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A escola como espaço socializador: uma crítica aos limites do
homeschooling
The school as a socializing space: a criticism of the limits of
homeschooling
La escuela como espacio socializador: una crítica a los límites de la
educación en el hogar
Telmo Marcon
*
Ivan Penteado Dourado
**
Luciane Spanhol Bordignon
***
Resumo
A Educação Domiciliar vem se expandindo em diferentes contextos e ganhando adeptos, mas
também sofrendo muitas críticas. O presente artigo, de natureza bibliográfica e documental, objetiva
reunir argumentos para fundamentar uma crítica aos limites político-pedagógicos do homeschooling
na medida em que delimita a educação ao âmbito familiar. Esse projeto afronta princípios básicos da
formação de sujeitos democráticos possibilitados pela escola enquanto espaço público. Para tanto, o
artigo inicia com uma problematização do tema, estabelece um diálogo com Durkheim e Norbert
Elias, dois clássicos da Sociologia que pensam a socialização e a individualização e destacam a
importância do espaço público na constituição individual e social dos sujeitos, segue com a análise
de alguns princípios do homeschooling no Brasil e reúne argumentos relativos às implicações
pedagógicas de uma educação circunscrita ao âmbito familiar e conclui defendendo a tese da
importância do espaço público escolar na formação de sujeitos democráticos e cidadãos.
Palavras-chave: Educação pública. Homeschooling. Socialização. Escola. Democracia.
Recebido em: 09.02.2023 Aprovado em: 20.02.2023
https://doi.org/10.5335/rep.v29i3.14302
ISSN on-line: 2238-0302
*
Doutor em História Social pela PUC de São Paulo. Pós-doutor em Educação intercultural pela UFSC. Professor, pesquisador e
orientador no Instituto de Humanidades, Ciências, Educação e Criatividade (IHCEC) da Universidade de Passo Fundo e do
PPGEDU/UPF (mestrado e doutorado). Orcid: https://orcid.org/0000-0002-9110-3210. E-mail: telmomarcon@gmail.com.
**
Doutor em Educação pela UPF. Professor, pesquisador da Universidade de Passo Fundo e professor colaborador do PPGCiamb/UPF
(mestrado). Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4529-831X. E-mail: ivandourado@upf.br.
***
Doutora em Educação pela UFRGS. Coordenadora Pedagógica do Curso de Pedagogia do Instituto de Humanidades, Ciências,
Educação e Criatividade (HCEC) da Universidade de Passo Fundo. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-1620-0288. E-mail:
lucianebordignon@upf.br.
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Abstract
Home education has been expanding in different contexts and gaining supporters, but also suffering
a lot of criticism. This article, of a bibliographical and documental nature, aims to gather arguments
to support a critique of the political-pedagogical limits of homeschooling insofar as it delimits
education to the family sphere. This project confronts basic principles of the formation of democratic
subjects made possible by the school as a public space. To this end, the article begins with a
problematization of the theme, establishes a dialogue with Durkheim and Norbert Elias, two classics
of Sociology who think about socialization and individualization and highlight the importance of
the public space in the individual and social constitution of the subjects, continues with the analysis
of some principles of homeschooling in Brazil and brings together arguments related to the
pedagogical implications of an education limited to the family environment, and concludes by
defending the thesis of the importance of the public school space in the formation of democratic
subjects and citizens.
Keywords: Public education. Homeschooling. Socialization. School. Democracy.
Resumen
La educación domiciliar viene expandiéndose en distintos contextos y ganando adeptos, pero
también sufriendo muchas críticas. El presente artículo, de carácter bibliográfico y documental, tiene
por objetivo reunir argumentos para fundamentar una crítica a los límites político pedagógicos de la
educación en el hogar en la medida en que delimita la educación familiar. Ese proyecto acomete
principios básicos de la formación de sujetos democráticos posibilitados por la escuela, mientras tanto
por el espacio público. Con cuanto, el artículo empieza con una problematización del asunto,
establece un diálogo con Durkheim y Norbert Elias, dos clásicos de la Sociología que piensan en la
socialización y la individualización y apuntan la importancia del espacio público en la constitución
individual y social de los sujetos, sigue con el análisis de algunos principios de la educación en el
hogar en Brasil y reúne argumentos relativos a las implicaciones pedagógicas de una educación
limitada al ámbito familiar y concluye garantizando la tesis de la importancia del espacio público
escolar en la formación de sujetos democráticos y ciudadanos.
Palabras clave: Educación pública. Educación en el hogar. Socialización. Escuela. Democracia.
1. Considerações iniciais
Quando se trata de educação não faltam opiniões. Profissionais de todas as áreas
do conhecimento têm alguma sugestão ou ideia para resolver problemas educacionais.
O mesmo problema foi observado por Norbert Elias ao analisar as representações sobre
a sociedade (1994, p. 13. Grifo do autor) quando afirma: “todos sabem o que se pre-
tende dizer quando se usa a palavra ‘sociedade’, ou pelo menos todos pensam saber”.
Partindo dessa constatação, surge a questão: qual a concepção de educação que temos
e usamos? Os desdobramentos dessa argumentação certamente não confluem para o
mesmo ponto. Mas não é apenas uma questão conceitual de educação que aqui nos
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interessa. A educação é, acima de tudo, um processo de formação num duplo movi-
mento: a constituição do sujeito enquanto indivíduo e, concomitantemente, a
formação de um sujeito social. São duas dimensões de um mesmo processo formativo
que nem sempre conseguem encontrar um ponto de equilíbrio. Quando um dos extre-
mos domina, o outro torna-se frágil.
A socialização é, ao mesmo tempo, um processo simples e complexo. Simples
pelo fato de nascermos em determinados contextos e, neles, aprendermos as questões
básicas para a sobrevivência que são transmitidas de maneira espontânea. Aprendemos
a falar, reconhecer e compartilhar certos valores, dizer sim ou não para determinadas
situações, seguir conselhos dos adultos, identificar e assumir determinados papéis soci-
ais etc. Concomitantemente, experienciamos limites ao que desejamos e projetamos
frente aos demais sujeitos, ou seja, estabelecemos relações com outros indivíduos ou
mesmo coletividades sociais, com as quais nem sempre estamos em pleno acordo. Nes-
sas tensões e contradições é que nos constituímos como indivíduos socializados, ou seja,
como sujeitos capacitados para viver em sociedade. Neste sentido, a constituição das
identidades individuais é condição fundamental para a vida social, assim como as iden-
tidades sociais são essenciais para a constituição dos sujeitos coletivos.
O que estamos a defender é que nos constituímos como indivíduos socializados
em meio às tensões e contradições sociais, nas disputas entre o ‘eu’ e o ‘nós’. A escola
tem, nesses processos, um papel fundamental. A vida social é, por natureza, conflitiva,
tensa e permeada por disputas e contradições. É evidente que, em alguns contextos,
essas tensões são mais complexas e indefinidas. Daqui, emerge a crítica que fundamen-
taremos aos defensores da Educação Domiciliar no Brasil que privam os filhos de
experiências que a escola possibilita. Como criar as condições para que as crianças ex-
perienciem as situações contraditórias, conflitivas e tensas que os cotidianos da vida
social impõem? Quais as implicações para a formação identitária das crianças que não
experienciam o espaço público escolar e nem o convívio com os grupos sociais diversos
que se fazem presentes na escola?
