ESPAÇO
PEDAGÓGICO
RESENHA
Ênio Freire de Paula
Este artigo está licenciado com a licença: Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
v. 26, n. 3, Passo Fundo, p. 936-940, set./dez. 2019 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
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O frango de Newton: a ciência na cozinha
Ênio Freire de Paula
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Originalmente publicado na Itália em 2013, como Il Pollo di Newton: La scien-
za in cucina, a obra do italiano Massimiano Bucchi, professor na Universidade de
Trento, tem agora sua versão em português publicada pela Editora da Unicamp. O
livro integra a Coleção Meio de Cultura,
1
organizada pelo Prof. Dr. Marcelo Knobel,
a qual completou uma década de existência em 2018 e reúne a tradução de títulos
voltados à divulgação científica publicados em diversos países, entre eles: Argenti-
na, Austrália, Espanha e Itália, além de publicações brasileiras.
A problemática da obra – cujo título sugestivo foi um dos responsáveis por a
adquirirmos – discute as inovações sociais e tecnológicas envolvidas no avanço da
Gastronomia e os eventos históricos – no decorrer da história recente – responsá-
veis por inter-relacionar a “ciência como culinária e a culinária como ciência”, como
diz o autor.
Aliás, vale destacar que o momento de publicação desse livro coincide com o
aumento expressivo da temática gastronômica no contexto nacional. Um desses in-
dícios é sem dúvida o crescimento vertiginoso da oferta de cursos de Gastronomia
(tecnólogos e bacharelados) em especial aqueles ofertados em instituições privadas
de ensino superior. Comparando os resultados de Rubim e Rejowski (2013) com os
de Anjos, Cabral e Hostins (2017) – nos dois estudos, os pesquisadores realizaram
levantamentos sobre a oferta de cursos de Gastronomia no país –, a oferta de cursos
livres nessa área teve início na década de 1970; em 2016, o país atingiu o número de
151 cursos em funcionamento (grande parte tecnólogos). Aproximadamente a meta-
de deles se concentra nos estados da Região Sudeste, da qual São Paulo reúne 1/3 de
toda a oferta nacional. Outro indício é o aumento de atrações culinárias na programa-
ção dos canais de TV aberta, a cabo e nos serviços de streaming. Os diversos reality
shows culinários, pelos quais cursos na tradicional escola de gastronomia francesa
Recebido em 20/10/2018 – Aprovado em 24/06/2019
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v26i3.9878
*
Doutor em Ensino de Ciências e Educação Matemática na Universidade Estadual de Londrina (UEL). Professor do
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, Campus de Presidente Epitácio (IFSP/PEP), Brasil.
ORCID: 0000-0003-0395-4689. E-mail: eniodepaula@ifsp.edu.br
O frango de Newton: a ciência na cozinha
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Le Cordon Bleu (fundada em 1895) figuram entre os prêmios, são representantes do
sucesso que a cozinha profissional e seus avanços despertam nos brasileiros.
Contudo, o livro não trata a Gastronomia ou a Ciência isoladamente. As apro-
ximações entre ciência, tecnologia e sociedade, exemplificadas pelas relações hu-
manas com a culinária, a ciência e os avanços tecnológicos, constituem o prato
principal da obra.
Organizada em quatro capítulos que, embora sejam curtos, são nomeados com
títulos grandes, que nos remetem às obras do medievo, a obra exige fôlego para
acompanhar os insights do autor com referência a diversos personagens e períodos
históricos. O livro é um deleite aos apaixonados pela História da Ciência e um
convite aos leitores interessados nesse campo.
“Entrada, seguida de primeiro prato – a culinária como ciência, a ciência como
culinária, de Sócrates à fusão a frio” é o capítulo de abertura que inicia a discus-
são da problemática. Ao refletir sobre o quadro de um famoso programa de TV
italiano chamado “A ciência na cozinha”, em que são questionados os processos
físicos e químicos ocorridos na preparação de alimentos, deparamo-nos com uma
curiosa pergunta: como se faz maionese? É possível que muitos de nós, em algum
momento, já tenhamos nos questionado a respeito dos processos de produção de
algumas iguarias, posto que muitas vezes nós as compramos já prontas, indus-
trializadas. O autor retoma diversos eventos e modificações ocorridas no processo
de produção dos alimentos a partir do século XVII, que culminaram em técnicas
sofisticadas e proporcionaram desconfianças e ceticismo frente aos considerados
“novos alimentos”, como o extrato de carne, criado pelo químico alemão Justus
von Liebig (1803-1873). Prosseguindo na história, somos apresentados a diversas
pesquisas – criativas e curiosas –, inclusive algumas ganhadoras do famoso Prêmio
Ignobel, ofertado pela revista Annals of Improbable às pesquisas científicas mais
excêntricas em cada ano.
“Segundo prato – a ciência do frango” é o capítulo seguinte. O frango, mote de
anedotas curiosas e eventos científicos efetivamente ocorridos, é o fio condutor das
discussões a respeito do interesse em experiências com esse animal que perpas
-
sam os campos de criação (desenvolvimento e aprimoramento de métodos de cria,
engorda e armazenamento), preparo (crítica e desvelamento de práticas culinárias
difusas, ingênuas e inconsistentes) e experimentação (desenvolvimento de vacinas
e cura de doenças), entre os séculos XVII e XXI. Situações envolvem o frango com
Francis Bacon (1561-1626), Louis Pasteur (1822-1895), Isaac Newton (1643-1727),
os iluministas e a produção Encyclopédie e os episódios da gripe aviária em 2006. O
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caráter acidental de algumas descobertas científicas – a serendipidade –, a realiza-
ção de experimentos públicos e a visão estereotipada do cientista são problematiza-
dos. Ao tratar especificamente da visão pública do cientista, destaca-se o machismo,
tão presente no decorrer da História da Ciência (colocando o homem como cientista
e a mulher como responsável pelo cuidado com os afazeres domésticos e a culinária),
e também a praticamente substituição da iconografia religiosa para a iconografia do
cientista, na qual o desinteresse pelos anseios e frivolidades humanos é visto como
uma prerrogativa para forjá-la: “É uma iconografia que enfatiza o caráter intelec
-
tual e desencarnado do homem de ciência, o seu distanciamento das necessidades
materiais e até mesmo da dimensão corpórea” (BUCCHI, 2015, p. 66).
