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volume 26 número 1 jan./abr. 2019
ISSN on-line 2238-0302
volume 26 número 3 set./dez. 2019
JUSTIÇA SOCIAL E EDUCAÇÃO
EDITORIAL
Ângelo Vitorio Cenci (Organizador), Flávia Eloisa Caimi (Editora-Chefe)
DOSSIÊ
JUSTICIA SOCIAL, DEMOCRACIA Y EDUCACIÓN: LA VIGENCIA DE VIEJOS LEGADOS Y DESAFÍOS PRESENTES
SOCIAL JUSTICE, DEMOCRACY AND EDUCATION: OLD LEGACIES VALIDITY AND CURRENT CHALLENGES
Juan Carlos Geneyro
LA PARTICIPACIÓN SOCIAL EN LA ESCUELA EN MÉXICO: ¿UN PROBLEMA DE DEMOCRACIA Y CULTURA POLÍTICA?
WHY IS SOCIAL ENGAGEMENT BLOCKED IN THE MEXICAN SCHOOLS? BEYOND POLITICAL CULTURE EXPLANAITIONS
Pedro Flores-Crespo
EDUCAÇÃO, JUSTIÇA E EMPODERAMENTO
EDUCATION, JUSTICE AND EMPOWERMENT
Manuel Gonçalves Barbosa
EDUCAÇÃO E JUSTIÇA SOCIAL NA CONTEMPORANEIDADE: REPENSANDO O SENTIDO DA DOCÊNCIA NO MBITO ESCOLAR
EDUCATION AND SOCIAL JUSTICE ON CONTEMPORANEITY: RETHINKING THE SENSE OF TEACHING IN THE SCHOOL ENVIRONMENT
Sidinei Pithan da Silva
EDUCAÇÃO AMBIENTAL E JUSTIÇA SOCIAL: REFLEXÕES EM TEMPOS DE SOLIDÃO DEMOCRÁTICA
ENVIRONMENTAL EDUCATION AND SOCIAL JUSTICE: REFLECTIONS IN TIMES OF DEMOCRATICAL SOLITUDE
Vilmar Alves Pereira , Simone Grohs Freire
EDUCAÇÃO E JUSTIÇA SOCIAL À LUZ DA TEORIA CRÍTICA DA SOCIEDADE
EDUCATION AND SOCIAL JUSTICE IN THE PERSPECTIVE OF THE CRITICAL THEORY OF SOCIETY
Geraldo Balduino Horn, Luciana Vieira de Lima
EDUCAÇÃO, JUSTIÇA SOCIAL E DIREITOS HUMANOS: DESAFIOS DA EDUCAÇÃO ESCOLAR
EDUCATION, SOCIAL JUSTICE AND HUMAN RIGHTS: CHALLENGES OF SCHOOL EDUCATION
Eldon Henrique Mühl, Elisa Mainardi
LEI DE COTAS E PROMOÇÃO DA JUSTIÇA SOCIAL: PERCEPÇÕES DE ESTUDANTES COTISTAS DE UM INSTITUTO FEDERAL
LAW OF QUOTAS AND PROMOTION OF SOCIAL JUSTICE: PERCEPTIONS OF QUOTA STUDENTS FROM A FEDERAL INSTITUTE
Fabiana Rodrigues de Sousa, Ilca Freitas Nascimento
JUSTIÇA SOCIAL E DISCURSO NEOLIBERAL: PROBLEMATIZAÇÕES SOBRE A BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR
SOCIAL JUSTICE AND NEOLIBERAL DISCOURSE: PROBLEMATIZATIONS ABOUT NATIONAL CURRICULUM COMMON CORE
Simone Gonçalves da Silva, Juliana Mezomo Cantarelli
DESIGUALDADES EDUCACIONAIS COMO OBSTÁCULO À JUSTIÇA SOCIAL: ANÁLISE DA INFRAESTRUTURA DE ESCOLAS DE MINAS GERAIS
EDUCATIONAL INEQUALITIES AS AN OBSTACLE TO SOCIAL JUSTICE: ANALISYS OF THE MINAS GERAIS SCHOOLS INFRASTRUCTURE
Marisa Ribeiro Teixeira Duarte, Daniel Santos Braga
FLUXO CONTÍNUO
TEMPO DE ESTUDO, RENDIMENTO E ESTRATÉGIAS DE APRENDIZAGEM DE ALUNOS DO 5º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL DE ESCOLAS PÚBLICAS MUNICIPAIS
STUDY TIME, PERFORMANCE AND LEARNING STRATEGIES OF 5TH YEAR ELEMENTARY SCHOOL STUDENTS IN MUNICIPAL PUBLIC SCHOOLS
Jussara Cristina Barboza Tortella, Vivian Annicchini Forner
SABERES DA FORMAÇÃO PROFISSIONAL DOCENTE: UMA ANÁLISE A PARTIR DO CONTEXTO PIBID
TEACHING PROFESSIONAL KNOWLEDGES: AN ANALYSIS OF THE CONTEXT PIBID
Ana Lucia Pereira, Tatiane Skeika, Leila Inês Follmann Freire
O ESPAÇO DA FORMAÇÃO INICIAL DO COORDENADOR PEDAGÓGICO
THE INITIAL FORMATION SPACE OF THE PEDAGOGICAL COORDINATOR
Susana Soares Tozetto, Priscila Gabriele da Luz Kailer
O ATENDIMENTO EDUCACIONAL ESPECIALIZADO PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL EM CAXIAS DO SUL
THE SPECIALIZED EDUCATIONAL SERVICE FOR EARLY CHILDHOOD EDUCATION IN CAXIAS DO SUL
Cláudia Rodrigues de Freitas, Joseane Frassoni dos Santos, Clarissa Haas
EDUCAÇÃO ESCOLAR E DIREITOS INDÍGENAS: UMA REVISÃO INTEGRATIVA DE TESES E DISSERTAÇÕES A PARTIR DO BDTD
SCHOOL EDUCATION AND INDIGENOUS RIGHTS: AN INTEGRATIVE REVIEW OF THESES AND DISSERTATIONS FROM THE BDTD
Claudio Emídio Silva, Lucas Antunes Furtado
DIÁLOGO COM EDUCADORES
ENTREVISTA COM MARGARITA SGRÓ
RESENHA
UM CONVITE AO ELOGIO DA ESCOLA
Renata Maraschin
O FRANGO DE NEWTON: A CIÊNCIA NA COZINHA
Ênio Freire de Paula
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Fundo, Faculdade de Educação. – Vol. 16, n. 2 (2009)- . –
Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2009-
Anual: 1994-1998. Semestral: 1999-2016. Quadrimestral:
2017-.
eISSN 2238-0302.
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ESPAÇO
PEDAGÓGICO
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A revista Espaço Pedagógico é signatária do San Francisco Declaration on
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volume 26 número 1 jan./abr. 2019
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volume 26 número 3 set./dez. 2019
JUSTIÇA SOCIAL E EDUCAÇÃO
EDITORIAL
Ângelo Vitorio Cenci (Organizador), Flávia Eloisa Caimi (Editora-Chefe)
DOSSIÊ
JUSTICIA SOCIAL, DEMOCRACIA Y EDUCACIÓN: LA VIGENCIA DE VIEJOS LEGADOS Y DESAFÍOS PRESENTES
SOCIAL JUSTICE, DEMOCRACY AND EDUCATION: OLD LEGACIES VALIDITY AND CURRENT CHALLENGES
Juan Carlos Geneyro
LA PARTICIPACIÓN SOCIAL EN LA ESCUELA EN MÉXICO: ¿UN PROBLEMA DE DEMOCRACIA Y CULTURA POLÍTICA?
WHY IS SOCIAL ENGAGEMENT BLOCKED IN THE MEXICAN SCHOOLS? BEYOND POLITICAL CULTURE EXPLANAITIONS
Pedro Flores-Crespo
EDUCAÇÃO, JUSTIÇA E EMPODERAMENTO
EDUCATION, JUSTICE AND EMPOWERMENT
Manuel Gonçalves Barbosa
EDUCAÇÃO E JUSTIÇA SOCIAL NA CONTEMPORANEIDADE: REPENSANDO O SENTIDO DA DOCÊNCIA NO MBITO ESCOLAR
EDUCATION AND SOCIAL JUSTICE ON CONTEMPORANEITY: RETHINKING THE SENSE OF TEACHING IN THE SCHOOL ENVIRONMENT
Sidinei Pithan da Silva
EDUCAÇÃO AMBIENTAL E JUSTIÇA SOCIAL: REFLEXÕES EM TEMPOS DE SOLIDÃO DEMOCRÁTICA
ENVIRONMENTAL EDUCATION AND SOCIAL JUSTICE: REFLECTIONS IN TIMES OF DEMOCRATICAL SOLITUDE
Vilmar Alves Pereira , Simone Grohs Freire
EDUCAÇÃO E JUSTIÇA SOCIAL À LUZ DA TEORIA CRÍTICA DA SOCIEDADE
EDUCATION AND SOCIAL JUSTICE IN THE PERSPECTIVE OF THE CRITICAL THEORY OF SOCIETY
Geraldo Balduino Horn, Luciana Vieira de Lima
EDUCAÇÃO, JUSTIÇA SOCIAL E DIREITOS HUMANOS: DESAFIOS DA EDUCAÇÃO ESCOLAR
EDUCATION, SOCIAL JUSTICE AND HUMAN RIGHTS: CHALLENGES OF SCHOOL EDUCATION
Eldon Henrique Mühl, Elisa Mainardi
LEI DE COTAS E PROMOÇÃO DA JUSTIÇA SOCIAL: PERCEPÇÕES DE ESTUDANTES COTISTAS DE UM INSTITUTO FEDERAL
LAW OF QUOTAS AND PROMOTION OF SOCIAL JUSTICE: PERCEPTIONS OF QUOTA STUDENTS FROM A FEDERAL INSTITUTE
Fabiana Rodrigues de Sousa, Ilca Freitas Nascimento
JUSTIÇA SOCIAL E DISCURSO NEOLIBERAL: PROBLEMATIZAÇÕES SOBRE A BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR
SOCIAL JUSTICE AND NEOLIBERAL DISCOURSE: PROBLEMATIZATIONS ABOUT NATIONAL CURRICULUM COMMON CORE
Simone Gonçalves da Silva, Juliana Mezomo Cantarelli
DESIGUALDADES EDUCACIONAIS COMO OBSTÁCULO À JUSTIÇA SOCIAL: ANÁLISE DA INFRAESTRUTURA DE ESCOLAS DE MINAS GERAIS
EDUCATIONAL INEQUALITIES AS AN OBSTACLE TO SOCIAL JUSTICE: ANALISYS OF THE MINAS GERAIS SCHOOLS INFRASTRUCTURE
Marisa Ribeiro Teixeira Duarte, Daniel Santos Braga
FLUXO CONTÍNUO
TEMPO DE ESTUDO, RENDIMENTO E ESTRATÉGIAS DE APRENDIZAGEM DE ALUNOS DO 5º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL DE ESCOLAS PÚBLICAS MUNICIPAIS
STUDY TIME, PERFORMANCE AND LEARNING STRATEGIES OF 5TH YEAR ELEMENTARY SCHOOL STUDENTS IN MUNICIPAL PUBLIC SCHOOLS
Jussara Cristina Barboza Tortella, Vivian Annicchini Forner
SABERES DA FORMAÇÃO PROFISSIONAL DOCENTE: UMA ANÁLISE A PARTIR DO CONTEXTO PIBID
TEACHING PROFESSIONAL KNOWLEDGES: AN ANALYSIS OF THE CONTEXT PIBID
Ana Lucia Pereira, Tatiane Skeika, Leila Inês Follmann Freire
O ESPAÇO DA FORMAÇÃO INICIAL DO COORDENADOR PEDAGÓGICO
THE INITIAL FORMATION SPACE OF THE PEDAGOGICAL COORDINATOR
Susana Soares Tozetto, Priscila Gabriele da Luz Kailer
O ATENDIMENTO EDUCACIONAL ESPECIALIZADO PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL EM CAXIAS DO SUL
THE SPECIALIZED EDUCATIONAL SERVICE FOR EARLY CHILDHOOD EDUCATION IN CAXIAS DO SUL
Cláudia Rodrigues de Freitas, Joseane Frassoni dos Santos, Clarissa Haas
EDUCAÇÃO ESCOLAR E DIREITOS INDÍGENAS: UMA REVISÃO INTEGRATIVA DE TESES E DISSERTAÇÕES A PARTIR DO BDTD
SCHOOL EDUCATION AND INDIGENOUS RIGHTS: AN INTEGRATIVE REVIEW OF THESES AND DISSERTATIONS FROM THE BDTD
Claudio Emídio Silva, Lucas Antunes Furtado
DIÁLOGO COM EDUCADORES
ENTREVISTA COM MARGARITA SGRÓ
RESENHA
UM CONVITE AO ELOGIO DA ESCOLA
Renata Maraschin
O FRANGO DE NEWTON: A CIÊNCIA NA COZINHA
Ênio Freire de Paula
ESPAÇO
PEDAGÓGICO
SUMÁRIO
Editorial .....................................................................................................................................................................620
Justicia social, democracia y educación: la vigencia de viejos legados y desafíos presentes .......................................624
Social justice, democracy and education: old legacies validity and current challenges
Justiça social, democracia e educação: a vigência de velhos legados e desaos presentes
Juan Carlos Geneyro
La participación social en la escuela en México: ¿un problema de democracia y cultura política? ..............................642
Social participation in schools of Mexico: ¿Is there a problem in terms of democracy and political culture?
A participação social na escola do México: um problema de democracia e cultura política?
Pedro Flores-Crespo
Educação, justiça e empoderamento ..........................................................................................................................657
Education, justice and empowerment
Educación, justicia y empoderamiento
Manuel Gonçalves Barbosa
Educação e justiça social na contemporaneidade: repensando o sentido da docência no âmbito escolar ...................676
Education and social justice on contemporaneity: rethinking the sense of teaching in the school environment
Educación y justicia social en la contemporaneidade: repensar el sentido de la docencia en el entorno escolar
Sidinei Pithan da Silva
Educação ambiental e justiça social: reexões em tempos de solidão democrática ....................................................701
Environmental education and social justice: reections in times of democratical solitude
Educación ambiental y justicia social: reexiones en tiempos de soledad democrática
Vilmar Alves Pereira, Simone Grohs Freire
Educação e justiça social à luz da teoria crítica da sociedade ......................................................................................719
Education and social justice in the perspective of the critical theory of society
Educación y justicia social en la perspectiva de la teoría crítica de la sociedade
Geraldo Balduino Horn, Luciana Vieira de Lima
Educação, justiça social e direitos humanos: desaos da educação escolar ................................................................. 738
Education, social justice and human rights: challenges of school education
Educación, justicia social y derechos humanos: desaos de la educación escolar
Eldon Henrique Mühl, Elisa Mainardi
Lei de cotas e promoção da justiça social: percepções de estudantes cotistas de um instituto federal ........................758
Law of quotas and promotion of social justice: perceptions of quota students from a federal institute
Ley de cuotas y promoción de la justicia social: percepciones de estudiantes beneciarios de un instituto federal
Fabiana Rodrigues de Sousa, Ilca Freitas Nascimento
Justiça social e discurso neoliberal: problematizações sobre a base nacional comum curricular .................................777
Social justice and neoliberal discourse: problematizations about national curriculum common core
Justicia social y discurso neoliberal: problematizaciones sobre la base nacional curricular común
Simone Gonçalves da Silva, Juliana Mezomo Cantarelli
Desigualdades educacionais como obstáculo à justiça social: análise da infraestrutura de escolas de Minas Gerais .............795
Educational inequalities as an obstacle to social justice: analisys of the Minas Gerais schools infrastructure
Las desigualdades educativas como obstáculo para la justicia social: análisis de la infraestructura de las escuelas de Minas Gerais
Marisa Ribeiro Teixeira Duarte, Daniel Santos Braga
Tempo de estudo, rendimento e estratégias de aprendizagem de alunos do 5º ano do ensino fundamental de escolas
públicas municipais....................................................................................................................................................815
Study time, performance and learning strategies of 5th year elementary school students in municipal public schools
Tiempo de estudio, desempeño y estrategias de aprendizaje de alumnos de 5º año del primario de escuelas públicas municipales
Jussara Cristina Barboza Tortella, Vivian Annicchini Forner
Saberes da formação prossional docente: uma análise a partir do contexto Pibid ....................................................833
Teaching professional knowledges: an analysis of the context Pibid
Conocimiento de la formación docente: un análisis desde el contexto Pibid
Ana Lucia Pereira, Tatiane Skeika, Leila Inês Follmann Freire
O espaço da formação inicial do coordenador pedagógico .........................................................................................857
The initial formation space of the pedagogical coordinator
La formación inicial del coordinador pedagógico
Susana Soares Tozetto, Priscila Gabriele da Luz Kailer
O atendimento educacional especializado para a educação infantil em Caxias do Sul ................................................881
The specialized educational service for early childhood education in Caxias do Sul
Atención educacional especializada para la educación infantil en la ciudad de Caxias do Sul
Cláudia Rodrigues de Freitas, Joseane Frassoni dos Santos
Educação escolar e direitos indígenas: uma revisão integrativa de teses e dissertações a partir do BDTD ...................904
School education and indigenous rights: an integrative review of theses and dissertations from the BDTD
Educación escolar y derechos indígenas: uma revisión integrativa de tesis y disertaciones a partir del BDTD
Cláudio Emidio Silva, Lucas Antunes Furtado
Diálogo com educadores ............................................................................................................................................922
Profa. Dra. Margarita R. Sgró
Resenhas
O frango de Newton: a ciência na cozinha ..................................................................................................................936
Ênio Freire de Paula
Um convite ao elogio da escola ..................................................................................................................................941
Renata Maraschin
620
ESPAÇO PEDAGÓGICO
v. 26, n. 3, Passo Fundo, p. 620-623, set./dez. 2019 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Este artigo está licenciado com a licença: Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
ESPAÇO
PEDAGÓGICO
EDITORIAL
O tema justiça social assume uma grande relevância na atualidade. Desde
os anos 70 do século passado, o mundo é marcado por uma crescente acumulação
de riquezas, pelo dramático aumento da desigualdade social, pelo drástico enfra-
quecimento da democracia, assim como, na linha da teoria do capital humano,
pela crescente transformação da educação em meio de converter os sujeitos hu-
manos em seres economicamente produtivos. Organismos internacionais, como o
Banco Mundial e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico,
continuam a estimular, com base na teoria do capital humano, uma concepção de
educação que tem como norte o investimento pessoal produtivo visando a dar conta
da competitividade econômica em escala global e do rendimento individual. Nessa
teoria, sustentáculo da nova ordem educacional mundial, o capital humano é con-
cebido fundamentalmente como um bem privado, concernente aos conhecimentos
que podem ser valorados economicamente e incorporados aos indivíduos, bem este
alicerçado em seus conhecimentos, qualificações, competências e características
individuais. Nesse cenário, configura-se uma crise da educação em escala global,
entre outros fatores, pela concentração de riquezas e pela redução de direitos, mo-
delo esse que mercantiliza a educação e desonera o Estado de sua responsabilidade
para com ela.
O fundamento ideológico da nova ordem educativa mundial, que concebe a
pessoa como recurso humano e como consumidor a satisfazer, é difundido visando
à formação de trabalhadores em condições de se adequarem, no que tange a conhe-
cimentos e técnicas, às novas exigências produtivas e organizacionais em um con-
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v26i3.9874
621
ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Este artigo está licenciado com a licença: Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
texto marcado fortemente pela reestruturação dos processos produtivos. Trata-se
de uma nova ordem educativa em que o sistema educacional volta-se para a com-
petitividade econômica, é gerenciado segundo o modelo empresarial e estruturado
como um mercado. A educação deixa de constituir-se em um meio de democrati-
zação da cultura e passa a ser considerada como um bem de capital. Nessa lógica,
a educação é transformada em um negócio privado de consumidores que buscam
maximizar seus interesses.
Apresenta-se, assim, um novo modo de configuração da sociabilidade que afe-
ta diretamente tanto a forma de constituição dos processos de individualização
quanto o modo como se compreendem a ideia de um mundo comum e a democracia.
Também para a educação em prol da constituição de um ethos justo e democrático,
as consequências desse estado de coisas são profundas. Sob tal lógica, os direitos
são convertidos em produtos, e o cidadão, em mero consumidor destes. Todavia,
para além da desigualdade e de todas as consequências que decorrem dela, esse
modelo atinge a educação dos sujeitos e a formação da vontade democrática. Na
base de uma sociedade marcada pelo esgotamento da democracia liberal, na qual
mais e mais a educação é enfraquecida em sua condição de bem comum e direito de
todos, multiplicam-se formas de desigualdade e de injustiça social.
Urge, pois, pensar novas perspectivas que, considerando o atual cenário so-
ciopolítico-educativo, ajudem a lançar luzes sobre a necessária articulação entre
justiça social e educação. Apesar do cenário amplamente desfavorável em que se
encontra a educação no Brasil atual, sua esfera constitui-se, mesmo assim, em um
significativo e poderoso âmbito de resistência ao modelo neoliberal e a suas formas
estruturais de práticas de injustiça social. A educação formal constitui-se ainda
como uma importante esfera capaz de alavancar valores democráticos e, em sua
dimensão socializadora, o fomento da justiça social.
Mediante as questões até aqui apresentadas, a Revista Espaço Pedagógico
dedica o volume 26, número 3, à publicação de um conjunto de artigos e resenhas
subscritos por pesquisadores de diversas instituições e países, como Argentina,
Brasil, México e Portugal. Seguindo o escopo da revista, o primeiro conjunto de
artigos compõe o dossiê intitulado Justiça Social e Educação. Os demais artigos são
oriundos do fluxo contínuo e versam sobre as mais variadas temáticas de interesse
educacional.
“Justicia social, democracia y educación: la vigencia de viejos legados y desa-
fíos presentes” é o título do trabalho do professor Juan Carlos Geneyro, pesquisa-
dor da Universidad Nacional de Río Negro e da Universidad Nacional de Lanús,
622
ESPAÇO PEDAGÓGICO
v. 26, n. 3, Passo Fundo, p. 620-623, set./dez. 2019 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Este artigo está licenciado com a licença: Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
Argentina. Na sequência, está o artigo do professor Pedro Flores-Crespo, profes-
sor-investigador da Universidad Autónoma de Querétaro, México, que aborda “La
participación social en la escuela en México: ¿un problema de democracia y cultu-
ra política?”. O professor associado do Instituto de Educação da Universidade do
Minho, em Portugal, Manuel Gonçalves Barbosa, apresenta o debate “Educação,
justiça e empoderamento”. De autoria do professor Sidinei Pithan da Silva, pes-
quisador do Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências, mestrado e
doutorado, da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul,
tem-se o artigo intitulado “Educação e justiça social na contemporaneidade: repen-
sando o sentido da docência no âmbito escolar”. Também é de pesquisadores gaú-
chos o artigo “Educação ambiental e justiça social: reflexões em tempos de solidão
democrática”, assinado por Vilmar Alves Pereira e Simone Grohs Freire, ligados
ao Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental da Universidade Federal
do Rio Grande. Da Universidade Federal do Paraná procede o artigo “Educação
e justiça social à luz da teoria crítica da sociedade”, dos pesquisadores Geraldo
Balduino Horn e Luciana Vieira de Lima. Eldon Henrique Mühl e Elisa Mainar-
di, professores da Universidade de Passo Fundo, assinam o artigo denominado
“Educação, justiça social e direitos humanos: desafios da educação escolar”. “Lei
de cotas e promoção da justiça social: percepções de estudantes cotistas de um ins-
tituto federal” tem autoria da docente Fabiana Rodrigues de Sousa, do Programa
de Mestrado em Educação Sociocomunitária, do Centro Universitário Salesiano de
São Paulo, e da assistente social Ilca Freitas Nascimento. Simone Gonçalves da Sil-
va, pesquisadora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas,
e Juliana Mezomo Cantarelli, docente efetiva do Instituto Federal Farroupilha,
subscrevem o artigo “Justiça social e discurso neoliberal: problematizações sobre
a Base Nacional Comum Curricular”. Encerra o dossiê o artigo “Desigualdades
educacionais como obstáculo à justiça social: análise da infraestrutura de escolas
de Minas Gerais”, de Marisa Ribeiro Teixeira Duarte, pesquisadora do Programa
de Pós-Graduação da Faculdade de Educação, da Universidade Federal de Minas
Gerais, e Daniel Santos Braga, docente no curso de Pedagogia, do Centro Univer-
sitário Newton Paiva, em Belo Horizonte.
Na parte de fluxo contínuo, estão publicados os seguintes trabalhos: “Tempo
de estudo, rendimento e estratégias de aprendizagem de alunos do 5º ano do en-
sino fundamental de escolas públicas municipais”, de Jussara Cristina Barboza
Tortella e Vivian Annicchini Forner, pesquisadoras vinculadas ao Programa de
Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Pontifícia Universidade Católica de Cam-
623
ESPAÇO PEDAGÓGICO
v. 26, n. 3, Passo Fundo, p. 620-623, set./dez. 2019 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Este artigo está licenciado com a licença: Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
pinas; “Saberes da formação profissional docente: uma análise a partir do contexto
Pibid”, de autoria de Ana Lucia Pereira, Tatiane Skeika e Leila Inês Follmann
Freire, ligadas à Universidade Estadual de Ponta Grossa; “O espaço da formação
inicial do coordenador pedagógico”, de Susana Soares Tozetto e Priscila Gabriele da
Luz Kailer, também da Universidade Estadual de Ponta Grossa; “O atendimento
educacional especializado para a educação infantil em Caxias do Sul”, de Cláudia
Rodrigues de Freitas, Joseane Frassoni dos Santos e Clarissa Haas, pesquisadoras
vinculadas ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul; por fim, “Educação escolar e direitos indígenas: uma revisão
integrativa de teses e dissertações a partir do BDTD”, assinado por Claudio Emídio
Silva e Lucas Antunes Furtado, respectivamente, da Universidade Federal do Sul
e Sudeste do Pará e da Universidade Federal do Amazonas.
Na seção Diálogo com Educadores, a entrevistada foi Margarita Sgró, profes-
sora titular do Departamento de Educação da Faculdade de Ciências Humanas
da Universidad Nacional del Centro de la Provincia de Buenos Aires, com sede na
cidade de Tandil, Argentina.
Duas resenhas encerram este número da Revista Espaço Pedagógico. Renata
Maraschin apresenta o livro Elogio da escola, organizado, entre outros, por Jorge
Larrosa e publicado em 2017; e Ênio Freire de Paula nos conduz pela obra de Mas-
simiano Bucchi, intitulada O frango de Newton: a ciência na cozinha, publicada em
2015, com tradução de Regina Célia da Silva.
Com esta edição, a Revista Espaço Pedagógico espera contribuir para a am-
pliação do debate sobre o tema justiça social, em estreita interlocução com o campo
educacional, de modo a fomentar saberes e práticas de enfrentamento às condições
de desigualdade que permeiam as relações humanas na contemporaneidade.
Ângelo Vitório Cenci (Organizador)
Flávia Eloisa Caimi (Editora-Chefe)
Juan Carlos Geneyro
Este artigo está licenciado com a licença: Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
v. 26, n. 3, Passo Fundo, p. 624-641, set./dez. 2019 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
624
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Justicia social, democracia y educación:
la vigencia de viejos legados y desafíos presentes
Social justice, democracy and education: old legacies validity and current challenges
Justiça social, democracia e educação: a vigência de velhos legados e desaos presentes
Juan Carlos Geneyro
*
Resumen
El texto recupera planteos políticos y pedagógicos de principales autores de la modernidad respecto de las
relaciones entre justicia social, democracia y educación, destacando la vigencia que mantienen en nuestra ac-
tualidad. Además de considerar a Comenio (1986) como un antecedente importante para uma educación básica
común e igualitaria, en esa perspectiva analiza princípios pedagógicos de éste autor para luego abordar legados
de Rousseau (1988, 2017) y Condorcet (1997, 2008) en dichas interrelaciones; así como el de Comte en cuanto
al desarrollo de una religiosidad cívica y luego también algunos aportes de Durkheim (2003) en tales interrela-
ciones. A partir de reconocer la vigencia de estos legados, se plantean algunos nuevos desafíos que afronta la
educación ennuestro tiempo respecto de la justicia social, la democracia y la educación.
Palabras claves: Democracia. Educación. Justicia social.
Abstract
This text rescues political and pedagogical issues of well-known and modern authors regarding the relationship
between social justice, democracy and education, and highlights their validity in our days. Apart from conside-
ring Comenio (1986) as an important precedent for a basic, ordinary and equal education, this text analyzes – in
the same line, his pedagogical principles in order to present Rousseau’s (1988, 2017) and Condorcet’s (1997,
2008) legacy in such interrelations, as well as Comte’s legacy as regards the development of a civic religiousness,
and Durkheim’s (2003) insights about such interrelations. By recognizing the validity of these legacies, new chal-
lenges for current education in terms of social justice, democracy and education are proposed.
Keywords: Democracy. Education. Social justice.
*
Profesor y Licenciado en Ciencias de la Educación por la Universidad Nacional del Litoral, Argentina. Master en Edu-
cación por la Universidad de Puerto Rico, Puerto Rico. Doctor en Filosofía por la Universidad Autónoma de Barcelona,
España. Profesor Consulto de la Universidad Nacional de Río Negro y de la Universidad Nacional de Lanús, Argentina.
E-mail: juancarlosgeneyro@gmail.com
Recebido em 07/03/2019 – Aprovado em 03/07/2019
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v26i3.9445
Justicia social, democracia y educación: la vigencia de viejos legados y desafíos presentes
Este artigo está licenciado com a licença: Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
v. 26, n. 3, Passo Fundo, p. 624-641, set./dez. 2019 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
625
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Resumo
O texto recupera projetos políticos e pedagógicos dos principais autores da modernidade a respeito das rela-
ções entre justiça social, democracia e educação, destacando a vigência que mantêm na atualidade. Além de
considerar Comênio (1986) um antecedente importante para uma educação básica comum e igualitária, nes-
ta perspectiva, analisam-se princípios pedagógicos do autor para, em seguida, abordar legados de Rousseau
(1988, 2017) e Condorcet (1997, 2008) em tais interrelações; assim como o legado de Comte, quanto ao desen-
volvimento de uma religiosidade cívica, além de alguns aportes de Durkheim (2003). Após reconhecer a vigência
desses legados, colocam-se alguns novos desaos que afrontam a educação em nosso tempo a respeito da
justiça social, da democracia e da educação.
Palavras-chave: Democracia. Educação. Justiça social.
Las cuestiones y preocupaciones relativas a la justicia social han recrudecido
en los últimos tiempos, tal como lo señala la convocatoria temática para el número
de esta revista. No obstante, hay que subrayar que las mismas son de larga data,
más allá de que hoy en día los déficits en su realización adquieren particulares
expresiones tanto en términos cuantitativos como cualitativos. Desde los inicios
de la modernidad fueron configurándose legados sobre la necesidad de atender
a la justicia social, tal como hoy la denominamos; vale decir a la necesidad de
generar políticas y propuestas que favorecieran mejores condiciones de vida para
quienes estaban privados de acceder a bienes básicos, necesarios e imprescindibles
para constituirse como individuos y como ciudadanos. En suma, para tener una
vida digna. En este artículo haré primero un repaso de algunos legados políticos y
pedagógicos gestados en la Modernidad que, con distintos énfasis, fueron recupe-
rados en las políticas y propuestas pedagógicas de varios países latinoamericanos
a partir de sus procesos de independencia y luego también en la organización de los
Estados Nacionales; particularmente en cuanto a la educación común y la forma-
ción de ciudadanía Luego, en una segunda parte, apuntaré algunos desafíos que se
presentan en nuestra actualidad respecto de los mismos.
Una primera voz que antecede y se adelanta a los postulados modernos en
cuanto a las relaciones y propuestas sobre la justicia social y la educación es la de
Comenio, con una consigna principal que postula en su Didáctica Magna: enseñar
todo a todos (1986). El principio de enseñar a todos, que retoman luego otros auto-
res, concurre sin duda al postulado axiológico de la igualdad que es tan caro a la
Revolución Francesa de fines del siglo XVIII y nutre también los procesos eman-
cipatorios que se darán en nuestra América bajo el lema de Educar al Soberano;
mientras que la consigna de enseñar todo fue luego recogida en la figura de la
Juan Carlos Geneyro
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
educación básica y obligatoria que instituyeron nuestros Estados Nacionales, sobre
todo a partir de la segunda mitad del siglo XIX. Hay que recordar que Comenio
también establece la graduación de la enseñanza y los niveles educativos; preci-
sando caules contenidos y actividades debía abarcar necesariamente la enseñanza
de ese “todo” en la escuela común. Otro precepto que se instalará en las propuestas
pedagógicas posteriores y perdura hasta nuestros días es el de “instruir para las
acciones de la vida”. Puede destacarse también su propuesta de nueve reglas para
el arte de la enseñanza de las ciências y es pionero en destacar la importancia
de un principio didáctico, revolucionario para su época, de llevar la naturaleza
al aula, así como valerse de láminas, pinturas y todo recurso que motive la per-
cepción y conocimiento de los objetos a través de los sentidos (COMENIO, 1986,
p. 202-204). Luego de editada su Didáctica en latín en 1640 publicará en 1658 el
Orbis Sensus Pictus (el mundo sensible en imágenes), considerado como el primer
método ilustrado de enseñanza. Vale la pena volver a releer sus escritos porque
constituyen aportes importantes a la pedagogía y la didáctica; más allá de que en
ellos – acorde con su época y sus creencias – Comenio otorgue una principal aten-
ción a la religión teológica.
Tiempo después esta concepción religiosa de Comenio será reconfigurada lue-
go como religiosidad cívica, por la que abogarán distintos autores de la moderni-
dad; entre ellos J. J. Rousseau, A. Comte, E. Durkheim. Sin duda que este es un
principal legado que recogen varios de nuestros países en sus propuestas políticas
y pedagógicas para la educación.
1
Es innegable que el lema comeniano de enseñar
todo a todos sigue teniendo plena vigencia en nuestros días, porque aún falta lograr
su plena realización; al mismo tiempo que el desarrollo cultural, científico y tecno-
lógico demanda que en nuestros respectivos países analicemos cuáles contenidos,
actividades y recursos son los que debe comprender ese “todo”, particularmente
en lo que hoy llamamos Educación Básica. Uno de los primeros legados modernos
que contribuye al acervo ético y político que conllevan las demandas y propuesta
relativas a la justicia social, relacionadas con la democracia y la educación es el de
Juan Jacobo Rousseau; particularmente si consideramos sus escritos del Discurso
sobre el origen y fundamentos de la desigualdad entre los hombres, de El contrato
social y de Consideraciones sobre el gobierno de Polonia. Es casi un lugar común
referir a la inconformidad de Rousseau respecto a la sociedad de su época, así como
su crítica a lo que consideraba como efectos perversos del desarrollo científico, que
le valió enconados críticos, proscripciones de algunas de sus obras y también exi-
lios. Puede apuntarse que se le han cuestionado ambivalencias conceptuales en
Justicia social, democracia y educación: la vigencia de viejos legados y desafíos presentes
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
algunos de sus planteamientos; entre otros, cómo concibe la libertad individual y
el papel del Estado respecto a ella, como también en cuanto a la educación.
2
Ello
merecería un análisis particular; solo quiero aquí referirme a algunas de sus tesis
que contribuyen a ese acervo político y pedagógico que conllevan las relaciones, de
por sí complejas, entre justicia social, democracia y educación.
Sin duda, Rousseau es uno de los primeros autores de la modernidad que
advirtió la necesidad de establecer condiciones de vida que pudieran establecer
una realización equilibrada, armónica si se quiere, entre la libertad y la igualdad
de todos los individuos, superando las desigualdades sociales que advertía en su
época.
3
En El contrato social (2017) se verifica esta preocupación, cuando establece
algunos recaudos para la legitimidad y perdurabilidad del mismo. En el final de la
primera parte del contrato (en algunas traducciones, Primer Libro) señala:
Bajo los malos gobiernos [la igualdad] no es más que aparente ilusoria; solo sirve para
mantener al pobre en su miseria y al rico en su usurpación [de bienes]. En los hechos, las
leyes siempre son útiles para los que poseen y perjudiciales para los que no tienen nada.
De donde se sigue que el estado social es ventajoso para los hombres siempre cuando todos
tengan algo y nadie tenga demasiado de nada (ROUSSEAU, 2017, p. 28).
Más adelante, en la misma obra, apunta precisiones sobre los caracteres y
relaciones entre la libertad y la igualdad, introduciendo el papel del Estado en
relación al cuidado y realización de una y otra, que vale transcribir:
Si se investiga en qué consiste precisamente el mayor bien para todos, que debe ser el fin
de todo el sistema de legislación, se descubrirá que se reduce a estos dos objetos principales:
la libertad y la igualdad. La libertad, porque toda dependencia particular es otro tanto de
fuerza que se quita al cuerpo del Estado; la igualdad, porque la libertad no puede subsistir
sin ella... con respecto a la igualdad, no hay que entender por esta palabra que los grados
de poder y de riqueza sean absolutamente los mismos, sino que, en cuanto al poder, esté por
debajo de toda violencia y que nunca se ejerza si no es en virtud del rango y de las leyes y
que, en cuanto a la riqueza, ningún ciudadano sea tan opulento como para poder comprar
a otro, y ninguno tan pobre como para estar obligado a venderse... Esta igualdad, dicen,
es una quimera de la especulación que no puede existir en la práctica. Pero si el abuso es
inevitable, ¿se sigue que no haya, por lo menos, que regularlo? Es precisamente porque las
fuerzas de las cosas tiende siempre a destruir la igualdad que la fuerza de la legislación
debe tender siempre a mantenerla (ROUSSEAU, 2017, p. 62-63, grifos nuestros).
Mucho después, Durkheim retomará esta línea de pensamiento en su tesis
doctoral, La división del trabajo social. En este escrito apunta que las relaciones
contractuales que emnarcan el trabajo obrero en la nueva sociedad industrial, apa-
rentemente surgidas o devenida de relaciones paritarias no son tales, sino más
bien injustas si se tiene en cuenta que una de las partes no depende de ese contrato
para poder vivir y la otra necesariamente depende del mismo para poder subsistir.
Juan Carlos Geneyro
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
También hay que subrayar que Rousseau hizo particular énfasis en aquellas
condiciones relativas a la educación que demandaban al Estado proveer medidas
para propender a la justicia social, así como al papel de la educación y el ma-
gisterio en la configuración de una religiosidad civil y una ciudadanía reflexiva,
comprometida y participativa en las cuestiones de interés público. Un siglo antes,
ya Comenio había advertido la desigualdad en cuanto al acceso y disposición de
escuelas para la educación básica y común (COMENIO, 1986, p. 83-84); cuestión
que también observa Rousseau en la realidad de su entorno social en su ensayo
sobre el Gobierno de Polonia:
No soy partidario de esa distinción entre colegios y academias que motiva una educación
distinta y separada de la nobleza rica y de la pobreza pobre. Siendo todos constitucional-
mente iguales, todos debe ser educados conjuntamente y de la misma manera, y si no puede
establecerse una educación pública enteramente gratuita al menos será necesario ponerla
a un precio asequible para los pobres (ROUSSEAU, 1988, p. 70).
Comenio había hecho hincapié que la desigualdad en cuanto al acceso a la
escuela originaba no solo injusticia sino también perjuicio social, en tanto que niños
de hogares carenciados con capacidades o excelentes ingenios estuvieran privados
de la educación (COMENIO, 1986, p. 83-84). Por su parte Rousseau, con un ánimo
humanista para el apunte de esas desigualdades, alertaba sobre los perjuicios para
los propios niños, para el cuidado y “amor de sí mismo” y luego, también, en cuanto
al ejercicio de la ciudadanía, así como para la realización de los valores que consti
-
tuyen su ideario cívico.
4
Es cierto que puede haber un cierto desencanto al leer el
párrafo antes citado, cuando ingenuamente expone que con un precio más asequible
también los pobres pueden acceder a una educación igualitaria de calidad. Pero si
volvemos a las citas anteriores, podríamos concluir que también en él ya se encuen
-
tra una noción sobre el mandato para el Estado de concurrir a garantizar mediante
leyes dicha educación, mandato que es recurrente en varios autores compatriotas
suyos posteriores, como es el caso de Condorcet y el ya mencionado Durkheim.
Otro legado que considero trascendente para las políticas públicas en educa-
ción, también para la pedagogía y la didáctica, son los trabajos de M. J. Condorcet,
que fuera considerado luego de su muerte, en 1794, como el último de los filósofos
de la Ilustración francesa y el último de los enciclopedistas. En los inicios de la Re-
volución Francesa fue elegido Secretario de la Asamblea de 1791, y luego diputado.
Con ese cargo, en nombre del Comité de Instrucción Pública, fue portavoz de un
grupo de delegados ‘girondinos’ ante la Asamblea Legislativa para presentar en
abril de 1792 el Informe general sobre la organización de la instrucción pública. En
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
este Informe se encuentra una íntima relación entre la justicia social y la educa-
ción, en el que se la considera como una de sus principales expresiones, así como el
mandato del poder político para garantizar el acceso a ella y reconocerla como vía
indispensable para la formación y ejercicio de la ciudadanía:
Ofrecer a todos los individuos de la especie humana los medios de proveer a sus necesidades,
de asegurar su bienestar, de conocer y ejercer sus derechos, de comprender y cumplir sus
deberes. Asegurar a cada quien la facilidad de perfeccionar su industria, de hacerse capaz
de cumplir las funciones sociales a las que tiene derecho de ser convocado, de desarrollar en
toda su extensión los talentos que ha recibido de la naturaleza; y con ello, de establecer entre
los ciudadanos una igualdad de hecho, y de convertir en realidad la igualdad política reco
-
nocida por la ley. Tal debe ser el primer fin de una instrucción nacional; y desde este punto
de vista, ella es, para el poder público, un deber de justicia (CONDORCET, 1997, p. 251).
En este mismo Informe, además de los argumentos y propuestas para que
sea el Estado quien asuma la responsabilidad de asegurar una educación bási-
ca, también destaca la advertencia de que es necesario proveer más educación a
quienes están destinados a actividades laborales de escasa o nula necesidad de
conocimientos, lo que probablemente puede originar – por desuso – el olvido de
lo aprendido (CONDORCET, 1997, p. 253). Los efectos de tales situaciones luego
fueron caracterizados en los análisis sociológicos de mediados del siglo XX como
analfabetismo funcional.
Condorcet (2008) aborda de manera pormenorizada las principales caracterís-
ticas que debe acreditar la instrucción pública en cinco Memorias. En la primera
de ellas, destaca que la sociedad debe al pueblo una instrucción pública, particular-
mente la instrucción común. En esta memoria realiza los primeros análisis y pro-
puestas políticas, pedagógicas y didácticas para dicha instrucción común, que debe
ser común para las mujeres y para los hombres, los que continuará en la siguientes
Memorias apuntando también las características de los distintos grados de instruc-
ción, así como las relativas a los maestros y otras profesiones. En una misma línea
de pensamiento que Rousseau, argumenta que es necesario establecer más grados
en la instrucción común para hacer a los ciudadanos capaces de cumplir funciones
públicas. Este cometido de formación en ciudadanía es constitutivo del ideario que
alienta la ampliación y la extensión de la educación pública y estatal en las políti-
cas educativas de nuestros países hacia la segunda mitad del siglo XIX y principios
del siglo XX.
5
También, al igual que Comenio, destaca la necesidad de proveer una
mayor educación en cantidad y complejidad cognitiva a quienes poseen talentos
destacados que pueden contribuir con una formación especializada al progreso
científico y al desarrollo social. Es interesante advertir que apunta principalmente
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
a la responsabilidad de la sociedad, aunque generalmente se le ha atribuido al
Estado – como mandatario social – dicha responsabilidad. Un tema al que otorga
atención especial es al papel de la enseñanza de las lenguas y las ciencias para la
socialización y la configuración de ciudadanía, que considera esenciales para la
comunicación y la expresión de las propias ideas, como también para no depender
de terceros en cuanto a los análisis, opiniones y posicionamientos personales ante
los problemas comunes, así como para considerar las opiniones y propuestas legis-
lativas de quienes ejercen roles políticos y gubernamentales (CONDORCET, 2008,
p. 94-96; p. 128-129). Creo que importa destacar su preocupación por favorecer a
través de la educación, el dominio y uso del lenguaje y la adquisición de los cono-
cimientos científicos básicos para favorecer la autonomía y evitar la dependencia
en cuanto a sus análisis y opiniones en los temas de interés público o común. Vale
la pena leer o releer la propuesta de Instrucción Pública presentada por Condorcet
ante la Asamblea de abril de 1792, así como las memorias de Condorcet, porque
en esos escritos -aparte de los ya señalados- hay principios políticos y pedagógicos,
así como consideraciones didácticas que aún hoy mantiene vigencia en diversas
propuestas y prácticas educativas.
Antes, en un primer pié de página, hice referencia a la concepción de A. Comte
sobre una moral cívica laica que se asienta en una religiosidad civil con valores
tales como el altruismo, el amor al prójimo, la abnegación y el sacrificio en aras de
afianzar el bien común. En buena medida son ejemplos de su observancia nuestros
próceres, muchos de ellos incluso ofrendaron sus vidas para defender la patria.
También apunté la reconversión de los símbolos y ritos de la religión teológica en
una religiosidad civil, muchos de los cuales son considerados y practicados en las
escuelas para afianzar la convivencia social y proveer una identidad nacional; co
-
metido en el que es fundamental el papel del magisterio. Sin duda que esta concep-
ción de la moral cívica es uno de los principales legados de Comte, además de sus
principios metodológicos para el conocimiento científico y el papel de éste en las
distintas disciplinas, que fueron decisivos para la elaboración de los propuestas cur
-
riculares de la educación básica y la secundaria en varios de nuestros países en la
segunda mitad del siglo XIX. Cabe señalar que no abordó con especificidad el tema
de las relaciones entre justicia social y educación, tampoco el tema de la democracia
dado que en su Sistema de Política Positiva apunta que deben ser los científicos
quienes gobiernen, ya que los políticos han perdido la confianza del pueblo en vir
-
tud de sus luchas y disputas egoístas para hacerse del poder material luego de la
Revolución, descuidando la atención de un bienestar general. No obstante, influido
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
por las tesis del llamado socialismo utópico, subyace en sus escritos la preocupación
por alcanzar un estadio generalizado de bienestar común a todos los individuos, a
través de un progreso sostenido de las ciencias y la aplicación de sus conocimientos
en las actividades productivas (GENEYRO; PUIG; CASALI, 2016, p. 76-83). Por
otra parte, cabe destacar que subrayó la importancia de lograr un “fondo común de
verdades”, con el fin de lograr identidad, convivencia y consenso social, condiciones
para lograr dicho progreso y el bienestar general.
6
Sin duda que varias de sus tesis,
por ejemplo las relativas a la organización social y el papel o función de las distintas
clases sociales, han merecido una multiplicidad de críticas. Vale la pena conocerlas,
así como también la revalorización de partes de su obra que han hecho distintos
autores en la actualidad. Al respecto, remito a una entrada sobre este autor, hecha
en el Diccionario Iberoamericano de Filosofía de la Educación (GENEYRO, 2016a).
En 1905, en función de su contexto histórico, político y social, Durkheim expone
un conjunto de argumentos para establecer la potestad del Estado para proveer una
educación común, obligatoria, laica y gratuita a todos los niños y jóvenes de su país
así como, a partir de ella, una educación heterogénea que brinde formación profesio-
nal acorde con los intereses y aptitudes de cada individuo. También sostiene como
uno de los fines principales de ese proceso educativo de socialización sistemática el
de constituir al individuo como una fuente autónoma de acción que apunta tanto a
configurar ciudadanía activa y participativa en la democracia como a proveer forma-
ción especializada para el desempeño laboral (con base en una educación homogénea
y, luego de ella, una heterogénea). En la línea del tema al que responde este artículo,
en distintas partes de su obra cuestionó al economicismo clásico en su concepción de
las funciones económicas como si fueran un fin en sí mismas y a la lógica del desar-
rollo del capitalismo industrial y los efectos o perjuicios sociales que originaba; en
esta perspectiva, señala, apelando a un principio del utilitarismo, pese a no compar-
tir muchas sus tesis y particularmente las relativas al papel del Estado:
[...] ¿de qué sirve acumular riquezas si no logran calmar los deseos del mayor número, si
no que, al contrario, excitan sus impaciencias? Se olvida que las funciones económicas no
son un fin en sí mismas, no son más que un medio para determinado fin, uno de los órganos
de la vida social, y la vida social es, antes que nada, una comunidad armónica de esfuerzos
[...] orientados hacia el mismo fin. La sociedad no tiene razón de ser si no brinda un poco de
paz a los hombres, paz en sus corazones y paz en sus intercambios mutuos. Si la industria
no puede ser productiva más que alterando esa paz y desencadenando la guerra, no vale la
pena que cuesta. [...]. No sólo importa que muchas cosas sean producidas, sino que también
lleguen regularmente y en cantidad suficiente a los trabajadores; que no se sucedan pe-
ríodos de abundancia y períodos de carestía. Ahora bien, la ausencia de reglamentaciones
impide esa regularidad (DURKHEIM, 2003, p. 78-79).
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Puede recordarse que los efectos perversos de ese desarrollo industrial de fi-
nes de siglo XIX fueron cuestionados también por el Papa León XIII, en su encíclica
Rerum Novarum de 1891.
Hice antes referencia a la importancia que otorga Durkheim al valor de la
autonomía; en el análisis que hace de la misma considera que su sentido y ejercicio
está abierto y relacionado con las condiciones reales de existencia que tienen los
individuos en su medio social; nuevamente aquí, como antes lo habían apuntado
Rousseau y Condorcet en sus respectivos planteos, Durkheim entiende que le cor-
responde al Estado el mandato de concurrir a la ampliación de derechos y a aten-
der a las condiciones de quienes están privados de una vida digna:
La persona forma parte del medio físico y social, al que está indisolublemente unida, por
lo que no puede ser más que relativamente autónoma. Y, entonces cuál es el grado de au-
tonomía que le conviene? La respuesta depende del estado de las sociedades [...]. Hubo un
tiempo en que la servidumbre material (la esclavitud), contratada en ciertas condiciones
no parecía en absoluto inmoral; la hemos abolido, pero ¿cuántas formas de servidumbre
moral sobreviven? ¿Puede decirse que un hombre que no tiene de qué vivir es autónomo,
que es dueño de sus actos? ¿Cuáles son, entonces, las dependencias legítimas y cuáles las
ilegítimas? No puede darse una respuesta definitiva a estos problemas. Los derechos indi-
viduales están en evolución: progresan sin cesar y no es posible ponerles un límite que no
deben superar. Lo que ayer no parecía ser más que un lujo, se convertirá mañana en un de-
recho. La tarea que incumbe al Estado es, entonces, ilimitada” (2003, p. 132, grifo nuestro).
Además de la importancia que tienen a mi juicio las categorías de dependen-
cias legítimas y dependencias ilegítimas, que constituyen la apertura para los
análisis que podemos hacer sobre nuestras propias realidades y distinguir unas y
otras. Creo que todo el sentido de este último texto y estas categorías apuntadas
puede orientar los interrogantes y el establecimiento de los indicadores (no solo
cuantitativos) que hoy en día pueden informarnos acerca del estado de la justicia
social en nuestros países.
Hago aquí una digresión: años atrás un filósofo italiano, Norberto Bobbio
7
,
apuntó con perspicacia que una disyuntiva atraviesa la mayor parte de los escri-
tos de filosofía política de la modernidad hasta nuestros días: ¿más iguales o más
libres? También Axel Honneth, en su última obra editada en castellano, La idea
del socialismo (2017), aborda las complejas y para él no resueltas interrelaciones
que establece la principal consigna de la Revolución Francesa: “libertad, igualdad,
fraternidad”, las que considera como promesas no cumplidas de la Revolución. En
este sentido, puedo decir que a mi juicio Durkheim es más demócrata que liberal;
esto es, al igual que Rousseau, privilegia el valor de la igualdad como condición
necesaria para el ejercicio de la libertad individual, entendiendo que dicha libertad
Justicia social, democracia y educación: la vigencia de viejos legados y desafíos presentes
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
supone y requiere el ejercicio igualitario de la misma por parte de sus conciuda-
danos. Esto es, supone una intersubjetividad que la instale como libertad social y
la despoje del individualismo posesivo, que se gesta, entre otros, en el legado de
algunas de las tesis de Hobbes, de B. Mandeville, de J. Locke y luego también en
algunos de los escritos de J. S. Mill
8
. Para cerrar esta primera parte, puedo desta-
car que las tesis de Durkheim sobre el papel del Estado, el de la sociedad civil y sus
organizaciones profesionales, así como sobre los perfiles éticos y procedimentales
que esboza para alcanzar una efectiva democracia han sido recuperados en los
últimos tiempos por distintos filósofos y científicos sociales, reconociéndolas como
un legado principal para contribuir a una mejor realización de la democracia, tanto
en Europa como en nuestra América (GENEYRO, 1991; GENEYRO et al., 2009;
GENEYRO; PUIG; CASALI, 2016)
9
.
Una reflexión recurrente hago cada vez que leo estos autores (otros también,
por ejemplo John Dewey), a los que he referido para caracterizar legados que de
una u otra manera ponen atención en los temas de la justicia social, la educación
y la democracia, sin olvidar que el primero tratado, Comenio, no tiene un contexto
socio-histórico donde la democracia esté instalada como una posibilidad de sistema
político y vida social: en nuestras democracias actuales, a siglos de las tesis de Co-
menio, de Rousseau, de Condorcet; de más de un siglo para las tesis de Comte o de
Sarmiento en cuanto a la Educación Popular, y también de Durkheim, persisten en
nuestros países fuertes indicadores de injusticia social que desmerecen y obstacu-
lizan la plena realización de los valores de la democracia. Este es indudablemente
un principal desafío.
Mientras escribo este artículo, hoy, 29 de abril de 2019, el Observatorio de la
Deuda Social Argentina, de la Pontifica Universidad Católica Argentina, ha dado a
conocer su informe Pobreza, derechos e infancias en la Argentina: 2010-2018 (POY;
TUÑÓN, 2019). Los datos son, sin vueltas, una tragedia social: casi cinco millones
de niños, niñas y adolescentes son “doblemente pobres”. Los menores comprendi-
dos en esta cifra viven en hogares que no alcanzan a cubrir la canasta básica de
alimentos y, además, tienen vulnerados derechos findamentals en al menos una
de las cinco dimensiones que considera el estudio: habitacional; acceso a la infor-
mación; saneamiento; saludo; educación y alimentación. El estudio indica que la
“pobreza multidimensional infantil” aumentó 4 puntos entre 2017 y 2018, período
en el que 600.000 niños y jóvenes entre 0 y 17 años pasaron a engrosar la esta-
dística de aquellos que están por debajo de la línea de pobreza por ingresos, pero
además tienen déficit de alimentación, vivienda, salud, información o estimulación
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
temprana/educación; revirtiendo la tendencia positiva de reducción de la misma
que se estanca a partir de 2016 y, desde entonces no ha habido avances significa-
tivos en este indicador. A tenor de los datos económicos que hay para los primeros
meses de este 2020, que no es dable esperar que mejoren significativamente a lo
largo del año, no es aventurado señalar que estos índices de pobreza aumentarán
todavía más. Queda a cargo de los lectores de otros países próximos indagar en
los informes e indagaciones relativas a los déficits y deudas sociales que perviven
a lo largo de los años por parte de quienes están carenciados o privados en una o
más de las dimensiones apuntadas, que bien pueden ser indicadores básicos para
ponderar el estado de la (in)justicia social en sus respectivas sociedades. He plan-
teado en otros trabajos que fue tarea del Estado, y sigue siendo ahora tal como lo
concibieron primeros autores de la filosofía política moderna tales como Hobbes y
Locke, garantizar seguridad de vida y seguridad de bienes a sus gobernados; tarea
que a juicio de esos autores lo arropaba de legitimidad ante los mismos. Con base
en ese mandato, creo que es necesario ampliar su sentido originario y sostener
que en la actualidad es el Estado quien debe de proveer aquellas condiciones que
garanticen a todos los niños y jóvenes aquejados por las situaciones de pobreza ma-
terial y simbólica una seguridad prospectiva. Porque, sin una vivienda digna, sin
una buena alimentación, cuidados de salud, una educación de calidad y sin acceso
a bienes esenciales, ¿qué futuro, que proyección de vida pueden tener esos niños y
jóvenes como individuos y como ciudadanos? Este es, a mi juicio, un primer desafío
principal e ineludible no solo para el Estado, sino también para la sociedad misma
y sus instituciones, porque es en ella donde viven y se proyectan como tales.
En una de sus últimas obras publicadas, que titula Educación y Justicia So-
cial en América Latina (2012), Juan Carlos Tedesco apunta una reseña de lo hecho
en educación – especialmente en educación primaria y secundaria – desde fines del
siglo XIX hasta fines del siglo XX, reconociendo tres modelos que orientaron las
políticas y acciones educativas en nuestra región:
- El primero, cuya variable clave es la política y su categoría principal la de
ciudadano, comprende desde los inicios de los Estados Nacionales en Amé-
rica Latina hasta la década de los años 60’ del siglo pasado. En este modelo,
apunta, la educación fue concebida como el proceso que haría posible homo-
geneizar culturalmente a la población y formar a las elites dirigentes.
- El segundo, cuyo primeros esbozos surgen hacia mediados del siglo XX y se
afianza en los años 60’s, concibe a la educación como la responsable de la
formación de recursos humanos para el desarrollo económico y social. Aquí,
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la variable clave es la economía y una categoría principal es la de recursos
humanos.
- Luego, le sucede el tercer modelo, gestado a principios de la década de los
años 90’s, en un contexto de déficit de sentido de la educación, que originó
exigencias de eficacia y eficiencia, asi como la aplicación de la lógica del mer-
cado a la producción y distribución de un bien común como el conocimiento.
Una variable que aparece con nuevos significantes es la de mercado, así
como también categoría de cliente (TEDESCO, 2012).
Como lo señalo en un trabajo para un libro en homenaje a Juan Carlos Te-
desco, fallecido en 2017, todo indica que algunos perfiles de los modelos reseñados
se manifiestan a lo largo de los años hasta nuestra actualidad; al menos, para
el caso argentino. Todavía mantiene vigencia el imaginario que asigna a la edu-
cación básica obligatoria (que hoy incluye la secundaria) el cometido de formar
en ciudadanía junto con algunos intentos de proveer también alguna formación
que capacite/habilite para el mercado laboral; propósito este último de muy poco
alcance y logro, considerando la retracción de dicho mercado en virtud del cierre
de pequeñas y medianas industrias, comercios y sectores de servicios, por obra y
gracia de la preeminencia del accionar especulativo del capital financiero, que en
mi país ha causado verdaderos estragos en los últimos años, con miles y miles de
desempleados. Por otra parte, a lo largo de los años, el desarrollo científico y tecno-
lógico y su aplicación en los distintos sectores de las actividades productivas y de
servicios demandan más y mejores conocimientos y capacidades, que implican una
ampliación de los trayectos educativos que posibilita dicha educación básica. Por lo
menos, hasta mediados del siglo XX, hubo una mayor correspondencia/pertinencia
entre la formación recibida en la educación primaria y secundaria; hoy la forma-
ción para el trabajo se ha desplazado en buena medida hacia la educación superior.
Todo un desafío para replantear los sentidos y alcances de todos y cada uno de los
niveles educativos.
Vale la pena apuntar aquí otro de los desafíos que hoy tenemos respecto a las
interrelaciones entre justicia social, democracia y educación: la paulatina amplia-
ción de los servicios educativos básicos que han favorecido el ingreso de niños y
jóvenes de poblaciones carenciadas de bienes y servicios fundamentales para sus
condiciones y proyectos de vida, ha estado acompañada por considerables índices
de lo que en la jerga pedagógica se denomina fracaso o abandono escolar temprano
(términos igual de antipático que el de deserción escolar).
Juan Carlos Geneyro
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Podríamos acordar que hay un cierto velo ideológico – para decirlo en términos
del Althusser – en el uso de esos términos porque, a la par que muestran hechos
que pueden cuantificarse, ocultan causales que inciden para que ello suceda. Vaya
una reflexión: más allá de las más conocidas y determinantes de índole económica
y social, también inciden los abandonos y fracasos pedagógicos institucionales; ge-
neralmente éstos no son admitidos o considerados en aquellos imaginarios que en-
dilgan a los propios alumnos o estudiantes dichos fracasos y abandonos. En verdad
muchas veces ellos son los abandonados por el sistema, acompañado también por
un desinterés social
10
¿Quién puede dudar que esta cuestión es un punto relevante
de toda agenda que se plantee alcanzar una mayor justicia social? Justicia social
que para su consecución requiere no solo una política programática sostenida por
parte del Estado sino también una interpelación y acciones consecuentes a aquel-
los sectores que detentan un mayor dominio y poder decisorio sobre las condiciones
que coadyuvan a las carencias y malestares endémicos de muchos individuos y gru-
pos sociales en nuestras democracias. En su libro, Tedesco apunta la importancia
de asegurar y proveer una educación de calidad para contribuir decididamente a la
constitución de individuos autónomos, activos, dignos y solidarios:
[...] la educación forma para el mercado de trabajo, pero también para la ciudadanía y el
desarrollo personal [...] si buscamos una sociedad con prosperidad para todos, la educación
debe lograr que cada uno decida o elija si quiere ser plomero, chofer de taxi o ingeniero o
abogado. Y una sociedad más justa y más igualitaria es aquella que ha logrado que todos
estén en condiciones de elegir qué lugar quieren ocupar (TEDESCO, 2012, p. 115).
Tiempo atrás, uno de los principales desafíos educativos que afrontaron nues-
tros países desde sus procesos de independencia y luego de organización de sus
Estados Nacionales fue Educar al Soberano que mereció políticas, leyes y acciones
destinadas al desarrollo de la educación en sus distintos niveles y, lo que no es
menor, erradicar el analfabetismo, considerado un valladar para quienes adolecían
de los mínimos conocimientos para la lectura y la escritura, en desmedro de las
condiciones habilitantes no solo para el ejercicio de la ciudadanía, sino también de
sus posibilidades laborales. En buena medida, se la logrado el abatimiento de ese
tipo de analfabetismo, pero subsisten otros posibles que constituyen nuevos desa-
fíos, para lo cual Tedesco apunta dos líneas de acción educativa: la alfabetización
científica y la alfabetización digital universal. Sin desmerecer la primera, que tra-
dicionalmente ha sido atendida en los distintos planes de estudio y probablemente
haya que revisar en sus supuestos, contenidos y finalidades, hoy en día adquiere
una principal importancia dicha alfabetización digital. Esto es, el acceso, disposi-
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
ción y uso informado de las tecnologías de la información y la comunicación. No
solo es una de las dimensiones a atender por la justicia social (incluida como una
de las variables para determinar niveles de pobreza en el estudio que mencioné
anteriormente) si no que también tiene una íntima relación con el ejercicio de la
individualidad y la ciudadanía en nuestras democracias.
En algunos trabajos he señalado que los nuevos lenguajes y recursos desar-
rollados por las tecnologías de la información y la comunicación, con múltiples
incidencias en los procesos de producción de bienes y servicios, al igual que en las
actividades de distintos ámbitos y organizaciones sociales, instalan nuevos desa-
fíos pedagógicos y didácticos para la educación y sus instituciones.
11
Para finalizar
este artículo quiero hacer algunas otras consideraciones, más directamente rela-
cionadas con el ejercicio de ciudadanía y la democracia. Nuestra historia indica que
la educación fue concebida como una vía insoslayable para configurar ciudadanía
y también para el desarrollo persona y social. Un lenguaje común y compartido fue
considerado también un atributo para ejercer dicha ciudadanía y relacionarnos
socialmente; así como para acceder al conocimiento y la información sobre las cues-
tiones e intereses públicos, favoreciendo la reflexión y el análisis sobre el acontecer
político y social. Desde los procesos de independencia, la prensa escrita primero,
luego también la radio, fueron instancias para difundir y compartir noticias, que
alimentaron el ejercicio cívico individual y también el colectivo. No obstante, hay
que advertir que algunos de esos medios de mayor edición y alcance, en el caso de
Argentina por lo menos, desde fines del siglo XIX expresaron particulares intere-
ses no solo políticos sino también económicos de determinados grupos dominantes
del sector. En las últimas décadas se ha sumado la televisión como otro medio
principal, de particular impacto por sus características y cobertura de audiencias;
también aquí se advierten los sesgos ideológicos que permean buena parte de las
noticias, análisis e informaciones de su programación. Tempranamente Dewey, ha-
cia fines de la década de los años 20’ en Estados Unidos, alertó sobre algunos efec-
tos de la concentración de la propiedad de los medios masivos de comunicación y
su accionar en la producción en masa de la opinión. Más recientemente, tanto Axel
Honneth (2014) como Rainer Forst (2015, p. 136-138) han puesto la atención en
cómo la televisión y la Internet pueden generar aparentes espacios e instancias de
información, participación y reflexión, que conviene advertir y superar mediante
aquellos espacios e instancias que impliquen el involucramiento directo con otros
en relación a los problemas y necesidades próximas a su vida cotidiana. Al respec-
to, Honnet (2014, p. 405) apunta lo siguiente:
Juan Carlos Geneyro
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
[...] la ampliación y la eliminación de las fronteras del espacio público de la comunicación,
posibilitadas digitalmente [podría generar] un espacio trasnacional de fronteras difumi-
nadas, de construcción democrática de la opinión y la voluntad, cuyas consecuencias no
tendrían beneficios para aquellos en el lugar donde están y en sus respectivas situaciones
de necesidad. La libertad social de la autolegislación democrática se agrandaría para un
grupo, el de la élites de orientación cosmopolita, pero para los otros, debido a la falta de
acceso a los temas e informaciones relevantes, se reduciría.
Consideraciones nales
Las perspectivas y situaciones apuntadas nos indican la necesidad de refle-
xionar sobre las incidencias actuales de esos medios de comunicación, algunos de
ellos muy orgánicos a particulares intereses, pero también las de los recursos y
escenarios que abren otros medios tecnológicos de información y comunicación (in-
ternet, facebook, twuiters, blogs, páginas y revistas en soporte electrónico, etc.),
así como preguntarnos sobre las disposiciones que deben favorecer los ámbitos y
procesos educativos para saber leer y escribir, saber discernir, analizar y disponer
de información, además de otros saberes tales como configurar y expresar ideas
y opiniones, dialogar, argumentar, peticionar, etc., todos necesarios para nuestra
vida personal y social que, tal como apuntan los legados expuestos, descansan en la
adquisición y manejo del lenguaje común y de los propios de los conocimientos cien-
tíficos y técnicos considerados indispensables en nuestros tiempos. Puedo, para
terminar, apuntar una paradoja: el avance sostenido en cuanto a la disposición y
uso que abren las nuevas tecnologías y dispositivos electrónicos, particularmente
para niños y jóvenes incluso en circuitos y relaciones por fuera de los ámbitos edu-
cativos (aunque aún entre ellos dista de ser de un acceso generalizado), coexiste
con una concepción de diseño de planes de estudios de talle único, desde un supues-
to (podemos caracterizarlo de contrafáctico) de ingreso homogéneo, cuando la rea-
lidad indica cada vez más que es necesario atender a la diversidad y desigualdades
sociales. Estos son algunos de los desafíos presentes y ellos son los que sostienen la
vigencia de algunos viejos legados.
Notas
1
A. Comte propondrá una religión positiva, sustentada en el Gran Ser, que es el acervo de ejemplos de
quienes en vida dieron muestra de asumir los valores postulados por la religión positiva. Es un precursor
de una propuesta de moral cívica asentada en lo sacro laico, que será retomada por E. Durkheim tiempo
después (GENEYRO; PUIG; CASALI, 2016, p. 76-90). Como he apuntado en otros trabajos, esta concep-
ción de lo sacro laico supone un traspaso de símbolos y ritos, una reconversión, de la religión teológica a
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
una religiosidad civil, que puede apreciarse en nuestras prácticas cívicas y educativas sobre todo a partir
de la organización de los Estados Nacionales en nuestra América: del Dios Padre al Padre de la Patria; de
la Biblia a la Constitución Nacional; del lábaro papal a la bandera nacional; de los salmos al himno y las
cancjones patrias; del santoral y las misas, a la conmemoración de nuestros próceres y fechas patrias; del
templo a la escuela; del sacerdocio al magisterio.
2
Solo a título de ejemplo: En El contrato social, la legitimidad de la coerción del Soberano sobre quien rehú-
se obedecer el mandato de la voluntad general, que forzará al individuo a “ser libre” acatándola...También,
sus tesis del Emilio, donde se educa a éste por fuera de la jurisdicción del Estado y el papel decisivo que le
otorga para impartir la educación en las Consideraciones sobre el Gobierno de Polonia.
3
Antes que Rousseau, tanto T. Hobbes como J. Locke, desde distintas premisas sobre la naturaleza humana
y también sobre el Estado, habían abordado las condiciones que favorecieran una convivencia social que
principalmente preservara la libertad, la seguridad de vida y de propiedad, con poca atención a aquellas
condiciones que propendieran a una mayor igualdad en cuando a las condiciones materiales de vida y los
derechos civiles y políticos entre los individuos integrantes/participantes del Estado Social. Pero en ellos,
como lo he planeado en otros trabajos, No se encuentran mayores consideraciones sobre la justicia social,
entendida como conjunto de condiciones que favorezcan una mayor equidad en cuanto al acceso y disposici-
ón de bienes básicos para una vida digna, autónoma y activa en términos culturales, políticos y económicos
(GENEYRO; PUIG; CASALI, 2016; GENEYRO, 2018).
4
Puede consultarse sobre estos temas el excelente trabajo de Ousset (2005).
5
En nuestra América, a modo de ejemplo, D. F. Sarmiento, exiliado en Chile, escribe Educación Popular,
obra editada en ese país en 1849. En dicha obra asienta: “[...] la última revolución en Europa (se refiere a
la Francesa de 1789) dará por resultado final en la práctica, como ya ha dado en principio, el derecho de
todos los hombres a ser reputados suficientemente inteligentes para la gestión de los negocios públicos por
el ejercicio del derecho electoral, cometido para todos los hombres adultos de una sociedad, sin distinción
de clase, condición o educación [...]. De este principio imprescriptible hoy nace la obligación de todo gobier-
no de proveer de educación a las generaciones venideras [...]. La condición social de los hombres depende
muchas veces de circunstancias ajenas a la voluntad. Un padre pobre no puede ser responsable de la edu-
cación de sus hijos; pero la sociedad tiene interés vital en asegurarse que todos los individuos que han de
venir con el tiempo a formar la Nación se hayan, por la educación recibida en su infancia, preparado sufi-
cientemente para desempeñar las funciones sociales a que serán llamados. El poder, la riqueza y la fuerza
de una nación dependen de la capacidad industrial, moral e intelectual de los individuos que la componen,
y la educación pública no debe tener otro fin que el aumentar estas fuerzas de producción, de acción y de
dirección, aumentando cada vez más el número de individuos que la posean” (SARMIENTO, 2011, p. 48).
6
Como bien se sabe, la influencia de los adherentes al positivimo comteano fue muy significativa en varios
de los países latinoamericanos a partir de la segunda mitad del siglo XIX; un ejemplo de ello es el lema de
Ordem e Progresso que porta la bandera nacional de Brasil. Por su parte Juárez en México, en los años
60’ del siglo XIX, utilizó la ley de los tres estadios (teológico, metafísico, positivo) para analizar el pasado
y presente de su país, en la llamada Oración Cívica de Guanajato.
7
Disponible en: https://www.nexos.com.mx/?p=4808. Acceso en: 14/8/2019.
8
Un análisis sobre la concepción de John Stuart Mill sobre este tema puede encontrarse en Geneyro, Puig
y Casali (2016, p. 75-111).
9
Uno de ellos es Axel Honneth, quien recupera tanto a Durkheim como a Dewey en dos de sus más recientes
obras editadas en español (2014; 2017).
10
Aunque merece un desarrollo particular, con base en un término de uso frecuente en pedagogía y didáctica,
el de trayectoria educativa, ceo que deberíamos instalar estaciones de servicio en distintos tramos y etapas
del recorrido, que le permitieran a cada alumno o estudiante ‒ según sus necessidades encontrar apoyos
o asistencias para poder proseguir su recorrido y alcanzar la meta.
11
Veáse Geneyro (2018).
Juan Carlos Geneyro
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
La participación social en la escuela en México:
¿un problema de democracia y cultura política?
1
Social participation in schools of Mexico:
¿Is there a problem in terms of democracy and political culture?
A participação social na escola do México: um problema de democracia e cultura política?
Pedro Flores-Crespo
*
Resumen
Este artículo cuestiona la tesis culturalista para explicar porqué la participación social no ha podido surgir en
el sector educativo de México. Basado en un trabajo empírico con escuelas secundarias de tres estados: Chia-
pas, Ciudad de México y Durango (n=27), este trabajo muestra que los individuos sí muestran predisposición
a intervenir de manera crítica y razonada en sus centros escolares, no obstante, no existen las estructuras de
oportunidad para ampliar competencias ciudadanas, esos mismos actores no parecen verse como iguales y hay
entendimiento supercial del mundo juvenil por parte de los maestros que impiden que la participación del
ciudadano se despliegue, pese al régimen autoritario construido por el sistema de partido único (1920-2000).
Palabras claves: Igualdad. México. Participación ciudadana. Secundaria.
Abstract
this article calls to question the idea that social participation and parental engagement cannot ourish in Mexico
due to an authoritarian path dependency. This idea is discussed by using empirical evidence of upper secondary
schools in three states of Mexico: Chiapas, Mexico City and Durango (n=27). Irrespectively of the context, stu-
dents exercise somewhat their democratic capacities. However, real opportunities for enlarging these capacities
are limited. Students are not seen as equals by teachers. Mentors, in addition, tended to underestimate young
people attitudes. In short, citizenship is emerging but school conditions have restrained such democratic rea-
soning (1920-2000).
Keywords: Deliberative democracy. Mexico. Citizen engagement. Upper secondary school.
*
Profesor-investigador de la Universidad Autónoma de Querétaro (FCPyS). México. ORCID: 0000-0002-5508-1464.
E-mail: pedro.orescrespo@uaq.mx
Recebido em 27/02/2019 – Aprovado em 23/06/2019
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v26i3.9446
La participación social en la escuela en México: ¿un problema de democracia y cultura política?
