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Educação, poder e resistência na era digital
Education, power and resistance in the digital age
Educación, poder y resistencia en la era digital
Manuel Gonçalves Barbosa
*
Resumo
Este artigo tem o duplo objetivo de analisar a reconfiguração do poder na era digital e discutir, tendo
em conta as suas perigosas consequências em termos individuais e sociais, o papel da educação na
construção de atitudes defensivas relativamente a esse poder, hoje essencialmente protagonizado pelas
grandes plataformas de serviços digitais. A opção metodológica consiste em aproveitar, para esses
propósitos, não apenas um vasto acervo de obras recentes como algumas referências históricas
importantes, nomeadamente foucaultianas. A estrutura organizativa do artigo inclui três secções: na
primeira, aborda-se a reconfiguração do poder na era da transição digital; na segunda, analisa-se o
modus operandi desse novo poder fazendo emergir, em toda a sua estranheza e complexidade, a
categoria de governamentalidade tecnodigital; na terceira e última secção coloca-se a questão da
resistência a essa insidiosa governamentalidade da era digital e o eventual contributo da educação
nesse sentido, considerando as ações que se afiguram pedagogicamente pertinentes na instituição
escolar.
Palavras-chave: educação; poder; resistência; plataformas digitais.
Abstract
This article has the dual objective of analyzing the reconfiguration of power in the digital age and
discussing, taking into account its dangerous consequences in individual and social terms, the role
of education in the construction of defensive attitudes towards that power, that today is essentially
carried out by the great digital service platforms. The methodological option consists of taking
advantage, for these purposes, not only of a vast collection of recent works but also of some important
historical references, namely foucauldian ones. The organizational structure of the article includes
three sections: the first deals with the reconfiguration of power in the era of digital transition; in the
second one, the modus operandi of this new power is analyzed, in order to bring out, in all its
strangeness and complexity, the category of technodigital governmentality; the third and last section
poses the question of resistance to this insidious governmentality of the digital age and the possible
contribution of education in this sense, considering the actions that seem pedagogically relevant in
the school institution.
Keywords: education; power; resistance; digital platforms.
*
Doutor em Educação pela Universidade do Minho-Portugal e atualmente Professor Associado no Departamento de Teoria da
Educação e Educação Artística e Física do Instituto de Educação da Universidade do Minho. Membro Integrado do Centro de
Investigação em Educação da Universidade do Minho. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-8728-6667. E-mail:
mbarbosa@ie.uminho.pt.
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Recebido em: 13.12.2022 Aprovado em: 11.01.2023
https://doi.org/10.5335/rep.v29i3.14185
ISSN on-line: 2238-0302
Resumen
Este artículo tiene el doble objetivo de analizar la reconfiguración del poder en la era digital y discutir,
teniendo en cuenta sus peligrosas consecuencias en términos individuales y sociales, el papel de la
educación en la construcción de actitudes defensivas respecto a ese poder, hoy mayormente
representado por las grandes plataformas de servicios digitales. La opción metodológica consiste en
aprovechar, para estos fines, no solo un vasto acervo de obras recientes, sino algunas referencias
históricas importantes, en particular foucaultianas. La estructura organizativa del artículo incluye tres
secciones: en la primera, se aborda la reconfiguración del poder en la era de la transición digital; en
la segunda, se analiza el modus operandi de ese nuevo poder haciendo surgir, en toda su extrañeza y
complejidad, la categoría de gubernamentalidad tecnodigital; en la tercera y última sección se plantea
la cuestión de la resistencia a esa insidiosa gubernamentalidad de la era digital y la posible
contribución de la educación en este sentido, considerando las acciones que parecen
pedagógicamente pertinentes en la institución escolar.
Palabras clave: educación; poder; resistencia; plataformas digitales.
Introdução
A era digital, agora com mais intensidade, altera significativamente os estilos de
vida e dá seguramente mais protagonismo a empresas da internet, seja na área do co-
mércio e dos serviços, seja nos domínios da comunicação, da busca de informação e
dos relacionamentos sociais. Se esse papel central e ascendente das empresas tecnológi-
cas nada tivesse a ver com relações de poder e com novas e insidiosas formas de exercer
esse poder, a chamada ‘transição digital’ poderia avançar em piloto automático e nós,
abençoando a oportunidade de viver esse exaltante momento da humanidade, poucas
razões teríamos para duvidar das grandes plataformas da internet, da extração de dados
dos nossos traços digitais, das análises preditivas, da construção de perfis comporta-
mentais e da própria modificação do nosso comportamento para que esses perfis,
aproximando-se da certeza, sejam mais atrativos em termos comerciais.
Tudo seria simples, e de resto sem contestação, se essas operações, assegurando a
proteção de dados, a vontade individual e uma rigorosa ética de serviço comunitário,
se destinassem a melhorar a qualidade dos resultados das pesquisas de informação ou a
facilitar o acesso a pessoas, redes, bens e serviços, sem favoritismos, enviesamentos e
oportunismos. Na prática, infelizmente, não é assim. Essa mediação informática, pro-
tagonizada pelas grandes plataformas da internet, e assistida pela vigilância apertada
dos comportamentos online, é basicamente uma grande indústria de apropriação, pro-
cessamento e monetarização de dados pessoais, atuando dissimuladamente para se
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esquivar à nossa perceção consciente e, assim, a uma eventual indignação e protesto. O
que essas plataformas fazem, nos seus processos de renderização de dados pessoais, não
é vender os dados em bruto, sem mais especificações, mas oferecer produtos preditivos
extraídos desses dados, ou seja, apresentar previsões sobre o nosso comportamento. Só
assim são interessantes para os anunciantes, para os agentes que, querendo influenciar
as nossas decisões no mercado das ideias, dos bens e dos serviços, apostam tudo na
publicidade comportamental, isto é, na publicidade individualizada, personalizada ou
em função do perfil de consumo de cada indivíduo. É assim que os dados pessoais se
transformam na galinha de ovos de ouro dos gigantes da internet (entre eles: Google,
Meta, Uber, Amazon, Microsoft, Apple, Twitter, Baidu, TikTok, WeChat) e nós em
fontes de matéria-prima gratuita dessa nova lógica de acumulação: a economia dos da-
dos ou o comércio de informação relativa às pessoas.
Essa economia dos dados, também chamada “capitalismo de plataformas”
(SRNICEK, 2017), ou “capitalismo da vigilância” (ZUBOFF, 2020), não coloca ape-
nas em evidência um negócio parasitário que vive à custa dos nossos dados pessoais.
Também faz vir ao de cima uma nova forma de poder, o “tecnopoder digital”, isto é,
um poder tecnológico que assenta na soberania dos dados e é assistido por algoritmos
cada vez mais “inteligentes”, os denominados “algoritmos evolutivos ou de aprendiza-
gem automática” (DOMINGOS, 2017). Estamos perante uma reconfiguração do
poder cuja intenção, por vias pacíficas, e de maneira indolor, é exercer influência com-
portamental, incitando, induzindo e seduzindo para produtos, serviços e,
inclusivamente, para crenças e ideologias, no caso dos anúncios que remetem para essa
esfera. O tecnopoder digital, baseado em operações algorítmicas sobre informação di-
gitalizada a nosso respeito, ambiciona conduzir as nossas condutas, em estruturar o seu
campo de possíveis, em moldar a sua direção ou orientação para benefício de entidades
terceiras: as plataformas digitais, antes de mais e, depois, os anunciantes, isto é, os seus
verdadeiros clientes.
A era digital não acaba, pois, com o poder. Antes o reconfigura ou lhe dá uma
nova forma. É um poder sem recurso à violência pura e dura, como nos poderes tota-
litários, mas ainda assim omnipresente e influente nas nossas vidas, crescentemente
híbridas, tanto online como offline. Podemos fazer de conta que não existe ou que é
demasiado soft para nos afetar a conduta, mas o facto é que, sendo lúcidos e críticos, e
além disso preocupados com a defesa da agência humana, ela própria essencial para
viver em democracia, talvez devêssemos dar atenção ao modo como esse poder é exer-
cido e se lhe podemos opor resistência, não obstante a sua ubiquidade, invisibilidade e
relativa ilegibilidade. Se a estas enigmáticas características acrescentarmos a vertigem
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provocada pela sua surpreendente complexidade, quer isso dizer que estamos condena-
dos a ficar presos nas suas garras e a desconhecer as suas manobras? Ou será que a
educação, através de exercícios de consciencialização e, mais além, de capacitação para
o envolvimento em ações de contestação, pode ajudar a fazer frente a esse hegemónico
poder?
