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* Doutor em Filosoa pela Universidade de Kassel. Professor e pesquisador no Programa de Pós-Graduação em Educa-
ção da Universidade de Passo Fundo. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3408-2975. E-mail: vcdalbosco@hotmail.com
Recebido em: 01/03/2021 – Aprovado em: 26/11/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i3.12315
Possui a disciplina papel formativo? Um ponto controverso das teorias
educacionais
Does discipline have an educational role? A controversial point of educational theories
¿Tiene la disciplina un papel formativo? Un punto controvertido de las teorías educativas
Cláudio Almir Dalbosco*
Resumo
O ensaio investiga o papel formativo atribuído pelas teorias educacionais à disciplina. Contrariamente à con-
cepção oferecida por Michel Foucault à disciplina, em Vigiar e punir, concebendo-a como dispositivo de poder
controlador e vigilante, procura mostrar que ela possui, para Immanuel Kant e Johann Friedrich Herbart, papel
indispensável na busca inesgotável pela formação do autogoverno humano. Deixando-se inspirar pela instructio
latina, estes dois autores concebem a disciplina como principal forma de exercício de si sobre si mesmo, em-
preendida pelo sujeito educacional visando alcançar o domínio ético de si mesmo. Interpretados nessa pers-
pectiva, Kant e Herbart antecipam, desse modo, traços nucleares da formação humana como exercício de si,
desenvolvida mais tarde pelo próprio Foucault, em A hermenêutica do sujeito, com recurso ao estoicismo antigo.
Palavras-chave: instructio; formação humana; disciplina; autogoverno; exercício de si.
Abstract
This essay examines the educational role attributed to discipline by educational theories. Contrary to the con-
ception of discipline oered by Michel Foucault, in Discipline and punish, and conceiving it as a controlling and
vigilant power apparatus, it seeks to show that discipline plays, for Immanuel Kant and Johann Friedrich Herbart,
an indispensable role in the inexhaustible quest for the education of human self-government. Inspired by ins-
tructio latina, these two authors conceive of discipline as the main form of exercise of the self over itself, under-
taken by the educational subject in order to reach the ethical domain of the self. Interpreted in this perspective,
Kant and Herbart thus anticipate the nuclear traits of human education as an exercise of the self, developed later
by Foucault, in The hermeneutics of the subject, with recourse to ancient stoicism.
Keywords: instructio; human education; discipline; self-government; exercise of the self.
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Resumen
El ensayo investiga el papel formativo que las teorías educativas atribuyen a la disciplina. En contra de la con-
cepción que ofrece Michel Foucault a la disciplina, en Vigilar y castigar, concibiéndola como un dispositivo de
poder controlador y vigilante, intenta mostrar que, para Immanuel Kant y Johann Friedrich Herbart, la disciplina
tiene un papel indispensable en la búsqueda inagotable de la formación del autogobierno humano. Inspirados
en la instructio latina, estos dos autores conciben la disciplina como la principal forma de ejercicio del yo sobre
el yo, emprendida por el sujeto educativo para lograr el control ético de sí mismo. Interpretados en esta pers-
pectiva, Kant y Herbart anticipan, de este modo, rasgos centrales de la formación humana como ejercicio del yo,
desarrollados más tarde por el propio Foucault, en La hermenéutica del sujeto, recurriendo al estoicismo antiguo.
Palabras clave: instrucción; formación humana; disciplina; el autogobierno; autoejercicio.
Introdução
A necessidade da educação surge devido à vulnerabilidade da condição huma-
na, a qual se mostra de maneira acentuada na infância, quando a criança se move
pelo ímpeto instintivo, deixando-se orientar predominantemente por seus desejos,
inclinações e caprichos. Por isso, sua condição frágil necessita da proteção adulta,
sem a qual a própria criança não sobreviveria. Mas, a vulnerabilidade humana
também se mostra na fase adulta, quando o ser humano convive diretamente com o
problema da corrupção humana e social. Como enfrentar a fragilidade da condição
humana e como evitar que a ação humana não se deixe corromper pelos caprichos
humanos e pela ordem social e política corrupta foi historicamente um dos grandes
problemas das teorias educacionais clássicas.
Tais teorias apostaram no cultivo moral permanente do espírito humano como
forma de enfrentar a corrupção humana e social. Sem educação, o ser humano
vê-se dominado pelos seus instintos selvagens, afundando-se inescrupulosamente
na ordem social corrupta. Na Pedagogia ocidental antiga, como mostrou Michel
Foucault, eruditamente, no curso proferido no Collège de France, em 1982 (FOU-
CAULT, 2004), o cultivo virtuoso do espírito humano assume a forma de cuidado
de si em Sócrates e de exercício de si na tradição do estoicismo, especialmente
em Lúcio Aneu Sêneca. Desse modo, as variantes do cuidado de si e do exercício
de si fundam as bases das grandes teorias educacionais ocidentais, desaguando
no Emílio de Jean-Jacques Rousseau e na Pedagogia geral de Johann Friedrich
Herbart. Se Emílio é a grande obra pedagógica do século XVIII, Pedagogia geral o
é do século XIX.
No presente ensaio, procuro investigar o modo como Herbart concebe o cultivo
pedagógico do espírito humano, visando fortalecer moralmente o caráter contra o
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risco permanente dos vícios e da corrupção humana. Defendo a hipótese de que ele,
ao tomar a disciplina (Zucht)1 como principal forma de exercício virtuoso do espírito
humano, insere-se na tradição da instructio latina, diferenciando-se pontualmente
da concepção pedagógica kantiana de disciplina. Herbart recorre, nos dois últimos
capítulos do livro terceiro da Pedagogia geral, à noção de disciplina, atribuindo-
-lhe, por influência estoica, papel formativo. Tal papel insere-se na sua convicção
pedagógico-política mais ampla, segundo a qual não há como enfrentar a corrupção
do indivíduo e da sociedade sem a pedagogia do autogoverno. Ora, a disciplina é o
principal exercício espiritual que torna o ser humano capaz de governar a si mesmo
(sich zu regieren), habilitando-o também ao governo dos outros.
Devido à forte influência negativa que as investigações realizadas por Michel
Foucault em Vigiar e punir exerceram no conceito de disciplina, fazendo-o quase
desaparecer das teorias educacionais contemporâneas, começo o ensaio com uma
breve reconstrução da posição foucaultiana. Na sequência, trato da herança peda-
gógica que pesou na formulação herbartiana da noção de disciplina, concentrando-
-nos na influência de Kant. Este filósofo atribui em suas preleções Über Pädagogik
(Sobre Pedagogia) papel pedagógico destacado à disciplina. Por fim, dedico a últi-
ma parte do ensaio para reconstruir a posição de Herbart, mostrando, ao mesmo
tempo, que foi justamente a influência estoica que o permitiu não só se tornar
original em relação a Kant, como também compreender a disciplina como principal
exercício de formação espiritual do sujeito educacional, quer seja como educando
ou educador.
