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Edinaldo Medeiros Carmo, Rosa Belém Farias, Marco Antonio Leandro Barzano
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Cultura popular no planejamento e na prática de professores dos anos iniciais do
ensino fundamental
Popular culture for planning and practice of teachers during the early years of elementary education
Cultura popular en la planicación y la práctica de profesores de los primeros años de la
educación fundamental
Edinaldo Medeiros Carmo
*
Rosa Belém Farias
**
Marco Antonio Leandro Barzano
***
Resumo
Este artigo traz o resultado de uma pesquisa realizada durante um curso de mestrado no Programa de Pós-gra-
duação em Educação da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. A investigação partiu de inquietações re-
lacionadas à abordagem da cultura popular no currículo da escola, especicamente, nos anos iniciais do Ensino
Fundamental. Trata-se de uma pesquisa de natureza qualitativa, cujo objetivo foi compreender como a cultura
popular é abordada nos documentos curriculares. Além disso, utilizou-se a entrevista semiestruturada com qua-
tro professoras que relataram suas práticas pedagógicas. Os resultados demonstraram que as professoras, no
desenvolvimento do currículo, utilizam astúcias e modos sutis para abordar a cultura popular em suas aulas,
desencadeando um processo de criação e invenção na prática. As narrativas das professoras demonstram, ainda,
que, ao planejarem suas aulas, introduzem dispositivos didáticos que permitem gerar discussões sobre a cultura
popular e implantam ações como: visitas a pontos da cidade que são referências, entrevistas com representantes
da cultura local, etc., para que a temática não que nas margens do currículo desenvolvido na escola.
Palavras-chave: Cultura. Currículo. Escola.
*
Doutor em Educação pela Universidade Federal Fluminense. Professor do Departamento de Ciências Naturais - Uni-
versidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1594-8983. E-mail: medeirosed@uesb.
edu.br
**
Mestre em Educação pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Professora da Rede Municipal de Ensino de
Carinhanha, Bahia. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3824-2032. E-mail: belemcnn@hotmail.com
***
Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas. Professor do Departamento de Educação - Universi-
dade Estadual de Feira de Santana. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3273-9216. E-mail: marco.barzano@gmail.com
Recebido em 08/04/2020 – Aprovado em 30/09/2020
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i3.12383
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Abstract
This article shows results of a research derived from a master’s course in the Postgraduate Program in Education
of the State University of Southwest Bahia. The investigation was originated from concerns linked to the popular
cultures approach in the school curriculum and especially in the early years of Elementary School. It is a quali-
tative research aimed to understand how popular culture is approached in the curriculum documents. In addic-
tion, a semi-structured interview with four teachers reporting their pedagogical practices was used. The results
showed that teachers use clever and subtle ways in the development of the curriculum to approach popular
culture in their classes, triggering a process of creation and invention in practice. The teachers’ narratives also
demonstrate that they introduce didactic devices in the planning of their classes, allowing to generate discus-
sions regarding popular culture and implementing actions such as visits to points of the city that are references,
interviews with representatives of the local culture and others avoiding to let this topic to stay on the margins of
the curriculum developed at the school.
Keywords: Culture. Curriculum. School.
Resumen
Este artículo muestra el resultado de una investigación realizada durante un curso de maestría en el Programa
de Posgrado en Educación de la Universidad Estatal del Suroeste de Bahía. La investigación se originó en las
preocupaciones con los maestros y profesores relacionadas con el enfoque de la cultura popular en el currículo
escolar y especícamente en los primeros años de educación fundamental. Es una investigación cualitativa, con
el objetivo de comprender el abordaje de la cultura popular en los documentos curriculares, utilizando además
entrevistas semiestructuradas con cuatro docentes que informaron sobre sus prácticas pedagógicas. Los resulta-
dos muestran que los maestros y profesores utilizan formas astutas y sutiles en el desarrollo del plan de estudios
para acercarse a la cultura popular en sus clases, desencadenando un proceso de creación e invención en la prác-
tica. Las narrativas docentes demuestran también que, al planicar sus clases, introducen dispositivos didácticos
que les permiten generar discusiones sobre cultura popular e implementar acciones tales como: visitas a puntos
de la ciudad que son referencias, entrevistas con representantes de la cultura local y otros, con el n de que este
tema no quede al margen del plan de estudios desarrollado en la escuela.
Palabras clave: Cultura. Plan de estudios. Escuela.
Introdução
Este texto traz dados de uma investigação realizada durante o curso de mes-
trado no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual do
Sudoeste da Bahia, que partiu de inquietações relacionadas à abordagem da cul-
tura popular no currículo da escola, especificamente nos anos iniciais do Ensino
Fundamental. Desse modo, tinha-se a inquietação de investigar como a cultura
popular é abordada nos documentos curriculares e nas narrativas
1
dos professo-
res. Nessa perspectiva, os diálogos sobre a prática pedagógica e o currículo têm se
tornado bastante complexos, demonstrando assim, que a educação é um campo em
disputas. Neste estudo, buscamos compreender como professores, frente ao sentido
que lhes atribui, materializam o currículo em sala de aula.
