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Tem gente caminhando pra lá e para cá”: caminhar com as crianças – a pesquisa em contexto campesino
v. 27, n. 3, Passo Fundo, p. 901-917, set./dez. 2020 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
“Tem gente caminhando pra lá e para cá”: caminhar com as crianças –
a pesquisa em contexto campesino
There are back walking back and forth”: walking with children –
the research in campesino context
“Hay gente caminando para allá y para acá”: caminar con los niños –
investigación en contexto campesino
Jeruza da Rosa da Rocha
*
Marta Nörnberg
**
Resumo
Este artigo discute o caminhar com crianças em contexto campesino como possibilidade metodológica para
a pesquisa com crianças. A partir de alguns pressupostos da abordagem etnográca, as caminhadas com as
crianças são descritas como uma ferramenta metodológica capaz de oferecer elementos para interagir com elas
em suas dinâmicas sociais. A ação de caminhar com as crianças permite desenvolver uma postura atenta às
brechas e às pistas oferecidas por elas sobre a (re)interpretação que fazem da cultura comunitária e da cultura
das famílias, em especial, das práticas da pesca e da lida no campo. Os processos interpretativos realizados pelas
crianças, em suas relações intergeracionais e intrageracionais, são abordados com base nos conceitos de repro-
dução interpretativa e cultura de pares. O estudo sustenta metodologias que valorizam a agência das crianças
como intérpretes de suas culturas comunitárias e familiares, e como participantes ativas no desenvolvimento
e na organização dos processos investigativos. Mostra como o caminhar com as crianças favorece uma maior
aproximação às culturas infantis e oferece condições para a escuta sensível de suas vozes.
Palavras-chave: Metodologia de pesquisa. Pesquisa com crianças. Crianças do campo. Cultura de pares. Cami-
nhar com crianças.
*
Doutora em Educação pela Universidade Federal de Pelotas. Atua no Núcleo Educamemória pela Universidade de
Rio Grande (Furg), como pesquisadora colaboradora com estudos envolvendo as infâncias campesinas dos povos
e comunidades tradicionais da Serra dos Tapes, RS. Colaboradora do grupo CIC: Crianças, Infâncias, Culturas. Orcid:
https://orcid.org/0000-0003-4635-5942. E-mail: luaia.je@gmail.com
**
Professora da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Edu-
cação, Departamento de Ensino. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-9865-7056. E-mail: martanornberg0@gmail.com
Recebido em 10/04/2019 – Aprovado em 15/10/2020
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i3.12390
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Abstract
This article discusses the walking with children in campesino context as a methodological possibility for the
research with children. Based on some ethnographic approach suppositions, the walks with the children are
described as a methodological tool able to oer elements to interact with them in their social dynamics. The
action of walking with the children enables developing a careful attitude concerning the gaps and clues oered
by them about the (re)interpretation they make of the community culture and the culture of the families, espe-
cially the practice of shing and the rural work. The interpretative processes carried out by the children, in their
intergenerational relationships and within generations, are approached based on the concepts of interpretative
reproduction and the culture of peers. The study supports methodologies which value the acting of the children
as interpreters of their community and family cultures, and as active participants in the development and in the
organization of the investigative processes. It illustrates how the walking with children favored a greater approa-
ch to childrens cultures and oered conditions for sensitive listening to their voices.
Keywords: Research methodology. Research with children. Children in the eld. Culture of peers. Walking with
children.
Resumen
Este artículo discute el caminar con niños en contexto campesino como posibilidad metodológica para la in-
vestigación con niños. A partir de algunos presupuestos del abordaje etnográco, las caminadas con los niños
son descritas como una herramienta metodológica capaz de ofrecer elementos para integrar con ellas en sus
dinámicas sociales. La acción de caminar con los niños permite desarrollar una postura atenta a las roturas y las
pistas ofrecidas por ellas a cerca de la (re) interpretación que hacen de la cultura comunitaria y de la cultura de las
familias, en especial, de las prácticas de la pesca y de la lida del campo. Los procesos interpretativos producidos
por los niños, en sus relaciones, intergeracionales y intrageracionales, son abordados con base en los conceptos
de reproducción interpretativa y cultura de pares. El estudio sostiene metodologías que valoran la acción de los
niños como intérpretes de sus culturas comunitarias y familiares, y como participantes activas en el desarrollo
en la organización de los procesos investigativos. Muestra como el caminar con niños favorece un acercamiento
a las culturas de los niños y ofrece condiciones para escuchar sus voces con sensibilidad.
Palabras claves: Metodología de investigación. Investigación con los niños. Niños del campo. Cultura de pares.
Caminar com niños.
Introdução
A construção de metodologias de pesquisa que reconheçam as crianças em sua
agência, como sujeitos de direitos e participantes dos processos culturais está na
agenda do trabalho de investigação educacional. Organizar e desenvolver práticas
participativas de interlocução entre adultos e crianças é tarefa necessária para
ampliar as relações intergeracionais e as possibilidades de escuta aos processos
intrageracionais estabelecidos pelas crianças em suas dinâmicas sociais e comu-
nicativas.
