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Diálogo com educadores Dra. Jaqueline Moll
Jaqueline Moll
*
Angelo Vitório Cenci
**
Telmo Marcon
***
A revista Espaço Pedagógico (REP) do Programa de Pós-Graduação em Educa-
ção do Instituto de Humanidades, Ciências, Educação e criatividade (IHCEC) da
Universidade de Passo Fundo tem uma seção denominada Diálogo com Educadores e,
para cada número, há um convite dirigido a um(a) pesquisador(a) afinado com a te-
mática do dossiê. O presente dossiê trata da do direito à educação e os riscos desse
direito por conta da expansão da educação domiciliar (homeschooling). Desde que foi
criada a seção, inúmeros pesquisadores contribuíram com suas experiências e conheci-
mentos para enriquecer o próprio dossiê. Nesse contexto, gostaríamos de formular
algumas questões sobre o tema do dossiê e as polêmicas que ele gera. Para tanto, nada
melhor do que alguém que conhece profundamente as estruturas da educação brasileira
e do Ministério da Educação e que vem batalhando há anos em defesa de uma educação
integral de qualidade. Vamos conversar com a doutora Jaqueline Moll, nossa convi-
dada, sobre questões de políticas educacionaisblicas em confronto com a educação
domiciliar.
Recebido em: 01.03.2023 Aprovado em: 01.03.2023
https://doi.org/10.5335/rep.v29i3.14384
ISSN on-line: 2238-0302
*
Professora titular da Faculdade de Educação e colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências da UFRGS e
professora titular do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das
Missões, Câmpus Frederico Westphalen. Graduada em Pedagogia pelo Centro de Ensino Superior de Erechim; Especialização em
Alfabetização pela PUC/RS; Especialização em Educação Popular pela Unisinos; Mestrado em Educação pela PUC/RS e Doutorado
em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5465-178X. E-mail:
jaquelinemoll@gmail.com.
**
Graduado em Filosofia pela UPF, mestre em Filosofia pela PUC/RS. Doutorado em Filosofia pela Unicamp, pós-doutorado pela
Unicamp/Cebrap. Professor e pesquisador junto ao PPGEDU/UPF na linha de Fundamentos da Educação. Orcid:
https://orcid.org/0000-0003-0541-2197. E-mail: angelo@upf.br.
***
Graduado em Filosofia e Teologia. Mestre em educação pela Universidade de Passo Fundo, doutor em História Social pela PUC/SP,
pós-doutorado pela UFSC. Professor e pesquisador junto ao PPGEDU/UPF na linha de Políticas educacionais. Orcid:
https://orcid.org/0000-0002-9110-3210. E-mail: telmomarcon@gmail.com.
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REP Em linhas gerais, como descreverias sua trajetória como educadora-pesquisa-
dora no âmbito do debate educacional brasileiro?
