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Educação popular no Brasil
Popular education in Brazil
Educación popular en Brasil
Paulo Freire
*
26 de outubro de 1984
Resumo
O artigo de Paulo Freire é resultante de uma palestra feita em 1984, por ocasião da realização do I Colóquio
Nacional de Educação Popular, em Passo Fundo, sob a coordenação do 7º Núcleo do Centro de Professores do
Estado do Rio Grande do Sul. O evento ocorreu entre os dias 23 a 26 de outubro de 1984.
Palavras-chave: Prática educativa. Politicidade da educação. Educação popular.
Abstract
Paulo Freire’s article is the result of a lecture given in 1984, on the occasion of the 1st National Colloquium on
Popular Education, in Passo Fundo, under the coordination of the 7th Nucleus of the Teachers Center of the State
of Rio Grande do Sul. The event occurred between the 23rd to the 26th of October 1984.
Keywords: Educational practice. Politicity of education. Popular education.
Resumen
El artículo de Paulo Freire es el resultado de una conferencia dictada en 1984, con motivo del I Coloquio Nacional
de Educación Popular, en Passo Fundo, bajo la coordinación del VII Núcleo del Centro Docente del Estado de Rio
Grande do Sul. El hecho ha ocurrido entre el 23 y el 26 de octubre de 1984.
Palavras clave: Práctica educativa. Politicidad de la educación. Educación popular.
Saudações e introdução
Minhas amigas e meus amigos, não apenas de Passo Fundo.
Há dias passados, há mais de uma semana, por motivos que transcendem a mi-
nha vontade, eu estive próximo a apanhar o telefone e chamar Passo Fundo para des-
*
Paulo Reglus Neves Freire nasceu em Recife, no dia 19 de setembro de 1921 e faleceu em São Paulo, no dia 2 de maio
de 1997.
Recebido em 04/08/2020 – Aprovado em 10/08/2020
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i3.12365
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convidar-me. Às vezes, eu venho sendo desconvidado reacionariamente. Mas, agora,
quase que eu me obrigava, há dias passados, a telefonar à Solange e a pedir desculpas
por não vir. Mas, ao mesmo tempo em que certas razões de ordem muito privada me
empurravam a pensar nesta hipótese, outras razões de ordem política me faziam
contornar as razões de ordem mais privada e continuar, ou preservar, ou manter a
aceitação deste convite que me foi feito há quase um ano atrás, para vir aqui hoje.
Em certo sentido, eu quase adivinhava – e acho que uma das qualidades, das vir-
tudes de um educador ou uma educadora de perspectiva, no mínimo, progressista, é de
viver, gestar, através de sua prática, a qualidade de quase adivinhar as coisas, de agu
-
çar sua sensibilidade, o sentido das coisas – e quase adivinhando o que faria, tal qual
se fez, de se divulgar que a professora Vanilda Paiva e eu não estaríamos aqui, quase
adivinhando isso, eu preferi estar aqui para mostrar como adivinhei direitamente.
Mas – e isso eu peço, no começo dessa conversa, dessa tarde calorosa e calorenta
que se parece muito com as minhas tardes do Nordeste, que vocês conhecem de perto
–, eu gostaria de dizer que, em mantendo a aceitação do convite, eu tive, porém, ra
-
zões privadas que não cabem aqui expor. Tive, então, que aceitar uma fórmula de vir
a vocês pela metade e não totalmente. Significa que eu tive que antecipar a minha
volta a São Paulo para hoje, e não para amanhã; eu preciso dormir em casa hoje. E
essa é a razão pela qual, às quatro e meia, eu viajo, e gostaria que vocês me perdoas
-
sem, mas às quatro e vinte e cinco eu me levanto daqui com eles dois e saímos sem
nenhum empecilho para tomar o carro, porque eu preciso tomar o avião hoje de noite.
Depois dessas explicações de ordem privada, mas que se tornam públicas, eu gos
-
taria, então, de começar, de introduzir a nossa conversa desta tarde. Eu gostaria de,
mais ou menos, pensar em voz alta num primeiro momento deste encontro, de pensar
em voz alta sobre educação popular. Não tanto do ponto de vista histórico – tomando
a história como se deu e como se dá –, mas tomando a educação popular como eu a
entendo, a compreendo, não necessariamente como muitas de vocês compreendem.
Antes de chegar a falar um pouco sobre como entendo a educação popular, me
parece, como questão de exigência metodológica, importante ou fundamental que
reflexione um pouco, nesse sentido, reiteradamente, porque seria inviável que eu,
hoje, dissesse aqui coisas absolutamente diferentes das que disse há oito dias pas-
sados em Rio Grande, quando estive lá falando para um auditório bem menor que
este. Eu não sou um homem de gênio e não invento coisas todos os dias. Mas, mes-
mo reiterando algumas das minhas afirmações anteriores, gostaria de aqui, agora,
pensar um pouco sobre alguns aspectos do que eu venho chamando a natureza da
prática educativa, e depois chegar à educação popular.
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A natureza da prática educativa
Em primeiro lugar, não importa se a gente pensa como pai ou mãe, como pro-
fessor ou professora de uma pré-escola ou de uma escola de 1º Grau ou de 2º Grau,
ou de universidade. Tenho a impressão de que se a gente exercita uma operação
que é a de, em certo momento, tomar distância da prática que a gente vive, que a
gente encarna, como pai, mãe, professor ou professora; se a gente toma distância
da prática e se a gente objetiva a prática; se a gente se afasta dela e toma na mão
da gente e pergunta sobre ela, o que é que se dá nessa prática que eu vivo todo dia
e da qual agora no meu quarto de estudo eu tomo distância, objetivando-a; de que
se dá nela que possa despertar em uma compreensão menos ingênua dela?
Me parece que, ao fazer isso, um primeiro caráter desta prática se sublinha
diante de nós: é que não importa se sou mãe, pai, professor de pré-escola, ou de
escola de 1º Grau, 2º Grau, ou universitária, toda vez que me vejo diante da prática
que faço, eu descubro que há sempre nela um certo objeto a ser desvelado pelo edu-
cando, a ser apreendido pelo educando somente como o educando apreende o obje-
to. Objeto diante do qual a educadora assume uma posição que é sempre diferente
da posição do educando – e muito rica –, porque é a de quem reapreende o objeto no
processo de apreensão do objeto feita pelo educando. No fundo, é uma experiência
em que a educadora reconhece o objeto conhecido no processo de conhecer, o objeto
em que o educando se engaja.
Então, vejam bem, minhas amigas e meus amigos: não importa que ensinemos
Biologia, Matemática, História, Filosofia; não importa que trabalhemos com um
grupo de pré-escolares, no que se chama de roda, de papo, de leitura da palavra:
há sempre na prática educativa um certo conhecimento a ser conhecido, como há,
também, sobretudo em certos níveis dessa prática associada ao nível de pesquisa,
a preocupação com produzir o conhecimento que ainda não existe. Eu espero que,
com esse calor, todo vocês aguentem essa conversa minha, que em seguida eu paro.
É duro, viu, isto aqui está como o sol de Recife e, para mim, está uma beleza.
