643
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Este artigo está licenciado com a licença: Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
Educação, diálogo e prática da liberdade em Paulo Freire: revisitando a pedagogia do oprimido
v. 27, n. 3, Passo Fundo, p. 643-664, set./dez. 2020 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Educação, diálogo e prática da liberdade em Paulo Freire: revisitando a
pedagogia do oprimido
Educación, diálogo y práctica de la libertad en Paulo Freire: revisando la pedagogía
de los oprimidos
Education, dialogue and practice of freedom in Paulo Freire: reviewing the pedagogy
of the oppressed
Thiago Ingrassia Pereira
*
Jerônimo Sartori
**
Resumo
O objeto deste estudo é a análise da obra Pedagogia do Oprimido em uma perspectiva crítica, procurando reetir
acerca das limitações e potencialidades da educação e do diálogo na sua relação com a prática da liberdade. O
foco está na compreensão de como a obra contribui para problematizar as críticas e dialogar com a função trans-
formadora da educação, tendo em vista a perspectiva do que se explicita no livro. Examina-se como a proposta
freireana de educação pode pensar e efetivar ações perpassadas pelo diálogo e que resultem na formação de
sujeitos capazes de agir no horizonte da prática da liberdade. A reexão é construída pelo olhar de um quefazer”
crítico-reexivo, pois a formação do sujeito é tratada como algo dinâmico, que se (re)constrói no movimento do
processo pedagógico. O itinerário metodológico do estudo, que é eminentemente bibliográco, toma, especial-
mente, o capítulo 3, A dialogicidade, essência da educação como prática da liberdade, considerando aspectos
facilitadores, os desaos e as incompletudes, tanto dos sujeitos como dos processos formativos. O texto aponta
os fundamentos da pedagogia freireana que embasam o diálogo como princípio que fortalece e (re)dimensiona
a prática da liberdade que se congura nas possibilidades de libertação dos sujeitos.
Palavras-chave: Pedagogia freireana. Educação. Diálogo. Prática da liberdade.
*
Pós-Doutor em Educação (2018) pela Universidade de Lisboa. Mestre (2007) e Doutor (2014) em Educação pela Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Sul. Sociólogo. Professor da área de Fundamentos da Educação e do PPGPE e
PPGICH da UFFS, Campus Erechim. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-5558-7836. E-mail: thiago.ingrassia@gmail.com
**
Pós-Doutorado em Educação na Universidade de Passo Fundo (UPF). Doutor em Educação pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul. Professor do Programa de Pós-Graduação Prossional em Educação (PPGPE) da Universidade Federal
da Fronteira Sul (UFFS), Campus Erechim. Orcid: http://orcid.org/0000-0001-5099-1138. E-mail: jetori55@yahoo.com.br
Recebido em 24/04/2020 – Aprovado em 28/09/2020
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i3.12368
644
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Este artigo está licenciado com a licença: Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
Thiago Ingrassia Pereira, Jerônimo Sartori
v. 27, n. 3, Passo Fundo, p. 643-664, set./dez. 2020 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Resumen
El objetivo de este estudio es el análisis de la obra Pedagogía de los oprimidos en una perspectiva crítica, bus-
cando reexionar sobre las limitaciones y el potencial de la educación y el diálogo en su relación con la práctica
de la libertad. El objetivo es entender cómo el trabajo contribuye a problematizar las críticas y el diálogo con
la función transformadora de la educación, en vista de la perspectiva de lo que se explica en el libro. Examina
cómo la propuesta freireana para la educación puede pensar y llevar a cabo acciones permeadas por el diálogo
y que resultan en la formación de sujetos capaces de actuar dentro del alcance de la práctica de la libertad. La
reexión se construye mirando un qué hacer crítico-reexivo, ya que la formación del sujeto se trata como algo
dinámico que (re) construye en el movimiento del proceso pedagógico. El itinerario metodológico del estudio,
que es eminentemente bibliográco, toma, en particular, el capítulo 3 “La dialógica, la esencia de la educación
como práctica de la libertad, considerando aspectos facilitadores, desafíos e incompletos, tanto de las asignatu-
ras como de los procesos de capacitación. El texto señala los fundamentos de la pedagogía de Freire que basan
el diálogo como un principio que fortalece y (re) mide la práctica de la libertad congurada en las posibilidades
de liberación de los sujetos.
Palabras clave: Pedagogía freireana. Educación. Dialogo. Practica de libertad.
Abstract
The object of this study is the analysis of the work Pedagogy of the Oppressed in a critical perspective, seeking
to reect on the limitations and potential of education and dialogue in its relationship with the practice of free-
dom. The focus is on understanding how the work contributes to problematize criticism and dialogue with the
transforming function of education, in view of the perspective of what is explained in the book. It examines how
the Freirean proposal for education can think and carry out actions permeated by dialogue and that result in the
formation of subjects capable of acting within the scope of the practice of freedom. The reection is built by loo-
king at a critical-reexive “what to do, since the formation of the subject is treated as something dynamic that (re)
builds in the movement of the pedagogical process. The methodological itinerary of the study, which is eminently
bibliographic, takes, in particular, chapter 3 “Dialogicity, essence of education as a practice of freedom, conside-
ring facilitating aspects, challenges and incompleteness, both of the subjects and of the training processes. The
text points out the fundamentals of Freires pedagogy that base the dialogue as a principle that strengthens and
(re) measures the practice of freedom that is congured in the possibilities of subjects’ liberation.
Keywords: Freirean pedagogy. Education. Dialogue. Freedom practice.
Introdução
A obra Pedagogia do Oprimido, escrita em 1968 (lançada em 1970 em Nova
York) pelo educador brasileiro Paulo Freire, expressa as sínteses atentas que fo-
ram realizadas em seu período de exílio no Chile, tempo este em que auxiliou na
realização de experiências de educação popular naquele país. Ao refletir sobre a
referida obra é indispensável atentar para a sua proposta de criar uma nova pe-
dagogia que tratasse do estreitamento da relação educador(a)-educando(a)-mundo,
considerando a politicidade da educação.
Para Carlos Alberto Torres (2008), Pedagogia do Oprimido de Freire e Edu-
cação e Democracia de John Dewey são os dois livros que marcaram importantes
645
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Este artigo está licenciado com a licença: Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
Educação, diálogo e prática da liberdade em Paulo Freire: revisitando a pedagogia do oprimido
v. 27, n. 3, Passo Fundo, p. 643-664, set./dez. 2020 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
desenvolvimentos da filosofia da educação no século XX. Dessa forma, o livro de
Freire possui um caráter revelador de uma proposta que atenda, especialmente, as
camadas populares, para que se constituam como sujeitos e agentes do seu próprio
processo de construção de conhecimento, tendo sucesso editorial em vários países
do mundo. Isso se deve à importância do educador Paulo Freire como mobilizador
da transformação da realidade social, política, econômica, cultural e educacional.
Frente a tais questões faz-se necessário divulgar e manter viva a obra Peda-
gogia do Oprimido, pois se trata de um livro fundante de uma prática pedagógica
situada politicamente e embasada em uma pedagogia de síntese que envolve diver-
sas bases filosóficas (ZITKOSKI, 2007), tendo em vista que a cultura se constitui,
numa sociedade de classes, majoritariamente, pelo viés da trama protagonizada e
tecida pela classe dominante, sempre na perspectiva do atendimento aos interesses
de classe, por meio da subordinação dos(as) mais pobres e menos escolarizados(as).
Ao nos trazer a concepção de educação libertadora, Freire anuncia no horizon-
te a necessidade de compreender a situação de oprimido(a), para que o sujeito se
liberte da dominação da consciência alienada e submissa, com vistas a tornar-se
conscientemente crítico e reflexivo. Para tanto, há o anúncio da imprescindibilida-
de da (re)criação de itinerários formativos/reflexivos que capacitem o sujeito para
desvencilhar-se das amarras da opressão/dominação para a conquista da prática
da liberdade.
Nesse sentido, é interessante considerar os feitos e efeitos da ditadura militar,
que compreende o período de 1964 até 1985, que teve como marco o autoritaris-
mo, o silenciamento, a dominação, a repressão e a tortura (física e psicológica).
