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ESPAÇO PEDAGÓGICO
v. 27, n. 3, Passo Fundo, p. 586-590, set./dez. 2020 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Este artigo está licenciado com a licença: Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
ESPAÇO
PEDAGÓGICO
EDITORIAL
Não se brinda com presente de aniversário a quem não se conhece ou que não
merece. Paulo Freire é, entre poucos brasileiros, merecedor desse reconhecimento.
Seu livro clássico Pedagogia do oprimido circula pelo mundo como uma das obras
acadêmicas mais lidas. Em um mundo que faz questão de dizer que tudo muda
rapidamente, o presente número da Revista Espaço Pedagógico evidencia que não
é bem assim. Publicada há cinquenta anos, continua com uma atualidade impres-
sionante e inspira reflexões de múltiplas naturezas, como atestam os artigos que
compõem o presente número. Em 2020, completa-se o cinquentenário da obra Pe-
dagogia do oprimido e, em 2021, comemora-se o centenário de nascimento de Paulo
Freire. Desde 1970, quando da publicação da primeira edição da obra nos Estados
Unidos, até os dias de hoje, milhares de livros e artigos foram publicados e estão
esquecidos. No entanto, há obras preciosas que não desaparecem no tempo, ao con-
trário, renovam-se e criam novas temporalidades. Essa dinâmica é peculiar, pois
coloca questões que ultrapassam seus tempos de vida, como argumenta Calvino, na
obra Por que ler os clássicos
1
.
O que a vida e a obra de Freire têm a nos dizer? Muitas coisas, certamente.
Em primeiro lugar, há o fato de Freire ter sido uma pessoa amorosa, no sentido de
desejar a realização e a felicidade das pessoas, especialmente das sofridas (opri-
midas). É, certamente, essa força amorosa que impulsiona ao encontro do outro
que tem produzido tantas reações de ódio a esse pensador e às suas reflexões. Por
que odiar quem não nos fez mal algum? Essa pergunta precisa ser respondida por
diferentes áreas de conhecimento, entre as quais, psicologia, psicanálise, filosofia,
sociologia, educação, história, pedagogia, entre outras.
Em segundo lugar, tem-se a importância que sua principal obra assumiu no
campo educacional. Como sabemos, o manuscrito inicialmente sem título, depois
nominado Pedagogia do oprimido, foi tornado público de forma restrita em 1968
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e recebeu sua primeira publicação em inglês, nos Estados Unidos, em 1970 e em
espanhol no final do mesmo ano. No Brasil, a obra só foi publicada em 1974. Dadas
as circunstâncias impostas pelas ditaduras em diferentes países, no caso brasileiro
desde 1964, a obra foi escrita de forma artesanal, como revela o próprio autor,
durante o período do exílio no Chile num contexto ainda não ditatorial. Mesmo sen-
do escrita no Chile, a base empírica da sua construção está nas experiências que
realizou como educador popular em diferentes espaços no Brasil. A obra clássica,
objeto de homenagem, resultou de falas com educadores populares, com diferentes
tradições intelectuais e, especialmente, com os próprios “oprimidos”. A fonte prin-
cipal baseou-se nos pronunciamentos e nas ações daqueles com os quais atuava
cotidianamente, especialmente nos espaços coletivos e nos “círculos de cultura ou
de investigação”, que eram formados por educadores e educandos. Freire a consi-
derava uma obra singela, que tinha como objetivo apenas organizar de forma mais
sistemática os registros que fazia em papéis avulsos e em cadernetas que sempre
tinha à mão. À noite e em viagens, foi construindo o manuscrito que deu origem
ao livro. Nesse sentido, pode-se dizer que é uma obra construída coletivamente,
mesmo que Freire seja o grande narrador.
Da primeira edição, em língua inglesa, até os dias atuais, tornou-se uma das
obras mais publicadas e conhecidas no mundo, com tradução em dezenas de línguas
e circulação em praticamente todos os países do mundo. O dado do Google Scholar de
que essa é uma das obras mais reconhecidas internacionalmente, com 75 mil citações,
terceiro lugar dentre as mais citadas nas universidades na área das humanidades,
além de estar entre as 100 obras mais lidas nas universidades de língua inglesa e ser
a única de um autor brasileiro, evidencia o reconhecimento tanto da obra quanto do
autor. No Brasil, já são milhares de artigos, dissertações e teses abordando a produ
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ção intelectual de Freire. Como educador, ele foi condecorado com inúmeros títulos
