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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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v. 29, n. 3, Passo Fundo, p. 746-751, set./dez. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
ESPAÇO
PEDAGÓGICO
Editorial
Angelo Vitório Cenci
*
Telmo Marcon
**
Marcelo Doro
***
O terceiro número da revista Espaço Pedagógico de 2022 tem como tema do
dossiê Homeschooling e o direito à educação. A educação domiciliar (homeschooling) pre-
cisa ser analisada enquanto movimento, propostas, objetivos e estratégias mas, também,
por aquilo que indiretamente ela afronta: o direito à educação escolar e o dever do
Estado para com esta.
Como enunciado na ementa do dossiê, a educação como dever do Estado é muito
problemática no Brasil. Por mais de dois séculos a instrução e a catequese ficaram sob
a responsabilidade da Ordem Jesuítica que tinha uma proposta educacional calcada
numa pedagogia tradicional centrada, fundamentalmente, na memorização e na disci-
plina corporal. Uma breve leitura do Ratio Studiorum, publicado em 1599, também
conhecido como método Jesuítico, deixa clara a proposta que associa instrução com
catequese, ou seja, por mais de 200 anos a educação formal no Brasil ficou sob respon-
sabilidade de uma Ordem religiosa e não do Estado português. Com a independência
política de Portugal, em 1822, uma das iniciativas foi convocar uma Assembleia Cons-
tituinte com a função de elaborar o primeiro Ordenamento jurídico brasileiro. A
Assembleia foi dissolvida pelo Imperador Dom Pedro I por conta de conflitos e inte-
resses em disputa. A primeira Constituição brasileira, de 1824, enuncia num único
inciso o papel do Estado para com a educação: “Instrucção primaria e gratuita a todos
os Cidadãos”. Mesmo que esse enunciado tenha sido importante, na prática histórica
pouco se avançou e as aulas avulsas conviveram com as parcas iniciativas públicas leva-
das adiante.
*
Doutorado em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (2006). Graduação em Filosofia Licenciatura Plena pela
Universidade de Passo Fundo (1989). Professor da Universidade de Passo Fundo (UPF). Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0541-
2197. E-mail: angelo@upf.br. Organizador do Dossiê.
**
Doutor em História Social pela PUC de São Paulo. Pós-doutor em Educação intercultural pela UFSC. Professor, pesquisador e
orientador no Instituto de Humanidades, Ciências, Educação e Criatividade (IHCEC) da Universidade de Passo Fundo e do
PPGEDU/UPF. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-9110-3210. E-mail: telmomarcon@gmail.com.
***
Doutor em Educação pela Universidade de Passo Fundo (2019), Licenciado em Filosofia pela Universidade de Passo Fundo (2003).
Professor da Universidade de Passo Fundo (UPF). E-mail:
marcelodoro@upf.br.
Editor-chefe da Revista Espaço Pedagógico.
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Com a instauração da República, em 1889, a Educação não ganha, efetivamente,
centralidade. Enquanto vários países, tendo a França como referência, definem a edu-
cação como dever do Estado Republicano, laica e gratuita, no Brasil vive-se, ao longo
do século XX uma tensão entre a educação privada (confessional) e a educação pública.
Essa tensão transversaliza o processo constituinte de 1987-1988 e desemboca no texto
Constitucional com uma síntese precária, mas traduzindo o que foi possível. Conforme
refere o artigo 206 da Carta, a educação é dever do Estado e da família. A LDB, de
1996, reafirma essa premissa, mas inverte a ordem: a educação é dever da família e do
Estado. Qual é o problema de fundo? Um deles é o de que não chegamos a um mínimo
de consenso no Brasil sobre de quem é o dever de educar e, consequentemente, de
assegurar o direito à educação. Essa definição não suficientemente objetiva de quem é
o dever para com a Educação abre espaços para o avanço de grupos com interesses
estritamente empresariais, a expansão de escolas cívico-militares e, em 2022, com o PL
1.338/2022, a aprovação do projeto de educação domiciliar. Tais situações afrontam
os princípios básicos de uma educação republicana, tais como obrigatoriedade, laici-
dade e gratuidade.