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Desse modo, falar de educação é, sem dúvida, conectar-se aos múltiplos diá-
logos, é pensar em diversidade, mas, para tanto, é preciso eleger alguns aspectos
importantes de discussão e um deles é o currículo. Ainda, pensar a diversidade é
também envolver a prática pedagógica nesse conjunto de ações que a apresenta
como o diferencial, pois, no processo da escolarização, a prática pedagógica confi-
gura-se como uma ação potente que possibilita a abordagem da diversidade e da
diferença. Em função dos novos enfoques educacionais, estudos têm mostrado que
a construção do conhecimento perpassa por diversas engrenagens, contudo, mesmo
não sendo o único, o currículo é um dos elementos mais investigados.
Partindo desse pressuposto, Goodson (2013) afirma que o currículo não pode
ser o único instrumento de pesquisa no processo de escolarização, pois, a prática
pedagógica também se constitui objeto muito importante nesse cenário produtivo.
Portanto, essa prática, no contexto educacional, torna-se o aspecto essencial no
processo de ensino, porque, é através dela que o conteúdo ganha forma. Nas colabo-
rações de Schwille (1982, apud SACRISTÁN, 2000, p. 175), o docente tem partici-
pação importante nesse processo, pois, o professor, “[...] em última instância, decide
os aspectos a serem desenvolvidos na classe, especificando quanto tempo dedicará
a uma determinada matéria, que tópicos vai ensinar, a quem os ensina, quando e
quanto tempo conceder-lhes-á e com que qualidade serão aprendidos”.
Assim, a prática pedagógica e o professor como mediador dela, são essenciais
no processo da escolarização. Afinal, é o professor que, nas observações diárias, co-
nhece e reconhece as potencialidades e fragilidades dos alunos. Portanto, conhece
as vivências e as experiências deles. Nesse aspecto, o professor tem grande respon-
sabilidade, pois, conforme destaca Santos (2000, p. 57), “[...] as experiências dos
alunos, seus conhecimentos e sua inserção cultural, são aspectos a serem conside-
rados nas práticas pedagógicas”.
Embora o conceito de currículo seja multifacetado, há um consenso quanto
ao seu valor e importância no cenário educacional. Para Moreira e Candau (2007,
p. 19),
Currículo é, em outras palavras, o coração da escola, o espaço central em que todos atua-
mos, o que nos torna, nos diferentes níveis do processo educacional, responsáveis por sua
elaboração. O papel do educador no processo curricular é, assim, fundamental. Ele é um
dos grandes artífices, queira ou não, da construção dos currículos construídos que sistema-
tizam nas escolas e nas salas de aula.
Assim, de acordo com Moreira e Silva (2013), o currículo é lugar que, ativamen-
te, mediante tensões, produz e reproduz culturas. Currículo refere-se, nessa pers-
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pectiva, à criação, recriação, contestação e transgressão. Portanto, as mudanças no
cotidiano escolar partem das ações pedagógicas, dos Projetos Políticos Pedagógicos
escolares e devem posicionar-se frente ao ensino mais dialógico, na perspectiva re-
flexiva do currículo. Assim, Sacristán (2000) defende que o currículo é o espaço de
construção e que a função dos professores não é somente executá-lo, pois eles têm
um papel fundamental na produção dos seus significados. Com efeito, percebe-se
que na ação docente as informações são articuladas a possíveis mudanças. Desse
ponto de vista, acrescenta-se que a vida na escola se dá a partir da inter-relação
professor-aluno, potencializando o exercício docente.
Nessa perspectiva, as interações que ocorrem no espaço escolar são permea-
das por diferentes culturas. E, dando centralidade a dimensão empreendida nes-
ta pesquisa, a cultura popular representa nos currículos escolares a resistência
frente a gama de influências culturais advindas da globalização que reforçam a
subalternização das culturas locais, tornando-se, ou querendo torná-las, culturas
das margens. Assim, conforme adverte Chauí (2014, p. 27), “[...] não tentaremos
abordar a cultura popular como uma outra cultura, ao lado (ou no fundo) da cultura
dominante, mas como algo que se efetua por dentro dessa mesma cultura, ainda
que para resistir a ela”.
Por conseguinte, pensar em resistência é apontar os diferentes mecanismos de
existência da cultura popular, passando pela luta política e pedagógica. Portanto, é
reconhecer a essência e a importância da cultura para a vida humana. Desse modo,
ressaltamos sua importância para que ela possa ser entendida como um vasto cam-
po de conhecimentos, porque nela estão embutidas marcas que envolvem práticas
diversas, nas quais se ensina e se aprende.
A cultura popular configura-se, desse modo, como um espetáculo que, na maio-
ria das vezes, ocorre nas ruas como tantas manifestações que constituem a cultura
popular brasileira. Para além disso, Gullar (1983, p. 23) destaca outro sentido, ao
afirmar que “[...] a cultura popular é um movimento para a libertação do homem
e só tem sentido na medida em que promover o homem não só como receptor, mas
principalmente como criador das expressões culturais”. Contudo, cabe considerar
que nessas manifestações ocorre a cumplicidade entre as pessoas, criando vínculos
de ações afetivas, o que também é educativo, pois, por meio da ludicidade, acessam
as memórias e as afirmações de identidades.
