Este artigo está licenciado com a licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
876
v. 29, n. 3, Passo Fundo, p. 876-900, set./dez. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Trabalho docente de pedagogas(os) em licenciaturas de um
Instituto Federal: entremeios e desenvolvimento profissional
Teaching work of pedagogues in teaching degrees at a Federal
Institute: in between and professional development
Trabajo docente de pedagogas(os) en licenciaturas de un Instituto
Federal: entremedios y desarrollo profesional
Cátia Keske
*
Maria Cristina Pansera-de-Araujo
**
Resumo
Os Institutos Federais de Educação Profissional, Técnica e Tecnológica (IFs) buscam ofertar 20%
de suas vagas para a formação inicial de professores, em cumprimento à Lei n. 11.892/2008. Nesse
desafio, vivem questões comuns a outras instituições de ensino. Neste texto, busca-se compreender
algumas das que dizem respeito ao trabalho docente e à constituição profissional dos professores,
mais especificamente na área da Pedagogia. Situado no campo da pesquisa qualitativa, o estudo é
guiado pelas premissas da Análise Textual Discursiva (ATD). Dessa perspectiva, são descritos e
analisados, fenomenológica e hermeneuticamente, entendimentos sobre a Pedagogia e a atuação
profissional de docentes dessa área em licenciaturas de um IF, elaborados por indivíduos que
possuem relação direta com esse lócus: docentes da Pedagogia, coordenadores de cursos e sujeitos em
devir docente, estudantes de 7º e 8º semestres. Em meio aos processos de unitarização, categorização
e construção do metatexto, identifica-se a coexistência de elementos em contexto amplo, no âmbito
de “vivências comuns” à formação inicial de professores e à docência em cursos de licenciatura, e
também de elementos de natureza mais específica, singulares ao trabalho docente em um IF: os
primeiros, constitutivos do desenvolvimento profissional docente; os segundos, entremeios do
trabalho docente em um IF.
Palavras-chave: Pedagogia; profissionalização docente; análise textual discursiva.
Recebido em: 07.06.2022 Aprovado em: 02.03.2023
https://doi.org/10.5335/rep.v29i3.13643
ISSN on-line: 2238-0302
*
Doutorado em Educação nas Ciências pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (2022). Mestrado
em Educação nas Ciências - Unijuí, bolsista CAPES (2011). Orcid: https://orcid.org/0000-0002-3700-8634. E-mail:
catia.keske@iffarroupilha.edu.br.
**
Doutorado em Genética e Biologia Molecular pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1997). Professora titular da
Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Orcid: http://orcid.org/0000-0002-2380-6934. E-mail:
pansera@unijui.edu.br.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Cátia Keske, Maria Cristina Pansera-de-Araujo
877
v. 29, n. 3, Passo Fundo, p. 876-900, set./dez. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Abstract
The Federal Institutes of Professional, Technical and Technological Education (FIs) seek to offer
20% of their vacancies for initial teacher training, in compliance with Law n. 11,892/2008. In this
challenge, common issues exist to other educational institutions. In this text, we seek to understand
some of those related to teaching work and the professional constitution of teachers, more specifically
in the area of Pedagogy. Situated in the field of qualitative research, the study is guided by the
premises of Textual Discursive Analysis (TDA). From this perspective, phenomenological and
hermeneutically understandings of Pedagogy and the professional performance of professors in this
area are described and analysed, developed by individuals who have a direct relationship with this
locus: Pedagogy professors, course coordinators and subjects in becoming-professor, the students of
the 7th and 8th semesters. Amidst the processes of unitarization, categorization and construction of
the metatext, the coexistence of elements in a broad context is identified, within the scope of
"common experiences" in initial teacher education and teaching in undergraduate courses, as well as
elements of nature more specifically, unique to the teaching work in an FI: the former, constitutive
of professional teacher development; the second, in between the teaching work in an IF.
Keywords: Pedagogy; teacher professionalization; discursive textual analysis.
Resumen
Los Institutos Federales de Educación Profesional, Técnica y Tecnológica (IFs) buscan ofrecer un
20% de sus plazas a la formación inicial de profesores, cumpliendo la Ley n° 11.892/2008. En ese
desafío, viven cuestiones comunes a otras instituciones de enseñanza. En este texto, se busca
comprender algunas de las relacionadas al trabajo docente y a la constitución profesional de los
profesores, más específicamente en el área de la Pedagogía. Situado en el campo de la investigación
cualitativa, el estudio es guiado por las premisas del Análisis Textual Discursivo (ATD). De esa
perspectiva, se describen y se analizan, fenomenológicamente y hermenéuticamente, entendimientos
acerca de la Pedagogía y la actuación profesional de docentes de estas áreas en licenciaturas de un IF,
elaborados por individuos que poseen una relación directa con ese locus: docentes de Pedagogía,
coordinadores de cursos y sujetos en devenir-docente, estudiantes del 7º y del 8º semestre. En medio
a los procesos de unitarización, categorización y construcción del metatexto, se identifica la
coexistencia de elementos en un contexto amplio, en el ámbito de “experiencias comunes” a la
formación inicial de profesores y a la docencia en cursos de licenciatura, y, también, de elementos de
naturaleza más específica, singulares al trabajo docente en un IF: los primeros, constitutivos del
desarrollo profesional docente; los segundos, los entremedios del trabajo docente en un IF.
Palabras clave: Pedagogía; profesionalización docente; análisis textual discursivo.
Introdução
Instituídos a partir da transformação ou integração de Escolas Técnicas e Agro-
técnicas Federais e dos Centros Federais de Educação Tecnológica, uma das novidades
trazidas pela configuração administrativo-pedagógica singular aos Institutos Federais
Trabalho docente de pedagogas(os) em licenciaturas de um Instituto Federal
878
v. 29, n. 3, Passo Fundo, p. 876-900, set./dez. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) é a oferta de, minimamente, 20% de suas
vagas para a formação inicial de professores (BRASIL, 2008). Apesar de distintos de
qualquer outra institucionalidade nacional ou estrangeira (PACHECO, 2020), nos de-
safios dessa oferta, os IFs encontram dificuldades comuns a outras instituições de
ensino, tanto no contexto brasileiro como no de outros países. Como destacam Tardif
e Lessard, na educação, assim como nos outros campos da vida social, “sente-se hoje a
necessidade de ir além do quadro nacional e levar em conta a experiência coletiva das
outras sociedades”, pois “[…] os sistemas educativos da maior parte das sociedades oci-
dentais sofrem atualmente evoluções comuns ou, pelo menos, amplamente
convergentes” (2014b, p. 7). As implicações desse processo de evolução, embora lento,
são sentidas e vividas por professores e professoras de diferentes lugares, em tempos
distintos.
A conjuntura, neste texto problematizada, diz respeito à implicações teórico-prá-
ticas do trabalho docente de pedagogas(os) e da Pedagogia em cursos de licenciatura
do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Farroupilha (IFFar), fenômeno
investigado em pesquisa de Doutorado. Situados no campo da pesquisa qualitativa,
cujas compreensões ocorrem, hermenêutica e fenomenologicamente, guiadas pela Aná-
lise Textual Discursiva (ATD) (MORAES; GALIAZZI, 2016), nesse texto objetivamos
identificar e analisar concepções docentes e discentes acerca da contribuição da Peda-
gogia ao processo de constituição docente na formação inicial de professores em cursos
da referida instituição. Pedagogia compreendida como Ciência da Educação
(FRANCO, 2008; FRANCO, 2021; LIBÂNEO, 2021; SAVIANI, 2012), que tem a
educação como objeto de estudo e cujas especificidades devem ser estudadas em pers-
pectiva crítica considerando a multiplicidade e complexidade social, características da
contemporaneidade.
Apresentamos, inicialmente, compreensões teóricas que evidenciam deslocamen-
tos na concepção do ensinar e da Pedagogia, provocados por três discursos que se
entrelaçam nas atuais práticas profissionais docentes. De forma dialogada, entrelaçamos
compreensões de autores nacionais e internacionais que estudam a profissionalização
docente, movimento esse que, nas últimas quatro décadas, tem contribuído tanto para
o processo de ensino como um todo, quanto, especialmente, para a constituição do-
cente, no âmbito da formação inicial e continuada.