Bem, parece-me que seria muito difícil pretender provar o contrário disso, isto
é: em toda situação educativa se envolve sempre um certo objeto de conhecimento
a ser conhecido ou reconhecido. Por isso, a gente poderia dizer que a educação, não
importa se popular, se informal ou formal, é sempre, também, uma certa teoria do
conhecimento posta em prática. É inviável não reconhecer isto. Mas o reconheci-
mento desta – e agora vou dizer um nome muito acadêmico, mas que deve ser dito
– natureza epistemológica da educação – ou em outras palavras, o reconhecimento
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da epistemologicidade da educação, que significa a qualidade epistemológica de ser
uma teoria da educação posta em prática –, isso, na continuidade do processo que
estou propondo, do exercício que estou propondo e me propondo, de tomar a nossa
prática nas mãos e perguntar sobre ela, neste momento exato em que percebo essa
natureza que envolve o ato de conhecer e que faz parte da prática educativa, eu me
obrigo, imediatamente, a iniciar uma série de perguntas que são fundamentais.
Até diria a vocês todos que acho que uma das coisas que a gente precisa apren-
der a resgatar é o ato de perguntar, eu diria que a nossa educação vem sendo, sobre-
tudo, uma pedagogia da resposta cuja pergunta fundamental se perde na história.
O professor entra no primeiro dia de aula do ano e começa a responder aos alunos
perguntas que eles nunca fizeram, porque foram feitas por alguém duzentos anos
atrás. Eu insistiria neste exercício, em propor algumas perguntas, de tal maneira
que, mesmo que vocês estejam neste primeiro momento em silêncio, entrem na inti
-
midade mesma do movimento do meu discurso e se apoderem dele, refazendo-o em
vocês. Toda prática educativa implica uma certa teoria do conhecimento posta em
prática – eu disse uma certa teoria, porque há teorias e teorias do conhecimento.
A primeira pergunta seria: se toda prática educativa implica nisso, quem co-
nhece, então, na situação pedagógica? E nós temos hipóteses diferentes de respos-
tas. Uma resposta poderia ser: quem conhece na situação pedagógica é o educador
ou é a educadora. E eu perguntaria: e o papel dos educandos? E a pessoa que me
tivesse respondido anteriormente me diria: os educandos recebem a transmissão
do conhecimento do objeto que o educador faz. Eu não preciso dizer que não aceito
essa resposta. E é interessante ver como essa resposta coincide com a definição
ingênua de educação que a gente encontra em certos livros de filosofia, que dizem:
a educação é a tarefa através da qual a geração mais velha transfere às gerações
mais jovens os valores da cultura. É uma resposta tradicional, reacionária, autori-
tária e quase histórica.
Para mim, a questão não é bem essa, e aí eu já começo a entrar numa briga
gostosa. Quem conhece a prática educativa, de um lado, é a educadora, do outro,
é o educando. O que passa é que se supõe que a educadora, pelo fato mesmo até
de ter chegado ao mundo antes, deve ter tido uma experiência intelectual no trato
do objeto de sua disciplina que precede a experiência do educando. Mas isso não
significa que o educando possa comparecer a seu curso como mero recipiente da
transferência da sua sabedoria, porque o que o educando tem que fazer, no meu
entender, para poder conhecer é, primeiro, apreender o objeto, memorizá-lo porque
quer conhecer, porque o conhece.
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O papel do educador de maneira nenhuma é igual ao do educando – e me
parece uma demagogia, por exemplo, dizer que o educador e o educando são iguais;
é demagógico isso, eles não são iguais –, mas a diferença que há, necessária, entre
ambos não justifica a exacerbação dessa diferença, criando-se, a partir dela, um
antagonismo entre a autoridade necessária do educador e a liberdade fundamental
do educando.
A politicidade da educação
Uma outra pergunta que se coloca na continuidade desse exercício é: que é co-
nhecer? É uma pergunta que tem que ver com a teoria do currículo, com a delimitação
do objeto do conhecimento, com a delimitação dos objetos dos itens do programa – e
não só do programa, mas da própria estruturação da vida dentro da escola. Por isso
que eu falei que ela é mais ampla, ela é uma pergunta curricular. Quem decide o que
deve ser conhecido? Aí é que é a pergunta fundamental, evidentemente que uma vez
mais nós temos hipóteses diferentes de resposta. Eu não nego, de maneira nenhuma,
a responsabilidade que a educadora tem nisso, que é uma responsabilidade social,
eminentemente política, e não só pedagógica, com relação à escolha de uma temática
fundamental que deve ser tratada rigorosamente pela geração jovem que chega. Mas
o que me parece impossível é decretar a absoluta ignorância delas, é decretar absolu
-
ta inocência das massas populares, por exemplo, agora no campo da educação popu-
lar, em nome da supremacia quase ontológica, metafísica, da rigorosidade científica.
Evidentemente que eu jamais pensei, renunciando a impor um programa, que
não devesse propor programas, mas há diferença fundamental entre não impor e
deixar de propor ou propor. Para mim, o erro está em, criticando a imposição, negar
a proposição. Isso, sim, é que seria espontaneísmo. Ao negar a imposição, em nome
do que eu chamo radicalidade democrática – que independe de se é burguês ou so-
cialista –, uma pergunta que se impõe, eu acho, à educadora é a seguinte: conhecer
a favor de que e, portanto, contra quê? Conhecer a favor de quem e contra quem?
E, observem, como desde a primeira pergunta a gente começa a perceber que as
respostas a essas perguntas não são especificamente epistemológicas, ou melhor,
não se situam na esfera estrita da teoria do conhecimento, nem tampouco na esfera
estrita da pedagogia. Essa de agora, por exemplo, acaba de esclarecer que quem
responde a ela é exatamente a política. Quando eu me pergunto, por exemplo, a
favor de quem eu conheço, contra quem eu conheço, a favor de que, contra que eu
conheço, e, portanto, a favor de que e de quem, contra que e contra quem eu traba-
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lho em educação, eu estou, obviamente, no campo político. Eu preciso esclarecer,
são perguntas que eu não posso deixar entre parênteses, e elas todas têm que ver
com o meu sonho como educador, e o meu sonho não é só pedagógico, ele é substan-
tivamente político e adjetivamente pedagógico.
No momento em que o educador, no exercício que eu proponho, vai pouco a
pouco aclarando sua prática e chega a essa altura, ele percebe que é impossível
pensar a educação sem pensar a questão do poder, que é impossível admitir que a
educação seja um que-fazer neutro ou tecnicamente neutro, precisamente porque a
educação se apresenta à luz das perguntas radicadas na própria prática, e não nos
livros. A educação se apresenta com uma radicalidade política, que faz com que sua
natureza mesma seja política. É essa a natureza política da educação que eu chamo
de politicidade da educação: a qualidade que tem a educação de ser política e que,
por isso, não pode ser neutra.
É interessante, às vezes, eu gosto de fazer um exercício que é muito meu e que
devia ser de quem me critica, que é o exercício de me reler, de me acompanhar des-
de o começo até hoje. E eu vejo, nesse exercício – como, por exemplo, nos primeiros
momentos da minha prática e da minha experiência de pensar a minha prática
refletida nos textos que eu escrevi, com suas ingenuidades indiscutivelmente –,
que se eu só fosse crítico até hoje, eu não era Paulo Freire, era um outro cara. Mas,
Paulo Freire, esse cara que eu conheço, é um sujeito comum que nunca pensou em
ser um gênio e nunca pediu a ninguém para cultuá-lo. Eu nunca pedi a ninguém
para me cultuar, eu brigo até. Mas, bem, eu vejo, então, nas minhas releituras,
como houve um momento em que eu não falava sequer em política na educação.
