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Socialização em contextos de violência e desconança: reexões sobre a obra
República das Milícias – do esquadrão da morte à era Bolsonaro
Telmo Marcon
*
Daniela dos Santos
**
A obra República das Milícias: do esquadrão da morta à era Bolsonaro, do jor-
nalista Bruno Paes Manso, lançada em 2020 pela Editora Todavia (SP), tem a arte
da capa de Pedro Inoue. Nas 302 páginas, o autor desenvolve oito capítulos e mais
uma reflexão final com o título Ubuntu. Os capítulos estão assim organizados: 1)
apenas um miliciano; 2) os elos entre o passado e o futuro; 3) as origens em Rio das
Pedras e na Liga da Justiça; 4) fuzis, polícia, bicho; 5) facção e a guerra dos tronos;
6) Marielle e Marcelo; 7) as milícias 5G e o novo inimigo em comum; 8) Cruz, Ustra,
Olavo e a ascensão do capitão.
A obra trata de um amplo conjunto de questões e personagens envolvidos nas
tramas descritas, não apenas milicianos, mas, também, traficantes de drogas, gru-
pos de extermínio não milicianos, policiais, bicheiros, setores do legislativo munici-
pal, estadual e federal, personagens vinculados ao judiciário e setores do executivo
de diferentes esferas da gestão pública. As ações desses múltiplos grupos organiza-
dos produzem relações de poder, dominação, silenciamento, assassinatos, chacinas,
extorsões, controle de favelas e serviços básicos que deveriam ser função do Estado,
legitimam ou censuram determinadas formas de vida social que resultam em no-
vas formas de socialização extremamente precarizadas.
A presente resenha delimita uma questão que emerge da análise cuidadosa
do autor: a socialização no contexto de relações sociais baseadas na subordina-
ção, no medo e na desconfiança. Como pensar numa sociabilidade democrática
e cidadã, onde as pessoas não têm as possibilidades efetivas de se constituírem,
conviverem e se expressarem livre e democraticamente? É possível uma socializa-
ção humanizadora onde predomina o medo e a desconfiança no outro? Entende-se
*
Doutor em História Social pela PUC-SP, com pós-doutorado em educação intercultural pela UFSC. Professor e pes-
quisador na Faed e no PPGEDU (mestrado e doutorado) da UPF. Orcid: http://orcid.org/0000-0002-9110-3210. E-mail:
telmomarcon@gmail.com
**
Doutoranda em Educação pelo PPGEDU da UPF. Professora na Faculdade de Ciências Econômicas, Administrativas e
Contábeis da UPF. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9931-6352. E-mail: danielasantos@upf.br
Recebida em: 17/05/2021 – Aprovada em: 17/05/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i1.12586
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por socialização a apropriação e a vivência de normas e valores compartilhados,
aceitos e reconhecidos numa determinada sociedade em seus diferentes contextos
socioculturais. A socialização pode estar ancorada em princípios republicanos e ci-
dadãos, mas, também pode ser precarizada. A obra em questão evidencia o quanto
é precária a socialização de milhares de pessoas na grande Rio de Janeiro onde
as milícias prosperaram de modo exponencial nas últimas duas décadas, gerando
insegurança, violência, desconfiança, homicídios e chacinas. Nesse sentido, a obra
descreve em detalhes um conjunto de realidades que afronta uma sociabilidade
democrática e humanizadora.
A violência como prática social não é estranha à história da humanidade. Ela
ganha, no entanto, diferentes formas e intensidades em cada contexto histórico.
Bruno Paes Manso faz uma análise desse fenômeno na grande Rio de Janeiro, esta-
belecendo algumas breves conexões com São Paulo e outros estados. O que chama
atenção é a privatização da cidade e o controle das pessoas, práticas que colidem
com os avanços civilizatórios e republicanos. As transformações decorrentes dos
processos de urbanização analisadas por Manso dão conta da emergência de novos
sujeitos coletivos que se armam, estruturam-se e desenvolvem práticas de violên-
cia em defesa de interesses corporativos. Para tanto, fazem uso de armamento
pesado, ameaçam, reprimem, torturam, assassinam, lincham, traficam, organizam
segurança privada em troca de mensalidades e fidelidade.