Na sequência, descrevemos e analisamos entendimentos sobre a temática, elabo-
rados por docentes da Pedagogia, por coordenadores de cursos e por sujeitos em devir
docente, estudantes de 7º e 8º semestres. Estes são os três grupos de sujeitos que pos-
suem relação direta aos cursos de Licenciatura, na área de Ciências Naturais do IFFar
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Cátia Keske, Maria Cristina Pansera-de-Araujo
879
v. 29, n. 3, Passo Fundo, p. 876-900, set./dez. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
lócus do estudo, parte do mundo-vida do fenômeno investigado. Assim fazemos dado
o interesse quanto às implicações da Pedagogia na constituição docente durante a for-
mação inicial de professores, bem como do trabalho docente de profissionais da área,
no contexto dos Institutos Federais. Por fim, compartilhamos as compreensões emer-
gentes em um metatexto, construído em um movimento espiralado e de retorno aos
entendimentos dos interlocutores teóricos e empíricos (apresentados e mostrados até
então no texto), que nos levaram, em novos entendimentos, a aprender sobre o trabalho
docente de pedagogas(os) em licenciaturas de um Instituto Federal.
1. Discursos constitutivos da pedagogia e da prática profissional
docente compreensões teóricas
Desde o século 17, a Pedagogia vem constituindo-se como ordem de discursos e
de práticas, em momentos fundadores (GAUTHIER; TARDIF, 1997; GAUTHIER
et al., 2013). Distintos quanto à sustentação teórica e também quanto aos seus desdo-
bramentos nas práticas pedagógicas, são três os discursos constitutivos que podem ser
identificados no movimento de deslocamento, ampliação e significação da Pedagogia:
o saber-fazer vocacional orientado pela religiosidade, o saber-fazer técnico à luz da ci-
entificidade e o saber-fazer prático e reflexivo, desenvolvido e subsidiado pelos
movimentos individual e coletivo de profissionalização. Historicamente, como desta-
cam Gauthier e Tardif, “o pedagogo, assim como sua atividade, têm sido
sucessivamente assimilados ao artesão, ao técnico e ao prático, cada um possuindo um
saber específico” (1997, p. 48). Trata-se, contudo, de uma evolução não linear, dada a
conjugação das formas antigas à forma recente (TARDIF, 2013). Como problemati-
zam Gauthier et al., atualmente
se permanecermos durante algum tempo no domínio das representações, poderá ser útil encarar
o ensino atual como uma composição dessas três concepções, que não se apresentam mais como
uma sucessão de etapas históricas, mas como reveladoras das dimensões fundamentais do trabalho
docente, permanentemente redefinidas e recompostas em função das pressões e das condições em
que se exerce esse trabalho (2013, p. 256).
Para evidenciar as implicações de cada um dos discursos constitutivos do ensino
e da Pedagogia e, consequentemente, dos pensares e fazeres dos profissionais da área,
nos valemos das elaborações de Gauthier e Tardif (1997), Gauthier et al. (2013) e de
Tardif (2013) para o reconhecimento do caminho percorrido até as discussões sobre o
Trabalho docente de pedagogas(os) em licenciaturas de um Instituto Federal
880
v. 29, n. 3, Passo Fundo, p. 876-900, set./dez. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
trabalho docente na atualidade. Entrelaçamos a tais compreensões as problematizações
feitas por Tardif e Lessard (2014a, 2014b), Saviani (2012) e Gatti (2017), que contri-
buem para situar a atualidade do trabalho docente. Se os autores referem-se a “modos
de fundação da Pedagogia” (GAUTHIER; TARDIF, 1997), “idades do Ensino”
(TARDIF, 2013) e “erros-obstáculos e possibilidade” (GAUTHIER et al., 2013), na
Figura 1, apresentamos uma síntese na qual estabelecemos as relações entre religiosi-
dade, cientificidade e profissionalidade, como tônicas discursivas de cada um dos três
momentos constitutivos do ensino e da Pedagogia, em uma tentativa de dialogar entre
os diferentes arranjos linguísticos que, para nós, são discursos constitutivos.
Figura 1 Constituição do ensino e da Pedagogia
Fonte: Dados da Pesquisa.
Apesar da nomeação distinta usada por cada um dos autores, de forma geral trata-
se da caracterização do deslocamento de um inicial saber de experiência vocacional e
“quase que artesanal”, passando do saber científico a um saber reflexivo. Como desta-
cam Gauthier e Tardif (1997), inicialmente fundada sobre uma ordem divina, a
pedagogia assume uma natureza profana, abandonada, posteriormente, de forma inte-
gral à investigação científica, até uma pedagogia fundada na atitude discursiva de um
profissional que, trabalhando em situações complexas, desenvolve sua prática com base
numa pluralidade de saberes (GAUTHIER; TARDIF, 1997).
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Cátia Keske, Maria Cristina Pansera-de-Araujo
881
v. 29, n. 3, Passo Fundo, p. 876-900, set./dez. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
1.1 O saber-fazer vocacional orientado pela religiosidade
Gauthier e Tardif (1997) atribuem o nascimento da Pedagogia à criação de um
método e de um conjunto de regras e conselhos, a fim de que o mestre pudesse melhor
ensinar seus estudantes, ao que nomeiam discurso religioso tradicional. Pela primeira
vez na história, no século 17, fatores como a necessidade de cada um poder interpretar
textos religiosos e a atenção à infância e para com aquele que se ensina, foram eviden-
ciadas. Correspondente ao discurso religioso elaborado por Gauthier (GAUTHIER;
TARDIF, 1997), Tardif (2013) nomeia esse movimento discursivo inicial do ensino
como a idade da vocação. Nela está o surgimento do ensino escolar tal como o conhe-
cemos hoje, situado inicialmente na Europa nos séculos 17 e 18, no contexto da
reforma protestante e da contrarreforma católica, com o advento e multiplicação de
pequenas escolas e colégios, estabelecimentos privados colocados sob a tutela das igrejas
e das comunidades locais (TARDIF, 2013).
O discurso e a prática deslocam-se do estudar “tudo”, na perspectiva de Rabelais,
para o ensinar “tudo a todos”, com base na Didática Magna do Comenius, e sob essa
intenção o ensino passa a ser um problema na escola, visto que não era possível que os
alunos se comportassem mal ou aprendessem pouco (GAUTHIER; TARDIF, 1997).
Emerge, então, a elaboração de obras católicas e protestantes sobre a boa maneira de
ensinar. Nesse cenário, são definidos diferentes mecanismos de controle da sala de aula,
constitutivos de um método para resolver os problemas de ensino com os quais o do-
cente se defrontava no período em questão, e que permeiam a organização das escolas
até os dias de hoje. Trata-se de: o controle do espaço, do grupo, dos deslocamentos, da
postura e dos saberes (GAUTHIER; TARDIF, 1997).
Segundo Tardif (2013), nesse contexto, o ensino é “profissão de fé”, e professar
é tanto exercer uma atividade em tempo integral, quanto exprimir e tornar pública a fé
por meio da conduta moral como professor. Considerado como uma vocação às mu-
lheres, o ato de ensinar correspondia ao cumprimento de uma importante missão junto
às crianças, a de moralizá-las e mantê-las na fé em Deus, ensinando o controle do corpo
e fazendo do ensino um trabalho moral. Como a formação era quase inexistente, apenas
in loco pela experiência e imitação, as “virtudes femininas tradicionais” eram valoriza-
das, e as condições de trabalho ficavam em segundo plano, mantendo as professoras
sujeitas a várias formas externas de controle, com rara autonomia, delineada pelo poder
dos religiosos, dos homens, dos pais, dos superiores e daqueles que as pagavam
(TARDIF, 2013, p. 554-555).
Trabalho docente de pedagogas(os) em licenciaturas de um Instituto Federal
882
v. 29, n. 3, Passo Fundo, p. 876-900, set./dez. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Gauthier et al. (2013), por sua vez, nomeiam esse discurso constitutivo do ensino
e da Pedagogia como ofício sem saberes, dado os equívocos paradoxais que sustentaram
a crença de que para ensinar basta ou conhecer o conteúdo, ou ter talento, ou ter bom
senso, ou seguir a intuição, ou ter experiência ou, ainda, ter cultura. Tais ideias contri-
buíram e ainda contribuem, sobretudo, para o “enorme erro de manter o ensino numa
cegueira conceitual” (GAUTHIER et al., 2013, p. 20).