Essas questões não permitem respostas simples e nem universalizantes. A escola
não pode tudo como observam Laval (2004) e Simons e Masschelein (2017), mas ela
pode formar cidadãos democráticos (DEWEY, 1979; BENEVIDES, 1996). A forma-
ção de um sujeito capaz de conviver, interagir socialmente e socializar-se implica,
necessariamente, em estabelecer inter-relações sociais e a escola é um lócus privilegiado
para tanto. Isso não significa dizer que a escola está conseguindo dar conta desse desa-
fio, mas sem ela, certamente, as possibilidades ficam reduzidas. A escola é desafiada a
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contribuir na formação intelectual, cidadã e profissional dos estudantes, ou seja, a de-
senvolver capacidades individuais tanto para formação para a vida em sociedade quanto
para o trabalho. Quando um desses pilares não for contemplado ao longo da formação
dos sujeitos é porque há problemas e limites. É evidente que não existem barreiras in-
transponíveis e poderá haver situações em que crianças estudem em casa e desenvolvam
capacidades para conviverem socialmente, assim como poderá haver crianças que vão
para a escola e não consigam desenvolver a dimensão da sociabilidade e encontrem
dificuldades para a convivência social. O que se está propondo, aqui, é uma reflexão
sobre a importância da socialização e da individualização das crianças para que possam
exercer seus direitos de cidadania de forma democrática e respeitosa. Os processos edu-
cativos formais precisam contribuir para que as crianças, adolescentes e jovens
aprendam a conviver com a diversidade e a pluralidade em todas as dimensões da vida
social. Como define Durkheim (1967), não nascemos seres sociais, mas nos constituí-
mos socialmente por meio das interações, ou seja, da socialização.
No decorrer do artigo, pretendemos fundamentar uma crítica aos pressupostos
do homeschooling no Brasil e sobre como a estrutura socioeconômica, política e cultural
brasileira cria obstáculos à implementação de projetos dessa natureza. Para tanto, ini-
ciamos com uma reflexão a respeito da compreensão de socialização e individualização
em estudos de Durkheim (1967) e Elias (1994); seguimos com a reconstituição de
elementos presentes nos discursos e nas legislações relativas à Educação Domiciliar,
além de alguns dados estatísticos do número de famílias que defendem esse ideário e as
implicações pedagógicas de uma educação circunscrita ao âmbito familiar. Nas consi-
derações finais, retomaremos a tese enunciada no resumo de que a escola ainda é, na
contemporaneidade, um espaço fundamental de formação crítica do cidadão na pers-
pectiva de Masschelein e Simons (2017) e de Dewey (1979). A vida em sociedade
demanda uma formação social.
2. Individualização e socialização: contribuições de Durkheim e
Norbert Elias
As contribuições dos dois sociólogos Durkheim e Elias - são, ainda, extrema-
mente relevantes e atuais. Pretendemos, aqui, recuperar apenas alguns elementos da
vasta produção acadêmica de Durkheim, no final do século XIX e início do século XX,
e de Norbert Elias, na segunda metade do século XX. As contribuições que nos inte-
ressam aqui dizem respeito aos processos de socialização e de individualização. Esses
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autores possuem diferenças importantes, mas também elementos que dialogam e aju-
dam-nos a compreender melhor a importância das relações e interações sociais na
constituição de sujeitos capacitados para viverem socialmente.
a) A socialização em Durkheim
Durkheim define-se como um autor positivista e assume que seu método é con-
servador: “nosso método nada tem, pois, de revolucionário. Num certo sentido é até
essencialmente conservador, pois considera os fatos sociais como coisas cuja natureza
não é passível de modificação fácil, por mais dúctil e maleável que seja” (1987, p. XVI-
XVII). Esse reconhecimento é importante porque estamos tratando de um pensador
que é conservador, mas, ao mesmo tempo, coloca questões que desafiam as sociedades
contemporâneas, assim como projetos reacionários
1
como o da Educação Domiciliar.
Seu grande esforço intelectual é de transformar a Sociologia em ciência, mas também
de pensar a importância da educação na produção da coesão social. Ele reconhece que
a coesão social foi produzida, historicamente, pelas religiões, mas, com os processos de
industrialização e urbanização, na virada do século XIX para o XX, as religiões perde-
ram essa hegemonia e a educação deveria, segundo Durkheim, contribuir para a
produção dessa coesão social e, por conseguinte, superando a anomia social
2
.
Interessa-nos, para este artigo, recuperar de Durkheim a perspectiva da educação
republicana e a necessidade da produção de consensos sociais, condição para a própria
existência social. Durkheim defende a tese de que não nascemos seres sociais, mas ego-
ístas e, por meio da educação, vamos nos socializando, ou seja, nos apropriando de
valores, normas e regras que possibilitam viver em sociedade. Daí a importância da
socialização que deriva da sua compreensão de educação. Na obra Educação e sociologia
(1967), ele vai construindo um conjunto de argumentos que resultam na definição
clássica de educação compreendida como a ação exercida “pelas gerações adultas, sobre
as gerações que não se encontram ainda preparadas para a vida social; tem por objeto
suscitar e desenvolver, na criança, certo número de estados físicos, intelectuais e morais,
reclamados pela sociedade política...” (1967, p. 41). Nessa definição, a educação tem
um papel fundamental na constituição do ser social, ou seja, ele compreende a educação
em sua função socializadora.
O conceito de socialização ganha, nas reflexões de Durkheim, um lugar central.
Ele chega a essa conclusão observando o papel que a educação desempenhou ao longo
da história. Critica tradições filosóficas que pensaram a educação enquanto dever ser,
visto que sua compreensão de ciência apoia-se na história, na qual identifica como os
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fatos efetivamente ocorreram e não como deveriam ser. Reconhece os elementos cons-
titutivos dos fatos sociais
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que se sustentam numa base epistêmica positivista, ancorada
na observação, experimentação e comprovação. A educação, o autor conclui, é um fato
social por atender as três grandes características que o define: “O fato social é reconhe-
cível pelo poder de coerção externa que exerce ou é suscetível de exercer sobre os
indivíduos; e a presença deste poder é reconhecível, por sua vez, pela existência de al-
guma sanção determinada, seja pela resistência que o fato opõe a qualquer
empreendimento individual que tenda a violentá-lo” (1987, p. 8).
Quais as contribuições de Durkheim para pensar as novas formas de coesão so-
cial, para além das formas tradicionais assentadas na tradição e no papel preponderante
das gerações adultas? Oriundo de uma família judia, profundamente religiosa,
Durkheim vai construindo referenciais baseados no método científico e numa compre-
ensão de educação laica e republicana. Desde jovem, foi um opositor da educação
religiosa e defensor do método científico, tensão crescente na Europa desde o século
XVIII. O contexto que ele experiencia é de profundas transformações decorrentes da
passagem de uma estrutura social e econômica essencialmente agrária, com uma forte
coesão social produzida pelas religiões para uma crescente urbanização. As cidades pos-
sibilitam a emergência de novos referenciais éticos, políticos, sociais, culturais, estéticos
e epistêmicos. Em meio à crise dos valores tradicionais e da emergência de novos parâ-
metros políticos laicos, Durkheim faz avançar sua compreensão de ciência, bem como
da definição de educação laica e republicana, fundamental para produzir uma nova
coesão social.
