ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Deslizamentos nos modos de exclusão e a emergência do
capacitismo
Slippages in modes of exclusion and the emergence of capacitism
El deslizamiento en los modos de exclusión y la emergencia del
capacitismo
Juliana Silveira Mörschbächer
*
Neusa Kern Hickel
**
Resumo
Este ensaio discute a construção das categorias de anormalidade/normalidade a partir das quais se
constituem e se validam práticas segregacionistas. Utilizamos para tal análise o referencial teórico de
Michel Foucault em diálogo com o conto O alienista, de Machado de Assis. Tais conceitos se
imbricam com a história da loucura e da educação especial. As práticas classificatórias são
compreendidas como um modo de assinalar quem pode ou não circular socialmente. Nesse contexto,
evidencia-se o capacitismo como preconceito contra as pessoas com deficiência, sendo produzido a
partir da comparação com os corpos considerados capazes de atender aos atuais modos de produção
capitalista. Essa construção social da incapacidade é tomada como verdade e se presentifica no
contexto escolar através da exclusão de alunos com deficiência, encaminhados para espaços
segregados. Michel Foucault aponta para as estruturas sociais que se reiteram por deslizamento nos
modos e nas formas, sendo necessário que se criem brechas nesses discursos para que a produção de
diferença possa emergir.
Palavras-chave: capacitismo; segregação; produção de verdade.
Recebido em: 16/04/2022 Aprovado em: 07/06/2022
https://doi.org/10.5335/rep.v29i1.13442
ISSN on-line: 2238-0302
*
Mestra em Educação (UFRGS); pedagoga e educadora inclusiva (PUCRS); especialista em Psicopedagogia (UniRitter). E-
mail: hickeln@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-1100-0623.
**
Doutora em Psicologia Social e Institucional (UFRGS); psicóloga (PUCRS); psicopedagoga (EPSIBA). E-mail:
jsm.julianasilveira@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-9138-6847.
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Abstract
This essay discusses the construction of the abnormality/normality categories from which
segregationist practices are constituted and validated. For this analysis, we used Michel Foucault's
theoretical framework in dialogue with the short story O alienista by Machado de Assis. Such
concepts are intertwined with the history of madness and special education. Classification practices
are understood as a way of indicating who can or cannot circulate socially. In this context, ableism
is evidenced as a prejudice against people with disabilities, being produced from the comparison with
bodies considered capable of meeting the current modes of capitalist production. This social
construction of disability is taken for granted, and is present in the school context through the
exclusion of students with disabilities, sent to segregated spaces. Michel Foucault points to the social
structures that are reiterated by slipping in modes and forms, making it necessary to create gaps in
these discourses, so that the production of difference can emerge.
Keywords: ableism; secretion; real production.
Resumen
Este ensayo discute la construcción de las categorías de anormalidad/normalidad a partir de las cuales
se constituyen y validan las prácticas segregacionistas. Para este análisis se utilizó el marco teórico de
Michel Foucault en diálogo con el cuento O alienista de Machado de Assis. Tales conceptos están
entrelazados con la historia de la locura y la educación especial. Las prácticas clasificatorias se entien-
den como una forma de indicar quién puede o no circular socialmente. En este contexto, el
capacitismo se evidencia como un prejuicio contra las personas con discapacidad, siendo producido
a partir de la comparación con cuerpos considerados capaces de atender los modos de producción
capitalista vigentes. Esta construcción social de la discapacidad se da por supuesta y está presente en
el contexto escolar a través de la exclusión de los alumnos con discapacidad, enviados a espacios
segregados. Michel Foucault apunta a las estructuras sociales que se reiteran al deslizarse en modos y
formas, siendo necesario crear brechas en estos discursos, para que surja la producción de la diferen-
cia.
Palabras clave: capacitismo; segregación; producción real.
A Casa Verde foi o nome dado ao asilo, por alusão à cor das janelas, que pela primeira
vez apareciam verdes em Itaguaí. Inaugurou-se com imensa pompa; de todas as vilas
e povoações próximas, e até remotas, e da própria cidade do Rio de Janeiro, correu
gente para assistir às cerimônias, que duraram sete dias. Muitos dementes já estavam
recolhidos; e os parentes tiveram ocasião de ver o carinho paternal e a caridade cristã
com que eles iam ser tratados.
(ASSIS, 1994, p. 3)
Abertura
No campo da educação, as discussões sobre práticas segregacionistas estão pre-
sentes tanto nas questões que concernem aos processos inclusivos quanto nas variadas
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situações organizativas do sistema escolar. Correlatas a essas duas dimensões se apre-
sentam diferenças de todas as ordens, sobretudo aquelas reguladas pelos
comprometimentos orgânicos e/ou psíquicos, bem como as provocadas pelas circuns-
tâncias desfavoráveis em termos econômico-sociais. Ambas têm sido motivadoras de
argumentos segregacionistas e de lógicas lineares.
Veicula-se certo domínio de pensamentos e práticas em que estudantes são inse-
ridos em uma conjuntura organizativa preestabelecida, de pouca flexibilidade, cabendo
a eles apresentar as competências e habilidades compatíveis às expectativas escolares.
Geralmente, essas práticas pedagógicas são balizadas por uma lógica de pensamento
gerida pelas semelhanças daquilo que é conhecido: “encaixar, classificar o que quer que
seja em termos de algo conhecido, [...] operar pela lógica das classes, pela lógica dos
conceitos” (MACEDO, 2005, p. 11-12).
As ações permeadas pela classificação são predominantemente excludentes, pois,
enquanto se prestam às abstrações e às equivalências de objetos e objetivos, deixam sem
lugar as dimensões de singularidade dos entes participantes da escolaridade. Justamente
o que não tem lugar nessa operacionalidade é a diferença, por sua ligação ao imponde-
rável desconhecido. Segundo Lino de Macedo (2005, p. 13-14), a diferença
corresponderia a uma organização de coisas em “sua dimensão desconhecida”, podendo
resultar na constatação do vazio e do temor, visto que a “diferença é aquilo que não se
encaixa”. Continua o autor: “A diferença corresponde à ideia de que certas coisas só
podem ser conhecidas por fragmentos, por parte, pelas pistas, pelos vestígios [...] tudo
o que cai fora do controlável, do classificável são exemplos de coisas que fazem diferen-
ças” (MACEDO, 2005, p. 13-14).
O desafio de sistemas escolares mais abertos e, necessariamente, mais complexos
implica na compreensão da lógica da exclusão que atravessa os modos de pensar e agir
em todo o tecido social. A exclusão está ligada aos gestos que instalam uma cultura,
que para persistir se reproduzem indefinidamente, na qual as diferenças não podem
fazer parte.
A preocupação com os sistemas organizativos nem sempre considera a premência
da aprendizagem como função social da escola, embora se afirme isso nos discursos de
qualificação como mote para mudanças. É o caso, que aqui usamos, ocorrido na passa-
gem da seriação para ciclagem. Logo nos primeiros anos de sua implementação, pode-
se observar como ponto de estrangulamento do ensino ciclado a passagem entre um
ciclo e outro, quando os alunos, tal como no modelo de seriação, devem apresentar
resultados compatíveis com o conjunto de objetivos programados. Assim sendo, a ci-
clagem, ao mesmo tempo em que possibilita ganhos importantes, por meio da
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permanência dos alunos na escola, de uma maior e mais significativa ocupação com o
processo e da aparente ampliação da oportunidade de aprendizagem, apresenta-se sus-
cetível às mesmas armadilhas da seriação.
Como modelo organizativo do sistema escolar, a seriação mostrou-se como uma
grande produtora e reprodutora de mecanismos de exclusão, cuja visibilidade dá-se
através da repetência e da evasão. No entanto, repetência e evasão são dispositivos pelos
quais falam um padecimento muito mais intenso e duradouro a grande instituição
na escola
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: não garantir acesso, ou seja, excluir o acesso à aprendizagem.
Essa escassez de acesso à aprendizagem aos ditos conhecimentos escolares está
aquém de qualquer modelo. Sob a seriação, costuma-se encobrir e escamotear as razões
da repetência e da evasão, com argumentos que atribuem ora ao aluno e à sua circuns-
tância de vida, ora ao professor e à sua circunstância profissional. Ao contrário, a
ciclagem põe a nu não a verdade, mas, sim, a localização desses mesmos nós.
A ciclagem, ao produzir a retenção dos alunos, expõe para os profissionais da
educação frágeis argumentos: ao final de um ciclo, lá estão os alunos que não corres-
pondem à sua promessa. Ali emergem os mesmos alunos que, pelo outro modelo,
seriam os trirrepetentes, com a ressalva de que, nessa mesmice, a evasão foi diminuída
ou anulada. Embora favorecedora, a elasticidade de tempo cronológico não garante a
aprendizagem. Então, assim como no modelo seriado, criaram-se variadas medidas
compensatórias, das quais a mais perversa foi a classe especial; tende-se, no modelo de
ciclos, à busca por recursos similares, embora mais atenuados e sob outras denomina-
ções.