As questões são desafiantes e a sua abordagem pode seguir vários roteiros. Aqui,
a opção metodológica é delinear um discurso de resposta a essas questões tendo por
base um acervo significativo de obras recentes, sem esquecer referências históricas im-
portantes, como o pensamento do “último” Foucault acerca dos jogos de poder entre
sujeitos envolvidos em relações estratégicas e segundo categorias eminentemente afeti-
vas, como o incitar, o induzir, o desviar, o tornar fácil ou difícil, o alargar ou limitar, o
tornar mais ou menos provável, ou o empurrar numa determinada direção, precisa-
mente com o objetivo de melhor ilustrar a natureza do tecnopoder da era digital. A
estrutura organizativa do artigo, essa, desenvolve-se em três secções: na primeira
aborda-se a reconfiguração do poder na era da transição digital; na segunda analisa-se
o modus operandi desse novo poder fazendo emergir, em toda a sua estranheza e com-
plexidade, a categoria de governamentalidade tecnodigital, inspirada em textos
foucaultianos; na terceira e última secção coloca-se a questão da resistência a essa insi-
diosa governamentalidade da era digital e o eventual contributo da educação nesse
sentido, considerando as ações que se afiguram pedagogicamente pertinentes na insti-
tuição escolar.
A era do tecnopoder digital
À medida que se vai aprofundando a compreensão da era digital e, portanto, do
ecossistema da internet, torna-se evidente que o poder não desapareceu de cena e que,
ao invés das promessas iniciais (MCCHESNEY, 2015), não se verificou o empodera-
mento dos utilizadores das plataformas digitais. Essa ideia segundo a qual as pessoas
passariam a usufruir de um poder sem precedentes, capaz de resolver muitos dos seus
problemas em diferentes áreas, vai-se dissolvendo no ar perante a descoberta de um
inédito sistema de poder que se apropria indevidamente de dados pessoais, e que os
explora comercialmente, depois de os submeter a complexas operações algorítmicas. O
poder, como sintética e acutilantemente faz notar Josep Burgaya, “apenas muda de mão
e de forma” (2021, p. 21). “Muda de forma”, porque é agora um poder tecnológico
baseado em informação digital a nosso respeito e em complexas operações de trata-
mento automático ou semiautomático dessa informação. E “muda de mão”, porque os
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verdadeiros senhores desse “tecnopoder digital” são os grandes players da economia dos
dados, ou seja, e nas palavras de Shoshana Zuboff, “os capitalistas da vigilância” (2020,
p. 22).
A revolução digital em curso e, de resto, o tecnopoder digital, não se compreen-
deriam adequadamente sem a referência a esses agentes protagonistas da nova lógica de
acumulação capitalista, uma lógica que começa por transformar a experiência humana
em dados comportamentais e em retirar desses dados produtos preditivos para venda.
A situação atual, num contexto de grande concorrência pelos melhores produtos pre-
ditivos, entretanto, já vai além disso, como aliás é mostrado por Zuboff:
À medida que a competição se intensifica, os capitalistas da vigilância aprendem que não lhes
basta extrair as experiências humanas. As matérias-primas mais preditivas surgem quando se
intervém na nossa experiência, moldando o nosso comportamento em prol dos resultados
comerciais dos capitalistas da vigilância. Concebem-se novos protocolos automatizados que
influenciam e modificam o comportamento humano em larga escala, ao mesmo tempo que os
meios de produção se subordinam aos novos, e mais complexos, meios de modificação
comportamental (2020, p. 34).
O que guia essa nova lógica económica não é apenas o tratamento de informação
a nosso respeito com base na nossa pegada digital, o que, só por si, e sem autorização
prévia, já é problemático. Despudoradamente, e no meio de uma grande opacidade de
procedimentos, o que se leva a cabo é a deliberada intervenção no nosso comporta-
mento por forma a dirigi-lo numa determinada direção e assim maximizar, em termos
financeiros, o rótulo que nos é colado para fins comerciais. A certeza das previsões sobre
os consumidores depende cada vez mais dessas intrusões comportamentais, desses ges-
tos performativos de condutas, precisamente a partir de informações digitais, o que
vem mostrar, por um lado, que “a melhor maneira de prever o futuro é inventá-lo”,
como se diz hoje em dia entre engenheiros informáticos (DOMINGOS, 2017, p. 320),
e que, por outro lado, o poder na era digital se define tendo em conta a previsão, a
influência e os dados pessoais: “O poder na era digital é, por excelência, o poder de
prever e influenciar a partir de dados pessoais” (VÉLIZ, 2021, p. 67).
Esse poder, como teremos ocasião de analisar na próxima secção, resgatando al-
guns textos do “último” Foucault, é seguramente uma relação na qual alguém procura
dirigir a conduta de alguém recorrendo a meios tecnológicos que surpreenderiam esse
autor, tal é o seu grau de sofisticação computacional e algorítmica. Sendo basicamente
uma tentativa de estruturar o campo de ação possível de alguém em termos comerciais,
ou de conduta mercantil no mercado das ideias, dos produtos e dos serviços, o poder
digital tem uma identidade (rostos e nomes bem conhecidos do grande público), certas
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condições de possibilidade (técnicas, sociais, políticas) e, por último, mas não menos
importante, determinados propósitos ou finalidades.
Começando pelos rostos e pelos nomes, e só para dar exemplos de grandes pla-
taformas digitais, ou “plataformas de rede”, como preferem outros autores
(KISSINGER; SCHMIDT; HUTTENLOCHER, 2021), temos a Ocidente a Google,
a Meta (englobando Facebook, Instagram e WhatsApp), o Twitter, a Uber, a Amazon,
a Apple e a Microsoft. A Oriente, contam-se, entre outras: WeChat, TikTok, Baidu,
DidiChuxing. São plataformas de serviços digitais que usam cada vez mais Inteligência
Artificial para conhecerem os seus utilizadores, para desenharem os seus perfis de per-
suasão e para lhes fazerem insinuações (as famosas recomendações), preferentemente
em função dos seus estados emocionais (MELHADO; RABOT, 2021). Algumas des-
sas plataformas participam ativamente no denominado “mercado de futuros
comportamentais” (ZUBOFF, 2020), vendendo os seus produtos preditivos a anunci-
antes, inclusivamente da área política, como se verificou em recentes campanhas
eleitorais. É hoje comum e amplamente admitido que essas plataformas, transformadas
em lucrativas indústrias do tratamento massivo de dados, “reúnem agora mais poder e
influência do que muitos Estados soberanos” (KISSINGER; SCHMIDT;
HUTTENLOCHER, 2021, p. 56). Para todos os efeitos, e especialmente no âmbito
deste artigo, podem ser considerados gigantes do ecossistema da internet que tudo fa-
zem para proteger o seu principal modelo de negócio: a publicidade.
Relativamente às condições de possibilidade do tecnopoder digital, o acento tó-
nico pode ser colocado, antes de mais, nos processos e nos dispositivos de datavigilância
(dataveillance), os quais permitem, desde múltiplas fontes, o rastreamento das pessoas
em tempo real e as análises preditivas do seu comportamento. O tecnopoder digital
não existiria sem matérias-primas, quer dizer, sem informações retiradas das impressões
que deixamos online, e essa extração, quantas vezes à margem da legalidade, não obs-
tante pomposas políticas de privacidade, só ocorre porque os ‘abutres de dados’
(VÉLIZ, 2021), isto é, plataformas de redes sociais e de múltiplos serviços digitais,
desenvolvem em larga escala, e secretamente, uma vigilância intensiva dos nossos mo-
vimentos digitais, como podem ser as pesquisas através de motores de busca, a consulta
de sites, as comunicações não encriptadas e as postagens de vídeos, fotos e textos.