Na obra Educação e sociologia, Durkheim (1967) reflete sobre a natureza social
da educação, ou seja, vai tirando conclusões a partir dos pressupostos sobre ciência e
analisa a educação como fato social. A educação, de acordo com o autor, está presente
em todas as sociedades, tem exterioridade na medida em que, em todas elas, existem
sistemas educativos concretos e essa materialidade dá condições para uma análise obje-
tiva, assim como possui universalidade na medida em que não é um fenômeno restrito
a uma região ou país. A educação impõe-se coercitivamente e o indivíduo não tem
outra opção a não ser ‘submeter-se’ aos processos educativos que são reconhecidos
como válidos por uma determinada sociedade. Entende, desse modo, que a educação é
múltipla e uma, ou seja, é múltipla na medida em que existem muitas formas de edu-
cação de acordo com as diferenças sexuais, econômicas, de grupos e classes sociais. Por
outro lado, em todas as sociedades, os processos educativos e religiosos produziram
coesão social, condição para a existência da própria sociedade. “Se, por um lado, exis-
tem tantas espécies de educação quanto meios sociais, por outro, todos os sistemas
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educativos difundem certos ideais e sentimentos comuns a todos os grupos sociais”
(VARES, 2011, p. 32). Dessa compreensão, deriva o caráter social da educação.
Durkheim parte do princípio de que o ser humano só se tornou humano porque tor-
nou-se sociável, ou seja, foi capaz de aprender hábitos e costumes característicos de seu
grupo social, condição para conviver e sobreviver. A esse processo de aprendizagem, ele
denomina socialização. Através da socialização constitui-se uma consciência coletiva
que agrega tudo aquilo que habita as mentes e orienta-nos em relação ao nosso ser,
sentir e agir.
Como Durkheim concebe a socialização? Após analisar muitas experiências his-
tóricas, ele conclui que, em todas as sociedades, as gerações adultas e as instituições
sociais desempenharam um papel fundamental na socialização por meio da ação sobre
as gerações ainda não preparadas para a vida social. Distintamente de outras tradições
que acentuam a atividade do indivíduo, para Durkheim, a sociedade sobrepõe-se ao
indivíduo que ingressa no mundo e precisa adaptar-se às estruturas socioculturais exis-
tentes.
Ao discutir a “missão social do mestre”, Vares (2011, p. 37) ressalta que a com-
preensão de educação em Durkheim contrapõe-se aos determinismos biológicos, ou
seja, “o desenvolvimento depende de circunstâncias externas”, portanto, sociais e cul-
turais. A constituição do ser social é a finalidade última da educação e o ser social que
a educação propicia, segundo Durkheim (1967, p. 42), “não nasce com o homem, não
se apresenta na constituição humana primitiva, como também não resulta de nenhum
desenvolvimento espontâneo”. A conclusão a que chega é de que a ação exercida pela
sociedade, especialmente pela educação, “não tem por objeto, ou por efeito, comprimir
o indivíduo, amesquinhá-lo, desnaturá-lo
4
, mas ao contrário engrandecê-lo e torná-lo
criatura verdadeiramente humana” (1967, p. 46-47).
No bojo dessa compreensão de ser humano como ser social, Durkheim pensa a
função do Estado em relação à educação. É aqui que se situa a tese fundamental que
nos interessa de modo peculiar para fundamentar uma crítica à Educação Domiciliar
no Brasil. Ele parte da constatação de que há uma tensão entre família e Estado: “Opõe-
se ao Estado, quase sempre, os direitos da família. Diz-se que a criança é, antes de tudo,
de seus pais; a estes, pois, e a mais ninguém, incumbe a direção de seu desenvolvimento
intelectual e moral” (1967, p. 47). Essa compreensão de educação é essencialmente
privada e doméstica. Por isso, ele pondera e afirma que a educação “não pode ser intei-
ramente abandonada ao arbítrio dos particulares” (1967, p. 48), ou seja, “a escola não
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pode ser propriedade de um partido; e o mestre faltará aos seus deveres quando empre-
gue a autoridade de que dispõe para atrair seus alunos à rotina de seus preconceitos
pessoais, por mais justificados que eles lhe pareçam” (1967, p. 49).
Nesse contexto, Durkheim pensa no papel do mestre educador como “um tra-
balho de autoridade”. A autoridade, por sua vez, não age pela violência, mas consiste
“numa ascendência moral” que, por sua vez implica em disposição e confiança do mes-
tre que deve ter consciência dessa autoridade. “A autoridade é uma força que ninguém
pode manifestar, se efetivamente não a possui. (...) Não é de fora que o mestre recebe
a autoridade: é de si mesmo” (1967, p. 55).
Os valores morais construídos e partilhados socialmente não se constituem em
referências individuais, mas sociais. O mestre tem de partilhar esses valores com as cri-
anças. Assim, Durkheim conclui que: “ao contrário da opinião muito difundida de que
a educação moral deveria competir à família, acredito que o papel da escola na educação
é e deve ser da mais alta importância. Existe toda uma parte da cultura, sua parte mais
elevada, que não pode ser transmitida em outro lugar” (2008, p. 34-35).
b) Individualização e socialização em Norbert Elias
Norbert Elias (1994) tem, como foco de suas investigações, a relação entre indi-
víduo e sociedade. Como sociólogo, destaca, em suas reflexões, a complexidade das
relações interpessoais e as interações sociais que resultam nos processos de socialização.
É nas interações com os outros que os indivíduos constituem suas identidades. Ao in-
troduzir conceitos como o de teias de relações, de rede ou figuração, salienta que as
interações não são processos simples, ao contrário, são extremamente complexos.
Elias afirma que existem duas grandes tradições que tentam explicar a relação
indivíduo e sociedade: uma destaca a ação dos indivíduos e a outra acentua o papel das
estruturas sociais. Ele critica essas duas perspectivas porque elas não dão conta das com-
plexas relações indivíduo-sociedade. Em relação à primeira assinala que: “parte das
pessoas aborda as formações sócio-históricas como se tivessem sido concebidas, plane-
jadas e criadas, tal como agora se apresentam ao observador retrospectivo por diversos
indivíduos ou organismos” (1994, p. 13). Essa tradição defende que as ações são resul-
tantes de decisões racionais de indivíduos isolados, mas, segundo o autor, ela apresenta
inúmeros problemas. Uma segunda tradição criticada por Elias despreza o papel do
indivíduo na sociedade e nas decisões sociais e políticas. Essa tradição baseada em mo-
delos extraídos das ciências naturais, especialmente, da Biologia, defende que a
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sociedade é uma entidade orgânica, supra individual. Elias faz a seguinte crítica a res-
peito dessas duas tradições:
Enquanto para os adeptos da convicção oposta (individualista), as ações sociais se encontram no
centro do interesse e qualquer fenômeno que não seja explicável como algo planejado e criado
por indivíduos mais ou menos se perde de vista, aqui, neste segundo campo, são os próprios
aspectos que o primeiro julga inabordáveis os estilos e as formas culturais, ou as formas e as
instituições econômicas que recebem maior atenção (1994, p. 15).
