Concepções dos alunos sobre os tensionamentos étnico-raciais na escola e na sociedade
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Concepções dos alunos sobre os tensionamentos étnico-raciais na
escola e na sociedade
Students’ conceptions of ethnic-racial tensions in school and society
Fernanda Wanderer
*
Mônica Nunes
**
Resumo
Este artigo apresenta resultados de uma pesquisa desenvolvida com o propósito de examinar enunciações de
alunos dos anos nais do ensino fundamental de uma escola pública de Estrela, RS, um município de coloniza-
ção alemã, sobre os marcadores étnico-raciais que operam na escola e na sociedade. Essas questões se poten-
cializaram, na atualidade, com a imigração haitiana presente na cidade. Os aportes teóricos que sustentam o
estudo advêm de discussões contemporâneas sobre raça e etnia, como os trabalhos de Meyer (2011), Silva (2005,
2017) e Gomes (2003). O material de pesquisa escrutinado é composto por observações de aulas e registros de
atividades pedagógicas postas em ação em uma turma do 8
o
ano do ensino fundamental. A análise mostrou a
existência de práticas discriminatórias na cidade onde vivem os discentes, em especial, em relação aos negros.
Contudo, os estudantes armam que essas práticas não se fazem presentes na escola. Além disso, os alunos ne-
gros não se identicam com sua negritude, autodenominando-se de “morenos” ou meio morenos, mostrando
que o pertencimento étnico-racial se constitui em um processo envolto em tensões que frequentemente geram
negação ou rejeição ao sentimento de pertença a um determinado grupo.
Palavras-chave: Alunos. Escola. Marcadores étnico-raciais.
Abstract
This article presents the results of a research carried out with the purpose of examining the statements of students
from the Final Years of Elementary School in a public school in Estrela, RS, a municipality of German colonization,
about ethnic and racial markers operating in school and society. These questions are potentiated, at present, with
Haitian immigration in this city. The theoretical contributions that support the study come from contemporary
discussions about race and ethnicity, such as Meyer (2011), Silva (2005, 2017) and Gomes (2003). The research ma
-
terial scrutinized consists of observations of classes and records of pedagogical activities put into action in a class
of the 8th Year of Elementary Education. The analysis showed the existence of discriminatory practices in the city
where the students live, especially in relation to blacks. On the other hand, the students arm that these practices
are not present in the school. In addition, black students do not identify with their blackness, calling themselves
“morenos” or “half brown, showing that ethnic-racial belonging constitutes a process surrounded by tensions
that often generate denial or rejection to the feeling of belonging to a particular group.
Keywords: Students. School. Ethnic-racial markers.
*
Doutora em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Professora do Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: fernandawanderer@gmail.com
**
Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Coordenadora pedagógica do Colégio Mar-
tin Luther e professora de História de Ensino Fundamental II no Colégio Sinodal Gustavo Adolfo, Brasil. E-mail:
monicanunes150@gmail.com
Recebido em 13/06/2018 – Aprovado em 23/11/2018
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v26i2.7706
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Introdução
Este artigo problematiza questões vinculadas aos tensionamentos étnico-ra-
ciais
na área da Educação. As reflexões apresentadas emergem de uma pesquisa
desenvolvida com o propósito de examinar enunciações de alunos dos anos finais
do ensino fundamental de uma escola pública de Estrela, RS, um município de
colonização alemã, sobre os marcadores étnico-raciais que operam na escola e na
sociedade, em especial as relações que se estabelecem entre brancos e negros, as
quais se potencializaram, na atualidade, com a chegada dos haitianos na referida
cidade.
Inicialmente, consideramos pertinente destacar o sentido que estamos atri-
buindo a raça e etnia. De acordo com Meyer (2011), a noção de raça passa a ser
desenvolvida no período da colonização, apresentando fortes vínculos com a área
biológica. Já o termo etnia, utilizado no período posterior à Segunda Guerra Mun-
dial, vincula-se às características produzidas por um determinado grupo e passa
a ser usado para enfatizar que os sujeitos se constituem por meio de fenômenos
históricos e sociais, afastando-se do viés biológico. A autora alerta que etnia, re-
ferindo-se às características culturais de um povo, também é um termo colocado
sob rasura, imbricado de conflitos e relações de poder. Esses conceitos são, assim,
“[...] construções que se dão no interior dos processos sociais, resultados de uma
relação de poder entre forças que se exercem tanto para a dominação como para a
resistência” (MEYER, 2011, p. 47). Cientes de que essas definições estão carrega-
das de tensionamentos, utilizamos, ao longo do texto, as expressões “raça-etnia” ou
“étnico-racial”, acompanhando Munanga (1999) e Silva (2017).
As discussões sobre raça-etnia envolvem também reflexões acerca da bran-
quitude (SCHUCMAN, 2014; SANTOS, 2018; MEINERZ; PEREIRA, 2018). Para
Schucman (2014), a branquitude pode ser considerada como uma posição em que
sujeitos brancos são privilegiados na obtenção de recursos materiais e simbólicos
em relação a outros grupos racializados, como os negros. Em sua pesquisa, foram
examinadas falas de brancos paulistanos de diferentes classes sociais, para com-
preender como o poder branco atua no cotidiano dos sujeitos. Os resultados indi-
cam que os brancos reconhecem que são privilegiados em relação aos outros grupos
raciais, mas não se responsabilizam por isso, eximindo-se da responsabilidade mo-
ral e social que envolve as relações étnico-raciais.
Apoiando-se em Schucman, Meinerz e Pereira (2018) destacam que nossa so-
ciedade é caracterizada por uma grande mistura racial, mas segue pautada pela
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branquitude como norma social. Para as autoras, “[...] branquitude se refere a um
lugar de poder, de vantagens e de acesso a privilégios nas sociedades estruturadas
racialmente, onde um grupo racial tem o poder de governar, elaborar e reelabo-
rar políticas sociais, econômicas e culturais” (MEINERZ; PEREIRA, 2018, p. 170).
Assim, sujeitos brancos passam a ser posicionados como superiores, tendo seus
saberes, seus modos de ser e de viver como padrões.