A discussão proposta para este artigo apresenta as caminhadas com crianças
que vivem em contexto campesino como ferramenta metodológica. Caminhar no
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campo é atividade cotidiana do grupo de crianças da Capilha, região do Taim, no
município de Rio Grande, RS, local onde foi desenvolvida a pesquisa. As caminha-
das permitiram a aproximação da pesquisadora com as crianças, além de reco-
nhecer e atentar a outras formas de se movimentarem no cotidiano comunitário e
compreender as ressignificações e interpretações da cultura local.
No caso do estudo realizado, o caminhar com as crianças favoreceu a criação
de condições para observar como elas interagem entre si e com os adultos, em seu
cotidiano comunitário, além de oferecer pistas para pensar sobre a interpretação
que fazem sobre a pesca e a lida no campo, atividades típicas da localidade. Além
disso, ofereceu insumos para pensar sobre o lugar e a atuação do investigador edu-
cacional, especialmente aquelas que referem as modificações de postura, os cuida-
dos éticos a serem estabelecidos e a disponibilidade de reposicionar-se no contexto
das práticas culturais vividas pelas crianças como interlocutor capaz de escutar o
que e como elas contam suas vivências.
As caminhadas surgiram como movimento próprio das crianças de aproxima-
ção à pesquisadora que, em certo momento do seu trabalho de pesquisa na escola,
ao final de um dia de aula, foi convidada para com elas caminhar pela comuni-
dade. Assim, com base na experiência da pesquisa realizada, o caminhar com as
crianças é apresentado como ferramenta metodológica adequada para a interação
entre crianças e pesquisadores, pois cria oportunidades para conversar sobre a sua
realidade comunitária e familiar. Além disso, desmistifica o papel do pesquisador
como gestor central do processo investigativo, pois, enquanto ação proposta pelas
crianças, a caminhada é um convite para aproximar-se de suas realidades infantis,
experimentando outras formas de observar e conduzir a pesquisa com crianças,
especialmente em contexto campesino.
Os processos interpretativos realizados pelas crianças são discutidos com base
nos conceitos de “reprodução interpretativa”, de “relações inter e intrageracionais”
e de “cultura de pares” (CORSARO, 2009, 2011; SARMENTO, 2005, 2013). Essa
base conceitual situa-se no âmbito dos estudos da infância e tem como premissa
básica legitimar as crianças como atores sociais ativos e de cultura, potentes em
processos de agenciamento nas relações sociais que estabelecem na comunidade
pertencente.
As situações ocorridas ou narradas durante as caminhadas são problemati-
zadas e ampliadas com base nos conceitos referidos, especialmente para pensar
sobre os vínculos estabelecidos entre sujeitos e, destes, com a sua comunidade e
o lugar espacial em que vivem na interlocução que realizam com a pesquisadora.
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Ademais, auxiliam a pensar sobre aspectos relativos à vida na região dos campos
neutrais, lugar que carrega simbologias afinadas com um determinado modo de
estar no tempo e no espaço geográfico e cultural de um banhado, ambiente típico do
Taim, região na qual vivem as crianças participantes da pesquisa. Simbologias que
remontam, nas palavras do músico e escritor Vitor Ramil (2011), a um imaginário
contemporâneo que abriga ideais de liberdade, diversidade humana e linguística,
criatividade, fantasia e realidade.
O conjunto dessas posições teóricas amplia as referências no âmbito da in-
vestigação participativa com crianças, pois oferece material para problematizar e
desmistificar noções como as de incapacidade de percepção e de expressão de reali-
dades concretas e simbólicas, por vezes ainda atribuídas às crianças. São arranjos
conceituais que colocam em evidência a potência das crianças para falar de seus
sentimentos, necessidades, interesses e percepções sobre a realidade sociocultural
em que estão inseridas. Nesse sentido, as crianças são atores sociais participativos
e excelentes comunicadoras da vida no campo, em sua dimensão real e simbólica.
Subsídios dos estudos e da pesquisa com crianças
Os estudos da infância, ou Childhood Studies, como área de conhecimento e
campo de pesquisa, vem se consolidando no cenário investigativo, especialmen-
te propondo a reconceitualização do termo socialização por meio de uma reflexão
articulada sobre aspectos históricos, socioeconômicos e demográficos da infância
(CORSARO, 2011). São trabalhos que oferecem perspectivas interpretativas para
observar e entender as relações geracionais entre crianças e adultos, e o papel que
desempenham na sociedade, reconhecendo a sua participação constitutiva para o
estabelecimento de um estatuto social da infância.
