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Diego Bruno Velasco*, Ana Angelita Costa Neves da Rocha
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A metáfora, o Enem e a democracia
The metaphor, Enem and democracy
Metáfora, Enem y democracia
Diego Bruno Velasco
*
Ana Angelita Costa Neves da Rocha
**
Resumo
O presente trabalho buscou problematizar os sentidos de democracia nas edições do Exame Nacional do Ensi-
no Médio (Enem). O objetivo deste trabalho se insere no atual contexto educacional e político do país, em que
as garantias dos direitos civis estão ameaçadas e em que consideramos necessário, na posição de docentes da
Educação Básica e do Ensino Superior, discutir as disputas pela signicação/validação da categoria democracia
dentro de uma política curricular nacional avaliativa de acesso aos cursos de graduação. A fundamentação teó-
rica se construiu no intenso debate entre a teoria do discurso e a teoria política, a partir de Ernesto Laclau e seus
interlocutores. O procedimento metodológico de análise dos itens do Enem observou a estrutura e a proposta
de gabarito da questão, indicando como as signicações de democracia possibilitaram ou não produções de
subjetividades ativas. Em linhas gerais, nossas reexões foram construídas a partir dos discursos produzidos
sobre a categoria democracia dentro das questões referentes ao tema da Ditadura Civil-Militar (1964-1985) nas
edições de 2009 até 2017. A hipótese inicial deste trabalho observou que a democracia é uma potente metá-
fora para conjugar conteúdos voltados para formação cidadã, ainda pouco explorada pelo exame. Em termos
de conclusão, destacamos que o conceito de democracia cou mais restrito a uma concepção tradicional de
direito ao voto, mobilizando poucos outros sentidos. Ao mesmo tempo, constatamos que o Enem reforçou a
produção de discursos que tenderam a antagonizar o período da Ditadura Civil-Militar com o período da história
política do país que se inicia em 1985, apresentando poucos eixos conectivos entre tais momentos históricos.
Palavras-chave: Democracia. Enem. Metáfora. Ditadura Militar.
*
Mestrado e doutorado em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atua como professor de História no
Colégio de Aplicação da UFRJ. Concentra os estudos nas áreas do Currículo e Ensino de História da Educação Básica,
analisando livros didáticos, propostas curriculares, provas, entrevistas com prossionais do magistério, dentre outros.
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1531-1595. E-mail: profdivelasco97@gmail.com
**
Mestrado e doutorado em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; pós-doutorado em Geograa pela
Universidade Federal Fluminense; Professora (Adjunto IV) do Departamento de Didática da Faculdade de Educação na
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-8142-0119. E-mail: geo.ana.angelita@gmail.
com
Recebido em 28/03/2020 – Aprovado em 05/10/2020
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i3.12385
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Abstract
The present work seeks to problematize the meanings of democracy in the editions of the National High School
Exam (Enem). The objective of this work is inserted in the current educational and political context of the cou-
ntry, in which the guarantees of civil rights are threatened and in which we consider it necessary, in the posi-
tion of teachers of Basic Education and Higher Education, to discuss the disputes for the meaning / validation
of democracy” category within a national curriculum policy evaluating access to undergraduate courses. The
theoretical foundation was built on the intense debate between the theory of discourse and political theory,
from Ernesto Laclau and his interlocutors. The methodological procedure for the analysis of the items of the
Enem observed the structure and the proposal for feedback on the question, indicating how the meanings of
democracy enabled or not enabled the production of active subjectivities. In general, our reections were
built from the speeches produced on the category democracy within the issues related to the theme of the
Civil-Military Dictatorship (1964-1985) in the 2009 to 2017 editions. The initial hypothesis of this work observed
that the Democracy is a powerful metaphor for combining content aimed at citizenship formation, still little ex-
plored by the exam. In terms of conclusion, we highlight that the concept of democracy was more restricted to
a traditional conception of the right to vote, mobilizing few other senses. At the same time, we found that Enem
reinforced the production of speeches that tended to antagonize the period of the Civil-Military Dictatorship
with the period of the countrys political history that began in 1985, presenting few connective axes between
such historical moments.
Keywords: Democracy. Enem. Metaphor. Military Dictatorship.
Resumen
El presente trabajo busca problematizar los signicados de democracia” en las ediciones del Examen Nacional
de Bachillerato (Enem). El objetivo de este trabajo se inserta en el contexto educativo y político actual del país,
en el que se ven amenazadas las garantías de los derechos civiles y en el que consideramos necesario, como
docentes de Educación Básica y Superior, discutir las disputas por el signicado/validación de la categoría de
democracia dentro de una política curricular nacional que evalúa el acceso a los cursos de pregrado. El funda-
mento teórico se construye sobre el intenso debate entre la teoría del discurso y la teoría política, de Ernesto
Laclau y sus interlocutores. El procedimiento metodológico para el análisis de los ítems del Enem observó la es-
tructura y la propuesta de retroalimentación de las preguntas de este examen, indicando cómo los signicados
de democracia posibilitaron o no la producción de subjetividades activas. En general, nuestras reexiones se
construyeron a partir de los discursos producidos sobre la categoría democracia dentro de los temas relacio-
nados con el tema de la Dictadura Cívico-Militar (1964-1985) en las ediciones de 2009 a 2017. La hipótesis inicial
de este trabajo observó que la democracia es una poderosa metáfora para combinar contenidos destinados a la
educación ciudadana, aún poco explorada por el examen. A modo de conclusión, destacamos que el concepto
de democracia estaba más restringido a una concepción tradicional del derecho al voto, movilizando pocos
otros sentidos. Al mismo tiempo, encontramos que el Enem reforzó la producción de discursos que tendieron a
antagonizar el período de la Dictadura Civil-Militar con el período de la historia política del país que comenzó en
1985, presentando pocos ejes conectivos entre tales momentos históricos.
Palabras clave: democracia. Enem. Metáfora. Dictadura militar.
Introdução
As linhas abaixo resultam do exercício de compreensão da teoria do discurso
e suas contribuições para investigar como os sentidos de democracia são validados
em um Exame aplicado anualmente para milhares de jovens brasileiros egressos
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da Educação Básica. De fato, cabe narrar as nossas aproximações com certas dis-
cussões em torno do discurso e suas repercussões para o desenvolvimento do pre-
sente estudo
, considerando a atual contingência política que ameaça a experiência
democrática no país. Logo, com as vias de expressão democráticas interrompidas, é
conveniente enfrentar como materiais pedagógicos, nos últimos anos, significaram
as garantias dos direitos civis. O recorte do presente estudo é problematizar os
sentidos de democracia no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), analisando
os itens produzidos entre as edições de 2009 a 2017.