Outro mecanismo de exclusão se caracteriza pelas turmas formadas por alunos
considerados com dificuldades de aprendizagem, pois a estrutura classificatória baseada
na capacidade individual permanece. Enquanto o Atendimento Educacional Especia-
lizado (AEE) se diferencia por oferecer suporte ao processo inclusivo, ainda é necessário
se atentar para as estruturas que ordenam a separação dos alunos que se “adaptam”
daqueles que “não se adaptam” à escola comum. Nesse caso, o professor do AEE ne-
cessita fazer um exercício para que o sistema não o vista de Simão Bacamartes, lhe
incumbindo de direcionar os escolhidos para as instituições especializadas.
A busca qualitativa, embora evidente, destaca um deslocamento dos mesmos me-
canismos e da possibilidade das mesmas práticas aniquiladoras da construção das
chamadas aprendizagens escolares. É esse efeito de exclusão, mostrado pelo não acesso
à aprendizagem e pelas medidas compensatórias, que paira como um sistema punitivo
próprio da escola. Do suplício da evasão e da repetência a um suplício mais atenuado
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que usa a elasticidade temporal se estabelece, é claro, estilos de punir, mantendo-se a
soberania da exclusão.
Referimo-nos à pergunta de Michel Foucault (1987, p. 14), em suas pesquisas
sobre o disciplinamento dos corpos:
Punições menos diretamente físicas, uma certa discrição na arte de fazer sofrer, um arranjo de
sofrimentos mais sutis, mais velados e despojados de ostentação, merecerá tudo isso acaso um
tratamento à parte, sendo apenas o efeito, sem dúvida, de novos arranjos com maior profundi-
dade?
Para o autor, esse movimento corresponde ao desaparecimento do corpo suplici-
ado. A questão que se colocaria de imediato é a do deslocamento propriamente dito,
ou seja, como os modos sociais de promover mudanças se instituem sem nada ou pouco
alterar
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se sob a prática do ciclo não haver mais o espetáculo do corpo evadido, e sim
a sutilização de modalidade punitiva, em que espécie de redistribuição da luz se faz
agora a emergência do chamado capacitismo?
Cabe-nos ainda o dito de Michel Foucault (1987, p. 15) sobre a socialização da
infâmia:
No castigo-espetáculo, um horror confuso nascia do patíbulo; ele envolvia, ao mesmo tempo, o
carrasco e o condenado; e se, por um lado, sempre estava a ponto de transformar em piedade ou
em glória a vergonha infligida ao supliciado, por outro lado, ele fazia redundar geralmente em
infâmia a violência legal do executor.
Desse modo paradoxal, ao internalizar os processos de responsabilização social,
já que a exclusão não é um registro apenas encontrável na escola, essa socialização da
infâmia torna a recair sobre os mesmos personagens escolares. Nesse circuito, as medi-
das compensatórias passam a ser viabilizadas, assim como os discursos que possam
conter esses deslocamentos de práticas.
Percurso da Problematização
A exclusão, como acontecimento social, permanece. As relações de poder e de
saber em cada camada temporal, quando perspectivadas, desvelam as intensidades des-
ses movimentos. O poder só existe em ato, mesmo que, é claro, se inscreva num campo
de possibilidade esparso apoiado sobre estruturas permanentes. Assim, pode também
ser entendido como um modo de ação cujo exercício ocorre sobre as ações de outros,
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sempre em uma rede social, configurando-se como relacional e ligado a disposições,
estratégias, manobras e se efetuando no conjunto dessas posições.
O exercício de poder não é simplesmente uma relação entre parceiros individuais ou coletivos; é
um modo de ação de alguns sobre os outros. O que quer dizer que não há algo como o poder ou
do poder, [...] em estado difuso [...], concentrado ou distribuído (FOUCAULT, 1995, p. 242).
Vimos, sobretudo pelos estudos de Michel Foucault, que a exclusão é um modo,
tem funções e vai adotando formas para sustentar a hegemonia vinculada ao controle
social, estando, pois, sempre na dependência de suas características mais ou menos au-
toritárias. Nesse sentido, as mudanças, principalmente as que favorecem a inclusão,
raramente são radicais. Entendemos que as mudanças vão se fazendo por deslizamentos
através de tecnologias, estratégias e dispositivos os mais variados, uma vez que forças e
fluxos não são lineares. Ao contrário, por estes serem permeáveis, são constantemente
atravessados por contraposições, alterando modos de governabilidade e as relações so-
ciais.
Nossa busca se faz na direção de reunir argumentos conceituais que contribuam
para a compreensão de algumas mudanças, bem como oferecer certa visibilidade ao que
os deslizamentos vão tornando possível. Vimos, no breve recorrido sobre a mudança
de seriação para ciclagem, um caso na organização escolar, de que se trata de uma situ-
ação paradoxal uma mudança é anunciada, mas leva consigo um conjunto de
estratégias cuja novidade é duvidosa.
Desse modo, os argumentos aos quais recorremos se conduzem por um breve
estudo das concepções classificadoras, através de pesquisas e relatos que historiam as
práticas segregacionistas. Para tanto, percorremos produções conceituais e analisamos
aqueles que nos ajudam a pensar como isso se constituiu. Trata-se aqui de uma crítica
à ciência positivista, cujo teor avaliativo ordena, classifica, diagnostica e, muitas vezes,
medica a vida por não se enquadrar no que se nomeia como normal. A prática classifi-
cadora do humano, quando nomeada como propriedade de um campo científico, se
apresenta como a verdade comprovada e estabelecida, prática que se insere em um con-
texto histórico-social.
Apresentam-se à discussão certas construções dessas categorias de normalidade,
que nos propõem a pensar a implicação disso com a construção do capacitismo escolar
e sua reprodução na legislação
3
, no campo social e nas escolas de educação básica. O
capacitismo tem como premissa o preconceito contra pessoas com deficiência e é deri-
vado de uma construção social anterior que busca a padronização do corpo e dos afetos,
estando alinhado com as questões do capitalismo. Nesse sentido, pode-se compreender
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que a discriminação e o confinamento em espaços exclusivos são uma formação do
capitalismo aliada aos modos de controle pelo diagnóstico, em que a produção de di-
ferença recai sobre a improdutividade.
Recorremos, fortemente, a um diálogo com as obras de Michel Foucault sobre a
construção histórica e sempre provisória da verdade, assim como a seus estudos sobre
história da loucurae os anormais. Tais temas se refletem nos dias de hoje no modo
como nos relacionamos com a verdade, sempre contextual, nesse caso sobre a capaci-
dade de outrem, e a exigência de cuidados segregadores para aqueles considerados
incapazes’.
Lilia Lobo (2015), na perspectiva da arqueologia, recortando os conceitos de
anormalidade e normalidade em relação às práticas classificatórias, contribui com sua
pesquisa para tangenciarmos a criação de espaços de segregação no Brasil.
Seguimos com a análise sobre o estabelecimento do maior hospício brasileiro,
conhecido como Colônia, que foi uma tragédia planejada e consentida. Tornado um
campo de concentração, dito como um holocausto brasileiro, assassinou 70 mil pessoas
entre os anos 1903-1980 com o apoio de órgãos governamentais e da Igreja Católica,
conforme relatado pela jornalista e ensaísta Daniela Arbex (2013).
Na elaboração desse percurso conceitual, pontuamos como o contexto de segre-
gação, a ausência de políticas adequadas e o predomínio filantrópico, principalmente
no campo educacional, vigentes na primeira metade do século XX, no Brasil, tornaram
possível a criação da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE).
Embora não tenhamos trazido para a análise o importante movimento pela in-
clusão social e, neste, a inclusão escolar, ocorrida principalmente entre os anos de 1980-
2000, com sua consequente movimentação de alunos categorizados como deficientes
no ensino regular e os percalços dessas ações, compreendemos que esse tema oferece
condições de possibilidade para a ampliação da visibilidade e da discussão sobre o ca-
pacitismo. Dessa forma, contamos com a análise de autores que discutem o capacitismo
sob a ótica de que ele produz efeitos no campo escolar.
Ao compor este texto, partimos da literatura de Machado de Assis para discutir
os eventos históricos-sociais que nos levam enquanto sociedade a manter inúmeras “ca-
sas verdes” travestidas de espaços inclusivos. Trata-se de um ensaio tecido como uma
reflexão estética e científica. Buscamos um suporte em Theodor Adorno (2003), que
diz que o ensaio propõe uma crítica sobre o uso da técnica de modo exacerbado, tal
qual a ciência positivista considera indispensável. Essa forma de produzir pesquisa e de
construir conhecimento tem como intuito a separação do sujeito e do objeto. O autor
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pontua essa tentativa como absolutamente inviável, pois o modelo protocolar não im-
pede que a subjetividade esteja presente. O total controle é apenas ilusório, na medida
em que tal objetividade de conceitos se dá por arranjos subjetivos.