Essas breves considerações históricas justificam a importância de pautar o tema
da educação domiciliar e o direito à educação. No entanto, outras razões de ordem
psicosociológica são fundamentais de serem postas. A constituição da personalidade e
a preparação para a vida em sociedade exigem a presença do outro. Inúmeros autores
argumentam em defesa de uma socialização significativa, especialmente para as crian-
ças. Privá-las de experiências múltiplas, que só podem ocorrer em espaços públicos, ou
seja, na convivência social, pode acarretar consequências de múltiplas naturezas. Nesse
aspecto reside o problema central que precisa ser posto para fundamentar uma crítica
à educação domiciliar. É na convivência com o diverso que aprendemos a apreciar o
quanto de riqueza as relações podem propiciar. Evidente que a convivência com o outro
pode gerar problemas e conflitos, mas dali derivam as possibilidades de crescimento,
aprendizagens e trocas significativas. Onde predomina realidades homogeneizantes a
tendência é de maior adequação, ou seja, de menos desafios colocados às crianças e
adolescentes e, pois, de processos de socialização mais heteronomizantes.
Entre os grandes desafios a serem enfrentados para a sustentação democrática nas
sociedades contemporâneas está o da formação para a democracia. Essa formação tem
formulações teóricas, mas precisa ocorrer na prática, ou seja, na convivência com outras
pessoas que pensam e tem pontos de vista distintos. A formação para um a convivência
na pluralidade, própria de toda sociedade complexa e democrática, passa pelo lento e,
por vezes, conflitivo, coletivo e necessário, processo de aprendizagem de compartilhar
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valores universalmente desejáveis, tais como a solidariedade, a cooperação e o respeito
mútuo. A escola é, sem dúvida, um espaço privilegiado para que essa formação ocorra.
Por vezes, ela se constitui no primeiro espaço em que a criança tem de confrontar va-
lores e contravalores privados e, impedi-la de realizar essa experiência, é afrontar os
direitos humanos e a capacidade indispensável de aprender construir com os outros um
mundo comum. Pode-se constatar não ser por acaso haver um grande esforço político
e pedagógico para a inclusão de pessoas com deficiências ocorra no espaço da escola
regular. Em havendo esse esforço para quem tem deficiências, por que privar outras
crianças da escola? Nesse sentido, não há qualquer argumento plausível que justifique
uma educação formal de crianças em espaços estritamente familiares. Evidente que a
família tem um papel importante de apoio, acompanhamento e sustentação dos pro-
cessos de aprendizagens das crianças. No entanto, a educação tem uma função pública
e a escola e o Estado têm um papel decisivo na sua efetivação.
Com efeito, também, a superação de dogmatismos, fanatismos, práticas autori-
tárias e fascistas ocorre pela mediação de uma educação capaz de promover uma
formação democrática e cidadã. A família tem, nesse sentido, limites. Uma escola crítica
e criativa abre um conjunto de possibilidades para que essa formação ocorra. A revista
Espaço Pedagógico quer contribuir com o debate dessas questões propiciando espaço
para a problematização da educação domiciliar e a progressiva corrosão do dever do
Estado para com a educação pública no Brasil e, por conseguinte, a crescente fragiliza-
ção do direito dos cidadãos a uma educação de qualidade em espaços públicos.
Para contribuir com o aprofundamento dessas questões contamos com a colabo-
ração de muitos pesquisadores. O primeiro artigo, intitulado Homeschooling nos Estados
Unidos: uma Abordagem dos Regulamentos e Implementação no Estado de Washington, de
autoria de Eliane Thaines Bodah, brasileira que cursou mestrado no PPGEdu da Uni-
versidade de Passo Fundo e deu continuidade aos estudos nos Estados Unidos, país
onde reside, analisa o homeschooling e a expansão dessa modalidade, especialmente no
Estado de Washington, bem como o crescente papel de pais e tutores na educação
formal das novas gerações. Através de uma revisão bibliográfica, dados estatísticos e
entrevistas, analisa como usuários desse sistema avaliam as vantagens e os desafios dessa
modalidade. As razões da expansão do homeschooling são múltiplas, mas destaca a fé e
a religião das famílias como decisivas. Evidente que a pandemia da Covid-19 contri-
buiu para a expansão dessa modalidade.
