobre o aluno, mas também que certas influências correspondem a certos
resultados e que através da pesquisa contínua, juntamente com uma observação
relevante, você pode se aproximar cada vez mais de um conhecimento precoce des-
ses resultados” (H3, 519).
“Um dos maiores problemas da educação é como conciliar a submissão à coerção
da lei com a capacidade de usar a própria liberdade”. Ou seja, em termos kantianos:
“Como é possível cultivar a liberdade através da coerção?” (KANT, 1923, p. 441).
Esta questão colocada por Kant nas Vorlesungen über Pädagogik deve ser vista à
luz da mesma questão que Herbart também se coloca através de sua tentativa de
demonstrar, em polêmica aberta com a noção de liberdade transcendental, que a
liberdade não é incompatível com o mecanismo representativo, mas que é de facto
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alcançável através de um processo pedagógico causal que é realizado em obediência
às “leis que regulam a vida do espírito (Gesetzen geistiger Wirkung)” (H1, p. 262).
“O ser humano é a única criatura a ser educada” (KANT, 1923, p. 441), conde-
nou Kant imediatamente na abertura de suas Vorlesungen über Pädagogik. Como
afirma Herbart, só o ser humano é, de fato, suscetível a Bildung; só ele pode de-
terminar a si mesmo e, ao mesmo tempo, ser determinado, estimulado, levado à
autodeterminação.
Fichte tinha concebido, no terceiro parágrafo da Grundlage des Naturrechts
nach Prinzipien der Wissenschaftslehre de 1796, a ação pedagógica, a educação,
como um “desafio (Aufforderung) para libertar a actividade espontânea (zur freien
Selbsthätigkeit)”, ou como forma de relação, de Wechselwirkung, de inter-actio es-
quematicamente referenciável à relação entre um sujeito que impele outro sujeito
a fazer, a realizar livremente o que é potencialmente capaz de fazer. Esse “desafio
do sujeito a uma livre atividade espontânea (Aufforderung des Subjekts zu einer
freien Wirksamkeit)” (FICHTE, 1966, p. 345; H1, p. 254-255) não é concebido, po-
rém, de acordo com um esquema rígido de causa e efeito, como uma real ação causal
em necessidade, pois isso contradiria o conceito de livre atividade. Pelo contrário,
o sujeito, com base em tal incentivo ou apelo, pode resolver a atividade, uma vez
que ele percebe o convite não como um simples mandamento, mas o compreende e
o assume espontaneamente. O sujeito só pode fazer seu este convite na medida em
que a sua causa tenha seu fundamento na liberdade e na razão.
Esta causa deve, portanto, ter necessariamente o conceito de razão e de liberdade; portan-
to, deve ser ela própria capaz de conceitos, uma inteligência, e precisamente porque, como
foi demonstrado, isto não é possível sem liberdade, um ser também livre, portanto, em
geral, um ser racional, e como tal deve ser colocado (FICHTE, 1966, p. 345).
A concepção de Fichte do significado da atividade educativa como atividade
capaz, em geral, de conciliar determinação e liberdade em termos da determinação
do sujeito à autodeterminação (des Subjekts zur Selbstbestimmung) parece ser, em
certos aspectos, plenamente partilhada por Herbart. Sendo assim, Herbart, par-
tindo de tal abordagem, alcançou, contudo, um firme afastamento das posições de
seu mestre em relação ao tema da fundação da liberdade transcendental. Em suas
próprias palavras:
Esta [concepção] implica uma inconsistência no campo da pedagogia, uma vez que o acto
inteligível da liberdade não se encontra em nenhuma relação com o tempo, enquanto a edu-
cação, se extrairmos do seu início e progresso no tempo e da relação causal entre educador
e aluno, se torna para nós algo completamente incompreensível (H3, p. 151).
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A atitude polêmica de Herbart em relação ao conceito kantiano-fichteano de li-
berdade foi, portanto, motivada pelo reconhecimento de que esta dimensão de modo
algum retira suas raízes da esfera fundamentalmente diferente daquela na qual as
vidas dos seres humanos ocorrem concretamente, em suas manifestações empíri-
cas fenomenais. Portanto, não se refere, segundo Herbart, a uma esfera completa-
mente desligada de qualquer forma de causalidade (fenomênica). De outra parte,
baseia-se também na firme convicção de que não só o processo de autonomia, isto é,
de emancipação (Mündigkeit) do indivíduo procede de mãos dadas com o processo
de sua formação espiritual, mas também, além disso, de que este processo encontra
sua coroação na aquisição daquela “firmeza interior (enxerto de Festigkeit)” (H2,
p. 11), na qual só pode enraizar-se plenamente aquele ato de Selbstbestimmung
que dá à decisão o caráter de liberdade.
Notas
1 Título original: Komplexität und Bildung. Die Pädagogik Herbarts und ihre einheimischen Begriffe. Tra-
dução e revisão do Dr. Odair Neitzel e do Dr. Cláudio Almir Dalbosco.
2 Na sequência, adotamos o modo habitual de citação das obras completas de Herbart (1887/1989), abrevian-
do a obra pela letra “H”, seguida do número do volume e da indicação de página.