Nesse sentido, considerando a realidade sempre uma ficção, como espaços bor-
rados compondo verdades recortadas e contextuais, recorremos ao conto O alienista,
de Machado de Assis, aqui trazido como argumento potência da literatura que nos
ajuda a ler o campo social. O alienista vai tecendo a conversação entre os temas, de
modo que Simão Bacamartes, o médico, incorpora essa figura da ciência, que investiga
e categoriza conforme práticas científicas.
A verdade é contextual
De quando em quando tocava a matraca, reunia-se gente, e ele anunciava o que lhe
incumbiam um remédio para sezões, umas terras lavradias, um soneto, um
donativo eclesiástico, a melhor tesoura da vila, o mais belo discurso do ano, etc. O
sistema tinha inconvenientes para a paz pública; mas era conservado pela grande
energia de divulgação que possuía. Por exemplo, um dos vereadores aquele
justamente que mais se opusera à criação da Casa Verde desfrutava a reputação de
perfeito educador de cobras e macacos, e aliás nunca domesticara um só desses
bichos; mas tinha o cuidado de fazer trabalhar a matraca todos os meses. E dizem as
crônicas que algumas pessoas afirmavam ter visto cascavéis dançando no peito do
vereador; afirmação perfeitamente falsa, mas só devida à absoluta confiança no
sistema. Verdade, verdade, nem todas as instituições do antigo regímen mereciam o
desprezo do nosso século.
(ASSIS, 1994, p. 9)
O trecho acima de O alienista mostra como a verdade fora produzida nas comu-
nidades do entorno da vila. A disseminação das notícias, sejam elas verídicas ou não,
gerava formas de recortar a realidade. A partir do dito se estabelece uma verdade. Na
composição abaixo iniciamos com a afirmação de Michel Foucault (1979, p. 12) de
que “a verdade é deste mundo” e que “cada sociedade tem seu regime de verdade”, nos
inserindo na relação, por ele estabelecida, entre poder, saber e verdade. Não há uma
verdade isolada das dimensões de saber e de poder.
Na obra A verdade e as formas jurídicas, Michel Foucault (2005a) busca os modos
como as formas de enunciação se oferecem enquanto dispositivo analítico das mudan-
ças que possam ocorrer e em quais regimes de luz e sombra elas se efetivam. Em suma,
é o que se revela e o que permanece velado nos diversos acoplamentos e deslocamentos.
Tanto a produção de verdade como seus movimentos são analisados através de O Édipo,
de Sófocles, partindo das relações de poder aí narradas e em cujo desenrolar mostra-se
uma tipologia que emerge entre as instâncias de saber e poder, mais particularmente
entre poder político e conhecimento.
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As características da história de Édipo, como narrada por Sófocles, formam o
cenário das práticas jurídicas da Grécia arcaica, cuja diversidade está no papel do tes-
temunhoe no conjunto formado por desafio, prova’ e juramento’. Todavia, diz
Michel Foucault (2005a, p. 34), as práticas se fundamentam em uma lei que se deno-
mina a lei das metades: “É por metades que se ajustam e se encaixam, que a descoberta
da verdade procede em Édipo”.
Observamos que ao consultar Apolo, deus de Delfos, Édipo recebe a resposta em
duas partes: “O país está atingido por uma conspurcação”. Quem e o que não estão
ditos, por isso é preciso uma segunda pergunta, que por sua vez também se desdobrará
no momento da resposta: houve um assassinato, Laio foi assassinado. E quem matou
Laio? Ante a recusa de Apolo em responder, Édipo tem uma parte fechada, sendo pre-
ciso recorrer ao duplo de Apolo, o adivinho Tirésias. Este, como mortal e cego,
encontra-se mergulhado na escuridão em contraponto a Apolo, deus da luz. “Ele é a
metade de sombra da verdade divina, o duplo que o deus luz projeta em negro sobre a
superfície da terra”. Tirésias, então, dá a Édipo a outra metade: “Foste tu quem matou
Laio” (FOUCAULT, 2005a, p. 35).
Esse particular jogo das metades se segue com outros elementos que tomam parte
das formas jurídicas vigentes: a profecia’, a predição e a prescrição. Tirésias exige o
cumprimento das promessas de Édipo de banir o assassino, emitindo ditos proféticos
sobre a peste. Suas predições, próprias do oráculo, todavia, convocam a entrada de uma
dimensão do presente em confronto com o passado. É o lugar do testemunho, abrindo
outras partes Jocasta relata que Laio foi morto no “entroncamento de três caminhos”,
e essa fala ressoa na inquietude de Édipo: “matei no entroncamento de três caminhos
(FOUCAULT, 2005a, p. 36).
A esse plano de verdade somam-se outras duplicações e conflitos na história de
Édipo, o que ocorre ao entrar em cena um escravo proveniente de Corinto, anunciando
a morte de seu pai. Édipo supõe a morte de Políbio, mas é contestado pelo escravo:
“Políbio não era teu pai”. É quando um relegado pastor de ovelhas toma seu lugar na
cena e revela como havia entregado “uma criança que vinha do palácio de Jocasta e que
me disseram que era seu filho” (FOUCAULT, 2005a, p. 37).
Todas essas duplicidades, as segmentações e os fragmentos que podem ou não se
acoplarem mais que de forma retórica guardam modos políticos e religiosos que
compunham uma técnica existente entre os gregos. Essa consiste em um instrumento
de poder, ou seja, permite a quem tem um segredo (que pode ser seu ou não) rompê-
lo em duas partes mediante um objeto, confiando uma das partes a outra pessoa, a qual,
dessa forma, será a testemunha da sua autenticidade. Esse procedimento sustenta a
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continuidade do poder exercido e “mantém sua unidade graças a este jogo de pequenos
fragmentos, separados uns dos outros de um mesmo conjunto, de um único objeto,
cuja configuração geral é a forma manifesta do poder” (FOUCAULT, 2005a, p. 36).
O que Michel Foucault (2005a) argumenta, utilizando-se da história de Édipo,
é o quanto a convicção da verdade única é ilusória. Estamos constantemente na imi-
nência de considerá-la pronta, completa, e eis que se apresenta um outro
desdobramento, cujos fragmentos recolocam os conflitos. Nós que vivenciamos aco-
plamentos e deslocamentos em relação aos espaços ditos especiais podemos nos
perguntar: é uma escola? Já foi uma escola? Continua sendo uma escola? É um lugar
especial que contém algo de irregular? Tem planos superpostos? O plano escola lugar
de ensino e aprendizagem; o plano especial lugar de guarda e assistência.
Em seu estudo, Michel Foucault (2005a) assinala a existência de um fluxo do
deslocamento em processo que atravessa pelo menos três níveis: o das divindades; o dos
soberanos, detentores do poder de Estado; e o do escravo e do pastor como testemunho
dos meramente humanos. São esses últimos que jogam suas metades pela lógica do
acontecimento descrito que, por um lado, não os envolve, mas, por outro, é a narrativa
de testemunha que garante a regularidade do acontecido. O movimento dos planos
desdobra-se no dito da profecia, reeditado pelos serviçais. Esses planos não são iguais,
não são os mesmos:
E assim como a peça passa dos deuses aos escravos, os mecanismos de enunciado da verdade ou
a forma na qual a verdade se enuncia mudam igualmente. Quando o deus e o adivinho falam, a
verdade se formula como prescrição e profecia, na forma de um olhar eterno e todo-poderoso
(FOUCAULT, 2005a, p. 38).
Dentre a diversidade de planos e temporalidades, podemos acompanhar o deslo-
camento da “enunciação da verdade de um discurso de tipo profético e prescritivo a
um outro discurso, de ordem retrospectiva, não mais da ordem da profecia, mas do
testemunho”, como explicita Michel Foucault (2005a, p. 39). São movimentos de vi-
sibilidade e de dizibilidade entre o profético e divino ao empírico e cotidiano dos
pastores. Entretanto, convém sublinhar, o poder que está em causa permite que Édipo
não se preocupe com culpa ou responsabilidade; ante todos os ditos e todos os fatos, o
que importa é sua soberania e realeza. Trata-se do poder político em soberania, que se
impõe à cidade, não com as leis comuns, mas com as próprias do soberano, isto é, a sua
vontade. “O tirano grego não era simplesmente o que tomava o poder” (FOUCAULT,
2005a, p. 46) e o mantinha, mas aquele que fazia valer um certo saber.