Os grupos emergentes, especialmente milicianos, entram em confronto direto
com outros grupos já existentes, resultando em disputas, tiroteios e mortes. Ao lon-
go da obra há descrições de como os milicianos expandiram suas áreas de atuação
e controle em várias regiões no rio de Janeiro e em setores estratégicos: monopo-
lizando a venda de gás; gatonet; gatoluz; tráfico de armas; transporte clandestino
em vãs; jogos de contravenção; jogo do bicho; controle na construção e venda de
imóveis; cobrança de taxas para a segurança privada de moradores e empresas;
assassinato de pessoas ‘indesejáveis’; venda ilegal de cigarros; agiotagem; grilagem
de terras (especialmente em éreas de preservação); grupos de extermínio; extorsão
de dinheiro; pagamento de arrego, ou seja, taxas para a polícia não realizar abor-
dagens e operações em determinados espaços etc. Quando milicianos entram em
confronto com outros grupos, usando armamento pesado, o cidadão fica exposto
a tiroteios, muitos morrem por balas perdidas, escolas e outros serviços públicos
são fechados. O medo e a insegurança tomam conta das pessoas, produzindo um
cotidiano extremamente incerto e precarizado.
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As milícias expandiram-se em contextos de fragilidades institucionais e de
corrupção nas corporações oficiais que têm a finalidade de dar segurança ao cida-
dão. Não por acaso, muitos milicianos foram expulsos de suas corporações e cria-
ram organizações paralelas. São exemplos bem conhecidos: Ronnie Lessa (acusado
de assassinar a vereadora Marielle e seu motorista Anderson), Fabrício Queiroz
e Adriano da Nóbrega (recentemente assassinado). Adriano passou a ganhar di-
nheiro como matador profissional, considerado um exímio atirador que tinha uma
formação militar de alta qualidade (MANSO, 2020, p. 198). Dados mostram que em
2008 as milícias dominavam 171 áreas na grande Rio de Janeiro (2020, p. 88). Em
2008, foi criada a CPI das milícias, presidida pelo deputado Marcelo Freixo para
apurar as ações de milicianos e as relações com o poder legislativo. A CPI foi con-
cluída em 2008 e, desde então, até 2017, foram presos 1.310 milicianos acusados de
múltiplos crimes (MANSO, 2020, p. 98).
A fala do miliciano Lobo, entrevistado por Manso e objeto de análise do primei-
ro capítulo da obra, ressalta a importância da nova ordem social que os milicianos
ajudaram a instaurar: “... era melhor do que a vigente no passado, estabelecida por
bandidos e pelo tráfico. A violência fundada dos paramilitares se justificava por ser
um meio de defender os interesses dos cidadãos de bem contra a ameaça dos crimi-
nosos” (MANSO, 2020, p. 9). Chama atenção que entre os milicianos a corrupção
e o roubo são inaceitáveis, enquanto os homicídios são naturalizados. Assassinar
criminosos torna-se um ato heroico. O criminoso é o que rouba e essa condição é
“intolerável e covarde” (MANSO, 2020, p. 13). Nesses casos, os assassinatos são
justificados. Daí a grande quantidade de crimes cometidos por milicianos, bem pla-
nejados e executados, mas pouco investigados. A expressão “bandido bom é bandido
morto” ganha, aqui, um sentido profundo. O miliciano sente-se autorizado a matar
o bandido (traficante ou ladrão) para defender o cidadão de bem, ou seja, ele está do
lado do bem. Esse discurso polarizado entre os do bem e os outros, é muito conheci-
do entre nós, especialmente desde a campanha presidencial de 2018.
