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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Socialização em contextos de violência e desconança: reexões sobre a obra República das Milícias – do esquadrão da morte à era Bolsonaro
v. 28, n. 1, Passo Fundo, p. 421-428, jan./abr. 2021 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
As milícias expandiram-se em contextos de fragilidades institucionais e de
corrupção nas corporações oficiais que têm a finalidade de dar segurança ao cida-
dão. Não por acaso, muitos milicianos foram expulsos de suas corporações e cria-
ram organizações paralelas. São exemplos bem conhecidos: Ronnie Lessa (acusado
de assassinar a vereadora Marielle e seu motorista Anderson), Fabrício Queiroz
e Adriano da Nóbrega (recentemente assassinado). Adriano passou a ganhar di-
nheiro como matador profissional, considerado um exímio atirador que tinha uma
formação militar de alta qualidade (MANSO, 2020, p. 198). Dados mostram que em
2008 as milícias dominavam 171 áreas na grande Rio de Janeiro (2020, p. 88). Em
2008, foi criada a CPI das milícias, presidida pelo deputado Marcelo Freixo para
apurar as ações de milicianos e as relações com o poder legislativo. A CPI foi con-
cluída em 2008 e, desde então, até 2017, foram presos 1.310 milicianos acusados de
múltiplos crimes (MANSO, 2020, p. 98).
A fala do miliciano Lobo, entrevistado por Manso e objeto de análise do primei-
ro capítulo da obra, ressalta a importância da nova ordem social que os milicianos
ajudaram a instaurar: “... era melhor do que a vigente no passado, estabelecida por
bandidos e pelo tráfico. A violência fundada dos paramilitares se justificava por ser
um meio de defender os interesses dos cidadãos de bem contra a ameaça dos crimi-
nosos” (MANSO, 2020, p. 9). Chama atenção que entre os milicianos a corrupção
e o roubo são inaceitáveis, enquanto os homicídios são naturalizados. Assassinar
criminosos torna-se um ato heroico. O criminoso é o que rouba e essa condição é
“intolerável e covarde” (MANSO, 2020, p. 13). Nesses casos, os assassinatos são
justificados. Daí a grande quantidade de crimes cometidos por milicianos, bem pla-
nejados e executados, mas pouco investigados. A expressão “bandido bom é bandido
morto” ganha, aqui, um sentido profundo. O miliciano sente-se autorizado a matar
o bandido (traficante ou ladrão) para defender o cidadão de bem, ou seja, ele está do
lado do bem. Esse discurso polarizado entre os do bem e os outros, é muito conheci-
do entre nós, especialmente desde a campanha presidencial de 2018.
Para executar bem o serviço de matar é fundamental a posse de equipamento
de alta precisão para não deixar rastros do crime. É nesse contexto, que a milícia
expandiu seus negócios, também, no contrabando de armas, especialmente do Pa-
raguai, visando a constituição de verdadeiros arsenais de guerra. Somente na casa
do miliciano Ronnie Lessa, preso pelo assassinato de Marielle e seu motorista,
Anderson, juntamente com o ex-PM Élcio de Queiroz, foi apreendido, em 2019,
material suficiente para montar 117 fuzis (MANSO, 2020, p. 112). O livro relata
situações de desvio de armas da polícia, contrabando de armas, partilha de espólios