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Os diversos deslizamentos nos modos de segregar e excluir com as implicações
de campos da ciência, assim como as inúmeras formas de produzir os espaços especiais,
têm seu lugar de soberania. A forma asilar está marcada pelo saber sobre seres limitados
e anormais excepcionais que necessitam de um lugar para abrigá-los e atendê-los. De
certa forma, visam à salvação destes e de suas famílias, padecentes pelo pecado da gera-
ção. Ao mesmo tempo, trata-se de salvar a cidade: é necessário confiná-los, criar para
eles um manicômio. Dessa salvação impõe-se um saber especial, proveniente da questão
de como se cuida e o que se faz com esse deficiente: saber da experiência, saber solitário,
que encontra o acidente, o inesperado e, mesmo assim, continua difícil afirmá-lo. Re-
ferimo-nos àquelas experiências que em meio aos movimentos de deslizamento, nos
paradoxos entre a repetição e a diferença, são capazes de efetivamente produzir mudan-
ças.
4
Por outro lado, qual significação poderíamos atribuir aos enunciados sobre o ca-
pacitismo? Comecemos por mais uma contribuição de Foucault, agora sobre a
produção de verdade agregando o campo das ciências médicas. É na obra Os anormais
que Michel Foucault (2001) apresenta como se constitui o anormal a partir de três
figuras: o monstro humano, o indivíduo a ser corrigido e a criança masturbadora.
O monstro se define por aquele que irrompe com o processo natural da vida,
nasce à revelia das leis da natureza e encarna todas as irregularidades, discrepâncias e
pequenas anomalias: “Descobrir qual o fundo de monstruosidade que existe por trás
das pequenas anomalias, dos pequenos desvios, das pequenas irregularidades e o pro-
blema que vamos encontrar ao longo de todo o século XIX” (FOUCAULT, 2001, p.
71). As técnicas judiciárias e médicas se ocuparam dessa figura durante o século XIX.
Outra figura que aparece no contexto das anomalias é o indivíduo a ser corrigido e que
está em evidência na família e na relação com as instituições. Técnicas e recursos edu-
cativos e familiares são utilizados sem sucesso.
Esboça-se um eixo da corrigível incorrigibilidade em que vamos encontrar mais tarde, no século
XIX, o indivíduo anormal, precisamente. O eixo da corrigibilidade incorrigível vai servir de su-
porte a todas as instituições específicas para anormais que vão se desenvolver no século XIX
(FOUCAULT, 2001, p. 72).
O monstro e o incorrigível vão ser alvo na busca por correção, enquanto a criança
masturbadora aparece em um contexto ainda mais restrito, no quarto, na cama, dentro
de casa próximo aos cuidadores ou sob o domínio do médico como uma implicação
para o corpo. Michel Foucault (2001), ao mapear por onde se constituiu a figura do
anormal, situa que é descendente do monstro, do incorrigível e do masturbador, sendo
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que é nas práticas médicas e jurídicas que haverá um investimento para enquadrar e
corrigir.
Como se constitui a anormalidade?
Começou um estudo aturado e contínuo; analisava os hábitos de cada louco, as
horas de acesso, as aversões, as simpatias, as palavras, os gestos, as tendências;
inquiria da vida dos enfermos, profissão, costumes, circunstâncias da revelação
rbida, acidentes da infância e da mocidade, doenças de outra espécie,
antecedentes na família, uma devassa.
(ASSIS, 1994, p. 5)
Lilia Lobo (2015) apresenta uma pesquisa intitulada Os infames da história: po-
bres, escravos e deficientes no Brasil, cuja análise traz alguns aspectos das formações sociais
possibilitando um olhar desde a perspectiva de Foucault. A autora discute a deficiência
como ‘instituição’, ou seja, coleta e analisa elementos presentes nas formações sociais
que poderiam ter possibilitado a emergência de certo acontecimento, atendendo a ques-
tões como: o que tornou possível a categorização dos chamados infames? Como a
categoria de deficiência surgiu? Assim, a partir da análise dessa sua historicidade, con-
siderando desde seu surgimento, se expressam os sentidos de um acontecimento e seus
destinos.
Tomar a deficiência como acontecimento, do ponto de vista tanto coletivo quanto individual, é
assegurar-lhe a historicização. Isso não seria negar a existência de um tipo de efeito no corpo, as
marcas de um acontecimento [...] significa muito mais do que afirmar ou simplesmente observar
que seus conteúdos variam com o tempo e com as circunstâncias (LOBO, 2015, p. 16).
Segundo a genealogia formulada por Lilia Lobo (2015), observa-se que o surgi-
mento da criança anormal no Brasil, como ocupação discursiva e institucional, remonta
ao início do século XX. Antes desse período, as discriminações referentes à infância não
passavam das questões sobre o aleitamento e a higiene do recém-nascido. Nem mesmo
a Medicina debruçou-se sobre a especificidade de desvios à normalidade. Algumas clas-
sificações, como a idiotia e a surdo-mudez, eram atribuídas aos desregramentos morais
(onanismo, pederastia, alcoolismo, promiscuidade) e de casamentos consanguíneos.
A deficiência existe como tal porque um discurso a nomeou. Essa discussão re-
monta aos processos constitutivos do que se compreende como normalidade de
anormalidade. A autora aponta que a anormalidade foi condição de possibilidade para
a constituição da normalidade, na medida em que o normal se encaixava em todos os
perfis que não se enquadrassem nos diagnósticos da época. Ao longo do século XIX, a
avaliação foi ficando cada vez mais elaborada, e as condições físicas não eram mais o
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suficiente para dizer se a pessoa seria considerada normal. Essas características não visí-
veis no corpo constituíram o sujeito da psiquiatria, pois tais avaliações só poderiam ser
feitas por especialistas.
Interessa-nos analisar como aquilo tomado como normalidade se entrelaçou com
o que se nomeou como deficiência. Segundo Lilia Lobo (2015), a institucionalização
da idiotiapela psiquiatria, a alienaçãoe a doença mentalpassíveis de enclausura-
mento vão dando borda ao que no início do século XX nomeou-se de “criança
anormal”. As crianças foram separadas dos adultos, em alguns poucos asilos e hospícios
existentes, apenas entre o final do século XIX e o início do século XX. É nesse período
que se pode observar os momentos de instituição dos primeiros estabelecimentos espe-
cializados, como o Imperial Instituto dos Meninos Cegos e o Instituto dos Surdos-
mudos, bem como a emergência do Pavilhão-Escola Bourneville, seção destinada às
crianças internadas no Hospital Nacional de Alienados, importante espaço de instau-
ração da prática médico-pedagógica considerada um marco no processo de
psiquiatrização da infância.
Para efetuar essa análise histórica, a autora propõe reconstituir o processo das
institucionalizações médico-pedagógicas sobre a criança anormal, definindo-as como:
produção histórica de formas gerais que são as instituições uma vez constituídas, produzem e
reproduzem relações de força (dominações, lutas e resistências) com o que as engendraram, em
determinada época; se instrumentam nos estabelecimentos e nos dispositivos de poder que as
mantêm. Sob esse ponto de vista, o processo de institucionalização sustenta-se nas práticas mais
ou menos discursivas das separações, não apenas a exclusão do leproso ou o enclausuramento do
louco, por exemplo, mas também a validação que os saberes promovem através das classificações,
das especializações e suas verdades estabelecidas (LOBO, 2015, p. 37).
É sob a designação de idiota que surgiram as primeiras determinações de separar
partindo do biológico, o anormal do normal. Segue-se a essa categoria a classificação
debilidade mental e a de criança anormal à aprendizagem escolar, para ao mesmo
tempo relegar essas crianças à exclusão da rede de ensino; bem como a sua assimilação
à alienação e à doença mental, quer nos discursos, quer nas práticas de enclausura-
mento.
No Brasil, segundo a autora, é seguido o modelo francês de criação de espaços
junto aos hospícios destinados aos idiotas, sendo alguns deles voltados para a educabi-
lidade dessas crianças. Tratava-se de realizar uma higiene pedagógica’, psiquiatrizando
a infância e constituindo um saber médico-pedagógico extensivo às práticas de escola-
rização. Quanto à escolarização, observa-se que os critérios médicos vão se mesclando
aos critérios pedagógicos, pela via do submetimento, incidindo na escolarização. Os
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sintomas referidos pelas áreas médica e, posteriormente, psicológica passam a ser crité-
rios classificatórios, destinando os alunos para escolas regulares, classes especiais, escolas
especiais ou ainda em asilos para ineducáveis’.
As medidas classificatórias, no entanto, seguiam vinculadas a perspectivas morais,
com alertas para o perigo que representavam os anormais, para danos aos demais alu-
nos, pelo fardo das famílias e pela necessidade de assistência constante. Esses elementos
vão viabilizando a segregação em espaços especiais. As classificações e as defesas pela
segregação fazem com que os indivíduos sejam excluídos dos espaços escolares regula-
res, ou asilados e, algumas vezes, recolhidos em seções especiais de asilos e hospícios.
