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v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 385-394, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Por uma ética da interdependência: reflexões sobre A força da
o violência, de Judith Butler
Marcelo Ricardo Nolli
*
Mariana Motta Klein
**
A trajetória da filósofa norte-americana Judith Butler não é fácil de classificar;
sua obra é vasta e trata de distintas áreas do conhecimento, com o horizonte sempre
presente das ideias de emancipação, autonomia crítica e luta política. No entanto, uma
característica que podemos considerar comum a seu pensamento desde suas primeiras
publicações é a preocupação com o lugar da diferença. As diferenças se constituirão
como um dos fundamentos que sustentam sua reflexão, desde a questão de gênero na
década de 1990 e o surgimento da teoria queer, até sua discussão sobre o direito ao luto
e a crítica política da violência. Isto porque Butler opera ao lado e junto das minorias.
Poderíamos dizer que sua obra fornece a possibilidade de pensar desde a perspectiva de
um devir-minoritário, em que os não-adaptados são vistos com potencial político e
crítico de transformação do mundo; ou, tal como na perspectiva benjaminiana, ao pro-
curar se aliar aos vencidos, e escrever a história do seu ponto de vista.
Em seu livro mais recente, publicado em Inglês, em 2020, pela Verso, sob o título
The force of nonviolence: an ethico-political bind e em Português do Brasil, em 2021,
pela Boitempo, com o título A força da não violência: um vínculo ético-político, Butler
propõe refletir sobre os modos com que podemos pensar uma ética e agir politicamente
por meio da não violência. Em suas palavras, a ideia é de situar a violência conceitual-
mente, compreendendo-a como parte de um jogo de forças e de oscilações em quadros
políticos, bem como quadros de referências que a nomeiam. Neste caso, trata-se de um
pensamento na encruzilhada entre filosofia moral e política, entre psicanálise e teoria
social. Se a violência, aqui, se constitui como uma questão filosófica, não poderia ela
ser pensada também como um problema educativo e formativo?
Recebido em: 30/09/2022 Aprovado em: 30/09/2022
https://doi.org/10.5335/rep.v29i1.13882
ISSN on-line: 2238-0302
*
Graduado em Psicologia (2018) pela Universidade de Passo Fundo. Mestre em Educação pelo PPGEdu/UPF-RS (2021).
Doutorando em Educação pelo PPGEdu/UPF-RS (Bolsista CAPES). E-mail: marcelo_nolli@hotmail.com. Orcid:
https://orcid.org/0000-0001-8760-7822.
**
Graduada em Pedagogia (2019) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Graduanda em Letras pela UFRGS.
Mestranda em Educação pela UFRGS. E-mail: mottakleinm@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-6084-8797.
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Estender a compreensão de vida partindo da reflexão sobre aqueles que são
reconhecidos em vida e que em morte serão lamentados, e aqueles que são invisíveis,
esquecidos, excluídos, a quem seu desaparecimento não causará nenhuma comoção
é o que se propõe Butler, visando alcançar inclusive a todos os seres vivos, desde os seres
humanos e os animais, até o Planeta Terra. No fundo desta reflexão se encontra a noção
de ‘interdependência’ capaz de realizar uma crítica política da violência. Dependemos
uns dos outros na medida em que somos, cada um, constituídos pelo outro e o carre-
gamos junto conosco.
Contra a concorrência generalizada, individualista do Eu soberano e forte pro-
posta pelo neoliberalismo, é fundamental, para Butler, afirmar a não violência, uma
ética da interdependência que seja reconhecedora da precariedade do ser humano e de
sua fragilidade. Trata-se de questionar a ética desde outra perspectiva epistemológica,
ao dizer que, por vezes, aquilo que sustenta uma reflexão ética ou moral pode estar
erigido sob fundamentos que reproduzem modos violentos de relação entre os seres
humanos e a vida, de submissão e de tirania. Por isso, o estofo da ética que Butler lança
mão aqui é oposto a uma ideia universalista de ser humano baseada em natureza ou
essência a crítica se direcionará, precisamente, à filosofia política e à antropologia
modernas. A nosso ver, esta obra é mais um esforço que se segue após o direcionamento
para a reflexão sobre o luto. Iniciada em 2004, com a obra Vida precária, a crítica da
violência e a igualdade radical no direito ao luto serão constantes em seus trabalhos a
aqui.