Na tentativa de superar esses limites, Elias chama a atenção para a ausência de
modelos conceituais, assim como uma visão global que possibilite compreender como
um “grande número de indivíduos compõe entre si algo maior e diferente de uma co-
leção de indivíduos isolados: como é que eles formam uma sociedade e como sucede a
essa sociedade poder modificar-se de maneiras específicas, ter uma história que segue
um curso não pretendido ou planejado por qualquer dos indivíduos que a compõem”
(1994, p. 16). Neste sentido, Elias acentua que não são os indivíduos isolados (môna-
das) que constituem a sociedade. Para superar essa tradição, ele lança mão de analogias:
afirma que uma casa não é resultado de pedras isoladas, assim como uma música não é
a soma de notas isoladas. Ambas somente existem quando constituírem um conjunto
de relações. O mesmo ocorre com os indivíduos e a sociedade. Ambos implicam rela-
ções. Elias questiona-se: “como é possível que a existência simultânea de muitas pessoas,
sua vida em comum, seus atos recíprocos, a totalidade de suas relações mútuas deem
origem a algo que nenhum dos indivíduos, considerado isoladamente, tencionou ou
promoveu, algo que ele faz parte, querendo ou não, uma estrutura de indivíduos inter-
dependentes, uma sociedade?” (1994, p. 19). A partir dessa interrogação, ele
fundamenta sua tese básica: “Não há dúvida de que cada ser humano é criado por
outros que existiam antes dele; sem dúvida, ele cresce e vive como parte de uma asso-
ciação de pessoas, de um todo social, seja qual for. Mas isso não significa que o
indivíduo seja menos importante que a sociedade, nem que ele seja um meio e a socie-
dade, fim. A relação entre a parte e todo é uma certa forma de relacionamento, nada
mais, e como tal, sem dúvida, já é bastante problemática” (1994, p. 19).
A abordagem sociológica de Elias é processual, ou seja, não existe nenhum tipo
de predeterminação do ser humano. Ele não vive sem o outro, mas, ao mesmo tempo,
não é determinado e nem igual ao outro. O que existe são relações de interdependência
ou como pontua: “teias de relações”. Entende que a constituição do sujeito ocorre atra-
vés das inter-relações que estabelece e daí a necessidade de ambientes adequados para
que as crianças, especialmente, desenvolvam experiências socializadoras construtivas.
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Elias é pós-metafísico e critica a ideia de essência ou de natureza humana p-definida.
Neste sentido, não existe no humano, diferentemente de outros animais, uma pré-or-
ganização instintiva. Como não existe uma essência a ser desenvolvida (desabrochada),
o ser humano precisa constituir-se como tal. Faz isso por meio das interações que esta-
belece com as instituições sociais e políticas e com os outros. Socializar-se implica, neste
sentido, construir interrelações com os outros e, nesses processos, que são tensos e dia-
léticos, constituir-se como tal, bem como constituir a sociedade. Elias usa metáforas
para mostrar como ocorrem as inter-relações sociais, bem como que elas não são defi-
nidas a priori: dança de salão, jogos, redes. Essa ideia está expressa na frase: “é necessário
desistir de pensar em termos de substâncias isoladas únicas e começar a pensar em ter-
mos de relações e funções” (1994, p. 25).
Os conceitos de interação e relação são centrais no pensamento de Elias. É o que
se deduz da afirmação: “ao nascer, cada indivíduo pode ser muito diferente, conforme
sua constituição natural. Mas é apenas na sociedade que a criança pequena, com suas
funções mentais maleáveis e relativamente indiferenciadas, se transforma num ser mais
complexo” (1994, p. 27). Essa tese tem suas implicações e consequências: tornamo-nos
humanos desenvolvidos somente nas relações com outras pessoas e com o ambiente
social que preexiste à vinda da criança ao mundo. “Somente ao crescer num grupo é
que o pequeno ser humano aprende a fala articulada. Somente na companhia de outras
pessoas mais velhas é que, pouco a pouco, desenvolve um tipo específico de sagacidade
e controle dos instintos” (1994, p. 27).
Para Elias, existem os processos sociais (sociogênese) e os processos mentais indi-
viduais (psicogênese). Ambos se entrecruzam e, por isso, não há indivíduo fechado em
si mesmo (homo clausus) e nem uma determinação do social sobre o indivíduo. Essa
perspectiva é interessante porque permite pensar nas mudanças, mesmo quando pare-
cem impossíveis. Através das interações, os indivíduos e as diferentes gerações vão se
constituindo e constituindo a sociedade. É assim que Elias pensa o processo educativo
com crianças:
a criança não é apenas maleável ou adaptável em grau muito maior do que os adultos. Ela precisa
ser adaptada pelo outro, precisa da sociedade para se tornar fisicamente adulta. Na criança, não
são apenas as ideias ou apenas o comportamento consciente que se veem constantemente
formados e transformados nas relações com o outro por meio delas (ELIAS, 1994, p. 30).
Concluindo, é possível afirmar que essa compreensão de indivíduo e de sociedade
em Norbert Elias traz relevantes implicações para a ação das instituições sociais, espe-
cialmente a escola, no sentido de propiciar interações positivas entre os indivíduos; a
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importância de valorizar cada indivíduo e as múltiplas interações que ele estabelece
cotidianamente. Possibilita, ainda, questionar as múltiplas formas de individualismo
que vivemos hoje, assim como as interações que não contribuem para um desenvolvi-
mento construtivo do próprio indivíduo e, por conseguinte, na constituição da
sociedade. “Os seres humanos são parte de uma ordem natural e de uma ordem social”
(1984, p. 41).
3. Princípios básicos da Educação Domiciliar
Quando tratamos de Educação Domiciliar, é importante não confundir com o
Ensino Remoto, vivido durante a pandemia. Em contexto de pandemia, a modalidade
remota foi uma imposição para todo o mundo. Foi uma forma precária e limitada para
reduzir a exposição dos estudantes e, consequentemente, suas famílias ao vírus da
COVID 19. Não foi uma modalidade pensada com a finalidade de substituir a presen-
cialidade e nem defendida como uma medida capaz de qualificar os processos de
ensino-aprendizagem. A Educação Domiciliar é anterior à pandemia, cuja discussão
começou no início dos anos 2000 no Brasil, apresentada como uma modalidade de
educação para crianças em casa como desejo dos pais, não necessariamente das crianças.