Jaqueline Moll (JM) Agradeço, em primeiro lugar, o convite para dizer minha pa-
lavra nessa revista tão importante para a educação brasileira que vem de uma longa
história e de uma longa tradição no debate democrático. Eu, nesse ano de 2023, com-
pleto 40 anos de vida na educação pública. Com 18 anos comecei como professora
primária. Foi importante recuperar isso no meu memorial para professora titular na
URGS onde abordei exatamente o que vou contar aqui agora rapidamente. Eu me
torno professora aos 18 anos. Tinha feito várias experiências de pré-estágio, fiz o curso
normal, na época de ensino médio, segundo grau. A minha vida como educadora e
pesquisadora nasce da perplexidade com a diferença que havia entre a escola privada e
a escola pública. Eu tinha estudado e comecei a atuar como professora na educação
básica, primeiro ano do ensino fundamental, no segundo ano do ensino fundamental,
no terceiro ano do ensino fundamental e, também, trabalhei no quarto ano do ensino
fundamental. Tinha experiências variadas e fortes que nasceram da perplexidade frente
às condições de vida das crianças na escola privada e as crianças na escola pública. Já
no meu estágio no curso normal, mas também nos pré estágios, esse mergulho na rea-
lidade da escola pública foi me mostrando que havia ali uma diferença que não era dada
pela capacidade das crianças. Anos mais tarde através das leituras de Maria Helena
Souza Patto, já fazendo o mestrado, em 1987, vou entender toda essa visão psicologi-
zante, biologizante, que vai culpabilizando as crianças e as famílias de que eles são
pessoas com menos capacidade. Ao contrário, eram crianças ávidas por conhecer temas,
livros, literatura, mas a limitação do ambiente, dos professores e da vida delas é que
impunha um obstáculo quase intransponível. Eu acho importante recuperar isso por-
que eu vou me fazendo e me tornando professora e pesquisadora pela perplexidade que
eu enxergo como normalista, nos pré estágios, nos estágios. Eu vou trabalhar numa
escola privada e reacendo todas as minhas memórias. Eu fiz o ensino médio numa es-
cola pública, mas o fundamental eu fiz numa escola católica na minha cidade. Era uma
escola de irmãs franciscanas porque eu sou de uma família que tem duas tias que são
irmãs franciscanas, uma delas ainda vive em Passo Fundo na comunidade franciscana
de Maria Auxiliadora, a irmã Maria Estelita Tonial, mestra de noviças. Eu vim dessa
tradição. A minha família fez um grande esforço e eu estudei nessa escola. Então a
diferença era muito grande nos materiais, na sala de aula, na formação dos professores,
nas relações, bem como, no trato com as pessoas e o desrespeito que eu assistia na escola
pública em relação às crianças e o que eu vivia na escola pública era algo que eu jamais
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tinha visto. É isto que me faz ser pesquisadora, isto me transformou em pesquisadora
e foi me fazendo desenvolver esta perspectiva de pergunta pelos porquês. A ciência
nasce das perguntas. Essa realidade não era dada por Deus, pelo infortúnio, pela sorte.
Era uma realidade historicamente construída. E o meu curso de pedagogia no Centro
de Ensino Superior de Erechim, não era ainda a Universidade Regional Integrada
(URI), Erechim, foi muito dialógico. Professores que vinham de uma tradição do ma-
terialismo histórico, o estudo das estruturas da sociedade, cheios de porquês. O estudo
das estruturas da sociedade e junta com isso toda a militância na juventude, nas pasto-
rais, tudo isso foi desenvolvendo uma perspectiva de perguntas sobre o mundo. A
realidade não é, mas, está sendo construída. Eu diria que isso marcou a minha vida
como pesquisadora. Daí faço o mestrado e o doutorado (minha dissertação e tese estão
publicadas), sempre discutindo a educação pública e a possibilidade de transformação
de estruturas não só desfavoráveis, mas estruturas excludentes, seletivas. Isso foi me
fazendo pesquisadora e daí está o Lattes com toda a produção desses anos todos e sem-
pre me colocando em vários lugares, como professora da educação básica, como
formadora de professores da educação básica, como gestora pública na prefeitura de
Porto Alegre e depois no Ministério da Educação de 2005 a 2013, como professora
universitária. Enfim, esses diferentes lugares foram me fazendo pesquisadora, exata-
mente ao encontro com essa realidade tão desigual e a capacidade que vai sendo
desenvolvida em mim de não naturalizar, mas de questionar as estruturas.
REP A educação pública no Brasil tem sido, de um modo geral, muito maltratada.
Do seu ponto de vista, quais são as principais razões que obstaculizam a efetivação de
uma educação pública de qualidade no país?