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Resumo
Este artigo questiona a tese culturalista, para explicar por que a participação social não pode surgir no setor
educativo do México. Baseado em um trabalho empírico com escolas secundárias de três estados: Chiapas, Ciu-
dad de México e Durango (n=27), este estudo evidencia que os indivíduos mostram predisposição a intervir
de maneira crítica e fundamentada em seus centros escolares; não obstante, por não existirem estruturas de
oportunidade para ampliar competências cidadãs, esses mesmos atores não parecem ser vistos como iguais,
havendo entendimento supercial do mundo juvenil por parte dos professores, que impedem que a participa-
ção do cidadão se efetive, apesar do regime autoritário construído pelo sistema de partido único (1920-2000).
Palavras-chave: Igualdade. México. Participação cidadã. Escola secundária.
Introducción
En un estudio sobre política educativa, Pablo Latapí-Sarre (2004, p. 313),
asienta que, en México, la participación de la sociedad ocurre en un contexto cul
-
tural y político en donde es visible “una ausencia de una cultura democrática de-
bido al régimen autoritario y prácticamente monopólico”. Para este analista, la
pasividad de los gobernados se debe al paternalismo del Estado que “coarta el
ejercicio de sus derechos ciudadanos formalmente reconocidos” (LATAPÍ-SARRE,
2004, p. 313).
Pero, ¿será verdad que hay una ruta de dependencia con el pasado que no nos
permite actuar de modo democrático dentro de las escuelas para mejorarlas? ¿Es
tan fuerte El Ogro Filantrópico (PAZ, 1979) para no dejarnos desplegar la parti-
cipación ciudadana? Este es el punto que abordaré en este artículo. El argumento
central es que no necesariamente tenemos un problema de cultura, sino de falta
de estructuras y reglas de participación dentro del espacio escolar. Esto se sostiene
con los resultados de un estudio empírico realizado en 27 escuelas secundarias
(n=27) de Chiapas, Ciudad de México y Durango.
El texto está dividio en tres partes principales. En la primera hablaré de algu-
nas líneas de análisis de Latapí-Sarre (2004) y Zurita (2008; 2010) sobre la partici-
pación social. Específicamente, trataré de subrayar qué lecciones hay en la materia
y qué vacíos surgen a partir de sus investigaciones. Segundo, haré un repaso de los
estudios más recientes sobre la política de participación social tratando de ofrecer
nuevos elementos para su análisis. En la tercera y última parte, hablaré de algu-
nos hallazgos de la investigación empírica.
Pedro Flores-Crespo
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Los problemas para participar democráticamente
México es una democracia joven. Apenas en el año 2000 cambió el régimen de
partido único (El PRI, Partido Revolucionario Institucional) por una democracia
basada en elecciones relativamente limpias y competidas.
La herencia que dejó el régimen autoritario del PRI sobre la cultura política
de los mexicanos ha sido objeto de estudio de varios especialistas. En el ámbito de
la educación, Latapí-Sarre (2004, p. 313) manifiestaba que la participación de la
sociedad ocurre en un contexto cultural y político en donde es visible “una ausencia
de una cultura democrática debido al régimen autoritario y prácticamente mono-
pólico”. Para él, la pasividad de los gobernados se debe al paternalismo del Estado
que “coarta el ejercicio de sus derechos ciudadanos formalmente reconocidos”.
En el advenimiento de la democracia, Observatorio Ciudadano de la Educa-
ción (OCE) (OCE, 1999), fundado por Pablo Latapí-Sarre, retomaba el tema de la
participación ciudadana en la escuela, específicamente, a través de los Consejos
Escolares de Participación Social (CEPS). Ahí OCE identificaba las causas de la
inoperancia de los CEPS en la escuela mexicana.
1. la inadecuación del modelo propuesto en la ley general de educación a las
circunstancias concretas del plantel,
2. la confusión entre sus atribuciones y las de las asociaciones de padres de
familia,
3. las resistencias de algunos directores y maestros,
4. los intereses sindicales o partidistas,
5. la ausencia de hábitos de participación.
De estos cinco factores, dos de ellos hacían referencia al diseño institucional
de la políticas, uno era una variable externa (la que se refiere al sindicato) y dos a
la manera en que se comportan y actúan los agentes escolares. Para OCD (OCD,
1999), había resistencias de maestros y directivos, así como una ausencia de hábi-
tos de participación.
Para autores como OCE y Latapí-Sarre, era urgente, “democratizar el poder
sobre la educación” (LATAPÍ-SARRE, 2004) y esto lo intuían desde antes que la
democracia se instaurara en México. En 1992, por ejemplo, Latapí-Sarre (1992)
reafirmaba que “[l]a democracia no son sólo los episodios electorales, sino una rela-
ción activa entre gobernantes y gobernados en las decisiones cotidianas”.
La participación social en la escuela en México: ¿un problema de democracia y cultura política?
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Cuando uno repasa los factores que podrían explicar la débil participación
social en México, uno también puede hallar otra clasificación. Aquellos que tienen
que ver con la “oferta”, es decir, los que parten desde el gobierno y los que están
circunstritos en la sociedad (“demanda”). Entre estos, podemos encontrar la falta
de “hábitos de participación” de los padres de familia o las “resistencias” de los
maestros y directivos (LATAPÍ-SARRE, 2004).
Pese a la utilidad de esta clasificación (“oferta y demanda”), no podemos decir
que ambas dimensiones están completamente disociadas, más bien la pregunta es
cómo se recrean en una relación funcional: si el gobierno sofoca el florecimiento
ciudadano, los hábitos de participar pueden menguar y viceversa, si ciudadanos no
presionan a los gobiernos, éstos no tendrán incentivos para crear una “institucio-
nalidad democrática”. Sobre esta base se tratará de construir una nueva explica-
ción sobre el desarrollo de la política de participación social.
Pero pasemos ahora a la segunda parte del texto. ¿Qué se ha dicho sobre la
participación social en la escuela y qué lecciones podemos recoger para emprender
nuevos estudios en la materia?
Qué se sabe sobre participación social
2
El estudio de la participación social en México se ha desarrollado en los últi-
mos años. Incluso, se fundó, una red de investigadores sobre participación social
que está compuesta por colegas de distintos centros de estudios y universidades
públicas del país.
Una de estas colegas es Úrsula Zurita (2008; 2010), quien ha conducido dos
estudios sobre la participación social en las escuelas de México. Una de ellas, tuvo
un universo amplio y se intituló, Evaluación Nacional de la Participación Social
en la Educación Básica 2000-2006 mientras que la segunda, fue regionalmente
acotada ya que tomó el caso de la Ciudad de México.
En la primera investigación, se analiza la participación en los tres niveles
de educación básica (preescolar, primaria y secundaria) al igual que en varias de
sus modalidades (general, indígena y comunitaria). Las preguntas que guiaron el
estudio de Zurita fueron cómo los actores escolares viven la participación social,
cómo la valoran y cuáles son sus expectativas sobre ella. Es decir, se centró en los
atributos de la “demanda”.
Uno de los hallazgos más sobresalientes fue que la política de participación sí
ha permeado, discursivamente, a las escuelas y se le valora positivamente. Pese a
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ello, Zurita (2008) aclara que prevalecen sentimientos de temor, desconfianza y re-
chazo de la participación social. Hay, por lo tanto, una ambivalencia de los actores
escolares sobre el tema.
Otro punto que detecta Zurita (2008) es que los padres no saben en qué acti-
vidades participar, pero éstos no se duermen en sus laureles y demandan también
capacitación, información, apoyo, acompañamiento y asesoría para impulsar la PS.
Este hallazgo nos muestra que sí parece haber una predisposición a participar, la
cultura vertical del régimen político quizás ya no permea lo suficiente a los padres
de familia para inmovilizarlos, sin embargo, éstos no encuentran la “estructura de
oportunidades para ampliar sus capacidades ciudadanas”. Explicaré más adelante
este punto.
Participar activamente en la escuela o en la comunidad demanda habilidades
y destrezas que cuando se echaron los consejos de participación, se dio por sentado
que las poseíamos. La Secretaría de Educación Pública (SEP) pudo ser entonces un
“pedagogo democrático”, cosa que no oucrrió.
Posterior al estudio de la Evaluación Nacional, Zurita en 2010 concentra su
atención en un solo nivel educativo: el de primaria. Ahí, recaba información, me-
diante una encuesta, con cuatro actores escolares: (1) supervisores, (2) directores,
(3) maestros y (4) padres de familia. Para Zurita, sí hay participación social, pero
de manera heterogenea y diferente a lo que se plantea en los modelos oficiales.
Este hallazgo muestra por un lado, que sí hay “inadecuación” entre el modelo
oficial de PS y la realidad de las escuelas, como señaló Observatorio hace más diez
años; pero por otro, vuelve a enfatizar que los actores sociales no son pasivos, sí
están involucrándose en los asuntos escolares. Hay entonces un matiz para no
suscribir automáticamente la idea de los Ciudadanos imaginarios (ESCALANTE,
1993).
Otra observación de Zurita (2010) es que la inclusión de los estudiantes como
protagonistas de la PS es inexistente. ¿Bajo qué idea se prescinde del niño o del
joven en las discusiones para mejorar la vida escolar? ¿Será que la política de par-
ticipación social sigue impregnada del paternalismo clásico del antiguo régimen?
¿No ve el gobierno a los niños y a los jóvenes como individuos capaces de actuar
razonadamente?
Sobre este punto, es muy interesante que Zurita (2010) haya encontrado que
existe un temor por parte de directores y maestros de “politizar” la escuela si inclu-
yen a más miembros, cuestión que no ocurre ni en Brasil ni en Perú, según otros
estudios.
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Pareciera que en las escuelas hay temor de discutir asuntos escolares, ¿por
qué?, ¿es esto un reflejo del autoritarismo político instaurado por el régimen del
partido único? Latapí-Sarre (2004, p. 313-314) suscribe la fuerza de la cultura au-
toritaria del régimen político sobre el actuar pasivo de las personas, no obstante,
también intuye algo importante: “Toda cultura política se construye a partir de
prácticas institucionales”. Esto punto es clave para avanzar la explicación en la
materia de las políticas públicas. Con su intuición, Latapí-Sarre nos ayuda a pen-
sar cómo las diversas perspectivas del nuevo institucionalismo (NORTH, 1995)
podrían explicar las fallas de la política de la participación social en la escuela y
en el campo de la política educativa de México. Con esta perspectiva, hay posibili-
dades de rebasar las “tesis culturalistas”. No todo lo explica la “cultura” dado que
los individuos podemos negociar nuestras tradiciones y crear, mediante la práctica,
reglas distintas de las que “vienen” del pasado. Sobre esta basa de interpretación
social es que se construyen los argumentos de este texto. Pero sigamos con la revi-
sión de literatura.
El OCE observaba que a pesar de que el gobierno anunciara la instalación
multitudinaria de consejos escolares (CEPS), no había evidencia de su funciona-
miento. Esta situación cambio. La SEP, en 2012, condujo un estudio para crear
indicadores del “ciclo funcional” de los CEPS. Basándose en el Registro Público de
Consejos Escolares, la SEP estableció cuatro etapas de dicho ciclo, a saber:
a) Conformación: abarca la integración del Consejo Escolar, el nombramiento
de sus diferentes cargos, las instalaciones de los comités y la planeación de
las actividades que realizará durante el ciclo escolar.
b) Gestión: se refiere a la operación de los consejos.
c) Evaluación: orientada a explorar los resultados que obtiene el consejo esco-
lar en relación a las actividades y metas puntuales.
d) Transparencia y rendición de cuentas: los CEPS cumplen con una función
de transparencia en tanto pone a disposición pública la información gene-
rada en las sesiones y asambleas (SECRETARÍA DE EDUCACIÓN PÚBLI-
CA, 2012, p. 14).
Los resultados muestran que a mayor complejidad de las funciones de los con-
sejos, menores instancias de este tipo se involucran. Por ejemplo, en la fase de
conformación, se dijo que existían 192,115 CEPS registrados. Esto representa 79,5
por ciento del total de los centros escolares del país, de educación inicial, especial y
básica. Otro hallazgo interesante es que los servicios indígenas de preescolar y pri-
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maria, superan por mucho el promedio nacional de cobertura en un 98 por ciento y
97,4 por ciento respectivamente, lo que hace pensar que en zonas de mayor desven-
taja se logran instaurar en mayor medida los esquemas formales de participación
social (SECRETARÍA DE EDUCACIÓN PÚBLICA, 2012).
En la segunda fase (gestión), la SEP (2012) reporta que sólo 14 por ciento
de los CEPS realizan tareas como la “integración de comités temáticos, búsqueda
de programas educativos de apoyo y determinación de metas con base en los re-
sultados de la prueba Enlace” (SECRETARÍA DE EDUCACIÓN PÚBLICA, 2012,
p. 46). En esta fase, llamo la atención que sólo uno por ciento de los CEPS expre-
saba tener algún tipo de vinculación con el Consejo Municipal o Estatal de Parti-
cipación Social, lo que podría significar que la escuela y la comunidad no parecen
estar interrelacionadas.
Por otra parte, en la tercera fase (evaluación), se reporta que sólo 14 por ciento
de los CEPS estableció metas para mejorar los resultados de Enlace.
Por último, en la fase de transparencia, el informe sobre los indicadores revela
que del total de CEPS conformados, sólo ocho por ciento reportó conocer el plan
de trabajo de la escuela, lo que representa un total de 16,002 consejos. Aún más
preocupante es que solo 0,3 por ciento del total de los CEPS reportó información
para generar un informe de transparencia y rendición de cuentas (SECRETARÍA
DE EDUCACIÓN PÚBLICA, 2012).
En síntesis, los resultados de las fases de los consejos escolares, no son alen-
tadores. Entre más complejas son las atribuciones de los CEPS, un menor número
de ellos realiza tales funciones. Esto indica la necesidad de no dar por sentado que
tenemos conocimientos y habilidades para participar. Habrá que desarrollarlas y
en ello, la SEP tendría que reconocerse como un “pedagogo democrático” que en pri-
mer lugar, no le tenga temor a la participación y para ello, reconozca a los agentes
escolares como responsables de su actuación y que proponga una “estructura de
oportunidades” para ampliar las competencias ciudadanas.
Para reforzar este punto, se puede decir que la literatura sobre la participa-
ción social en la escuela muestra que a medida que se transfieren mayores respon-
sabilidades a los actores educativos, se potencia la intervención y se extienden las
posibilidades de decisión colectiva. En algunas áreas de Brasil, por ejemplo, no hay
miedo ni temor – como en el caso mexicano, ver Zurita (2008) – a que los actores
tengan atribuciones complejas tales como elegir a sus directivos. Al elegir a los di-
rectivos, según Leite et al. (2012), se reduce la brecha entre la parte administrativa
(dirección) y la parte pedagógica (coordinadores).
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En resumen, la participación parece no surgir de manera automática o es-
pontánea, hay que cultivar las bases para desplegar capacidades ciudadanas y de
participación democrática y aquí la SEP tiene una responsabilidad como “pedagogo
democrático”.
Hasta aquí, se han resaltado al menos cuatro lecciones de la literatura revi-
sada. Primero, los estudios empíricos muestran que la ausencia de participación
ciudadana no está del todo presente. Los sujetos participan de una u otro manera y
de manera heterogenea como apunta Zurita (2010). La pasividad de los agentes es-
colares, como aparece en los recientes estudio, tendrá que ser revisada en el futuro.
Segundo, al echar a andar los CEPS, se dio por sentado que los mexicanos
teníamos las habilidades para participar en las comunidades y en las escuelas,
sin embargo, son los propios actores como los padres de familia, los que demandan
capacitación para poder hacerlo. Esto levanta la necesidad de pensar – una vez
más - en un “pedagogo democrático” que nazca desde la SEP, aunque la duda que
me invade a este respecto es a qué grado una oficina del gobierno puede promover
de modo genuino la participación ciudadana.
Tercera observación: parece prevalecer una visión estrecha sobre quiénes son
los niños y jóvenes y cómo podrían participan en la vida escolar. Esta estrecha
visión sigue presente. Es sintomático que la SEP pretende formar niños y jóvenes
que conozcan las reglas de convivencia, que aporten sus habilidades para el trabajo
colectivo, que actúen con apego a los valores democráticos y que dialoguen para
solucionar conflictos, pero que no estén, ni los niños ni los jóvenes, considerados
como sujetos actuantes y con voz dentro de los CEPS.
Cuarta y última observación recogida de la revisión de literatura: entre más
libertades existan para las escuelas y sus agentes escolares, la participación social
puede irse acrecentando. Esto aún se mira con resquemor por parte de la SEP, a
pesar de que la Ley General de Derechos de las Niñas, Niños y Adolescentes, es-
tipula que la libertad de expresión conllevará el derecho a que se tome en cuenta
su opinión respecto de los asuntos que les afecten directamente, a sus familia o
comunidades (Artículo 64).
Entonces, ¿quién le teme al empoderamiento de los agentes escolares? ¿Las
grandes burocracias como la SEP y el Sindicato Nacional de Trabajadores de la
Educación (SNTE)? Con respecto a este último actor, vale la pena decir que ningún
estudio reseñado en nuestro estudio habló del SNTE como un impedimento para la
participación social en la escuela. Esto resulta extraño, ya que en su libro la SEP
por dentro, Latapí-Sarre (2004) recoge argumentos de ex secretarios de Educación
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Pública que apuntaron hacia una oposición “histórica” del sindicato a esta política.
¿Será que ya desistieron de pelear este punto? No se sabe y mayor información
es necesario. Pasemos ahora a presentar los resultados de nuestra investigación
empírica.
Participación en la secundaria: dos mundos
3
La pregunta que guió esta investigación fue: ¿a qué grado los agentes escola-
res son capaces de promover la participación social a pesar de haber padecido un
régimen político vertical y corporativista? Para ello, acordamos una metodología
basada en tres etapas:
1. Elegimos el nivel de secundaria, dado que es este tramo de la educación
básica obligatoria la que presenta, según los estudios del INEE, los mayores
problemas en términos de aprendizaje. Es la secundaria de México la que
alimenta el rezago educativo, el cual como ustedes saben rebasa los 33 mil-
lones de personas. Además, estudios sobre la participación en la primaria
son más comunes.
2. Nos concentramos en las secundarias públicas generales en tres estados
de las República Mexicana: Chiapas, Durango y Ciudad de México. Estos
estados los elegimos por medio de un criterio regional y de diversidad cultu-
ral. Luego seleccionamos diez escuelas por cada estado de acuerdo con dos
criterios: desempeño académico según la prueba Enlace (nivel alto, medio,
bajo) y si tenían instalado en consejo de participación social. Al final tuvi-
mos acceso a 27 centros escolares.
3. La información la recabamos mediante dos instrumentos: una encuesta a
los directores y una entrevista colectiva (grupos de enfoque) a estudiantes,
maestros y padres de familia. Con el propósito de llenar los vacíos que ad-
vertimos en la revisión de literatura, elegimos a los estudiantes como in-
formantes clave y no sólo a los padres, maestros y directores como se había
hecho en la mayoría de las investigaciones.
4. ¿Qué resultados obtuvimos? Primero, ante la pregunta de si los estudiantes
eran sujetos participativos, los maestros, de las diversas escuelas de los tres
estados, coincidieron en tener una visión bastante pesimista de los jóvenes
estudiantes. Los tachan de “apáticos” a pesar, dicen ellos, de tener más re-
cursos que las pasadas generaciones.
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Una maestra de la Ciudad de México afirmó que los jóvenes estudian porque
los obligan y otra de Chiapas, remató diciendo que están faltos de valores y por eso
hay muchos problemas como el del consumo de alcohol y drogas. Cuando se pre-
guntó sobre qué factores puede producir esas supuestas actitudes, los docentes de
Durango y Chiapas culparon directamente a lo que ocurre en la casa. El siguiente
testimonio es revelador en varios sentidos:
Hace años venía en los códigos que se debía castigar al padre si el niño delinquía […] la
responsabilidad del hijo es del padre no del maestro, porqué yo voy a ser maestra de [ese]
hijo por dos o tres años [mientras] que él [el padre] va a ser toda la vida.
¿Debe el Estado castigar al padre si el joven delinque? ¿No debería ser el
adolescente responsable de sus actos? La responsabilidad sobre nuestras acciones
nos hace ciudadanos y en las las democracias liberales se busca precisamente este
objetivo: crear sujetos responsables de sus actos.
Otro de los “villanos favoritos” de la aparente falta de valores de los jóvenes
– que en realidad, eran valores de los adultos – era la tecnología. Un profesor de
Chiapas aseguró que la televisión, el internet y el celular es “su mundo” de los
chicos y cuesta trabajo que aterricen en su clase. ¿Será que a los jóvenes no les
interesa estudiar, aprender y obtener conocimiento?
Con ese visión pesimista de la juventud, iniciamos las entrevistas colectivas
a los jóvenes de entre 12 y 15 años. ¿En verdad son los individuos que piensan sus
maestros? ¿Está perdida la causa de la participación social si confiaramos en los
jóvenes? Al preguntarles a los muchachos en una escuela de Chiapas, qué es la
democracia, obtuvimos los siguientes testimonios:
[La democracia es] la participación, la opinión o la expresión que nosotros hacemos para
dar un puntos de vista, es decir, la democracia [se piensa] que es votar, pero en mi punto
de vista, no sólo es votar, sino tomar decisiones tanto en nuestra vida interior como exterior.
Otro joven complementó esta idea diciendo que la democracia se piensa como
aspectos del mero gobierno, pero no, también, según él, tiene que ver con nosotros”.
Al rebasar la noción clásica de democracia representativa, los jóvenes coinci-
den con Latapí-Sarre (2005, p. 47) cuando expresa que la democracia no consiste
sólo en “episodios electorales”, sino en una “relación activa entre gobernantes y
gobernados en las decisiones cotidianas”.
Pero en nuestra investigación, no sólo quisimos indagar cómo conceptualiza-
ban los estudiantes la democracia, sino que también nos propusimos explorar cómo
estas ideas podían realizarse en la vida cotidiana y escolar de los jóvenes. Para ello,
tratamos de observar ocho competencias ciudadanas. Estas eran:
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1. Identificación de problemas escolares.
2. Capacidad crítica
3. Asumir responsabilidad
4. Expresión pública de los problemas
5. Defensa de argumentos propios
6. Búsqueda de soluciones
7. Diálogo abierto
8. Capacidad para actuar colectivamente.
Gracias a los grupos de enfoque, pudimos corroborar algunas de estas compe-
tencias en las distintas escuelas de los tres estados seleccionados. En un ejercicio
primario de triangulación de testimonios, pudimos constatar la inconformidad de
los jóvenes con diversas condiciones de sus escuelas. En San Cristóbal de las Ca-
sas, Chiapas, un joven expresó, “no tenemos espacio […] ni recursos para construir
una escuela […] sólo hay dos maestros y nos toca pintar las paredes para poder
estar aquí [además] tenemos que contribuir a comprar las escobas”.
El nivel de exigencia académica de los jóvenes fue patente también en la Ciu-
dad de México donde un muchacho expresó. Ante la pregunta de cuáles son los
problemas de su centro escolar, un joven describió los problemas que tenía con un
maestro de Historia. Dijo:
según es abogado y casi nunca viene y cuando llega a venir nada más se la pasa diciendo
que nos portemos bien, nunca nos da clases. Nada más nos deja estar copiando en el libro
y no nos enseña nada, me cae mal.
El testimonio del joven de Chiapas es muy interesante, ya que se quejó de una
actividad que ha sido tomada recurrentemente como expresión de la participación
social y esto es que se mejore la infraestructura escolar. Pocos nos negaríamos a
que los jóvenes embellezcan sus espacios de estudio, el punto aquí es que el estu-
diante logró identificar un problema mayor y que es no tener espacios de estudio,
ni al patio podían salir a jugar, expresó.
En el caso del joven de la Ciudad de México, es interesante porque luego de
quejarse de las ausencias de su profesor y de su manera de dar clases, emite un jui-
cio: “me cae mal” porque no enseña nada. Este testimonio contrasta con la visiones
pasivas y conformistas que mantenían algunos profesores de los propios jóvenes.
¿Será que el profesor y el estudiante no se están entendiendo?
Nuestro estudio (RAMÍREZ, A., 2015; RAMÍREZ, L., 2015) mostró una amplia
brecha entre lo que son en realidad los jóvenes y lo que expresaron de ellos sus
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profesores. Bajo esta premisa, ¿podría desencadenarse procesos de participación
activa y colectiva? Dejo este punto abierto para tratarlo en las conclusiones, mien-
tras sigamos repasando algunos testimonios de los jóvenes que dan cuenta de sus
competencias democráticas.
Como mencioné arriba, asumir la responsabilidad de nuestras acciones nos
hace mirarnos como individuos. Nosotros y no la corporación es la que decide qué
hacer y esto acarrea consecuencias para los otros.
Al preguntarles a los jóvenes sobre qué hacen para tener éxito en la escuela
expresaron lo siguiente: “Los profesores y padre de familia están involucrados en
ello, pero también depende de nosotros ‘más que nada’, porque si tú no buscas la
manera y el apoyo [no lo lograrás]”. En Durango, una secundaria introdujo, por
iniciativa del director, un programa orientado a la disciplina con el tema de la au-
torregulación. Ahí, los jóvenes expresaron que era útil porque podían controlar sus
acciones y no estar a expensas de que te digan qué debes hacer.
Ya se ha dicho que los jóvenes parecen ser conscientes de la problemática de
sus escuelas y se expresan abiertamente. Asimismo, en el breve repaso de testimo-
nios tampoco se ve que valoren positivamente la ausencia de los maestros “barco”
y sus métodos arcaicos de enseñanza. También hemos dicho que parecen hacerse
responsable de sus actos, pero la pregunta es: ¿buscan soluciones en conjunto a sus
problemas para poder defender que sean miembros de los CEPS?
Fue muy interesante constatar que los jóvenes sí actuaban en referencia de
varios temas que les afectaban sensiblemente como el hostigamiento escolar y otros
que eran más de consciencia ecológica. En Durango, por ejemplo, nos contaron que
hubo un problema de venta de drogas dentro de la secundaria y que ahora ya no
es así. La solución fue que ellos mismos hablaron con el drugs dealer para pedirle
que el negocio lo hiciera afuera del centro escolar, de lo contrario hablarían con los
maestros. Pese a lo preocupante de tal situación, se puede decir que los jóvenes re
-
solvieron un problema dentro de su espacio escolar y se lo trasladaron a otros actores
(policía, sociedad) que debería cuidar, en teoría, lo que ocurre fuera de las escuelas.
Retomo ahora el punto de la tensión entre la labor del maestro y las actitudes
de los estudiantes. Es muy pertinente por los tiempos que vivimos discutir el equi-
librio de poder que tienen tanto profesores como estudiantes dentro de la escuela
mexicana y si tal situación es benéfica.
Sin visiones candidas de ningún lado, hay que analizar si el relajamiento de
la disciplina y la falta de valores que observan los maestros no es más que una
mutación de la cultura juvenil. Me explico: los jóvenes parecen tener márgenes de
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libertad más amplios por la manera en que hoy vivimos y esto puede hacerlos más
reactivos, seguros, conscientes de sus potencialidades, con mayores riesgos pero
también más individuos.
Sobre el desequilibrio de poder en la escuela, los jóvenes decían que ellos lle-
vaban las de perder si hay un problema con un profesor. Una estudiante de Duran-
go dijo lo siguiente:
una maestra con la que tuvimos un problema nos trajo a su papá que era el supervisor de
toda la zona – o algo así. El señor nos dijo, “levántense el que quiera respetar a la maestra”
y la mayoría no se levantó. [Luego] nos preguntaron que por qué y una niña preguntó: ¿Por
qué ella no nos respeta a nosotros también? Y entonces la maestra hizo su cara de “claro
que no” [los respeto]. Cuando se fue el profe, dijo que no le interesaba lo que fueran a decir,
que su papá podía hacer lo que ella quisiera.
Ante las ínfulas de la maestra, enfrentar a un profesor como lo hizo esa joven-
cita de Durango, alienta. Es un pequeño gesto que me hace pensar en lo grande que
puede ser la independencia de la persona ante el poder.
Una de las conclusiones de nuestro estudio es que mientras no haya una cons-
ciencia y una manera concreta de mirarse como iguales profesores y estudiantes,
será muy difícil propiciar procesos de participación social.
Quizás esta observación pueda enriquecerse con la ayuda de George Homans
(1961 apud ALEXANDER, 1990), quien observó que un grupo de personas que convive
y se interrelaciona constantemente puede llegar a desarrollar una cultura que antes
no existía y además, puede acatar ciertas normas. No obstante, este principio tiene
una salvedad, como explica Randall Collins (1975 apud ALEXANDER, 1990), de que
el proceso de grupo se produce solamente cuando sus miembros parten de un plano de
igualdad. Vaya reto, sentirnos iguales para interactuar, participar y cooperar.
Entonces, no crear ni sentirse dentro de condiciones de igualdad parece entor-
pecer la participación ciudadana. ¿Por qué? Porque es difícil que uno acepte que
alguien de menor jerarquía establezca lo que está bien o mal, mucho menos que te
diga qué hacer para mejorar el proceso educativo.
Reexiones nales
Uno de los argumentos centrales de este artículo fue que, a partir del trabajo
empírico, se analice la participación social en la escuela bajo un encuadre analítico
que sea capaz de integrar los factores gubernamentales que impiden el surgimien-
to de la ciudadanía en la escuela con aquellos de los propios agentes escolares. De
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esta manera podríamos rebasar las tesis culturalistas en los que se asientan cier-
tas explicaciones sobre las fallas de la política de participación ciudadana.
Aunque a nivel macro, la participación no electoral en México parece ser, en
general, desestructurada (IFE, 2014), diversos estudios empíricos recientes han
mostrado que también es visible una ciudadanía “inesperada”, como bien lo detec-
taron Ariadna Acevedo y Patricia López (2012).
En este estudio se cuestionó la idea de que no hay participación ciudadana en
la escuela porque una determinada “cultura política” nos lo impide. Hay esfuerzos,
iniciativas y voces que no encuentran eco en una estructura formal de participa-
ción. Sigue habiendo, por lo tanto, “inadecuación” entre lo oficial y lo real y para
poder sobre pasar esta situación no se necesitan hacer más lineamientos cada año
de la operación de los consejos escolares. El reto es mayúsculo.
Crear un “pedagogo democrático” desde la SEP consistiría en imaginar y abrir
oportunidades para que los niños, jóvenes y sus padres de familia amplían sus
competencias ciudadanas. Es precisamente desde la “desarticulada” pero espontá-
nea participación desde donde se deben planear los cambios. Uno de estos cambios
sería promover planos de igualdad entre maestros y estudiantes para que pueda
haber interrelación grupal, se compartan normas comunes y se avance en lo social.
Quizás al decir esto estamos ahora frente a dos anhelos inseparables la cons-
trucción ciudadana para desarrollar nuestra débil democracia y la igualdad de
libertades y recursos para poder constituir la justicia social. El debate está abierto.
Notas
1
Esta investigación fue financiada por el Conacyt y la realicé junto con Ana V. Ramírez y Laura Ramírez.
2
Este apartado se basa en el artículo La participación social en la escuela en México que escribí con Ana. V.
Ramírez Ramón (FLORES-CRESPO; RAMÍREZ RAMÓN, 2015).
3
Esta parte la escribí con base en la tesis de maestría de Laura Ramírez (2015).
Referencias
ACEVEDO, A.; LÓPEZ, P. (coord.). Ciudadanos Inesperados. Espacios de Formación de Ciuda-
danía ayer y hoy. México: Colmex-Cinvestav, 2012.
ALEXANDER, J. Las teorías sociológicas desde la Segunda Guerra Mundial. México: Gedisa,
1990.
FLORES-CRESPO, P.; RAMÍREZ RAMÓN, A. V. La Participación Social en la Escuela en Mé-
xico. Una revisión de literatura. Revista Iberoamericana sobre Calidad, Eficacia y Cambio en
Educación, España, v. 13, n. 3, p. 77-94, 2015. Disponible en: http://www.rinace.net/reice/nume-
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Pedro Flores-Crespo
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Educação, justiça e empoderamento
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Educação, justiça e empoderamento
Education, justice and empowerment
Educación, justicia y empoderamiento
Manuel Gonçalves Barbosa
*
Resumo
Este artigo elege como objeto de estudo a relação de co-implicação entre educação, justiça e empoderamento
nas sociedades do sistema-mundo onde mais progride a neoliberalização e tem como principal objetivo mostrar
que essa relação, ao contrário de certas ideias feitas, e apesar da força excludente da normatividade neolibe-
ral, se abre a vários signicados ou a diferentes semânticas analisando e interpretando as tendências em vigor
nesses contextos. É com base nessa metodologia que o artigo se focaliza em dois grandes eixos temáticos. Por
um lado, o eixo onde se escrutinam as marcas distintivas da visão dominante acerca de educação, justiça e
empoderamento. Por outro lado, e já no segundo eixo, apresenta-se a visão subalterna e contra-hegemónica
de educação, justiça e empoderamento que se articula, em termos normativos, com as aspirações democrático-
-igualitárias das classes subprivilegiadas, vítimas de acosso das políticas económicas neoliberais. A conclusão, no
termo desse exercício hermenêutico, é que o trabalho de fundamentação da educação deve estar criticamente
consciente das consequências desses dois modos de entender a relação em questão e que, caminhar no sentido
de uma sociedade mais justa, mais igualitária e mais democrática, não se coaduna, nem prática nem teoricamen-
te, com o entendimento dominante de educação, justiça e empoderamento.
Palavras-chave: Educação. Empoderamento. Justiça.
Abstract
This article chooses as object of study the co-implication relationship between education, justice and empower-
ment in the societies of the world-system where neoliberalization is most advanced and its main goal is to show
that this relation, contrary to certain preconceived ideas, and despite the exclusionary force of neoliberal norma-
tivity, opens itself up to several meanings or to dierent semantics analyzing and interpreting the trends in force
in these contexts. It is based on this methodology that the article focuses on two main thematic elds. On the
one hand, the eld where the distinctive marks of the dominant vision are scrutinized about education, justice
and empowerment. On the other hand, and already in the second eld, the subaltern and counter-hegemonic
vision of education, justice and empowerment that is articulated in normative terms with the democratic-egali-
tarian aspirations of the underprivileged classes, victims of harassment of the economic and neoliberal policies.
The conclusion, at the end of this hermeneutic exercise, is that the work of foundation of the education must be
*
Doutor em Educação pela Universidade do Minho. Professor Associado do Departamento de Teoria da Educação e
Educação Artística e Física do Instituto de Educação da Universidade do Minho. Portugal. ORCID: 0000-0002-8728-
6667. E-mail: mbarbosa@ie.uminho.pt
Recebido em 12/01/2019 – Aprovado em 28/06/2019
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v26i3.9322
Manuel Gonçalves Barbosa
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
critically aware of the consequences of these two ways of understanding the relationship in question and that,
moving towards a more just, egalitarian and democratic society, it is not consistent, neither practical nor theore-
tically, with the dominant understanding of education, justice and empowerment.
Keywords: Education. Empowerment. Justice.
Resumen
Este artículo elige como objeto de estudio la relación de co-implicación entre educación, justicia y empodera-
miento en las sociedades del sistema-mundo donde la neoliberalización está más avanzada y su objetivo princi-
pal es mostrar que esta relación, en contra de ciertas ideas, y a pesar de una fuerza de exclusión de la normativi-
dad neoliberal, se abre a varios signicados o a diferentes semânticas analizando e interpretando las tendencias
vigentes en estos contextos. Sobre la base de esta metodología, el artículo se centra en dos ejes temáticos princi-
pales. Por un lado, el eje donde se analizan las marcas distintivas de la visión dominante sobre educación, justicia
y empoderamiento. Por otro lado, en el segundo eje, se presenta la visión subalterna y contrahegemónica de
educación, justicia y empoderamiento que se articula en términos normativos con las aspiraciones democrático-
-igualitarias de las clases desfavorecidas, víctimas del hostigamiento de las políticas económicas neoliberales. La
conclusión, al nal de este ejercicio hermenéutico, es que el trabajo de fundamentación de la educación debe
ser consciente de las consecuencias de estas dos formas de entender la relación en cuestión y que, caminar en el
sentido de uma sociedad más justa, más igualitaria y más democrática, ni es en la práctica ni en teoria compati-
ble con la comprensión dominante de educación, justicia y empoderamiento.
Palabras clave: Educación. Empoderamiento. Justicia.
Introdução
De maneira ocasional e sem que se veja um esforço de discussão e de sistema-
tização dos seus significados, vai-se falando de educação, justiça e empoderamento,
nomeadamente em documentos e relatórios sobre desenvolvimento humano, como
se essa relação de co-implicação e de entrosamento entre os três termos apontasse
para uma semântica unívoca, linear e livre de interpretações contraditórias. De
fato não é assim e um dos objetivos deste artigo, feito de análises e de apreciações
de tendências, é mostrar que a relação triangular entre educação, justiça e em-
poderamento tanto se pode ler à luz do pensamento mainstream, caraterístico da
mundividência neoliberal, hoje imperante nos países mais fortemente atingidos
pela neoliberalização, como se pode mapear em função de visões alternativas e
contra-hegemónicas de signo radicalmente democrático ou democratizador. Nes-
te caso, trata-se de colocar em perspetiva articulações de significado que abrem
para outro horizonte de possíveis quando se equaciona, com os pés assentes na
realidade, e sem deixar escapar os seus diferentes matizes, todo o espectro dessa
relação entre educação, justiça e empoderamento.
Educação, justiça e empoderamento
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
O que isso quer dizer, de forma necessariamente breve, e em jeito de introdu-
ção, é que abordar o relacionamento dos três conceitos não implica ficar cativo ou
prisioneiro na visão epistémica neoliberal de educação, justiça e empoderamento,
como se nada mais houvesse dentro dessa “caixa negra”, mas reconhecer que há
outras possibilidades de articulação e de significação entre esses termos, apesar da
sua manifesta subalternidade nas formações sociais onde o neoliberalismo já refez,
ou está em vias de refazer, toda a paisagem do mundo da vida através da sistemá-
tica mobilização dos seus princípios e dos seus valores.
Se por um lado é importante apresentar as visões dominantes sobre educa-
ção, justiça e empoderamento e mostrar, ato contínuo, como são estrategicamente
unilaterais e redutoras (primeira seção), também se afigura necessário, por outro
lado (segunda seção) colocar em evidência posições divergentes política e episte-
micamente mais consentâneas com as aspirações democráticas de amplas franjas
de população subprivilegiada nos contextos já referidos, ou seja, posições que se
demarcam de tendências neoliberais fortes quer ao nível da “reavaliação da justiça
e do discurso da igualdade” (NACHTWEY, 2017, p. 88), quer ao nível das “apropria-
ções oportunistas” (PEREIRA, 2008, p. 14) de empoderamento e, por extensão, da-
quilo que se pode considerar, grosso modo, como educação para o empoderamento.
Servido por uma metodologia analítico-interpretativa e organizado em tor-
no desses eixos temáticos, a intenção do artigo é mostrar como a relação de co-
-implicação entre educação, justiça e empoderamento aponta para semânticas
diferenciadas e como é importante reter esse dado na fundamentação da ação dos
profissionais da educação.
Visão dominante sobre educação, justiça e empoderamento: marcas de
identicação e de diferenciação político-pedagógicas
O vocabulário acerca de educação, justiça e empoderamento não é politica-
mente neutro nem possui, por via disso, uma inocência natural. O significado des-
sa relação terminológica está marcado com o selo da política e é sobre um fundo
político, ideológico, que se percebe o seu alcance, a sua extensão e os seus matizes.
Desde logo, quando se equaciona a visão dominante, hegemónica ou mainstream
de educação, justiça e empoderamento, uma visão que tem vindo a ganhar esse
estatuto, essa posição, com o alastrar dos impactos da “revolução neoliberal” (HAR-
VEY, 2007, p. 47) nos planos económicos, sociais, políticos e culturais de múltiplas
Manuel Gonçalves Barbosa
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
formações sociológicas, democráticas e não democráticas, apesar da “grande va-
riabilidade espacial e temporal” (BROWN, 2016, p. 20) desse magno fenómeno ao
longo e ao largo do sistema-mundo durante as décadas de sua maior expansão e
intensificação.
Nessa encruzilhada de educação, justiça e empoderamento importa destrin-
çar, em seu sentido neoliberal geral, o que significa justiça, o que significa empode-
ramento e como é que a educação, relativamente a este último, se define ou confi-
gura em termos prático-normativos. Antes de mais a justiça e o discurso acerca da
igualdade, pois é notório que o neoliberalismo, mais ou menos radicalizado, trouxe
consigo uma “reavaliação da justiça e do discurso da igualdade”
1
(NACHTWEY,
2017, p. 88), reavaliação ou reconsideração que afastou do horizonte governativo,
da prática política, tudo o que tem a ver com redistribuição de riqueza e rendimen-
to, por se entender que essa redistribuição, além de imoral e contrária à eficiência
económica, é “uma agressão à liberdade pessoal” (KAISER, 2017, p. 49), ao direito
de propriedade e, no limite mais extremo, um atentado contra o Estado de direito.
Não sendo redistribuição de riqueza e, portanto, uma via em direção a uma
certa igualdade material, que é a justiça, então, nesse quadro de novo liberalismo?
A resposta a esta questão tem certamente as suas nuances na vasta linhagem de
pensadores que defende, desde há longa data, a neoliberalização da existência hu-
mana, se não em todos os setores, como parece acontecer sob “o reino normativo do
homo oeconomicus” (BROWN, 2016, p. 55), pelo menos nas áreas mais atrativas em
termos de ganhos financeiros ou de maximização dos lucros.
Ainda assim, e tomando como referência aquele que foi considerado “le maître
à penser” do neoliberalismo (AUDARD, 2009, p. 377), isto é, o nobelizado Friedrich
von Hayek, e em especial o segundo volume (The mirage of social justice) da sua
conhecida e muito glosada obra Law, legislation and liberty, de 1976, por justiça se
poderá entender, muito sumariamente, e indo ao essencial, “tratar todos de acordo
com as mesmas regras” (HAYEK, 1976, p. 204), com as mesmas normas ou lei,
sendo que o “objetivo da lei”, no dizer de Hayek (1976, p. 288), “deveria ser melho-
rar igualmente as oportunidades de todos” (“the aim of law should be to improve
equally the chances of all”), não diferenciando ou discriminando positivamente
ninguém para reparar ou compensar desvantagens imerecidas, resultantes de
contingências naturais e sociais perfeitamente ocasionais e aleatórias, como está
implícito no segundo princípio da teoria da justiça de John Rawls (1999, p. 57), ou
seja, o princípio onde se consubstancia, de forma nítida, uma igualdade equitativa
de oportunidades, mas aferindo tudo e todos pelo princípio da igualdade formal, da
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
estrita igualdade perante a lei, pois só assim se respeita o Estado de direito, the
rule of law, e, com ele, as regras que organizam a competição entre os indivíduos.
Ao reavaliar em novos termos, e com outra intencionalidade, o discurso sobre
a justiça, o neoliberalismo também reavaliou o discurso sobre a igualdade, mas
não no sentido de uma “igualdade de posições” (DUBET, 2010, p. 9) cujo objetivo
ou finalidade é, segundo esse autor (2010, p. 99), “reduzir a distância entre rendi-
mentos e condições de vida”, ou, o que é o mesmo, as diferenças de posicionamento
na estrutura social. Orientou-se, isso sim, pela igualdade de oportunidades e, mes-
mo aqui, tão-somente pela “igualdade legal de oportunidades” (ROSANVALLON,
2011, p. 334), isto é, pela igualdade interpretada em termos meramente formais
ou jurídicos, o que implica instaurar, onde quer que se aplique, um “sistema de
oportunidades formalmente igualitário” (NACHTWEY, 2017, p. 89), contribuindo,
portanto, para invisibilizar um sem número de vantagens e privilégios que distor-
cem a competição social por oportunidades, especialmente as que proporcionam
melhores condições de vida boa.
Significa isso que, juridicamente, todos têm os mesmos direitos de acesso às
posições sociais vantajosas e não, como sublinha J. Rawls (1999, p. 62), que “todos
deverão ter uma possibilidade razoável de as atingir”. Este é o sentido de uma “jus-
ta igualdade de oportunidades” (RAWLS, 1999, p. 57) que os neoliberais rasuram
da sua representação da sociedade, da sua concepção ou modelo de justiça, como se
as circunstâncias de partida não contassem para nada, como se a sociedade onde
nascem os indivíduos, num tempo fortemente marcado pelo “capitalismo patrimo-
nial” (PIKETTY, 2014, p. 523), não os destinasse, ora aberta ora subtilmente, a lu-
gares manifestamente desiguais em recursos, benefícios, poder e reconhecimento.
Mesmo imperando a igualdade formal, como tanto apregoam os aficionados da ne-
oliberalização, isso não impede que “os que possuem menos capital cultural fiquem
parados, enquanto os melhores situados à partida consigam êxitos” (NACHTWEY,
2017, p. 13). Justificar estes últimos com o talento e o esforço, isto é, com o mérito
(ROSANVALLON, 2011, p. 314), é lançar uma cortina de fumo sobre privilégios,
recursos e vantagens que sempre se afiguraram essenciais ao aproveitamento das
melhores oportunidades.
Mais além de seu intrínseco formalismo, essa concepção de justiça enquan-
to igualdade legal de oportunidades é também individualista, pois remete para a
responsabilidade única, exclusiva, do ator social na conquista das oportunidades
apetecidas ou desejadas (tudo depende, portanto, da sua implicação, do seu envol-
vimento, das suas escolhas, das suas decisões), e deixa ainda transparecer, na sua
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
constituição significativa, um fundo de darwinismo social, pois o que está em cau-
sa, ou para aquilo que se aponta, é uma luta por oportunidades, manifestamente
escassas quando se referem a cargos e a funções de relevo, bem remunerados, sen-
do que o mecanismo seletor, em todo esse processo, está precisamente no talento
e no esforço dos mais corajosos, dos mais audazes, dos mais destemidos e dos que
arriscam mais.
A narrativa neoliberal da justiça enquanto igualdade formal ou legal de opor-
tunidades, apesar da sua estreiteza de vistas, e de um certo sabor a injustiça,
particularmente no que concerne os segmentos populacionais desfavorecidos, tem
vindo a fazer o seu caminho no senso comum dominante e a conquistar adeptos
à medida que avança a neoliberalização e, com ela, a profunda “economização”
(BROWN, 2016, p. 14) de amplas esferas do mundo da vida. Assim, o que pare-
ce interessar agora, pelo menos nos contextos de “modernização regressiva”, tal
como são analisados e escrutinados por Nachtwey (2017) nos países capitalistas
neoliberais ocidentais, não é propriamente combater as “desigualdades verticais”
relativas a renda, condições de vida e segurança social, combate que implica, se-
guramente, a redistribuição e os seguros coletivos, ou seja, a solidariedade entre
classes financeiramente assimétricas, mas defender, isso sim, as “discriminações
horizontais” (NACHTWEY, 2017, p. 88) que acompanham características culturais
e identitárias (de sexo, gênero, etnia) e que podem ser prejudiciais à igualdade de
tratamento e de direitos. Deste modo, “a lógica vertical da redistribuição vai-se es-
fumando” (NACHTWEY, 2017, p. 88) para dar lugar a uma lógica principalmente
preocupada com o tratamento igualitário em termos de prerrogativas legais, como
decorre, em linha direta, desse princípio tipicamente neoliberal de “tratar todos
de acordo com as mesmas regras” (HAYEK, 1976, p. 204), o que não deixa de ser
curioso para os que assumem as dores dos oprimidos e dos excluídos.
A concepção neoliberal de empoderamento, resultado da “apropriação oportu-
nista de ideias progressistas e feministas” (PEREIRA, 2008, p. 49) que emergiram,
e se consolidaram, nas décadas de 1970 e 1980 na América do Norte e na Ásia do
Sul, quer entre organizações da sociedade civil de defesa dos have not (despossuídos,
marginalizados, excluídos e até expulsos do convívio com a “gente decente”), quer no
âmbito do serviço social e da psicologia comunitária (BACQUÉ; BIEWENER, 2013),
é uma visão dominante de empoderamento que se articula com essa específica re
-
presentação da justiça enquanto igualdade formal de oportunidades e, desde logo,
com o seu ethos individualista e formalista.
Educação, justiça e empoderamento
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
O objetivo do empoderamento, que literalmente significa “mais poder” (PIN-
TO, 2013, p. 52), e sobretudo reforço ou fortalecimento do “poder de agir” (LE BOS-
SÉ, 2003, p. 51), tem a ver, nesse caso, com um projeto de potenciação dos seres
humanos em ordem a conseguir mais ajustamento adaptativo aos mercados, mais e
melhor aproveitamento de oportunidades, mais responsabilização individual, mais
vantagens competitivas, mais rendimento, mais empresarialização do eu e melhor
maximização do interesse próprio. Esse empoderamento é estritamente individual,
dirige-se exclusivamente a cada átomo social, tem o foco na pessoa singular, desli-
gada de grupos ou coletivos, e adquire todo o seu sentido ou significado naquela que
é, talvez, a maior ambição da racionalidade neoliberal conhecida até ao momento:
a construção de um novo sujeito (GUTIÉRREZ, 2014), egocêntrico, individualista,
“calculador, consumidor e empreendedor, que persegue finalidades exclusivamente
privadas num marco geral de regras que organizam a competição entre os indiví-
duos” (LAVAL, 2012, p. 19).
Trata-se da ambição de criar um indivíduo responsável por si mesmo, ou
“empresário de si mesmo” (FOUCAULT, 2004, p. 232), que “deve prosperar por si
mesmo sem esperar nada dos demais” (LAVAL, 2012, p. 23), norteado, sempre e
em todo o lado, pelos valores e pelas métricas do mercado, ou seja, um homo oeco-
nomicus que só tem que se preocupar consigo mesmo, com o seu rendimento, com o
aproveitamento de oportunidades para realizar projetos que deem lucro, ganhos ou
benefícios apreciáveis, concebendo-se como uma empresa (autoempresarialização)
que tanto investe na melhoria do seu valor de mercado como cuida de si mesmo
(autocuidado) garantindo trabalho, rendas, capital, fundos próprios e satisfação de
necessidades ao longo e ao largo da vida, mesmo que isso implique, como mostrou
com sagacidade Byung-Chul Han (2015, p. 12), explorar-se sistematicamente a si
mesmo.
O ajustamento adaptativo ao mercado, vendo este na pluralidade das suas
formas, e a responsabilização dos indivíduos por tudo o que lhes acontece na vida,
são dois alvos prioritários do empoderamento mainstream, dominante, tal como se
delineia nos contextos da neoliberalização avançada, um pouco por todo o mundo,
mas em particular na região euroatlântica (STREECK, 2017). Sendo adequação
permanente a flutuações imprevistas, e a mudanças mais ou menos disruptivas,
inovadoras e perturbadoras, o ajustamento adaptativo exige uma integração sem
falhas nos mecanismos do mercado e uma aceitação dos seus requerimentos, tam-
bém constantes ou permanentes: saber competir, saber ganhar, saber frutificar o
capital, “assegurar-se de ter mais ‘méritos’ que o resto dos aspirantes, aproveitar
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
as oportunidades” (GUTIÉRREZ, 2014, p. 41), vencer os rivais. O objetivo do empo-
deramento, neste particular, é reforçar o eu na sua busca de superação dos outros
eus, de ser mais competitivo do que eles, de atingir mais eficácia e mais rendimen-
tos nos mercados, nas operações que multiplicam o capital financeiro e melhoram
a imagem de marca dos vencedores. A perspetiva normativa que verdadeiramente
interessa, nesse caso, é que o empoderamento deve preparar os indivíduos, os com-
petidores, para se ajustarem aos mercados onde o vencedor leva tudo (the winner
takes all), ou fica com tudo, mercados cada vez mais presentes em todos os âmbitos
sociais (BUDE, 2017, 53), especialmente neoliberais.
Como segunda prioridade do empoderamento, a responsabilização indica que
o indivíduo se deve preparar para contar apenas consigo mesmo, para assumir de
modo autossuficiente as consequências das suas decisões, num mundo onde não há
lugar para perdedores. De todo o modo, e como dizia o credo de Reagan, segundo
Lilla (2018, p. 31), “a vida bem vivida é a dos indivíduos autossuficientes”, dos que
não esperam nada dos outros e, portanto, nem de filantropia nem de solidariedade
social estatal. A solução para todos os males está em ser um homo oeconomicus
empreendedor, confiante e ganhador, ser o primeiro inter pares superando-os e
deixando-os para trás na corrida meritocrática pelas melhores oportunidades.
Uma vez identificadas as prioridades do empoderamento mainstream, e ad-
mitindo que a educação, com mais ou menos ressignificação neoliberal, “é uma via
de empoderamento” (PEREIRA, 2008, p. 46), resta saber como é que a educação se
define em termos prático-normativos diante dessas prioridades. Basicamente, colo-
cando o foco em duas importantes dimensões: por um lado, a dimensão psicológica,
inerentemente justificada pela necessidade de reforçar ou fortalecer o poder inte-
rior da nova subjetividade neoliberal, isto é, o empresário de si mesmo; por outro
lado, a dimensão económica, tornada necessária, de maneira incontornável, pelo
fato de estar em causa o empoderamento do homo oeconomicus, um “tipo humano
orientado pela racionalidade do lucro” (FERNÁNDEZ LIRIA; GARCÍA FERNÁN-
DEZ; GALINDO FERRÁNDEZ, 2017, p. 34) e que, como “fragmento de capital
humano” (BROWN, 2016, p. 6), precisa de fortalecer a sua posição competitiva no
mercado.
A fim de “competir com mais probabilidades de êxito na selva da competição
de todos contra todos” (GUTIÉRREZ, 2014, p. 43), ou seja, como bom darwinista
económico e social, o novo sujeito neoliberal precisa primeiramente, ou assim é
suposto, de empoderamento económico, nomeadamente através de lições de em-
preendedorismo (basicamente como lançar e fazer frutificar um negócio), lições que
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
são legião, presentemente, ao nível do ensino superior, e não apenas nas escolas
de economia, de administração e gestão. Não há universidade que se preze, ou
instituto de estudos superiores, que não ofereça cursos de empreendedorismo, evi-
denciando assim a finalidade económica dos estudos e as pressões de conformidade
pela economização do próprio empoderamento, inclusive entre os estudantes de
letras e humanidades, pois nem mesmo esses podem deixar de louvar as virtudes
do empreendedorismo, tal como manda, nas áreas de neoliberalização, a ideologia
correspondente: sê empreendedor e empresário de ti mesmo se queres sobreviver
entre os mais aptos.
Esse empoderamento, ajustando-se na perfeição ao homo oeconomicus, não
parece esgotar, contudo, as ações de fortalecimento desse sujeito, nomeadamente
em termos mentais. Um ator económico forte e robusto, pronto para tudo, precisa
de melhorar a crença em si mesmo e de possuir autoestima e autoconfiança em alto
grau. É assim que se aponta para a conveniência de empoderamento psicológico,
nesse particular da autoestima e da autoconfiança, analisando histórias de sucesso
(sucess stories) no âmbito de práticas de storytelling (SALMON, 2007) e, se neces-
sário, recorrendo ao coaching, hoje amplamente divulgado, e comprado, no apoio
educativo a crianças, a jovens e a adultos em dificuldade, quer dizer, desajustados
dos imperativos neoliberais do rendimento, da competição e da otimização pessoal.
Adicionalmente, esse empoderamento é requerido para que o átomo social, ou
seja, o indivíduo dessocializado do neoliberalismo, se responsabilize por si mesmo,
pela sua formação, pela sua saúde, pelo seu emprego, pelo seu bem-estar, já que,
como ironiza Nachtwey (2017, p. 78), recuperando termos de Robert Castel, “todos
os que não conseguem cumprir com o mandamento liberal da responsabilidade
pessoal são ‘declarados culpados’ e ‘condenados’”. Deve-se, pois, mentalizar o indi-
víduo, não apenas para ser um bom caçador de oportunidades e um bom jogador no
âmbito dos mercados, mas também para cuidar de si mesmo, olhar por si mesmo e
não esperar nada dos demais, inclusive, ou principalmente, da entidade governa-
mental. A solidariedade social é para ser substituída pela responsabilidade pessoal
e nisso a educação pode ser exímia incentivando, quotidianamente, e de maneira
repetitiva, o individualismo e o espírito meritocrático, a par da emulação, da con-
corrência e da competição.
Como se vê, a cumplicidade é muito grande, na visão dominante, entre edu-
cação, justiça e empoderamento. Tudo se encaixa com o único objetivo de expandir
a neoliberalização e refazer, por completo, todos os setores da existência humana,
subordinando-os à lógica e às métricas do mercado. O adiantado estado de concreti-
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
zação desse objetivo, especialmente nos países da região euroatlântica, deixa pouco
espaço para se ouvirem vozes diferentes acerca de educação, justiça e empodera-
mento, nomeadamente as que, nesses contextos, afirmam uma visão mais consen-
tânea com as aspirações democrático-igualitárias dos grupos desfavorecidos.
Educação, justiça e empoderamento: visão subalterna e contra-hegemónica
Ao refazer o mundo social com as suas ideias diretoras, com os seus princípios
e os seus valores, a neoliberalização cria uma paisagem rarefeita em perspetivas
normativas e torna difícil a sua expressão quando essas perspetivas desafiam o
statu quo neoliberal. Na paisagem assim remodelada já não parece haver lugar
para outras visões ou representações de educação, justiça e empoderamento, a não
ser a que é imposta como via de sentido único e que tão bem serve os propósitos
políticos do neoliberalismo, ou a sua “racionalidade política”, como prefere dizer, de
forma assertiva, e evocando Foucault, a politóloga Wendy Brown (2007, p. 46). Ain-
da assim, sempre se poderá dizer, olhando a realidade das formações sociais mais
avançadas no aprofundamento de seus programas de neoliberalização, que não é
por se repetir à saciedade que essa é a única visão legítima e, portanto, aceitável,
de educação, justiça e empoderamento que se faz desaparecer, ou simplesmente
abafar, vozes discordantes acerca dessa relação
Efetivamente, e contra o que se quer fazer acreditar, não fica tudo dito com a
descrição da visão dominante dessa relação, visão ou perspetiva que, nos contextos
sociais neoliberais, é difundida e orquestrada pelo pensamento mainstream, o tal
que não admite alternativas, diferenças e rebeldias à normatividade vigente, ins-
titucionalizada em padrões de ação e de compreensão da realidade. Uma análise
interpretativa, e reconstrutiva (HONNETH, 2014, p. 20), de ideários presentes
nesses contextos desmente, contudo, essa pretensão ao deixar ver que, a par da
visão preponderante e impositiva de educação, justiça e empoderamento, e distan-
ciando-se estrategicamente dela, se afirma uma visão normativa alternativa a qual
se articula, na especificidade do seu alinhamento contra-hegemónico e subalterno,
com as aspirações democrático-igualitárias de amplas camadas da população, em
particular as que mais sofrem as investidas da política económica neoliberal, ou
seja, as que, por via dessa ocorrência, passaram a viver os seus dias em “estado de
insegurança” (STIGLITZ, 2018, p. 39).
Se é verdade que se verificou, com a revolução neoliberal, uma reavaliação e
uma concomitante ressignificação dessa relação entre educação, justiça e empode-
Educação, justiça e empoderamento
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
ramento, dando-se a esses termos a roupagem necessária à efetiva implementação
da neoliberalização enquanto “projeto político de restabelecimento do poder das
elites económicas” (HARVEY, 2007, p. 25) e, portanto, à redefinição de políticas
concordantes com esse objetivo, também é certo, e igualmente justo reconhecer, que
as aspirações democrático-igualitárias de amplas franjas populacionais contribuí-
ram, como detonante e como novo quadro ideológico, para dar a essa relação novos
matizes e outras sonoridades, desde logo no que concerne a justiça que realmente
interessa a quem vive na aflição económica e, por extensão, na incapacidade de
usufruir ou de aproveitar as oportunidades que surgem nas mais variadas esferas
das estruturas sociais.
A justiça que se exige nas ruas (desde há algum tempo e na hora presente,
especialmente por intermédio de movimentos cívicos pós-convencionais, de que são
exemplo Los indignados, Occupy Wall Street e Les gilets jaunes) é mais ambicio-
sa do que a mera igualdade formal ou legal de oportunidades, a qual, como se
sabe, redunda em benefício dos setores privilegiados, dos que, bem apetrechados
de capital financeiro, cultural e social estão em melhores condições de aproveitar
a oportunidade de aceder a lugares e funções prestigiados: na competição social
pelas oportunidades estão destinados a ter êxito, a serem quase de certeza bem-
-sucedidos (NACHTWEY, 2017, p. 13). Enquanto os desfavorecidos da fortuna ten-
dem a ficar enfiados na posição em que nasceram, os descendentes de famílias
abastadas nesses vários capitais “frequentarão as melhores escolas, passarão pelas
melhores universidades e acabarão por ter os melhores empregos. E as suas carrei-
ras receberão, muitas vezes, um estímulo decisivo graças à influência dos amigos e
conhecidos do papá e da mamã” (KING, 2018, p. 138).
Uma vez que está fora de questão reduzir a justiça “à lógica horizontal da
inclusão e da igualdade de tratamento” (NACHTWEY, 2017, p. 88), como pretende
a doutrina neoliberal, qual é então o alvo prioritário da justiça social? Para onde
apontam, normativamente falando, as reivindicações populares, as que invadiram
as praças públicas das democracias de mercado? A justa distribuição da riqueza,
essencial a uma verdadeira igualdade de oportunidades, como se poderia dizer na
sequência dessa ideia rawlsiana de equality of fair opportunity (RAWLS, 1999,
p. 57), parece ser o que está em causa nessas reivindicações sociais das camadas
subprivilegiadas, as quais configuram cada vez mais os 99% da população, os lais-
sés-pour-compte da globalização neoliberal e da extraordinária geração de riqueza
das últimas décadas, um pouco por todo o mundo, entre os países pobres e os países
ricos (FUKUYAMA, 2018, p. 100).
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
O que se está verificando, praticamente em todas as sociedades, quer nas eco-
nomias do Ocidente rico quer nas economias do Sul Global, é que o crescimento da
riqueza não se traduz em melhorias no nível de vida da população dos escalões mais
baixos, considerando cada país em particular. O produto nacional bruto per capita
até pode aumentar, o problema é a distribuição geral dos ganhos: “A distribuição
dos ganhos porém, é que tem sido distorcida a favor daqueles que – na maior parte
dos casos – já estavam bem na vida” (KING, 2018, p. 118). Para amplos segmentos
populacionais, a globalização neoliberal significou quebra de rendimentos e piores
condições de vida. Aumentaram, pois, as “desigualdades verticais” (NACHTWEY,
2017, p. 67), isto é, as diferenças, por vezes abissais, de posicionamento na hierar-
quia dos ganhos financeiros, das condições de vida e do acesso a serviços. É por
isso que, em reação a essa situação, considerada iníqua, se exige agora uma justa
distribuição da riqueza, sendo essa distribuição o núcleo central de uma concepção
mais ampla de justiça social.
O que as pessoas reclamam, especialmente as que viram os seus rendimentos
regredir ou estagnar, e que vivem em democracias neoliberalizadas até à medula, é
que a democracia seja mais consequente com a vis igualitária que, de uma forma ou
de outra, lhe deu corpo e espessura desde os tempos modernos, não unicamente em
termos de combate às discriminações de raça, sexo, etnia ou género, mas também
em termos de redução das desigualdades especificamente económicas, dado o peso
considerável que estas últimas representam nas assimetrias em outras esferas,
como podem ser as educativas, as culturais e as políticas.
Todas as desigualdades importam, e é por isso que se deve evitar, segundo
Montesquieu (1995, p. 87), um excessivo “espírito de desigualdade” nos regimes
democráticos. Mas há desigualdades que importam mais do que outras. A pobreza
e a má nutrição, por exemplo, influem negativamente no desenvolvimento intelec-
tual da infância (BROWN; POLLIT, 1996, p. 38-43), e isso deve-se muitas vezes
a baixos rendimentos, a desigualdades económicas. O mesmo se poderá dizer da
participação política dos cidadãos: “Os trabalhadores precários vão menos votar
que os não precários; portanto, a desigualdade faz com que os melhores situados
vão ganhando influência de maneira assimétrica” (NACHTWEY, 2017, p. 74).
A generalização do “bem-estar precário” (BUDE, 2017, p. 68), se não mesmo
a exclusão de qualquer bem-estar, desviam o foco de muitas pessoas para a redis-
tribuição democrática da riqueza produzida e incitam a abrir frentes de luta, de
contestação, contra a “redistribuição oligárquica” (STREECK, 2017, p. 228) dessa
mesma riqueza, ou seja, a que se faz da base para o topo e em proveito dos mais
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abastados. Se as entidades estatais não estivessem a fraquejar, sob a pressão da
neoliberalização, na sua capacidade de realizar políticas redistributivas favoráveis
aos setores mais desfavorecidos, o sucesso dos protestos sociais pós-convencionais,
isto é, apartidários e sem evidente filiação institucional, estaria assegurado ou, a
minima, seguramente bem encaminhado nesse sentido. Uma vez que não é esse o
caso, seja por complacência com a ordem económica dominante, seja por frouxidão
e falta de ambição na adoção de medidas que controlem, dentro do possível e do
razoável, a economia política do neoliberalismo, nada mais resta aos cidadãos se
não recuperarem poder de influência sobre o Estado a fim de o colocar na senda da
justa distribuição da riqueza, pois, como reconhece lúcida e fundamentadamente
Yascha Mounk (2018) em obra recente, ainda há muita coisa que o Estado pode
fazer pela redistribuição e pela justiça social, inclusive em contextos democráticos
liberais: “Ainda hoje, com as políticas adequadas, é possível contribuir para re-
distribuir a riqueza e melhorar o nível de vida dos cidadãos comuns ou correntes”
(MOUNK, 2018, p. 42).
Os cidadãos precisam de sentir que têm verdadeiramente poder para fazer
isso acontecer, o que implica, na prática, um outro tipo de empoderamento: o em-
poderamento que, já experimentado e conceitualizado em ações promotoras de de-
senvolvimento (MEDEL-AÑONUEVO, 1995; CHECKOWAY; GUTIÉRREZ, 2009;
APPADURAI, 2013), não se enreda nas perspetivas normativas do oportunismo,
do individualismo competitivo e do ajustamento adaptativo aos mercados, traços
ou marcas que definem o empoderamento mainstream, sem dimensão coletiva e
política, e sem preocupações com a injustiça socioeconómica, tal como se verifica,
presentemente, nos contextos sociais neoliberais.
O que assim se perfila, em termos de reforço do poder ou capacidade de agir,
da potentia (poder produtivo, gerador, transformador) bem mais do que da potestas
(poder coercitivo, limitativo, controlador), é um empoderamento simultaneamente
individual e coletivo, social e político, e com foco, sempre que necessário, na trans-
formação estrutural da sociedade visando torná-la mais justa, mais democrática e
mais igualitária. O empoderamento, ao longo de todo esse espectro, articula três
dimensões: a dimensão individual ou interior, designando o processo que permite a
cada sujeito o desenvolvimento tanto da capacidade de agir como uma consciência
crítica, a construção de uma imagem positiva de si, a aquisição de conhecimentos
que ajudem a uma compreensão crítica do entorno sociohistórico e o desenvolvi-
mento de recursos individuais que sustentem a elaboração de estratégias de im-
plicação em objetivos pessoais e coletivos; a dimensão interpessoal, organizacional
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
ou coletiva, expressando o fortalecimento da capacidade de agir em sintonia e em
colaboração com outras pessoas ou sujeitos do contexto; enfim, a dimensão propria-
mente social ou política, a qual coloca em equação a necessidade de transformação
da sociedade e das suas estruturas, como podem ser a estrutura das oportunidades
ou a estrutura da distribuição de rendimentos financeiros.
Assentando numa consciência lúcida e crítica das subalternidades, das exclu-
sões e das desigualdades, quer em termos de poder quer em termos de recursos,
essa concepção de empoderamento, constitutivamente democrática, objetiva permi
-
tir aos sujeitos e aos grupos, desde baixo ou da base, aumentar o seu poder de agir,
desenvolver competências para reganhar influência coletiva e política e para pesar,
efetivamente, na repartição justa, equitativa, de recursos sociais indispensáveis ao
usufruto de oportunidades laborais, culturais e políticas, sem esquecer as educati
-
vas, pois são especialmente relevantes, como mostrou Dubet em O que é uma escola
justa? (2004, p. 550), nas trajetórias pessoais e profissionais dos atores sociais.
Esse empoderamento não se distingue apenas pelo fato de ser multidimensio-
nal e ter um foco na transformação social. Também se diferencia pela visão plural
que apresenta dos poderes necessários à reconfiguração da pessoa e da sociedade,
tal como são sistematizados por Jo Rowlands (1997, p. 13), a saber: o “poder sobre”
(power over), ou seja, o poder de controlar recursos, pessoas e agendas; o “poder
para” (power to), isto é, a capacidade de agir, de atuar, e de promover mudanças
significativas na vida pessoal e social; o “poder com” (power with), ou poder de ação
coletiva, solidária, em prol de causas comuns; e, por fim, mas não menos impor-
tante, o “poder interior” (power within), na medida em que se afigura necessário,
incontornável, reforçar a confiança das pessoas em si mesmas, especialmente se
revelam sintomas de vulnerabilidade, para se lançarem nas duras e desgastantes
batalhas pela justiça social e pela efetivação de direitos, não só os que asseguram
condições essenciais à vida digna, mas também os que viabilizam a participação
política democrática nas deliberações públicas.
Como veículo de empoderamento, mas agora num outro registo e com outra
intencionalidade, a educação desenvolve a sua ação em função de vários compro-
missos. Desde logo, apostando no reforço da crença das pessoas e das coletividades
em si mesmas, nas suas forças, a fim de acreditarem que a mudança é possível, não
obstante os entraves colocados pela governação neoliberal das sociedades e pelos
dogmas que lhe andam associados, como, por exemplo, essa ideia peregrina segun-
do a qual “as desigualdades e o enriquecimento dos mais ricos beneficiam todos”
(GODIN, 2017, p. 26), ou, o que é o mesmo, mas de maneira metafórica, quando se
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diz que, subindo a maré, todos os barcos sobem juntos. Educadores e interventores
sociais, mesmo não sendo peritos em psicologia, podem ajudar a consolidar esse
empoderamento psicológico junto dos destinatários ajudando-os a ser assertivos,
a afirmar posições, a defender valores e a reivindicar direitos, a confiar nas suas
possibilidades e a não desistirem de lutar por aquilo em que acreditam, sem par-
tidarismos e sem dogmatismos e levando a sério, como material de suporte, as
experiências de dor, sofrimento, mas também de arrojo e esperança, dos que vivem
diariamente inquietados com a sua situação precária.
Através do trabalho educativo-formativo em contextos de aprendizagem for-
mal, não formal e informal, outro dos compromissos que requer atenção, de modo
que parece incontornável, é com o empoderamento cognitivo, ou seja, epistémico.
Consiste esta vertente do empoderamento democrático, transformador e centrado
no novo conceito de justiça social, em ativar e/ou reforçar a compreensão crítica
da realidade social na forma de um exercício de conscientização que aprofunda a
tomada de consciência da neoliberalização e dos obstáculos que se levantam à sua
transformação, partindo das “leituras de mundo” (FREIRE, 1996, p. 122) dos sujei
-
tos, acrescentando eventualmente “conhecimento poderoso” (YOUNG, 2016, p. 27),
ou conhecimento especializado que ajuda a entender melhor a realidade do mundo,
isto é, indo mais longe e mais fundo, e pensamento divergente acerca de visões ingé
-
nuas, despolitizadas, que mascaram a real dimensão dos problemas de precarieda-
de e de vulnerabilidade sob o reino normativo do neoliberalismo. Aborda-se, ainda,
no âmbito do empoderamento cognitivo mediante a educação, ou assim é suposto
acontecer, a desconstrução, preferentemente dialógica e colaborativa, de represen
-
tações opressivas que criam assimetrias indignas e a formulação de interpretações
do mundo social que desafiam as interpretações reinantes, as que moldam o senso
comum e se impõem dissimulada e enganadoramente nas consciências das pessoas.
Acautelando indesejáveis, e sempre lamentáveis, instrumentalizações polí-
tico-partidárias, mas sem renunciar ao envolvimento na capacitação política dos
atores sociais, especialmente os que são vítimas de precarização institucionalmen-
te induzida ou fabricada pela governação hegemónica em contextos sociais neo-
liberais (LOREY, 2016), parece caber, ainda, nas atribuições da educação que se
associa, prática e normativamente, à nova visão sobre a justiça, a realização de
empoderamento político. Um empoderamento que, mediante situações educativas
banais, correntes, pode passar, em primeiro lugar, por desnaturalizar situações
sociais injustas, ou ajudar a que isso aconteça, problematizando essas situações
colaborativamente. Depois, pode consistir em reivindicar o estatuto de questão po-
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
lítica legítima para essas situações, o que implica, em termos pedagógicos, reforçar
a capacidade dos sujeitos usarem a sua voz no espaço público, sabendo de antemão
que “«para que a voz tenha eficácia, deve abordar as questões sociais, políticas e
económicas em termos de ideologias, de doutrinas e de normas largamente credí-
veis e partilhadas, mesmo pelos ricos e poderosos” (APPADURAI, 2013, p. 234). É
assim que se aprofunda a politização de problemas cuja solução é política, como se
revela, por exemplo, na injusta repartição da riqueza.
Se é verdade que o empoderamento político, com a colaboração estreita e com-
petente da educação, passa essencialmente pelo reforço do poder de contestação do
statu quo, especialmente em termos económico-sociais, também é verdade que não
esquece, ou não deveria esquecer, o fortalecimento da capacidade de agregação de
interesses e vontades, já que a união faz a força, acrescenta poder e ajuda a vencer
o medo de agir (CASTELLS, 2013, p. 27-28). Finalmente, e também através da
educação, melhora-se ou ativa-se o empoderamento político das pessoas, dos sujei-
tos individuais e coletivos, nomeadamente tendo em vista a mudança de estrutu-
ras sociais injustas e antidemocráticas, reforçando, desenvolvendo, a capacidade
de participação ou intervenção nos espaços públicos e, em particular, no espaço
público-político, convocando à participação e à tomada de decisões nas atividades
educativas, assumindo estas como efetivo campo de treinamento das práticas polí-
ticas democráticas.
Independentemente de se considerar, na sequência dos anteriores desenvolvi-
mentos, que suas exigências normativas são excessivas face à realidade existente
nos contextos sociais neoliberais e, mais além, no mundo complexo da globalização,
o fato é que se afirma uma outra concepção de educação, justiça e empoderamento
que desestabiliza a concepção dominante, típica do pensamento mainstream, e que
precisa de ser levada a sério, ou ser tida em conta, não só em termos epistémicos,
mas também em termos de fundamentação da ação-intervenção.
