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Paulo César Carbonari
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Necrolia: repercussão ética, política e educacional – estudo em
Paulo Freire e Erich Fromm
Necrophily: repercussion ehtic, politic and educational – study in Paulo Freire and Erich Fromm
Necrolia: repercusión ética, política y educativa: estudio en Paulo Freire y Erich Fromm
Paulo César Carbonari
*
Resumo
O artigo faz uma reexão sobre a necrolia para compreender em parte o que tem sido o modo de agir de políti-
cos e cidadãos/as no contexto da pandemia de Covid-19. Busca em Paulo Freire, na Pedagogia do Oprimido, e na
sua fonte, Erich Fromm, O Coração do Homem, subsídios para esta compreensão. Ensaia aspectos da repercussão
ética, política e educacional e indica algumas aprendizagens necessárias para o enfrentamento da necrolia. A
tese básica é a de que a necrolia alimenta práticas que são destrutivas da vida e que se exacerbam em momen-
tos de grave crise, como o da pandemia.
Palavras-chave: Necrolia. Política. Ética. Educação. Freire. Fromm.
Abstract
The article reects on necrophilia to understand in part what has been the behavior of politicians and citizens in
the context of the Covid-19 pandemic. In Paulo Freire, in the Pedagogy of the Oppressed, and in his source, Erich
Fromm, The heart of man, he seeks subsidies for this understanding. Rehearses aspects of the ethical, political
and educational repercussions and indicates some learnings necessary to face necrophilia. The basic thesis is
that necrophilia feeds practices that are destructive of life and that are exacerbated in moments of serious crisis,
such as the pandemic.
Keywords: Necrophily. Politics. Ethics. Education. Freire. Fromm.
Resumen
El artículo ofrece una reexión sobre la necrolia para comprender en parte cuál ha sido la forma de actuar de
políticos y ciudadanos en el contexto de la pandemia Covid-19. Hace una busca en Paulo Freire, en la Pedagogía
del Oprimido, y en su fuente, Erich Fromm, El Corazón del Hombre, ofrece subsidios para esta comprensión.
Ensaya aspectos de las repercusiones éticas, políticas y educativas e indica algunos aprendizajes necesarios para
afrontar la necrolia. La tesis básica es que la necrolia alimenta prácticas destructivas de la vida y que se agudi-
zan en momentos de crisis grave, como lo que ocurre con la pandemia.
Palabras clave: Necrolia. Política. Ética. Educación. Freire. Fromm.
*
Doutor em losoa (Unisinos), mestre em Filosoa pela Universidade Federal de Goiás, professor de losoa no IFIBE
(até 2019), militante de direitos humanos (CDNPH/MNDH), coordenador do Grupo de Estudo e Pesquisa em Educa-
ção em Direitos Humanos (GEPEDH). Orcid: http://orcid.org/0000-0002-5163-8456. E-mail: carbonari@ibe.edu.br
Recebido em 12/10/2019 – Aprovado em 09/04/2020
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i3.12378
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Considerações iniciais
Paulo Freire é uma referência para a educação não só porque produziu muitas
reflexões sobre ela, mas também e particularmente, porque as reflexões que pro-
duziu são profundamente engajadas em processos e práticas. Esta condição dá à
sua obra uma situacionalidade que, porém, não fica apenas nela, já que se mostra
permanente, constituindo-se, por isso, já num clássico.
Pedagogia do Oprimido, uma de suas obras mais conhecidas, é, seguramente,
um referencial para a educação, mas não só. Ela também é um referencial para a
filosofia, para a antropologia, para a política. Poder-se-ia ousar dizer que é um refe-
rencial para diversos campos do saber, para a sabedoria. Isso não significa que não
esteja sob o escrutínio da análise crítica e nem mesmo que nossa relação com ela
seja reverencial. Seria incoerente com a própria proposta da obra agir assim. Ela é
uma referência para a crítica, para a práxis; um alimento para o que ali mesmo se
chama de “inédito viável”. E este, ou será aberto, histórico e em construção ou não
será. Por isso é que todos/as que se empenham em conhecer, estudar e discutir esta
obra, antes de tudo, se propõe a não ficar nela.
É neste sentido que nos aproximamos dela. Não o fazemos como olhar do pes-
quisador especializado e nem com o olhar do estudioso minucioso. O fazemos com
o compromisso do agente social e do aprendente. Nossa expectativa é não mais do
que considerar elementos que possam nos ajudar a compreender e a agir.
O fazemos num momento histórico de grave comprometimento das certezas
nas quais o cientificismo positivista tenta imergir a humanidade nos últimos anos.
Estamos vivendo a mais profunda vulnerabilidade ao novo coronavírus
1
e que tem
produzido em poucos meses uma das mais dramáticas condições de crise da his-
tória da humanidade. A Covid-19 se alastra pelo mundo matando aos milhares e,
enquanto é escrito este artigo, já passaram muitas dezenas dos milhares de mortos
no Brasil e no mundo.
Este contexto nos motiva a buscar no texto de Freire subsídios para compreen-
der a presença forte de ações que se orientam pela “promoção da morte” e não a
valorização da vida. Elas se expressam das mais diversas formas. Estão presen-
tes em práticas populares, mas também na expressão e na prática de autoridades
como as do presidente da república que, por repetidas vezes, minimiza a situação
e até incentiva à contaminação como forma de enfrentamento da situação. Estes
elementos nos levam a buscar na Pedagogia do Oprimido o sentido da “necrofilia”.
Buscaremos em complementação também em sua fonte para este tema, a obra O
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Coração do Homem, de Erich Fromm. É sobre ele que desenvolveremos esta refle-
xão.