As maiores e as mais influentes dessas plataformas não atingiriam lucros estratos-
féricos se não vigiassem permanentemente os seus utilizadores e se, para o efeito, não
adotassem formas panóticas de arrecadação de dados pessoais: “As grandes plataformas
chegaram a dominantes através da vigilância exaustiva dos utilizadores, do controlo
absoluto das suas atividades e dos seus dossiês, cada vez mais volumosos” (BURGAYA,
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2021, p. 86). A vigilância panótica é verdadeiramente essencial para o modelo de ne-
gócio dessas corporações tecnológicas digitais, ente as quais se destacam, em termos de
‘panóptico digital’ (HAN, 2014), e um pouco por todo o mundo, a Google e o Face-
book. É com base nesse tipo de vigilância que se capturam furtivamente informações
dos utilizadores, que se ensaia a modificação do seu comportamento e a elaboração de
perfis preditivos para depois os colocar à venda nos mercados de futuros comporta-
mentais. Essa vigilância tem os seus suportes técnicos e um deles é, seguramente, o
smartphone. Espécie de “totem da atual civilização” (BURGAYA, 2021, p. 125), o
smartphone, mais do que um instrumento de comunicação, é um gerador e um coletor
de dados que nos acompanha por todo o lado e a todas as horas do dia, pelo menos
entre os mais viciados na sua utilização. A sua arquitetura serve essencialmente para
vigiar e armazenar dados a nosso respeito, e nisso são fundamentais as Apps, isto é,
programas informáticos que permitem realizar uma variada gama de funções. Ora, essas
aplicações, “mais do que promoverem a nossa atividade […] conduzem-nos, limitam-
nos e condicionam-nos” (BURGAYA, 2021, p. 83).
Juntamente com os cookies (rastreadores da nossa navegação online), as Apps são
autênticos instrumentos de espionagem ao serviço das plataformas da internet, especi-
almente as que, pela sua grandeza, dimensão e avanço tecnológico, possuem sofisticados
algoritmos para tirar partido das informações recolhidas por essas vias, e antes de mais
através do smartphone. O entrelaçamento das nossas vidas com esse dispositivo torna-o
especialmente apetecível para a vigilância panótica, ou não fosse ele “um informador
muito eficiente que vigia em permanência o seu utilizador” (HAN, 2022, p. 32). Como
esclarece esse autor:
Quem está a par do que se passa no seu interior algorítmico, tem razão em sentir-se perseguido
por ele […]. Não somos nós que utilizamos o smartphone, mas o smartphone que nos utiliza a
nós. É ele o verdadeiro ator. Ficamos à mercê desse informador digital, atrás de cuja superfície
diferentes atores nos controlam e distraem (2022, p. 32).
Esses atores são, evidentemente, e sem sombra de dúvidas, os grandes players da
economia dos dados, quer dizer, os capitalistas mais bem-sucedidos do maravilhoso
mundo da internet. Em suas mãos, o smartphone é um maná de preciosas informações
digitais, potencialmente de todos nós, revelando-se fundamental nas manobras de ex-
tração de dados pessoais, tanto mais quanto já transformamos esse dispositivo num
‘confessionário portátil’ (HAN, 2022), ou, se se quiser, em ‘confessionário eletrónico’
da era da vigilância líquida (BAUMAN; LYON, 2013).
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A vigilância panótica através de meios digitais, hoje otimizada na Internet das
Coisas e, seguramente, nos smartphones de última geração, é condição técnica essencial
do tecnopoder digital, porém, não passa disso mesmo: é apenas uma das suas condições.
Não menos essencial, para a viabilidade desse poder, é a produção social de informações
pessoais resultante do nosso envolvimento com as plataformas digitais, quer involun-
tariamente, ou a isso sendo obrigados, quer voluntariamente, ou de forma deliberada.
No primeiro caso, temos a informação retirada das nossas pesquisas através de motores
de busca, eventualmente dos nossos e-mails, e de transações comerciais induzidas pela
crescente digitalização da atividade económica. Convém não esquecer, como refere Do-
mingos, que “Todas as transações funcionam em dois níveis: o que elas fazem por nós
e o que elas ensinam ao sistema com o qual acabámos de interagir” (2017, p. 70), e
que, como assinala Véliz, “se não dás o teu consentimento para certas formas de recolha
de dados, não poderás usar os serviços que te proporcionam gigantes tecnológicos,
como a Google e o Facebook” (2021, p. 35). De resto, mesmo que se resista a fornecer
dados pessoais, não é garantido que se preserve a intimidade, ou se defenda o santuário
da vida privada, tal é o secretismo da captura ilegítima de informações digitais sobre a
conduta online.
Essa produção social de dados pessoais abrange ainda, para gaudio das platafor-
mas digitais, a “exposição deliberada de si mediante comentários ou fotografias relativas
ao seu trabalho, aos seus interesses, aos seus estados de alma, às suas férias, aos seus
filhos, à decoração do seu quarto de dormir” (SADIN, 2015, p. 176), ou seja, e só para
atender ao indivíduo, abrangendo o desnudamento de si mesmo sem coação externa.
Uma porção significativa da população, dando por certo que “a transparência é sempre
uma virtude” (VÉLIZ, 2021, p. 132), tal como é sugerido pelas grandes tecnológicas
na expressão, “se não fazes nada de mal não tens nada a esconder”, acaba por confiar às
plataformas dessas empresas informações que dificilmente forneceria às pessoas mais
próximas em outros tempos. A cultura da exposição online, para essa população, já está
naturalizada, induzindo ao exibicionismo dos aspetos mais íntimos das existências in-
dividuais, particularmente nas plataformas de redes sociais. É assim que os indivíduos
se entregam, sem vergonha ou pudor, ou talvez inconscientemente, como por vezes
acontece, ao olhar panótico das grandes plataformas da internet, as quais não perdem
a oportunidade de transformar esses dados em novos ativos comerciais: as e-commodities
comportamentais.
Antes mesmo da referência aos seus propósitos ou finalidades, importa sublinhar
que o tecnopoder digital depende de condições políticas específicas, ou de um quadro
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político favorável, nomeadamente em termos regulatórios. Foi precisamente a insufici-
ência ou a abstinência de regulação que catapultou esse poder para os patamares onde
se encontra hoje. Durante muito tempo, se olharmos para os danos provocados no
direito à soberania dos dados, os governos democráticos, ou renunciaram a legislar so-
bre as operações centrais do tecnopoder digital, como, por exemplo, a apropriação de
informações digitais pessoais e a sua comercialização, ou só timidamente definiram en-
quadramentos normativos para essas ações. É verdade que a situação está a mudar,
designadamente na União Europeia, com o Regulamento Geral sobre a Proteção de
Dados, já em vigor, e com a Lei de Serviços Digitais, esta em processo de aprovação
nas instâncias europeias. Mas até há pouco tempo o que predominava eram os baixos
padrões regulatórios das plataformas digitais, como se essas empresas tecnológicas fos-
sem demasiado grandes para serem reguladas pelos poderes públicos.
Reconhecidamente, e devido à utilização, por essas plataformas, de operações es-
tratégicas bem-sucedidas, não tem sido fácil elevar esses padrões de regulação. Por um
lado, as operações de ocultação, cobrindo com um manto de invisibilidade as ações
extrativas e preditivas desses players da internet, não só perante os seus utilizadores, a
fim de evitar contestações contra a pirataria de dados pessoais e as influências compor-
tamentais, como também perante governos e entidades reguladoras emergentes. Por
outro lado, as operações lobistas dos grandes rostos do tecnopoder digital junto de ór-
gãos legisladores, mormente a Google (ZUBOFF, 2020) e o Facebook (FRENKEL;
KANG, 2022), visando condicionar a sua ação no sentido de não elevarem demasiado,
ou para além de certos limites, os parâmetros reguladores dos negócios digitais. O que
subjaz a esta última estratégia, na verdade, não é o respeito sincero, e muito menos
reverencial, do poder político e das suas funções de regulação em áreas tão sensíveis
como a proteção de dados pessoais, a tributação fiscal e as concentrações monopolísti-
cas, mas a tentativa, até agora relativamente bem-sucedida, de minimizar a intrusão
desse poder no modelo de negócio das grandes plataformas digitais. O poder político,
cumprindo com o seu papel, é uma ameaça a essas empresas, e só pode ser visto com
desprezo (SADIN, 2015). O sonho dos gigantes da internet é poderem atuar sem in-
terferências estatais e no desconhecimento dos seus utilizadores. É assim que ganham
poder e é também desse modo que colocam esse poder ao serviço dos seus propósitos
ou finalidades: a recolha massiva de dados a nosso respeito, a sua transformação em
modelos comportamentais previsíveis a breve trecho e, claro, a venda desses modelos
no apetecido, amplo e multifacetado mercado dos anúncios.