Sendo assim, a Educação Domiciliar necessita ser discutida de forma mais ampla e
profunda, já que seus defensores pensam a educação fora do espaço formal de ensino
sob a supervisão e acompanhamento dos pais ou responsáveis. É de fundamental im-
portância resgatar as bases desse modelo de educação. Quando mapeamos textos,
artigos e o próprio movimento do homeschooling
5
, identificamos o direito às liberdades
individuais como princípio basilar em contraposição aos direitos sociais e ao interesse
público. Expresso em outros termos, o direito de cada família responsabilizar-se pela
educação dos filhos, sem a interferência direta do Estado, como forma de materializar
a liberdade individual dentro do espaço familiar e da criação e educação dos filhos sem
os problemas e as críticas que a escola recebe. Essa proposta aponta para um rompi-
mento profundo não apenas com os limites físicos do espaço escolar, mas acompanha,
em nível mais profundo, a ruptura com o modelo de escolarização, retirando o papel
dos professores na condução do ensino formal. Ao defender a educação no espaço do-
méstico
6
, coloca-se em xeque o modelo de escolaridade obrigatória definido pela
legislação educacional brasileira.
Ao realizarmos um levantamento de pesquisas sobre o tema, o país com maior
concentração de pesquisas sobre homeschooling é os Estados Unidos. Conforme Kunz-
man e Gaither (2013, p.31), esse processo deve-se a uma série de fatores, entre eles, o
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de que o referido país possui o maior número de homeschoolers (estudantes em ho-
meschooling) do mundo. Esse tema nunca foi aprovado na suprema corte americana.
O que efetivamente ocorreu foi que diversos estados americanos receberam autorização
legislativa para essa modalidade, principalmente, em casos de motivação religiosa das
famílias demandantes.
Além dos EUA, alguns países europeus também vivem experiências de homes-
chooling. Nas comunidades belgas de língua francesa e holandesa, na Dinamarca, na
Inglaterra, na Finlândia, na França, na Alemanha, na Irlanda, na Itália, na Holanda,
na Noruega, em Portugal e na Suécia, existe essa modalidade de ensino, mas, com pro-
fundas diferenças de práticas, legislações e casos específicos em que essa modalidade é
permitida. Em alguns casos, há um amplo poder do Estado para acompanhar e avaliar
a qualidade e os critérios dessa modalidade e, em outros, esse processo não é de avalia-
ção estatal (ANDRADE, 2017).
No caso brasileiro, não existe um ordenamento jurídico a respeito da Educação
Domiciliar, o que impediria que existissem casos dessa modalidade de ensino de forma
legal e pública. Existem, na realidade, regulamentações legais que determinam a matrí-
cula de crianças e adolescentes na escola, ou seja, “lugar de criança é na escola”
7
. No
contexto brasileiro atual, é dever do Estado e de seus agentes e órgãos competentes,
juntamente com os pais ou responsáveis, matricular os filhos na escola em caráter obri-
gatório a partir dos quatro anos.
Esse entendimento era ponto pacífico até pouco tempo atrás. Mas, ao recupe-
rarmos na esfera legislativa, a tramitação na Câmara dos Deputados da PEC n.
444/2009 (BRASIL, 2009), juntamente com processos no Supremo Tribunal Federal,
objetivaram legalizar a promoção da educação em caráter desescolarizado. A Emenda
Constitucional n. 444 de 2009 propunha acrescentar um parágrafo ao art. 208 da
Constituição Federal, definindo que o Poder Público teria a responsabilidade de regu-
lamentar a Educação Domiciliar “assegurado o direito à aprendizagem das crianças e
jovens na faixa etária da escolaridade obrigatória por meio de avaliações periódicas sob
responsabilidade da autoridade educacional”
8
. Posteriormente, com maior destaque
nos meios de comunicação, tivemos o Projeto de Lei n. 3.261/2015 (BRASIL, 2015)
do deputado Eduardo Bolsonaro, que previa a matrícula de estudantes domiciliares,
dando um tratamento diferenciado para estes, obrigados a cumprirem apenas o calen-
dário de provas e avaliações, sem a necessária frequência e nem a carga-horária prevista
legalmente.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Esse movimento legislativo ganhou força com a posse de Jair Messias Bolsonaro
em primeiro de janeiro de 2019 que trazia, entre outras propostas, o Ensino Domici-
liar. Com a posse de ministros como Damares Regina Alves e Abraham Bragança de
Vasconcellos Weintraub, respectivamente, nos Ministérios da Mulher, Família e Di-
reitos Humanos e da Educação, um ambiente favorável foi consolidado. A proposta
dessa modalidade de ensino constava na lista de prioridades dos primeiros 100 dias do
governo. No entanto, foi somente em 2022, ano eleitoral que culminou com a derrota
do então presidente Jair Messias Bolsonaro, que ocorreu uma intensa movimentação
para tentar aprovar o Projeto de Lei 3179/2012 (BRASIL, 2012), inicialmente, pro-
posto pela deputada Luisa Canziani (PSD-PR), atualizado pelo deputado Lincoln
Portela (PL-MG) e, novamente, submetido à apreciação. O projeto visava alterar a leis
número 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional), e a de número 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do
Adolescente), para dispor sobre a possibilidade de oferta domiciliar da educação básica.
Esse projeto foi aprovado, com alterações, na Câmara dos Deputados em dezenove de
maio de 2022 e até o início de 2023 aguarda tramitação no Senado, ainda sem data
prevista para votação.
Essas pautas e demandas são também debatidas fora de espaços legislativos. Exis-
tem grupos que defendem o ensino domiciliar, assim como grupos que criticam essa
modalidade de educação no Brasil. Um ponto importante a ser destacado é que os
grupos que defendem a Educação Domiciliar estão alinhados política e ideologica-
mente a grupos conservadores e reacionários de direita ou de extrema-direita que
possuem pautas como o combate à ideologia de gênero e Escola Sem Partido
(MARCON; DOURADO, 2021, p. 1-19), assim como outras pautas que emergem
dentro dessa lógica conservadora. Para esses grupos, a escola não cumpriria seu papel,
além de desvirtuar os jovens dos valores que suas famílias defendem.
Movimentos conservadores que defendem a Educação Domiciliar tem, no site
Brasil Paralelo, um ponto de ancoragem. Devemos levar em conta que esse conteúdo
analisado por um olhar científico e crítico cumpre, na maioria das postagens, um papel
de desinformação com notícias falsas sobre diversos temas. Porém, possui uma ampla
inserção e influência social, pautando questões de interesses conservadores da direita
brasileira, apresentando matérias que defendem claramente a modalidade de Educação
Domiciliar. Em uma das matérias intitulada: O que é homeschooling e como funciona? 8
benefícios em relação às escolas
9
, são listados nomes de intelectuais que receberam sua
educação no espaço doméstico, entre os quais: Albert Einstein; Benjamin Franklin;
ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Thomas Edison; Erwin Schroedinger; Willard Boyle e Soichiro Honda. Essas informa-
ções são ‘jogadas’ sem contextualizar o período histórico em que cada um deles estudou
e o que explicaria o ensino domiciliar, em alguns casos, em condições anteriores ao
ensino público escolar acessível para todos. Além disso, o texto divulga materiais didá-
ticos para os pais utilizarem
10
, junto com indicações de obras complementares, como:
A Mente Bem Treinada; Homeschooling Católico, entre outras. Esses conteúdos, entre
outros, circulam de forma muito forte no público que compartilha essa posição política,
ilustrando as formas de comunicação e convencimento das ideias desse segmento polí-
tico/ideológico.