Nesse sentido, a cultura popular é um movimento que atrai a presença sig-
nificativa de pessoas, isso quer dizer que, mesmo com as mudanças ocorridas na
sociedade, como as linguagens virtuais, os meios de comunicação, entre outros me-
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canismos tecnológicos, a cultura popular permanece e ainda resiste às influências
desse momento histórico (FÁVERO, 1983). Contudo, a cultura popular permeia
conversas e narrativas, talvez não no mesmo ritmo e vigor de outrora, principal-
mente entre os mais jovens. Por isso, insiste-se que a escola pode contribuir para
o fortalecimento da cultura popular que, pelas ações de professores, militantes e
defensores, insiste em não permanecer nas margens.
Diante disso, pela natureza qualitativa que a abordagem dessa pesquisa re-
quer, buscou-se compreender como a cultura popular é abordada nos documentos
curriculares e nas narrativas dos professores ao relatarem suas práticas pedagó-
gicas. Para Minayo (2013, p. 57), esse tipo de estudo aplica-se ao “[...] estudo de
história, das relações, das representações, das crenças, das percepções e das opi-
niões, produções das interpretações que humanos fazem a respeito de como vivem,
constroem seus artefatos e a si mesmos, sentem e pensam”. Essa natureza de in-
vestigação pressupõe que não há como trabalhar com variáveis como tentativa de
provar ou comprovar algo, e, nesse caso, compreender as narrativas dos professores
parte do pressuposto de que não se pretende comprovar, pelo contrário, busca-se
compreender nos resultados subjetivos, e, nessa direção, a pesquisa qualitativa
comporta todos os parâmetros que corroboram para essa perspectiva.
O estudo foi realizado no município de Carinhanha, situado no oeste baiano,
e teve como participantes quatro professores, selecionados mediante os seguintes
critérios: a) professores com vínculo efetivo; b) professores que lecionam com tur-
mas do 4º e do 5º ano do Ensino Fundamental; c) professores de duas escolas mu-
nicipais, sendo uma na zona urbana e a outra na rural. As fontes de produção de
dados consistiram em documentos curriculares (Projeto Político Pedagógico, planos
de ensino, projetos didáticos etc.), além de entrevista semiestruturada, realizada
com as quatro professoras que participaram do estudo.
Os dados obtidos por meio da análise dos documentos curriculares, produzidos
pelas professoras na escola, assim como, os oriundos das entrevistas, foram ava-
liados mediante Análise de Conteúdo. De acordo com Bardin (2011), a Análise de
Conteúdo é um aparato de instrumentos ressignificáveis, capaz de se reinventar
mesmo diante do tempo e das transformações sociais, políticas e culturais. Para
Olabuenaga e Ispizúa (1989 apud MORAES, 1999), a Análise de Conteúdo é uma
técnica de leitura interpretativa de toda classe de documentos, que, analisados
adequadamente, abrem as portas ao conhecimento de aspectos e particularidades
dos dados da vida social do outro, que, na maioria das vezes, são inacessíveis. Des-
se modo, essa técnica, na perspectiva qualitativa, parte de uma série de pressu-
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postos, os quais, no exame de um texto, servem de suporte para captar seu sentido
simbólico. No entanto, esse sentido nem sempre é manifesto e o seu significado não
é único, o que indica que este poderá ser compreendido em função de diferentes
perspectivas.
Planejamento e suas interfaces com a cultura popular: do planejado ao
vivenciado
Os diálogos sobre a prática pedagógica e o currículo têm se mostrado bastante
complexos. Desse modo, em meio aos acirramentos nos contextos social, político e
educacional, o professor torna-se um dos principias protagonistas no que diz res-
peito à sua compreensão sobre o currículo e à materialização deste em sua prática.
Partindo desse pressuposto, focaliza-se, na análise apresentada, o papel do profes-
sor, frente ao sentido que se lhes atribui, ao materializam o currículo em sala de
aula.
As narrativas das professoras foram semelhantes quanto ao trabalho com a
cultura popular. Para todas as entrevistadas, desenvolver atividades relaciona-
das à cultura popular tem sido muito desafiador. Foram relatos que caracterizam
dificuldades, seja pela falta de direcionamento dessa temática no currículo, pois
este pouco orienta o trabalho docente, seja por questões relacionadas à formação,
e, não menos importante, às cobranças insistentes por resultados e à centralidade
aos conteúdos. Frente aos relatos das professoras, abordar a cultura popular em
sala de aula exige iniciativa e resistência. Tal justificativa dá-se pelas restrições do
próprio currículo. Refutar, renunciar alguns dos muitos imperativos prescritivos,
exige muita ousadia na prática pedagógica. Portanto, relutar com as muitas orde-
nações curriculares exige do professor atitude e, ao mesmo tempo, leva-o a correr
riscos.
Assim, ao questionar as professoras sobre a materialização do currículo por
meio do planejamento e as mudanças que ocorrem nessa transposição, a professora
Júlia destaca:
São várias mudanças, desde nosso olhar ao exposto, até articularmos tudo aquilo em um
plano e, por fim, transformar em aula. Confesso que são muitas interpretações. Mas, às vezes,
estas mudanças nos custam muito caro, porque nem sempre as mudanças são bem-vindas
na escola. Somos orientados a cumprir fielmente a cartela dos conteúdos, e muitos dos guias
não trazem a cultura popular.