Remexer um contexto que por mais de vinte anos produziu submissão, alienação,
acriticidade, bem como que acentuou as desigualdades sociais, consequentemente,
a dependência dos(as) enfraquecidos(as) e marginalizados(as) da classe dominan-
te, que por concentrar riquezas exponencialmente concentrou o poder político – o
domínio sobre os(as) mais fracos(as).
Este estudo ao enfocar a “dialogicidade, essência da educação como prática da
liberdade” (capítulo 3 de Pedagogia do Oprimido), procura refletir sobre as nossas
percepções do quanto, por meio do diálogo, avançamos ou não em direção à prática
da liberdade, no período pós 1985 com a redemocratização do Brasil. Para isso, é
fundamental atentar para o princípio do diálogo como instrumento ou não nos es-
paços formativos; diálogo como mecanismo para a produção de condições objetivas
para produzir ações com vistas à efetiva prática da liberdade.
646
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Este artigo está licenciado com a licença: Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
Thiago Ingrassia Pereira, Jerônimo Sartori
v. 27, n. 3, Passo Fundo, p. 643-664, set./dez. 2020 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Num cenário socioeducacional que se configura e reconfigura seguindo a di-
nâmica das sucessivas mudanças, entende-se que o diálogo é fundamental para
aprimorar a prática pedagógica, com vistas à construção de conhecimento e à am-
pliação da cosmovisão de mundo. Freire considera o diálogo virtuoso pelo potencial
agregador de coletivos, por sua vez não pode ser a pronúncia da realidade pelo
olhar seletivo de “experts”, mas pelo olhar das multifaces que compõem as mas-
sas historicamente alijadas dos processos participativos, das tomadas de decisões.
Nesta perspectiva, adensa-se a esta reflexão a crítica à educação que não trata da
vida, que não considera o sujeito como único/singular, que habita e vive em uma
sociedade plural.
A partir de pesquisa bibliográfica com foco na exegese da obra freireana, o tex-
to ora apresentado desdobra-se em três tópicos, didaticamente separados em suas
abordagens, mas inter-relacionados com o propósito de dar coesão e coerências às
ideias sistematizadas. No primeiro tópico “Contextualização da obra Pedagogia do
Oprimido”, dá-se realce ao tempo histórico e ao modo de elaboração da obra, bem
como sobre a forma como a mesma se propagou pelo mundo. No segundo tópico “A
educação em relação com a dialogicidade”, busca-se a partir do conceito de educa-
ção abordar o diálogo como forma de reconhecer os sujeitos como comunicadores
e interlocutores de diferentes saberes. Já no terceiro tópico “O diálogo em relação
com a prática da liberdade”, aponta-se a prática dialógica como mobilizadora e pro-
motora da consciência crítica, da autonomia e da emancipação, o que pode resultar
em um agir livre e politizado. Por fim, nas considerações finais procura-se destacar
a relevância da obra Pedagogia do Oprimido, especialmente, do recorte realizado
tratando do diálogo como agregador e mobilizador dos sujeitos rumo à prática da
liberdade.
Contextualização da obra Pedagogia do Oprimido
Ao iniciar esse tópico do estudo, destacamos que o livro em análise foi escrito
na modalidade de ensaio, dividido em quatro capítulos: a) Pedagogia do Oprimido:
justificativa; b) Educação Bancária: instrumento de opressão; c) Dialogicidade: es-
sência da educação como prática da liberdade; d) A teoria da ação antidialógica. A
obra foi lançada inicialmente em 1970 em Nova York, sendo publicada em Portugal
em 1972 e no Brasil, devido a sua proibição, somente em 1974.
O próprio autor considera que “todos os livros têm sempre uma longa história,
e eu vivi aproximadamente um ano falando da pedagogia do oprimido” (FREIRE,
647
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Este artigo está licenciado com a licença: Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
Educação, diálogo e prática da liberdade em Paulo Freire: revisitando a pedagogia do oprimido
v. 27, n. 3, Passo Fundo, p. 643-664, set./dez. 2020 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
2014, p. 335). Em seu reencontro com o livro 25 anos depois, escreve em sua Peda-
gogia da Esperança: “foi vivendo a intensidade da experiência da sociedade chilena
[...] que me fazia re-pensar sempre a experiência brasileira [...] escrevi a Pedagogia
do oprimido entre 1967 e 1968” (FREIRE, 2008, p. 53). Inicialmente, os três pri-
meiros capítulos eram a totalidade da obra, sendo que o quarto capítulo fora escrito
por Freire depois de seis meses sem contato com o manuscrito.
Pedagogia do Oprimido revela um dos traços potentes da produção freireana:
a práxis (relação teoria e prática). Isso se deve ao contexto em que esse livro, como
de resto a quase totalidade da bibliografia do autor, foi produzido. Em Freire, não
há uma teoria engendrada em bases especulativas abstratas e depois testada em
situações concretas do cotidiano: ao contrário, o que percebemos são textos que
brotam de experiências de in(ter)venção do autor, sendo seus escritos sínteses teó-
rico-práticas de práticas politicamente situadas.
Dessa forma, o início do célebre prefácio de Ernani Maria Fiori é representativo
do lugar de produção autoral de Paulo Freire. Para Fiori (2005, p. 7): “Paulo Freire
é um pensador comprometido com a vida: não pensa ideias, pensa a existência”.
Por isso, sua obra vai ser uma construção que parte dos desafios das sociedades
desiguais e se compromete, para além da reflexão rigorosa, com a transformação
de cenários injustos. Portanto, podemos considerar que é a consciência da prática
que gera sua teoria, pois:
[...] a Pedagogia do Oprimido é filosofia, sociologia, educação e, sobretudo, um tratado de
epistemologia. É um livro nascido da luta empreendida por seu autor para dar aos indivíduos
de todas as classes sociais o direito de serem sujeitos de seu próprio processo de conhecimento
e para despertar, nesses indivíduos, o interesse, a agudeza e a coragem necessários a fim de
participarem do processo de transformação de suas sociedades (BARBOSA, 2017, p. 25).
O livro em tela é parte de uma extensa obra dedicada à construção de funda-
mentos pedagógicos que se desdobram da assunção de um projeto societário. A sua
escrita no Chile é parte de um contexto mais amplo em termos políticos que situa o
texto historicamente. Freire estava exilado pelo governo autoritário inaugurado no
Brasil em 1964. Seu “crime” foi a proposta efetiva de alfabetização de adultos(as)
como parte de um projeto de conscientização mais amplo.
Ao entender que as pessoas adultas já leem o mundo, Freire provoca a alfabeti-
zação como um processo cognoscente que deve partir dessa leitura inicial da realida-
de e superá-la com a leitura da palavra, não dicotomizando ou criando hierarquias
entre esses dois momentos. Assim, a leitura da palavra potencializa a leitura de
mundo, esta originária da experiência cotidiana e aquela do processo pedagógico.
648
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Este artigo está licenciado com a licença: Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
Thiago Ingrassia Pereira, Jerônimo Sartori
v. 27, n. 3, Passo Fundo, p. 643-664, set./dez. 2020 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Nesse sentido, a concepção educacional de Freire parte de um entendimento
antropológico de que as pessoas são seres inacabados exatamente pela sua condição
de seres culturais. Ao diferenciar cultura e natureza, o autor provoca uma teoria
crítica da construção educativa, uma vez que tudo que é cultural é socialmente pro-
duzido e pode ser problematizado. Assim, se a natureza é um dado, a sociedade é
uma construção. Percebemos que, em Educação como prática da liberdade (escrito
em 1965), Freire (2007) esboça essa dimensão a partir do aporte da fenomenologia
e articula aquilo que seria conhecido por seu método.
Dessa forma, antes de Pedagogia do Oprimido encontramos textos que sinteti-
zam as influências das primeiras experiências formativas de Freire e do ambiente
do nacional-desenvolvimentismo e da chamada democracia populista em voga no
Brasil. Duas obras – Educação e atualidade brasileira (2003) e Educação como
prática da liberdade (2007) – escritas no final dos anos 1950 e início dos anos 1960
marcam aquilo que Scocuglia (2001) denomina “primeiro Paulo Freire”, ou seja, um
período de produção do autor marcado pela ideia de desenvolvimento nacional em
termos da democracia burguesa/liberal e pela busca da conscientização.