O meu primeiro livro é um exemplo bem flagrante dessa ingenuidade; houve um
segundo momento em que avancei mais, e esse momento se deu exatamente no
contexto do exílio, que necessariamente me radicalizou e me ajudou a superar
algumas ingenuidades anteriores. Num segundo momento, eu falei num aspecto
político da educação; eu hoje falo na politicidade da educação, quer dizer, eu hoje
falo na qualidade que tem a educação de ser política, precisamente como uma edu-
cabilidade no ato político, que explica que o ato político seja também pedagógico.
A esse propósito, inclusive, eu creio que é interessante chamar a atenção a um
estudo recente do professor Dermeval Saviani, quando ele, tomando essa questão
da educação como política, da política como pedagógica, ele diz isso muito bem,
mas, na verdade, não basta: é preciso, diz Saviani, alcançar-se a especificidade do
educativo e do político. A especificidade do educativo é o convencer e a do político
é o vencer.
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Agora, eu retomaria o professor Saviani para dizer que não é isso. Para mim,
quando analisamos o político – pelo menos até agora, 1984, como pode ser que
daqui para o ano que vem a coisa mude, como outros estudos do próprio Saviani –,
há uma certa intimidade, um tal compromisso entre as duas naturezas, a natureza
do político e a natureza do pedagógico, que faz com que, ao pensar que aprendemos
a especificidade de um, nós caímos de novo no outro.
Vou tentar explicar, pelo menos, como eu vejo isso: evidentemente que uma
professora ou um professor que trabalha um semestre, um ano, com um grupo de
estudantes, não importa se na graduação, na pós-graduação, na escola de 1º Grau,
não importa; é evidente que qualquer um de nós, ao trabalhar com um grupo de
estudantes de Língua Portuguesa, por exemplo, Biologia, Filosofia da Educação,
não há dúvida nenhuma de que a gente está empenhado em convencer os educan-
dos em torno do que nos parece ser acertado. Se não fosse assim, olha, eu digo a
vocês, se o professor não tem nenhum interesse de convencer o educando do acerto
de suas teses, pelo amor de Deus, arranje outro emprego, porque não dá. Eu com-
preendo que não possa arranjar outro logo, que a crise é grande, o que não pode
é continuar, porque a contradição é grande demais. Quando a gente é professor, é
porque a gente está convencido de que a gente precisa de convencer.
Agora, o que eu quero dizer, porém, é que não há convencimento pelo conven-
cimento. O convencimento é a mediação da vitória fora do contexto da escola. O
que eu quero quando discuto, por exemplo, a impossibilidade de, numa sociedade
burguesa capitalista de classe, se fazer uma pedagogia e de se viver integralmente
uma pedagogia que liberte, quando eu digo isso, o que eu estou querendo dizer,
ao tentar convencer o educando disto, é que, fora daí, do contexto da escola, ele se
insira numa luta política maior, para que engrosse as fileiras dos que combatem o
sistema capitalista, é isso que eu quero. Então, não há convencimento pelo conven-
cimento, mas no momento que eu pretendo, pelo convencimento, chegar à vitória,
a especificidade da educação penetra no campo político de novo. Mas o mesmo se
dá quando o líder político vem à praça pública, que é o seu grande contexto de se-
minário, quando ele vai a um canal qualquer, televisão, um meio de comunicação, e
ele luta para defender sua tese. No momento que ele está envolvido na necessidade
de vencer politicamente, de objetivar as teses que ele traz, essa vitória política
passa pelo convencimento das massas populares, se ele é um líder revolucionário
de índole democrática. Se ele é uma liderança de direita, a vitória que propõe passa
pela manipulação das massas populares.
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O que parece ser específico do político corre de novo para o campo educativo,
eu acho normal isso. É que há uma tal inter-relação entre as duas naturezas, que,
a não ser que estudos, pesquisas e reflexões maiores cheguem um dia a encontrar
o mínimo, é claro que há pormenores. Gente que está ensinado que quatro vezes
quatro é dezesseis é diferente de um líder político, mas até aí há uma maneira
de compreender o multiplicar, o dividir, o diminuir na sociedade capitalista e na
sociedade burguesa. Aqui, a burguesia acrescenta ao seu poder o que diminui da
classe proletária através da mais-valia, multiplica o seu poder pela diminuição e
pelo esmagamento da capacidade produtora das classes populares – até aí, a gente
tem que ver como é. Agora, vejamos um outro passo mais adiante, aí, eu paro e a
gente conversa. Se isso é uma verdade, se essa politicidade da educação é inegável,
me parece que há uma conclusão a que ninguém pode fugir, que é a seguinte: a
educadora é política enquanto educadora, o educador é político enquanto educador.
Num parênteses, eu gostaria de deixar aqui o meu veemente abraço a vocês
todos, professores e professoras deste estado, que vêm levando a sério, corajosa-
mente, a tarefa política que cabe aos organismos de categorias nesta sociedade
brasileira de hoje: desenvolver a tarefa política que deve ultrapassar os limites da
política que já há na reivindicação social. Indiscutivelmente que brigar para exigir
salários menos imorais é já um ato político, mas é preciso ultrapassar esse limite e
brigar também por melhores condições de trabalho como educador, é preciso brigar
não para fazer reforminhas de cafiaspirina, de emplastro no sistema escolas, mas
para dar a ele, exigir dele, uma dimensão que necessariamente a política reacioná-
ria nega. Eu felicito vocês do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina, de São Paulo,
para citar só esses três estados onde os organismos de professores se empenham
em luta e lutam intensamente. Um encontro como esse é bem uma prova disso.
Mas, voltando à coisa, no momento em que a gente se reconhece como educador,
se reconhece como político também. Eu acho, então, que cabe uma nova pergunta
que tem que ver com aquela primeira a que eu me referia ou que eu citava e que
dizia em favor de quem... Cabe a nós indagar sobre o sonho político nosso, o sonho
possível e que, mesmo sendo impossível, precisa, porém, ser possibilitado. Eu não
sei se está claro: o sonho é possível, eu não tenho nada que esconder a ninguém,
eu sonho por uma sociedade socialista realmente, mas esse sonho não se realiza se
não se trabalhar no sentido de realizá-lo. É nesse sentido que estou dizendo o sonho
possível que precisa, porém, ser viabilizado, que precisa ser possibilitado.
E essa pergunta, que é fundamental para mim também, coloca buscas – se não
outras perguntas –, e, centralmente, uma busca que seria a seguinte: a procura de
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aproximar tanto quanto possível a explicação verbal do meu sonho com a minha
prática, através da qual eu procuro viabilizar o meu sonho. No fundo, é isso que a
gente chama de coerência: é preciso um mínimo de coerência entre o discurso que
verbaliza o sonho e a prática que explicita ou que procura materializar o sonho.
Evidentemente que no mundo ninguém conseguiu juntar os dois iguaizinhos, é
impossível uma coerência absoluta, e eu até diria a vocês que seria profundamente
incômoda e antipática uma existência totalmente coerente.