A argumentação é desenvolvida em três seções. Na primeira, intitulada “Da
metáfora da Democracia ao Exame da metáfora”, desenvolvemos uma discussão
teórica com autores como Laclau e Mouffe destacando, em termos gerais, as poten-
cialidades de trabalharmos em diálogo com as teorizações do discurso e, de modo
mais específico, enfatizando a pertinência de analisarmos a temática da Democra-
cia sob o prisma da categoria “metáfora”.
Na segunda seção, denominada “Os sentidos de Democracia em disputa nos
itens do Enem: Análise Empírica a partir do diálogo com a temática da Ditadura
Militar”, mobilizamos discussões pertinentes para a área do Ensino das Ciências
Humanas como os debates em torno dos usos públicos da História, do chamado
“dever de memória” e do ensino de temas históricos sensíveis, justificando nosso re-
corte em analisar os itens voltados para o período histórico da chamada “Ditadura
Militar” (1964-1985) para refletir sobre os significados de Democracia em disputa.
Por fim, na terceira seção, nomeada “As ‘verdades’ em disputa sobre a Ditadura
Militar e Democracia nos itens do Enem (2009-2017), nossa proposta é desenvolver
uma análise empírica dos itens selecionados, apresentando os sentidos de Democracia
e Ditadura hegemonizados bem como destacando as relações entre as dimensões tem
-
porais do presente e do passado que aparecem em nosso campo discursivo de análise.
Em termos de procedimentos metodológicos para análise dos itens, destacamos
que esta investigação foi desenvolvida mediante uma análise discursiva dos itens a
partir da postura epistêmica a qual se filia este artigo, a teorização pós-fundacional
do discurso. Como este referencial não se encontra preso a uma estratégia meto-
dológica específica, adotamos o procedimento de analisar os discursos produzidos
sobre os itens referentes à Ditadura Militar durante as edições de 2009 até 2017.
Como compreendemos o Enem como um espaço curricular que opera com senti-
dos de “verdades históricas” e “não-verdades históricas” por ser um exame no formato
de múltipla escolha e que, por esse motivo, admite apenas uma alternativa conside
-
rada certa, a análise discursiva se deu a partir da reflexão em torno das formas que
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apareceu a ideia de “democracia” nas respostas consideradas corretas (nomeadas pelo
INEP de gabarito) e naquelas consideradas incorretas (denominadas de distratores).
É neste caminho que destacamos que a presente investigação consistirá em
apresentar os discursos majoritariamente mobilizados para a temática seleciona-
da, procurando avaliar as memórias que constantemente são legitimadas e fixadas,
as memórias que se negligenciam e marginalizam as narrativas que são validadas
porque operam no domínio do verdadeiro.
O pressuposto deste artigo envolve o Enem como política curricular que valida
sentidos de democracia na conclusão da Educação Básica. No desenvolvimento das
reflexões a partir dos itens do Enem, não por acaso, trabalhamos com a hipótese de
que o “dever de memória” é uma operação política, que coordena uma equivalência
de disputas sobre os silenciamentos de certos sentidos de democracia, no momento
de formação das gerações futuras.
Em função da importância do discurso, não como mero objeto, ou reflexo da
linguagem, ao discurso, mas como teoria política, convém discutir os regimes de
validação dos saberes a serem ensinados e aprendidos como Democracia, o que
impacta numa aprendizagem do campo da significação da cidadania e da justiça
social, categorias essas que nos são incontornáveis para a pensar a sociedade bra-
sileira nestas primeiras décadas do século XXI.
Da metáfora da Democracia ao Exame da metáfora
Neste texto, cabe questionar, sobretudo, se o Enem repercute a distribuição
desigual do poder, quando se trata dos conteúdos que envolvem a experiência po-
lítica. Sem dúvida, esta suspeita é tributária do acúmulo de discussões do campo
do currículo, pois, desde meados dos anos 1990, tal campo vem sendo influenciado
pelos debates sobre cultura e poder e pelo emprego da categoria discurso.
Em resumo, a triangulação cultura-poder-discurso esteve na esteira da con-
testação dos modelos explicativos que poderiam ser classificados como essencialis-
tas. A interpretação dos saberes escolares depende de perspectivas que recusam a
neutralidade da seleção curricular e que sejam a favor de compreendê-la como pro-
cesso simbólico profundamente complexo e instável, perspectiva que, por sua vez,
favoreceu (como ainda favorece) a adoção do discurso como categoria privilegiada.
De modo que, apostamos numa inflexão para a composição teórica que associasse a
potência do debate da linguagem com a questão perene no campo do currículo e da
didática – isto é, o conhecimento escolar.
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Dessa forma, a discussão de discurso verticaliza seu potencial nas ciências polí-
ticas, com o fim de problematizar o “verdadeiro”: os regimes que disputam o signifi-
cado de Democracia no Enem. Diante desse argumento, é possível problematizar se
tal assertiva seria uma resposta teórica-metodológica para interpretar o político nos
sistemas de validação de saberes (GABRIEL; COSTA, 2010; GABRIEL, 2011, 2017).
No desenho teórico que considera o discurso como constituinte do social, como
ontológico do político (LACLAU; MOUFFE, 2005), abre-se uma pista teórica fecunda
para uma compreensão de que em textos educacionais, como o Enem, há uma von-
tade de verdade sobre modelo explicativo que impacta na forma como significamos a
“Democracia”. Para nossa argumentação, nos parece oportuno o pressuposto de que o
discurso é uma categoria ontológica. Por esta razão, assumimos aqui a diferenciação
entre teoria do discurso e análise do discurso, formulada por Howarth (2005, p. 10):
Como primeiro uso, o discurso é uma categoria ontológica que especifica o entrelaçamento
de palavras e ações nas práticas; a contingência de toda identidade, a primazia da po-
lítica, e etc. Enquanto o segundo uso do discurso pode ser entendido como um conjunto
de representações simbólicas e práticas incorporadas em uma série de textos, discursos e
seqüências de significados.
Ao projetar a diferenciação entre teoria do discurso e análise do discurso, Ho-
warth (2005) apresenta não somente a categoria discurso, mas oferece ao leitor que
tal distinção está fincada no plano epistemológico. Em suma, o autor reconhece que
se trata de distintos terrenos reflexivos para orientar a compreensão da luta por
significação. Seguindo essa ordem de ideias, suspeitamos de que há disputas em
torno do significar a Democracia no Enem, e, por conseguinte, asseveramos que a
teoria do (D)iscurso permite explorar o “controle” em textos curriculares, como a
própria manifestação do político e não somente seu reflexo.