Essa é a nova lógica de acumulação que o novo poder da era digital se encarrega
de garantir, promover e florescer, mesmo que isso implique o impensável, pelo menos
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até há pouco tempo: a modificação comportamental dos utilizadores das plataformas
digitais. Assim, o negócio dos dados já não se limita a usar conhecimento diretamente
retirado do comportamento online e, portanto, das impressões deixadas pela nossa na-
vegação, mas a intervir “nos próprios comportamentos, tentando ajustá-los, persuadi-
los, afiná-los e conduzi-los para resultados mais lucrativos” (ZUBOFF, 2020, p. 22),
precisamente, e como veremos adiante, através de processos conduzidos por algoritmos
‘inteligentes’, dando corpo a uma forma de governamentalidade que, por ser inédita e
surpreendente, requer desde já uma análise exploratória.
Governamentalidade tecnodigital: uma análise exploratória
Apesar de agir na obscuridade e de se refugiar na suposta neutralidade dos algo-
ritmos, o poder tecnológico das grandes plataformas da internet é bem real e já exerce,
diretamente ou por interposta pessoa, uma “influência insidiosa nas nossas existências”
(SADIN, 2018, p. 106), ameaçando capacidades e comprometendo alguns direitos in-
dividuais fundamentais, como os direitos à privacidade, à intimidade, à decisão e à
autodeterminação. Esse poder, mais além das suas condições de possibilidade, entre-
tanto analisadas, tem um modo específico de atuar ou operar, isto é, de se exercer e
desenvolver, requerendo, portanto, e a partir de agora, uma atenção especial, quanto
mais não seja para identificar a sua forma de governamentalidade, usando nesse parti-
cular a linguagem e alguns conceitos dos últimos escritos de Michel Foucault (entre
eles: 1981; 1982; 1984), por se revelarem bastante úteis, ainda hoje, numa démarche
exploratória do modus operandi do poder que emergiu com as grandes plataformas da
internet.
É verdade que as considerações foucaultianas sobre governamentalidade, especi-
almente as de Naissance de la biopolitique- Cours au Collège de France, 1978-1979, e as
dos escritos acima mencionados, não podiam antecipar, em toda a sua extensão e com-
plexidade, nem o “capitalismo cognitivo de plataformas” (LASSALLE, 2019), ou
capitalismo dos dados, nem a governamentalidade assistida por algoritmos, embora se
deva referir, quanto a este último aspeto, que Foucault admitiu (1982) que o exercício
do poder, em função da certeza do resultado e da eficácia dos instrumentos utilizados,
poderia valer-se de mais ou menos requintes tecnológicos. Seja como for, essas consi-
derações são um interessante ponto de partida para esclarecer o eixo central da
governamentalidade tecnodigital e, de resto, da conceção de poder que lhe anda asso-
ciada: não uma conceção estática e substancialista de poder, pois “o poder só existe em
ato” (FOUCAULT, 1982, p. 236) e é suscetível de modificação (FOUCAULT, 1984),
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ou apenas restrita a instituições governamentais, uma vez que o poder está presente
onde se tecem relações humanas, “trate-se de comunicar verbalmente […], de relações
amorosas, institucionais ou económicas” (FOUCAULT, 1984, p. 720), e muito menos
uma conceção de poder enquanto “sistema de dominação que controla tudo e que não
deixa qualquer lugar à liberdade” (FOUCAULT, 1984, p. 721), como acontece na
visão tradicional do poder, mas uma conceção que vê o poder como “um tipo particular
de relações entre indivíduos” (FOUCAULT, 1981, p. 160) em que uns, por meio de
jogos estratégicos» (FOUCAULT, 1984, p. 727) e, eventualmente, com “requintes tec-
nológicos” (FOUCAULT, 1982, p. 240), procuram “determinar mais ou menos
inteiramente a conduta dos outros- mas nunca de maneira exaustiva ou coercitiva”
(FOUCAULT, 1981, p. 160). O poder, sempre presente nas relações humanas quer,
pois, significar, segundo Foucault (1984, p. 720), “a relação na qual alguém procura
dirigir a conduta de alguém”, quer dizer, encaminhá-la numa ou noutra direção se-
gundo os seus interesses ou propósitos.
A relação de poder, nesse quadro explicativo, e que interessa destacar para com-
preender o poder na era das plataformas digitais, é a ação de um agente sobre a ação de
alguém, em que um dos pólos procura conduzir a conduta do outro, mas sem anular
esse outro como sujeito de ação. Ademais, a relação de poder “é um modo de ação que
não age diretamente e imediatamente sobre os outros, mas age sobre a sua ação”
(FOUCAULT, 1982, p. 236). É uma ação sobre a ação, sobre ações eventuais, ou atu-
ais, futuras ou presentes, visando estruturar o campo de ação possível de alguém. A essa
luz, e em termos de governamentalidade, isto é, quanto à “maneira como se conduz a
conduta dos seres humanos” (FOUCAULT, 2004, p. 192), o poder atua desdobrando-
se nas seguintes ações: “ele incita, induz, desvia, facilita ou torna difícil, amplia ou
limita, torna mais ou menos provável; no limite, constrange ou limita absolutamente;
porém, é sempre uma maneira de agir sobre um ou sobre sujeitos agentes, e isso en-
quanto agem ou são suscetíveis de agir” (FOUCAULT, 1982, p. 237). Por
conseguinte, ou assim sendo, a governamentalidade é da ordem da afetação comporta-
mental e as suas categorias, eminentemente afetivas, remetem, entre outras, para o
incitamento, a estimulação, o direcionamento, a indução, o condicionamento, a deli-
mitação, o impedimento ou a facilitação.
Essa conceção de governamentalidade, naquilo que tem de mais essencial, é sur-
preendentemente atual para compreender a governamentalidade tecnodigital, própria
das grandes plataformas digitais e, especialmente, o momento que estas atravessam no
mercado das previsões comportamentais: um momento caracterizado por uma grande
concorrência pelos melhores modelos preditivos dos utilizadores dessas plataformas. A
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afetação de condutas, nessa nova forma de governamentalidade, continua a ser o ponto
central, pois, “a forma mais segura de prever o comportamento passa por intervir na
sua origem e pelo poder de o moldar” (ZUBOFF, 2020, p. 228). Nesse sentido, a
governamentalidade que recorre a algoritmos, seja na monitorização das pessoas a partir
dos dados de navegação nos websites (dataveillance), seja nas operações de análise e
prospeção de dados pessoais (datamining), seja ainda na construção de perfis digitais
comportamentais, também se rege pelas categorias foucaultianas do incitamento, da
indução e da direção de condutas, uma vez que são decisivas, à sua maneira, e dentro
de uma conceção soft ou ligeira de intervenção comportamental, para alcançar as pre-
visões mais procuradas nos mercados de futuros comportamentais individuais.
A governamentalidade tecnodigital, a essa luz, pode ser considerada uma gover-
namentalidade smart, não só pelo facto de operar com sofisticados algoritmos, isto é,
com códigos informáticos apetrechados das mais diversas instruções, mas também por
funcionar de modo permissivo e, portanto, à margem da repressão e da coação. Com a
sua “inteligência algorítmica”, a governamentalidade tecnodigital:
Não nos torna submissos, mas dependentes e viciados. Em vez de quebrar a nossa vontade, atende
às nossas necessidades. Quer agradar-nos […]. Não nos impõe o silêncio. Em vez disso, convida-
nos e estimula-nos permanentemente a partilhar as nossas opiniões, preferências, necessidades e
desejos, e até a contar a nossa vida (HAN, 2022, p. 33).