Além dessas iniciativas de comunicação e divulgação, existem também inúmeras
entidades que representam os interesses da Educação Domiciliar. A Associação Brasi-
leira de Defesa e Promoção da Educação Familiar (ABDPEF), a Homeschool Legal
Defefense Association (HSLDA), entidade internacional, bem como, a Associação Naci-
onal de Educação Domiciliar (ANED). Esta última refere, em seu site
11
, a parceria com
a Associação dos Juristas Evangélicos (ANAJURE), apresentando algumas pautas que
são comuns aos grupos conservadores.
A Associação Nacional da Educação Domiciliar (ANED) apresenta dados sobre
a modalidade de educação domiciliar no Brasil, sem afirmar as fontes e a forma com
que eles foram obtidos. Afirma que temos 35 mil famílias que já vivem esse modelo,
espalhadas nas 27 unidades da federação, com um crescimento de 55% ao ano, envol-
vendo 70.000 estudantes entre quatro e 17 anos. Outra pesquisa realizada pela ANED,
sem fontes ou metodologias, datada de 2017, traz os seguintes dados: de 285 famílias
homeschooling no Brasil, 34% delas o pai ou a mãe possuem ensino superior completo
e, em 74% das famílias, um dos pais já frequentou ou frequenta uma Universidade.
Essa associação tem como compromisso a defesa do “direito da família à Educação
Domiciliar no Brasil, através da representação coletiva dos seus associados junto às au-
toridades, órgãos e entidades pertinentes”.
Entre os argumentos utilizados pelos defensores do ensino domiciliar está o des-
crédito das famílias em relação à educação escolar, os baixos resultados nas avaliações
externas, as altas taxas de evasão e os inúmeros casos de violência e bullying nas escolas.
A baixa qualidade das escolas públicas é o argumento principal na defesa da Educação
Domiciliar, além da liberdade das famílias em educarem seus filhos. Ao mesmo tempo,
cabe ressaltar, segundo Vasconcelos (2017), que as camadas da população que estudam
majoritariamente na escola pública não são as mesmas que formam o público principal
da escolarização fora da escola.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Ao analisarmos o Projeto de Lei 2401-2019 (BRASIL, 2019), juntamente com
o alinhamento dos grupos anteriormente citados, temos alguns pontos fundamentais
para serem apresentados. Não tanto na forma de regulamentação dessa modalidade,
que aponta para a forma de cadastramento das famílias, envio de documentos, formas
de acompanhamento e sanções nos casos que descumprimento dos pontos definidos,
inclusive vedando os pais ou responsáveis nessa modalidade, se eles estiverem cum-
prindo pena em razão de determinados crimes. Mas, na Exposição de Motivos do
projeto n°.19/2019 os Ministros Alves e Weintraub fazem uma defesa da educação
domiciliar que nos ajuda na compreensão das bases e concepções presente nessa pro-
posta. Eles iniciam argumentando que o Ensino Domiciliar já é uma realidade em
inúmeros países e que, juntamente com o reconhecimento das entidades nacionais e
internacionais que lutam por essa causa e que foram ouvidas, alinham-se às discussões
realizadas no âmbito político do Congresso Nacional. Dizem, ainda, que a Educação
Domiciliar “consiste no regime de ensino de crianças e de adolescentes, dirigido pelos
pais ou por responsáveis” (2019, p. 7). Essa definição estaria respaldada no artigo 26,
inciso terceiro da Declaração Universal dos Direitos Humanos que diz: “os pais têm
prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus fi-
lhos”. A dimensão de liberdade de escolha é colocada como argumento fundante, além
de defenderem que o investimento em educação é gasto (2019, p. 8).
Nessa exposição de motivos, Alves e Weintraub insistem na urgência da aprova-
ção do Projeto e da regulamentação da Educação Domiciliar visto que o Supremo
Tribunal Federal, com base no Recurso Extraordinário nº 888.8815-RS, julgou in-
constitucional essa modalidade e muitas famílias foram denunciadas e julgadas por
adotarem essa prática:
a situação de insegurança jurídica atual, especialmente na perspectiva de pais que têm sido
processados por educarem seus filhos em casa, após a conclusão do julgamento do Supremo
Tribunal Federal e a publicação do acórdão, aponta para a urgência da matéria, justificando que
seja tratada por Medida Provisória (2019, p. 9).
Na contramão do movimento em defesa da Educação Domiciliar foi publicado,
em maio de 2022, o Manifesto Contra a Regulamentação da Educação Domiciliar e em
Defesa do Investimento nas Escolas Públicas
12
. Foram mais de 400 entidades, incluindo
universidades, redes de ensino, fóruns, sindicatos e organizações da sociedade civil que
assinaram esse documento e manifestaram uma clara oposição ao projeto da Educação
Domiciliar.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Nessa linha crítica, destacam-se, também, as contribuições do Centro de Estudos
e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (CENPEC), que, em inúmeras
publicações sobre a Educação Domiciliar, assinala que essa proposta fere o direito da
criança e do adolescente de estarem na escola. Aponta, inclusive, o respaldo popular
em pesquisas realizadas sobre o tema da Educação Domiciliar que indicam que essa
modalidade é rejeitada por oito em cada 10 brasileiras(os). Os dados foram obtidos por
meio de uma pesquisa nacional intitulada: Educação, Valores e Direitos, coordenada
pelo Cenpec e pela Ação Educativa, em parceria com o Datafolha e o Centro de Estu-
dos de Opinião Pública (CESOP/Unicamp), em março de 2022.
13
Mesmo com críticas ao ideário da Educação Domiciliar, há avanços dessas pro-
postas que estão conquistando espaços políticos na sociedade brasileira. Assim, urge
uma discussão cuidadosa e fundamentada que seja capaz de apontar os limites desse
modelo de ensino no contexto educativo, social e cultural brasileiro. A Educação Do-
miciliar é uma modalidade de ensino em que pais ou tutores responsáveis assumem o
papel de professores de seus filhos. Assim sendo, o processo de aprendizagem dessas
crianças é feito fora de uma escola. Essa opção de escolarização, segundo Barbosa e
Oliveira (2017), envolve mais de dois milhões de norte-americanos e, ainda que isso
represente aproximadamente 4% dos estudantes estadunidenses, está longe de ser um
fenômeno de massa.
No Brasil, como observado, há organizações que defendem posições pró-homes-
chooling, tanto em nível político quanto jurídico, no apoio ao desenvolvimento de
materiais pedagógicos e nas estratégias educativas para essa opção educacional. Segundo
a ANED, as nações que adotam o ensino domiciliar no mundo como modalidade edu-
cativa com reconhecimento legal incluem: África do Sul (África); Austrália e Nova
Zelândia (Oceania); Filipinas e Japão (Ásia); EUA e Canadá (América do Norte); Co-
lômbia, Chile Equador e Paraguai (América do Sul); Portugal França, Itália, Reino
unido, Suíça, Bélgica, Holanda, Áustria, Finlândia, Noruega e Rússia (Europa).