Na esteira dessas reflexões, Gomes (2003) destaca que as diferenças entre
negros e brancos foram construídas por processos culturais e sociais, estabelecen-
do-se como uma forma de classificação e hierarquização dos sujeitos. Essas hierar-
quizações se materializam nas desigualdades econômicas, sociais e educacionais
presentes em nosso país, nas quais se percebe que alguns grupos (como os negros)
estão em situações de desvantagens em relação aos brancos. Nesse sentido, segun-
do o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 1997, 57,7% dos negros
brasileiros eram pobres. Dez anos depois, eram 41,7%. Entre os brancos, o percen-
tual caiu de 28,7% para 19,7% no mesmo período. Ademais, fica evidente a desi-
gualdade econômica que se manifesta também na disparidade no acesso à educação
formal. Se olharmos para os dados sobre o analfabetismo, por exemplo, podemos
perceber que as taxas são maiores para negros do que para brancos (IPEA, 2017).
Este quadro de grandes desigualdades mobilizou, nos últimos anos, um con-
junto de medidas e ações que passaram a ser efetivadas em áreas como a Educação.
Entre elas, de acordo com Silva (2017), podemos mencionar políticas como as Dire-
trizes Curriculares Nacionais para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira
e Africana (que estabelecem a educação das relações étnico-raciais como um dos
eixos dos projetos político-pedagógicos das escolas) e a Lei nº 10.639/2003 (que ins-
titui a obrigatoriedade do ensino de história da África e da cultura afro-brasileira
na educação básica).
Recentemente, em uma entrevista a respeito dos quatorze anos da Lei nº
10.639/2003, Petronilha Beatriz Gonçalves Silva (2017) discorre sobre a questão
das relações étnico-raciais na escola. Segundo ela, é possível dizer que a preocupa-
ção dos professores com a temática étnico-racial aumentou, mas que sua abordagem
ainda depende da iniciativa individual dos docentes, não se caracterizando como
uma política. Em outro estudo, a autora afirma que abordar pedagogicamente ou
tomar como objeto de pesquisa os processos de ensinar e aprender em sociedades
compostas por variados grupos étnicos, como o Brasil, requer dos professores e
pesquisadores algumas ponderações (SILVA, 2007). Uma delas é não tomar como
“naturais” os processos e tensionamentos étnico-raciais que se fazem presentes
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nas escolas e na sociedade. Outra é não examinar tais processos apenas pelo olhar
econômico e social, mas considerar que a educação está diretamente implicada.
A pesquisa que sustentou a escrita deste artigo foi desenvolvida visando a
problematizar tensionamentos étnico-raciais que se fazem presentes na escola e na
cidade de Estrela. Estivemos atentas para examinar essas questões a partir das
visões e concepções dos estudantes. Acompanhamos, nesse processo, investigações
já realizadas sobre o tema, como as de Mello (2006), Weschenfelder (2012), Kern
(2012) e Ramos (2009, 2014), as quais discutem a temática étnico-racial apoiando-
-se em referenciais teóricos similares aos utilizados neste estudo. Contudo, o foco
delas não é, propriamente, a percepção dos alunos sobre as questões étnico-raciais,
o que, em nosso trabalho, é o ponto central.
O contexto
Nesta seção, propomo-nos a apresentar algumas reflexões sobre as relações
étnico-raciais no município de Estrela. Dessa forma, seguimos as considerações de
Veiga-Neto (2013), que, inspirado em Foucault, destaca a importância da dimensão
histórica na compreensão de uma determinada realidade. Segundo ele, desnatura-
lizar as coisas, as identidades, as diferenças, enfim, desnaturalizar os fenômenos
sociais, portanto, políticos, entendendo-os não como algo dado, mas construído his-
toricamente pelas disputas de poder, é o primeiro e necessário passo para descons-
truir aquilo que nos desagrada. Nas palavras do autor: “Saber como chegamos a
ser o que somos é condição absolutamente necessária, ainda que insuficiente, para
resistir, para desarmar, reverter, subverter o que somos e o que fazemos” (VEI-
GA-NETO, 2013, p. 7). Nesta busca de compreender “como chegamos a ser o que
somos”, recorremos a alguns elementos do passado, na tentativa de evidenciar a
constituição das diferenças entre brancos e negros na cidade.
A discussão histórica brevemente apresentada não tem a pretensão de reescre-
ver “A História” dos negros em Estrela, e, sim, rearranjar fragmentos de algumas
histórias de modo que se coloquem em evidência os tensionamentos étnico-raciais
que acompanharam este território desde o início de seu povoamento. Pesquisando
informações acerca da história dos negros no município, percebemos o que alguns
historiadores atuais relatam sobre o modo como eram tratados os negros na histo-
riografia praticada no passado. Segundo eles, os historiadores brasileiros, no final
do século XIX e início do século XX, omitiram informações sobre a resistência e a
participação do negro na história do Rio Grande do Sul. Os relatos que existem
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sobre eles dizem respeito à separação entre negros e brancos ou às suas diferenças
e não à sua contribuição à formação do município. Weschenfelder (2012, p. 72) ex-
plica esse mesmo processo quando se refere à historiografia de Santa Cruz do Sul
e Venâncio Aires (cidades do Vale do Rio Pardo): “A consolidação de uma narrativa
identitária que valorizou de sobremaneira os colonos alemães acabou por ignorar a
presença de outros grupos étnicos”.
Assim, seguindo a historiografia tradicional, a história de Estrela, como gran-
de parte dos municípios da Região do Vale do Taquari, RS, é marcada pelo processo
de colonização de imigrantes alemães (KREUTZ, 1991; RAMBO, 1994). Porém, sa-
be-se que, além destes, outros grupos étnicos contribuíram para o desenvolvimento
da região, entre eles, os negros, que, até o final do século XIX, viviam no local como
escravos (SCHIERHOLT, 2002). Após o fim da escravidão, por não terem condi-
ções de adquirir bens, grande parte dos negros fixavam suas moradias em lugares
desprezados pelos brancos e, na maioria das vezes, dependiam dos imigrantes ale-
mães, que os contratavam como mão de obra para trabalhar nas suas lavouras. Os
serviços pesados de carga e descarga nos portos, prestados pelos negros, fizeram
com que muitos seguissem os barcos e se fixassem nas proximidades de Porto Ale-
gre, reduzindo a população negra na cidade de Estrela.