Há um esforço intensificado pelo uso de instrumentos de detecção dos anormais, pro-
cedimentos estes que faziam parte do movimento dos médicos nas escolas mediante a
criação do sistema de inspeção escolar. Na década de 1920, efetivou-se o uso de testes
psicológicos. Segundo Lilia Lobo (2015), havia uma verdadeira caçada aos anormais’.
Com o aceleramento industrial e sob o peso das questões econômicas, os argu-
mentos médicos e pedagógicos foram absorvidos, em parte, pelo Estado, com a criação
de escolas especiais e classes especiais, objetivando uma relação política em que os go-
vernantes provêm recursos físicos para guardar e assistir descapacitados em geral;
tomam para si, ou seja, de certo modo assumem uma prática, até então familiar, de
tirar de vista, esconder pessoas definidas como incapazes para a convivência social.
Esse deslocamento faz par com a criação das APAE, cujo lema foi: “Dê um amor
sem limites a um ser limitado”, ou “O excepcional nada espera, nada pode, ajude-o”.
Poderíamos supor que essa ação meritória faz jus à piedade necessária aos limitados, ao
fardo que suas famílias carregam ou ao pecado que expiam.
A criação tanto de escolas, das classes especiais como das APAE define um fluxo
de institucionalização que podemos analisar com a contribuição de Paul Veyne (1998,
p. 245) sobre o sentido da objetivação dos ditos anormais, pois é preciso buscar enten-
der “em que prática política as pessoas são objetivadas”. O autor refere que o estado e
os estabelecimentos filantrópicos funcionam como condutores de rebanhos. Ora, um
rebanho “desloca-se por conta própria, ou melhor, é o seu caminho que se desloca, pois
ele se encontra na grande estrada da história; cabe a nós assegurar a sua sobrevivência
como rebanho, apesar dos perigos do caminho, dos maus instintos dos animais, de sua
fraqueza, de sua covardia” (VEYNE, 1998, p. 245).
Quando são criados esses espaços, criam-se ou transpõem-se espaços similares,
regras de aprisionamento e de controle em uma franca ligação entre estados de defici-
ência aos estados de loucura. Essa posição faz jus às práticas de exclusão sustentadas
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pelas objetivações da medicina psiquiátrica, pois dela tem-se um longo recorrido histó-
rico. Foi assim, como conta Michel Foucault (2005b), para o sentido da exclusão, que
permaneceu aderido aos espaços dos lazarentos como formas subsistentes. Exclusão e
salvação passaram a fazer parte dos jogos de exclusão’, cama feita para outros excluídos.
O entrelaçamento de divisão, exclusão’ e purificação é, portanto, um forte atravessa-
dor de caráter moral, o qual, de certo modo, se une com o espírito cristão de doação
de amor.
Uma vez instituídos os espaçamentos dentro de uma concepção e de um contexto
político, espera-se que aqueles que tomam o encargo dos cuidados atendam às mesmas
demandas. Por tratar-se de espaço escolar, institui-se para condução do rebanho o lugar
de professor-condutor, que é subsidiário do governante, e o próprio governante de um
rebanho. Essa reservada prática deveria ter sido e foi caracterizada pela condução, pela
guarda, pela assistência, pela punição dos desvios: o rebanho anda em sua própria es-
trada, segue seu caminho; o pastor cuida para que não se desvie, ele o vigia. Se
necessário, pune com a exclusão os que provocam desordem, pois, com o tempo, foram
se criando graus para ordenar e classificar os rebanhos. Desse modo, para os que não se
dirigiam ao norte da estrada estava reservado um lugar mais especial ainda.
Podemos citar ainda, de acordo com Lima, Ferreira e Lopes (2020), como essa
conjuntura favoreceu na primeira metade do século XX a implantação dos Institutos
Pestalozzi, com consultórios médicos-pedagógicos para crianças com deficiência ou
identificadas como problemáticas. Os testes aplicados tinham como objetivo constituir
classes especiais homogêneas. Segundo as autoras, nesse período as classes especiais fo-
ram consolidadas.
O holocausto brasileiro: entre a loucura e a educação especial
Tudo era loucura. Os cultores de enigmas, os fabricantes de charadas, de anagramas,
os maldizentes, os curiosos da vida alheia, os que põem todo o seu cuidado na
tafularia, um ou outro almotacé enfunado, ninguém escapava aos emissários do
alienista. Ele respeitava as namoradas e não poupava as namoradeiras, dizendo que
as primeiras cediam a um impulso natural e as segundas a um vício. Se um homem
era avaro ou pródigo, ia do mesmo modo para a Casa Verde; daí a alegação de que
não havia regra para a completa sanidade mental.
(ASSIS, 1994, p. 27)
Foram cinco décadas cujo empreendimento político intentou classificar as pes-
soas entre a normalidade e a loucura. O trem só de ida levava as pessoas com a promessa
de tratamento e cura de quaisquer que fossem os sintomas ou as características que
pudessem ser qualificadas como ‘fora da norma’. Daniela Arbex (2013) afirma que não
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havia critérios para internar, e os diagnósticos eram padronizados desde o início do
século XX.
Pacientes foram encaminhados por apresentar sintomas como tristeza, alcoo-
lismo e timidez; também desafetos, inimigos políticos, jovens grávidas fruto de estupro
por seus patrões, esposas traídas; homossexuais, mendigos, negros, pobres, pessoas sem
documentos e aqueles nomeados como “doidos”. Daniela Arbex (2013, p. 21) explica:
“A teoria eugenista, que sustentava a ideia de limpeza social, fortalecia o hospital e
justificava seus abusos. [Era preciso] Livrar a sociedade da escória, desfazendo-se dela,
de preferência em local que a vista não pudesse alcançar”.
Como relata a autora, a recepção era feita com corte de cabelo e a troca de suas
roupas por um macacão azul. Deixava-se na entrada sonhos e desejos, usurpados de sua
dignidade, eram mantidos em situações sub-humanas, submetidos à eletrochoques, lo-
botomias, castigos. A administração dos choques e da medicação nem sempre tinham
objetivos terapêuticos, mas, sim, de controle e intimidação. Ignorados pela sociedade,
eram empurrados para a morte.
Os relatos de Daniela Arbex (2013) indicam situações e certas condições que não
diferem das relatadas por Michel Foucault (2005b), na sua obra A história da loucura
na Idade Clássica, senão pela distância temporal. A Colônia paira como uma grande
nau da salvação, justamente, onde “o abandono é a salvação; sua exclusão oferece-lhe[s]
uma outra forma de comunhão”, que, pela via do tratamento moral, é direcionada às
“cabeças alienadas”. Essa nau a Narrenschiffé proveniente de composição imaginá-
ria presente na literatura, nas artes plásticas e cênicas, mas que, em sua existência real,
portava o transporte de uma “carga insana” de uma cidade para outra.
5
Tal ritual coloca
a loucura em um lugar de passagem, dispõe os loucos à deriva, pois sua “exclusão deve
encerrá-los” (FOUCAULT, 2005b, p. 6-13) até que os antigos leprosários passem a ser
o lugar da exclusão.
Mais que o espaço físico dos leprosários, são os “valores e as imagens que tinham
aderido ao leproso; é o sentido dessa exclusão, a importância no grupo social dessa
figura insistente e temida” (FOUCAULT, 2005b, p. 6). Na Colônia se unem os mo-
vimentos de passagem, através de uma nau-trem, e a experiência do Hospital dos
Loucos em cujo espaçamento a loucura passa a ficar sob controle: “ela representa a
superfície das coisas à luz do dia, todos os jogos de aparência, a trama indefinida que
une e separa a verdade e o parecer” (FOUCAULT, 2005b, p. 43).
Com Daniela Arbex (2013) conhecemos o Hospital de Neuropsiquiatria Infan-
til, localizado em Oliveira, município de Minas Gerais, onde Ronaldo Simões Coelho,
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superintendente do serviço de psiquiatria da Fundação Educacional de Assistência Psi-
quiátrica, encontrou um menino com menos de 10 anos “crucificado” no pátio sob o
sol escaldante, amarrado com os braços abertos. Ao perguntar para a freira responsável
o motivo daquela situação, ela lhe respondeu: “Se soltar, ele arranca os olhos das outras
crianças. Tem mania”. O diálogo seguiu: “E quantos olhos ele já arrancou?” E a res-
posta da freira foi: “Nenhum”. Essa cena dá o tom dos cuidados estabelecidos naquela
época na instituição criada em 1924, que inicialmente atendia mulheres e indigentes,
mas em 1946 começou a acolher crianças com deficiência, a maioria abandonada pela
sua família.