O faremos em três partes: na primeira reconstruiremos o tema na Pedagogia
do Oprimido e na referência usada por Paulo Freire; na segunda exporemos o signi-
ficado em Erich Fromm, base de Freira; na terceira, nos ocuparemos de relacionar
esta questão e sua repercussão ética, política e na educação como aprendizagens
decorrentes. Esperamos, dessa forma, contribuir com as reflexões sobre a obra de
Paulo Freire e, com base nela, também contribuir com a travessia que todos/as
estamos fazendo no contexto da pandemia.
Necrolia: signicado em Paulo Freire
A ideia de necrofilia aparece pela primeira vez em Pedagogia do Oprimido
(1975), de Paulo Freire, no primeiro capítulo no contexto da análise da opressão e,
particularmente, da violência que a caracteriza, mas retorna em vários momentos
da obra. A expressão, ou derivados dela, aparece em todos os capítulos da obra.
2
Isso é uma demonstração da sua importância como recurso analítico. Vamos reto-
mar sua presença em cada momento e fazer sua apresentação, sem esquecer que
o próprio Freire se refere por várias vezes àquela que é sua fonte, a obra de Erich
Fromm.
No primeiro capítulo, que é dedicada aos elementos balizadores da concepção
de fundo a ser desenvolvida na obra, o tema da necrofilia aparece como elemento
caracterizador da prática violenta da opressão e que se traduz em uma prática
própria dela, o desenvolvimento de uma “consciência fortemente possessiva”. Para
Freire (1975, p. 48-49), “fora da posse direta, concreta, material, do mundo e dos
homens (e das mulheres),
3
os opressores não se podem entender a si mesmos. Não
podem ser”, e, em consequência, “tendem a transformar tudo o que os cerca em
objetos de seu domínio”. Essa consciência é também chamada de “consciência ne-
crófila”.
Este processo transforma os/as oprimidos/as em “coisa”: “em algo que é como se
fosse inanimado”. Tomando por base Erich Fromm, diz que esta tendência própria
dos opressores de “inanimar tudo e todos” se identifica com a “tendência sadista”,
que é entendida como uma das características da consciência opressora e de sua
“visão necrófila do mundo”. Freire cita Fromm para explicar o que ela significa: “o
fim do sadismo é converter um homem em coisa, algo animado em algo inanimado,
já que mediante o controle completo e absoluto o viver perde uma qualidade essen-
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cial da vida: a liberdade” (FROMM apud FREIRE, 1975, p. 50, tradução nossa). A
coisificação leva à destruição da liberdade, é raiz da opressão. Este é o principal
fator da necrofilia. Freire (1975, p. 50) arrematará dizendo “Por isto é que o seu
amor é um amor às avessas – um amor à morte e não à vida”. A dominação faz
“deter a ânsia de busca, a inquietação, o poder de criar, que caracterizam a vida, os
opressores matam a vida” (1975, p. 50).
A prática necrófila do opressor também se manifesta na “educação bancária”,
aquela criticada por Paulo Freire. A “educação bancária” é aquela na qual a “edu-
cação é o ato de depositar, de transferir, de transmitir valores e conhecimentos”,
ela reflete a “sociedade opressora, sendo dimensão da ‘cultura do silêncio’” (1975,
p. 67). Freire faz um elenco de características da educação bancária, cuja última
característica é que “o educador, finalmente, é o sujeito do processo; os educandos,
meros objetos”, arrematando que, “Se o educador é que sabe, se os educandos são
os que nada sabem, cabe àquele dar, entregar, levar, transmitir o seu saber aos
segundos” (1975, p. 67). Por isso é que: “No momento mesmo em que se funda num
conceito mecânico, estático, especializado da consciência e em que transforma por
isto mesmo, os educandos em recipientes, em quase coisas, não pode esconder sua
marca necrófila” (1975, p. 76).
Os oprimidos são “seres duplos”, “‘hospedeiros’ do opressor” (1975, p. 32), so-
frem uma “dualidade”: “são eles [oprimidos] e ao mesmo tempo são o outro intro-
jetado neles, como consciência opressora” – “este é o trágico dilema dos oprimidos”
(1975, p. 36). Os oprimidos se fazem “sombra” do opressor e reproduzem as práticas
do opressor (1975, p. 52), podendo até vir a ser “sub-opressor” (1975, p. 33). Isso
faz dos oprimidos pessoas com “atitude fatalista”, que se expressa na submissão ao
destino, à sina, ao fardo, que são “potências irreversíveis” – vontade divina, sofri-
mento natural. Mais do que isso, são levados a se submeterem a uma “aderência
ao opressor” (1975, p. 33), uma “irresistível atração pelo opressor” (1975, p. 53), de
modo a admirá-lo, a imitá-lo, a segui-lo (1975, p. 33 e 53), e, pelo reverso, a promo-
ver a “autodesvalia”, o que significa o desacreditar de si mesmos e da capacidade de
por si mesmos sair da situação de opressão em que se encontram e de superaram
a conivência (1975, p. 55) com ela e a dependência (1975, p. 56) dela. Esta situação
caracteriza um estado geral de “imersão” na realidade opressora (1975, p. 33), fa-
tor de inautenticidade do oprimido. Há como que um “depender” no sentido de os
oprimidos serem “dependentes emocionais” do opressor. Sendo que é “este caráter
de dependência emocional e total dos oprimidos que os pode levar a manifestações
que Fromm chama de necrófilas. De destruição da vida. Da sua ou da do outro,
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oprimido também” (1975, p. 56). Isso explica as repetições miméticas de práticas
opressoras pelos oprimidos.