Ao pesquisar as questões sociais que marcavam o município no final do século
XIX e início do século XX, Schierholt (2002) afirma que as pessoas não se reconhe-
ciam como preconceituosas, inclusive negavam que fossem. No entanto, uma série
de práticas sociais evidenciava que as ações não correspondiam a essa afirmativa,
sobretudo no que se pode verificar nos casamentos, uma vez que havia uma “pre-
venção à miscigenação”, ou seja, não há notícias de casamento que tenha ocorrido
entre negro e branca ou entre negra e branco no período.
Ao descrever os costumes da “sociedade estrelense” no tocante às diferenças
entre os espaços frequentados por brancos e negros, Schierholt (2002) afirma que
as pessoas brancas tomavam precauções para evitar contato mais íntimo com pes-
soas negras. As sociedades dos brancos não admitiam negros como sócios, como
o caso da Sociedade Ginástica de Estrela (Soges), fundada em 1906, e ainda em
funcionamento. Não sendo sócios, os negros não podiam frequentar os bailes. Toda-
via, os negros, por sua vez, eram resistentes a permitir o casamento de seus(suas)
filhos(as) com brancos(as). E, tal como os brancos, os negros tinham o seu próprio
salão de festas e bailes.
Essas tensões foram evidenciadas na pesquisa realizada por Wanderer (2014),
cujo objetivo foi analisar discursos sobre a escola produzidos por moradores da ci-
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dade de Estrela que estudaram no período da Campanha de Nacionalização (1937-
1945). Nas entrevistas realizadas pela autora, evidenciam-se enunciações de que
os alunos negros foram aceitos na escola para amenizar os efeitos da fiscalização
do governo, que exigia aulas direcionadas à promoção dos elementos nacionais sem
enaltecer outras culturas, no caso, a germânica. Naquele contexto, os negros tam-
bém eram aceitos na escola para ensinar a língua portuguesa aos colegas, os quais,
em suas famílias, só falavam em alemão. Mas, a todo instante, eram posicionados
como “burros” ou “causadores de pequenos furtos”. Apoiando-se em Hardt e Negri,
Wanderer argumenta, então, que operava um mecanismo denominado de inclusão
diferenciada, ou seja, todas as crianças (brancas e negras) frequentavam a esco-
la, entretanto, as relações entre elas, bem como o trabalho pedagógico realizado,
posicionavam de formas diferentes brancos e negros. No decorrer desse processo,
surgiram tensões étnico-raciais, as quais persistiram e posicionaram os negros em
uma situação de inferioridade perante os brancos.
Nas últimas décadas, Estrela tornou-se a segunda cidade em população do
Vale do Taquari. O censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2010),
informou uma população total de 30.619 pessoas residentes na cidade. Desse total,
27.339 declararam-se brancas; 962, pretas; 37, amarelas; 2.139, pardas; e 142, in-
dígenas. Observa-se que, dentre as pessoas negras e pardas, uma minoria ocupa
a classe média e alta da população. Os moradores negros, em sua maioria, traba-
lham como empregados domésticos, na construção civil, em ateliês de calçados e
indústrias, em que se exige mais força física e se recebe remuneração menor do
que, por exemplo, nos setores do comércio e da prestação de serviços especializados
(ANJOS, 2012).
Atualmente, percebem-se, entre os habitantes do município, tensionamentos
advindos de questões étnico-raciais que se manifestam nas relações do trabalho,
da educação e da convivência diária. Nos últimos anos, em especial, a cidade rece-
beu uma grande quantidade de imigrantes haitianos. Esse movimento migratório
aconteceu entre 2012 e 2015, em função da relativa prosperidade econômica da
região e, consequentemente, da maior demanda por mão de obra das empresas
locais. A presença desses novos habitantes não é significada da mesma forma pelos
cidadãos de Estrela. Por um lado, alguns ressaltam como positiva a possibilidade
de novos empregados e consumidores; por outro, afloram as práticas discriminató-
rias em função dos marcadores de raça-etnia.
Os estudantes que frequentam a escola na qual realizamos a parte empírica
desta investigação destacaram a existência de práticas discriminatórias contra
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os haitianos em Estrela. Nesse sentido, destacam-se os relatos de alguns desses
alunos: “[...] eles [os haitianos] estão sofrendo racismo. Eles só estão aqui porque
lá não tem como eles ficarem e conseguirem viver, né!?”; “Aqui na escola eles não
sofrem, mas eu vejo as crianças vindo pra escola de tarde e tem gente que fica
olhando. Eu acho que eles sofrem preconceito fora da escola”.
O preconceito sentido fora da escola pode ser percebido, também, pelo que se
pode interpretar, no bairro em que muitos haitianos residem. Como disse uma alu-
na, no caminho que as crianças fazem para a escola, “tem gente que fica olhando”.
Ela reconhece, nessa forma de olhar, uma forma de discriminação.
Relacionamos essa questão com o estudo de Soares e Andreola (2017), desen-
volvido com o propósito de discutir significados atribuídos à presença haitiana no
oeste catarinense, uma região marcada pela identidade branca, italiana e alemã.
Os autores analisaram como a branquitude hegemônica produz efeitos nas relações
entre moradores locais e imigrantes haitianos. Uma das dimensões destacadas no
trabalho é que a branquitude, tomada como um lugar de poder, faz com que os
negros sejam considerados indesejáveis na região cuja história supervaloriza a
presença do imigrante de origem alemã ou italiana. Além disso, os estrangeiros
haitianos são posicionados como uma espécie de ameaça à branquitude, que se faz
presente nas relações sociais e afetivas. Assim, os brancos produzem um desejo de
distanciamento da população negra, para, de certa forma, proteger seus privilégios.
Nessa direção, conforme Santos (2018), ao mencionarmos as questões sobre
racismo, estamos nos referindo a um processo dicotômico: de um lado, ficariam os
grupos racializados na sociedade (negros, ciganos, indígenas); do outro, aqueles
que se beneficiam por essa racialização, como os brancos. Dessa forma, as rela-
ções raciais devem ser examinadas não apenas pelo viés dos grupos afetados, mas
também pela perspectiva do grupo branco. Para Santos (2018, p. 553), ao descon-
siderarmos “[...] a análise do outro polo da discriminação, acabamos por confirmar
o falso discurso de que o racismo é um problema dos grupos afetados, portanto
somente eles devem ser estudados; somente eles permanecem o outro, o objeto a
ser dissecado”.