E eu confesso que acharia chato pra burro todo dia eu ser igual, não ter nenhum
momentozinho de tentação, de pecado. Eu acharia isso horrível. Eu estou dizendo
isso de brincadeira, porque eu não acredito muito em pecado. Os pecados que estão
por aí são virtudes às vezes, mas é evidente que eu não quero um negócio absoluto,
não existe isso. O que eu estou dizendo é que há limites para a incoerência. Eu não
posso compreender, e digo a vocês, eu entendo que haja muita gente, mas em mim é
inviável, por exemplo, defender uma revolução sem as massas populares, defender
uma transformação radical ou sonhar com uma transformação radical da sociedade
burguesa para a criação de uma sociedade socialista feita apenas por minorias in
-
telectuais, que ganharam a sabedoria rigorosa na universidade e que desprezam o
saber comum como impossível de transformar. Eu não posso conciliar um sonho de
transformação do mundo com um procedimento autoritário na minha classe como
professor; eu não posso conciliar o meu sonho de libertação com a ironia que eu faça
a um estudante porque me fez uma pergunta que eu considerei boba. Para mim,
não há perguntas bobas, nem há respostas bobas, nem há respostas definitivas. Há,
simplesmente, perguntas que precisam ser respondidas. No fundo, eu acho que mui
-
to professor tem medo não é nem da pergunta, tem medo da resposta que deve dar,
e por isso dificulta a pergunta. Essa coerência, que não é uma coerência de santo,
é essa coerência mínima que um educador – enquanto político e político enquanto
educador – tem que ter em função de seus projetos e dos que não são só seus.
Viver essa coerência demanda algumas virtudes ou a concretização de algu-
mas qualidades que a gente também não recebe de presente, mas que a gente cria
na própria prática de buscar a coerência. Por exemplo, a humildade de encarar o
real, o concreto, para interpretá-lo, a humildade de aprender com o outro e não
apenas de querer sempre, todo dia, ensinar o outro. A tolerância – que não é uma
virtude apenas dos liberais, mas deve ser uma virtude dos revolucionários – signi-
fica, no fundo, viver com o diferente e, obviamente, com o igual, para poder brigar
com o antagônico. De um modo geral, há, entre nós, uma enorme intolerância entre
diferentes, enquanto o antagônico pode dormir em paz.
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Diante da inviabilidade de se ter uma educação que fosse ou pudesse ser neutra,
por isso mesmo, então, a educação, enquanto sistema de um sistema maior ou en-
quanto subsistema, é reprodutora da ideologia dominante. Essa é a tarefa que a edu-
cação sistemática recebe – com aspas – do poder, que é, exatamente, a de reproduzir
a sua ideologia. A questão que se coloca é saber se há ou não, no espaço institucional,
a possibilidade de contestar a tarefa fundamental que o subsistema educacional tem
de reproduzir a ideologia dominante, e essa tarefa existe e esse espaço existe, mas ob-
viamente que não pode ser tarefa do educador que opta pelo processo de reprodução
da ideologia dominante. A tarefa de contestar o processo de reprodução da ideologia
dominante é a tarefa daqueles cujo sonho político é o da transformação da sociedade
burguesa numa sociedade socialista. Essa tarefa é muito mais difícil de ser cumprida
do que a tarefa de quem reproduz. Quem reproduz, consciente ou inconscientemente,
nada a favor da maré. Observem o que significa nadar a favor e contra a maré: o
poder boatou que a professora Vanilda e eu não estaríamos aqui, porque exatamente
aqui o que fizeram os que antecederam a professora Ivanilda Paiva e a mim, o que
fizemos nós, é exatamente contestar o poder reprodutivo da ideologia dominante no
sistema escolar. Então, é muito mais difícil fazer isto, contestar a reprodução do que
reproduzir, e quem reproduz usa de todas as artimanhas no sentido de manipular.
Educação popular
Muito bem, é claro que nos anos 1970 se desenvolveu toda uma teoria da re-
produção ideológica que foi muito mecânica, e houve um período no tempo, nos anos
1970, em que se pensou, se disse, que não era possível de maneira nenhuma fazer
educação popular ou pôr o sistema de educação oficial a serviço dos interesses das
classes populares. E se afirmava isso, para mim, de forma ingênua e mecânica – e
eu quero fazer uma exceção a um professor brasileiro, professor Celso Baisiguel; eu
estava no exílio, mas lia os seus trabalhos, e ele nunca aceitou isso. É interessante
observar que, na década de 1980, agora que a gente começou a viver, se mudou
de novo, muita gente disse que era absolutamente inviável fazer qualquer coisa
no Brasil dentro do âmbito da escola durante o período. Também não era muito
para ter esperança; quem viveu as experiências do Presidente Médici – que não se
mede – não podia chegar muito facilmente a outras conclusões. Mas, o que acontece
agora, na década de 1980, com a vitória de alguns governos de oposição, é que não
podemos deixar de ocupar o espaço vital para cumprir a tarefa política. Desde que
a gente tenha claros os objetivos, não há por que não fazer.
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Muito bem, adiante dessas indagações ou reflexões, eu agora diria a vocês
que, partindo dessa inviabilidade óbvia de que é impossível uma neutralidade
educativa, e, portanto, educação pode ser opressora ou libertadora, eu diria que
a educação popular só o é na medida em que ela explicita, vive e persegue um
objetivo de transformação, de ruptura com o estado burguês capitalista – essa é
a minha posição, não necessariamente a dos outros – e se encaminha no sentido
de um sonho e transformação da sociedade para um projeto socialista. Em outras
palavras, para mim, a educação popular é aquela que está a serviço dos interesses
reais das classes populares, mas que, em estando a serviço dos interesses reais das
classes populares, tem nelas, também, sujeitos desta educação, e não meras inci-
dências da educação popular feita pelos intelectuais ou pelos educadores. Então, é
uma educação que não significa, por exemplo, um simplesmente estar a favor dos
pobres, isso é um pouco demais. O que traduz a educação popular não é um voto de
solidariedade paternal aos pobres, mas o que sela um projeto de educação popular
é o seu compromisso radical de transformação do mundo.
Agora, vejam: isso implica métodos, caminhos, conteúdos, e isso não significa
que quem está envolvido em um projeto como esse não tenha e não deva ter a
consciência dos limites da sua própria prática, limites que são históricos, políticos.
Ninguém transforma o mundo na cabeça, a cabeça não é o lugar em que as trans-
formações históricas da sociedade se realizam: é na sociedade, na práxis política,
que a gente transforma a realidade. Não resulta, também, decretar que a realidade
está desta ou daquela forma e montar um esquema de ação para a realidade que a
gente descreveu na cabeça da gente, porque a ação não funciona. Por isso mesmo
é que eu acho que sem comunhão com as massas populares, sem comunhão com
elas, sem sintonia com elas, sem o aprendizado diário que aqueles e aquelas que,
por sua posição de classe sem culpa deles e delas, não são da classe proletária, mas
estão aderidos ao esforço de transformação do mundo, eu acho que o papel de quem
assim se acha é aprender diariamente na própria prática como intensificar a sua
comunhão com as massas populares.