1.2 Saber-fazer técnico à luz da cientificidade
Em resposta ao código uniforme do saber-fazer cristalizado a partir da vocação
orientada pela religiosidade, a Pedagogia, como “repertório artesanal de ações a repetir
sem muito pensar”, foi denunciada veementemente na primeira metade do século 20,
conforme pontuam Gauthier e Tardif (1997). Segundo os autores, universitários da
época, responsáveis pela articulação do novo discurso pedagógico, desejavam que a pe-
dagogia “contivesse, dali em diante, um conjunto de saberes positivos e de um saber-
fazer advindo da verificação científica” (GAUTHIER; TARDIF, 1997, p. 44), dei-
xando de ser cópia fiel dos ditames religiosos de seus fundadores. O fundamento da
Pedagogia passa, então, de projeto divino a projeto experimental, e como a técnica é o
prolongamento natural da ciência, como referem Gauthier e Tardif, “é fácil imaginar
que a função do pedagogo corresponda àquele de técnico que aplica, na sua sala de
aula, leis da pedagogia descobertas pela ciência” (1997, p. 45).
Instaura-se, assim, o discurso científico, como nomeiam Gauthier e Tardif
(1997), a idade do ofício, para Tardif (2013), que destaca que a relação das professoras
com o trabalho deixou gradualmente de ser vocacional para se tornar contratual e sala-
rial. Surgido no século 19, no processo de desconfessionalização e estatização das
sociedades ocidentais, quando os Estados ascendem e, lentamente, separam-se das Igre-
jas, o ensino como ofício atinge o seu apogeu após a Segunda Guerra Mundial, “como
parte de um processo de democratização escolar sem precedente que vê nascer vastos
sistemas escolares estabelecidos sob a direção dos Estados” (TARDIF, 2013, p. 557).
Dessa forma, criadas as primeiras redes escolares públicas e laicas, a presença das crian-
ças na escola passa a ser obrigatória e o contexto educativo implica na integração da
profissão de docente às diferentes estruturas do Estado.
Nessa conjuntura, a idade do ofício exige das mulheres um investimento inicial,
a formação, que provocou, ainda no século 19, a difusão de escolas normais, tornadas
obrigatórias a quem fosse ensinar no século 20, nas quais “o aprendizado da profissão
passa pela prática, pela imitação e pelo domínio das rotinas estabelecidas nas escolas
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Cátia Keske, Maria Cristina Pansera-de-Araujo
883
v. 29, n. 3, Passo Fundo, p. 876-900, set./dez. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
pelas professoras experientes, bem como pelo respeito às regras escolares” (TARDIF,
2013, p. 557). Certa relação com a idade da vocação? Em meio ao processo da separa-
ção Estado-Igreja, o estatuto de funcionário público conferido a quem fosse ensinar e
estivesse habilitado para tal, garante certa autonomia pedagógica e proteção contra os
antigos controles externos. Junto a esse status, as professoras passam a ser responsáveis
por suas classes, pela gestão dos alunos, pelas escolhas pedagógicas relacionadas à ma-
téria, pelas atividades de aprendizagem e pela disciplina, entre outros aspectos.
Gauthier et al. (2013) destacam, por sua vez, o quanto se tentou transformar a
Pedagogia em uma ciência aplicada com base na Psicologia, reconhecida como ciência
pura, a fim de formalizar a atividade docente, ideia antiga que vinha tomando corpo
desde o fim do século 19. Na prática, esse projeto de ciência da educação deu corpo
aos saberes sem um ofício, capaz de colocá-los em prática, que foi criticado pelos pro-
fessores, dada sua dimensão de não pertinência prática. Assim, apesar de os saberes
sobre o ensino advindos da cientificidade terem pertinência em si mesmos, acabaram
“‘amputados’ de seu objeto real: um professor, numa sala de aula, diante de um grupo
de alunos que ele deve instruir e educar de acordo com determinados valores”
(GAUTHIER et al., 2013, p. 27).
1.3 Saber-fazer profissional e reflexivo, desenvolvido nos movimentos
individual e coletivo de profissionalização
A problematização do quanto o ensino tarda a refletir sobre si mesmo e não tem
definido os saberes envolvidos no exercício do seu ofício ocorre desde seu início, na
Antiguidade, e assim o é ainda, sem interrupção. Gauthier et al. (2013) defendem a
necessidade de uma teoria geral da Pedagogia, identificando dois obstáculos que, his-
toricamente, se interpõe à ela: o ofício sem saberes e os saberes sem ofício. Ao analisar
os momentos discursivos anteriores, os autores evidenciam que, assim como os saberes
sem ofício acabaram por formalizar o ensino até sua não correspondência ao contexto
real e esvaziados do contexto concreto do exercício do ensino, o ofício sem saberes
cristalizou ideias pré-concebidas, levando a cegueiras conceituais. Como problemati-
zam os autores, na tentativa de fugir de um mal, caiu-se num outro, sendo os dois
prejudiciais para o “desabrochar de um saber desse ofício sobre si mesmo”
(GAUTHIER et al., 2013). Em uma proposição de superação de tais obstáculos, de-
fendem um ofício feito de saberes, que considere a mobilização de vários saberes
Trabalho docente de pedagogas(os) em licenciaturas de um Instituto Federal
884
v. 29, n. 3, Passo Fundo, p. 876-900, set./dez. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
constitutivos de um “[...] reservatório no qual o professor pode se abastecer para res-
ponder a exigências específicas de sua situação concreta de ensino” (GAUTHIER et
al., 2013, p. 28).
Examinando sobre “onde estamos hoje”, Gauthier e Tardif (1997) destacam o
discurso profissional contemporâneo, justificando a existência, por algumas décadas,
de um questionamento importante acerca dos esforços de fundação da Pedagogia sobre
a ciência e a tecnologia. Defendem, então, uma terceira via ao discurso religioso e ao
discurso científico, sob a pretensão de “ultrapassar, ao mesmo tempo, tanto a perspec-
tiva que procura fundar-se na verdade divina quanto aquela que postula a ciência com
fundamento do agir do pedagogo” (GAUTHIER; TARDIF, 1997, p. 46). Por esse
viés,
conceber o docente como um profissional significa compreendê-lo como alguém dotado de
saberes e que, confrontado com uma situação complexa na qual torna-se impossível utilizar estes
saberes conforme eles deveriam ser aplicados diretamente, deve, por conseguinte, deliberar,
refletir sobre a situação e decidir (GAUTHIER; TARDIF, 1997, p. 46).
Correlata a essa elaboração, Tardif (2013) nomeia o momento atual como a
idade da profissão, destacando que a profissionalização do ensino representa uma ten-
dência que atravessa todo o século 20. Embora tenha sido na idade do ofício que as
professoras passaram a trabalhar para construir uma carreira e obter um salário, é so-
mente a partir dos anos de 1980 que se pode identificar o movimento de
profissionalização em contornos de movimento social. Os objetivos da profissionaliza-
ção estão, sobretudo, relacionados à melhoria do desempenho do sistema educativo, ao
deslocamento do estatuto de ofício do ensino para o de profissão em sua integralidade
e à construção de uma base de conhecimento (knowledge base) para o ensino (TARDIF,
2013).
Nesse processo, surgiu a necessidade de uma formação universitária baseada em
conhecimentos científicos sem, no entanto, limitar a pesquisa à produção de conheci-
mentos teóricos ou básicos e, sim, colocando-a “a serviço da ação profissional”, o que
resultou em um “aumento das competências práticas dos professores” (TARDIF,
2013). Se antes as escolas e os cursos normais eram o espaço-tempo para tal formação,
o movimento de profissionalização levou ao seu prolongamento até o nível superior.
Intimamente ligado à universitarização, esse processo conduziu a mudanças nas uni-
versidades e nas organizações escolares de diferentes países, especialmente pela
mediação da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)
(TARDIF, 2013) que, junto a outros organismos internacionais, propiciou a circulação
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Cátia Keske, Maria Cristina Pansera-de-Araujo
885
v. 29, n. 3, Passo Fundo, p. 876-900, set./dez. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
de políticas itinerantes de educação que têm provocado a reestruturação da profissão
docente (OLIVEIRA, 2020), muitas vezes, como se “a imagem de professor(a) fosse
um cata-vento que gira à mercê da última vontade política” (ARROYO, 2013, p. 24).