Esses tensionamentos também se fazem presentes em Estrela, como apresen-
tado brevemente nesta seção. A fim de ampliar essa discussão, realizamos uma
investigação com o propósito de analisar as enunciações de alunos dos anos finais
do ensino fundamental sobre as relações étnico-raciais presentes na escola e na
cidade.
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A produção do material empírico
A pesquisa que gerou a escrita deste artigo se caracteriza como uma investigação
de inspiração etnográfica, conduzida pela primeira autora do artigo. A emergência
da etnografia nas escolas é um fenômeno recente. Segundo Green, Dixon e Zaharlick
(2005), seu reconhecimento enquanto abordagem de pesquisa para os problemas e
as investigações pertinentes à educação iniciou na metade do século XX. As autoras
afirmam que a tarefa do etnógrafo, dentro da escola, é apontar “[...] as maneiras pelas
quais os membros do grupo estudado percebem sua realidade e seu mundo, e como,
por intermédio de suas ações (e interações) constituem seus valores, crenças, ideias
e sistemas simbólicos significativos” (GREEN; DIXON; ZAHARLICK, 2005, p. 13).
Todavia, elas fazem um alerta sobre os cuidados que se deve ter no momento
da investigação ao assumir essa abordagem de pesquisa, entre os quais estão não
entrar no ambiente escolar com uma lista de itens predefinida ou com questões e
hipóteses predeterminadas e não projetar um esquema de observação que defina
a priori todos os comportamentos ou eventos que serão registrados. As autoras
reforçam que, “[...] se o observador não se basear em teorias da cultura para di-
recionar as escolhas do que é relevante observar e registrar [...] [e] abranger sua
interpretação pessoal a respeito da atividade observada [...]” (GREEN; DIXON;
ZAHARLICK, 2005, p. 13), o pesquisador não estará se engajando em uma aborda-
gem etnográfica como percebida do ponto de vista antropológico.
Guber (2001) questiona a validade de escrever sobre o trabalho de campo etno-
gráfico no início do século XXI, considerando o fato de a etnografia ser uma “metodo-
logia artesanal”, diante de um mundo em que predomina a informática, as pesqui-
sas de opinião e a internet. A autora afirma que a importância da etnografia se faz
exatamente para evitar a relativização das perplexidades deste mundo globalizado,
e completa afirmando que a complexidade presente nas relações humanas é o que
move cada vez mais profissionais, entre os quais os pesquisadores/educadores.
No trabalho de campo que empreendemos, foram utilizadas técnicas como a
escrita em um diário de campo, observações na escola e realização de atividades pe-
dagógicas em uma turma de 8
o
ano do ensino fundamental, composta por 21 alunos.
A escolha dessa turma não foi aleatória; segundo relato da direção, ela era, dentre
as demais turmas, a que tinha o maior número de alunos negros. Cabe ressaltar
que os responsáveis por todos os estudantes assinaram o termo de consentimento
livre e esclarecido após serem informados sobre os objetivos da pesquisa, de acordo
com as normas de ética nas pesquisas em ciências humanas e sociais.
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Ao todo, foram oito meses frequentando a escola e seus espaços, entre outubro
de 2015 e dezembro de 2016. Como esse tempo não foi contínuo, podemos afirmar
que o trabalho de campo se dividiu em duas fases, complementares entre si: um pe-
ríodo de observações de aulas e de diferentes momentos do cotidiano escolar, como
recreio e sala dos professores, e a fase da realização de atividades pedagógicas
sobre as questões étnico-raciais.
Desde o início, o diário de campo esteve presente, cujo conteúdo compreen-
de descrições e relatos de conversas informais com professores e funcionários da
escola. Ao mesmo tempo, observações foram realizadas em sala de aula para que
pudéssemos conhecer melhor os alunos com os quais desenvolveríamos as ativida-
des pedagógicas. Nosso objetivo, com essas atividades, foi o de visibilizar histórias
e relatos advindos dos próprios estudantes, a partir de suas experiências com as
relações étnico-raciais na escola e na sociedade.
A primeira dessas atividades consistiu na análise de imagens projetadas por
um data-show disponível na escola. Foram apresentadas as imagens apresentadas
na Figura 1, contendo carro, celular, casa, roupas, sala de aula e placa de aprova-
ção em vestibular.
Figura 1 – Imagens da atividade
Fonte: disponível em: <http://casa.abril.com.br/tudo-sobre/casas/>. Acesso em: 27 fev. 2016.
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Os alunos foram questionados sobre o que as imagens representavam, quem
seria proprietário do que estava sendo mostrado, o que essas pessoas faziam, qual
sua descrição física, etc. É importante destacar que a escolha das imagens buscou
ir ao encontro do universo jovem e escolar para envolver os alunos. O objetivo prin-
cipal era fazê-los narrar seu modo de ver e viver o mundo, dando ênfase às questões
étnico-raciais.
Processo semelhante foi usado por Melo (2016) na produção empírica da sua
dissertação, intitulada Representações de professores e de alunos sobre a Provinha
Brasil. Como seu objetivo era analisar o que representava a Provinha Brasil na
perspectiva dos alunos, a pesquisadora criou uma ferramenta metodológica que
denominou de “aula-conversa”. Essa ferramenta consistia em um “[...] momento
que contempla toda a turma, feito na própria sala de aula e com auxílio da profes-
sora titular da turma, em que são solicitadas atividades e realizados diálogos para
interlocução entre alunos e pesquisadora” (MELO, 2016, p. 50). Essa estratégia
metodológica proporcionou um clima de confiança e produtividade para o seu obje-
to de pesquisa, crianças entre 8 e 9 anos. Em nosso estudo, o importante era tornar
o clima mais informal, para favorecer a participação dos adolescentes.
Os alunos foram muito participativos com a descrição das imagens e contri-
buíram com diferentes comentários sobre as figuras, que foram projetadas, uma a
uma, na parede. Quando apareceu o carro, por exemplo, logo um menino disse: “É
dos Velozes e Furiosos”. Outro retrucou: “Não é não, este aí é carro de gente rica dar
um rolé”. Um estudante respondeu: “Sora, posso trabalhar minha vida toda que
não vou ter um carro assim”. Ainda em relação à imagem do carro, a discussão foi
atravessada pela questão de gênero, pois uma menina disse: “Acho que este carro é
de uma mulher”. Outro aluno, nesse momento, retrucou: “Mulher não sabe dirigir
este carrão!”. Então, mais meninas intervieram na discussão e questionaram o
colega sobre o motivo pelo qual as mulheres não poderiam dirigir aquele carro.