No artigo Direito à Educação no Brasil: subsídios para uma análise sobre a proposta
da educação domiciliar, Rosa e Zitkoski analisam como o homeschooling afronta o di-
reito à educação, fortalece a privatização da educação e compromete uma formação
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autônoma, crítica e dialógica dos indivíduos. Concluem afirmando que a relação indi-
víduo-sociedade é fundamental no ensino-aprendizagem, bem como para a integração
do indivíduo à sociedade.
Na sequência, o artigo de Marcon, Dourado e Bordignon, A escola como espaço
socializador: uma crítica aos limites do homeschooling, analisa a complexidade dos pro-
cessos socializadores e a importância da escola na formação individual e social. Com
base em referenciais bibliográficos e documentais fundamentam uma crítica à educação
domiciliar ao limitar o processo educativo formal ao espaço familiar. O argumento é
que a constituição do indivíduo ocorre nas interrelações que este estabelece com outras
pessoas, através dos processos de socialização. O artigo analisa as implicações pedagó-
gicas de uma educação circunscrita ao âmbito familiar e defende a tese da importância
do espaço público escolar na formação de sujeitos democráticos e cidadãos.
As práticas de judicialização no cotidiano escolar: atravessamentos entre a escola e o
conselho tutelar é o artigo de Gomes, Sangenis e Esteves. Os autores problematizam a
judicialização da vida escolar com base na análise de práticas e discursos pertinentes às
tensões entre a Escola e o Conselho tutelar. Pautam uma questão muito sensível que é
a do Conselho tutelar, um órgão não jurisdicional, “operar com base em lógicas judi-
cializantes, muitas vezes reguladas pela lógica penal”. O artigo concluiu que a lógica
judicializante e a capilarização do saber-poder jurídico geram, no espaço escolar, “ou-
tros modos de regulação e de controle”.
O artigo de Septimio e Pessoa, A juridificação da vida e o ensino domiciliar em
questão, reconhece que a educação domiciliar ganha força no Brasil atual, especialmente
com os movimentos que pleiteiam transformá-la numa política pública. Essa discussão
precisa pautar as condições da educação no país, além das premissas intrínsecas a esse
ideário. A crítica feita ancora-se em Honneth, especialmente no conceito de liberdade
e nas patologias modernas que decorrem de uma “má compreensão sobre tal conceito”.
O artigo conclui que a “prática do homeschooling não corresponde aos anseios da soci-
edade atual por se tratar de política que isola a criança e acentua as desigualdades sociais
do país, na medida em que gera um déficit no reconhecimento entre iguais”.
Na sequência, Cruz, Filho e Barreto contribuem com o artigo Lev Vygotsky: A
imagem no desenvolvimento de habilidades psíquicas influenciadas por Wundt, Köhler,
Koffka e Wertheimer. Nele, reforçam a ideia de que o conhecimento ocorre pela medi-
ação de interações e inter-relações dos indivíduos com os outros e com o ambiente.
Vygotsky é influenciado por vários pensadores e o artigo objetiva “evidenciar as con-
tribuições recebidas de outras correntes teóricas na abordagem Sociointeracionista de
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Vygotsky, destacando-se a imagem como um elemento essencial na construção do co-
nhecimento”.