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Ao analisarmos essa narrativa, cabe considerar que, sem dúvidas, romper
com regras estabelecidas ou, até mesmo, criar outros procedimentos, os quais são
elencados como mais adequados e decisivos, tira o professor, em muitos casos, da
sua zona de conforto. Conforme observa Freire (2002), é na inquietação, na incom-
pletude, que nos tornamos criteriosos e exigentes. A atitude da professora mostra
seu compromisso com o aluno, demonstra também que a interpretação e reinter-
pretação do currículo são fomentadas por outras produções do conhecimento que
são extremamente importantes para a formação dos discentes; nesse sentido, em
muito dos casos: “O currículo recai em atividades escolares, o que não significa que
essas práticas sejam somente expressão das intenções e conteúdos do currículo”
(SACRISTÁN, 2000, p. 201).
É imperativo, nesse sentido, observar cuidadosamente as sutilezas dos esque-
mas utilizados para difundir as ideologias dominantes transmitidas pelo currículo.
Essa transmissão ocorre por vários veículos, desde a ausência de esquemas repre-
sentativos, até o livro didático, material comumente utilizado pelos professores e
alunos das escolas. E, nesses materiais didáticos está embutida uma linguagem
que, cotidianamente, vai materializando a ideologia e os interesses de grupos
sociais dominantes, com base apenas num fundamento social, político e cultural
(MOREIRA; SILVA, 2013).
Porém, algo também chama a atenção, quando a professora Julia expõe a vi-
gilância que é direcionada ao professor e à sua prática para abordar os conteúdos
prescritos no currículo. Mas, ainda na explicação da professora Júlia, entendemos
porque é tão difícil para os professores buscarem outros percursos pedagógicos.
Há uma política arraigada do copiar e colar. Digo isto porque falam de autonomia, mas nós
sabemos que a escola é um sistema, e este, por sua vez, é orientado por outros meios. Então,
nos últimos anos, a cobrança pelos conteúdos, resultados de avaliações [externas] ficam em
primeiro lugar. E, para chegar a estes resultados, há toda uma orientação. Então, nós, de certa
forma, somos monitorados. Se trabalhamos de outra forma, assumimos riscos. E é isto o que
acontece, nos arriscamos sempre (Professora Júlia).
Analisando a narrativa da professora Julia depreende-se que há uma gama
de exigências aos professores, sejam elas isoladas ou não, pelas quais o professor
está sempre acarretado e também sob o controle interno e externo a escola. As pon-
derações de Sacristán sobre as competências do professor na hora de interpretar o
currículo podem elucidar a narrativa de Júlia. Para Sacristán (2000, p. 204):
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O comportamento profissional destes [os professores] está muito mediatizado pela pres-
são em ter de atuar, constantemente, sendo exigidos pelas urgências de um ambiente que
requer que um grupo numeroso de alunos se mantenha ocupado, dando cumprimento às
exigências do currículo, às normas sociais da escola, etc.
Oportunamente, as reflexões de Sacristán (2000) denunciam com muita clare-
za as dificuldades vividas pelos professores, quanto à ideia de mobilizar o debate
sobre a cultura popular, em um campo marcado pelo controle técnico, legitimadas
pelas deliberações oficiais. Portanto, é preciso levar em conta o empenho, mas,
também, por onde as atitudes astuciosas dos professores percorrem para materia-
lizar ou reconfigurar as prescrições curriculares.
Diante disso, a professora Olívia explica de que forma são feitas essas reconfi-
gurações a partir do currículo. Enfaticamente, ao falar do Projeto Político Pedagó-
gico, a professora demonstra sua insatisfação ao relatar que as entrelinhas ocupam
um lugar incerto sobre a cultura popular. Grosso modo, ela tenta reordenar, reler o
currículo articulando o contexto da escola e da comunidade, mesmo que esse esteja
“vago” quanto aos repertórios dos saberes locais. Isso mostra que a professora,
mesmo sentindo falta de uma maior explanação da temática no currículo, busca
outros meios e possiblidades de inserção.
Entretanto, vale lembrar que no universo escolar, especificamente na sala de
aula, o professor tem seu posicionamento quanto aos conteúdos abordados no cur-
rículo, os quais são identificados e rotulados como satisfatórios para a aprendiza-
gem dos educandos. Contudo, cabe considerar que, assim, o currículo é produto de
relações e disputas, nas quais estão contidos valores e posicionamentos de muitos,
e o professor, por sua vez, também vem de um território no qual estão empregados
valores e condutas que ele, na condição de intelectual, constrói e adquire durante
sua trajetória social (APPLE, 2003).
Nesse sentido, podemos deduzir que esse profissional, ao interagir com o co-
tidiano da sala de aula, confabula situações, as quais o colocam diante de decisões
em que ele precisa optar, ou não, por abordar determinados conteúdos prescritos
no currículo. “Por isso, muitas das decisões que o professor tem de tomar aparecem
como instantâneas e intuitivas, mecanismos reflexos, e, por isso mesmo, é difícil,
se não impossível, buscar padrões para racionalizar a prática educativa enquanto
esta se realiza” (SACRISTÁN, 2000, p. 205).