No fundo, é desenvolver a sensibilidade das coisas que Gramsci fazia referên-
cia, no sentido de juntar a sensibilidade dos fatos, essa quase adivinhação que a
gente desenvolve, essa intuição, na medida em que a gente realmente convive com
essas massas populares e não só com os livros – mesmo que seja importante essa
convivência com os livros. Mas só na medida em que você se contagia, no melhor
sentido desta palavra, com os sonhos populares, com isso que eu venho chamando
de “manhas dos oprimidos”, que eles expressam através da sua linguagem e atra-
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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vés do seu corpo; é na medida em que, mais do que intelectualizando as manhas e
a cultura dos oprimidos, eu as sinto, ou, na medida em que eu sinto e compreendo,
portanto, ponho juntas a compreensão e a rigorosidade que eu devo ter alcançado
nos meus estudos. Eu junto essa rigorosidade à sensibilidade que a massa popular
me ensina, só que quem me ensina é ela mesma.
Agora, evidentemente que, para mim, eu vou falar só em dois ou três pontos
mais, eu acho que, quando a gente faz essa opção, a gente precisa, tanto quanto a
gente possa, praticamente, diariamente, evitar um sem número de tentações que
a gente recebe. Por exemplo, a tentação de sublinhar permanentemente a teoria
contra a prática das massas populares, ou o contrário, a tentação de reduzir tudo
só à prática nas áreas populares e não aceitar a contribuição de intelectuais que
nunca foram a um córrego. Eu acho que essas duas tentações nos levam a caminhos
errados: de um lado, o perigo de você virar elitista pelo trato exclusivo do que lhe
parece ser o teórico e romper com a prática; do outro, o perigo de você romper com a
teoria e passar a considerar todo o esforço acadêmico como desnecessário e ridículo,
e aí você cai no basismo, que também é errado. Eu acho que nem o elitismo e nem
o basismo resolvem e nos ajudam em nada disso.
Na primeira hipótese – eu tenho visto muito isto –, o intelectual que, durante
muito tempo, inclusive seriamente, estuda Marx, Hegel e Gramsci, e, lá um dia, por
insistência de alguém, vai a uma área periférica de sua cidade, chega lá, descobre
em dez minutos que ele fica cheio de dedos e de palavras porque não tem palavra, ele
não sabe comunicar-se. O risco que corre aí é ser simplista, e, para mim, quando ele é
simplista, continua elitista, porque o que tem que ser é simples, mas nunca simplista
– então, são esses riscos que a prática da gente vai ensinando. Agora, é claro, só não
é possível superar esses riscos quando a gente só conhece o endereço ou o caminho
entre o apartamento da gente e o salão do seminário da universidade, não dá mesmo.
Mas quando a gente – além do endereço da universidade, que é fundamental – tem
outros endereços, o caminho para ir a outros lugares termina ensinando a gente
como é que a gente pode ser simples falando com o povão sem ser simplista.
Eu me lembro – vou contar a vocês porque achei lindo – que no ano passado
estive conversando em São Luís do Maranhão com um grupo de intelectuais que
trabalhavam em áreas populares camponesas, e nós estávamos exatamente falando
sobre certas diferenças na linguagem, ou entre a linguagem do intelectual e a lingua-
gem das classes populares, o problema da sintaxe, da semântica, que são diferentes,
o papel que tem o conceito entre nós, o papel que tem a metáfora na linguagem popu-
lar, e, de repente – é coisa que os intelectuais, às vezes, não pensam, a não ser os lin-
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Educação popular no Brasil
ESPAÇO PEDAGÓGICO
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guistas, noutro ângulo, não nesse –, um deles me disse: “Paulo, estive numa reunião
com um grupo de camponeses e fui três vezes seguidas tentando uma aproximação,
e falava, conversava... na quarta tentativa de encontro, houve um silêncio durante
um tempo em que falei, e um camponês, finalmente, falou e disse o seguinte: ‘Moço,
eu queria te dizer uma coisa, se tu pensas que tu vens aqui ensinar a nós como se
derruba o pau da árvore, não precisa, porque nós já sabemos, o que queremos saber
é se tu vais estar aqui na hora do tombo do pau’”. É exatamente isso que tem muito
intelectual que não quer de jeito nenhum: estar na hora do tombo do pau. Mas é
preciso estar para poder aprender como é que se defende do pau tombado, senão não
aprende. E, então, nessa mesma reunião, uma outra pessoa me contou que, em um
seminário de avaliação entre camponeses e intelectuais, um camponês disse: “Não
vai dar pra gente continuar com esse diálogo, porque, enquanto vocês aí – e o aí dizia
já bem a diferença – estão interessados no sal, nós aqui estamos interessados no
tempero, e o sal é somente parte do tempero”. Então, vejam: com linguagem metafó-
rica, simbólica, o que o camponês dizia aos intelectuais é que eles estavam perdendo
uma visão totalizante da realidade, caindo numa visão fatalística da realidade, e os
intelectuais, em um primeiro momento, não entenderam o discurso do camponês.
Então, minhas amigas e meus amigos, eu repito que as coisas que eu digo eu
digo porque vivi os fatos que me levaram a dizê-las. E não digo de jeito nenhum
que as coisas que eu digo são as coisas que devam, necessariamente, ser ditas –
mas não as coisas que eu devo dizer, que eu acho que eu devo escrever. Eu assumo
as coisas que digo, com humildade, sem nenhuma vacilação, tampouco nenhuma
pretensão de pensar que fiz muita coisa. Eu acho que estou fazendo alguma coisa
que satisfaz a mim enquanto gente, mas não que eu pense que essa alguma coisa
é uma coisa extraordinária, mas também não é coisa desprezível, que não tem o
seu valor relativo no processo de que nós todos fazemos parte. Eram considerações
assim, para não demorar mais, que eu queria fazer a vocês. E agora temos, aí, um
bom tempo para conversar.
Debate:
Prof. Paulo, em suas obras, frequentemente, aparece a palavra epistemologia.
Gostaria que o senhor, resumidamente, tecesse algumas considerações a respeito.
Em segundo lugar, gostaria que o senhor tecesse algumas considerações sobre op-
ção política, pois os professores, muitas vezes, diante da coerência, não sabem se
posicionar por medo, desconhecimento ou omissão. Em terceiro lugar, gostaria que
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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o senhor falasse alguma coisa sobre a educabilidade do partido no partido e sobre
qual é a sua opção partidária.
Bem, vou começar, assim, de trás para frente. Eu gostaria de, falando sobre
a questão do partido, dizer o seguinte: em primeiro lugar, para mim, o educador é
político pela própria natureza política de sua prática, cedo ou tarde. O ideal é que
o educador se insira numa prática partidária e que ele perceba a dimensão política
ou a natureza política da própria prática pedagógica. Para mim, porém, o fato de ser
político (inaudível) não pode levar, e digo mais ainda, ao fato de pretender e de bus-
car até convencer o educando do acerto de minha análise, não me leva, de maneira
nenhuma, a restringir o espaço e a voz do educando, porque esse não pertence ao
partido a que eu me filiei; esse é um pormenor que eu acho fundamental. Eu me lem-
bro que uma vez dei dez a um texto com o qual eu discordava totalmente do ponto de
vista político. Agora, por exemplo, que eu explicite a minha filiação, eu gostaria, não
há por que não expressar isso, mas o que eu gostaria – nós vivemos numa sociedade
tão intolerante, que tem um ranço tão antidemocrático –, que eu me vejo a dizer o
que vou dizer agora, eu vou dizer a todos vocês que estão aqui, e todas que estão aqui
– quer não concordem com minha posição partidária, eu os respeito e as respeito –,
mas não posso esconder que sou um membro não muito bacana, mas um militante
razoável do Partido dos Trabalhadores. Só estou falando isso porque ele me pergun-
tou e eu acho que toda a pergunta tem que ser respondida, até quando é provocadora,
o que não é o caso. Mas eu tenho total respeito por quem não fez esta opção, nem eu
vim aqui tentar ver se mudo a opção de ninguém nesse encontro, de forma nenhuma.