Para executar bem o serviço de matar é fundamental a posse de equipamento
de alta precisão para não deixar rastros do crime. É nesse contexto, que a milícia
expandiu seus negócios, também, no contrabando de armas, especialmente do Pa-
raguai, visando a constituição de verdadeiros arsenais de guerra. Somente na casa
do miliciano Ronnie Lessa, preso pelo assassinato de Marielle e seu motorista,
Anderson, juntamente com o ex-PM Élcio de Queiroz, foi apreendido, em 2019,
material suficiente para montar 117 fuzis (MANSO, 2020, p. 112). O livro relata
situações de desvio de armas da polícia, contrabando de armas, partilha de espólios
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apreendidos em operações policiais. Em algumas operações da polícia, descreve
Manso, parte das tropas sequer seguiram as ordens dos comandantes superiores
e agiram por impulso próprio, gerando mais morte e sofrimento para pessoas e
famílias.
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A expansão das milícias e outros grupos, à margem da lei, ocorre concomitan-
temente à corrupção de agentes e instituições públicas, incluindo setores do legis-
lativo, do judiciário e do executivo municipal e estadual, bem como, do enfraque-
cimento do Estado na prestação de serviços básicos. Esses grupos organizados se
expandem na mesma proporção em que o Estado encolhe, gerando um ambiente de
insegurança, exploração, violência e de medo e, dessa forma, justificam suas ações.
“Quando o Estado e a Justiça abrem mão de suas funções, a disputa é definida pela
lei do mais forte” (MANSO, 2020, p. 293).
A sensação de uma aparente segurança gerada pela presença de milicianos
permitiu a consolidação de um poder paralelo ao próprio Estado. Alguns agentes do
Estado atuavam em diferentes espaços e funções ao mesmo tempo, ou seja, atua-
vam na corporação e também na segurança privada junto com milicianos. Assim,
as milícias ampliaram seu poder de ação por dentro de espaços institucionalizados.
Certas práticas foram facilitadas, na grande Rio de Janeiro, pela constituição geo-
gráfica da cidade, bairros e favelas, pelos complexos processos de urbanização e
pela ausência de emprego e outras formas alternativas de sobrevivência. A obra de
Manso ajuda a pensar a constituição dos territórios e seus processos socializadores.
A cidade é um território em constante transformação. É o lugar onde as pessoas
moram, trabalham, convivem, porém, o acesso às condições de uma vida digna não
é para todos. O estudo de Rio das Pedras, analisada no capitulo terceiro, evidencia
como os milicianos foram adentrando esse território, criando novas relações com a
população, profundamente insegura e vítima da violência de traficantes e de outros
grupos.
O preço que moradores pagam para ter a segurança privada de milicianos é
alto, não somente monetariamente, mas, principalmente, social e cultural. As mi-
lícias aproveitaram-se da ausência do Estado criaram seus tentáculos, ganhando
confiança da população e implementando práticas de controle e extorsão, impondo
suas normas, legitimando a morte como um mal necessário para manter a ordem
e a segurança da comunidade e banalizando a violência na certeza da impunidade.
Daí a associação das milícias com a chamada banda ‘podre’ da polícia (MANSO,
2020, p. 31).
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Diante desse breve quadro, questiona-se como fica a socialização tanto nos
espaços familiares e sociais, quanto no âmbito da escola? Se entendermos que a
socialização tem de criar as condições para as pessoas se integrarem socialmen-
te, educando-as para uma vida democrática, como ficam esses pressupostos em
contextos de medo e insegurança? Como educar para a sensibilidade estética e a
valorização do outro se as experiências são predominantemente de violência, medo
e morte? A democracia exige confiança no outro. Como fica, então, a educação para
uma vida democrática quando as relações sociais estão assentadas na desconfian-
ça? Muitos autores problematizaram os desafios de uma educação democrática e
cidadã, valorizando e reconhecendo o outro. A pesquisa feita por Manso evidencia o
quão são precarizadas as formas de socialização no contexto analisado.