Essa ‘simpática’ governamentalidade, na sua demanda de retratos comportamen-
tais cada vez mais previsíveis, já não se contenta com a agregação e o tratamento
algorítmicos de grandes quantidades de dados (big data) dos frequentadores das plata-
formas digitais. Se é verdade que essa informação ajuda a desenhar o seu perfil
comportamental, nomeadamente em termos de consumo, também é certo que fica
aquém do desejado, pois não pode fornecer previsões comportamentais robustas. Esse
resultado, efetivamente, apenas se alcança forjando o próprio comportamento: “Uma
das razões pelas quais as empresas tecnológicas conseguem prever tão bem a nossa con-
duta é porque, em parte, a estão forjando” (VÉLIZ, 2021, p. 90).
Além da enorme ousadia que isso implica, pois significa interferir, abusivamente,
com os nossos direitos à decisão e à autodeterminação, mesmo na qualidade de meros
consumidores, um tal resultado também exige elevadas doses de engenho informático
para criar, operar e dissimular os algoritmos que presidem à modificação comporta-
mental, tal como acontece, desde há alguns anos, e de maneira exemplar, nas
plataformas de redes sociais. O modo como estas plataformas conduzem condutas, ou
estruturam o campo de ações possíveis dos seus utilizadores, é de facto revelador, a
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vários títulos, do savoir-faire da governamentalidade tecnodigital, precisamente num
tempo em que o Santo Graal da economia dos dados é, como já dissemos, a posse e a
venda de perfis comportamentais digitais aproximando-se da certeza.
Podemos apreciar esse modo de atuação da governamentalidade tecnodigital, es-
pecialmente protagonizada pelas arquiteturas algorítmicas das grandes plataformas de
redes sociais, em três domínios muito próximos e mutuamente implicados: a esfera da
atenção, o campo da reação e a área da modificação propriamente dita. Se o objetivo é,
em última instância, forjar a conduta dos utilizadores dessas plataformas, torna-se im-
perioso, como primeiro ato, mantê-los ativos nesses espaços de intermediação social,
sequestrando, antes de mais, e por diversos meios, a sua atenção: ora estimulando a
utilização de novos botões e novas funcionalidades, como fez o Facebook com os botões
dos “likes” e do “partilhar”, e bem assim com as novas opções no Feed de Notícias, ora
fornecendo, nesse espaço, os conteúdos que os algoritmos aprenderam a personalizar
em função das apetências dos utilizadores. Isso mesmo é evidenciado por Frenkel e
Kang em suas análises da evolução dessa rede em busca de ‘poder absoluto’:
Com o passar dos anos, os algoritmos da plataforma haviam adquirido maior sofisticação a
identificar o material que mais atraía os utilizadores e davam-lhe prioridade no topo dos seus
feeds. O Feed de Notícias operava como um mostrador regulado com enorme precisão, sensível
à fotografia em que um utilizador mais se demorava ou ao artigo que passava mais tempo a ler.
A partir do momento em que determinara que o utilizador era mais propenso a visualizar um
certo tipo de conteúdo, fornecia-lho tanto quanto possível (2022, p. 223).
Outro tanto se diga, dentro dessa estratégia de captação da atenção, e não só
nessa rede, a metódica divulgação de conteúdos incendiários e sensacionalistas nos
Feeds de Notícias, funcionando esses conteúdos como verdadeiro íman da perceção
ativa dos utilizadores.
Os mesmos conteúdos bombásticos, viralizados nas redes sociais, e não só por
ação dos utilizadores, mas antes de mais por efeito de amplificação algorítmica dessas
redes, também se revelam ‘úteis’ para desencadear reações nos frequentadores das pla-
taformas de interação social, como é frequentemente o caso das shitstorms, isto é, das
tempestades de injúrias e indignação a propósito de notícias e opiniões. As próprias
opções disponíveis nos Feeds de Notícias (“Queremos mais coisas assim”. “Não quere-
mos mais coisas assim”), nomeadamente no Facebook, são em si mesmas um
engenhoso indutor de reações comportamentais a que nem sempre se dá a devida im-
portância. Finalmente, e ainda acerca desse campo da reação, é de referir uma estratégia
transversal a todas as redes sociais verdadeiramente impactantes nas nossas vidas digi-
tais: a contínua estimulação da comparação social, desencadeando, por reação, a
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“inflação do perfil pessoal” (ZUBOFF, 2020, p. 511), isto é, a multiplicação de ele-
mentos de autoapresentação, como a informação biográfica, as fotografias, os vídeos e
as correspondentes atualizações, para que tudo pareça fantástico, sedutor e maravilhoso
nessa espécie de ‘teatro de sonhos’ em que se transformaram algumas redes sociais,
designadamente o Instagram.
As áreas da atenção e da reação, já reveladoras de alguma interferência das redes
sociais no direcionamento de condutas, não esgotam, contudo, o que essas redes fazem
em termos de modificação comportamental. Importa ainda referir, por ser relevante
para os clientes dessas plataformas, a ‘produção de afetos’ (MELHADO; RABOT,
2021), ou de emoções, visando criar o ‘perfil de persuasão’ (BURGAYA, 2021) do
utilizador das redes sociais, seja introduzindo determinados anúncios nos Feeds de No-
tícias, seja divulgando, nesses mesmos espaços, e para provocar contágio emocional, as
preferências comerciais dos nossos ‘amigos’ e daqueles que seguimos como modelos ou
exemplos de pessoas bem-sucedidas na vida híbrida dos tempos atuais. Mas, afinal, que
perfil é esse? Um perfil de persuasão é “Um perfil que se cria sem que o saibas e sem
que conheças o seu conteúdo, porém, o que se pretende é conhecer o teu estado emo-
cional em cada momento, os teus sentimentos, sabendo-se que na esfera comercial o
estado psicológico é determinante em relação a certas compras” (BURGAYA, 2021, p.
90-91). Também aqui, a melhor forma de obter um bom perfil de persuasão é cr-lo
ou produzi-lo, nomeadamente com algoritmos de análise de afetos, emoções e senti-
mentos e, se for preciso, com mensagens geradoras de contágio, idealmente entre os
que usam as redes sociais de modo aditivo ou compulsivo, dada a sua especial vulnera-
bilidade à manipulação.
O resultado mais esperado de todas essas manobras algorítmicas são produtos
com enorme capacidade preditiva e, por isso mesmo, muito desejados pelos clientes das
plataformas digitais. Com esses produtos (previsões comportamentais melhoradas), os
anunciantes não só podem entrar, de maneira mais eficaz, no jogo da governamentali-
dade tecnodigital, como podem, usando o microtargeting (direcionamento
microscópico das mensagens publicitárias através de algoritmos), otimizar o seu poder
de influência sobre as condutas dos destinatários, ajustando a publicidade e, inclusive,
a propaganda política, às suas preferências e estados emocionais.
Quer no fabrico de previsões comportamentais, quer na sua utilização, designa-
damente pelos anunciantes, o exercício do tecnopoder digital é muito smart e muito
matreiro: age dissimuladamente e evita, glamourosamente, os mandatos, as prescrições,
as proibições, a pressão e a repressão, para não parecer duro, feio e execrável. A essa luz,
e tendo ainda em conta a sua complexidade, sofisticação e difícil legibilidade, parece
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que estamos fadados a ser as suas vítimas enquanto utilizadores das plataformas digitais.
Será mesmo assim, ou podemos fazer-lhe frente, na suposição, foucaultiana, de que o
poder, mesmo exercido com requintes tecnológicos, não anula a possibilidade de resis-
tência? Seguindo na peugada desse interessante princípio, apenas concebível no âmbito
de uma teoria em que o outro da relação de poder é sempre um sujeito de ação eventual
ou potencial (FOUCAULT, 1982), e pensando na eficácia das ações de oposição ao
tecnopoder digital, conviria averiguar se a educação, intencional, programada e insti-
tucional, tem algum papel a desempenhar na insurgência contra esse poder e na
construção de resistências para conter os seus excessos, não obstante os condicionalis-
mos desencorajadores e os enormes diferenciais de poder e conhecimento em presença.
