Educação ambiental e justiça social: reexões em tempos de solidão democrática
Este artigo está licenciado com a licença: Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Educação ambiental e justiça social: reexões em tempos de solidão democrática
Environmental education and social justice: reections in times of democratical solitude
Educación ambiental y justicia social: reexiones en tiempos de soledad democrática
Vilmar Alves Pereira
*
Simone Grohs Freire
**
Resumo
O presente texto busca reetir, criticamente, a partir da Educação Ambiental Crítica, acerca da concepção de
justiça social. Para tanto, propõe-se trazer ao debate uma perspectiva histórico-política da democracia e da ci-
dadania no cenário brasileiro como possibilidades não apenas de compreensão do atual cenário posto, como
também de uma releitura das relações socioambientais, que denem a realidade contemporânea. Este diálogo
tem como base a concepção hermenêutica de Gadamer, enquanto um processo universal do compreender que
problematiza o não dito, oferecendo uma perspectiva de abertura, para que se possa pensar sobre nós mesmos
e sobre qual é o nosso lugar no mundo. Espera-se, ao nal, ter promovido uma reexão crítica e dialógica acerca
da realidade para uma ação em busca de justiça social, ainda tão negada.
Palavras-chave: Cidadania. Educação ambiental. Justiça social.
Abstract
The present text seeks to critically reect, from the point of view of Critical Environmental Education, about the
conception of Social Justice. Therefore, a historical-political perspective of democracy and citizenship in the Bra-
zilian scenario is brought up to the debate, as a possibility not only for understanding the current scenario, but
also as a re-reading of the socio-environmental relations that dene contemporary reality. This dialogue is based
on Gadamers hermeneutic conception of a universal process of understanding which problematizes the unsaid’,
oering a perspective of openness so that we can think about ourselves and about our place in the world. In the
end, it is hoped to have promoted a critical and dialogic rethinking of reality so that one can act in search of a
social justice still extremely denied.
Keywords: Citizenship. Environmental education. Social justice.
*
Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Coordenador e pesquisador no Programa
de Pós-Graduação em Educação Ambiental da Universidade Federal do Rio Grande. Bolsista de Produtividade em
Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientíco e Tecnológico, nível 2. Brasil. ORCID: 0000-0003-2548-
5086. E-mail: vilmar1972@gmail.com
**
Doutora em Educação Ambiental pela Universidade Federal do Rio Grande. Professora da Faculdade de Direito e do
Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental da Universidade Federal do Rio Grande. Brasil. ORCID: 0000-
0003-3566-0669. E-mail: simonefreire@furg.br
Recebido em 25/03/2019 – Aprovado em 01/07/2019
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v26i3.9325
Vilmar Alves Pereira, Simone Grohs Freire
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Resumen
El presente texto busca reexionar, críticamente, desde la Educación Ambiental Crítica, acerca de la concepción
de la Justicia Social. Por lo tanto, se propone llevar al debate una perspectiva histórico-política de la democracia
y de la ciudadanía en el escenario brasileño, como posibilidades no sólo de comprensión del actual escenario
puesto, sino también de una relectura de las relaciones socioambientales que denen la realidad contemporá-
nea. Este diálogo tiene como base la concepción hermenéutica de Gadamer, mientras que un proceso universal
de comprender que problematiza lo no dicho”, ofreciendo una perspectiva de apertura, para que podamos pen-
sar en nosotros mismos y en cuál es nuestro lugar en el mundo. Al nal, se espera haber promovido un replantea-
miento crítico y dialógico de la realidad, para que se pueda actuar en busca de una justicia social aún tan negada.
Palabras clave: Educación Ambiental. Ciudadanía. Justicia social.
Introdução
Estes são tempos marcadamente de inúmeras injustiças sociais; tempos em
que as racionalidades únicas fundamentalistas buscam encolher os avanços demo-
cráticos em todas as esferas. Aqueles avanços conquistados com muita organização
e luta, no campo das questões sociais, estão agora sendo violentamente ameaçados.
Ancorada no discurso de que as políticas sociais cometeram exageros por permiti-
rem o reconhecimento de milhares de brasileiros que se encontravam e se encon-
tram na inviabilidade, a lógica hegemônica da extrema direita reapresenta suas
faces, buscando mais um retorno a posturas de adestramento e domesticação do
que possibilidades emancipatórias.
No que concerne ao campo e às conquistadas da Educação Ambiental (EA), são
mais de 30 anos de lutas, para que as questões voltadas à EA fossem reconhecidas
e, posteriormente, passassem a integrar as diretrizes curriculares de ensino em to-
dos os seus níveis. Como resultados dessa luta, destacam-se: 1) a Política Nacional
do Meio Ambiente, de 1981; 2) a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional,
de 1996, que reconhece a EA; 3) a Lei nº 9.795, de 27 de abril de 1999, regulamen-
tada pelo Decreto nº 4.281, de 25 de junho de 2002, que dispõe, especificamente,
sobre a EA e instituiu a Política Nacional de Educação Ambiental (PNEA) e seu
órgão gestor; 4) as resoluções do Conselho Nacional de Educação, como a n° 2/2012,
que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Ambiental, e
a nº 2/2015, que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação
Inicial e a Formação Continuada de Professores, entre muitas outras normativas
que vêm sendo construídas, participativamente, pela larga comunidade de educa-
dores ambientais. Na atual conjuntura, vivem-se períodos de intensa preocupação,
para manter as referidas garantias, diante do discurso e de práticas deste governo.