A história brasileira é permeada de violência e brutalidade, práticas fortaleci-
das durante a experiência escravocrata. A ditadura militar de 1964 a 1985 fortale-
ceu essa ideia que foi, posteriormente, disseminada em outros espaços. No capítulo
oitavo da obra, Manso (2020, p. 257-287) analisa as raízes dessa tradição autoritá-
ria que foi radicalizada durante a ditadura de 1964 a 1985. Essa cultura não acaba
com o fim da ditadura em 1985. Ao contrário, o autor mostra a sua continuidade
em personagens conhecidos como do general Newton Cruz, de Olavo de Carvalho, o
do coronel Brilhante Ustra até chegar a Jair Bolsonaro que ascende politicamente
na medida em que o discurso miliciano é incorporado em sua pauta de campanha:
combate aos corruptos e criminosos (inaceitáveis) e a defesa da violência para colo-
car ordem no país. Há, portanto, um conjunto de elementos discursivos e de práti-
cas que justificam a violência e a morte de criminosos como valores. As milícias se
estruturaram em cima desses pressupostos e disseminam em suas ações o medo, a
morte e a desconfiança. A tese que defendem é que a violência é uma necessidade
para instaurar a ordem social, ou seja, a violência é pedagógica e ensina como se
comportar.
A lógica miliciana é que a violência produz ordem (MANSO, 2020, p. 13). Nes-
se sentido, é interessante a fala de Lobo, entrevistado por Manso (2020, p. 23), ao
descrever as ações da milícia: “O segredo de ganhar a comunidade era fazer o que o
Estado não conseguia fazer. Até escola particular pra criancinha especial o Betinho
pagava. Quando o tráfico quis voltar, os moradores amavam tanto o pessoal que
alguns até pediram armas para ficar atirando da janela nos traficantes”. Chama
atenção, também, que operações policiais praticamente não ocorreram em áreas
comandadas pelos milicianos. Onde a atua milícia a polícia praticamente não mata
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(2020, p. 244), ou seja, não faz operações, ao contrário das favelas onde entram em
disputas os traficantes com os milicianos.
A pesquisa que resultou no livro teve como objetivo, segundo Manso (2020,
p. 32), “compreender por que e como a sociedade vem produzindo esses compor-
tamentos violentos e induzindo seus participantes a seguirem esses caminhos...”.
Assassinatos sem deixar rastros e a segurança privada com a cobrança por serviços
(2020, p. 77), passou a dar mais dinheiro do que o tráfico, além de ser ‘menos peri-
goso’. A ação miliciana, no entanto, não se limita às descritas acima. Passaram a
influir e intervir na política partidária com a eleição de representes para os dife-
rentes cargos eletivos: vereadores, deputados estadual e federal e ao senado, pre-
feitos, governador e presidente. Assim, o domínio dos milicianos implicou, também,
a conquista de votos para candidatos indicados e apoiados pelas próprias milícias.
As investigações sobre rachadinhas na Alerj envolvendo o atual senador Flávio
Bolsonaro, quando ainda era deputado estadual, e as ações do miliciano Fabrício
Queiroz, ajudam entender as vinculações entre a milícia e a representação política.
Recursos advindos de práticas ilegais são ‘lavados’ de diferentes formas, entre as
quais, investindo no setor imobiliário.
A tese desenvolvida por Manso é de que: a ausência do Estado em serviços
básicos cria condições para a expansão de grupos privados que executam alguns
desses serviços e, em contrapartida, exercem diferentes formas de domínio sobre
as populações locais. Os processos que interferem na construção do território são
fundamentais para a constituição de uma cidade que pode ser educadora ou gera-
dora de mais desigualdades e discriminações. Nos processos educativos, o Estado
se torna imprescindível, uma vez que detém o poder de administrar, regular, fis-
calizar, executar programas e projetos sociais, defendendo os interesses comuns.
Os contextos analisados por Manso, mostram as profundas cisões existentes nas
cidades da grande Rio de Janeiro e os paradoxos e contradições estruturais que são
agravados pela intervenção desses grupos corporativos que atuam em múltiplas
frentes, a maioria delas ilegais como jogos de azar ou o jogo do bicho. O território
é um produto, ou seja, uma construção social que pode servir de base para uma
sociedade democrática e cidadã, mas também, como é o caso, constituir-se em es-
paço de exploração imobiliária e de controles políticos e paramilitares. Quando o
Estado é ausente, o cidadão busca outras formas de suprir suas necessidades e é
essa a realidade que oportunizou milicianos travestidos de ‘empresários’ a expan-
direm seus negócios, criando estruturas extremamente lucrativas e autossuficien-
tes. O Estado, nessas circunstancias, acaba sendo “terceirizado ou leiloado”, como
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diz Manso (2020, p. 77). As instituições que têm a obrigação legal de combater a
violência e fortalecer o Estado de Direito ficam extremamente fragilizadas e as or-
ganizações paramilitares acabam se associando ao crime organizado. Atuam mais
em conivência como o crime do que no seu enfrentamento. Basta ver a lentidão das
investigações no caso Marielle e Anderson, assim como, no caso das rachadinhas
na Assembleia Legislativa.