Os três primeiros capítulos fundantes de Pedagogia do Oprimido serão um
aprofundamento das discussões metodológicas presentes em Educação como prá-
tica da liberdade, sinalizando para uma obra em constante movimento de reelabo-
ração e reconstrução. O quarto capítulo já marca uma percepção teórica assentada
nos conflitos sociais e na necessidade de tomada de consciência para a ação trans-
formadora. Isso justifica uma pedagogia do oprimido, não para oprimidos e opri-
midas. Em Pedagogia do Oprimido encontramos “[...] um processo educativo para
a ‘revolução da realidade opressora’, para a eliminação da ‘consciência do opressor
introjetada no oprimido’, via ação político-dialógica” (SCOCUGLIA, 2001, p. 67).
Nessa linha, a influência de leituras marxianas e marxistas é visível na pro-
dução freireana a partir dessa obra. Isso não significa uma aceitação literal das
teses marxistas, mas a configuração estrutural da essência política da educação
enquanto prática histórica e em movimento, perpassada pela segmentação de
classe social. Entre tantos conceitos-chave, podemos encontrar em Pedagogia do
Oprimido três categorias estratégicas, indo ao encontro do discutido por Antunes,
Gadotti e Padilha (2018) ao examinarem categorias que marcam o livro e a pro-
dução do autor a partir de então. Os conceitos “diálogo”, “liberdade” e “oprimido”
sugerem características presentes no livro, constantes nas obras anteriores e que
serão reconstruídas e aprofundadas nos textos subsequentes.
649
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Este artigo está licenciado com a licença: Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
Educação, diálogo e prática da liberdade em Paulo Freire: revisitando a pedagogia do oprimido
v. 27, n. 3, Passo Fundo, p. 643-664, set./dez. 2020 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Nesse artigo, trabalharemos com dois conceitos – diálogo e liberdade – buscan-
do perceber suas implicações na pedagogia freireana e seus limites e possibilidades
no contexto educacional e político brasileiro. De certa forma, a noção de oprimido(a)
é transversal ao argumento desenvolvido, tendo em vista a opção radical (ROMÃO,
2008) do autor em favor das classes populares e subalternas. Partindo dessas ba-
ses, o trabalho de Paulo Freire vai ser paradigmático para a construção do movi-
mento de educação popular, ainda que, passando por Freire, esse movimento não
se esgote nele. Nesse sentido,
[...] há unanimidade entre os historiadores da educação popular de que ela se forma no
movimento da sociedade. Se temos nomes que servem de referência é porque pessoas se
dispuseram e tiveram a habilidade de captar a pedagogia que se realizava nesse movimen-
to. No entanto, enquanto processo, ela é maior que cada um desses nomes e continua sendo
recriada nesse movimento da sociedade (STRECK, 2010, p. 300).
A publicação de Pedagogia do Oprimido oferta sínteses teóricas de alta rele-
vância para o trabalho de base junto a movimentos populares do campo e da cida-
de. A problematização teórica realizada por Freire sinaliza para a unidade entre
ação e reflexão, constituindo elemento-chave para a transformação da realidade. O
diálogo seria a expressão tanto do compromisso ético (respeito pelos diferentes sa-
beres), como da perspectiva libertadora, na qual o “dizer a sua palavra” é fundante
do sujeito histórico.
Dessa forma, a formação humana e a luta política constituem espaços peda-
gógicos que potencializam pessoas e coletivos à conscientização acerca do mundo
que é produzido historicamente (SCHNORR, 2001). Por isso, a defesa do autor das
relações dialéticas entre teoria e prática e o trabalho ao nível da práxis transforma-
dora. Assim, nem o ativismo (ação em detrimento da teoria) e nem o “verbalismo”
(teoria em detrimento da ação) produziriam o ambiente transformador.
A transformação social seria um imperativo diante da desigualdade social.
Freire observava essas contradições materiais e simbólicas tanto nos anos 1960
como nos anos 1990, quando, seguindo suas práticas e reflexões, produz um con-
junto de textos que mostram o movimento de sua obra. Para ele,
[...] minha terra é a coexistência dramática de tempos díspares, confundindo-se no mesmo
espaço geográfico – atraso, miséria, pobreza, fome, tradicionalismo, consciência mágica, au-
toritarismo, democracia, modernidade e pós-modernidade. O professor que na universidade
discute a educação e a pós-modernidade é o mesmo que convive com a dura realidade de
dezenas de milhões de homens e de mulheres que morrem de fome (FREIRE, 2006, p. 26).
650
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Este artigo está licenciado com a licença: Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
Thiago Ingrassia Pereira, Jerônimo Sartori
v. 27, n. 3, Passo Fundo, p. 643-664, set./dez. 2020 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
A atualidade do pensamento pedagógico de Paulo Freire passa por sua capaci-
dade de produção teórica articulada com a prática, produzindo uma característica
muito presente em sua obra: a escrita autobiográfica e situada, ou seja, que parte
de contextos e experiências concretas vivenciadas pelo autor. Assim, o texto de
Freire parte de suas memórias e de sua apreensão da realidade que o cerca. Ao rea-
firmar e problematizar a Pedagogia do Oprimido nos anos 1990, Freire é preciso ao
afirmar sua metodologia de trabalho:
[...] depois de certo tempo de viver a experiência, sobretudo na medida em que se amiudou,
comecei a procurar situá-la no quadro em que se dava. Que elementos cercavam ou faziam
parte do momento mesmo em que me sentia mal. Quando o mal-estar era pressentido, eu
procurava rever e relembrar o que ocorrera no dia anterior. Reescutar o que dissera e a
quem dissera, o que ouvira e de quem ouvira. Em última análise, comecei a tomar meu
mal-estar como objeto de minha curiosidade. “Tomava distância” dele para apreender sua
razão de ser (FREIRE, 2008, p. 29-30).
Essa forma de produção é entendida, dentro de certas tradições acadêmicas,
como “menos rigorosa”, como apenas ensaios gerais sobre educação. Mas, Freire,
ao seu tempo, antecipava-se a tendências de escrita que configuram o denominado
“paradigma emergente”, nos termos de Boaventura de Sousa Santos. Nessa linha,
ao problematizar elementos constitutivos da ciência moderna, Santos (2009) ad-
voga por novas formas de conhecimento que sejam compreensivas, nas quais o
caráter autobiográfico e autorreferenciável da ciência é legítimo.
Freire, ao ser um crítico severo ao neoliberalismo – sua ética de mercado e sua
lógica naturalizadora – e de fatalismos de qualquer natureza, é um ator entendido
dentro de certa “pós-modernidade progressista ou radical” (MOTA NETO, 2015, p.
9) presente na agenda de debates nos anos 1990. Esse traço engajado de sua pro-
dução, sua não aceitação em dissociar razão e emoção e sua escrita plural, o consti-
tuem em foco de adesões e resistências no meio acadêmico e na sociedade em geral.
Em três décadas de reflexões sistemáticas sobre política, cultura e educação,
Freire nos oferta uma filosofia da educação com implicações nas mais diferentes
áreas do conhecimento. Essa característica interdisciplinar de sua obra tem na
Pedagogia do Oprimido um marco fundamental. Freire é um autor que explicita
posições e consegue se manter aberto a um diálogo profícuo com as mais diver-
sas tradições de pensamento, produzindo sínteses que desacomodam “puristas”
acadêmicos(as) e sectários(as) políticos(as), ao mesmo tempo que seduz pessoas
comprometidas com o espírito democrático. No seu livro de maior reconhecimento
é possível percebermos que:
651
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Este artigo está licenciado com a licença: Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
Educação, diálogo e prática da liberdade em Paulo Freire: revisitando a pedagogia do oprimido
v. 27, n. 3, Passo Fundo, p. 643-664, set./dez. 2020 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
[...] sem desconsiderar o fato de seu solo fértil, no qual suas ideias e ideais vicejaram, ter
sido cultivado especialmente pela semeadura do materialismo histórico-dialético de inspi-
ração hegeliana (ex.: Lukács), ele também se nutriu do grande manancial cultural da her-
menêutica filosófica (ex.: Buber), do existencialismo (ex.: Sartre), da Escola de Frankfurt
(ex.: Fromm) e do pensamento pós-colonial (ex.: Fanon); sem contar o pensamento teológico
progressista (ex.: Chenu), o pensamento social brasileiro (ex.: Álvaro Vieira Pinto) e tantas
outras correntes libertadoras (SOUZA; MENDONÇA, 2019, p. 3).