A profissionalização do ensino leva, contudo, ao reconhecimento dos professores
como especialistas da Pedagogia e da aprendizagem, que baseiam suas práticas em co-
nhecimentos científicos e, ao mesmo tempo, induz a uma visão reflexiva do ato de
ensinar, uma vez que “o ensino não é mais uma atividade que se executa, mas uma
prática na qual devemos pensar, que devemos problematizar, objetivar, criticar, melho-
rar” (TARDIF, 2013, p. 561). Como elaboram Gauthier e Tardif (2014),
profissionalizar a formação dos docentes significa: realçar a cultura dos professores por
meio da sua integração nas universidades; enriquecer os seus conteúdos pela incorpo-
ração dos resultados de pesquisas; reservar maior espaço para a formação prática; avaliar
não somente o conhecimento dos estudantes, mas sua aplicação no ensino; e, valorizar
a visão reflexiva do ensino e de práticas inovadoras que priorizem a aprendizagem dos
alunos.
Não parecendo-nos tarefa fácil esse processo, nomeamos, por fim, a problemati-
zação que Tardif (2013) faz em relação à idade da profissão, ao caracterizar o
desenvolvimento do processo de profissionalização docente num ritmo a cada dois pas-
sos para frente, três para trás.
[…] é importante lembrar que a profissionalização da docência origina-se de um ideal
tipicamente americano, uma espécie de mito estadunidense que se exporta para todo o planeta
há trinta anos. Na América Latina e no Brasil, não deveríamos começar a desconfiar deste mito
e a criticá-lo? Na realidade, há três décadas, muitos professores sentem que os ganhos obtidos
durante a idade do ofício […] estão atualmente ameaçados e sendo substituídos por uma
profissionalização que rima com concorrência, prestação de contas, salário segundo o mérito, a
insegurança no emprego e no estatuto. Na verdade, a profissionalização parece combinar hoje
com uma proletarização de uma parte dos professores. É por isso que a transição entre a idade do
ofício e a idade da profissão suscita resistência significante entre os professores da maioria dos
países (TARDIF, 2013, p. 569).
Cientes que cada um dos discursos-idades-erros (Figura 1), em maior ou menor
intensidade, vem sendo vivido de forma singular em nosso país, as compreensões teó-
ricas apresentadas fazem-nos pensar sobre o que se entende no que respeita à Pedagogia
no atual contexto da formação inicial de professores, em cursos de licenciatura brasilei-
ros: A docência no Ensino Superior é reconhecida como constituída por tais discursos?
E a docência dos professores que atuam na formação inicial de outros (futuros) profes-
sores? E o docente da área da Pedagogia? Segundo Gatti,
Trabalho docente de pedagogas(os) em licenciaturas de um Instituto Federal
886
v. 29, n. 3, Passo Fundo, p. 876-900, set./dez. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
vivemos tensões nas propostas e concretizações da formação inicial de professores, não só no
Brasil como em muitos outros países. Aqui vivenciamos padrões culturais formativos arraigados,
estruturados em nossa história educacional desde os inícios do século XX, padrões que se
mostram em conflito com o surgimento de novas demandas para o trabalho educacional, as quais
se colocam em função de contextos sociais e culturais diversificados, após cem anos de trajetória
histórico-social e cultural (2017, p. 723).
Saviani (2012), ao historicizar e teorizar a Pedagogia no Brasil, destaca que o
espaço permanente ocupado pela área na estrutura do Ensino Superior desde os anos
de 1930, foi marcado pela precariedade, dada sua limitação à provisão de disciplinas
como garantia da formação de determinados profissionais da educação. O resultado?
Um ensino “pouco consistente teórico-cientificamente, tornando a área pedagógica
‘objeto de certo estigma, reforçado pelo baixo status social da profissão docente’”
(SAVIANI, 2012, p. 61). Como destaca Franco, “a Pedagogia realmente não se encaixa
nos cânones da ciência moderna. [...] talvez tenha de, em sua perspectiva ontológica,
debater sobre si própria e resistir a determinada forma de ciência” (2021, p. 147).
Retomando o objetivo de identificar e analisar concepções docentes e discentes
acerca da contribuição da Pedagogia ao processo de constituição docente na formação
inicial de professores em cursos de Licenciatura do IFFar, voltamo-nos às questões: O
que podemos compreender como implicações da atividade e do trabalho docente do
profissional professor(a) pedagoga(o) nesse espaço-tempo? O que é que se mostra e se
revela nos discursos dos sujeitos co-presença da pesquisa sobre as práticas profissionais
do Docente da Pedagogia em Cursos de Licenciatura do IFFar? Sendo essas as pergun-
tas fenomenológicas que nos acompanham, a seguir descrevemos o processo de Análise
Textual Discursiva realizado na busca de respostas.
2. Pedagogia nas licenciaturas do IFFAR o que se “mostrou”
na pesquisa
De natureza qualitativa e inserida no campo da educação, buscamos manter na
pesquisa um viés fenomenológico, com orientação pela Análise Textual Discursiva para
a compreensão do fenômeno. Para tanto, as elaborações estão subsidiadas em Moraes
e Galiazzi (2016) e Bicudo (1994). Esses autores inspiram a termos, na fenomenologia,
o desafio para pensar a realidade de modo rigoroso e, na ATD, o modo pelo qual agi-
mos para perseguir a compreensão sobre a Pedagogia e o trabalho docente de
Pedagogas(os) em Licenciaturas do IFFar. Com base em suas premissas, reconhecemos
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Cátia Keske, Maria Cristina Pansera-de-Araujo
887
v. 29, n. 3, Passo Fundo, p. 876-900, set./dez. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
na ATD um movimento interpretativo de caráter hermenêutico e assim tentamos
apresentá-la nesse texto.
Inicialmente, organizamos um corpus textual singular, constituído de textos pro-
duzidos especificamente no contexto da pesquisa, por três grupos de sujeitos envolvidos
com/co-presença no fenômeno investigado, nas condições de: (i) sujeito em devir do-
cente, licenciandos concluintes; (ii) coordenador de curso; e (iii) docente da Pedagogia
atuante em curso de Licenciatura da área das Ciências Naturais. O critério para defini-
ção do lócus da pesquisa diz respeito a esta ser a área de conhecimento com maior oferta
na Instituição, num total de 17, em 9 dos 10 campi do IFFar, 10 são na área das Ci-
ências Naturais, sendo as demais em Matemática (5/17) e em Computação (2/17). Vale
destacar que, em nosso entendimento, essa opção institucional revela a proposição de
cumprir o percentual determinado na Lei de Criação da RFEPCT (BRASIL, 2008).
Ao todo, são 50 sujeitos que fazem/faziam parte do universo “Cursos de Licen-
ciatura na área de Ciências Naturais ofertados pelo IFFar”. Pertencentes a 6 dos 10
campi do IFFar, os grupos podem ser assim descritos:
(i) Docentes da Pedagogia: 14 docentes, todos ingressantes na EBTT após a cri-
ação da RFECT, dos quais a maioria possui Doutorado em Educação (9 de 14,
perfazendo 64,3%) e é efetivo do quadro de servidores do IFFar, sendo que apenas um
deles é professor substituto. No contexto da ATD, os códigos de Unidades de Origem
(UO) atribuídos a eles são DP1 a DP14, sendo as letras a representação de Docente da
Pedagogia, e os algarismos, o indicativo da ordem temporal de participação na pesquisa.
(ii) Coordenadores de Curso: seis docentes, todos ingressantes na EBTT após a
criação da RFECT e efetivos do quadro de servidores do IFFar, compartilham da pre-
missa de que os Docentes da Pedagogia “buscam desenvolver suas práticas em
consonância com as orientações teóricas que defendem” (Questão 6). As Unidades de
Origem desse grupo foram codificadas por meio das letras CC, representando a condi-
ção de Coordenação de Curso, seguidas dos algarismos de 1 a 6, atribuídos conforme
a ordem temporal de participação na pesquisa.
(iii) Sujeitos em Devir Docente: 30 estudantes de 7º ou 8º semestre, 27 da Li-
cenciatura em Ciências Biológicas e 3 da Licenciatura em Química. A metade (15 de
30) é aluno(a) do Campus Panambi, 1/4 (8 de 32) é do Campus Santo Augusto, 5 são
do Campus Santa Rosa e 2 são do Campus Júlio de Castilhos. Os Códigos das Unida-
des de Origem atribuídos a eles são as letras SDD, representando a condição sujeito
em Devir Docente, enumeradas de 1 a 30 conforme a ordem temporal de participação
na pesquisa.