Considerações nais
Apesar do seu poder avassalador, e por vezes, arrasador de outros princípios e
de outros valores, a dinâmica da neoliberalização continua a ter que se confrontar,
pelo menos no plano normativo, com outros modos de ver a relação triangular, e
simbiótica, entre educação, justiça e empoderamento. São modos de ver que desa-
fiam a concepção mainstream dessa relação, que a questionam e lhe opõem uma al-
ternativa, precisamente aquela que procura corresponder aos anseios democrático-
Educação, justiça e empoderamento
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
-igualitários das camadas subprivilegiadas, vítimas do «espírito de desigualdade»
que grassa nos contextos mais avançados em neoliberalização, como se mostrou,
economicamente, e sem rodeios semânticos, ao longo deste artigo.
Duas conclusões de dimensão maior se retiram do caminho percorrido até aqui.
A primeira é que a relação entre educação, justiça e empoderamento está aberta
a vários significados, ou a diversas articulações de sentido, e que é preciso ter isso
em conta se queremos uma ampla compreensão dos contextos sociais neoliberais,
o que, em termos epistémicos, é um sinal de lucidez, de realismo e de abrangência.
Não há pior forma de abordar os problemas, e eles são muitos nesses contextos, do
que partir de uma deficiente leitura da realidade, das suas aspirações e dos seus
propósitos, mesmo que isso implique um aturado trabalho de mapeamento, ou de
cartografia, das suas perspetivas normativas.
A segunda conclusão que se retira, e isso é importante para educadores e in-
terventores sociais, é que precisam estar criticamente conscientes das especifici-
dades das duas visões sobre educação, justiça e empoderamento, sobretudo se se
sentem desafiados a enveredar, na sua praxis, pela construção de uma sociedade
mais justa, mais igualitária e mais democrática.
Nota
1
Expressões entre aspas e citações de livros e artigos estrangeiros são tradução nossa.
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Educação, justiça e empoderamento
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Sidinei Pithan da Silva
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Educação e justiça social na contemporaneidade:
repensando o sentido da docência no âmbito escolar
Education and social justice on contemporaneity:
rethinking the sense of teaching in the school environment
Educación y justicia social en la contemporaneidade:
repensar el sentido de la docencia en el entorno escolar
Sidinei Pithan da Silva
*
Resumo
O estudo tematiza novos horizontes para pensar a educação na contemporaneidade, a partir dos marcos refe-
renciais modernos e pós-modernos que envolvem a ideia de justiça social, procurando desdobrar implicações
para pensar o sentido da docência no âmbito escolar. O estudo ampara-se na defesa de um pensamento com-
plexo, capaz de permitir a emergência de novas formas de sensibilidade e racionalidade para com a questão
educacional, o que pode signicar um dimensionamento amplo para a ideia de justiça social, bem como de
espectro acerca do que constitui a atividade docente. O repensar da docência no âmbito escolar envolve a com-
preensão de seu caráter dinâmico, contraditório e complexo, o que signica assinalar seu envolvimento com os
problemas do mundo sociais e históricos e suas relações com o universo das ciências, das subjetividades e do
mundo do trabalho. Os sentidos implicados na ideia de justiça social desaam os educadores a não apenas com-
preender o curso dos acontecimentos do mundo moderno/contemporâneo nas quatro esferas do mundo hu-
mano, como também, fundamentalmente, recongurar e avaliar seus modos de intervenção crítica na realidade
educacional, tendo em vista o combate das (in)justiças globais e contingentes que se exacerbam no capitalismo.
Palavras-chave: Docência. Educação. Justiça social. Modernidade. Pós-Modernidade.
Abstract
The study thematizes new horizons to think education on contemporary world from the modern and post-
modern frameworks implied in the idea of social justice, seeking to unfold implications to think the sense of
teaching in the school context. In general terms, the study is based on the defense of a complex thinking, able
to allow the emergence of new forms of sensitivity and rationality to educational question, which could mean a
broad dimension to the idea of social justice, as well as spectrum of what constitutes the teaching activity. The
teaching rethinking in the school context involves the understanding of its dynamic, contradictory and complex
character, which means to indicate its involvement with problems of social and historical world and its relations
*
Doutor em Educação pela Universidade Federal do Paraná. Professor do curso de Educação Física e do Programa de
Pós-Graduação em Educação nas Ciências, mestrado e doutorado, da Universidade Regional do Noroeste do Estado
do Rio Grande do Sul. Brasil. ORCID: 0000-0001-6400-4631. E-mail: sidinei.pithan@unijui.edu.br
Recebido em 15/03/2019 – Aprovado em 05/07/2019
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v26i3.9324
Educação e justiça social na contemporaneidade: repensando o sentido da docência no âmbito escolar
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
with the universe of sciences, subjectivities and the world of the job. The involved senses in the idea of social jus-
tice challenge educators not only to understand the course of the events of the modern / contemporary world in
these four spheres of the human world, but fundamentally recongure and evaluate their modes of critical inter-
vention in educational reality, in order to combat global (in)justice and contingents that exacerbates capitalism.
Keywords: Teaching. Education. Social justice. Modernity. Postmodernity.
Resumen
El estudio tematiza nuevos horizontes para pensar la educación en la actualidad a partir de marcos referenciales
modernos y pos modernos implicados en la idea de justicia social, intentando desvelar implicancias para pensar
el sentido de la docencia en el ámbito escolar. El texto se posiciona en defensa del pensamiento complejo, en
tanto permite la emergencia de nuevos modos de sensibilidad y racionalidad en relación con lo educativo, apor-
tando elementos que amplían la mirada, y otorgan nuevos sentidos a la idea de justicia social y a lo que signica
la tarea docente. Repensar la docencia en el marco del sistema educativo, implica comprender su carácter diná-
mico, contradictorio y complejo; lo que signica asumir su relación con su contexto histórico social y sus vínculos
con el mundo de las ciencias, las subjetividades y el mundo del trabajo. Los sentidos involucrados en la idea de
justica social desafían a los educadores no solo a comprender el curso de los acontecimientos del mundo mo-
derno/contemporáneo en estas cuatro dimensiones del mundo humano, sino también a recongurar y evaluar
fundamentalmente de manera crítica sus modos de intervención en la realidad educativa, en vista de la batalla
de la (in)justicia global y contingente que exacerba el capitalismo.
Palabras clave: Docencia. Educación. Justicia Social. La Modernidad. La Posmodernidad.
Introdução
Os novos cenários sociais, políticos e culturais contemporâneos desafiam a
repensar a educação, bem como os saberes e ações indispensáveis para a docência.
E o tema da justiça social funciona como uma forma de horizonte que desafia a
rever os modos de conceber a educação e seu entrelaçamento com os tecidos social,
epistêmico, político e cultural. Esse tema também coloca questões de ordens filo-
sófica e pedagógica acerca do estatuto da identidade docente em tempos de moder-
nidade líquida/flexível. As perguntas mais fundamentais já enunciadas por Kant
(1980) no século XVIII, acerca do que se pode saber, o que se deve fazer e o que se
pode esperar, movimentam para pensar um sentido possível para o conhecimento,
a educação e a ação no devir do mundo social e histórico. Essas interrogações exi-
gem, grosso modo, não apenas uma capacidade funcional por parte dos docentes
(adaptativa), mas, sobretudo, uma capacidade instituinte e mediata (reflexiva).
Condição que desafia a universidade, a escola e os envolvidos com o trato da ques-
tão educacional a rever e repensar permanentemente a natureza dos saberes cons-
titutivos da ação docente.
Sidinei Pithan da Silva
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Para aproximar o debate acerca de um novo estatuto teórico para a justiça
social, com a problemática da docência e da educação, na interface do debate mo-
dernidade/pós-modernidade, o texto procura compreender, a partir de um estudo
bibliográfico, de cunho interpretativo, a crise de sentidos que ronda o cotidiano do-
cente em tempos de modernidade líquida/flexível, bem como o próprio universo de
crise das ciências humanas. Sugere, para tanto, que, mesmo sendo problemáticas
complexas e pertencentes a universos diferentes, acabam por ganhar uma signifi-
cação relacionada com a crise do próprio projeto social moderno. Tanto as aspira-
ções por justiça social quanto o próprio fundo teórico e paradigmático da filosofia
e das ciências humanas, que animaram o projeto social e educacional moderno,
entraram em crise no final do século XX e convocam a repensar a modernidade e a
educação nesse contexto. Nesse sentido, a pergunta que anima se refere à dúvida
radical acerca do modo de pensar a educação na interface do debate modernidade/
pós-modernidade. Como pensar a educação, a docência e a justiça social na crise
do projeto social moderno? Seria possível construir uma outra noção complexa de
racionalidade/sensibilidade para pensar a docência, a justiça social e a educação
escolar na contemporaneidade?
O filósofo Richard Rorty (1999), um liberal e crítico radical da esquerda, ao
examinar a crise do projeto social moderno, compreendeu e interpretou os dois
marcos centrais da política norte-americana ao longo do século XX. Da primeira
parte do século até meados de 1960, predominou uma esquerda igualitarista, que
se empenhou enormemente para buscar níveis melhores de vida para os traba-
lhadores. Na segunda parte do século, emerge uma esquerda culturalista, que se
dedicou à problemática das minorias excluídas, dos homossexuais, das mulheres,
das discriminações e opressões de gênero. Rorty (1999) mapeia bem os excessos de
ambos os discursos, quando afirma que os primeiros eram machistas e homofóbi-
cos, e os segundos atribuem pouco valor ao drama do trabalho e das questões de
classe e de busca de igualdade social.
A posição de Rorty (1999) parece, em linhas gerais, reafirmar uma certa va-
lorização do espírito ocidental (liberal) e dos valores civilizatórios e democráticos,
demarcando um interesse pragmatista para com a educação, a igualdade e a de-
mocracia. Muitos teóricos conservadores, como Harold Bloom e, inclusive, Richard
Rorty, têm buscado destacar que o lugar das instituições educacionais se refere à
construção de uma cultura comum, em detrimento de uma política cultural. Rorty
está muito mais alinhado com uma ideia de justiça relacionada com as problemá-
ticas da igualdade, da democracia e da liberdade política dentro de uma agenda
Educação e justiça social na contemporaneidade: repensando o sentido da docência no âmbito escolar
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modernista. Esses pontos, obviamente, são defensáveis, mas, no entanto, o autor,
conforme tem compreendido Henry Giroux (2003), tem separado o político do cultu-
ral e, com isso, tem limitado a ação da educação no âmbito da questão de políticas
que sejam cegas “à cor, uma política para a qual a questão da diferença seja ampla-
mente irrelevante para um materialismo ressurgente que se define como a antítese
do cultural” (GIROUX, 2003, p. 34). Giroux (2003) entende que Rorty promove uma
caricatura da esquerda cultural e, em nome de questões gerais, esquece formas
específicas de opressão. Com essa posição, Giroux (2003) aponta o valor de catego-
rias pós-modernistas para o debate educacional, a agência docente e a questão da
justiça social.
Nesse contexto, o modo como se propõe pensar estes temas (justiça social,
docência e educação) não é por exclusão do que foi considerado importante pela
tradição modernista (igualdade, liberdade e fraternidade), para definir o lugar e o
papel da escola e da educação em relação à política, ao combate à desigualdade, ou
mesmo por descarte do que tem sido sugerido pela tradição pós-modernista (iden-
tidades, diferenças e alteridades), e ao combate às formas específicas de opressão
que se dão em torno de identidades de gênero, etnia e raça. Advoga-se em torno da
necessidade de um pensamento complexo/dialético para refletir a formação docen-
te e a justiça social na educação em tempos líquidos/flexíveis, o que compreende,
sobretudo, novas racionalidade e sensibilidade complexas, as quais comportem a
capacidade de ler de forma ambivalente e contraditória as heranças das tradições
modernistas e pós-modernistas. Essa condição modifica a noção acerca dos saberes
e conhecimentos que são constitutivos do agir docente, com vistas à justiça social
no interior das práticas pedagógicas escolares.
Isso parece implicar uma defesa da universalidade, e não do universalismo
homogeneizante, como também da singularidade e da diferença, não do particula-
rismo e da fragmentação. Indica ainda que é preciso, na atividade docente, romper
com o cientificismo moderno (ou com o caráter aparentemente neutro da ciência),
sem perder de vista os horizontes de busca da igualdade e da liberdade procla-
mados pelos pensamentos político e social modernos. Significa que a escola, em
tempos de modernidade líquida/flexível, pode continuar investindo na construção
de uma cultura comum (plural) em torno do conhecimento, que favoreça a par-
ticipação na esfera pública (política); como também incorporar formas novas de
pensar o sentido da ação docente em perspectivas curriculares de inclusão social,
que problematizem as políticas culturais e identitárias e seus contextos sociais e
econômicos, dando voz e vez aos subalternos, excluídos e explorados. A questão da
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justiça social parece mobilizar para tal agenda, sugerindo uma articulação com-
plexa entre liberdade política, igualdade social, diferença cultural e solidariedade,
obrigando a fazer uma análise e uma rearticulação dos legados e heranças das
culturas modernistas e pós-modernistas de pensamento na educação.
Educação e justiça social: entre a modernidade e a pós-modernidade
O debate sobre justiça social e educação não produz nem pede automatica-
mente uma adesão (militante), nem assim poderia ser. Pelo contrário, exige uma
capacidade de questionamento acerca do que constitui a educação em seu projeto
moderno (XVIII) e contemporâneo (XXI). Ou seja, trata-se de compreender como a
questão educacional tornou-se constitutiva das formas de sociabilidade produzidas
pelas sociedades modernas e contemporâneas em seu dinamismo de produção e
autoprodução de subjetividades. Esse movimento leva a interrogar e questionar o
próprio imaginário moderno/contemporâneo e seu conjunto de idealidades, insti-
tuições e práticas sociais (ancoradas em pressupostos filosóficos, políticos, éticos e
culturais). A consciência histórica, como enunciou Gadamer (1998) nos rastros de
Hegel, ajuda a perceber que o mundo tem história e não se reduz à vontade indivi-
dual. Em sentido semelhante, Marx lembra, em O 18 Brumário de Luís Bonaparte
(2011), o quanto as tradições do passado estão envolvidas nas revoluções e nos
acontecimentos do presente. Segundo ele, “a tradição de todas as gerações passa-
das é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos” (MARX, 2011, p. 25).
Esse reconhecimento, tanto por parte de Gadamer (1998) como de Marx
(2011), sugere sempre uma leitura atenta não apenas da forma como se apresenta
o mundo (interpretação imediata) para nós, ou de como ele deveria ser no futuro
(justo), mas, fundamentalmente, de como é produzido nas formas de pensamento
no interior do mundo social e histórico (interpretação mediata). Importante lem-
brar que o próprio Marx, no intento de compreender o mundo moderno, buscou
desenvolver a crítica da filosofia hegeliana, a qual ele considerava ser o modo de
expressão mais elaborado sobre o mundo moderno. Em Hegel, no âmago de sua
filosofia, Marx (2005) imaginou encontrar a estrutura do mundo moderno e da do-
minação de classe. Nesse sentido, Marx pode ser lido, também, como um crítico das
ideologias. Essa última questão (como se pode pensar ou questionar as ideologias e
imaginários que nos produzem) remete às duas anteriores (o que o mundo é e o que
ele deveria ser) em um sentido circular e permite uma aproximação com a proble-
mática da educação em seu vínculo com a justiça social. Em uma clara alusão ao
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problema do pensar, ela remete também a Kant (1980) e ao tema do conhecimento
do conhecimento, como tem sugerido Edgar Morin (2001) em sua insistente defesa
da necessidade de um pensamento complexo. Movimento que também aproxima da
perspectiva de uma dialética negativa, tal como a formulada por Theodor Adorno
(2009). Nesse contexto, Giacóia Junior, ao interpretar a filosofia de Theodor Adorno
e pensar as heranças do universalismo moderno e do particularismo pós-moderno,
dá a seguinte pista:
Acompanhemos, portanto, com Adorno, como essa fratura entre o universal e o singular
pode ser pensada sem negação absoluta de nenhum dos pólos e com vistas a possibilidade
de conservar o momento dialético de verdade que ambos reivindicam, sem resvalar nem em
um universalismo totalitário, nem na diáspora dos particularismos pós-modernos (2001,
p. 72).
A pergunta clássica de Marx e Engels, enunciada na obra A ideologia alemã
(2009), sobre quem educará os educadores, é retomada por Edgar Morin (2001),
como metáfora para pensar o dinamismo e as contradições do mundo moderno e o
lugar que nele ocupam os educadores. Certamente Morin é muito mais kantiano
do que marxiano, quando sugere que se deve repensar o já pensado e reaprender a
aprender. Mas isso não o impede de colocar na ordem do dia o desafio para um novo
modo de pensar, o qual tem um significado diametralmente ligado com a missão
das luzes que foram enunciadas no século XVIII e que, de certa forma, impulsiona-
ram os regimes democráticos e republicanos, ou mesmo as práticas de contestação
e crítica às sociedades capitalistas e à racionalidade instrumental que lhes é cons-
titutiva. A questão da (in)justiça social emerge de modo muito interligado com es-
tes dois movimentos do mundo moderno: a busca pela liberdade, pela solidariedade
e pela igualdade, de um lado, e a busca pela ampliação irrestrita e total do capital,
da produtividade, da exploração, da dominação e do consumo, por outro. Esses dois
grandes imaginários, como enunciou Cornelius Castoriadis (1992), constituem, de
modo ambivalente e contraditório, a herança simbólica que sustenta o tecido social
do mundo ocidental a partir da herança moderna.
No fundo, somos modernos porque reconhecemos, a partir de Rousseau (1978),
Kant (1980), Hegel (1980) e Marx (2011), que nosso mundo é uma criação feita pelo
próprio homem. Nossas instituições, em sentido semelhante, não derivam suas for-
ças de fundamentação de um plano transcendente, estando sempre ancoradas em
pressupostos discutíveis e susceptíveis de mudança e contestação. Nossa consciên-
cia acerca dos limites da modernidade e de suas contradições talvez nos coloque em
uma nova condição, a qual não sabemos precisar. Para alguns, estaríamos vivendo
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um novo momento filosófico, denominado de pós-moderno (LYOTARD, 2002) ou,
mesmo, uma nova condição social, pós-moderna (HARVEY, 2006). Para outros ain-
da estaríamos na modernidade, mas em sua fase líquida, seríamos ainda modernos,
mas não teríamos as mesmas ilusões dos primeiros modernos (BAUMAN, 2001).
Esta ideia da criação social e histórica, mais do que de uma definição última acerca
do que melhor marca o espírito desta época, ajuda a pensar um sentido complexo
para o universo da justiça social e de seu vínculo com o capitalismo, a educação e a
docência. O projeto da autonomia e da emancipação proclamado pela modernidade,
associado à ação da educação e dos educadores, por certo, não está acabado, mas
a forma como a modernidade encarnou o imaginário social capitalista limitou e
muito as ambições e conquistas emancipatórias.
Na medida em que encarnou a significação imaginária capitalista do (pseudo)domínio
(pseudo)racional, a modernidade está mais viva do que nunca, engajada numa corrida fre-
nética, a qual leva a humanidade para os mais extremos perigos [...]. O próprio projeto de
autonomia, por certo, não está encerrado, nem terminado. Mas sua trajetória durante os
dois últimos séculos provou a inadequação radical (para falar comedidamente) dos progra-
mas onde o capitalismo se encarnara – quer seja a república liberal, quer seja o socialismo
marxista-leninista (CASTORIADIS, 1992, p. 26).
Com isso, entende-se, junto com Castoriadis, que a ideia de justiça social, as-
sim como a de democracia, de autonomia e de direitos humanos, é uma criação
social e histórica e que elas não apenas ajudam a fazer o mundo humano funcionar
de certa maneira, como também ajudam a estranhar o mundo, tal como ele se apre-
senta, tendo em vista as possibilidades de sua mudança social. “Para o ressurgi-
mento do projeto de autonomia”, explica Castoriadis (1992, p. 26), “novas atitudes
humanas e novos objetivos políticos são exigidos, cujos sinais por enquanto são
raros”. Nesse sentido, Bauman, na obra Vida líquida (2009), também ponderou
sobre os conceitos de democracia e de finalidade da educação. Segundo ele, em
uma clara menção a Castoriadis, uma sociedade democrática está invariavelmente
ligada à educação e à autoeducação. Pode-se acrescentar que uma sociedade que
aspira a outros níveis de justiça social também depende da educação ou, mesmo, de
um grau de autocrítica gerada por ela e pelos educadores; tarefa que parece exigir
uma pedagogia crítica, adverte Bauman, amparado em Giroux, a qual possibilite à
sociedade “se sentir culpada” ou, mesmo, se sentir insatisfeita com as conquistas já
realizadas. Nas palavras de Bauman:
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Os destinos da liberdade, da democracia que a torna possível – ao mesmo tempo que é
possibilitada por ela – e da educação que produz a insatisfação com o nível de liberdade
e democracia até aqui atingido são inextricavelmente ligados e não podem ser separados
um do outro. Pode-se ver essa conexão íntima como outra espécie de círculo vicioso – mas
é nesse círculo, e só nele, que as esperanças humanas e as chances da humanidade se
inserem (2009, p. 23).
Sobre esse panorama, uma luta de fundo anima nosso esforço para pensar
a justiça social em tempos de modernidade líquida/flexível e ela tem um caráter
eminentemente prático, assim como eminentemente teórico. Trata-se, ao mesmo
tempo, de a tornarmos efetiva, no sentido que permita conquistas e alargamentos
das liberdades, combatendo desigualdades, discriminações e formas de opressão,
dentro de um mundo que está em curso, como também de repensarmos, do ponto
de vista teórico, o próprio significado do termo e sua relação potente com os desa-
fios do presente. Este parece um movimento contemporâneo que tem atravessado
o debate nas ciências humanas e na filosofia, ganhando destaque nos escritos de
Fraser, Sen, Rawls, Dubet, entre muitos outros (ESTEVÃO, 2015).
Um sentido para a ideia de justiça social, associada ao combate das desigual-
dades, está bem configurada nos escritos de Dubet (2003) e de outros pensadores.
Numa clara alusão a Tocqueville e a seu senso de igualdade, Dubet evidencia como
este marco significativo pode servir de referência para pensar nas democracias
modernas, bem como nos direitos humanos. Dubet, assim como Castoriadis (1992),
distingue os dois sentidos fortes e paradoxais da modernidade, explicitando como
ela comporta, de um lado, um projeto de exploração, movido pelas forças do capital,
e, de outro, um projeto de autonomia, de igualdade e de emancipação, marcado pela
ideia de democracia.
Um relato otimista sobre a modernidade poderia mostrar sem dificuldade que as socieda-
des democráticas, no sentido definido por Tocqueville, fizeram recuar pouco a pouco as desi-
gualdades de castas e de ordens, a escravatura, a ausência de direitos políticos, a margina-
lização das mulheres, as aristocracias de nascimento [...]. A segunda face da modernidade é
encarnada por Marx, para o qual as desigualdades de classes não constituem uma herança
do passado, mas um elemento fundamental, estrutural, das sociedades modernas, isto é
das sociedades capitalistas. Na medida em que o capitalismo se baseia num mecanismo de
extração permanente da mais-valia a partir do trabalho, especialmente exigindo o inves-
timento de uma parte crescente das riquezas produzidas, a oposição dos trabalhadores e
dos donos dos investimentos, do trabalho e do capital, torna as desigualdades sociais um
elemento funcional do sistema das sociedades modernas (DUBET, 2003, p. 25-26).
O destaque conferido por Dubet (2003) a duas tradições antagônicas para
a leitura da modernidade ajuda a explicitar a natureza da análise que estamos
conduzindo para pensar um outro sentido para a ideia de justiça social entre o
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referencial moderno e o pós-moderno. O autor, ao buscar pensar as desigualdades
e seu sentido em um projeto de justiça social, marca fortemente o argumento que
destaca o reconhecimento positivo das viradas para o mundo moderno. Dubet está
denotando, no fundo, que a modernidade não é apenas um projeto social de cunho
exploratório, mas também um ideal de igualdade e, mesmo, de liberdade, centra-
das em pressupostos contratuais e liberais. A expansão dos sistemas de ensino bem
como a democratização dos serviços da educação, em um sentido positivo, esta-
riam na base no enfrentamento das desigualdades e injustiças, por intermédio das
igualdades de oportunidades.
O imaginário moderno, obviamente, carrega não somente sementes de liber-
dade e de justiça social, como também novas sementes de controle, exploração, si-
lenciamento e regulação. Sob o ponto de vista positivo (emancipatório), o imaginá-
rio moderno é produzido por uma sociedade que busca outras formas de liberdade
e igualdade e que, para tanto, cria sobre si uma autocrítica capaz de dissolver os
“magmas de significados” (CASTORIADIS, 1987) que conferiam solidez ao poder
instituído. Condição que permite irromper, no seio da velha Europa, uma nova
forma de poder, em que o Rei, nas proximidades da Revolução Francesa (1789),
“está morto”, e o Clero perdeu seu lugar central na produção da hegemonia e da
legitimação. “A legitimidade do rei não decorre mais de Deus, nem está fundada no
próprio rei: seu poder só pode ser considerado legítimo se ele agir dentro dos limites
que lhe impõe o direito baseado na moral” (KOSELLECK, 1999, p. 127). Importa
destacar, como faz Bignotto (2017, p. 182), que um dos aspectos decorrentes da
Revolução Francesa se refere ao constitucionalismo, juntamente com “o elogio do
sufrágio universal e a afirmação dos princípios de igualdade política entre todos os
cidadãos”. Está-se diante do nascimento das repúblicas e das democracias moder-
nas, sob os zelos do Estado-Nação. Ou seja, está-se diante do novo sujeito instituído
pelo mundo moderno, o qual passa a figurar como principal agente de regulação
das ordens política, social e educacional, o Estado-Nação.
Na interpretação de Honneth, no texto Educação e esfera pública democrática
(2013), a educação deveria ser vista, por parte da filosofia política, como uma di-
mensão importante para a democracia e para o Estado-Nação. O autor está ciente
de que a instituição dos marcos dos pensamentos político e filosófico modernos
considera a questão educacional/escolar central para a funcionalidade das esfe-
ras públicas e democráticas. Na leitura de Honneth (2013, p. 545), “para Kant, o
paralelo entre a arte do governo e a arte da educação resultava da consideração
de que ambas são instituições criadas pela sociedade”. Segundo ele, ambas “têm
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de cumprir a mesma tarefa nas dimensões diferentes da história da espécie e do
indivíduo, na filogênese e na ontogênese” (HONNETH, 2013, p. 545). Esta leitura
corrobora o sentido que se atribuiu ao valor da educação no âmbito do pensamento
moderno e seu vínculo com a liberdade e a maioridade. Kant, depois de Rousseau,
tem plena consciência de que os homens não nascem humanos, mas tornam-se
humanos. Isso significa assumir que o humano, assim como o mundo humano, é
uma criação; mas significa também que a ordem estatal republicana depende da
educação (HONNETH, 2013, p. 546).
Para compreender as sementes de legislação, controle e regulação produzidas
pela modernidade, Zygmunt Bauman, na obra Legisladores e intérpretes: sobre mo-
dernidade, pós-modernidade e intelectuais (2010), mostra a outra face ou polo do
projeto social moderno. Bauman, em sua rica abordagem, evidencia como a ques-
tão da ordem tornou-se central para os construtores do mundo moderno. À escola
coube a tarefa de produzir a educação necessária para construir o Estado-Nação.
A crença de que era possível criar um mundo ordenado, conforme os ditames da
razão, produziu, segundo Bauman, uma forma excludente e regulatória, a qual
tratou de ajustar todos de acordo com os ditames do novo poder. Para Bauman,
a face emancipatória da modernidade, da educação moderna, ficou subordinada
à face disciplinadora e punitiva. O fundo em que Bauman (2010) se movimenta
para produzir tal diagnóstico e estranhamento da modernidade é diferente do de
Honneth (2013), estando muito mais próximo do de Foucault (2005) ou, mesmo, da
atitude pós-moderna em geral. A questão de Bauman (2010) não é tanto o problema
da igualdade, como aponta Dubet (2003), em sua leitura da política e do mundo
do trabalho, tampouco o da liberdade política, como aponta Honneth (2013), mas
substancialmente o problema da diferença e do poder. Com isso, Bauman coloca,
na ordem do dia, uma discussão relacionada à emancipação e à justiça social, que
precisa considerar: a liberdade e a diferença na interface das relações de poder. O
pano de fundo de Bauman é, no contexto desta obra, profundamente pós-moderno
e instiga a pensar a educação e a modernidade em geral por outra ótica. “A ideia de
educação”, conforme Bauman (2010, p. 102), “significava o direito e o dever do Es-
tado de formar (mais bem expresso no conceito alemão de Bildung) seus cidadãos
e guiar sua conduta”. Aspecto que significava, esclarece Bauman (2010, p. 102), “o
conceito e a prática de uma sociedade administrada”. O propósito da educação, di-
ferentemente do proclamado, era o de obedecer, não o de disseminar conhecimento.
Em suma, em Dubet (2003) e Castoriadis (1992), há uma análise ambivalente
e contraditória da modernidade e, com ela, uma aposta radical nas vias da demo-
Sidinei Pithan da Silva
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cracia, tendo em vista o problema das (des)igualdades material e normativa, da
autonomia e da liberdade política. Em Honneth (2013), o valor da educação é visto
como forma de construir a maioridade dos sujeitos que irão governar e atuar na
esfera pública, ou seja, o problema da justiça social é tratado como um problema
que envolve a participação política. Honneth (2013) exacerba o polo positivo do po-
der do Estado, da esfera pública, e o lugar da escola e dos educadores como aqueles
que propiciam esta consciência pública. Em Bauman (2010), o sentido da educação
emerge como forma de criação e autocriação do mundo social moderno, tendo ser-
vido a educação muito mais como forma disciplinadora e excludente dos corpos do
que forma emancipatória a serviço da liberdade e da justiça. Uma leitura muito
mais negativa da modernidade emerge em Bauman, tendo em vista as ilusões do
projeto social moderno e seu caráter regulatório, ordeiro e homogeneizante.
No fundo, Bauman (2010) está mostrando que há uma lacuna, ou mesmo uma
cegueira, no projeto social moderno, e que esta ficou evidenciada com o alvorecer
do totalitarismo no século XX e das diferentes formas de exclusão e silenciamento
de culturas, etnias e povos. Trata-se, sobretudo, de uma crítica ao eurocentrismo
embutido nos ideais democráticos e emancipatórios da modernidade, bem como nos
modos de pensamento que produzem os imaginários sociais hegemônicos, o que
acaba por subverter a forma tradicional da crítica. Mas como esta crise dos referen-
ciais modernos, do universalismo moderno acaba por se manifestar na educação?
Ela é apenas decorrente das aspirações e projetos não realizados pela modernidade
ou uma consequência dos limites e entornos das próprias configurações e relações
sociais e culturais implicadas com a mudança do capitalismo de uma fase nacional
para uma fase transnacional? Três conjuntos de temas parecem estar envolvidos
nessas questões: a) os limites ou insuficiências das configurações modernistas (eu-
rocêntricas) em torno das ideias de democracia, liberdade, política e justiça social,
as quais não configuram de forma suficiente a questão da diferença; b) a reconfi-
guração das formas do pensamento filosófico e científico em torno das categorias
linguagem, cultura e poder; e c) a mudança social e a nova base legitimatória do
capitalismo em sua fase móvel, fluída e flexível, com seu desdobramento no mundo
do trabalho. Movimento que desafia a pensar outras formas de racionalidade e de
sensibilidade no trato com a questão educacional na contemporaneidade.
Educação e justiça social na contemporaneidade: repensando o sentido da docência no âmbito escolar
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Docência, justiça social e educação: em busca de uma nova racionalidade/
sensibilidade complexa
A nova condição social vivida contemporaneamente tem desafiado a repensar
a docência. Inúmeros teóricos estão evidenciando a necessidade de ruptura com
os pressupostos tácitos que animaram a educação durante a era moderna. Como
argumentou-se anteriormente, não há consenso sobre o que configura propriamen-
te a via possível para continuar investindo na ideia de educação: se ela segue a
lógica do projeto social moderno, do esclarecimento, da autonomia e da raciona-
lidade; ou se investe nos pressupostos sugeridos pelo projeto social pós-moderno
da desconstrução. O que se torna comum, neste modo de exposição, é que a ideia
de justiça social tem mobilizado pensadores liberais e teóricos críticos que buscam
rearticular, desde a filosofia moderna, sentidos políticos fortes, para pensar o valor
da democracia, da justiça social e dos direitos humanos, tais como Dubet (2003) e
Honneth (2013), bem como pensadores pós-críticos, que têm buscado argumentar
a necessidade de buscar novos pressupostos para pensar a continuidade da vida
democrática, tal como a proposta de Bauman (2010).
Os primeiros têm levantado as pautas da liberdade e da igualdade (DUBET,
2003) como fundamentos centrais para pensar as ideias de justiça social e demo-
cracia. Os segundos têm destacado as pautas da liberdade e da diferença (PETERS,
2000; BAUMAN, 2010) como dimensões fundamentais para enfrentar os novos
tempos. O discurso educacional contemporâneo bem como o discurso filosófico em
geral parecem marcados por esses posicionamentos díspares e contraditórios. Uma
via possível, para interpretar os desdobramentos deste debate no âmbito da docên-
cia, é a de que, conforme se definem os papéis e fins sociais e políticos do processo
de escolarização, se constituem marcas identitárias e epistêmicas para a atividade
docente. Tornou-se impossível não considerar os novos temas envoltos nas pro-
blemáticas sugeridas pelas novas agendas pós-modernas, mas, da mesma forma,
cumpre não abandonar por completo alguns sentidos fortes e importantes, que fo-
ram e se tornaram conquistas da própria modernidade. O próprio Bauman, na obra
O mal-estar da pós-modernidade (1998), parece estar consciente que somente a
defesa da diferença, separada da busca da igualdade social, tal como a pós-moder-
nidade postula, pode resultar em mais opressão e dominação. Em suas palavras:
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A política pós-moderna, voltada para a criação de uma comunidade política viável, precisa
ser guiada pelo tríplice princípio de Liberdade, Diferença e Solidariedade, sendo a soli-
dariedade a condição necessária e a contribuição coletiva essencial para o bem-estar da
liberdade e da diferença. No mundo pós-moderno, os primeiros dois elementos da fórmula
tríplice têm muitos aliados abertos ou encobertos, quando nada nas pressões de “desregula-
mentação” e “privatização” dos crescentes mercados globalizados. Uma coisa é improvável a
condição pós-moderna produzir sob sua responsabilidade – isto é, não sem uma intervenção
política – é a solidariedade. Mas, sem a solidariedade [...] nenhuma liberdade é segura, en-
quanto as diferenças, e o tipo de “política de identidade” que elas tendem a estimular, como
David Harvey ressaltou, de um modo geral terminam na internacionalização da opressão
(BAUMAN, 1998, p. 256).
Safatle, na obra A esquerda que não teme dizer seu nome (2016), advoga que
o direito à diferença só pode ser estabelecido a partir da defesa da igualdade e da
própria agenda da modernidade. Todo o esforço do autor se localiza no sentido de
pensar um conceito forte para a questão da democracia e mesmo da modernidade, a
partir da defesa da igualdade. Mas ele também não deixa de reconhecer que pensar
a democracia, nos novos tempos, só é possível a partir do reconhecimento da dife-
rença. Em sentido semelhante, marcando posição de crítica radical à filosofia da
diferença, Fredric Jameson (2013) argumenta que se pode pensar pela ótica da di-
ferença, mas também é preciso pensar pela ótica da identidade. Tanto a posição de
Safatle quanto a de Jameson guardam relações com a filosofia hegeliana: é preciso
pensar a diferença na identidade e a identidade na diferença. Tratando da crítica
pós-moderna à ilustração, Jameson (2013, p. 68) assim pondera: “[...] desde uma
perspectiva dialética as duas narrativas são corretas e ambas estão igualmente
equivocadas”; segundo ele, “é esta visão dupla a que se exercita a partir do pensa-
mento negativo de Adorno [...]”. Mas, em que sentido esses debates movimentam
para pensar a educação e o agir docente nos novos tempos?
As críticas desses autores emergem, em linhas gerais, como formas de uma
nova via para pensar nos limites de uma ação educativa que se movia apenas pelo
vértice igualitarista ou, mesmo, homogeneizante. Também têm permitido pensar
que o vértice diferencialista ou de reconhecimento da heterogeneidade, não neces-
sária ou automaticamente, é produtor de justiça social. Dubet (2008) tem argu-
mentado em suas obras que se torna importante pensar como a escola moderna
distribui o bem comum e como trata os desiguais em função dos contextos sociais
e culturais. Este tipo de postura assume um cunho universalista, não somente
liberal, também no que tange à crítica social. A crítica ao elitismo republicano e
à defesa de uma igualdade de oportunidades para todos emerge na escritura de
Dubet (2008) como uma forma de pensar sobre o que seria uma escola justa no pro-
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
jeto da modernidade, tendo em vista suas contradições. Ao recuperar o processo de
constituição da escola republicana na França pós-revolução francesa, Dubet (2008)
evidencia como as desigualdades econômicas, no contexto da Revolução Industrial,
precisam ser consideradas para poder levar a termo os ideais de busca de igualda-
de por meio da escolarização.
Considera-se que a criação da escola obrigatória e gratuita (1881) é uma etapa decisiva
no acesso de todos os alunos à educação, mas durante um longo período nem todas as
crianças tiveram acesso à mesma escola e, portanto, à mesma competição. A igualdade das
oportunidades não era formalmente realizada, nem mesmo afirmada como um princípio
pelos fundadores da escola republicana, porque todos os alunos não entravam na mesma
arena e, portanto, não podiam vislumbrar os mesmos percursos. Com a abolição do exame
de entrada na sexta série após a criação do colégio único em 1975, pode-se considerar que as
condições estruturais da igualdade das oportunidades foram progressivamente realizadas
[...]. À questão das desigualdades de acesso se substitui a das desigualdades de sucesso
(DUBET, 2008, p. 21).
O novo panorama contemporâneo, implicado no âmbito da escolarização, evi-
dencia que não basta a garantia do acesso à escola como forma de assegurar o
sucesso ou a igualdade social. Mesmo que esse acesso seja condição para permitir
um maior nível de igualdade, ele está longe de atenuar as desigualdades sociais.
Pode-se dizer simplesmente, argumenta Dubet (2008, p. 28), “que tanto na Fran-
ça quanto em outros lugares, a escola não conseguiu neutralizar os efeitos das
desigualdades culturais e sociais sobre as desigualdades escolares”. O ideário da
igualdade social, por meio da escola, não é plenamente realizável em uma socieda-
de desigual e classista. Pensar a questão da igualdade, na interface das condições
sociais e culturais deste tempo, como desafiou Adorno (1999), parece ter sido a
postura teórica de Dubet (2008), para pensar no alcance do conceito de igualdade.
Uma educação igual para todos, no sentido de não considerar o caráter heterogêneo
dos estudantes e seu lugar social e cultural, em função da classe social e do gênero
a que pertence, mostrou-se importante sob certo ponto de vista, mas uma análise
complexa e profunda revela que ela manteve desigualdades. Mesmo meninas que
manifestaram melhor desempenho escolar que meninos acabam se saindo pior na
vida social, em função das desigualdades sociais entre os sexos. Simplesmente,
adverte Dubet (2008, p. 29), “a escola não consegue escapar à pressão das desigual-
dades sociais”.
Em sentido semelhante ao de Dubet (2008), Mariano Enguita (2004) procura
compreender como a desigualdade social e as políticas igualitárias estão relacio
-
nadas com a injustiça no contexto da escolarização. No projeto da modernidade,
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Enguita critica tanto Voltaire quanto Rousseau, manifestando que o primeiro foi
um crítico da educação para os pobres, e o segundo não levou sua preocupação com
a educação além dos limites da nobreza. Na base da crítica de Enguita (2004), há o
entendimento de que a expansão da escola veio acompanhada da ideia de que dife
-
rentes grupos sociais deveriam receber educação diferente. Os povos colonizados, as
mulheres, os pobres, não estavam contemplados no início do processo de escolariza
-
ção. Para as classes populares, coube um tipo de educação, as escolas elementares;
paras as classes favorecidas, outro, os institutos, os liceus. Para as primeiras, sur
-
giram as escolas técnicas; para as segundas, os bacharelados. Uma divisão social se
produziu no interior do sistema educacional (ENGUITA, 2004, p. 76). Essa leitura
de Enguita procura mostrar como a escola precisa ser interpretada não somente no
que tange ao seu papel de reprodução social, como também no seu poder de trans
-
formação social. Nesse sentido, Enguita evidencia como a questão da justiça social
parece requerer, além da igualdade (como forma homogeneizante), a questão da
liberdade, da diversidade e da responsabilidade. Em sua retomada histórica sobre
o problema da justiça social e das políticas igualitárias, ele mostra como a centrali
-
dade do debate até as décadas de 1970 e 1980, na Espanha, estava relacionada com
as desigualdades de classe. Pouco a pouco, abriu-se o caminho para outro tipo de
desigualdades, “especificamente as de gênero, primeiro e as étnicas, depois” (EN
-
GUITA, 2004, p. 79). O autor acrescenta que este movimento em torno da igualdade
escolar alcançado pelas mulheres, embora importante para suas demandas nos âm
-
bitos políticos, sociais e econômicos, permitindo combater argumentos patriarcais,
ainda merece ser problematizado.
Mas esse tipo de igualdade é, por assim dizer, fácil; consiste essencialmente em não fazer
nenhuma distinção, em tratar todos de forma burocraticamente igual. Como em geral, con-
sistiu apenas em escolarizar mais gente, por mais tempo e com mais meios, encontrou apoio
inequívoco em alguns professores – e em alguns aspirantes a professores – para os quais
era sinônimo de melhorias trabalhistas e maiores oportunidades profissionais. O proble-
ma ocorre quando, por um lado, é preciso compatibilizar a igualdade com a liberdade e a
responsabilidade; por outro, quando, ao passar das palavras aos fatos, esbarra-se, dentro e
fora da instituição, com a diversidade do público potencial e real (ENGUITA, 2004, p. 83).
Curieses, no texto Por una escuela inclusiva (2017), projeta um significado
amplo para a ideia de educação inclusiva, demarcando com mais força que Enguita
(2004) a questão da diversidade a partir da crítica que o feminismo pós-moderno
endereça à educação. Segundo ela, “si bien es reconocido el derecho a la educación
de todas las personas, siguen siendo numerosas las voces que reclaman la necesi-
dad de pensar, estudiar, proponer y comprometerse con nuevas formas de entender
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y enfocar la educación de la diversidad del alumnado. Así, surge la idea de una
escuela inclusiva” (CURIESES, 2017, p. 2). Se Enguita mostrava como a questão
de classe perdia força a partir da década de 1970, Curieses mostra como a questão
de gênero emerge a partir dos anos 1960. Importa, para este estudo, marcar como
o cenário educacional é modificado a partir desta discussão, e como os professores
são provocados para pensar questões novas em torno das políticas de identidade.
Segundo Curieses (2017, p. 5): “Las diferencias habituales entre los seres humanos
componen una sociedad de diferentes que obliga a aprender a vivir en el respeto
a esas diferencias, buscando en ellas motivos y causas de enriquecimiento para
todos”.
Importante notar que, se o deslocamento interpretativo feito por Dubet (2003)
e Enguita (2004) leva a problematizar questões de classe, ou mesmo econômicas,
como fundantes dos problemas das desigualdades, inclusive as de gênero e étni-
cas, o debate feito por Curieses coloca o problema da linguagem, da diferença e
da representação na anterioridade do problema envolvido na mudança social. A
referência para o debate remete ao enfoque pós-moderno, tornando-se as questões
do corpo, da sexualidade e do poder centrais para pensar o sentido que o termo
diferença representa. Michel Foucault e Judit Butler tornam-se os protagonistas
desta virada na teorização contemporânea.
Foucault presentó una manera diferente de concebir y percibir las teorías acerca del yo y
de la sociedad, conjugándolo con un nuevo método de evaluación. Pero su método conduce
a una práctica de autorrechazo: a pensar contra nuestra propia identidad, sospechosa de
estar al servicio del poder en tanto que participa del mismo, al servicio de intereses patriar-
cales y de ser, por extensión, opresora. La identidad y el género aparecen como algo suma-
mente complejo, estando en juego con el poder, lo que supone una dificultad para pensar
en la resistencia al mismo. Pero, si bien el poder produce y somete, la producción que lleva
a cabo el poder de los sujetos no siempre tiene el resultado esperado. Y esto es lo que va a
interesar a Butler: precisamente el fracaso de los propósitos del poder. Judit Butler ofrece
un punto de vista desde el que es posible desarticular el determinismo social que niega la
posibilidad de que el agente actúe y cambie (CURIESES, 2017, p. 6.)
A reconfiguração do campo educacional, sob a ótica pós-moderna, não somen-
te amplia a agenda, como também reconfigura o que está em questão na prática
educativa dos educadores, quando se fala de democracia e justiça social. Como
argumentado, se alguns autores permitem pensar sobre o desafio de conceber a
busca da igualdade e da liberdade a partir dos marcos da modernidade, ou mesmo
do pensamento crítico sobre ela, outros buscam pensar e projetar para além dos
modos críticos tradicionais, incorporando a questão da liberdade e da diferença.
Torna-se bastante presente nas novas configurações teóricas uma capacidade do-
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cente para pensar como se dão os processos de exclusão não somente em termos
das desigualdades sociais, ou mesmo como elas são produzidas nas malhas da eco-
nomia política, como também no âmbito das produções discursivas e culturais que
instituem e produzem identidades. Uma capacidade pós-crítica para perceber que
não há nem deve haver referentes fixos ou padronizados na linguagem (DERRIDA,
2016) para a produção das vidas social e individual torna-se o desafio para pensar
as “práticas inclusivas na escola” (CURIESES, 2017, p. 7).
A problemática da dominação colonial ganha destaque na nova agenda. As
questões ligadas ao corpo, ao gênero, à etnia, à sexualidade e ao poder entram
na agenda do dia. O marco da problemática educacional é praticamente recon
-
figurado. Não é mais possível compreender as questões ligadas à justiça social
pensando apenas em problemas de classe social, trabalho e ideologia. A nova teo
-
rização, envolta no âmbito dos estudos culturais, coloca o tema dos diferentes e
das minorias excluídas no interior da agenda e do debate sobre o decurso civili
-
zatório. Está-se diante e desafiado a pensar a educação do corpo ou, mesmo, as
práticas discursivas que constituem e fundamentam as tecnologias produtoras do
eu (SILVA, 1995). Todo o alicerce filosófico que sustentou o discurso pedagógico
moderno é desnaturalizado. Com uma percepção muito aguda para as questões
do universo contingente, as novas fundamentações filosóficas abrem temas pouco
considerados pela agenda emancipatória moderna. No sentido revolucionário do
termo, Kincheloe (1997, p. 15) procura entender que:
O pensamento pós-moderno submete a análise das formas sociais e educação ao ethos mo-
dernista pré-existente. Admite que a conversação cultural previamente proibida se evi-
dencia a partir de novas questões feitas por vozes antes excluídas. Os pensadores pós-mo-
dernos desafiam a estrutura hierárquica do conhecimento e do poder, a qual promovem os
especialistas sobre massas procurando novos caminhos para conhecer que transcendam
os fatos empiricamente verificados e “razoáveis”, argumentos lineares colocados na busca
pela certeza. Quando o pós-modernismo está baseado num sistema crítico de sentido que
está preocupado com um conhecimento questionador que procura entender criticamente
a si mesmo e a sua relação com a sociedade ele torna-se uma ferramenta poderosa para
uma mudança social progressista. Ao fazer isso ele muda as situações sociais que impedem
o desenvolvimento de comunidades igualitárias e democráticas marcadas com a justiça
econômica e social.
Embora se possa dizer que os problemas filosóficos se colocam, em um pla-
no, como distintos, para não dizer totalmente incompatíveis, em outro plano, eles
tornam-se desafios para os sujeitos que lidam com eles em suas práticas educati-
vas, a partir dos marcos das políticas educacionais e dos movimentos do mundo
social e histórico. Ou seja, se, por um lado, é possível compreender que o enfoque
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pós-moderno colocou em questão toda a agenda moderna em torno da noção de
sujeito, de verdade e de razão, de outro é possível compreender que ele não deixou
de sugerir novos temas para a questão democrática a partir das ideias de identida-
des, diferenças e alteridades. Guinada que obviamente coloca em crise o estatuto
e o formato das teorias e ambições modernistas. A ideia de justiça social parece
desafiar a não somente incorporar uma nova agenda para pensar e intervir nos
problemas educacionais, como também exigir reconstruir as tradicionais temáticas
da modernidade no que tange à busca da igualdade, da liberdade e da fraternidade.
Na seguinte passagem, Santamaría-Goicuria e Stuardo-Concha (2018, p. 3), auto-
res que discutem a ideia de justiça social tal como as projetadas pelas políticas de
reconhecimento de Fraser e Honneth, desdobram desafios contemporâneos para a
educação que já incorporam os problemas da busca da igualdade e de reconheci-
mento da diferença no âmbito do agir docente:
Las propuestas teóricas de Justicia Social como un asunto de redistribución se focalizan en
las acciones para repartir. Su punto de interés está en desarrollar principios de justicia que
permitan corregir la privación de recursos y que estos sean mejor distribuidos en función
de los distintos intereses […]. Las propuestas de Justicia Social que enfatizan el reconoci-
miento se focalizan en cuestiones vinculadas a la aceptación y al respeto de las diferencias,
ya sean de tipo identitarias, culturales o de otra índole. Tienen como objetivo lograr la
ausencia de dominación cultural, combatir el no reconocimiento de derechos y promover la
valoración y respeto de aquello que es diferente […]. Desde esta visión se plantean prin-
cipios de justicia que permitan considerar las relaciones sociales que se establecen entre
los seres humanos. El énfasis está en resolver demandas de tipo simbólico-culturales, muy
vinculadas a procesos de representación, interpretación y comunicación. La mirada desde
el reconocimiento analiza los problemas considerando la existencia de grupos sociales dife-
rentes entre sí en función de sus rasgos identitarios y culturales compartidos como género,
sexualidad, etnia, raza, clase social, entre otros, aunque también se advierte sobre la posi-
bilidad de caer en la simplificación de las identidades, proceso denominado reificación […].
Essa posição, cumpre destacar, é um pouco diferente da de Curieses (2017), as-
sinalando posturas que articulam políticas de redistribuição (igualdade) junto com
políticas de reconhecimento da diferença. Para dar continuidade à reflexão acerca
das heranças modernistas, cumpre lembrar que a ação docente na modernidade
sólida (BAUMAN, 2001), embora embalada e sustentada, no fundo, por princípios
ligados à liberdade do indivíduo e à busca de sua igualdade, a partir da ideia de
Direito, esteve bastante tutelada pela ideia do Estado-Nação. Muito do que se en
-
tendeu por educação e sentido de formação não ultrapassou a esfera das formações
científica e disciplinar dos educadores. Os conteúdos éticos e políticos implicados na
esfera do conhecimento e da formação não foram a tônica da modernidade em geral.
Uma perspectiva bastante formalista e, possivelmente, reificante se fez em torno da
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docência, a qual manteve ausente a reflexão sobre o mundo social e histórico, bem
como o mundo do trabalho e os sentidos filosófico, político, moral e histórico-cultural
da educação. A retomada dos estudos sobre justiça social recoloca as questões em
torno de conhecimentos importantes para pensar a formação de professores.
Sublinha-se também que, embora se possa dizer que o movimento da educação
escolar tornou-se constitutivo tanto de formas de inclusão e mobilidade social quanto
de reprodução e de dominação social e cultural, no âmbito do projeto social sólido
-
-moderno, principalmente no que tange ao momento de Estado de Bem-Estar Social
(século XX), ele passa por uma crise no contexto das sociedades líquido-modernas
(final do século XX e início do XXI). A crise do projeto social moderno, com o advento
do neoliberalismo e das sociedades globalizadas, modificou e muito as promessas de
universalização e garantia de direitos dos indivíduos. A nova linguagem parece pres
-
cindir da educação escolar como direito público fundamental e, sobretudo, parece
colocar a educação sob os critérios das economias de mercado. Se a mercantilização
da educação corrói o último elemento marcante ainda remanescente do projeto social
sólido-moderno, cumpre pensar o destino que incumbe aos sujeitos e ao mundo no
avançar das sociedades ligadas ao espírito (ir)racional do capitalismo contemporâ
-
neo. Sob este aspecto, Santamaría-Goicuria e Stuardo-Concha (2018, p. 5) compreen-
dem o significado do processo de escolarização e da ação docente.
Visto esto, y en el marco de una sociedad líquida y una educación influida por principios
neoliberales de competitividad e individualismo, observamos que vivimos en una sociedad
que no contempla el término justicia social, en algunos casos, o lo contempla de manera
limitada a asuntos de distribución de recursos y oportunidades en otros. Este contexto nos
ha hecho replantearnos la responsabilidad que la escuela en general y sus docentes en par-
ticular tenemos en el proceso de recuperación social. Junto con Freire (1978, p. 3) tenemos
esperanza en una educación como praxis, reflexión y acción del hombre sobre el mundo
para transformarlo. Si bien la educación por sí misma no puede lograr la transformación
social, sin ella tampoco se daría […].
Os novos movimentos do capital em escala global têm permeado todas as di-
nâmicas das vidas social e cultural, mercantilizando e unificando formas de vida
que passam a operar conforme as lógicas dominantes. Um dos grandes impactos
das novas formas de vida social tem sido percebido em torno das vidas política e
moral das sociedades. O destino do mundo tem sido cada vez mais conduzido por
forças externas e estranhas às lógicas das comunidades, dos povos, das culturas e
das nações. O poder tem se tornado extraterritorial e cada vez mais está afastado
da esfera pública (BAUMAN, 2001). Um sentido possível e valioso em torno da vida
pública e das liberdades políticas tem se perdido em meio ao crescimento voraz
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
das culturas de consumo. Os intelectuais críticos que advogam em torno do valor
da liberdade, da diferença, da solidariedade, da igualdade e da sustentabilidade
como metas fundamentais da educação, reconceitualizando os ideais modernos
(sem abandoná-los por completo) a partir dos novos pensamentos pós-modernos,
percebem a atualidade e a necessidade de constituir educadores com perfis liga-
dos à ideia de justiça social. Zeichner (2008) é um desses educadores que tem se
ocupado com uma agenda de investigação/formação de educadores relacionados
com a justiça social. Acrescenta-se a esta agenda a necessidade de educadores que
saibam traduzir e interpretar diferentes tradições que disputam os cenários filosó-
fico e educacional, a fim de construir discursos e práticas menos reducionistas, ou
seja: para que a luta pela igualdade não seja em detrimento da diferença, e a luta
pelo reconhecimento da diferença não seja em desmerecimento da igualdade; para
que a luta por liberdade política não signifique o esquecimento das classes sociais e
das imensas desigualdades produzidas pelo capitalismo global em sua relação com
o mundo do trabalho; em suma, para que se tenha a capacidade de questionar as-
pectos imaginários e ideológicos do próprio discurso educacional, percebendo como
evidenciam/ocultam as lutas em torno do poder e da liberdade.
Considerações nais
O recorte feito ao longo do texto permitiu retomar a ideia de justiça social
como uma possível forma que tem sido utilizada tanto por pensadores modernos
como pós-modernos para refletir a educação e o sentido da intervenção educacio-
nal. De estirpe claramente política, mas encharcado de moralidade, o debate em
torno da justiça social conclama uma reflexão que está além dos códigos normati-
vos da modernidade. Trata-se de questionar o não realizado da modernidade, de
apontar a negatividade embutida nos processos da modernização conservadora, a
qual, de uma parte, assegura a individualidade e o direito à liberdade para poucos,
colocando as imensas maiorias à margem dos processos emancipatórios, de outra,
aponta as promessas da modernidade, de sua idealidade, de sua aposta imaginá-
ria, consubstanciada em seus aparatos jurídico e constitucional.
Neste esforço interpretativo, as sociedades sólido-modernas, emergentes do
século XVI, configuraram uma importância capital para o problema da educação.
Ela se tornou uma forma de criação do humano e do mundo social e histórico.
Dois imaginários compõem o cenário contraditório e ambivalente da vida social
moderna: a emergência das democracias e a do capitalismo industrial. Em um
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
aporte claramente articulado com a proposta modernista, alguns pensadores da
atualidade buscam rever o projeto kantiano ou, mesmo, do idealismo alemão como
uma forma de continuar pensando no valor do liberalismo, do contratualismo e do
republicanismo para organizar a justiça, o direito e a política democrática. Essa
retomada não ocorre sem críticas e sem outras considerações mais amplas. Ten-
tou-se argumentar que os imperativos que demarcaram as grandes significações
para o processo de escolarização em seu sentido político acabaram por influenciar
os sentidos e finalidades da ação docente e dos saberes que lhe são constitutivos.
De uma parte, evidenciou-se o caráter limitado das políticas de igualdade que
movimentaram a agenda de escolarização das sociedades modernas, de outra, mos-
trou-se como elas permitiram alguns avanços em termos de mobilidade social e
liberdade democrática. Entendeu-se como o movimento pós-moderno, ou a atitude
pós-moderna, possibilitou a entrada de questões novas em relação à democracia e à
justiça social. Argumentou-se que a questão da diferença, ou mesmo da filosofia da
diferença, se tornou um pressuposto central para continuar pensando nos limites
das modernidades filosófica e educacional. Mesmo que as questões ontológicas da
pós-modernidade não tenham sido assumidas em sua plenitude, a problemática
sugerida por este movimento acabou por ser redimensionada no âmbito do espaço
público. Uma educação voltada ao combate do preconceito e da discriminação con-
tra gays, lésbicas e prostitutas, bem como à inclusão de mulheres, negros e índios
nos espaços antes destinados apenas às elites brancas configura um pouco do dese-
nho contemporâneo que desafia a docência. Uma nova política de reconhecimento,
amparada em autores que discutem justiça social, incorpora parte da agenda mo-
dernista, valorizando a participação igualitária dos cidadãos nos espaços públicos
(liberdade e política), abarcando a luta pelo combate à desigualdade na educação
escolar e na vida social (liberdade e igualdade), bem como incorpora parte da agen-
da pós-modernista, questionando lugares e formas opressivas de poder e de saber
(liberdade e diferença), que, em nome da emancipação, promovem opressão e des-
valor identitário de grupos minoritários.
As sociedades líquido-modernas (BAUMAN, 2001), no século XXI, em seu sen-
tido político, parecem ter configurado uma abertura para essas questões novas, ao
mesmo tempo em que as liquefazem no âmbito de sua dinâmica econômica. Se no-
vas pautas políticas emergem e desafiam os educadores a pensar nas identidades
de corpo, gênero, etnia e classe social, estes vivem o sintoma do mal-estar docente
no âmbito do seu quefazer. A desvalorização do sentido e do trabalho docente tem
sido acompanhada por um sentimento de impotência em relação ao destino social
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
das maiorias e minorias. Ou seja, vive-se um momento ambíguo em relação à iden-
tidade docente: em parte, ela é o núcleo de um projeto social de esperança e inclu-
são social, que reconfigura os imaginários modernos e pós-modernos da educação
em torno de valores e princípios democráticos, tais como: liberdade, igualdade, di-
ferença e sustentabilidade; e, em parte, ela é desregulamentada e liquefeita pelo
mercado e pelo consumo de bens materiais, sendo desvalorizada e tornada parte de
um núcleo funcional que a liga direta e unicamente com a economia.
Esta funcionalização da docência, no cenário de aceleração do tempo social,
desafia a repensar o núcleo identitário da docência, tendo em vista uma compreen-
são do seu envolvimento com as questões do mundo social e histórico. Mais do
que pensar a docência ou a educação escolar como um mundo à parte, ou apenas
normativo, cumpre pensar em como ela se presentifica nos dramas e nas dores
do presente. Isso significa, sobretudo, considerar os papéis ativo e crítico da ação
docente em relação ao curso do mundo social e histórico (CASTORIADIS, 1992)
e suas relações com o mundo do trabalho (SAVIANI, 2000; ENGUITA, 2004), as
subjetividades (BAUMAN, 2009) e o universo das ciências (MORIN, 2001).
Parte da teorização contemporânea procura se movimentar pela defesa do di-
reito a aprender e pela defesa da igualdade, a partir da constituição e do contrato
social moderno como formas que estariam dentro da agenda moderna. E parte da
teorização tem mostrado o quanto essa agenda está e esteve comprometida com os
ideais da colonização e da dominação tipicamente modernos e europeus. No primei-
ro sentido manifesto, argumentou-se, a partir de Honneth (2013) e Dubet (2003),
um sentido para pensar no valor da educação escolar como forma de autogoverno
e de produção de índices maiores de autonomia e menores de desigualdade. No
segundo sentido, argumentou-se, a partir de Curieses (2017), como a questão da
educação inclusiva passou a indicar novos aportes para pensar a justiça social e,
mesmo, a democracia, a partir da filosofia da diferença. Evidenciou-se ainda como
Santamaría-Goicuria e Stuardo-Concha (2018) já articulam no interior do debate
não apenas o problema do reconhecimento da diferença, como também as políticas
de redistribuição (igualdade).
Essa dupla guinada tem tornado a tarefa de pensar a docência e os saberes
que a constituem altamente complexa, por ter de compatibilizar diferença com
igualdade e liberdade. Por um lado, ela é levada a participar dos domínios da vida
social e cultural, problematizando os campos discursivos que fundam as várias
políticas de dominação (GIROUX, 2003) produtoras de injustiças e negam o direito
às diferenças (política cultural). Por outro, ela é levada a compartilhar um bem
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
comum ou, mesmo, um conhecimento poderoso (YOUNG, 2007), que lhe permite
outra forma de entrada na esfera pública (cultura política). Para compatibilizar
tarefa tão contraditória entre a atitude modernista e a pós-modernista, cumpre
sempre problematizar as mediações histórico-sociais que produzem desigualdades
ou negam as singularidades e diferenças pela força das uniformizações do merca-
do, do mundo do trabalho e da economia. Essa tarefa sempre pode ser conduzida,
tendo em vista os desafios implicados com uma agenda que amplie e assegure as
liberdades e os direitos civis, sociais e políticos ou com uma pedagogia que escute e
dê voz a grupos excluídos e subalternos (APPLE; BURAS, 2008).
Esse panorama demanda, sobretudo, no âmbito da formação de professores,
uma capacidade hermenêutica, dialética e complexa, para interpretar, distinguir
e religar diferentes tradições de pensamento (teorias), a fim de dialogar de modo
mais profundo com a “realidade” do mundo e com os estudantes em suas formas
plurais e singulares de ser. Em outras palavras, os novos tempos líquido-modernos
estariam requerendo uma formação ampla e geral em torno da filosofia e das ciên-
cias humanas, bem como da pedagogia, que permita aos educadores problematizar
os desafios implicados no âmbito da vida ética e política de uma sociedade/cultura
(mundo social e histórico) na interface das reconfigurações do mundo do trabalho,
da cultura e do universo das ciências/tecnologias.
Em suma, os sentidos implicados na ideia de justiça social desafiam os edu-
cadores a não apenas compreender o curso dos acontecimentos nas quatro esferas
do mundo humano, como, fundamentalmente, reconfigurar e avaliar seus modos
de intervenção crítica na realidade educacional, tendo em vista o combate das (in)
justiças globais, culturais e contingentes. Isso, no entendimento de Edgar Morin
(2001), exigiria dos educadores mais do que ser meramente um funcionário ou,
mesmo, um especialista, para propriamente desenvolver uma missão pública, a
qual parece requerer uma ideia de eros e amor à humanidade, além de uma perma-
nente análise do conhecimento ensinado (autocrítica da razão).
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Educação ambiental e justiça social: reexões em tempos de solidão democrática
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Educação ambiental e justiça social: reexões em tempos de solidão democrática
Environmental education and social justice: reections in times of democratical solitude
Educación ambiental y justicia social: reexiones en tiempos de soledad democrática
Vilmar Alves Pereira
*
Simone Grohs Freire
**
Resumo
O presente texto busca reetir, criticamente, a partir da Educação Ambiental Crítica, acerca da concepção de
justiça social. Para tanto, propõe-se trazer ao debate uma perspectiva histórico-política da democracia e da ci-
dadania no cenário brasileiro como possibilidades não apenas de compreensão do atual cenário posto, como
também de uma releitura das relações socioambientais, que denem a realidade contemporânea. Este diálogo
tem como base a concepção hermenêutica de Gadamer, enquanto um processo universal do compreender que
problematiza o não dito, oferecendo uma perspectiva de abertura, para que se possa pensar sobre nós mesmos
e sobre qual é o nosso lugar no mundo. Espera-se, ao nal, ter promovido uma reexão crítica e dialógica acerca
da realidade para uma ação em busca de justiça social, ainda tão negada.
Palavras-chave: Cidadania. Educação ambiental. Justiça social.
Abstract
The present text seeks to critically reect, from the point of view of Critical Environmental Education, about the
conception of Social Justice. Therefore, a historical-political perspective of democracy and citizenship in the Bra-
zilian scenario is brought up to the debate, as a possibility not only for understanding the current scenario, but
also as a re-reading of the socio-environmental relations that dene contemporary reality. This dialogue is based
on Gadamers hermeneutic conception of a universal process of understanding which problematizes the ‘unsaid’,
oering a perspective of openness so that we can think about ourselves and about our place in the world. In the
end, it is hoped to have promoted a critical and dialogic rethinking of reality so that one can act in search of a
social justice still extremely denied.
Keywords: Citizenship. Environmental education. Social justice.
*
Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Coordenador e pesquisador no Programa
de Pós-Graduação em Educação Ambiental da Universidade Federal do Rio Grande. Bolsista de Produtividade em
Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientíco e Tecnológico, nível 2. Brasil. ORCID: 0000-0003-2548-
5086. E-mail: vilmar1972@gmail.com
**
Doutora em Educação Ambiental pela Universidade Federal do Rio Grande. Professora da Faculdade de Direito e do
Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental da Universidade Federal do Rio Grande. Brasil. ORCID: 0000-
0003-3566-0669. E-mail: simonefreire@furg.br
Recebido em 25/03/2019 – Aprovado em 01/07/2019
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v26i3.9325
Vilmar Alves Pereira, Simone Grohs Freire
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702
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Resumen
El presente texto busca reexionar, críticamente, desde la Educación Ambiental Crítica, acerca de la concepción
de la Justicia Social. Por lo tanto, se propone llevar al debate una perspectiva histórico-política de la democracia
y de la ciudadanía en el escenario brasileño, como posibilidades no sólo de comprensión del actual escenario
puesto, sino también de una relectura de las relaciones socioambientales que denen la realidad contemporá-
nea. Este diálogo tiene como base la concepción hermenéutica de Gadamer, mientras que un proceso universal
de comprender que problematiza lo “no dicho, ofreciendo una perspectiva de apertura, para que podamos pen-
sar en nosotros mismos y en cuál es nuestro lugar en el mundo. Al nal, se espera haber promovido un replantea-
miento crítico y dialógico de la realidad, para que se pueda actuar en busca de una justicia social aún tan negada.
Palabras clave: Educación Ambiental. Ciudadanía. Justicia social.
Introdução
Estes são tempos marcadamente de inúmeras injustiças sociais; tempos em
que as racionalidades únicas fundamentalistas buscam encolher os avanços demo-
cráticos em todas as esferas. Aqueles avanços conquistados com muita organização
e luta, no campo das questões sociais, estão agora sendo violentamente ameaçados.
Ancorada no discurso de que as políticas sociais cometeram exageros por permiti-
rem o reconhecimento de milhares de brasileiros que se encontravam e se encon-
tram na inviabilidade, a lógica hegemônica da extrema direita reapresenta suas
faces, buscando mais um retorno a posturas de adestramento e domesticação do
que possibilidades emancipatórias.
No que concerne ao campo e às conquistadas da Educação Ambiental (EA), são
mais de 30 anos de lutas, para que as questões voltadas à EA fossem reconhecidas
e, posteriormente, passassem a integrar as diretrizes curriculares de ensino em to-
dos os seus níveis. Como resultados dessa luta, destacam-se: 1) a Política Nacional
do Meio Ambiente, de 1981; 2) a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional,
de 1996, que reconhece a EA; 3) a Lei nº 9.795, de 27 de abril de 1999, regulamen-
tada pelo Decreto nº 4.281, de 25 de junho de 2002, que dispõe, especificamente,
sobre a EA e instituiu a Política Nacional de Educação Ambiental (PNEA) e seu
órgão gestor; 4) as resoluções do Conselho Nacional de Educação, como a n° 2/2012,
que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Ambiental, e
a nº 2/2015, que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação
Inicial e a Formação Continuada de Professores, entre muitas outras normativas
que vêm sendo construídas, participativamente, pela larga comunidade de educa-
dores ambientais. Na atual conjuntura, vivem-se períodos de intensa preocupação,
para manter as referidas garantias, diante do discurso e de práticas deste governo.
Educação ambiental e justiça social: reexões em tempos de solidão democrática
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703
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Em recente movimento internacional, educadores ambientais de todo o mundo
se posicionaram, por meio de uma carta endereçada aos ministros da educação e
do meio ambiente, contra algumas medidas do atual governo, que geram injustiças
à nossa história e às nossas garantias. De modo geral, o documento critica a miti
-
gação do papel da EA no Decreto nº 9.665/2019, que a vincula a uma secretaria do
ecoturismo, voltada para simples campanha de conscientização ambiental. Também
limita o reconhecimento da EA como tema transversal, além de restringi-la à edu
-
cação básica, por meio do Decreto nº 9.665/2019. Preocupa, igualmente, o fato de os
Decretos nº 9.665/2019 e nº 9.672/2019 não fazerem menção à Lei nº 9.795/1999, a
qual define a PNEA e as atribuições do Poder Público em todos os níveis, especifica
-
mente do Ministério do Meio Ambiente e do Ministério da Educação. Esses são ape-
nas alguns sinais de que a democracia brasileira se encontra em risco, e, de modo
geral, pode-se estar comprometendo a dignidade humana em diferentes processos.
Desse modo, quando se fala em EA neste estudo, assume-se o horizonte de
uma Educação Ambiental Crítica, por reconhecer que neste texto se revisitam al-
guns movimentos no campo da EA, e, posteriormente, assumem-se alguns desafios
no sentido de pensar possibilidades de uma justiça socioambiental, que pela sua
natureza está relacionada ao enfrentamento de todas as tentativas de encolhimen-
to da vida digna.
Que educação ambiental? Uma análise do cenário democrático (?) brasileiro
O reconhecimento e a institucionalização da EA no cenário brasileiro se deram
a partir da década de 1990, com a criação da PNEA e, posteriormente, também
do plano infraconstitucional, com outras medidas que se somaram a essa política.
Pode-se dizer que a EA atingiu seu ponto culminante com a Constituição federal
de 1988, que, além de instaurar o modelo democrático no país, ambientalizou o sis-
tema legal, ao estabelecer o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado
como direito fundamental.
Ocorre que, vindo de uma longa tradição autoritária, a partir de 1988, o Brasil
rompe com esse modelo e inaugura uma nova tradição, a democrática. O Estado
Democrático de Direito ultrapassa a ideia de um Estado Social, porque, além de pro-
mover a igualdade formal (perante a lei), busca a concretização da igualdade mate-
rial por meio da efetivação dos direitos fundamentais. Pode-se dizer, portanto, que o
Estado Democrático de Direito é o modelo de consagração dos direitos fundamentais,
os quais, por sua vez, estão ancorados no princípio da dignidade da pessoa humana,
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objetivo fundamental da Constituição federal brasileira. Assim, a dignidade da pes-
soa humana deve ser considerada o elemento comum, unificando todos os direitos
fundamentais, enquanto esses, no que lhes diz respeito, são uma concretização do
fundamento em si. Os direitos fundamentais podem ser compreendidos como:
[...] a facultad que la norma atribuye de protección a la persona en lo referente a su vida,
a su libertad, a la igualdad, a su participación política o social, o a cualquier otro aspecto
fundamental que afecte a su desarrollo integral como persona, en una comunidad de hom-
bres libres, exigiendo el respecto de los demás hombres, de los grupos sociales y del Estado,
y con posibilidad de poner en marcha el aparato coactivo de Estado en caso de infracción
(PÉREZ LUÑO, 1979, p. 43)
1
.
Ao longo dos tempos, diversas classificações dos direitos fundamentais foram
desenvolvidas doutrinariamente, destacando-se a teoria geracional dos direitos
fundamentais, a qual utiliza o critério da evolução histórica para caracterizá-los e
individualizá-los. Daí a tríplice classificação desses direitos:
a) direitos fundamentais de primeira geração, os quais têm a liberdade como elemento
caracterizador; b) direitos fundamentais de segunda geração, direitos identificados com a
busca da igualdade material; c) direitos fundamentais de terceira geração, complexa estru-
tura de direitos que têm na solidariedade humana o elemento caracterizador (SCHÄFER,
2013, p. 101, grifo do autor)
2
.
De toda forma, o que importa referir, neste momento, é que os direitos funda-
mentais, ancorados na liberdade, na igualdade e, posteriormente, na solidarieda-
de, voltam-se, preponderantemente, para a proteção e a efetivação da dignidade
da pessoa humana no seu mais amplo sentido. Essa dignidade da pessoa humana,
enquanto elemento aglutinador dos direitos fundamentais, esteio teórico de uma
constituição democrática, deve ser compreendida como um dever e como um limite
da atividade estatal, razão pela qual se justifica a necessidade de uma concepção
complexa, que contemple as diversas dimensões da realidade:
Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida
em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração do Estado e da
comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais
que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano,
como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável,
além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável [sic] nos destinos da
própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devi-
do respeito aos demais seres que integram a rede da vida (SARLET, 2012, p. 52).
Esta definição ressalta a ideia de dignidade a partir da cidadania consciente,
crítica, criativa e comprometida com o bem-viver, vinculada ao constitucionalismo
que se consolida com base na participação popular em torno dos direitos.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Ainda é preciso dizer que, ínsito ao modelo democrático, está a norma de que
os direitos fundamentais têm primazia sob quaisquer outros direitos, sendo consi-
derados cláusulas pétreas, ou seja, os direitos já consagrados não podem ser objeto
de supressão, total ou parcial.