Essa intensa interlocução de Freire segue constante em sua obra depois de
Pedagogia do Oprimido, mostrando sua abertura as mais distintas perspectivas
teóricas. Ao examinarmos essa arqueologia bibliográfica (PITANO; STRECK; MO-
RETTI, 2019) do autor, conseguimos entender a complexidade de seu pensamento
e as inúmeras possibilidades que abriu no campo da teoria educacional. Freire é
um autor conectivo, relacional e plural, que permite aproximações e diálogos com
diversos(as) autores(as), o que amplia redes e novas interpretações.
Pedagogia do Oprimido é um livro que alcançou enorme circulação interna-
cional. É uma das obras mais citadas na área de ciências humanas
1
e tem mui-
tas traduções em vários idiomas. Mesmo partindo de temas da realidade concreta
da América Latina e voltado à transformação social por meio da conscientização
dos(as) oprimidos(as), o livro tem boa recepção em países centrais do capitalismo.
Um dos elementos que podem explicar esse alcance, além da pluralidade de
debates teóricos, é a capacidade do autor de propor uma pedagogia utópica, basea-
da na conscientização, no humanismo e na valorização dos saberes da experiência.
Isso torna Freire um pedagogo brasileiro e mundial e a sua obra um “patrimônio
essencial para a pedagogia hoje” (NÓVOA, 1998, p. 183).
Porém, sabemos que o autor, que teve uma vida intensa e uma obra em movi-
mento permanente, não está imune às contradições de recepção de sua obra, espe-
cialmente no atual contexto brasileiro. Conceito central da Pedagogia do Oprimido
e de sua obra como um todo, o diálogo é um elemento central que segue pertinente
a análises rigorosas da área da educação. É por meio desse conceito que seguiremos
explorando o livro fundante da pedagogia freireana em suas potencialidades e em
seus limites.
A educação em relação com a dialogicidade
A trajetória de Paulo Freire se enraíza com maior vigor no Brasil no início da
década de 1960 e no mundo pós-1964, quando foi para o exílio no Chile (depois de
rápida passagem pela Bolívia), com o advento da ditadura militar. Desde sempre
652
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Este artigo está licenciado com a licença: Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
Thiago Ingrassia Pereira, Jerônimo Sartori
v. 27, n. 3, Passo Fundo, p. 643-664, set./dez. 2020 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
existiu/existe encantamento pela pedagogia de Freire; por outro lado há tentativas
de negação de suas teorias. Por sua vez, os(as) educadores(as) freireanos(as) histo-
ricamente têm militado em favor da implementação de uma educação libertadora;
já os(as) que negam a pedagogia freireana colocam-se alinhados(as) com as práticas
“tradicionais”, “conservadoras” na linha da chamada educação “bancária”, na qual,
sendo uma das marcas da opressão, o ato de “depositar” informações/conhecimen-
tos pelo(a) professor(as) nos(as) estudantes é a tônica. Assim, cabe destacar, neste
início de seção, que o legado de Freire traz consigo a motivação e a possibilidade de
as classes populares tornarem-se sujeitos e agentes da transformação da realidade
social, produzindo novas possibilidades educativas e sociais de forma ampla.
Ao referir-se à educação como prática da liberdade, Freire faz críticas contun-
dentes à classe dominante que, ao negar a palavra aos diferentes sujeitos, busca
mantê-los submissos e oprimidos. Negar a palavra – o diálogo – é um bom pretexto
para manter os oprimidos alienados e sob a manipulação, o que não gera ações que
favorecem a liberdade. O diálogo constitui-se em instrumento para que os sujeitos
em condição de subalternidade possam enfrentar e superar as situações que os
oprimem, buscando restaurar o seu lugar de sujeito no e com o mundo. Para Freire
(1987, p. 20), o diálogo deve ser “[...] essencialmente tarefa de sujeitos e que não
possa verificar-se na relação de dominação”. O autor segue indicando o amor como
antídoto à dominação, haja vista que “[...] amor é compromisso com os homens.
Onde quer que estejam estes oprimidos, o ato de amor está em comprometer-se com
sua causa. A causa de sua libertação” (1987, p. 20).
Trazer a amorosidade e o diálogo para o campo da educação, como sugere
Freire, é um exercício que necessita ser realizado para refletir sobre quanto os
processos de escolarização no Brasil, ainda, conservam formas de regulação moral
e política. Ao refletir criticamente acerca das práticas educativas antidialógicas,
faz-se necessário entender o poder dessas práticas como reprodutoras de injustiças
sociais e do fortalecimento de ações pedagógicas conservadores e mecânicas. As-
sim, o diálogo enquanto oposição ao antidiálogo torna-se exigência radical para que
os homens e as mulheres sejam interlocutores(as), utilizando os mais variados es-
paços de comunicação. Desse modo, “obstaculizar a comunicação é transformá-los
[os homens e mulheres] em quase ‘coisas’ e isto é tarefa e o objetivo dos opressores,
não dos revolucionários” (FREIRE, 1987, p. 125).
Enlaçado a isso, cabe questionar de que forma na escola se estabelecem os
canais de diálogo/comunicação entre os vários segmentos da comunidade escolar?
O diálogo apontado por Freire, como recurso indispensável para estreitar as rela-
653
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Este artigo está licenciado com a licença: Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
Educação, diálogo e prática da liberdade em Paulo Freire: revisitando a pedagogia do oprimido
v. 27, n. 3, Passo Fundo, p. 643-664, set./dez. 2020 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
ções entre sujeitos, corrobora a ideia de que a educação é um processo relacional.
Em Giroux (1997, p. 125), estudioso da pedagogia freireana, encontra-se que a
prática pedagógica deve facilitar que professores(as) e estudantes “[...] assumam o
papel crítico e reflexivo de intelectuais transformadores”. No campo educacional é
fundamental frisar que o diálogo funciona como mecanismo para produzir visões
crítico-reflexivas sobre a realidade social – sobre o mundo.
As práticas e as diferentes modalidades pedagógicas, histórica e socialmen-
te inseridas no discurso e na corporificação teórica e ideológica dos(as) professo-
res(as), conforme Freire (1987), precisam valorizar a “palavra” daqueles(as) que
sempre lhes foi imposta a condição de “ignorantes” pela elite. O espaço de fala
– da voz e da vez -, especialmente, pós-1985, ano que marca a redemocratização
no Brasil, tem permeado problematizações e debates em algumas instituições que
oferecem cursos de formação de docentes e que primam pela reflexão e produção
de conhecimentos teórico-metodológicos. Isso, sem dúvida, em várias instituições
formadoras acontece/aconteceu, mas qual a razão de termos avançado tão pouco no
processo de conscientização e de construção de práticas participativas, dialógicas
e democráticas?
Certamente, as variáveis que se entrecruzam nos contextos formativos escola-
res e não escolares estão eivadas por contradições do ponto de vista das concepções
teóricas, especialmente sobre o que se entende por educação
2
, ensino e aprendiza-
gem (PAVIANI, 1986). No período de 50 anos da Pedagogia do Oprimido, é preciso
considerar os diferentes modos de como se configurou e reconfigurou o tecido social
e a própria cultura escolar. Esses aspectos podem nos ajudar a compreender sobre
o quão pouco conseguimos avançar na perspectiva de uma educação emancipadora
e libertadora.
A despeito disso, entende-se que a formação docente por si só não é suficien-
te para as transformações da educação e, consequentemente, da sociedade, tendo
em vista que a cultura escolar entranhada no modo de ser professor(a) também
obstaculiza avanços na direção de práticas educativas para enfrentar e superar a
concepção “bancária” de educação, que por ser antidialógica reproduz a consciência
ingênua e acrítica.