honoris causa, em universidades de diferentes países. Recebeu o prêmio Educação
pela Paz da UNESCO, em 1986, e foi declarado patrono da educação brasileira, em
2012. Esse título foi ameaçado de ser cassado pelo governo Bolsonaro.
Apesar de todo o reconhecimento, Paulo Freire vem sendo maldosamente cri-
ticado por setores reacionários e autoritários sob acusação de ser comunista e res-
ponsabilizado por mazelas da educação brasileira e de países do terceiro mundo,
pois, segundo tais críticas, sua proposta pedagógica é demagógica, apresenta forte
ranço ideológico e é inconsistente dos pontos de vista pedagógico e científico. Toda
perspectiva dialógica tem de estar aberta para críticas, postura que o próprio Freire
sempre assumiu. O problema é que muitas das reações na atualidade são decorren-
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tes de preconceitos e distorções teóricas de alguns dos seus críticos. São análises
obscurantistas que pretendem desqualificar toda manifestação problematizadora
que critica visões autoritárias e pleiteiam por práticas emancipadoras. Atacam sua
obra e questionam seus títulos, bem como o reconhecimento que teve em muitos
países e instituições. Ao contrário da visão amorosa, alimentam o ódio e despre-
zam sua luta pela liberdade e justiça social. Diante desse quadro, se Paulo ainda
vivesse, estaria sofrendo intensamente diante da sofisticação dos modernos meios
de opressão e da crescente maldade dos opressores. No entanto, não ficaria calado
e se ocuparia de mobilizar os oprimidos na luta contra a opressão pela mediação
da educação e do fortalecimento da resistência e da luta pela emancipação. Do que
menos iria se ocupar seria, certamente, a defesa dos seus títulos e comendas.
Pautar os oprimidos como foco das reflexões e ações pedagógicas emancipado-
ras não é obra para pensadores medíocres. Essa é, certamente, a razão mobilizado-
ra de ideais pautados no complexo vira-lata, que odeia e despreza as reflexões que
nascem dos contextos de opressão e dos oprimidos. O complexo vira-lata despreza
o que é nosso, que nasceu aqui. Por sua vez, valoriza tudo o que vem de fora. Essa
é a explicação mais plausível do porquê pensamentos medíocres detestarem tanto
os contributos de Paulo Freire.
Na contramão desses ideais medíocres, apresentamos um número da Revista
Espaço Pedagógico, que, em 2020, completa 26 anos de existência, com um dossiê
sobre os 50 anos da obra Pedagogia do oprimido. Além de uma justa homenagem a
Paulo Freire, recuperando uma palestra que ele fez, em 1984, em Passo Fundo, em
um Colóquio de Educação Popular, trazemos contribuições de vários pesquisadores
que se debruçam sobre sua obra e problematizam inúmeros outros temas e ques-
tões emergentes em diferentes realidades. São artigos que atestam a importância
da obra desse educador preocupado com a emancipação humana. Alguns desses
autores conviveram e compartilharam momentos de aprendizagem com o Freire.
Outros vêm promovendo a reinvenção da pedagogia do oprimido, seguindo a sábia
orientação de Freire de não meramente reproduzi-la, mas reinventá-la na busca da
transformação da educação e da construção de uma sociedade livre.
O conjunto de artigos que compõem o dossiê inclui artigos estrangeiros e bra-
sileiros, tratando da pedagogia do oprimido de diferentes pontos de vista. O primei-
ro artigo é do próprio Paulo Freire, na citada palestra que fez em Passo Fundo em
1984, com o foco na educação popular no Brasil. Há uma fala inicial e depois um
diálogo com os participantes do evento.
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Seguimos com o artigo de Carlos Ernesto Noguera Ramírez, da Universidad
Pedagógica Nacional de Colômbia, que faz uma discussão provocativa da obra Pe-
dagogia do oprimido numa perspectiva pedagógica. De Tandil, Argentina, Marga-
rita Sgró discute como ocorre a recepção da pedagogia do oprimido na Argentina
por movimentos juvenis emancipatórios nos anos de 1970.
Thiago Ingrassia Pereira e Jerônimo Sartori analisam a pedagogia do opri-
mido na perspectiva dialógica das suas potencialidades e dos seus limites como
prática emancipadora. Valdo Hermes Barcelos e Maria Aparecida Azzolin reforçam
a tese da atualidade emancipadora de Freire no enfrentamento de posturas autori-
tárias e opressoras, obscurantistas e intolerantes.