A imagem da casa também favoreceu uma intensa discussão. Os alunos con-
cordaram que a moradia era de uma senhora, pois havia um canteiro com flores,
o que, para eles, corroborava essa interpretação. Porém, quanto à classe social da
proprietária da casa, não houve consenso: “A casa é de alguém de classe média,
pois ter uma casa própria hoje em dia é difícil”; “Acho que não, pois a casa é bem
simples, de madeira”; “Sora, a dona não tá nem aí para a aparência da casa, para
ela o importante é ter tecnologia, olha a antena da Sky”.
A segunda atividade trabalhada foi referente à discussão das imagens apre-
sentadas na Figura 2.
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Figura 2 – Rostos
Fonte: disponível em: <http://www.blogdopilako.com.br/>. Acesso em: 27 fev. 2016.
O objetivo da segunda atividade foi averiguar quais são as marcas étnico-ra-
ciais com que os alunos se identificam. Para isso, cada aluno foi convidado a se
aproximar das imagens que estavam sendo projetadas, indicar com qual daquelas
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pessoas mais se identificava e explicara o porquê da escolha. Durante a realização
dessa atividade, também houve boa participação dos jovens. Apareceram comentá-
rios como este: “Não me identifico com nenhum, pois sou bonito e aí só tem gente
feia”. Mas, quando um menino escolheu a imagem de um rapaz de pele branca,
imediatamente os colegas fizeram críticas à sua escolha: “Esse aí é muito branco,
tu é moreno, cara!”; “Nada a ver, olha a tua cor”.
Outra atividade explorou como as relações étnico-raciais são “negociadas”
na arte e na mídia. Para isso, foram projetadas imagens de personagens famo-
sos (Monalisa, Super-Homem, Mulher-Maravilha, Elsa, Harry Potter e Menino
Maluquinho), com o diferencial de que eles estavam representados por atores e
atrizes negros. As imagens integravam uma mostra, de 2016, realizada no Rio de
Janeiro, intitulada Identidade. Foi debatida a frequência com que personagens ne-
gros aparecem na arte e na mídia. Imediatamente, os estudantes perceberam que
todos os personagens estavam representados por pessoas negras e falaram: “Eles
estão afrodescendentes!”. Uma menina foi além e disse: “Sora, normalmente é o
contrário, olha na TV, os negros são pobres ou traficantes”. Na sequência, alguns
disseram: “Eles [os brancos] são mais aceitos”. Outra menina ainda disse: “Sora, a
Monalisa está bem mais bonita morena!”.
A complexidade dessa situação nos remete ao texto “Das (im)possibilidades de
se ver como anjo...”, de Meyer (2011), no qual a autora problematiza o fato de uma
menina negra de 3 anos não querer mais ir para a escola, pois, segundo relatou à
sua mãe, ela tinha descoberto que, na escola, não podia ser anjo. Meyer (2011, p.
39) lembra o peso das imagens e da linguagem visual na etapa de ensino daquela
menina e faz um questionamento: “Quantos/as de nós [professores de educação
infantil e séries iniciais] já vimos ou já trabalhamos com imagens em que os anjos
retratados não fossem meninos (ou seres assexuados) de pele muito branca, com
cabelos louros e encaracolados e olhos azuis?”. Relacionando essa questão com o
universo dos alunos que participaram desta pesquisa, podemos dizer que, muitas
vezes, eles também são impossibilitados de se identificar com as imagens projeta-
das pela mídia, como os relatos citados indicam.
A última atividade realizada envolveu uma análise do vídeo Vista minha pele.
O curta-metragem mostra a história de uma menina branca que vive entre pessoas
negras e se sente discriminada. Na história, os negros são a classe dominante, e os
brancos foram escravizados. Maria, a menina branca e pobre, estuda em um colégio
particular graças à bolsa de estudos que tem pelo fato de sua mãe ser faxineira da
escola. A maioria de seus colegas a hostilizam, pela cor de sua pele e por sua condi-
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ção social. A menina quer ser Miss Festa Junina da escola, no entanto, isso requer
um esforço enorme, que vai desde a superação da supremacia racial negra (a mídia
só apresenta modelos negros como sinônimo de beleza), passando pela resistência
de seus pais, até a aversão dos colegas e a dificuldade em vender o número reque-
rido de ingressos para seus conhecidos, em sua maioria muito pobres. Maria conta
apenas com a ajuda de sua amiga Luana, cujo pai é diplomata e, por ter morado em
países pobres e convivido com pessoas brancas, apresenta uma atitude acolhedora
para com a protagonista. Na sequência do vídeo, as duas se envolvem em uma série
de situações para alcançar seus objetivos.
Ao discutir o vídeo com os alunos, algumas falas chamaram a atenção: “A
realidade é ao contrário”; e “[...] no filme dizia que cabelo escorrido tem solução, ge-
ralmente se diz que cabelo cacheado tem solução”. Esses comentários demonstram
que os alunos percebem a discriminação existente em relação aos negros, seja pelo
tipo de cabelo, seja pela cor da pele. O filme também fez alguns alunos refletirem
sobre questões que ainda não haviam aparecido nas discussões, como: “Eu nunca
tive um professor negro”; e “[...] nunca se fala destas coisas [discriminação racial]
aqui na escola, só se o cara está muito perseguido, daí vem alguém falar na sala,
mas não lembro de ter vindo alguém”.
Com a realização dessas atividades, foi possível produzir o material de pesqui-
sa escrutinado neste estudo. A estratégia analítica utilizada para operar sobre esse
material é a análise do discurso na perspectiva de Michel Foucault. Na entrevista
sobre o lançamento da obra A arqueologia do saber, o filósofo buscou explicar quais
são os objetivos da análise do discurso, deixando claro que não se trata puramente
de descrever um discurso ou buscar fatos escondidos esperando para ser escavado.
O autor explica: “Tento, ao contrário, definir relações que estão na superfície dos
discursos; tento tornar visível o que só é invisível por estar muito na superfície das
coisas.” (FOUCAULT, 2002 apud FISCHER, 2012, p. 25).