Face ao poder digital: educação, insurgência e resistência
Não é preciso grande animosidade relativamente ao tecnopoder digital para re-
conhecer que os seus principais agentes se colocaram numa posição merecedora de
reprovação, repúdio, indignação e da mais firme contestação, inclusive através da edu-
cação, por várias ordens de razões: em primeiro lugar, porque se julgam no direito de
atentar contra direitos essenciais, como os direitos à privacidade, à intimidade, à decisão
e à autodeterminação, e ainda por cima de maneira furtiva, tentando escapar à nossa
perceção consciente. Sabendo que o êxito do poder “é proporcional à sua habilidade
em esconder os seus próprios mecanismos” (FOUCAULT, 1976, p. 113), procuram
contornar esses direitos agindo na obscuridade “como serviços secretos” (HAN, 2016,
p. 87), na presunção de que não vamos colocar areia nas suas maquinações digitais, seja
através de cookies, apps, filtros algorítmicos ou de anúncios em função da personalidade
de cada um. Sem grande alarido, e escudando-se em labirínticas políticas de privaci-
dade, invadem o nosso santuário individual, apropriam-se da informação que lhes
interessa e transformam-na imediatamente em ativos comerciais visando lucros cres-
centes e exponenciais.
Esse “assalto ao eu pessoal” (ZUBOFF, 2020, p. 524), fazendo tábua rasa de
alguns direitos fundamentais, tem como resultado, em segundo lugar, a fragilização,
senão mesmo a subversão, da nossa agência, isto é, a capacidade de fazer escolhas autó-
nomas e razoavelmente independentes. Essa é outra das razões que levam a contestar o
tecnopoder digital, uma vez que nos tornamos vulneráveis aos seus impercetíveis man-
datos, inclusivamente políticos, como foi revelado no escândalo Facebook-Cambridge
Analytica. O que se procura, por via dessa fragilização, é eliminar o impulso interior
no sentido da autonomia e da tarefa difícil e estimulante da afirmação de um “eu”
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autónomo como fonte de juízo e de autoridade morais, capaz de se insurgir contra
grosseiros abusos de poder, como é o caso das grandes plataformas.
Um terceiro motivo de contestação do tecnopoder digital e da sua governamen-
talidade deriva, precisamente, dessa perigosa degradação da agência humana, uma vez
que assim se compromete a própria sobrevivência da democracia: “O autogoverno de
uma comunidade política depende dos indivíduos serem autónomos; se a autonomia
individual diminui, também diminui o autogoverno coletivo. Para que uma democra-
cia seja democracia, os seus cidadãos têm que ter o poder sobre as suas próprias vidas
(VÉLIZ, 2021, p. 90). Caso contrário, e sem agência, nomeadamente política, a de-
mocracia rapidamente se transforma numa farsa.
A essas razões de queixa e de justa indignação contra o tecnopoder digital acres-
centa-se uma outra, não menos importante pelas suas implicações: a ingerência
exorbitante desse poder nas nossas vidas, seja em termos de vigilância, escrutinando e
monitorizando até à exaustão os nossos movimentos, principalmente online, seja en-
trando na zona perigosa da engenharia comportamental, uma vez que esse novo poder
da era digital já não se contenta com a construção de perfis digitais através da recolha
e tratamento de informação a nosso respeito. Agora, os seus agentes querem fabricar o
nosso comportamento para o tornar mais previsível e também mais ajustado aos seus
propósitos. É assim que se pode dizer, com Zuboff, que “Os interesses dos capitalistas
da vigilância transitaram do uso de processos automáticos que conhecem o nosso com-
portamento para processos automáticos que moldam o nosso comportamento segundo
os seus interesses” (2020, p. 376). Abusivamente, os agentes do tecnopoder digital não
só querem saber tudo sobre nós, revelando uma ambição de omnisciência digital que
ridiculariza o panótico de Jeremy Bentham, como querem a modificação do nosso
comportamento, mostrando que aspiram à pilotagem das nossas ações e, portanto, à
prévia escrita algorítmica daquela que deve ser, na sua ótica, a linha da nossa conduta.
Uma vez de mãos dadas com a valorização individual e social do ser humano,
como é do seu timbre desde os tempos modernos, a educação só pode reagir com vee-
mência a essas derivas do tecnopoder digital incentivando, por um lado, o
inconformismo, nomeadamente com análises rigorosas do que está em jogo tanto a
nível individual como social e, por outro, definindo uma agenda que possibilite a cria-
ção de resistências, não obstante as dificuldades que se colocam à partida. Desde logo,
a nossa dependência digital e tudo o que isso implica: colaboramos na nossa própria
vigilância e, de maneira ativa, também colaboramos com os agentes do poder tecnoló-
gico na nossa própria exploração comercial. Um olhar pessimista, subestimando as
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capacidades de insurgência e de resistência do homo digitalis, diria que “Estamos dema-
siado dominados pela droga digital, pela embriaguez da comunicação, para que se oiça
um “Basta!”, para que se erga uma voz de resistência” (HAN, 2022, p. 33). Descon-
tando o exagero, denunciado há alguns lustros por Gary Marx (2006), não deixa de ser
verdade o incómodo que isso coloca à educação, derivando daí a necessidade de se
promover, designadamente nos espaços das escolas, uma verdadeira ‘desintoxicação’
(BURGAYA, 2021) das plataformas digitais, mormente das redes sociais, como condi-
ção necessária, ainda que insuficiente, de uma relação lúcida e crítica com os principais
protagonistas da governamentalidade tecnodigital.
Uma dificuldade que por vezes se esquece, principalmente quando se acusa os
indivíduos de cegueira voluntária em ambientes digitais, tem a ver com a ocultação,
essa sim, deliberada, das operações praticadas pelas grandes plataformas digitais, desig-
nadamente as operações de engenharia comportamental. Sabe-se, pelo que surge a lume
(FRENKEL; KANG, 2022), que essas plataformas, por razões de eficácia, mas também
por questões legais, recorrem frequentemente ao secretismo, à opacidade e à indecifra-
bilidade para esconderem do olhar crítico as suas operações mais questionáveis.
Produzem deliberadamente ignorância para serem indetetáveis no enviesamento dos
comportamentos, inclusive eleitorais, como parece ter acontecido no já referido escân-
dalo Facebook- Cambridge Analytica. Assim, mais do que acusações infundadas, ou
manifestamente exageradas, de cegueira voluntária, talvez mereça a pena, através da
educação, um exercício de desmistificação das plataformas que procuram modificar
secretamente a conduta dos seus utilizadores, quanto mais não seja como passo prévio
à insurgência e à construção de alguma resistência contra essas plataformas.
A essas várias dificuldades, incómodas, mas não insuperáveis, acrescentam-se as
grandes assimetrias de poder e de conhecimento entre nós, simples utilizadores das
plataformas de serviços digitais, e eles, os agentes da governamentalidade tecnodigital,
apoiados num arsenal de sofisticados algoritmos e de operações de mineração de dados
(datamining). Com esses meios, eles conseguem o que nós não alcançamos, e por razões
óbvias: conseguem reunir quantidades imensas de informação a nosso respeito, até ao
mais ínfimo pormenor, e abrangendo o mais recôndito do nosso ser, e com esse saber
tornam-se capazes, se assim o desejarem, de moldar a nossa conduta em função dos
seus interesses, ou, no mínimo, de a guiarem numa determinada direção. É assim que
possuir mais saber equivale a possuir mais poder, e isso tem consequências: “Quanto
mais alguém sabe sobre nós, mais pode prever os nossos movimentos e influenciar-nos
(VÉLIZ, 2021, p. 66). Os que sabem muito a nosso respeito podem, pois, encaminhar-
nos para as escolhas do seu agrado, criando a ilusão, ironicamente enganadora quando
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se fala em empoderamento digital, de que decidimos livres de condicionamentos, de
entraves e de enviesamentos: “acreditamos que estamos tomando decisões voluntárias,
porém, outros atores que nem sequer conhecemos influem nelas sem que o saibamos”
(MOROZOV, 2015, p. 382-383). Esse não-saber agudiza as assimetrias entre nós e
eles e é por isso que a sublevação contra os agentes da governamentalidade algorítmica,
ou tecnodigital, requer investimento educativo em ações de consciencialização, ao
mesmo tempo que não descura, para suscitar resistência, a politização do relaciona-
mento com esses agentes.