Sabemos que há resistências que perpassam o cotidiano escolar, principalmen-
te a forma como gestores(as) e educadores(as) concebem a docência, muitas vezes,
castradora de boas ideias e de boas práticas daqueles professores que tiveram uma
formação crítico-reflexiva, com potencial para realizar intervenções significativas
para a mudança do cenário educacional. Entende-se que o enfrentamento do modus
654
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Este artigo está licenciado com a licença: Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
Thiago Ingrassia Pereira, Jerônimo Sartori
v. 27, n. 3, Passo Fundo, p. 643-664, set./dez. 2020 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
operandi da docência passa também pelo enfrentamento das concepções conserva-
doras a respeito da escola, sendo que não pode haver construção de conhecimento se
os(as) estudantes não forem chamados(as) para desenvolver o “ato de conhecer”, mas
apenas para memorizar os conteúdos narrados pelo(a) professor(a) (FREIRE, 1987).
Ao retornar do exílio, com a Lei da Anistia, Freire se desafia a refletir junto
com os educadores e as educadoras do Brasil aspectos que se relacionam com a
prática pedagógica, tendo em conta o movimento gnosiológico dos sujeitos, bem
como as diferentes alternativas para dinamizar os atos cognoscentes com vistas a
tornar os objetos (conteúdos) cognoscíveis. Entre as multifaces que se entrecruzam
na prática docente está:
[...] a do mau hábito de pensar um pensar estático, não dinâmico, não dialético, em que a
gente separa quase milagrosamente (porque, na verdade, não se pode separar), mas em
que a gente dicotomiza, por exemplo, a prática pedagógica, a prática educativa, a ação
educativa, da preparação da ação da mesma, em que a gente separa a preparação da ação,
da avaliação, em que a gente separa os métodos dos conteúdos e os métodos e os conteúdos
dos objetivos (FREIRE, 1984, p. 91).
No momento em que se retoma a reflexão sobre a prática pedagógica, tendo
como ponto essencial a educação escolar, é interessante considerar que esta se de-
senvolve, em algumas instituições, consciente ou inconscientemente embasa em
concepções, ora de “educação bancária” ora de “educação problematizadora”. Ao ter
ciência de tais modelos de fazer “educações” na escola, é que Freire toma o mote da
educação problematizadora, investindo tempo e, sobretudo, buscando difundir sua
pedagogia em favor do desenvolvimento dos sujeitos como atores construtores do
seu próprio conhecimento.
Ao ter presente que o potencial do diálogo que se estabelece entre o binômio
educador(a)-educando(a), Freire (1987, p. 68) sugere que “[...] o educador já não é o
que apenas educa, mas que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando
que, ao ser educado, também educa”. É desta assertiva que se pode inferir que o ca
-
ráter individualista do(a) educador(a) que apenas ensina está superado, haja vista
que a dialogicidade é reveladora de diferentes saberes que estão latentes na expe
-
riência dos(as) educandos(as0 e, que tais saberes no diálogo com os saberes dos(as)
educadores(as) resultam em novos saberes para ambos (educador(a)-educando(a)).
Desse modo, a reflexão crítica sobre a realidade e sobre as experiências coti-
dianas dos(as) estudantes não ocorre no silêncio, supostamente estruturado como
disciplinador das relações em sala de aula. Ao contrário, sugere a pré-disposição
ao diálogo para inquirir e questionar as estruturas de dominação existentes, mas
655
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Este artigo está licenciado com a licença: Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
Educação, diálogo e prática da liberdade em Paulo Freire: revisitando a pedagogia do oprimido
v. 27, n. 3, Passo Fundo, p. 643-664, set./dez. 2020 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
que buscam representar um falso quadro de harmonia entre as classes. Harmonia
que, conforme Giroux (1997), não é mais do que uma retórica para dizer aos(às)
subordinados(as) que sofrem as injustiças que devem “aceitar” a desigualdade de
classes como algo dado e natural.
Neste recorte em que se aponta a educação em relação com a dialogicidade,
de acordo com Freire (1987), pode-se dizer que a prática educativa requer do(a)
professor(a) a adoção da problematização como possibilidade de os(as) estudan-
tes superarem a ideia de conhecimento como doxa, substituindo-o pela ideia de
conhecimento que se constrói através do logos. Assim, o conhecimento produzido
na perspectiva do logos, procura por meio da emersão dos fenômenos, produzir
alternativas de inserção crítico-social dos sujeitos na realidade em busca de sua
transformação. Esse cenário é indutor de uma pedagogia que, baseada no diálogo,
é um exercício crítico de liberdade.
O diálogo em relação com a prática da liberdade
O diálogo em relação com a prática da liberdade requer que se retome a abor-
dagem do diálogo como princípio pedagógico, o qual encerra possibilidades inte-
rativas e integrativas. Enlaçado a isso, temos a educação problematizadora como
possibilidade de libertação fundamentada na crítica, que é produzida por meio da
reflexão-ação-reflexão e da criatividade dos(as) humanos(as) “[...] que não podem
autenticar-se fora da busca e da transformação criadora” (FREIRE,1987, p. 72).
A relativa consideração à obra Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire, que em
tempos de quase interdição ao pensamento crítico procura menosprezar e desqua
-
lificar a pedagogia freireana; o discurso concordante com a teoria de Freire passa,
então, neste momento histórico, a enfrentar a violência simbólica, que é contra uma
proposta visivelmente a favor da “educação como prática da liberdade”. Nessa pers
-
pectiva, torna-se relevante rever a alusão de Freire (1979, p. 12, grifos do autor)
sobre o diálogo como âncora facilitadora à prática pedagógica problematizadora:
[...] há limites para o diálogo. Porque numa sociedade de classes não há diálogo, há apenas
um pseudodiálogo, utopia romântica quando parte do oprimido e ardil astuto quando parte
do opressor. Numa sociedade dividida em classes antagônicas não há condições para uma
pedagogia dialogal. O diálogo pode estabelecer-se talvez no interior da escola, da sala de
aula, em pequenos grupos, mas nunca na sociedade global. Dentro de uma visão macro-
-educacional, onde a ação pedagógica não se limita à escola, a organização da sociedade
é também tarefa do educador. E, para isso, seu método, sua estratégia, é muito mais a
desobediência, o conflito e a suspeita do que o diálogo.
656
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Este artigo está licenciado com a licença: Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
Thiago Ingrassia Pereira, Jerônimo Sartori
v. 27, n. 3, Passo Fundo, p. 643-664, set./dez. 2020 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
O excerto reforça que os escritos de Freire, ainda, são hodiernos. Contudo, em
tempos de obscurantismo o(a) docente compromissado(a) com a interlocução com
seus(suas) estudantes e com a produção da consciência crítica, necessita, perma-
nentemente, refletir e (re)situar no tempo e na história a sua atuação pedagógica.
Assim, se nos momentos compreendidos entre 1985-2015 (três décadas), por ser
um tempo de maior abertura política e democrática, era um tanto difícil atuar na
perspectiva crítico-reflexiva, nos dias atuais pode ser considerado dificílimo (não
impossível), devido ao recrudescimento do ideário autoritário e centralizador, tanto
no Brasil como em outros países do mundo.
Passadas três décadas é de se perguntar se produzimos consciência crítica ou
se simplesmente nos iludimos em ter produzido entre as massas conscientização
e politização? Era, pois, de se esperar que neste período, por meio dos espaços for-
mativos escolares e não escolares, tivéssemos forjado a formação de seres humanos
potencialmente compromissados(as) com o mundo, com a história e com a huma-
nização das massas oprimidas. Para a produção de massa crítica e de cidadãos e
cidadãs conscientes, compreende-se que não há mais como ignorar dos processos
educativos a sociedade de classes e suas profundas desigualdades, a precarização
das condições de produção da subsistência, as questões de raça, etnia, gênero; as-
pectos estes que explicitam suas marcas diretamente em sala de aula, por fazerem
parte da história e da experiência de vida dos(as) educandos(as) e docentes.