A obra A força da não violência é composta pelo prefácio, escrito pela pesquisa-
dora Carla Rodrigues, introdução, quatro capítulos e pós-escrito. Na introdução,
Butler expõe de modo enfático que a “a violência é sempre interpretada” (BUTLER,
2021, p. 28). Portanto, não é algo que independe dos esquemas de referência que a
nomeiam. Sua discussão procura desconstruir os modos com que se diz que algo é vio-
lento ou não, permitindo um trabalho hermenêutico mais cuidadoso sobre a própria
ideia de violência, bem como sobre o que significa uma política e uma ética não vio-
lentas. Isto porque, se se entende a não violência como passividade ou benevolência, se
está longe do que Butler aqui propõe.
Neste sentido, se “[a] interdependência social caracteriza a vida” (BUTLER,
2021, p. 29), a violência é um ataque a essa interdependência; um ataque contra os
laços sociais. Não é exagero, diz Butler, recorrer aqui à ideia de que esta violência nega
e fere com o princípio da igualdade social. Todos os seres dependem entre si.
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Do que cada um depende e o que depende de cada um é variável, uma vez que não se trata apenas
de outras vidas humanas, mas de outras criaturas sencientes, meio ambientes e infraestruturas:
nós dependemos de tudo isso, e tudo isso, por sua vez, depende de nós para manter um mundo
habitável (BUTLER, 2021, p. 29).
Portanto, a igualdade não poderia se reduzir a um cálculo que concede a cada
pessoa abstrata o mesmo valor, pois a igualdade entre pessoas tem de ser pensada pre-
cisamente em termos de interdependência social. Referências iguais de manutenção da
vida tornam-se fundamento dessa proposição de igualdade.
Quais ‘si mesmos’ são dignos de defesa, ou seja, são elegíveis para a autodefesa
significa se perguntar que desigualdades sociais e históricas estabelecem pessoas visíveis,
passíveis de luto, e outras não enlutáveis, invisíveis. No entanto, esse quadro de refe-
rências sobre as desigualdades não diz, nas palavras de Butler, nada sobre o valor
intrínseco da vida. Pois do que se trata quando se fala sobre estas desigualdades é sobre
o modo de legislar e determinar modos desiguais de vida e também modos desiguais
de direito ao luto. A diferença se encontra no sentido de quais vidas são ‘enlutáveis’ (e
por isso reconhecidas, visíveis e dignas de serem mantidas) ou não enlutáveis (perdidas,
fáceis de destruir ou expor às forças da destruição, deixando-as à mercê de si mesmas).
Butler pretende tirar a discussão sobre a não violência de uma perspectiva moral,
ou instrumental, tal como a compreensão de que é utilizada por ‘indivíduos’ em relação
a um campo de ação possível. Neste sentido: 1) Pretender afirmar a não violência como
uma prática social e política que busca maneiras de resistir às formas sistêmicas de des-
truição, com o objetivo de firmar compromisso coletivo com a criação de um mundo
que seja interdependente, livre e igualitário dos pontos de vista econômicos, sociais e
políticos; 2) Procura mostrar que a não violência não é correlata a uma visão mística de
lugar pacífico ou tranquilo da alma; ao contrário, sua antropologia de base aqui vai da
compreensão psicanalítica até a compreensão social da interdependência: razão pela
qual compreende a agressividade como parte constitutiva do ser humano. Daí, a não
violência não significa renúncia à agressividade e completa inércia diante das injustiças;
é agressividade ativa, que vê força na não violência para resistir a todas as formas de
destruição, violência e desigualdade. Ao tomar como exemplo Mahtma Gandhi, argu-
menta que a “prática da não violência agressiva não é uma contradição em termos
(BUTLER, 2021, p. 33), pois é uma renúncia que possui força por insistir na verdade,
na verdade dos excluídos, dos perdedores, dos expropriados e despossuídos; 3) A não
violência precisa de uma constante readequação diante das injustiças, pois pode facil-
mente tornar-se violenta e cometer, ela mesma, injustiça. Por isso, requer a constante
análise e crítica da ambiguidade desta prática, assim como a ambiguidade psíquica do
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próprio ser humano; 4) “Não existe prática de não violência que não envolva negocia-
ção de ambiguidades éticas e políticas fundamentais. Isso significa que ‘não violência’
não é um princípio absoluto, mas o nome de uma luta contínua” (BUTLER, 2021, p.