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Em recente movimento internacional, educadores ambientais de todo o mundo
se posicionaram, por meio de uma carta endereçada aos ministros da educação e
do meio ambiente, contra algumas medidas do atual governo, que geram injustiças
à nossa história e às nossas garantias. De modo geral, o documento critica a miti
-
gação do papel da EA no Decreto nº 9.665/2019, que a vincula a uma secretaria do
ecoturismo, voltada para simples campanha de conscientização ambiental. Também
limita o reconhecimento da EA como tema transversal, além de restringi-la à edu
-
cação básica, por meio do Decreto nº 9.665/2019. Preocupa, igualmente, o fato de os
Decretos nº 9.665/2019 e nº 9.672/2019 não fazerem menção à Lei nº 9.795/1999, a
qual define a PNEA e as atribuições do Poder Público em todos os níveis, especifica
-
mente do Ministério do Meio Ambiente e do Ministério da Educação. Esses são ape-
nas alguns sinais de que a democracia brasileira se encontra em risco, e, de modo
geral, pode-se estar comprometendo a dignidade humana em diferentes processos.
Desse modo, quando se fala em EA neste estudo, assume-se o horizonte de
uma Educação Ambiental Crítica, por reconhecer que neste texto se revisitam al-
guns movimentos no campo da EA, e, posteriormente, assumem-se alguns desafios
no sentido de pensar possibilidades de uma justiça socioambiental, que pela sua
natureza está relacionada ao enfrentamento de todas as tentativas de encolhimen-
to da vida digna.
Que educação ambiental? Uma análise do cenário democrático (?) brasileiro
O reconhecimento e a institucionalização da EA no cenário brasileiro se deram
a partir da década de 1990, com a criação da PNEA e, posteriormente, também
do plano infraconstitucional, com outras medidas que se somaram a essa política.
Pode-se dizer que a EA atingiu seu ponto culminante com a Constituição federal
de 1988, que, além de instaurar o modelo democrático no país, ambientalizou o sis-
tema legal, ao estabelecer o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado
como direito fundamental.
Ocorre que, vindo de uma longa tradição autoritária, a partir de 1988, o Brasil
rompe com esse modelo e inaugura uma nova tradição, a democrática. O Estado
Democrático de Direito ultrapassa a ideia de um Estado Social, porque, além de pro-
mover a igualdade formal (perante a lei), busca a concretização da igualdade mate-
rial por meio da efetivação dos direitos fundamentais. Pode-se dizer, portanto, que o
Estado Democrático de Direito é o modelo de consagração dos direitos fundamentais,
os quais, por sua vez, estão ancorados no princípio da dignidade da pessoa humana,
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objetivo fundamental da Constituição federal brasileira. Assim, a dignidade da pes-
soa humana deve ser considerada o elemento comum, unificando todos os direitos
fundamentais, enquanto esses, no que lhes diz respeito, são uma concretização do
fundamento em si. Os direitos fundamentais podem ser compreendidos como:
[...] a facultad que la norma atribuye de protección a la persona en lo referente a su vida,
a su libertad, a la igualdad, a su participación política o social, o a cualquier otro aspecto
fundamental que afecte a su desarrollo integral como persona, en una comunidad de hom-
bres libres, exigiendo el respecto de los demás hombres, de los grupos sociales y del Estado,
y con posibilidad de poner en marcha el aparato coactivo de Estado en caso de infracción
(PÉREZ LUÑO, 1979, p. 43)
1
.
Ao longo dos tempos, diversas classificações dos direitos fundamentais foram
desenvolvidas doutrinariamente, destacando-se a teoria geracional dos direitos
fundamentais, a qual utiliza o critério da evolução histórica para caracterizá-los e
individualizá-los. Daí a tríplice classificação desses direitos:
a) direitos fundamentais de primeira geração, os quais têm a liberdade como elemento
caracterizador; b) direitos fundamentais de segunda geração, direitos identificados com a
busca da igualdade material; c) direitos fundamentais de terceira geração, complexa estru-
tura de direitos que têm na solidariedade humana o elemento caracterizador (SCHÄFER,
2013, p. 101, grifo do autor)
2
.