Ao debater sobre as mazelas da realidade social e dos sujeitos nela inseridos,
serão referenciadas denúncias sobre a vida e sobre a desumanização, todavia, con-
forme Freire (2001) isso não basta, ou seja, a denúncia ao ser acolhida pela cons-
ciência requer atitudes no formato de anúncios e possíveis ações. O caráter utópico
da educação com vistas a concretizar a prática da liberdade parte da premissa de
que a denúncia sobre a realidade representa o ponto de partida para o anúncio de
ações transformadoras (FREIRE, 2001).
Desse modo, a ação transformadora
[...] utópica e esperançosa porque, pretendendo estar a serviço da libertação das classes
oprimidas, se faz e se refaz na prática social, no concreto, e implica a dialetização da de-
núncia e do anúncio, que têm na práxis revolucionária permanente, o seu momento máximo
(FREIRE, 2001, p. 70).
Talvez seja oportuno pensar criticamente sobre os avanços dos conhecimentos
na área das ciências humanas, principalmente, aqueles alinhados com a pedagogia
freireana, mas que efetivamente pouco interferiu na prática docente – na organi-
657
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Este artigo está licenciado com a licença: Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
Educação, diálogo e prática da liberdade em Paulo Freire: revisitando a pedagogia do oprimido
v. 27, n. 3, Passo Fundo, p. 643-664, set./dez. 2020 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
zação e desenvolvimento de ações pedagógicas capazes de tornar a educação liber-
tadora e emancipadora.
Em termos de escolarização não se pode esperar que o futuro seja melhor se
a ação pedagógica continuar sendo mera repetição de conteúdos sem vínculo com
a realidade micro e macrossocial. Nesse sentido, “quanto mais a problematização
avança e os sujeitos descodificadores se adentram na ‘intimidade’ do objeto proble
-
matizado, tanto mais se vão tornando capazes de desvela-lo” (FREIRE, 2001, p. 77).
Para debater a realidade social em sala de aula é fundamental que o profes-
sor adote estratégias para tornar o ambiente e a relação entre docente-discente e
discente-discente crítica, mas respeitosa. A razão disso é que ao tratar de temáticas
polissêmicas podem aparecer entre os envolvidos (estudantes) resistências, pelas
dificuldades de reconhecer e decodificar as tramas que tecem a história e a reali-
dade social. É essencial, desse modo, conduzir o processo pedagógico no horizonte
freireano em que a educação é um ato político. Então, aquele(a) que argumenta o
contrário,
[...] afirmando que o educador não pode “fazer política”, estão defendendo uma certa polí-
tica, a política da despolitização. Pelo contrário, se a educação, notadamente a brasileira,
sempre ignorou a política, a política nunca ignorou a educação. Não estamos politizando
a educação. Ela sempre foi política. Ela sempre esteve a serviço das classes dominantes
(FREIRE, 1997, p. 14).
Em relação à citação é preciso ter o entendimento que se a educação é um ato
político, por sua vez, a escola é um espaço em que se faz política. É fundamental
destacar que a escola é uma construção social, portanto, uma construção políti-
ca e intencional, por isso, está sempre em disputa, o que é salutar para que os
espaços formativos sejam democráticos e emancipadores. Enfatiza-se, dessa ma-
neira, que a prática pedagógica para fundamentar a prática da liberdade, requer
enfrentamentos e decisões, não descuidando da articulação dos objetivos, conteú-
dos, procedimentos metodológicos e avaliação. A despeito disso, corrobora Giroux
(1997) quando indica que a experiência do estudante necessita ser privilegiada não
apenas para compartilhar atributos, mas para refletir e produzir conhecimentos e
consciência crítica. Dessa forma,
[...] [a] visão acrítica dos estudantes, particularmente daqueles pertencentes a grupos su-
bordinados, está refletida na recusa do discurso da relevância em examinar criticamente
a maneira pela qual o mesmo fornece e legitima formas de experiência que incorporam a
lógica de dominação (GIROUX, 1997, p. 129).
658
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Este artigo está licenciado com a licença: Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
Thiago Ingrassia Pereira, Jerônimo Sartori
v. 27, n. 3, Passo Fundo, p. 643-664, set./dez. 2020 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
O debate sobre a real situação e condição de pertencimento de classe social,
deve servir para que os sujeitos reconheçam em que lugar social estão situados,
bem como as razões que os situaram neste lugar. A partir desta compreensão, ao
contrário de acomodarem-se às condições a que socialmente estão submetidos, por
meio do conhecimento e da consciência de classe, devem organizar-se e lutar, iden-
tificando no movimento em que os homens e mulheres permanentemente encon-
tram-se inscritos(as), “[...] como seres que se sabem inconclusos; movimento que é
histórico e que tem o seu ponto de partida, o seu sujeito, o seu objetivo” (FREIRE,
1987, p. 73). Nessa perspectiva, é interessante em uma análise, partir da condição
desumanizante, a busca da construção de uma realidade em que os homens e as
mulheres se empoderem para “ser mais” – compromisso histórico e utópico da ação
para a liberdade.
De acordo com Freire (2001, p. 96), “a consciência crítica não se constitui atra-
vés de um trabalho intelectualista, mas na práxis – ação e reflexão”. Como já des-
tacado, Freire (1987) compreende a práxis como atividade humana e social, que se
ocupa do poder que o ser humano tem para produzir a unidade: teoria-prática; ho-
mem/mulher-mundo; sujeito-objeto; objetividade-subjetividade. O espaço escolar,
dessa maneira, não poderia negar às classes dominadas momentos para denúncias,
nem tampouco deixar de auxiliar na construção de possibilidades que fortaleçam
anúncios teórico-práticos com vistas à transformação da realidade. Isso encontra
eco no fato de que a ação que se constitui em favor da libertação se constrói em
oposição aos interesses das classes dominantes (FREIRE, 2001).
A educação que se realiza com o propósito de que tanto educadores(as) como
educandos(as) se tornem sujeitos de seu processo, faz-se “[...] aprofundando a to-
mada de consciência da situação, os homens se ‘apropriam’ dela como realidade
histórica, por isto mesmo, capaz de ser transformada por eles” (FREIRE, 1987,
p. 74). Essencial à produção da consciência crítica é articular os conhecimentos
curriculares com as problemáticas que se colocam como condição natural à manu-
tenção do status quo da classe dominante.
A prática da liberdade, a partir do diálogo estabelecido em sala de aula e na es-
cola, se expressa: na competência e no argumento fundamentado teoricamente; na
compreensão do tecido social que se configura com base na matriz do capitalismo;
na capacidade de organização das classes subordinadas para saírem da condição
de passividade e silenciamento, assumindo a condição de sujeito empoderado pela
palavra – pelo conhecimento como ferramenta do poder.
659
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Este artigo está licenciado com a licença: Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
Educação, diálogo e prática da liberdade em Paulo Freire: revisitando a pedagogia do oprimido
v. 27, n. 3, Passo Fundo, p. 643-664, set./dez. 2020 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Nesse sentido, é apropriado destacar que, na perspectiva freireana, liberdade
não significa licenciosidade, sendo que a liberdade necessita da autoridade (GHIG-
GI, 2001). Portanto, ao defender uma educação dialógica, não autoritária e situada
politicamente em um projeto solidário e inclusivo de sociedade, a leitura rigorosa
da obra de Freire a afasta de posturas doutrinadoras de qualquer natureza. Pelo
contrário, a teoria e prática do autor o situam como um humanista preocupado com
a radicalidade democrática.
Em Pedagogia do Oprimido encontramos uma posição política que se desdobra
em uma proposta pedagógica. O diálogo ocupa lugar central na filosofia da educa-
ção freireana exatamente por ser um mecanismo da prática da liberdade. Ao dizer
a sua palavra, homens e mulheres potencializam sua condição humana e, assim,
podem construir a consciência crítica que aprofunda sua leitura de mundo.