Como mencionados acima, os diálogos com os pensamentos de Laclau e Mouf-
fe sobre a experiência democrática estão presentes em artigos e investigações do
campo do currículo, como uma estratégia de sinalizar uma leitura mais complexa
das relações de poder, especialmente, nas discussões que se preocupam com as po-
líticas de currículo e com as relações políticas na validação do conhecimento escolar
(GABRIEL, 2017).
Aqui, nos referenciamos nas expressões “operação metonímica” e “totalização
metafórica”, desenvolvidas por Laclau no texto intitulado “Política de la retórica”
(2000), pois ensaiaremos aqui um exercício de análise do Enem, buscando subli-
nhar as operações metonímicas que garantem identificações políticas em torno do
significado de Democracia.
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Esse exercício, a nosso ver, pode mobilizar interpretações sobre os movimen-
tos paradoxais constituintes de políticas de avaliação, como a do Enem. Em resu-
mo, tendo por base que a operação metonímica é uma operação do particular que
se solidariza com outros particulares na ambição de uma significação universal,
poderíamos experimentar reflexões sobre os processos de consolidação do Enem,
incorporando a ideia da contradição como estruturante da “totalização metafórica”.
Como o Enem é uma prova múltipla escolha, onde cada item é composto por
cinco alternativas, entendemos que cada questão mobiliza fluxos de sentidos de
verdade. Em outras palavras, cada assertiva é plausível e aspira “um valor de
verdade”, aspira “uma totalização metafórica”. Nesse caso, o que está estabelecido
provisoriamente na posição de “verdadeiro” corresponde àquela alternativa consi-
derada certa, ou seja, o gabarito segundo a terminologia do Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) enquanto o que se fixa /
entende como “não verdadeiro” equivale às respostas consideradas “falsas” ou “er-
radas” (também conhecidas como distratores, segundo terminologia adotada pelo
Inep para este exame).
Em uma política curricular, como o Enem, o considerado “certo” só pode se
constituir/afirmar discursivamente a partir da sua cadeia antagônica, que, no caso,
é o conjunto de afirmativas incorretas produzidas em cada um de seus itens. Assim
sendo, as disputas por significações hegemônicas mobilizam processos epistêmicos
de fechamentos/totalizações discursivas, que segundo a terminologia laclauniana,
são processos contingentes, visto que cada verdade histórica se constitui de acordo
com as demandas de seu tempo presente não podendo ser estabelecida fora dos
jogos políticos de fixação de sentidos. Por Tempo Presente, consideramos a relação,
instituída dentro de cada sociedade em seu presente vivido, entre campo de expe-
riência (passado) e horizonte de expectativa (futuro) estabelecida por autores como
Koselleck (2006).
Nessa perspectiva, dialogamos novamente Howarth (2005, p. 13), quando afir-
ma que:
Como contra abordagens mais tradicionais das ciências sociais, como o positivismo, o realis-
mo, e certas concepções do materialismo, os teóricos do discurso consideram a existência de
retórica como um aspecto constitutivo da realidade social, e sua análise teórica e empírica
como uma parte essencial para entender e explicar os fenômenos sociais.
A afirmação supracitada sugere que a abordagem dos teóricos do discurso não
se limita ao terreno explicativo da análise do texto, como referência retórica, mas
também a compõe substantivamente com a finalidade da interpretação do fenôme-
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no social. Para tanto, o autor se dedica a sublinhar a estreita relação entre retórica
e análise política, procurando repercutir a metáfora.
Sob a perspectiva da teoria do discurso, não seria injustificado o emprego da
retórica para a compreensão do fenômeno político, o que evidencia a potencialidade
de incorporar a interpretação da metáfora como sistematização política, conside-
rando a exploração textual. Ainda em “Hegemonia e Estratégia Socialista”, Laclau
e Mouffe (2005, p. 150) afirmaram que sua (proposta da) concepção da democracia
radical depende da centralidade do discurso somado à recusa da dicotomia “pensa-
mento/realidade”, voltado principalmente para expansão de categorias para “dar
conta das relações sociais”.
Para Laclau (2009, p. 86), o jogo metonímico, ou operação metonímica, é condi-
ção de possibilidade de produzir um corte antagônico, a fronteira interna que per-
mite “o povo”. Com essa argumentação, ele define a hegemonia como totalização
metafórica, isto é, as operações metonímicas (entre as unidades políticas chamadas
de demanda) vão na direção de uma significação universal, chamada por ele, naquele
texto, de “totalização metafórica”. Ou seja, antes de ser tendência à totalização me
-
tafórica, a hegemonia começa por ser “sempre metonímica” (LACLAU, 2000, p. 74).
O desafio da metáfora é ser uma operação política, que apaga a fronteira da
significação ou da fixação de sentidos. De forma que sua compreensão, partindo
do terreno da teoria laclauniana, depende do entendimento da lógica hegemôni-
ca, como ponto máximo da própria metaforização. O desafio da metáfora também
está na análise da superfície textual (no material empírico, eleito neste exercício,
como os itens do Enem). O desafio da metáfora consiste, antes de mais nada, em
compreendê-la como quadro animado por Laclau para dar inteligibilidade ao movi-
mento da luta hegemônica.
Por essa razão, avaliamos que é oportuno nos dedicarmos a explorar o enten-
dimento e o papel da metáfora nos escritos de Laclau. No ensaio Articulação e os
limites da metáfora (2010), a hegemonia é significada como a própria passagem da
metonímia para a metáfora, de um ponto de partida “contínuo” para a sua conso-
lidação (ou sedimentação) como analogia. Ou seja, hegemonia pode ser lida com a
equivalência convertida em universal.
Howarth (2008, p. 321) interpreta a proposta de prática hegemônica laclau-
niana a partir do deslocamento do conjunto de reivindicações de um “lugar social a
outro”, movimento que é iniciado por uma relação de contiguidade em que se aspira à
substituição (metaforização). Com a expressão “aspiração”, Howarth define o projeto
hegemônico, sendo a “estabilização do sistema de sentidos”, o ideal de toda metáfora.
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A criação da solidariedade entre demandas (como operação metonímica) dese-
ja envolver o sentido (novo) de totalidade. Nossa suspeita é que há narrativas (on-
tológicas, como desenvolveremos a frente) que se comportam como tal totalidade
metafórica, ao produzir o sentido de democracia, a partir de um “dever de memória”
(KALLÁS, 2017). Ao mesmo tempo, tais metáforas podem interditar sentidos ou-
tros de democracia que operam no jogo político para formação de gerações futuras.