JM Também aqui poderíamos discorrer longamente, mas eu parto daquilo que é o
princípio que é a estrutura desigual da nossa sociedade, a estrutura escravocrata. Nós
nunca desenvolvemos,, como sociedade brasileira, a ideia de que nós somos iguais, de
que temos direitos iguais e que o direito a dignidade humana é para todas, todos e todes
e, seguramente a educação é uma das políticas fundamentais para a construção de so-
ciedades democráticas que foi embebida dessa matriz. Nós podemos ver isso no fracasso
escolar naturalizado no Brasil, as repetências, as multi repetências, as retenções, as ex-
clusões e a evasão que são naturalizadas. Milhares e milhões de meninos e meninas são
levados a reprovarem e a repetirem o ano seguinte, quando não ‘evadem’. A evasão não
é um ato voluntário. A evasão é resultado de um conjunto de fatores sociais, internos e
externos à escola. Então eu diria que o grande elemento de fundo que obstaculiza a
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efetivação de uma educação pública de qualidade é essa estrutura de sociedade, essa
sociedade que nós não conseguimos modificar.
Nós avançamos, avançamos no direito à educação, mas não avançamos naquilo
que está posto em nossa Constituição como o primeiro princípio da educação brasileira
que são as condições de igualdade para acesso e permanência na escola. Aquilo que eu
me referi na questão anterior está presente hoje. É ir para uma escola de periferia, em-
bora tenha avançado muito e as redes municipais avançaram muito, as escolas que
atendem as classes populares, trabalhadoras e pobres, não recebem do ponto de vista
da sua trajetória educativa, formativa, as mesmas condições que os filhos das classes
médias e altas recebem no Brasil. Aliás, há um fosso entre a escola pública e a escola
privada e a reforma do ensino médio mostra isso: a tentativa de manter essa dualidade,
essa diferença profunda. No entanto, do ponto de vista das razões que obstaculizam
para além desse panorama de fundo que se a gente não aborda, não avança, nós pode-
mos falar de outros elementos importantes.
A descontinuidade das políticas de educação é outro problema. Não somos ca-
pazes de avaliar para avançar. Os governos sempre recomeçam, ignorando,
desmontando, destruindo. Claro que nós tivemos um período distópico nesses últimos
quatro anos (2019-2022) que foram terríveis. Eu acho que é uma exceção. Nem o
regime militar que foi também um período terrível da história do Brasil foi tão violento
contra a educação pública quanto os últimos quatro anos, mas, na história da educação
brasileira as descontinuidades são profundas. A questão do financiamento é outro obs-
táculo porque no Brasil é preciso reconstruir a rede física ampliando sua perspectiva.
Não é possível que a gente siga no século XXI achando que dá para fazer educação
pública numa escolinha com algumas salas, sem biblioteca, sem laboratórios de ciência,
sem salas de artes, sem espaços de esportes. Então, a questão do financiamento é outro
ponto crucial. Claro que todas as dimensões dialogam entre si.
A questão da formação de professores é outra questão seríssima porque ela exige
esta relação orgânica com as práticas, com o cotidiano, com as escolas. Tivemos algu-
mas experiências no Pibid, algumas experiências na residência pedagógica, mas ainda
temos uma relação muito vertical da Universidade com as escolas e com a educação
básica. A educação básica ainda é vista como um espaço em que outros pensem para
que os que estão na escola apliquem. Essa é uma visão vertical, de algum modo ilumi-
nista, onde alguém pensa e os outros executam e isso vai aparecer no modus operandi
das políticas. Não tem como mudar as escolas desde dentro dos gabinetes. A experiência
ampla que fizemos com o Mais Educação mostrou a vitalidade quando essa relação é
orgânica, quando as escolas participam, fazem escolhas, se auto-organizam, chamam a
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comunidade e se abrem para essa perspectiva contemporânea, para esse novo para-
digma. Eu tenho falado em novo paradigma que é a construção de territórios
educadores e por aí vai. Acho que de um modo geral é isso.
REP Do seu ponto de vista que razões justificam a expansão do ideário em defesa
da educação domiciliar e que setores estão à frente desse projeto no Brasil?