Contudo, o que explicaria a continuidade de práticas pedagógicas autoritárias
na escola do século XXI? Quais os limites do diálogo em nossa sociedade marca-
damente desigual? Quais as variáveis que ajudam a explicar o atual quadro da
ofensiva conservadora no Brasil? Qual o partido daqueles(as) que defendem uma
“escola sem partido”? Entendemos que essas e outras questões nos desafiam na
apreensão crítica do cenário atual, em que a Pedagogia do Oprimido segue atual
em suas bases teóricas e compromissos políticos. Assim, uma pergunta-chave desse
contexto é: “como é possível que, mundo afora, as edições de seus livros sejam lidas
por milhões e aqui se pretenda expurgá-lo da educação brasileira?” (KOHAN, 2019,
p. 22). O enfrentamento dessa questão é um exercício crítico do quadro político
nacional e das históricas disputas de poder e projetos de país.
Considerações nais
O desafio de dialogar com a obra de Freire, especialmente com a Pedagogia
do Oprimido no momento contemporâneo pelo qual passa o Brasil, redobra nosso
compromisso em levar adiante o legado freireano, que postula por uma educação
libertadora e que, ao ser mediada pelo diálogo, se configure como prática da liber-
dade. Para tanto, atenta-se para a necessidade de (re)situar conceitos e práticas,
com vistas à reconstrução de cenários que reavivem ações colaborativas e partici-
pativas. Assim, o diálogo como uma das possibilidades para problematizar a vida
e a realidade é imprescindível para a construção de conhecimentos, que ocorrem
na relação docente-discente, não pela mera narrativa de conteúdos pelo(a) profes-
sor(a).
660
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Este artigo está licenciado com a licença: Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
Thiago Ingrassia Pereira, Jerônimo Sartori
v. 27, n. 3, Passo Fundo, p. 643-664, set./dez. 2020 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Se o diálogo tem potencialidades para discutir, debater, problematizar, inda-
gar, inferir, contra-argumentar, cabe pensar sobre aspectos que não permitiram
avançar em ações que efetivamente produzissem as condições para o exercício da
prática da liberdade, em um tempo histórico (1985-2015), em que se vislumbrava a
viabilidade de construções democráticas. Se não avançamos o quanto poderíamos
de 1985 até 2015, cabe refletir por que, em um espaço relativamente curto (2016-
2020), houve um acentuado recrudescimento na tomada de decisões em espaços
coletivos e participativos.
Nesse sentido, percebe-se um processo acelerado de tentativa de castração
da criatividade, da curiosidade, da inventividade. Entende-se, pois, que, se tanto
educadores(as) como educandos(as) estão encharcados(as) desta realidade “per-
versa”, que visa silenciar mentes, corpos e a voz, é mister eleger conhecimentos
curriculares que favoreçam a compreensão da realidade, para enfrentar as práticas
enviesadas e com caráter dogmático e autoritário nas escolas.
O tempo “perdido” em termos dos possíveis avanços que poderiam ter ocorrido
de 1985 a 2015 necessita ser visualizado com cautela, na perspectiva do movimento
histórico em suas contradições. Houve, a partir do início da década de 1970 – perío-
do do auge da ditadura militar –, uma significativa expansão da educação básica
na rede pública do ensino brasileiro, que demandou a formação de professores(as).
Cabe, então, debruçar-se sobre com que proposta e com que formato de curso fo-
ram “formados(as)” os(as) professores(as) que seguiram o exercício da docência na
transição do período da ditadura militar ao período pós-1985, denominado de “re-
democratização do Brasil”.
É essencial, também, pensar como à época se apresentava o perfil dos forma-
dores para os cursos de graduação aligeirados e desdobrados entre licenciatura de
curta duração (LC) e licenciatura plena (LP), nos termos da Lei nº 5.692/1971. Com
isso, não se pretende tecer considerações superficiais e ingênuas, culpabilizando
somente os(as) docentes pelos supostos “não avanços” da proposta de educação
libertadora, apontada por Freire na obra Pedagogia do Oprimido, com vistas à
emancipação do sujeito e à sua preparação para o exercício consciente da cidadania.
Pode-se dizer que há um conjunto de variáveis que concorrem para o entendimento
ou não de que a escola pode conquistar sua autonomia, construindo seu projeto
político-pedagógico de forma coletiva, envolvendo toda a comunidade escolar.
Envolver a comunidade escolar em processos coletivos para debater, tomar de-
cisões e encaminhar ações no campo pedagógico não é tarefa fácil, pois as escolas, de
maneira antidialógica, foram pensadas pelo sistema por mais de duas décadas (di-
661
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Este artigo está licenciado com a licença: Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
Educação, diálogo e prática da liberdade em Paulo Freire: revisitando a pedagogia do oprimido
v. 27, n. 3, Passo Fundo, p. 643-664, set./dez. 2020 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
tadura militar). Na perspectiva freireana, quem não pensa é pensado, ou seja, os ór-
gãos centrais dos sistemas planejavam e as escolas executavam, não havia proposta
pedagógica própria e tampouco regimento escolar próprio, era responsabilidade da
mantenedora (estado ou município) enviar às unidades escolares para o “cumpra-se”.
Os aspectos aludidos também corroboraram para a limitação da expansão e
evolução da pedagogia freireana nas escolas, talvez uma das causas esteja na di-
ficuldade dos atores educacionais não se sentirem pré-dispostos, compromissados,
capacitados para assumir o protagonismo de pensar a escola como um lugar essen-
cial para a existência humana, para construir ações com vistas a libertar o sujeito
das amarras do pensar estático, acrítico e ingênuo.
Toda a ação humana se realiza balizada por uma concepção política e ideoló-
gica, sempre entremeada por contradições, tensionamentos, conflitos, incertezas,
que devem passar pelo crivo reflexivo da “pergunta em favor de que e contra que,
em favor de quem e contra quem eu conheço, nós conhecemos, não há mais como
admitir uma educação neutra a serviço da humanidade, como abstração” (FREIRE,
1984, p. 97, grifos do autor). Sem dúvida, ao assumir que a educação não é neutra,
é essencial compreender que tanto a educação bancária como a problematizadora
estão eivadas de poder, respectivamente, alienador e libertador.
Isso aponta para a necessidade de entender a educação como ato político, que
precisa ser assumida como prática política e social. O fato de não assumir a prática
docente como uma prática consciente e politizada, também representa um dos moti-
vos em avançar na dialogicidade e na ascensão da prática da liberdade. Mesmo en-
frentando alguns obstáculos de ordem epistemológica e teórico-conceitual, é premen-
te que os(as) militantes progressistas do campo educacional permaneçam firmes na
defesa de uma educação autêntica, “mediatizada pelo mundo” (FREIRE, 1987, p. 84).
Para o(a) educador(a) humanista, a saída do “contexto colonial” não se dará
pela imposição de um dado conhecimento, mas pode ser produzido pelas “visões im-
pregnadas de anseios, de dúvidas, de esperanças ou desesperanças que implicitam
temas significativos à base dos quais se constituirá o conteúdo programático da
educação” (FREIRE, 1987, p. 84). De modo geral, demanda-se ainda muito esforço
da categoria docente para entender a magnitude em assumir a posição de ator/
sujeito protagonista, não apenas como coadjuvante, mas como orgânico no processo
da configuração do diagnóstico da realidade, envolvendo-se efetivamente também
na elaboração, execução e avaliação do projeto educativo e curricular da escola.
O alcance da autonomia político-pedagógica não se constitui em uma tarefa
fácil, pois a complexidade da realidade não pode ser ignorada; precisa ser confron-
662
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Este artigo está licenciado com a licença: Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
Thiago Ingrassia Pereira, Jerônimo Sartori
v. 27, n. 3, Passo Fundo, p. 643-664, set./dez. 2020 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
tada para que a ideia de mudança social perpasse o planejamento dos processos
formativos, afirmando-se nos objetivos educacionais que estruturam as práticas
escolares (GIROUX, 1997). A escola, desse modo, não pode operar na perspectiva
de que “o silêncio estruturado que subjaz o seu único ‘nossa’ sugere não haver
disposição para indiciar ou questionar as estruturas de dominação existentes, en-
quanto apela para uma harmonia artificial” (GIROUX, 1997, p. 133).