34). A renúncia a definir um ‘farol’ ou estandarte infalível e imbatível diante do qual
temos, sempre, que recorrer é o que faz Butler aqui propor esta prática da não violência
juntamente desta ética como algo a ser sempre construído, como uma ‘luta con-
tínua’, e não como um princípio a priori definidor de todos os caminhos.
No primeiro capítulo, intitulado “Não violência, direito ao luto e crítica ao in-
dividualismo”, Butler introduz a ideia da não violência como um compromisso político
com a igualdade. Vidas não têm igual valor no mundo contemporâneo. Propor a igual-
dade, assim, é agir por meio da não violência de forma insubmissa, para que todas as
vidas tenham igual direito a serem valorizadas e salvaguardadas.
[c]omo sabemos, [...] o clamor de que [pessoas] não sejam feridas ou assassinadas nem sempre é
registrado. E uma das razões disso é que essas vidas não são consideradas dignas de luto, enlutá-
veis. Os motivos são muitos e incluem racismo, xenofobia, homofobia e transfobia, misoginia e
negligência sistêmica em relação às pessoas empobrecidas e despossuída (BUTLER, 2021, p. 38).
Neste capítulo, ao tratar do individualismo, realiza uma crítica aos fundamentos
da compreensão política moderna de sociedade amparada na ideia do “estado de natu-
reza”, dirigindo-se sobretudo a Hobbes, Locke e Rousseau. Toma como exemplo o
personagem Robinson Crusoé, do romance de Daniel Dafoe, de 1719, retrato exem-
plar do self-made man autossuficiente, figura-síntese do homem natural. Butler aqui
busca realizar uma crítica a essa concepção antropológica de ‘homem’ (o gênero no
universal já revela, inclusive, do que se trata), entendido por ela como uma ficção mo-
derna. Para Butler, esta ficção moderna produz (pois o contém em seu bojo) o
indivíduo, o sujeito soberano. Propõe pensar estes mitos como fantasmas que se não
elaborados tendem a produzir a repetição da violência e a repetição da tirania. Sob quais
condições históricas essas ficções se desenvolveram e se cristalizaram é o que pergunta.
Neste sentido:
[a] dependência é, por assim dizer, eliminada da imagem do homem original. De alguma maneira
e desde o princípio, ele já se encontra sempre em postura ereta, capaz, sem nunca ter sido susten-
tado por ninguém, sem ter se agarrado a outro corpo para se equilibrar, sem nunca ter sido
alimentado quando não podia se alimentar sozinho, sem nunca ter sido agasalhado por alguém
para se aquecer (BUTLER, 2021, p. 44).
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A tese que opõe à hipótese do estado de natureza é a de que nenhum corpo pode
sustentar-se por si mesmo. A violência inaugural deste fantasma, em sua compreensão,
é a de exclusão do diferente, que é parte constitutiva, inclusive, do próprio self.