Desde a Convenção Internacional dos Direitos das Crianças (1989) e do Esta-
tuto da Criança e do Adolescente (1990), a participação das crianças vem ganhando
expressividade no âmbito dos estudos acadêmicos e das dinâmicas sociais contem-
porâneas. No artigo 12ª, da Convenção, as crianças são reconhecidas como atores
sociais de direitos. A liberdade de expressão e a garantia de escuta aos assuntos
que as afetam são sinalizadores de sua participação social e de sua condição de
cidadãs. Reconhecer as crianças como competentes em suas ações e interpretações
proporciona condições para problematização e descentralização da visão moderna,
a qual entende a criança como “um sujeito unificado, reificado e essencializado – no
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centro do mundo – que pode ser considerado e tratado à parte dos relacionamentos
e do contexto” (DALHBERG; MOSS; PENCE, 2003, p. 63).
No contexto das práticas investigativas e educacionais, é necessário despir-se
de conceitos (pré)estabelecidos que norteiam concepções adultocêntricas em rela-
ção às crianças que, geralmente, são vistas como sujeitos passivos da cultura que
as cercam. A aproximação às teorias sociológicas da infância oferece ao investiga-
dor subsídios para observar e compreender a potencialidade da ação coletiva das
crianças no processo de produção cultural, seja a que compartilham entre si e com
os adultos, em diferentes contextos sociais, ou a que ocorre entre elas, em diversos
espaços, como o da comunidade e o da escola em que vivem e atuam. Ainda, esses
aportes teóricos oferecem condições e possibilidades para “teorizar o social a partir
de um ponto de vista das crianças” (KOSMINSKY, 2010, p. 128).
O conjunto de aspectos aportados pelos estudos da infância ajuda a pensar nas
crianças do presente e nas implicações decorrentes da diversidade cultural, social
e demográfica que permeiam seus cotidianos. No Brasil, já encontramos uma rele-
vante produção científica atenta a grupos historicamente colocados em lugar de su-
bordinação pelas lógicas classistas, racistas e sexistas, como o das mulheres e das
crianças. São estudos marcados por características interpretativas e construcio-
nistas que se interessam pelas especificidades e pela diversidade constitutiva das
produções culturais das crianças, lidas como dimensões potentes para os processos
de reconhecimento dos seus modos de socialização e de produção das relações entre
os grupos geracionais.
No âmbito da produção científica nacional, destaca-se o pioneiro estudo de
Florestan Fernandes (2004) que, na década de 1940, apresentou os processos de
socialização vivenciados por um grupo de crianças em situações de brincadeiras de
um bairro paulistano. Suas observações e análises demonstraram elementos fun-
damentais às culturas e grupos infantis, contempladas em ações de brincadeiras
das crianças aliadas às regras e valores do mundo adulto. Outra estudiosa, Eloisa
Rocha (1997), em suas pesquisas, arquiteta o conceito de pedagogia da infância,
apresentando os princípios da escuta e das diferenças como constitutivas das rela-
ções participativas entre crianças e adultos no contexto escolar. Anete Abramowicz
(2011), mais recentemente, sinaliza a inventividade como termo potente a ser co-
locado no centro das pesquisas que se debruçam sobre a infância. Para a autora,
a inventividade permite buscar e produzir movimentos inversos e oportunos para
pensar para além de visões adultocêntricas e colonialistas, pois aposta na capaci-
dade e no olhar das crianças sobre a diversidade que as cerca em seus cotidianos.
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Nesse sentido, as posições de Abramowicz reivindicam do pesquisador uma aten-
ção para as condições de existência das crianças brasileiras, observando questões
étnicas e de gênero que perpassam suas dinâmicas demográficas.
O reposicionamento das crianças nos últimos vinte anos tem contribuído para
consolidar um movimento investigativo com e não para ou sobre as crianças, isto
é, “o processo de pesquisa reflete uma preocupação direta em capturar as vozes
infantis, suas perspectivas, seus interesses e direitos como cidadãos” (CORSARO,
2011, p. 57). Esse entendimento sustenta os movimentos participativos das crian-
ças como base para a aproximação às suas realidades e como modo para acompa-
nhar as investidas que elas empreendem para reinterpretar o contexto cultural e
social a que pertencem.
Assim, com base na Sociologia da Infância de Corsaro (2011), destacamos
“reprodução interpretativa”, “cultura de pares” e “teia global” como alicerces con-
ceituais que ajudam a problematizar as práticas culturais a partir da interação,
da criação e da apropriação interpretativa que as crianças fazem, com seus pares
e com os adultos, exibindo os sentidos por elas produzidos. No contexto desta dis-
cussão, estes conceitos são entendidos como pontos de referência para pensar o
potencial interpretativo e (re)produtivo das crianças e a sua presença em processos
investigativos que se preocupam com a diversidade cultural e social que permeia
e contribui para a construção de suas infâncias em situações da vida no campo,
em que determinadas atividades econômicas estão presentes, bem como valores e
condutas típicas do local.
O termo “reprodução interpretativa” transcende a socialização como movi-
mento passivo e linear, oriundo de perspectivas tradicionais, as quais concebem a
criança como “alguém apartada da sociedade, que deve ser moldada e guiada por
forças externas a fim de se tornar um membro totalmente funcional” (CORSARO,
2011, p. 19). A noção de reprodução interpretativa refere os processos conjuntos e
coletivos das crianças, distanciando-se do termo socialização, de vertente indivi-
dualista, que visa à internalização de conhecimentos e a formação e preparação
para o mundo adulto.