Essa é, em substância, a agenda da educação que estamos a precisar para fazer
frente ao tecnopoder digital, depois de remover as dificuldades acima tratadas, sabendo
de antemão que esse poder tem pés de barro: depende absolutamente da nossa coope-
ração, do nosso consentimento e dos nossos dados. Só um pensamento derrotista,
ignorando a capacidade humana de insurgência e resistência, pode dizer que não se
pode fazer nada. Mas para fazer alguma coisa de sério e significativo faz falta o contri-
buto da educação, nomeadamente em duas áreas prioritárias de intervenção. Por um
lado, a consciencialização, no pressuposto de que a resistência, alicerçada na consciência
lúcida e crítica, é mais efetiva na reação à exploração das plataformas: sabendo como
nos espiam, nos influenciam, nos sugam dados e nos catalogam para exploração comer-
cial melhor podemos reagir e resistir às manobras do tecnopoder digital. Por outro lado,
e como segunda área, a sensibilização política, não apenas para politizar a relação dos
internautas com esse poder, uma vez que “o tecnológico é político” (BURGAYA, 2021,
p. 299), mas também para abraçar uma “política de legítima defesa” (SADIN, 2018,
p. 106), incluindo, nas duas faces da mesma moeda, a reivindicação de medidas políti-
cas concretas para disciplinar o poder digital e o alargamento, ou simplesmente a
ampliação, de uma “nova geração de direitos fundamentais” (LASSALLE, 2019, p.
140), os direitos cibernéticos ou digitais.
O que se espera da ação educativa de consciencialização, precisamente no quadro
da insurgência e da resistência contra a nossa exploração, é que forneça a largas faixas
da população, designadamente escolares, uma noção tão aproximada quanto possível
dos termos em que se realiza essa exploração, desde as invasões da privacidade à elabo-
ração de perfis de persuasão, passando pelas manobras de direção e modificação
comportamental num tempo de afanosa procura de produtos preditivos com resultados
garantidos. Dentro dessa noção cabe, primeiramente, a sinalização da apropriação in-
devida de dados pessoais pelas plataformas digitais, não obstante a solene promessa de
os respeitar, tal como consta, com pompa e circunstância, nas suas obscuras políticas
de privacidade, e o carácter falacioso, para não dizer impraticável, de certas opções,
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como as dos cookies. É certo que podemos não aceitar os cookies ou, pelo menos, uma
parte deles, mas, na prática, “um mero formalismo, pois o que provoca é que façamos
clique de maneira irrefletida” (BURGAYA, 2021, p. 136). A solução mais realista pa-
rece ser a proibição pura e simples desses ‘espiões’ da navegação online, mas essa é uma
questão que fica em aberto, pois o que verdadeiramente interessa nesta fase da inter-
venção educativa é salientar o valor da privacidade:
A privacidade importa porque a sua ausência dá a outros poder sobre ti. Talvez
penses que não tens nada a esconder ou a temer. Estás enganado, a não ser que sejas
um exibicionista com desejos masoquistas de sofrer roubos de identidade, discrimina-
ção, desemprego, humilhações públicas e totalitarismos, entre outras desgraças
(VÉLIZ, 2021, p. 62).
E não só individuais, porque a privacidade é assunto que diz respeito a outra
gente, nomeadamente familiares, próximos e amigos, caso apareçam nas nossas publi-
cações.
Assim, e ainda nessa primeira fase de consciencialização, é justo alertar para “os
riscos de partilhar demasiado” (FRENKEL; KANG, 2022, p. 92), convocando exem-
plos da comunicação social, e inclusive de premir compulsivamente o botão “Gosto”
das redes sociais, pois “Alguns likes no Facebook dão para saber muito sobre nós, muito
mais do que imaginamos” (BURGAYA, 2021, p. 304). A crença de que as redes sociais
são apenas espaços de liberdade, de expressão e de comunicação só pode agravar a situ-
ação e, por isso, impõe-se mostrar que o seu modelo de negócio as transforma em
‘abutres de dados’ (VÉLIZ, 2021) que depois são transformados em e-commodities, em
ativos digitais comerciais, disponíveis para ávidos anunciantes.
Numa segunda fase de consciencialização sobre a instrumentalização do homo
digitalis, isto é, sobre o utilizador da internet e das plataformas digitais, convém abordar
a criação, por essas plataformas, de perfis de persuasão, de retratos que explicitamente
sinalizam onde somos mais sensíveis e influenciáveis. O que os clientes das plataformas
tecnológicas mais desejam, precisamente para venderem os seus produtos, os quais
tanto podem ser bens e serviços como ideias, votos e doutrinas, é saber como nos po-
dem influenciar da maneira mais certeira e, para isso, não se poupam a gastos na compra
desses perfis de persuasão, uma vez que são determinantes para saber como entrar no
nosso santuário interior, para lhe conhecer o estado de ânimo e o explorar nos pontos
de maior vulnerabilidade: “Buscam os nossos pontos débeis para os explorar” (VÉLIZ,
2022, p. 33). É assim que uma tendência recente, baseada na análise algorítmica de
sentimentos (MELHADO; RABOT, 2021), nos expõe às investidas do tecnopoder
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digital, merecendo toda a atenção para lhe fazer frente em nome da nossa integridade
moral.
O que também merece atenção, na ação de consciencialização, é a menção ao uso
matreiro da personalização (de Feeds de Notícias, de dietas informativas, de mensagens,
de anúncios) para fins de manipulação dos utilizadores das grandes plataformas, isto é,
potencialmente todos nós: “A personalização soa a tratamento VIP, até te dares conta
de que não é mais do que uma forma de designar técnicas desenhadas para manipular
as mentes singulares de cada um de nós” (VÉLIZ, 2021, p. 78). Esse mecanismo, ma-
nifestamente essencial na modificação comportamental, dado permitir inocular
decisões nas mentes dos utilizadores, não é apenas malicioso por ameaçar a “integridade
moral do indivíduo autónomo” (ZUBOFF, 2020, p. 33), o que, só por si, já é uma
tragédia. Ademais, e por extensão, perfeitamente compreensível, também coloca em
risco a própria democracia, uma vez que a base deste regime é a autonomia individual
a qual, na prática, é um poder ou uma capacidade de autogoverno e de autodetermina-
ção.
Assim, e atendendo a mais essa elucidação, compreende-se melhor o tecnopoder
digital, mas o trabalho educativo, visando precaver-nos desse poder, não se restringe a
ações de consciencialização. É ainda necessário, para circunscrever e limitar esse poder,
pelo menos nos seus aspetos mais perniciosos, e sem doutrinações disfarçadas de prele-
ções, motivar para publicamente defender novos direitos digitais e novas medidas
governamentais no quadro da vocalização de “uma política de legítima defesa”
(SADIN, 2018, p. 106) de todas as plataformas que, no universo da internet, usam e
abusam do seu poder de influência sobre os utilizadores.
A pública vocalização dessa política, nomeadamente através das redes sociais, mas
também através de petições junto de órgãos de soberania, como os parlamentos, vai
exigir a discussão argumentada das medidas e dos direitos que, na situação atual, e
considerando os avanços já alcançados por vários países, podem eventualmente integrar
essa política cidadã da era digital, sendo de valorizar, nessa situação, o interessante papel
da escola e, em particular, as aulas de cidadania, por se revelarem pedagogicamente
apropriadas para debates sobre questões de sociedade, como são, presentemente, e com
todo a propriedade, os debates sobre novas regulações políticas e jurídicas do digital e
do poder envolvido na sua trama algorítmica.