JM Penso que é a mesma matriz conservadora e, no limite, reacionária, que embe-
beu a sociedade brasileira nos últimos anos. A negação de que nós precisamos aprender
a viver juntos, a negação da perspectiva de que os direitos são para todos, de que nós
somos todos iguais. A negação de tudo isso é a matriz dessa ideia de que os filhos devem
ser educados no âmbito estrito dos valores internos das famílias. O que eu diria é que
é o princípio da destruição da nossa própria possibilidade de viver em sociedade, com
a diversidade que caracteriza as sociedades. As sociedades ocidentais são muito marca-
das por perseguições profundas, violentas a tudo aquilo que não corresponde ao ideário
normativo. Nós somos sociedades abastecidas por uma visão branca, masculina, cristã,
católica, até mais estrito agora. Então, são essas as matrizes de pensamento que tenta
afastar os meninos e meninas entre si. Eu vivi uma situação muito séria no Conselho
Estadual de Educação entre 2014 e 2018. Eu estive lá e fui surpreendida quando numa
situação específica uma outra colega conselheira disse que não dava para misturar os
filhos dos pobres com os filhos dos ricos. Esse pensamento está muito presente dentro
de nós. E a educação domiciliar vai mais fundo: não dá nem para misturar eles entre si;
nem os pobres entre si e nem os ricos entre si. Portanto, uma sociedade segregada.
Então, as razões que justificam a expansão desse ideário têm a ver com essa perspectiva
não democrática e que no último domingo (08.01.2023) tomou proporções nunca vis-
tas no Brasil. Não sei se outro país viveu a destruição que nós vivemos. A destruição
física, material, daquilo que representa o poder instituído, os três poderes que são a
base da república. É por aí.
REP Que valores efetivamente mobilizam famílias a acreditarem que a educação
domiciliar vai resolver os problemas educacionais?
JM A própria negação da educação pública, a negação da possibilidade que as pes-
soas convivam com as suas diversidades. É o desejo de manter um purismo. Isso me
leva ao próprio ideário do nazismo. Como é que você mantém ‘pura’ essa sociedade.
Isso é absoluta ilusão. Quanto mais as estruturas societárias voltam-se para si mesmas e
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se fecham para as convivências, menos oxigenação elas têm. Quanto menos diversidade,
até geneticamente isso pode ser pensado, as famílias reais tendo filhos entre primos, vai
ter problemas. Evidente que não se transpõe isso para o tecido social, mas grosso modo
se pode dizer que se as pessoas só conviverem entre si, elas vão ser incapazes de produzir
qualquer tipo de empatia com o que é diferente delas. Então acho que tem mais do que
resolver problemas educacionais porque esse ideário não surge nas classes populares.
Claro que isso vai sendo disseminado quando assusta as pessoas. A escola passa a ser
vista como lugar de perigo ideológico e sexual. Evidente que há problemas na escola,
mas quanto mais público e quanto mais profissionais estiverem com as crianças, quanto
mais elas conviverem entre si, desenvolvendo valores e possibilidades de viverem juntos,
menos problemas a gente vai ter. Então esse ideário segregador é baseado numa ideia
de purismo. As crianças não serão contaminadas por ideologias, visões diferentes das
famílias. Aí entra todo esse debate sobre ideologia de gênero, que tem a ver com a
incapacidade de conviver com a diferença. Jamais em nenhum documento do Minis-
tério da Educação, em nenhuma prática do MEC nos anos que estive lá e daquilo que
estudo da educação brasileira, jamais se induziu as pessoas a essa ou aquela opção sexual,
jamais, jamais. A escola é um lugar de convivência democrática. Para mim no âmago
dessas razões está a incapacidade de viver uma experiência democrática.
REP Na sua avaliação como as religiões, particularmente as neopentecostais, inter-
ferem nos discursos em defesa da família e da educação domiciliar?
