
Marcelo Ricardo Nolli, Mariana Motta Klein
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v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 385-394, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
A tese que opõe à hipótese do estado de natureza é a de que nenhum corpo pode
sustentar-se por si mesmo. A violência inaugural deste fantasma, em sua compreensão,
é a de exclusão do diferente, que é parte constitutiva, inclusive, do próprio self.
O que temos aqui é uma tentativa de reinterpretar a violência por meio da des-
construção dos mitos fundantes da racionalidade moderna; isto para que a afirmação
da não violência possa ser de fato realizada. Butler defende que precisamos de uma não
violência agressiva, ou seja, “aquela que emerge em meio ao conflito, que se instala no
próprio campo de força da violência” (BUTLER, 2021, p. 46). Essa não violência
agressiva só pode ser proposta por meio de uma crítica do individualismo, pois o que
nos faz negar a interdependência entre os seres vivos seria, em partes, uma base antro-
pológica de fundo individualista, baseada na força, soberania, autossuficiência e na
retidão (que Butler localiza no bojo do projeto moderno). No entanto, tal leitura, se-
gundo Butler, pode ser admoestada por ser excessivamente ingênua ou até mesmo levar
água ao moinho do relativismo. Contra isto, coloca como condição que, para que a
imaginação não emperre, é preciso empurrá-la para além dos limites do possível:
“Quero sugerir que uma nova ideia de igualdade só pode emergir de uma interdepen-
dência mais plenamente imaginada, uma imaginação que se desdobra em práticas e
instituições, em novas formas de vida cívica e política”. “Tenho afirmado que a tarefa,
como a imagino, não é superar a dependência para alcançar a autossuficiência, mas
aceitar a interdependência como condição de igualdade” (BUTLER, 2021, p. 51).
Não se trata de se emancipar no sentido da maioridade kantiana, tal como está
posta na perspectiva do Esclarecimento, pois esta é aquela que coloca como base a ideia
de dependência da criança, não esclarecida e pueril, em relação ao adulto, esclarecido
— o primeiro homem fantasmático do estado de natureza reaparece aqui, nesta sepa-
ração. Segundo Butler, esta lógica é a mesma que foi utilizada na relação entre
colonizador e colonizado e entre nações, e foi utilizada como justificativa para a própria
colonização. Sem essa dependência, o colonizador perde seu poder. Por isso, antes de
afirmar a dependência, a interdependência precisa ser uma saída. Todos dependem-se
entre si. Se importar com a precariedade não precisa ter sua justificativa em razões pa-
ternalistas ou de caridade, mas no fato de que “habitamos o mundo juntos, em relação
de independência. O destino de cada um de nós está, por assim dizer, nas mãos dos
outros” (BUTLER, 2021, p. 53).
Ainda no primeiro capítulo, Butler propõe a seguinte reflexão: o que constitui o
‘si mesmo’ da autodefesa, justificativa para perpetrar violência, seja nas formas milita-
ristas em que o ataque é a melhor defesa, seja no clamor dos ‘cidadãos de bem’ por
‘mais armas’ para defender a si e aos seus? Butler, em outras palavras, pergunta: quem