De toda forma, o que importa referir, neste momento, é que os direitos funda-
mentais, ancorados na liberdade, na igualdade e, posteriormente, na solidarieda-
de, voltam-se, preponderantemente, para a proteção e a efetivação da dignidade
da pessoa humana no seu mais amplo sentido. Essa dignidade da pessoa humana,
enquanto elemento aglutinador dos direitos fundamentais, esteio teórico de uma
constituição democrática, deve ser compreendida como um dever e como um limite
da atividade estatal, razão pela qual se justifica a necessidade de uma concepção
complexa, que contemple as diversas dimensões da realidade:
Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida
em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração do Estado e da
comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais
que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano,
como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável,
além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável [sic] nos destinos da
própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devi-
do respeito aos demais seres que integram a rede da vida (SARLET, 2012, p. 52).
Esta definição ressalta a ideia de dignidade a partir da cidadania consciente,
crítica, criativa e comprometida com o bem-viver, vinculada ao constitucionalismo
que se consolida com base na participação popular em torno dos direitos.
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Ainda é preciso dizer que, ínsito ao modelo democrático, está a norma de que
os direitos fundamentais têm primazia sob quaisquer outros direitos, sendo consi-
derados cláusulas pétreas, ou seja, os direitos já consagrados não podem ser objeto
de supressão, total ou parcial.
Assim, pode-se afirmar que esse modelo de direitos fundamentais é o motor
daquilo que se denomina interesse público, modificando o papel que o Estado de-
sempenhava até o momento: o Estado deixa de ser fim em si mesmo e passa a ser
meio de concretização dos direitos consagrados constitucionalmente.
É nesse cenário apresentado que o direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado passa, a partir de 1988, a ser considerado um direito fundamental e,
assim, uma dimensão da dignidade da pessoa humana. Essa dimensão socioam-
biental se justifica já de início pela conexão que se estabelece, como dito, entre os
direitos fundamentais e o meio ambiente, desde sua forma mais básica:
Do ponto de vista biológico, a dependência do homem em relação ao ambiente é total: o
ser humano não pode sobreviver mais do que quatro minutos sem respirar, mais de uma
semana sem beber água e mais de um mês sem se alimentar. O único local conhecido do
universo no qual o homem pode respirar, tomar água e alimentar-se é a Terra. Nessa ótica
o ambiente estaria intrinsecamente relacionado com os direitos à vida e à saúde (CARVA-
LHO, E., 2011, p. 142).
Esta dimensão socioambiental surge diante de uma crise civilizatória grave,
que pode ser chamada de ambiental, partindo-se da percepção da complexidade da
definição de meio ambiente, devendo ser considerados os sujeitos, suas percepções
e suas crenças neste processo de conceituação, uma vez que sua compreensão é in-
dispensável para a apreensão das diferentes percepções do que seja meio ambiente
em diferentes grupos. Nesse sentido, o Programa Nacional de Educação Ambiental
(Pronea) estabeleceu, entre seus princípios,
[...] a concepção de meio ambiente em sua totalidade, considerando a interdependência
sistêmica entre o meio natural e construído, o socioeconômico e o cultural, o físico e o espi-
ritual, sob o enfoque da sustentabilidade (BRASIL, 2005).
Registre-se que a sustentabilidade apresenta-se como um processo que se
preocupa em contemplar as dimensões econômica e cultural, integrando estas a:
[…] subsistência (garantindo a existência biológica); proteção; afeto; criação; produção;
reprodução biológica; participação na vida social; identidade e liberdade. Portanto, sus-
tentável não é o processo que apenas se preocupa com uma das duas dimensões, mas que
contempla ambas, o que é um enorme desafio diante de uma sociedade que prima pelos
interesses econômicos acima dos demais (LOUREIRO, 2012. p. 56).
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Nessa linha, são encontradas definições diversas de meio ambiente, confor-
me se esteja tratando do viés biológico, psicológico, econômico ou, ainda, jurídico.
Defende-se que é preciso pensar o meio ambiente em sua complexidade, a partir
de uma abordagem integradora dos diversos aspectos políticos, éticos, sociais, tec-
nológicos, científicos, culturais, econômicos e ecológicos. É nesse sentido também
que deve ser lido o artigo 225, caput da Constituição federal, o qual estabelece que
Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo
e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever
de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações (BRASIL, 1988).
Ao constitucionalizar tal direito, o legislador constituinte reconheceu a viabili-
dade do preceito de estabelecer um direito fundamental; eis que, nos termos postos,
o direito ao meio ambiente equilibrado é direito essencial, verdadeiro desdobra-
mento do direito à vida. Ou seja, há uma inexorável relação entre as condições
ambientais necessárias à vida e a proteção dos valores ambientais. Assim, pode-se
entender o meio ambiente como o conjunto das relações que fomentam e possibili-
tam a vida em todas as suas formas, porque é importante interpretar a dignidade
da pessoa humana para além do olhar antropocêntrico que marca a legislação bra-
sileira, alargando-se o espectro jurídico para qualquer forma de vida.