Assim, pode-se afirmar que esse modelo de direitos fundamentais é o motor
daquilo que se denomina interesse público, modificando o papel que o Estado de-
sempenhava até o momento: o Estado deixa de ser fim em si mesmo e passa a ser
meio de concretização dos direitos consagrados constitucionalmente.
É nesse cenário apresentado que o direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado passa, a partir de 1988, a ser considerado um direito fundamental e,
assim, uma dimensão da dignidade da pessoa humana. Essa dimensão socioam-
biental se justifica já de início pela conexão que se estabelece, como dito, entre os
direitos fundamentais e o meio ambiente, desde sua forma mais básica:
Do ponto de vista biológico, a dependência do homem em relação ao ambiente é total: o
ser humano não pode sobreviver mais do que quatro minutos sem respirar, mais de uma
semana sem beber água e mais de um mês sem se alimentar. O único local conhecido do
universo no qual o homem pode respirar, tomar água e alimentar-se é a Terra. Nessa ótica
o ambiente estaria intrinsecamente relacionado com os direitos à vida e à saúde (CARVA-
LHO, E., 2011, p. 142).
Esta dimensão socioambiental surge diante de uma crise civilizatória grave,
que pode ser chamada de ambiental, partindo-se da percepção da complexidade da
definição de meio ambiente, devendo ser considerados os sujeitos, suas percepções
e suas crenças neste processo de conceituação, uma vez que sua compreensão é in-
dispensável para a apreensão das diferentes percepções do que seja meio ambiente
em diferentes grupos. Nesse sentido, o Programa Nacional de Educação Ambiental
(Pronea) estabeleceu, entre seus princípios,
[...] a concepção de meio ambiente em sua totalidade, considerando a interdependência
sistêmica entre o meio natural e construído, o socioeconômico e o cultural, o físico e o espi-
ritual, sob o enfoque da sustentabilidade (BRASIL, 2005).
Registre-se que a sustentabilidade apresenta-se como um processo que se
preocupa em contemplar as dimensões econômica e cultural, integrando estas a:
[…] subsistência (garantindo a existência biológica); proteção; afeto; criação; produção;
reprodução biológica; participação na vida social; identidade e liberdade. Portanto, sus-
tentável não é o processo que apenas se preocupa com uma das duas dimensões, mas que
contempla ambas, o que é um enorme desafio diante de uma sociedade que prima pelos
interesses econômicos acima dos demais (LOUREIRO, 2012. p. 56).
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Nessa linha, são encontradas definições diversas de meio ambiente, confor-
me se esteja tratando do viés biológico, psicológico, econômico ou, ainda, jurídico.
Defende-se que é preciso pensar o meio ambiente em sua complexidade, a partir
de uma abordagem integradora dos diversos aspectos políticos, éticos, sociais, tec-
nológicos, científicos, culturais, econômicos e ecológicos. É nesse sentido também
que deve ser lido o artigo 225, caput da Constituição federal, o qual estabelece que
Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo
e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever
de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações (BRASIL, 1988).
Ao constitucionalizar tal direito, o legislador constituinte reconheceu a viabili-
dade do preceito de estabelecer um direito fundamental; eis que, nos termos postos,
o direito ao meio ambiente equilibrado é direito essencial, verdadeiro desdobra-
mento do direito à vida. Ou seja, há uma inexorável relação entre as condições
ambientais necessárias à vida e a proteção dos valores ambientais. Assim, pode-se
entender o meio ambiente como o conjunto das relações que fomentam e possibili-
tam a vida em todas as suas formas, porque é importante interpretar a dignidade
da pessoa humana para além do olhar antropocêntrico que marca a legislação bra-
sileira, alargando-se o espectro jurídico para qualquer forma de vida.
Além disso, a ideia de dignidade enquanto uma qualidade especial do ser hu-
mano – herança teórica de Kant, para quem a dignidade, sendo comum a todos,
torna todos iguais – não se sustenta mais. Uma análise das relações sociais, eco-
nômicas e políticas mostra que a dignidade não se distribui igualmente, mas, pelo
contrário, considerando outras questões valorativas, que envolvem, em apertada
síntese, disputas de poder e a consequente lesão aos direitos fundamentais.
Nesse sentido, a própria ideia de dignidade, enquanto inerente a todo ser hu-
mano, é contraditória, o que revela um processo de tensão, uma vez que o fato de
a Constituição federal estabelecer a dignidade da pessoa humana e, ao mesmo
tempo, os direitos fundamentais para todos não garante o efetivo acesso a esses
direitos. Logo, para que se dê esse acesso, é preciso ocorrer o tensionamento en-
tre duas partes, do próprio sujeito, que se vê capaz de realizar os direitos, e da
sociedade, que também vê no sujeito sua aptidão para o exercício desses direitos
(STRELHOW, 2016). Há que se reconhecer que, para que esse tensionamento ocor-
ra, faz-se necessário um processo de tomada de consciência que só pode acontecer
dentro de um espaço de autonomia e liberdade.
Por essa razão, é que se defende que a ideia de dignidade deve estar relacio-
nada à participação do sujeito de direitos em seus ambientes de forma reflexiva e
crítica, espaço esse que se deve pautar por autonomia e liberdade.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
A EA traz as condições de possibilidade necessárias para que se promova esse
espaço, até porque a EA é também, na perspectiva proposta, uma educação popu-
lar, uma vez que ela “deve ser libertadora, incentivar o lado crítico e dialógico para
que todos tenham as mesmas oportunidades e acesso às informações” (PEREIRA;
ALVARENGA; MARQUES, 2003, p. 191). Assim, para que se possa compreender a
EA como esse espaço dialógico e crítico, é preciso também pensá-la na perspectiva
da dignidade e dos direitos fundamentais.
No entanto, no Brasil, parece que o debate político da EA ainda não atingiu
a expressão necessária, uma vez que se tem a impressão da ideia generalizada de
que a EA se preocupa em promover uma mudança de comportamento individualis-
ta, como é o caso da reciclagem ou do controle do uso de água domiciliar, que são
práticas não menos importantes, mas de reduzido poder emancipatório, uma vez
que não realizam a transformação no conhecimento e na atuação social.
Por essa razão, parte-se, neste artigo, da concepção de uma EA emancipatória,
como “instância formativa de sujeitos sociais, isto é, autores da própria história”
(CARVALHO, I., 2011, p. 156). É uma educação voltada para colaborar com o sujeito,
a fim de que reflita, criticamente, sobre as questões socioambientais e, assim, atue
sobre elas. Propõe-se, portanto, pensar a EA em uma perspectiva crítica, que é a “de
incluir uma dimensão social na questão ambiental que confere um posicionamento
político, frente aos dilemas que a humanidade sofre” (DIAS, 2015, p. 125). Trata-se,
assim, de um processo sociopolítico, cultural e pedagógico, voltado à cidadania.
Em outra perspectiva, pode-se dizer que o que se pretende é revigorar o sen-
tido do ser a partir de uma ontologia hermenêutica na EA, retomando outros sen-
tidos colonizados pela racionalidade instrumental (PEREIRA, 2016). Isso significa
que, para além de um espaço/processo permanente para compreender e interpretar
o mundo, a EA se apresenta também como um modo de ser. Assim, “a EA deve estar
relacionada não somente com a reconstrução social para aliviar a exploração dos
recursos naturais, mas também para evitar as injustiças sociais no processo dessa
reconstrução” (SATO, 1997, p. 30).
No entanto, entende-se, nesta perspectiva, que a cidadania é meio – e não
meta –, a ser construída a partir do processo de EA. Jacobi (2006, p. 431) comenta
que, quando se pensa a EA voltada ao exercício da cidadania, o que se pretende é a
consolidação de sujeitos cidadãos, isto é,
O desafio do fortalecimento da cidadania para a população como um todo, e não para um
grupo restrito, se concretiza a partir da possibilidade de cada pessoa ser portadora de direi-
tos e deveres e se converter em ator co-responsável na defesa da qualidade de vida.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Entende-se, nessa toada, que destacar a dimensão política que se propicia a
partir do espaço da EA desvela a necessidade de se pensar acerca do compromisso
social com o bem comum, o que significa:
[...] tomar partido frente à realidade social, não permanecer indiferente diante da injus-
tiça, da liberdade desprezada, dos direitos humanos violados, do trabalhador explorado;
descobrir nos estudantes o gosto pela liberdade de espírito e despertar neles a vontade
de resolver os problemas em conjunto, estimulando-os a desenvolver o sentimento de que
são responsáveis pelo mundo e pelo seu destino, encaminhando-os a uma ação militante
(GUTIÉRREZ, 1984, p. 13).
Dessa forma, uma EA é definida como um compromisso político e ético do
indivíduo consigo mesmo, com o outro e com o meio ambiente, uma EA cidadã.
A escolha da Educação Ambiental Crítica se apresenta como a única, tendo em
vista a necessidade de refletir acerca dos aspectos socioambientais das relações
humanas, isto é, das relações estabelecidas entre os indivíduos e com o ambiente
onde se inserem, para compreender, refletir criticamente e agir. Trata-se da crítica
à racionalidade instrumental, de uma virada epistemológica, enfim, de um projeto
emancipatório.
É por essa razão que se defende que a Educação Ambiental Crítica é um pro-
cesso educativo que se volta para a cidadania, fornecendo “os elementos para a for-
mação de um sujeito capaz tanto de identificar a dimensão conflituosa das relações
sociais que se expressam em torno da questão ambiental quanto de posicionar-se
diante desta” (CARVALHO, I., 2011, p. 163).
Mas, afinal, a questão que se coloca é por que esta EA, que traz as condições de
possibilidade para a consolidação da cidadania, no Brasil, anda a passos vagarosos.
Para que se compreenda esse dilema ético-político, é preciso entender o caminho da
cidadania no Brasil.
A subcidadania no Brasil como óbice à consolidação democrática
O conceito de cidadania, pode-se dizer, é um conceito histórico e complexo,
uma vez que envolve múltiplas dimensões, e, ainda, deve ser analisado de acordo
com o tempo e o espaço em que é considerado. Arendt já afirmava que a cidadania
poderia ser definida como
O direito a ter direitos, pois a igualdade em dignidade e direitos dos seres humanos não é
um dado. É um construído da convivência coletiva, que requer o acesso ao espaço público.
É este acesso ao espaço público que permite a construção de um mundo comum através do
processo de asserção dos direitos humanos (1989, p. 31).
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
De certo modo, pode-se dizer que o conceito de cidadania está ligado aos di-
reitos e aos deveres que definem a vida em sociedade. Especialmente nos séculos
XVIII e XIX, na modernidade, a cidadania deriva do pacto constitucional que esta-
belece a sociedade política e, a partir disso, o vínculo entre os indivíduos, o Estado
e a democracia. Não é por outro motivo que Bobbio (2004, p. 21) irá afirmar que “a
democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhes
são reconhecidos alguns direitos fundamentais”. Isso porque, no período após a
Segunda Guerra Mundial, o reconhecimento de direitos fundamentais, por meio da
promoção de políticas públicas pertinentes, tem sido um critério de análise acerca
da concretização da dignidade da pessoa humana.
Entretanto, como já foi dito, o fato de serem os direitos fundamentais consti-
tucionalmente garantidos não significa sua aderência à realidade. No Brasil, isso
fica muito claro. O déficit de concretização dos direitos fundamentais e, por con-
sequência, da dignidade da pessoa humana e do próprio modelo democrático está
colocado há muito no cenário nacional, apesar da Constituição federal, vigente há
mais de trinta anos.
Ocorre que o processo de construção da cidadania no Brasil se deu às avessas.
Historicamente, estabeleceu-se no país um projeto societário de índole conservado-
ra e autoritária, tendo, desde sempre, as decisões políticas importantes – como a
própria independência e a proclamação da República – sido tomadas por uma elite
dominante, e não por uma ruptura revolucionária, como em muitos outros países.
Assim, o brasileiro não se comportava como um cidadão, mas como um servo sub-
serviente e dependente do poder instituído.
Isso fica ainda mais claro se se compreender qual é a concepção de um cidadão
pleno. Doutrinariamente, diz-se que se considera cidadão pleno aquele indivíduo
dotado de três dimensões de direitos: civis, políticos e sociais. Os direitos civis es-
tão relacionados com a ideia de liberdade individual, sendo, portanto, os direitos
à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade, etc. Os direitos políticos têm como
fundamento a ideia de autogoverno e se consubstanciam na participação do ci-
dadão nas decisões acerca da sociedade em que se insere. E, por fim, os direitos
sociais, cujo fundamento é a justiça social, garantem a participação dos cidadãos
na riqueza coletiva, concretizada na educação, no trabalho, na saúde, etc.
T. S. Marshall (1967), autor inglês que estudou o fenômeno da cidadania espe-
cialmente na Inglaterra, apontou que essas dimensões, para além de uma ordem
cronológica, guardam uma sequência lógica. Ou seja, os direitos políticos, para que
ocorram, dependem da existência prévia dos direitos civis; eis que não há partici-
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
pação na vida política sem que antes se garanta a liberdade individual. Por sua
vez, os direitos sociais também dependem da existência prévia dos direitos políticos
e civis, já que se voltam à redução das desigualdades e à garantia de um mínimo
bem-estar social. Dessa forma, direitos sociais sem a consolidação anterior de di-
reitos civis e políticos tendem a reproduzir um modelo autoritário. Nas palavras de
José Murilo de Carvalho (2015, p. 220):
Na sequência inglesa, havia uma lógica que reforçava a convicção democrática. As liber-
dades civis vieram primeiro, garantidas por um Judiciário cada vez mais independente
do Executivo. Com base no exercício das liberdades, expandiram-se os direitos políticos
consolidados pelos partidos e pelo Legislativo. Finalmente, pela ação dos partidos e do
Congresso, votaram-se os direitos sociais, postos em prática pelo Executivo. A base de tudo
eram as liberdades civis. A participação política era destinada em boa parte a garantir
essas liberdades. Os direitos sociais eram menos óbvios e até certo ponto considerados
incompatíveis com os direitos civis e políticos […]. Só mais tarde esses direitos passaram a
ser considerados compatíveis com os outros direitos, e o cidadão pleno passou a ser aquele
que gozava de todos os direitos, civis, políticos e sociais.
No Brasil, a construção da cidadania, todavia, não se deu dentro dessa se-
quência. Aqui, os direitos sociais tiveram mais ênfase e precederam os demais,
ressaltando-se que esses foram estabelecidos em ambientes políticos, no mínimo,
contraditórios. Nesse sentido, Carvalho (2015, p. 219) expõe que, inicialmente, fo-
ram definidos os direitos sociais, “implantados em período de supressão dos direi-
tos políticos e de redução dos direitos civis por um ditador que se tornou popular”.
Num segundo momento, surgiram os direitos políticos, também durante a dita-
dura, quando “os órgãos de representação política foram transformados em peça
decorativa do regime” (CARVALHO, 2015, p. 219). Por último, fechando a inversão
da proposta de Marshall, revelam-se os direitos civis, dos quais muitos ainda con-
tinuam inacessíveis a uma grande camada da população.
Santos (2013, p. 119) já havia questionado se “há cidadãos neste país?”, apon-
tando, em seguida, que há uma cidadania mutilada, verdadeira forma de “não ci-
dadania”: “deixado ao quase exclusivo jogo do mercado, o espaço vivido consagra
desigualdades e injustiças e termina por ser, em sua maior parte, um espaço sem
cidadãos”. É diante desse quadro desolador que a cidadania no Brasil precisa ser
pensada e dialogada hermeneuticamente nesse espaço de EA. Não há como negar
as escolhas históricas feitas, até porque são elas que hoje se traduzem nas limita-
ções sociais do país.
O Estado Democrático de Direito, como modelo que prioriza os direitos funda-
mentais, pressupõe uma cidadania atuante, em que o cidadão se reconheça apto a
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
reivindicar perante o governo, participando no exercício do poder político. Isso se
dá, exatamente, pela garantia e pela concretização dos direitos fundamentais que
asseguram o exercício da cidadania plena.
Destacam-se os chamados direitos de solidariedade ou fraternidade, os quais
traduzem a massificação social vigente e os conflitos advindos dessa situação, uma
vez que “não se destinam a pessoas determinadas ou a grupos de pessoas, mas têm
por destinatário toda a coletividade, em sua acepção difusa, como o direito à paz, ao
meio ambiente, ao patrimônio comum da humanidade” (SCHÄFER, 2013, p. 56).
Enfim, o Estado Democrático de Direito deve estabelecer as condições institu-
cionais que assegurem a cidadania. Ora, a EA se constrói a partir da conscientização
da população sobre as questões socioambientais e o incentivo à participação política
em todas as suas dimensões. Essa participação é o exercício da cidadania. Ou seja, a
EA é peça fundamental, porque permite, por meio da mobilização do indivíduo, des-
velar seu papel dentro da sociedade, revelando que está apto a atuar coletivamente
e exercer a cidadania, não só participando dos processos decisórios, mas também:
[...] tornando-se capaz de construir vínculos fortes e estáveis entre os membros de sua co-
munidade, tendo por fundamentos a unidade social, a aceitação, a solidariedade e o senso de
um destino comum, porque nada adiantaria ser cidadão sem a perspectiva ou possibilidade
de pôr em prática essa prerrogativa: a de exercer a cidadania (COSTA; TERRA, 2007, p. 48).
Portanto, pode-se dizer que o exercício da cidadania, possibilitado a partir do
espaço da EA, agrega ainda outro elemento indispensável: a solidariedade social,
a qual diz respeito “à relação de todas as partes de um todo, entre si e cada um
perante o conjunto de todas elas” (COMPARATO, 2006, p. 577). Assim, a ideia de
solidariedade está imbricada com a de comunidade, na perspectiva de pertencer e
compartilhar, o que Casalta Nabais (2005, p. 84) traduz nas seguintes palavras:
A solidariedade pode ser entendida quer em sentido objetivo, em que se alude à relação
de pertença e, por conseguinte, de partilha e de corresponsabilidade que liga cada um dos
indivíduos a sorte e vicissitudes dos demais membros da comunidade, quer em sentido sub-
jectivo e de ética social, em que a solidariedade exprime o sentimento, a consciência dessa
mesma pertença à comunidade.
A solidariedade social, nesse sentido, de pertença, em que a harmonia social
depende da preocupação de cada um com todos, é o elemento justificador da legi-
timidade de um Estado socialmente justo que efetivamente pugne pela dignidade
da pessoa humana, concretizada, por sua vez, pelos direitos fundamentais consti-
tucionalmente consagrados, tudo com o fim de promover a justiça social, da qual é
instrumento a EA.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
A educação ambiental como condição de possibilidade da justiça social
Não restam dúvidas de que o cenário de desigualdade no Brasil, assim como
no resto do mundo, é avassalador. José Bonifácio afirmou em representação envia-
da à Assembleia Constituinte de 1823 que “a escravidão era um câncer que corroía
nossa vida cívica e impedia a construção da nação” (CARVALHO, 2015, p. 228).
Nos tempos atuais, pode-se dizer que é a desigualdade que impede a consolidação
da democracia.
O Brasil está entre os países mais desiguais, situação agravada por déficits em
matéria de direitos econômicos e sociais. Em estudo produzido pela Oxfam Brasil
(2017), entre os dados apurados, percebeu-se que níveis extremos de desigualdade
econômica coexistem com pobreza generalizada: a concentração de renda do 1%
dos brasileiros no topo é a maior do mundo. Os seis brasileiros, todos homens, mais
ricos têm a mesma riqueza que os 50% mais pobres da população. Enquanto isso,
afirma o estudo, 16 milhões vivem na pobreza, e mais de 50% estão vulneráveis a
entrar na pobreza. A tabela seguinte ilustra este cenário:
Tabela 1 – A desigualdade econômica
Fonte: Oxfam Brasil (2017).
Educação ambiental e justiça social: reexões em tempos de solidão democrática
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Este contexto de desigualdade econômica somado às medidas de austeridade,
que foram adotadas pelo governo nos últimos tempos, aumentam ainda mais a
desigualdade e a miséria, especialmente porque os maiores cortes orçamentários
afetaram sobremaneira os direitos humanos, entre outros, conforme se pode obser-
var nas variações orçamentárias nominais de programas selecionados do Brasil, no
período compreendido entre 2014 e 2017:
Figura 1 – A queda de investimentos nas políticas públicas sociais
Fonte: Oxfam Brasil (2017).
Aliás, o cenário futuro não é promissor, uma vez que o teto de gastos estabe-
lecido por estas medidas de austeridade irá reduzir, consideravelmente, os inves-
timentos em áreas consideradas fundamentais, como a saúde e a educação. Isto
apenas confirma que são as desigualdades as verdadeiras aniquiladoras da vida
em sociedade.
É diante deste panorama, portanto, que é preciso pensar a justiça social. Isso
porque a medida da justiça social, a qual admite variadas interpretações, mesmo
no campo teórico, é a igualdade, valor que orienta políticas para a construção de
uma sociedade mais solidária, justa e livre. Este valor, por sua vez, é conquistado
pelo agir transformador dos agentes sociais em seus campos correspondentes, uma
vez que a igualdade diante da lei não é suficiente, porque significa tão somente a
obrigatoriedade de todos de cumprir a lei, mas não problematiza a realidade de
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
desigualdade posta. Não é outro o sentido da afirmação de Marx (2012) de que o
direito não teria que ser igual, mas desigual, porque as distorções promovidas pelo
modelo econômico só podem ser corrigidas pelo Estado, estando aí o Direito como
instrumento a serviço não do Estado, mas da sociedade, enquanto promotor de
uma justiça distributiva e, portanto, corretiva.
Tradicionalmente, a ideia de justiça social se traduz como distribuição justa
dos bens, como saúde, educação, liberdade, riqueza, etc. Parte-se neste estudo da
concepção de justiça como um fim do Estado, como uma norma constitucional. Jun-
kes (2005, p. 533) propõe a sistematização dos aspectos associados à noção jurídica
em quatro grupos, quais sejam:
a) grupo de preceitos relacionados preponderantemente à garantia e à promoção da digni-
dade em favor de todas as pessoas; b) grupo de preceitos relacionados preponderantemente
à garantia e à promoção do valor liberdade a todos os membros da sociedade; c) grupo de
preceitos relacionados preponderantemente à garantia e à promoção da equalização de
oportunidades a todos; d) grupo de preceitos relacionados preponderantemente à garantia
e à promoção da redução dos desequilíbrios sociais em favor dos membros ou setores mais
inferiorizados da comunidade política.
Não restam dúvidas de que dois aspectos são importantes enquanto elementos
de justiça social: a reflexão sobre os efeitos distributivos de uma estrutura institu-
cional sobre as diferentes oportunidades de vida dos membros de uma comunidade,
assim como a reflexão sobre o acordo acerca dos princípios que devem orientar
essa mesma estrutura (Miller, 1998). A grande questão, e este é o óbice, é como
transformar esse pacto teórico em ação. E é nesse momento que se defende a EA
como o espaço que estabelece as condições de possibilidade para o exercício da cida-
dania, a qual está intimamente ligada à justiça social. Até porque a EA contempla
múltiplas dimensões – ambientais, sociais, políticas, culturais – que não podem ser
obscurecidas. A EA é, assim, o espaço adequado para que se realize essa denúncia
à negligência consciente do Estado para com a questão socioambiental; enfim, para
com a dignidade da pessoa humana. Estes aspectos são muito importantes, porque,
Na poética da Educação Ambiental, a atenção à degradação ambiental muitas vezes deixa
escapar a injustiça social. Por isso é preciso reivindicar a consciência reflexiva de que toda
miséria humana está intrinsecamente relacionada com os impactos ambientais. Teremos
o enorme desafio de transformar a poética em sua dimensão política, pois a história da
civilização do Homo Sapiens já comprovou que os prejuízos dos danos ambientais recaem
sempre nas camadas economicamente desfavorecidas (SATO; PASSOS, 2006, p. 23).
É a EA uma educação política, porque questiona as certezas absolutas e dog-
máticas, comprometendo-se com uma cidadania plena na busca por uma convivên-
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
cia digna entre os seres humanos e com o ambiente onde se insere. A EA, neste
panorama, apresenta-se como o espaço dialógico apto a propiciar o questionamento
dos paradigmas do conhecimento e do modelo de sociedade moderna, apresentando
a necessidade de uma racionalidade outra, “orientada por novos valores e saberes;
por modos de produção sustentados em bases ecológicas e significados culturais;
por novas formas de organização democrática” (LEFF, 1999, p. 112).
Daí porque se reforça a convicção de que a EA é um ser-com, e nesse sentido
ela é também uma educação popular, porque se constitui como um espaço para uma
prática de conscientização voltada à transformação social (PEREIRA; ALVAREN-
GA; MARQUES, 2003).
Em outras palavras, uma educação cujos conceitos podem ajudar na constru-
ção de uma sólida cidadania, ancorada numa visão crítica e transformadora, “no
sentido do desenvolvimento da ação coletiva necessária para o enfrentamento dos
conflitos socioambientais” (LAYRARGUES, 2006, p. 87-88). Enfim, uma EA que,
enquanto projeto emancipatório, cria condições para reflexão e atuação em busca
de justiça social, em que a cidadania é meio para essa concretização que há muito
se anseia.
Considerações nais
A partir dos argumentos apresentados neste texto, observou-se que é a EA um
espaço político adequado para que se estabeleçam as reflexões e o agir necessários
para a construção de uma outra realidade. É, portanto, um espaço para a concreti-
zação da justiça social.
Não mais tendo por base uma concepção de falso equilíbrio, mas reconhecendo
as contradições e os conflitos éticos, políticos e socioambientais, acredita-se que a
Educação Ambiental Crítica pode contribuir não apenas no reconhecimento de ga-
rantias e lutas, mas também no sentido que essas políticas assumiram e assumem
em defesa da vida.
Assim como Paulo Freire, quando do seu retorno do exílio, acredita-se que
é preciso reaprender o Brasil pós-golpe de 2016. Nesse esforço hermenêutico de
reaprendizagem, os diferentes campos do saber, além de uma avaliação sobre as
escolhas feitas, devem ter a coragem de reforçar os reconhecimentos construídos.
Nesse sentido, deve-se reafirmar as convicções pela Educação Ambiental Crítica a
partir de uma sociedade, de uma escola, de uma universidade popular e afirmativa
Vilmar Alves Pereira, Simone Grohs Freire
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
que reconheça as questões ambientais a partir da perspectiva do ambiente inteiro,
e não apenas do meio/ambiente.
O projeto antagônico a este já é conhecido. Ele tem a ênfase no lucro e no po-
der a qualquer custo; no agronegócio e nos agrotóxicos; na usurpação das reservas
indígenas para exploração de minérios; na afirmação de um governo para os mais
favorecidos; e no não reconhecimento das diferenças – além da condenação e do
ataque aos pensadores com perspectivas crítico-progressistas.
Pelo horizonte da EA, pode-se encontrar espaços para continuar se organizan-
do, denunciando e resistindo a esse projeto maior e buscando possibilidades viáveis
de construção de um projeto coletivo e emancipatório com justiça social. Ainda
que de modo incipiente, já houve experiências que reafirmam e demonstram as
possibilidades de um projeto emancipatório. Nesse caso, pensa-se que é necessário
a reinvenção dos movimentos sociais populares. Mas este pode ser o tema de outro
artigo.
Notas
1
Tradução livre: faculdade que a norma atribui de proteção à pessoa no que se refere a sua vida, liberdade,
igualdade, a sua participação política e social ou a qualquer outro aspecto fundamental que afete o seu
desenvolvimento integral como pessoa em uma comunidade de homens livres, exigindo o respeito dos de-
mais homens, dos grupos sociais e do Estado, e com possibilidades de colocar em funcionamento o aparato
coativo estatal em caso de infração.
2
Já existem doutrinadores defendendo a existência da quarta, da quinta e da sexta gerações de direitos
fundamentais.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
*
Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo. Pós-doutoramento em Educação, com ênfase em Educação
Filosóca, na Universidade Federal de Santa Maria. Professor da linha de pesquisa Cultura, Escola e Ensino, do curso
de Pós-Graduação em Educação, mestrado e doutorado, da Universidade Federal do Paraná. Brasil. ORCID: 0000-
0003-1056-4822. E-mail: gbalduino.ufpr@gmail.com
**
Possui graduação em Filosoa pela Universidade Federal do Paraná. É especialista em Filosoa e Literatura pela Pon-
tifícia Universidade do Paraná e mestre em Filosoa pela mesma instituição. Possui doutorado em Educação, com
ênfase em Educação Filosóca, pela Universidade Federal do Paraná. Brasil. ORCID: 0000-0002-8122-8503. E-mail:
luna-lima@hotmail.com
Recebido em 05/02/2019 – Aprovado em 28/06/2019
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v26i3.9321
Educação e justiça social à luz da teoria crítica da sociedade
Education and social justice in the perspective of the critical theory of society
Educación y justicia social en la perspectiva de la teoría crítica de la sociedade
Geraldo Balduino Horn
*
Luciana Vieira de Lima
**
Resumo
O presente artigo problematiza e analisa, a partir da perspectiva da teoria crítica da sociedade, a relação entre
educação e justiça social na sociedade hodierna. Parte-se da hipótese de que a justiça social só existe com a
eliminação das desigualdades econômicas, sociais e culturais entre os indivíduos. Nesse caso, justiça social e
capitalismo são, por natureza, incompatíveis. Justiça social tornou-se mera abstração, discurso político-jurídico-
-ideológico das classes mais abastadas. A norma-padrão jurídica, os rituais escolares e religiosos justicam-se
e operam a partir da moralidade judaico-cristã burguesa: todos têm direitos iguais. Todos” os incluídos, con-
vertidos, escolhidos ou eleitos, seja pela manifestação divina, seja pelo poder material ou político. A impossi-
bilidade da existência de justiça social na sociedade moderna e contemporânea tem a ver com o problema da
padronização e da racionalização exacerbada do processo da produção industrial e da reprodução social; com
as carências e as implicações que esse modelo social provoca na vida dos indivíduos, principalmente em relação
ao empobrecimento da formação cultural. Justiça social transcende o direito e a ideia de liberdade burguesa
e é diametralmente proporcional à conquista de direitos sociais básicos (educação, saúde, segurança, lazer e
trabalho), necessários para o bem viver. A realização plena da justiça social depende pari passu da destruição do
modelo social capitalista vigente na atualidade. Nesse contexto, a educação escolar, como prática social, pode
contribuir para resgatar e disseminar princípios e valores voltados à realização da justiça social.
Palavras-chave: Educação escolar. Justiça social. Teoria crítica.
Geraldo Balduino Horn, Luciana Vieira de Lima
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Abstract
This article discusses and analyzes, from the perspective of the critical theory of society, the relationship betwe-
en education and social justice in today’s society. It is hypothesized that social justice only exists with the elimi-
nation of economic, social and cultural inequalities between individuals. In this case, social justice and capitalism
are by nature incompatible. Social justice has become mere abstraction, political-juridical-ideological discourse
of the more auent classes. The standard rule legal, school and religious rituals are justied and operate from
bourgeois Judeo-Christian morality: “Everybody have equal rights. “Everybody those included, converted, cho-
sen, or elected either by divine manifestation, by economic power or political. The impossibility of the existence
of social justice in modern and contemporary society is related to the problem of standardization and rationa-
lization exacerbated by the process of industrial production and social reproduction; with the deciencies and
implications that this social model causes in the life of individuals, especially in relation to the pauperization
of cultural formation. Social justice transcends the law and the idea of bourgeois freedom and is diametrically
proportional to the achievement of basic social rights (education, health, safety, leisure and work) necessary for
the well-being. The full realization of social justice depends on the destruction of the current capitalist social
model. In this context, school education, as a social practice, can contribute to the rescue and dissemination of
principles and values aimed at achieving social justice.
Keywords: Schooling. Social justice. Critical theory.
Resumen
Desde la perspectiva de la teoría crítica de la sociedad, el artículo discute y analiza la actual relación entre edu-
cación y justicia social. Se plantea la hipótesis de que la justicia social solo puede existir con la eliminación de
las desigualdades económicas, sociales y culturales entre los individuos. En ese contexto teórico, se arma que
la imposibilidad de existencia de la justicia social en la sociedad moderna y contemporánea estaría relacionada
con el problema de la estandarización y de la racionalización exacerbadas por el proceso de producción indus-
trial y reproducción social. Eses procesos contendrían las deciencias e implicaciones que ese modelo social cau-
sa en la vida de los individuos, esencialmente en relación con el empobrecimiento de la formación cultural. Así,
la justicia social y el capitalismo serian por naturaliza incompatibles. Por lo tanto, la justicia social sería una mera
abstracción, un discurso político-jurídico-ideológico de las clases más acomodadas. Al mismo tiempo, se arma
que la regulación, la escuela y los rituales religiosos se justicarían y operarían desde la moral judeocristiana
burguesa en que todos tienen los mismos derechos. En la expresión “todos” se incluyen apenas los convertidos
y los elegidos por la manifestación de divino o del poder material o político. Pero, la justicia social trascendería
la ley y la idea de la libertad burguesa y sería indiscutiblemente proporcional al logro de los derechos sociales
básicos, necesarios para el bienestar, cómo la educación, la salud, la seguridad, el ocio y el trabajo. Por lo tanto,
la plena realización de la justicia social dependería de la superación del actual modelo social capitalista. En este
contexto, la educación escolar, como práctica social, podría apoyar el rescate y la difusión de principios y valores
orientados al logro de la justicia social.
Palabras clave: Educación escolar. Teoría crítica. Justicia social.
Introdução
A temática justiça ocupa um lugar de destaque na história da filosofia desde
os pré-socráticos. Foi tratada como um problema ético-filosófico, mas, geralmen-
te, a partir de uma conotação abstrata, vaga, meramente conceitual, quando não
a-histórica. Fala-se muito na justiça em sentido equitativo, normativo, divino ou
Educação e justiça social à luz da teoria crítica da sociedade
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mesmo comutativo, mas não em uma acepção radicalmente social como condição
necessária da vida humana. Em todos os períodos da história humana (antigo,
medieval, moderno e contemporâneo), foram e ainda são constantes as injustiças e
as atrocidades contra pessoas pobres, mulheres, negros, índios, isto é, pessoas ex-
cluídas de toda ordem do processo social. Vários modelos hegemônicos de sociedade
reforçaram as desigualdades econômicas, sociais e culturais entre os indivíduos
como forma de dominação, controle e exploração, mantendo separado, portanto, o
entendimento de “justiça” de sua dimensão “social”. É na contemporaneidade que,
fundamentalmente, a discussão sobre a justiça passa a ter uma conotação ética
associada às condições concretas da existência humana, da vida em sociedade.
A sociedade capitalista é, em grande medida, responsável por unir os termos
“justiça” e “social”. Uma adjetivação contraditoriamente necessária para justificar
as promessas do ideário burguês de uma sociedade igualitária, fraterna e com di-
reito de ir e vir. Daí as perguntas: é possível pensar em justiça social dentro de uma
sociedade dividida em classes? Até que ponto é possível haver justiça social em
uma sociedade que se fundamenta na desigualdade e na exploração do trabalho? É
possível pensar em justiça social quando os aparatos jurídico e político obedecem
a uma ordem econômica controlada por elites? A educação escolar pode se tornar
uma prática social de superação voltada à realização da justiça social?
A ideia de justiça social teve, a princípio, no período que se seguiu à Crise de
1929 até a virada neoliberal da década de 1970, um forte apelo entre a classe traba
-
lhadora. A regulação do mercado promovida pelo Estado de bem-estar social trans-
formou as contradições entre o trabalho e o capital em um telos racional baseado
no desenvolvimento econômico. Com isso, a ampliação da demanda incrementada
pelo Estado na construção de grandes obras se justifica nos limites da conservação
dessa própria ordem. Isso passou a ser considerado sinônimo de progresso social e,
consequentemente, de justiça social, por meio da manutenção de índices de emprego
compatíveis com a necessidade do capital. Nesse sentido, é preciso compreender os
efeitos concretos e ideológicos desse modelo de Estado social, no quadro histórico
da construção de valores, e das normas de legitimação da exploração, pelo viés da
ideologia da justiça social e de seu alcance por meio da educação. Afirmou-se que a
justiça social caracteriza-se como uma ideologia, pois os investimentos do Estado de
bem-estar social não se realizaram em proveito da classe trabalhadora, mas, somen
-
te, como uma forma de gerar a demanda necessária para a manutenção do capital.
Nesse sentido, a justiça social é uma compensação, uma estabilização dos con-
flitos sociais. Essa estabilização, ou seja, a naturalização da exploração capitalista
Geraldo Balduino Horn, Luciana Vieira de Lima
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e do trabalho alienante, exige da educação um servilismo demagógico voltado à
construção do pseudoesclarecimento e da qualificação para o trabalho. Por isso,
o desenvolvimento econômico, como condição necessária à justiça social, torna-se
limitante da construção de uma sociedade realmente livre e emancipada das for-
mas de trabalho alienantes e reificadas. A justiça social é uma condição necessária,
mas não suficiente, à plena realização da liberdade. Disso decorre a seguinte afir-
mação: a justiça social só se objetivará no plano social com a eliminação real das
desigualdades econômicas, sociais e culturais entre os indivíduos e, portanto, com
a eliminação do trabalho em sua expressão alienada.
Para efeitos de exposição, este artigo foi dividido em dois momentos. O primei-
ro mostra, principalmente a partir da leitura de autores como Laval (2004), Més-
záros (2008, 2011), Streeck (2013) e Luxemburgo (2011), que justiça social e capi-
talismo são, por natureza, incompatíveis. Justiça social tornou-se mera abstração,
discurso político-jurídico-ideológico das classes mais abastadas. A impossibilidade
da existência de justiça social na sociedade moderna e contemporânea, por um
lado, tem a ver com o problema da padronização e da racionalização exacerbadas
do processo da produção industrial e da reprodução social, por outro, transcende o
direito e a liberdade individuais e é diametralmente proporcional à conquista de
direitos sociais básicos (educação, saúde, segurança, lazer e trabalho), necessários
para o bem viver. O segundo tópico apresenta, a partir de Adorno e Horkheimer, a
tensão entre educação escolar na atualidade e justiça social.
A justiça social no capitalismo: antinomias
No período compreendido entre a grande depressão de 1929 e a ascensão
do credo neoliberal dos anos 1970, viu-se uma guinada da falência do princípio
do Laissez-faire à doutrina econômica keynesiana. Conforme Shermann e Hunt
(2010), quando Keynes publicou, em 1936, a sua obra Teoria geral do emprego do
juro e do dinheiro, o sistema econômico ainda não havia se recuperado da bancarro-
ta de 1929. Keynes intentava compreender o papel dos fluxos de renda na forma de
salários, remunerações, rendas, juros e lucros no equilíbrio do mercado. Ele cons-
tatou que os “vazamentos” nos fluxos de renda (impostos, poupança e a aquisição
de bens no mercado externo) são responsáveis pelas crises capitalistas. A solução
apontada reside em utilizar o Estado para transformar “o excesso de poupança” e
os “impostos” em “projetos sociais”. Essa fórmula garante que o Estado não interfi-
ra diretamente nos investimentos privados, assim o processo de acumulação esta-
Educação e justiça social à luz da teoria crítica da sociedade
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
ria assegurado. O Estado garantiria, por meio de grandes obras públicas em saúde,
infraestrutura e educação, o pleno emprego e a renda necessária para a realização
da mais-valia contida nas mercadorias. A expansão da produção capitalista, ou
seja, a acumulação constante do capital, encontra-se, no modelo keynesiano, ligada
à expansão constante da demanda social por meio do pleno emprego.
As práticas adotadas nesse período, em termos de justiça social, apresentaram-
-se, muitas vezes, ideologicamente sob a intervenção do Estado na eliminação das
desigualdades sociais. Para Singer (1987, p. 52), Keynes ignorou, deliberadamente,
a alternativa da “distribuição de renda [sic] como meio de elevar a demanda efetiva”,
pois, para o capitalista, a ideia de distribuir a parcela do capital acumulada na for-
ma de mais-valia é contrária à necessidade constante de acumulação. Ao capitalista
importa o consumo como realização da mais-valia e da reprodução da mão de obra.
Se a preocupação da ortodoxia keynesiasa não é a distribuição de renda, percebe-se
que o dispêndio do Estado em educação se justifica apenas para ampliar a demanda
agregada (consumo), de acordo com as necessidades da economia. Ainda que o cresci-
mento do sistema educacional pareça um esforço constante do Estado para ampliar
o nível educacional para um número cada vez maior da população, esse gasto justi-
fica-se apenas na lógica de ampliação do capital, e não na distribuição das condições
para os plenos desenvolvimentos intelectual, cultural, científico, etc.
De forma análoga às críticas de Singer, outro autor demonstra os limites da
justiça social dentro da perspectiva do Estado de bem-estar social keynesiano.
Para Marsden (1974, p. 114), “a justiça social não pode ser promovida apenas por
atividades residuais, por programas especiais de criação de empregos fora das prio-
ridades básicas do planejamento econômico, ou por transferências dos ricos para os
pobres através de subsídios ou doações”.
A ampliação da produtividade, entretanto, permitiu estabelecer um consenso
entre forças antagônicas. Os gastos do Estado se converteriam em salário maio-
res, que implicariam o acesso à educação formal, esta garantidora, por sua vez,
de empregos com melhores salários. A justiça social como resultado da sucessão,
geralmente ininterrupta e infinita, de empego, renda e consumo transformou a
“luta de classes” em uma luta solidária entre o capital e o trabalho. Curiosamente,
os “avalistas” dessa luta solidária foram os “barões dos sindicatos nacionais”, re-
compensados com o “fortalecimento da democracia e da justiça social, sem negar o
capitalismo como fonte da prosperidade futura. Os interesses do capital estariam
garantidos graças à gestão econômica da nação, à paz social e à produtividade
crescente” (ELEY, 2005, p. 367).
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Essa luta solidária proporcionou oportunidades de renda e de consumo a que
muitos trabalhadores jamais tinham tido acesso. Aqueles que conseguiram um
emprego ajustaram-se ao aparato e logo trataram de utilizar as economias em for-
ma de poupança para ampliar a renda por meio da educação. Os velhos ideais de
emancipação foram reinterpretados pela abertura, mesmo limitada, ao reino do
capital. Deixando de lado os horrores de um passado recente, a defesa de posições
conciliatórias afundou, gradativamente, a proposta radical de uma nova sociedade.
A sociedade civil-burguesa permanece no horizonte, e as relações econômicas ficam
protegidas no interior dessa sociedade pelo uso aparente da democracia.
O abandono da teoria crítica marxista desse período reduziu o capitalismo
a um modo de produção capaz de distribuir igualmente a renda, bastando, para
isso, o desenvolvimento de estratégias de legitimação no interior do Estado. Esse
“reformismo” conduziu a uma falsa interpretação do funcionamento do capitalismo
e, consequentemente, a uma interpretação também superficial da justiça social e
da educação. Para Streeck (2013, p. 7), ao substituir a “teoria econômica pela teoria
do Estado e da democracia”, a teoria crítica abandona, em seu prejuízo, “uma peça
nuclear da herança da economia política marxista”.
Deve-se admitir que o entusiasmo libertador do mercado, ao estabelecer ideias
abstratas de justiça social, produziu os mais brilhantes adversários da própria li-
berdade, pois formalizou um tipo de teoria e de prática de adaptação da economia
capitalista, promovendo um amálgama entre o proletariado e a burguesia – uma
concepção distante da visão dialética e revolucionária marxista.
Nesse ponto, pode-se, por exemplo, observar a relevância das teses de Rosa Lu-
xemburgo sobre as limitações objetivas do reformismo. Para Luxemburgo (2011),
a ideia de um capitalismo controlado, visando a criar artificialmente uma socie-
dade livre das desigualdades pela “eliminação dos abusos, e não do capitalismo”,
apresenta-se como uma construção ingênua e ilusória diante da tarefa histórica do
proletariado. Ingênua, pois, ao abandonar os “objetivos finais” pelo “interesse ime-
diato”, a justiça torna-se um “cavalo de batalha” a serviço da industrialização pa-
trocinada pelo Estado e financiada pelo aumento dos impostos sobre a população.
Daí resulta um certo cinismo, pois as políticas públicas voltadas à justiça social, na
verdade, apresentam-se como uma “transferência do consumo”, das mãos da classe
trabalhadora para o Estado.
À medida que o Estado de bem-estar social se estende para o fortalecimento
“artificial”, o que está em jogo é a transformação da propriedade pública em pro-
priedade estatal, por isso mesmo, uma vez que
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
[…] as relações de produção da sociedade capitalista aproximam-se cada vez mais da so-
cialista, todavia, suas relações políticas e jurídicas erigem um muro cada vez maior entre
a sociedade capitalista e a socialista. Esse muro não é destruído pelo desenvolvimento de
reformas sociais como a democracia, mas, pelo contrário torna-se mais forte e mais alto
(LUXEMBURGO, 2011, p. 37).
A adoção do reformismo, como princípio político, econômico e social, atribui à
educação, como instância de mediação, um papel exclusivamente idealista. Com
isso, o desenvolvimento da consciência por meio da educação crítica, sob a estraté-
gia de salvação keynesiana, ou mesmo sob a ideologia reformista e liberal do capi-
talismo, situa-se muito aquém de resultados objetivos de uma educação verdadei-
ramente crítica que pretenda romper com as leis do desenvolvimento capitalista.
Assim sendo, é preciso evitar uma tomada de posição relativista sobre a pos-
sibilidade de escolha entre duas alternativas aparentemente diferentes, mas limi-
tadas à lógica do capital.
Dois princípios de distribuição concorrentes que eu gostaria de designar como justiça de
mercado e justiça social. Por justiça de mercado entendo a distribuição do resultado da pro-
dução de acordo com a avaliação pelo mercado dos desempenhos individuais dos envolvidos,
expressa através dos seus preços relativos. O critério de remuneração que corresponde à
justiça de mercado é a produtividade limite, portanto o valor de mercado da última unidade
de produção extraído de acordo com as condições da concorrência […]. A justiça social, pelo
contrário, rege-se por normas culturais e baseia-se no direito estatutário, não no direito
contratual. Rege-se por conceções [sic] coletivas de honestidade, equidade e reciprocidade,
concede direitos a um nível mínimo de vida da comunidade, à proteção do emprego, à orga-
nização sindical etc. (STREECK, 2013, p. 99, grifos do autor).
Essas duas formas de justiça, a princípio, fundamentalmente, rivais, tornam-
-se alternativas viáveis entre si, pois, diante da estratégia reformista, o modelo
capitalista que funciona dentro de uma espécie de acordo entre os interesses ob-
jetivos e subjetivos, ou seja, entre os limites materiais e da consciência, implica a
aceitação do modo de produção capitalista, por se “[...] conformar com a regra geral
preestabelecida da reprodução da sociedade” (MÉSZÁROS, 2008, p. 26).
A representação idealista do papel da educação, isto é, que aposta na alterna-
tiva do desenvolvimento apenas da razão e do pensamento como via de libertação
das determinações históricas e materiais, desempenha um processo bem planejado
de internalização e de sustentação de uma determinada prática social, em harmo-
nia, cada vez maior, com o status quo. Assim, o ponto de partida mais natural para
a conquista da justiça social parece ser a transformação social por meio da reflexão
crítica. No entanto, ao se considerar a educação, principalmente a formal, como de-
senvolvimento da reflexão crítica, independentemente de ação objetiva para a con-
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
quista da liberdade, essa fórmula limita-se a um discurso ideológico. Nesse ponto,
Marx e Engels (2003, p. 100, grifos dos autores) argumentam que “para levantar-se
não basta apenas levantar-se em pensamento, deixando que sobre a cabeça real e
sensível permaneça flutuando o jugo real e sensível, que nós não logramos fazer
desaparecer por encanto através das ideias”.
Sobre esse idealismo utópico, Mészáros (2008, p. 30) apresenta o exemplo de
Robert Owen. Para Owen, importante socialista utópico, a educação moral dos ope-
rários poderia promover a superação do sistema capitalista. Se os “inconvertíveis”
– aqueles que não conseguem pensar a realidade além dos limites do capital – ti-
vessem acesso ao conhecimento, isso os libertaria do sistema capitalista, ou seja, a
“cura” viria pela “razão” e pelo “esclarecimento”.
O pensamento sem a práxis, aqui entendida como “ação e reflexão dos homens
sobre o mundo para transformá-lo” (FREIRE, 2013, p. 52), com efeito, não leva à
“ruptura com as ilusões confortadoras que têm como pressuposto que os modos em
que nossas sociedades e seus aparatos educacionais estão atualmente organizados
podem levar à justiça social” (APPLE; AU; GANDIN, 2011, p. 14). Sob o impacto
do aparato educacional expresso nos indicadores de desempenho, de qualidade e de
eficiência, inspirados em um padrão de racionalidade, “os valores de verdade críti-
cos se tornam valores tecnológicos. Por exemplo, a afirmação de que todo indivíduo
possui certos direitos inalienáveis é uma afirmação crítica, mas frequentemente foi
interpretada em favor da eficiência e do poder” (MARCUSE, 1999, p. 85).
A teoria do capital humano é um exemplo dessa “ilusão confortadora”. Essa
teoria estabeleceu, em pleno auge do desenvolvimento industrial da metade do
século passado, uma conexão particular, ao reunir, sob a mesma lógica, as perspec-
tivas de justiça social e de justiça de mercado. Essa utopia econômica, derivada da
educação como mobilidade social, foi, em parte, responsável pela “impotência social
do pensamento crítico, facilitada pelo fato de que setores importantes da oposição
foram há muito incorporados ao próprio aparato – sem perder o título de oposição”
(MARCUSE, 1999, p. 85). O mesmo pensamento vale para a constatação de Laval
(2004, p. 26), quando o autor demonstra “que os partidos de esquerda e os sindi-
catos retomaram por seu lado”, nos anos 1970, esse raciocínio para a legitimidade
que ele parecia trazer aos esforços do Estado em matéria de ensino público.
Educação e justiça social à luz da teoria crítica da sociedade
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Justiça social na escola: limites e possibilidades
Para pensar uma educação escolar que privilegie o humano e, em decorrência,
a justiça social, é preciso insistir em uma formação emancipatória e libertadora,
para que o educando consiga exercer sua cidadania; para tanto o pensamento críti-
co e autorreflexivo é substancial. Entretanto, é imprescindível que o(a) professor(a)
tenha a consciência das contradições da realidade social na qual se encontra, bem
como das reais condições de vida da população e dos limites que o sistema impõe, já
que os seres humanos não são “apenas um resultado da história em sua indumen-
tária e apresentação, em sua figura e seu modo de sentir, mas também a maneira
como veem e ouvem é inseparável do processo de vida social, mas tal como este se
desenvolveu através dos séculos” (HORKHEIMER, 1983, p. 125). Sendo assim, o(a)
educador(a) precisa, sobretudo, discernir a respeito da sua realidade, bem como da
de seus educandos, para projetar possibilidades de uma educação crítica, frente às
dificuldades que a impedem, daí a imperiosidade de um pensamento autorreflexivo
constante.
É preciso frisar que se vive em uma sociedade alicerçada pelo capitalismo, que
traz, em seu bojo, alguns antagonismos – tais como: a dominação, a desigualdade,
a massificação e a violência – e que, por sua vez, coloca algumas implicações no
campo da educação escolar. Então, pode-se afirmar que a atualidade é marcada
pela semiformação, elaborada e reelaborada de maneira incessante, reproduzida
pela indústria cultural, que se propaga em todas as esferas da vida. Dessa forma,
as instituições escolares não escapam a esta lógica, que é alicerçada pelo pragma-
tismo-positivista, que não propicia o desenvolvimento da autonomia, negando a
própria formação.
Para Adorno (2005, p. 52), a semiformação “é o espírito conquistado pelo ca-
ráter de fetiche da mercadoria”. Assim, as pessoas modelam suas vidas a partir do
princípio da equivalência, incluindo as relações sociais, que passam a ter o caráter
de utilidade, alienando o espírito e a consciência, legitimando a exclusão social, já
que o interesse individual coíbe o interesse coletivo no sentido social.
No que tange ao campo educacional, em seu texto Teoria da semicultura (2005),
Adorno elabora uma crítica de como a formação (Bildung) transformou-se em se-
miformação (Halbbidung), alertando para o fato de que, por mais significativas
que possam ser as reformas pedagógicas, elas não alcançam sozinhas as questões
estruturais desse sistema, porque estão perpassadas por um processo social que,
de maneira drástica, modifica a disseminação da cultura e das suas manifestações.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Quando as reformas são destituídas de pensar, as contradições sociais e os seus
próprios conceitos, como historicamente construídos, podem gerar consequências
adversas, reforçando a ideologia vigente.
A adesão à ideologia capitalista tem concebido indivíduos frustrados, aliena-
dos, coisificados e frios. Os seres humanos se tornaram reificados, pois se transfor-
maram em meros objetos, promovendo um enfraquecimento das relações humanas,
o qual não possibilita que um ser humano considere o outro enquanto tal, mas, sim,
como um simples instrumento para realização de seus interesses. Nessa conjuntu-
ra, parece que alguns conceitos, como pensamento crítico, autonomia, liberdade,
justiça social e conscientização, foram distorcidos pelo uso ideológico – a partir da
fundamentação e da normatização de cunho burguês, que têm, como pano de fundo,
uma herança iluminista de que todos os indivíduos possuem os mesmos direitos e,
logo, são iguais –, pois, mesmo que se tenha direitos assegurados em forma de lei,
não significa que, na vida cotidiana, esses direitos sejam efetivados de fato. Isto
leva à reflexão de uma incapacidade de se apreender o passado e compreender a
historicidade em que se assenta o presente. Entretanto, para compreender a vida
imediata, é preciso “investigar sua configuração alienada” (ADORNO, 1992, p. 7),
compreendendo-a como a dificuldade de conceber que tanto a educação quanto a
cultura são elementos sociais historicamente forjados.
Desse modo, faz-se necessário recuperar a célebre afirmação adorniana de que
a “exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação”
(ADORNO, 2003, p. 119). Para Bauman (1998, p. 12), este é um fato que precisa ser
tomado como desesperador, porque o
[...] holocausto nasceu e foi executado na nossa sociedade moderna e racional, em nosso alto
estágio de civilização e no auge do desenvolvimento cultural humano, e por essa razão é
um problema dessa sociedade, dessa civilização e cultura. A autocura da memória histórica
que se processa na consciência da sociedade moderna é por isso mais que uma indiferença
ofensiva às vítimas do genocídio. É também um sinal de perigosa cegueira, potencialmente
suicida.
Auschwitz deve ser compreendido não como um problema alemão isolado,
mas tomado como uma questão inerente à humanidade. As atrocidades e toda a
indiferença que ali ocorreu servem de alerta, para que a consciência histórica não
se atrofie. O que a história tem asseverado é o fato de que as diversas formas de
violência e de perseguições se voltam, sobremaneira, para aqueles que são mais
fracos socialmente; dessa forma, tal repetição pode ocorrer, novamente, em nome
de qualquer ideia, contra qualquer grupo (ADORNO, 2003).
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
A educação no contexto adorniano assume um papel preponderante para
aqueles que buscam uma sociedade mais crítica e justa. A sua acepção manifesta-
-se de maneira mais ampla, abarcando várias instâncias da cultura, como a escola
e a família. A educação deve salvaguardar tanto o indivíduo quanto a civilização,
isso quer dizer que o seu papel é preservá-los ao máximo, não sendo apenas um
mero adaptar-se no âmbito social ou, somente, desenvolver no indivíduo suas po-
tencialidades para se inserir no mercado. Nesse sentido, a educação escolar que
almeja transpor o status quo precisa assumir um caráter de formação (Bildung)
que exprime autonomia e emancipação. Portanto, “a única concretização efetiva da
emancipação consiste em que aquelas poucas pessoas interessadas nesta direção
orientem toda a sua energia para que a educação seja uma educação para a con-
tradição e para a resistência” (ADORNO, 2003, p. 183). Assim, a formação precisa
considerar a configuração social e a realidade atual em que ela se dá.
A educação escolar precisa atentar-se, sobremaneira, à indiferença, à frieza e
ao ódio, pois,
[...] se as pessoas não fossem profundamente indiferentes em relação ao que acontece com
todas as outras, executando o punhado com que mantêm vínculos estreitos e possivelmente
por intermédio de alguns interesses concretos, então Auschwitz não teria sido possível, as
pessoas não o teriam aceito (ADORNO, 2003, p. 134).
Isso remete, diretamente, à questão da justiça social, pois, se a civilização
atual tem como base a indiferença, parece que a preocupação com o outro não é um
problema. Ainda a esse respeito, Forrester (1997, p. 41) sublinha que a indiferença
é feroz: “Ela constitui o partido mais ativo e certamente o mais poderoso. Ela per-
mite todas as exações, os desvios mais funestos, mais sórdidos”. A indiferença e a
frieza são produzidas e reproduzidas pela própria ordem social, elas a constituem.
Percebe-se, então, que a indiferença se coloca como um empecilho não só para a
justiça social, mas também para a própria educação escolar.
A educação que propõe a formação precisa ir contra qualquer forma de precon-
ceito, ocasionando e promovendo relações de amizades entre os alunos, opondo-se
aos processos de coletivização que trazem em seu bojo uma certa exclusão do que lhe
é diferente. Destarte, é necessário compreender como a modernidade se assentou.
Adorno e Horkheimer (1985) elaboraram uma crítica contundente à moder-
nidade, sem perderem de vista os elementos e as especificidades históricas que a
sedimentam. A análise ressalta o fato de a cultura moderna privilegiar o ego – eu
–, promovendo uma subjetividade exacerbada, alicerçando o “eu mesmo”, enalte-
cendo o indivíduo e o distanciando do outro, afastando as possibilidades do reco-
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
nhecimento do outro como sujeito tal qual um eu; logo, a alteridade se torna um
problema.
Tal proposição é alicerçada na herança da filosofia cartesiana, que estabelece
o sujeito como categoria fundamental; desse modo, a consciência é apenas de si –
subjetividade –, mas não do outro como igual. Tal distanciamento apresenta-se, na
atualidade, como um problema ético, já que aquela se baseia em uma sociedade de
indivíduos, ressaltando um egocentrismo e um individualismo; isso quer dizer que
o sujeito, na sua constituição, não considera o outro como parte da sua formação,
predominando uma consciência de si, sem a consciência do outro. É importante
destacar que, para Horkheimer e Adorno (1973, p. 47),
A vida humana é, essencialmente e não por mera casualidade, convivência. Com esta afir-
mação, põe-se em dúvida o conceito do indivíduo como unidade social fundamental. Se o
homem, na própria base de sua existência, é para os outros, que são seus semelhantes, e se
unicamente por eles é o que é, então a sua definição última não é a de uma indivisibilidade
e unicidade primárias mas, outrossim, a de uma participação e comunicação necessária
com os outros. Mesmo antes de ser indivíduo o homem é um dos seus semelhantes, relacio-
na-se com os outros antes de se referir ao eu, é um momento das relações em que vive, antes
de poder chegar, finalmente, à autodeterminação.
Percebe-se que, para ser um eu, existe a necessidade de se relacionar com os
outros. Entretanto, há a ideologia de que existe uma independência entre a socie-
dade e o indivíduo, a qual, ao ser assegurada socialmente, atua como uma força
objetiva nas determinações pessoais, levando o indivíduo a um certo isolamento,
impossibilitando-o de ter a autoconsciência de ser histórico.
No entanto, ainda que a sociedade hodierna seja massificada, as pessoas que
nela se encontram acreditam que estão em uma sociedade de indivíduos, que seus
desejos e suas opiniões sejam, de fato, livres e autônomos, comportamento este que
não aceita e não reconhece não só a individualidade, mas também a subjetividade
do outro, produzindo um abismo nas suas relações. Adorno convida a pensar a al-
teridade em uma sociedade alicerçada no privilégio do eu. Segundo Adorno (2003,
p. 143), a “própria organização do mundo em que vivemos e a ideologia dominante
[...] exerce[m] uma pressão tão imensa sobre as pessoas que supera[m] toda a edu-
cação. De certo modo, emancipação significa o mesmo que conscientização, racio-
nalidade”. Isso quer dizer que, no sistema no qual se está inserido, não é possível
negar o caráter de adaptação da educação escolar, já que existem determinadas ne-
cessidades sociais. Mas é preciso ir além deste estágio, incentivando o pensamento
crítico, para que o educando não se aliene de si próprio, situando-se apenas no
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
campo das condições objetivas sociais, é preciso orientar-se e situar-se no mundo, e
não dele fazer parte de maneira amorfa.
Ante tal problemática, ficam explícitos que a educação escolar tem como ta-
refa trabalhar com a questão da alteridade e que, para a construção de um eu, é
necessário o reconhecimento do outro, do que é diferente e, ao mesmo tempo, não
o é, porque ambos estão inseridos em uma mesma realidade. É preciso opor-se a
uma “tal ausência de consciência, é preciso evitar que as pessoas golpeiem para os
lados sem refletir a respeito de si próprias. A educação só tem sentido unicamente
como educação dirigida a uma auto-reflexão crítica” (ADORNO, 2003, p. 121). A
educação escolar precisa promover o exercício reflexivo nos seus educandos, para
que eles se constituam como sujeitos e indivíduos de uma realidade social, para que
não caiam nas armadilhas da coletividade cega ou das ideologias vigentes que não
promovem as diferenças nem a autonomia.
Isto é, para que conceitos como o de justiça social não fiquem apenas no campo
abstrato, ou seja, esvaziados, é indispensável conscientizar para as diferenças e
para as contradições do próprio sistema, pois, somente desta maneira, é possível
pretender alguma transformação social. Nesse âmbito, Adorno (2003) coloca uma
questão fundamental “do para que da educação”. Ele chama atenção para a neces-
sidade e para a relevância de se debater sobre o ato de educar, isto significa que a
questão não deve mais caminhar no sentido de pensar qual é o fim da educação,
mas, especialmente, “para onde a educação deve conduzir”. A educação precisa,
também, preocupar-se com a sensibilização. Nessa perspectiva, ela deve atentar-se
também com o processo, não apenas com o fim.
Diante da realidade em que se vive, as informações passaram a ter cada vez
mais fluxo e rapidez, o próprio processo de conhecimento, que precisa de um deter-
minado tempo de reflexão, parece perder espaço para a imediatez e para o fugaz.
O que importa não é mais o que se sabe, mas o quanto de informações se adquiriu,
e, nesse caminho, o pensamento crítico não possui espaço, não há tempo para dis-
cernimento, para se questionar o porquê de determinadas coisas ocorrerem. As
pessoas tornam-se apáticas frente ao que acontece com os outros, ficando inertes,
ratificando um comportamento de que as coisas sempre foram assim e de que não é
possível mudá-las. Na atualidade, a frequente divulgação de tragédias, problemas
e indiferenças sociais faz que estas padeçam de invisibilidade, pois a capacidade
de desenvolvimento de empatia vai se perdendo. O frenesi de informações parece
isentar o indivíduo de qualquer compromisso, reforçando a consciência coisificada.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Neste ínterim, a semiformação firma-se como formação, e as pessoas sentem-se
aptas a formular opiniões sobre qualquer assunto, sem, contudo, aprofundarem-se
em nenhum deles, concebendo uma realidade totalmente abreviada, prejudicando
a percepção; não compreendem que são apenas semiformadas, que seus pensamen-
tos partem de elementos estereotipados, que servem para disseminar rótulos em
relação às pessoas e às coisas, sem se preocuparem com as consequências que suas
ações provocam na vida social.
A advertência de Adorno, a respeito do para que educação, parece não ter
perdido sua atualidade. O filósofo nos convida a analisar o real significado da edu-
cação escolar a partir dos seus problemas atuais. Tanto os professores quanto todos
aqueles que estão envolvidos com a escola necessitam de uma compreensão concre-
ta do que se deseja com a educação, as questões basilares são: estamos educando
para quê? Apenas para o mercado e para a adaptação?
Assim, os problemas cotidianos parecem estar além, mesmo quando, em do-
cumentos oficiais, aparece a asserção de que é preciso formar para a cidadania
e, também, para o pensamento crítico. Isso, porque essas questões aparecem de
forma abstrata, como uma espécie de ornamento na burocracia, como bem adverte
Pucci (2011, p. 133, grifo do autor), que os professores, em sua maioria, acabam
desenvolvendo “o conteúdo e as metodologias de sua disciplina de maneira autori-
tária, repassando clichês, despejando em seus formandos ‘saberes’ estabelecidos e
muitas vezes superados [...]”.
É notório que não há um projeto educacional totalmente isento de interesses,
e é neste âmbito que é preciso compreender que a educação escolar modela as cons-
ciências de seus educandos a partir de determinados interesses políticos. Assim,
ela “passa ser responsável politicamente pelos resultados que se tem na articula-
ção da vida social” (BITTAR, 2007, p. 314), pois, como uma atividade intencional, a
educação escolar configura-se como um projeto cuja finalidade precisa ser pensada
não apenas por instâncias políticas. Mas, sobretudo, ela deve configurar-se e ser
movida a partir da realidade e da necessidade social, não sendo subserviente ape-
nas aos interesses do capital, visto que os maiores interessados em conservar as
estruturas do status quo são os mesmos que influenciam um discurso de transfor-
mação, mas que nada traz de mudança.
Percebe-se que a educação é, em si, um ato político, mas o que precisa ser
valorizado é que uma sociedade que busca efetivamente uma democracia precisar
insistir em uma educação para o pensar, que
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Evidentemente não a assim chamada modelagem de pessoas, porque não temos o direito de
modelar pessoas a partir do seu exterior; mas também não a mera transmissão de conheci-
mentos, cuja característica de coisa morta já foi mais do que destacada, mas a produção de
uma consciência verdadeira. Isto seria inclusive da maior importância política; sua idéia se
é permitido dizer assim, é uma exigência política. Isto é: uma democracia com o dever de
não apenas funcionar; mas operar conforme seu conceito, demanda pessoas emancipadas.
Uma democracia efetiva só pode ser imaginada enquanto uma sociedade de quem é eman-
cipado (ADORNO, 2003, p. 141-142, grifo do autor).
A perspectiva adorniana de educação escolar preconiza o não retorno da bar-
bárie e de movimentos totalitários, assim, ela precisa ser capaz de preparar os edu-
candos para a sua autonomia, a fim de que eles possam compreender e analisar o
presente e perceberem que decisões na esfera individual acarretam consequências
na vida social e coletiva. Desse modo, a emancipação não corresponde a um sujeito
isolado, mas como parte do social; a formação deve operar como uma instância
mediadora entre a cultura e o indivíduo.
Segundo o filósofo, a educação escolar precisa investir na primeira infância e,
nessa etapa, iniciar um processo de desbarbarização, no âmbito social, como no fato
de “desacostumar as pessoas de se darem cotoveladas. Cotoveladas constituem sem
dúvida uma expressão de barbárie” (ADORNO, 2003, p. 162). Além disso, a educa-
ção escolar deve estimular menos a competição e mais a necessidade do trabalho
colaborativo e em grupo. E, ainda, o sistema educacional deve contribuir, efetiva-
mente, para que “as pessoas comecem a ser inteiramente tomadas pela aversão à
violência [...]” (ADORNO, 2003, p. 165). Para se alcançar transformações com esta
finalidade, é preciso trabalhar as consciências coisificadas em prol de uma forma-
ção humana.
Contudo, é importante destacar que a educação escolar precisa atentar-se à
questão da socialização, porque, no sistema capitalista, ela se baseia na dominação,
bem como na “forma da subordinação de todos à lei da troca, sob pena de sucumbir
[...]” (ADORNO, 2008, p. 110). Nessa perspectiva, os seres humanos são reduzidos
a um “conceito funcional”, na “redução dos homens a agentes e portadores da tro-
ca de mercadorias se oculta a dominação dos homens pelos homens” (ADORNO,
2008, p. 109). Neste âmbito, é preciso que os/as professores/as compreendam que
as práticas culturais forjam as consciências, sendo, então, necessária uma crítica
permanente, que “significa propriamente o mesmo que recordação, isto é, mobilizar
nos fenômenos o que fez que estes se tornaram aquilo em que se converteram, para
assim apreender uma outra possibilidade de vir-a-ser e converter-se em algo outro”
(ADORNO, 2008, p. 336-337).
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
A educação escolar que almeja a efetivação da justiça social precisa recuperar
a criticidade, para que esta não seja apenas uma abstração ou um pressuposto
conceitual, possibilitando tornar conhecido aquilo que não é facilmente capturado
pela percepção, como bem adverte Maar (2012, p. 19):
Ainda que seja impossível mudar o passado, pode-se mudar a relação do passado com o
presente pela crítica às condições que tornaram efetiva, no passado, uma determinada
possibilidade. Mas apreender essa possibilidade depende de operar com categorias sociais
dotadas de uma dimensão temporal e não com conceitos nos moldes do idealismo.
Destarte, a educação escolar não pode abster-se da sua dimensão adaptativa,
mas, também, não deve fazer dela o seu fim, reforçando a perpetuação da ideologia
vigente, haja vista que as pessoas precisam sobreviver. Contudo, o que precisa ser
trazido à baila e confrontado é o fato de o sistema educacional privilegiar apenas a
lógica do mercado, o que, por sua vez, assegura a injustiça social, pois, ao se emba-
sar nos interesses mercadológicos, favorece o discurso da meritocracia, incentivan-
do, cada vez, mais a competição; tal postura intensifica as desigualdades, porque
mascara os reais problemas sociais.
A busca por uma sociedade emancipada não é tarefa apenas da escola, mas,
sem ela, não será possível sua realização. Assim, pensar em uma potencial trans-
formação social, hodiernamente, requer articulá-la à própria educação escolar.
Já no que concerne o conceito de justiça social no campo educacional, é preciso
empenhar-se no trabalho de transpor o uso comum deste conceito – relacionado
apenas à destruição de bens na sociedade –, sendo necessário insistir na questão da
apropriação da educação e da cultura pelas pessoas mais desfavorecidas, ou seja,
permitir acesso a determinados bens culturais não significa apenas usufruir deles,
mas entendê-los como possibilidade de transformação.
Considerações nais
A educação crítica deve existir no desvelamento das ideias dominantes prove-
nientes da base do sistema. Nesse sentido, deve-se reconhecer que esse exercício
enfrenta formas de “Liberdade que se confunde com a manutenção do status quo.
Por isso, se a conscientização põe em discussão este status quo, ameaça, então, a
liberdade” (FREIRE, 2013, p. 33).
O desafio histórico, como lembra Mészáros (2011, p. 138), envolve a superação
da superestrutura política e jurídica, com suas raízes no processo produtivo. Na
mesma direção, Streeck (2013) reforça que é preciso abandonar a fórmula de paz
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
social e dos ideais abstratos de justiça social contidos no crescimento. É preciso
promover uma democracia sem capitalismo e uma lógica de trabalho associada ao
tempo livre, à valorização de cultura de nível superior e à produção de bens que não
impactem de forma destrutiva na natureza.
No esforço de buscar uma educação para a autonomia, Paulo Freire assevera
que o fato “de me perceber no mundo, com o mundo e com os outros me põe numa
posição em face do mundo que não é a de quem a ele se adapta, mas de quem
nele se insere. É a posição de luta para não ser apenas objeto, mas sujeito da his-
tória” (FREIRE, 2018, p. 53, grifo do autor). Para que isso ocorra, o professor é
preponderante, pois cabe a ele a autoavaliação crítica da sua prática educativa e
a necessidade de repensá-la sempre, no esforço de transpor a educação acrítica e
produtivista.
Portanto, pensar em uma educação escolar que não trate a justiça social ape-
nas como um conceito abstrato, os que com ela estão envolvidos devem olhar para
a sua realidade com seriedade e inquietação, promovendo a criticidade e buscando
diminuir a distância entre racionalidade, sensibilidade e humanidade. É necessá-
rio investir na alteridade e não apenas na moralidade.
Para que uma sociedade faça valer a justiça social, precisa-se promover a for-
mação de cidadãos efetivos. O indivíduo formado seria aquele que consegue, de
maneira consciente, enxergar-se como sujeito da realidade na qual se encontra,
comportando-se como interventor dela, conhecedor da sua capacidade e relevância
na elaboração e na reelaboração da sociedade e da educação, promovendo uma
convivência civilizada e respeitando as diversidades, consciente das desigualdades
e injustiças sociais que são inerentes ao sistema capitalista.
Uma sociedade que não se articula para refletir sobre suas reais condições de
educação está fadada a promover a barbárie, enquanto o que precisamos é de mais
civilização.
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Eldon Henrique Mühl, Elisa Mainardi
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
*
Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas, com estágio pós-doutoral no Instituto de Educação
da Universidade do Minho, Braga, Portugal. Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
de Passo Fundo. Brasil. ORCID: 0000-0002-8025-1680. E-mail: eldon@upf.br
**
Doutora em Ensino de Ciências pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Professora
da Faculdade de Educação da Universidade de Passo Fundo. Brasil. ORCID: 000-0002-3968-4839. E-mail: emainardi@
upf.br
Recebido em 12/05/2019 – Aprovado em 01/07/2019
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v26i3.9442
Educação, justiça social e direitos humanos: desaos da educação escolar
Education, social justice and human rights: challenges of school education
Educación, justicia social y derechos humanos: desaos de la educación escolar
Eldon Henrique Mühl
*
Elisa Mainardi
**
Resumo
A educação tem sido desaada a promover a justiça social e a cidadania, o que requer não somente o domínio
de técnicas ou de conceitos pedagógicos, mas também um repertório de saberes que permita desenvolver uma
educação justa e uma prática relacional de reconhecimento mútuo. O questionamento orientador deste texto
é o de explicitar a necessidade da educação em direitos humanos como exigência imprescindível para a reali-
zação da justiça social. Trata-se de compreender, especialmente, a realidade de injustiça e de violação de direi-
tos fundamentais promovida pela sociedade e pela própria escola. Sustentado em Rawls, Nussbaum, Cortina e
em alguns documentos relacionados aos direitos humanos e à educação em direitos humanos, o texto propõe
como tarefa fundamental da educação escolar o desenvolvimento de práticas de compreensão e realização dos
direitos humanos como condição para obtenção da justiça e da paz.
Palavras-chave: Direitos humanos. Educação. Escola. Justiça social.
Abstract
Education has been challenged to promote social justice and citizenship, which requires not only the mastery
of concepts or pedagogical techniques, but a repertoire of knowledges that allow us to develop a fair education
and a relationship practice of mutual recognition. The guiding question of this article is to make explicit the
need for human rights education as an essential requirement for social justice. It is a matter of understanding,
especially, the reality of injustice and violation of fundamental rights promoted by society and by the school
itself. Based on Rawls, Nussbaum, Cortina, and on some documents related to human rights and human rights
education, the article proposes the development of practices for the understanding and achievement of human
rights as a condition for obtaining justice and peace.