JM Eu sempre que penso nisso, nessa varredura que a sociedade brasileira vai vi-
vendo, me remeto aos anos de 1980, ao fim da teologia da libertação, a perseguição às
comunidades eclesiais de base, a punição que Leonardo Boff recebe do recém falecido,
cardeal Ratzinger, depois papa Bento XVI, ex-papa, papa emérito. É importante obser-
var o quanto essas religiões constroem um ideário antidemocrático. Eu não conheço
em profundidade as teorias que embasam o neopentecostalismo, embora na especiali-
zação em educação popular que fiz na Unisinos em 1987 e 1988 estudamos com José
Ivo Follmann que é Jesuíta, estudamos um pouco dessas religiões, mas eu não tenho
um conhecimento mais profundo para uma resposta mais robusta. O que eu entendo
das reflexões a partir das práticas dessas religiões é a perspectiva antidemocrática, pers-
pectiva acusatória em relação à escola pública, a perspectiva de heteronormatividade,
de normatividade sobre os padrões de comportamento das pessoas em relação ao vestir,
os cabelos, as práticas diárias. Creio que há uma relação muito direta de um modus
operandi antidemocrático com esse ideário religioso que começa a aparecer nas famílias.
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Mas famílias de classe popular não têm efetivas condições de ficar com seus filhos em
casa. Acho que a pandemia da Civid-19 foi uma escola, inclusive nesse sentido. A pan-
demia demonstra que é necessário que as crianças convivam entre si. O atraso cognitivo
que as crianças brasileiras foram submetidas é um atraso que se aprofunda, que não é
biológico, mas é exatamente a falta de ambiência com as coisas da escola, com as coisas
da aprendizagem que vai apontar para nós que o caminho necessário é de que as crian-
ças vivam juntas. Os pobres precisam trabalhar. Se as famílias de classe média e média
alta podem ficar com seus filhos, que não acredito que possam, e a pandemia mostrou
isso, as famílias de classe popular que estão nesse circuito de religiões neopentecostais
não tem condições de ficar com seus filhos em casa. Não tem porque trabalham todo
dia e, lógico, sabemos que precisa de um saber especializado para que possamos avançar
nas agendas educacionais e nas capacidades dessas crianças não só viverem juntas num
mundo com muitos desafios mas de se prepararem para a vida democrática, cidadania
e o mundo do trabalho.
REP Como explicar as contradições existentes no Brasil entre uma concepção de
educação cidadã e democrática, presente nas legislações pós-Constituição de 1988
sobretudo as formuladas até 2016 - e a visão de educação domiciliar?
JM Acho que essa resposta foi sendo desenvolvida nas outras questões. Essa questão
tem a ver com o problema estrutural da sociedade brasileira que tem a ver com a matriz
escravocrata, a forma como a colonização se deu desde 1500 e como as colonialidades
perpetuaram e perpetuam esse modus operandi de uma sociedade calcada nas desigual-
dades. O convencimento sobre a educação domiciliar corresponde, para quem
consegue ter um olhar macro, a perspectiva de que cada família dê para seus filhos o
stricto capital cultural com o qual convive. Não só as visões de mundo, mas os saberes
específicos que as famílias são capazes. Pensem numa tragédia dessas numa sociedade
em que milhões de jovens e adultos não concluíram sequer o ensino fundamental, nem
falo do médio.
REP Em sua avaliação quais os principais limites da educação domiciliar?
JM Aqui é importante fazer uma distinção. A Constituição é clara: a educação é
dever do Estado e das famílias. As famílias têm um papel muito importante na articu-
lação com a escola, na presença na escola, no acompanhamento de seus filhos. É lógico
que se os pais são analfabetos ou pouco escolarizados isso afeta essa relação. Os pais tem
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um papel fundamental na construção de valores, enfim, todos nós temos como refe-
rência nossos pais. Eu quando penso no meu pai, que há 30 anos não está conosco, eu
penso na honestidade, na organização, no jeito de ser, no hábito de tomar chimarrão
com ele. Foi com ele que aprendi a tomar chimarrão. Isso me acompanha, me constitui.