Eu sou PT por inúmeras razões, inclusive por esta radicalidade democrática. Eu sou
PT porque o PT é uma das coisas novas – eu não diria melhor, de jeito nenhum –, mas
é um fato novo na história política desse país, porque é a primeira vez, na história
política desse país, que um partido de trabalhador surge das classes trabalhadoras
sem uma minoria de intelectuais se decretando vanguarda dos trabalhadores. Eu
acho esse um fato novo que me fez aderir ao PT.
Sobre a epistemologia, toda vez que eu uso essa palavra, eu uso sob um
sentido mais restrito, que tem que ver com a teoria do conhecimento.
Prof. Paulo, manifesto-lhe o carinho do Rio Grande do Sul, porque o senhor
o viu oito dias atrás em Rio Grande, e, hoje, em Passo Fundo. Isso é realmente a
manifestação de carinho dos gaúchos para com o senhor, e o reconhecimento da sua
liderança. Considerando que há uma luta, o povo quer mudar, mas há uma luta
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Educação popular no Brasil
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entre em ir ao colégio eleitoral ou não ir ao colégio eleitoral, porque isso implica
numa contradição ou não, e admitindo que o meu sonho seja o socialismo – porque
acredito que o socialismo está mais perto do cristianismo do que do capitalismo,
eu sou cristão –, sendo este o meu sonho, de que forma o senhor aconselharia como
prática: uma mudança gradual ou uma mudança radical? Lutar por isso que eu
acredito desesperadamente, sem caminhos, mas lutar apenas com isso como meta,
ou fazer mudanças gradativas? Eu gostaria de uma observação a respeito.
Eu acho que essa pergunta, em primeiro lugar, não é uma pergunta abstrata, é
uma pergunta profundamente histórica, é uma pergunta histórica no caso brasileiro
de hoje. Não é uma pergunta que vá se fazer noutro campo igual a essa, ou melhor,
pode-se fazer noutro sítio, a resposta não pode ser igual, nem sempre. E houve mo-
mentos em que essa pergunta foi feita na Nicarágua, e a resposta foi outra porque
pode ser outra. Não é o caso brasileiro, não acredito que a gente tenha outras respos-
tas. Eu acho que das qualidades que um homem e uma mulher de esquerda devem
revelar é essa possibilidade de usar a história, adivinhar. Ora, evidentemente, eu
acho que nós estamos em um momento – e parece que nunca teremos vivido tanto no
Brasil como hoje – de uma espécie de vontade de encarnar a democracia. Quando eu
falo em democracia, não estou falando em democracia burguesa, democracia disso,
democracia daquilo. É que há a inexperiência do brasileiro nisso – o ranço autoritário
do país é tal que a democracia é sempre vista no Brasil como adjetivo, e nunca em
sua substantividade. Aliás, eu queria, em um parênteses, sugerir a vocês a leitura de
um livro que saiu em São Paulo, exatamente há oito dias, disse-se que já se esgotou
a primeira edição, que se chama Por que democracia?, de Francisco Weffort, que
é secretário-executivo do PT e que está sendo chamado por alguns democratas de
social-democrata, etc.; você vê, o ranço contra a democracia nesse país quanto à subs-
tantividade democrática é terrível; você fala em democracia, o outro já está assim
cutucando o adjunto e dizendo “Está vendo? Já caiu na social-democracia” ou “Está
vendo como ele é populista?”, quer dizer, não dá. Evidentemente que no momento a
gente está vivendo isso, a possibilidade de cunhas dentro do processo.
Agora, se a pergunta do nosso amigo teria que ver com saber de mim a posição
do partido a que eu pertenço, está claro, todo mundo sabe aí, mas pode querer sa-
ber a minha com relação ao chamado colégio. Uma das coisas boas do PT é a gente
poder discordar do PT, sem nenhum problema de levar carão, não ter medo que
venha uma caderneta com letra encarnada, em casa, com “O Paulo se comportou
mal”. Eu tenho uma posição parecida com a posição aceita até hoje pelo PT – que é
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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diferente em grande parte da posição do meu amigo, companheiro, deputado e líder
do PT em Brasília, Soares –, que é a seguinte: o PT foi às praças públicas, às ruas,
durante a campanha das diretas, não porque pretendesse conseguir um cacique
para depois transar com o poder, de cima para baixo, dizendo “os senhores viram
o povão que veio, vamos fazer acordos agora de cima para baixo”. O PT não foi lá
para isso, o PT foi porque radicalmente não concebe a democracia sem povo. O que
está acontecendo neste país é que tem muito democrata para quem a democracia
se estraga se o povo chega. É como alguns professores, também, que acham uma
beleza dar aulas desde que não haja alunos.
Sobre o colégio eleitoral, o PT diz: não vou lá. Agora, qual a minha posição?
Minha posição seria a seguinte: se, e daqui para lá vai se saber bem se Maluf ganha
por dez votos, não tem por que irmos ao colégio; se Maluf perde por seis, também
não tem por que ir lá. Em última análise, eu acho que o PT só deveria ir ao colégio no
caso em que Maluf pudesse ganhar, porque eu acho que até numa análise de classe
eu distingo o Maluf de Tancredo. Tancredo é um homem da classe dominante, um
liberal conservador. Aliás, em entrevistas, ele revela o seu conservadorismo, o seu
realismo, com aspas, de que Cuba, por exemplo, é exportadora de revolução, portan
-
to, não se pode reatar relação com Cuba, de que a teologia da libertação é uma coisa
ruim, porque não é teologia, é uma ciência social, quer dizer, são declarações, cá pra
nós, que deixam muito a desejar. Mas eu estabeleço uma radical diferença, e essa
diferença faz a diferença, entre o senhor Tancredo e o senhor Maluf. Maluf é uma
espécie de lumpen da burguesia, e Tancredo é um homem da burguesia, mas de an
-
temão ele já disse como pensa sobre Cuba, não tem que esperar outra coisa, vai con-
tinuar dificultando cubano de entrar aqui, tudo isso. Mas, indiscutivelmente, para
mim, esta diferença mínima faz a diferença no período de transição, então se fosse
fundamental o voto do PT, o PT devia dar o voto, mas não tinha que pedir coisíssima
nenhuma, nem fazer acordo nem aceitar nada. O PT não precisa ter ministro, nem
delegado de polícia, e cumpre a tarefa e continua lutando cá, independentemente,
porque eu também tenho a impressão de que muita gente que reclama por que o
PT já não decidiu, é porque se encontra incomodada de estar sem nós, precisa de
alguém que chegue para contestar a posição de ir ao colégio eleitoral. Mas, vejam
bem: esta é a posição do puro militante de partido que não interfere nos destinos do
partido, a não ser como militante. Essa é a minha posição, que eu digo de público,
porque disse numa conversa íntima com o Lula, é assim que eu penso.