Keywords: Human rights. Education. School. Social justice.
Educação, justiça social e direitos humanos: desaos da educação escolar
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Resumen
La educación ha sido cuestionada a promover la justicia y la ciudadanía social, que requiere no solo el dominio
de conceptos o técnicas pedagógicas, sino un repertorio de conocimientos que nos permite desarrollar una
educación justa y la práctica de relaciones de reconocimiento mutuo. La pregunta guía de este texto es hacer
explícita la necesidad de la educación en derechos humanos como un requisito esencial para la realización de
la justicia social. Se trata de entender, especialmente, la realidad de la injusticia y la violación de los derechos
fundamentales promovidos por la sociedad y por la propia escuela. Apoyado en Rawls, Nussbaum, Cortina y en
algunos documentos relacionados con los derechos humanos y la educación en derechos humanos, el texto
propone el desarrollo de prácticas para la comprensión y la realización de los derechos humanos como condici-
ón para lograr la justicia y la paz.
Palabras clave: Derechos humanos. Educación. Escuela. Justicia social.
Introdução
A incerteza que caracteriza o contexto atual está relacionada ao futuro duvidoso que o
planeta tem pela frente se as injustiças persistirem e nós continuarmos a ver grandes
distâncias na educação e na renda entre ricos e pobres em toda a sociedade (ZEICHNER,
2003, p. 11).
A realização da justiça social é uma das principais finalidades da formação
humana e uma das tarefas dos educadores em sua ação cotidiana. Com o surgi-
mento das sociedades democráticas, a transformação da educação em uma prática
social tornou-se exigência inalienável da formação a ser desenvolvida na escola, a
qual cada vez mais está sendo chamada a promover a integração social pelo desen-
volvimento de uma cultura centrada na justiça social. De modo geral, tal exigên-
cia encontra-se articulada com as proposições da educação em direitos humanos,
considerando que são altos os índices de práticas sociais e de ações do Estado que
ferem os direitos básicos das pessoas e impedem o surgimento de uma sociedade
justa e de uma cultura sustentada nos direitos humanos.
Tal tarefa, no entanto, encontra muitas limitações, e o desenvolvimento de
uma educação justa e sustentadora dos direitos humanos poucas vezes é efetiva-
mente assumido pelas escolas. Ao contrário, não são raras as situações em que as
ações dos professores e dos demais integrantes da comunidade escolar têm se apre-
sentado como negação da justiça social e da vivência dos direitos humanos. Soma-se
a isso o fato de que muitos cursos de formação de professores das diferentes áreas
atribuem pouca importância à educação em direitos humanos e consideram que tal
tarefa não cabe às escolas. A ausência de conhecimentos e a falta de compreensão
sobre a importância de práticas formativas com tal finalidade não revelam apenas
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o grau de indiferença acerca do papel social da educação, como também expõem a
visão instrumental e técnica da formação oferecida pelas escolas.
Analisar as razões desta indiferença e avaliar as consequências da ausência
da formação para a justiça social pela educação em direitos humanos são os objeti-
vos deste artigo. Afinal, justiça social e educação são inseparáveis, uma vez que ou
a educação possibilita a justiça social, ou, então, deixa de ser educação.
O texto apresenta, inicialmente, um breve esclarecimento sobre a relação en-
tre justiça social e direitos humanos, tendo como principais interlocutores Rawls,
Nussbaum e Cortina. Na sequência, realiza uma análise da educação em direitos
humanos e o papel da escola segundo as principais diretrizes da Organização das
Nações Unidas (ONU) e da legislação brasileira sobre o tema. Na parte final, apon-
ta alguns indicativos teóricos e pedagógicos que podem contribuir para o desenvol-
vimento da justiça social pela educação em direitos humanos.
Justiça social, direitos humanos e educação: em busca de alguns referenciais
A relação entre educação e justiça social é tema controverso e analisado em
diferentes perspectivas. O que se pode considerar como compreensão inicial desta
relação é o fato de que os direitos humanos fazem parte do rol de referências da jus
-
tiça social, ao lado de temáticas como do bem comum, do multiculturalismo, da diver-
sidade, da liberdade, da igualdade, da equidade, do reconhecimento, da dignidade,
dentre outras. De modo mais específico, a educação é um dos principais mecanismos
das sociedades e dos estados democráticos para a realização da justiça social.
Nas ciências sociais e nas humanidades, existe uma vastidão de trabalhos
conceituais, analíticos e empíricos que têm tratado da relação justiça social e edu-
cação. Não é possível expô-los e, muito menos, examiná-los neste artigo. Vai-se ape-
nas selecionar alguns recortes de referenciais que ajudarão a demarcar algumas
concepções e alguns argumentos básicos da análise que se vai desenvolver.
Inicia-se com a concepção de justiça social em Rawls, destacando dois princí-
pios que o autor considera fundamentais para o desenvolvimento de uma sociedade
justa: a liberdade e a igualdade ou equidade
1
. A análise segue com a contribuição
de Nussbaum, explorando suas reflexões sobre as “humanidades” e o papel dos di-
reitos humanos para o desenvolvimento de uma educação democrática. A reflexão
se completa com as ideias de Cortina, que, sustentada em Habermas, defende os
direitos humanos e demais direitos como condição para a formação da sociedade
democrática e o estabelecimento da justiça social. A autora alerta, no entanto, que
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qualquer direito só será legítimo se vier acompanhado de uma justificação racio-
nal produzida comunicativamente. Os direitos só terão validade se decorrerem de
uma aliança entre os indivíduos em razão de um reconhecimento mútuo quanto a
direitos e deveres.
John Rawls, em seu livro Teoria da justiça (2009), oferece um modo de pensar
a justiça social que ainda se acredita ser útil. Sua preocupação é de desenvolver
uma justiça distributiva em oposição ao utilitarismo em franca expansão no mundo
neoliberal moderno. Rawls concebe a sociedade como um empreendimento coopera-
tivo, um contrato social com vantagens mútuas. Os objetivos fundamentais de tal
contrato são justificar e assegurar aos indivíduos os benefícios que tornam a vida
em sociedade, sob a tutela do Estado, melhor do que qualquer outra forma de vida.
Por isso, a justiça deve ser a primeira virtude das instituições sociais. Um contrato
justo implica assegurar um apropriado equilíbrio entre a diversidade de pretensões
e a correspondente distribuição de oportunidades e de recursos. Para tanto, Rawls
aponta dois princípios fundamentais que devem orientar a justiça social:
Primeiro: cada pessoa tem o mesmo direito irrevogável a um esquema plenamente ade-
quado de liberdades iguais que seja compatível com o mesmo esquema de liberdades para
todos; e, segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer duas condições:
primeiro, devem estar vinculadas a cargos e posições acessíveis a todos em condições de
igualdade equitativa de oportunidades; e, em segundo lugar, têm de beneficiar ao máximo
os membros menos favorecidos da sociedade (o princípio da diferença) (2003, p. 60).
Trata-se, portanto, de desenvolver uma relação justa entre liberdade e igual-
dade equitativa, com a finalidade da regulação dos conflitos surgidos entre os
membros da sociedade.
A equidade representa para Rawls um retorno à tradição contratualista de
justiça, já não baseada na concepção de um estado de natureza, mas em uma con-
cepção original da sociedade como um experimento mental que possibilita que a
estrutura básica dela passe a ser pensada como uma empreitada cooperativa de
obtenção de vantagens mútuas, com a administração entre o interesse pessoal e as
necessidades sociais.
A argumentação de Rawls é longa e detalhada, e a conclusão mais relevante
para este propósito refere-se ao papel fundamental da justiça de promover a dis-
tribuição dos direitos e deveres fundamentais de cada indivíduo em vista de uma
convivência solidária e ética. Liberdade e equidade são princípios que devem se so-
brepor a todo e qualquer direito ou dever. Toda a lei que não atende esses princípios
é, portanto, inconstitucional.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
A equidade significa a adaptação da norma geral a situações específicas, uma
vez que a aplicação de uma norma genérica que não leva em consideração as situa
-
ções específicas de diferentes indivíduos e diferentes grupos pode produzir a injusti-
ça e impedir a realização dos direitos. Rawls considera a equidade como uma prática
indispensável para se chegar aos ideais de justiça e de cidadania plena, capazes de
garantir o gozo de uma situação de igual bem-estar para todos os cidadãos
2
.
A tese do pensador norte-americano é que a desigualdade de distribuição só
é justificável em caso de beneficiar aqueles que têm dificuldades de acesso aos
meios necessários para uma vida digna e justa. São casos como, por exemplo, dos
deficientes ou dos grupos sociais vulneráveis, que, por não apresentarem condições
de igualdade para o atendimento das exigências de participação, precisam receber
algum apoio prévio ou complementar. Afirma Rawls:
A distribuição não é justa nem injusta; nem é injusto que se nasça em determinada posição
social. Esses são meros fatos naturais. Justo ou injusto é o modo como as instituições lidam
com esses fatos [...]. Os dois princípios são um modo equitativo de enfrentar a arbitrarieda-
de da sorte; e, por mais imperfeitas que possam ser em outros aspectos, as instituições que
atendem a esses princípios são justas (2009, §17, p. 122).
Como se pode perceber, suas análises levam em consideração as intuições
mais elementares da justiça para governar e guiar as principais instâncias sociais,
a fim de que as desigualdades sociais sejam sempre atenuadas. Ainda que não tra-
te especificamente da relação entre justiça e educação, ao afirmar que justiça tem
relação com um apropriado equilíbrio entre pretensões rivais e a justa distribuição
de recursos e de oportunidades, ele inclui a educação como um desses recursos.
Assim, a educação para ser justa precisa decorrer da intersecção entre liberdade e
equidade. Ou seja, as práticas da liberdade e de busca da equidade são exigência
de uma educação justa e, portanto, de uma escola justa.
A concepção de Rawls tem recebido muitas críticas
3
, mas continua tendo um
grande impacto nas ordens cultural, ideológica e social da atualidade, o que faz
com que ela siga inspirando políticas democráticas mais igualitárias de redistribui-
ção. A tentativa de conjugar liberdade, igualdade e equidade parece ser o grande
mérito de Rawls, pois é dessa conjugação que ele tenta responder a uma das gran-
des perguntas da atualidade, qual seja, o que é uma sociedade justa?
Esta preocupação de Rawls tem sido ampliada com contribuições importantes
de outros intelectuais, ainda que com algumas diferenças analíticas importantes.
Entre essas contribuições, destacam-se as reflexões da pensadora norte-americana
Martha Nussbaum, que se ocupa com a temática em diversas obras, mas, de modo
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
especial, nos textos Educação e justiça social (2014) e Las fronteras de la justicia
(2012a). Em suas investigações, ela vem revelando uma crescente atenção à aná-
lise das políticas públicas para a educação escolar e à relação dessas com a justiça
social e a formação da cidadania.
Uma das principais teses de Nussbaum é que uma teoria de justiça social deve
levar em conta noções morais, especialmente o valor da dignidade humana. Para
tanto, justiça e direitos humanos são inseparáveis, uma vez que somente existe
justiça se os direitos humanos forem preservados e vivenciados. No entanto, em
vez de se socorrer do termo direitos humanos, a autora utiliza o termo capacidades.
É um conceito que ela retira de Amartya Sen, o qual entende que o desenvolvimen-
to da liberdade e da justiça social deve ser baseado na expansão das capacidades
humanas
4
. Tal concepção não exclui os direitos humanos, pelo contrário, como ela
mesma afirma: “El enfoque de las capacidades […] en este sentido, se parece al
enfoque de los derechos humanos internacionales; es más, veo el enfoque de las
capacidades como una especificación del enfoque de los derechos humanos” (NUSS-
BAUM, 2012a, p. 90).
A autora considera que as capacidades básicas inerentes a cada ser huma-
no precisam ser realizadas como condição para o desenvolvimento harmonioso do
próprio ser humano e da sociedade
5
. Ressalta, de modo especial, a importância do
direito humano à educação como pressuposto fundamental dessa formação. Para
ela, será somente pela educação que se poderá formar uma cidadania em que todos
se sintam vinculados aos demais por traços de reconhecimento e de mútua preocu-
pação. Escreve Nussbaum (2014, p. 75):
Nada pode ser mais determinante para a democracia do que a educação dos seus cidadãos.
É durante os anos decisivos ao longo dos quais as crianças e os jovens estudantes frequen-
tam o ensino básico e secundário que lhes vão sendo incutidos os hábitos de pensamento
que os acompanharão até ao fim da sua vida. Poderão aprender a fazer perguntas ou não; a
não questionar tudo aquilo que lhes é dito ou a levar a cabo uma investigação pessoal mais
aprofundada; a imaginar a situação em que se encontram as pessoas que não são iguais
a eles ou a considerar que tais pessoas representam uma ameaça para o sucesso dos seus
projetos pessoais; a encararem-se a si próprios como fazendo parte de um grupo homogéneo
ou a imaginar que o mundo pertence a muitas pessoas e grupos e que, nesse mundo, todos
eles merecem respeito e compreensão.
A educação só atingirá sua principal finalidade se for cosmopolita, democrá-
tica e justa. Para tanto, é preciso assegurar a todos, inicialmente, o acesso à edu-
cação, levando em consideração a diversidade cultural e o desenvolvimento das
capacidades de cada indivíduo. Nas palavras da pensadora, “a educação é a chave
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
que permite aceder a todas as capacidades humanas. No entanto, ela é também
e apesar disso, um dos recursos do mundo que se encontra mais desigualmente
distribuído” (NUSSBAUM, 2014, p. 123). Por isso, a luta pelo acesso à educação
deve continuar sendo um dos principais desafios dos direitos humanos. No entanto,
o acesso em si não é suficiente, pois é preciso assegurar, também, que a escola seja
um tempo e um lugar de realização e vivência dos direitos humanos.
A filósofa indica e justifica uma lista de direitos que precisam ser garantidos a
todos os cidadãos. São direitos fundamentais que asseguram a dignidade humana
e possibilitam que a vida de cada um seja vivida plenamente. Destacam-se, entre
esses direitos: alimentação adequada, educação voltada ao desenvolvimento das ca
-
pacidades, proteção da integridade física, liberdade religiosa e de expressão, vida
integra e plena, acesso à educação de qualidade, direito à moradia, direito à saúde,
etc. São direitos comuns a todos que produzem a obrigação coletiva de suprir tais
direitos. Para que isso aconteça, não é o bastante conhecer e compreender esses di
-
reitos ou capacidades, mas desenvolver formas práticas de realizá-los (2014, p. 110).
Adela Cortina é outra referência importante para a análise do papel da educa
-
ção e dos direitos humanos como exigência da formação democrática e solidária da
atual sociedade. A filósofa espanhola, sempre sustentando suas análises na teoria
crítica, especialmente em Jürgen Habermas, destaca a necessidade de se considerar
a questão do direito e dos direitos humanos não na dimensão sistêmica e com base
no contrato formal, mas na aliança que se deve desenvolver pela interação comuni
-
cativa e pelo reconhecimento recíproco. Na sua obra Alianza y Contrato (2001), ana-
lisa o reducionismo que o direito e a justiça social sofrem com a limitação imposta
pela formalização sistêmica. Aliança e contrato constituem duas esferas distintas
de constituição da sociedade atual e são imprescindíveis e irrenunciáveis para a
formação dos vínculos humanos. Enquanto que a aliança indica uma obrigação mo
-
ral decorrente do reconhecimento recíproco próprio da interação comunicativa que
ocorre no mundo da vida, o contrato representa o aspecto formal do compromisso
moral, ou seja, o acordo em torno dos interesses particulares, grupais ou institucio
-
nais próprios do mundo sistêmico. Utilizando-se da crítica habermasiana, a autora
destaca a colonização que a formalização do direito como mero contrato produz so
-
bre as práticas coletivas de justiça e de reconhecimento mútuo. O contrato social
cria o Estado, não a sociedade. Porém, em decorrência da necessidade do controle e
da formação de indivíduos adequados ao mercado e ao poder, o contrato progressiva
-
mente vai invadindo o mundo da vida, e substituindo a racionalidade comunicativa
pela racionalidade sistêmica. Neste processo, no entanto, a dominação nunca se
Educação, justiça social e direitos humanos: desaos da educação escolar
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torna plena, e, por isso, o direito (a justiça) mantém uma dimensão política, susten-
tado no agir comunicativo. Em outros termos, o discurso do contrato e da constitu-
cionalidade continua a pressupor “o relato da aliança e das obrigações oriundas do
reconhecimento recíproco” (CORTINA, 2001, p. 26, tradução nossa).
Na sequência, a autora destaca o papel da aliança como uma rica fonte de re-
sistência e de luta pela justiça social, pois, mesmo diante do crescimento da pressão
sistêmica, ela tem permanecido atuante, ressurgindo permanentemente das bases
de formação da sociedade civil, das comunidades, das famílias e das associações
voluntárias. Como fonte de constituição social, ela impede que a organização social
se configure tão somente pela racionalidade instrumental e sistêmica e continue a
funcionar como racionalidade comunicativa, da qual decorrem os laços que unem
os indivíduos em razão da tradição histórica e dos valores do mundo da vida de
cada um. A aliança mantém ativo um conteúdo moral que é capaz de assegurar
laços de solidariedade e de justiça entre os seres humanos, independentemente das
formas de vida e das diferenças culturais, ideológicas, políticas, étnicas, religiosas,
de nacionalidade, de opção sexual, etc. Ela surge do reconhecimento mútuo e do
diálogo relacional sustentado na compaixão, entendida não como condescendência
ou caridade em decorrência de uma relação assimétrica, mas do compartilhar de
lutas e desafios, esperanças e alegrias de quem busca viver uma vida feliz e justa
(CORTINA, 2001, p. 19-26).
Cortina conclui ponderando que as diferentes concepções sobre justiça e direi-
tos humanos são marcadas por conquistas que só foram possíveis graças às lutas
sustentadas por homens e mulheres que tiveram a coragem de defender os seus
direitos e os direitos de outros. Desde a antiguidade, passando pela idade média
e pela modernidade, encontram-se iniciativas de lutas em prol da justiça social
e dos direitos humanos. Os avanços neste campo não decorrem, portanto, de um
gesto solidário de algum governante ou de concessões generosas de determinados
segmentos sociais. Justiça social e direitos humanos são resultantes de iniciativas
de luta de homens e mulheres contra a discriminação, a exclusão, a violência. As
discussões teóricas expõem e reforçam essas iniciativas. A luta contra a discrimi-
nação dos estrangeiros, a luta contra o trabalho servil, a luta contra os governos
despóticos, a luta contra a discriminação religiosa, a luta pela democracia e pelo
direito à liberdade são algumas manifestações que deram origem ao que hoje cons-
tituem a justiça social e os direitos humanos.
A defesa dos direitos de todos se traduz, portanto, em uma exigência de desenvol-
vimento de novas dimensões da justiça e de reivindicação cada vez mais visível e efe-
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tiva para a manutenção e o avanço das conquistas sociais e políticas da humanidade.
Cortina alerta, porém, que isso não é suficiente, pois não se trata somente de defender
a liberdade dos indivíduos, atender seus interesses e suas necessidades, de realizar
pactos na luta pela autonomia e contra a dominação; é preciso participar e assegurar
laços de solidariedade e de justiça entre todos. “O imprescindível [escreve a autora] é
sua justificação racional e sua razão suficiente, preocupada em defender os direitos
humanos ou as liberdades básicas” (CORTINA, 2001, p. 46, tradução nossa). Logo
adiante, complementa: “o contrato não é auto-suficiente, mas necessita apoiar-se no
reconhecimento recíproco, fundamentando a aliança” (2001, p. 47, tradução nossa).
A pensadora espanhola complementa suas reflexões acrescentando conside-
rações sobre duas outras exigências dos direitos humanos: a universalidade e o
cosmopolitismo. Os direitos humanos não são propriedades de alguns seres huma-
nos e, portanto, independem de um pacto ou de um contrato. Eles apresentam um
caráter universal, uma vez que são reivindicáveis por qualquer pessoa, indepen-
dentemente de país, região, religião, cultura, modo de vida, etc.
Em outra obra, denominada Cidadãos do mundo (2005), Cortina destaca que
a natureza cosmopolita dos direitos humanos indica a “força vinculante” ao re-
conhecimento recíproco entre todos os interlocutores que assumem um contrato.
Segundo Cortina, “as comunidades políticas, embora, em princípio, estejam obri-
gadas a proteger seus cidadãos, estão também, necessariamente, abertas a todos
os seres humanos, ou seja, tem necessariamente uma vocação cosmopolita” (2001,
p. 49, tradução nossa). Ou seja, os pressupostos universais e o cosmopolitismo,
inerentes aos direitos humanos, levam as comunidades a transcender os contextos
locais e os relativismos moral e cultural em que se encontram. O desenvolvimento
desta condição cosmopolita é que torna os indivíduos cidadãos do mundo, justos
e solidários. Nos termos de Cortina, “para ser hoje um bom cidadão de qualquer
comunidade política é preciso satisfazer a exigência ética de ter por referentes os
cidadãos do mundo” (2005, p. 254-255). E conclui: “aprender a conviver não basta:
é preciso aprender a conviver com justiça” (2005, p. 254).
Direitos humanos e justiça social: desaos e iniciativas no plano mundial
O documento de maior abrangência mundial sobre direitos humanos continua
sendo a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), promulgada em 1948,
pela ONU. Concebida como uma carta de recomendações destinada a evitar tragé
-
dias semelhantes às da Segunda Guerra Mundial, a declaração tornou-se, ao longo
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
dos anos, um dos documentos mais conhecidos e influentes na sustentação da defesa
de regimes democráticos e na luta contra práticas ditatoriais e discriminatórias de
toda a ordem. Mormente tem servido como um importante instrumento de defesa da
dignidade humana, da liberdade, da igualdade, da justiça, da luta contra a pobreza
e a exclusão, da defesa dos direitos das minorias e das populações vulneráveis, da
luta das mulheres, do combate às diferentes formas de discriminação e violência.
Cabe ressaltar, entrementes, que, muito além do caráter protetivo que a decla-
ração pressupõe dos pontos de vista jurídico e político, ela foi concebida e sempre
teve como proposição mais importante a dimensão pedagógica, no sentido de pro-
mover uma educação em e pelos direitos humanos. A percepção dos elaboradores
da declaração foi de que os horrores da Segunda Guerra Mundial tiveram como
principal causalidade a educação nazista e fascista, cuja natureza havia alimenta-
do o ódio, a intolerância, o preconceito e a discriminação e tornado banal o uso da
violência contra judeus, comunistas, homossexuais, deficientes, ciganos e outros
tipos de indivíduos não considerados suficientemente humanos ou dignos dos reco-
nhecimentos social e político.
A superação da educação fascista e nazista se apresentou, portanto, como
uma das principais preocupações dos elaboradores do documento da declaração
e determinou a introdução de um artigo específico sobre a natureza e o papel da
educação relativamente aos direitos humanos. Tal perspectiva pode ser percebida
pelo que estabelece o Art. nº 26, da DUDH, que afirma não somente o direito
à educação como um direito universal, mas também aponta como exigências da
educação contemporânea o pleno desenvolvimento da personalidade humana e o
fortalecimento do respeito aos direitos do ser humano e às liberdades fundamen
-
tais. Já o Art. nº 30 da mesma declaração afirma explicitamente que o objetivo da
educação deve ser o fortalecimento dos direitos humanos. Ademais, propõe em seu
preâmbulo uma educação promotora da compreensão, da tolerância e da amizade
entre todas as nações e a todos os grupos raciais e religiosos. Por fim, incentiva o
desenvolvimento de atividades que contribuam para a manutenção da paz mun
-
dial, convocando todas as nações que a tenham sempre em mente e se esforcem
“através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liber
-
dades” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948, preâmbulo).
Depois da declaração de 1948, podem-se identificar diferentes iniciativas que
vão dar sustentação à luta pelo reconhecimento internacional dos direitos huma-
nos e sua realização cotidiana: a luta pelo fim dos domínios imperialistas, a luta
pela erradicação total da escravidão, a luta contra a barbárie de regimes totalitá-
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rios ou autoritários, a luta contra a discriminação étnica, a luta contra a exploração
sexual, a luta pela regulamentação das relações de trabalho, a luta pelos direitos
das mulheres, a luta pelos direitos das crianças, dos adolescentes e dos idosos, a
luta contra toda a forma de violência, a luta pelos direitos étnico-raciais e outras
lutas. Todas essas lutas decorreram de documentos que explicitam a política desen-
volvida pela ONU e por outras instituições e movimentos evolvidos com a questão.
Destacam-se nesta relação os documentos: Pacto Internacional sobre Direitos Civis
e Políticos (1966), que reconheceu o direito da autodeterminação das nações e das
liberdades individuais e garantias procedimentais de acesso à justiça e à partici-
pação política, bem como da liberdade de expressão e da liberdade de buscar, rece-
ber e compartilhar informações de qualquer natureza; Pacto Internacional sobre
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1979), que estabeleceu que a educação
deve ser direcionada para o pleno desenvolvimento da personalidade humana e
para o senso de dignidade da cada pessoa; Convenção sobre os Direitos da Criança
(1989), que proclamou que a infância tem direito a cuidados e assistência espe-
ciais, incluindo a educação; Conferência Mundial das Nações Unidas sobre Direi-
tos Humanos (1993), que responsabilizou os Estados pela criação de programa de
educação formal e não formal sobre direitos humanos; Declaração e Programa para
Ação da Década da Educação em Direitos Humanos (1995-2005), que propôs como
principais desafios a educação para a paz, a solidariedade entre países e povos e
a realização das liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo,
língua, cultura, religião, etc.
Nestes últimos anos, a luta pelos direitos humanos e pela educação em di-
reitos humanos vem se defrontando com os problemas decorrentes do avanço do
neoliberalismo e da globalização, com suas consequências positivas e negativas.
São desafios que, além de cada vez mais complexos e de difícil enfrentamento,
colocam em xeque as diversas conquistas e avanços obtidos desde o surgimento
da declaração. Vive-se num tempo e num espaço marcados por grandes, rápidas
e avançadas transformações nos campos científico, tecnológico e do trabalho que,
por mais paradoxal que pareça, não conseguem reverter as situações das grandes
desigualdades sociais que constituem violação dos direitos mais elementares dos
seres humanos, como contribuem para o aumento da injustiça e a perda de muitos
direitos conquistados historicamente. Em consequência, diariamente são contabi-
lizados inúmeros casos de violação dos direitos humanos: desemprego ou subem-
prego, pobreza, fome, falta de moradia, falta de assistência à saúde, violências e
intolerância de toda ordem (ideológica, étnica, racial, sexual, religiosa, social, etc.).
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Ainda existem muitos homens, mulheres e crianças que continuam não podendo
exercer seu direito fundamental do direito à vida. Os genocídios de diferentes ma-
tizes continuam sendo fenômenos normais em nossa sociedade contemporânea.
Mesmo diante deste quadro, o tema da justiça e dos direitos humanos rara-
mente faz parte da pauta das escolas e dos cursos de formação docente. Os debates
e as análises pontuais que eventualmente acontecem são, em geral, pouco provoca-
tivos ou até preconceituosos, pois, muitas vezes, os próprios direitos humanos são
apontados como causadores da violência. Além disso, os fatos históricos da violação
dos direitos humanos, quando tratados em disciplinas, são abordados, mormente,
como “fatos históricos passados”, sem que se reflita sobre seus atores e as circuns-
tâncias de sua realização e os riscos atuais que tais fatos representam.
A história da humanidade revela que foram variadas as formas de o homem
compreender e produzir sua existência e, consequentemente, variadas foram as
relações sociais que se estabeleceram. As formas de vida que surgem no presente
dependem da compreensão do passado e da interpretação dos acontecimentos que
marcaram a história de cada indivíduo e de cada sociedade. Isso faz surgir a neces-
sidade da reconstrução da memória dos fatos e dos processos de cada povo, de cada
cultura, de cada grupo e de cada indivíduo. É preciso reconstruir a memória para
não esquecer as razões que têm causado a violência, a discriminação e o desrespei-
to à vida dos seres humanos. Essa é uma das principais tarefas da educação para
a cidadania e a justiça social.
Os acontecimentos passados servem de experiências para o presente e de base
para a construção do futuro. Por isso, a reconstrução da consciência histórica da
violação dos direitos humanos possibilita evitar malogros futuros e reinventar
ações e intenções de modo consciente, tendo como cenário o contexto real e concreto
do hoje. Conforme destaca Bittar (2007, p. 321), “a consciência histórica é aquela
que aponta que o passado retorna, e que, sem consciência do passado, se torna im-
possível agir no presente com vistas à mudança no futuro”. Nenhuma justiça social
se torna possível sem a reconstrução da memória da violação dos direitos humanos
e sem a formação de uma sociedade capaz de restabelecer a dignidade humana.
Essa reconstrução histórica e crítica dos acontecimentos de violação e da luta
pela realização dos direitos humanos só será eficaz, se ela levar a estabelecer ini-
ciativas atuais que possibilitem uma formação centrada na realização de tais di-
reitos. Para que a educação em direitos humanos possa ocorrer, não basta a escola
acenar para dados, datas e fatos que marcaram a trajetória da conquista dos di-
reitos humanos. É preciso criar uma cultura dos direitos humanos na escola pelos
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
desenvolvimentos da consciência histórica e do comprometimento da comunidade
escolar com iniciativas que promovam sua realização efetiva no contexto em que
ela se encontra inserida.
Justiça social e educação em direitos humanos no Brasil: o papel da educação
escolar
O Brasil acolheu tardiamente a DUDH, pois foi somente depois do fim da di-
tadura, em 1985, que algumas iniciativas voltadas ao atendimento dos princípios
da declaração começam a ocorrer. Neste processo, destacam-se a Constituição de
1988, os Programas Nacionais de Direitos Humanos (BRASIL, 1996, 2002, 2009), o
Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (2007) e as Diretrizes Nacionais
para a Educação em Direitos Humanos (BRASIL, 2012). Tais documentos expõem
o compromisso do país e de seus governos com a promoção, a defesa e a realiza-
ção dos direitos humanos. No campo especificamente educacional, as proposições
principais podem ser resumidas em três dimensões: 1) no desenvolvimento de uma
educação de vivência do valor da igualdade em dignidade e direitos de todos os
envolvidos e na formação de sentimentos e atitudes de cooperação e solidariedade;
2) na educação para a tolerância como um valor ativo vinculado à solidariedade, e
não apenas como mera aceitação do outro; 3) no desenvolvimento da capacidade de
cada um perceber as consequências pessoais e sociais de cada escolha, desenvol-
vendo o senso de responsabilidade.
Mesmo diante desses avanços, já distante 40 anos dos denominados “anos
de chumbo” da ditadura militar e há 22 anos da Constituição federal de 1988,
continuam-se presenciando diariamente situações de violações graves dos mais
elementares direitos dos cidadãos. Se, de um lado, comemoram-se a conquista da
liberdade de expressão, a possibilidade de livre organização dos grupos e movimen-
tos sociais, a liberdade de ir e vir, a retomada da escolha democrática de nossos
dirigentes pela eleição direta e a alternância do poder, do outro lado, convive-se
com os extermínios de líderes sindicais e de organizações sociais legítimas, com o
trabalho escravo e o trabalho infantil, com a exploração da prostituição, com mui-
tos casos de violência contra a mulher, a criança, o indígena, o pobre, com situações
de abuso de poder nas prisões, com torturas de toda ordem, com homofobias, com
a demora ou a ausência do direito do acesso à justiça, com o crime organizado que
se propaga e se mantém de forma endêmica nas cidades e no campo, com a conti-
Educação, justiça social e direitos humanos: desaos da educação escolar
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
nuidade da ação de milícias, muitas das quais surgiram e se fortaleceram durante
o regime militar. Embora vivendo em um estado de direito democrático, no qual
a ideia de participação é importante, a democracia ainda permanece, em grande
parte, no plano formal, visto que, por si só, não assegura que os direitos sejam,
de fato, uma realidade, e a participação, um direito de todos. Ao contrário do que
muitos esperam e desejam, as violações dos direitos humanos continuam presentes
no nosso cotidiano, em muitos momentos, praticadas pelo próprio Estado
6
. Pior,
constatou-se nos últimos anos um forte movimento de retorno a visões que procu-
ram destituir a legitimidade dos direitos humanos e das conquistas democráticas
dessas lutas.
Candau (2003) ressalta que a incipiência na educação e nos direitos humanos
no Brasil se deve à sua curta existência. Ela só surge no período pós-ditadura
militar, no início dos anos de 1980, com o processo de redemocratização do país,
impulsionado pelo desejo e pela necessidade da mobilização e da afirmação da so-
cial civil que procura, neste momento, assegurar a construção de um Estado e um
sujeito de direitos. Em 1982, surge o Movimento Nacional dos Direitos Humanos,
que, entre suas proposições, coloca a educação, especialmente a popular, como um
espaço importante da luta pelos direitos humanos. O final da década de 1980 e o
início dos anos 1990 são marcados por duas conquistas fundamentais: a Constitui-
ção brasileira, de 1988, e o Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990.
A década de 1990 é marcada por outros movimentos importantes, valendo
destacar: o 1º Congresso Brasileiro de Educação em Direitos Humanos e Cidada-
nia, em 1997; a elaboração de documentos sistematizadores de conceitos, de funda-
mentação histórica, de construção de referenciais teóricos e metodológicos sobre a
educação e os direitos humanos; e a elaboração do Programa Nacional de Direitos
Humanos, que, entre outras propostas, aponta para a necessidade de criar e forta-
lecer na escola o respeito aos direitos humanos. A criação do Comitê Nacional de
Educação em Direitos Humanos vai consolidar muitas iniciativas e propor novos
planos e estratégias de ação.
Em 2003, teve início a elaboração do Plano Nacional de Educação em Direitos
Humanos (PNEDH), publicado em 2007. O PNEDH “está apoiado em documentos
internacionais e nacionais, demarcando a inserção do Estado brasileiro na história
da afirmação dos direitos humanos e na Década da Educação em Direitos Huma-
nos” (BRASIL, 2007, p. 24). Ressalta-se que o documento conceitua educação em
direitos humanos “como o processo sistemático e multidimensional que orienta a
formação do sujeito de direitos” (CARBONARI, 2010, p. 84).
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Entre os anos 2008 e 2012, a discussão foi sendo intensificada e fortaleci-
da, tímida e gradativamente, por meio de iniciativas de movimentos sociais, de
organizações não governamentais, de universidades e de instituições de ensino
em geral. Foi pauta de discussão em eventos importantes de educação e pesquisa,
como o ocorrido em 2008, na 31ª Reunião da Associação Nacional de Pós-Graduação
e Pesquisa em Educação, que abordou o tema Constituição Brasileira, Direitos
Humanos e Educação, e, em 2009, no XXIV Simpósio Brasileiro e III Congresso
Interamericano de Políticas e Administração na Educação, que discutiu o tema
Direitos Humanos e Cidadania: desafios para a política e a gestão democrática de
educação. O debate acerca da educação para os direitos humanos foi se destacando
também no cenário das pesquisas educacionais como potencial relevante e signi-
ficativo, produzindo referenciais que fundamentam e propõem ações de educação
em direitos humanos. É possível perceber, neste contexto, por um lado, propostas
pedagógicas que asseguram o respeito à diferença e à dignidade humana. De outro,
porém, podem ser constatadas experiências escolares que materializam situações
de desprezo ou violação dos direitos humanos.
Do ponto de vista especificamente legal, cabe destacar que a Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional, Lei nº 9.394, de 1996, já havia apresentado indica-
dores importantes relativos aos direitos humanos. Da mesma forma, os Parâme-
tros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental propõem os temas trans-
versais na estruturação, na organização e no desenvolvimento curricular, abrindo
espaço para a educação em direitos humanos. No entanto, essas aberturas não se
transformaram em iniciativas efetivas nos sistemas de ensino e nas escolas. Por
isso, o Conselho Nacional de Educação, sob a constante pressão do Comitê Nacio-
nal de Educação em Direitos Humanos, publicou, em 2012, as Diretrizes Nacionais
em Educação em Direitos Humanos.
O documento de 2012 propõe como principal diretriz o desenvolvimento de
[…] concepções e práticas educativas fundadas nos Direitos Humanos e em seus processos
de promoção, proteção, defesa e aplicações na vida cotidiana e cidadã de sujeitos de direitos
e de responsabilidades individuais e coletivas (BRASIL, 2012, Art. 2º).
As diretrizes reforçam a ideia de que, no que se refere aos direitos humanos, a
escola não pode se limitar a incluir informações nos programas das disciplinas ou
nos manuais escolares. Trata-se de não apenas conhecer e compreender conceitos e
elaborar relatórios de atividades pontuais; é preciso também construir processos e
desenvolver ações em defesa e na realização dos direitos humanos. Isso implica co-
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nhecer, vivenciar e comprometer-se com a formação de uma subjetividade solidária
e de uma identidade coletiva que aproxime a todos na luta pela justiça e pela paz.
Hoje já há uma considerável fundamentação do papel da educação na realização
da justiça social e dos direitos humanos. No entanto, nas escolas e na própria socie
-
dade, ainda continua prevalecendo a ideia de que tal temática não cabe no currículo
escolar. Pior, em muitas situações, a escola e seus agentes acabam sendo, por vezes,
os promotores de situações de injustiça e de violação dos direitos humanos. Muitos
acontecimentos registrados no cotidiano escolar confirmam tais práticas: diferentes
formas de bullying, destruição da autoestima, preconceitos de toda ordem, racismo,
homofobia, intolerância religiosa, sexismo, comentários depreciativos, discrimina
-
ções, ameaças e coações, mentiras e boatos, cyberbullying, furtos, isolamento, danos
físicos e morais, desvalorização individual e grupal, entre outros.
Nesse sentido, é oportuno e necessário destacar a escola como lugar funda-
mental na perspectiva de constituir uma cultura em e para os direitos humanos.
Para tanto, é preciso identificar e analisar dificuldades, limitações e resistências
que a escola e seus quadros docente e administrativo vêm apresentando
7
.
Considerações nais
O desenvolvimento da justiça social só se torna possível se a educação e, de
modo especial, a escola desenvolverem uma cultura em e pelos direitos humanos.
Sem a contribuição da escola, dificilmente poder-se-á formar uma sociedade mais
justa e democrática.
Procurou-se esclarecer a relação entre educação em direitos humanos e justiça
social pelas contribuições de Rawls, Nussbaum e Cortina, cujas análises respaldam
a concepção deste estudo da relação vinculante entre as duas instâncias da ação
humana. Em Rawls, destacou-se a importância dos direitos humanos na sustenta-
ção e no desenvolvimento de uma justiça distributiva, cuja realização implica a for-
mação de uma consciência de solidariedade e de bem comum que deve ser iniciada
na educação escolar e estender-se às diferentes instâncias da sociedade; a própria
escola ser um espaço-tempo de realização da justiça distributiva, oferecendo alter-
nativas práticas para superar as diferenças oriundas de um contexto social injus-
to e seletivo. Nussbaum trouxe importante contribuição no sentido de ressaltar a
importância dos direitos humanos na educação, considerando-os um pressuposto
fundamental para a formação humana. A autora pondera que a formação de uma
sociedade mais justa só será possível se houver uma educação mais justa. Nada é
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mais determinante para o desenvolvimento de uma sociedade democrática e igua-
litária do que a educação dos seus cidadãos, uma vez que somente ela permite a
todos aceder às capacidades humanas e aos direitos humanos. Em Cortina, encon-
trou-se uma rica análise sobre a dimensão moral dos direitos humanos e sua in-
trínseca relação com a interação humana e o mundo da vida. Partindo da distinção
entre aliança e contrato, destaca o papel dos direitos humanos como importante
base para a realização de convivências humanas e solidárias. No entanto, para sua
eficácia, a educação em direitos humanos precisa levar em consideração alguns
princípios: 1) os direitos humanos devem decorrer de um dever moral, ou seja, de
uma exigência que se estabelece pelo reconhecimento do outro em sua integridade
e plena dignidade; 2) a realização dos direitos humanos depende da confiança en-
tre os participantes do processo, do reconhecimento da cultura moral de cada um
(background) e do compromisso com a ampliação da justiça e da humanização de
todos; 3) é preciso estabelecer um equilíbrio entre a validade das normas jurídicas
e as valorações que a sociedade pode formalizar tendo como primazia o respeito e o
reconhecimento do outro; 4) o caráter de universalidade dos direitos humanos deve
servir de fundamentação dos diferentes discursos sobre justiça social; 5) direitos le-
gais e direitos humanos não se distinguem em razão de algum pacto, mas em razão
de os direitos humanos serem de todos e de qualquer ser humano; e 6) a obrigação
de proteger os direitos humanos decorre da força vinculante do reconhecimento
recíproco entre todos os interlocutores capazes de assumir contratos. Esses prin-
cípios explicitam a importância da inclusão dos direitos humanos na educação e
na própria escola, pois a formação que podem promover torna-se condição para o
desenvolvimento de uma sociedade justa, solidária e mais feliz.
Esta análise apontou que, tanto a nível mundial, quanto a nível nacional,
as discussões e iniciativas de educação em direitos humanos vêm apresentando
alguns avanços e iniciativas inovadores. Mas muitos desafios persistem. Os avan-
ços indicam para as conquistas de um progressivo reconhecimento de diferentes
esferas e instâncias sociais que já admitem que a solução de muitos problemas
sociais e as perspectivas futuras de uma sociedade melhor dependem de uma edu-
cação orientada pelos princípios da educação em direitos humanos. Para tanto,
uma questão central a ser enfrentada com urgência diz respeito à formação docen-
te, pois os professores precisam se inteirar dos conhecimentos e dos procedimentos
necessários à formação integral dos educandos sob a orientação dos princípios que
fundamentam a educação em direitos humanos. A natureza dessa educação não
pode implicar, apenas, o acúmulo de informações e conhecimentos, exige, também,
Educação, justiça social e direitos humanos: desaos da educação escolar
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o desenvolvimento da capacidade de a educação escolar promover efetivamente a
vivência diária dos direitos humanos e da justiça social.
Entende-se que as lacunas deixadas pelos cursos de formação de professores
no que se refere à educação em direitos humanos e à realização da justiça social
têm contribuído para o distanciamento e a indiferença da escola em referência à
temática. Diante desse cenário escolar que se efetiva, é preciso repensar a esco-
la que se quer e a formação de professores que se necessita. Ficar apático frente
a esta temática é negar o compromisso que a escola tem com a humanização do
homem. Hoje, diante do descalabro da política governamental, tais problemas se
agigantam, por isso, é preciso resistir e lutar por uma educação sustentada nos
direitos humanos e na justiça social. Afinal, os direitos humanos não são exigên-
cias, “porque nós somos humanos, mas porque queremos que a espécie se torne
humana” (BOOTH, 1999, p. 52, tradução nossa). Ora, isso implica a contribuição
da educação, pois a ela compete grande parte do desenvolvimento da humanidade
em cada ser humano.
Nota
1
Rawls utiliza os dois termos como complementares entre si. Na obra Teoria da justiça (2009), os termos
mais presentes são igualdade ou igualdade equitativa, enquanto que, em textos posteriores, como Justiça
como equidade (2003) e El liberalismo político (2006), ele recorre, com mais intensidade, ao termo equida-
de. Isso se deve à tentativa do autor de superar o mero formalismo liberal de igualdade e de estabelecer
a exigência da qualidade equitativa de oportunidades como condição para o desenvolvimento da justiça
social. A respeito, ver Hamel (2015, p. 91-109).
2
O entendimento de Rawls é de que os indivíduos são mobilizados para obter certos tipos de bens que ele
denomina primários, que são indispensáveis para satisfazer um plano de vida boa. O autor identifica dois
tipos desses bens primários: (i) os bens de natureza social, decorrentes das instituições sociais, tais como
riquezas, oportunidades e direitos; e (ii) os bens primários naturais, que são próprios de cada indivíduo,
tais como inteligência, saúde ou talentos (2006, p. 321).
3
As principais críticas a Rawls giram em torno da dificuldade de conciliar a liberdade com a equidade e
a igualdade. Muitos autores consideram sua teoria de justiça idealista, já que a conciliação entre justiça
social e liberdade individual é impossível. Ver, a respeito, Taylor (2000), Nozick (1974), Walzer (2003),
Habermas (1997), entre outros. Para Farias (2019, não paginado), no entanto, “as críticas sobre sua obra
surgem devido, quem sabe, a uma incompreensão metodológica de seu pensamento, não retirando a im-
portância de seu ensinamento como fonte de reflexão frente aos episódios ocorridos atualmente (corrupção,
concentração de poder, má distribuição de renda, fome, discriminação etc.) no mundo tido como ‘moderno’”.
4
Durante a década de 1980, Nussbaum colaborou intensamente com Amartya Sen em projetos de investiga-
ção sobre a temática da educação voltada à humanização e ao desenvolvimento integral dos indivíduos. Os
relatos e reflexões acerca dessa experiência ela apresenta e analisa extensivamente em sua obra El cultivo
de la humanidad (2012b).
5
Nussbaum desenvolve o tema no capítulo “As capacidades como direitos fundamentais: Sen e a justiça
social”, da obra Educação e justiça social (2014, p. 25-70).
6
Dados relativos ao ano de 2017, apresentados pelo Relatório 2019 da Human Rights Watch, indicam que o
Brasil continua sendo um país em que ocorrem inúmeras situações de violação dos direitos humanos, como,
por exemplo, homicídios, quando foram registrados 64.000 casos. Segundo o mesmo relatório, os centros so-
Eldon Henrique Mühl, Elisa Mainardi
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cioeducativos no Brasil abrigavam 24.345 crianças e adolescentes em conflito com a lei. O relatório também
apresenta dados de um estudo de 2018 do Instituto Sou da Paz – organização sem fins lucrativos –, que apon-
ta que 90% das crianças e adolescentes detidos no estado de São Paulo afirmaram que foram maltratados
pela polícia militar durante a prisão, e que 25% disseram que foram agredidos por agentes socioeducativos.
Os problemas de violência contra crianças e adolescentes têm crescido, e, em diversos casos, tais atos são
realizados por pessoas próximas, familiares e, até, professores. Tem crescido também a violência das crianças
e dos adolescentes contra colegas, professores e outros profissionais que atuam nas escolas. Disponível em:
https://www.hrw.org/pt/world-report/2019/country-chapters/326447. Acesso em: 30 mar. 2019.
7
Destaca-se, nesse sentido, a contribuição de Mainardi (2015), que, em sua tese de doutorado, analisa os
limites e desafios da educação em direitos humanos nas escolas. A autora ressalta como principais limi-
tações a ausência de informações e de conhecimentos sobre os direitos humanos, o desconhecimento de
concepções teóricas e práticas da educação em direitos humanos e a negação da necessidade de tratar do
tema diante de outros conteúdos considerados mais importantes e necessários.
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Fabiana Rodrigues de Sousa, Ilca Freitas Nascimento
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Lei de cotas e promoção da justiça social:
percepções de estudantes cotistas de um instituto federal
Law of quotas and promotion of social justice:
perceptions of quota students from a federal institute
Ley de cuotas y promoción de la justicia social:
percepciones de estudiantes beneciarios de un instituto federal
Fabiana Rodrigues de Sousa
*
Ilca Freitas Nascimento
**
Resumo
Este artigo apresenta reexões resultantes de pesquisa de mestrado em Educação que objetivou dialogar com
estudantes cotistas do curso de Engenharia Mecânica, a m de desvelar suas percepções acerca da implemen-
tação da Lei nº 12.711/2012. Para tanto, o percurso metodológico da investigação contemplou: análise docu-
mental referente ao processo de preenchimento de vagas do curso; contato telefônico com discentes para iden-
ticar causas de suas desistências; aplicação de questionário para levantamento de dados socioeconômicos; e
realização de entrevistas. Na percepção dos cotistas, a reserva de vagas garantida pela Lei nº 12.711/2012 pode
ampliar a oportunidade de acesso para estudantes de escolas públicas, com baixa renda, afrodescendentes e
indígenas. No entanto, para que a lei de cotas se congure como promotora de justiça social, é necessário, ainda,
o enfrentamento a alguns desaos, quais sejam: a) não se limitar a aspectos de acesso, mas ampliar medidas
que favoreçam a permanência destes estudantes; b) avaliar o modo como cotistas são recebidos e acolhidos por
seus pares, docentes e funcionários das instituições de ensino; c) desenvolver mecanismos de acompanhamen-
to e apoio do desempenho acadêmico, didático e psicopedagógico dos estudantes; d) aumentar recursos do
Programa Nacional de Assistência Estudantil; e) melhorar a qualidade da educação básica em escolas públicas.
Palavras-chave: Ação armativa. Ensino superior. Justiça social. Lei de cotas.
*
Doutora em Educação, com estágio pós-doutoral no Centro de Educação e Ciências Humanas da Universidade Fede-
ral de São Carlos. Educadora popular e docente do Programa de Mestrado em Educação Sociocomunitária do Centro
Universitário Salesiano de São Paulo. Brasil. ORCID: 0000-0001-9963-0958. E-mail: fabiana.sante@unisal.br
**
Mestre em Educação pelo Centro Universitário Salesiano de São Paulo. Atua como assistente social. Brasil. ORCID:
0000-0002-6353-6940. E-mail: ilca.ifsp@gmail.com
Recebido em 06/04/2019 – Aprovado em 02/07/2019
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v26i3.9301
Lei de cotas e promoção da justiça social: percepções de estudantes cotistas de um instituto federal
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Abstract
This article presents reections resulting from a Master’s Degree in Education that aimed to dialogue with quota
students attending the Mechanical Engineering course in order to unveil their perceptions about the imple-
mentation of Law 12.711/2012. The research methodology contemplated documentary analysis referring to the
process of lling vacancies of the course; telephone contact with students to identify causes of their dropouts;
application of a questionnaire to collect socioeconomic data and interviews. In the perception of the quota stu-
dents, the reserve of vacancies guaranteed by Law 12.711/2012 can increase the opportunity of access for stu-
dents of public schools, with low-income, Afro-descendants and indigenous. However, in order for the quota law
to become a promoter of social justice, it is also necessary to face certain challenges: a) not be limited to aspects
of access, but expand measures that favor the permanence of these students; b) to evaluate how quota students
are received by their peers, teachers and employees of the educational institutions; c) develop mechanisms to
monitor and support students’ academic, didactic and psychopedagogical performance; d) increase resources of
the National Program of Student Assistance; e) improve the quality of basic education in public schools.
Keywords: Armative action. Higher education. Social justice. Law of quota.
Resumen
Este artículo presenta reexiones resultantes de una investigación a nivel de Maestría en Educación que objetivó
dialogar con estudiantes beneciarios del programa de cuotas en el curso de Ingeniería Mecánica a n de des-
velar sus percepciones acerca de la implementación de la Ley 12.711. Para tanto, el recorrido metodológico de
la investigación contempló análisis documental referente al proceso de admisión del alumnado beneciario del
programa de cuotas; contacto telefónico con discentes para identicar los motivaciones de sus salidas del curso;
la aplicación de cuestionario para el levantamiento de datos socioeconómicos y la realización de entrevistas.
En la percepción de los beneciarios, la reserva de plazas garantizada por la Ley 12.711 puede ampliar la opor-
tunidad de acceso para estudiantes de escuelas públicas, con bajos ingresos, afro descendientes e indígenas.
Sin embargo, para que la ley de cuotas se congure como promotora de justicia social es necesario, todavía,
el enfrentamiento a algunos desafíos, que: a) no se limiten a aspectos de acceso, sino a ampliar medidas que
favorezcan la permanencia de estos estudiantes; b) evaluar el modo en que los beneciarios son recibidos y
acogidos por sus pares, docentes y funcionarios de las instituciones de enseñanza; c) desarrollar mecanismos
de acompañamiento y apoyo del desempeño académico, didáctico y psicopedagógico de los estudiantes; d)
aumentar recursos del Programa Nacional de Asistencia Estudiantil; e) mejorar la calidad de la educación básica
en las escuelas públicas.
Palabras claves: Acción armativa. Enseñanza superior. Justicia social. Ley de cuotas.
Introdução
O acesso ao ensino superior, no Brasil, correlaciona-se às trajetórias sociais,
econômicas e culturais com as quais os indivíduos convivem no percurso da vida.
Em um país fortemente marcado por desigualdades na distribuição de bens eco-
nômicos, sociais e culturais e com acirrada concorrência por vagas, a chance de
ingresso em uma instituição pública de ensino superior acaba tornando-se viável a
uma parcela restrita da população. Somente classes sociais privilegiadas economi-
camente detêm poder aquisitivo para custear mensalidades em conceituadas ins-
Fabiana Rodrigues de Sousa, Ilca Freitas Nascimento
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tituições de educação básica, viagens, cursos de línguas estrangeiras, participação
em seminários e oficinas, entradas em museu, teatro, cinema, etc. De acordo com
Gisi (2006), os problemas de acesso e permanência na educação superior são efei-
tos, e não o fator das desigualdades – que têm relação com as condições existenciais
vivenciadas por cada classe e grupo étnico e com os distintos modos pelos quais se
apropriam dos bens culturais.
[…] o legado de bens culturais acumulados e transmitidos pelas gerações anteriores perten-
ce, realmente (embora seja formalmente oferecido a todos), aos que detêm os meios para dele
se apropriarem, quer dizer, que os bens culturais, enquanto bens simbólicos, só podem ser
apreendidos e possuídos como tais (ao lado das satisfações simbólicas que acompanham tal
posse) por aqueles que detêm o código que permite decifrá-los (BOURDIEU, 2003, p. 297).
Nesse sentido, urge a necessidade de reiterar a relevância social de políticas
e ações afirmativas, com a finalidade de democratizar o acesso ao ensino superior
público, bem como de garantir condições de permanência para estudantes universi-
tários. A ampliação do acesso ao ensino superior teve um desdobramento relevante
nos últimos oito anos que se seguem a 2004. Estudos realizados pelo Grupo Estra-
tégico de Análise da Educação Superior no Brasil
1
apontam que, nesse intervalo de
tempo, passou-se de 4,2 milhões de matrículas para 6,7 milhões, segundo o Censo
da educação superior: 2011 – resumo técnico, do Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (2013). Isto é, houve um acréscimo signifi-
cativo de novos estudantes em cursos superiores no Brasil (BUCCI; MELLO, 2013).
Uma série de providências influenciou o alcance deste resultado; dentre elas,
destacam-se a política de reestruturação das universidades federais e o aumento de
vagas, a partir da criação de cursos noturnos e da abertura de campi em cidades do
interior, frutos do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das
Universidades Federais (Reuni). Juntamente, houve uma expansão dos Institutos
Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IF), ofertando principalmente cursos
técnicos. Também foi formada a Universidade Aberta do Brasil, um programa que
oferece cursos de nível superior, por meio da metodologia da educação a distância
(BUCCI; MELLO, 2013).
Nos últimos decênios, muitos jovens e adultos brasileiros negros, indígenas
e/ou de baixa renda ingressaram no ensino superior como consequência de varia-
das políticas de democratização que contemplaram instituições de ensino públi-
cas, federais e estaduais e também instituições privadas. Dentre essas medidas,
destaca-se o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), criado em 1998, que tem
como objetivos avaliar o desempenho do estudante ao fim da escolaridade básica e
Lei de cotas e promoção da justiça social: percepções de estudantes cotistas de um instituto federal
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
articulá-lo ao Sistema de Seleção Unificada (Sisu), que é o sistema informatizado,
gerenciado pelo Ministério da Educação (MEC), no qual instituições públicas de
ensino superior oferecem vagas para candidatos participantes do Enem.
Além dele, há também o Programa Universidade Para Todos (Prouni), regula-
mentado pela Lei nº 11.096, de 13 de janeiro de 2005, que concede bolsas de estudo
integrais e parciais (50%) em instituições privadas de ensino superior; o Fundo
de Financiamento Estudantil (Fies), que foi criado em 1999 e constitui-se como
programa do MEC destinado à concessão de financiamento a estudantes de cursos
superiores em instituições privadas de ensino, as quais se beneficiam obtendo isen-
ção de impostos; e o Plano Nacional de Assistência Estudantil (PNAES), que tem
por objetivo apoiar a permanência de estudantes em situação de vulnerabilidade
socioeconômica e destina-se prioritariamente a estudantes com renda per capita de
até um salário mínimo e meio.
O PNAES
2
garante autonomia aos IFs para empregarem os recursos conforme
suas demandas e especificidades locais. Além da oferta de bolsas, o plano favorece
articulação de diversas áreas (assistência, educação, habitação, etc.), com o intuito
de gerar estratégias para melhorar o desempenho acadêmico dos estudantes (PRA-
DA; SURDINE, 2018).
Há, ainda, a Lei nº 12.711, regulamentada pelo Decreto nº 7.824, de 11 de
outubro de 2012. A lei tem como finalidade ampliar as oportunidades de ingresso
no ensino superior, bem como no ensino técnico de nível médio, com vistas a de-
mocratizar as condições de acesso, minimizar os efeitos das desigualdades sociais
e étnico-raciais, contribuindo, portanto, com a promoção da justiça social por meio
da educação.
Ressalta-se que a promoção da justiça social pressupõe mais do que o acesso ao
ensino superior, uma vez que requer o planejamento e a execução de condições de
permanência (materiais, físicas e psicológicas) adequadas aos estudantes. Obser-
va-se que a entrada de segmentos sociais historicamente excluídos do acesso ao en-
sino superior – seja nas instituições públicas, a partir da expansão de novos campi
e polos de educação a distância, assim como da criação de novas universidades; seja
nas instituições privadas, a partir da política de bolsas parciais ou integrais e do
financiamento estudantil, sem que haja o devido cuidado com as condições de per-
manência desses estudantes – pode contribuir para alguns fatos, como: o aumento
no número de ingressos não repercutir no número de formandos, tendo como efeito
o problema da evasão; a vida universitária reduzir-se às vivências em sala de aula,
com o tempo sendo concorrido entre os estudos e o trabalho, com isso refletindo no
Fabiana Rodrigues de Sousa, Ilca Freitas Nascimento
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problema pedagógico formativo; as ações formativas acompanharem o modelo tra-
dicional de ensino, não levando em conta o universo cultural das classes populares,
acarretando problemas epistemológicos (PEREIRA; MAY; GUTIERREZ, 2014).
Destarte, o objetivo do presente artigo consiste em desvelar percepções de
estudantes cotistas sobre a implementação da chamada lei de cotas, sobretudo,
aspectos ligados ao acesso e à permanência desses estudantes no ensino superior,
com o intuito de compreender se a lei tem favorecido à promoção das justiças social
e educacional. As considerações, ora apresentadas, foram gestadas ao longo de pes-
quisa de Mestrado em Educação, concluída em 2016, e pautam-se em percepções
de estudantes cotistas do curso de Engenharia Mecânica, de um IF localizado no
interior do estado de São Paulo.
Ação armativa e justiça social
No Brasil, as políticas públicas historicamente se caracterizam pelo cunho
social, com medidas e ações voltadas ao combate à pobreza. Moehlecke (2002) res-
salta que, com a popularização do país, alguns movimentos sociais começaram a
unir forças e pressionar o Poder Público a ter uma participação mais ativa na
resolução de problemas específicos em função de questões de gênero, raça e etnia,
culminando na formulação de diferentes ações afirmativas.
As ações afirmativas consistem em ações reparatórias e/ou preventivas que
possuem o objetivo de corrigir os efeitos “de discriminação e desigualdade infrin-
gida a certos grupos no passado, presente ou futuro, através da valorização so-
cial, econômica, política e/ou cultural desses grupos, durante um período limitado”
(MOEHLECKE, 2002, p. 203).
O termo ação afirmativa foi cunhado inicialmente nos Estados Unidos
3
, local
que ainda hoje se constitui como importante referência no assunto. Na década de
1960, os estadunidenses atravessavam um período de reivindicações democráticas
expressas, principalmente no movimento pelos direitos civis que pleiteava amplia-
ção da igualdade de oportunidades a todos. Neste espaço de tempo, são questiona-
das as leis segregacionistas vigentes no país, e o movimento negro aparece como
uma importante força atuante, com lideranças de projeção nacional, apoiado por
progressistas brancos e liberais reunidos numa ampla defesa de direitos. É nes-
se âmbito que aparece o conceito de ação afirmativa, reivindicando que o Estado
garanta leis antissegregacionistas tomando uma postura atuante para viabilizar
melhores condições de vida à população negra (MOEHLECKE, 2002).
Lei de cotas e promoção da justiça social: percepções de estudantes cotistas de um instituto federal
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Essa experiência dos Estados Unidos com a implantação de políticas de ações
afirmativas enfaticamente raciais pode suscitar reflexões e contribuições para im-
plementação de tais políticas no Brasil. Munanga (2001) apregoa que as ações afir-
mativas não devem se pautar somente em critérios econômicos e nas desigualdades
de classe, é necessário considerar também o critério racial e as especificidades cul-
turais de cada grupo étnico, a fim de promover a justiça social. No excerto seguinte,
o autor elucida por que o marcador racial é tão relevante na construção da justiça
educacional.
[...] se por um passe de mágica, os ensinos básico e fundamental melhorassem seus níveis
para que os alunos pudessem competir igualmente no vestibular com os estudantes oriun-
dos dos colégios particulares bem abastecidos, os alunos negros levariam cerca de 32 anos
para atingir o atual nível dos alunos brancos. Isso supõe que os brancos fiquem parados em
suas posições atuais esperando a chegada dos negros, para juntos caminharem no mesmo
pé de igualdade. Uma hipótese improvável, melhor, inimaginável. Os lobbies das escolas
particulares cada vez mais fortes deixarão os colégios públicos subirem seu nível de ensino,
tendo como conseqüência a redução de sua clientela majoritariamente oriunda das classes
sociais altas e médias e a diminuição de seus lucros? Quanto tempo a população negra
deverá ainda esperar essa igualdade de oportunidade de acesso e permanência a um curso
superior ou universitário gratuito e de boa qualidade? (MUNANGA, 2001, p. 33).
Lima, Neves e Silva (2014) ratificam o exposto por Munanga (2001) e ressal-
tam que o campo das relações raciais ocupa lugar de destaque no estudo das per-
cepções de justiça/injustiça e de legitimação/contestação da ordem vigente, devido
à forte assimetria de poder e dominação que tem caracterizado essas relações ao
longo da história.
O debate sobre a implantação de políticas de ações afirmativas levanta preocupações com a
justiça. Os julgamentos sobre a justiça fazem a mediação entre as circunstâncias objetivas
e as reações das pessoas aos eventos particulares de tal forma que o modo como os cidadãos
comuns avaliam as normas, se justas ou injustas, é um tema de interesse especial para as
ciências sociais, pois os padrões de justiça são resultado dos processos de construção da
realidade social (LIMA; NEVES; SILVA, 2014, p. 143).
Adicionalmente, Fraser (2009) observa que mudanças vêm ocorrendo nas dis-
cussões sobre justiça social, uma vez que teorias monológicas, cada vez mais, vêm
sendo questionadas e rejeitadas, e teóricos têm adotado abordagens dialógicas, que
tratam de aspectos importantes da justiça, como a tomada de decisão coletiva por
meio de deliberação democrática. Para esses teóricos, “a gramática da teoria da
justiça está sendo transformada. O que poderia antes ser chamado de ‘teoria da
justiça social’ agora aparece como ‘teoria da justiça democrática’” (FRASER, 2009,
p. 36). Todavia, a teoria da justiça democrática permanece incompleta e, para ser
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
concluída, é necessário um passo além, ou seja, é preciso considerar, nos processos
democráticos, não apenas o “que” da justiça, mas também o “quem” e o “como”; por
isso a autora defende que “as teorias da justiça devem-se tornar tridimensionais,
incorporando a dimensão política da representação ao lado da dimensão econômica
da distribuição e da dimensão cultural do reconhecimento” (FRASER, 2009, p. 17,
grifo da autora).
A consolidação da justiça social requer arranjos que estimulem a participação
de todos os sujeitos, em condições de paridade, na construção da vida social; por-
tanto, a superação da injustiça reclama o desmanche de obstáculos que dificultam
a plena participação (FRASER, 2009).
A permanência das segregações social e racial de jovens negros e pobres, no
Brasil, pode ser tomada como um exemplo de obstáculo que dificulta a participa-
ção desses sujeitos sociais e reduz suas possibilidades de acessar seus direitos,
legitimando a perpetuação da injustiça social. Nesse sentido, Arroyo (2015) re-
toma o pensamento do historiador Eric Hobsbawm e defende a adoção de uma
postura ético-política que permita abarcar não somente os obstáculos enfrentados,
mas, sobretudo, as resistências desses sujeitos. A análise histórica do processo de
negação-afirmação do direito à educação não pode prescindir, pois, dessa postura
ético-política.
De acordo com Arroyo (2015), essa análise histórica pode seguir caminhos dis-
tintos. O primeiro deles, comumente trilhado, tem como foco o questionamento
acerca do papel do Estado no cumprimento de leis, diretrizes e políticas destinados
à garantia do direito à educação. Nessa perspectiva, os sujeitos educativos – pes-
soas pobres, negros, indígenas e trabalhadores explorados – figuram como destina-
tários, e não como construtores de políticas públicas.
Por sua vez, o segundo caminho, nas palavras do autor, centra-se em uma
análise política mais complexa, que consiste, portanto, em:
[...] tentar entender a negação-afirmação do direito à educação no padrão de poder-saber
que perpassa as tensas relações das elites com os grupos sociais étnicos, raciais, subalter-
nizados, oprimidos em nossa história. Nessa opção de análise, duas questões serão o ponto
de partida: a primeira, reconhecer que as possibilidades e os limites da garantia de seus
direitos estiveram condicionados em nossa história a como esses grupos sociais, raciais
foram pensados e alocados no padrão de poder-dominação-subalternização. A segunda, re-
conhecer também que as formas como os grupos sociais, raciais subalternizados resistem
a esse padrão de poder-saber vêm sendo determinantes das possibilidades de avanço na
garantia de seus direitos (ARROYO, 2015, p. 17).
Lei de cotas e promoção da justiça social: percepções de estudantes cotistas de um instituto federal
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Nessa perspectiva analítica política, não é possível denunciar a injustiça so-
cial, tampouco anunciar possibilidades de justiça social, sem levar em consideração
experiências, percepções, saberes e resistências dos grupos sociais oprimidos nos
contextos de seus movimentos e lutas por direitos. Reside, aqui, a intrínseca rela-
ção entre o conceito de justiça social e a formulação de ações afirmativas, tais como
a política de cotas, que é entendida como:
[...] uma política que se baseia no argumento de que a sub-representação de minorias em
instituições e posições de maior prestígio e poder na sociedade é um reflexo da discrimina-
ção. Esta visa, em caráter provisório, à criação de incentivos a grupos desfavorecidos para
beneficiar os alunos que provêm de camadas populares, com baixo poder econômico, geral-
mente oriundos de escolas públicas, ou minorias étnicas, destacando o fato de que, muitas
vezes, esses alunos têm necessidades específicas para sua integração e permanência nos
espaços universitários (SOUZA; BRANDALISE, 2015, p. 187).
Alçada nessa concepção de política de cotas, em outubro de 2012, após uma
década de intensas discussões e lutas travadas principalmente pelos movimentos
sociais negros, foi publicada a Lei nº 12.711 (BRASIL, 2012a), sancionada pela
presidenta Dilma Rousseff, cuja regulamentação veio com o Decreto nº 7.824 (BRA-
SIL, 2012c) e a Portaria Normativa nº 18 (BRASIL, 2012b), ambos de 11 de outubro
de 2012. A lei de cotas privilegia estudantes de escola pública e alia critérios étnico-
-raciais aos socioeconômicos, fixando a obrigatoriedade da reserva de 50% de todas
as vagas nas instituições federais de ensino para estudantes de escolas públicas,
com subcotas para aqueles cujas famílias possuem renda per capita igual ou infe-
rior a um salário mínimo e meio; e/ou autodeclarados pretos, pardos ou indígenas
(BRASIL, 2012a; 2012b).
Por sua vez, o Decreto nº 7.824/2012 estabelece reserva de vagas a partir de
três critérios: origem da escola pública, renda familiar per capita e etnia/raça do
candidato. O decreto garante a reserva de 50% das matrículas por curso e turno a
alunos oriundos integralmente do ensino médio público. Os outros 50% das vagas
permanecem para ampla concorrência. O total de vagas reservadas às cotas será
subdividido da seguinte forma: metade para estudantes de escolas públicas com
renda familiar bruta igual ou inferior a um salário mínimo e meio per capita e me-
tade para estudantes de escolas públicas com renda familiar superior a um salário
mínimo e meio per capita. Em ambos os casos, também será levado em conta per-
centual mínimo correspondente ao da soma de pretos, pardos e indígenas, baseado
no último censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística de
cada região.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
A reserva de vagas na instituição pesquisada e o percurso metodológico
As reflexões apresentadas neste estudo foram elaboradas em contexto de pes-
quisa realizada em diálogo com estudantes cotistas do curso de Engenharia Mecâ-
nica de um IF localizado no interior do estado de São Paulo. Os IFs surgem no final
do ano de 2008, instituídos pela Lei nº 11.892, de 29 de dezembro de 2008, com o
objetivo de ofertar educação profissional e tecnológica em todos os seus níveis e
modalidades, mas estas instituições de ensino se originam historicamente ainda
em 1909, com a fundação da Escola de Aprendizes e Artífices de São Paulo.
O diferencial dos IFs de São Paulo, evidenciado no Plano de Desenvolvimento
Institucional (2014-2018), é o desenho curricular, cuja proposta político-pedagó-
gica possibilita a oferta de todos os níveis de ensino, desde a educação básica, em
especial cursos técnicos, integrados e modulares, até o ensino superior (graduação
e pós-graduação). Fazem parte dos institutos cursos superiores de tecnologia, licen-
ciaturas, bacharelados e programas de pós-graduação (especialização, mestrado e
doutorado). Uma característica marcante é a inserção na área de pesquisa e exten-
são, visando a estender benefícios à comunidade, além da formação continuada de
trabalhadores.
O percurso metodológico da investigação contemplou: análise documental re-
ferente aos processos de seleção e preenchimento de vagas do curso; contato te-
lefônico com discentes, para identificar causas de suas desistências; aplicação de
questionário, para levantamento de dados socioeconômicos; e realização de entre-
vistas com quatro estudantes cotistas, a fim de mapear suas percepções acerca da
lei de cotas.
Inicialmente, foi realizada análise dos dados fornecidos pela Coordenadoria de
Registros Escolares do IF, com o objetivo de investigar se as 20 vagas reservadas
para o sistema de cotas do curso de Engenharia Mecânica foram preenchidas, visto
que, não havendo procura, as vagas são disponibilizadas para a ampla concorrên-
cia. A seleção de estudantes para se matricular nas vagas dos cursos de graduação
oferecidos pelos IFs é realizada por meio do Sistema de Seleção Unificada e consi-
dera os resultados obtidos pelos estudantes no Enem.
Constatou-se que, no curso de Engenharia Mecânica, foram efetuadas 1.579
inscrições para a chamada regular única; dessas, somente os 40 primeiros candida-
tos por ordem de pontuação e por categoria foram convocados, sendo 20 candidatos
para as vagas de ampla concorrência e 20 candidatos para as vagas de ação afir-
mativa. Com base nos dados fornecidos pela Coordenaria de Registros Escolares,
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
observou-se que, dos 20 candidatos convocados na chamada regular única para
preencher as vagas das cotas, somente 10 candidatos efetivaram a matrícula; e,
da ampla concorrência, somente 4 candidatos efetivaram a matrícula no curso. Em
razão disso, houve mais candidatos cotistas do que não cotistas que efetivaram a
matrícula nesse primeiro momento. No entanto, cabe ressaltar que a reserva de
vagas foi realizada apenas na primeira chamada regular, as 26 vagas remanes-
centes (16 da ampla concorrência e 10 das cotas) que foram sendo preenchidas em
outras chamadas, conforme lista de espera disponibilizada pelo Sisu, passaram
a ser ofertadas à ampla concorrência e foram preenchidas obedecendo somente à
classificação por pontuação pela nota final.
Entre os 10 candidatos cotistas que efetivaram a matrícula: 5, independen-
temente da renda, cursaram integralmente o ensino médio em escola pública; 2
candidatos da categoria de renda familiar baixa cursaram integralmente o ensino
médio em escola pública; 2 candidatos autodeclarados pretos, pardos ou indígenas
e com renda familiar baixa cursaram integralmente o ensino médio em escola pú-
blica; e 1 candidato autodeclarado preto, pardo ou indígena, independentemente da
renda, cursou integralmente o ensino médio em escola pública.
No entanto, 5 estudantes cotistas, todos moradores de outros municípios do
estado de São Paulo, solicitaram o cancelamento da matrícula logo após o início das
aulas. Os motivos dos cancelamentos foram averiguados por contato telefônico com
cada estudante, e constatou-se que todos optaram por estudar engenharia em ou-
tras instituições de ensino superior. Verificaram-se os seguintes casos: 2 relataram
que optaram por cursar engenharia (1 de produção e 1 de materiais) na Univer-
sidade Federal de São Carlos, que possui alojamento estudantil; e 3 optaram por
cursar engenharia (2 mecânica e 1 elétrica) em universidades privadas com bolsa
do Prouni, o que os mantinha próximos de suas famílias, bem como representava
uma economia com despesas de moradia. É importante ressaltar que o IF em que
foi realizada a pesquisa não possui alojamento estudantil.
Esses cinco estudantes foram convidados a participar da pesquisa e respon-
deram um questionário para ilustrar seu perfil socioeconômico. Entre eles, quatro
são do sexo masculino, e uma, do sexo feminino, e apresentavam idades entre 18
e 19 anos. Três se autodeclararam brancos; um, negro; e um, pardo. Todos eram
solteiros, não possuíam filhos e apresentavam renda familiar superior a dois salá-
rios mínimos: três estudantes possuíam renda mensal de dois a quatro salários, e
dois estudantes, renda mensal maior do que cinco salários mínimos. Três estudan-
tes tiveram que se mudar, pois moravam em cidades distantes do munícipio onde
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
se localiza o IF, e passaram a residir em repúblicas. Apenas um dos estudantes
mencionou que exercia, concomitante ao curso, atividade remunerada: distribuía
panfletos em farol, a fim de obter renda para auxiliar o custeio da sua manutenção
na nova cidade.
Ao fim do primeiro semestre letivo do curso, mais um estudante cotista – au-
todeclarado pardo – efetivou trancamento de matrícula. Por meio de contato tele-
fônico, o estudante informou que sua principal dificuldade foi a socialização, uma
vez que não conseguia adaptar-se à nova cidade e fazer amigos no instituto e na re-
pública em que morava. Sendo assim, apenas quatro estudantes participaram das
entrevistas, que foram realizadas após o início do segundo semestre letivo do curso.