4. Questões pedagógicas que desafiam a Educação Domiciliar
O Projeto de Lei da Educação Domiciliar
14
prevê a obrigatoriedade dos pais ou
responsáveis legais apresentarem um plano pedagógico individual sobre o que ensinarão
aos filhos em casa. Isso implica planejamento. Segundo Vasconcellos (2004, p. 79):
Planejar é antecipar mentalmente uma ação a ser realizada. O planejamento é uma mediação
teórico-metodológica para a ação, que, em função de tal mediação, passa a ser consciente e
intencional. Tem por finalidade (...) fazer acontecer, concretizar, e para isso é necessário amarrar,
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condicionar, estabelecer condições, objetivas e subjetivas, prevendo o desenvolvimento da ação
no tempo (o que vem primeiro, o que vem em seguida), no espaço (onde será feita) e as condições
materiais (que recursos, materiais, equipamentos serão necessários) e políticas (relações de poder,
negociações, estrutura , bem como a disposição interior (desejo, mobilização) para que aconteça.
Neste sentido, elaborar um plano implica um processo de planejamento, uma
ferramenta viabilizadora da implementação de políticas públicas. Constitui-se, então,
o ato de regulamentar o planejamento como um elemento integrante da ação do Es-
tado. Dessa forma, é pertinente analisar criticamente o Projeto Pedagógico da
Educação Domiciliar. Segundo Porto e Mutim (2020), esse projeto representa um pen-
samento conservador e precisa ser questionado para que a democracia e os direitos
fundamentais dos estudantes não sejam violados.
Um plano pedagógico trata de questões curriculares que, segundo Porto e Mutim
(2020), precisa de trato profissional. O currículo da Educação Básica brasileira é regido
pela LDB (1996) e pela BNCC (2018), porém, o Projeto de Lei da Educação Domi-
ciliar não faz referência à BNCC para a construção do documento do Projeto Político
Institucional (PPI). Só faz alusão à BNCC no que se refere à avaliação.
A certificação da aprendizagem terá como base os conteúdos referentes ao ano escolar
correspondente à idade do estudante, de acordo com a Base Nacional Comum Curricular, com
possibilidade de avanço nos cursos e nas séries, nos termos do disposto na Lei nº 9.394, de 20 de
dezembro de 1996 (BRASIL, 2019).
É relevante destacar, ainda, que é imprescindível a elaboração de estratégias de
acompanhamento do processo pedagógico em curso e a construção de mecanismos de
controle da frequência do estudo. Neste sentido, há uma redução do papel do Estado,
bem como o esvaziamento da criticidade, da pluralidade, da socialização e de experiên-
cias educativas enriquecedoras, o que contraria a própria BNCC. “As restrições da
formação ao ambiente familiar, ou homeschooling, denota a perda do potencial for-
mativo inerente à interação e ao encontro com o outro, significando um estreitamento
do processo educacional” (CASAGRANDE; HERMANN, 2020, p. 1).
Há de se considerar também o rito de passagem da vida familiar e privada para
a coletiva, por meio da escolarização, envolvendo questões que dizem respeito à diver-
sidade e à sociabilidade. A escolaridade carrega consigo a “convivência” que, segundo
Cury (2019, p. 6. Grifos do autor),
reabre uma nova tensão: os diferentes se encontram em um espaço comum a fim de conhecerem
e praticarem ‘as regras do jogo’. Os diferentes se encontram para que haja um reconhecimento
recíproco da igualdade, da igualdade essencial entre todos os seres humanos. Os diferentes se
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encontram para, em base de igualdade, reconhecer e respeitar as diferenças. É nesse ir e vir de
conhecimento comum, de aprendizado das regras do jogo, da consciência da igualdade e do
reconhecimento do outro como igual e diferente que se efetiva a ‘dignidade da pessoa humana’,
princípio de nossa Constituição.
Cury (2019) salienta, ainda, que a homeschooling, em que pese sua crítica a as-
pectos existentes na escola, essa crítica deve ser um alerta para os gestores empenharem-
se na solução de problemas e na defesa da liberdade civil, correndo o risco de, perigo-
samente, escorregar para um isolamento, um fechamento para o outro, dentro da
família, reduzindo o campo de compartilhamento convivial e de transmissores não li-
cenciados. A escola praticamente tornou-se o último bastião institucional de uma
convergência entre o “todos” e o “comum”. A escola, ainda segundo Cury (2019), tem
uma institucionalidade permanente, sistemática, sistêmica, ao exigir a presença do edu-
cando pelo menos cinco dias da semana. Além da presença do educando, há o docente,
o profissional preparado para articular o processo de ensino e aprendizagem.
Arendt (2016) define o papel do educador e, consequentemente, da escola
nessa tensa e aparente (apenas aparente) ambiguidade que compreende o que a autora
chama de “caráter conservador da Educação”: o educador está aqui em relação ao jovem
como representante de um mundo pelo qual deve assumir a responsabilidade. Essa res-
ponsabilidade não é imposta arbitrariamente aos educadores; ela está implícita no fato
de que os jovens são introduzidos por adultos em um mundo em contínua mudança.
A qualificação do professor consiste em “conhecer o mundo e ser capaz de ins-
truir os outros acerca deste, porém, sua autoridade assenta-se na responsabilidade que
ele assume por este mundo. Face à criança, é como se ele fosse um representante de
todos os habitantes adultos, apontando os detalhes e dizendo à criança: “isso é o nosso
mundo” (ARENDT, 2016, p. 239). A ambiguidade da dimensão conservadora da
Educação é apenas aparente porque o mundo que se quer preservar é o mundo en-
quanto espaço público e, portanto, marcado pelas inúmeras manifestações de
humanidade. Isso significa afirmar que, ao apresentar o mundo, não se apresenta ape-
nas uma perspectiva (ou a perspectiva hegemônica) do que é o mundo, mas seus
conflitos, seus projetos, suas utopias e seus problemas (SAVATER, 1998). Trata-se da
conservação do mundo, não das coisas como elas estão dispostas no mundo. Assim
sendo, do próprio mundo como um lugar dinâmico, como o lugar da pluralidade, ha-
bitado pelos homens e pelas mulheres no plural (ARENDT, 2016), e que, por isso,
precisa, constantemente, ser renovado e, mesmo, transformado, para oferecer aos que
estão por vir as condições favoráveis à natalidade, que, para Arendt, significa o ingresso
do novo.
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Outro ponto importante a ser criticado no ensino domiciliar diz respeito à des-
construção da profissão doente. Nessa perspectiva, Rosa [et al.] afirmam que
O homeschooling além de aviltar o trabalho do professor a dispensar tacitamente a formação
profissional, introduz a possibilidade de se converter em justificativa para a ausência do Estado
no provimento da educação escolar. Uma tensão em relação aos saberes que afeta o trabalho
docente e o direito a educação desde sua base (2019, p. 5).
Casanova e Ferreira (2020) sinalizam que corremos riscos de criarmos sociedades
paralelas, com ataques cada vez maiores ao currículo e à cultura escolar, contra a de-
mocracia dos conhecimentos científicos, contra professores como intelectuais e a escola
pública e gratuita e outras formas de repressão. Daí a urgência de pautar discussões
críticas e reflexivas sobre essa situação.