Contudo, apesar dos embaraços, os professores conspiram, vão silenciosa-
mente reinterpretando, e os bloqueios vistos no currículo são confrontados com os
saberes adquiridos ao longo da docência. Por isso, as contribuições da experiência
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profissional nesses momentos fazem a grande diferença em sala de aula. O relato
da professora Olívia ratifica o que vem sendo discutindo. A professora reitera e
avalia que:
[...] as ações [voltadas à cultura popular], [...] no projeto, falam de comunidade e a escola
e vice-versa, [no entanto], vejo um tanto vago. Mas, pelas minhas experiências, organizo
um planejamento no qual costumo desenvolver estratégias de conhecer pontos, algumas
referências culturais da cidade. Vou à casa do Careta. Neste local, tem alguns registros
importantes que precisam ser explorados e podem contribuir com a proposta sinalizada no
Projeto Político Pedagógico. Também utilizo entrevistas com as pessoas da comunidade, dos
movimentos sociais, dos grupos artísticos, pois eles são produtos vivos e grandes produtores
[da cultura popular] (Professora Olívia).
Ao fazer referência à imprecisão do currículo, quanto à abordagem da cultura
popular, Olívia também aponta os modos como, apropriando-se de sua experiência,
modifica e implementa o planejamento curricular. Então, ao sinalizar os proble-
mas no Projeto Político Pedagógico, procura intercalar outras fontes interativas
para realizar atividades com os alunos. Desse modo, a professora demonstra certa
destreza para desenvolver as atividades propostas. Possivelmente, a maturidade
da profissão permite operacionalizar um leque de possiblidades que conduzem a
professora a fomentar, sempre que oportuno, outros trabalhos sobre a cultura po-
pular. E essa familiaridade marca seu modo de desenvolver o currículo, o que Frei-
re (2002) denominou eixos temáticos para trabalhar com as vivências das classes
populares. A professora Olívia ainda destaca:
Em meu plano de curso, trabalho por unidades, através das datas comemorativas. Eu sigo um
tema, por exemplo, agora mesmo trabalharemos com o aniversário da cidade, aí aproveito o
que pode ser implementado e ampliado sobre a cultura popular. As datas comemorativas são
os pontos de partida (Professora Olívia).
O fragmento reporta e potencializa o valor da experiência profissional. Por
meio dos saberes da experiência (TARDIF, 2002) o professor consegue produzir,
orientar e desenvolver outras atividades. Nesse contexto, a inferência que fazemos
é que a experiência adquirida possibilita ao professor refletir acerca dos efeitos
sobre o processo do ensino e aprendizagem, e, a depender da sua atuação, podem
potencializar a sua ação e a aprendizagem dos alunos, reconhecendo e valorizando
os seus saberes e das suas comunidades.
Assim, segundo Olívia, a partir da sua autocrítica, as atividades fomentadas
por ela não correspondem ao potencial cultural que o município possui. Para ela,
a cultura popular deve ter um destaque perante a cultura da escola. Mas, contra-
riando o desejo da professora, a escola ressalta por meio das práticas sutis a visi-
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bilidade da política do mercado, a qual é representada pela cultura de massa que,
como argumenta a professora, acaba secundarizando a cultura popular. De acordo
com Forquin (1993), é injustificável na realidade atual desconsiderar a diversidade
de identidades existentes na escola. A professora acrescenta:
[...] competir com este mercado, eu digo que é um dos grandes gargalos para nós, professo-
res. Buscar neste momento, no qual é evidente uma produção momentânea das coisas, onde
o que agora é, mais tarde já não é mais, representa um desafio e tanto. Mas, é também a
partir das nossas reflexões, do nosso tato pedagógico, que iremos selecionar ou, ao menos,
tentar inserir contextos de práticas sociais que possam contribuir com o processo da formação
humana de cada um dos nossos alunos (Professora Olívia).
Ao analisar essa narrativa percebemos uma possiblidade de diálogo com o pen-
samento de Certeau (2014). Ao perceber que o currículo está distante da realidade
sociocultural dos seus alunos, a professora, como diria o autor, utiliza “táticas”, no
intuito de encontrar outras itinerâncias. Nesse sentido, conforme assevera Certeau
(2014, p. 38), “O cotidiano se inventa com mil maneiras de caça não autorizada”.
Por meio do depoimento das professoras, é possível destacar que elas são as
principais interessadas na inclusão da cultura popular no currículo da escola. Em-
bora estejam presentes inúmeras situações contrárias, nos relatos de suas prá-
ticas pedagógicas demonstram o comprometimento com os saberes locais. Logo,
pela maneira como tratam a cultura popular, a forma como reconhecem e tentam
estabelecer interface entre o conhecimento popular e os conteúdos programáticos, é
possível perceber um pequeno hiato, um rompimento com a sequência hierárquica
do ensino, contudo, suas práticas vêm sugestionando os saberes “híbridos” (BHA-
BHA, 1998).