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Educação popular no Brasil
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Prof. Paulo Freire, dentro da colocação de educação popular, como o senhor co-
loca a preocupação, nos termos de educação popular, com a questão ecológica, o pro-
blema da fome, da criança ter condições de aprender nos meios, e sobre como tem-se
usado o homem como instrumento para explorar o meio-ambiente, a natureza?
Eu acho que esta questão tem dois pontos. Ela pergunta quanto à questão da
educação popular e fome; e educação popular e meio ambiente, o homem e a explo
-
ração do meio-ambiente, a política do meio-ambiente. Eu gostaria de dizer a vocês,
com relação a essa segunda questão: nos anos 1970, quando eu estava ainda no exílio,
movimentos feministas e de defesa do meio-ambiente começavam a ganhar força nos
EUA, na Europa, e eu me lembro de alguns amigos com quem eu conversava, de
esquerda também, que em certo sentido não apostavam nada nesses movimentos por
-
que diziam que a luta das mulheres, por exemplo, não estava com o porte de classe,
de luta de classes – a luta dos ecologistas, que essa coisa estava fora da ótica da luta
de classes. Eu dizia: olha, eu acho que vocês estão errados. Sabe, em primeiro lugar,
indiscutivelmente, seria um absurdo, uma miopia trágica não pretender reconhecer
isso. A questão não é nem sequer inventar uma luta de classes, é simplesmente reco
-
nhecê-la, está aí, e foi isso que Marx disse numa de suas cartas: os economistas bur-
gueses me antecederam, me precederam, na constatação da luta de classes. O que fiz,
diz ele, foi etc., etc. Mas acontece o seguinte: sem a compreensão da luta de classes me
parece difícil entender essas coisas, mas a luta de classes sozinha também não explica
tudo. Eu acho que é essa ótica que, às vezes, falta em uma perspectiva mais estreita,
mais sectária dos fenômenos, e a ciência não está aí para ser distorcida.
Acontece que, por exemplo, eu não sei se bem ou mal, não quero discutir o
acerto ou desacerto, os ecologias trouxeram um milhão e quinhentos mil votos du-
rante a campanha de François Mitterand, e derrotaram a direita, caíram num so-
cialismo que é o possível lá. Os “verdes”, na Alemanha, há um ano ou dois, fizeram
mais ou menos o mesmo. Eu até diria que um dos problemas que a ciência política
– também os educadores, os políticos, os militantes – teriam que encarar, neste fim
de século, é exatamente o do papel dos movimentos populares sociais, problema
ligado ao papel fundamental não própria e exclusivamente da tomada do poder,
mas da reinvenção do poder. Esse é um fato absolutamente fundamental, impor-
tante, e digo mais: na medida em que partidos populares e não populistas deixarem
de se aproximar dos movimentos sociais populares, para, aprendendo com eles,
ensinar algo a eles sem nunca pretenderem se apoderar deles; na medida em que
os partidos de esquerda, populares e não populistas, não aprendam a fazer isso,
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eu acho que eles são postos entre parênteses, de escanteio, neste fim de século. A
questão é saber como. Implica toda uma metodologia de aproximação, implica toda
uma compreensão das culturas das massas, implica toda uma análise das “manhas
populares” dos oprimidos, que nunca introjetam a ideologia dominante totalmente
– como muita gente pensa, antidialeticamente, de que tudo que vem das massas
populares é ideologia dominante, quando não é a própria ideologia dominante, ou
certos valores dominantes são apropriados pelas massas populares, tal qual se faz.
O capitalismo é sobretudo um regime, um sistema de apropriação, e as massas po-
pulares também se apropriam, às vezes, de valores culturais dominantes e refazem
os valores, reinventam esses valores. Eu acho que ou a gente como se faz isso, e a
gente só aprende isso na medida em que a gente convive, comunga com as massas
populares, e não apenas na medida em que a gente fala delas, como conceitos, como
análises de textos, ou eu acho que aí não dá, tem que se estar com as massas.
Gostaria de saber qual é a maneira mais lógica de estabelecer uma educação
socialista num país que é dominado pela ideologia imperialista americana.
Não há essa receita. Teve um cara barbudão, com a barba maior que a tua e
a minha e com uma contribuição ao mundo que nem tu nem eu demos – tu, pelo
menos, não deste ainda, e eu não vou dar mais –, que disse uma vez uma coisa mais
ou menos assim: “a história não é nenhum poder, nenhuma entidade poderosa que
paire sobre os homens (e simplesmente diria ‘e as mulheres também’) e que os faça à
sua maneira. Pelo contrário, em lugar de ser este poder supra, a história é feita pelos
homens (e eu acrescentaria, com todo o respeito, ‘e pelas mulheres’) que ao fazerem a
história são feitos pela história”. Eu não sei se vocês conhecem, aqui, no Rio Grande
do Sul, uma coisa que se usava no Nordeste, que se usa ainda hoje por lá, que é de
tirar manga verde, banana verde, de botar dentro de um caixão, meter carbureto, e
depois de um certo período, se tira a manga e ela está toda corada, com a pinta de
madura. Eu sempre digo o seguinte: se é possível fazer a aparência de uma manga
mudar com carbureto, não é possível a história com carbureto. História se faz mesmo
ou não se faz, e não se faz na cabeça da gente, se faz lutando, brigando, sabendo
lutar, aprendendo a lutar, aprendendo a encontrar o momento exato da luta.
Então, o fato de a gente ter um imperialismo grandão, desse tamanhão aí, de-
fronte à gente, não é suficiente, porque ele é maior ainda na Nicarágua do que aqui,
e o povo nicaraguense se independenciou. É possível que até se acabe aquilo, porque
eles já invadiram Granada, que eu conheci de perto a lindeza daquela revolução,
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Educação popular no Brasil
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onde eu estive, também, imediatamente à vitória da revolução – eu fui convidado,
e estive lá duas vezes e conversei com o comandante várias horas. Nicarágua tam-
bém eu conheço, conheço de ir, não de ler, porque trabalharam com algumas das
minhas ideias. Agora, o momento histórico brasileiro não é o da Nicarágua, nem o
tamanho do Brasil, isto aqui é um continente. Eu acho que a gente não pode fazer
a transformação radical dessa sociedade por decreto, o que já deixava de ser, isso
era golpe de Estado. Revolução, mesmo, a gente tem que ir vivendo os momentos
viáveis, isso tem que ver com uma coisa que eu sempre digo, e não faz mal repetir:
em história, se faz o que se pode, não o que se gostaria de fazer.
A questão que se coloca aí é saber quem define o que se pode. A prática define
isso, é levando chapoletada que você delimita o espaço, estabelece o espaço viável.
Por outro lado, se em história se faz o que se pode e não o que se gostaria de fazer,
significa que a melhor maneira de fazer amanhã o que hoje não pôde ser feito é
fazer hoje o que hoje pode ser feito. É fazendo o que posso fazer agora que me pre-
paro, e a história também, para fazer amanhã o que hoje não é possível fazer. Isso
coloca a questão do espaço, do limite, e a questão de limite coloca outra questão em
face dele, que é o medo, a vaidade, a intolerância, o sectarismo, todas essas não
virtudes entram nisso. O que acontece é que, muitas vezes, a gente fica aquém do
limite ou a gente fica além do limite: se a gente ultrapassa o limite, o porrete chega,
se a gente fica aquém do limite, o poder preenche o espaço que você permitiu a ele
fora da briga, e você vai para mais atrás ainda. Não recuar demasiado na luta é
absolutamente fundamental para poder fazer um dia essa sociedade com a qual
você sonha e nós sonhamos.