Além disso, a ideia de dignidade enquanto uma qualidade especial do ser hu-
mano – herança teórica de Kant, para quem a dignidade, sendo comum a todos,
torna todos iguais – não se sustenta mais. Uma análise das relações sociais, eco-
nômicas e políticas mostra que a dignidade não se distribui igualmente, mas, pelo
contrário, considerando outras questões valorativas, que envolvem, em apertada
síntese, disputas de poder e a consequente lesão aos direitos fundamentais.
Nesse sentido, a própria ideia de dignidade, enquanto inerente a todo ser hu-
mano, é contraditória, o que revela um processo de tensão, uma vez que o fato de
a Constituição federal estabelecer a dignidade da pessoa humana e, ao mesmo
tempo, os direitos fundamentais para todos não garante o efetivo acesso a esses
direitos. Logo, para que se dê esse acesso, é preciso ocorrer o tensionamento en-
tre duas partes, do próprio sujeito, que se vê capaz de realizar os direitos, e da
sociedade, que também vê no sujeito sua aptidão para o exercício desses direitos
(STRELHOW, 2016). Há que se reconhecer que, para que esse tensionamento ocor-
ra, faz-se necessário um processo de tomada de consciência que só pode acontecer
dentro de um espaço de autonomia e liberdade.
Por essa razão, é que se defende que a ideia de dignidade deve estar relacio-
nada à participação do sujeito de direitos em seus ambientes de forma reflexiva e
crítica, espaço esse que se deve pautar por autonomia e liberdade.
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A EA traz as condições de possibilidade necessárias para que se promova esse
espaço, até porque a EA é também, na perspectiva proposta, uma educação popu-
lar, uma vez que ela “deve ser libertadora, incentivar o lado crítico e dialógico para
que todos tenham as mesmas oportunidades e acesso às informações” (PEREIRA;
ALVARENGA; MARQUES, 2003, p. 191). Assim, para que se possa compreender a
EA como esse espaço dialógico e crítico, é preciso também pensá-la na perspectiva
da dignidade e dos direitos fundamentais.
No entanto, no Brasil, parece que o debate político da EA ainda não atingiu
a expressão necessária, uma vez que se tem a impressão da ideia generalizada de
que a EA se preocupa em promover uma mudança de comportamento individualis-
ta, como é o caso da reciclagem ou do controle do uso de água domiciliar, que são
práticas não menos importantes, mas de reduzido poder emancipatório, uma vez
que não realizam a transformação no conhecimento e na atuação social.
Por essa razão, parte-se, neste artigo, da concepção de uma EA emancipatória,
como “instância formativa de sujeitos sociais, isto é, autores da própria história”
(CARVALHO, I., 2011, p. 156). É uma educação voltada para colaborar com o sujeito,
a fim de que reflita, criticamente, sobre as questões socioambientais e, assim, atue
sobre elas. Propõe-se, portanto, pensar a EA em uma perspectiva crítica, que é a “de
incluir uma dimensão social na questão ambiental que confere um posicionamento
político, frente aos dilemas que a humanidade sofre” (DIAS, 2015, p. 125). Trata-se,
assim, de um processo sociopolítico, cultural e pedagógico, voltado à cidadania.
Em outra perspectiva, pode-se dizer que o que se pretende é revigorar o sen-
tido do ser a partir de uma ontologia hermenêutica na EA, retomando outros sen-
tidos colonizados pela racionalidade instrumental (PEREIRA, 2016). Isso significa
que, para além de um espaço/processo permanente para compreender e interpretar
o mundo, a EA se apresenta também como um modo de ser. Assim, “a EA deve estar
relacionada não somente com a reconstrução social para aliviar a exploração dos
recursos naturais, mas também para evitar as injustiças sociais no processo dessa
reconstrução” (SATO, 1997, p. 30).
No entanto, entende-se, nesta perspectiva, que a cidadania é meio – e não
meta –, a ser construída a partir do processo de EA. Jacobi (2006, p. 431) comenta
que, quando se pensa a EA voltada ao exercício da cidadania, o que se pretende é a
consolidação de sujeitos cidadãos, isto é,
O desafio do fortalecimento da cidadania para a população como um todo, e não para um
grupo restrito, se concretiza a partir da possibilidade de cada pessoa ser portadora de direi-
tos e deveres e se converter em ator co-responsável na defesa da qualidade de vida.
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Entende-se, nessa toada, que destacar a dimensão política que se propicia a
partir do espaço da EA desvela a necessidade de se pensar acerca do compromisso
social com o bem comum, o que significa:
[...] tomar partido frente à realidade social, não permanecer indiferente diante da injus-
tiça, da liberdade desprezada, dos direitos humanos violados, do trabalhador explorado;
descobrir nos estudantes o gosto pela liberdade de espírito e despertar neles a vontade
de resolver os problemas em conjunto, estimulando-os a desenvolver o sentimento de que
são responsáveis pelo mundo e pelo seu destino, encaminhando-os a uma ação militante
(GUTIÉRREZ, 1984, p. 13).
Dessa forma, uma EA é definida como um compromisso político e ético do
indivíduo consigo mesmo, com o outro e com o meio ambiente, uma EA cidadã.