Para Freire (1975, p. 56), é somente quando os oprimidos “descobrem, ni-
tidamente, o opressor, e se engajam na luta organizada por sua libertação, que
começam a crer em si mesmos, superando, assim, sua ‘conivência’ com o regime
opressor”. Ele alerta que esta descoberta da condição de oprimido é mais do que
puramente intelectual, é ação, mas não mero ativismo, e sim espera-se que “esteja
associada a sério empenho de reflexão, para que seja práxis” (1975, p. 56).
No contexto da investigação do “tema gerador” reaparece a questão. Identifica
uma dupla perspectiva: por um lado, está o processo no qual investigador e povo
são sujeitos do processo de investigação do tema gerador; pelo reverso, podem ha-
ver investigadores que não trabalham nesta perspectiva. O problema é quando em
nome da “objetividade científica” breca processos transformadores: o investigador
“transforma o orgânico em inorgânico, o que está sendo no que é, o vivo no morto,
teme a mudança. Teme a transformação” (1975, p. 118). Desse modo, não vai cons-
truir um processo de formação na qual os agentes são todos/as sujeitos do proces-
so. Isto porque, “ao temer a mudança e ao tentar aprisionara vida, ao reduzi-la a
esquemas rígidos, ao fazer do povo objeto passivo de sua ação investigadora, ao
ver na mudança o anúncio da morte, mata a vida e não pode esconder sua marca
necrófila” (1975, p. 118).
No capítulo final de Pedagogia do Oprimido, o tema retorna por várias vezes
no contexto da ação cultural dialógica e antidialógica. Aparece na crítica que faz à
liderança que não colabora com os processos de superação da opressão. A liderança
opressora é aquela que colabora com os processos necrófilos de opressão, o que
pode ocorrer também como parte da atuação das lideranças populares dentro de
um processo de transformação. Isso aparece quando, em nome da “necessidade”
de organizar o povo, essas lideranças negam processos de “intercomunicação” e de
“intersubjetividade”, de “diálogo”. Fazer isso, para Freire, é temer o povo, não crer
nele e fazer com que toda a transformação revolucionária perca sua razão de ser.
Toda vez que age assim, sem a coragem do “encontro humilde, amoroso e corajoso”,
de solidariedade, entre a liderança e o povo, a liderança se enrijece no desencontro
que transforma os outros em “puros objetos”. Segundo Freire (1975, p. 151): “E, ao
assim procedermos, nos tornamos necrófilos, em lugar de biófilos. Matamos avida,
em lugar de alimentarmos a vida. Em lugar de buscá-la, corremos dela. Matar a
vida, freá-la, com a redução dos homens apuras coisas, aliená-los, mistificá-los, vio-
lentá-los são o próprio dos opressores”. Pelo reverso, a “liderança revolucionária”,
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não pode ser nem “falsamente generosa” e nem mesmo “dirigista”: “Se as elites
opressoras se fecundam, necrofilamente, no esmagamento dos oprimidos, a lide-
rança revolucionária somente na comunhão com eles pode fecundar-se” (1975, p.
155). A liderança revolucionária necessariamente terá que ser humanista.
Na análise que faz da ação cultural antidialógica encontra a conquista como
prática dessa ação. Para Freire, a conquista implica a relação entre um sujeito
(que conquista) e um objeto (conquistado). O conquistador “imprime sua forma
ao conquistado que, introjetando-o, se faz um ser ambíguo. Um “hospedeiro” do
outro”. A ação conquistadora “ao ‘reificar’ os homens (e as mulheres), é necrófila”
(1975, p. 162).
A outra prática antidialógica é a de dividir para manter a opressão. Freire
nota que “a divisão das massas oprimidas é necessária à manutenção do status quo,
portanto à preservação do poder dos dominadores, urge que os oprimidos não per-
cebam claramente este jogo”. Os opressores fazem um jogo de inversão da situação
para poder dividir: “os necrófilos se nomeiam a si mesmos biófilos e aos biófilos,
de necrófilos”. O exemplo disso é o que é feito com Tiradentes, até hoje chamado
de inconfidente e ao movimento do qual participou de inconfidência (1975, p. 171).
A outra característica da ação cultural antidialógica é a manipulação, na qual
não analisa diretamente o aspecto da necrofilia. Mas a análise vai retornar na
outra característica, que é a “invasão cultural”. Ela desrespeita as potencialidades
e impõe aos invadidos, “sua visão de mundo, enquanto lhes freiam a criatividade,
ao inibirem sua expansão”, sendo, por isso, alienante (1975, p. 178). Para Freire, o
“o problema da necrofilia e da biofilia” inclui analisar ”as condições objetivas que
geram uma e outra, quer nos lares, nas relações pais-filhos, no clima desamoroso e
opressor, como amoroso e livre, quer no contexto sociocultural” (1975, p. 181).
Necrolia: signicado em Erich Fromm
No Livro O Coração do Homem (1965), Erich Fromm retrata diferentes formas
de violência. Ele aborda tendências de violência que vão contra a vida, que podem
ser denominadas a “essência do verdadeiro mal”, o “coração do mal” (1965, p. 39): a
necrofilia, o narcisismo e a fixação simbiótica pela mãe. Nos ocuparemos da necro-
filia por ser a referência de Paulo Freire.
No terceiro capítulo da obra analisa o “amor à morte e o amor à vida”. Começa
recuperando a declaração do filósofo Miguel Unamuno, feita em 1936, depois do
discurso do general Millán Astray, cujo lema era “viva a morte”. O discurso foi feito
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na Universidade de Salamanca, onde o filósofo era reitor, no começo da guerra civil
espanhola. O No final da intervenção do general, disse Unamuno (apud FROMM,
1965, p. 40-41): “acabo de ouvir o necrófilo e insensato grito ‘viva a morte’”.