A “reprodução interpretativa” abrange perspectivas inovadoras em relação ao
processo de socialização: incorpora a participação ativa das crianças na sociedade;
sustenta que elas não internalizam passivamente as informações e conhecimentos do
mundo adulto; afirma que elas ressignificam, selecionam e apropriam-se dos saberes,
produzindo suas próprias culturas de forma inventiva, inovadora e criativa como ma
-
neira de lidar com suas necessidades e preocupações (CORSARO, 2011). Em síntese,
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[...] encara a integração das crianças em suas culturas como reprodutiva, em vez de linear.
De acordo com essa visão reprodutiva, as crianças não se limitam a imitar ou internalizar
o mundo em torno delas. Elas se esforçam para interpretar ou dar sentido a sua cultura e a
participarem dela. Na tentativa de atribuir sentido ao mundo adulto, as crianças passam a
produzir coletivamente seus próprios mundo e culturas de pares (CORSARO, 2011, p. 36).
Para ampliar o entendimento sobre os processos de socialização e compreender
as crianças em sua capacidade de agência recorremos a Sarmento (2005), que ex-
plica as culturas da infância como resultantes da convergência desigual de fatores
que se localizam em duas instâncias: na primeira estão as relações sociais global-
mente consideradas e, na segunda, as relações inter e intrageracionais. Segundo
Sarmento (2005, p. 373), a “convergência ocorre na acção concreta de cada criança,
nas condições sociais (estruturais e simbólicas) que produzem a possibilidade da
sua constituição como sujeito e actor social. Este processo é criativo tanto quanto
reprodutivo”.
O poder de agência das crianças, deste modo, carrega e articula dimensões
provenientes da criação e da reprodução que elas fazem de aspectos estruturais e
simbólicos que envolvem suas práticas de socialização e interlocução vividas em
seus cotidianos. E é nesse processo que as crianças se colocam como atores sociais
e produtores de cultura, devido a sua competência e capacidade “de formularem
interpretações da sociedade, dos outros e de si próprios, da natureza, dos pensa-
mentos e dos sentimentos, de o fazerem de modo distinto e de o usarem para lidar
com tudo o que as rodeia” (SARMENTO, 2005, p. 373).
Nessa perspectiva, a noção de “reprodução interpretativa” pode ser ampliada
a partir da ideia de “teia global”, a qual ilustra “características produtivas e repro-
dutivas”, pois representa “um modelo que inclui a reprodução interpretativa como
uma espiral em que as crianças produzem e participam de uma série de culturas de
pares incorporadas” (CORSARO, 2011, p. 37). As crianças participam e interagem
em diversos domínios culturais e sociais em constante transformação. Assim, a teia
ou a espiral é tanto produtiva quanto reprodutiva, pois a variação dos domínios e
a diversidade dos grupos de pares garantem experiências tecidas coletivamente
“sobre os grupos de conhecimentos culturais e instituições aos quais as crianças
se integram e que ajudam a constituir” (CORSARO, 2011, p. 39). Nesse sentido, a
“teia global” demonstra o conjunto de culturas das quais as crianças participam,
reinterpretando informações e conhecimentos de forma criativa e inventiva a par-
tir de suas necessidades de compreender o mundo.
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Chega-se, assim, à discussão sobre “cultura de pares”, que diz respeito à apro-
priação das crianças “criativamente de informações do mundo adulto para produzir
suas próprias culturas” (CORSARO, 2011, p. 53). Não se trata de uma apropriação
estática e individual a fim de orientar o comportamento das crianças, mas sim de
uma produção que é criativa, pois amplia as “informações do mundo adulto a fim
de responder às preocupações de seu mundo” (idem), contribuindo constantemente
para a reprodução e a extensão cultural dos adultos.
A atenção neste artigo volta-se para o reconhecimento das crianças em seus
movimentos interpretativos sobre as dinâmicas dos grupos geracionais de sua
comunidade e com a pesquisadora, com quem elas compartilham criativamente,
em exercícios de (re)produção cultural, aspectos de sua participação nas rotinas
culturais próprias do contexto campesino em que vivem. Ou melhor, o esforço está
em mostrar como seus anúncios interpretativos são potentes para construir uma
aproximação com seus cotidianos socioculturais e assim entender os significados
que atribuem à sua cultura local. Nessa direção, as caminhadas são entendidas
como estratégia que oferece melhores condições para o diálogo entre crianças e a
pesquisadora, sobretudo a comunicação das interpretações que realizam sobre as
práticas culturais do cotidiano campesino.
Na sequência, a caminhada com as crianças é apresentada como metodolo-
gia de pesquisa. Para isso, elementos da abordagem etnográfica da pesquisa com
crianças são tomados para explicitar o movimento investigativo desenvolvido.
Também aspectos decorrentes das interações ocorridas ao longo das caminhadas
são analisados e problematizados com base nos aportes conceituais referidos.