3 Recordo que a resposta à revisão de Jachmann, juntamente com a relativa ao debate crítico sobre o Lehr-
buch zur Einleitung in die Philosophie, foi publicada por Herbart sob a forma de uma brochura com o
título: Ueber meinen Streit mit der Modephilosophie dieser Zeit.
4 Die Autonomie der Pädagogik Herbarts é o título de um artigo de Walter Asmus (1975), um dos principais
estudiosos e sem dúvida o mais importante biógrafo de Herbart. Trata-se de um artigo extremamente
controverso contra as declarações de Gunther Buck, destinado a sublinhar a absoluta inconsistência dos
“argumentos” apresentados pelos recentes intérpretes de Herbart em apoio à “tese de autonomia” da sua
pedagogia. Os argumentos de Buck, expressos num artigo eloquentemente intitulado Über die dunkle
Seite der Pädagogik Herbarts: Ein Literaturbericht (BUCK, 1974), será retomado e ampliado no volume
Herbarts Grundlegung der Pädagogik (BUCK, 1985).
5 Cf. em propósito: Bernhard Schwenk (1963), Wolfgang Klafki (1971), Walther Asmus (1975), Josef Leopold
Blass (1972), Günter Buck (1969), Norbert Hilgenheger (1993).
6 “Os sistemas filosóficos que admitem o fatalismo ou a liberdade transcendental são excluídos da pedagogia
por si mesmos, uma vez que não podem assumir em si mesmos, sem inconsistência, o conceito de educabi-
lidade, o que implica uma passagem da indeterminação para a estabilidade” (H10, p. 69). Nesses termos,
Herbart se expressou na Introdução da Umriss pädagogischer Vorlesungen (H10). É evidente que com a
expressão “liberdade transcendental” Herbart se refere expressamente à perspectiva kantiana, como abso-
lutamente inadequada, em sua opinião, para esclarecer a possibilidade da gênese da moralidade no tempo
(H10, p. 209).
7 Cf. “O conceito de educação é um conceito dado; nenhuma construção idealista pode alcançá-lo sem cair
nos erros mais grosseiros e evidentes. Mesmo este fato constitui simplesmente uma refutação suficiente do
idealismo em todas as formas que ele pode experimentar. Uma das provas essenciais da autêntica metafí-
sica e psicologia é que elas tornam compreensível a relação causal pedagógica” (H10, p. 16).
8 “Tal como o astrônomo, o educador – Herbart mais esclarecido – tenta finalmente identificar, questionando
a natureza apropriadamente e através de um raciocínio preciso e suficientemente extenso, quais leis re-
gem o curso dos fenômenos que estão diante dele e, assim, também compreender como é possível modificar
esse curso de acordo com um propósito e um plano. Bem! Essa concepção realista não tolera a menor in-
terferência da concepção idealista. Nem mesmo o mais leve sopro de liberdade transcendental é permitido
respirar, penetrando através de uma pequena fissura, no domínio do educador” (H1, p. 261).
9 A referência implícita aqui é a August Hermann Niemeyer, cujo Grundsätze der Erziehung und des Unter-
richts für Eltern, Hauslehrer und Schulmänner, que Herbart apreciou particularmente e repetidamente
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questionou em várias ocasiões, foi precisamente articulado, no que diz respeito aos três primeiros capí-
tulos da seção “Sobre educação espiritual (Von der geistigen Erziehung)” contida no primeiro volume do
trabalho, de acordo com a lógica que visa distinguir e justapor a “formação da faculdade do conhecimento
(Erkenntnissvermögen) ou educação intelectual”, a formação da “faculdade da sensibilidade (Gefühlsver-
mögen)” ou “educação estética”, a formação da “faculdade do desejo (Begehrungsvermögen)” ou educação
moral, de acordo com a partição clássica da chamada Vermögenspsychologie, contra a qual Herbart tomará
repetidamente posição em suas várias obras. “Se a educação – resumiu Niemeyer – é para promover o
desenvolvimento e a formação das capacidades do homem como um todo, então ela deve ser em parte a
educação do corpo, em parte a educação do espírito e contribuir para a formação do intelecto, do sentimento
e da vontade. Uma educação intelectual, estética e moral pode, portanto, ser distinguida” (NIEMEYER,
1829, p. 12).
10 A metáfora herbácea pode ser rastreada até a Versuche über den Zusammenhang der tierischen Natur des
Menschen mit seiner geistigen de Friedrich Schiller, em que o homem foi definido como algo intermediário
entre “anjo e animal”. Ver Schiller (1980, p. 296, v. 5).
11 As passagens de Kant às quais Herbart se refere aqui estão na seguinte ordem: “Na educação tudo depen-
de disso, que as bases corretas sejam colocadas em todos os lugares e que elas sejam tornadas inteligíveis
e aceitáveis (begreiflich und annehmlich) para as crianças. É preciso ter cuidado (dahin sehen) para que o
aluno aja bem, não por hábito, mas por suas próprias máximas. Ver Immanuel Kant (1923, p. 492 e 475).
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