Assim, e apenas para ilustrar alguns assuntos a incluir nesses debates, poder-se-ia
equacionar a proibição pura e simples dos cookies, “a não ser que legalizemos a pirataria”
(BURGAYA, 2021, p. 301), e bem assim o uso dos perfis personalizados a fim de aca-
bar com a personalização de anúncios, pois seria “uma forma de restringir o poder das
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grandes plataformas tecnológicas que tanto dependem deles” (VÉLIZ, 2021, p. 148).
Por outro lado, e de forma mais radical, seria pertinente discutir a eventual interdição
da comercialização de dados pessoais e a sua inferência a partir dos nossos traços digi-
tais, admitindo, com Véliz, que esses dados “não devem ser algo que se possa comprar,
vender ou partilhar para os explorar com fins de lucro” (2021, p. 149). A outro nível,
e já numa área de grande proximidade com as preocupações mais imediatistas das jo-
vens gerações, conviria discutir as formas de impedir os efeitos nocivos das redes sociais
sobre as crianças, colocando também o foco na responsabilidade dessas redes, e, ainda,
o reforço da proteção da privacidade dos mais novos, dado ser fundamental, por duas
ordens de razões: em primeiro lugar, porque se diminui o risco de um futuro compro-
metido pelo acesso a informações perfeitamente escusadas sobre saúde, escola ou
amigos; em segundo lugar, porque a intromissão excessiva na vida dos mais novos pre-
judica o seu crescimento: “quando supervisionamos demasiado os jovens, prejudicamos
o processo pelo qual se tornam adultos responsáveis que não precisam de supervisão”
(VÉLIZ, 2021, p. 184). Reconhecidamente, a questão é polémica, mas fica bem dis-
cuti-la no âmbito da aprovação de medidas que também se destinam a cercear a
vigilância digital.
A par de medidas que se podem equacionar para travar o tecnopoder digital, pelo
menos neste momento, pois a realidade desse poder é dinâmica e cheia de surpresas,
convém acrescentar, também para discussão e configuração de uma política de legítima
defesa dos cidadãos, direitos de uma nova geração que ainda há pouco tempo começa-
ram a ser formulados: os direitos digitais ou cibernéticos. Entre eles, e à cabeça, o
“direito ao futuro, o qual abrange a nossa vontade de querer, a nossa autonomia, os
nossos direitos à decisão, a nossa privacidade e, seguramente, as nossas naturezas hu-
manas” (ZUBOFF, 2020, p. 384). Depois, e só para trazer à colação prerrogativas
jurídicas insuficientemente contempladas em Cartas de Direitos Digitais, o direito a
inspecionar e a alterar o perfil digital que as plataformas constroem a nosso respeito,
tanto mais quanto esse perfil é cada vez mais decisivo no âmbito da ‘economia da re-
putação’ (BURGAYA, 2021), pois dele depende pagar mais ou menos por bens e
serviços, ou simplesmente não ter acesso a eles, já para não falar o quanto a reputação
digital, associada a esse perfil, se revela importante na seleção para um emprego.
Por outro lado, e como inovação, seria de levar em consideração um direito de
proteção da nossa agência, especialmente da ‘faculdade de julgar’, considerada por
Arendt “a mais política das aptidões mentais” (2005, p. 213), na medida em que de-
termina a possibilidade de ações individuais e coletivas recusando normatividades
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infundadas e jogos de poder ilegítimos. Por fim, e como contraponto à ênfase das tec-
nológicas nos direitos de propriedade dos algoritmos, um direito de propriedade do eu
digital, dando razão a estas palavras: “O que nós realmente queremos é um eu digital
do qual sejamos o proprietário exclusivo e ao qual os outros possam aceder apenas se-
gundo os nossos termos” (DOMINGOS, 2017, p. 299). O que está em causa, neste
último caso, é a reivindicação, no quadro da política de legítima defesa, de um direito
que permita decidir, sem reservas, sobre a utilização dos perfis digitais, tanto por nós
construídos e atualizados, como sobretudo pelas plataformas, com ou sem consenti-
mento explícito.
Esses são alguns dos direitos que se podem acrescentar a cartas de direitos huma-
nos na era digital, entre as quais a portuguesa, recentemente aprovada e já em vigor,
dado serem fundamentais, só pelo facto de serem direitos intransponíveis, para fixar
limites e não deixar embalar o tecnopoder digital. Teve razão Foucault ao afirmar que
“Ao poder é sempre preciso opor leis inultrapassáveis e direitos sem restrições” (1979,
p. 794). É provavelmente a única forma de lhe colocar freios, mas isso não é fácil,
sobretudo quando se trata do poder da economia de plataformas: “a economia de pla-
taformas engendra umas dimensões corporativas que torna quase impossível o seu
controlo social e político” (BURGAYA, 2021, p. 237). Ainda assim, nunca é demais
lembrar que o poder das plataformas tem pés de barro, visto depender dos nossos dados,
e que as regulações estão surtindo algum efeito, nomeadamente na União Europeia, na
sequência do clamor dos cidadãos e de algumas organizações defensoras dos seus direi-
tos. Assenta bem nas atribuições da educação, nomeadamente escolar, reforçar esse
claim-making da sociedade civil, pois, em derradeira instância, tudo depende de mu-
danças legislativas e, portanto, da nossa pressão estruturada sobre os representantes
políticos.
Conclusão
Como procurarmos ilustrar e argumentar ao longo do artigo, a era digital assiste
à emergência de um poder que já é dominante no ecossistema da internet e que, se não
lhe opusermos resistência, vai continuar a violar direitos individuais fundamentais e a
ameaçar, a breve trecho, as próprias bases do sistema democrático. Os efeitos pernicio-
sos desse poder fazem dele uma questão política-chave do nosso tempo que deve ser
afrontada com lucidez, determinação e espírito crítico, além de requerer criatividade
nas respostas. A educação, como mostramos, pode ser útil a esse propósito, investindo,
por um lado, na construção de uma visão lúcida e crítica das maquinações algorítmicas
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do tecnopoder digital e, por outro, na discussão e na vocalização de uma política de
legítima defesa dos utilizadores das plataformas onde esse poder opera, equacionando
novos direitos cibernéticos e algumas medidas políticas.
O que está em causa, na verdade, é passar para a política institucional um novo
lote de regulações políticas e jurídicas capazes de travar os perigosos avanços desse poder
nas plataformas de serviços digitais. Pode-se dizer que a tarefa não se afigura fácil, pois
o tecnopoder foge das regulações como o diabo da cruz, e por uma razão muito simples:
as regulações podem comprometer os seus resultados financeiros e, no limite, a própria
economia dos dados, relativamente à qual é o seu fiel servidor. Seja como for, e se não
lhe fizermos frente, as perspetivas não são as melhores, quer para as sociedades demo-
cráticas, inviáveis sem a autodeterminação dos indivíduos, quer para os nossos direitos
à privacidade, à intimidade, à decisão e, last but not least, o direito a uma voz política
sem entraves à contestação.
Não é com alguns tuits explosivos e esporádicos, próprios dos ‘enxames digitais’
(HAN, 2016), que vamos fazer recuar esse poder das plataformas tecnológicas da era
digital. A resistência a um poder tão amplo e tão invasivo, sem autolimitações visíveis,
exige uma luta continuada e sem tréguas: “Só quando a resistência se torna persistente
se consegue que as grandes tecnológicas deem um passo atrás” (VÉLIZ, 2021, p. 153).
É por isso que faz falta a educação, considerando, como inspiração, as áreas abordadas
neste artigo. O que é verdadeiramente importante é que esse trabalho educativo, feito
nomeadamente nas escolas, tenha repercussões públicas, pois, “Numa sociedade demo-
crática, o debate e a contestação proporcionados por instituições ainda saudáveis pode
fazer a opinião pública mover-se e adotar uma atitude de oposição, que abrirá caminho
a uma legislação e a uma jurisprudência posteriores” (ZUBOFF, 2020, p. 579). Esse é
seguramente um sinal de esperança e, de resto, uma merecida recompensa para os edu-
cadores que, especialmente nas instituições escolares, e nas aulas de cidadania, não
perdem a oportunidade de debater o novo poder da era digital.
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