As caminhadas com crianças: o que revelam para a pesquisa?
A pesquisa com crianças é atividade desafiante ao pesquisador. Para desenvol-
ver processos investigativos que colocam como centro as crianças e os seus pontos
de vista, é preciso aprender a “examinar, analisar e explicar os mundos que as
crianças conhecem porque vivem aí dentro; e ligar as vidas das crianças à organi-
zação cotidiana habitual das relações sociais” (KOSMINSKY, 2010, p. 128). Nesse
sentido, investir na criação de metodologias que deem visibilidade à “riqueza das
vidas das crianças nos inúmeros contextos em que elas se movem” (GRAUE; WAL-
SH, 2003, p. 22) é tarefa do investigador educacional. Assim, a preocupação com as
vozes das crianças, as suas perspectivas e seus interesses faz parte da agenda de
trabalho de quem procura uma maior aproximação às suas realidades e uma com-
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preensão mais atenta à (re)produção interpretativa que elas fazem das práticas
culturais.
Nesta seção o foco recai sobre as caminhadas com as crianças, discutindo-a
como possibilidade metodológica na pesquisa. Para argumentar em favor desta
ferramenta, elementos da etnografia são tomados para justificar as posições assu-
midas e os encaminhamentos realizados.
Um primeiro princípio posto pela etnografia demanda ao pesquisador sua par-
ticipação ativa no cotidiano investigado para assim abrir caminhos para comparti-
lhar das práticas culturais dos atores e acercar-se das interpretações que realizam.
É dessa forma que se torna possível uma maior aproximação com os sujeitos e a
elaboração de uma compreensão mais razoável e fiel sobre os significados construí-
dos em um determinado contexto sociocultural.
A etnografia se caracteriza como metodologia que prioriza a descrição densa
dos fatos e a inserção prolongada do pesquisador no contexto a ser investigado, o
que exige o exercício sistemático do registro em diário de campo. Fazer um diá-
rio permite registrar o não-dito, as representações simbólicas, o que foi dito fora
da entrevista (MELLO, 2005, p. 60). O registro em diário configura-se como uma
alternativa potente porque permite, justamente, sistematizar o que resulta da in-
teração entre pesquisador e crianças.
A etnografia com crianças requer do investigador a prática da flexibilização
e da renegociação durante o desenvolvimento do processo investigativo. Pede
pelo exercício constante de considerar as crianças em suas capacidades de agir
como interlocutores centrais, capazes de sinalizar pistas sobre possíveis modos
de observar o campo empírico, pois possuem as melhores condições de comunicar
sobre os contextos em que vivem. Além disso, desloca a figura do pesquisador
do lugar central do processo metodológico de pesquisa. Essa posição demanda,
no entanto, que o investigador educacional reconheça a criança potente para
“ensinar e comunicar sobre suas experiências de vida compartilhada e suas lutas
para obter algum controle sobre os poderosos adultos e suas regras” (CORSARO,
2011, p. 62).
No decorrer da pesquisa, essa capacidade de atenção aos modos das crianças
estabelecerem a sua comunicação com o pesquisador sobre sua vida na comunidade
da Capilha foi desenvolvida e aprimorada. E, em decorrência desse exercício, é que
as caminhadas com as crianças foram assumidas e entendidas como uma ferra-
menta metodológica capaz de permitir uma maior inserção em contexto e, assim,
compreender aspectos do cotidiano real e simbólico por elas interpretados.
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Enquanto proposta metodológica, as caminhadas criaram condições para a
observação atenta, pois a pesquisadora, ao ser deslocada do seu lugar de figura
central do processo, foi inserida, pelas crianças, como uma participante do grupo e
assim foi aprendendo a olhar para as práticas da comunidade, guiada pelas mãos
das crianças. Sobre essa dinâmica, Corsaro explica que o pesquisador se acerca
melhor das práticas do grupo e, desse modo, “toma a compreensão dos sentidos e da
organização social como tema de pesquisa a partir de uma perspectiva de dentro,
aprendendo a se tornar um membro do grupo, documentando e refletindo sobre o
processo” (2009, p. 85).
Mas, como começaram as caminhadas com as crianças?
As aulas daquele dia tinham encerrado; a pesquisadora, sentada na soleira
da porta da biblioteca da escola, realizava anotações em seu diário decorrentes
das observações feitas naquela manhã em sala de aula. Seu interesse de pesquisa
repousava sobre as formas de participação das crianças nas práticas educativas
desenvolvidas em uma turma multiseriada. Um grupo de crianças aproxima-se
e um convite é feito: “Vamos, nós já almoçamos. Vamos com nós até lá embaixo?”.
Sem hesitar, coloca-se em pé e segue com as crianças. Ao sair da escola, pergunta:
“O que é lá embaixo?”. “Ué, é lá embaixo. Olha, tem que subir e depois descer. É lá
embaixo que a gente mora”. Naquele momento, percebe que a referência “lá embai-
xo” indicava características do relevo local.