Fechado em 1976, encaminhou 33 crianças para a Colônia, em Barbacena. Em-
bora houvesse a ala infantil, a única diferença era a existência de berços nos quais as
crianças com dificuldade de locomoção eram mantidas, sem expectativa de vida. No
mais, conviviam com os adultos recebendo o mesmo tratamento. Daniela Arbex (2013)
sinaliza que essa modalidade de atendimento se sustentou de 1903 a 1980.
A pergunta de como isso se constituiu e se perpetuou durante tanto tempo se
desdobra por um recorrido que implica essa história, mas também permeia as estruturas
sociais capazes de tais eventos. Uma rede complexa de relações estabelecidas manteve
mais de 70 mil pessoas, incluindo crianças com deficiência, sob tortura, em condições
sub-humanas até chegarem à morte. A política não se dá separada da esfera social, se
trata de uma continuidade, cujas crenças, apostas e desejo social são atendidos na pro-
liferação de instituições segregadoras. Um dos fios que sustentam essa noção que
classifica o humano e categoriza quem tem direito a viver em sociedade em liberdade e
quem não guarda em si os meandros de uma aposta social na capacidade de produção.
A exclusão de pessoas classificadas como incapazes de se sustentar economica-
mente é uma construção histórico-social que estende suas raízes para a escolarização.
Desde a primeira infância há uma captação embutida no sistema político, hoje não
mais localizado nos hospícios, e sim em instituições especializadas. A promessa se man-
tém ofertando cuidados especializados com estrutura física e recursos humanos
encontrados apenas nesses locais específicos.
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Capacitismo: do que estamos falando?
Uma vez, por exemplo, compôs uma ode à queda do Marquês de Pombal, em que
dizia que esse ministro era o ‘dragão aspérrimo do Nadaesmagado pelasgarras
vingadoras do Todo’; e assim outras mais ou menos fora do comum; gostava das
ideias sublimes e raras, das imagens grandes e nobres...Pobre moço! pensou o
alienista. E continuou consigo: – Trata-se de um caso de lesão cerebral: fenômeno
sem gravidade, mas digno de estudo...
(ASSIS, 1994, p. 15-16)
O capacitismo tem sido discutido como uma forma de nomear a opressão pro-
duzida socialmente contra as pessoas com deficiência. Os atuais modos de produção
induzem a uma eficiência e eficácia nas redes de trabalho, fazendo com que seja recor-
tada a categoria de quem é capaz de sustentar tal hegemonia e quem se destina à
categoria da incapacidade. As práticas capacitistas são apontadas por Gesser, Block e
Mello (2020, p. 18) como “produzidas com base nos discursos biomédicos que, sus-
tentados pelo binarismo norma/desvio, têm levado a uma busca de todos os corpos a
performá-los normativamente como ‘capazes’”. As autoras afirmam o capacitismo
como a prática derivada de um ideal de sujeito. Essas formas de se relacionar com os
corpos partem de uma construção social baseada em uma idealização, onde não só as
pessoas com deficiência são consideradas incapazes, mas também mulheres, indígenas,
idosos, pessoas negras e as pessoas cuja diversidade sexual não se enquadra no “ideal de
homem”.
O capacitismo é definido como o preconceito para com as pessoas com deficiên-
cia:
uma postura preconceituosa que hierarquiza as pessoas em função da adequação dos seus corpos
à corponormatividade. É uma categoria que define a forma como as pessoas com deficiência são
tratadas de modo generalizado como incapazes (incapazes de produzir, de trabalhar, de aprender,
de amar, de cuidar, de sentir desejo e ser desejada, de ter relações sexuais etc.), aproximando as
demandas dos movimentos de pessoas com deficiência a outras discriminações sociais, como o
sexismo, o racismo e a homofobia (MELLO, 2016, p. 3.272).
Como efeito de práticas capacitistas impõe-se o mito da superação, e para tanto
são colocados exemplos de pessoas que de alguma forma obtiveram destaque social,
anunciando que “é possível”.
6
Essa forma de considerar a deficiência como algo a ser
superado coloca a responsabilidade sobre o sujeito por sua condição, prática ampla-
mente vendida pelo capitalismo.
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Essa valorização do corpo sustenta a cultura da normatividade, a busca pela ree-
ducação, por práticas ortopédicas cujo objetivo é alcançar o mais próximo possível
daquilo que a sociedade promove como ideal. Essa prática perversa coloca as pessoas
com deficiência em um lugar de escuridão, apagamento. O capacitismo atravessa o
social e permanece enraizado na forma como as pessoas lidam com as deficiências, fa-
zendo com que essas pessoas fiquem sem voz, invisíveis. Trata-se, portanto, de colocar
essa discussão em pauta, pontuar os efeitos que essa invisibilidade produz, para então
descortinar alternativas de combate a tais práticas, ao mesmo tempo em que se propõe
o acesso e permanência à educação para todos os alunos.
Gesser, Block e Mello (2020) apontam a colocação de barreiras como um dos
entraves do capacitismo, exemplificado pelos pretensos diálogos que se estabelecem nas
relações de todas as ordens, em que a pessoa sem deficiência se posiciona como quem
sabe o melhor para a pessoa com deficiência. Nessas situações, o diálogo é suprimido,
e o que resta é a construção social dominante. É a existência de um saber que legitima
o saber sobre o outro, suas possibilidades e necessidades. Quando se trata de uma cri-
ança com deficiência, tal imposição se torna ainda mais incisiva, pois quem decide é o
adulto sem deficiência, e sem a possibilidade da pergunta e da escuta, o resultado é uma
relação social restrita e direcionada. Para as autoras, essas atitudes impeditivas aconte-
cem pela crença de que as pessoas com deficiências não teriam condições de agir por si,
e isso se dá pela falta de informação.
No caso dos processos inclusivos, há uma tendência ao encaminhamento para as
escolas especiais sob o argumento de que haverá profissionais especializados. Desconsi-
dera-se, porém, a necessidade de convívio em um espaço desafiante, rico em interações
sociais com os pares e a escola regular como o espaço legitimado para oferecer educação.
Inúmeros alunos, considerados incapazes para acompanhar o ensino regular, denun-
ciam as raízes capacitistas arraigadas nas construções sociais.
Para Lima, Ferreira e Lopes (2020), esse movimento de exclusão e isolamento
acontece a partir de um ideal de eugenia. A eugenia é o processo pelo qual se valoriza
o ser humano considerado capaz, sadio e com habilidades na mesma medida em que
oprime outros humanos, os qualificando como invisíveis ou improdutivos. As autoras
ainda destacam o uso das avaliações psicométricas como parte de um processo eugê-
nico, classificando seres capazes e incapazes, o normal e a anormalidade, sustentado por
uma compreensão científica que valida quem poderia ser educado e quem não poderia.
Ao analisarem o texto da Lei n. 4.024 (BRASIL, 1961), sublinham o avanço para as
pessoas com deficiência ao serem incluídas no texto orientador sobre educação, porém
ainda com um viés capacitista, cuja orientação mantém espaços educativos separados.
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Esse movimento abriu portas para a proliferação da iniciativa privada, filantropia
com subsídios do governo, propiciando “um posicionamento capacitista advindo desta
esfera, passando a ideia de apropriação destas pessoas pelo privado, tratando-as de
forma isolada como se a deficiência fosse desta pessoa e família” (LIMA; FERREIRA;
LOPES, 2020, p. 178). Dessa forma, as concepções sobre o capacitismo foram se esta-
belecendo e se fortalecendo com a manutenção de redes de atendimento educacional
que permanecem paralelas ao ensino comum, marcando um lugar de caridade e assis-
tência em detrimento do reconhecimento do direito à inclusão escolar e social.
Segundo Siqueira, Dornelles e Assunção (2020), tradicionalmente as pessoas
com deficiência não foram consideradas nas construções coletivas, e o fato de os maio-
res interessados terem estado à margem desses processos tem suas raízes na manutenção
de práticas caridosas e capacitistas. Nas palavras das autoras, “prestar auxílio de forma
caritativa é mais fácil do que perceber a si mesmo como parte do processo histórico de
exclusão experienciado pelas pessoas com deficiência e, portanto, parte da solução, por
meio da mudança das atitudes” (SIQUEIRA; DORNELLES; ASSUNÇÃO, 2020, p.
145).
O capacitismo se manifesta na suposição de que crianças e jovens com deficiência
não precisam de educação, mas, sim, de quem os cuide. Essas restrições, porém, pro-
duzem prejuízos no que diz respeito ao âmbito escolar, mas também social: “Esse
isolamento social e educacional privava-os das interações na cultura e participação efe-
tiva na sociedade” (LIMA; FERREIRA; LOPES, 2020, p. 178-179). Nesse contexto,
a estrutura capacitista se mantém respaldada por atos reconhecidos em nossa sociedade
como dignos de pessoas caridosas. Considerar o corpo do outro como incapaz e anor-
mal impede que a produção da diferença seja reconhecida como inerente ao humano e
à vida.