O sentido negativo da disciplina
A disciplina tornou-se, não só nas teorias educacionais contemporâneas, senão
também nas práticas educacionais formais e não formais, uma noção malvista.
Cercada de preconceitos, é rapidamente excluída do vocabulário educacional. Esta
concepção negativa de disciplina deve-se ao menos a quatro razões bem distintas
e interligadas entre si: a) ela é identificada imediatamente com a força repres-
siva que conduz à violência; b) tal força assume, no contexto educativo, a forma
clássica do castigo físico, o qual, embora já tenha sido rejeitado ainda em séculos
anteriores, como, por exemplo, no século XVII, por John Locke (2003), em seus Pen-
samentos acerca da educação, continua sendo empregado hoje em dia, ainda que
veladamente; c) como castigo físico, baseado na violência, a disciplina opõe-se ao
diálogo e, ao fazer valer a lei do mais forte pelo uso da força, exclui a possibilidade
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da busca pelo entendimento; d) por fim, o sentido negativo de disciplina bloqueia o
desenvolvimento das disposições intelectuais do sujeito educacional. Sob esta ótica,
a disciplina estaria então na contramão da formação espiritual múltipla do edu-
cando, além de representar a adoção da postura autoritária no âmbito da educação.
Portanto, predomina, na atualidade, também no contexto educativo, o sen-
tido negativo de disciplina, vinculado diretamente ao procedimento autoritário e
opressivo imposto por um ser humano ao outro.2 Basta falar de disciplina que logo
se pensa em violência, dominação, ausência de diálogo e liberdade. Empregar a
disciplina em sala de aula significa, então, segundo este ponto de vista, legitimar
a autoridade autoritária do professor e suas formas de dominação das relações
pedagógicas. Ou seja, como mecanismo de dominação, a disciplina representa a
subjugação do educando pelo educador, significando em última instância a vontade
dominante do professor ou da própria escola sobre os alunos. Este sentido negativo
de disciplina não é exclusividade apenas das práticas educacionais e pedagógicas
atuais.
No âmbito teórico (e histórico), Michel Foucault investigou cuidadosamen-
te o poder disciplinar exercido, na Modernidade, por instituições sociais de forte
influência, como exército, hospital, prisão, Estado e escola. A disciplina torna-se,
segundo este autor, o mecanismo poderoso de “controle dos corpos e das forças indi-
viduais” (FOUCAULT, 2007, p. 142). Como poder vigilante opressivo, a disciplina
se transforma na grande “fábrica de indivíduos”, constituindo-se na “técnica espe-
cífica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como
instrumentos de seu exercício” (FOUCAULT, 2007, p. 143). Deste modo, a discipli-
na é a técnica opressiva do poder que domina e manipula os indivíduos, tornando-
-os objeto e instrumento de seus interesses. Refere-se, em seu sentido negativo, ao
poder como dominação e as técnicas surgidas daí conduzem ao assujeitamento de
seres humanos, uns em relação aos outros.
Embora a obra Vigiar e punir não investigue somente o dispositivo escolar,
quando se reporta à instituição escola, especialmente à escola na forma de interna-
to, atribui-lhe a vigilância hierárquica que é própria de outras instituições, como o
exército. É sugestivo que Foucault trate deste tema no segundo capítulo da terceira
parte da referida obra, intitulado precisamente de “Os recursos para o Bom Ades-
tramento”. Ou seja, segundo ele, no contexto escolar a disciplina assume a forma
autoritária da vigilância hierarquizada que conduz ao adestramento dos educan-
dos, colocando-se no polo exatamente oposto da noção iluminista de educação. Em
vez de ser uma das principais formas para o ser humano alcançar progressivamen-
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te a maioridade, a educação, sobretudo a escolar, torna-se um poderoso mecanismo
de dominação e subjugação da vontade do sujeito educacional e o faz por meio do
poder disciplinar rigoroso e vigilante que exerce sobre seus membros. Em síntese,
cerceando a liberdade individual, a educação escolar conduz à obediência servil e,
ao contrário de formar os indivíduos para a vontade própria, deforma-os.
O núcleo da obra Vigiar e punir que influenciou as teorias educacionais con-
temporâneas, materializando-se nas práticas educacionais cotidianas, consistiu-
-se, portanto, na redução da disciplina ao poder disciplinar, compreendido como
forma de controle vigilante, de adestramento do ser humano. Para o Foucault de
Vigiar e punir a disciplina é um exercício de adestramento e docilização dos cor-
pos, bloqueando o exercício de autogoverno humano.3 Esta compreensão teórica
tornou-se a principal aliada, certamente contra a própria vontade de Foucault, da
flexibilização desregrada da liberdade individual, trazendo, como contrapartida,
o enfraquecimento cada vez maior da liberdade social.4 A defesa sem limites da
liberdade individual conduz à consciência segura dos direitos individuais, sem que
tal consciência venha acompanhada, na mesma proporção, pela noção da respon-
sabilidade dos deveres de cada um e da importância dos vínculos solidários como
constitutivo da convivência humana e social. A defesa excessiva das liberdades in-
dividuais conduz, então, ao individualismo egoísta, sem reponsabilidade pelo bem
público (DARDOT; LAVAL, 2016).
De outra parte, a exclusão da disciplina das práticas educacionais cotidianas
– porque se a compreendeu tão somente como forma de adestramento – conduz, em
última instância, para a ausência de limites. Porque a disciplina passou a ser com-
preendida geralmente como imposição de regras e a noção de limite tem a ver com
regras, então, tornou-se necessário encontrar formas pedagógicas que pudessem
educar sem o recurso à disciplina, dispensando também com isso própria noção de
limites. Ora, esta cultura crescente de ausência de limites fortalece formas narci-
sistas de liberdade individual, tornando irrelevantes as formas de vida solidárias
e cooperativas.