Trabalho docente de pedagogas(os) em licenciaturas de um Instituto Federal
888
v. 29, n. 3, Passo Fundo, p. 876-900, set./dez. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Cada um dos sujeitos desses três grupos respondeu, individualmente, a um con-
junto de perguntas no Google Forms, no período de janeiro a maio de 2020,
consentindo para com as questões éticas subjacentes ao estudo por meio de Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido. Importante destacar que, correspondendo ao mo-
vimento de “iniciar a pesquisa”, para subsidiar a produção de textos-discursos pelos
quais os sujeitos co-presença na pesquisa compartilhariam entendimentos sobre o fe-
nômeno investigado, tais perguntas foram elaboradas a partir de cinco categorias
definidas a priori. Nesse texto, contudo, compelidas pelo questionamento sobre “o que
é que se mostra e se revela nos discursos sobre as práticas profissionais do Docente da
Pedagogia de Cursos de Licenciatura do IFFar”, analisamos textos-discursos vinculados
a duas categorias iniciais: (i) Atividades e experiências profissionais e (ii) Implicações
da atuação docente profissional da(o) pedagoga(o) e da Pedagogia nas Licenciaturas do
IFFar.
1
Importante destacar ainda que, assim como os textos-discursos analisados aqui
não correspondem à totalidade dos dados produzidos para a pesquisa, tais questões
não correspondem à totalidade dos questionamentos feitos aos sujeitos co-presenças
da pesquisa e sim àquilo que, em nosso entendimento, contribui e responde a referida
interrogação sobre a qual nos questionamos nesse momento da pesquisa.
Vale indicar ainda que, para as respostas às perguntas que fizemos, atribuímos
Unidades de Significado (US) ao encontro do processo fenomenológico de redução,
realizando, dessa forma, o processo desconstrutivo de unitarização da ATD. Como uma
explosão de ideias que encaminha a uma leitura aprofundada e compreensiva
(MORAES; GALIAZZI, 2016), a unitarização é um processo recursivo de mergulho
nos significados dos textos-respostas dos DPs, dos CCs e dos SDDs. É desmembrar um
texto, “[...] transformando-o em unidades elementares, correspondendo a elementos
discriminantes de sentidos, significados importantes para a finalidade da pesquisa, de-
nominadas de unidades de significado” (MORAES; GALIAZZI, 2016, p. 71).
Embora não sejam apresentadas todas as US, destacamos o conjunto reconhecido
como discursos que levaram à emergência de categorias finais e que permitiram novas
compreensões. Vale destacar que cada fragmento produzido observa o critério de rela-
ção com o fenômeno investigado, refletindo os objetivos do estudo e, embora balizada
por um referencial teórico a priori, como assim sugerem Moraes e Galiazzi (2016), é o
caminho para uma compreensão mais ampla sobre a Pedagogia e o trabalho docente de
pedagogas(os) em Licenciaturas do IFFar.
Este a priori está ao encontro de premissas como a docência como trabalho hu-
mano (TARDIF; LESSARD, 2014a) e de atividade profissional (TARDIF; LESSARD,
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Cátia Keske, Maria Cristina Pansera-de-Araujo
889
v. 29, n. 3, Passo Fundo, p. 876-900, set./dez. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
2014b) que vem se constituindo pelo movimento de profissionalização (TARDIF,
2013; GAUTHIER; TARDIF, 1997; GAUTHIER et al., 2013). Somada à elas, a
compreensão dos IFs como política educacional “com uma proposta singular de orga-
nização e gestão, no diálogo com as realidades regional e local e em sintonia com o
global” (PACHECO, 2010, p. 26).
Vinculadas as atividades e experiências profissionais do docente da Pedagogia no
IFFar, reconhecemos relações profissionais dos DPs em quatro âmbitos: (A) do(s)
curso(s) em que atuam; (B) das questões discentes; das relações (C) com os demais
professores formadores e (D) com a coordenação do curso. No Quadro 1, mostramos
parte das US atribuídas, observando o critério da complementaridade e não da repeti-
ção.
Quadro 1 ntese das Unidades de Significado identificadas nos textos sobre
Relações Profissionais
Unidades de Significado - DP
Unidades de Significado - CCs
“[...] construção coletiva. Sinto-me acolhida e
à vontade para realizar o trabalho.” (DP2)
“Me envolvo em todas as atividades possíveis,
desde seleção de professor, perpassando por
auxílio em reformulação de PPC, semanas
acadêmicas.” (DP9)
“Procuro me envolver com a tríade ensino-
pesquisa-extensão.” (DP8)
(A) Curso(s) de
atuação
“Todos os docentes se envolvem da
mesma forma.” (CC3)
“Ativos e querendo ajudar na construção e
melhora constante das disciplinas que
oferecem, estágios, etc.” (CC5)
“Participam e
sempre contribuem no
colegiado e NDE do curso.” (CC6)
“Tenho uma postura de escuta.” (DP9)
“Sempre tive dificuldades em separar a vida
privada da profissional. Sou aquela docente
disponível 99% do tempo.” (DP8)
“Relações estritamente profissionais,
constituídas pelo amálgama dos saberes
necessários ao trabalho docente, voltados
para a formação humana.” (DP7)
(B) Questões discentes
“A atuação é direta e bem conduzida pelas
pedagogas, que auxiliam muito os
estudantes na prática docente, como o
desenvol
vimento de oficinas, aulas,
planejamentos, escritas de artigos, entre
outros, principalmente dentro dos
estágios, PeCCs e Residência
Pedagógica” (CC4)
Trabalho docente de pedagogas(os) em licenciaturas de um Instituto Federal
890
v. 29, n. 3, Passo Fundo, p. 876-900, set./dez. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
“[...] procuro priorizar: diálogo com pares mais
próximos da área de pedagogia para que eu
me sinta cada vez mais pertencente a esse
espaço de trabalho”. (DP4)
“A parceria com os pares é muito prazerosa
em meu ambiente de trabalho” (DP8)
“Procuro manter uma boa relação e sempre
dialogar, trazer minhas proposições ao grupo,
mesmo que causem estranhamento a alguns.
(DP3)
“Através dos colegiados e NDE temos uma
interação muito boa.” (DP13)
(C) Professores formadores
“Como docente, me enquadro na área
específica e observo que as visões do que
é importante e objeto de aprendizado são
bem distintas entre os profes
sores da
formação pedagógica e os professores da
formação específica. Porém, penso que é
nessa diversidade de ideias e visões que
nos fortalecemos enquanto curso.” (CC5)
“É corriqueiro a participação em projetos e
disciplinas em conjunto com os demais
professores.” (CC1)
“Me sinto parte dos cursos, mas vejo que me
sinto mais parte em uns do que de em outros.
Essa aproximação vai da gestão do curso,
como ela compõe ou distancia, se ela
considera o docente pedagogo membro da
equipe ou não. Já vivi momentos de conflitos
no qual tive que impor minha presença como
docente do curso, isso é muito ruim para os
alunos que também enxergam a gente parte
ou não parte.” (DP12)
“Possuo uma boa relação com as
coordenadoras dos cursos em que atuo, em
função do reconhecime
nto do trabalho
prestado na área da Pedagogia (não me refiro
somente a mim, mas também aos meus
pares).” (DP8)
(D) Coordenação do Curso
“As professoras em questão são
protagonistas no NDE e colegiado sempre
contribuindo para o crescimento da nossa
Licencia
tura, o mesmo ocorrendo com
demandas específicas da coordenação.”
(CC1)
“Recebo na sala de coordenação de curso
vários colegas com sugestões ou críticas
para a melhora de algum aspecto do
curso. [...] Como coordenação, várias
reuniões de Colegiado, NDE, estágios são
conduzidas, e nesses espaços os colegas
têm a chance de inserir suas ideias,
anseios, dúvidas.” (CC5)
“Proximidade atrelada à proximidade
física das salas de trabalho.” (CC2)
Fonte: Dados da Pesquisa.
Por fim, reconhecemos percepções acerca das Implicações da Pedagogia e da(o)
docente da Pedagogia, identificando responsabilidades profissionais dos docentes da Pe-
dagogia no processo de formação inicial de professores. Pelo processo de unitarização
dos textos constituídos pelas respostas, identificamos um conjunto de US, sendo que
apresentamos parte dele, por meio de um conjunto de orações (frases que contêm verbo
ou locução verbal) que representam a nossa síntese das ações-responsabilidades atribu-
ídas ao docente da pedagogia (Figura 2). É importante observar que trabalhamos com
a ocorrência de verbos e complementos verbais cuja análise se dá, semanticamente, na
aproximação aos discursos constitutivos do ensino e da Pedagogia, apresentados ante-
riormente no texto e na Figura 1.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Cátia Keske, Maria Cristina Pansera-de-Araujo
891
v. 29, n. 3, Passo Fundo, p. 876-900, set./dez. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Figura 2 Síntese das US identificadas como Responsabilidades Profissionais da
Pedagogia nas Licenciaturas do IFFar nos textos dos sujeitos co-presença na pesquisa
Fonte: Dados da Pesquisa (2021).