Quanto aos modelos de deficiência, contamos ainda com a contribuição de Dé-
bora Diniz (2012) quando propõe colocar em questão as linhas tão definidas entre o
normal e o anormal como uma postura ética. A autora narra as discussões que ocorre-
ram no Reino Unido na década de 1970 e que produziram um deslizamento do
conceito de deficiência como lesão e impedimento para colocar em jogo a responsabi-
lidade da sociedade na construção de barreiras impeditivas.
Deficiência é um conceito complexo que reconhece o corpo com lesão, mas que também denun-
cia a estrutura social que oprime a pessoa deficiente. Assim como outras formas de opressão pelo
corpo, como o sexismo ou o racismo, os estudos sobre deficiência descortinaram uma das ideo-
logias mais opressoras de nossa vida social: a que humilha e segrega o corpo deficiente (DINIZ,
2012, p. 5).
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Nessa perspectiva, a deficiência deixa de ser objeto apenas da biomedicina e passa
a ser pensada no campo social. As primeiras manifestações públicas partiram de Paul
Hunt, em 1960, na escrita de uma carta ao jornal em 1972, na qual pontuava as con-
dições de isolamento e desconsideração com as pessoas com deficiência. Esse registro
produziu uma significativa repercussão, criando uma rede de comunicação. Assim, qua-
tro anos depois, a primeira organização fundada e gerenciada por pessoas com
deficiência recebeu o nome de União dos Deficientes Físicos Contra a Segregação
(Union of the Physically Impaired Against Segregation – UPIAS) (DINIZ, 2012).
Considerando que as primeiras instituições objetivavam isolar ou “normalizar”
as pessoas com deficiência, a UPIAS marca uma articulação política problematizando
a compreensão tradicional da deficiência, apontando o biológico como insuficiente e
discutindo a opressão sofrida como uma produção social.
Em defesa da deficiência como algo produzido no encontro com as barreiras, esse
grupo de pensadores deslocou a questão do campo da biomedicina para uma discussão
política e econômica. Não se trata de desconsiderar a existência de comprometimentos
e a necessidade de cuidados da medicina, e sim de pensar a deficiência como existente
a partir das relações sociais.
Historicamente, as pessoas com deficiência tiveram suas presenças omitidas na
sociedade, suas falas silenciadas e seus desejos ignorados. A construção de outras formas
de tomar a deficiência abriu um campo para pensar as relações estabelecidas com o
social. Desse modo, considerar a deficiência pelo modelo social “contribui para a eli-
minação de barreiras, [tanto] quanto a insuficiência nas adequações e na acessibilidade,
considerando que a experiência da deficiência reside no espaço relacional entre o sujeito
e os contextos vivenciados” (LIMA; FERREIRA; LOPES, 2020, p. 181). Esse argu-
mento ganhou força à medida que surgiram estudos pontuando a deficiência como
passível de se manifestar em corpos diversos, como no caso de pessoas idosas. O que se
destaca é a repetição do rótulo “insuficiente” sempre que se deixa de produzir mão de
obra ao que o sistema econômico exige.
Durante as décadas de 1970-1980, as construções conceituais e seus autores fo-
ram considerados como teóricos da primeira geração, por terem sido os primeiros a
registrarem os movimentos políticos e sociais questionando a exclusão. Como principal
objetivo, visavam à busca pela independência, “pois se pressupunha que o deficiente
seria uma pessoa tão potencialmente produtiva como o não deficiente, sendo apenas
necessária a retirada das barreiras para o desenvolvimento de suas capacidades”
(DINIZ, 2012, p. 27).
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A contribuição do movimento feminista aconteceu a partir da década de 1990,
tendo como elemento disparador a experiência de mães de pessoas com deficiência.
Considerada a segunda geração de teóricas, se estabeleceu, a partir do movimento fe-
minista, o questionamento dos argumentos anteriores. As discussões reforçaram a
crítica ao capitalismo e acrescentaram outras pautas, apontando a necessidade de am-
pliar o conceito para além das questões de mercado de trabalho; propuseram pensar a
opressão considerando sexo, idade, raça e gênero: “Ser uma mulher deficiente ou ser
uma mulher cuidadora de uma criança ou adulto deficiente era uma experiência muito
diversa daquela descrita pelos homens com lesão medular que iniciaram o modelo social
da deficiência” (DINIZ, 2012, p. 27).
Nesse sentido, a interdependência como intrínseca às relações humanas tomou a
discussão como uma questão de justiça social para todas as pessoas, independentemente
da condição de deficiência. Siqueira, Dornelles e Assunção (2020, p. 159) reiteram
que, desde o início, o principal desse debate é “buscar demonstrar que as deficiências
são parte da grande e complexa gama de diferentes tipos de pessoas que compõem a
sociedade”.
Essas discussões são movimentos políticos, e, nesse contexto, as pessoas com de-
ficiência têm ampliado espaços. Uma das pessoas com deficiência que se propõem a
pensar a questão do capacitismo é Victor Di Marco (2020), ator, roteirista, diretor e
escritor. No seu livro sobre o tema, narra trechos de sua história e situa em sua obra o
conceito de capacitismo vivido por ele em inúmeras situações. Expõe o preconceito ao
mesmo tempo em que tece uma crítica fundamental para quem se ocupa de pensar
essas relações. O autor diz que foi colocado à margem de sua própria vida, sendo ex-
pectador de sua história, pois tudo o que esperavam dele era pautado no rótulo da
incapacidade. Afirma que a comparação gera o capacitismo, que, por sua vez, “se nutre
da lei do mais eficiente para domar e inviabilizar esses corpos que podem ter um ritmo
de eficiência diferente” (DI MARCO, 2020, p. 11).
Essa crença social se mostra sustentada ainda por um determinismo biológico, a
partir do qual as pessoas com deficiência são desinvestidas de enunciar sua própria pa-
lavra sob o risco de serem constantemente avaliadas e desconsideradas. O preconceito
inviabiliza o sujeito e todo e qualquer ato como próprio, sendo considerado ele mesmo
resultado da deficiência. O sujeito fica subsumido, restando apenas a impossibilidade.
Nas palavras do autor, se “nega a pluralidade de gestos e de não gestos, sufoca o desejo,
mata a vontade e retira, assim, a autonomia dos sujeitos que são lidos como deficientes”
(DI MARCO, 2020, p. 11).
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Como estudante, Victor Di Marco (2020) aponta a escola como reprodutora
dessa estrutura. Nos momentos em que “atendia” à demanda escolar, era tomado como
um aluno “normal”, mas, quando manifestava alguma particularidade, o olhar sob a
deficiência se destacava. Mesmo com os entraves encontrados nesse processo, afirma
sua “sorte” por ter estudado em uma escola regular. Desse ponto de vista, contribui:
Criar espaços destinados a pessoas com deficiência, por exemplo, não é inclusão. Privar uma
convivência diversa é alimentar que a diferença é ruim e que deve ser escondida num lugar à parte
do resto da sociedade. Além disso, não nos fazer visíveis é ir contra a naturalização dos nossos
corpos em espaços. Se uma criança convive desde pequena com outras crianças com deficiência,
ela não vai achar estranho, quando adulta, uma pessoa com deficiência numa festa ou andando
na rua, por exemplo (DI MARCO, 2020, p. 18).
A construção das categorias “anormal” e “normal” remete à necessidade de man-
ter o controle. A biopolítica nomeia quem pode, o que pode e quando. A permanência
de espaços segregados denuncia a dificuldade da sociedade em lidar com a singulari-
dade, a multiplicidade. Essa construção de categorias, portanto, serve para reafirmar
quem está dentro e quem está fora da regra. Em última instância, o que está em jogo é
a exigência de um modelo econômico cujo valor é estabelecido pela produtividade. Esse
circuito manifesto mantém a busca pelos testes que investigam as possíveis disfunções
que justificam o “não acompanhamento” no ritmo de aprendizagem dos “outros”.
A instituição escolar se ampara nos diagnósticos como a explicação científica do
fracasso escolar. Vejamos que tal perversidade recai sobre o aluno, carimbando seu per-
curso escolar como insuficiente, quando é a organização educacional quem deve
oferecer os recursos necessários para a aprendizagem ocorrer. O processo inclusivo se
constitui nas relações estabelecidas com os sujeitos, e não com os diagnósticos. A res-
ponsabilização pela ensinagem independe da condição do aluno.
Desse modo, se faz urgente pesquisar a implicação de todos e cada um no pro-
cesso. A permanência de espaços segregados contribui para a manutenção da exclusão
certamente, mas se trata, sobretudo, de colocar esses conceitos nas práticas escolares.
Cada movimento produzido em prol de considerar a multiplicidade é importante para
desnaturalizar essas construções que delimitam e impedem o exercício da experiência
coletiva com a diversidade.