Para Fromm (1965, p. 41), a distinção “mais fundamental” entre os seres hu-
manos, tento no campo psicológico
4
quanto moral, é a que separa “os que amam
a morte e os que amam a vida”, os “necrófilos e os biófilos”. Ressalva ele que não
necessariamente uma pessoa é totalmente uma coisa ou outra, estando presentes
ambas como tendências e, em muitas, precisa-se identificar qual delas é a mais for-
te (chama aquelas consagradas totalmente à morte de “insanas”). Lembra que, ain-
da que o “amor à morte” possa designar uma perversão sexual ou o desejo mórbido
de estar na presença de um cadáver, ela se encontra “sem mescla sexual alguma”
(1965, p. 41): é o caso da aplicação feita por Unamuno.
O texto de Erich Fromm se dedica a fazer uma “descrição da pessoa necrófila”
(1965, p. 41) – exemplos, segundo ele: Hitler, Eichmann e Stalin. A primeira carac-
terística é que a pessoa com orientação necrófila “é atraída e fascinada por tudo o
que não é vivo, tudo o que é morto” (1965, p. 42). A segunda característica é que
os necrófilos “moram no passado, nunca no futuro” (que odeia e teme, orientando-
-se ao passado, no qual fixa seu “desejo de certeza e segurança”), sendo que suas
emoções são sentimentais e alimentam a lembrança de emoções tidas no passado
ou que acredita tê-las tido (1965, p. 42). Outra característica é que “são frios, dis-
tantes, devotos da ‘lei e da ordem’” [nisso consiste a justiça], com valores que “são
exatamente o inverso dos [valores] que ligamos à vida normal” (1965, p. 42). Outra
característica é a atitude favorável em relação à força, como uma capacidade ou
desejo de matar, já que o necrófilo “ama a força”, sendo que sua maior façanha não
seria gerar vida, mas destruí-la (1965, p. 42-43). A necrofilia é um “modo de vida”,
mais do que uma ação transitória. Em geral o necrófilo se faz passar por construtor,
salvador, protetor, bom pai, um líder que eleva a nação. Sendo assim, por um bom
tempo haverá complacência com ele. As outras características são que o indivíduo
necrófilo “ama tudo o que não cresce, tudo o que é mecânico”, tem o “desejo de
transformar o orgânico em inorgânico”, ao modo de que “todas as pessoas vivas
fossem coisas” (“sentimentos e pensamento vivos são transformados em coisas”)
das quais quer se apropriar, reforça a “memória em vez de experiência”, o “ter,
em vez de ser”, “gosta de controle”. Contudo, “teme profundamente a vida”, visto
que a vida é “desordenada e incontrolável” (1965, p. 44). Fromm também diz que o
necrófilo se deixa atrair “pela escuridão e pela noite”, tudo o que o aparta da vida
e se dirige contra ela. Há como que um “fascinado pela destruição” (1965, p. 42).
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A orientação oposta à necrófila é chamada por Fromm de “biófila”: sua essên-
cia “é o amor à vida” (1965, p. 48). Ela também não é uma característica única,
mas representa uma orientação de um modo de ser que se manifesta nos processos
corporais, nas emoções, nos pensamentos, nos gestos de uma pessoa. Segundo ele,
“a substância viva tem a tendência para integrar-se e unir-se; tende a fundir-se
com entidades diferentes e opostas, e a crescer de forma estrutural” (1965, p. 49). A
pessoa biófila “é atraída pelo processo da vida e do crescimento em todas as esferas
[...]. Ama a aventura de viver mais do que a certeza”; “desfruta a vida e todas as
suas manifestações” (1965, p. 50). A perspectiva da vida aponta no sentido de que
“a vida é desenvolvimento estruturado”, mas que “por sua natureza não está sujei-
ta a um controle ou previsão rigorosos”. A vida não é abstração, é vida individual”
(1965, p. 62).
Erich Fromm fala de uma “ética biófila” – e pelo reverso uma não ética necró-
fila –, cujo princípio é de que “tudo o que serve à vida” é bom (o contrário, o que
serve à morte, é mau) (1965, p. 51). O que “acentua a vida, crescimento e desabro-
char” é bom. Segundo ele, a consciência biófila é movida “por sua atração pela vida
e alegria, o esforço moral consiste em fortalecer o aspecto amante da vida em si
mesmo” (1965, p. 51). Por esta razão o biófilo não vive o remorso e a culpa. Fromm
vê na Ética de Spinoza um “exemplo extraordinário de moral biófila” e filosofia de
base humanista. A finalidade do humano é “ser atraído por tudo o que estiver vivo
e afastar-se de tudo o que estiver morto ou for mecânico” (1965, p. 51).
Erich Fromm faz uma análise das condições para a posição orientada à biofilia
(1965, p. 55), discutindo, inclusive, em que medida ela entra em disputa com a dis-
posição necrófila – faz um debate com Freud. Discute até que ponto são dimensões
conflitantes, já que as entende como “a contradição mais fundamental existente no
homem” (1965, p. 54). Não se resume a uma questão biológica e nem a uma luta
na qual a vitória é por uma delas. A meta fundamental é preservar a vida, sendo
o seu contrário, uma distorção, uma psicopatologia. O “instinto de vida constitui
a potencialidade primaria do homem”, que precisa de “condições adequadas” para
se afirmar (o instinto de morte é uma “potencialidade secundária”) (1965, p. 55).