Trabalho docente de pedagogas(os) em licenciaturas de um Instituto Federal
892
v. 29, n. 3, Passo Fundo, p. 876-900, set./dez. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Encerrado o processo de unitarização da ATD, com o qual reconhecemos e en-
tendemos partes do fenômeno investigado, passamos à categorização, ao movimento
de síntese e reconstrução da pesquisa pelo qual construímos e estruturamos novas for-
mas de compreensão sobre a Pedagogia e o trabalho docente de Pedagogas(os) em
Licenciaturas do IFFar. No movimento de categorização, incorremos a elaboração de
regiões de generalidades compreendidas e estudadas no âmbito do estudado
(BICUDO, 1994). Em uma construção desde o corpus textual, o encaminhamento foi
do geral ao específico, sendo essa uma das formas de categorizar no contexto da ATD
(MORAES; GALIAZZI, 2016). Para além de reunir o que é semelhante, ao aprender
sobre o fenômeno investigado, constituímos um “mosaico”, dado que a expressão e
comunicação das novas compreensões foram produzidas ao mesmo tempo em que fo-
ram concretizadas (MORAES; GALIAZZI, 2016, p. 114). Assim, na aproximação do
conjunto de textos-discursos analisados (que respondiam ao questionamento que aqui
nos fazemos), chegamos a outras duas categorias: (i) relações profissionais dos DPs e
(ii) responsabilidades profissionais dos docentes da Pedagogia no processo de formação
inicial de professores. Como parte constitutiva da ATD, a categorização possibilitou a
sistematização de estruturas discursivas que nos levaram à emergência de duas catego-
rias finais, sintetizadas na Figura 3.
Figura 3 Síntese da categorização por meio de ATD
Fonte: Dados da Pesquisa (2021).
Elaborado pelo movimento de interpretação e de construção de um mosaico
(MORAES; GALIAZZI, 2016), na sequência apresentamos o metatexto, em que nos
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Cátia Keske, Maria Cristina Pansera-de-Araujo
893
v. 29, n. 3, Passo Fundo, p. 876-900, set./dez. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
desafiamos a comunicar e a revelar o que aprendemos e temos a dizer sobre o fenômeno
investigado, para além do redizer entendimentos-US e de somar categorias.
3 Desenvolvimento profissional e entremeios do trabalho
docente de pedagogas(os) no IFFAR: novas compreensões do/no
metatexto
Se inicialmente nos esforçamos para reconhecer os deslocamentos da concepção
de ensinar durante o processo de constituição da Pedagogia, vale indicar que assim
fizemos na tentativa de evidenciar a essência do fenômeno, de mostrar “as raízes, os
fundamentos primeiros do que é visto (compreendido)” (BICUDO, 1994, p. 20). Na
continuidade, os processos de unitarização e de categorização foram desenvolvidos e
apresentados como “cuidado com cada passo dado na direção da verdade (‘mostração’
da essência)” (idem). Agora, a intenção é compartilhar nossos entendimentos emergi-
dos a partir dessas percepções, em um metatexto. Chegar a ele, porém, não é tarefa
fácil, pois, como destaca Bicudo: “O mostrar-se ou o expor-se à luz, sem obscuridade,
não ocorre em um primeiro olhar o fenômeno, mas paulatinamente, dá-se na busca
atenta e rigorosa do sujeito que interroga e procura ver além da aparência, insistindo
na procura do […] essencial” (BICUDO, 1994, p. 18).
Ao iniciar este metatexto, partimos de um questionamento que emerge na apro-
ximação e contrastação do referencial teórico e do corpus textual (dados empíricos da
pesquisa): O atual discurso constitutivo do ensino e da Pedagogia de profissionaliza-
ção docente é a atualidade vivida no contexto das licenciaturas dos IFs? Ou melhor:
como pode ser compreendido o mostrado e revelado nas concepções docentes e discen-
tes acerca da contribuição da Pedagogia ao processo de constituição docente na
formação inicial de professores em cursos de licenciatura do IFFar, no contexto de des-
locamento dos momentos-discursos da Pedagogia e do ensino?
Embora criados numa conjuntura de atualidade, com pouco mais de uma dé-
cada, o estudo nos leva à compreensão de que os profissionais pedagogas(os) que atuam
no IFFar vivem um entrelaçamento de orientações teórico-práticas. Coexistem elemen-
tos que podem ser situados em contexto amplo, no âmbito de “vivências comuns” à
formação inicial de professores no Brasil e à docência em cursos de licenciatura, e em
elementos de natureza mais específica, singulares ao trabalho docente em um IF. En-
tendemos que os primeiros são constitutivos do desenvolvimento profissional docente;
os segundos, como entremeios do trabalho docente em um IF.
Trabalho docente de pedagogas(os) em licenciaturas de um Instituto Federal
894
v. 29, n. 3, Passo Fundo, p. 876-900, set./dez. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
3.1 Constituição e desenvolvimento profissional docente
Na compreensão desse contexto amplo, Arroyo (2013) contribui com a discus-
são, ao partir da premissa de não ser possível que a identidade de trabalhadores e de
profissionais apague os traços de uma imagem social, construída historicamente. Nas
palavras do autor, “onde todos esses fios se entrecruzam. Tudo isso sou. Resultei de
tudo” (ARROYO, 2013, p. 33). A esse encontro, Gatti enfatiza que “redes educacio-
nais e escolas são instituições integrantes da sociedade e, como tal, nelas se encontram
os mesmos traços característicos das dinâmicas sociais, aí incluídas tensões e conflitos de
uma dada conjuntura” (2017, p. 722, grifo nosso). No IFFar há, contudo, uma atuação
docente singular, ao encontro da configuração administrativo-pedagógica singular dos
IFs, ao mesmo tempo que estabelecida por traços comuns ao desenvolvimento profis-
sional no Ensino Superior, como evidenciamos no texto.
Se entre as US identificadas nos textos dos DPs quase não há elementos vincula-
dos ao ensino como vocação, e estes dizem muito mais da docência como profissão,
entre os CCs e os SDDs há tanto percepções vinculadas à vocação, quanto situadas
entre o ofício e a profissão, como é possível visualizar na Figura 2. Essa constatação,
contudo, nos permitiria avaliar o quanto profissionalizam ou não os cursos lócus da
pesquisa? Entendendo que não, ratificamos o já expresso no texto, mas nos valendo de
Tardif e Lessard: “a evolução não é mais percebida como unidimensional e unidirecio-
nal; ela aparece, antes, como um processo de complexificação e de recomposição de um
trabalho que tenta reconhecer e incorporar dimensões de certo modo intrínsecas à ati-
vidade docente” (2014b, p. 256).
Existem, sobretudo, elementos que correspondem à “atualidade”, conforme
apresentamos na Figura 2. Nesse raciocínio, nos questionamos sobre o quanto a parti-
lha de percepções permitiu, não somente a nós pesquisadoras, mas também aos sujeitos
envolvidos, a vivência da experiência de perceber partes da essência do fenômeno in-
vestigado, pelo movimento reflexivo que, desvendado à consciência, leva à ampliação
do horizonte compreensivo. O conjunto de US por nós atribuídos aos DPs, profissio-
nais da área da pedagogia que atuam na formação inicial de professores em cursos de
licenciatura e, portanto, professores do Ensino Superior, levam àquilo que Pimenta e
Anastasiou (2011) defendem como desenvolvimento profissional dos professores do
Ensino Superior em IES
2
, termo tomado por nós como adequado para expressarmos
uma das categorias finais a que chegamos. Isso porque, para as autoras,
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Cátia Keske, Maria Cristina Pansera-de-Araujo
895
v. 29, n. 3, Passo Fundo, p. 876-900, set./dez. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
a docência na universidade configura-se como um processo contínuo de construção da identidade
docente e tem por base os saberes da experiência, construídos no exercício profissional mediante
o ensino dos saberes específicos das áreas do conhecimento. Para que a identidade de professor
se configure, no entanto, há o desafio de pôr-se, enquanto docente, em condições de proceder a
análise crítica desses saberes da experiência construídos nas práticas, confrontando-os e
ampliando-os com base no campo teórico da educação, da pedagogia e do Ensino (PIMENTA;
ANASTASIOU, 2011, p. 88).