O discurso da harmonia que não coloca em debate e questionamento as injus-
tiças experimentadas pelas classes subalternas, historicamente alijadas de uma
vida digna e de condições para produzir a própria subsistência, carece de situar
os homens que “não somente vivem, mas existem, e sua existência é histórica”
(FREIRE, 1987, p. 89). No enlaçamento com a pedagogia freireana, se os homens
e as mulheres tiverem a consciência de que sua relação com o mundo é situada,
datada e, especialmente, produzida pelo viés da matriz capitalista, poderão atuar
em função de finalidades propositivas e criadoras de condições objetivas para a
intervenção e a transformação social.
Assim, para desvencilhar-se da relação opressor-oprimido, o diálogo é essencial
para que ocorra a conscientização popular, pois não haverá “uma radical denuncia
das estruturas de dominação sem o anuncio de uma nova realidade a ser criada em
função dos interesses das classes sociais hoje dominadas” (FREIRE, 2001, p. 97).
Sobre isso, ainda, discorre Freire (1987, p. 88) ao destacar que os “homens como os
únicos seres, entre os ‘inconclusos’, capazes de ter, não apenas sua própria ativida-
de, mas a si mesmos, como objeto de sua consciência, o que os distingue do animal,
incapaz de separar-se de sua atividade”.
Tendo ciência, talvez, do pouco que se avançou na educação brasileira sob a
orientação da pedagogia de Paulo Freire, destacam-se alguns exemplos realizados
em gestões municipais desenvolvidas de forma democrática e participativa, como,
por exemplo, em São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre. Então, ainda há muito
por fazer, mas não estamos em um território de “terra arrasada”, talvez em certo
“estado de sítio”, pelas tentativas abruptas de silenciamento daqueles(as) que voci-
feram a defesa da educação pública, da educação crítica e de qualidade social para
todos e todas, indistintamente de classe social, raça, etnia e gênero. Tem-se clareza
da limitação desta reflexão, por isso ela está aberta às devidas críticas daqueles(as)
estudiosos(as) das obras de Freire, especialmente da Pedagogia do Oprimido; as
críticas servirão de âncora para prosseguir no aprofundamento da reflexão acerca
dos estudos freireanos.
663
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Este artigo está licenciado com a licença: Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
Educação, diálogo e prática da liberdade em Paulo Freire: revisitando a pedagogia do oprimido
v. 27, n. 3, Passo Fundo, p. 643-664, set./dez. 2020 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Por fim, como recorte deste texto, reforça-se a imprescindibilidade de enfa-
tizar a práxis como possibilidade metodológica para agir e refletir criticamente,
produzindo novos conhecimentos e novas visões sobre o processo ensino-aprendi-
zagem. Assim, entende-se que a reflexão crítica acerca da relação teoria-prática se
sustenta pela ação dialógica em vista da prática da liberdade.
Nota
1 Segundo pesquisa realizada no Google Scholar, pelo professor da London School of Economics, Elliott
Gren. Maiores informações em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2016/06/04/Paulo-Freire-%C3%A-
9-o-terceiro-pensador-mais-citado-em-trabalhos-pelo-mundo. Acesso em: 12 mar. 2020.
2
Dentre suas diferentes conceituações, entendemos a educação em sua tarefa de oferecer “condições de
opção ou possibilidade de fazer valer sua experiência de pessoas livres e responsáveis” (PAVIANI, 1986, p.
10). Portanto, a educação representa uma ação em favor da vida que favorece a invenção e reinvenção da
sociedade.
Referências
ANTUNES, Angela Biz; GADOTTI, Moacir; PADILHA, Paulo Roberto. Três categorias que
marcaram a Pedagogia do Oprimido. Educação em Perspectiva, Viçosa, v. 9, n. 2, p. 514-526,
set./dez. 2018.
BARBOSA, Ana Mae. Sobre a Pedagogia do Oprimido. In: FREIRE, Ana Maria Araújo (org.).
Pedagogia da libertação em Paulo Freire. 2. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2017.
p. 25-26.
FIORI, Ernani Maria. Aprender a dizer a sua palavra. In: FREIRE, Paulo. Pedagogia do Opri-
mido. 41. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005. p. 7-22.
FREIRE, Paulo. Depoimento de um grande amigo [posfácio]. In: FIORI, Ernani Maria. Educa-
ção e política. 2. ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2014. p. 321-338.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. 15. ed.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008.
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 30. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2007.
FREIRE, Paulo. À sombra desta mangueira. 8. ed. São Paulo: Olho d’Água, 2006.
FREIRE, Paulo. Educação e atualidade brasileira. 3. ed. São Paulo: Cortez/Instituto Paulo
Freire, 2003.
FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade: e outros escritos. 9. ed. São Paulo: Paz e Terra,
2001.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
FREIRE, Paulo. Educação sonho possível. In: BRANDÃO, Carlos Rodrigues (org.). O educador:
vida e morte. 5. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1984. p. 89-101.
664
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Este artigo está licenciado com a licença: Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
Thiago Ingrassia Pereira, Jerônimo Sartori
v. 27, n. 3, Passo Fundo, p. 643-664, set./dez. 2020 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
FREIRE, Paulo. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
GHIGGI, Gomercindo. A autoridade a serviço da liberdade: diálogos com Paulo Freire e profes-
sores em formação. Perspectiva, v. 19, n. 2, p. 469-492, jul./dez. 2001.
GIROUX, Henry A. Os professores como intelectuais: rumo a uma pedagogia crítica da aprendi-
zagem. Porto Alegre: Artmed, 1997.
KOHAN, Walter. Paulo Freire, mais do que nunca: uma biografia filosófica. Belo Horizonte:
Vestígio, 2019.
MOTA NETO, João Colares da. Educação popular e pensamento decolonial latino-americano
em Paulo Freire e Orlando Fals Borda. 2015. 368 f. Tese (Doutorado em Educação) – Instituto
de Ciências da Educação, Universidade Federal do Pará, Belém, 2015.
NÓVOA, António. Paulo Freire (1921-1997): a “inteireza” de um pedagogo utópico. In: APPLE,
Michael; NÓVOA, António (org.). Paulo Freire: política e pedagogia. Porto: Porto Editora, 1998.
p. 167-187.
PAVIANI, Jayme. Problemas de filosofia da educação. 8. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1986.
PITANO, Sandro de Castro; STRECK, Danilo Romeu; MORETTI, Cheron Zanini (org.). Paulo
Freire: uma arqueologia bibliográfica. Curitiba: Appris, 2019.
ROMÃO, José Eustáquio. Opção radical pelo oprimido. In: GADOTTI, Moacir (org.). 40 olhares
sobre os 40 anos da pedagogia do oprimido. São Paulo: Editora e Livraria Instituto Paulo Frei-
re, 2008. p. 13-14.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2009.
SCHNORR, Giselle Moura. Pedagogia do oprimido. In: SOUZA, Ana Inês (org.). Paulo Freire:
vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2001. p. 69-100.
SCOCUGLIA, Afonso Celso. A história das ideias pedagógicas de Paulo Freire e a atual crise de
paradigmas. 3. ed. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2001.
SOUZA, Katia Reis de; MENDONÇA, André Luís de Oliveira. A atualidade da “pedagogia do
oprimido” nos seus 50 anos: a pedagogia da revolução de Paulo Freire. Revista Trabalho, Edu-
cação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, 2019.
STRECK, Danilo Romeu. Entre emancipação e regulação: (des)encontros entre educação po-
pular e movimentos sociais. Revista Brasileira de Educação, v. 15, n. 44, p. 300-310, maio/ago.
2010.
TORRES, Carlos Alberto. Reinventando Paulo Freire 40 anos depois. In: GADOTTI, Moacir
(org.). 40 olhares sobre os 40 anos da pedagogia do oprimido. São Paulo: Editora e Livraria
Instituto Paulo Freire, 2008. p. 12-13.
ZITKOSKI, Jaime José. A pedagogia freireana e suas bases filosóficas. In: SILVEIRA, Fabiane
Tejada da; GHIGGI, Gomercindo; PITANO, Sandro de Castro (org.). Leituras de Paulo Frei-
re: contribuições para o debate pedagógico contemporâneo. Pelotas: Seiva Publicações, 2007.
p. 229-248.