Inspirando-se em Foucault, Fischer (2012) explica que a análise do discurso
trata basicamente da análise dos enunciados. Sobre descrever enunciados, ela afir-
ma: “[...] significa apreender as coisas ditas como acontecimentos, como algo que
irrompe num tempo e num espaço muito específicos, ou seja, no interior de uma for-
mação discursiva” (FISCHER, 2012, p. 101). E completa: “[...] esse feixe complexo
de relações [é] que ‘faz’ com que algumas coisas possam ser ditas (e recebidas como
verdadeiras) num certo momento e num lugar” (FISCHER, 2012, p. 101).
Na obra A ordem do discurso, Foucault (2009) reflete sobre os procedimentos
que estabelecem, dentre as coisas que podem ser ditas, aquilo que é verdadeiro e
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aquilo que é falso. O filósofo explica que um discurso, em si mesmo, não é verda-
deiro nem falso. O que acontece é que os discursos inventam verdades a partir de
seu vínculo com as relações de poder. Os discursos, na concepção foucaultiana, são
perpassados por lutas políticas.
Entendemos, com base em Foucault e nas reflexões de Fischer (2012) e Vei-
ga-Neto (2014), que tratar dos discursos e das relações de poder nas práticas coti-
dianas, dentro e fora da escola, é um modo de verificar como a história interpela os
sujeitos, bem como se constitui em um modo de fazer a história do nosso presente,
lançando um olhar crítico a todas as formas de sujeição do homem, especificamen-
te, nesta pesquisa, dos negros. Assim, seguindo a inspiração foucaultiana, anali-
samos as enunciações produzidas pelos alunos que integraram esta pesquisa não
no sentido de encontrar o que está oculto, mas para dar ênfase a certos enunciados
que passam a ser aceitos, transmitidos e deixam de ser questionados. O resultado
dessa operação será apresentado na próxima seção.
Relações étnico-raciais e seus tensionamentos
Analisando as enunciações dos alunos ao longo da experiência pedagógica rea-
lizada e as observações registradas no diário de campo, pudemos construir uma
analítica que evidencia de que forma operam, na escola e na sociedade, os tensio-
namentos étnico-raciais. Uma das facetas dessa analítica se refere à existência
de práticas discriminatórias na cidade onde vivem os estudantes, em especial, em
relação aos negros. Durante as atividades pedagógicas, essa questão pôde ser per-
cebida em uma discussão entre os alunos, quando foi projetada a imagem de um
carro esportivo de luxo. Um deles falou: “O carro é de um homem rico, um advoga-
do, usa terno. Se é rico e advogado, é branco”. Outro estudante exclamou: “Pode ser
preto, também”. Uma das alunas, na sequência, disse: “Pode ser uma mulher”. E,
o primeiro aluno a se manifestar, completou: “Você vê homem preto com um carro
assim andando por aí?”.
Como se pode ver, a questão gerou polêmica na turma, tanto no que diz respei-
to à raça e à etnia do condutor do veículo, quanto em relação ao seu gênero. Nesse
sentido, vemos que há um atravessamento de duas marcas discursivas fundamen-
tais: a disparidade social entre brancos e negros, evidenciada na fala: “Você vê
homem preto com um carro assim andando por aí?”; e a questão de gênero, segundo
a qual são reservados para homens e mulheres certos papéis na sociedade. Porém,
essa ideia aparece rasurada pela fala da menina: “E pode ser uma mulher”.
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Essa alusão à inferioridade dos negros na sociedade foi recorrente nos comen-
tários dos alunos ao longo das aulas observadas e das atividades desenvolvidas em
sala de aula. Algumas de suas enunciações refletem isso, como no comentário de
uma aluna negra: “Não tem motivo especial para ter racismo aqui em Estrela, mas
a gente consegue ver pela reação das pessoas quando a gente passa. Muitas vezes,
as pessoas te olham torto, ou elas começam a cochichar, ou alguma coisa assim”.
Outro estudante negro também expressou: “Eu estava junto com meu primo, que é
negro, dentro do mercado. A dona do mercado começou a nos seguir, achando que
nós ia roubar alguma coisa. Nós nos indignemos e falemos umas verdades pra ela”.
Essa última enunciação evidencia uma das principais formas de discrimina-
ção racial no Brasil, isto é, a relação entre a negritude e a marginalidade. Confor-
me a fala do aluno, ele e seu primo foram considerados potenciais ladrões apenas
pela sua aparência, no que ele destaca o fato de o “primo” ser “negro”. De acordo
com Ramos, Santana e Santana (2011, p. 13), o preconceito “[...] pode ser defini-
do, também, como uma indisposição, um julgamento prévio, negativo, que se faz
de pessoas estigmatizadas por estereótipos”. Nesse sentido, parece que o próprio
aluno se mostra capturado por essa lógica, visto que nega sua própria negritude,
ao mesmo tempo que explicita um ato discriminatório, relaciona-o à cor da pele do
primo, e não à sua própria condição racial.
Todavia, talvez mais importante do que essa possível interpretação, tem-se o
fato de esse aluno associar-se ao primo para reagir àquilo que ambos consideraram
demasiadamente ofensivo e, diante da mulher que os seguia, indignarem-se e fala-
rem “umas verdades pra ela”. Nesse ponto, fica clara sua resistência ao preconceito
racial, ao mesmo tempo em que se percebem os tensionamentos provenientes das
questões étnico-raciais na cidade onde residem.
As falas dos alunos mostram que o racismo não está associado apenas a uma
prática específica, como seguir os negros no interior de um mercado. É percebido
também nas reações das pessoas. Como afirmou um dos discentes: “As pessoas te
olham torto, ou elas começam a cochichar”. Fica evidente, portanto, uma separação
entre aqueles que apenas “passam na rua” e aqueles que, além de passar, veem-se
no direito de cochichar sobre os outros. Nesse sentido, é importante notar o quanto
o “olhar torto” e outras expressões ou gestos podem deixar marcas na identidade
dos sujeitos negros. Conforme Ramos, Santana e Santana (2011, p. 17): “É pelo
olhar do outro que me constituo como sujeito. É a qualidade desse olhar que contri-
bui para o grau de autoestima da criança [...]”, no caso, os adolescentes negros da
escola pesquisada.