Um processo de constituição docente dessa natureza, diferentemente da vivida
pelos SDD bem como para todo e qualquer aluno de curso de licenciatura , confi-
gura uma identidade epistemológica (decorrente de seus saberes científicos e os de
ensinar) e, ao mesmo tempo, profissional, “ou seja, a docência constitui um campo
específico de intervenção profissional na prática social”, envolvendo “ações e programas
quer de formação inicial quer de formação em serviço” (PIMENTA; ANASTASIOU,
2011, p. 88). Dentre os entendimentos compartilhados conosco pelos DPs envolvidos
na pesquisa, reconhecemos um conjunto que dá corpo ao desenvolvimento profissio-
nal, tal qual concebem Pimenta e Anastasiou (2011). Em nossa leitura, são os princípios
indicados como balizadores da prática docente que movimentam e constituem as ati-
vidades profissionais por eles desenvolvidas.
Conforme Tardif (2013), os professores reconhecem seus conhecimentos em sua
experiência de vida no trabalho, na medida em que reinterpretam os conhecimentos
externos (de sua formação, da pesquisa ou de outras fontes de conhecimento) em razão
das necessidades específicas de seu trabalho. Da mesma forma, Pimenta e Anastasiou
(2011) destacam a consciência sobre as práticas de sala de aula e da instituição de ensino
como um todo, como condição para transformação das práticas docentes. E isso, con-
forme as autoras, “pressupõem os conhecimentos teóricos e críticos sobre a realidade”,
uma vez que “ao confrontar suas ações cotidianas com as produções teóricas, impõe-se
a revisão de suas práticas e das teorias que as informam, pesquisando a prática produ-
zindo novos conhecimentos para a teoria e a prática de ensinar” (PIMENTA;
ANASTASIOU, 2011, p. 89).
Esse processo constitui um “voltar-se sobre si mesmo”, movimento não muito
tranquilo aos professores, como destacado por Arroyo (2013), mas que faz pensar e
aprender mais sobre si mesmo do que sobre conteúdos ou métodos, mesmo que isso
implique em “uma mirada carregada de sentimentos desencontrados, apaixonados”.
Segundo o autor,
problematizar-nos a nós mesmos pode ser um bom começo, sobretudo se nos leva a desertar das
imagens de professor que tanto amamos e odiamos, que nos enclausuram, mais do que nos
Trabalho docente de pedagogas(os) em licenciaturas de um Instituto Federal
896
v. 29, n. 3, Passo Fundo, p. 876-900, set./dez. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
liberta. Porque somos professores. Poucos trabalhos e posições sociais podem usar o verbo ser de
maneira tão apropriada [...] carregamos angústias e sonhos na escola para casa e de casa para a
escola não damos conta de separar esses tempos porque ser professores e professoras faz parte de
nossa vida pessoal. É o outro em nós (ARROYO, 2013, p. 27).
Em meio à contribuição de Arroyo (2013), a premissa de humana docência tam-
bém dialoga com nossas compreensões sobre o desenvolvimento profissional. Como
defende o autor, “[…] educar é revelar saberes, significados, mas antes de mais nada,
revelar-nos como docentes educadores em nossa condição humana. É nosso ofício. É
nossa humana docência” (ARROYO, 2013, p. 67). Em diálogo a essa concepção, nos
valemos de Nóvoa, na bela elaboração de que:
[…] a maneira como cada um de nós ensina está diretamente dependente daquilo que somos
como pessoa quando exercemos o ensino [...]. Eis-nos de novo face à pessoa e ao profissional, ao
ser e ao ensinar. Aqui estamos. Nós e a profissão. E as opções que cada um de nós tem de fazer
como professor, as quais cruzam a nossa maneira de ser com a nossa maneira de ensinar e
desvendam a nossa maneira de ensinar, a nossa maneira de ser. É impossível separar o eu
profissional do eu pessoal (2013, p. 17).
Para além do entrelaçamento dessas concepções sobre desenvolvimento profissi-
onal, reconhecido no corpus textual em um sentido mais amplo, compreendemos, com
a segunda categoria final a que chegamos pela ATD, a existência de singularidades no
trabalho docente dos profissionais da área da Pedagogia no IFFar.
3.2 Entremeios do trabalho docente
As singularidades do trabalho docente em um IF dizem respeito, desde a proxi-
midade física de salas de trabalho de professores, à opção por uma proposta pedagógica
que busca romper com os balizadores da racionalidade técnica (especialmente pelo for-
mato de oferta de suas práticas profissionais, destacado por participantes da pesquisa e
que em outro texto analisamos). É Gatti, contudo, quem nos subsidia na concordância
desse “exaltar da proposta pedagógica” dos cursos lócus da pesquisa, quando ela sugere
que
para se conseguir nas instituições instauração de um novo modo de pensar a formação de
docentes, […] há a necessidade de haver de um lado, consciência de que chegamos a uma situação
totalmente insatisfatória nessa formação, e portanto insustentável, e, de outro, possibilidade de
criação de alguma ação coletiva que permita trazer à tona contribuições fundantes originárias do
campo das Teorias Pedagógicas e da Didática ao Conjunto de Áreas que são objeto dessa
formação e da especialização de docentes (2017, p. 734-735).
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Cátia Keske, Maria Cristina Pansera-de-Araujo
897
v. 29, n. 3, Passo Fundo, p. 876-900, set./dez. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Dentre o conjunto de US atribuídas ao corpus textual, há ainda outras singulari-
dades que podem ser compreendidas, especialmente, pelas relações profissionais
estabelecidas pelos DPs e os CCs (Quadro 1), que revelam quanto ao pertencimento
institucional dos profissionais da Pedagogia bem como das demais áreas. Não havendo
a oferta de Pedagogia como licenciatura, os DPs circulam e interagem com pares de
sua área e entre as diferentes áreas de conhecimento que compõem os currículos dos
três cursos: Licenciatura em Física, Licenciatura em Química e Licenciatura em Ciên-
cias Biológicas. A característica institucional singular aos IFs de não
departamentalização dos profissionais das diferentes áreas de conhecimento permite o
diálogo entre professores físicos, químicos, biólogos, das linguagens, da educação espe-
cial, da sociologia, da filosofia, entre outras áreas, especialmente nos espaços-tempos
institucionais de planejamento e discussão sobre os cursos em questão e sobre os Nú-
cleos Docentes Estruturantes e Colegiados, como destacado por diferentes sujeitos DPs
e CCs.
Buscando compreender tais singularidades, aproximamo-nos das compreensões
de Nóvoa (2013, 2019), não somente quanto à relação pessoal e profissional, mas tam-
bém quanto ao conceito de entremeios, atentos para os entremeios do trabalho docente
no IFFar, isto porque, ao enfatizar a relação pessoal e profissional, Nóvoa (2013) ela-
bora o conceito de um espaço entre-dois, entre a formação inicial do professor (sua
Graduação e/ou Pós-Graduação) e a sua atuação profissional em uma instituição de
ensino. Trata-se de um espaço de entremeio pelo e no qual “verdadeiramente, nos tor-
namos professores, que adquirimos uma pele profissional que se enxerta na nossa pele
pessoal” (NÓVOA, 2019, p. 207). Nesse entremeio (NÓVOA, 2019), a colegialidade,
decisões, ações e o trabalho coletivo são valorizados, potencializando a corresponsabi-
lidade para a formação profissional. E nesse processo, os professores, adquirem um
corpo em que a profissão é inextricável do ser e o trabalho em rede é potencializado.
Por fim, considerando a docência em cursos de formação inicial de professores
em instituições de ensino cuja identidade ainda pode ser caracterizada como indeter-
minada (FRIGOTTO, 2018), em construção, para nós, os entremeios se estendem: à
institucionalidade inédita dos IFs e às organizações existentes no Brasil até então, o que
exige uma constituição identitária, numa equação entre as fragilidades que historica-
mente marcam os cursos de licenciaturas e um fazer institucional diferente, para além
delas; ao trabalho desenvolvido em cada um dos IFs que compõe a RFEPCT e ao tra-
balho em rede, a ser ainda potencializado no país, pois, embora existam fóruns das
Trabalho docente de pedagogas(os) em licenciaturas de um Instituto Federal
898
v. 29, n. 3, Passo Fundo, p. 876-900, set./dez. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
licenciaturas de diferentes IFs, não há articulação do todo; e, a esse encontro, o desen-
volvimento de ações e práticas institucionais autônomas e, ao mesmo tempo,
vinculadas ao projeto societário que deu vida aos IFs.