Não por acaso, temos a aposta que o “dever de memória” é uma operação polí-
tica, que coordena uma equivalência de disputa sobre os silenciamentos. Em outras
palavras, nossa suspeita propõe a problematização do chamado “dever de memó-
ria” como prática hegemônica. Com base nesta argumentação, sublinhamos que a
definição de Democracia pode ser percebida como operação metonímica que, por
vezes, comporta-se como totalidade metafórica.
Na seção a seguir, nos inspiramos nesta interlocução para identificar como
os conteúdos do Enem “flutuam” para sistematizar operações que antagonizam
a Democracia. Considerando as contingências das políticas educacionais, em que
grupos neoconservadores buscam um revisionismo curricular dos conteúdos das
ciências humanas, é oportuno exercitar uma chave de interpretação que tencione
a relação entre temáticas do conhecimento escolar para validar a democracia como
conteúdo do Enem.
Os sentidos de Democracia em disputa nos itens do Enem: uma reexão sobre a
temática da Ditadura Militar em diálogo com a questão do ensino dos temas sensíveis
Em diálogo com a teoria do discurso, reiteramos que o presente artigo parte
do pressuposto de que os processos de hegemonização de sentidos no Enem mobili-
zam, selecionam e dialogam com os conteúdos escolares. Do mesmo modo, trata-se
de uma política curricular que autoriza e, principalmente, hegemoniza certos sa-
beres, certas memórias, determinadas verdades históricas por meio da fixação de
alguns discursos em detrimento de outros.
Os sentidos de “verdade” mobilizados na prova do Enem, ao mesmo tempo em
que articulam determinadas demandas para formar discursos hegemônicos ou uni-
versais, operam também na pauta dos antagonismos, uma vez que o significante
“verdade” para se hegemonizar necessita de um “outro”, antagônico, aquele situado
fora de sua cadeia de equivalência, também denominado de “exterior constitutivo”:
a “não verdade histórica”.
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Assim sendo, as disputas por significações hegemônicas mobilizam processos
epistêmicos de totalizações metafóricas, que são processos contingentes, visto que
cada verdade histórica se constitui de acordo com as demandas de seu tempo pre-
sente. Imbuídos destas reflexões, nossa proposta é produzir uma investigação das
complexas relações entre o conhecimento escolar e as noções de “verdade histórica”,
tendo como principal foco de investigação as disputas discursivas em torno das
significações de Democracia no Enem.
Ancorados no referencial teórico aqui privilegiado, entendemos que o processo
de produção das narrativas envolve disputas e combates nos diferentes contextos
discursivos – história acadêmica e escolar – em que são produzidas. Por conse-
guinte, as narrativas que se tornam hegemônicas no currículo da Educação Básica
assumem tal posição, pois são resultantes dos jogos políticos que deslocam e reafir-
mam fronteiras em meio ao campo de significação onde estão inscritas.
É neste sentido que advogamos em prol do conceito de “narrativas ontológicas”
(GONZÁLEZ, 2013) para pensar as narrativas validadas na esfera do Enem, visto
que identificamos um processo de confrontos hegemônicos no interior do conheci-
mento histórico escolar em torno do que deve ser considerado verdadeiro e impor-
tante para um estudante do Ensino Médio saber e quais tantas outras narrativas
devem ser silenciadas e/ou negligenciadas.
A dimensão ontológica quando transportada para o campo do Currículo remete
à potencialidade de pensar no caráter conflitivo dos discursos acerca dos passados
nacionais que devem ou merecem ser visitados pelos alunos. Afinal, Laville (1999)
já chamou a atenção ao destacar que a área do ensino de História é um espaço
marcado pelas “guerras das narrativas”.
Seguindo esta linha, concebemos que da mesma forma que a produção de
narrativas não é uma mera operação de sequenciar os fatos cronologicamente, o
processo de construção dos itens do Enem é uma operação política: de inclusão/
exclusão das diferentes narrativas produzidas sobre qualquer temática histórica.
O caminho que escolhemos para analisar os sentidos de Democracia em disputa e
fixados no espaço discursivo do Enem foi através da análise dos itens referentes à
temática da Ditadura Militar.
Tal escolha se deve por considerarmos tal conteúdo escolar potente para afir-
mar/silenciar significados para o conceito de Democracia, visto que as aproxima-
ções e distanciamentos entre os contextos políticos de 1964 a 1985 e 1985 a 2017
são pontos importantes para refletirmos sobre os rumos do nosso atual sistema
democrático.
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A discussão em torno das verdades que se lutam e se confrontam para vali-
dar ganha um ingrediente novo, se pensarmos em nosso contexto contemporâneo
marcado pela eclosão de variadas memórias em distintos espaços. É, pois, nesse
contexto que assistimos o crescimento dos diferentes usos públicos do conhecimen-
to histórico.
Segundo Kallás (2017, p. 143), a expressão “uso público da História” consiste na
veiculação de uma interpretação histórica para um público mais amplo não se resu-
mindo ao público acadêmico, passando por um processo de reconstrução e adaptação
historiográfica, de modo a ser lida por mais pessoas: “que se encontra na origem de
uma percepção social de profundo desamparo quanto às perspectivas de futuro”.
Destaca-se, portanto, que a dimensão dos usos públicos da História acarreta
a produção de conflitos de memória, de silenciamentos ou de esclarecimentos refe-
rentes a temas pouco debatidos, ao mesmo tempo em que propicia o aparecimento
de revisionismos históricos e de transformações na área do Ensino de História.
Escolhemos, portanto, o tema da Ditadura Militar para pensar os sentidos
de Democracia mobilizados no Enem, pois é um assunto que apresenta uma forte
presença nas diferentes instâncias da sociedade brasileira. Isto significa afirmar
que tal passado sofre contínuas revisitações acadêmicas e reelaborações em suas
narrativas e, por este motivo, interessam-nos analisá-lo em sua versão escolar.
Os impactos gerados pelo crescimento de narrativas que versam sobre o pe-
ríodo da Ditadura se articulam às discussões voltadas ao “dever de memória”. Se-
gundo autores como Heymann (2006) e Camargo (2016), este termo aparece no
contexto da rememoração, na década de 1970 na Europa, do genocídio sofrido pelos
judeus durante a Segunda Guerra mundial. Todavia, foi apenas na década de 1990
que este conceito se tornou relevante no meio acadêmico e político francês.
A expressão “dever de memória” representa “a ideia de que memórias de sofri-
mento e opressão geram obrigações, por parte do Estado e da sociedade, em relação
às comunidades portadoras dessas memórias” (HEYMANN, 2006, p. 4). Ou seja,
deste conceito deriva a ideia de que as memórias de dor e sofrimento geram obriga-
ções por parte do Estado e da sociedade para com as vítimas ou grupos de vítimas
no sentido de reconhecer as injustiças/violências históricas cometidas.