Desse modo, as bricolagens
2
(CERTEAU, 2014) das professoras denunciam
também que o currículo não explicita possibilidades de abordar os elementos cul-
turais, sobretudo aqueles relacionados à cultura popular. Isso, de sobremaneira,
sobrecarrega o professor, pois ele tem que buscar modos “de caça não autorizada”,
como afirma Certeau (2014), para reconfigurar o currículo, buscando lacunas e
oportunidades que o permita transgredir. A professora Olívia, por exemplo, reforça
que, nessa luta, em que estão em jogo algumas prioridades, os professores acabam
quase solitários.
O Projeto Político Pedagógico não é um documento de muita clareza. Quero dizer com isto que
não há explanação sobre a cultura popular. E, por isso, é que, enquanto professora, vou com
as minhas ideias encaixando algumas coisas que acho interessante falar. Às vezes, penso até
que, se não estou errada em fazer isto, mas vou remando contra a maré.
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Ao expressar “vou com as minhas ideias encaixando algumas coisas que acho
interessante falar”, a professora, certamente, numa ação calculada, vai imprimindo
suas marcas em um território “vigiado”. Apesar do cuidado de não burlar as temi-
das imposições, a professora, em suas táticas sutis (CERTEAU, 2014), reelabora as
prescrições. As produções realizadas pela professora assentam-se no que Certeau
assinala como piratarias ou clandestinidade. “As ideias encaixadas” no currículo
podem ser interpretadas de duas maneiras: a primeira é a de que currículo, por
ocasião, é um produto de imposições, e a segunda é a de que, é a partir dessas
imposições que os professores, astuciosamente, vão reinventando o cotidiano, em
que o prescrito, no campo das práticas, os professores, astuciosamente, subvertem
e reescrevem outras histórias.
No entanto, mesmo com intenções produtivas, os professores sentem-se culpa-
dos por algumas transgressões curriculares. Ainda que, pedagógica e didaticamen-
te, as atividades não apareçam soltas, o poder que o currículo e a cultura escolar
têm de cercear as suas práticas, deixa-os constrangidos.
Parece que o currículo tenta preparar os alunos apenas para o mercado de trabalho, instru-
mentalizá-los, esta é a palavra. E nós professores é que vamos, dentro das possiblidades,
construindo este diálogo mais reflexivo sobre todos estes desafios que envolvem a sociedade
(Professora Olívia).
Nesse sentido, a escola admite as interferências do mercado na manipulação
da informação no incentivo ao consumo e ao imediatismo. Estes são pontos fortes
de discussões em que, de um lado, temos uma cultura do consumo, da alienação,
e, de outro, busca-se, talvez, repensar as ações enquanto sujeitos de direitos e de-
veres. Apresentar situações de ensino fundamentadas nos contextos socioculturais
dos alunos, também é uma forma de resistência às imposições que chegam à escola.
Assim, Moreira e Silva (2013) denunciam que o currículo oficial ainda oferece
“perigo” quanto às reproduções das forças dominantes, e, nesse sentido, os autores
pontuam que a grande tarefa dos professores é, justamente, analisar esses itens
com vistas a uma política que permita o combate às forças que norteiam o currícu-
lo, dificultando outras visões de mundo. Para os autores, essa vigilância ajudará os
professores a visualizar panoramicamente o currículo, tornando-o campo cultural
de construção e produção de sentido, terreno da luta pela transformação das rela-
ções de poder.
Entre os vários pontos que demandam o currículo, algo é primordial ao profes-
sor: ser vigilante e reflexivo acerca dos contextos educacionais, sociais e políticos,
nos quais os alunos estão imersos. Desse modo, é importante ter presente o dis-
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cernimento para selecionar contribuições que, associadas ao processo de ensino e
aprendizagem, melhor ofereçam aos alunos a oportunidade de conviver e pertencer
a suas culturas. Diante dessas considerações, a professora Sizaltina acrescenta
que:
Em muitas datas, não dá para encaixar a cultura popular, mas, em muitos outros conteúdos,
aparecem oportunidades. Aí, às vezes, eu trabalho falando da cultura popular que nem eu
mesma percebo. Preferencialmente, são os conteúdos, mas, se tiver uma oportunidade, como
já disse, faço algumas atividades.
Cabe considerar, mediante relato da professora, que é pertinente avaliar como
os professores utilizam o lugar que ocupam para resistir, transgredir e, enfim, pro-
mover os desdobramentos em relação à materialização do currículo. Assim, muitos
professores criticam as imposições curriculares que chegam até eles, destacando a
inadequação à realidade dos educandos, o que leva alguns a resistirem a essas for-
mas padronizadas do conhecimento. Dessa forma, as astúcias (CERTEAU, 2014)
utilizadas pelos professores passam a ser as grandes aliadas na hora de operacio-
nalizar o currículo. Os modos pelos quais os professores enfrentam as imposições
curriculares são diversos; suas ações são observadas desde a não execução até a
criação de táticas (CERTEAU, 2014) produzidas para abordar o conteúdo.
Discutir esses pressupostos que estão ligados direta ou indiretamente à práti-
ca pedagógica é avançar e reconhecer que o professor, no processo da escolarização,
é mais do que um mero receptor e executor dos programas escolares. Ele, se, por
um lado, operacionaliza as prescrições, por outro, resiste a elas, modifica-as para
atender a situações reais de ensino e às necessidades formativas de seus alunos.