A escolha da Educação Ambiental Crítica se apresenta como a única, tendo em
vista a necessidade de refletir acerca dos aspectos socioambientais das relações
humanas, isto é, das relações estabelecidas entre os indivíduos e com o ambiente
onde se inserem, para compreender, refletir criticamente e agir. Trata-se da crítica
à racionalidade instrumental, de uma virada epistemológica, enfim, de um projeto
emancipatório.
É por essa razão que se defende que a Educação Ambiental Crítica é um pro-
cesso educativo que se volta para a cidadania, fornecendo “os elementos para a for-
mação de um sujeito capaz tanto de identificar a dimensão conflituosa das relações
sociais que se expressam em torno da questão ambiental quanto de posicionar-se
diante desta” (CARVALHO, I., 2011, p. 163).
Mas, afinal, a questão que se coloca é por que esta EA, que traz as condições de
possibilidade para a consolidação da cidadania, no Brasil, anda a passos vagarosos.
Para que se compreenda esse dilema ético-político, é preciso entender o caminho da
cidadania no Brasil.
A subcidadania no Brasil como óbice à consolidação democrática
O conceito de cidadania, pode-se dizer, é um conceito histórico e complexo,
uma vez que envolve múltiplas dimensões, e, ainda, deve ser analisado de acordo
com o tempo e o espaço em que é considerado. Arendt já afirmava que a cidadania
poderia ser definida como
O direito a ter direitos, pois a igualdade em dignidade e direitos dos seres humanos não é
um dado. É um construído da convivência coletiva, que requer o acesso ao espaço público.
É este acesso ao espaço público que permite a construção de um mundo comum através do
processo de asserção dos direitos humanos (1989, p. 31).
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De certo modo, pode-se dizer que o conceito de cidadania está ligado aos di-
reitos e aos deveres que definem a vida em sociedade. Especialmente nos séculos
XVIII e XIX, na modernidade, a cidadania deriva do pacto constitucional que esta-
belece a sociedade política e, a partir disso, o vínculo entre os indivíduos, o Estado
e a democracia. Não é por outro motivo que Bobbio (2004, p. 21) irá afirmar que “a
democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhes
são reconhecidos alguns direitos fundamentais”. Isso porque, no período após a
Segunda Guerra Mundial, o reconhecimento de direitos fundamentais, por meio da
promoção de políticas públicas pertinentes, tem sido um critério de análise acerca
da concretização da dignidade da pessoa humana.
Entretanto, como já foi dito, o fato de serem os direitos fundamentais consti-
tucionalmente garantidos não significa sua aderência à realidade. No Brasil, isso
fica muito claro. O déficit de concretização dos direitos fundamentais e, por con-
sequência, da dignidade da pessoa humana e do próprio modelo democrático está
colocado há muito no cenário nacional, apesar da Constituição federal, vigente há
mais de trinta anos.
Ocorre que o processo de construção da cidadania no Brasil se deu às avessas.
Historicamente, estabeleceu-se no país um projeto societário de índole conservado-
ra e autoritária, tendo, desde sempre, as decisões políticas importantes – como a
própria independência e a proclamação da República – sido tomadas por uma elite
dominante, e não por uma ruptura revolucionária, como em muitos outros países.
Assim, o brasileiro não se comportava como um cidadão, mas como um servo sub-
serviente e dependente do poder instituído.
Isso fica ainda mais claro se se compreender qual é a concepção de um cidadão
pleno. Doutrinariamente, diz-se que se considera cidadão pleno aquele indivíduo
dotado de três dimensões de direitos: civis, políticos e sociais. Os direitos civis es-
tão relacionados com a ideia de liberdade individual, sendo, portanto, os direitos
à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade, etc. Os direitos políticos têm como
fundamento a ideia de autogoverno e se consubstanciam na participação do ci-
dadão nas decisões acerca da sociedade em que se insere. E, por fim, os direitos
sociais, cujo fundamento é a justiça social, garantem a participação dos cidadãos
na riqueza coletiva, concretizada na educação, no trabalho, na saúde, etc.
T. S. Marshall (1967), autor inglês que estudou o fenômeno da cidadania espe-
cialmente na Inglaterra, apontou que essas dimensões, para além de uma ordem
cronológica, guardam uma sequência lógica. Ou seja, os direitos políticos, para que
ocorram, dependem da existência prévia dos direitos civis; eis que não há partici-
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pação na vida política sem que antes se garanta a liberdade individual. Por sua
vez, os direitos sociais também dependem da existência prévia dos direitos políticos
e civis, já que se voltam à redução das desigualdades e à garantia de um mínimo
bem-estar social. Dessa forma, direitos sociais sem a consolidação anterior de di-
reitos civis e políticos tendem a reproduzir um modelo autoritário. Nas palavras de
José Murilo de Carvalho (2015, p. 220):
Na sequência inglesa, havia uma lógica que reforçava a convicção democrática. As liber-
dades civis vieram primeiro, garantidas por um Judiciário cada vez mais independente
do Executivo. Com base no exercício das liberdades, expandiram-se os direitos políticos
consolidados pelos partidos e pelo Legislativo. Finalmente, pela ação dos partidos e do
Congresso, votaram-se os direitos sociais, postos em prática pelo Executivo. A base de tudo
eram as liberdades civis. A participação política era destinada em boa parte a garantir
essas liberdades. Os direitos sociais eram menos óbvios e até certo ponto considerados
incompatíveis com os direitos civis e políticos […]. Só mais tarde esses direitos passaram a
ser considerados compatíveis com os outros direitos, e o cidadão pleno passou a ser aquele
que gozava de todos os direitos, civis, políticos e sociais.