Reconhecemos que as discussões sobre as disputas de reconhecimento de me-
mórias em diálogo com aquelas voltadas aos diversos usos públicos da História ins-
tigam o surgimento de tantas outras memórias e demandas que acabam exercendo
influências nos processos de validação dos conteúdos e conhecimentos escolares.
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Há de se destacar ainda que o termo “dever de memória” envolve a crença de
que um reconhecimento é devido àqueles que sofreram e que “cada grupo social, em
outro tempo vítima, e hoje herdeiro da dor, pode reivindicar a celebração de seus
mártires e heróis” (HEYMANN, 2006, p. 7). Como o presente texto caminha em
diálogo com as perspectivas do discurso, importa sublinhar que os passados pelos
quais se reivindicam lembranças, memórias e até mesmo, um espaço maior nas
narrativas produzidas nos currículos não são compreendidos aqui como elementos
essencializados e tampouco unívocos.
Concordamos que as demandas por não fazerem esquecer as práticas de tor-
turas adotadas pelos governos militares durante as décadas de 1960, 1970 e 1980
unificaram diferentes movimentos e grupos, mas, ao mesmo tempo, defendemos que
o conteúdo daquilo que se narra, o sofrimento de quem se fala, a resistência de quem
se clama, são alvos de disputas hegemônicas e contingentes. Até mesmo os status e
as hierarquias atribuídas a determinados sofrimentos são frutos de conflitos sobre
o que deve ou não adentrar nas diferentes narrativas produzidas, visto que “nem
todas as interpretações sobre o passado têm o mesmo valor” (MOTTA, 2013, p. 66).
Concebemos, portanto, que a expressão “dever de memória” – marca ontologi-
camente o surgimento de lutas por fixações de novas e/ou reatualizadas narrativas
históricas no interior das diferentes sociedades e, de modo mais intenso, no Currí-
culo das chamadas Ciências Humanas. Dessa forma, os processos de formação das
totalidades metafóricas acabam passando por jogos de linguagens que culminam
na desconstrução e reconstrução das narrativas em virtude da eclosão de diferen-
tes vozes e demandas em voga.
As discussões produzidas em torno da Ditadura nos aproximam também com
as reflexões voltadas aos “temas/passados sensíveis ou controversos”, que se en-
contram nas discussões referentes ao Currículo de História e de Geografia. Alberti
(2014) salienta que os temas do ensino de questões sensíveis ou controversas englo-
bam assuntos diversos como a religião na Irlanda do Norte, o holocausto, o racismo
e a escravidão, dentre outros e abrangem a “ideia de que injustiças foram cometi-
das no passado contra pessoas ou grupos, podendo levar a disparidades entre o que
é ensinado nas aulas de história e o que é transmitido nas histórias familiares ou
comunitárias” (ALBERTI, 2014, p.2).
Trata-se de um novo terreno de produção e disputas em torno de memórias
que acabam impactando naquilo que se ensina na instituição escolar. Para Alberti,
o ensino de questões sensíveis e controversas não tem como objetivo chocar os es-
tudantes, mas sim fomentar reflexões sobre eixos temáticos que versem na ênfase
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na diversidade de experiências, problematizando as homogeneizações que tradicio-
nalmente são atribuídas a determinados grupos sociais quando se estuda alguns
períodos históricos específicos.
Falaize (2014) destaca que há, pelo menos, vinte anos a questão do ensino
de temas sensíveis da História aparece nos debates escolares, públicos e políticos
produzidos na França. Em decorrência disso, “as atividades de sala de aula estão
sujeitas à interrogação de uma sociedade inteiramente convidada a examinar o
interior da escola de seus conteúdos de ensino da história, a fim de ver nele oculta-
mentos, omissões ou amnésias nacionais” (FALAIZE, 2014, p. 227-228).
No entendimento deste autor, o impacto das discussões sobre os passados sen-
síveis ou controversos marcou uma ruptura com a forma tradicional de narrar a
História francesa (pautada nos sentimentos cívicos e patrióticos e na valorização
de “heróis nacionais” e “fatos), dessacralizando e questionando as narrativas pro-
duzidas. Em seu parecer:
Se olhássemos rapidamente para esta atualidade memorial em plena renovação (BO-
NAFOUX, DE COCK, FALAIZE, 2007), seríamos tentados a ver nela uma verdadeira revo-
lução, ou pelo menos uma ruptura com o passado da disciplina histórica e do seu lugar na
escola francesa. (...) é o romance nacional que parece fragilizado, questionado e reavaliado
sob uma nova luz. Não há volta às aulas, ou uma atualização memorial ou legislativa, sem
que os conteúdos de história abordados na escola, ou mesmo a maneira de contar a história
da França, sejam questionados, interrogados e ordenados a dar conta dos traumas do pas-
sado nacional (FALAIZE, 2014, p. 228).
O trecho citado faz uma articulação interessante entre a discussão do dever
de memória e do ensino de temas sensíveis, mostrando que esta relação gera novas
formas de se questionar os passados narrados, através dos conteúdos escolhidos e
das tramas construídas, no interior das instituições escolares.
Isso nos permite pensar que o estudo das discussões em torno das relações
entre verdade – memória – currículo – conteúdo pode se posicionar na ordem da
contingência sem abrir mão de costuras ou suturas, ainda que provisórias, em tor-
no de um sentido de Democracia.
As “verdades” em disputa sobre a Ditadura Militar e Democracia nos itens do
Enem (2009-2017)
Groppo (2015) assinala que as questões de memórias relativas ao período
das ditaduras ocupam um lugar importante nas sociedades da América Latina,
podendo ser consideradas uma importante demanda social por verdade, justiça e
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reparação. Napolitano (2015), outrossim, assegura que os processos de transição
emergentes após o término das ditaduras são acompanhados de operações de “re-
construção da memória”, que tem por objetivo principal a superação dos traumas e
das fissuras produzidos nas sociedades afetadas por tais tipos de governos.
Em seu entendimento, autênticas “guerras de memória” (NAPOLITANO, 2015,
p. 98) são cultivadas na busca pela afirmação das verdades históricas. Cerqueira e
Motta (2015), por sua vez, sinalizam que as batalhas de memórias, principalmente
no caso de processos traumáticos, decorrem quando diversos grupos disputam o
controle das representações do passado em busca de garantir o reconhecimento de
suas demandas, sofrimentos e experiências no presente.