Ao longo da caminhada, as crianças contam sobre como vivem na comunida-
de da Capilha. Falam de suas brincadeiras. Narram empolgadas sobre histórias
com personagens assustadores (lobisomem, noiva sangrenta). Relatam sobre as
atividades de pesca e de lida no campo realizadas por suas famílias. Apresentam
pessoas e oferecem descrições detalhadas sobre as tarefas que realizam diaria-
mente na comunidade. Mostram a si próprias como pertencentes e envolvidas
com práticas típicas dos adultos, como a conversa no balcão do pequeno armazém
da localidade.
As caminhadas com as crianças permitiram a construção de outro olhar no de-
senvolvimento da pesquisa. As situações observadas em sala de aula evidenciavam
o comportamento silencioso das crianças, que se manifestavam apenas quando soli-
citadas pela professora ou quando precisavam manusear materiais entre elas. Em
contrapartida, durante as caminhadas pelo pequeno vilarejo, eram espontâneas e
tenazes em suas investidas; perspicazes na exposição sobre as situações vividas na
escola e na comunidade. Durante o percurso de uma caminhada, argumentavam e
interagiam entre si e com a pesquisadora, apresentando um repertório enriquecido
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de informações e conhecimentos sobre suas atividades cotidianas e também dos
adultos.
Com as caminhadas, foi possível ampliar a relação de pertencimento à
comunidade da Capilha, seja das crianças, como da própria pesquisadora. O
pertencimento ultrapassa o reducionismo biológico porque trata de distinguir
a natureza humana na dimensão da vida, mostrando que a noção de perten
-
cimento exige “inscrever a lógica da vida nas condições específicas do modo de
organização cultural da sociedade humana” (SÁ, 2005, p. 251). O sentimento
de pertencer ultrapassa nascer e viver num determinado lugar porque envolve
o gostar das histórias que são contadas sobre o local, a cultura, o dia a dia.
Envolve um sentimento de afetividade e de amor pelas coisas e pelos sujeitos
da comunidade. Produz, portanto, a compreensão de que os laços extrapolam as
dimensões biológicas, pois em razão da cultura, capital genético de segundo grau
(MORIN, 2001), outras bases se organizam por meio da linguagem e da comu
-
nicação, ampliando as formas de pertencimento, o que inclui dimensões reais e
simbólicas, humanas e ambientais.
No decorrer das caminhadas, as crianças relataram sobre os saberes da cul-
tura local e explicaram quais atividades seus familiares mais desenvolviam, entre
elas, a pesca e a lida no campo, principais formas de subsistência de suas famílias.
As falas das crianças traziam a descrição das tarefas e das posições que ocupavam
em situações que envolviam as atividades de trabalho, demonstrando aspectos de
sua participação junto aos adultos. Nesses momentos, as produções interpretativas
sobre a cultura do lugar foram sendo explicitadas. Expressões como: “eu pesco com
o meu pai, agora ele tá matando pouco peixe, o peixe tá mais pro fundo” e “meu pai
pesca, eu vou com ele, mas agora ele tá trabalhando de peão” oferecem elementos
para demarcar sua participação nas atividades laborais. São falas ilustrativas da
leitura que elas fazem da situação econômica em que vivem os moradores e as
famílias do local, em referência à condição do tempo cíclico que orienta a sobrevi-
vência e o trabalho na região.
Os relatos das crianças sobre a cultura da pesca e da vida campesina, sobre-
tudo de situações que elas estabeleciam com os adultos são potentes para pensar
nas relações geracionais. Em certa ocasião, uma pergunta é feita à pesquisadora:
“Tu já comeu bolinho de bochechinha”? Após a resposta indicar desconhecimento, a
explicação: “Tu não sabes?! Ué... é um bolinho feito da bochecha do peixe”. Interpe-
lações desta natureza mostram conhecimentos sobre pratos típicos, ao mesmo tem-
po indicam o estranhamento à pesquisadora e sua capacidade de ressignificação,
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isto é, a interpretação criativa construída pelas crianças em relação às informações
que capturam do mundo adulto. É um processo que ultrapassa a imitação, mas a
apropriação de informações de forma inventiva, produzindo seus próprios conheci-
mentos. O relato traz elementos da cultura produzida pelas crianças, a qual, imer-
sa na espiral cultural, definida pelas atividades e saberes da pesca artesanal e da
vida campesina, evidenciam a mobilização de seus saberes como grupo geracional
pertencente à sociedade, neste caso, à Capilha.
O caminhar com as crianças tornou possível capturar nuances de suas relações
com outros adultos da localidade, o que mostrava os conhecimentos delas sobre as
práticas sociais cotidianas. Em certo percurso, uma das crianças, que andava de
bicicleta, toma distância do grupo que está a pé. Minutos depois, sua bicicleta é
avistada em frente a um pequeno comércio. O grupo interrompe a caminhada e
fica à espera do colega que, instantes depois, vem eufórico ao encontro dos colegas
dizendo: “Por isso que é bom o cara ser respeitador e conhecer todo mundo. Fui na
venda saber quanto custava um chiclete e o J. estava lá. Me disse que eu podia
pegar quantos chicletes eu quisesse, mas eu não quis. Aí ele falou: pega, pega,
isso é coisa de brother. Então peguei um só”. A fala revela valores que as crianças
percebem como brechas, as quais possibilitam suas inserções no grupo dos adultos.