Como conciliarias teu posicionamento religioso com tua posição antissectária?
Gostaria de uma opinião sobre o fato de que no teu conceito de verdadeira revolução
há espaço para negociação no poder, e se há um momento em que não negociar o
poder é uma atitude ingênua politicamente.
De qualquer maneira, lê o livro Por que democracia?, ele encarna a segunda
questão muito bem. Estou dizendo que ele leia o livro, não importa as críticas que
se façam a ele, precisa ler. Com relação ao primeiro momento, eu gostaria de dizer
a vocês que, por exemplo, em primeiro lugar, eu não me acho muito religioso. Vou
tentar explicar isso, eu me acho mais e agora até peço desculpas, porque o que eu
vou dizer pode parecer muito arrogante de minha parte, e eu não gostaria de dar a
impressão de ser arrogante, que é um troço que eu acho horrível. O que eu queria
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dizer é que eu me sinto muito mais um homem à procura de guardar a fé do que um
homem religioso, meditem depois sobre a diferença sutil entre uma coisa e outra.
Eu vivo cuidando com certo carinho da minha fé, o que eu digo nesse sentido, por
exemplo, eu tenho excelentes conversas com amigos, inclusive cubanos, revolu-
cionários, nicaraguenses, não cristãos. Se você me pergunta: como você concilia
essa fé num transcendente com a tua preocupação fundamentalmente histórica de
transformar o inerente – não é uma contradição? Eu diria: não, não é. A única coisa
que pode receber uma espécie de retificação seria a seguinte: no momento em que
eu creio no Cristo não apenas como gente como eu, eu estou admitindo um a priori
da história. Evidentemente que Marx, se fosse vivo, conversando comigo, talvez
rindo, talvez zangado, me dissesse: mas isso é uma doidice, uma loucura! Eu diria,
então: deixa comigo o direito de ser doido.
Eu tenho ou não tenho o direito de ser contraditório se a minha contradição
não trabalhar contra os interesses das massas populares? Eu acho que tenho. O
que não posso fazer é, em nome da transformação do nosso país, usar minha fé para
sustentar Maluf; usar minha fé para sustentar a burguesia nesse país, nesse poder,
nem em canto nenhum, e isso ninguém nesse país prova que eu tenha feito. Segun-
do a minha compreensão – agora teológica, da relação mundo-transcendência, que
não é uma compreensão antinômica –, em outras palavras, para mim, é impossível
alcançar a meta histórica sem passar pela história, sem atravessar a história. E o
problema é saber como é que eu atravesso a história, em favor de quem e em favor
de quê. Pois eu quero fazer essa travessia, até chegar lá, lutando pela transforma-
ção da sociedade, para implantar um sistema socialista neste país, mas em que
eu tenha o direito de continuar dizendo que acredito na transcendência. Essa é a
minha posição, eu acho que não tem contradição muito grande aí, e, fora disso, acho
que não tem muito mais, a não ser a nível de certas posições extremamente pouco
democráticas de alguns revolucionários.
Mas se tu me perguntas se eu acho que é a consciência, que é a subjetividade
que cria a materialidade e cria a objetividade, eu te digo não, de jeito nenhum. A
objetividade gera a subjetividade, mas acontece que a subjetividade não é puro
reflexo da objetividade, daí a relação entre ambas não ser uma relação mecânica,
mas dialética, contraditória, dinâmica, processual, de tal maneira que a consciên-
cia, ou a subjetividade, enquanto condicionada, se volta reflexivamente sobre o
condicionante e reconhece o seu condicionamento. Para mim, é por isso que há
possibilidade de briga, que há luta pela transformação. Eu não posso, com isso,
exigir que aceitam, por exemplo, uma imposição; eu acho que política tem que ver
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
v. 27, n. 3, Passo Fundo, p. 591-611, set./dez. 2020 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
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com negociação. Às vezes, o problema é saber o seguinte, eu vou te dar um exemplo
histórico, que não é brasileiro, mas que é histórico recente: Mao Tsé-Tung coman-
dava a sua grande avalanche na China, e os japoneses, o imperialismo japonês,
invadiu a China. Naquele momento, o inimigo principal se transformou no japonês,
e Chiang Kai-Sheck e Mao Tsé-Tung tiraram retrato juntos e juntaram os seus dois
exércitos, fizeram um pacto. Naquele momento, puseram entre parênteses a con-
tradição antagônica entre os dois sem ter modificado a natureza do antagonismo
entre os dois, puseram o antagonismo entre parênteses, derrotaram o inimigo e,
quando os japoneses foram expulsos, tiraram o antagonismo dos parênteses, mete-
ram o porrete um no outro, e Chiang Kai-Sheck se acabou. Política também é isso,
porque isso é história. E não há por que não fazer.
Meus amigos e minhas amigas, não gostaria de sair daqui sem deixar muito
vivo, de um lado, o meu agradecimento por terem me chamado e trazido até aqui; de
outro, sem deixar de, uma vez mais, insistir nas desculpas que eu apresento por ha-
ver diminuído o meu tempo com vocês, mas entre não vir e vir diminuindo, eu preferi
vir diminuindo. Finalmente, gostaria de deixar umas palavras bem jovens, apesar
dos meus 63 anos, bem jovens aos jovens que estão aqui, estudantes, e aos jovens e
às jovens professoras também, a minha palavra de esperança em que a gente, trans-
formando o hoje da gente, a gente cria um amanhã menos ruim do que este de hoje.
A minha esperança em que a emoção de vocês não se acabe, não fique adstrita
aos dias de um encontro maravilhoso como este, mas, pelo contrário, essa emoção
acompanhe vocês na briga necessária de vocês, na briga do estudante por melhores
condições de trabalho enquanto estudante, do professor, da professora, pela reivin-
dicação de seu salário menos injusto, mas a briga também para poder ser ou ter o
direito de ser melhor educador neste país.
Um grande e fraterno abraço a todos e todas.
Nota
1
Esta conferência foi captada em áudio, degravada, preservando a oralidade de Paulo Freire, e publicada
em 1986, no compêndio Palestras e Debates do I Colóquio Nacional de Educação Popular. O evento rea-
lizou-se em Passo Fundo, RS, entre os dias 23 a 26 de outubro de 1984, foi organizado pelo 7º Núcleo do
Centro de Professores do Estado do Rio Grande do Sul. A versão original foi organizada pelos professores
Lourdes Solange Camargo Faria, Nedison Faria e Lourivan Fisch de Figueredo. Esta versão, procurando
maior clareza e objetividade, foi revista e reeditada por Marcelo Ricardo Nolli, mestrando do Programa
de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Passo Fundo, e Eldon Henrique Mühl, professor do
mesmo programa. Agradecemos aos organizadores do evento pela autorização para a publicação da confe-
rência neste dossiê em homenagem aos 50 anos de publicação de Pedagogia do oprimido e ao centenário de
nascimento de Paulo Freire, em 2021.