Cruz (2015, p. 385) aponta para as disputas pelas memórias hegemônicas,
argumentando que “os sentidos que se constroem sobre o passado não se articulam
em torno da ausência de objetivos políticos, mas, muito pelo contrário, o que se
rememora, silencia ou esquece é em função dos objetivos e projetos do presente”.
Seguindo este caminho, entendemos que o espaço discursivo do Enem mobili-
za múltiplas demandas de memória e disputas em torno das verdades históricas e,
por esse motivo, concordamos com Alice Pereira (2015, p. 349) quando sustenta que
“relembrar o passado é instaurá-lo num terreno de disputas entre determinadas
versões” marcado pela dialética entre lembrança e esquecimento, considerados não
como elementos antagônicos, mas sim como complementares um ao outro.
A partir de uma análise sistematizada sobre os itens referentes ao governo da
Ditadura Militar, percebemos que o Enem, de um lado, reforça a ideia do Estado
como limitador das liberdades e direitos e, por outro lado, valida as narrativas de
resistência e engajamento popular contra o governo que se estabeleceu a partir do
golpe de 1964. Constatamos, pois, uma hegemonização das narrativas de “causa
e consequência”, pois, de um lado, sublinha os discursos sobre o que o Estado fez
para controlar e dominar a sociedade e, por outro lado, destaca as narrativas em
torno do que ela (sociedade civil) fez para resistir ao autoritarismo em vigência.
Percebemos um diálogo pouco desenvolvido entre estas instâncias – Estado e socie-
dade civil –, uma vez que os discursos se posicionam como se entre a dominação e
a resistência não houvesse nenhuma outra alternativa.
Observamos, por conseguinte, o silenciamento das novas dimensões historio-
gráficas sobre as relações entre a sociedade com aquele governo ditatorial. É como
que ao afirmar o caráter democrático da sociedade brasileira, o Enem preconiza o
seu distanciamento em relação ao governo militar, esquecendo os entrelaçamentos,
vínculos e heranças persistentes em nosso país atualmente.
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Nos próximos parágrafos, discutiremos as estratégias discursivas encontra-
das hegemonicamente nos itens do Enem. Paul Ricoeur (2010) sugere, em suas
reflexões sobre as articulações entre o tempo e a narrativa histórica, que existem
três possibilidades ou modalidades de visitar o passado: sob o signo do Mesmo, sob
o signo do Outro e sob o signo do Análogo.
Segundo este autor, a primeira forma de visitá-lo implica na adoção de estratégias
que estimulam eliminar as distâncias temporais. Nesse viés, trata-se de compreender
a história como uma “reefetuação do passado” (RICOEUR, 2010, p. 240), pressupondo
de toda maneira “uma persistência do passado no presente” e fundindo “as duas tem
-
poralidades no presente do historiador” (GABRIEL; COSTA, 2011, p. 136).
A modalidade do “passado sob o signo do Outro”, por sua vez, coloca a História
na direção do afastamento entre as dimensões do passado e do presente, protagoni-
zando sentidos de “distância temporal” (RICOEUR, 2010, p. 248), em que:
Voltamos assim ao enigma da distância temporal, enigma sobredeterminado pelo afasta-
mento axiológico que nos tornou estrangeiros aos costumes dos tempos passados, a ponto
de a alteridade do passado com relação ao presente prevalecer sobre a sobrevivência do
passado no presente (RICOEUR, 2010, p. 252).
Em linhas gerais, a segunda modalidade parte de um pressuposto inverso ao
identificado na primeira (GABRIEL; COSTA, 2011). Já a modalidade do “passado
sob o signo do análogo” associa as esferas do “mesmo e do outro” (RICOEUR, 2010,
p. 255). A perspectiva do Análogo, por conseguinte, “conserva em si a força da reefe-
tuação e da colocação a distância” (RICOEUR, 2010, p. 264-265) e opera na tensão
entre continuidade e mudança, familiaridade e estranhamento, “possibilitando a
produção de identidades em meio a disputas da memória a partir das demandas do
presente” (COSTA, 2012, p. 85).
Comparando as diferentes modalidades para pensar essas articulações tempo-
rais dentro dos itens referentes à Ditadura Militar, o discurso hegemônico tende a
colocar este passado como “exterior constitutivo” do nosso período contemporâneo.
Em linhas gerais, a lógica do passado “sob o signo do outro” é reforçada na maior
parte das narrativas analisadas.
Os itens relacionados principalmente à década de 1980 sugerem o predomínio
de narrativas que opõem, de um lado, a sociedade como um todo e, de outro, o Estado
autoritário e repressor. É desta forma que apresentaremos alguns itens relacionados
ao movimento das “Diretas Já” e das lutas sindicais ao final do governo militar para
enfatizar a dimensão de afastamento temporal entre esses períodos cronológicos.
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A análise dos itens nos possibilita afirmar que o Enem opera em uma lógica
que tende a isolar o Estado Ditatorial brasileiro da sociedade brasileira, identi-
ficando e ratificando o papel opositor exercido por esta nos chamados “anos de
chumbo”. A demanda pelo direito ao voto aparece como elemento articulador das
lutas pela restituição do regime democrático de governo.
Dentro do bloco de questões associados à temática aqui privilegiada, alguns
itens hegemonizam as mobilizações em eventos como as “Diretas Já” como sinôni-
mo da luta pela democracia. Ou seja, o discurso em prol do direito ao voto direto
para o Executivo aparece como totalização metafórica em prol da democracia. Cabe
destacar que, em sintonia com o que é defendido por Laclau, o universal é aquele
discurso particular que se hegemoniza, efetuando uma operação metafórica. Veja-
mos como isso aparece em alguns itens:
Item 40- Edição 2010B
Disponível em: http://pimentacomli-
mao.files.wordpress.com. Acesso em:
14 abr. 2010 (adaptado).
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A charge remete ao contexto do movimento que ficou conhecido como Diretas
Já, ocorrido entre os anos de 1983 e 1984. O elemento histórico evidenciado na
imagem é:
a) a insistência dos grupos políticos de esquerda em realizar atos políticos ile-
gais e com poucas chances de serem vitoriosos.
b) a mobilização em torno da luta pela democracia frente ao regime
militar, cada vez mais desacreditado.
c) o diálogo dos movimentos sociais e dos partidos políticos, então existentes,
com os setores do governo interessados em negociar a abertura.
d) a insatisfação popular diante da atuação dos partidos políticos de oposição
ao regime militar criados no início dos anos 80.
e) a capacidade do regime militar em impedir que as manifestações políticas
acontecessem (ENEM, 2010).