Fromm elenca como condições específicas para o desenvolvimento da biofilia (desde
a infância): o carinho, o contato afetuoso com outros durante a infância, a liberdade
e a ausência de ameaças, o ensino (pelo exemplo e por admoestações) dos princípios
que conduzem à harmonia e a força interior, o guia pela “arte de viver”, a influência
estimulante de outros e de resposta a ela e um modo de vida que seja verdadeira-
mente interessante (1965, p. 56). O oposto fomentaria o desenvolvimento da necro-
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filia: o crescer entre pessoas que amam a morte, a falta de estímulo, a frieza, as
condições que tornam a vida rotineira e carente de interesse e a ordem mecânica ao
invés de uma ordem determinada por relações diretas e humanas entre as pessoas.
As condições sociais para o desenvolvimento da biofilia também são tratadas.
Entre elas estão as que coincidem com as condições que fomentam as tendências, já
apontadas acima, como as que promovem o desenvolvimento do indivíduo. Acres-
centa a importância de situações de abundância contra a escassez, tanto econômica
quanto psicológica. Outra é a abolição da injustiça, que entende como a situação na
qual uma classe social explora a outra e lhe impõe condições que lhe impeçam de
acessa uma vida digna, impedindo a uma classe social de participar da experiência
básica do viver. Finalmente também trabalha a liberdade como condição para o de-
senvolvimento da biofilia no sentido de “liberdade para” criar e construir, admirar
e aventurar-se, o que requer um indivíduo ativo e responsável. Em resumo, diz que
“o amor à vida se desenvolverá mais numa sociedade onde houver: segurança, no
sentido das condições materiais básicas para uma vida digna não estarem ameaça-
das; justiça, no sentido de ninguém poder ser um fim para os objetivos de outrem;
e liberdade, no sentido de cada homem ter a possibilidade de ser um membro ativo
e responsável na sociedade” (1965, p. 57).
O autor se pergunta pela relação entre as “condições sociais” para o desen-
volvimento da necrofilia e o espírito da “sociedade industrial contemporânea” e,
inclusive com a “guerra nuclear” (1965, p. 60). Nas sociedades contemporâneas
há centros gigantescos nos quais os humanos são tratados “como objetos, em suas
propriedades comuns, nas regras estatísticas do comportamento coletivo, não nos
indivíduos vivos [...] os homens são administrados como se fossem coisas [...] são
transformados em coisas e obedecem às leis das coisas” (1965, p. 62). Em con-
trapartida Fromm responde: “mas o homem não se destina a ser uma coisa; ele
é destruído se se converte numa coisa” (1965, p. 62). A manipulação dos gostos
em vista do consumo ao máximo e em direções previsíveis, a uniformização do
caráter e a seleção dos medíocres são expressões do “burocraticamente organizado
e centralizado” (1965, p. 63). Este faz surgir o homem da organização, o homem
autômato, o homo consumens, o homo mechanicus, um homem artefato. Fromm diz
que “o homo mechanicus ainda gosta de sexo e de bebida, mas todos estes prazeres
são procurados dentro de um quadro de referência do mecânico e não-vivo” (1965,
p. 63-64). Ele espera um “botão” que, se apertado, traga “felicidade, amor, prazer”.
A intelectualização, a quantificação, a abstração, a burocratização e a “coisificação”
– características próprias da sociedade industrial moderna – “quando aplicadas
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a pessoas ao invés de a coisas, não são os princípios da vida, porém da mecânica”
(1965, p. 64). Para Fromm, as características da orientação necrófila “existem em
todas as sociedades industriais modernas, independentemente de suas respectivas
estruturas políticas” (1965, p. 65) – inclusive há muito em comum entre o capitalis-
mo estatal soviético e o capitalismo de sociedade anônimas.
Repercussão na Política e na Educação
A necrofilia repercute na política pela sua conversão em ação necropolítica
5
.
Há vários exemplos vindos das autoridades maiores do país.
6
O processo de ação
política está em pandemia, parece indicar para a desorientação, mas talvez não
seja o caso. O que parece mesmo haver é um projeto político novo, uma estratégia
de gestão do público, uma governamentalidade que sugere desorientação, mas que
tem posições muito consistentes e que se repetem na lógica e na ação.
O falso dilema economia versus saúde, ou emprego versus vida tem se colocado
como uma questão forte e que leva até a alguns a defenderem que entre morrer
da Covid-19 e morrer de fome em razão do agravamento da situação econômica é
uma escolha que se põe terrível. Trata-se de um falso dilema entre “a morte física
provável ou a morte econômica certa”, ou o contrário como sugerem professores da
Universidade de São Paulo (USP).
7
Há uma dificuldade crescente de as versões mais liberalizantes, tão hegemô-
nicas nas últimas décadas de neoliberalismo galopante no mundo. Segundo Márcio
Pochmann (2020, p. 135), no contexto da pandemia, aparecem três tendências para
o capitalismo: “a primeira tendência relacionada ao movimento de monopolização
da propriedade do capital a operar cada vez mais concentrada em não mais de 500
grandes corporações transnacionais”; a segunda: “[...] a monopolização avançada
do capitalismo permitiu descentralizar a estrutura de produção e distribuição de
bens e serviços em distintos fragmentos territoriais, cuja dinâmica de enclave eco-
nômico questiona a autonomia do sistema interestatal que emergiu do segundo
após guerra mundial no século passado” (2020, p. 136); e ele ilustra: “Somente 11
do conjunto de 200 países existentes nos dias de hoje no mundo possuem orçamento
governamental superior ao faturamento das grandes corporações transnacionais”
(2020, p. 136); “[...] a terceira tendência que consagra o capitalismo atual decor-
re do estágio avançado de consolidação generalizada do trabalho precário” (2020,
p. 136-137).