O que temos aqui é uma tentativa de reinterpretar a violência por meio da des-
construção dos mitos fundantes da racionalidade moderna; isto para que a afirmação
da não violência possa ser de fato realizada. Butler defende que precisamos de uma não
violência agressiva, ou seja, “aquela que emerge em meio ao conflito, que se instala no
próprio campo de força da violência” (BUTLER, 2021, p. 46). Essa não violência
agressiva só pode ser proposta por meio de uma crítica do individualismo, pois o que
nos faz negar a interdependência entre os seres vivos seria, em partes, uma base antro-
pológica de fundo individualista, baseada na força, soberania, autossuficiência e na
retidão (que Butler localiza no bojo do projeto moderno). No entanto, tal leitura, se-
gundo Butler, pode ser admoestada por ser excessivamente ingênua ou até mesmo levar
água ao moinho do relativismo. Contra isto, coloca como condição que, para que a
imaginação não emperre, é preciso empurrá-la para além dos limites do possível:
“Quero sugerir que uma nova ideia de igualdade só pode emergir de uma interdepen-
dência mais plenamente imaginada, uma imaginação que se desdobra em práticas e
instituições, em novas formas de vida cívica e política”. “Tenho afirmado que a tarefa,
como a imagino, não é superar a dependência para alcançar a autossuficiência, mas
aceitar a interdependência como condição de igualdade” (BUTLER, 2021, p. 51).
Não se trata de se emancipar no sentido da maioridade kantiana, tal como está
posta na perspectiva do Esclarecimento, pois esta é aquela que coloca como base a ideia
de dependência da criança, não esclarecida e pueril, em relação ao adulto, esclarecido
o primeiro homem fantasmático do estado de natureza reaparece aqui, nesta sepa-
ração. Segundo Butler, esta lógica é a mesma que foi utilizada na relação entre
colonizador e colonizado e entre nações, e foi utilizada como justificativa para a própria
colonização. Sem essa dependência, o colonizador perde seu poder. Por isso, antes de
afirmar a dependência, a interdependência precisa ser uma saída. Todos dependem-se
entre si. Se importar com a precariedade não precisa ter sua justificativa em razões pa-
ternalistas ou de caridade, mas no fato de que “habitamos o mundo juntos, em relação
de independência. O destino de cada um de nós está, por assim dizer, nas mãos dos
outros” (BUTLER, 2021, p. 53).
Ainda no primeiro capítulo, Butler propõe a seguinte reflexão: o que constitui o
‘si mesmo’ da autodefesa, justificativa para perpetrar violência, seja nas formas milita-
ristas em que o ataque é a melhor defesa, seja no clamor dos ‘cidadãos de bem’ por
‘mais armas’ para defender a si e aos seus? Butler, em outras palavras, pergunta: quem
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e o que é a parte do ‘Eu’ que somos, e quais relações estão incluídas na rubrica do ‘Eu’
a se defender, que tem direito à legitima defesa? (BUTLER, 2021, p. 54). A ambigui-
dade da palavra autodefesa perde um pouco do seu escopo do original no inglês: self-
defense também pode ser defesa do si mesmo’, defesa do self. Qual é o self que se quer
defender, o que o constitui? Qual é este auto, da ‘autodefesa’? Qual o estatuto da alte-
ridade, qual o seu lugar, diante desse self? Qual o estatuto deste ‘próximo’ que não é
‘Eu’? De acordo com essa lógica, a violência da autodefesa ou em defesa das pessoas
que pertencem a um regime mais amplo do eu se torna ‘justificável’, com as quais a
identificação é possível ou que são reconhecidas como constituinte de um domínio
social ou político:
[...] a norma que invocamos para distinguir as vidas que estamos dispostos a defender daquelas
que, não prática, são dispensáveis faz parte de um funcionamento mais amplo do biopoder que,
de modo injustificável, distingue entre vidas enlutáveis e vidas não enlutáveis” (BUTLER, 2021,
p. 56-57).