Item 41- Edição 2010B
A gente não sabemos escolher presidente A gente não sabemos tomar conta da
gente A gente não sabemos nem escovar os dentes Tem gringo pensando que
nóis é indigente Inútil A gente somos inútil MOREIRA, R. Inútil, 1983 (frag-
mento).
O fragmento integra a letra de uma canção gravada em momento de intensa
mobilização política. A canção foi censurada por estar associada
A) ao rock nacional, que sofreu limitações desde o início da ditadura militar
B) a uma crítica ao regime ditatorial que, mesmo em sua fase final,
impedia a escolha popular do presidente.
C) à falta de conteúdo relevante, pois o Estado buscava, naquele contexto, a
conscientização da sociedade por meio da música.
D) à dominação cultural dos Estados Unidos da América sobre a sociedade bra-
sileira, que o regime militar pretendia esconder.
E) à alusão à baixa escolaridade e à falta de consciência política do povo brasi-
leiro (ENEM, 2010).
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Item 10- Edição 2015B
O diálogo que aparece na charge é:
“E o senhor não cansou esperando a hora de votar pra presidente”?
“Não! Me distraí ouvindo as notícias: O assassinato do Kennedy, a guerra do
Vietnã, o surgimento dos Beatles, a chegada do homem na lua, a invenção do
transístor e do microcomputador, os conflitos do Oriente Médio, o surgimento
da AIDS, a guerra das Malvinas, a Perestroika na Rússia, o fim do Muro de
Berlim...”
O diálogo entre os personagens da charge evidencia, no Brasil, a(s)
A) reinserção do país na economia globalizada.
B) transformações políticas na vigência do Estado Novo.
C) alterações em áreas estratégicas para o desenvolvimento do país.
D) suspensão das eleições legislativas durante o período da Ditadura Militar.
E) volta da democracia após um período sem eleições diretas para o
Executivo Federal (ENEM, 2015).
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Os itens de História do Enem priorizam a marca da Democracia como estando
intimamente associada às concepções de cidadania e de direito ao voto, reestabe-
lecendo uma articulação bastante clássica no campo do Ensino de História. Logo,
as memórias sobre o período em questão imbricam-se com as múltiplas formas de
mobilização da população no final do período militar em busca do direito ao voto
para presidente.
No item 40/2010B, o movimento das “Diretas Já” é abordado pelo viés da luta
pelo voto como representando as variadas demandas pela democracia, reafirmando
a ideia de uma “sociedade brasileira” contra a Ditadura e em prol de votação di-
reta. Consideramos que esta imagem é também emblemática daquilo que o Enem
pretende significar e fixar como memória a respeito daquele período: a confirma-
ção e fixação de um sentido de sociedade brasileira resistente (esta dimensão da
resistência aparece aqui como mobilização pela luta ao direito de votar) ao governo
da Ditadura Militar, hegemonizando, por conseguinte, os significados desse signi-
ficante em disputa pelas diferentes matrizes historiográficas.
Já no item 41/2010B, percebe-se novamente a importância concedida às letras
de música como formas de enfrentamento e crítica social / política ao governo dos
militares, enfatizando o papel que as produções culturais tiveram naquele período
em termos de enfrentamento e resistência. A terceira questão selecionada, item
10/2015B, a seu modo, elenca a quantidade de eventos ocorridos no mundo enquan-
to perdurava a ditadura militar com o intuito de criticar o período extenso em que
a sociedade ficou sem acesso ao direito de votar para o cargo de presidente.
A análise dos itens permite-nos constatar que o Enem ao realizar uma tota-
lização metafórica propõe-se a diferenciar o período da Ditadura e o seu momento
posterior, a partir de 1985. Tal operação discursiva produz o sentido de democracia
equivalente ao o direito de votar para o cargo de Presidente da República, o que
tende a reforçar uma visão simplista e com risco de reforçar uma dicotomização,
visto que opera pouco com a possibilidade de produzir interpretações que protago-
nizem, por exemplo, certos aspectos de continuidades entre estes períodos.
Os itens acima, em suma, dialogam com as perspectivas que destacam as lutas
e as conquistas pelo direito ao voto compreendendo-as como narrativas incontor-
náveis tanto para visualizar a participação da sociedade civil na resistência àquele
governo como para demarcar a Ditadura como um período “estranho”, “distante”
das nossas práticas democráticas atuais. Reforça-se, então, a narrativa da “Dita-
dura como um passado que não se vive mais nos tempos atuais”, como estando nos
sentidos de “verdadeiro” dentro do espaço curricular do Enem.
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Nessa percepção, o “povo brasileiro” ou a “sociedade brasileira” resignificados
como combativo, resistente e perseguidor de seus direitos políticos, civis e sociais
é o que emerge no jogo da memória que se quer fixar na narrativa nacional. Com-
preendemos, a partir desses vestígios discursivos, que a memória e o regime de
verdade que se pretendem legitimar no Enem são os de uma sociedade distanciada
do regime político autoritário instaurado no ano de 1964, que se opunha à violên-
cia, à repressão e ao terror de Estado. Dito de outra forma, entendemos que essa
narrativa se universaliza – é uma totalização metafórica – na ordem discursiva
enfocada no presente estudo.
Nessa mesma linha de argumentação, outras formas de resistência ao governo
ditatorial aparecem em itens cujas narrativas destacam as greves operárias reali-
zadas no final da década de 1970. Vejamos o exemplo a seguir:
Item 2- Edição 2016 B
1) Para além de objetos específicos, muitos movimentos sociais interferem no
contexto sociopolítico e ultrapassam dimensões imediatas, como foi o caso das
mobilizações operárias, ocorridas em 1979 na cidade de São Paulo. Nesse sen-
tido, ao mesmo tempo em que lutavam por seus direitos, essas mobilizações
contribuíram com o(a)
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A) elaboração de novas políticas que garantiram a estabilidade econômica do
país.
B) instalação de empresas multinacionais no Brasil.
C) legalização dos sindicatos no Brasil.
D) surgimento das políticas governamentais assistencialistas.
E) processo de redemocratização do Brasil (ENEM, 2016).
A temática da atuação dos movimentos sindicais (principalmente na região do
ABCD paulista) nos anos finais do governo da Ditadura é uma temática recorrente
no que se refere à participação popular no combate e no enfrentamento aos milita-
res. As narrativas sobre as “Diretas Já” e sobre estas greves, como já destacamos
anteriormente, ocupam um papel protagonista nas narrativas que visam legitimar
a sociedade brasileira como resistente, principalmente, durante a década de 1980.