Não há dúvida de que, do ponto de vista educacional, Vigiar e punir assume
uma concepção reducionista de disciplina, empobrecendo demasiadamente a teoria
educacional subjacente à referida obra. O procedimento arqueológico que sustenta
a analítica do poder disciplinar, com base no qual Foucault identifica o aparato es-
colar com o “bom adestramento”, ignora a maioridade e o autogoverno pedagógico
como problema educacional chave da tradição pedagógica ocidental. Tal tradição
encontra sua culminância nos séculos XVIII e XIX com a concepção formativa de
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disciplina formulada por autores como Rousseau, Kant e Herbart. Ao reduzir a
disciplina à forma de controle autoritário e vigilante, que conduz ao adestramento,
Foucault cega-se da possibilidade de compreender a própria disciplina como forma
genuína de exercício humano que está na base do trabalho intenso que o sujeito
precisa fazer sobre si mesmo para alcançar sua própria transformação.
Contudo, a ideia de formação humana como exercício de si mesmo tem sua
origem, na própria evolução intelectual de Foucault, na passagem da analítica do
poder para a intensa reflexão sobre o problema da governamentalidade.5 São os
últimos cursos proferidos no Collège de France que tomam o problema do governo
como ferramenta conceitual para compreender as formas contemporâneas de cons-
tituição do sujeito. Isto traz profundas modificações na noção de educação, diferen-
ciando-a da teoria educacional inerente ao sentido negativo de disciplina. O exercí-
cio intelectual empreendido em A hermenêutica do sujeito é um caso elucidativo da
ampla problemática do governo de si mesmo como postura ético-estética de forma-
ção do si mesmo. Encontra-se aqui, neste movimento intelectual, um Foucault dis-
tante tanto das preocupações epistemológicas de inspiração estruturalista como da
analítica arqueológica que reduz a disciplina ao controle rigoroso e vigilante. Por
isso, baseando-se na genealogia do sujeito, A hermenêutica do sujeito reinterpreta
as questões do saber e do poder sob outra ótica, também abrindo a possibilidade
para pensar a formação ético-estética do sujeito de maneira ampliada.
No referido curso, proferido em 1982, Foucault investiga minuciosamente
duas formas clássicas de governo de si, o cuidado de si e o exercício de si. Na pri-
meira, tomando como referência o Alcibíades de Platão, mostra como a pretensão
de governar bem os outros exige o governo ético de si mesmo. A conclusão lapidar
que extrai do trabalho pedagógico exercido por Sócrates sobre o jovem Alcibíades
torna-se referência ética indispensável para qualquer teoria educacional que se de-
bruça sobre o problema da relação pedagógica entre educador e educando: só pode
governar bem os outros aquele que for capaz de governar bem a si mesmo. Ora, o
governo ético de si exige o permanente domínio de si mesmo, o qual é alcançado
pelo diálogo aberto e franco com os outros. O domínio de si exige, portanto, este du-
plo movimento: saída de si mesmo, levando a sério o parceiro do diálogo e; retorno
a si, para refletir o significado da saída de si mesmo e o encontro dialógico com o
mundo. Diálogo e autorreflexão são então marcas características do cuidado de si
como uma das expressões do governo de si.
A segunda forma de governo de si, o exercício de si, Foucault investiga no es-
toicismo antigo. Esta investigação ocupa a maior parte do curso proferido em 1982.
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Esbanjando erudição, Foucault trabalha com vários autores e textos, interpretan-
do as diferentes formas de exercício de si e detendo-se nas implicações formativas
que estão vinculadas às diferentes formas de práticas de si. Embora muitos auto-
res o tenham influenciado, não há dúvida que Sêneca permanece como a grande
sombra intelectual de seu processo reflexivo. E isto não é de modo algum fortuito,
sobretudo, porque as Cartas a Lucílio resume bem, como grande obra filosófica e
pedagógica, o ideal educacional antigo, de tradição greco-romana. Subjacente a
esta obra está a noção de educação como preparação para enfrentar o mundo e
não só como formação para uma determinada profissão. Desse modo, a instructio
é a reatualização latina da paraskheué grega: “Esta formação, esta armadura se
quisermos, armadura protetora em relação ao resto do mundo, a todos os acidentes
ou acontecimentos que possam produzir-se, é o que os gregos chamavam de pa-
raskheué, aproximadamente traduzido por Sêneca como instructio” (FOUCAULT,
2004, p. 115).
Sêneca desenvolve a metáfora da educação como armadura em muitas cartas
dirigidas a Lucílio. Todas elas contêm a preocupação em construir a fortaleza inte-
rior, por meio do cultivo virtuoso do caráter, para fazer frente aos perigos constan-
tes que os vícios representam à ação humana. Paradigmática é, neste sentido, a
carta 113, na qual Sêneca, depois de procurar se distanciar das sutilezas nas quais
seus próprios mestres estoicos se perdiam, ao discutirem problemas relacionados
às virtudes humanas, põe a questão decisiva, do ponto de vista da formação moral:
“de que modo nos é possível atingir as virtudes, ou seja, qual a via que conduz até
elas?” (SÊNECA, 2014, p. 626). A resposta que oferece para esta questão permite
perceber o núcleo da metáfora da educação como armadura. Seu argumento, diri-
gindo-se especificamente à coragem, consiste resumidamente no seguinte: não é a
fortuna, mas sim a coragem que constitui “a barreira inexpugnável a defender a
fraqueza humana; quem dela se rodeia pode resistir em segurança a este violento
cerco que é a vida” (SÊNECA, 2014, p. 626).
A metáfora da armadura tem sentido primeiramente devido à fraqueza huma-
na. Porque a condição humana é frágil e a vida impõe obstáculos severos, amea-
çando-a permanentemente por meio de paixões violentas e agressivas, a virtude é a
arma que fortalece a condição humana para resistir ao cerco violento. Em síntese, a
virtude como armadura é o poder que conduz o ser humano a dominar a si mesmo,
uma vez que sem este domínio de si, ele (o ser humano) perde para suas próprias
fraquezas. Ora, fortalecer o caráter significa, neste contexto, dominar as fraquezas
por meio da virtude.
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Em síntese, a evolução, no pensamento de Foucault, da analítica do poder
para a interpretação das formas antigas de subjetivação, compreendidas como
cuidado de si e exercício de si, permitiu-lhe compreender não só negativamente o
problema da formação do si mesmo, dominado pelo poder disciplinar, mas também
positivamente, por meio de diferentes exercícios que transformam formativamente
o sujeito. Ora, se a formação do si mesmo depende de diferentes exercícios, a dis-
ciplina também precisa ser compreendida, neste novo contexto teórico, como fonte
genuína de formação. Este é justamente o passo dado por Johann F. Herbart em
sua Pedagogia geral e o faz intuitivamente com base na herança estoica. Embora
Foucault não trate do pensamento pedagógico de Herbart, o caminho teórico aberto
por A hermenêutica do sujeito nos permite interpretar a ação pedagógica da disci-
plina como exercício genuíno de formação do si mesmo. Ou seja, o procedimento
metódico adotado por Foucault para interpretar a formação humana como exercí-
cio de si, quando projetado sobre a Pedagogia geral, possibilita pôr em evidência
o sentido formativo da disciplina, como exercício espiritual de formação do sujeito
educacional.