A professora Olívia, ao descrever sua prática, destacou o modo como articula os
conteúdos curriculares com os elementos da cultura popular.
[...] se eu estiver trabalhando com língua portuguesa – produção textual – gosto muito de inse-
rir o cordel, parlendas, cantiga de roda, trava-língua, e isto tem dado muito resultado. Quando
trabalho com história, procuro abordar os costumes da comunidade, por exemplo. Quando
trabalhei o texto “bonecas”, relatamos sobre as produções, como era feita na região, como
se brincava, [problematizando], quem não tinha acesso às bonecas produzidas na indústria,
brincava com quais tipos de bonecas? Vou inserindo questionamentos que direcionam para as
práticas da cultura popular. Também trabalhamos as questões raciais, e o fio condutor é a cul-
tura popular. Eu mexo muito com a cultura desses meninos, acho importante falar sobre isto.
Acho muito importante falar sobre as preciosidades que revelam muito sobre nossa história.
O depoimento da professora Olívia, de certo modo, demonstra que, perante
as imposições curriculares, ela tem articulado, astuciosamente (CERTEAU, 2014),
os conteúdos disciplinares das séries em que leciona com os elementos da cultura
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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popular local, incorporando, inclusive, um olhar crítico no que se refere ao acesso a
bens materiais, questões raciais, valorizando a cultura enquanto identidade. Des-
tarte, Forquin (1993, p. 9), ao analisar os conteúdos a serem ensinados na escola,
destaca que
[...] toda crítica envolvendo a verdadeira natureza dos conteúdos ensinados, sua pertinên-
cia, sua consistência, sua utilidade, seu interesse, seu valor educativo ou cultural, constitui
para os professores um motivo privilegiado de inquieta reação ou dolorosa consciência.
Nesse sentido, regido pelas escolhas que realiza no processo educativo, o pro-
fessor é um mediador fundamental, no entanto, lhe cabe também ter parâmetros
e critérios para suas escolhas e decisões. Forquin (1993) busca esse ponto de con-
fronto entre os conteúdos a serem ensinados e o processo educativo. Assim, o autor
considera importante a problematização e a reflexão sobre as questões culturais
e as escolhas educativas. Ao relatar sobre as adversidades que atravessam o tra-
balho docente, a professora Raimunda destaca o quanto, algumas vezes, é tomada
pelo desânimo, por insistir com a abordagem da cultura no currículo escolar.
Tem horas que, sinceramente, penso em desistir. Falo assim: se o currículo tem dificuldade de
viabilizar este compromisso, por que eu, que já tenho tanto trabalho, vou insistir em algo que
muitos não estão nem aí? Mas volto atrás e, às vezes, conversando com minhas colegas que
me dão força para não deixar de lado. É assim mesmo, a gente fala as coisas no calor, mas é
porque também não tem muito incentivo.
Considerando o esforço das professoras, mais uma vez, reconhece-se e ressal-
ta-se que elas, por meio da atividade docente, são persistentes, mesmo quando o
território é regido por regras educativas que conspiram contra sua atuação; e, nesse
caso, Certeau (2014) argumenta que os sujeitos podem, em determinado momento,
ter a chance de problematizar, barulhar a ordem dominante, dar golpes, e, onde a
situação parecia inabalável e homogênea, as criatividades das práticas cotidianas,
revertem situações dominadoras, em situações favoráveis. Em consonância com
esse argumento, Sacristán (2000) avalia a atuação do professor frente às decisões
políticas e pedagógicas e defende que esses profissionais, por meio de sua prática,
reinterpretam tanto o currículo quanto as situações que os colocam em desafios.
[...] na hora de materializar este currículo são postos os desafios. Primeiro que o ponto forte
são os conteúdos, e aí vêm as datas. Se eu fosse pegar ao pé da letra o que diz o currículo
sobre a cultura popular, vou ser sincera, não trabalharia. Mas eu puxo algo daqui, puxo algo
dali e surge muita coisa. Mas, alerto que, na prática, estou devendo, porque, no geral, são
atividades ainda muito pontuais (Professora Raimunda).
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Narrativas como essa permitem considerar que os professores caminham na
produção de novas epistemologias, embora, em muitos casos, não tenham consciên-
cia disso. Subvertem o currículo, imprimindo elementos pedagógicos para inserção
de temáticas que julgam pertinentes serem abordadas com seus alunos. Numa
primeira instância, as professoras reconhecem o que está previamente estabelecido
no Projeto Político Pedagógico, no entanto, asseguram que no plano de curso, ao
planejarem, articulam e incorporam os elementos da cultura popular apontados
pontualmente nos documentos curriculares.
Eu acho que a maior discussão realmente acontece em sala de aula por meio do que eu sina-
lizo no plano de curso a partir de rodas de conversas, leituras, questionamentos e produções.
Isto depende muito dos conteúdos expostos no PPP, porque seguimos as orientações. Mas o
plano de aula é que apresenta esta temática. Nosso instrumento seguro para esta parte mais
efetiva realmente é o plano de aula (Professora Olívia).