A entrevista possibilita conhecer a experiência vivida e apreender como dis-
tintos sujeitos vivem determinada condição comum a eles. Assim, as pesquisas
que fazem uso da entrevista tomam como ponto de partida sempre aquilo que o
informante diz, pois isso é a matéria-prima:
[…] muito do que nos é dito é profundamente subjetivo, pois trata-se do modo como aquele
sujeito observa, vivencia e analisa seu tempo histórico, seu momento, seu meio social etc.;
é sempre um, entre muitos pontos de vista possíveis. Assim, tomar depoimentos como fonte
de investigação implica extrair daquilo que é subjetivo e pessoal neles o que nos permite
pensar a dimensão coletiva, isto é, que nos permite compreender a lógica das relações que
se estabelecem (estabeleceram) no interior dos grupos sociais dos quais o entrevistado par-
ticipa (participou), em um determinado tempo e lugar (DUARTE, 2004, p. 219).
A adoção de entrevistas pautadas no enfoque fenomenológico favoreceu o
desvelamento das percepções que os estudantes cotistas possuíam a respeito das
políticas de cotas, configurando-se como procedimento metodológico viável para os
fins da investigação desenvolvida, a qual procurou gerar dados para suprir uma
lacuna apontada por Lima, Neves e Silva (2014). Os autores denunciam que são
poucos os estudos que se dispuseram a enfocar a evolução das atitudes em relação
ao sistema de cotas antes e depois de sua implantação, como se ocuparam os traba-
lhos desenvolvidos por Neves e Lima (2007), Lima, Neves e Silva (2014) e Queiroz
e Santos (2006).
Estudos que se propõem a identificar interpretações, sentidos e significados
que estudantes universitários nutrem a respeito da implementação do sistema de
cotas na reserva de vagas nas universidades brasileiras podem trazer contribui-
ções relevantes no sentido de ampliar a compreensão acerca do porquê de alguns
setores ainda se opor às cotas e negar o caráter de justiça que subjaz à aplicação
das ações afirmativas. Pesquisas dessa natureza explicitam que a definição do que
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
é considerado justo ou injusto em uma sociedade é uma questão política, assim
como o é o próprio ato educativo (NEVES; LIMA, 2007).
As percepções de estudantes cotistas acerca da lei de cotas
Sou a favor, sou bem a favor da lei de cotas porque, levando em conta toda a de-
sigualdade que a gente tem na sociedade, é difícil. É difícil não, é impossível tratar
todo mundo igualmente sendo que não tem igualdade. Então, assim, eu acho que o
sistema de cotas não deve seguir para sempre, claro que não, vai chegar num ponto
que vai atingir uma igualdade, que, aí, você não vai mais precisar disso; enquanto
tem desigualdade, você precisa tratar as situações de acordo com as desigualdades
que acontecem.
Este depoimento, cedido por um participante da pesquisa, sintetiza a percepção
dos quatro estudantes cotistas entrevistados acerca da reserva de vagas garantida
pela Lei nº 12.711/2012. Para eles, a lei de cotas apresenta-se como dispositivo capaz
de ampliar a oportunidade de acesso ao ensino a estudantes de escolas públicas,
com baixa renda, afrodescendentes e indígenas; no entanto, para que seja possível
concretizar a justiça educacional, é necessário que também sejam tomadas medidas
para melhorar a qualidade da educação básica, concomitantes a execução e avaliação
de ações afirmativas, pois, sem o investimento na melhoria da educação básica, não
há como viabilizar o caráter temporário que deve permear as políticas afirmativas.
Todos os participantes reconheceram a existência de um contexto de desigual-
dade econômica no país, que culmina em oportunidades desiguais no acesso e na
garantia de direitos, sobretudo, do direito à educação. Essa desigualdade se evi-
dencia no início da escolarização, na distinção qualitativa da educação básica que é
ofertada na rede pública em relação à que é oferecida na rede privada, pois comu-
mente os estudantes que conseguem acessar o ensino superior público – sem fazer
uso de ações afirmativas – são aqueles advindos de escolas privadas, enquanto que
os estudantes que desenvolveram integralmente sua escolaridade em instituições
de ensino públicas apresentam maiores dificuldades para ingressar em universi-
dades públicas.
Frente a esse contexto, os participantes da pesquisa entendem que, para su-
perar essa realidade, é necessário tomar atitudes, como as ações afirmativas, com
intenção de equilibrar essa equação. Mas esse equilíbrio não pode ter como foco
somente o acesso ao ensino superior, ele deve pensar também todo o processo de
escolarização, garantindo que todas as crianças e todos os jovens e adultos tenham
uma educação pública de qualidade.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
A lei de cotas é percebida pelos entrevistados como um primeiro passo na bus-
ca pela justiça educacional, mas alguns depoimentos indicam a necessidade de per-
manente problematização de conceitos, como igualdade, diferença, equidade, mé-
rito, justiça e democracia. Alguns participantes apresentaram discursos marcados
por ambiguidade no tocante ao mérito e a questões como igualdade perante a lei,
diferenças étnicas (indígenas, negros, brancos) e desigualdades sociais vivenciadas
pelos estudantes de classes populares (escolarização integral ou parcial na rede
pública, renda per capita baixa, necessidade de exercer atividade remunerada para
dar continuidade aos estudos, etc.). Os participantes da pesquisa posicionaram-se
abertamente a favor das cotas sociais (para estudantes com baixa renda e oriundos
de escolas públicas), mas a postura não foi tão enfática com relação às cotas raciais.
Essas ambiguidades podem ser compreendidas como influência de ideologias
e discursos meritocráticos e racistas que são amplamente veiculados nos meios de
comunicação de massa e, de certo modo, assimilados pelos estudantes. O vestibular
tradicional instiga o mérito conquistado pelo esforço individual; ainda que haja
reservas de vagas, há também a nota de corte que, se não alcançada, impede o
ingresso na universidade. No entanto, em vez de visibilizar o que foi alcançado pelo
estudante cotista, o discurso ideológico antidialógico ressalta a competitividade e
parte da lógica da negatividade – centrando-se na falta, isto é, no que ainda não
foi atingido. Por meio desse mecanismo, visa a inferiorizar o estudante cotista,
de modo a culpabilizá-lo por ousar ocupar um lugar que historicamente lhe fora
negado. Não é à toa que muitos estudantes beneficiados com o programa de cotas
apresentam percepções ambíguas e conflitantes a respeito dessa iniciativa, temen-
do serem hostilizados no meio universitário.
É preciso lembrar que ações afirmativas enfrentam resistências entre aqueles que já assi-
milaram a ideologia da valorização do mérito individual e, ambos, alunos cotistas e não-co-
tistas, compartilham da mesma ideologia. O ingresso na universidade por meio de Cotas
pode ser entendido como um atestado público de incapacidade e demérito (GUARNIERI;
MELO-SILVA, 2010, p. 488).
A meritocracia ainda vigente é propagada nos discursos acadêmicos por meio
de práticas homogeneizadoras, como o vestibular, por exemplo, o que pode difi-
cultar o processo de afirmação das diferenças e de construção da autoimagem de
estudantes cotistas recém-chegados às arenas políticas universitárias, haja vista
que a perspectiva meritocrática centraliza suas lentes na dimensão individual, en-
quanto ofusca os coletivos, os movimentos e as práticas sociais nos quais os sujeitos
também educam e educam-se.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Destarte, para concretizar a justiça educacional, é preciso fazer frente aos dis-
cursos meritocráticos e lançar mão do critério de equidade, ou seja, tecer olhares e
práticas acadêmicas que considerem as condições existenciais de cada sujeito. Não
há como discutir igualdade ou mérito, sem propiciar condições existenciais para
que todos os sujeitos possam participar, gozar de seus direitos e exercer controle
social. Nesse ponto, os participantes da pesquisa afirmaram que não basta demo-
cratizar o ensino superior, é necessário também dar continuidade ao processo de
democratização da educação básica, por meio de ações que promovam melhorias na
qualidade da educação ofertada na escola pública.
A diferença qualitativa entre a educação ofertada na rede pública de ensino
e a desenvolvida nas escolas privadas é, portanto, outra questão relevante a ser
retomada e aprofundada nos debates sobre ações afirmativas no Brasil. Segundo
os participantes da pesquisa, as desigualdades vivenciadas ao longo da educação
básica foram se convertendo em obstáculos que dificultaram o acesso ao ensino
superior, levando tais sujeitos a demandarem a reserva de vagas preconizada na
lei de cotas.
A luta pela democratização do acesso ao ensino superior público é necessária,
mas não suficiente para garantir a permanência dos beneficiados por medidas com-
pensatórias. Haas e Linhares (2012) ressaltam que a discussão sobre o sistema de
cotas não pode se limitar ao ingresso dos estudantes cotistas no ensino superior
público, deve abarcar também a questão da permanência deste público nos cursos
superiores.
Não basta propiciar o acesso, pois é necessário conferir, após o ingresso, igualdade de
condições de permanência do estudante no ensino superior público, já que dificilmente os
indivíduos deste contingente estão em igualdade de condições no que tange à questão so-
cioeconômica. Do contrário, teria a universidade que admitir o considerável risco de eva-
são desse grupo de beneficiados por falta de condições sociais, econômicas e intelectuais
(HAAS; LINHARES, 2012, p. 853).
Promover condições de permanência para cotistas é fundamental para mini-
mizar a evasão escolar no ensino superior brasileiro. Outro aspecto a ser enfren-
tado pelas instituições é a falta de condições financeiras desses estudantes para
permanecer no curso; a criação de condições de acesso deve prever investimentos
em programas de ações de acompanhamento e apoio acadêmico aos estudantes que
ingressam pelo sistema de cotas. Nesse sentido, ressalta-se a relevância da cons-
tituição de equipes multidisciplinares, compostas por profissionais da assistência
social, da pedagogia e da psicologia, aptos a promover o acolhimento e o acompa-
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
nhamento da vida acadêmica de estudantes cotistas, a fim de mapear suas deman-
das, criar ações para atender às necessidades identificadas e avaliar tais ações.
Ademais, destaca-se a importância de avaliar o modo como esses estudantes
vêm sendo recebidos e acolhidos por seus pares, por docentes e por funcionários
das instituições de ensino superior, no intuito de garantir a permanência e fomen-
tar a socialização desses sujeitos, estimulando o estabelecimento de relações mais
solidárias, dialógicas e respeitosas entre os estudantes e os demais atores das ins-
tituições de ensino.
Os participantes da pesquisa ressaltaram o papel do apoio financeiro (bolsa
de estudo, bolsa moradia, bolsa alimentação, etc.) na garantia de sua permanên-
cia no curso. A ausência de alojamento no campus onde foi realizada a pesquisa
é entendida pelos participantes como um elemento que dificulta a permanência
do estudante, o que se evidenciou no trancamento das matrículas por metade dos
estudantes cotistas. Os alojamentos estudantis, além de favorecerem o direito à
moradia aos estudantes que necessitam desse auxílio, também se configuram como
espaços educativos que podem potencializar a socialização e a organização. Sendo
assim, é necessário garantir a continuidade do Programa Nacional de Assistência
Estudantil e lutar pela ampliação de recursos.
Considerações nais
A universidade, enquanto espaço intelectual, científico, educativo e político,
no entender de Silva (2003), não pode se distanciar de questões que dizem respeito
aos direitos humanos. As instituições de ensino superior que reconhecem a diversi-
dade social e econômica da população brasileira, sua pluralidade cultural e racial,
e as avaliam como injustas, ao reservarem vagas para segmentos marginalizados
e oprimidos, afirmam-se justas, portanto devem expandir seu campo de visão e
produção do conhecimento.
Uma instituição, que se disponha a implantar plano de ações afirmativas para a popula-
ção negra, não pode encará-lo como “proteção a desvalidos”, segundo pretendem alguns. É
preciso que um plano com tais metas incentive a compreensão dos valores da diversidade
social, cultural, racial e, nestes valores, busque apoio para orientar suas ações educativas,
de formação de profissionais e de responsável pelo avanço das ciências. Sem dúvida, a uni-
versidade, ao prever e executar medidas visando à inclusão de grupos até então deixados
à margem, inclui-se na sociedade, passa a dela fazer parte e assume compromisso com ela,
já que deixa de atender unicamente aos interesses de um único segmento até então privi-
legiado (SILVA, 2003, p. 48).
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
As universidades que aderem às ações afirmativas, ao tocarem na estrutura
das desigualdades objetivando promover equidade entre grupos marginalizados,
além de ampliarem o acesso ao ensino superior, podem representar a busca por
novas maneiras de pensar e de produzir conhecimento, construindo, assim, novos
modos de ser universidade no Brasil e criando oportunidades democráticas de edu-
cação que garantam possibilidades de formação a todos os brasileiros.
A formação universitária é compreendida “como possibilidade de enfrentar,
superar intolerâncias, o que implica buscar meios de suprimir desigualdades secu-
lares” (SILVA, 2003, p. 52). Destarte, a relevância social de ações afirmativas como
a lei de cotas não reside apenas na ampliação do acesso ao ensino superior por par-
te de grupos populares, mas, sobretudo, em suscitar o debate acerca da necessária
luta pela descolonização de saberes e poderes no interior das universidades.
O ingresso de estudantes que pertencem a grupos populares no ensino su-
perior tem descortinado temas, experiências e condições existenciais, até pouco
tempo, ignorados nas universidades. Ratificando esse entendimento, Eckhardt
(2018) considera que as histórias de vida e as trajetórias de formação de estudan-
tes populares permitem o desvelamento de múltiplas formas de subalternização,
como expropriação, desigualdade e silenciamento, as quais precisam ser narradas
e problematizadas no ensino superior. Essa problematização, por sua vez, favore-
ce o questionamento da matriz curricular eurocêntrica que, historicamente, vem
encobrindo e invisibilizando outros modos de ser, de existir, de ler o mundo e de
construir conhecimentos (DUSSEL, 1993).
As tensões e os conflitos que emergem do debate sobre as ações afirmativas
refletem as disputas políticas em torno de questões históricas, como: a educação
é direito de todos ou privilégio de alguns grupos seletos? A quem e a que serve a
educação? A educação deve se colocar a serviço da adaptação ou da transforma-
ção social? Que saberes devem ser incorporados nos currículos? Essas questões
não devem ser tomadas como barreiras intransponíveis ou como justificativa para
suprimir as ações afirmativas, pelo contrário, a problematização de tais questiona-
mentos é que possibilitará o desvelamento de inéditos viáveis
4
.
“O diálogo é, portanto, o indispensável caminho”, diz Jaspers, “não somente nas questões
vitais para nossa ordenação política, mas em todos os sentidos do nosso ser. Somente pela
virtude da crença, contudo, tem o diálogo estímulo e significação: pela crença de que somen-
te chego a ser eu mesmo quando os demais também cheguem a ser eles mesmos” (FREIRE,
1975, p. 108).
Fabiana Rodrigues de Sousa, Ilca Freitas Nascimento
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
O diálogo com estudantes cotistas acerca de suas percepções sobre a lei de
cotas, no contexto desta pesquisa, possibilitou compreender que as ações afirma-
tivas se configuram como um dos passos no movimento permanente em busca das
justiças social e educacional, posto que, além de promover a democratização do
acesso ao ensino superior, tem ampliado as reflexões e fomentado debates acerca
das marcas da colonialidade
5
que ainda perduram nas instituições de ensino. O
grande potencial dessa lei reside na ampliação desse debate e na mobilização e no
engajamento consequentes de diferentes sujeitos na busca pela superação dessas
marcas e pela descolonização dos saberes.
Notas
1
O grupo é formado por pesquisadores, gestores e profissionais de diferentes regiões do país com expe-
riência em políticas de educação superior e tem por objetivos acompanhar e avaliar os debates sobre a
expansão e a democratização da educação superior no Brasil e intervir neles. Mais informações podem ser
encontradas em: http://flacso.org.br/?page_id=7785.
2
A respeito da assistência estudantil, consultar análise minuciosa da execução do PNAES nos IFs elaborada
por Prada e Surdine (2018) e histórico da assistência estudantil em artigo de Dutra e Santos (2017).
3
Apesar de o termo “ação afirmativa” ser cunhado, originalmente, nos Estados Unidos, a Índia foi o primei-
ro país a adotar o sistema de cotas raciais no ingresso ao ensino superior, na década de 1930, com a finali-
dade de beneficiar os Dalits (casta mais baixa e discriminada da Índia). Desde a Constituição de 1949 até
hoje, as cotas estão em vigor na Índia, sendo válidas no serviço público, na educação e nos órgãos estatais.
De acordo com Carvalho (2005 apud SILVA, Paula; SILVA, Patrícia, 2012), a Índia é um exemplo positivo
da utilização do sistema de cotas, pois em 1950 apenas 1% dos Dalits tinha curso superior e, em 2005, esse
percentual subiu para 12%.
4
Conceito formulado por Freire (1970) para designar uma situação nova e ainda não experimentada, mas
que pode ser obtida pela ação dos seres humanos no mundo a ser transformado (SOUSA, 2018, p. 328).
5
Conceito introduzido por Aníbal Quijano (final da década de 1980, início da década de 1990) para designar
a lógica subjacente da fundação e o desdobramento da civilização ocidental, da qual colonialismos históri-
cos têm sido uma dimensão constituinte, mas minimizada (MIGNOLO, 2017).
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Justiça social e discurso neoliberal:
problematizações sobre a base nacional comum curricular
1
Social justice and neoliberal discourse:
problematizations about national curriculum common core
Justicia social y discurso neoliberal:
problematizaciones sobre la base nacional curricular común
Simone Gonçalves da Silva
*
Juliana Mezomo Cantarelli
**
Resumo
Neste estudo, objetiva-se analisar, a partir da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), os atravessamentos do
discurso neoliberal na escola em prol da justiça social. Para tanto, a pesquisa, de abordagem qualitativa e de
cunho bibliográco, parte do entendimento de que, por meio da justiça curricular, a escola contempla todos os
aspectos da formação dos estudantes, podendo contribuir efetivamente para a justiça social. Porém, durante
a análise da política BNCC, percebeu-se que a proposta está alinhada a um projeto neoliberal que atende ao
capital e à iniciativa privada. Para a lógica neoliberal, é a economia que rege os assuntos governamentais e
transforma os indivíduos em consumidores, inclusive do ensino. Desse modo, para que a escola possa se tornar
um espaço de justiça social, é necessário, dentre outros aspectos, assumir-se como um espaço de lutas e tensões
na constituição de um projeto de educação antagônico ao vigente, ou seja, um projeto que vise à democracia,
à solidariedade e ao bem comum.
Palavras-chave: BNCC. Discurso neoliberal. Justiça curricular. Justiça social. Política educacional.
Abstract
This study aims to analyze the National Curriculum Common Core (BNCC) of the neoliberal discourse in the
school in favor of social justice. For this, the research of a qualitative and bibliographical approach starts from
the understanding that through curricular justice (TORRES SANTOMÉ, 2013) the school covers all aspects of
student education and can contribute eectively to social justice (FRASER, 2012). However, during the analysis
of the BNCC policy, it was perceived that the proposal is aligned with a neoliberal project that serves capital and
private initiative. For the neoliberal logic is the economy that government proposition and converts individuals
*
Doutora em Educação pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), pós-doutoranda na mesma instituição. É pes-
quisadora no Grupo de Pesquisa em Gestão, Currículo e Políticas Educativas vinculado ao Centro de Estudos em
Políticas Educativas: Gestão, Currículo e Trabalho Docente da Faculdade de Educação da UFPel. Brasil. ORCID: 0000-
0001-5159-2454. E-mail: silva.simonegon@gmail.com
**
Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). É docente efetiva do Instituto Federal Farrou-
pilha, lotada no campus Júlio de Castilhos. Brasil. ORCID: 0000-0003-3007-7810. E-mail: jucacantarelli@yahoo.com.br
Recebido em 31/03/2019 – Aprovado em 03/07/2019
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v26i3.9267
Simone Gonçalves da Silva, Juliana Mezomo Cantarelli
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
into consumers, including education. Thus, in order for the school to become an emplacement of social justice,
it is necessary, among other things, to assume a emplacement of struggles and tensions in the constitution of
an education project antagonistic to that in force, that is, a project aimed at democracy, solidarity and the com-
mon good.
Keywords: BNCC. Neoliberal discourse. Curricular justice. Social justice. Educational policies.
Resumen
En este estudio objetivase analizar partiendo de la Base Nacional Común Curricular- BNCC los cruzamientos del
discurso neoliberal en la escuela a favor de la justicia social. Por lo tanto, la investigación de enfoque cualitativa y
de cuño bibliográca sale del entendimiento que por medio de la justicia curricular (TORRES SANTOME, 2013) la
escuela cubre todos los aspectos de la formación de los estudiantes, pudiendo contribuir efectivamente para la
justicia social (NANCY FRASER, 2012). Sin embargo, durante el análisis de la política de BNCC, se percibió que la
propuesta está alineada con un proyecto neoliberal que atiende a iniciativas de capital privadas. Para la lógica ne-
oliberal es la economía que gobierna los asuntos gubernamentales y convierte a los individuos en consumidores,
incluso la educación. De este modo, para que la escuela pueda convertirse en un espacio de justicia social se re-
quiere entre otras, asumirse como un espacio de lucha y s tensiones en la constitución de un proyecto de educa-
ción antagonista al actual, es decir, un proyecto que tiene como objetivo democracia, solidaridad y el bien común.
Palabras clave: BNCC. Discurso neoliberal. Justicia curricular. Justicia social. Política educativa.
Introdução
O presente estudo tem como objetivo analisar, a partir da Base Nacional Co-
mum Curricular (BNCC), os atravessamentos do discurso neoliberal na escola em
prol da justiça social. Para tanto, a pesquisa, de abordagem qualitativa e de cunho
bibliográfico, parte do pressuposto de que o sistema educacional de massa foi cria-
do pelo Estado, na Europa, em meados do século XIX, com o intuito de intervir
na vida da classe trabalhadora. Com isso, a escola se transforma em um espaço
de esperança para as crianças oriundas de famílias pobres que sofrerão os efeitos
positivos e negativos das ações nela desenvolvidas (CONNEL, 2013).
Nessa perspectiva, a escola deve ter como objetivo contribuir para a justiça
social, a partir da justiça curricular, contemplando assim todos os aspectos da for-
mação dos alunos. No entanto, percebe-se a influência das políticas educacionais
neoliberais, dentre elas a proposta de uma orientação do currículo em âmbito na-
cional, iniciado em 2015, intitulada como Base Nacional Comum Curricular. Lan-
çada pelo Ministério da Educação, visa definir
[...] o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alu-
nos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica, de modo
a que tenham assegurados seus direitos de aprendizagem e desenvolvimento (BRASIL,
2018, p. 9, grifo do documento).
Justiça social e discurso neoliberal: problematizações sobre a base nacional comum curricular
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Entretanto, a proposta da base é um tema muito polêmico. Para os defensores,
a proposta significa a possibilidade de democratizar o conhecimento, permitindo
uma equalização das desigualdades educacionais pela promoção da qualidade da
educação. Enquanto que, para os contrários, a proposta representa um silencia-
mento das vozes dos grupos subalternos e uma padronização que tem por objetivo
a concentração das ações na lógica das parcerias público-privadas, com um forte
controle sobre o currículo e o trabalho dos professores a partir da avaliação, dos
exames padronizados e dos índices métricos.
Assim, percebe-se que, no cenário contemporâneo, sob a hegemonia da orien-
tação neoliberal, muitas políticas educacionais acabam reduzindo a autonomia dos
professores e, consequentemente, da escola, bem como das práticas pedagógicas e
curriculares. Somam-se a isso as ações que colocam na meritocracia a justificati-
va para o sucesso e o fracasso individual, responsabilizando somente o estudante
pelos seus resultados. Portanto, para a lógica neoliberal, é a economia que rege os
assuntos governamentais e transforma os indivíduos em consumidores, inclusive
do próprio ensino.
Para que a escola possa se tornar um espaço de justiça social, é necessário,
dentre outros aspectos, assumir-se como um espaço de lutas e tensões. É com base
nessa última afirmativa que se pretende aprofundar esta discussão, ao problema-
tizar: como a BNCC se constitui em um discurso neoliberal que postula desafios à
noção de justiça social na educação?
Para tal, a discussão foi organizada em duas seções: a primeira situa breve-
mente as reformas e políticas educacionais e curriculares no cenário brasileiro,
como o processo de implementação da BNCC, que apresentam como pauta a produ-
ção de um currículo neoliberal (BALL, 2010). Na segunda seção, empreende-se um
exercício crítico sobre a discussão de justiça curricular de Torres Santomé (2013),
que estabelece algumas aproximações com a noção de justiça social de Nancy Fra-
ser (2012), visando compreender os sentidos em disputa na constituição das políti-
cas educacionais curriculares, especificamente a BNCC. Nas considerações finais,
são retomados os aspectos tidos como fundamentais, sobretudo no que se referem
aos possíveis desafios que a proposição de uma base nacional comum curricular
ocupa no cenário educacional contemporâneo a partir da noção de justiça social, em
sua potencialidade conceitual.
Simone Gonçalves da Silva, Juliana Mezomo Cantarelli
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Reformas políticas educacionais e curriculares: contextualizando a BNCC
As políticas educacionais brasileiras desencadeadas nos anos finais da década
de 1980 e no início da década de 1990 estão inseridas no contexto das reformas
baseadas em prerrogativas neoliberais. A consolidação e a implementação dessas
políticas são esforços empreendidos pela introdução de um conjunto de estratégias
a fim de supostamente solucionar os problemas da qualidade do ensino e da apren-
dizagem na educação pública.
A reforma educacional aparece fortalecida com o discurso da importância da
educação para o desenvolvimento global e também na esfera nacional. A prolifera-
ção desses discursos interessados nos problemas educacionais emerge das redes
internacionais de influência que estão cada vez mais preocupadas com um acordo
global. Os Estados nacionais passam a discutir a construção de políticas educa-
tivas que, de fato, constituem-se em uma combinação de ideias muito próximas.
As reformas administrativas e seus discursos passam a instituir uma educação
escolarizada como necessidade de mudança, que passa a justificar o empreendi-
mento das políticas educacionais. Os investimentos em educação devem alcançar
uma determinada meta de qualidade padronizada, que são obtidas com os modelos
convergentes.
O discurso da necessidade da reforma educacional está relacionado como “[...]
parte inevitável da globalização e do mercado internacional e de uma economia
cada vez mais baseada no conhecimento e que, portanto, exige mudanças radicais
na forma de organizar, conceber e desenvolver a educação” (HYPOLITO, 2010,
p. 1340). Assim, a educação vem sendo constituída no conjunto das políticas por
ações nacionais e internacionais que pretendem averiguar a atuação e o nível de
conhecimento desenvolvido nas escolas.
Com isso, as políticas educacionais surgem de um pacote de reformas elabo-
rado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)
2
.
Desde os anos de 1960, a OCDE desempenha um papel importante no cenário
mundial. É um órgão internacional, criado na França, para complementar a ges-
tão do Plano Marshall para a reconstrução da Europa após a Segunda Guerra
Mundial, com o objetivo de contribuir para o desenvolvimento econômico por meio
de assessoria aos governos sobre a administração das políticas públicas. Para ser
membro da OCDE, cada nação precisa se comprometer com a economia de merca-
do, a democracia liberal e os direitos humanos, e dentre suas metas as principais
são: aumentar o desenvolvimento econômico e contribuir com o comércio interna-
Justiça social e discurso neoliberal: problematizações sobre a base nacional comum curricular
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
cional. Atualmente a organização conta com a participação de 34 países (BALL,
2001; CARVALHO, 2016; LINGARD, 2016).
A partir dos anos de 1990, a OCDE começa a ter um enfoque maior no campo
educacional, preocupando-se com resultados estandardizados e comparativos inter
-
nacionais entre os países, modificando seus objetivos, que anteriormente estavam
voltados aos resultados individuais de cada país. Com o movimento dos membros da
OCDE para o desenvolvimento de uma estatística educacional comparativa inter
-
nacional, foi elaborado o relatório Education at a glance. Esse incluiu o compêndio
de dados dos países membros e a criação de indicadores, forjando assim o contexto
propício à criação do Programa para Avaliação Internacional de Estudantes (Pisa).
Segundo destacam Newman e Clarke (2012, p. 368), o Pisa serve para “[...] avaliar e
comparar desfechos educacionais entre nações participantes e tem orientado inter
-
câmbios de políticas, ansiedade comparativa e posicionamento competitivo”.
Desse modo, o Pisa, organizado pela OCDE, torna central a discussão da edu-
cação e a captura da participação dos países nos testes que ocorrem em virtude de
uma dinâmica concorrencial que no ano 2000 teve pela primeira vez sua adminis-
tração (CARVALHO, 2016; LINGARD, 2016). Percebe-se que o trabalho da OCDE
não foi sempre da mesma maneira e a sua reconfiguração, no final dos anos de
1990, está inserida no contexto de uma racionalidade neoliberal, numa sociedade
pautada pelos mecanismos de concorrência, fazendo com que a educação adquira
um papel mais central nesse cenário.
As políticas educacionais como foco de orientações internacionais, como o caso
do pacote de reformas orientado pela OCDE, tornam-se possíveis pela mobilização
de um “[...] conjunto de experts, centros estatísticos, bancos de dados, seminários
mundiais e regionais, documentos, programas de metas regionais, revistas etc.”
(GARCIA, 2010, p. 449), que também apresentam considerações importantes sobre
a educação brasileira, em caso específico. Cabe observar, como coloca Garcia (2010),
ao fazer referência a Bauman, que se vive em um mundo “glocalizado”, com pro
-
cessos diferenciados entre o contexto global e o contexto local. Contextos esses per-
meados por discursos da globalização e das políticas neoliberais desenvolvidas es-
pecialmente pelos organismos internacionais, como o Banco Mundial (BM), o Fundo
Monetário Internacional (FMI), a Organização das Nações Unidas para a Educação,
a Ciência e a Cultura (UNESCO) e a OCDE. Esses discursos nem sempre tendem a
convergir, mas possuem em comum “[...] a promessa de inclusão, progresso e desen
-
volvimento, riqueza, democracia, igualdade e qualidade de vida para todos que se
inserirem no mercado e na cultura globais” (GARCIA, 2010, p. 447).
Simone Gonçalves da Silva, Juliana Mezomo Cantarelli
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Nesse cenário, é preciso compreender a influência das pesquisas educacionais
internacionais sobre a educação brasileira. Para Ball (2011), nesse contexto são
alteradas as relações entre a pesquisa educacional e as políticas, determinadas por
colocações de expertises em políticas educacionais que passam a orientar as refor-
mas educacionais. Conforme Popkewitz (2004), a reforma configura-se como uma
estratégia de administração da liberdade, passando a representar a organização de
sistemas de conhecimentos de profissionais e especialistas. Alguns pesquisadores
passam a estabelecer novas relações com a política, passando a “[...] assumir novas
identidades, como ‘pesquisadores da eficácia escolar’ e ‘teóricos do gerenciamento’”
(BALL, 2011, p. 82). As pesquisas desenvolvidas nessa direção privilegiam temáti-
cas relacionadas ao projeto político e ao discurso da política e da reforma educacio-
nal neoliberal, como: qualidade, liderança, responsabilização e avaliação (BALL,
2011). Nessa direção, identificam-se as inúmeras políticas educacionais brasileiras
desencadeadas como indutoras da qualidade na educação e como instauradoras de
novas significações nos processos educativos, entre elas a BNCC.
A defesa da padronização e unificação dos processos de ensino e aprendizagem
nas escolas brasileiras, desde a educação infantil até o ensino médio, não é recen-
te no país. Isso envolve uma relação de conservação e continuidade de propostas
curriculares anteriores. Por exemplo, a condução das metas e diretrizes presentes
nas políticas educacionais brasileiras está relacionada a compromissos assumidos
em atividades internacionais, especialmente a Conferência Mundial de Educação
para Todos, organizada pela UNESCO em março de 1990 e realizada em Jom-
tien, na Tailândia. Posteriormente, a UNESCO encomenda o relatório “Educação:
um tesouro a descobrir”, elaborado em 1996, pela Comissão Internacional sobre
Educação para o século XXI. Esse relatório, conhecido internacionalmente como
Relatório Delors, delineia orientações relativas à educação básica e às necessida-
des educativas fundamentais no contexto mundial, aprofundando as reflexões de-
senvolvidas na Conferência de Jomtien. O relatório tem como objetivo apresentar
quatro pilares da educação para o desenvolvimento educacional ao longo da vida
no novo milênio: i) aprender a conhecer/aprender a aprender; ii) aprender a fazer;
iii) aprender a conviver; iv) aprender a ser (DELORS, 1996).
O documento apresentado da BNCC mostra que a proposta está amplamen-
te ancorada por legislações formuladas que garantam os princípios democráticos
desde o final dos anos 1980, conforme justificativa apresentada na sua parte in-
trodutória – seção marcos legais. A BNCC é um documento normativo que teve
sua elaboração iniciada em 2015, mas que aparece previsto desde a Constituição
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
de 1988. Posteriormente à Constituição, aparecem também a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional – Lei nº 9.394/1996, as Diretrizes Curriculares Nacio-
nais, os Parâmetros Curriculares Nacionais (1997), para estruturação do Sistema
Nacional de Educação, e a aprovação do Plano Nacional de Educação (2014-2024)
– Lei nº 13.005/2014. A partir disso, a BNCC justifica sua elaboração por estar arti-
culada às demais políticas educacionais e, portanto, objetiva elevar a qualidade do
ensino em todo o Brasil, ao indicar a aprendizagem esperada na educação básica,
contribuindo para a melhoria da educação evidenciada pelo baixo desempenho dos
estudantes nas avaliações externas nacionais e internacionais (BRASIL, 2018).
A BNCC foi lançada pelo Ministério da Educação, que iniciou sua elaboração
em 2015, sendo produzidas três versões de sua redação. O texto final do documento
referente à educação infantil e ao ensino fundamental foi homologado no dia 20 de
dezembro de 2017, pelo Presidente da República, Michel Temer, e pelo Ministro da
Educação, Mendonça Filho. A parte do documento referente ao ensino médio foi
entregue posteriormente, em abril de 2018, para avaliação no Conselho Nacional
de Educação (CNE), em virtude da discussão da Reforma do Ensino Médio, teve a
sua aprovação e homologação em 14 de dezembro de 2018.
Com base nessa proposta de construção de um currículo unificado das apren-
dizagens, os sistemas de ensino, os professores e os gestores de todo o país estão
sendo convocados a se mobilizar em torno do documento BNCC, que, conforme
consta, visa orientar a revisão e a elaboração dos currículos dos sistemas e das
redes de ensino de todas as escolas públicas e privadas de educação infantil, ensino
fundamental e ensino médio, em âmbito nacional. Isso, conforme o documento,
como forma de assegurar a garantia dos direitos à aprendizagem, de contribuir
com a formação dos professores, de orientar a elaboração dos recursos didáticos
e pedagógicos e de melhorar os resultados nas avaliações externas. O documento
ainda defende que a base comum tem como finalidade assegurar as orientações
dos princípios para uma formação integral, em uma sociedade democrática, justa
e inclusiva.
A BNCC gira em torno da busca de um sentido e significado de qualidade da
educação, que envolve setores do governo e da sociedade civil, por meio de insti
-
tuições e fundações. Tem-se como exemplo a afirmativa de que a proposta do do-
cumento não está conduzida somente pela orientação dos marcos legais, mas que
ganha força com o Movimento pela Base Nacional Comum, iniciado e constituído
em 2013, a partir do “Seminário Internacional Liderando Reformas Educacionais,
ocorrido nos EUA, organizado e patrocinado pela Fundação Lemann” (MACEDO,
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
2014, p. 1540). O grupo não governamental vem sendo formado por pessoas e
instituições que atuam na área de educação, entre as quais: Associação Brasileira
de Avaliação Educacional (Abave); Cenpec Educação e Cultura; Comunidade Edu
-
cativa (Cedac); Consed; Fundação Lemann; Instituto Inspirare; Instituto Ayrton
Senna; Instituto Natura; Instituto Unibanco; Todos pela Educação; Undime; entre
outros
3
.
O grupo composto por instituições e profissionais ligados à educação tem como
pauta a criação de uma base nacional comum, promovendo e apoiando debates,
pesquisas e estudos e mobilizando outros atores sobre o assunto da qualidade edu-
cacional brasileira, preocupados com a investigação e apreciação das “boas práti-
cas” aos casos de excelência e sucesso de outros países que possuem um currículo
unificado. Para o grupo, a criação deste documento
[...] era um passo crucial para promover a equidade educacional e o alinhamento de ele-
mentos do sistema brasileiro: a criação de uma Base serviria como “espinha dorsal” para os
direitos de aprendizagem de cada aluno, a formação dos professores, os recursos didáticos
e as avaliações externas (MOVIMENTO PELA BASE NACIONAL COMUM, 2013, não
paginado).
Percebe-se que o discurso da necessidade da reforma educacional está relacio-
nado a uma estrutura organizacional de redes para a indução das políticas educa-
cionais, como proposta “[...] de políticas regional e global e cada vez mais um assun-
to de comércio internacional. A educação é, em vários sentidos, uma oportunidade
de negócios” (BALL, 2004, p. 1108). As reformas educacionais brasileiras têm privi-
legiado o desempenho orientado pelos resultados das políticas avaliativas, como é o
caso da discussão do Movimento pela Base Nacional Comum, que defende a criação
do documento como uma necessidade para melhorar o desempenho dos estudantes
nas avaliações externas e, consequentemente, a qualidade da educação.
As mudanças empreendidas na educação brasileira nos últimos anos, com a
construção e elaboração das principais políticas, programas e projetos educacio-
nais, são investimentos com a promessa de qualificar o sistema público educacio-
nal. Essa série de iniciativas emerge em sua maioria de agendas internacionais
que potencializam a meritocracia, a eficiência, a competitividade, a comparação e o
resultado. A denominada qualidade sustenta a ideia da participação da sociedade
como um todo rumo à construção de uma educação pública de qualidade, com ele-
vação dos resultados métricos, para um país em desenvolvimento.
Como exemplo, já citado anteriormente, tem-se o Movimento pela Base Na-
cional Comum, que envolve vários setores da sociedade em prol de uma suposta
Justiça social e discurso neoliberal: problematizações sobre a base nacional comum curricular
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
educação básica de qualidade para todas as crianças e os jovens brasileiros. Além
disso, posiciona-se como uma ferramenta em defesa da garantia dos direitos de
aprendizagem e de mobilização na elevação da escolarização e tem se sustentado
na importância do voluntariado, da solidariedade e da responsabilidade social; en-
tretanto, visa de fato o vasto mercado educacional e a imposição de uma agenda
neoliberal.
A discussão da BNCC requer várias considerações, sobretudo o questionamen-
to de que projeto de sociedade e de formação e qual agenda educacional pretendida
estão em curso no processo de defesa de uma BNCC. Percebe-se a inserção da
produção de um currículo neoliberal (BALL, 2010), que se sustenta em três esferas:
currículo neoliberal da reforma do setor público – lógica gerencialista no modo de
administração pública; neoliberalismo “no” currículo, com a produção do modo de
ser estudante como empreendedor capaz de gerenciar sua própria vida; e o currí-
culo como uma oportunidade de lucro, como a oferta de produtos e serviços educa-
cionais, como materiais didáticos, consultorias e atividades de formação. Portanto,
parece que no cenário brasileiro está em andamento um projeto de sociedade neoli-
beral que sustenta uma pauta educacional em defesa da BNCC, como um currículo
neoliberal que implica desafios a um projeto educacional em prol da justiça social.
BNCC e justiça social
A escola compreendida enquanto instituição social não deve apenas reprodu-
zir as ideias dominantes, ela deve atrelar o ensino às realidades sociais, para não
perder seu sentido de continuidade, mas também de ruptura dessa mesma socie-
dade, por vezes tão desigual. Nessa mesma linha, Charlot (2013) argumenta que
a escola tem o papel de difundir o conhecimento científico, mas também tem uma
função cultural e social, além da preparação do estudante para ocupar um lugar na
divisão social do trabalho. Sendo assim, a escola e sua proposta pedagógica devem
considerar a justiça social no seu cotidiano e na formação de seus alunos, refletindo
e questionando o modelo neoliberal, que transforma a educação e tudo que a ela se
relaciona numa simples oportunidade de lucro.
Destaca-se que, nessa discussão, compreende-se por justiça social o conceito
criado por Nancy Fraser (2012), que engloba a redistribuição, o reconhecimento e
a paridade de participação.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
O que é preciso é um único princípio normativo que inclua as reivindicações justificadas
quer de redistribuição, quer de reconhecimento, sem reduzir umas às outras. Com este
propósito, proponho o princípio de paridade de participação, segundo o qual a justiça requer
arranjos sociais que permitam a todos os membros (adultos) da sociedade interagir entre si
como pares (FRASER, 2002, p. 13).
Assim, segundo a autora, para se combater a injustiça econômica, da qual faz
parte a exploração do trabalho, a privação a um padrão material de vida adequado
à dignidade, além de ser obrigado a realizar um trabalho indesejado e mal pago, é
necessária a redistribuição, ou seja, alguma espécie de reestruturação político-eco-
nômica. Já, para se combater a injustiça cultural ou simbólica, que envolve desde
a dominação cultural por determinados padrões, passando pelo ocultamento e pela
invisibilidade, até o desrespeito, a difamação e a desqualificação, é necessário o
reconhecimento, isto é, alguma espécie de mudança cultural ou simbólica. Afinal,
“[...] pessoas sujeitas à injustiça cultural e à injustiça econômica necessitam de
reconhecimento e redistribuição. Necessitam de ambos para reivindicar e negar
sua especificidade” (FRASER, 2006, p. 233), pois, se a abordagem focar somente
para uma das injustiças, corre-se o risco de acabar criando ou ressaltando a outra.
Soma-se à redistribuição e ao reconhecimento a paridade participativa, que deve
estar presente em toda vida em sociedade, variando conforme o contexto de inte-
ração. “Relativamente a cada caso, devemos perguntar quem são os actores sociais
entre os quais se exige que exista paridade de participação” (FRASER, 2002, p. 19).
A partir disso, entende-se que, para que a justiça social realmente aconteça,
a contribuição da escola se torna fundamental, pois é nela que crianças e adoles-
centes passam grande parte do seu tempo, por vários anos seguidos, em busca de
formação científica, preparação para o trabalho e construção de cidadania. Sendo
assim, a justiça curricular deve se fazer presente, tornando-se uma das prioridades
do trabalho escolar, pois, nesse mundo globalizado, o neoliberalismo permeia gran-
de parte das relações sociais, políticas, culturais e econômicas, podendo influenciar
as políticas educacionais e as concepções de currículo que fazem parte da escola.
Sendo assim, entende-se que um currículo pode estar de acordo com as leis e os
preceitos estabelecidos, mas, ao mesmo tempo, não contemplar a justiça curricular.
A justiça curricular, conforme Torres Santomé (2013, p. 9),
[...] é o resultado da análise do currículo que é elaborado, colocado em ação, avaliado e
investigado levando em consideração o grau em que tudo aquilo que é decidido e feito em
sala de aula respeita e atende às necessidades e urgências de todos os grupos sociais; lhes
ajuda a ver, analisar, compreender e julgar a si próprios como pessoas éticas, solidárias,
colaborativas e co-responsáveis [sic] por um projeto de intervenção sociopolítica mais amplo
destinado a construir um mundo mais humano, justo e democrático.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Cabe destacar que, para se alcançar a justiça curricular, entre outras coisas,
é necessário assumir um projeto educacional de transformação, comprometido po-
liticamente com a formação do cidadão crítico em relação à sociedade e ao seu
entorno, não apenas contemplando aprendizagens e informações necessárias para
o conhecimento científico. Nessa perspectiva, concordamos com o conceito de currí-
culo na escola contemporânea, que segundo Ball (2010, p. 21), é o “[...] conjunto de
experiências que molda seres humanos para transformá-los em pessoas”.
Na contemporaneidade, vislumbra-se que a BNCC emerge como uma proposta
de justiça social e curricular que visa assegurar “os direitos de aprendizagem e
desenvolvimento” (BRASIL, 2018, p. 7). Entretanto, a concepção de garantia dos
direitos de aprendizagem está vinculada a um projeto educacional neoliberal, em
que o enfoque central está em melhorar os resultados nas avaliações externas.
Conforme o documento da BNCC, a proposta de currículo nacional visa contribuir
para a melhoria da educação, tendo em vista a expectativa de elevar o desempenho
dos estudantes nas avaliações externas nacionais e internacionais.
A BNCC parece direcionar os conhecimentos a serem desenvolvidos nos pro-
cessos educacionais e, principalmente, no alinhamento com as avaliações nacionais
externas. Assim, reforça o controle e a centralidade do currículo a partir dos resul
-
tados atingidos nos exames. Essa política possui aparente caráter descentralizador,
quando se apresenta como uma orientação curricular e de gestão. Sugere que o pro
-
fessor possui a autonomia de constituir uma prática de acordo com a realidade dos
alunos, mas esta autonomia pode ser compreendida como uma autonomia imagina
-
da. O processo de organização de conteúdos e das ações e práticas docentes passa a
ser reestruturado a partir da lógica dos parâmetros e das diretrizes educacionais.
Percebe-se que a garantia dos direitos de aprendizagem está vinculada ao êxi-
to nos testes. De tal modo, parece ser essa a concepção de justiça social e curricular
presente na BNCC e que vai direcionar os conhecimentos a serem desenvolvidos
nos processos educativos pelo alinhamento com as avaliações em larga escala.
Com relação à BNCC, esta também apresenta ilusória participação ao con-
vidar a sociedade para a constituição do documento
4
. A participação defendida na
discussão da elaboração do documento se distancia das proposições de Nancy Fra-
ser (2002), pois a concepção apresentada pela proposta implica delegar as respon-
sabilidades pelo cumprimento das futuras orientações, que passaram a ser eviden-
tes em melhores resultados nas avaliações. Por exemplo, na seção de apresentação
do documento é defendido que a base é extremamente importante e que “[...] deve
ser acompanhado pela sociedade para que, em regime de colaboração, faça o país
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
avançar [...], a BNCC passa agora às redes de ensino, às escolas e aos educadores.
[...] [para que], em regime de colaboração, as mudanças esperadas alcancem cada
sala de aula das escolas brasileiras” (BRASIL, 2018, p. 5), em virtude de que o
governo federal, por meio do Ministério da Educação, está fazendo a sua parte, ao
construir uma base curricular, ao mesmo tempo que denota a responsabilização
das instituições e dos professores para que a base se efetive no contexto escolar e
possa garantir os direitos de aprendizagem de todos.
A partir da homologação da BNCC, conforme o documento, as instituições
de ensino de todo o país deverão realizar a construção dos currículos “[...] com base
nas aprendizagens essenciais estabelecidas na BNCC, passando, assim, do plano
normativo propositivo para o plano da ação e da gestão curricular que envolve todo
o conjunto de decisões e ações definidoras do currículo e de sua dinâmica” (BRA-
SIL, 2018, p. 20). Então, o papel da BNCC é de orientar a produção dos currículos
nos sistemas educacionais e os professores, gestores e as famílias a colocar em ação
esse currículo em acordo com um conjunto de atividades.
Essa política educacional pode ser compreendida como descentralização das
práticas educacionais e curriculares para as autônomas. Essas preveem um Estado
mínimo por meio de outro modo de regulação social, ao estimular um novo modo
de gestão pública que devolve a autonomia institucional atrelada a um conjunto de
parcerias em rede com o setor público, privado e cooperativo. Com isso, enfatiza a
responsabilização e a participação pessoal e coletiva da sociedade civil, nas bases
do discurso empreendedor, eficiente, competitivo, para atingir os melhores resulta-
dos e elevar a qualidade educacional.
Dessa forma, esse modelo educacional neoliberal faz com que se perca “[...] no
processo a construção histórica da educação como um bem público, um direito so-
cial e que, como tal, não pode ser regulada como mercadoria, produto ou resultado
passível de mensuração entregue a especialistas em medição e números” (OLIVEI-
RA, 2015, p. 641). Assim, em função da meritocracia e da busca de resultados, a
educação como bem público e direito social de todos vai sendo ignorada e entregue
à regulação do mercado.
A BNCC se alinha à lógica neoliberal quando visa obter bons resultados e
melhores desempenhos sem necessariamente estar relacionada ao acúmulo de sa-
beres, pois, “[...] ao homologar a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para a
Educação Infantil e o Ensino Fundamental, o Brasil inicia uma nova era na educa-
ção brasileira e se alinha aos melhores e mais qualificados sistemas educacionais
do mundo” (BRASIL, 2017, p. 5). Nesse sentido, entende-se que a BNCC possa
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
estar reduzida a uma cultura de performatividade, visto que “[...] as convicções e
os valores já não são importantes, é o resultado que conta” (BALL, 2005, p. 21). As-
sim, a qualidade da educação está pautada pelo desempenho e rendimento escolar
como questão de performatividade, o que permite a competição entre os estudan-
tes, os professores, as escolas e, em esfera internacional, entre os países, em busca
das melhores posições nos rankings.
Para a lógica neoliberal, é a economia que rege e controla as ações e os planos
de qualquer assunto de governo, bem como as decisões dos indivíduos. Com isso,
o cidadão torna-se um mero consumidor do ensino, e começam a desaparecer as
preocupações com o outro e com o trabalho coletivo. Nessa perspectiva, o ser hu-
mano torna-se uma mercadoria ou um meio para o mercado alcançar seus próprios
objetivos (TORRES SANTOMÉ, 2013).
Constrói-se uma concepção de homem que tem como característica o “homo
economicus racional”. Segundo Frigotto (2010, p. 70),
[...] o homo economicus é, pois, o produto do sistema social capitalista. Para a economia
burguesa não interessa o homem enquanto homem, mas enquanto um conjunto de faculda-
des a serem trabalhas para que o sistema econômico possa funcionar como um mecanismo.
Esse modelo de sociedade cria um modelo de escola em que se tem como pre-
ceito que tudo é igual para todos, tornando-se vencedores aqueles que mais se dedi-
cam e se esforçam para tal. “Assume-se a ideia de que a escola é igual para todos e
de que, portanto, cada um chega onde suas capacidades e seu trabalho pessoal lhes
permite”, o que sustenta o discurso de um entendimento de justiça social baseada
em uma educação meritocrática (GOMEZ, 2007, p. 16). Frigotto (2010, p. 80) expõe
que se na sociedade o homem é livre para produzir e crescer de acordo com seu
mérito, ou seja, dependendo “[...] única e exclusivamente do esforço, da capacidade,
da iniciativa, da administração racional dos seus recursos, no mundo escolar a não
aprendizagem, a evasão, a repetência são problemas individuais”.
Se todos os indivíduos são livres, se todos no mercado de trocas podem vender e comprar o
que querem, o problema da desigualdade é culpa do indivíduo. Ou seja, se existem aqueles
que têm capital é porque se esforçaram mais, trabalharam mais, sacrificaram o lazer e
pouparam para investir. Dentro desta ótica, a sociedade capitalista não está dividida em
classes, mas sim em estratos. A estratificação decorre de uma analogia do mecanismo de
concorrência perfeita. Os indivíduos ganham seu lugar na hierarquia de estratificação se-
gundo o critério do mérito (FRIGOTTO, 2010, p. 73).
Assim, em nenhum momento as desigualdades e tudo que ela pode acarretar
são considerados para analisar o sucesso e/ou o fracasso, bem como o mérito dos
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
indivíduos. Desse modo, o mérito contribui para a desresponsabilização do Estado
em relação às desigualdades, como também da escola e do trabalho dos professores,
que, muitas vezes, justificam o fracasso e a evasão escolar como desinteresse, falta
de comprometimento e responsabilidade somente do próprio aluno. Com isso, são
desconsiderados outros fatores importantes, como os contextos familiar, cultural,
econômico e social em que se encontram os alunos, além de desresponsabilizar o
Estado e os docentes do seu compromisso social (TORRES SANTOMÉ, 2003).
Nesse contexto, a escola passa a seguir os mesmos moldes da lógica empre-
sarial de eficácia, que se pretende neutra nos discursos, mas está norteada por
questões políticas e culturais. Para tal, apropria-se de palavras como performance,
competência e aprendizado ao longo da vida, entrelaçando a lógica econômica com
a escolar em prol da utilidade do saber, priorizando basicamente a preparação da
formação profissional. Assim, o aluno torna-se responsável pela busca da aprendi-
zagem e das suas escolhas e os professores passam a ser os mediadores do percurso
formativo de cada estudante. “O mercado se torna assim, no lugar do Estado a
instância mediadora vista como responsável por fixar os valores profissionais dos
indivíduos” (LAVAL, 2004, p. 57).
Segundo o documento da BNCC, a proposta de unificar as aprendizagens deve
possibilitar “[...] a superação da fragmentação radicalmente disciplinar do conheci-
mento, o estímulo à sua aplicação na vida real, a importância do contexto para dar
sentido ao que se aprende e o protagonismo do estudante em sua aprendizagem e
na construção de seu projeto de vida” (BRASIL, 2018, p. 15). A BNCC parece sus-
tentar uma proposta que pretende incentivar o pensar, o aprender e o conhecer, ao
valorizar a autonomia dos estudantes para escolhas e decisões futuras, inclusive
com relação à continuidade do processo formativo, à inserção no mercado de traba-
lho e à construção dos seus projetos de vida.
A construção da proposta de um currículo unificado está justamente em imple-
mentar um padrão previsível de aplicabilidade de comportamentos desse sujeito
aprendente, aquele que tem iniciativa, que é autogestor de sua vida e capaz de
projetar um futuro de sucesso. Alinha-se com a ideia do empreendedor que plane-
ja, projeta possibilidades existenciais e possui mais chances de sucesso na vida. A
aprendizagem, então, é um empreendimento. O investimento individual que pre-
cisa ser realizado não é em conhecer, mas em aprender para buscar os diversos
processos de formação, como obter um diploma e o permanente aperfeiçoamento
profissional.
Justiça social e discurso neoliberal: problematizações sobre a base nacional comum curricular
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
A discussão desenvolvida não questiona a importância da educação escolar
para a produtividade e o crescimento econômico do país, porém não se deve fazer
desse o único objetivo da escola e de sua função social. Acredita-se em um projeto
educacional que procure contribuir para o melhor desenvolvimento do cidadão e da
sua vida em sociedade.
Considerações nais
Reitera-se que este estudo teve o intuito de analisar, a partir da BNCC, os
atravessamentos do discurso neoliberal na escola em prol da justiça social. Nossa
inquietação está em compreender como esse processo de padronização e uniformi-
zação, típico de uma proposta de base curricular nacional, reforça a constituição
de uma agenda educacional neoliberal para as reformas educativas no contexto
brasileiro.
A BNCC sustenta-se no discurso da democratização dos processos de ensino
e aprendizagem, por isso a defesa de um currículo nacional como modo necessário
de garantir os direitos de aprendizagem dos estudantes brasileiros. Percebeu-se
que os discursos dessa proposta se aliam aos apelos argumentativos presentes
nos discursos relacionados com um acordo globalizado de um projeto de sociedade.
Durante a análise dos documentos oficiais, foram elencados vários excertos que
exemplificam que a proposta da base vem comtemplar e instituir uma dimensão de
currículo neoliberal.
Sendo assim, para que a escola possa contribuir com a justiça social, não se
pode submetê-la a um projeto neoliberal de negociações políticas e financeiras que
beneficiam somente o capital e a iniciativa privada, pois a escola não é uma empre-
sa e seus objetivos não podem ser os mesmos. Defende-se a garantia da educação
crítica e de qualidade e que proporcione a construção plena da cidadania.
Percebe-se que há um longo caminho a percorrer. Caminho de luta por uma
educação que real e verdadeiramente contribua com a justiça social, proporcionan-
do a todos os estudantes do país a oportunidade de se construir como um ser huma-
no livre não só de direito, mas também de fato. Liberdade essa que vai muito além
de um regime político, mas que se fundamenta na oportunidade de aprender na
escola a discernir criticamente fatos e acontecimentos que envolvem não somente
a vida do indivíduo isoladamente, mas a vida da sociedade em geral.
Desse modo,
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
[...] o desafio que se impõe ás escolas públicas e a outras instituições de educação é o de pro-
mover um contexto para o desenvolvimento de outros meios de tornar-se alguém – modos
mais fortalecedores do indivíduo e da coletividade, e mais condizentes com uma concepção
democrática de eu e de comunidade (APPLE; CARLSON, 2003, p. 35).
Para tal, consideramos que conhecer, debater e discutir as políticas educacio-
nais sob o enfoque da justiça social, em sua potencialidade conceitual, são funda-
mentais para se pensar e articular resistências contra esses discursos reformado-
res neoliberais, que têm não só regulado, mas também controlado o cenário educa-
cional contemporâneo. Acredita-se que para a escola se tornar um espaço de justiça
social é necessário que se tenha consciência da importância da justiça curricular,
pois por meio dela poderemos ter clareza da necessidade de se lutar por um projeto
de educação antagônico ao vigente, que é, por vezes, tão injusto e desigual.
Afinal, se não formos capazes de construir outras perspectivas mais democrá-
ticas, participativas e humanas para o futuro educacional dos estudantes, outras
forças menos democráticas continuarão a fazê-lo, como é a imposição de um cur-
rículo nacional. Desse modo, continuaremos vivendo em uma sociedade em que o
mérito é o discurso utilizado pela classe dominante para, disfarçadamente, justifi-
car não somente o descaso pelas minorias, mas também as desigualdades sociais.
Notas
1
O presente estudo contou com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
2
O Brasil não faz parte da OCDE, mas desenvolve processos de cooperação desde 1990 e participa das
avaliações na área da educação, como o Pisa, que é de responsabilidade do Instituto Nacional de Estudos
e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (HYPOLITO, 2010).
3
Para maiores informações, acessar: http://movimentopelabase.org.br/quem-somos/.
4
Para aprofundar a discussão sobre esse procedimento denominado pelo Ministério da Educação como de-
mocrático, em que afirma ter privilegiado o debate, as negociações e as contribuições entre os diversos
atores da sociedade envolvidos no processo de produção e elaboração dessa política curricular, sugere-se a
leitura do texto de Avelar e Ball (2017).
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Desigualdades educacionais como obstáculo à justiça social: análise da infraestrutura de escolas de Minas Gerais
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Desigualdades educacionais como obstáculo à justiça social:
análise da infraestrutura de escolas de Minas Gerais
Educational inequalities as an obstacle to social justice:
analisys of the Minas Gerais schools infrastructure
Las desigualdades educativas como obstáculo para la justicia social:
análisis de la infraestructura de las escuelas de Minas Gerais
Marisa Ribeiro Teixeira Duarte
*
Daniel Santos Braga
**
Resumo
Este artigo tem como objetivo analisar a desigualdade na infraestrutura das escolas da educação básica de Mi-
nas Gerais. A fonte utilizada foi o banco de dados do Censo Escolar do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira (Inep), tendo como recorte o ano de 2016. Para a construção da análise, foi realizado
um levantamento prévio das metodologias de medição de infraestrutura presentes na literatura educacional
brasileira, balizando os limites e as possibilidades das diferentes métricas. Optou-se por uma escala numérica
contínua, que foi aferida para melhor se adequar aos propósitos deste estudo. Esta pesquisa tem como achados
a vericação da permanência da precariedade infraestrutural das escolas mineiras, que apresentam condições
de oferta da educação escolar abaixo do básico em relação ao atendimento de serviços públicos, instalações e
dependências, e equipamentos para uso didático-pedagógico. Essa precariedade se manifesta de maneira mais
evidente para as áreas mais pobres do estado, reproduzindo desigualdades e se impondo como obstáculo à
oferta educacional com maior equidade.
Palavras-chave: Desigualdades educacionais. Infraestrutura de escolas. Justiça social. Políticas públicas de edu-
cação.
*
Doutora em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com estágio pós-doutoral sobre sociologia das
regulações sociais na Universidade Católica de Louvain la Neuve, na Bélgica. Professora associada do Departamento
de Administração Escolar e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade
Federal de Minas Gerais (FaE/UFMG). Brasil. ORCID: 0000-0002-1154-3006. E-mail: mmduarte@ufmg.br
**
Mestre em Educação e Formação Humana pela Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). Docente no Curso
de Pedagogia do Centro Universitário Newton Paiva, em Belo Horizonte. Membro do Grupo de Pesquisa em Política
e Administração de Sistemas Educacionais (Pase/UFMG). Brasil. ORCID: 0000-0001-5075-4570. E-mail: danielsbraga@
ufmg.br
Recebido em 22/02/2019 – Aprovado em 13/06/2019
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v26i3.9127
Marisa Ribeiro Teixeira Duarte, Daniel Santos Braga
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Abstract
This article analyzes the inequality in the infrastructure of Minas Gerais basic education schools. The source used
was the Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) School Census database,
2016. A preliminary survey of the infrastructure measurement methodologies presented in the Brazilian edu-
cational literature was carried out, marking the limits and possibilities of the dierent metrics. The option for
a continuous numerical scale that was calibrated to better t the purposes of this study. This research has as a
result the verication of the permanence of the infrastructural precariousness of the Minas Gerais schools, which
present conditions for the provision of school basic education in relation to the attendance of public services,
facilities and dependencies, and equipment for didactic- pedagogical use. This precariousness manifests itself
most clearly in the poorest areas of the state, reproducing inequalities and imposing itself as an obstacle to the
educational oer with greater equity.
Keywords: Educational inequalities. School infrastructure. Social justice. Public education policies.
Resumen
Este artículo analiza la desigualdad en la infraestructura de las escuelas de educación básica de Minas Gerais. La
fuente utilizada fue la base de datos del Censo Escolar del Inep, 2016. Se realizó un relevamiento preliminar de
las metodologías de medición de infraestructura presentadas en la literatura educativa brasileña, marcando los
límites y posibilidades de las diferentes métricas. La opción de una escala numérica continua que fue calibrada
para ajustarse mejor a los propósitos de este estudio. Esta investigación tiene como resultado la vericación de
la permanencia de la precariedad infraestructural de las escuelas de Minas Gerais, que presentan condiciones
para la provisión de educación básica escolar em relación con la asistencia a los servicios públicos, instalaciones
y dependencias, y equipamiento para uso didáctico-pedagógico. Esta precariedad se maniesta más claramente
en las zonas más pobres del Estado, reproduciendo las desigualdades e imponiéndose como un obstáculo a la
oferta educativa con mayor equidad.
Palabras clave: Infraestructura escolar. Desigualdades educativas. Justicia social. Políticas públicas de educación.
Introdução
Em relatório de 1904, o então futuro presidente da república, Delfim Moreira,
quando ainda era secretário de interior e de justiça de Minas Gerais, escreveu que
as escolas mineiras se achavam, em sua grande maioria, “[...] mal instaladas, em
prédios acanhados, sem necessário conforto e nas quais não se podem observar
as regras de higiene escolar” (MINAS GERAIS, 1904 apud FARIA FILHO, 2000,
p. 30). No mesmo texto, Moreira explicita: “[...] é por demais sensível a falta de
mobília e material pedagógico [das escolas]” (MINAS GERAIS, 1904 apud FARIA
FILHO, 2000, p. 30). No período dessa constatação da inadequação da estrutura es-
colar, o Brasil passava por um significativo processo de mudanças na compreensão
da função da escola, que resultou em uma série de reformas educacionais (SAVIA-
NI, 2008), marcadas, conforme a historiografia, por “entusiasmo pela educação” e
“otimismo pedagógico” (NAGLE, 2001).
Desigualdades educacionais como obstáculo à justiça social: análise da infraestrutura de escolas de Minas Gerais
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Esse clima de reformas se concatenava com um ideário republicano que se
manifestava não somente nas concepções didático-pedagógicas, mas também na
representação arquitetônica dos prédios escolares. De pardieiros nos tempos das
escolas isoladas, os edifícios se transformaram em verdadeiros palácios nas pri-
meiras décadas do século XX, quando da formação dos grupos escolares (FARIA
FILHO, 2000). Entretanto, a intensificação da ampliação do acesso à educação es-
colarizada no decorrer daquele século não foi acompanhada pela criação de uma
infraestrutura escolar adequada (SÁTYRO; SOARES, 2007; CURY, 2008). Per-
maneceram coexistindo no país condições de oferta diversas, em que se percebe a
manutenção de escolas com infraestrutura precária, espelhando as desigualdades
econômicas regionais (CERQUEIRA, 2004).
Diversas pesquisas passaram a investigar a distribuição federativa brasileira
e suas repercussões na precariedade estrutural das escolas. Em survey sobre condi-
ções de oferta das escolas primárias do país, Castro e Fletcher (1986) encontraram
relação entre os investimentos desiguais em educação por parte das esferas gover-
namentais e a infraestrutura das escolas. Com base em dados dos censos escolares
dos anos de 1997 a 2005, Sátyro e Soares (2007) afirmam que, apesar da melho-
ria da infraestrutura escolar no período pós-Constituição de 1988, as condições de
parte significativa das escolas ainda eram aquém do necessário. Os autores ainda
apontam que o novo pacto federativo, com o município alçado à condição de ente
federado, refletia-se na infraestrutura, sendo que as escolas em condições mais
precárias eram exatamente aquelas sob jurisdição municipal (SÁTYRO; SOARES,
2007).
Apesar de pesquisas internacionais apontarem pouca relação entre infraes-
trutura escolar e desempenho dos estudantes (HANUSHEK, 1986; HATTIE,
2009), em contextos de grande desigualdade econômica e social – como o caso bra-
sileiro –, recursos tais como estrutura predial e equipamentos podem incidir nos
resultados (ALBERNAZ; FERREIRA; FRANCO, 2002; UNESCO, 2017). Diante da
complexidade e relevância do tema, este trabalho busca discutir as condições de
oferta nas escolas de educação básica de Minas Gerais. Para isso, foi realizado um
levantamento das metodologias de medição de infraestrutura de escolas e, a partir
do diálogo com essa literatura, foi feita uma aferição da métrica de adequação de
infraestrutura escolar. Estabelecidos esses parâmetros, foi feita uma análise dos
dados de escolas mineiras do Censo Escolar de 2016.
Este artigo é parte da pesquisa intitulada “Desigualdades educacionais: ma-
pas, trajetórias e medidas”, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Educa-
Marisa Ribeiro Teixeira Duarte, Daniel Santos Braga
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
ção: Conhecimento e Inclusão Social da Faculdade de Educação da Universidade
Federal de Minas Gerais
1
. Nessa pesquisa, analisam-se desigualdades educacio-
nais em três áreas de conhecimento: políticas públicas de educação, sociologia da
educação e gestão educacional. A abordagem contempla, ainda, a análise da espa-
cialização das medidas de desigualdades educacionais no território da federação. A
hipótese analítica considera que o arranjo federativo no Brasil reflete desigualda-
des educacionais. Nesse sentido, o recorte apresentado neste trabalho visa avaliar
como as condições de oferta de educação básica, especificamente, a infraestrutura
das escolas, configuram-se nos municípios mineiros.
Escalas de infraestrutura escolar
A educação como processo de sociabilidade humana ocorre em diferentes es-
paços e de múltiplas formas. Essa socialização se dá de maneira mais ou menos
formal, a depender do contexto em que é realizada (MOLLO-BOUVIER, 2005).
Entretanto, são necessárias escolas para que exista educação escolar, que, na for-
ma da lei, se desenvolve, predominantemente, por meio do ensino, em instituições
próprias (§ 1º do artigo 1º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei
nº 9.394/1996). Assim, a infraestrutura é uma das condições de oferta da educação
escolar e diz respeito à construção de prédios e à sua manutenção, assim como aos
materiais básicos e equipamentos de apoio ao ensino (CARREIRA; PINTO, 2007).
Portanto, para que a educação escolar se efetive, é imperativa a existência de uma
infraestrutura mínima para o funcionamento das escolas.
Assim, tendo em vista a expansão do atendimento escolar nas últimas déca-
das (MENEZES-FILHO, 2001), torna-se fundamental verificar em que condições
a educação escolar brasileira tem sido ofertada. Nesse sentido, as pesquisas têm
buscado examinar a infraestrutura das escolas e sua adequação às necessidades
educacionais dos estudantes. Dadas as dimensões territoriais e a inviabilidade
técnica e orçamentária de se avaliar cada escola localmente, o Censo Escolar
tem sido utilizado para se analisar a infraestrutura das escolas brasileiras. O
Censo é uma pesquisa declaratória realizada anualmente pelo Instituto Nacional
de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), que abrange todas
as escolas do país. O preenchimento da consulta é feito em quatro formulários
assim nomeados: das escolas, das turmas, dos alunos e dos profissionais escola-
res (BRASIL, 2016). O formulário das escolas questiona aos gestores escolares
a existência de diversos elementos, como: atendimento de serviços públicos de
Desigualdades educacionais como obstáculo à justiça social: análise da infraestrutura de escolas de Minas Gerais
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
alimentação, água, luz e saneamento básico; arquitetura adequada com depen-
dências diversas; recursos e insumos para o desenvolvimento de práticas didáti-
co-pedagógicas; entre outros. Portanto, o Censo Escolar tem se constituído como
uma ferramenta de avaliação de infraestrutura pela sua abrangência e pelas
possibilidades comparativas.
Diversos autores buscaram construir medidas para analisar os dados de in-
fraestrutura escolar do Censo a partir de diferentes métodos e abordagens. Um dos
trabalhos pioneiros utilizando esses dados foi a tese de doutoramento de Cezar Au-
gusto Cerqueira, em 2004. Cerqueira construiu uma tipologia dos estabelecimen-
tos escolares brasileiros se utilizando de análise fatorial em uma técnica estatísti-
ca denominada Grade of Membership (GoM). De acordo com o autor, esse método
permitiria que a heterogeneidade entre os estabelecimentos escolares analisados
fosse categorizada e agrupada em perfis semelhantes (CERQUEIRA, 2004). Após
uma série de procedimentos de estimação estatística de máxima verossimilhança,
a partir do porte da escola (número de alunos) e de sua infraestrutura, Cerqueira
(2004) dividiu os estabelecimentos em três perfis, sendo dois extremos e um inter-
mediário.
O primeiro perfil extremo, baixa infraestrutura, foi formado por escolas que
não possuíam biblioteca, cozinha, quadra, rede de esgoto, equipamentos como TV,
vídeo, parabólica e recursos de informática. Na pesquisa de Cerqueira (2004), essas
escolas estavam localizadas em municípios das Regiões Norte e Nordeste, basi-
camente em áreas rurais. Em um segundo perfil, constam as escolas de elevada
infraestrutura, com altos níveis de informatização e de qualificação docente. In-
cluíam-se nesse grupo grandes escolas urbanas, de ensino médio e/ou fundamen-
tal, normalmente estaduais ou particulares. Entre esses dois níveis extremos, clas-
sificavam-se escolas intermediárias, com presença de biblioteca, videoteca, quadra,
laboratório de ciências e sala de TV e vídeo, localizadas em municípios de médio
e grande porte das Regiões Sul, Sudeste ou Centro-Oeste; pertencentes às redes
estaduais ou privadas (CERQUEIRA, 2004).
Seguiram-se ao trabalho de Cerqueira diversos estudos avaliando a infraes-
trutura das escolas (OLIVEIRA; LAROS, 2007). Uma importante pesquisa que
merece destaque é a de Sátyro e Soares (2007), que analisou alguns dos insumos
presentes no Censo, tais como água, eletricidade e saneamento (que os autores
chamaram de infraestrutura básica), gerando tabelas que abrangiam o período de
1997 a 2005. Para a existência de dependências escolares (bibliotecas, laboratórios,
banheiros, etc.), os autores se utilizaram de análise fatorial para criar um índice da
Marisa Ribeiro Teixeira Duarte, Daniel Santos Braga
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
presença ou ausência de determinada dependência (benfeitoria) na escola. Outro
grupo de estudos que também se utilizou de análises fatoriais para categorizar
as condições de infraestrutura escolar aplicou a Teoria da Resposta ao Item (TRI)
para a escala. A TRI é uma abordagem de análise em que as variáveis geralmente
são categorizadas de modo dicotômico, presença e ausência e sobre as quais são
realizadas calibragens para auferir pesos às variáveis (KLEIN, 2003). Deste grupo,
podemos destacar os trabalhos de Soares Neto et al. (2013) e Pieri e Santos (2014),
que, também estudando o censo escolar, buscaram construir uma medida para ava-
liar a infraestrutura das escolas brasileiras.
A escala proposta pela equipe de Soares Neto et al. (2013) vai de 0 a 100 e foi
dividida em quatro níveis de proficiência: nível 1 – elementar, que na escala está
compreendida entre 0 e 50; nível 2 – básica, entre 50 e 60; nível 3 – adequada, entre
60 e 70; e nível 4 – avançada, entre 70 e 100. No nível elementar estão classificadas
escolas que possuem somente aspectos de infraestrutura estritamente necessários
para o seu funcionamento, como água, sanitário, energia, esgoto e cozinha. No ní-
vel básico, além dos itens elementares, as escolas já possuem uma infraestrutura
básica, típica de unidades escolares; em geral, elas possuem sala de diretoria e
equipamentos como TV, DVD, computadores e impressora. No nível adequado, as
escolas possuem uma infraestrutura mais completa, com espaços como sala de pro-
fessores, biblioteca, laboratório de informática e sanitário para educação infantil;
há também espaços como quadra esportiva e parque infantil. Além disso, as escolas
desse nível possuem equipamentos complementares como copiadora e acesso à in-
ternet. Por fim, no nível avançado, as escolas possuem uma infraestrutura escolar
mais robusta e mais próxima do ideal, com a presença de laboratório de ciências
e dependências adequadas para atender estudantes com necessidades especiais
(SOARES NETO et al., 2013).
Pieri e Santos (2014), também a partir de variáveis dicotômicas de ausência
(atribuída com valor 0) e presença (atribuída com valor 1), estabeleceram a média
para os parâmetros do formulário de escolas do Censo. Após o estabelecimento das
medidas de tendência central, os autores calcularam a ponderação das variáveis
selecionadas, determinando as raízes características que dão o peso de cada fator
para explicar a variância total dos dados. Uma vez obtidos os pesos, os autores
padronizaram cada variável para poder computar a média final, que designou o ín-
dice em que foi subtraída a média de cada variável, sendo o resultado dividido por
seu desvio padrão. Assim, foi possível a construção de um Índice de Infraestrutura
Desigualdades educacionais como obstáculo à justiça social: análise da infraestrutura de escolas de Minas Gerais
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
de Escolas (IIE), no qual quanto mais próximo de 0 está a escola, menor será seu
índice. Da mesma forma, quanto mais próximo de 1, maior o IIE.