De outra parte, Johann F. Herbart também tem em mente, na Pedagogia ge-
ral, o sentido autoritário de disciplina, embora não seja este o sentido que, do ponto
de vista pedagógico, efetivamente lhe interessa. No âmbito do “Governo das crian-
ças”, o referido autor condena a noção de governo como controle rigoroso e vigilan-
te do educador sobre o educando. Tal controle tem origem, na ótica foucaultiana,
como tratamos acima, exatamente no poder disciplinar que a instituição escolar
exerce sobre seus integrantes. Deste modo, o poder disciplinar vigilante torna-se a
prática pedagógica adotada sem restrições nos internatos escolares daquela época.
Considerando seu efeito destrutivo na formação da criança, Herbart, por sua vez,
o descarta com veemência. Estava seguro, neste sentido, de que o educador, ao
orientar-se pelo poder rigoroso e vigilante, joga o educando (a criança) nos bra-
ços da obediência servil, privando-lhe a possibilidade de formação progressiva da
vontade própria.6 Portanto, havia claramente em sua recusa do poder disciplinar
rigoroso a convicção moral com desdobramentos políticos: o exercício autoritário
do poder conduz inevitavelmente à obediência passiva, incompatível com o ideal
do autogoverno humano. Ora, tal obediência significa a negação do autodomínio
como condição da ação moral, resultando disso a impossibilidade de construção do
convívio humano autônomo e independente. Ou seja, para Herbart estava claro,
como o estará mais tarde também para Foucault, que o controle rigoroso e vigilan-
te nega por completo a capacidade humana de autogoverno. Desse modo, o poder
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disciplinar vigilante e rigoroso impede o bom governo de si mesmo e, com isso, a
possibilidade de bem governar os outros.
A recusa decidida do sentido negativo de disciplina é feita por Herbart com
o intuito de preservar seu sentido formativo, o qual ele identifica com o exercício
humano de armamento do espírito contra os vícios de caráter e a corrupção hu-
mana e social. Vê-se ressoar aqui, em seu pensamento pedagógico, a longínqua
herança educacional estoica. Contudo, para melhor compreender o papel formativo
que Herbart atribui à disciplina, faz-se necessário recorrer, antes e brevemente,
ao conceito kantiano de disciplina, o qual é a fonte de influência filosófica mais
imediata do próprio Herbart.
A noção de disciplina em Kant
Herbart publica a Pedagogia geral dois anos depois da morte de Immanuel
Kant e assume, logo depois, a cátedra de Lógica e Metafísica ministrada pelo fa-
moso filósofo de Königsberg, na Universidade Albertina. O vínculo intelectual de
Herbart com Kant é profundo e seu pensamento pedagógico foi muito influenciado
pela filosofia prática kantiana. Se o primeiro livro da Pedagogia geral possui uma
influência marcante do pensamento de Jean-Jacques Rousseau, no terceiro livro,
intitulado de “Fortalecimento moral do caráter”, a herança kantiana é visível. A
ideia de formação moral que sustenta a teoria educacional herbartiana tem forte
inspiração em Kant, embora, como deixarei claro abaixo, as diferenças com o pen-
sador de Königsberg são grandes.
Com a publicação da Crítica da Razão Pura, em 1781, Kant delimita os con-
tornos do emprego teórico da razão pura, deixando o espaço aberto para o emprego
prático da mesma. Na Crítica da razão prática, publicada em 1788, ele não só leva
adiante a tarefa de justificação do emprego prático da razão pura, como defenderá
o primado desta última em relação ao emprego teórico. No intervalo destas duas
obras Kant escreve a Fundamentação da Metafísica dos Costumes (FMC), na qual
oferece, na terceira e última seção, uma teoria da obrigação moral que está na base
do sentido pedagógico que atribui à disciplina em suas preleções Über Pädagogik
(Sobre Pedagogia).
A teoria da obrigação moral é justificada na terceira secção da FMC por meio
da dedução da lei moral como imperativo categórico e tal dedução é feita com base
na pressuposição da liberdade como ideia da razão pura. A dedução, que é reali-
zada aí está livre do “círculo vicioso” (“geheimer Zirkel”) constatado anteriormente
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(GMS, IV, 450),7 porque não se trata mais de derivar analiticamente a lei moral da
liberdade da vontade de um ser racional puro, mas sim, mostrar que para um ser
racional sensível a lei moral não é uma consequência analítica da liberdade de sua
vontade. Justamente por isso é preciso mostrar porque para este ser (sensível) a
lei moral só pode valer enquanto dever, ou seja, na forma de um imperativo cate-
górico. De qualquer sorte, o fundamental desta argumentação consiste em mostrar
como o imperativo categórico é possível e responder esta questão não é outra coisa
senão procurar mostrar “de onde a lei moral obriga” (“woher das moralische Gesetz
verbinde”, GMS, IV, 450).
Este difícil e profundo problema de filosofia moral pressupõe o primado da
razão prática sobre a razão teórica, sendo justamente neste contexto que a Pedago-
gia, ou seja, a teoria educacional, é tomada por Kant como uma das formas de rea-
lização de sua filosofia prática. Isto quer dizer, em outros termos, que uma teoria
da formação moral do sujeito humano não pode efetivar-se sem a força pedagógica
da disciplina, pois o adulto que se sente livremente obrigado a agir de acordo com
a exigência do imperativo moral é a mesma criança que se habituou desde cedo,
orientado pela disciplina, a agir conforme o poder de regras menores. Sendo assim,
o sentido pedagógico da disciplina cumpre o papel propedêutico para a futura obri-
gação moral adulta. A criança que não teve a oportunidade de sentir a força peda-
gógica da disciplina, certamente encontrará maiores dificuldades, quando adulta,
de se deixar obrigar livremente pelo conteúdo da ação moral. Ou seja, na prática,
estará mais propensa a instrumentalizar os outros e a si mesma do que a sentir a
humanidade na ação dos outros e em sua própria ação.