Ivanilde Apoluceno de Oliveira aborda a pedagogia do oprimido e suas contri-
buições para o ensino de filosofia para crianças em escolas públicas. Ivo Dickmann e
Ivanio Dickmann fazem uma discussão da pedagogia do oprimido e suas contribui-
ções para uma didática crítico-emancipadora. Araci Asinelli-Luz, Michelle Popenga
Geraim Monteiro e Tatiane Delurdes de Lima-Berton analisam a pedagogia do opri-
mido na ótica de uma educação preventiva e integral para a infância e a adolescência.
Paulo César Carbonari problematiza a necrofilia no contexto da Covid-19, es-
tabelecendo um diálogo entre Paulo Freire e Erick Fromm. Celso Ilgo Henz, Patrí-
cia Signor e Ivani Soares estabelecem um diálogo entre Paulo Freire e Marie-Cris-
tine Josso a respeito da missão ontológica do Homem em ser mais.
Em suas diversas temáticas e abordagens, os textos apresentam um nexo in-
trínseco e conectivo que traduzem o que foi a forma de ser e viver de Freire e a
sua prática investigativa. Não trataram de reproduzir ou reafirmar o pensamento
de Freire, mas de pôr à prova a própria capacidade de criar, de ousar, de abrir
horizontes e estabelecer confrontos que apontam para novas perspectivas de for-
mação. Inspirados em Freire, cada um dos autores reinventou a educação pela sua
presença crítica, criativa e inovadora. Cabe a cada leitor, em uma atitude também
freireana, encontrar e explorar os potenciais dos textos aqui expostos.
Outras contribuições constituem os artigos de fluxo contínuo. A contribuição
de Maria Regina Johann e Paulo Evaldo Fensterseifer traz ao debate os desafios de
uma educação republicana e democrática. Edinaldo Medeiros Carmo, Rosa Belém
Farias e Marco Antonio Leandro Barzano analisam como a cultura popular é abor-
dada em documentos curriculares do ensino fundamental. Márcia Helena Sauaia
Guimarães Rostas, Maria Cecília Isaacsson e Rafael Montoito analisam a política
de contas para o ingresso no IFSul, campus Pelotas, no contexto das políticas de
ação afirmativas. Diego Bruno Velasco e Ana Angelita Costa Neves da Rocha fazem
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um estudo sobre como os sentidos sobre democracia aparecem no Exame Nacional
do Ensino Médio (Enem).
Célia Regina Vitaliano e Josiane Junia Facundo analisam a implantação da
disciplina de Libras na grade curricular do curso de Pedagogia da Universidade Es-
tadual de Londrina. Maria Celeste Reis Fernandes de Souza e Miria Núbia Simões
Lourenço aprofundam as relações que alunos do ensino fundamental estabelecem
com o saber e o território na escola de tempo integral. Jeruza da Rosa da Rocha e
Marta Nörnberg analisam o caminhar com crianças, em contexto campesino, como
possibilidade metodológica para o desenvolvimento de pesquisas com crianças, fun-
damentando o argumento de que caminhar com crianças oferece elementos para
interagir com elas em suas dinâmicas sociais.
No Diálogo com educadores, contamos com prestigiosa contribuição de Carlos
Rodrigues Brandão. É prestigiosa não apenas pela trajetória de Brandão como edu-
cador popular e pesquisador, mas também pela sua convivência com Paulo Freire,
especialmente após o retorno deste do exílio. São contribuições que tratam de refle-
xões, experiências partilhadas e compromissos políticos em prol de uma educação
efetivamente emancipadora.
A resenha de Márcio Luís Marangon e Volnei Fortuna da obra Paulo Freire
mais do que nunca: uma biografia filosófica, de Walter Kohan, ressalta a relevân-
cia da obra num contexto em que crescem tendências antidemocráticas, xenofóbi-
cas e reacionárias. Essa obra reforça todo o empenho na organização do presente
número da revista, que é de ampliar cada vez mais os horizontes da pedagogia do
oprimido. Somente assim, será possível pensar em direitos humanos, justiça social
e democracia de alta intensidade.
Eldon Henrique Mühl – organizador do dossiê
Telmo Marcon – Editor-chefe
Nota
1
CALVINO, I. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.