Alfredo Veiga-Neto (2001), inspirado em Michel Foucault, atenta-se para como
as construções históricas produzem efeitos na atualidade e, mais especificamente, no
campo da educação, apontando a necessidade de problematizar para desnaturalizar tais
relações:
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Se parece mais difícil ensinar em classes inclusivas, classes nas quais os (chamados) normais estão
misturados com os (chamados) anormais, não é tanto porque seus (assim chamados) níveis cog-
nitivos são diferentes, mas, antes, porque a própria lógica de dividir os estudantes em classes
por níveis cognitivos, por aptidões, por gênero, por idades etc. foi um arranjo inventado para,
justamente, colocar em ação a norma, através de um crescente e persistente movimento de, sepa-
rando o normal do anormal, marcar a distinção entre normalidade e anormalidade (VEIGA-
NETO, 2001, p. 25).
Nesse sentido, a busca por compreender os processos históricos pode colaborar
na criação de formas de entendimento dos processos de exclusão, bem como os desli-
zamentos que dão conta de seus movimentos.
Considerações de encerramento
O alienista coloca sua vida a serviço de formular a teoria sobre a loucura. Toma
como missão o diagnóstico, cuidado e tratamento dos chamados loucos da Vila de Ita-
guaí, onde reside. Formula a proposta e, após o apoio da Câmara Municipal da cidade,
inicia a construção da Casa Verde.
Tal conto apresenta inúmeras facetas histórico-social-políticas que circundam a
realidade e as produções de verdade. As reflexões partiram de recortes sobre o que se
constituiu como loucura e educação especial, com o intuito de analisar caminhos pelos
quais percorrem tais conceitos. Compreende-se as repetições imbricadas com uma
forma socialmente construída e cuja estrutura precisa ser discutida.
A Casa Verde abriga todos aqueles investigados pelo alienista, dr. Simão Baca-
martes, sob o argumento de disfunções cerebrais sempre evidenciadas pelo rígido
controle de comportamento. Cada gesto, olhar, sentimento avaliado como inapropri-
ado serve para o recolhimento. A ciência nesse caso organiza, seleciona e medica com
o intuito de adequar aqueles indivíduos considerados desviantes.
Esse movimento acontece em relação aos corpos, comportamentos e desejos tra-
duzidos por Michel Foucault (2001) na figura do monstro, o indivíduo a ser corrigido
e o masturbador, de modo a delinear o que mais tarde se nomearia como anormal. As
contribuições de Lilia Lobo (2015) foram fundamentais para resgatar a construção das
categorias de normalidade e seus entrelaçamentos com a busca pela identificação dos
nomeados como anormais, sobretudo nas instituições escolares sob alegação de prejuízo
aos demais alunos.
Tais efeitos foram reiterados nos hospícios como lugares aprovados socialmente
para o destino de pessoas consideradas inaptas para o convívio social, cujos critérios
incidem nada além da busca pela eugenia social. No conto O alienista, Machado de
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Assis (1994) sublinha uma forma de fazer ciência que anseia por indicar através do
diagnóstico quem pode e quem não pode circular socialmente. As classes especiais e,
mais tarde, as organizações não governamentais se encarregaram de manter a continui-
dade desse movimento, com a diferença de estar sob o signo do amor e cuidado para
com as pessoas com deficiência. O alienista destaca essa característica no rol de entrada
da Casa Verde, fortalecida pela certeza de contribuir de modo caridoso.
As pessoas com deficiência, vistas como incapazes de construir uma vida social,
historicamente colocadas à margem, ignoradas, têm sua palavra em suspenso. É neces-
sário que as articulações sociais irrompam com diferentes formas de abordagem, outros
argumentos e experiências que contextualizam a discussão de outra perspectiva. Des-
taca-se estes como rupturas que vão produzindo certos furos nesses discursos.
O alienista, em determinada altura do enredo, descreve a revolta dos cidadãos ao
se perceberem enganados. Movimentam-se e, em coletivo, se dirigem à Casa Verde.
Novas alianças são feitas, assim como conchavos políticos são estabelecidos. A história
e o conto apresentam as conceses nas quais as narrativas se repetem, mesmo sendo
diferentes.
Os meandros dessas construções sociais que classificam e excluem estão o tempo
todo em relação com movimentos contrários: discursos que comem as bordas, riscam
o texto impresso, borram as verdades, costuram ideias e articulam outros pontos de
vista. O modelo social de deficiência vem nesse sentido reordenar as verdades até então
estabelecidas como únicas, dirimindo o poder da medicina sobre os corpos com defici-
ência. O modelo biomédico é questionado por todo um contexto que insurge nessa
arena de disputas conceituais e práticas sociais. A questão a que chegamos após esse
recorte é o como essas formulações impactam os processos escolares e, de forma mais
específica, os alunos com deficiência.
Discute-se o capacitismo como o preconceito sofrido pelas pessoas com deficiên-
cia, na medida em que os discursos sociais são impregnados pelo mito da capacidade.
A discriminação ocorre na comparação com corpos categorizados como sem deficiên-
cia. A perpetuação dessas cristalizações implica em formas parcializadas de enxergar o
humano. De modo mais sutil ainda se manifestam a normalidade e a anormalidade.
Essa continuidade tem profundas ligações com os modos de produção, registrando-se,
desse modo, quem pode oferecer mão de obra e quem deve ser mantido em lugares
separados do restante da sociedade, sejam instituições, classes ou escolas especiais.
O alienista propõe diferentes categorias, seleciona e recolhe as pessoas de acordo
com sua compreensão de normalidade. Ao fim, percebe que o perfeito funcionamento
cerebral é apenas aquele que não é perfeito. Machado de Assis (1994) nos brinda com
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tal arquitetura crítica ao mesmo tempo em que nos leva a refletir sobre o poder, saber
e a verdade presente em cada volta da narrativa.
Por fim, a aposta é a de que este ensaio possa contribuir para pensar o capacitismo
e seus efeitos no contexto escolar, de modo a fazer emergir novas formas de relação. Os
processos inclusivos estão em interdependência com a produção de pesquisas e discus-
sões sobre o tema. Portanto, para que a repetição das mesmas modalidades seja
rasuradas, é necessário analisar o contexto e sua implicação com ele como forma de
produzir diferença.
Notas
1
A discussão poderia ainda ter o suporte da pesquisa arqueológica da escola (VARELA; ÁLVAREZ-
URÍA, 1991). Trata-se das formas destinadas a transmitir às novas gerações os valores, as regras de
conduta e as formas de classificação que sustentam a vida social. No caso,
observa-se que, desde o
século XVI até a atualidade, ocorreram muitas mudanças nos modos ocidentais de educação, porém
as regras de constituição da escola e seus fundamentos delimitaram as possíveis transformações. Ou
seja, aquelas que preconizam a escola nascida no interior de sociedades estratificadas e hierarquizadas,
pouco adequando-se ao chamado de justiça e igualdade. O acesso à aprendizagem é prisioneiro desse
mandato e está intimamente ligado ao dilema de manter a função originária de controle e dominação
ou favorecer ideais democráticos.
2
É como o paradoxal aforismo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1997, p. 42): “Se quisermos que
tudo continue como está, é preciso que tudo mude. Fui claro?”
3
A proposta e tentativa de aprovação do Decreto n. 10.502, de 30 de setembro de 2020, que visava
regulamentar as classes especiais como alternativas de escolarização, é um exemplo atual do sistema
capacitista que segrega e exclui baseado na crença social da capacidade (BRASIL, 2020).
4
Conforme relata Neusa Kern Hickel (2001), entre 1989 e 2000, desenvolveu-se na rede municipal de
Educação de Porto Alegre um movimento de inserção de padrões pedagógicos independentes dos
mandatos psicomédicos nas escolas especiais, criando estratégias de convivência com a comunidade e
outros programas inclusivos. As classes especiais foram extintas como efeito do intensivo trabalho do-
cente pela inclusão dos alunos nas classes regulares.
5
No capítulo inicial de A história da loucura, Michel Foucault (2005b) destaca dois acontecimentos
marcantes: o fechamento, na Europa ocidental, dos leprosários lugar de exclusão por excelência e
a sua ocupação por variados segmentos sociais até se tornarem hospícios. O segundo foi o surgimento
das naus, ou seja, embarcações cujas denominações estavam ligadas aos modos de vida, como, por
exemplo, a nau dos príncipes, a nau dos artistas. Em comum eram referidas nas artes em geral, sem
existência real. A que realmente existiu foi a chamada “nau dos loucos”, ou narrenschiff ou stultífera
navis. Efetivamente aqueles considerados desviantes daquilo que se concebia então como loucura eram
transportados de uma cidade para outra, e desta para outra, sempre em péssimas condições.
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6
Não confundir esse “é possível” com a ação afirmativa que considera a aprendizagem uma possibilidade
sempre presente para todos, desde que haja um adequado investimento pedagógico.
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