Rosa e Camargo (2020) advertem que, no processo de análise da visibilidade da
regulamentação do homeschooling, observem-se suas implicações, considerando que a
educação básica requer o desenvolvimento de papéis colaborativos e não concorrentes
entre família e Estado. Além disso, é fundamental considerar o espaço social como pa-
râmetro para o desenvolvimento das crianças e dos adolescentes e que, nesse processo,
ressaltando a função social da escola, reconheça-se a profissionalização e o exercício
legítimo da docência e não relegando esse processo a qualquer profissional não docente.
5. Considerações finais
Nessas breves reflexões, intentamos fundamentar uma crítica ao movimento em
defesa da Educação Domiciliar e os limites que esse projeto de educação tem em relação
à socialização, à individualização, bem como à concepção reducionista de educação.
Como bem observam Durkheim e Elias, a socialização e a individualização não ocor-
rem fora de contextos sociais e de relações entre as pessoas e das inter-relações que
estabelecem. A vida social é, por natureza, complexa, tensa e contraditória. A criança
ingressa num mundo já existente que tem regras, valores e normas estabelecidas e reco-
nhecidas socialmente. É nas relações que esse sujeito vai estabelecer, nos diferentes
espaços e instituições, que irá desenvolver-se como ser social e como indivíduo. A tese
central que esses autores defendem é de que somente nos constituímos como seres so-
ciais nas relações que estabelecemos com os outros. Daqui deriva a tese básica que
fundamenta a crítica ao projeto de Educação Domiciliar: não é privando o indivíduo
da convivência com o outro que haverá um desenvolvimento equilibrado e maduro.
Dessa tese, decorre outra: a experiência de educação escolar não pode ser limitada à
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apropriação de informações e saberes. A escola tem de propiciar experiências de convi-
vência entre diferentes, de socialização e de individualização. Nessas interações, que
podem ser tensas e conflitivas, que os sujeitos constituem-se como tal. Não é isolando
as crianças dos espaços sociais, privando-as dessas experiências que contribuiremos para
uma sociedade plural e democrática.
A concepção de educação e de relação pedagógica inerente à proposta de Educa-
ção Domiciliar é profundamente restritiva, limitada e reducionista. A ideia de
construção do conhecimento fica limitada à instrução no sentido de apropriação de
informações. A noção de formação e de construção do conhecimento é muito mais
complexa do que o domínio de informações. Isso implica debates, confrontos, refle-
xões. Há um discurso crítico em relação à escola que tem embasamento real, mas que
incorre numa simplificação perigosa. O docente precisa de uma preparação densa e
qualificada em relação aos conteúdos, mas também uma preparação pedagógica para
trabalhar com os alunos na construção de conhecimentos. Como tudo isso vai ser de-
senvolvido no âmbito familiar? Quem elaborará a proposta pedagógica? Quem irá
implementá-la? Qual o papel do Estado? Como fica a socialização e a individualização
de crianças e adolescentes privados das relações interpessoais? São questões complexas
que precisam ser levadas a sério. É fundamental que se coloque em pauta os direitos
das crianças e adolescentes a uma educação escolar de qualidade, além de atentar para
os riscos de aprofundamento das desigualdades já existentes tanto na sociedade quanto
na escola. São questões desafiadoras que precisam ser pautadas. Certamente, os defen-
sores da Educação Domiciliar não estão contribuindo para qualificar a educação escolar
e nem superar os limites da escola pública.
Notas
1
É importante distinguir conservador de reacionário. O conservador tende a defender certos valores
herdados da tradição e resistir às mudanças. O reacionário tende a defender ideias e propostas que
implicam retrocessos em relação aos avanços conquistados historicamente.
2
O autor entende a anomia social como ausência de normas que produzem a coesão social. Uma
sociedade sem um mínimo de normas compartilhadas socialmente tende a desintegrar-se.
3
Para Durkheim, o objeto da Sociologia é o fato social. Ele desenvolve um conjunto de argumentos na
obra As regras do método sociológico (1987), detalhando o que entende por fato social e os
procedimentos científicos a respeito. Define fato social a partir de três características fundamentais:
exterioridade, generalidade e coerção. Fato social, conforme Durkheim, não é todo fenômeno que se
passa no interior da sociedade, mas o que possui Exterioridade (o fato social é exterior ao indivíduo
porque existe independentemente da vontade e da consciência individual, ou seja, tem materialidade),
possui generalidade (o fato social não está circunscrito a uma determinada experiência, mas é geral e
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comum à humanidade ou às sociedades) e tem poder de coerção (o fato social impõe-se sobre os
indivíduos, independente das suas vontades).
4
Uma das críticas feitas à compreensão de educação em Durkheim é que ela negaria a liberdade do
indivíduo. Essa tese não se sustenta, segundo Vares, visto que, para Durkheim, a “autoridade que o
meio social exerce é condição sine qua non para o desenvolvimento de uma personalidade autônoma”
(2001, p. 34).
5
Denominação referenciada internacionalmente para o fenômeno dos pais que promovem diretamente
a educação de seus filhos, no Brasil, mais conhecido como educação domiciliar.
6
O Projeto de Lei n. 2401/2019 (BRASIL, 2019), acompanhado da EMI 19/2019, aponta que: “a
expressão ‘educação domiciliar’ pode induzir a uma interpretação equivocada, com foco no local onde
a educação ocorre, como se fosse restrita ao ambiente do lar. Na verdade, o processo de formação dos
estudantes de famílias que optam por esse tipo de educação costuma ser realizado em locais diversos e
inclui, com frequência, visitas a bibliotecas públicas, a museus, passeios pela cidade e pela região, em
áreas urbanas ou rurais. Desse modo, é importante adotar-se o conceito baseado em seu aspecto
essencial: educação domiciliar consiste no regime de ensino de crianças e de adolescentes, dirigido
pelos pais ou por responsáveis”. Porém, essa afirmação não leva em conta as condições locais de acesso
a esses espaços e a existência deles.
7
Fundamentadas nos artigos 205 a 210 da Constituição Federal (BRASIL, 1988), artigos 1.º a 7.º da
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996) e os artigos 1.º ao 6.º e 93 a 97, do
Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990). Que definem como e o local em que a educação
será realizada.
8
Fonte: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor
=723417&filename=PEC+444/2009>. Acesso em: nov. 2022.
9
Disponível em: https://www.brasilparalelo.com.br/artigos/o-que-e-homeschooling. Acesso em: nov.
2022.
10
Disponível em: https://edbrasil.org/material-didatico-para-homeschooling/. Acesso em: 25 nov. 2022.
11
Disponível em: https://www.aned.org.br/index.php. Acesso em: 25 nov. 2022.
12
Disponível em: https://www.cenpec.org.br/wp-content/uploads/2022/05/Manifesto-17mai22-
corrigido.pdf. Acesso em: nov. 2022.
13
Disponível em: https://www.cenpec.org.br/noticias/nao-a-educacao-domiciliar. Acesso em: 23 nov.
2022.
14
Projeto de Lei número 2.401 de 2019 que dispõe sobre o exercício do direito à educação domiciliar,
altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), e a Lei nº 9.394,
de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional.
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