Considerando este peso arquitetônico desempenhado pela teoria educacional,
como uma das formas de realização da filosofia prática, torna-se necessário esclare-
cer onde repousa, segundo Kant, o poder formativo da disciplina. É digno de nota,
em primeiro lugar, que este pensador também vê o risco imanente à disciplina, pois
seu sentido negativo conduz ao adestramento. Deste modo, tomado em seu sentido
negativo, como uma prática de controle autoritário e rigoroso do educador sobre o
educando, a disciplina adestra o educando, tornando-o obediente passivo do proces-
so pedagógico. Kant é enfático: “O ser humano pode ser treinado, disciplinado, ins-
truído mecanicamente, ou também ser ilustrado. Treinam-se cães e cavalos; mas
também se pode treinar seres humanos. [...]. Entretanto, não é suficiente treinar as
crianças; é necessário que aprendam a pensar” (Päd, IX, 450). Quando a disciplina
se identifica com adestramento, ela deixa de ser formativa; de outra parte, torna-se
formativa quando conduz ao pensamento.
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Kant extrai o sentido formativo da disciplina da teoria educacional de inspi-
ração rousseauniana, a qual também exercerá influência em Herbart. Segundo tal
teoria, o sujeito educacional aprende quando for capaz de realizar suas próprias ex-
periências. Sempre acompanhado de perto pelo preceptor, de cuja responsabilidade
é a invenção adequada dos cenários pedagógicos, o aluno fictício possui a liberdade
(bem regrada) de fazer suas próprias descobertas, formando-se a si mesmo como
sujeito humano. O aspecto importante, filosófica e pedagogicamente, é que a ideia
de fazer suas próprias experiências pressupõe a concepção ativa da condição huma-
na, a qual está na base da maioridade, em todas as suas dimensões, educacional,
jurídica, estética e política. Sem levar a sério a capacidade agente do ser humano,
não há como formar o sujeito capaz de pensar por si mesmo. Portanto, capacidade
agente e capacidade de pensar por conta própria são dois aspectos da maioridade
humana que se implicam mutuamente.
A teoria educacional kantiana pressupõe, portanto, a condição humana agen-
te e pensante. Considerando isto, compete à Pedagogia, como teoria educacional,
investir no desenvolvimento das “disposições naturais” (Naturanlagen) do sujeito
educacional. Todo o ser humano é um ser de possibilidades, sendo que a noção de
disposição reúne o conjunto destas possibilidades. Como elas não se desenvolvem
por si mesmas, a educação torna-se o principal mecanismo de desenvolvimento de
tais disposições. Mas, como adverte Kant, nem toda a educação, ou seja, nem toda
a Pedagogia, se presta para esta finalidade. Somente a “arte de educação racioci-
nada” é que consegue potencializar o desenvolvimento das capacidades humanas,
conduzindo o sujeito educacional para sua autodeterminação. De outra parte, Kant
vê na “arte de educação mecânica” o oposto do desenvolvimento humano, porque
tal arte trata de maneira reduzida das próprias capacidades humanas.
Portanto, a autodeterminação do sujeito educacional pressupõe o sentido de
maioridade duplamente constituído, como capacidade de agir e como capacidade de
pensar. Na base de ambos está o sentido de liberdade que não é de modo algum o li-
vre arbítrio, considerado como fazer o que bem entender em qualquer hora e lugar.
Este é o sentido de liberdade selvagem que impede a sociabilidade moral e política
do ser humano. A este sentido bárbaro de liberdade Kant, por influência de Rous-
seau, opõe a liberdade bem regrada, a qual não significa seguir servilmente a lei,
mais construí-la com base nos ideais de humanidade, visando o bem público. Ora,
é neste contexto mais amplo da Aufklärung moderna que Kant pensa a educação
como exercício de lapidação da selvageria que está em cada um dos seres humanos
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e como domínio dos caprichos e desejos mesquinhos que impedem o desenvolvimen-
to moral (espiritual e cultural) do ser humano.
Também é baseando-se na ideia mais ampla de educação como exercício per-
manente de lapidação da barbárie que reside em cada ser humano que Kant con-
cebe o papel formativo da disciplina. A condição selvagem significa querer levar
uma vida totalmente livre, sem a presença de leis. Como tal condição é contraria
a sociabilidade humana, ela precisa ser educada e a disciplina exerce precisamen-
te este papel de conformar a ação humana às leis, leis da moral e, portanto, da
humanidade. Assim afirma Kant: “A disciplina submete o ser humano às leis da
humanidade, começando por fazê-lo sentir a força das próprias leis” (Päd, IX, 442).
Ora, “fazê-lo” sem “sentir a força das próprias leis” caracteriza bem o sentido for-
mativo que está inerente à noção kantiana de disciplina que será assumido, poste-
riormente por Herbart: trata-se do exercício democrático da autoridade adulta que
se torna presente em sua relação com a criança, sem que a mesma note que está
sendo orientada pela ação educativa adulta. Este ponto já me conduz ao próximo
tópico do ensaio.
Disciplina como fortalecimento do caráter
Herbart possui como pano de fundo a noção kantiana de disciplina, mas a
modifica significativamente. O fato de conceber a Pedagogia como um estudo in-
dependente, ele também pôde tratar a ação pedagógica da disciplina de maneira
autônoma em relação à própria filosofia prática. Isso significa dizer que Herbart
independiza sua teoria educacional do sentido transcendental de liberdade, não
deduzindo o sentido da ação pedagógica da disciplina do conteúdo do imperativo
categórico. Sua recusa do sistema filosófico é feita em nome da ação humana, sendo
justamente esta guinada para a ação, tomando-a não mais no sentido transcenden-
tal, que o permite compreender a disciplina como principal exercício pedagógico-
-moral de formação da interioridade humana.
Não faltam passagens do terceiro livro da Pedagogia geral, nas quais é referido
este sentido formativo da disciplina. Antes de desenvolver este aspecto, o próprio
Herbart apressa-se em esclarecer que a noção de disciplina não é de modo algum
estranha ao campo educacional, uma vez que a noção de educação (Erziehung) se
origina do radical que significa propriamente disciplina (Zucht). O problema é que
o substantivo Zucht é por si mesmo ambíguo, contendo dupla possibilidade. Pode
significar, por um lado, adestramento, no sentido de “puxar” um animal pela corda
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amarrada em suas aspas ou em seu pescoço. Mesmo nesta circunstância, o animal
deixa ser puxado somente depois de muito treino e quando estiver devidamente
domado. Ainda assim, ele pode resistir e, virando uma fera, pode avançar no que
vê pela frente.