Então, uma coisa é o papel das famílias, que é fundamental porque nós nos construímos
a partir dessa relação. Quanto a psicanálise e a psiquiatria nos ajudam a entender os
problemas decorrentes da desestruturação nessas relações entre pais e filhos, famílias,
irmãos. Então, uma coisa é o papel que a família cumpre, mas outra coisa é a educação
domiciliar que restringe as possibilidades de interações pedagógicas e curriculares em
relação àquilo que o ambiente familiar é capaz de dar. Os limites da educação domici-
liar são muitos, sendo o principal deles, a incapacidade de preparar as crianças para a
vida em sociedade, para a vida democrática em sociedade, para os valores da vida em
sociedade, ou seja, a capacidade para resolver problemas e de estabelecer diálogo com
aqueles que são diferentes, a incapacidade de ajudar as crianças a perceberem as riquezas
do mundo cultural, étnica, estética. Então são muitos os limites.
REP Quais os principais riscos da educação domiciliar, caso os projetos dessa natu-
reza sejam aprovados em diferentes esferas (municipal, estadual e federal)?
JM Eu tenho grande esperança que os posicionamentos do Supremo Tribunal Fe-
deral (STF) sejam definidores dessa perspectiva. Acho que não se pode no âmbito
municipal ou estadual legislações que afrontem posições do STF que é, de qualquer
modo, guardião da nossa constituição. Eu penso que a retomada da democracia, a re-
tomada de um ambiente de diálogo, de convivência, o fim das exortações diárias ao
conflito que nós vivemos com o ex-presidente nos últimos quatro anos, ajude a trazer
luz para essa questão, embora eu tenha falado antes do iluminismo, acho que ele não
pode existir como parte do método da gestão das políticas públicas, mas há questões
que trazem luz sobre outras, aí usei em outro sentido isso. Acredito que vá arrefecendo
esse ânimo de uma educação domiciliar que era mantida viva e acesa por uma perspec-
tiva antidemocrática de vida em sociedade. Mas, caso avançar, os riscos são muitos e
ameaçam a própria democracia, quer dizer, necessitaríamos viver em grupos segregados
e entre grupos que não se colocam entre si.
REP Do seu ponto de vista, qual deveria ser o papel da escola no contexto brasileiro
atual?
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JM A escola no contexto atual e histórico tem como papel e função constituir um
lugar e possibilidades de vivermos juntos. Nós temos a constituição de 1988 que é clara
em relação ao pleno desenvolvimento da pessoa. O papel da escola é de ajudar a nos
desenvolvermos no âmbito das nossas diferentes dimensões. A dimensão cognitiva que,
infelizmente, está muito reduzida na escola, reduzida a uma perspectiva instrucional de
alguns conteúdos. Retomar a perspectiva do desenvolvimento cognitivo, ético, estético,
moral e político no sentido profundo de vida na polis, como repeti antes, a capacidade
de vivermos juntos. A escola é a nossa primeira república. Os franceses tem essa refe-
rência. A escola é a primeira república, a primeira experiência de vida em comunidade.
A gente saí da vida da família. Imagina na educação domiciliar você não sai nunca da
vida da família. Esse é o risco. A escola é o lugar onde aprendemos a viver juntos e nela
aprendemos a desenvolver as condições para entrar no mundo do trabalho com altivez
para resolver problemas da vida cotidiana, entender o mundo onde vivemos, para co-
nhecer as matrizes históricas da nossa civilização, para conhecer e desfrutar as belezas
do mundo, as obras de arte, para valorizar a cultura popular. A escola é o lugar dessa
construção. A nossa constituição define como objetivo da educação o desenvolvimento
pleno da pessoa e da cidadania, assim como, a preparação para o mundo do trabalho.