Fundamentadas no Projeto Político Pedagógico, as professoras, de modo as-
tucioso, criam táticas (CERTEAU, 2014) para articular o prescrito e o emergente
(cultura popular), traçando novas configurações curriculares. Ciente desses feitos
é que as professoras, a despeito das imposições curriculares, ainda se sentem ins-
piradas para implementar sua prática e, consequentemente, melhorar o ensino.
Portanto, fica claro que o ato de educar e suas implicações não se prendem ao
exercício mecânico, muito menos, a uma atividade que se reduz ao treinamento.
Porque, assim como Candau (2016, p. 807) assevera:
Não acreditamos na padronização, em currículos únicos e engessados e perspectivas que
reduzem o direito à educação a resultados uniformes. Acreditamos no potencial dos educa-
dores para construir propostas educativas coletivas e plurais. É tempo de inovar, atrever-se a
realizar experiências pedagógicas a partir de paradigmas educacionais “outros”, mobilizar as
comunidades educativas na construção de projetos político-pedagógicos relevantes para cada
contexto. Nesse horizonte, a perspectiva intercultural pode oferecer contribuições especial-
mente relevantes.
Os relatos apontam que as professoras não concorrem com o Projeto Político
Pedagógico, pelo contrário, dentro de um espaço vigiado, criam táticas (CERTEAU,
2014) nos interstícios, nas frestas do planejamento para abordar a cultura popular
em suas aulas. A professora Sizaltina ressalta:
[...] muitas vezes nos valemos das nossas insistências, do nosso plano de aula. [...] nesse
sentido, o professor todos os dias faz enfrentamentos com ele mesmo por desafiar os limites
da sua prática, e isto envolve uma série de fatores, desde a mediação entre o Projeto Político
Pedagógico e o plano de sala de aula, até intermediar a recepção dos alunos quanto ao que
é ensinado e também do seu desejo.
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Mediante as narrativas que compuseram esta análise, vale ressaltar os “mo-
dos de fazer” (CARMO, 2013) produzidos pelas professoras para imprimir no currí-
culo os aspectos da cultura que as aproximavam da realidade sociocultural de seus
alunos. De certo modo, elas reconhecem que a prática pedagógica é o fio condutor
entre as prescrições curriculares e as suas intenções pedagógicas na sala de aula. É
nessa prática que arquitetam, constroem e executam as diversas atividades, a fim
de associar a cultura popular com os conteúdos propostos no currículo.
Considerações nais
A intenção deste trabalho consistiu em compreender como a cultura popular
é abordada nos documentos curriculares e nas narrativas de professores ao fala-
rem sobre sua prática pedagógica. Assim, foi possível observar que as professoras
no desenvolvimento do currículo utilizam astúcias e modos sutis para abordar a
cultura popular em suas aulas, desencadeando um processo de criação e invenção
na prática. Desse modo, investigar como elas produzem essas inventividades para
driblar as prescrições que chegam à escola, é ouvir as vozes silenciadas no currículo
praticado. Afinal, os documentos curriculares investigados, sobretudo, os Projetos
Políticos Pedagógicos das escolas, demonstram que a cultura popular tem sido se-
cundarizada.
Entretanto, as narrativas das professoras que participaram do estudo demons-
tram também que ao planejarem suas aulas, introduzem dispositivos didáticos que
permitem gerar discussões sobre a cultura popular e implantam ações como, visitas
a pontos da cidade que são referências, entrevistas com representantes da cultura
local etc., para que a temática não fique nas margens do currículo desenvolvido na
escola. Desse modo, construir epistemologias a partir da escuta desses profissio-
nais quanto à materialização do currículo, permite conhecer aspectos do currículo
que a análise documental, tão somente, não permitiria.
Assim, as nuances que envolvem a cultura popular, os documentos exami-
nados e a prática pedagógica configuram-se um território de disputas. Embora a
cultura popular esteja marginalizada nos documentos oficiais, há iniciativas no
interior das salas de aulas, as quais, por forças das precisões, muitas vezes, são
silenciadas, exigindo que as professoras rompam com seus próprios medos, inse-
guranças e constrangimentos para fugirem da retórica de que os conteúdos pro-
gramáticos devem ser cumpridos. Desse modo, as inventividades das professoras
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constituem demarcações que, cotidianamente, revelam seus esforços para que a
cultura popular ocupe lugar no currículo.
Nesse sentido, por trás da aparente calmaria das escolas, há um território de
contestação e criação, muitas vezes silenciado pelos discursos retóricos da cultura
de massa que reforçam a hegemonia e secundarizam a diferença. Assim, torna-se
imprescindível o desenvolvimento de pesquisas que adentrem o interior das esco-
las para falar com ela, ouvindo os relatos dos professores, alunos, gestores e fun-
cionários, pois, somente eles poderão revelar as nuances do currículo desenvolvido
que não aparecem nos documentos.
Notas
1
Cabe considerar que o conceito de narrativa que adotamos nesse texto não se filia à perspectiva que a
utiliza como dispositivo de produção de dados, mas, num entendimento lato sensu.
2
Certeau (2014) utilizou a noção de bricolagem para denominar o algo novo resultante da união de vários
elementos culturais.
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