Situações como esta mostram aspectos das relações intergeracionais, explicitando
a reinterpretação que as crianças fazem quanto aos valores e modos de organização
social dos adultos dessa comunidade, em que respeito e conhecimento de todos que
ali moram são importantes e são por elas entendidas como estratégias de inclusão,
que, então, são recompensadas por seu comportamento.
Entender a cultura das crianças significa reconhecer que elas não produzem
de forma isolada as relações que estabelecem com o local e as pessoas que ali vi-
vem. São produções culturais resultantes das interações e das interpretações de in-
formações decorrentes do contato com os adultos, o que as ajudam a construir uma
nova leitura do contexto em que vivem. A fala ilustra que elas sabem e reconhecem
que o respeito é um modo de estar incluso no grupo dos adultos e de ser aceito como
igual, um brother, no caso da comunidade em que vivem.
Em outro momento de caminhada duas crianças se distanciam do grupo e
mais à frente agacham-se à margem de um pequeno açude para observar duas
tartarugas. Quando o grupo todo se aproxima, uma das crianças que observava
os animais conta sobre uma situação vivida com os amigos, no mato, próximo ao
açude. “Nesse mato dizem que tem bicho estranho, com asa e cor de tigre. Eu e
meus amigos viemos aqui e não achamos nada. Reviramos todo mato”. Em poucos
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instantes, uma exclamação é feita, em tom meditativo: “É... aqui na Capilha tá
aparecendo coisas estranhas! Tem gente caminhando, pra lá e pra cá... Aqui era
calmo. Agora tá mudando. No verão é que fica pior, vem gente de fora, de carro,
acampar com música alta e ficam passando toda hora aqui. Até fazem das árvores
de banheiro”.
Diante de práticas distintas dos costumes e hábitos locais, as crianças es-
tranham pessoas desconhecidas em seu modo agirem, descrevendo seus com-
portamentos como contrários ao jeito de viver na Capilha. “Aqui todo mundo se
conhece, é bem calmo, só quando vem gente da cidade para descansar que eles
ligam o som alto”. Elas não estão passivas aos acontecimentos ao seu redor, bem
como às informações e conhecimentos que permeiam suas vidas; seus pontos de
vista revelam aspectos atentos à imposição cultural, como ouvir música alta, de
-
monstrando sentimentos de desvalorização e desrespeito aos seus modos de ser e
estar na Capilha.
O contexto é produto e produtor das vivências das crianças, “é o elo da união
entre as categorias analíticas dos acontecimentos macro-sociais e micro-sociais”,
pois refere um “espaço e um tempo cultural e historicamente situado” (GRAUE;
WALSH, 2003, p. 25). O contexto se apresenta como elemento revelador do que
constitui o movimento e a dinâmica do cotidiano da Capilha. Nesse sentido, as
caminhadas se apresentaram como uma ferramenta capaz de acercar-se das inte-
rações sociais e culturais entre as crianças, a comunidade e seus visitantes.
Desse processo algumas aprendizagens para os processos de investigação com
crianças podem ser destacadas. Entre elas está a relevância do pesquisador estar
atento, de ser um observador sensível ao que se configura ao seu redor. É necessá-
rio ser sensível às pistas que o contexto e as crianças oferecem nos momentos de
interações ou até mesmo nos momentos de silêncio. Ao realizar as caminhadas, foi
possível entender com maior amplitude que os dados “não andam por aí a espera de
serem recolhidos” (GRAUE; WALSH, 2003, p. 94), mas decorrem da sensibilidade
do pesquisador de percebê-los, especialmente quando se está imerso no campo de
investigação e se está disposto à participação, às interações e às relações que são
tecidas com os colaboradores da pesquisa.
As caminhadas abriram brechas para que as crianças demonstrassem sua
criatividade e capacidade de falar e refletir sobre as dinâmicas e práticas do coti-
diano na Capilha. Assim, com as caminhadas o ato de investigar pode ser “[...] con-
cebido como uma série de contextos encaixados uns nos outros, incluindo as pers-
pectivas do pesquisador sobre a investigação, a teoria, e, neste caso, as crianças; o
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papel negociado com/pelos participantes; e as relações que se estabelecem ao longo
do tempo” (GRAUE; WALSH, 2003, p. 94). Com base nesse conjunto de elementos
articulados é possível compreender as relações produzidas entre crianças e adultos
sobre as práticas culturais em sua comunidade.
Durante as caminhadas também foi possível experimentar a construção do
respeito e da ética na pesquisa. Um fato ocorrido em um dos momentos de ob-
servação na escola, próximo ao término da aula, elucida o respeito e a ética como
aspectos necessários à investigação com crianças. Um pequeno grupo de crianças
se aproxima e uma fala é dirigida à pesquisadora: “Hoje tá chovendo. Então tu não
vais com nós porque estamos de bicicleta!”. Acompanhar as crianças durante um
dia de chuva atrapalharia seu percurso de retorno até suas casas, pois não permi-
tiria que voltassem com maior rapidez e agilidade.