No segundo capítulo, intitulado “Preservar a vida de outrem”, Butler procura
explicitar o que entende pela noção de interdependência e como esta noção se constitui
como central para a afirmação de um imaginário político e ético que procure proteger
e salvaguardar vidas. Segundo Butler, há uma diferença, no entanto, entre salvaguardar
e proteger; a proteção se dá no presente (e infere um caráter paternalista, que também
é necessário), enquanto a salvaguarda infere um caráter de futuro. Não se trata apenas
de direito a lamentar perdas, apesar de a autora considerar isso importante; trata-se,
sobretudo, de que as pessoas comportem em vida o direito ao luto. O caso aqui é con-
dicional, pois “as pessoas não enlutáveis são aquelas cuja perda não deixaria rastro ou,
talvez, mal deixasse rastro”; já, pessoas “enlutáveis seriam lamentadas pelo luto se sua
vida fosse perdida” (BUTLER, 2021, p. 70). Desta forma, para Butler, dizer que uma
vida é enlutável significa que antes mesmo de ser perdida, essa vida é merecedora do
luto, visto que “a vida tem valor em relação à mortalidade” (BUTLER, 2021, p. 70)
pois somos finitos, precários. A igualdade radical do direito ao luto não deve ser
pensado de modo diádico (entre duas pessoas numa relação de troca instrumental), mas
como políticas sociais, instituições e vida política. Tal proposição só poderia, para Bu-
tler, se constituir como efetiva se formos capaz de empurrar e formular um novo
imaginário social não violento. Pois para ela, “[u]ma aspiração normativa desta obra é
contribuir para a formulação de um imaginário político de igualdade radical no direito
ao luto” (BUTLER, 2021, p. 70).
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Neste mesmo capítulo, Butler trata da noção de substitutibilidade a partir do
pensamento moral (especificamente Immanuel Kant) e coloca a teoria psicanalítica a
serviço de uma compreensão ainda impossível de sociedade (mas que chama à imagi-
nação política) na qual salvaguardar vidas implica na afirmação da negatividade dos
laços sociais, o que torna estes interdependentes e implicados entre si. "Há uma ma-
neira pela qual residimos um no outro" (BUTLER, 2021, p. 87) o que ecoa o célebre
verso de Rimbaud, o “Eu é um outro”. A interdependência implica numa certa depen-
dência, que se dá institucional e politicamente. Contra a lógica da guerra e do
triunfalismo de um Eu soberano (His Majesty the baby), Butler propõe uma ética da
não violência que tome como ponto de partida a ambivalência dos laços sociais e a
negatividade que os une (amor e ódio) a partir das teorias de Melanie Klein e Sigmund
Freud. O eu aqui não é senão o outro que ao sermos violentos também ferimos; há,
então, uma ideia de substitutibilidade inerente a essa compreensão, no qual o impulso
destrutivo não é negado, mas canalizado para formas de afirmação da reciprocidade, de
empatia (muito embora Butler não use este termo) e recusa veemente e ativa da violên-
cia. Neste sentido, ferir ao outro é ferir a mim mesmo. Negar a violência é não apenas
adotar o consequencialismo com fins utilitários, mas a substitutibilidade entre eu e o
outro. "Isso reverbera por toda a vida adulta: eu amo você, mas você já é eu, carregando
o fardo de meu passado não reparado, minha privação e minha destrutividade"
(BUTLER, 2021, p. 85). Negociar a agressividade e a ambivalência é, portanto, um
imperativo da prática da não violência e de uma ética do direito ao luto, explicitados
neste capítulo.
No terceiro capítulo, intitulado “A ética e a política da não violência”, a autora
se baseia em Michel Foucault e Frantz Fanon, bem como em Étienne Balibar e Walter
Benjamin, para discutir os diferentes tipos de fantasmas que povoam tacitamente os
discursos estatais e públicos sobre a violência. Certamente é um choque quando atos
não violentos que procuram reivindicar a igualdade radical, a tolerância, a esperança e
o respeito, são chamados de ‘atos violentos’, ou quando povos procuram legitimamente
se revoltar contra a desigualdade crescente que sofrem e são chamados, pelo Estado, de
violentos e são brutalmente reprimidos. A nomeação pelo Estado sobre aquilo que é
violento ou não violento, para Butler, dissimula sua própria violência. Por isso, a recu-
peração de “fantasmas populacionais” e “fantasmas raciais” terá como eixo central esta
reflexão diante do Estado, e a nomeação da violência instituidora de sua soberania, no
regime da soberania, e da biopolítica, no regime das formas de exercício de poder nas
sociedades modernas. Walter Benjamin e seu texto “Crítica do poder como violência”,
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de 1921, é uma referência fundamental aqui, muito embora Butler não tome a saída
da “violência divina”, que segundo ela acaba por ser excessivamente anarquista.