Como fica a formação das novas gerações, objeto fundamental das reflexões
sobre socialização? Manso traz inúmeros elementos que ajudam a pensar como as
novas gerações que estão se constituindo nesses contextos de violência terão difi-
culdades para experienciar práticas efetivamente democráticas. Muitas crianças
são afastadas da escola por inúmeras razões; outras são inseridas em práticas vin-
culadas ao tráfico e ao crime; outras vivenciam desde muito cedo situações dramá-
ticas. O relato de Reginaldo de quando era criança de 11 anos impressiona: “Com
onze anos, eu tinha visto muita gente morta nas ruas. Com essa idade, também
vi os primeiros homicídios acontecerem bem na minha frente” (2020, p. 148). Ele
relata que num confronto entre grupos rivais um desses grupos ficou encurralado
e foi feito refém pelos adversários.
Eles amarraram os braços e pescoços desses homens, como fazem na pesca do caranguejo, e
levaram juntos, em fileira, para um lugar perto da minha casa. A embira (corda) foi puxada
pelo chefe do grupo. Eu tinha acabado de chegar do trabalho. Ainda era criança. Estava
sentado na soleira da minha porta, não tinha muro. Eu morava na subida do morro. O chefe
do bando me viu e gritou: ‘não sai daí, não, que é par você ver e aprender a ser homem’.
E daí começou a chacina. Todos os doze foram mortos a pauladas, socos, pedradas e tiros
calibre 22 (MANSO, 2020, p. 148).
Essa ideia de ver para aprender é parte da tese que o autor diz fazer parte
do cotidiano desses grupos, entre os quais os milicianos, que entendem a violência
como ação educativa. Como observa Manso (2020, p. 293):
O homicídio ensinaria aos demais o destino dos ladrões que ousavam desobedecer. Essa
modalidade de assassinato, portanto, era vista como um antídoto ao roubo e ao tráfico de
drogas, formas de violência consideradas covardes, desrespeitadoras das regras e gera-
doras de imprevisibilidade. Assassinatos, encarados desse ponto de vista, podem levar à
ordem, que por sua vez traz segurança. Já o roubo e o tráfico são sinônimos de desordem,
provocam medo e uma sensação de vulnerabilidade.
Essa hierarquia ocorre, também, em outras situações como o jogo do bicho: “o
jogo é coisa querida, amada pelo povo. Tóxico é odiado” (2020, p. 164). Tóxico é coisa
de traficante, enquanto o jogo do bicho é aceito. Em síntese, a obra traz um conjun-
to de provocações fundamentais para compreender determinados discursos que ga-
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nharam espaço nos últimos três anos. Tudo isso, no entanto, nos leva a questionar
se é possível pensar a cidade como espaço educador e construtor de sociabilidade?
Como pensar na garantia dos direitos sociais? Como o território pode propiciar
uma socialização articulada à cidadania? Como pensar a Cidade enquanto espaço
democrático e humanizador?
Nota
1
Não estranha o que ocorreu no dia 06 de maio de 2021 em Jacarezinho, Rio de Janeiro, quando uma ação
da polícia resultou na morte de 29 pessoas, sendo 28 civis e um policial. Ainda não foram esclarecidas
várias questões sobre as mortes, mas há indícios de crueldade, execuções e destruição de provas com a re-
moção de cadáveres. Após a leitura da obra de Manso (2020) é possível compreender melhor essas práticas
e as possíveis disputas em pauta.
Referência
MANSO, Bruno Paes. República das Milícias: do esquadrão da morta à era Bolsonaro. São
Paulo: Todavia, 2020.