O gabarito desse item define que tais mobilizações contribuíram para o pro-
cesso de redemocratização do Brasil. Portanto, a narrativa mobilizada interliga-se
com o discurso que entende as conquistas políticas e sociais por meio também da
mobilização dos trabalhadores, conectando a ideia de cidadania com a questão da
redemocratização política ao mostrar que este movimento de 1979 ultrapassou “di-
mensões imediatas” tendo interferido no contexto mais amplo do Brasil.
O item dialoga com a versão escolar da Ditadura quando se pensa no final
deste governo. Geralmente, fatos como as greves e o movimento das “Diretas Já”
recebem um espaço destacado nos manuais didáticos. Reiteramos que no Enem,
quando se pensa nas “narrativas de resistência”, a discussão acaba protagonizando
principalmente este período final, destacando os acontecimentos das greves e das
manifestações entrelaçadas à demanda do movimento das “Diretas Já”.
Encerramos a presente seção apresentando pontos de contato entre as análi-
ses empíricas com as conclusões de Helenice Rocha sobre a produção referente à
temática da Ditadura Militar em livros didáticos. Segundo Helenice Rocha (2017),
as narrativas sobre a ditadura nos livros didáticos foram se transformando ao lon-
go da década de 1980. Em geral, enfatiza que os capítulos que versam sobre este
assunto tendem a seguir um roteiro que abarca os seguintes temas: a crise do go-
verno João Goulart que teria provocado o golpe de Estado, os diferentes momentos
do período ditatorial, destacando a atuação dos presidentes da República naquele
período e a posse de Tancredo Neves em 1985, eleito de forma indireta após o mo-
vimento popular das “Diretas Já” (ROCHA, 2017, p. 250-251).
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A autora acrescenta que a resistência é tratada nas esferas da produção cul-
tural e da luta armada. Todavia, o que chama atenção em sua produção é o mesmo
que encontramos nos itens do Enem: os silenciamentos sobre os consentimentos
sociais em relação à implementação e à manutenção do governo militar no período
de sua existência, uma vez que nas palavras de Helenice Rocha (2017, p. 257):
O conjunto de narrativas trata do período que se inicia com o golpe de Estado como agen-
ciado principalmente pelas Forças Armadas brasileiras. Poucas coleções mencionam expli-
citamente a participação da sociedade civil durante a ditadura, atribuindo a determinados
representantes da elite uma aliança com os militares para o Golpe.
As reflexões que desenvolvemos no presente artigo nos permite constatar que
o Enem, ao operar com uma totalização metafórica, hegemoniza discursos que re-
forçam os sentidos de Democracia como sendo o governo em que as pessoas têm o
direito de votar para eleger seu presidente, apresentando um afastamento entre os
eixos temporais de 1964-1985 e de 1985-2017.
Em nosso entendimento, tal esvaziamento de articulações entre tais períodos
acaba contribuindo para esvaziar a potencialidade do ensino dos temas históricos
sensíveis, visto que reforça a produção de memórias tradicionais sobre o tema e,
ao mesmo tempo, silencia a emergência de outras narrativas no espaço discursivo
do conhecimento escolar validado na esfera da, até o presente momento, principal
política curricular nacional de avaliação da Educação Básica e de ingresso ao En-
sino Superior.
Considerações nais
Formas sedimentadas de “objetividade” constituem o campo do que chamamos de “o social”.
O momento do antagonismo, onde se faz plenamente visível o caráter indecidível das alter-
nativas e sua resolução através de relações de poder é o que constitui o campo “do político”
(LACLAU, 2005, p. 51).
Inspirados, na citação acima, a própria metaforização da Democracia no Enem
guarda a natureza da validação dos saberes, isto é, guarda uma pretensão de ob-
jetividade. O plano geral do nosso problema é a validade do saber passível de ser
ensinado, ou os mais válidos, convertidos em item em escala nacional, na fase final
da escolarização obrigatória no Brasil. Logo, a discussão da totalização metafórica
como operação hegemônica, reflexão contundente de Laclau, participa diretamente
no nosso entendimento como legitimidade dos saberes escolares. Neste artigo, a
seleção curricular é a configuração do item. Em outras palavras, o saber válido
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e exigido na prova é, não outra coisa, que as pegadas visíveis de uma totalização
metafórica.
Todavia, é importante fazermos um alerta para evitar a produção de generali-
zações. Em suma, as discussões referentes aos usos públicos da História levam-nos
a destacar a importância política e social deste tema e articulá-lo com a discussão
das narrativas ontológicas. Portanto, justificamos, então, nossa análise dos itens
referentes à ditadura militar no Enem por acreditar que acarreta inúmeras discus-
sões e produções que, de alguma forma, “marcam os estudantes” e o currículo de
História em escala nacional.
Nossa suspeita é de que na metaforização do governo ditatorial no Enem, os
setores de esquerda permanecem nas narrativas de resistência, porém os conser-
vadores acabam não sendo mais mencionados, pois o foco recai na figura dos pre-
sidentes militares, que sintetizam a atuação conservadora no período. Já ao se re-
portar ao período final da Ditadura, os itens do Enem analisados percebem toda a
sociedade como coesa nas manifestações, como ocorre nas narrativas relacionadas
ao movimento das “Diretas Já”, atribuindo à “sociedade brasileira como um todo a
responsabilidade pelo enfraquecimento da ditadura” (ROCHA, 2017, p. 262).
Com efeito, no Enem, a objetividade da Ditadura é definida hegemonicamente
como aquele período “outro”, “distante” que não apresenta relações com a forma
como nossa sociedade se constitui nos dias atuais. Trata-se de um “exterior cons-
titutivo” para aquilo que o exame pretende afirmar como Democracia, como se o
período contemporâneo não guardasse nenhum legado daquele momento.
Observando que na atual conjuntura política, há vetores e grupos organizados
num revisionismo exaltador do passado da Ditadura Militar, cabe-nos, enquan-
to educadores, investigarmos os usos públicos da História e suas metáforas. Vale
sublinhar as incertezas presentes nas futuras edições do Enem, haja vista que a
atual gestão federal se posiciona favoravelmente à censura prévia dos itens, em
especial, aqueles que abordam temáticas consideradas desafiadoras à moral da
família cristã.
Selecionar os itens de Ciências Humanas do Enem (produzidos entre as edi-
ções de 2009 a 2017 e que versavam sobre a chamada Ditadura Militar) e anali-
sá-los com o objetivo de investigar os fluxos de cientificidade e verdade hegemo-
nizados em sua produção a partir das contribuições das teorizações do Currículo
e do Discurso foi o caminho, portanto, que trilhamos para analisar os sentidos de
Democracia em disputa no espaço curricular do Enem.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Diego Bruno Velasco*, Ana Angelita Costa Neves da Rocha
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A metáfora, o Enem e a democracia
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