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Difícil de acreditar que este processo tenha forças para gerar mudanças es-
truturantes e transformações profundas. Enrique Dussel
8
diz que: “teríamos que
aplicar o freio e não o acelerador necrófilo que leva em direção ao abismo”. Num
desenho bem radical e propositivo, defende que a interpelação da natureza: “ou me
respeitas ou te aniquilo!”: “manifesta-se como um signo do fim da modernidade e
como anúncio de uma nova Idade do Mundo, posterior a esta soberba civilização
moderna que que tornou suicida”. Diz acreditar que “estamos vivendo pela primei-
ra vez na história do cosmos, da humanidade, sinais de esgotamento da moderni-
dade coo última etapa do antropoceno e que permite vislumbrar uma nova Idade
do Mundo, a transmodernidade”. Para ele, neste novo momento “deve-se antes de
tudo afirmar a Vida sobre o capital, sobre o colonialismo, sobre o patriarcalismo e
sobre muitas outras limitações que destrói as condições universais da reprodução
da Vida na Terra. Isto deveria ser conquistado pacientemente no longo prazo no
século XXI que só estamos começando”. Outro importante filósofo se pronunciou
numa linha muito parecida, Bruno Latour
9
defendeu que:
É aqui que devemos agir. Se a oportunidade serve para eles, serve também para nós. Se
tudo pára, tudo pode ser recolocado em questão, infletido, selecionado, triado, interrompido
de vez ou, pelo contrário, acelerado. Agora é que é a hora de fazer o balanço de fim de ano.
À exigência do bom senso – “Retomemos a produção o mais rápido possível” – temos de
responder com um grito: “De jeito nenhum!”. A última coisa a fazer seria voltar a fazer tudo
o que fizemos antes
10
.
Será que vige o império do homo oeconomicus
11
neoliberal? Será ele suplanta-
do ou seguirão os mais pobres precisando fazer cálculos terríveis entre satisfazer
ao mínimo as necessidades elementares dado o imenso acumulado de precarizações
e vulnerabilizações ou cumprir exigências sanitárias elementares para as quais
sequer há disponibilidade de recursos (falta água e sabão!)?
A repercussão na educação implica em pensar até que ponto as práticas ne-
crófilas seguem reforçando ações bancárias e processos opressores na educação.
Inclusive, pensar em que medida a necrofilia redunda na formação da possibilida-
de de uma posição alternativa e biófila. Boaventura de Sousa Santos (2020), em A
cruel pedagogia do vírus, fala em lições a serem enfrentadas e que são as seguintes:
“Lição 1. O tempo político e mediático condiciona o modo como a sociedade con-
temporânea se apercebe dos riscos que corre”; “Lição 2. As pandemias não matam
tão indiscriminadamente quanto se julga”; “Lição 3. Enquanto modelo social, o
capitalismo não tem futuro”; “Lição 4. A extrema-direita e a direita hiper-neolibe-
ral ficam definitivamente (espera-se) descreditadas”; “Lição 5. O colonialismo e o
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patriarcado estão vivos e reforçam-se nos momentos de crise aguda”; “Lição 6. O
regresso do Estado e da comunidade”.
No fundo a questão recoloca desafios muito importantes para a educação.
12
O principal deles é a necessidade de “aprender a dignidade da vida”. Trata-se de
compreender que a vida não tem valor, é valor. A vida não pode ser relativizada ou
condicionada a qualquer outro valor. Nela há uma dignidade própria e não suplan-
tável, que não pode ser ultrapassada, como condição material
13
. A vida é a condição
para todas as demais condicionalidades específicas. A fragilidade da vida que torna
a todos os corpos vulneráveis à contaminação do novo coronavírus, sua finitude e
sua construção como parte de um amplo processo vital do conjunto do cosmos e
particularmente da Mãe Terra, não a colocam em secundidade, pelo contrário, a
inserem nesta ampla teia vital. A vida é também finalidade omnidimensional de
todas as decisões e de todas as ações, não podendo ser posta como mais uma das
finalidades disponíveis
14
, exatamente por sua indisponibilidade. A vida, e suas ne-
cessidades, não é um fim para a qual se podem calcular meios eficazes. Ela é condi-
ção de todo fim e a possibilidade de ter fins específicos. E isto é tão objetivo quanto
qualquer fim especifico. Assim, a vida também não é um direito, ela é a condição de
todo Direito e de todos os direitos, em sentido profundo, todos os direitos específicos
só fazem sentido para a vida. Todo dinheiro, todo trabalho, toda economia, só fazem
sentido se forem para alimentar a vida. Somente em dinâmicas necrófilas é que se
poderia esperar outras possibilidades de compreensão.
Outro é o desafio de “aprender o luto e a enlutar-se”. A morte tem sido bas-
tante banalizada nas modernas sociedades do progresso, da correria, do resultado,
afinal, ela representa o oposto de tudo isso. A morte, que sempre foi tida como mo-
mento fundamental da vida, alimentou crenças, religiosidades, filosofias e várias
construções de sentido. Mas, parece que já não sensibiliza tanto. Há humanos para
os quais já não faz sentido o luto, como nos lembra Judith Butler
15
. Ela também nos
lembra neste contexto da pandemia que estamos diante de um desafio importante:
“aprender a enlutar-se pelas mortes em massa significa marcar a perda de alguém
cujo nome você não sabe, cuja língua você talvez não fale, que vive a uma distância
intransponível de onde você mora”. Há, um “luto público” a ser experimentado e
vivido. Mas, a lógica do cálculo e a enxurrada de números que chegam pelos bole-
tins epidemiológicos parecem reduzir as vidas e as mortes a insumos de cálculo,
possibilidade estatística, impedem o efetivo reconhecimento de cada singularidade
que se perde numa vida que se vai, numa morte que se conta. Há um luto comuni-
tário a ser vivido, ainda que não possa ser feito como reverência pública (dadas as
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condições do enterro neste contexto). O subregistro das mortes (de certa forma au-
torizado pelo poder público
16
) e a dispensa de exame em Institutos Médicos Legais
(IMLs) para o caso de corpos aprisionados
17
poderão gerar a possibilidade de “de-
saparecidos da Covid”. Junto com isto as medidas de restrição ou o cancelamento
de velórios públicos reforça uma dificuldade ainda maior de lidar com o luto no
contexto da pandemia. A aprendizagem demandada de um “luto Covid” é pela ex-
igência de seguimento dos vivos e de como estes conviverão com as memórias dos
mortos e como a sociedade conviverá e significará todos/as e cada uma das mortes,
para além de números. As lágrimas pelos estranhos que morreram são pelos con-
hecidos que seguem vivos. Não aprender a valorizar a perda comum pode levar a
sequer valorizar eventuais perdas pessoais ou, dito de outro modo, concentrar-se
unicamente nas eventuais perdas pessoais parece pouco diante da exigência de
enlutar-se com cada morte.