Mas Zucht tem, por outro lado, o sentido pedagógico de conduzir ou orientar
o educando visando seu autogoverno. Kant foi enfático em suas preleções Sobre
Pedagogia, como mostrei acima, ao afirmar que se adestra animais, mas que tam-
bém se pode adestrar seres humanos. Ao assumir esta posição, coloca a disciplina
no âmbito educativo – de não adestramento –, visando à formação do ser humano
capaz de governar-se a si mesmo. Ao segui-lo de perto, neste aspecto, Herbart tam-
bém toma a disciplina como preparo da capacidade do ser humano de se dirigir a si
mesmo. Contudo, de modo mais específico do que Kant, concebe a disciplina como
principal exercício de formação da experiência humana interior indispensável ao
fortalecimento moral do caráter. A grande diferença entre os dois pensadores é que
para Kant a disciplina é tomada como uma forma de pressão que o adulto exerce
sobre a criança, enquanto para Herbart ela é o exercício de cultivo do jovem sobre si
mesmo, visando alcançar a segurança interior indispensável à ação moral. Se para
Kant ela ainda é uma pressão que vem de fora, para Herbart torna-se uma espécie
de auto coação ou auto pressão (Selbstzwang) que o sujeito se põe a si mesmo visan-
do dominar os vícios que o rodam permanentemente.
Deste modo, exercício e experiência interior são duas noções importantes para
o esclarecimento do sentido pedagógico e moral que Herbart atribui à disciplina.
Para que a noção de disciplina como principal forma de exercício espiritual hu-
mano ganhe sentido, é preciso compreender de que experiência interior se trata.
Herbart sofre a influência estoica, mais forte talvez do que o próprio Kant, que
lhe chega, entre outras fontes, por meio do Emílio de Rousseau. Sendo assim, o
principal aspecto da experiência interior que precisa ser enfrentada é a vaidade
do amor próprio e isto desde muito cedo, já na própria infância. O autor adverte,
neste contexto, que a Pedagogia, como estudo independente, não deve realçar o eu
próprio que é movido pelos desejos e prazeres que são alheios à vontade própria.
A Pedagogia não deve realçar, portanto, “tudo aquilo que ocupa os desejos sem
benefício, o que antecipa desejos que são próprios aos anos mais tardios, tudo o que
alimenta a vaidade e o amor próprio (Eigenliebe)” (HERBART, 1965, p. 139).8
Portanto, inserindo-se na tradição estoica da qual Emílio de Rousseau é o
principal portador moderno, Herbart concebe o amor próprio como aspecto consti-
tutivo da interioridade humana, sobre o qual precisa incidir o processo formativo.
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A maior luta do ser humano é, neste sentido, primeiramente consigo mesmo, com
seus desejos e paixões ardentes, que podem distanciá-lo do caráter moral. Sem
que este enfrentamento consigo mesmo seja feito, não há como pensar no convívio
humano virtuoso. Com isto fica clara a primazia do trabalho de si sobre si mesmo
como condição de possibilidade do convívio humano moralmente orientado. O eixo
predominante é então a formação da interioridade, a qual resulta do autodomínio
do aspecto destrutivo do amor próprio. Quanto mais determinado for tal autodo-
mínio, mais fortalecido moralmente fica o caráter e, em última instância, o próprio
convívio social. Fortalecimento do caráter tem a ver, por influência da tradição
estoico-rousseauniana, com o trabalho intenso que o sujeito precisa fazer sobre os
aspectos destrutivo de seu amor próprio.
Neste contexto, a própria noção de educação geral (Allgemeine Erziehung)
ganha contornos bem definidos. Se o propósito maior é a formação da fortaleza
interior para que o sujeito educacional possa dominar os desvarios de seu amor
próprio e, com isso, estar fortalecido para enfrentar com serenidade as adversida-
des do mundo exterior, então a educação possui a tarefa de preparar o indivíduo
para enfrentar a si mesmo e o mundo em que vive. Tal preparação, que é um longo
e inesgotável processo formativo, assume metaforicamente a forma de armadura.
A noção de educação como armadura está subentendida na argumentação de
Herbart, sobretudo, quando ele trata do papel das ideias (círculo de pensamentos)
na formação do caráter. Neste âmbito, ele se refere à segurança interior que brota
do espírito armado (bewaffneter Geist), afirmando que tal segurança, ao se reunir
com um interesse puramente egoísta, corrompe imediatamente o caráter (HER-
BART, 1965, p. 113). Encontra-se aqui, deste modo, a metáfora da educação como
armadura, proporcionando o vínculo entre espírito armado e segurança interior.
Para onde sinaliza propriamente tal vínculo?
Ele é indicativo de duas ideias importantes, que interferem diretamente no
modo de formação do caráter. A primeira ideia refere-se ao fato de que quanto mais
armado for o espírito, mais segurança possui a interioridade humana. A armadu-
ra refere-se fundamentalmente ao intenso trabalho que o educando, com auxílio
pedagógico do educador, precisa fazer sobre si mesmo, visando conquistar seu au-
todomínio. Até aqui há uma compreensão tão somente neutra da armadura do
espírito, visando sua proteção interior. Porém, a segunda ideia indica que nem todo
o espírito armado é sinônimo de formação moral do caráter, pois, como mostra a
passagem acima, quando a segurança interior que brota do espírito armado se unir
com interesses egoístas, tal segurança conduz à corrupção do caráter. Ora, como
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o amor próprio desregrado é a principal fonte de egoísmo, a armadura do espírito
como metáfora da formação moral significa o trabalho ético do sujeito educacional
sobre si mesmo, visando a educação de seu amor próprio. Neste contexto, a dis-
ciplina é o exercício pedagógico por excelência capaz de armar formativamente o
espírito, possibilitando que dele brote o caráter moral. De que natureza pedagógica
se constitui o exercício disciplinar?
No quinto capítulo do livro terceiro da Pedagogia geral, Herbart atribui duas
dimensões à disciplina como exercício de armadura da interioridade humana: uma
dimensão externa, conduzida pelo educador e, outra, interna, assumida pelo próprio
educando. Sem uma não há a outra e são as duas atuando simultânea e reciprocamen-
te que formam a armadura moral do espírito. O fato é que o sentido formativo da disci-
plina não acontece somente pelo trabalho do educador ou do educando, exigindo sim o
“pegar junto” e a reciprocidade de ambos. Tanto um como outro repousam no trabalho
intenso e continuado que o sujeito educacional precisa fazer sobre si mesmo, visando a
formação de um “ser humano naturalmente sereno” (HERBART, 1965, p. 136).
Estas duas dimensões da ação pedagógica da disciplina deixam-se esclarecer
melhor no âmbito da diferença da própria disciplina em relação à ação pedagógica
do governo e da ação pedagógica do ensino.9 Do ponto de vista da arquitetônica
da Pedagogia geral, Herbart esclarece que a disciplina possui em comum com o
“Governo das crianças” o fato de atuar diretamente sobre a alma do educando. De
outra parte, ela possui em comum com o ensino a formação como finalidade. Por-
tanto, atuar formativamente sobre a alma do educando é o ponto em comum que a
disciplina possui com o governo e o ensino. Mas, este ponto não elimina a diferença
dela com os outros dois tipos de ação pedagógica.