As referidas escalas levaram em consideração a presença e a ausência da va-
riável para a construção das métricas, sem o objetivo de considerar a qualidade
da oferta do parâmetro considerado. Nesse sentido, ainda que essas pesquisas te-
nham contribuído para as investigações sobre infraestrutura das escolas no Brasil,
para uma discussão mais aprofundada sobre as relações da infraestrutura com a
qualidade, se faz necessária a avaliação da qualidade dos insumos. Para o moni-
toramento da qualidade, por exemplo, as tipologias de Cerqueira (2004) de alta
ou baixa infraestrutura apenas pela presença ou ausência de determinado item
são pouco esclarecedoras. Da mesma forma, a definição da equipe coordenada por
Soares Neto (2013) de escolas com infraestrutura avançada não é pertinente para
os dados levantados pelo Censo Escolar, podendo levar à (errônea) impressão da
presença de componentes que são além do básico para uma educação escolar.
Outras pesquisas buscaram superar esse aspecto estabelecendo critérios que
considerassem a qualidade do conjunto de itens do Censo, apesar das dificulda-
des pela própria natureza da fonte. Um trabalho que expressa esse objetivo é o
de Duarte, Gomes e Gotelipe (2019), que, analisando o Censo Escolar de 2013,
organizou os itens de referência a partir da atribuição de valores de zero a dois. O
valor “zero” expressa a disponibilidade insuficiente do item de referência (abaixo
do básico) e o valor “dois”, a oferta apropriada para educação escolar (adequada).
As situações intermediárias receberam o valor “um” (básica).
Os critérios estabelecidos para a construção das variáveis de referência nes-
sa escala ponderaram a qualidade do serviço, da dependência ou do equipamento
que compõe a infraestrutura das escolas por complementaridade dos itens, ou
seja, pela articulação das variáveis do Censo. Um exemplo interessante da im-
portância dessa ponderação levantada pelos autores é em relação ao item sobre
o prédio escolar. As pesquisas sobre infraestrutura escolar têm tratado esse ele-
mento de forma desagregada, levando a um entendimento de que a mera existên-
cia do prédio já é, por si só, suficiente. Porém, o cruzamento desse item com o do
local de funcionamento da escola revela que um número significativo de escolas
está localizado em templos e igrejas, salas de empresas, casa de professor, galpão,
compartilhando salas em outra escola, entre outras situações, o que não poderia
ser classificado como apropriado para um estabelecimento escolar (DUARTE;
GOMES; GOTELIPE, 2019).
Marisa Ribeiro Teixeira Duarte, Daniel Santos Braga
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Foram selecionadas 32 variáveis de interesse no Censo Escolar como itens
de pesquisa da infraestrutura das escolas, que foram agrupadas em três con
-
juntos: atendimento de serviços públicos; instalações (subdivididas em depen-
dências da escola e dependências de uso educacional); e equipamentos. Após a
ponderação pela complementaridade dos itens, os valores atribuídos geraram
16 variáveis de referência numéricas, discretas e ordinais (DUARTE; GOMES;
GOTELIPE, 2019). Com a aplicação da análise fatorial, pelo método das compo
-
nentes principais, com rotação ortogonal (varimax), os pesquisadores obtiveram
três fatores para explicação de variância, sendo que o primeiro, por responder
por 44,2% da variância, foi utilizado como índice de avaliação da infraestrutura.
Aplicou-se, então, o método de k-médias aos três fatores obtidos, para a definição
dos grupos.
Tendo em vista o objetivo deste trabalho, a saber, analisar a infraestrutura das
escolas de Minas Gerais, a escala elaborada por Duarte, Gomes e Gotelipe (2019)
foi utilizada. No entanto, o texto dos autores se restringe à análise de escolas com
oferta do ensino fundamental, o que fez com que fossem excluídos itens específicos
de outras etapas. Como a proposta deste artigo abrange toda a educação básica
do estado, foi necessário aferir a métrica, a fim de que se contemplassem aspectos
específicos de cada etapa. Assim, concorda-se com investigações de Alves e Soares
(2013) sobre o efeito escola, que sugerem que a ideia de “infraestrutura escolar ade-
quada” deve ser relativizada, uma vez que uma mesma infraestrutura que pareça
adequada para uma determinada etapa da educação básica pode não ser suficiente
para outra. A escala foi adequada para que, quando a escola fornecesse atendi-
mento para educação infantil, a presença de elementos como berçários e parques
infantis fosse levada em consideração, perfazendo 17 variáveis de referência – uma
a mais que as 16 do trabalho original.
O agrupamento dos itens de infraestrutura selecionados e as variáveis de re-
ferência com as adaptações para esta pesquisa foi feito em três grupos: quanto aos
serviços públicos (Quadro 1), quanto às instalações e dependências (Quadro 2) e
quanto aos equipamentos (Quadro 3). Quanto ao atendimento de serviços públicos,
as variáveis de interesse foram o abastecimento de água, oferta de energia elétrica,
saneamento básico e oferta de alimentação escolar.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Quadro 1 – Agrupamento de itens quanto aos serviços públicos
Serviços públicos
Variáveis de interesse Combinação das variáveis primárias Valor atribuído
(1)
Abastecimento de água
Água filtrada de rede pública de abastecimento 2
Água filtrada sem rede pública de abastecimento 1
Água não filtrada 0
(2)
Energia elétrica
Rede pública de energia 2
Outra forma de obtenção de energia 1
Energia elétrica inexistente 0
(3)
Saneamento básico
Tratamento de esgoto e lixo
Rede pública e coleta periódica ou reciclagem 2
Outras formas de destinação de lixo e esgoto 1
Sem rede pública, coleta periódica ou reciclagem 0
(4)
Alimentação
Alimentação, cozinha e refeitório 2
Alimentação conjugada com cozinha ou refeitório 1
Alimentação sem cozinha e refeitório 0
Fonte: adaptado de Duarte, Gomes e Gotelipe (2019).
Em relação ao abastecimento de água, buscou-se conferir se a água era fil-
trada advinda de rede pública (adequado) ou filtrada obtida por outros meios, tais
como poço artesiano, cacimba e cisterna, ou diretamente de rios, igarapés, riachos e
córregos (básico). A energia elétrica poderia ser obtida via rede pública (adequado)
ou por gerador ou fontes alternativas (básico). No tocante ao saneamento básico,
considerou-se como situação adequada a presença de atendimento de rede de es-
goto com coleta seletiva ou reciclagem do lixo; somente a rede de esgoto conjugada
com outra forma de destinação do lixo (queima, despejo em outras áreas e aterro)
foi considerada como básica. O serviço de alimentação foi considerado adequado
quando mediante a presença da oferta em locais adequados para preparo e refei-
ção. Na ausência de um desses elementos, essa variável foi considerada básica. As
variáveis de interesse do grupo de instalações e dependências foram local de fun-
cionamento, presença de sanitários, dependências administrativas, complementa-
res e esportivas, laboratórios, biblioteca e sala de leitura, elementos para educação
infantil e atendimento educacional especializado.
Marisa Ribeiro Teixeira Duarte, Daniel Santos Braga
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Quadro 2 – Agrupamento de itens quanto às instalações e dependências
Instalações e dependências
Variáveis de interesse Combinação das variáveis primárias
Valor
atribuído
(5)
Local de
funcionamento
Funciona em prédio próprio 2
Prédio é cedido ou alugado 1
Outros locais de funcionamento 0
(6)
Sanitários
Existência de banheiro dentro do prédio e destinado a deficientes 2
Existência de sanitário dentro do prédio ou para deficientes 1
Nenhuma das duas situações 0
(7)
Dependências
administrativas
Diretoria, secretaria e sala de professores 2
Apenas uma dependência administrativa 1
Nenhuma dependência administrativa 0
(8)
Dependências
complementares
Almoxarifado, despensa e lavanderia 2
Apenas uma dependência complementar 1
Nenhuma dependência complementar 0
(9)
Dependências
esportivas
Quadra e pátio coberto 2
Pelo menos uma dependência esportiva 1
Nenhuma dependência esportiva 0
(10)
Biblioteca e sala de
leitura
Com biblioteca e sala de leitura 2
Com um dos dois ambientes 1
Nenhum espaço destinado à leitura 0
(11)
Laboratórios
Laboratório de informática e de ciências 2
Laboratório de informática ou de ciências 1
Nenhum laboratório 0
(12)
Educação infantil
Presença de parque infantil e berçário 2
Parque infantil ou berçário 1
Sem parque infantil e berçário 0
(13)
Atendimento
especializado
Atendimento educacional especializado em sala própria 2
Atendimento educacional especializado sem sala própria 1
Sem atendimento educacional especializado 0
Fonte: adaptado de Duarte, Gomes e Gotelipe (2019).
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Para um local de funcionamento adequado, considerou-se prédio escolar
próprio. Prédio escolar cedido ou alugado foi considerado básico, enquanto qual-
quer outro tipo de local de funcionamento (salas de empresas, templos e igrejas,
galpão, casa do professor, salas de outra escola), abaixo do básico. A exceção nesse
item refere-se às escolas que funcionam em unidades prisionais e socioeducativas.
Sobre o item 11 – Biblioteca e sala de leitura, as pesquisas de infraestrutura em
geral não fazem distinção entre esses dois elementos, uma vez que o respondente
do Censo pode considerar como uma mesma coisa as duas dependências. Para essa
pesquisa, decidiu-se mantê-las como dependências separadas, dada a importân-
cia da sala de leitura no processo de ensino-aprendizagem (BRAGA; SILVESTRE,
2002; SOARES, 2003). O item 12 – Educação infantil só foi aplicado para escolas
que ofertassem educação infantil, sendo desconsiderado para outras etapas.
As variáveis de interesse do grupo de equipamentos foram: aparelhos televiso-
res, DVD, copiadoras e impressoras, som e multimídia, assim como computadores
para uso dos alunos e acesso à internet banda larga.
Quadro 3 – Agrupamento de itens quanto aos equipamentos
Equipamentos
Variáveis de interesse Combinação das variáveis primárias
Valor
atribuído
(14)
TVs e DVDs
Dispõe de aparelhos de televisão e DVDs 2
Dispõe apenas de televisão 1
Não dispõe de televisão e DVD 0
(15)
Copiadora e
impressora
Dispõe de máquina copiadora e impressora 2
Dispõe de um dos dois equipamentos 1
Não dispõe de nenhum dos dois equipamentos 0
(16)
Som e multimídia
Dispõe de equipamentos de som e multimídia 2
Dispõe de pelo menos um equipamento 1
Não dispõe de nenhum equipamento de som e multimídia 0
(17)
Computadores e
internet
Dispõe de computadores para alunos e internet banda larga 2
Dispõe de computadores para alunos ou internet banda larga 1
Não dispõe de computadores para alunos e internet banda larga 0
Fonte: adaptado de Duarte, Gomes e Gotelipe (2019).
Marisa Ribeiro Teixeira Duarte, Daniel Santos Braga
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Para essas variáveis, seguindo tendência da literatura sobre infraestrutura de
escolas, foram desconsiderados equipamentos tidos como obsoletos, tais como apa-
relhos de videocassete, retroprojetor, antena parabólica e fax. Foi realizada uma
análise exploratória da distribuição de frequência desses itens e foi constatada
sua presença pouco significante nas escolas mineiras, dando margem de segurança
para essa exclusão.
A infraestrutura das escolas mineiras
O banco de dados do formulário Escolas do Censo Escolar 2016 nos dá acesso
a uma base com 30.217 escolas em Minas Gerais, dentre as quais, escolas públicas,
privadas, urbanas, rurais, ativas e inativas. Como, nesse banco, não estão disponí-
veis dados da etapa de ensino da escola, foi necessário integrar a base de matrícu-
las à pesquisa, tendo como chave de identificação o código da escola. Selecionando
apenas as escolas ativas em 2016, a base foi reduzida para 16.549 escolas. Desse
total, as escolas estão distribuídas quanto à localização e à dependência adminis-
trativa conforme consta na Tabela 1.
Tabela 1 – Distribuição das escolas mineiras quanto à localização e à dependência administrativa, 2016
Dependência administrativa Federal Estadual Municipal Privada Total
Localização
Urbana
Frequência 60 3312 5412 3975 12759
% do total 0,4% 20,0% 32,7% 24,0% 77,1%
Rural
Frequência 14 331 3401 44 3790
% do total 0,1% 2,0% 20,6% 0,3% 22,9%
Total
Frequência 74 3643 8813 4019 16549
% do total 0,4% 22,0% 53,3% 24,3% 100,0%
Fonte: Censo Escolar – Inep (BRASIL, 2016).
Os dados do Censo Escolar (Tabela 1) apontam que a grande maioria das es-
colas está localizada em área urbana (77,1%) e que as redes municipais respondem
por mais da metade do atendimento (53,3%). As redes privadas respondem a cerca
de um quarto das escolas do estado, estando concentradas em áreas urbanas (98%
do total).
A análise dessas escolas por meio das 17 variáveis de interesse organizadas em
3 grupos, conforme descrito na segunda seção deste artigo, possibilitou uma avalia-
Desigualdades educacionais como obstáculo à justiça social: análise da infraestrutura de escolas de Minas Gerais
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
ção das condições de oferta da educação em Minas Gerais. Quanto às condições de
infraestrutura do atendimento de serviços públicos (Quadro 1), os fornecimentos
de água e energia elétrica foram as variáveis de interesse que representaram o
maior percentual de adequação de infraestrutura das escolas mineiras. Apenas
11 escolas têm o atendimento inadequado à rede elétrica e 39 têm acesso básico,
perfazendo 0,3% do total. Assim, nesse quesito, 99,7% das escolas de Minas Gerais
têm infraestrutura adequada. A adequação do abastecimento pode ser encontrada
em 81,5% das escolas, uma vez que 2.952 escolas têm abastecimento básico, perfa-
zendo 17,8% do total. Portanto, apenas 0,7% das escolas estão com o fornecimento
de água em condições abaixo das básicas.
Apesar da adequação supracitada, a análise de outras variáveis de interesse
no grupo de atendimento de serviços públicos aponta desigualdades de condições
entre as escolas mineiras. Um número significativamente grande de escolas apre-
senta condições estruturais abaixo do básico necessário para seu funcionamento
em relação ao saneamento básico (2.224 escolas, 13,4% do total) e à oferta de ali-
mentação (2.658 escolas, 16,1% do total). Portanto, muitos alunos estudam, diaria-
mente, em condições de insalubridade e sem garantias alimentares fundamentais
para a aprendizagem.
No tocante às instalações e dependências escolares (Quadro 2), as desigualda-
des entre as escolas se tornam ainda mais evidentes, visto que 23% das escolas não
funcionam em locais adequados, ou seja, 3.806 escolas. Desse total, 23 funcionam
em salas de empresas, 112 em templos de igrejas, 24 em casa de professores, 59 em
galpões, 751 utilizam salas de outras escolas e 1.362 compartilham o prédio com
outras entidades. Somente 39,3% das escolas estão providas de sanitários dentro
dos prédios e destinados às pessoas com algum tipo de deficiência, sendo que 198
escolas (1,2% do total) não têm nem ao menos um banheiro dentro de suas instala-
ções. Além disso, 13% das escolas não têm nenhuma dependência administrativa
(diretoria, secretaria e sala de professores), 28% não têm almoxarifado, despensa e
lavanderia e 19,3% não têm quadra esportiva e pátio. Quase a metade das escolas
(48,8% do total) não tem nenhum laboratório, seja de ciências ou de informática, e
32,4% estão desprovidas de biblioteca e sala de leitura.
Somente 2.129 escolas contam com atendimento educacional especializado em
dependência especificamente destinada a esse fim; em 970 escolas esse atendi-
mento ocorre sem uma sala própria; e a grande maioria das escolas (81,3%, 13.450
escolas) não tem nem sala e nem atendimento para os estudantes com deficiência.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Para analisar a infraestrutura das escolas que ofertam educação infantil, foi
necessário associar o banco de dados das escolas com o banco das turmas do Censo
Escolar 2016, no qual estão discriminadas as etapas em que cada escola atua. As-
sim, foram localizadas 6.400 escolas que ofertam essa etapa da educação básica. A
distribuição das frequências quanto à localização e à dependência administrativa
dessas escolas consta na Tabela 2.
Tabela 2 Distribuição das escolas mineiras de educação infantil quanto à localização e à dependência
administrativa, 2016
Dependência Federal Estadual Municipal Privada Total
Localização Urbana Rural Urbana Rural Urbana Rural Urbana Rural Urbana Rural
Frequência 2 0 1 5 3.119 984 2.272 17 5.394 1.006
Total da etapa 2 6 4.103 2.289 6.400
% da etapa 0,03% 0,09% 64,11% 35,77% 100%
Fonte: Censo Escolar – Inep (BRASIL, 2016).
A grande maioria das escolas de educação infantil são urbanas (84,2% do to-
tal), sendo que as dependências administrativas que mais respondem pela oferta
dessa etapa são as redes municipais (64,1% do total da oferta) e as redes privadas
(35,7% do total da oferta). Quanto à categoria, somente parte das escolas privadas
registrou as informações no Censo, se eram particulares, comunitárias, confessio-
nais ou filantrópicas (2.289 escolas) (Tabela 3).
Tabela 3 – Distribuição das escolas mineiras privadas de educação infantil quanto à categoria, 2016
Frequência %
Particular 1381 60,3
Comunitária 258 11,3
Confessional 23 1,0
Filantrópica 627 27,4
Total 2289 100,0
Fonte: Censo Escolar – Inep (BRASIL, 2016).
Quanto à presença de convênio, a distribuição das escolas infantis privadas
consta na tabela 4.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Tabela 4 – Distribuição das escolas mineiras privadas de educação infantil quanto à presença de convênio,
2016
Frequência %
Não conveniada 1.340 58,5
Conveniada 949 41,5
Total 2.289 100,0
Fonte: Censo Escolar – Inep (BRASIL, 2016).
Assim, a análise dos dados das escolas de educação infantil revela que 29,8%
têm infraestrutura precária. Essa situação é ainda mais grave para as escolas mu-
nicipais (43,1% dessas escolas têm condições abaixo das básicas). Em relação às
escolas privadas, enquanto 35,2% das escolas conveniadas estão em condições de
infraestrutura adequadas para atender as crianças, 41,1% das escolas privadas
não conveniadas têm essa mesma estrutura.
O último grupo de variáveis de interesse relativo aos equipamentos (Quadro
3) diz respeito à presença de televisores, aparelhos multimídias, DVDs, copiado-
ras e impressoras, entre outros equipamentos. A maioria das escolas (85,9%) tem
aparelhos de televisão e DVD. Apesar de, em números relativos, somente 7,6% das
escolas não estarem providas desses recursos, em números absolutos esse valor
representa 1.255 escolas; 18,1% das escolas não têm copiadoras e impressoras para
reproduzirem materiais para os estudantes (equipamentos presentes em somente
55,1% das escolas); 57,9% das escolas possui aparelhagem de som e equipamento
multimídia, sendo que 2.048 estabelecimentos não têm nem um nem outro; 26%
das escolas têm computadores para uso dos estudantes com internet banda larga.
Após a descrição das características de infraestrutura das escolas mineiras a
partir dos três grupos de variáveis de interesse, construiu-se um índice do nível de
adequação de infraestrutura (NAI), de 0 a 1, de modo que, quanto mais próximo de
0 for o NAI de uma escola, pior será a sua infraestrutura, e quanto mais próximo
de 1, melhor será a sua infraestrutura. Considerou-se um NAI menor que 0,5 como
abaixo do básico; entre 0,5 e 0,75, infraestrutura básica; acima de 0,75, infraestru-
tura adequada. Dessa forma, foi possível estabelecer um grau de comparação entre
as escolas de Minas Gerais, em que as estatísticas descritivas das infraestruturas
podem ser resumidas pela Tabela 5.
Marisa Ribeiro Teixeira Duarte, Daniel Santos Braga
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Tabela 5 – Estatísticas descritivas do NAI das escolas de Minas Gerais, 2016
Tipo de escolas n Amplitude Mínimo Máximo Média Desvio padrão
Minas Gerais 16549 0,91 0,03 0,94 0,6299 0,16447
Escolas públicas 12530 0,91 0,03 0,94 0,6248 0,18027
Escolas privadas 4019 0,71 0,18 0,88 0,6459 0,09867
Públicas federais 74 0,59 0,31 0,91 0,7373 0,11855
Públicas estaduais 3643 0,81 0,13 0,94 0,7263 0,10094
Públicas municipais 8813 0,91 0,03 0,94 0,5819 0,18886
Privadas particulares 2662 0,65 0,24 0,88 0,6274 0,09203
Privadas comunitárias 285 0,65 0,18 0,82 0,6310 0,10291
Privadas confessionais 41 0,38 0,41 0,79 0,6661 0,09205
Privadas filantrópicas 1031 0,59 0,29 0,88 0,6969 0,09634
Fonte: Censo Escolar – Inep (BRASIL, 2016).
A partir dos dados apresentados, pode-se apontar que o grupo que apresenta
maior média de NAI é o das escolas públicas federais (0,73), seguidas das escolas
públicas estaduais (0,72). Em relação às escolas privadas, as filantrópicas são as
que apresentam maior média (0,69), seguidas das escolas confessionais (0,66). As
escolas municipais são as que apresentaram a menor média de NAI. Quanto à de-
sigualdade, as escolas com menor variação de médias são as privadas confessionais
e particulares, com desvio padrão de 0,09, e as maiores desigualdades estão nas
escolas públicas municipais, com desvio padrão de 0,18.
Em relação à espacialidade das condições de infraestrutura das escolas minei-
ras, optou-se, nesta pesquisa, por trabalhar com o município como unidade de aná-
lise. Dessa forma, calculou-se a média do NAI por município e elaborou-se um mapa
temático graduado em cores, para melhor visualização da distribuição territorial.
Para fins de comparação, esse mapa foi colocado lado a lado com um mapa com a
distribuição territorial de renda per capita – dados obtidos no Censo Demográfico
(BRASIL, 2010). O objetivo foi perceber se havia alguma correspondência entre as
baixas condições de infraestrutura escolar e a renda da população atendida.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Figura 1 – Mapas de nível de adequação de infraestrutura das escolas de Minas Gerais e renda per capita
em R$ – 2016
Fonte: Censo Escolar – Inep (BRASIL, 2016); Censo Demográfico 2010 (BRASIL, 2010).
A partir dos mapas, percebe-se uma evidente correspondência entre os mu-
nicípios do estado de Minas Gerais que apresentam os piores NAIs e aqueles que
apresentam renda per capita mais baixa. Essa correspondência tem nas redes mu-
nicipais de educação seu fator preponderante, dado que é esta dependência admi-
nistrativa responsável por mais da metade das escolas da educação básica. Nesse
sentido, são necessários novos estudos que analisem mais detidamente as redes
municipais de educação e a relação da infraestrutura e das condições de oferta com
outros parâmetros, tais como receita orçamentária e despesas com educação.
Considerações nais
A expansão das matrículas na educação básica na segunda metade do século
XX e a virtual universalização do acesso ao ensino fundamental nos anos de 1990
trouxeram à tona a necessidade de se estudar em que condições a educação escolar
tem sido ofertada no Brasil. Assim, a questão da infraestrutura das escolas passa
a figurar nas pesquisas educacionais como um importante elemento da qualidade
da educação. Devido às dimensões continentais do país e à inviabilidade de se veri-
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
ficar in loco a realidade de cada escola, o Censo Escolar do Inep tem sido utilizado
pelos pesquisadores para medir a infraestrutura dos estabelecimentos de ensino.
Os dados do Censo sugerem que a mera presença ou ausência de determinado item
nas escolas revela pouco de sua infraestrutura. A utilização de uma métrica que
considera a complementaridade de variáveis de interesse permitiu uma melhor
aferição da adequação das condições de oferta da educação escolar.
A análise dos agrupamentos apontou que as escolas de Minas Gerais, tanto
as públicas como as privadas, estão longe de terem uma infraestrutura adequada
para o desenvolvimento de uma educação de qualidade. Com exceção do atendi-
mento de serviços públicos de água e energia elétrica e da presença de equipamen-
tos de TV e DVD, todas as demais variáveis de interesse levantadas pela pesquisa
estão majoritariamente aquém do necessário. Essa inadequação se apresenta de
maneira ainda mais drástica nos itens: sanitários (apenas 39,3% das escolas com
nível adequado); atendimento educacional especializado (apenas 12,8% das escolas
com nível adequado); laboratórios (apenas 11,5% das escolas com nível adequado);
e biblioteca e sala de leitura (apenas 9% das escolas com nível adequado).
Apesar dos avanços na construção de parâmetros para mensurar o nível de
adequação das escolas por meio do Censo, novas pesquisas têm buscado superar as
limitações desse banco de dados. Em estudo da UNESCO (2017) sobre as desigual-
dades de aprendizado entre alunos das escolas públicas, foram realizadas análises
de condições estruturais das escolas a partir de questionários contextuais do Sis-
tema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) – Prova Brasil, que permitem inves-
tigar alguns aspectos como instalações, biblioteca, equipamentos e conservação do
prédio escolar. Ao contrário do Censo Escolar, que mensura a existência de itens
relacionados à infraestrutura da escola, os questionários contextuais se referem às
condições de uso e ao estado de conservação das instalações e dos equipamentos
das escolas (UNESCO, 2017).
A despeito dessas limitações, a métrica proposta por Duarte, Gomes e Gote-
lipe (2019), feitas as devidas aferições, permitiu uma aproximação original com
os dados de infraestrutura do Censo. Com essa medida, foi possível traçar o perfil
da adequação de infraestrutura das escolas de Minas Gerais, sob as jurisdições
federal, estadual e municipal, bem como das escolas privadas, com vistas a avaliar
a qualidade dos itens. Essa foi a base para a construção de um índice do nível de
adequação de infraestrutura, que permitiu uma comparação das escolas de Minas
Gerais e a elaboração de um mapa de distribuição territorial das desigualdades das
condições de oferta no estado.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Foi possível concluir que existe uma relação entre a estrutura escolar e as
condições socioeconômicas às quais as escolas estão submetidas. As regiões mais
carentes e que, portanto, abrigam escolas que necessitam superar os déficits de ca-
pital cultural de seus alunos são exatamente as que apresentam as piores infraes-
truturas. É fundamental mais atenção por parte dos gestores públicos e privados
para a consolidação do acesso à educação de qualidade, com a provisão das escolas
com atendimento de serviços públicos, instalações e dependências prediais e equi-
pamentos adequados, com vistas a maiores equidade e justiça social das condições
de oferta da educação escolar. Se, no início do século XX, os estabelecimentos de
ensino eram arquitetonicamente pensados para se diferenciarem dos pardieiros da
fase anterior, as escolas mineiras da primeira década do século XXI estão muito
distantes dos palácios que receberam as escolas reunidas.
Nota
1
Pesquisa financiada por recursos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq).
Referências
ALBERNAZ, A.; FERREIRA, F.; FRANCO, C. Qualidade e equidade no ensino fundamental
brasileiro. Pesquisa e Planejamento Econômico, Rio de Janeiro, v. 32, n. 3, p. 453-476, 2002.
ALVES, M. T. G.; SOARES, J. F. Contexto escolar e indicadores educacionais: condições desi-
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Tempo de estudo, rendimento e estratégias de aprendizagem de alunos do 5º ano do ensino fundamental de escolas públicas municipais
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Tempo de estudo, rendimento e estratégias de aprendizagem de alunos do
5º ano do ensino fundamental de escolas públicas municipais
Study time, performance and learning strategies of 5th year elementary school students in
municipal public schools
Tiempo de estudio, desempeño y estrategias de aprendizaje de alumnos de 5º año del primario
de escuelas públicas municipales
Jussara Cristina Barboza Tortella
*
Vivian Annicchini Forner
**
Resumo
Este trabalho teve o objetivo de conhecer o tempo dedicado aos estudos, o rendimento e as estratégias de
aprendizagem de 24 alunos do 5º ano do ensino fundamental participantes do projeto intitulado As Travessuras
do Amarelo, que visa à promoção da autorregulação da aprendizagem. Foram selecionados estudantes de sete
escolas de um município do interior do estado de São Paulo. A análise dos dados, coletados a partir de uma en-
trevista semiestruturada, indica que os alunos aprenderam a utilizar o modelo Plea (planejar, executar e avaliar)
– pedir ajuda, identicar os distratores, respeitar os colegas e persistir em suas tarefas. Quando questionados
sobre as mudanças nos seus estudos, constatou-se que a maioria dos alunos indicou o aumento do número de
horas de estudo e também das notas após o projeto. O artigo está organizado da seguinte maneira: as primeiras
seções discutem teoricamente os conceitos de autorregulação da aprendizagem, tempo de estudo e estratégias
de aprendizagem. Em seguida, apresentam-se o método e os procedimentos da pesquisa, os resultados, a dis-
cussão e, por m, as conclusões do estudo. Enfatizamos a necessidade de novos estudos sobre estratégias de
aprendizagem utilizadas por alunos que se mostraram mais autorreguladores de suas aprendizagens.
Palavras-chave: Autorregulação. Ensino fundamental. Estratégias de aprendizagem. Rendimento escolar. Tempo
de estudo.
Abstract
The aim of this study was to verify the time devoted to studies, performance and learning strategies used by
24 students from the 5
th
grade of elementary school participating in The Mischief of the Yellow project, which
aims to promote self-regulation of learning. Twenty-four students from the 5
th
grade of elementary school were
selected from seven schools in a city in the countryside of São Paulo state. Data analysis, collected from a semi-
*
Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Docente Permanente do Programa de
Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas). Brasil. ORCID: 0000-
0002-9076-8739. E-mail: jussaratortella@gmail.com
**
Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica de Campi-
nas (PUC-Campinas). Brasil. ORCID: 0000-0002-9692-6718. E-mail: vivianforner@gmail.com
Recebido em 21/10/2018 – Aprovado em 04/06/2019
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v26i3.8773
Jussara Cristina Barboza Tortella, Vivian Annicchini Forner
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
-structured interview, indicates that students have learned how to use the Plea model (Planning, Executing,
Evaluating) – ask for help, identify distractors, respect colleagues, and persist in their tasks. When questioned
about the changes in their studies, it was found that most students indicated the increase in the number of
study hours and grades, after the project. We emphasize the need for new studies on learning strategies used
by students who have proven to be more self-regulated in their learning. The article is organized as follows: the
rst sections theoretically discuss the concepts of self-regulation of learning, study time and learning strategies.
Next, it presents method and procedures of the research, results, discussion and, nally, the conclusions of the
study. We emphasize the need for new studies on learning strategies used by students who have been more
self-regulated in their learning.
Keywords: Self-regulation. Elementary school. Learning strategies. School performance. Study time.
Resumen
El objetivo de este trabajo fue conocer el tiempo dedicado a los estudios, el rendimento y las estrategias de
aprendizaje utilizadas por 24 estudiantes del quinto año de la escuela primaria que participaron en el proyecto
“La travesura del amarillo, cuyo objetivo es promover la autorregulación del aprendizaje. Fueron seleccionados
24 estudiantes del quinto año de la escuela primaria de siete escuelas en un condado del interior del estado de
São Paulo. El análisis de datos, recogido de una entrevista semiestructurada, indica que los alumnos han aprendi-
do a utilizar el modelo PEJE (Planica, Ejecuta y Evalúa) - pedir ayuda, identicar a los distractores, respetar a los
compañeros y persistir en sus tareas. Cuando se les preguntó sobre los cambios en sus estudios, se encontró que
la mayoría de los estudiantes indicaron el aumento en la cantidad de horas de estudio y calicaciones después
del proyecto. El artículo está organizado de la siguiente manera: las primeras secciones discuten teóricamente
los conceptos de autorregulación del aprendizaje, el tiempo de estudio y las estrategias de aprendizaje. A conti-
nuación, presenta el método y los procedimientos de la investigación, los resultados, la discusión y, nalmente,
las conclusiones del estudio. Enfatizamos la necesidad de nuevos estúdios sobre las estrategias de aprendizaje
utilizadas por los alumnos que han sido más autorregulados en su aprendizaje.
Palabras clave: Autorregulación. Primario. Estrategias de aprendizaje. Rendimiento escolar. Tiempo de estudio.
Introdução
Este trabalho de investigação, inscrito no âmbito dos estudos sobre a autorre-
gulação, teve como lócus de pesquisa um projeto que visa à promoção dos processos
de autorregulação da aprendizagem denominado “As Travessuras do Amarelo”. O
estudo objetivou conhecer o tempo, o rendimento e as estratégias de aprendizagem
de 24 alunos do 5º ano do ensino fundamental que participaram do referido projeto
quando cursavam o 4º ano. É importante destacar que o projeto foi desenvolvido
pelo Grupo de Investigação Universitária em Autorregulação (Guia) da Universi-
dade do Minho, Portugal, tendo como principal objetivo desenvolver a autorregu-
lação em crianças dos ensinos pré-escolar e fundamental, a partir do livro infantil
intitulado Sarrilhos do amarelo, no Brasil: As travessuras do amarelo.
O (in)sucesso escolar é tema recorrente nas políticas educacionais e de inte-
resse de pesquisas na área da Educação, de forma específica na área da Psicolo-
Tempo de estudo, rendimento e estratégias de aprendizagem de alunos do 5º ano do ensino fundamental de escolas públicas municipais
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
gia Educacional. Uma questão frequente na fala dos educadores é que os alunos
geralmente não têm o hábito de estudar e não utilizam estratégias adequadas na
realização das tarefas escolares. Contudo, existe, obviamente, uma multiplicidade
de motivos para que isso ocorra, alguns relacionados com o próprio aluno, como
quando ele não consegue resolver problemas propostos em sala de aula; outros re-
lacionados à metodologia utilizada pelo professor que, muitas vezes, não sabe como
pode oferecer propostas que busquem a superação das dificuldades dos alunos, tais
como compreender um texto, completar uma tarefa proposta para casa ou realizar
um trabalho em grupo.
Segundo Almeida (2002), as múltiplas variáveis no processo de aprendizagem
podem ser classificadas em: fatores sociais; dinâmicas internas da escola; variáveis
pessoais dos alunos, dos professores e das interações. No entanto, há que se consi-
derar outros aspectos para a compreensão do fenômeno da aprendizagem. Assim,
os estudos sobre a importância da autorregulação e o ensino das estratégias de
aprendizagem no sucesso escolar dos alunos podem auxiliar a compreensão de tal
fenômeno (NÚÑEZ et al., 2015; ROSÁRIO et al., 2015a; ROSÁRIO et al., 2015b;
ROSÁRIO et al., 2016). Lourenço e Paiva (2016) destacam que o conceito da autor-
regulação abarca fatores intervenientes que também interferem no sucesso escolar,
tais como o clima da escola, a motivação e as responsabilidades das pessoas envol-
vidas, o currículo e as práticas docentes, o apoio familiar, entre outros.
A autorregulação da aprendizagem é definida como um processo ativo ao qual
os sujeitos estabelecem os objetivos que orientam suas aprendizagens, no sentido
de monitorar, regular e controlar cognições, comportamentos e motivações, a fim de
alcançar os objetivos estabelecidos. Esse processo se dá a partir de um movimento
cíclico e dinâmico na busca da aquisição de conhecimentos, envolvendo não apenas
os aspectos cognitivos, mas também os motivacionais e afetivos (ZIMMERMAN,
2008; ZIMMERMAN; SCHUNK, 2011).
O que se deseja alcançar com o ensino de estratégias de aprendizagem é que
os conhecimentos adquiridos pelos alunos na escola possam ser utilizados por eles
em outras situações de suas vidas cotidianas, trata-se de um processo denominado
de transferência de estratégias. Para Rosário, Núñez e Gonzáles-Pienda (2007), a
transferência de estratégias é um dos objetivos principais do processo de aprendiza-
gem, contudo, isso só ocorrerá se o aluno tiver a oportunidade de vivenciar diversas
atividades, aprender diferentes estratégias e sentir a necessidade de utilizá-las.
Considerando tais apontamentos, este artigo reflete sobre aspectos interve-
nientes no processo de aprendizagem de alunos do ensino fundamental. Para isso,
Jussara Cristina Barboza Tortella, Vivian Annicchini Forner
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
traz inicialmente uma reflexão sobre a importância do ensino de estratégias de
aprendizagem, rendimento escolar e a questão do tempo de estudo. Em seguida,
apresenta o método e os resultados da pesquisa.
O tempo de estudo e as estratégias de aprendizagem
Os estudos e as intervenções educativas com foco na autorregulação da apren-
dizagem podem auxiliar na superação de alguns problemas encontrados no ensino
fundamental, tais como dificuldades de concentração, de persistir e terminar uma
tarefa, de conseguir bom desempenho escolar e de compreensão leitora (SERAFIM;
BORUCHOVITCH, 2010; BORUCHOVITCH, 2010; OLIVEIRA, M., 2015; OLI-
VEIRA; TORTELLA, 2015; OLIVEIRA, S., 2015; TENCA, 2015; TENCA; TOR-
TELLA, 2015; SILVA, 2015).
O papel do docente nessa perspectiva é fundamental, pois ele é o responsável
por apresentar e ensinar algumas estratégias, acompanhar sua utilização pelos
alunos, dando feedbacks contínuos sobre o desempenho e a utilização dessas estra-
tégias de aprendizagem rumo à utilização autônoma por parte dos alunos.
O tempo de estudo está relacionado com a realização das lições de casa – de-
nominado trabalho para casa (TPC) por alguns autores portugueses –, com estudos
autônomos dos alunos e estudos dirigidos para épocas escolares específicas, como a
realização de provas. Hoje em dia, há uma grande preocupação com o fracasso es-
colar dos alunos e sua pouca dedicação nas realizações das tarefas de casa. Autores
consideram que o TPC pode ser o elemento chave para afrontar o fracasso escolar,
pois mobiliza o uso de estratégias de autorregulação da aprendizagem e envolve a
autoeficácia (ROSÁRIO et al., 2011). Nesse sentido, entende-se a necessidade de
aprofundar o conhecimento do aluno perante a forma como se realiza as lições de
casa e a sua importância.
A lição de casa é entendida como uma ferramenta instrucional para melhorar
o desempenho escolar dos alunos, desenvolvendo habilidades de estudo, autorregu-
lação, envolvimento com a escola, disciplina e responsabilidade (ROSÁRIO et al.,
2009; ROSÁRIO et al., 2011; ROSÁRIO et al., 2015a; ROSÁRIO et al., 2015b). No
entanto, destaca-se que é fundamental que, na realização das lições, seja observado
o padrão pessoal do trabalho de cada aluno e sua maneira de desenvolver as ativi-
dades propostas.
Para Rosário et al. (2009), tanto os alunos mais estudiosos quanto os que não
se empenham podem apresentar a mesma quantidade de tempo de estudo, nesse
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
sentido, afirmam que o importante a se observar é a qualidade do estudo. O excesso
de tempo pode significar tanto uma dificuldade com o conteúdo quanto falta de
contração na realização da tarefa ou o envolvimento pleno do aluno.
Rosário et al. (2015a), ao pesquisarem os efeitos dos trabalhos de casa a partir
do acompanhamento do trabalho docente, demonstram efeito positivo no desempe-
nho dos estudantes em seus estudos quando existe o feedback dos professores. Os
autores mostram que as práticas de acompanhamento podem se referir a partir
da verificação oral dos trabalhos de casa, da verificação do trabalho na aula, ou
mesmo do recolhimento desse trabalho para verificação posterior.
Rosário et al. (2015b) propõem que professores realizem o feedback sobre a
performance das lições de casa que o aluno realizou com o intuito de maximizar o
impacto das tarefas, podendo reforçar os aspectos positivos dos estudantes, moti-
vando-os e apresentando-lhes o que é preciso melhorar.
Lopes da Silva e Sá (1993) descrevem diversas estratégias e procedimentos a
serem utilizados pelos alunos nas atividades escolares. Ao tratarem do conceito de
autocontrole, as autoras destacam as estratégias comportamentais que possibili-
tam o controle do tempo e da concentração durante o estudo. Nesse sentido, citam
que, sendo uma das principais dificuldades apresentadas pelos alunos com baixo
rendimento escolar, o tempo insuficiente ou não existente de estudos em casa ne-
cessita ser refletido por professores e alunos, no intuito de reconhecer suas causas
e superá-las.
Os possíveis motivos dessa inexistência/carência podem ser causados pela
ideia de que esse estudo não é necessário, pois o aluno está habituado a realizar
somente as tarefas que os professores passam como dever de casa, sem estabelecer
um plano de estudo; pela falta de local para estudar; ou até mesmo pelo local ser
tomado por distratores que interferem na realização desse estudo. Essa realidade
faz com que o aluno estude apenas na véspera das provas, o que pode causar níveis
de ansiedade elevados que provocam dificuldades na concentração e na atenção do
estudante (LOPES DA SILVA; SÁ, 1993).
É necessário que, inicialmente, o estudante aprenda a autocontrolar seu estu-
do, ou seja, planeje-o e organize-o da forma mais eficaz, aumentando sua autorres-
ponsabilização pela própria aprendizagem. Isso envolve estabelecer horários ade-
quados e organizar períodos de estudo, para que seja possível que o aluno se sinta
confiante sobre seus conhecimentos nas avaliações (LOPES DA SILVA; SÁ, 1993).
Há necessidade de um planejamento para os horários de estudo de forma a
estabelecer os períodos mais adequados para a realização das atividades escolares,
Jussara Cristina Barboza Tortella, Vivian Annicchini Forner
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
envolvendo, também, horários de lazer e recreação. Mesmo quando os horários
forem definidos, o estudante precisa continuar a monitorar sua eficiência e cumpri-
-los. Junto com os horários, é necessário estabelecer objetivos específicos e realistas
com as necessidades pessoais (LOPES DA SILVA; SÁ, 1993).
O TPC é um processo complexo e se relaciona positivamente com a autorre-
gulação, sendo que os alunos com maior autoeficácia demonstram melhores ren-
dimentos. Entende-se que, para que o aluno se organize para o estudo de uma
forma autônoma, é preciso que ele aprenda determinados procedimentos de como
estudar, determinadas estratégias de aprendizagem. O TPC, nesse sentido, é um
passo importante para essa aprendizagem. Nota-se que a lição de casa leva o aluno
a gerir seu tempo de forma a desenvolver e assumir responsabilidades, valorizar
seus esforços, lidar com erros e com as dificuldades na aprendizagem. São passos
do TPC: a preparação e a marcação das tarefas, que acontecem na sala de aula a
partir da orientação do professor; a realização das tarefas pelo aluno em sua casa;
e a verificação e monitorização das tarefas com feedback, em sala de aula. Para tan-
to, o aluno necessita conhecer e aplicar determinadas estratégias de aprendizagem
(ROSÁRIO et al., 2005).
O ensino de estratégias parte da ideia de que os professores têm, intencio-
nalmente, como foco o ensinar a aprender (ALMEIDA, 2002). Esse ensino parte
do pressuposto de que o aluno deve ter oportunidades de escolher e controlar suas
ações frente às tarefas propostas. Portanto, ele não é algo prescritivo, e sim um
aprendizado que passa por processos que vão desde o conhecimento das estratégias
até a aplicação delas, a oportunidade de decidir quais estratégias utilizar e em qual
situação. Cabe ressaltar que apenas o conhecimento não é suficiente para a utiliza-
ção eficaz das estratégias, mas elas devem ser utilizadas em diferentes contextos,
para que aos poucos o aluno saiba utilizá-las (ROSÁRIO, 2004).
O ensino das estratégias pode ser utilizado já na educação infantil, e o quanto
antes for iniciado, mais possibilidades os alunos têm de se apropriar de determi-
nadas estratégias, sendo um fator considerado como preditivo do desempenho es-
colar (ROSÁRIO, 2004; GOMES; BORUCHOVITCH, 2011). A aprendizagem das
estratégias pode propiciar uma aprendizagem autorregulada. Por exemplo, um
fator importante para o aluno que quer autorregular o seu estudo é o controle da
atenção, que envolve o local de estudo. Há estímulos presentes nos locais de estudo
que podem dificultar a atenção e a concentração. Nesse sentido, é preciso que o
aluno comece a eliminar distratores, de forma a criar um ambiente mais favorável
para o cumprimento de seus objetivos. Na sala de aula, que também é um lugar de
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
estudo, acontece o mesmo. Esses espaços de estudo necessitam da elaboração de
estratégias para ultrapassar esses obstáculos encontrados.
Estudos indicam que os distratores para as crianças do 5º ano são, principal-
mente, os eletrônicos, tais como celulares ou videogames (OLIVEIRA; TORTELLA,
2015). Outro ponto em destaque é a presença de animais e o barulho das pessoas.
O reconhecimento desses distratores pode auxiliar na organização e na discussão
do estudo e da busca por autonomia na aprendizagem.
A utilização de projetos pode se constituir como um procedimento eficaz para o
desenvolvimento da autorregulação. O projeto intitulado “As Travessuras do Ama-
relo” tem por objetivo a vivência de estratégias de aprendizagem a partir de uma
metodologia específica, com foco principal no ensino das estratégias de planeja-
mento, execução e autorregulação, denominada pelos autores de Plea (planejar,
executar e avaliar).
Pautado nos estudos de Zimmerman (2002), esse modelo apresenta fases que
foram organizadas da seguinte forma: 1) planificação (pensar antes): autoavalia-
ção, estabelecimento de objetivos e planejamento, seleção ou alteração da estrutu-
ra ambiental, procura de ajuda social; 2) execução (pensar durante): organização
e transformação, procura de informação, tomada de apontamentos, repetição e
memorização; 3) avaliação (pensar depois): autoconsequências, revisão de dados.
O modelo foi intitulado de Plea (ROSÁRIO et al., 2007; POLYDORO; AZZI, 2009).
Durante o desenvolvimento do projeto que utiliza a literatura infantil como
uma importante ferramenta para o desenvolvimento do trabalho de autorregula-
ção, o professor e os alunos leem a história das cores do arco-íris e se defrontam
com a problemática de uma das cores que some no bosque: o amarelo. Por meio do
livro As travessuras do amarelo, pode-se adquirir diferentes estratégias de apren-
dizagem, afinal, durante a narrativa, que se divide em dezessete capítulos, os per-
sonagens desenvolvem estratégias para que consigam encontrar o amigo perdido,
conduzindo a criança a perceber semelhanças com sua vida escolar e familiar, fa-
zendo com que o personagem sirva de modelo para a aprendizagem autorregulada.
Em resumo, acredita-se que, se o aluno souber como utilizar as estratégias
em suas atividades escolares, essas favorecerão seu desempenho. Ainda, o aluno
desenvolve um papel ativo em sua aprendizagem, de forma a atingir seus objetivos.
Cria-se um contexto no qual o discente compreende a importância de estabelecer
objetivos de estudo para si, de persistir e avaliar os objetivos alcançados (LOPES
DA SILVA; SÁ, 1993).
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Método de pesquisa
Trata-se de um estudo descritivo de abordagem qualitativa, que faz parte de
um projeto docente intitulado “A formação continuada de professores na escola:
aprendizagens desenvolvidas em um ambiente colaborativo (a formação de alunos
autorreguladores)”.
1
Participaram da pesquisa 24 alunos do 5º ano de 7 escolas
municipais de uma cidade do interior do estado de São Paulo, com idades entre 9
e 11 anos, com média de 9,79 e desvio padrão de 0,58, de ambos os sexos, sendo a
maioria do sexo masculino, 62,5%.
Procedimentos de produção do material empírico
Inicialmente, entramos em contato com orientadores pedagógicos da Secreta-
ria de Educação de um município do interior do estado de São Paulo para a iden-
tificação das escolas municipais que poderiam participar da pesquisa, ou seja, que
atendiam alunos do 5º ano e que haviam participado do projeto “As Travessuras
do Amarelo” no ano anterior (4º ano). O referido projeto adota como procedimento
a coleta de informações sobre: número de horas que os alunos estudavam após
o horário que frequentavam a escola por semana – de segunda-feira até sábado;
inventários sobre autorregulação, autoeficácia e controle volitivo. Os responsáveis
informaram que três questionários foram aplicados durante o desenvolvimento do
projeto, em um total de 269 alunos.
Após a aprovação dos responsáveis, os dados dos questionários foram cedidos
e inseridos no pacote estatístico Statistical Package for the Social Sciences (SPSS),
para a realização de análises descritivas e da frequência da amostra. A média diá-
ria de tempo de estudo apontada por estes alunos variou entre 55,71 minutos na
primeira aplicação do questionário, 48,65 minutos na segunda e 45,31 minutos na
terceira, por semana (segunda-feira a sábado). Por meio dessas análises, seleciona-
ram-se 30 alunos, sendo 10 com as maiores médias do número de horas de estudo
apontadas durante três momentos de coleta dos questionários, 10 com médias in-
termediárias e 10 alunos com as menores médias. Portanto, esse foi o critério de
escolha dos participantes.
Após a identificação dos alunos selecionados, fizemos contatos iniciais com os
coordenadores de cada escola para o agendamento das entrevistas com os alunos e
para verificar se havia autorização dos pais para a realização da pesquisa. Foi cons
-
tatado que alguns alunos dessa lista haviam sido transferidos para outra escola. No
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total, 24 alunos estiveram aptos a participar da pesquisa. As entrevistas, com quatro
questões semiestruturadas, foram realizadas em uma sala cedida pela escola. Cada
entrevista durou em média vinte minutos. As crianças tiveram ciência de que suas
falas seriam gravadas e posteriormente transcritas e que seus nomes seriam fictícios.
Resultados
A primeira questão (o que você se lembra do projeto “As Travessuras do Ama-
relo”?) tinha por objetivo criar um contexto de ambientação para o restante da en-
trevista. Todos os alunos, quando questionados, descreveram trechos da história,
sendo que, desses, treze alunos se reportaram ao Plea.
As respostas à segunda questão (o que você aprendeu durante a participação
no projeto no 4º ano?) foram categorizadas de acordo com seus argumentos e organi-
zadas a partir do número de horas de estudo (MM – alunos com maiores médias do
número de horas de estudo; MI – médias intermediárias; MnM – médias menores).
É importante destacar que os alunos poderiam apresentar mais que um argumento
em uma mesma resposta. Alguns trechos das entrevistas são destacados a seguir.
O aluno Lucas (MM)
2
apontou a aprendizagem do respeito aos amigos, além
de perceber que deve tomar cuidado com algumas situações conflituosas e eliminar
distratores:
Quando estivermos brincando não podemos nos esconder tão, tão longe para não se perder
em um lugar que você não conhece. Que a gente tem que respeitar os amigos na brincadeira,
não brigar com o amigo […]. Devo ficar longe da televisão, do computador e do vídeo game
que me distraem.
A aluna Laura (MM) afirmou o seguinte: “Aprendi o Plea, que ele é muito bom
[...]. Hoje, eu leio mais livros, estudo mais, escrevo muito mais […] antes eu não me
concentrava. Com o Plea eu fui mais para frente [sentou na carteira da frente], o
barulho da sala me atrapalhava”.
João (MM) demonstrou aprendizagens relacionadas a organização, persistên-
cia, planejamento e distratores:
Eu aprendi a ficar mais organizado, porque eu sempre perco minhas coisas, a obedecer e
sempre tentar e nunca desistir [...]. Eu gosto de brincar de procurar coisas perdidas, por causa
do livro, eu sempre falo pro meu sobrinho se esconder, e eu procuro ele, eu planejo ir por um
lado porque eu sei que ele vai pelo outro e tento subir por cima da casa porque pego ele no
alto. Eu peço para minha mãe não deixar eu sair de casa daí eu fico estudando o dia inteiro,
porque do contrário eu saio pela janela, ela tranca a porta do quarto, porque eu tenho meus
cachorrinhos, que eu gosto de cachorros, daí eu quero ficar brincando com eles.
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Adriano (MM) apontou o respeito, o trabalho em grupo, o pedido por ajuda, a
melhora na leitura e o Plea:
Aprendi a sempre trabalhar em grupo e que sem as pessoas não conseguimos fazer nada. Eu
peço ajuda para os meus amigos, para a professora quando não estou conseguindo [...]. Como
eu leio bastante melhorou minha letra, meu desenho. Eu gosto muito de desenhar, daí eu uso
o Plea. Meu pai gosta muito de desenhar, daí eu faço um desenho, pergunto para o meu pai
se está da hora
3
, e ele me diz o que posso mudar para melhorar.
Alessandra (MI) indicou a aprendizagem do Plea, do pedido por ajuda e da
eliminação de distratores: “Me ajudou a fazer as tarefas, para eu planejar as coisas
antes, executar e depois eu avalio, se está certo ou não […]. Eu peço ajuda para
minha mãe. A televisão me atrapalha, daí eu desligo, eu estudo no meu quarto com
a porta fechada”.
O aluno Gabriel (MI) destacou o respeito aos amigos, o pedido por ajuda, o
planejamento e os distratores:
Comecei a prestar mais atenção e compartilhar mais as coisas com meus amigos. Eu peço
ajuda quando preciso e eu ajudo eles. Me ajudou muito a planejar, eu planejo de fazer tarefas
com meus amigos, cada dia é uma casa que nós vamos, mais ou menos uma vez na semana
[…] saio de perto da televisão e fico no quarto.
O aluno Gustavo (MI) relatou o seguinte:
Aprendi a fazer muitas coisas, como a ajudar meus amigos a fazer a lição. Eu peço ajuda
quando eu preciso. Em matemática eu não preciso muito de ajuda porque matemática é fácil,
em língua portuguesa eu preciso de ajuda [...]. Eu faço o Plea quando sinto preguiça para
tentar ‘ralar bem, bem mesmo para eu poder expulsar essa preguiça, daí dá certinho quando
eu executo […]. Às vezes dá um pouco de preguiça, mas é daí que eu ‘ralo’ bastante para
expulsar essa preguiça.
Vinícius (MI) destacou a ajuda, a amizade e o Plea:
Aprendi que mesmo que não seja nossa família temos que ajudar e enfrentar as armadilhas.
Ajudo meus amigos sempre que precisam de ajuda, eu também peço ajuda, algumas vezes
peço ajuda para a calculadora [...]. Eu usava o Plea no teatro da Sepi [Serviço Espírita de
Proteção à Infância]. Eu planejava mais, pensava mais para tirar dúvida e ver se estava certo.
Beatriz (MnM) demonstrou aprendizagens relacionadas a persistência, pedido
por ajuda, Plea e eliminação de distratores:
Aprendi que você não pode desistir. Quando eu tenho uma dificuldade, eu não desisto. Nos
meus estudos, se eu não estou entendendo uma pergunta, eu pergunto para a ‘pro’ e para os
meus amigos para ver se eles entendem. Eu me lembro do Plea que tinha o planejar […]. De
vez enquanto, eu desligo a televisão para fazer a tarefa, porque atrapalha meus estudos. Eu
fico mais entretida na televisão do que na tarefa.
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Miguel (MnM) também demonstrou aprendizagens relacionadas ao Plea e ao
respeito aos amigos: “[Aprendi] que antes de você fazer alguma coisa, você tem que
planejar, pensar, para depois fazer; que a amizade é grande”.
Larissa (MnM) indicou que aprendeu sobre as aventuras, referindo-se sobre a
brincadeira de “esconder”, conforme pode ser compreendido em sua fala: “Às vezes
eu e minha irmã que também estuda aqui e estudou o amarelo, nós brincamos,
escolhemos uma cor e procuramos o amarelo entre as bonecas dela”.
Por fim, a aluna Carolina (MnM) apontou a aprendizagem da leitura e da es-
crita e do Plea: “Aprendi o Plea. Me ajudou na leitura, na escrita, antes eu errava
bastante”.
As respostas foram organizadas em oito categorias, a saber: Plea; identificação
de distratores; pedido por ajuda; respeito aos amigos; melhora na leitura e escrita,
persistência; organização; e sem resposta. A Tabela 1 apresenta a quantificação
das respostas.
Tabela 1 – Estratégias de aprendizagem utilizadas
Categoria MM MI MnM Total
Plea 12 7 3 22
Identificação de distratores 8 5 1 14
Pedido por ajuda 6 5 2 12
Respeito aos amigos 5 5 1 10
Melhora na leitura e escrita 3 3
Organização 2 2
Persistência 1 1 2
Sem resposta 1 1
Fonte: dados da pesquisa.
Os dados da pesquisa são positivos por demonstrarem que as estratégias de
aprendizagem mais citadas pelos alunos se relacionam ao Plea (n = 22), à identi-
ficação de distratores (n = 14), e ao pedido por ajuda (n = 12), demonstrando que
as crianças verbalizaram as estratégias aprendidas no decorrer do projeto, mesmo
um ano após o término. Os participantes, em sua grande maioria, consideram como
importante para os seus estudos a utilização do Plea e a eliminação de distratores,
destacando, portanto, a utilização dessas estratégias de aprendizagem em seus
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estudos. Chama a atenção que as estratégias também se relacionam a comporta-
mentos e atitudes, tal como o respeito aos amigos. Nessa linha de raciocínio, perce-
be-se que não são tão importantes, para esses alunos, as aprendizagens referentes
à persistência (n = 2) e à organização (n = 2).
Como mostra a Tabela 1, os alunos com médias maiores e médias intermediá-
rias apresentam um número maior de argumentos sobre o que aprenderam com o
projeto, por exemplo: respeitar os colegas, reconhecer os distratores, persistir em
suas tarefas e ser organizado. Alguns alunos indicaram a melhora na leitura e,
principalmente, apontaram o modelo Plea. Os dados nos conduzem a inferir que
aqueles que não desenvolvem estudos após o horário da aula apontam poucos ar-
gumentos (n = 8), quando comparados com os que mais estudam (n = 37). Chama
a atenção o fato de esses alunos, ainda assim, citarem o Plea e a ajuda, o que pode
demonstrar o desejo em desenvolver um estudo mais autorregulado.
Quando questionados sobre como estudavam no 4º ano e como era o estudo no
5º ano, constata-se que 99% dos alunos com médias maiores e médias intermediá-
rias de tempo de estudo indicaram que aumentaram o número de horas de estudo,
sendo que apenas um aluno de cada um desses grupos indicou não haver melhora.
Já entre os alunos com as médias menores, dois relataram ter aumentado o tempo
de estudo, dois indicaram que estudam menos tempo no 5º ano e um não conseguiu
argumentar. Por fim, os alunos foram questionados se consideravam que houve
melhoria das notas após a participação no projeto “As Travessuras do Amarelo”. Os
dados podem ser verificados na Tabela 2.
Tabela 2 – Melhoria das notas
Categoria MM MI MnM
Aumento das notas 12 6 2
Decréscimo nas notas 1 2
Ausência de argumento 1
Fonte: dados da pesquisa.
Dos alunos entrevistados, vinte argumentaram que perceberam que melhora-
ram suas notas após a participação no projeto. No entanto, três alunos disseram
que as notas baixaram, e um deles não soube apresentar nenhum argumento. De
forma geral, os alunos, tanto os que apontaram que estudavam mais quanto aque-
les que tinham menor tempo de estudo, demonstraram que aprenderam algumas
estratégias para planejamento, alteração da estrutura ambiental, quando apon-
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taram os distratores, procura de ajuda social e avaliação. Com relação às notas,
foi verificado que os alunos que indicaram estudar mais e com tempo de estudo
intermediário apresentaram argumentos da melhoria da nota.
Discussão
Conforme indicam os dados da pesquisa, todos os participantes lembravam de
passagens do livro As travessuras do amarelo e do projeto do qual haviam partici-
pado no 4º ano. Durante as entrevistas, eles descreveram as estratégias de apren-
dizagem que foram trabalhadas por meio da narrativa, respondendo ao objetivo
principal da pesquisa, que buscou conhecer o tempo, o rendimento e as estratégias
de aprendizagem utilizadas pelos alunos do 5º ano do ensino fundamental partici-
pantes de um projeto de autorregulação.
Algumas estratégias destacadas pelos alunos são consideradas importantes
para o sucesso escolar, como planejar, executar e avaliar (Plea), bem como ter per-
sistência e organização, estratégias consideradas como necessárias ao processo de
autorregulação (NÚÑEZ et al., 2015; ROSÁRIO et al., 2015a; ROSÁRIO et al.,
2015b; ROSÁRIO et al., 2016). Os discentes também apontaram a melhora na lei-
tura e escrita como consequência do aprendizado de estratégias, tal como apontado
por Gomes e Boruchovitch (2011). O entendimento da necessidade de ajuda, outro
ponto destacado, é reconhecido pelos pesquisadores como uma estratégia adaptati-
va e fundamental para o avanço no aprendizado (SCHUNK; ZIMMERMAN, 1994;
SERAFIM; BORUCHOVITCH, 2010). O reconhecimento de propostas para comba-
ter os distratores foi uma das estratégias destacadas pelos participantes. Essa es-
tratégia é frequentemente utilizada na fase da execução da tarefa, quando o sujeito
se autocontrola e monitora as ações executadas com uma maior atenção (OLIVEI-
RA; TORTELLA, 2015; KITSANTAS; ZIMMERMAN, 2006; ZIMMERMAN, 1998).
Nota-se que a participação no projeto propiciou ainda o reconhecimento da neces-
sidade do respeito aos amigos, um aspecto relacionado aos conteúdos atitudinais,
evidenciado na pesquisa de Tenca e Tortella (2015).
No fator tempo de estudo, os dados apontam para indícios de melhora. A maio-
ria dos alunos indicou que ampliou seu tempo de estudo. Um dos entrevistados
confirmou que não houve aumento por conta da necessidade de ajudar sua família:
“[...] agora eu estudo, mas não é assim de ficar o tempo todo, porque senão minha
mãe quer, nossa, ela fica brava quando eu estudo muito e eu não quero saber de
fazer nada, só estudar. Ela disse assim outro dia: [...] você pode estudar, mas ajuda
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eu um pouco” (Ignas, MnM). No entanto, o mesmo aluno demonstrou ter consciên-
cia do quão importante é o estudo em sua vida, como se observa no seguinte relato:
Com o projeto entendi que a gente tem que saber estudar, porque se a gente não estudar a
gente não vai ser ninguém na vida, não vai ter nenhum trabalho. Eu coloco a minha mãe em
exemplo, ela só estudou até a quarta série e ela está trabalhando em um serviço que é muito
ruim para ela. E o meu pai, ele fez todos os colegiais, fez todas as faculdades, e hoje ele está
em um emprego que ele está há mais de oito anos.
Ressalta-se que essa é a realidade de muitos alunos brasileiros, o que confirma
que o processo de aprendizagem se relaciona com as múltiplas variáveis dos fatores
sociais, das dinâmicas da escola e das próprias variáveis pessoais que compõem a
relação entre professor e aluno. Como destacado, a quantidade de horas não é o
fator mais importante, mas, sim, a forma como o tempo é utilizado (ROSÁRIO et
al., 2009). O presente estudo aponta que as crianças com maior tempo de estudo
são também aquelas que apresentam um maior número de argumentos sobre as
estratégias utilizadas.
Por meio das estratégias de aprendizagem, especialmente aquelas estudadas
a partir do livro em foco (ROSÁRIO et al., 2007), pode-se desenvolver um processo
de aprendizagem que supere as condições de fracasso escolar, por isso considera-
mos que esse é um ponto importante a ser ainda pesquisado. Lourenço e Noguei-
ra (2014) chamam a atenção para a necessidade de se discutir a importância do
aprendizado e de gerir o tempo das atividades no âmbito escolar.
Vale citar que alguns entrevistados demonstraram que continuaram a ler o
livro, mesmo com o término do projeto: “É legal, fala quando o amarelo se perde
e faz uma carta com formato de uma galinha. A formiga general ajuda as cores a
achar o amarelo. Estou relendo o segundo capítulo”. Essa continuidade mostra o
valor positivo do projeto na vida dos participantes.
Pesquisas demonstram uma relação da utilização das estratégias de apren-
dizagem com a melhoria do rendimento escolar (OLIVEIRA; BORUCHOVITCH;
SANTOS, 2009; SERAFIM; BORUCHOVITCH, 2010). Cabe destacar que uma das
crianças (Cristina, MM) identificou o decréscimo de suas notas da seguinte forma:
“Pioraram, antes eu tirava seis e meio, sete e meio, agora eu tiro cinco e meio, seis
e meio. Minha professora do quarto ano sabia ensinar bem, lia os textos, explicava
como era para fazer, mas essa não, ela só manda fazer”. Isso demonstra que o pro-
fessor fez toda a diferença em sua aprendizagem.
Algumas das crianças que se encontram no grupo com as menores médias
indicaram o decréscimo das notas por conta do fim do trabalho com o projeto, como
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relata Vinicius (MnM), ao se referir às notas que estavam melhores: “No primeiro
bimestre sim, por causa do projeto, mas agora, no segundo bimestre, minhas notas
caíram um pouco”. Esse argumento aponta para a necessidade da continuidade do
ensino das estratégias de aprendizagem.
Confirma-se, portanto, o papel do docente como fundamental no ensino e no
acompanhamento da aprendizagem das estratégias (ROSÁRIO et al., 2015b). Po-
de-se, ainda, salientar a lição de casa como possibilidade de aplicação dessas estra-
tégias de forma mais autônoma, permitindo ao aluno aplicar o que lhe foi ensinado
(ROSÁRIO et al., 2009; ROSÁRIO et al., 2011; ROSÁRIO et al., 2015b), por meio
do uso de suas habilidades de estudo, da sua autorregulação, do seu envolvimento
com a escola, da sua disciplina e da sua responsabilidade com os estudos.
Considerações nais
Foi possível, por meio dos dados analisados neste trabalho, verificar alguns
aspectos importantes da realidade escolar, na qual há possibilidades de os alunos
serem agentes do seu próprio aprendizado. No entanto, muitos pontos ainda preci-
sam ser compreendidos, principalmente quando analisamos as falas das crianças.
A partir dos resultados observados, concluímos que alunos de escolas muni-
cipais podem se beneficiar com a organização de um ambiente solicitador, em que
o ensino de estratégias de aprendizagem acontece a partir de diferentes situações
escolares cotidianas. Além disso, os professores precisam considerar qualidade e
tempo destinados aos estudos que os alunos realizam diariamente.
O projeto “As Travessuras do Amarelo” mostrou favorecer o desenvolvimento
de estratégias autorreguladoras por parte dos alunos investigados, podendo ser de
grande importância a sua utilização como ferramenta de ensino e aprendizagem
na educação.
Os resultados dão abertura para novos questionamentos e para a possiblidade
de novas pesquisas: qual é o tempo dedicado aos estudos e como são o rendimento
e as estratégias de aprendizagem utilizadas por alunos do 5º ano de escolas parti-
culares? Como professores de diferentes redes de ensino compreendem o papel do
ensino de estratégias de aprendizagem para o sucesso escolar?
Destacamos, por fim, a fala de uma criança com comentários sobre a diferença
que o projeto fez em sua vida:
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Aprendi que para tudo nessa vida temos que ter tipo um plano, uma estratégia. Por exemplo,
um amigo vai brigar com a gente, a gente tem que prestar atenção no que vamos falar. Para
estudar do jeito que faço temos que montar uma tabela para sermos organizados porque
sem isso não chegaremos a lugar nenhum. Os amigos também ajudam. Temos que ter um
planejamento, porque, se não tivermos um planejamento das coisas vai ser tudo uma bagunça
(Cristina, MM).
Esse conjunto de elementos demonstra a necessidade de novos estudos sobre
a temática, tendo em vista que são recentes no Brasil e, ainda assim, têm possibi-
litado aos alunos o seu sucesso escolar.
Notas
1
Número do Parecer: 1.332.688 CAAE: 49732515.2.0000.5481.
2
Nome fictício + número de horas (MM).
3
Gíria utilizada para dizer: “está bom”.
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Saberes da formação prossional docente: uma análise a partir do contexto Pibid
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Saberes da formação prossional docente: uma análise a partir do contexto Pibid
Teaching professional knowledges: an analysis of the context Pibid
Conocimiento de la formación docente: un análisis desde el contexto Pibid
Ana Lucia Pereira
*
Tatiane Skeika
**
Leila Inês Follmann Freire
***
Resumo
Este artigo tem como objetivo identicar as diferentes vertentes de formação e os saberes da formação pros-
sional docente que são construídos a partir das práticas de aprendizagem universitária, em um novo contexto,
como o do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid). Os sujeitos da pesquisa são 233
acadêmicos dos 13 cursos de licenciaturas de uma universidade pública do estado do Paraná. A pesquisa foi de
natureza qualitativa e os dados foram organizados e interpretados a partir de procedimentos metodológicos da
análise de conteúdo, em que foi possível identicar sete categorias que representam a formação no contexto
Pibid para esses licenciandos. Com base nos conceitos de saberes docentes e de professor reexivo, tendo em
vista a importância das relações construídas nesse contexto, os resultados evidenciaram que o contexto Pibid
possibilitou que os licenciandos pesquisados se colocassem em constante reexão sobre a própria prática, ree-
tindo no seu desenvolvimento prossional docente, por meio da construção de alguns saberes identicados nas
diferentes vertentes de formação desenvolvidas durante a construção dos conhecimentos da docência.
Palavras-chave: Contexto Pibid. Formação inicial de professores. Práticas educativas. Reexão-ação. Saberes do-
centes.
Abstract
This article aims to identify the dierent aspects of training and the knowledge of professional teacher training
that is built from university learning practices, in a new context, such as the Institutional Program of Initiatives
for Teaching (Pibid). The research subjects are 233 graduates who belonged to the 13 undergraduate courses of
a public university in the State of Paraná. The research is qualitative in nature and the data were organized and
interpreted from the methodological procedures of the Content Analysis from which it was possible to identify
*
Doutora em Ensino de Ciências e Educação Matemática pela Universidade Estadual de Londrina. Professora do De-
partamento de Matemática e Estatística, do Programa de Pós-Graduação em Educação e do Programa em Ensino
de Ciências e Educação Matemática na Universidade Estadual de Ponta Grossa. Bolsista Produtividade da Fundação
Araucária. Brasil. ORCID: 0000-0003-0970-260X. E-mail: ana.lucia.pereira.173@gmail.com
**
Doutoranda em Educação na Universidade Estadual de Ponta Grossa. Professora da educação básica na Secretaria do
Estado de Educação do Paraná. Brasil. ORCID: 0000-0001-6585-0514. E-mail: tati.skeika@gmail.com
***
Doutora em Ensino de Ciências (modalidade Ensino de Química) pela Universidade de São Paulo. Professora Adjun-
ta do Departamento de Química da Universidade Estadual de Ponta Grossa. Brasil. ORCID: 0000-0002-6679-411X.
E-mail: leilaireire@msn.com
Recebido em 28/11/2018 – Aprovado em 06/04/2019
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v26i3.8189
Ana Lucia Pereira, Tatiane Skeika, Leila Inês Follmann Freire
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
seven categories that represent the formation in the Pibid context for these graduates. Based on the concepts of
teacher knowledge and reective teacher, and considering the importance of the relationships built in this con-
text, our results show that the Pibid context allowed the researched graduates to reect on their own practice,
reecting their professional development teacher, through the construction of some knowledge identied in
the dierent training courses developed during the construction of teaching knowledge.
Keywords: Context Pibid. Initial teacher formation. Educational practices. Action-reection. Teacher knowledge.
Resumen
Este artículo tiene como objetivo identicar los diferentes cursos de capacitación y lo conocimiento de la for-
mación de docentes profesionales que se construyen a partir de las practicas de aprendizaje universitarias, en
un nuevo contexto, como el Programa Institucional de beca para iniciación de la Enseñanza (Pibid). Los sujetos
de investigación son 233 graduados que pertenecían a los 13 cursos de licenciaturas de una universidad pública
en el estado de Paraná. La investigación es de naturaleza cualitativa y los datos se organizaron e interpretaron a
partir de los procedimientos metodológicos del análisis del contenido, de los cuales fue posible identicar siete
categorías que representan la formación en el contexto de Pibid para estos graduados. Basados en los conceptos
de conocimiento docente y maestro reexivo, y considerando la importancia de las relaciones construidas en
este contexto, nuestros resultados muestran que el contexto Pibid permitió a los graduados investigados reex-
ionar sobre su propia práctica, reejando su desarrollo profesional docente, por medio de la construcción de
algunos conocimientos identicados en los diferentes cursos de capacitación desarrollados durante la construc-
ción del conocimiento de la enseñanza.
Palabras clave: Contexto Pibid. Formación inicial docente. Practicas educativas. Reexión-acción. Conocimiento
de los profesores.
Introdução
Um dos marcos do século XXI está na busca pela valorização do professor como
centro das preocupações relacionadas à educação (NÓVOA, 2009). Nesse aspecto, é
crescente a busca pela melhoria da formação profissional por meio da investigação
de conhecimentos e saberes necessários para ensinar, sendo uma das estratégias
a implantação de projetos voltados para a melhoria da qualidade de ensino aliada
à ampliação dos saberes docentes (FREITAS, 2002). No Brasil, o Ministério da
Educação (MEC) e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Supe-
rior (Capes), por meio da Diretoria de Educação Básica (DEB), vêm aprimorando
medidas para essas melhorias no que tange aos processos de formação. É notória
a importância do debate sobre formação de professores e sobre os contextos das
interações sociais e culturais, nas quais essa formação está inserida.
Dentre os programas apresentados pelo MEC e pela Capes, destacamos o Pro-
grama de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid), o qual é voltado principalmente para
a formação inicial. O Pibid foi criado no Brasil em dezembro de 2007 e instituído pela
Capes, no Brasil, a partir de 2008, oferecendo bolsas de iniciação à docência, com o
Saberes da formação prossional docente: uma análise a partir do contexto Pibid
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
objetivo de contribuir para a formação inicial e continuada de professores da educação
básica brasileira. Até o presente momento, podemos destacar que o Pibid tem se con
-
figurado como uma política pública de destaque na formação de professores no Brasil.
Baccon e Gabriel (2016) chamam essa nova oportunidade de formação de “con-
texto Pibid”, pois vai além dos contextos de formação já garantidos em lei, como
as horas de formação em cursos de graduação e pós-graduação, estágio supervi-
sionado, etc. Os autores destacam que, a partir desse novo contexto, o licenciando
tem a oportunidade de “[...] participar desde o início da sua formação acadêmica do
contexto escolar em escolas públicas para que desenvolvam atividades didático-pe-
dagógicas sob orientação de um docente da licenciatura (professor coordenador) e
de um professor da escola (supervisor)” (2016, p. 124).
Pensando nos saberes da formação profissional, que podem ser desenvolvidos nes-
se contexto, bem como nos impactos, impressões, expectativas, contribuições e avanços
que o programa Pibid, enquanto política pública, pode possibilitar para a formação
de professores, tanto inicial como continuada em serviço, é que o presente artigo tem
como objetivo identificar que vertentes de formação foram evidenciadas a partir desse
novo contexto que caracteriza os saberes da formação profissional docente.