Finalmente, o “aprender nova ética
18
. A questão de fundo que se coloca é a
possibilidade de uma racionalidade ética na qual caibam as mais diversas e todas
as formas de conhecimento, de ciência, de vida. Esta racionalidade ética haverá de
emergir da necessidade de superação da racionalidade vitimária que é exatamente
esta racionalidade que admite a morte como parte “naturalizada” (ainda que não
seja “natural”) e que trabalha com o “cálculo do suportável”.
19
Não há suportá-
vel possível quando se trata da vida, do sujeito necessitado (que é o humano, um
humano natural, um humano-natureza). Submeter a ética ao cálculo meio-fim é
exatamente eliminá-la do contexto da ciência e autorizar a “ciência dos fatos”
20
a
seguir acreditando que está trabalhando sem valores, quando, na verdade, está
orientada por valores absolutos como a eficiência e a competição, além de outros.
21
Problematizar estas questões é abrir-se para possibilidades outras de ciência com
ética. Enfim, a possibilidade de uma racionalidade ética se coloca como questão
fundamental também neste momento, não como um “post factum” ou “post festum”,
mas como processo presente e constitutivo da travessia em curso, como aprendiza-
gem necessária para fazer frente à necrofilia persistente.
Considerações nais
Estamos numa contingência que, “elimina a contingência”,
22
exatamente por-
que na contingência da Covid-19 diversas coisas estão colocadas umas ao lado das
outras, todas adjacentes entre si, contíguas entre si, que isso não se confunde com
alguma continuidade entre elas.
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A contingência da pandemia, no fundo, se tornou uma necessidade (por isso
nada contingente) – e até o que esperamos vir a ser no futuro está marcado por esta
condicionalidade – mesmo que na pandemia nada há de necessário e tudo seja tão
incerto e contingente. É exatamente a contingência que já não se faz contingente.
Aqui está talvez o principal desafio que é o de “fazer sobrar” alguma contingência
quando tudo parece ser contingente. E isso o que poderá permitir reinventar, inclu-
sive tudo por inteiro e não sucumbir à necrofilia.
Nossas respostas imunológicas não podem ficar fechadas à certeza na incer-
teza que não deixa brechas para a imaginação. Só ela, junto com o desejo do im-
possível, do infinito, do “inédito viável”, tem força ética, política e pedagógica para
produzir o novo, ainda que num contexto completamente adverso.
Notas
1
O novo coronavírus (SARS-CoV-2) apareceu no final de 2019 em Wuham, China, e rapidamente se es-
palhou pelo mundo, de modo que a Covid-19 foi declarada uma pandemia pela Organização Mundial da
Saúde (OMS) em 11 de março de 2020. As informações sobre o tema são muitas e estão disponíveis parti-
cularmente nos canais da OMS, a Organização Pan-americana de Saúde (OPAS) e do Ministério da Saúde
do Brasil. Ver de modo especial em: www.who.int/; www.paho.org; e https://saude.gov.br/.
2
Uma busca pela expressão e seus derivados indica sua presença nas seguintes páginas: 48, 49, 50 e 56 (do
Capítulo I); 74, 75 e 76 (do Capítulo II); 118, 119 e 133 (do Capítulo III): 150, 151, 155, 156, 162, 171 e 181
(do Capítulo IV).
3
Acrescentamos atendendo ao pedido de Paulo Freire em Pedagogia da Esperança (1993).
4
Fromm lembra que, ainda que tenha sido pouco trabalhado pela Psicanálise, a necrofilia se remete ao
“instinto de morte”, tanatológico, como trabalhado por Sigmund Freud.
5
Seguindo a posição de Achile Mbembe, expressa em vários de seus escritos (2016), particularmente no
mais recente deles, “Direito Universal à respiração” (2020).
6
Tratamos deste assunto num artigo publicado em 25/03/2020 no site do Movimento Nacional de Direitos
Humanos (MNDH). Disponível em: https://mndhbrasil.org/necropolitica-e-necrofilia-em-estado-pura-pen-
samentos-indignados-e-para-mobilizar-a-indignacao/.
7
Artigo “Coronavírus reforça urgência da união de forças democráticas contra Bolsonaro”, assinado pelos
professores André Singer, Christian Dunker, Cicero Araújo, Laura Carvalho, Felipe Loureiro, Leda Pau-
lani, Ruy Braga e Vladimir Safatle, publicado no caderno Ilustríssima, do jornal Folha de São Paulo, em
24/04/2020. Disponível em: www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/04/coronavirus-reforca-urgencia-da-
-uniao-de-forcas-democraticas-contra-bolsonaro.shtml.