O artigo de Keske e Araújo, Trabalho docente de pedagogas(os) em licenciaturas de
um Instituto Federal: Entremeios e desenvolvimento profissional, aborda o papel dos Ins-
titutos Federais (IFs) na oferta de vagas para a formação inicial de professores e os
desafios na constituição profissional destes, especialmente na área da Pedagogia. Por
força da lei, os IFs precisam ofertar, pelo menos, 20% de suas vagas para a formação
inicial de professores. O estudo analisa os desafios da formação inicial, bem como as
implicações desta para a docência.
O artigo de Betina Schuler, O cuidado com a escrita e a leitura para uma educação
filosófica na escola, aborda uma temática complexa que é a relação entre a verdade e a
subjetivação a partir de Sêneca e Foucault. Como refere a autora, baseada na inspiração
da genealogia da subjetivação, “não se trata apenas de relações de conhece-te a ti
mesmo, cuida-te de ti mesmo ou domina-te a ti mesmo”. Há um deslocamento nas
práticas de si para o “desempenha-te a ti mesmo na stultitia” que reduz a objeto de troca
e a uma pobreza narrativa. Partindo dessa problematização propõe “uma educação fi-
losófica na escola por meio de práticas de leitura e escrita como resistência a um
presente neoliberal e neoconservador que limita tais práticas”.
Guach e Vettorassi pautam um tema atual e impactante que é o ensino remoto
emergencial, decorrente da Pandemia do Covid-19. Trazem para essa discussão as con-
tribuições de Pierre Bourdieu e elementos de uma pesquisa com alunos de graduação
na Universidade Federal de Goiás (UFG) que não tinham as mesmas condições que
outros de seus colegas para acompanharem as aulas. Reconhecem a contribuição de
Bourdieu e a necessidade de “aperfeiçoar a compreensão da relação entre sucesso esco-
lar, habitus e instituições educativas, especialmente a partir de realidades que não foram
consideradas por este autor”.
O trabalho pedagógico pensado como práxis, de Ramos e Goulart, objetiva analisar
o conceito de práxis em Adolpho Sanchez Vázquez e o de prática educativa e pedagógica
baseada em Freire, destacando as diferenciações, similaridades e indissociabilidades. As
autoras concluem que “a reflexão atribui visibilidade aos conceitos de práxis e prática,
colaborando para as discussões que delineiam a perspectiva de trabalho pedagógico
como atividade social transformadora, reflexiva, libertadora e predominantemente di-
alógica”.
Manuel Gonçalves Barbosa contribui com uma importante reflexão sobre Edu-
cação, poder e resistência na era digital. Baseado nas contribuições, especialmente de
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Foucault, analisa a reconfiguração do poder na era digital e os riscos em termos indivi-
duais e sociais dessas transformações protagonizadas, basicamente, por grandes
plataformas de serviços digitais. Diante disso, problematiza o papel da educação na
construção de “atitudes defensivas relativamente a esse poder”.
Na sessão Diálogo com educadores contamos com a contribuição da educadora-
doutora Jaqueline Moll. Com uma longa trajetória no campo da educação, destaca
elementos que ressaltam a importância da criança estar na escola. Na contramão do
que propugnam os defensores da educação domiciliar, Jaqueline Moll tem uma vasta
contribuição teórico-prática vinculada à educação integral. Suas reflexões estão profun-
damente alinhadas às críticas feitas à educação domiciliar por obstaculizar que a criança
constitua-se como sujeito nas interações com outras crianças.
Por fim, apresentamos a resenha feita por Agostini e Rigoni da obra organizada
por Maria Celi Chaves Vasconcelos, Educação Domiciliar no Brasil: mo(vi)mento em
debate. Essa obra traz um conjunto de contribuições críticas(?) de educadores sobre a
educação domiciliar e o direito à educação. Essa discussão ganhou muitos adeptos no
contexto pandêmico mas, também, mostrou seus limites por conta das dificuldades
enfrentadas pelas famílias com o ensino remoto. São questões que precisam ser pauta-
das e aprofundadas com rigor acadêmico, bem como vinculadas às contribuições de
diferentes áreas do conhecimento.
Desejamos uma boa leitura.