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Nesse sentido, é interessante observar que, mesmo se referindo ao racismo
na sociedade, quando os alunos falavam sobre a escola, afirmavam que não há
práticas discriminatórias na instituição. Muitos expressaram que “racismo, aqui
na escola, não tem. Acho que todo mundo é aceito”. Outra aluna também se referiu
a isso quando disse: “Que eu saiba, não existe racismo na nossa escola, mas, na nos-
sa cidade, existe. Já vi várias pessoas sofrendo racismo ou algo parecido”. Assim,
poucos manifestaram que práticas racistas se fazem presentes na escola: “Racismo
existe em todo lugar, tanto na fila do supermercado, no banco, na rua, na escola, e
os exemplos é só acompanhar as notícias”.
Na mesma direção, disse uma estudante: “Na minha escola, acho que é pouco
racismo, é só quando o preto tem cabelo feio, daí acontece por isso”. Nota-se que,
nesse contexto, o racismo não diz respeito à cor da pele, mas a algo que os estudan-
tes relacionam à “estética” do cabelo. Uma situação semelhante foi encontrada por
Ramos, Santana e Santana (2011), que examinaram as formas pelas quais adoles-
centes negras lidavam com seus cabelos crespos. Grande parte delas não gostavam
de seu cabelo, e o motivo seria porque os colegas falavam mal, dizendo ser “feio”.
O cabelo, nesse sentido, parece reforçar marcas de negritude, que afastam aqueles
que têm o cabelo “feio” daqueles cujo cabelo não corresponde a essas marcas.
Podemos, por um lado, explicar a ausência de racismo na escola pelo modo
como os alunos se descrevem. Ao não se identificarem como negros, não se vê a
possibilidade, em um primeiro momento, de práticas de discriminação racial. Nisso
se encontra outra faceta da análise empreendida nesta pesquisa: os alunos não se
identificam com sua negritude, autodenominando-se de “morenos” ou “meio more-
nos”.
Nas atividades, uma das propostas era que os estudantes indicassem um dos
rostos projetados em slides com o qual se identificavam. Como já mencionado, um
aluno negro escolheu a imagem de um rapaz de pele branca, e, imediatamente, os
colegas fizeram críticas à sua escolha, dizendo: “Esse aí é muito branco, tu é more-
no, cara!”; “Nada a ver, olha tua cor”. O fato evidencia que o aluno em questão não
se identifica com a cor da pele que os outros veem que ele tem, isto é, nesse caso, a
não naturalidade da cor fica demonstrada. Também ocorreu um diálogo que merece
destaque. Os discentes deveriam se narrar, momento em que um menino disse que
era moreno, relatando: “Não sei por que me chamam de preto. Eu não sou preto,
sou moreno. Preto é quando não dá para enxergar”. Ao ser questionado se tem
alguém preto na escola, respondeu prontamente: “Tem os haitianos”.
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Percebemos, novamente, nas enunciações supracitadas, que o pertencimento
étnico-racial se constitui em um processo envolto em tensões que, frequentemente,
geram negação ou rejeição ao sentimento de pertença a um determinado grupo.
Nesse caso, mais uma vez, emerge a ideia de que os alunos da escola não são ne-
gros, e a justificativa está na comparação que estes realizam com os haitianos, cuja
cor da pele identificam como sendo “mais escura”.
Nota-se um traço bastante característico da questão racial no Brasil, onde se
criaram diversas denominações para, supostamente, referir-se às muitas configu-
rações raciais provenientes do complexo processo de miscigenação que produziu o
nosso povo. Mozart Linhares da Silva (2007), no entanto, chama a atenção para
o fato de que há, na criação dessas novas denominações, um aspecto igualmente
cultural, não relacionado apenas à cor da pele, mas contendo uma acepção que
diz respeito às representações sociais, e que, em certo sentido, indicam as tensões
étnico-raciais presentes no país. Segundo Mozart Linhares da Silva (2007, p. 72),
merecem justamente atenção as categorias “moreno(a)”, “claro(a)” ou “escuro(a)”,
porque o “[...] moreno não apenas amolece a rigidez das polarizações, mas também
implica um processo de deslizamento do ‘preto’ para o ‘branco’”. Nesse sentido,
percebe-se, nessa visão, a ideia de que ser negro é algo negativo, enquanto ser
“moreno” reduz essa negatividade.
Discutindo sobre as questões referentes a raça e etnia, Silva (2014) afirma que
a identidade não deve ser naturalizada, cristalizada, nem essencializada. Destaca
que a identidade é uma construção, refere-se a um modo de ser no mundo e estar
com os outros. O autor ressalta que é preciso evitar o essencialismo cultural, por
mais sutil que se apresente: “[...] o essencialismo cultural concebe a identidade
simplesmente como a expressão de alguma propriedade intrínseca dos diferentes
grupos étnicos e raciais. Nessa concepção a identidade, embora cultural, é vista
como fixa e absoluta” (SILVA, 2014, p. 104). Seguindo as discussões do autor, enten-
demos que as relações étnico-raciais possuem vários atravessamentos engendrados
por relações de poder que não podem, nem devem, ser reduzidos a um olhar “natu-
ralizado” sobre os modos de ser negro. Ou seja, a construção da identidade negra
passa por muitas questões como sua história de vida, sua relação com a escola e
com a sociedade.
Nesse sentido, buscamos apoio em Larrosa (2011, p. 147), quando afirma: “[...]
o sentido de quem somos está construído narrativamente [...]”. Assim, a constitui-
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ção do sujeito é um processo efetuado pelas várias narrativas feitas pelo próprio
“eu” e pelos “outros”, ao longo de suas trajetórias. As histórias de vida são tomadas
como produtoras de identidades, havendo uma relação muito estreita entre aquilo
que somos e as histórias (narrativas) que ouvimos, que lemos e que contamos. Como
se pode perceber nas enunciações dos alunos acerca dos haitianos, eles consideram
que estes são negros, mas não associam essa denominação à sua própria condição
racial, porque, ao se compararem, consideram-se “menos escuros”, portanto, não se
veem como negros.