No Brasil, a construção da cidadania, todavia, não se deu dentro dessa se-
quência. Aqui, os direitos sociais tiveram mais ênfase e precederam os demais,
ressaltando-se que esses foram estabelecidos em ambientes políticos, no mínimo,
contraditórios. Nesse sentido, Carvalho (2015, p. 219) expõe que, inicialmente, fo-
ram definidos os direitos sociais, “implantados em período de supressão dos direi-
tos políticos e de redução dos direitos civis por um ditador que se tornou popular”.
Num segundo momento, surgiram os direitos políticos, também durante a dita-
dura, quando “os órgãos de representação política foram transformados em peça
decorativa do regime” (CARVALHO, 2015, p. 219). Por último, fechando a inversão
da proposta de Marshall, revelam-se os direitos civis, dos quais muitos ainda con-
tinuam inacessíveis a uma grande camada da população.
Santos (2013, p. 119) já havia questionado se “há cidadãos neste país?”, apon-
tando, em seguida, que há uma cidadania mutilada, verdadeira forma de “não ci-
dadania”: “deixado ao quase exclusivo jogo do mercado, o espaço vivido consagra
desigualdades e injustiças e termina por ser, em sua maior parte, um espaço sem
cidadãos”. É diante desse quadro desolador que a cidadania no Brasil precisa ser
pensada e dialogada hermeneuticamente nesse espaço de EA. Não há como negar
as escolhas históricas feitas, até porque são elas que hoje se traduzem nas limita-
ções sociais do país.
O Estado Democrático de Direito, como modelo que prioriza os direitos funda-
mentais, pressupõe uma cidadania atuante, em que o cidadão se reconheça apto a
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reivindicar perante o governo, participando no exercício do poder político. Isso se
dá, exatamente, pela garantia e pela concretização dos direitos fundamentais que
asseguram o exercício da cidadania plena.
Destacam-se os chamados direitos de solidariedade ou fraternidade, os quais
traduzem a massificação social vigente e os conflitos advindos dessa situação, uma
vez que “não se destinam a pessoas determinadas ou a grupos de pessoas, mas têm
por destinatário toda a coletividade, em sua acepção difusa, como o direito à paz, ao
meio ambiente, ao patrimônio comum da humanidade” (SCHÄFER, 2013, p. 56).
Enfim, o Estado Democrático de Direito deve estabelecer as condições institu-
cionais que assegurem a cidadania. Ora, a EA se constrói a partir da conscientização
da população sobre as questões socioambientais e o incentivo à participação política
em todas as suas dimensões. Essa participação é o exercício da cidadania. Ou seja, a
EA é peça fundamental, porque permite, por meio da mobilização do indivíduo, des-
velar seu papel dentro da sociedade, revelando que está apto a atuar coletivamente
e exercer a cidadania, não só participando dos processos decisórios, mas também:
[...] tornando-se capaz de construir vínculos fortes e estáveis entre os membros de sua co-
munidade, tendo por fundamentos a unidade social, a aceitação, a solidariedade e o senso de
um destino comum, porque nada adiantaria ser cidadão sem a perspectiva ou possibilidade
de pôr em prática essa prerrogativa: a de exercer a cidadania (COSTA; TERRA, 2007, p. 48).
Portanto, pode-se dizer que o exercício da cidadania, possibilitado a partir do
espaço da EA, agrega ainda outro elemento indispensável: a solidariedade social,
a qual diz respeito “à relação de todas as partes de um todo, entre si e cada um
perante o conjunto de todas elas” (COMPARATO, 2006, p. 577). Assim, a ideia de
solidariedade está imbricada com a de comunidade, na perspectiva de pertencer e
compartilhar, o que Casalta Nabais (2005, p. 84) traduz nas seguintes palavras:
A solidariedade pode ser entendida quer em sentido objetivo, em que se alude à relação
de pertença e, por conseguinte, de partilha e de corresponsabilidade que liga cada um dos
indivíduos a sorte e vicissitudes dos demais membros da comunidade, quer em sentido sub-
jectivo e de ética social, em que a solidariedade exprime o sentimento, a consciência dessa
mesma pertença à comunidade.