8
Artigo de Enrique Dussel, “Cuando la naturaleza jaquea la orgullosa modernidad”, publicado no Blog
Nuestramerica. Mar. 2020. Disponível em: http://nuestramerica.cl/ojs/index.php/blognuestramerica/ arti-
cle/view/111/146. Acesso em: 03 abr. 2020. Tradução nossa.
9
Artigo de Bruno Latour, “Imaginando gestos que barrem o retorno ao consumismo e à produção insusten-
tável pré-pandemia”. ClimaInfo, 3 de abril de 2020. Disponível em: https://climainfo.org.br/2020/04/02/
barrar-producao-insustentavel-e-onsumismo/. Acesso em: 03 abr. 2020.
10
Tratamos da questão no artigo “Momento para parar”, publicado pela Comissão de Direitos Humanos de
Passo Fundo. Disponível em: https://cdhpf.org.br/artigos/momento-para-parar-breves-reflexoes-anti-pro-
gresso/.
11
Ver artigo de Castor M. M. Bartolomé Ruiz, “Pandemia e as falácias do homo economicus”, IHU On Line,
de 19/04/2020. Disponível em: www.ihu.unisinos.br/78-noticias/598157-pandemia-e-as-falacias-do-homo-
-economicus.
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12
Trabalhamos estas questões no texto que publicamos em 20 de maio de 2020 com o título “Educação em
Tempos da Pandemia de Covid-19” [ainda em construção quando da elaboração deste].
13
Fundamental retomar a posição da Ética da Libertação formulada por Enrique Dussel, formulada já há
algumas décadas, mas que neste momento ganha uma força e atualidade incontestáveis. Ver: Ética da
Libertação na idade da globalização e da exclusão (DUSSEL, 2000).
14
Ver a crítica de Franz Hinkelammert (2003) à racionalidade positivista. Também é importante revisitar a
crítica a esta mesma racionalidade em Horkheimer (2002).
15
Entrevista: “O luto é um ato político em meio à pandemia e suas disparidades”. Publicada originalmente
em ‘Truthout’. No Brasil, publicado por Carta Maior, em 04/05/2020, com tradução de César Locatelli. Dis-
ponível em: www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Pelo-Mundo/Judith-Butler-O-luto-e-um-ato-politico-em-
-meio-a-pandemia-e-suas-disparidades/6/47390. Na entrevista, retoma questões que já estão em outras
obras, como em Quadros de guerra (BUTLER, 2016).
16
A Portaria Conjunta 1/2020 (ver www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/03/SEI-CNJ-0857532-Portaria.
pdf-2.pdf), entre o CNJ e o MS, autoriza estabelecimentos de saúde – na hipótese de ausência de familia-
res ou pessoas conhecidas do falecido ou em razão de exigência de saúde pública – a encaminhar sepulta-
mento ou cremação sem prévia lavratura do registro civil de óbito.
17
Ver: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/03/24/covid-19-iml-rj-corta-autopsia-de-
-presos -e-a-oab-investiga-subnotificacao.htm.
18
Esta parte também já foi publicada no artigo “Ética e Ciência: elementos para subsidiar reflexões”.
19
Trabalhamos as características da racionalidade vitimaria e da racionalidade ética em nossa tese “A po-
tencialidade da vítima para ser sujeito ético: construção de uma proposta de ética a partir da condição da
vítima”. Ver: www.repositorio.jesuita.org.br/handle/UNISINOS/4517.
20
E os limites graves da posição weberiana a respeito do tema (WEBER, 1991).
21
Sugere-se visitar a metáfora dos jovens que cerram o galho de árvore sobre o qual estão sentados apresen-
tada por Hinkelammert (2003).
22
Como diz o filósofo italiano, Emanuele Alloa, em artigo publicado em Anrtinomie. Disponível em https://
antinomie.it/index.php/2020/04/21/il-coronavirus-una-contingenza-che-elimina-la-contingenza/.
Referências
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Lamarão e Arnaldo M. da Cunha. Rev. Marina Vargas e Carla Rodrigues. 2. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2016.
DUSSEL, Enrique D. Ética da Libertação na Idade da Globalização e da Exclusão. Trad. Jaime
A. Clasen et al. Petrópolis: Vozes, 2000.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. 2. ed.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.
FROMM, Erich. O coração do homem. Seu gênio para o bem e para o mal. Trad. Octávio Alves
Velho. Rio de Janeiro: Zahar, 1965.
HINKELAMMERT, Franz. El sujeto y la ley: el retorno del sujeto reprimido. Heredia, Costa
Rica: EUNA, 2003.
HORKHEIMER, Max. Eclipse da Razão. Trad. Sebastião U. Leite. São Paulo: Centauro, 2002.
MBEMBE, Aquile. Necropolítica. Revista Arte & Ensaio, Programa de Pós-graduação em Artes
Visuais EBA/UFRJ, n. 32, p. 123-151, dez. 2016.
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v. 27, n. 3, Passo Fundo, p. 734-749, set./dez. 2020 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
MBEMBE, Aquile. Direito universal à respiração. Trad. A. Luiza Braga. São Paulo, n-1, 2020
(nº 20). Disponível em: https://n-1edicoes.org/020.
POCHMANN, Marcio. Sobre o papel do Estado na economia e Covid-19. In: TOSTES, Anjuli;
MELO FILHO, Hugo (org.). Quarentena: reflexões sobre a pandemia e depois. Bauru: Canal 6,
2020. Disponível em: http://editorapraxis.com.br/quarentena/ebook_quarentena_1ed_2020.pdf.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A Cruel Pedagogia do Vírus. Coimbra: Almedina, 2020.
WEBER, Max. Economia e Sociedade. Fundamentos da Sociologia Compreensiva. Trad. Regis
Barbosa e Karen E. Barbosa. Brasília: UnB, 1991. Vol. I.