A discussão realizada por Hardt e Negri (2004) sobre o conceito de racismo
imperial nos ajuda a compreender melhor essa não identificação de muitos alu-
nos como negros. Nas palavras dos autores, “[...] o racismo imperial, ou racismo
diferenciado, integra outros à sua ordem e então orquestra essas diferenças num
sistema de controle” (HARDT; NEGRI, 2004, p. 216). Eles utilizam o termo racismo
imperial para argumentar que, ao contrário do que imaginamos, o racismo não
diminuiu, visto que, apesar de práticas como o apartheid e a escravidão terem dei-
xado de existir, o racismo passou a adotar novas estratégias, mais sutis, infiltran-
do-se disfarçadamente em diversas práticas sociais. “O racismo não retrocedeu, e
que na realidade progrediu no mundo contemporâneo, tanto em extensão como em
intensidade. Só parece ter declinado porque suas formas e estratégias mudaram”
(HARDT; NEGRI, 2004, p. 210).
Na configuração do racismo imperial, não estamos diante de uma oposição
binária marcada pela cor da pele, e, sim, por questões que transcendem essa dife-
renciação. Para Hardt e Negri (2004, p. 213), “[...] as diferenças biológicas foram
substituídas por significadores culturais [...]. As diferenças são, portanto, não fixas
e imutáveis, mas efeitos contingentes da história social [...]”. Isso significa que a
“supremacia branca” não se configura apenas como a supremacia das pessoas de
pele branca, mas daquelas que, além disso, pensam e se comportam de “modo su-
perior”, bem como têm os valores considerados “superiores”.
Os autores explicam que, na lógica do Império, a exclusão racial emerge como
resultado da inclusão diferenciada. Nesse sentido, as práticas racistas não fun-
cionam por exclusão, pois “[...] nenhuma identidade é designada como o Outro,
ninguém é excluído do domínio, não existe lado de fora [...]” (HARDT; NEGRI,
2004, p. 215). Assim, o racismo imperial atua por inclusão e subordinação: “A su-
premacia branca funciona, de preferência, primeiro atraindo a alteridade e depois
subordinando as diferenças de acordo com graus de desvio da brancura” (HARDT;
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NEGRI, 2004, p. 215), o que se confirma quando os alunos se autodenominam como
“morenos” ou, em um grau menor de desvio da brancura, “meio morenos”.
Considerações nais
Ao encerrarmos a escrita deste artigo, remetemo-nos a uma citação de Bau-
man (2005, p. 47): “Sempre há um número demasiado deles. ‘Eles’ são os sujeitos
dos quais devia haver menos – ou, melhor ainda, nenhum. E nunca há um número
suficiente de nós. ‘Nós’ são as pessoas das quais devia haver mais”. O sociólogo
usa a expressão “nós” para se referir às pessoas que estão plenamente inseridas
no sistema econômico vigente, alcançaram sucesso profissional e boas condições
financeiras e, desse lugar na sociedade, olham para quem se encontra à margem
desse sistema econômico. Contudo, lendo atentamente suas palavras, podemos
atribuir outros sentidos para “eles” e “nós”. “Eles” poderiam ser, por exemplo, na
Europa, os refugiados de guerra, enquanto, no Brasil, poderiam ser os haitianos
ou senegaleses que migram em busca de uma vida melhor. Mas também podemos
fazer outras aproximações e identificar “eles” nas ruas, nas praças, nas periferias,
nas escolas, enfim, em muitos lugares.
Relacionando a discussão de Bauman ao contexto em que realizamos esta pes-
quisa, na cidade de Estrela, percebemos que “eles” são, entre outros, os negros que
habitam a cidade. Esse aspecto se evidenciou ao longo do período de permanência
na escola, quando os alunos foram incitados a discutir e conversar sobre os tensio-
namentos étnico-raciais, e na analítica construída a partir do referencial teórico
utilizado. O que os estudantes disseram sobre si mesmos e sobre aquilo que perce-
bem na escola e na cidade – ou seja, que em Estrela há práticas racistas, mas não
na escola – são enunciações capturadas pelo discurso segundo o qual o Brasil é um
país onde impera uma democracia racial.
Além disso, os alunos mostraram um não reconhecimento de sua negritude,
preferindo denominar-se como “morenos”. Segundo eles, negros são apenas os
haitianos, em função do tom mais escuro de sua pele. Esse aspecto corroborou as
afirmações de Mozart Linhares da Silva (2007), quando o autor menciona que, no
Brasil, há um “amolecimento” da rigidez das polarizações, o qual se materializa em
novas denominações, como é o caso de “moreno”, que apareceu na fala dos discen-
tes.
De acordo com o desenvolvido no artigo, gostaríamos de destacar algumas
reflexões sobre o lugar da escola em relação às discussões étnico-raciais. Seguin-
Fernanda Wanderer, Mônica Nunes
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do Gomes (2003), é tarefa do educador compreender o conjunto de representações
sobre o negro existente na sociedade e na escola, produzindo práticas pedagógicas
de combate às discriminações. Podemos dizer que, de alguma forma, o trabalho
pedagógico que gerou o material de pesquisa escrutinado possibilitou que os alunos
refletissem sobre si mesmos e sobre questões mais amplas, relativas à sociedade
em que vivem. A escola pós-moderna tem se configurado como um espaço de pro-
blematização das grandes “verdades”, o que leva à impossibilidade de se pensar a
educação de modo desarticulado das questões de diferença, cultura, raça, gênero
e tantas outras. Portanto, acreditamos que esta investigação contribuiu abrindo
espaço para narrativas dos alunos acerca das questões étnico-raciais.
Por fim, cabe destacar que, enquanto pesquisadoras, procuramos exercer um
constante e permanente questionamento sobre nossas ideias e concepções a respei-
to do tema investigado. Esse exercício é chamado por Veiga-Neto (2013) de hiper-
crítica. Segundo o autor, esta crítica radical é “[...] um tipo de desconstrucionismo
que faz da crítica uma prática permanente e intransigente até consigo mesma, de
modo a estranhar e desfamiliarizar o que parecia tranquilo e acordado entre todos”
(VEIGA-NETO, 2013, p. 15). A prática da hipercrítica é um exercício delicado e
complexo, uma vez que exige do pesquisador um olhar vigilante para que sua visão
de mundo não se imponha a seu objeto de pesquisa, e que suas verdades não in-
terfiram em sua análise. Da mesma forma que não podemos nos libertar de nosso
próprio modo de ver o mundo, precisamos dar voz ao modo como os outros o veem.
Foi o que buscamos realizar, tanto na condução do trabalho empírico quanto na
escrita deste artigo.
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