Este capítulo questiona que éticas e políticas podem se contrapor a um modo
violento de conceber a justiça e o Direito, e, essencialmente, o próprio Estado. Há uma
severa crítica à violência sancionada pelo Estado neste capítulo, bem como a uma visão
de direito positivo que busca tão somente reforçar a lei como forma de ‘conter’ a vio-
lência que o ameaça. Não é, no entanto, inusitado que o violento será nomeado como
aquele externo, o diferente, o imigrante, o marginal figuras fantasmáticas que rever-
beram a ideia de ‘outro’ e que povoam o imaginário social de modo essencialmente
paranoico.
A tarefa, consiste, portanto, em investigar os padrões pelos quais a violência tenta nomear como
violento aquilo que resiste a ela e como o caráter violento de um regime legal é exposto quando
este reprime a divergência pela força, pune trabalhadores e trabalhadoras que recusam condições
de exploração, isola grupos minoritários, encarcera seus críticos e expulsa potenciais rivais
(BUTLER, 2021, p. 111).
É claro que, neste caso, Butler não busca compreender a dimensão somente física
da violência, mas propõe ver que violência é esta que é nomeada pelos de cima, e que
violência é aquela do racismo, do machismo, linguística, violência emocional, institu-
cional e econômica naturalizada e perpetuada pelo próprio Estado e pela sociedade.
A questão não é aceitar um relativismo generalizado, mas antes analisar e expor a oscilação dos
quadros referenciais nos quais ocorrem as práticas de nomeação [do que é violência]. Pois so-
mente então torna-se possível garantir nossa compreensão do que é não violência e o que ela
envolve (BUTLER, 2021, p. 113).
Questionar a legitimidade, inconformar-se com as figuras do poder, exigir a al-
teração do status quo, podem facilmente ser compreendidos como atos violentos e
normalmente o são. Por isso, esta tarefa é exercício decisivo do pensamento crítico.
Butler (2021, p. 114), no entanto, toma precaução ao relembrar que: “[...] a
operação de crítica não pode impedir o compromisso e o juízo”. O que significa dizer
que é preciso assumir e se comprometer diante de um quadro de referências. Sem ele
não é possível de exercer a própria tarefa da crítica. E, neste caso, Butler afirma que a
violência sempre age como uma intensificação da desigualdade social. A não violência
age a favor do compromisso da igualdade radical é veemente contra, portanto, todas
as formas de desigualdades, simbólicas ou materiais. “A crítica da violência precisa ser
uma crítica radical da desigualdade” (BUTLER, 2021, p. 116).
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Diante dessa discussão, Butler conclui o capítulo buscando afirmar a igualdade
e a convivência em novos termos, partindo da ideia de que todas as vidas são igualmente
enlutáveis. Isso implica em reconhecer que todas as vidas merecem um futuro, que não
pode ser previsto nem prescrito com antecedência. Por isso, reconhecer essa igualdade
significa salvaguardar o futuro de uma vida, significa manter em aberto as formas con-
tingentes e imprevisíveis que as vidas podem assumir, sem prefixá-la teleologicamente
ou seja, sem finalidade ou telos predefinido que necessária e automaticamente se
realizará. Isso é bastante diferente da ‘obrigação’ de preservar a si mesmo e ‘somente’ a
sua própria comunidade à custa dos outros.
A não violência não é um meio de atingir um objetivo ou um objetivo em si. Ao contrário, é uma
técnica que excede tanto a lógica instrumental quanto o esquema teleológico de desenvolvimento
é uma técnica não governada ou, pode-se dizer, inegovernável. É contínua, aberta, e portanto,
o que Benjamin chama de ‘fim puro’ outro nome para a noção de crítica como modalidade
ativa de pensamento ou compreensão, sem limites impostos pela lógica instrumental e teleológica
(BUTLER, 2021, p. 104).
“Se a destrutividade é uma pulsão ou uma característica das relações sociais, essa
é uma questão para a qual ainda não temos resposta” (BUTLER, 2021, p. 119). A
questão seria: como esta discussão contribui para a crítica política da violência? “É pre-
cisamente porque podemos destruir que temos a obrigação de saber por que não
devemos destruir e evocar os contrapoderes que freiam essa capacidade de destruição”
(BUTLER, 2021, p. 119).