A ação pedagógica de governo possui algo que a ação pedagógica da disciplina
não pode mais aceitar. O governo emprega a pressão como poder exercido pelo
adulto sobre a criança. Mesmo que seja baseada na autoridade amorosa, a pressão
só acontece pela condução direta do adulto. Há momentos em que o adulto pre-
cisa ser firme com a criança, colocando-a limites sem recuar. Mas, como adverte
Herbart, precisa fazê-lo de maneira breve e sem perder a amabilidade. Ora, uma
pressão desta natureza, que vem de fora para dentro, que pressupõe o trabalho
diretivo intenso do adulto já não deve mais fazer parte da disciplina como ação
pedagógica. Na verdade, a disciplina já pressupõe o efeito pedagógico construtivo
de tal pressão na formação do jovem e por isso deve atuar nele de outra maneira, ou
seja, como destaca Herbart (HERBART, 1965, p. 129), atuando com outro acento.
Como o jovem está em melhores condições de se dirigir a si mesmo em comparação
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com a criança, o tipo de concordância que o educador precisa obter dele (do jovem)
é manifestamente participativo. Aqui, nesta faze, o Zwang não funciona mais e o
cultivo almejado da experiência interior do educando precisa ser provocado pelo
educador de outro modo. Quanto mais o educador estimular o desenvolvimento da
experiência interior do educando, de todas as suas disposições nas mais diferentes
direções, menos deve fazer sentir sua autoridade sobre ele. Em síntese, o jovem,
diferentemente da criança, pode assumir com maior independência seu próprio
processo formativo, exigindo do adulto e dos outros jovens que lhe acompanham
outra postura, menos diretiva e mais orientadora.
No que se refere ao ensino, a disciplina não precisa mais tratar de um terceiro,
no caso, do objeto (conteúdo) de ensino, que mediava a relação pedagógica entre
educador e educando. Não se trata, como alerta Dietrich Benner (1993, p. 125),
exclusivamente da mediação e apropriação dos objetos de aprendizagem, ou seja,
dos princípios da instrução educativa. Esta natureza específica do ensino cede lu-
gar à interação direta entre educador e educando. O que está em jogo aqui são os
princípios internos à interação entre eles, os quais se referem, em última instância,
à própria ação entre seres humanos. O tipo de ação pedagógica no âmbito da disci-
plina refere-se então predominantemente ao autorrelacionamento do sujeito edu-
cacional consigo mesmo. Por isso que a disciplina como formação implica sempre
autoformação. Ora, não é nada fortuito, neste contexto, a recorrência herbartiana
a todas aquelas expressões que dão conta do exercício humano disciplinar como
autoformação, principalmente, da observação de si mesmo.
O objetivo maior da ação pedagógica da disciplina consiste em propiciar as
condições para que o sujeito educacional possa governar a si mesmo, pois a forma-
ção moral do caráter exige a capacidade de autogoverno. Contudo, tal objetivo não
se esgota e nem pode se realizar somente no autogoverno individual. Herbart tem
claro que a disciplina não se forma por meio do aglomerado que resulta de padrões
e medidas nem de atos isolados, “mas antes do convívio contínuo” (HERBART,
1965, p. 130). Como arte ou como tecnologia educacional, a disciplina só pode ser
a modificação da arte do convívio entre seres humanos. Sendo assim, este cará-
ter eminentemente social da disciplina também exige do educador a “flexibilidade
social”, com a qual pode cultivar a formação da autoestima do educando. Como
exercício interior que contém esta dimensão social, a disciplina possui o poder de
conduzir o sujeito educacional ao respeito de si próprio, o qual é condição indis-
pensável à censura interior (autocoação), que está na base da formação moral do
caráter e, por conseguinte, do respeito pelos outros e pelo mundo.
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Em síntese, ao criticar o sentido negativo de disciplina como controle rigoroso
e vigilante, Herbart acentua seu aspecto formativo como trabalho intenso do sujei-
to sobre si mesmo. Contudo, tal trabalho de maneira alguma é feito isoladamente,
pois depende sempre do convívio social e do encontro formativo com o educador. De
qualquer modo, tal trabalho é condição necessária para que o sujeito educacional
alcance progressiva e indefinidamente o fortalecimento moral de seu caráter.
Considerações nais
Resumo agora os três passos argumentativos que empreendi no presente
ensaio. Meu propósito maior foi reatualizar teoricamente o sentido formativo da
disciplina, o qual se encontra desaparecido das teorias e práticas educacionais
contemporâneas. Procurei mostrar, no primeiro passo argumentativo, que tal de-
saparecimento deve-se em parte à influência exercida pela obra Vigiar e punir de
Michel Foucault e de interpretações parciais que são feitas por parte da pesquisa
educacional brasileira. Seguindo a perspectiva de uma sociedade totalmente admi-
nistrada Foucault reduz o sentido da disciplina ao poder rigoroso e vigilante que
adestra o sujeito educacional no ambiente escolar, tornando-o dócil e passivo ao
ordenamento social. Ora, reduzir o papel da escola a uma “maquinaria disciplinar”
de docilização dos corpos significa, certamente contra a vontade de quem o faz,
trazer água para o moinho do empreendedorismo neoliberal que domina o cenário
educacional contemporâneo. Na sequência, ainda no primeiro passo argumentati-
vo, busquei deixar claro que as investigações empreendidas nos cursos proferidos
no Collège de France a partir de 1982, centradas na problemática do governo de
si, permitiram Foucault ampliar sua própria compreensão de poder. Tal ampliação
abre espaço, embora o próprio Foucault não tenha seguido nesta direção, para com-
preender o sentido formativo, e não só repressivo, inerente à disciplina.