Diante dos aspectos assinalados, a pesquisa com crianças requer o exercício
contínuo de respeitar o espaço e o tempo das crianças e com elas negociar acordos
e atividades relativas aos encaminhamentos metodológicos. Fazer pesquisa com
crianças significa que, enquanto pesquisadores, necessitamos aprender a com-
preender e a respeitar suas demandas e necessidades. O caminhar com as crianças,
como prática de pesquisa, proporcionou condições para descortinar os mundos in-
fantis vivenciados em contexto campesino e pesqueiro. Ainda, ajudou a compreen-
der as reinterpretações que as crianças realizam sobre a cultura local e o mundo
adulto. Como proposta metodológica, as caminhadas permitiram que a geração de
dados acontecesse em conjunto com as crianças e, inclusive, contemplasse suas
demandas ou seguisse suas sugestões, o que redimensionou o próprio lugar da
pesquisadora como gestora central da pesquisa. Desse modo, as caminhadas, como
ferramenta de observação e de interação com o universo infantil, ampliam os atos
investigativos na medida em que incorporam e inserem as percepções e os signi-
ficados (re)produzidos pelas crianças sobre o seu pertencimento ao local em que
vivem, em suas múltiplas dimensões: social, econômica, cultural.
Algumas pistas para seguir caminhando
A expressão “Tem gente caminhando pra lá e pra cá” ilustra diferentes pontos
de vista e interpretações possíveis para pensar pesquisas que envolvem a partici-
pação das crianças. Caminhar pra lá e pra cá com as crianças permite reconhecer
e acercar-se de suas formas de mobilidade e interpretação sobre os eventos cotidia-
nos. Para caminhar com as crianças é preciso estar disposto a lançar mão de ações
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que valorizam a sua participação. É necessário querer ouvi-las e respeitá-las em
seus tempos de comunicação e de silêncio; sobretudo, é preciso aprender a reconhe-
cer que há outras lógicas por elas mobilizadas para explicar as formas de estar no
mundo e de viver em suas comunidades.
“Caminhar pra lá e pra cá” na pesquisa com crianças também requer des-
pir-se de verdades a serem alcançadas e encerradas conceitualmente para assim
compreender o que significam atividades como “capturar peixe” e pertencer a um
determinado grupo, isto é, ser um “brother”, sentidos que estão intimamente rela-
cionados com o lugar em que se atua como agente cultural.
Os sentidos sobre “há gente caminhando pra lá e pra cá”, tomando a referência
feita aos visitantes e às pessoas desconhecidas à comunidade, conforme relatado
pelas crianças, mostram o estranhamento e o enfrentamento entre grupos que se
relacionam em determinadas situações, os quais com base em suas diferenças e
pertenças culturais atribuem significados e modos de agir distintos, por vezes, di-
vergentes. O posicionamento das crianças, quando questionam tal situação, leva-
-nos a compreender o seu protagonismo social ao realizarem a leitura do mundo e
de seus contextos.
As caminhadas também permitiram observar o protagonismo das crianças por
meio de suas falas e conhecimentos sobre as atividades laborais de suas famílias,
mostrando-se participativas e sabedoras da cultura a que pertencem. Nesse sen-
tido, as caminhadas possibilitaram experimentar o que na abordagem etnográfica
é fundamental, isto é, as significações produzidas pelas crianças “no seu espaço, o
espaço numa comunidade alargada” (GRAUE; WALSH, 2003, p. 31).
Os aspectos reunidos apontam as caminhadas como uma ferramenta metodo-
lógica que permitiu pensar na “reprodução interpretativa” que as crianças reali-
zam de forma inventiva e criativa, constitutiva de suas próprias teias de culturas
e saberes. Teia produzida pelas crianças por meio da participação em locais e do-
mínios institucionais, com seus pares e com os adultos. As relações produzidas por
grupos geracionais possibilitam o trânsito de culturas, de saberes e de experiências
salientes às culturas infantis, e a sua comunicação e entrecruzamentos são consti-
tutivos das culturas infantis.
A aposta em práticas metodológicas que valorizem abordagens epistêmicas
inscritas em campos interdisciplinares, capazes de amparar a realização e a con-
solidação de pesquisas com crianças, e não sobre ou para, é tarefa necessária aos
investigadores do campo educacional. Para isso, é preciso buscar e construir novas
ferramentas metodológicas que priorizem as crianças como agentes dos estudos e
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processos investigativos. Nesse sentido, as caminhadas, além de favorecerem uma
maior aproximação às culturas infantis, também ofereceram condições para a es-
cuta sensível às suas vozes, na diversidade que as compõem, em suas condições de
existência e de (re)produção cultural a partir do cotidiano campesino e pesqueiro
em que vivenciam suas experiências infantis.
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