A solidariedade social, nesse sentido, de pertença, em que a harmonia social
depende da preocupação de cada um com todos, é o elemento justificador da legi-
timidade de um Estado socialmente justo que efetivamente pugne pela dignidade
da pessoa humana, concretizada, por sua vez, pelos direitos fundamentais consti-
tucionalmente consagrados, tudo com o fim de promover a justiça social, da qual é
instrumento a EA.
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A educação ambiental como condição de possibilidade da justiça social
Não restam dúvidas de que o cenário de desigualdade no Brasil, assim como
no resto do mundo, é avassalador. José Bonifácio afirmou em representação envia-
da à Assembleia Constituinte de 1823 que “a escravidão era um câncer que corroía
nossa vida cívica e impedia a construção da nação” (CARVALHO, 2015, p. 228).
Nos tempos atuais, pode-se dizer que é a desigualdade que impede a consolidação
da democracia.
O Brasil está entre os países mais desiguais, situação agravada por déficits em
matéria de direitos econômicos e sociais. Em estudo produzido pela Oxfam Brasil
(2017), entre os dados apurados, percebeu-se que níveis extremos de desigualdade
econômica coexistem com pobreza generalizada: a concentração de renda do 1%
dos brasileiros no topo é a maior do mundo. Os seis brasileiros, todos homens, mais
ricos têm a mesma riqueza que os 50% mais pobres da população. Enquanto isso,
afirma o estudo, 16 milhões vivem na pobreza, e mais de 50% estão vulneráveis a
entrar na pobreza. A tabela seguinte ilustra este cenário:
Tabela 1 – A desigualdade econômica
Fonte: Oxfam Brasil (2017).
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Este contexto de desigualdade econômica somado às medidas de austeridade,
que foram adotadas pelo governo nos últimos tempos, aumentam ainda mais a
desigualdade e a miséria, especialmente porque os maiores cortes orçamentários
afetaram sobremaneira os direitos humanos, entre outros, conforme se pode obser-
var nas variações orçamentárias nominais de programas selecionados do Brasil, no
período compreendido entre 2014 e 2017:
Figura 1 – A queda de investimentos nas políticas públicas sociais
Fonte: Oxfam Brasil (2017).
Aliás, o cenário futuro não é promissor, uma vez que o teto de gastos estabe-
lecido por estas medidas de austeridade irá reduzir, consideravelmente, os inves-
timentos em áreas consideradas fundamentais, como a saúde e a educação. Isto
apenas confirma que são as desigualdades as verdadeiras aniquiladoras da vida
em sociedade.
É diante deste panorama, portanto, que é preciso pensar a justiça social. Isso
porque a medida da justiça social, a qual admite variadas interpretações, mesmo
no campo teórico, é a igualdade, valor que orienta políticas para a construção de
uma sociedade mais solidária, justa e livre. Este valor, por sua vez, é conquistado
pelo agir transformador dos agentes sociais em seus campos correspondentes, uma
vez que a igualdade diante da lei não é suficiente, porque significa tão somente a
obrigatoriedade de todos de cumprir a lei, mas não problematiza a realidade de
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desigualdade posta. Não é outro o sentido da afirmação de Marx (2012) de que o
direito não teria que ser igual, mas desigual, porque as distorções promovidas pelo
modelo econômico só podem ser corrigidas pelo Estado, estando aí o Direito como
instrumento a serviço não do Estado, mas da sociedade, enquanto promotor de
uma justiça distributiva e, portanto, corretiva.
Tradicionalmente, a ideia de justiça social se traduz como distribuição justa
dos bens, como saúde, educação, liberdade, riqueza, etc. Parte-se neste estudo da
concepção de justiça como um fim do Estado, como uma norma constitucional. Jun-
kes (2005, p. 533) propõe a sistematização dos aspectos associados à noção jurídica
em quatro grupos, quais sejam:
a) grupo de preceitos relacionados preponderantemente à garantia e à promoção da digni-
dade em favor de todas as pessoas; b) grupo de preceitos relacionados preponderantemente
à garantia e à promoção do valor liberdade a todos os membros da sociedade; c) grupo de
preceitos relacionados preponderantemente à garantia e à promoção da equalização de
oportunidades a todos; d) grupo de preceitos relacionados preponderantemente à garantia
e à promoção da redução dos desequilíbrios sociais em favor dos membros ou setores mais
inferiorizados da comunidade política.