Dentre as seções que integram o segundo capítulo e o seguinte, “Bebidas à par-
te – cerveja, vinho, café, chá, chocolate e... controvérsias à vontade”, aprofundam-
-se as discussões no sentido de evidenciar o (des)cuidado (da mídia, dos cientistas e
governantes) nas tentativas de elucidar/comunicar os avanços da Ciência. O autor
discute e problematiza a percepção pública de ciência, assunto intrinsicamente
associado à divulgação científica enquanto campo de investigação. No Brasil, a
esse respeito, podemos destacar os trabalhos de Vogt (2006), Massarani (2002)
Massarani, Moreira e Brito (2002), Werthein e Cunha (2009) e Munhoz, Hattge e
Zanotelli (2013). Em todos eles, o cerne das reflexões envolve analisar, discutir e
principalmente fomentar ações e processos que envolvam a divulgação da ciência
e da tecnologia ao grande público, em espaços formais e não formais. Como afirma
Sánchez Mora (2003, p. 9): “O problema da divulgação da ciência é de grande com-
plexidade. Enfrentá-lo é tão difícil quanto visar um alvo em movimento”. A própria
nomenclatura do termo (divulgação – popularização – alfabetização – comunicação
– científica) é alvo de discussão (SASSERON, CARVALHO, 2011).
Como se espera de uma boa refeição, após Entrada, seguida de primeiro prato
(primeiro capítulo), do Segundo prato (segundo capítulo) e das Bebidas à parte
(terceiro capítulo), temos a sobremesa como quarto capítulo: “Sobremesa sabor de
ciência (e de sociedade) – de Brillat-Savarin à gastronomia molecular, passando
pela culinária futurista”. Um histórico desde o tempo em que a Gastronomia se es-
forçava para reivindicar espaço enquanto área científica até sua íntima e presente
relação com a Química, na produção/desenvolvimento de novos produtos, pratos
e receitas, antes impensáveis, é o centro das discussões. A culinária futurista, da
qual a gastronomia molecular é uma representante, os experimentos e as receitas
secretas (de chocolate, por exemplo) destacam as peculiaridades que associam ciên-
cia e culinária.
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Finalizamos a resenha dessa obra em um momento complexo. No mesmo
instante em que a comunidade científica se esforça na realização de pesquisas
envolvendo a compreensão e a busca da cura de diversas doenças, discutimos a
preocupante proliferação desenfreada de notícias falsas. As famosas fake news, via
internet e (principalmente) pelos aplicativos de trocas de mensagens, presentes em
nossos smartphones, alastram boatos em mensagens que, por exemplo, pregam a
não vacinação como um ato saudável.
Triste ironia do progresso científico: algo fruto do desenvolvimento da Ciência
utilizado como meio de divulgar ideias equivocadas. Afirmações pseudocientíficas,
quando propagadas, “adquirem” status científico, e isso é um problema grave. A
preocupação com os investimentos (e esforços) públicos com o intuito de propiciar
uma educação/cultura científica de qualidade é real, urgente e necessária, como
problematizado no documento Ensino de ciências: o futuro em risco, da Organização
das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) (2005, p. 3):
[...] o ensino de Ciências é fundamental para a população não só ter a capacidade de des-
frutar dos conhecimentos científicos e tecnológicos, mas para despertar vocações, a fim de
criar estes conhecimentos. O ensino de Ciências é fundamental para a plena realização do
ser humano e a sua integração social. Continuar aceitando que grande parte da população
não receba formação científica e tecnológica de qualidade agravará as desigualdades do
país e significará seu atraso no mundo globalizado. Investir para constituir uma população
cientificamente preparada é cultivar para receber de volta cidadania e produtividade, que
melhoram as condições de vida de todo o povo.
A obra que resenhamos possibilita e potencializa ações de reflexão a respeito
da Ciência, dos seus avanços presentes em nossas ações cotidianas, das percepções
públicas relacionadas à ciência e também aos cientistas, bem como as problemáti-
cas envolvidas em seus processos de divulgação. Saímos desse restaurante científi-
co satisfeitos e recomendamos aos leitores interessados na temática que o visitem.
Discutir a ciência é o prato principal, e a companhia de Massimiano Bucchi torna
essa uma experiência intelectual agradável.
Notas
1
Dezesseis títulos compõem essa coleção. Além do livro que resenhamos, foram publicados O Sol morto de
rir (2008); A extinção dos tecnossauros (2008); Ciência: use com cuidado (2008); O gozo intelectual (2009);
Inventando milhões (2009); Dez teorias que comoveram o mundo (2009); Kluge (2010); Borges e a mecânica
quântica (2011); Superstição (2011); O sonho de Einstein (2011); A fórmula secreta (2012); Almanaque
(2013); Os remédios da vovó (2013); Um esqueleto incomoda muita gente (2013); e O jogador científico: por
que perdemos no pôquer, na loteria, na roleta... (2015).
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