Esta última afirmação indica a linha argumentativa que se seguirá no capítulo 4,
intitulado “Filosofia política em Freud: guerra, destruição, mania e capacidade crítica”.
Talvez este é o capítulo mais interessante, sobretudo porque aqui está formulado de
um modo mais direto o que Butler compreende pela ambivalência psíquica do ser hu-
mano, e onde repousa o fundo educativo da luta contra a violência. A discussão se
centra em torno do desenvolvimento da noção de pulsão de morte na obra freudiana,
mostrando como o contexto histórico e social influenciou decisivamente os rumos que
algumas de suas ideias tomaram.
O objetivo deste capítulo consiste em discutir como o impulso autodestrutivo do
ser humano importa à reflexão política e social, e reforça a tese de que não é desejável
a saída de que para contermos a destrutividade devemos buscar ‘reforçar’ o Supereu ou
a ‘moral’ das pessoas, tendo em vista que o próprio Supereu se articula perfeitamente
bem à pulsão de morte. Diante de um Supereu rígido, se a destrutividade não se volta
para fora, ela se volta para dentro. Butler recorre a uma citação, de modo algo curioso,
em que Freud desqualifica a “força do Supereu” contra a destrutividade, e em que
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afirma a mania como força que poderia fazer frente à tirania do Supereu para com o
Eu. Recorre, por isso, ao texto Luto e melancolia, em que Freud discute sobre a distinção
entre a posição melancólica, a lutuosa e a maníaca. Na interpretação de Butler (2021,
p. 132),
[a] mania é, por assim dizer, o protesto do organismo vivo contra a perspectiva de ser destruído
por um superego descontrolado. Assim, se o superego é a continuação da pulsão de morte, a
mania é o protesto contra a ação destrutiva contra o mundo e contra si mesmo.
A mania pergunta: ‘Existe algum caminho para sair desse círculo vicioso em que
a destrutividade é contra-atacada pela autodestrutividade?’. Tal afirmação da mania,
segundo Butler, pode dar pistas de um tipo diferente de resistência contra a destruição
que não seja a mais pura autodestruição. Ela é análoga à capacidade crítica na medida
em que depõe toda forma de tirania, de sustentação de vínculos de poder e de submis-
são. Não fica muito claro, no entanto, como articular essa compreensão da mania a
práticas efetivas de não violência, isto é, o que seria de fato uma desidentificação e o
que ela implica ao indivíduo? Certa dose de identidade não seria necessária? Para Butler
(2021, p. 133): [n]a medida em que aqueles que seguem o tirano louco identificam-
se com seu desprezo deliberado pela lei e por qualquer limite imposto a seu poder e sua
capacidade destrutiva, o movimento contrário deve se basear na desidentificação”.
No pós-escrito “Repensando a vulnerabilidade, a violência e a resistência”, Butler
conclui seu percurso nesta obra, ao retomar o sentido que normalmente se dá à noção
de vulnerabilidade, e argumentar que não se pode compreendê-la tão somente de um
ponto de vista de “fraqueza” e incapacidade. Pois ali onde há vulnerabilidade há tam-
bém resistência ativa e agressiva, que luta pela vida e pela afirmação de que tais vidas
são enlutáveis e têm o direito de viver. Tomando como exemplo diferentes formas de
luta feminista, antirracista e pontos de resistência no mundo, conclui afirmando um
vínculo baseado no “amor furioso, pacifismo militante, não violência agressiva e per-
sistência radical” (BUTLER, 2021, p. 155). Se alguém pode entender tais discussões
como irrealistas ou inúteis, Butler afirma que de fato o são; mas é precisamente do
irrealismo de tal de imaginário que se extrai sua força utópica.
Referências:
BUTLER, Judith. A força da não violência: um vínculo ético-político. Tradução de
Heci Regina Candiani. Prefácio de Carla Rodrigues. São Paulo: Boitempo, 2021. p.
155.