Não restam dúvidas de que dois aspectos são importantes enquanto elementos
de justiça social: a reflexão sobre os efeitos distributivos de uma estrutura institu-
cional sobre as diferentes oportunidades de vida dos membros de uma comunidade,
assim como a reflexão sobre o acordo acerca dos princípios que devem orientar
essa mesma estrutura (Miller, 1998). A grande questão, e este é o óbice, é como
transformar esse pacto teórico em ação. E é nesse momento que se defende a EA
como o espaço que estabelece as condições de possibilidade para o exercício da cida-
dania, a qual está intimamente ligada à justiça social. Até porque a EA contempla
múltiplas dimensões – ambientais, sociais, políticas, culturais – que não podem ser
obscurecidas. A EA é, assim, o espaço adequado para que se realize essa denúncia
à negligência consciente do Estado para com a questão socioambiental; enfim, para
com a dignidade da pessoa humana. Estes aspectos são muito importantes, porque,
Na poética da Educação Ambiental, a atenção à degradação ambiental muitas vezes deixa
escapar a injustiça social. Por isso é preciso reivindicar a consciência reflexiva de que toda
miséria humana está intrinsecamente relacionada com os impactos ambientais. Teremos
o enorme desafio de transformar a poética em sua dimensão política, pois a história da
civilização do Homo Sapiens já comprovou que os prejuízos dos danos ambientais recaem
sempre nas camadas economicamente desfavorecidas (SATO; PASSOS, 2006, p. 23).
É a EA uma educação política, porque questiona as certezas absolutas e dog-
máticas, comprometendo-se com uma cidadania plena na busca por uma convivên-
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cia digna entre os seres humanos e com o ambiente onde se insere. A EA, neste
panorama, apresenta-se como o espaço dialógico apto a propiciar o questionamento
dos paradigmas do conhecimento e do modelo de sociedade moderna, apresentando
a necessidade de uma racionalidade outra, “orientada por novos valores e saberes;
por modos de produção sustentados em bases ecológicas e significados culturais;
por novas formas de organização democrática” (LEFF, 1999, p. 112).
Daí porque se reforça a convicção de que a EA é um ser-com, e nesse sentido
ela é também uma educação popular, porque se constitui como um espaço para uma
prática de conscientização voltada à transformação social (PEREIRA; ALVAREN-
GA; MARQUES, 2003).
Em outras palavras, uma educação cujos conceitos podem ajudar na constru-
ção de uma sólida cidadania, ancorada numa visão crítica e transformadora, “no
sentido do desenvolvimento da ação coletiva necessária para o enfrentamento dos
conflitos socioambientais” (LAYRARGUES, 2006, p. 87-88). Enfim, uma EA que,
enquanto projeto emancipatório, cria condições para reflexão e atuação em busca
de justiça social, em que a cidadania é meio para essa concretização que há muito
se anseia.
Considerações nais
A partir dos argumentos apresentados neste texto, observou-se que é a EA um
espaço político adequado para que se estabeleçam as reflexões e o agir necessários
para a construção de uma outra realidade. É, portanto, um espaço para a concreti-
zação da justiça social.
Não mais tendo por base uma concepção de falso equilíbrio, mas reconhecendo
as contradições e os conflitos éticos, políticos e socioambientais, acredita-se que a
Educação Ambiental Crítica pode contribuir não apenas no reconhecimento de ga-
rantias e lutas, mas também no sentido que essas políticas assumiram e assumem
em defesa da vida.
Assim como Paulo Freire, quando do seu retorno do exílio, acredita-se que
é preciso reaprender o Brasil pós-golpe de 2016. Nesse esforço hermenêutico de
reaprendizagem, os diferentes campos do saber, além de uma avaliação sobre as
escolhas feitas, devem ter a coragem de reforçar os reconhecimentos construídos.
Nesse sentido, deve-se reafirmar as convicções pela Educação Ambiental Crítica a
partir de uma sociedade, de uma escola, de uma universidade popular e afirmativa
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que reconheça as questões ambientais a partir da perspectiva do ambiente inteiro,
e não apenas do meio/ambiente.
O projeto antagônico a este já é conhecido. Ele tem a ênfase no lucro e no po-
der a qualquer custo; no agronegócio e nos agrotóxicos; na usurpação das reservas
indígenas para exploração de minérios; na afirmação de um governo para os mais
favorecidos; e no não reconhecimento das diferenças – além da condenação e do
ataque aos pensadores com perspectivas crítico-progressistas.
Pelo horizonte da EA, pode-se encontrar espaços para continuar se organizan-
do, denunciando e resistindo a esse projeto maior e buscando possibilidades viáveis
de construção de um projeto coletivo e emancipatório com justiça social. Ainda
que de modo incipiente, já houve experiências que reafirmam e demonstram as
possibilidades de um projeto emancipatório. Nesse caso, pensa-se que é necessário
a reinvenção dos movimentos sociais populares. Mas este pode ser o tema de outro
artigo.
Notas
1
Tradução livre: faculdade que a norma atribui de proteção à pessoa no que se refere a sua vida, liberdade,
igualdade, a sua participação política e social ou a qualquer outro aspecto fundamental que afete o seu
desenvolvimento integral como pessoa em uma comunidade de homens livres, exigindo o respeito dos de-
mais homens, dos grupos sociais e do Estado, e com possibilidades de colocar em funcionamento o aparato
coativo estatal em caso de infração.
2
Já existem doutrinadores defendendo a existência da quarta, da quinta e da sexta gerações de direitos
fundamentais.
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