É disso que se trata. O trabalho nos hominiza, mas não o trabalho repetitivo e sim o
trabalho que possa criar, o trabalho em que possamos nos construir como pessoas. E
ele sempre vai se dar num ambiente de diversidade. É por isso que a educação domici-
liar impacta exatamente nos grandes objetivos da educação nacional. Eu não posso
desenvolver cidadania se eu só convivo com os meus. Eu desenvolvo cidadania nessa
convivência cidadã com os outros.
REP Como recolocar ou ressituar a questão da educação integral frente ao desmonte
educacional levado adiante por Michel Temer e pelo governo de extrema-direita de Jair
Bolsonaro?
JM É uma pergunta super relevante. Quando o governo Lula começa se reorganizar,
a andar, apesar dos episódios do último domingo (08.01.2023) com um golpe na ten-
tativa de destituir o Estado Democrático de Direito, tudo isso nos impacta e impacta a
administração federal, mas eu diria que ressituar ou recolocar a educação integral im-
plica em retomar as experiências que vinham sendo construídas e que não começaram
agora. Eu tenho insistido que sejam retomados os ideários, desde o Manifesto dos Pio-
neiros da educação nova (1932) que já marca na educação brasileira a perspectiva
democrática porque ali nós tínhamos conservadores, liberais e progressistas e que vai
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passar pela obra de Anísio Teixeira, assassinado pela ditadura militar, em 1971. Anísio
Teixeira vai propor as escolas classe, as escolas parques, com toda uma perspectiva hu-
manista, urbanística. Situemos Anísio Teixeira nas lutas democráticas tanto antes do
Estado Novo (1937-1945) quanto antes da ditadura militar de 1964. Ele é uma figura
muito importante. Paulo Freire é o patrono da educação brasileira e Anísio Teixeira
haverá de ser patrono da escola pública brasileira porque ele vai dar essa grande contri-
buição. Ele pensa uma escola grande com dia letivo completo e currículo integral. Tem
gente aí que acha que ampliando o tempo na escola e fazendo as mesmas coisas é edu-
cação integral, mas não é. Trabalhamos com esse binômio trazido por Anísio Teixeira:
o dia letivo completo e o currículo integral. Então, retomar as experiências históricas e
aqui coloco também Darcy Ribeiro com os Centros integrados de educação pública;
Maria Nilde Mascelani com os ginásios vocacionais; Paulo Freire com a ideia dos Cír-
culos de Cultura que são fundamentais. Para uma educação integral a leitura do mundo
precede a leitura da palavra. É disso que nós estamos falando. Isso constitui estrutural-
mente a educação integral. E as experiências recentes: o Programa Mais Educação que
foi uma ação indutora muito importante, entendida por alguns hoje como uma política
indutora, inclusive vai fazer uma meta no Plano Nacional de Educação. Então, é pre-
ciso retomar essas matrizes, fazer um mapeamento do que está sendo feito no Brasil
hoje, tem muitas experiências Brasil afora. Em todos os estados tem escolas com muita
riqueza pedagógica e é preciso retomar o diálogo com as comunidades. Nós não mu-
daremos as escolas públicas desde dentro das Universidades e nem de dentro dos
gabinetes das secretarias ou dos ministérios. É preciso que os gabinetes e as Universi-
dades se abram para essa riqueza que é a vida nas escolas brasileiras. Enfrentamos
mazelas e problemas porque as escolas seguem reproduzindo o próprio discurso de pa-
tologização da pobreza e de naturalização do fracasso escolar. Construir uma educação
integral implica em pensar uma escola que vive e se constrói e que incida exatamente
na construção de uma sociedade democrática, uma escola que se faz para uma sociedade
democrática, com consciência de quanto a sua ação é determinante para o jeito de como
a sociedade se organiza. Então, manter uma escola excludente e seletiva retroalimente
uma sociedade excludente e seletiva. É preciso que a escola nos ajude a construir essas
respostas juntos, juntas.