Compreensões finais
Guiadas pela ATD, o que identificamos, nessa descrição e interpretação de parte
do corpus textual de nossa pesquisa? Premissas do discurso profissional contemporâneo
(GAUTHIER; TARDIF, 1997), da idade da profissão (TARDIF, 2013) se fazem pre-
sente na docência das(os) pedagogas(os) do IFFar, entrelaçados, entretanto, à elementos
discursivos dos momentos anteriores a ele. No IFFar há singularidades no processo de
profissionalização docente, sendo que a recente constituição da RFEPCT não garantiu
cursos de licenciatura “isentos” dos discursos constitutivos do ensino e da Pedagogia
até mesmo porque, como evidenciado no texto, isso não seria possível. Entre o que se
mostrou na pesquisa e nossas compreensões, as palavras de Arroyo (2013) fazem inter-
locução direta: “carregamos todos uma história feita de traços comuns no mesmo
ofício”.
Ratificamos a ideia de Gauthier et al. (2013) sobre quão necessário é às práticas
institucionais de licenciatura o estabelecimento de um ofício feito de saberes. Nas sin-
gularidades ou nas vivências comuns, sejam em IFs ou outras IES, parece-nos que o
reconhecimento da Pedagogia que se quer como referência para o trabalho docente dos
profissionais da área em cursos de formação inicial de professores, ainda é desafio. Em
nosso entendimento, o lugar ou não-lugar da Pedagogia em cursos de formação inicial
de professores para a Educação Básica (que não de Pedagogia como curso de ensino
superior, requisito para atuação profissional na Educação Infantil e nos anos iniciais do
Ensino Fundamental, como previsto na LDB) ainda carece de estudos e discussões.
Por fim, destacamos que há uma diversidade de implicações teórico-práticas do
trabalho docente de pedagogas(os) e da Pedagogia nos cursos de licenciatura do IFFar,
lócus do estudo. Diversidade essa que, desde a constituição profissional aos entremeios
do desenvolvimento profissional, entendemos estar ao encontro das idas e vindas
quanto as “atribuições” da Pedagogia como ciência da educação e, consequentemente,
da(o) pedagoga(o).
Notas
1
Para além das duas categorias citadas, as outras três são: Princípios da prática docente de Pedagogas(os);
Identidade da docência no IFFar; e, Conhecimento de Professor / Saberes da Docência. O conjunto
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Cátia Keske, Maria Cristina Pansera-de-Araujo
899
v. 29, n. 3, Passo Fundo, p. 876-900, set./dez. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
de textos-discursos produzidos para elas são analisadas em exercício de ATD posterior ao apresentado
no texto.
2
De forma distinta, ao invés de usarmos docência na universidade, como assim fazem Pimenta e
Anastasiou (2011), usamos a expressão docência em IES, dado haver outros tipos de instituição de
ensino superior que podem ofertar cursos de graduação de formação inicial de professores, pedagogia
ou demais licenciaturas, e não somente as IES cuja organização administrativa e pedagógica se dá como
universidade. Nos referimos, assim, à IES de forma contemplar tanto ela, como também os Centros
Universitários, as Faculdades e os Institutos.
Referências
ARROYO, Miguel González. Ofício de mestre: imagens e autoimagens. 15 ed. Petrópolis:
Vozes, 2013.
BICUDO, Maria Aparecida Viggiani. Sobre a Fenomenologia. In: BICUDO, Maria
Aparecida Viggiani; ESPOSITO, Vitória Helena Cunha. (org.) A pesquisa qualitativa em
educação: um enfoque fenomenológico. Piracicaba: Unimep, 1994. p. 15-22.
BRASIL. Lei nº 11.892/2008. Institui a Rede Federal de Educação Profissional e
Tecnológica, cria os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, e dá outras
providências. Diário Oficial da União, Brasília, 2008.
FRANCO, Maria Amélia do Rosário Santoro. Pedagogia como ciência da educação. 2 ed. rev.
amp. São Paulo: Cortez, 2008.
FRANCO, Maria Amélia do Rosário Santoro. Pedagogia como ciência da educação: da
racionalidade moderna à racionalidade crítica. In: PIMENTA, Selma Garrido; SEVERO,
José Leonardo Rolim de Lima. (org.) Pedagogia: teoria, formação, profissão. São Paulo:
Cortez, 2021. p. 129-151.
FRIGOTTO, Gaudêncio. Indeterminação de identidade e reflexos nas políticas
institucionais formativas dos IFs. In: FRIGOTTO, Gaudêncio. (org.) Institutos Federais de
Educação, Ciência e Tecnologia: relação com o ensino médio integrado e o projeto societário
de desenvolvimento. Rio de janeiro: UERJ, LPP, 2018. p. 125-149.
GATTI, Bernardete Angelina. Formação de professores, complexidade e trabalho docente.
Revista Diálogo Educacional, Curitiba, v. 17, n. 53, p. 721-737, 2017.
GAUTHIER, Clermont et al. Por uma teoria da pedagogia: pesquisas sobre o saber docente.
3. ed. Ijuí: Unijuí, 2013.
GAUTHIER, Clermont; TARDIF, Maurice. Elementos para uma análise crítica dos modos
de fundação do pensamento e da prática educativa. Contexto e Educação, Ijuí, v. 12, n. 48, p.
37-49, out./dez. 1997.
Trabalho docente de pedagogas(os) em licenciaturas de um Instituto Federal
900
v. 29, n. 3, Passo Fundo, p. 876-900, set./dez. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
GAUTHIER, Clermont; TARDIF, Maurice. A pedagogia de amanhã. In: GAUTHIER,
Clermont; TARDIF, Maurice. (org.). A pedagogia: teorias e práticas da Antiguidade aos
nossos dias. Tradução Lucy Magalhães. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 423-436.
LIBÂNEO, José Carlos. Pedagogia como ciência da educação: objeto e campo investigativo.
In: PIMENTA, Selma Garrido; SEVERO, José Leonardo Rolim de Lima. (org.) Pedagogia:
teoria, formação, profissão. São Paulo: Cortez, 2021. p. 152-187.
MORAES, Roque; GALIAZZI, Maria do Carmo. Análise textual discursiva. 3. ed. rev. e
ampl. Ijuí: Unijuí, 2016.
NÓVOA, António Sampaio. Entre a Formação e a Profissão: ensaio sobre o modo como nos
tornamos professores. Currículo sem fronteiras, v. 19, n. 1, p. 198-208, jan./abr. 2019.
NÓVOA, António Sampaio. Os professores e as histórias da sua vida. In: NÓVOA, António
Sampaio. (org.). Vidas de professores. 2. ed. Porto: Porto Editora, 2013. p. 11-30.
OLIVEIRA, Dalila Andrade. Políticas itinerantes de educação e a reestruturação da profissão
docente: o papel das cúpulas da OCDE e sua recepção no contexto brasileiro. Currículo sem
fronteiras, v. 20, n. 1, p. 85-107, jan./abr. 2020.
PACHECO, Eliezer Moreira. Os institutos federais: uma revolução na educação profissional e
tecnológica. Natal: IFRN, 2010.
PACHECO, Eliezer Moreira. Desvendando os Institutos Federais: identidade e objetivos.
Educação Profissional e Tecnológica em Revista, Vitória, v. 4, n. 1, p. 4-22, 2020.
PIMENTA, Selma Garrido; ANATASIOU, Léa das Graças Camargos. Docência no ensino
superior. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2011.
SAVIANI, Dermeval. A Pedagogia no Brasil: História e Teoria. 2. ed. Campinas: Autores
Associados, 2012.
TARDIF, Maurice. A profissionalização do ensino passados trinta anos: dois passos para a
frente, três para trás. Educação e Sociedade, Campinas, v. 34, n. 123, p. 551-571, abr./jun.
2013.
TARDIF, Maurice; LESSARD, Claude. O trabalho docente: elementos para uma teoria da
docência como profissão de interações humanas. 9. ed. Tradução de João Batista Kreuch.
Petrópolis: Vozes, 2014a.
TARDIF, Maurice; LESSARD, Claude. O ofício de professor: história, perspectivas e desafios
internacionais. 6. ed. Tradução Lucy Magalhães. Petrópolis: Vozes, 2014b.