Deste modo, pensando com Foucault e contra Foucault foi possível resgatar o
sentido formativo atribuído à disciplina pela modernidade filosófico-pedagógica e
pelo neo-humanismo, respectivamente por Kant e Herbart. No que se refere a Kant,
ele limita o papel pedagógico da disciplina à infância. Parte da premissa de que a
condição infantil é marcada pelo estado de rudeza, no qual a criança age orientada
pelos seus instintos primários. Neste estado, ela se guia predominantemente pelos
desejos, querendo viver a liberdade radical, caracterizada pela ausência completa
de leis. Cabe ao adulto limitar por meio da disciplina a voracidade intempestiva
dos caprichos infantis. A disciplina exerce, deste modo, o papel propedêutico de
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preparar o pequeno educando para o agir moral adulto. Neste sentido, ela ocupa
lugar propedêutico indispensável na arquitetônica do pensamento de Kant, pois,
como exercício formativo, a disciplina é uma das principais formas de realização
da filosofia prática. Se a criança não se habituar a viver mediante pequenas re-
gras, jamais conseguirá, quando adulta, viver livremente obrigada de acordo com o
imperativo moral. O papel formativo da disciplina consiste, portanto, em criar no
educando o senso mínimo de respeito à lei que o próprio sujeito, quando educado
no espírito da maioridade, constrói progressivamente para si mesmo na companhia
mediadora do educador. Sob este aspecto, e este talvez seja o maior alcance político
do papel formativo da disciplina, ela é propedêutica importante para a formação
ética do espírito republicano indispensável ao convívio dialógico na esfera pública.
No que diz respeito a Herbart, fica nítido, de acordo com a Pedagogia geral, o
quanto o pensamento filosófico e pedagógico de Kant o influenciou. Dele Herbart
herdou principalmente o sentido formativo de disciplina, localizando inclusive o
sentido da educação no próprio radical linguístico da disciplina (Zucht). Contudo,
por defender a autonomia da Pedagogia em relação à Filosofia, foi-lhe possível
abandonar o malfadado sonho kantiano de querer deduzir a teoria educacional e
o próprio sentido formativo da disciplina da ordenação prescrita pelo imperativo
categórico. Deste modo, ao conceber que a experiência interior se forma na ação
constituída socialmente, Herbart consegue preservar uma dimensão mais aberta
à educação geral em comparação com muitos pensadores iluministas que o antece-
deram. Sua metáfora da educação como armadura, que ele toma de empréstimo da
tradição pedagógica, cuja origem remonta à instructio latina, permite-lhe conceber
o papel formativo da disciplina nos termos do trabalho intenso que o sujeito educa-
cional precisa fazer sobre si mesmo, visando sua própria transformação.
O percurso realizado no ensaio deixa-me a impressão de que a redução fei-
ta por Foucault da noção de disciplina, limitando-a ao poder vigilante e rigoroso,
ocorre em nome do conceito radical de liberdade humana como ausência total de
regras. Foi motivado por este espírito que Foucault cegou-se, em Vigiar e punir,
da tradição pedagógica, fortemente enraizada nos séculos XVIII e XIX, segundo
a qual a disciplina possui sentido formativo indispensável à teoria educacional e,
em última instância, à ideia plural e aberta de sociedade. Como consentimento da
lei que o sujeito dá a si mesmo ou como armadura do espírito, a disciplina possibi-
lita o trabalho intenso do sujeito sobre si mesmo, visando conquistar seu próprio
autodomínio, ou seja, seu autogoverno pedagógico e moral, limitando com isso sua
própria liberdade. Neste sentido, longe de ser somente poder vigilante opressor, a
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disciplina é um dispositivo de poder a serviço do autogoverno humano, que se tra-
duz em diferentes práticas de si visando a própria transformação ética do sujeito.
Se a disciplina não possui só o sentido negativo, como poder coercitivo opressor,
mas também positivo, manifestando-se pedagogicamente como diferentes formas
de exercício visando o fortalecimento ético do sujeito educacional, há bons motivos
para revigora-la nos meios educacionais atuais. O sentido formativo da disciplina
pode servir como contraponto não só às práticas como também às teorias educacio-
nais que a reduzem à força dominadora opressiva. O recurso ao sentido formativo
de disciplina, enquanto trabalho ético de si sobre si mesmo, torna-se indispensável
para enfrentar a crescente e descontrolada corrupção do atual mundo social e polí-
tico. Em síntese, a investigação sobre o seu sentido formativo presente na tradição
clássica do pensamento filosófico e pedagógico também constitui referência teórica
importante para a crítica necessária do conservadorismo autoritário que toma con-
ta do cenária cultural, educacional e político, contemporâneo.
Notas
1 Contrariamente à sugestão feita por Andreas English, no ensaio publicado neste volume da Espaço Peda-
gógico, prefiro manter o termo disciplina como forma mais adequada de tradução da palavra alemão Zucht,
e não como orientação moral, embora ao empregar Zucht Herbart certamente tem em mente o problema da
orientação como aspecto constitutivo nuclear da formação humana na perspectiva moral.
2 Rara exceção é o trabalho de Jan Masschelein e Maarten Simons (2013, p. 52-65), os quais atribuem
sentido formativo à disciplina na medida em que a concebem como tecnologia escolar a favor do cultivo
espiritual do educando.
3 É preciso considerar, contudo, que leituras recentes da obra Vigiar e punir, confrontando-a com o pensa-
mento do Foucault tardio, procuram relativizar a redução da disciplina ao poder controlador e vigilante.
Veja, a este respeito, no campo pedagógico, o ensaio „Foucault revisitado: uma releitura da disciplina
através do conceito de antropotécnica“, de Carlos Ernesto Noguera-Ramírez e Ana Cristina León-Palencia
(2015, p. 209-239).
4 Tenho em mente aqui a distinção entre liberdade individual e liberdade social feita por Axel Honneth
(2011).
5 Foucault (1989, p. 277-293) trata primeiramente do tema da governamentaalidade na aula de 1 de feverei-
ro de 1978, no curso proferido no Collège de France.
6 No primeiro livro da Pedagogia Geral Herbart opõe o amor e a autoridade ao castigo físico e à aplicação
abusiva do manual de ensino. Ocupo-me em interpretar o problema do “Governo das Crianças“ em dois
ensaios recentemente publicados (DALBOSCO, 2018a e 2018b). Também, sobre o mesmo tema, ver o livro
sobre Herbart de Odair Neitzel (2019).
7 Utilizaremos as siglas usuais para as seguintes obras: GMS: Grundlegung zur Metaphysik der Sitten
(Fundamentação da Metafísica dos Costumes); Päd: Über Pädagogik (Sobre Pedagogia). Estes escritos
serão citados segundo a Akademie-Ausgabe (AA), indicando-se primeiro a abreviatura da obra, seguida do
número do volume em romano e da respectiva paginação em arábico.
8 Para uma reflexão sobre o aspecto destrutivo do amor próprio e anecessidade de sua educação especifica-
mente no pensamento de Rousseau, consultar Dalbosco (2016).
9 Enquanto a ação pedagógica do governo constitui o fio condutor da exposição do livro primeiro da Pedago-
gia geral, a ação pedagógica do ensino é fio condutor do livro segundo.
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