Objetivos do Pibid e as funções dos estudantes de licenciatura
De acordo com a Portaria nº 096, da Capes, de 18 de julho de 2013, no Capítulo
I, art. 4, o programa foi criado com os seguintes objetivos:
I. Incentivar a formação de docentes em nível superior para a Educação Básica;
II. Contribuir para a valorização do magistério;
III. Elevar a qualidade da formação inicial de professores nos cursos de licenciatura, pro-
movendo a integração entre a Educação Superior e a Educação Básica;
IV. Inserir os licenciandos no cotidiano de escolas da rede pública de educação, pro-
porcionando-lhes oportunidades de criação e participação em experiências me-
todológicas, tecnológicas e práticas docentes de caráter inovador e interdiscipli-
nar que busquem a superação de problemas identificados no processo de ensino-
-aprendizagem;
V. Incentivar escolas públicas de Educação Básica, mobilizando seus professores como co-
formadores dos futuros docentes e tornando-as protagonistas nos processos de formação
inicial para o magistério;
VI. Contribuir para a articulação entre teoria e prática necessárias à formação dos docen-
tes, elevando a qualidade das ações acadêmicas nos cursos de licenciatura (BRASIL, 2013,
não paginado).
Ana Lucia Pereira, Tatiane Skeika, Leila Inês Follmann Freire
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
No art. 27, a portaria ainda prevê cinco modalidades de bolsas pelo Pibid,
sendo elas: coordenação institucional, coordenação de área de gestão de processos
educacionais, coordenação de área (sendo essas três primeiras modalidades com-
postas por professores de licenciaturas), supervisão (professor da escola pública de
educação básica) e iniciação à docência (estudante de licenciatura) (BRASIL, 2013).
Voltando-se para os trechos do documento que caracterizam o programa, per-
cebe-se a ampla possibilidade de aprendizado e consolidação para a carreira docen-
te que o Pibid pode proporcionar aos participantes do programa. Destaca-se, ainda,
que o Pibid propicia uma ponte para que a universidade execute a sua missão
de integração entre ensino, pesquisa e extensão, de modo indissociável, em que
a produção intelectual tem como base a pesquisa na construção do conhecimento
(SEVERINO, 2002; CUNHA, 2012; PIMENTA; ANASTASIOU, 2014).
Como afirma Severino (2002, p. 122), “aprende-se e ensina-se pesquisando”.
Portanto, a pesquisa tem um papel importantíssimo nesse processo, e o Pibid bus-
ca a valorização da pesquisa no processo de ensinar (PIMENTA; ANASTASIOU,
2014), proporcionando espaços de aprendizagem que vão além da racionalidade
técnica, ainda muito enraizada na educação brasileira.
Saberes docentes, professor reexivo e desenvolvimento prossional docente
Temas relacionados à educação, ao professor e às relações constituídas a par-
tir do contexto educacional têm sido objeto de muitas investigações. Entretanto, a
melhor maneira de pensar e discutir tais temas é a partir do contexto escolar e do
contexto do próprio professor (TARDIF, 2002; GAUTHIER, 1998), caso contrário, a
discussão pode ficar idealizada, distante dos sujeitos envolvidos e com pouca possi-
bilidade de efetivação no espaço onde surgem as temáticas investigadas.
Podemos destacar que a formação docente é um processo contínuo. Conforme
destaca Nóvoa (2002, p. 57), ela não se constrói simplesmente “[...] por acumulação
(de cursos, de conhecimentos ou de técnicas), mas sim por meio de um trabalho
de reflexividade crítica sobre as práticas e de (re)construção permanente de uma
identidade pessoal”. O autor destaca ainda a importância dos conhecimentos ad-
quiridos pela experiência e pelo investimento pessoal.
É nesse contexto contínuo de formação e reflexão que se dá a construção da
identidade docente, que “[...] passa sempre por um processo complexo graças ao
qual cada um se apropria do sentido da sua história pessoal e profissional. É um
processo que necessita de tempo. Um tempo para refazer identidades, para acomo-
dar inovações, para assimilar mudanças” (NÓVOA, 1995, p. 16).
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Nóvoa (2009) propõe que a formação na perspectiva denominada de crítico-re-
flexiva ocorre por meio de três processos na formação do professor: desenvolvimen-
to pessoal (relacionado aos processos da vida do professor), desenvolvimento profis-
sional (relacionado aos aspectos da profissionalização docente) e desenvolvimento
organizacional (relacionado à realização dos objetivos educacionais).
Nesse sentido, pensando no processo contínuo de formação de professores,
Schön (1997) apresenta três estratégias auxiliares para que o professor explore
e melhore a sua prática: reflexão na ação, reflexão sobre a ação e reflexão sobre a
reflexão na ação. Segundo o autor, o professor desenvolve em sua prática um saber
sobre o qual age e reflete, podendo estabelecer, por meio da reflexão, a construção
de saberes indispensáveis na sua formação. Essa ideia de Schön (1997) da cons-
trução dos saberes por meio de reflexão sobre as ações, atrelada à construção dos
saberes indispensáveis para a formação, segundo Tardif (2002), pode ser a base dos
processos de formação tanto inicial quanto continuada.
Como profissional reflexivo, Schön (2000) leva em consideração aquele que na
sua atuação consegue, diante de um novo problema, resolvê-lo por meio de experiên
-
cias anteriores, ser criativo e solidário, capaz de compreender e modificar a realida-
de. Nesse sentido, a “reflexão-na-ação é tácita e espontânea” (SCHÖN, 2000, p. 31).
O caráter reflexivo de formação também é contemplado por Imbernón (2011,
p. 32), o qual menciona que “[...] o conhecimento proposicional prévio, o contexto, a
experiência e a reflexão em e sobre a prática levarão à precipitação do conhecimen-
to profissional especializado”. O autor defende a formação do professor a partir do
contexto escolar, no sentido de “compartilhar o conhecimento com o contexto” (2011,
p. 15), evidenciando a formação com a prática como um dos fatores importantes
na carreira docente. Imbernón (2011) defende, ainda, que a formação profissional
docente envolve o aprendizado de caráter específico e também os conhecimentos
pedagógicos que darão base à postura reflexiva e à prática reflexiva.
A união entre o conhecimento específico e o pedagógico, apontados por Im-
bernón (2011), acontece na própria prática, sendo essa pautada, entre outros as-
pectos, nos saberes necessários à docência. Tardif (2002), em suas análises sobre
a construção desses saberes, evidencia a importância do pensar e do agir sobre o
aprimoramento como profissional de carreira docente.
Baccon (2005) destaca que os quatro tipos de saberes, apontados por Tardif
(2002) na formação profissional do professor, são de extrema importância. São eles:
saberes da formação profissional (das ciências da educação e da ideologia pedagó-
gica – corresponde ao conjunto de saberes transmitidos pelas instituições de for-
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mação de professores); saberes disciplinares (que correspondem ao conhecimento
adquirido na universidade, etc.); saberes curriculares (correspondem aos progra-
mas, objetivos, métodos, etc.); e saberes experienciais (ligados às experiências indi-
viduais e coletivas, “de saber-fazer e de saber-ser”).
Os saberes propostos por Tardif (2002) são obtidos pelas chamadas fontes so-
ciais de aquisição de saberes, as quais estão fundamentadas nas experiências e
vivências pessoais e sociais, além dos aspectos diretamente relacionados ao tra-
balho, os quais irão influenciar sua prática, constituir seu habitus (JARDILINO;
OLIVERI, 2013). Analisando as fontes de aquisição e os próprios saberes, verifi-
ca-se que a vida individual e as interações sociais e profissionais, levando-se em
consideração as interferências do tempo e do espaço, estão diretamente ligadas à
prática profissional, influenciando na evolução do processo de formação. Portanto,
os saberes provenientes da própria experiência da profissão podem ser elementos
contribuintes para a formação continuada, desde que haja a reflexão sobre os as-
pectos relevantes na atuação docente.
O aperfeiçoamento profissional no campo de trabalho e a formação colaborati-
va e reflexiva são aspectos apontados também por Garcia (1999), na obra intitulada
Formação docente, na qual o autor propõe a formação de professores como contínua
e de longa duração, seguindo as mudanças e inovações, bem como relacionada à
organização da escola. Essa formação deveria ter como preocupação características
pedagógicas, sem deixar de relacionar os aspectos entre teoria e prática. Tais prin-
cípios formativos defendidos por Garcia (1999) podem ser complementados pelo
caráter de indagação sobre a própria prática no desenvolvimento docente.
A formação docente está cada vez mais rompendo o caráter técnico e simplista,
e esse rompimento pode ser fundamentado na formação contínua baseada na refle-
xão sobre a prática e na interação com os sujeitos envolvidos no campo de trabalho.
No trabalho docente, é inevitável o trabalho coletivo em diversas etapas dos pro-
cessos de ensino e aprendizagem. Nesse sentido, pensando no aspecto da formação
contínua, Jardilino e Oliveri (2013, p. 240) afirmam que: “A educação continuada
deve procurar romper com a racionalidade técnica, presente ainda em nossa cul-
tura pedagógica, que mantém o professor atrelado ao papel de mero executor e
aplicador de receitas”. Os autores destacam ainda que: “É essa a nova concepção do
professor como profissional e agente gerador do conhecimento e não simplesmente
um reprodutor, não deixando de lado a ideia de que a prática escolar é um momento
de produção de conhecimento e não apenas de reprodução” (2013, p. 240).
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Não existe um guia para a formação docente, além disso, a graduação não
é a etapa final da formação profissional. A própria prática pode ser um dos fa
-
tores contribuintes para a formação continuada, desde que haja reflexão sobre
as interações no meio educacional. Essas questões sobre formação de professores
encontram espaço dentro do contexto formativo do Pibid, pois este oportuniza o
desenvolvimento de atividades didático-pedagógicas, a construção de saberes do
-
centes, bem como momentos que possibilitam o desenvolvimento profissional pela
pesquisa sobre sua ação educativa.
A situação investigada e os procedimentos metodológicos
A presente pesquisa é de natureza qualitativa (BOGDAN; BIKLEN, 1994),
os sujeitos de pesquisa são 233 licenciandos bolsistas do Pibid pela Universidade
Estadual de Ponta Grossa (UEPG), selecionados com base no edital Capes/DEB nº
061/2013. Quando foi realizada a coleta de dados, o Pibid/UEPG contava com 14
subprojetos nas áreas de licenciatura em Artes Visuais, Biologia, Educação Física,
Física, Geografia, História, Matemática, Música, Pedagogia, Português/Espanhol,
Português/Francês, Português/Inglês e Química, além de um projeto interdiscipli-
nar, contemplando os cursos de: Artes Visuais, Biologia, Física, Geografia, Histó-
ria, Matemática, Música e Pedagogia.
A coleta dos dados foi realizada por meio de um questionário, aplicado via
formulário on-line (google.docs), composto por 21 questões, que buscava, além de
traçar o perfil dos participantes, investigar quais foram os impactos, as impressões
e as perspectivas na formação inicial e continuada de professores no contexto Pi-
bid. Entretanto, no presente artigo, utilizamos apenas os dados levantados a partir
da pergunta relacionada aos impactos percebidos pelos licenciandos no contexto
Pibid, a partir do qual buscamos identificar que vertentes de formação foram evi-
denciadas a partir desse novo contexto que caracteriza os saberes da formação pro-
fissional docente. É importante destacarmos que, na presente pesquisa, impacto é
tratado como “impressão ou sensação muito forte” (AMORA, 2008, p. 373).
Após a coleta dos dados, foi utilizada a metodologia de análise de conteúdo de
Bardin (2011), técnica que auxilia na descrição e na interpretação do conteúdo de
documentos e textos. Assim, a interpretação dos dados coletados foi organizada em
três momentos principais: pré-análise, exploração do material e tratamento dos
resultados.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Na etapa de pré-análise, organizamos as respostas de cada um dos licencian-
dos, analisando primeiramente os que optaram pela divulgação dos dados forneci-
dos e excluindo também os que haviam entrado no programa há menos de um mês.
Mediante esse critério, os sujeitos analisados resultaram em 233 respondentes. A
etapa de exploração do material e unitarização dos dados foi realizada com o auxí-
lio do software de análise qualitativa Atlas TI 7. A organização dos dados iniciou
com a criação de uma unidade hermenêutica (KLUBER, 2014), a qual permitiu o
carregamento dos 233 arquivos com as respostas, possibilitando a união de todos os
dados em uma única tela para análise. Vale ressaltar que a principal vantagem do
software é a praticidade, com economia de tempo na organização dos dados, porém
a interpretação ainda fica sob a responsabilidade do pesquisador (KLUBER, 2014).
Na próxima seção, apresentamos a organização das unidades de análise, que
deram origem às categorias e aos trechos discursivos dos licenciandos relacionados
a cada uma delas e os principais resultados encontrados.
Resultados
Tendo em vista a importância das relações construídas no contexto Pibid para
a construção dos conhecimentos para a docência, partimos da premissa de que
esse contexto propicia aos licenciandos vivenciar diferentes aspectos da sua forma-
ção profissional que ultrapassam a formação acadêmica universitária. Portanto,
o presente artigo tem como objetivo investigar que vertentes de formação foram
evidenciadas a partir desse novo contexto que caracteriza os saberes da profissão
dos licenciandos participantes da pesquisa.
No presente artigo, identificamos 306 unidades de análises referentes aos im-
pactos do Pibid nas falas dos licenciandos. Dessas unidades, selecionamos 278, que,
após a identificação dos significantes
1
e a codificação por trechos discursivos, foram
classificados e organizados em sete categorias, apresentadas na próxima seção.
Categorias sobre os saberes da formação prossional construídos a partir do
contexto Pibid
Alguns aspectos interessantes foram identificados em relação aos saberes da
formação profissional, apontados pelos licenciandos a partir do contexto Pibid. Es
-
ses aspectos foram agrupados em sete categorias que serão apresentadas da seguin-
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
te forma: em primeiro lugar, o nome da categoria que será analisada; em seguida,
apresentamos alguns trechos das falas dos licenciandos que caracterizam a referida
categoria (faremos um destaque em negrito naquilo que foi identificado como signi
-
ficante durante a análise do material e que deu origem àquela categoria).
Categoria I – Formação colaborativa
Na categoria formação colaborativa foram agrupados os significantes que ca-
racterizam a construção de um saber docente, relacionados à formação colabora-
tiva e que apontam o contexto Pibid como um espaço colaborativo não só entre as
pessoas, mas também em relação a ideias, conhecimentos construídos, estudos, etc.
L108 – Assim tive uma grande colaboração tanto dos colegas quanto da supervisora e da
coordenadora, como ideias para trabalhos, formas de estudos, etc.
L115 – Nas práticas futuras quanto à atuação de professor, essa experiência no Pibid terá
grande influência, e com toda certeza é uma grande oportunidade para aprendizado e troca
de conhecimento.
L139 Acredito que estou apta a ir para sala de aula, aprendi muito com meu grupo em
geral, o Pibid favorece a prática docente.
Os significantes identificados apontam o Pibid como um espaço de aprendiza-
do e troca de conhecimento, favorecendo a prática docente. Isso vai ao encontro dos
saberes construídos a partir do conhecimento prévio, do contexto, da experiência e
da reflexão, ou seja, dos conhecimentos específicos e pedagógicos necessários para a
construção da postura e da prática reflexivas, como apontado por Imbernón (2011).
Também vai ao encontro do aperfeiçoamento profissional no campo de trabalho e
na formação colaborativa e reflexiva, conforme apontado por Garcia (1999).
Os relatos dos licenciandos, a seguir, também revelam um aspecto interessan-
te que essa colaboração permite, ao unir a teoria e a prática:
L46 – Uma vez estando na escola e dando aula, percebo que o que estudamos na universi-
dade não condiz com as necessidades e realidade dos alunos de hoje em dia.
L134 – Aliar teoria e prática, além de poder discutir esses processos e reformulá-los.
L162 – Importante para relacionar os conteúdos de sala de aula com a prática na escola.
L207 – Está sendo muito importante, pois posso atrelar a realidade com a teoria.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Os licenciandos enfatizam que o contexto Pibid proporciona um elo entre a
teoria e a prática, proporcionando alguns momentos de reflexão sobre o saber da
prática, conforme destacado por Schön (2000) e Nóvoa (2009). Outro aspecto dessa
colaboração e interação revela uma mudança na visão do licenciando a respeito da
sua relação com os alunos.
L110 Mudou minha visão a respeito da criança como um todo.
L37 – Me ajudará a saber lidar com meus alunos depois de formada.
Esses relatos revelam que o processo de interação com os alunos fez com que
o licenciando criasse uma nova visão do próprio aluno e de como lidar com ele. Os
trechos destacados, além de apontarem para a construção de um saber sobre “saber
se relacionar”, revelam uma postura reflexiva na ação, de forma “tácita e espontâ-
nea”, conforme destacado por Schön (2000, p. 31). Além disso, essa interação com
os alunos também revela alguns aspectos interessantes que contribuem para a
formação dos licenciandos, pois, segundo Garcia (1999), a escola como contexto de
ação dos professores e seus elementos constituintes, tais como os alunos, contri-
buem para o desenvolvimento profissional.
Podemos observar, por meio dos relatos, que o contexto Pibid possibilitou de
fato um campo no qual os sujeitos puderam “aplicar” as teorias que aprenderam
na formação inicial nas suas práticas com os alunos. Isso enfatiza a importância de
uma formação acadêmica ser baseada na vivência de situações no campo de ensino,
no contexto escolar e no contexto do próprio professor, conforme destacam Tardif
(2002) e Gauthier (1998), estimulando a reflexão sobre a ação (SCHÖN, 1997), sen-
do, segundo Garcia (1999), um dos princípios formativos para o desenvolvimento
docente.
Nesses relatos, percebemos que o contexto Pibid é “[...] um tempo para refazer
identidades, para acomodar inovações, para assimilar mudanças”, conforme desta-
cado por Nóvoa (1995, p. 16).
Categoria II – Formação diferenciada
Os significantes que deram origem à categoria formação diferenciada repre-
sentam aquilo que foi evidenciado pelos licenciandos a partir do seu contato com o
contexto escolar, ao desenvolver as atividades do Pibid, e apontam que o contexto
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Pibid possibilita uma formação diferenciada, a qual está diretamente relacionada
com a vivência a partir da realidade escolar.
L117 – Mudou a visão de como ser um professor, como agir em sala de aula e atrair a
atenção dos alunos para a mesma.
L119 – Se não tivesse o Pibid, seria totalmente diferente e despreparada para atuar em
sala de aula.
L13 – Formação diferenciada, vivência da realidade escolar.
Os relatos revelam um aspecto interessante a partir do contato com a realida-
de escolar, apontando para a construção dos saberes experienciais, conforme Tardif
(2002), que são construídos a partir das experiências individuais e coletivas, “de
saber-fazer e de saber-ser”, ou saber da experiência (NÓVOA, 2009). Os licencian-
dos enfatizam que essa formação diferenciada, possibilitada a partir do contato
com a realidade, mesmo não sendo tão fácil, é vista como algo positivo e de extrema
importância.
L10 É de extrema importância, visto que nos permite esse contato com o aluno podendo
chegar com maior tranquilidade e firmeza na aplicação de aulas.
L105 A experiência dentro da escola, planejar maneiras de desenvolver junto com os
professores atividades que acrescentem no aprendizado do aluno é única para o desenvol-
vimento na minha docência.
L106 Na formação o Pibid nos dá uma grande visão e experiência na atuação em sala
de aula, o que é indispensável para um curso de licenciatura.
Os licenciandos apontam que essa formação diferenciada, a partir do contex-
to Pibid, permite uma visão e uma postura diferenciadas, reforçando novamente
a importância da formação acadêmica baseada na vivência de situações reais no
campo de atuação, conforme destacam Tardif (2002), Gauthier (1998) e Imbernón
(2011). Talvez esse aspecto de formação mais diferenciada, como uma formação
baseada na vivência de situações reais em campo, se deva ao fato de que a vivência
da formação da licenciatura em campo de trabalho (escola) era muito pequena até
pouco tempo atrás, período anterior às diretrizes de formação de professores da
educação básica, que trouxeram maior ênfase à formação teórico-prática (BRASIL,
2002), além de ainda existirem cursos de formação de professores que possuem
pouco tempo de formação na e para a escola.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Categoria III – Formação humana
A categoria formação humana pode ser relacionada ao desenvolvimento do in-
divíduo ético e à aquisição de conhecimentos que auxiliam na vida enquanto sujeito
social (RODRIGUES, 2001). Os significantes que deram origem a essa categoria
apontam que o contexto Pibid permite uma formação mais voltada para o sujeito.
L112 Auxilia na formação do próprio caráter e na eficiência que terei como profissional
atuante.
L133 – Um grande impacto para meu sucesso e currículo profissional. Para mim como pes-
soa e vivência social. E aprendizado constante.
Essa formação humana destacada pelos licenciandos reforça ainda a vocação
e as atitudes profissionais dos licenciandos e a construção de saberes experienciais
(TARDIF, 2002), relacionados com “saber-fazer e saber-ser”. Além disso, os aspec-
tos relacionados à formação humana contribuem para o desenvolvimento profis-
sional docente, conforme destacado por Nóvoa (2002), quando se compartilha o
conhecimento com o contexto, como destaca Imbernón (2011).
Podemos observar que o contexto Pibid funciona como um grande contexto
de reflexão sobre a ação (SCHÖN, 1997) e como um agente motivador não só para
a escolha em ser professor, mas também em ser um bom professor e desenvolver
atividades diferenciadas nos processos de ensino e aprendizagem.
L141 – Contribuição de forma excepcional, motivando na minha profissão, em ser alguém,
um professor muito melhor.
L168 É evidente a diferença de perspectiva que o Pibid proporciona a qualquer licen-
ciando, o ideal seria que todos os graduandos de licenciatura tivessem acesso a esse projeto.
Definitivamente, assim, conseguiríamos, efetivamente, construir uma pátria educadora,
e sair do mero discurso, como foi e é pregado.
L18 – Me permite esse contato direto com a escola, antes mesmo do estágio obrigatório, o que
me motivou a querer ser professora, a ver que projetos e atividades diferenciadas são
possíveis, e que temos um papel muito importante como professores, vejo que muitas
vezes os alunos buscam se espelhar nos acadêmicos e isso é motivador.
Essa categoria também vai ao encontro dos conhecimentos específicos e peda-
gógicos como base para a construção da postura e da prática reflexivas, conforme
destacado por Imbernón (2011), bem como para o desenvolvimento profissional,
como destaca Nóvoa (2002).
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
L194 – Muito grande o impacto porque através do Pibid podemos aprender, nos desenvolver,
pesquisar, conhecer, observar, para que no futuro sejamos excelentes profissionais que
fazem algo pela educação, proporcionando uma educação de qualidade com respeito a
todos.
L200 – O Pibid contribui, em minha opinião, principalmente para a formação acadêmica dos
licenciandos, pois o contato com o ambiente escolar proporciona aprendizado e experiência,
assim como o desenvolvimento de um pensamento mais crítico em relação à educação
e à área de formação do acadêmico. Isso torna a formação nas licenciaturas melhor e mais
completa, ajudando então na construção de uma educação básica e superior de melhor
qualidade.
L221 – Pode ser um incentivo para uma formação continuada, visando à melhoria da edu-
cação de um modo geral.
L220 – O Pibid, além de contribuir para a minha formação como futuro professor, me fez ter
outros olhos para o ser professor. Me trouxe muitos conhecimentos teóricos e práticos, mas
principalmente me fez ver a formação como uma conquista pessoal, não somente para ter
um diploma e sim ser uma profissional que faz a diferença.
Os relatos dos licenciandos evidenciam um aspecto interessante na construção
de saberes experienciais (TARDIF, 2002) ligados a uma formação mais humana
e que faz despertar um sentimento de melhoria da educação. Revelam também
que essa nova visão proporcionada pelo contexto Pibid possibilita a construção de
conhecimentos teóricos e práticos, para que esses sujeitos possam atuar como pro-
fissionais que buscam fazer a diferença. Além disso, o contexto Pibid proporciona
aprendizado e experiência diferenciados, que desenvolvem “[...] um pensamento
mais crítico em relação à educação e à área de formação do acadêmico” (L200).
Esses registros também apontam para uma postura reflexiva (SCHÖN, 1997) dos
licenciandos, bem como para um trabalho de reflexividade crítica sobre as práticas,
conforme destaca Nóvoa (2002).
Categoria IV – Formação para a prática pedagógica
Os significantes que representam a categoria formação para a prática pedagó-
gica apontam que no contexto Pibid ocorre uma formação que possibilita a constru-
ção de práticas pedagógicas que vão além do contexto universitário.
L152 – Uma ajuda complexa, pois no decorrer das atividades vamos adquirindo práticas
pedagógicas, as quais são deixadas de lado no mundo universitário, pois eu iniciei no
programa junto ao primeiro ano de curso, então essas são experiências as quais levarei como
bagagem até a conclusão do curso.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
L154 Amplia a visão sobre a prática docente, facilitando no processo de formação.
L22 Programar aula com atividades diversificadas torna o aprendizado mais divertido
para o aluno, fazendo com que ele se interesse pelo assunto.
Os licenciandos destacam que essa formação para a prática pedagógica amplia
a visão sobre a prática e torna o aprendizado mais divertido e interessante. Os
significantes que deram origem a essa categoria apontam também para o aperfei-
çoamento profissional que pode ser desenvolvido no campo de trabalho, a partir
da formação colaborativa e reflexiva, conforme apontado por Garcia (1999), que é
construída a partir da teoria e da prática. Entretanto, muitas vezes essa união é
difícil de ocorrer no contexto universitário, conforme foi destacado pelo L152, ao
enfatizar que as práticas pedagógicas são deixadas de lado no mundo universitá-
rio, mas que isso foi possibilitado a partir da sua experiência no contexto Pibid,
que acabou proporcionando a construção de saberes experienciais (TARDIF, 2002).
Da mesma forma, a fala do licenciando L22 aponta para a construção de saberes
curriculares que, segundo Tardif (2002), correspondem aos saberes relacionados a
programas, objetivos, métodos, etc.
Podemos observar, ainda, nas falas dos licenciandos, que alguns aspectos da
formação para a prática pedagógica estão relacionados com a metodologia e apa-
recem atrelados ao uso de procedimentos metodológicos e que revelam aspectos
interessantes da construção desses saberes.
L182 – Grande ganho de experiência, a compreensão da prática e dos usos dos métodos.
L6 Contribui na experiência de conhecer a escola, estar participando do ambiente escolar,
desenvolver projetos e metodologias diferenciadas para melhoria na escola, reflexão
sobre o saber da prática.
L7 A certeza maior de que quero ser professora e saber dar uma aula interessante utili-
zando a interdisciplinaridade.
Os licenciandos apontam que as metodologias aprendidas, a partir do contexto
Pibid, permitem uma nova compreensão sobre a sua prática e o saber da prática,
conforme destacado por L7. Além disso, as falas dos licenciandos apontam para a
construção de saberes experienciais (TARDIF, 2002), bem como para momentos de
reflexão sobre o saber da prática, conforme destacado por Schön (2000) e Nóvoa
(2009).
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Os significantes que deram origem a essa categoria também vão ao encontro
da construção dos conhecimentos específicos e pedagógicos que contribuem para a
postura e a prática reflexivas, conforme destacado por Imbernón (2011).
Categoria V – Formação reexiva
Os significantes que deram origem à categoria formação reflexiva revelam que
o contexto Pibid possibilita ao licenciando se colocar em uma posição reflexiva ou
como um profissional reflexivo, conforme destaca Schön (1997).
L138 Refletir sobre minhas práticas, de lecionar, avaliar. Cada dia mais percebo que um
bom professor não se trata de apenas fazer com que o aluno aprenda o conteúdo, mas
sim que ele possa vivenciá-lo no dia a dia.
L16 – A observação e reflexão acerca de questões ligadas ao ensino.
L173 – Um maior movimento de reflexão-ação-reflexão na prática.
A realidade observada a partir do contexto Pibid também fez com que os licen-
ciandos se colocassem numa posição reflexiva (SCHÖN, 1997) sobre a decisão do
que querem “ser nessa hora”, ou seja, querer ou não ser professor.
L100 Vejo que na escola não é tão fácil quanto parece e é mostrado em sala de aula. Isso
é um ponto positivo, pois vemos bem o que queremos nessa hora.
L142 Muito bom por causa da percepção de como vai ser, e ajuda a você realmente perce-
ber se você quer ou não ser um professor. É bom porque ajuda também de certa forma na
faculdade.
L145 Com o Pibid, além das experiências ganhadas, o acadêmico consegue enxergar se
realmente é aquilo que ele deseja. Para mim, ser professor será o meu futuro quando ter-
minar o curso, levarei comigo todas as experiências, as de dentro de sala de aula, dos projetos
realizados, aqueles apresentados em eventos, das críticas, e mais.
L148 A certeza do querer ser professor.
Os relatos dos licenciandos apontam o contexto Pibid como um grande indicador
na sua escolha pela profissão de professor. Podemos destacar que essas reflexões fo-
ram desencadeadas a partir das experiências individuais e coletivas, “de saber-fazer
e de saber-ser”, o que Tardif (2002) chama de saberes experienciais ou saberes da
experiência, conforme destacado por Nóvoa (2002). Essa categoria também vai ao
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
encontro do que Imbernón (2011) chama de conhecimentos específicos e pedagógicos,
que são a base para a construção da postura e da prática reflexivas, que são cons-
truídas a partir do conhecimento prévio, do contexto, da experiência e da reflexão.
As reflexões ocorridas nesse contexto permeiam as práticas, as avaliações,
bem como as situações vivenciadas nas relações ocorridas no dia a dia. A formação
acadêmica ocorrida no contexto Pibid, além de permitir que o licenciando se colo-
que como um profissional reflexivo, também lhe dá a oportunidade de perceber as
suas reflexões na ação (SCHÖN, 1997), na prática. Esse processo vem ao encontro
do trabalho de reflexividade crítica sobre as práticas, conforme apontado por Nó-
voa (2002).
Categoria VI – Formação crítica
Os significantes que deram origem à categoria formação crítica apontam o
Pibid como um contexto em que o licenciando se coloca como um ser pensante e
crítico em relação à sua formação e ao mundo, como podemos perceber nos relatos
a seguir.
L200 O Pibid contribui, em minha opinião, principalmente para a formação acadêmica dos li-
cenciandos, pois o contato com o ambiente escolar proporciona aprendizado e experiência,
assim como o desenvolvimento de um pensamento mais crítico em relação à educação
e à área de formação do acadêmico. Isso torna a formação nas licenciaturas melhor e mais
completa, ajudando então na construção de uma educação básica e superior de melhor
qualidade.
L208 Numa mente mais aberta e crítica. Capaz de discutir questões sociais e políticas
com muito mais propriedade e convicção.
L23 Exemplo para ser um professor crítico, que revê e avalia sua prática buscando
novas teorias, estando em constante formação.
Essa formação crítica aponta que o licenciando se vê como um agente trans-
formador, numa perspectiva crítico-reflexiva, e avalia o seu processo de formação
como um processo contínuo (NÓVOA, 2009). Isso vai ao encontro do trabalho de re-
flexividade crítica sobre as práticas, conforme destacado por Nóvoa (2002), quando
se compartilha o conhecimento com o contexto, segundo Imbernón (2011).
L114 O Pibid me ajuda a me tornar um profissional mais capacitado e preparado ao
chegar no ambiente escolar.
L137 Enquanto licenciando nossa formação se tornou mais completa.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
As falas dos licenciandos apontam que o contexto Pibid também contribui
para uma visão crítica da formação e do aperfeiçoamento em vários aspectos, como
também para a construção de alguns saberes experienciais (TARDIF, 2002) ou
conhecimentos adquiridos pela experiência e pelo investimento pessoal, conforme
destacado por Nóvoa (2002).
Outro olhar relativo a essa categoria está atrelado à formação crítica com uma
postura diferenciada ao ser professor.
L101 Preparação para enfrentar situações diárias de sala de aula, posturas adequadas
para ser um bom professor, necessidade de buscas para melhorar o processo de ensino
e aprendizagem.
L102 – Extremamente importante, pois aprende-se a postura de professor, ganha-se expe-
riência, entre outros itens listados anteriormente.
Além de apontar o contexto Pibid como espaço para a construção de posturas
para ser professor, os acadêmicos revelam aspectos sobre os conhecimentos espe-
cíficos e pedagógicos na construção da postura e da prática reflexivas, conforme
destacado por Imbernón (2011). Os licenciandos indicam-no também como espaço
para se ganhar experiências para melhorar os processos de ensino e aprendiza-
gem. Os saberes apontados pelos licenciandos estão relacionados com os saberes
experienciais e o investimento pessoal, conforme assinalado por Tardif (2002), ou
com o saber da experiência, conforme destacado por Nóvoa (2002), na busca por
saber-fazer e saber-ser a partir de uma formação mais crítica.
Categoria VII – Formação para a pesquisa
Os significantes que deram origem à categoria formação para a pesquisa
apontam que o contexto Pibid também propicia um novo contexto de formação do
professor como pesquisador da sua própria prática.
L179 Além das muitas horas a mais de sala de aula, o Pibid me permite associar a pes-
quisa científica ao ensino.
L194 Muito grande o impacto porque através do Pibid podemos aprender, nos desenvolver,
pesquisar, conhecer, observar, para que no futuro sejamos excelentes profissionais que
fazem algo pela educação, proporcionando uma educação de qualidade com respeito a todos.
L230 Podendo aliar a teoria aprendida em sala de aula com a prática de sala de aula, refletir
sobre a prática, e também tornar-se um pesquisador neste ambiente.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Os relatos dos licenciandos revelam que no contexto Pibid a formação para
pesquisa ocorre atrelada à construção de saberes docentes (TARDIF, 2002), relacio-
nando a teoria com a prática, num contexto reflexivo (SCHÖN, 1997).
Um aspecto interessante enfatizado pelos licenciandos representativos dessa
categoria vai ao encontro da valorização da pesquisa no processo de ensinar, con-
forme destacam Pimenta e Anastasiou (2014). Esse aspecto também aponta que o
Pibid contribui para que a universidade alcance o seu objetivo de integrar o ensino,
a pesquisa e a extensão, fazendo com que a produção intelectual se construa nesse
tripé, mas tendo como referência principal a pesquisa, conforme destacam Severi-
no (2002), Cunha (2012), Pimenta e Anastasiou (2014). Dessa forma, evidencia-se
mais ainda o papel da pesquisa durante o trabalho na universidade, ao se buscar
aprender e ensinar pesquisando (SEVERINO, 2002), além de produzir conheci-
mento que é difundido por meio da extensão e do ensino.
Discussões
As categorias elencadas, a partir dos significantes encontrados nas falas dos
licenciandos, revelam que os saberes da formação profissional construídos no con-
texto Pibid se ancoram em sete vertentes da sua formação: formação colaborativa;
formação diferenciada; formação humana; formação para a prática pedagógica; for-
mação reflexiva; formação crítica; e formação para a pesquisa.
Os saberes da experiência com a docência se fizeram presentes em todas as
vertentes de formação identificadas, apontando que o contexto Pibid propicia um
contexto diferenciado na formação do licenciando, futuro professor, a partir do con-
texto escolar e do contexto do próprio professor, conforme destacam Tardif (2002) e
Gauthier (1998).
A experiência do contato com a realidade, a interação com o aluno, a oportu-
nidade de relacionar a teoria com a prática, o aperfeiçoamento/desenvolvimento, a
metodologia e as experiências individuais e coletivas vivenciadas pelos licencian-
dos possibilitaram que eles construíssem esses saberes experienciais, apontados
por Tardif (2002) como “saber-fazer e saber-ser”, ou saberes da experiência, termo
similar defendido por Nóvoa (2002), a partir da experiência com a docência no
contexto Pibid.
O aperfeiçoamento advindo da inserção nesse contexto contribui para o desen-
volvimento profissional docente, segundo Garcia (1999). Trabalhos envolvendo os
aspectos da experiência e o Pibid estão frequentemente presentes nas publicações
Saberes da formação prossional docente: uma análise a partir do contexto Pibid
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
sobre a formação envolvida no programa. Dentre esses autores, destacamos: Du-
que e Bolfe (2015), Nunes, Santana e Silva (2014), Jardilino e Oliveri (2013), entre
outros que apontam o Pibid como um dos programas que fortalecem a experiência
na formação inicial pela presença efetiva no campo da docência, tanto na escola
como na universidade.
Outro elemento fortemente identificado nas vertentes de formação elencadas
foi o saber advindo da reflexão, apontando que a experiência de vivência no
contexto Pibid, a partir de situações reais no campo de atuação, também possibili-
tou aos licenciandos desenvolverem atividades que estimularam a reflexão sobre a
ação, conforme destacado por Schön (1997), e que podem resultar em efeitos forma-
tivos positivos entre os licenciandos participantes do programa.
Os significantes relacionados aos saberes advindos da reflexão identificados
nas categorias apontaram que os licenciandos desenvolveram em sua prática um
saber que foi construído a partir de sua ação e reflexão no contexto Pibid. Os sa-
beres construídos vão ao encontro da construção dos saberes por meio da reflexão
sobre a ação, conforme destacado por Schön (1997), e também estão atrelados à
construção dos saberes indispensáveis para a formação, conforme apontado por
Tardif (2002). Diversos autores, como Tanaka, Ramos e Anic (2013), Rausch e
Frantz (2013), Veraszto, Pellegrini, Rinzo, Rodrigues, Teodoro e Bertaglia (2017),
também abordam em seus trabalhos o desenvolvimento da reflexividade docente
relacionada às atividades desenvolvidas no Pibid, reforçando a formação reflexiva
dos acadêmicos bolsistas do programa.
Os trechos de discursos dos licenciandos relacionados aos saberes advindos da
reflexão apontaram que eles buscaram agir como profissionais reflexivos (SCHÖN,
2000), pois, a partir de sua atuação nesse contexto e diante dos problemas e desa-
fios enfrentados, estes conseguiram resolvê-los por meio de experiências anterio-
res, sendo criativos e solidários, buscando compreender e modificar a realidade, a
partir de uma reflexão-na-ação, que será incorporada no indivíduo lenta e constan-
temente. Essas reflexões acabaram promovendo uma nova “visão sobre a profissão
e inovação”, que contempla reflexões sobre “postura”, “segurança”, “melhoria da
qualidade do ensino” e “certeza pela profissão”. Tal aprimoramento desenvolve a
criticidade e pode promover aspectos formativos que levem a atitudes profissionais
voltadas para o caráter social, dando sentido prático ao que será ensinado pelo
futuro profissional.
Os saberes da formação profissional, referenciados e identificados nas
vertentes de formação pelos licenciandos como formação colaborativa, formação
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
diferenciada, formação humana, formação para a prática pedagógica, formação re-
flexiva, formação crítica e formação para a pesquisa, também estão relacionados ao
que Tardif (2002) chama de saberes da formação profissional. Esses são os saberes
das ciências da educação e da ideologia pedagógica, que correspondem ao conjunto
de saberes transmitidos pelas instituições de formação de professores e são evi-
denciados na atuação no Pibid, de acordo com as informações coletadas junto aos
nossos sujeitos de pesquisa.
Todos esses saberes revelam que o contexto Pibid proporciona uma formação
além dos aspectos trabalhados no currículo acadêmico, pois o contato com o am-
biente escolar pode favorecer a perspectiva crítico-reflexiva, a qual possibilitou um
desenvolvimento pessoal, profissional e organizacional, aspectos estes destacados
por Nóvoa (2009). Esses elementos também já foram elencados em trabalhos en-
volvendo formação colaborativa (MATEUS; KADRI; GAFFURI, 2014), formação
diferenciada (OLIVEIRA, 2012), formação prática (BALDUÍNO; SILVA, 2013),
formação humana (CANAN, 2012), formação reflexiva (ABREU, 2014), formação
crítica (AMARAL, 2012) e formação para pesquisa (SOUZA, 2013).
Destacamos, ainda, que o contexto Pibid possibilitou aprendizados específicos,
conhecimentos pedagógicos e saberes docentes necessários à docência, conforme
destacado por Tardif (2002). As análises sobre a construção destes saberes, a partir
desse contexto, evidenciam a importância do pensar e do agir sobre o aprimora-
mento como profissional de carreira docente (TARDIF, 2002), bem como a cons-
trução de identidades docentes, em que cada um se apropria do sentido da sua
história pessoal e profissional, conforme destacado por Nóvoa (1995). Nesse senti-
do, a relação entre o ambiente universitário e o escolar, possibilitada pelo contexto
Pibid, fortalece a relação entre teoria e prática, tão importante na assimilação dos
saberes necessários para a atuação docente.
Outro aspecto importante evidenciado pelos dados apresentados vai ao encon-
tro do que Imbernón (2011, p. 15) chama de “compartilhar o conhecimento com o
contexto”, no sentido de evidenciar a formação com a prática como um dos fatores
importantes na carreira docente. Além disso, foram evidenciadas, também, algu-
mas características pedagógicas ao se relacionar os aspectos entre teoria e prática,
defendidos por Garcia (1999), que podem ser complementados pelo caráter de inda-
gação sobre a sua própria prática no desenvolvimento docente.
Além disso, podemos destacar que as categorias identificadas apontam que os
objetivos do programa também estão sendo alcançados, no que tange a: incentivar
a formação de docentes em nível superior para a educação básica; contribuir para
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
a valorização do magistério; elevar a qualidade da formação inicial de professores
nos cursos de licenciatura, promovendo a integração entre a educação superior e
a educação básica; inserir os licenciandos no cotidiano de escolas da rede pública
de educação, proporcionando-lhes oportunidades de criação e participação em ex-
periências metodológicas, tecnológicas e práticas docentes de caráter inovador e
interdisciplinar, que busquem a superação de problemas identificados nos proces-
sos de ensino e aprendizagem; incentivar escolas públicas de educação básica, mo-
bilizando seus professores como coformadores dos futuros docentes e tornando-as
protagonistas nos processos de formação inicial para o magistério; contribuir para
a articulação entre teoria e prática, necessária à formação dos docentes, elevando a
qualidade das ações acadêmicas nos cursos de licenciatura (BRASIL, 2013).
Considerações nais
Tendo em vista a importância da formação acadêmica e dos conhecimentos
para a docência, neste artigo, buscamos identificar que vertentes de formação fo-
ram evidenciadas a partir desse novo contexto que caracteriza os saberes da for-
mação profissional docente.
A partir dos impactos provocados na formação inicial de licenciandos, bus-
camos identificar em seus discursos significantes que revelassem os saberes da
formação profissional docente que são construídos a partir de suas práticas de
aprendizagem nesse contexto.
Como resultados da pesquisa, evidenciamos que os impactos provocados pelo
contexto Pibid colocaram os licenciandos em constante reflexão sobre a sua própria
prática, e isso também reflete no seu desenvolvimento profissional docente, por meio
da construção de alguns saberes, com destaque para: saberes advindos da experiên-
cia com a docência, saberes advindos da reflexão e saberes da formação profissional.
Nossos dados apontaram que o contexto Pibid propicia um ambiente dife-
renciado, necessário na formação do professor, conforme destacam Tardif (2002)
e Gauthier (1998), a partir do contexto escolar e do contexto do próprio professor.
Isso possibilitou que os licenciandos construíssem alguns saberes experienciais
(TARDIF, 2002) ou saberes da experiência (NÓVOA, 2009), os de saber-fazer e
de saber-ser, revelando que o contexto Pibid proporciona uma formação dentro da
perspectiva crítico-reflexiva (NÓVOA, 2009).
O processo reflexivo que, segundo Imbernón (2011), está atrelado à experiên-
cia no contexto de atuação profissional, reflexão essa que, segundo Schön (1997),
Ana Lucia Pereira, Tatiane Skeika, Leila Inês Follmann Freire
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
estaria relacionada à ação do sujeito, pode ser identificado nas falas dos licencian-
dos estudados. As análises da construção desses saberes a partir desse contexto
evidenciam, ainda, a importância do pensar e do agir sobre o aprimoramento como
profissional de carreira docente (TARDIF, 2002), para a construção de identidades
docentes e para o desenvolvimento profissional (GARCIA, 1999).
Os dados pesquisados revelaram que o Pibid, enquanto política pública de
formação de professores, tem alcançado seus objetivos principais de incentivar a
formação de docentes para atuar na educação básica, contribuindo para a valoriza-
ção do magistério e para a qualidade da formação inicial de professores nos cursos
de licenciatura. Além disso, a formação acadêmica construída a partir do contexto
Pibid tem revelado que outra formação é possível; atrelada a esta, acreditamos que
uma outra educação também o será, na medida em que esses licenciandos tenham
a oportunidade de ocupar os seus lugares como educadores no contexto escolar
nacional. Essa é uma questão interessante para ser investigada futuramente.
Nota
1
Significante está relacionado a significativo, ou seja, “que significa; que expressa com clareza; que con-
tém revelação interessante” (FERREIRA, 2001, p. 635). Portanto, esses significantes podem significar
e expressar aquilo que foi significativo para os licenciandos a partir dos impactos no contexto Pibid. O
agrupamento desses significantes é que deu origem às categorias relacionadas às vertentes de formação e
saberes da profissão docente para os licenciandos nesse contexto.
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O espaço da formação inicial do coordenador pedagógico
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
O espaço da formação inicial do coordenador pedagógico
The initial formation space of the pedagogical coordinator
La formación inicial del coordinador pedagógico
Susana Soares Tozetto
*
Priscila Gabriele da Luz Kailer
**
Resumo
Analisar a formação inicial do coordenador pedagógico torna-se uma tarefa árdua quando se considera as con-
tradições presentes no processo formativo e, consequentemente, no trabalho desse prossional.A conquista
do escopo especíco de trabalho do coordenador pedagógico, na escola, precisa estar atrelada a saberes de
bases teóricas e práticas. Este artigo tem como objetivoanalisar os saberes que compõem a formação inicial do
coordenadorpedagógico. Os relatos de oito coordenadoras pedagógicas, sujeitos desta pesquisa, coletados por
meio de entrevista, deagram uma formação que desvaloriza os conhecimentos práticos e uma atuação que
desconsidera os conhecimentos teóricos. Assim, o entendimento errôneo da universidade como espaço exclu-
sivamente teórico e da escola como peculiar às questões práticas manifesta-se nas falas dessas prossionais.
Palavras-chave: Coordenador pedagógico. Formação inicial. Saberes.
Abstract
Analyzing the initial training of the pedagogical coordinator becomes an arduous task when one considers the
contradictions present in the formative process and, consequently, in the work of this professional. The achieve-
ment of the specic scope of work of the pedagogical coordinator at school must be linked to theoretical and
practical knowledge. In this sense, this paper aims to analyze the knowledge that make up the initial training of
the Pedagogical Coordinator. The reports of eight pedagogical coordinators, subjects of this research, collected
through interviews, trigger a training that devalues the practical knowledge and an enactment that ignores
theoretical knowledge. Thus, the erroneous understanding of the university as exclusively theoretical space and
of the school as peculiar to the practical questions manifests itself in the speeches of these professionals.
Keywords: Pedagogical coordinator. Initial training. Knowledge.
*
Doutora em Educação Escolar pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp). Docente Asso-
ciada do Departamento de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de
Ponta Grossa (UEPG). Brasil. ORCID: http://orcid.org/OOOO60002616966667X. E-mail: tozettosusana@hotmail.com
**
Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Docente da rede municipal de Ponta Gros-
sa e da Faculdade Arapoti (FATI). Brasil. ORCID: http://orcid.org/0000-0003-2490-4509. E-mail: kailer.priscila@yahoo.
com.br
Recebido em 08/10/2018 – Aprovado em 18/06/2019
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v26i3.7262
Susana Soares Tozetto, Priscila Gabriele da Luz Kailer
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Resumen
Analizar la formación inicial del coordinador pedagógico se convierte en una tarea ardua al considerar las contra-
dicciones presentes en el proceso formativo y, en consecuencia, en el trabajo de este profesional. El logro del
alcance especíco del trabajo del coordinador pedagógico en la escuela debe estar vinculado al conocimiento
de bases teóricas y prácticas. Este artículo tiene como objetivo analizar los conocimientos que conforman la for-
mación inicial del coordinador pedagógico. Los informes de ocho coordinadores pedagógicos, sujetos de esta
investigación, recopilados a través de una entrevista, desencadenan una formación que devalúa el conocimien-
to práctico y una acción que ignora el conocimiento teórico. Así, el malentendido de la universidad como un
espacio exclusivamente teórico y de la escuela como peculiar a los temas prácticos se maniesta en los discursos
de estos profesionales.
Palabras clave: Coordinador pedagógico. Formación inicial. Conocimiento.
Introdução
Os avanços e os retrocessos em relação à formação de professores são resul-
tados de um conjunto de transformações históricas que afetam de maneira signifi-
cativa a definição de políticas e as práticas pedagógicas que temos na atualidade.
Nesse sentido, Nóvoa (1995) aponta que a formação de professores se encontra
como elemento central das mudanças que ocorrem no sistema educativo. A atenção
destinada à formação dos professores nos últimos anos advém da responsabilização
dos profissionais da educação, conforme pressupostos das políticas neoliberais, que
atribuem ao professor o sucesso ou o fracasso de seu trabalho (GIMENO SACRIS-
TÁN, 1999). Da mesma forma, a formação fica fragilizada quando está arraigada
ao significado de competências e de habilidades, propondo um novo sentido ao en-
sino (KUENZER, 2006).
Não cabe responsabilizar a formação dos profissionais da educação pelos
problemas da educação, mas compreender a formação inicial como um espaço sig-
nificativo, que, permeado por um contexto social, político, econômico e cultural,
esforça-se em preparar esse profissional para exercer uma ação consciente e trans-
formadora. Para tanto, faz-se necessário que essa ação esteja atrelada à realidade
da escola e que contribua com a atuação do profissional da educação. Assim, a
universidade, espaço de produção e legitimação dos saberes, precisa compreender
aspectos centrais do trabalho dos profissionais que pretende formar.
O curso de Pedagogia no Brasil forma docentes para atuação nos anos ini-
ciais do ensino fundamental, na educação infantil e, também, na área da gestão
escolar, ou seja, os coordenadores pedagógicos. Cabe pontuar que, se a concepção
do coordenador pedagógico e/ou professor, já no processo formativo, encontra-se
fragmentada ou dispersa, isso tem consequência no desenvolvimento de seu traba-
O espaço da formação inicial do coordenador pedagógico
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
lho na escola. Nesse contexto, destacam-se as pesquisas de Gatti (2010), que têm
apontado a fragilidade na formação inicial dos profissionais da educação. Assim, o
presente artigo tem como objetivo analisar o processo formativo inicial do coorde-
nador pedagógico que atua nos anos iniciais do ensino fundamental.
Ao considerar os contextos de atuação do coordenador pedagógico na escola
e sua influência no trabalho dos professores, para esta pesquisa, delimitamos os
coordenadores pedagógicos egressos do Curso de Pedagogia da Universidade Esta-
dual de Ponta Grossa no ano de 2010 e que atuam nas escolas públicas municipais
de Ponta Grossa, a fim de retratar de forma mais precisa a realidade desse con-
texto. Após contato com os 76 pedagogos, encontramos 6 egressos do referido curso
que se encontram na coordenação pedagógica das escolas públicas municipais de
Ponta Grossa.
Ressaltamos que as coordenadoras pedagógicas, em sua maioria, cursaram
pós-graduação, o que retrata uma preocupação com o desenvolvimento profissional
e que possibilita condições para níveis mais elevados da carreira docente. Do mes-
mo modo, cabe destacar o período expressivo de atuação na docência das coordena-
doras pedagógicas: entre 11 e 13 anos em sala de aula.
As entrevistas foram gravadas com o consentimento dos sujeitos e transcritas
de forma fidedigna, o que resultou em uma média de duas horas de duração. As
entrevistas, com perguntas semiestruturadas, foram realizadas nos espaços das es
-
colas em que as coordenadoras pedagógicas atuam, com exceção de uma profissional
que preferiu fazer em sua residência. Para tanto, o termo de consentimento livre
e esclarecido (TCLE) foi devidamente apreciado por todas as participantes da pes
-
quisa, as quais serão citadas neste trabalho como: CP1, CP2, CP3, CP4, CP5 e CP6.
Para compreender os saberes que emergem da formação inicial, utilizamo-nos
da análise de conteúdo de Bardin (1977, p. 33), que se caracteriza como “[...] um
conjunto de técnicas de análise das comunicações”. No entanto, não se trata de um
instrumento simples, mas de uma análise rigorosa, marcada por diferentes formas
e adaptável a um campo vasto de aplicação.
Diante disso, as entrevistas foram analisadas rigorosamente e agrupadas
de acordo com uma estrutura interna, em categorias de análise. A categoria que
analisamos no presente artigo foi denominada de formação inicial do coordenador
pedagógico. Assim, consideramos importante iniciar a discussão contextualizando
a pedagogia historicamente.
Susana Soares Tozetto, Priscila Gabriele da Luz Kailer
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
A pedagogia no Brasil
A pedagogia possui sua gênese em um vínculo estreito com a educação, pois
era entendida na Grécia como um modo de apreender ou de instituir o processo
educacional. Nesse sentido, o conceito de pedagogia, desde a Grécia, delineou-se
de maneira dualista, com uma concepção ora voltada para uma reflexão de ordem
filosófica, ora compreendida em um sentido prático e empírico.
Para compreender o sentido filosófico destacado por Saviani (2008), é preciso
considerar o contexto grego, que, sustentado pela supremacia da razão e pela re-
dução da importância prática, colocava a transformação do mundo material como
um objetivo secundário dos pensadores. Ao reconhecer o protagonismo do mundo
real em detrimento do homem, os primeiros pensadores voltaram seus estudos a
compreender o cosmo, visando à contemplação do universo, sem haver a preocupa-
ção em transformar a natureza ou desenvolver estudos que pudessem modificar as
estruturas sociais e o sentido das ações humanas (VÁZQUEZ, 1968). Em decorrên-
cia desse entendimento, a pedagogia obtinha forte influência da filosofia, orientada
pelos princípios e pelas ideias de maneira distante dos processos educativos.
A visão prática, apontada por Saviani (2008), estava intrínseca à formação
realizada pela paidéia
1
, na qual se afirmava o aspecto metodológico, pautado pelo
entendimento etimológico da palavra, como meio e caminho e, posteriormente, sen-
do incorporada à terminologia pedagogia. Assim, a terminologia “pedagogo”, na
Grécia, designava o escravo que acompanhava a criança até o professor. A crença
da superioridade da atividade intelectual em relação ao trabalho prático demons-
tra-se na oposição entre uma atividade considerada elevada – atividade intelectual
– e a outra servil e humilhante – trabalho prático (SAVIANI, 2008). O trabalho
prático era tarefa designada aos escravos, por ser considerada indigna para os
homens livres, atribuindo, então, a estes atividades filosóficas e políticas, pautadas
pela ação contemplativa. Já no período medieval, havia forte influência da igreja
e do cristianismo, o que se expressou em um modelo de paidéia cristianizada, ou
seja, uma formação com abordagem hierárquica e ambígua.
Na busca de validar e reconhecer um conhecimento como científico, a ciência
moderna, pautada pela concepção positivista, promove mudanças profundas e es-
tabelece uma nova concepção de ciência. As características de cientificidade, como
a questão da racionalidade e da veracidade, enfatizadas pela ciência moderna,
não se assemelham aos métodos, aos objetivos e aos instrumentos para a área das
ciências humanas, na qual a pedagogia está inserida. Entretanto, para garantir o
O espaço da formação inicial do coordenador pedagógico
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
estatuto científico, as ciências humanas adotam caraterísticas do rigor do método
quantitativo pautado pela abordagem positivista. Com a rigorosidade matemática
e a exigência de quantificação, não havia espaço no padrão moderno para as ciên-
cias humanas e, consequentemente, para a pedagogia, a psicologia e a sociologia.
A rigorosidade matemática das ciências humanas implica uma nova abordagem do
conhecimento e, consequentemente, uma exclusão da troca das ideias e da necessi-
dade filosófica (BOURDIEU, 2008).
Diferente do paradigma greco-medieval voltado para a produção da ciência
embasada nas leis da espiritualidade, a modernidade elabora um pensamento em-
basado nas leis matemáticas. Desse modo, as ciências naturais foram as primeiras
a estabelecerem os critérios científicos de validação, sendo reconhecidas como as
ciências exemplares.
O caráter do estudo das ciências humanas, tendo como foco a relação do ho-
mem com a realidade social, enquanto uma relação dinâmica, mutável e complexa,
não permite ao pesquisador uma análise exclusivamente mensurável e observá-
vel dos fatos sociais. A compreensão da relação que ocorre entre os sujeitos não
se realiza por meio de técnicas, a realidade e as influências culturais, históricas,
econômicas e sociais tornam esse conhecimento muito mais complexo (ZAVAGLIA,
2008). Ao tratar da ciência, Zavaglia (2008) destaca que não há uma única forma de
enquadrar a ciência e todo o conhecimento, produto da ciência, pois estão pautados
por elementos sociais, culturais e políticos.
Nesse cenário, Plaisance e Vergnaud (1993) destacam a vulnerabilidade da pe-
dagogia em relação às outras ciências, ao considerar que ela se mostra associada à
formação de professores para atuar nos cursos primários. O dilema de compreender
a pedagogia como ciência percorreu longos anos. A submissão da pedagogia, ora à
sociologia, ora à psicologia, ora à filosofia, tornou-a independente de outros objetos,
linguagens e métodos, o que resultou na falta de uma autonomia, reduzindo-a, con
-
forme postula Saviani (2008), à mera aplicação dos resultados de outras ciências.
De acordo com Saviani (2008), o século XIX tendeu a generalizar o entendi-
mento da pedagogia para designar a relação entre a elaboração consciente do en-
sino e o fazer sobre o processo educativo, desse modo, intitulava a relação entre os
processos teórico e prático do ensino. Cabe considerar que o distanciamento entre
os segmentos da teoria e da prática tornou-se uma questão evidente no processo de
formação de professores, que, conforme Gatti (2010), permanece até os dias atuais.
Compete esclarecer que os desígnios da pedagogia, no Brasil, obtiveram dis-
tinção do modo como ela se delineou em outras partes do mundo. Enquanto em
Susana Soares Tozetto, Priscila Gabriele da Luz Kailer
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
outros países a pedagogia firmou-se como parte estruturante das ciências da edu-
cação, sendo compreendida nos cursos de formação docente, no Brasil, embora não
haja consenso, a nomenclatura “pedagogia” refere-se aos cursos de formação de
professores dos anos iniciais do ensino fundamental e da educação infantil e de
coordenadores pedagógicos. Pimenta (1999), Libâneo (2001) e Franco (2003) defen-
dem a ideia da pedagogia como ciência da educação.
Formação inicial do coordenador pedagógico
Notamos que o século XX foi o palco de grandes transformações
2
no cenário
nacional e mundial, entrando em voga a supervalorização da educação como com-
ponente principal do progresso. A fim de adequar-se aos interesses mercantis e às
novas exigências no trabalho, a universalização do ensino passa a ser uma neces-
sidade do Estado. Com a supremacia da educação, a formação dos professores pas-
sou a ser tema importante no âmbito de reformas
3
, leis e projetos. Para Kuenzer
(2006), a concepção positivista influenciou de maneira significativa o modelo de
organização e de seleção dos conteúdos do processo formativo do século XX. Com
isso, prevaleceu uma noção de ciência formalizada e fragmentada, na qual cada
objeto corresponde a uma singularidade que, ao construir seu próprio campo, se
desvincula das demais especificidades e perde seu vínculo com as relações sociais
e produtivas.
No contexto da formação, o coordenador pedagógico não estava vinculado às
funções inerentes do trabalho pedagógico. No início, seu viés ainda estava se refe-
rindo a um técnico ou especialista da educação (SAVIANI, 2008). O reflexo dessas
funções na escola dá-se pelo viés de fiscalização e pelas incumbências de inspeção.
Nesse sentido, ocorreram mudanças decorrentes das reformas com destaque para
a implantação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, que surgiu, primeira-
mente, na Universidade de São Paulo. Somente em 1939, a terminologia “Pedago-
gia” ganhou espaço universitário e passou a fazer parte, juntamente a Didática, Fi-
losofia, Ciências e Letras, de uma das sessões da Faculdade Nacional de Filosofia.
Posteriormente, com a duração de quatro anos, os cursos de licenciatura, inclusive
Pedagogia, seguiam o modelo conhecido como 3+1, em que se destinavam os pri-
meiros três anos para a formação dos bacharéis com os conhecimentos metodológi-
cos e cognitivos, e o último ano para a formação da licenciatura com conhecimentos
didáticos (SAVIANI, 2008).
O espaço da formação inicial do coordenador pedagógico
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Nessa conjuntura, desde a década de 1970 até a de 1990, a organização do
curso de Pedagogia não refletia um caráter escolar, muito menos de aprendizagem
para docência. A organização fragmentada trazia um distanciamento entre a teoria
e a prática, que não possibilitava ao estudante perceber qual era sua real função
no âmbito da escola.
Aproximando-se, dessa forma, das funções cada vez mais técnicas e menos
vinculadas às ações docentes e pedagógicas, a fala de uma coordenadora pedagógi-
ca entrevistada pontua sobre a dificuldade em reconhecer o trabalho do coordena-
dor pedagógico na formação inicial:
No curso, eu não conseguia perceber o trabalho do coordenador pedagógico, eu não me
reconhecia neste trabalho [...]. Inclusive nos primeiros meses como coordenadora eu me via
voltando para a sala de aula (CP4).
O reconhecimento do saber específico do futuro profissional manifesta-se no
processo de formação inicial. Desse modo, o trabalho que o coordenador pedagógico
exerce na escola deveria estar atrelado à formação inicial, no entanto, a coordena-
dora CP4 relata que não se percebia na função e desejava retornar para a sala de
aula. Assim, inferimos que o curso de Pedagogia lhe deu o direito de exercer a fun-
ção de coordenadora pedagógica, mas não ofereceu fundamentação teórico-prática
suficiente para tal.
Com isso, percebe-se que o pertencimento a um grupo profissional requer a
apropriação de um conhecimento específico e sistematizado, que se realiza na for-
mação do profissional nos espaços universitários.
Impulsionadas pelas ideias de progresso e pela necessidade de mão de obra, as
décadas de 1960 e 1970 foram marcadas por uma expansão do sistema de ensino.
A ampliação das escolas e, consequentemente, o aumento do número de vagas ofer-
tadas trouxeram uma necessidade de formar professores em grande escala, sem,
contudo, haver proporcional investimento na qualidade dessa oferta.
No contexto desse movimento questionador sobre qualidade da formação ini-
cial do professor, o curso de Pedagogia apresentava uma profunda crise, que se
manifestava sem perspectivas de melhoras, levando em consideração os novos com-
ponentes a serem instaurados no âmbito da formação: os institutos superiores de
educação (IES) e as escolas normais superiores, na década de 1990. Tais espaços
de formação do professor foram implementados pela Lei nº 9.394/1996 (BRASIL,
1996), alicerçada pela concepção das políticas educacionais vigentes.
Cabe considerar que as reformas realizadas na década de 1990 tinham como
intuito alterar a estrutura do ensino desde a educação infantil até o ensino supe-
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
rior, destinando a educação como alternativa de superar a crise equacionada pelo
modelo de produção capitalista. Com essa configuração, a Lei nº 9.394/1996 (BRA-
SIL, 1996) promoveu uma ampla modificação no ensino e, consequentemente, na
formação do professor e do coordenador pedagógico.
No relato a seguir, a coordenadora pedagógica pontua sobre a importância do
curso de Pedagogia no trabalho que realiza na escola:
Eu nunca tinha trabalhado em escola e foi lá que eu aprendi tudo. Não me acho diferente de
uma pessoa que teve Magistério, eu não tive Magistério. Tudo que eu aprendi foi na Pedagogia
como organização pedagógica, metodologia, planejamento. A base para o trabalho que realizo
hoje, eu tive no curso. Quando eu cheguei na Prefeitura, eu não tive alguém para me orientar,
eu não sabia nem preencher um livro de chamada, ninguém me ensinou e eu não tinha expe-
riência em escola, eu aprendi lá no curso de Pedagogia, nos estágios e nas disciplinas (CP2).
Em virtude das políticas e do modelo de formação instaurados historicamente
nos anos 1990 e 2000, Pabis (2014) destaca que o curso de Pedagogia permaneceu
fragmentado. Cabe considerar as inúmeras intervenções da Associação Nacional
pela Formação dos Profissionais da Educação (ANFOPE) e de outros movimentos
dos professores, na tentativa de alterar o quadro de distinção entre a formação do
professor e a do especialista. Após muita discussão, propôs-se que o curso de Peda-
gogia se fundamentasse nos três eixos de formação: pesquisador, gestor e professor.
Pautados na concepção crítica de ensino e contrários ao modelo de fragmentação da
formação do coordenador pedagógico, os movimentos dos professores tornaram-se
importantes no processo de defesa da profissionalização do magistério. De uma for-
mação inicial consistente teoricamente, permitiram-se condições para a formação
do professor, com referência ao exercício em sala de aula, do gestor, como o res-
ponsável pela organização do trabalho pedagógico, e do pesquisador investigador,
aquele que realiza a pesquisa educacional.
O relato a seguir pontua sobre a importância do conhecimento da teoria que se
faz presente nas atividades realizadas pelo coordenador pedagógico:
Porque tem muito da teoria que você vai precisar. E você vê, plenamente, a pessoa que tem
um certo descaso com algumas questões, às vezes é por não conhecer. Então, é necessário,
por exemplo, para o preenchimento de uma ata, saber o que é direito da criança, o que você
vai cobrar, porque é uma questão familiar. Tem situações que você vai encaminhar para outros
órgãos, mas não é você que vai tentar resolver, sabe? E você vê que a pessoa não domina a
área. Daí você já tem que ficar mais atento. Porque numa equipe é o trabalho de todos que pre
-
cisa ser estabelecido, e daí você precisa resolver esse tipo de situação se for necessário (CP4).
Todavia, cristalizado por teorias e práticas voltadas ao especialista, ao fiscali-
zador e ao técnico, poucos conseguem enxergar o coordenador como parte integrante
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
da equipe docente e organizador do trabalho pedagógico. Conforme Saviani (2008),
esse perfil passou a estar intimamente ligado às atribuições administrativas, que
já se caracterizam como marcas profundas na representação do coordenador peda-
gógico e na formação desse profissional. Carneiro e Maciel (2006) apontam sobre a
necessidade de o coordenador estar vinculado aos saberes teóricos e práticos, arti-
culando-os de acordo com a realidade de sua atuação. É preciso ampliar os saberes
teóricos sem distanciá-los dos conhecimentos práticos.
Com base em Gauthier (1998), os saberes não se apoiam somente na expe-
riência pessoal, ou se reduzem à cientificidade de forma dissociada do espaço real.
Essa compreensão contribui para desprofissionalizar o trabalho dos profissionais
do ensino. O autor afirma que o repertório de saberes é um elemento essencial para
toda profissão. Identificar e validar um conjunto de saberes específicos tornam-se
alicerce para definir o status profissional e identificar conhecimentos próprios que
o distinguem de outras profissões. Gauthier (1998) destaca a importância dos sa-
beres das ciências da educação, e isso é essencial ao coordenador pedagógico para
exercer sua função na escola.
No relato a seguir, a coordenadora pedagógica aponta os saberes das ciências
no trabalho do coordenador pedagógico, ao relatar a importância da filosofia para
compreender o ser humano:
Teve aula que era muita teoria, mas aula de didática dava para fazer essa junção com a sala
de aula, aula de gestão, até a própria aula de Filosofia, não com a escola, mas como lidar com
o ser humano (CP2).
Nesse sentido, os saberes são elementos centrais para todo o processo de pro-
fissionalização docente. Tardif (2002) afirma que é a articulação entre a prática e
os saberes que faz dos profissionais um grupo social, cuja existência depende, em
grande parte, de sua capacidade de dominar, integrar e mobilizar tais saberes.
Ressaltamos a importância de uma formação que ofereça uma bagagem sólida
de saberes específicos do trabalho do coordenador pedagógico, que, para tanto, vol-
te seu olhar aos processos educacionais que estão atrelados ao ensino proposto pelo
professor e à aprendizagem do aluno. Tal processo deve ocorrer sem se distanciar
da realidade escolar e das necessidades da sala de aula. Assim, pontuamos que o
curso de Pedagogia se constitui em espaço privilegiado para a formação do coorde-
nador pedagógico, o qual possibilita condições de problematizar a prática pedagógi-
ca do professor e de constatar/discutir a lógica ideológica que marca o trabalho na
sociedade capitalista (PABIS, 2014).
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
A coordenadora pedagógica entrevistada relata a importância da trajetória na
escola para a mobilização de saberes na função que exerce:
É fundamental a experiência para o coordenador, porque ele tem que passar pela sala de aula,
por vários segmentos e por várias modalidades, educação infantil, EJA, ensino fundamental.
Porque, senão, você não tem uma prática certa. Às vezes você fala para o professor: “Ah, o au-
tor fala isso! E que se você ensinar daquele jeito, dá certo!”. Mas será que dá mesmo? (CP5).
Como pondera Gimeno Sacristán (1999), a prática pedagógica, entendida
como práxis, é dotada de sentido. Assim, a atuação do professor em sala de aula é
um importante espaço para mobilizar saberes, definir estratégias e legitimar práti-
cas pedagógicas para o trabalho docente. Com esse entendimento, Gauthier (1998)
elege o saber experiencial como um espaço/tempo privilegiado do profissional da
educação, o qual busca mecanismos para sua prática pedagógica e a reproduz de
acordo com as necessidades.
O saber adquirido durante a trajetória das coordenadoras pedagógicas na qua-
lidade de professoras, em atuação em sala de aula, é reconhecido pela entrevistada
como um componente importante para orientar o trabalho dos professores:
Sem a experiência pedagógica de sala de aula, eu jamais conseguiria orientar as minhas
professoras como eu oriento agora. Porque não adianta querer orientar uma coisa que você
não sabe fazer (CP6).
Entretanto, para Pinto (2011), não basta ao coordenador pedagógico ter ex-
periência em sala de aula, é preciso obter saberes que envolvem a organização
sistêmica da escola, teorias de currículo, políticas públicas na área de educação
escolar, avaliação dos processos de ensino e aprendizagem, entre outros saberes
que envolvem a atuação do coordenador pedagógico e que ultrapassam os saberes
da experiência em sala de aula.
Nesse sentido, destacamos, nos relatos a seguir, os saberes coparticipativos
que estão presentes na atuação do coordenador pedagógico. Tratam-se de saberes
que envolvem parcerias e experiências adquiridas no espaço escolar por professo-
res, coordenador pedagógico, diretor e todo o coletivo da escola:
Eu fazia parte da equipe dos professores quando fui convidada para assumir como coorde-
nadora pedagógica. Foi complicado em relação às amizades com as outras professoras, pois
você não é mais apenas colega das professoras, tive que tomar outra postura. Às vezes eu
tenho que dar uma orientação, e, em outras, eu tenho que lembrar algumas normas e as
professoras podem não gostar. Então, eu tentei encontrar maneiras de conversar com elas, de
me relacionar de forma diferente. Buscando sempre resolver os problemas de maneira coletiva
(CP1).
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
É preciso saber lidar com as pessoas, para conviver no trabalho com os diferentes pensa-
mentos. No que envolve os conflitos por exemplo, é preciso ter calma, compreender que as
pessoas não são todas iguais, isso foi coisas que eu aprendi no curso de Pedagogia e no
cotidiano da escola (CP2).
O papel do coordenador pedagógico é complexo, pois não é neutro, conside-
rando que há sempre um posicionamento presente na prática pedagógica que pode
realizar tanto a transformação como a confirmação do status quo. Ao refletir sobre
o trabalho do coordenador pedagógico no cotidiano da escola, Pabis (2014) aponta
que os desafios encontrados estão em desempenhar seu próprio trabalho, com base
no repertório de saberes adquiridos ao longo de seu processo formativo.
Tendo em vista que as questões emergentes da dinâmica da escola se tornam
preponderantes no trabalho do coordenador pedagógico, na busca por soluções para
os problemas momentâneos, esse profissional pode acabar realizando uma atuação
desordenada e imediatista. Assim, a velha ideia de “apagar incêndios” torna-se
uma referência para o trabalho do coordenador pedagógico, o qual desconsidera
a intencionalidade de seu trabalho e os propósitos que envolvem sua atuação no
espaço escolar.
Para compreender a condição de trabalho do coordenador pedagógico, é pre-
ciso considerar as questões históricas que, para Kuenzer (2006), estão associadas
às contradições que envolvem a organização do trabalho na sociedade capitalista.
Nesse contexto, permeados por conflitos e determinantes próprios do modo de pro-
dução capitalista, a escola e os profissionais que nela atuam se descaracterizam de
suas principais finalidades educativas, em favor de ações que produzem resultado
em curto prazo.
As precárias condições de funcionamento que a escola apresenta causam um
contrassenso no que envolve as possibilidades de ações dos profissionais que atuam
nesse espaço, por isso a tendência das contradições entre os saberes adquiridos na
formação inicial e as reais possibilidades de atuação no espaço escolar. Desse modo,
os profissionais desvinculam-se da sua função, para assumir outras atribuições
determinadas por situações que emergem do próprio cotidiano escolar. Assim, é
necessário buscar elementos, já no processo formativo do coordenador pedagógico,
que permitam compreender os limites do trabalho pedagógico e os determinantes
que assolam essa atuação, a fim de ampliar o escopo de possibilidades de interven-
ção (KUENZER, 2006).
A formação inicial como lócus privilegiado para preparar os futuros profissio-
nais da educação, com sólidos fundamentos teórico-práticos e saberes específicos
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
para a prática consciente e autônoma do professor e do coordenador pedagógico, en-
contra-se desvalorizada nas pesquisas recentes. Gatti (2010) denuncia os cortes de
investimento nas universidades públicas, a falta de fiscalização e de normatização
dos cursos de formação de professores nas universidades privadas, a falta de equi-
paração salarial com outros profissionais, entre outros fatores. Considera-se que a
desvalorização é ainda reforçada com o entendimento de que qualquer profissional
que tenha ensino superior, ou até mesmo ensino médio, pode ser professor.
Assim, a formação inicial é dicotômica, ao considerar o processo de aprendi-
zagem da docência e do coordenador pedagógico, ao mesmo tempo que legitima,
também desconsidera práticas cristalizadas. Cabe, dessa forma, à formação inicial
exercer o papel de oferecer elementos para o egresso do curso problematizar sobre
a prática que exerce. Assim, entra em pauta a exigência de uma formação bem
alicerçada em saberes teóricos e práticos, que contemple o rigor científico em con-
sonância com a realidade escolar.
O trabalho do coordenador pedagógico e seus saberes
A fim de compreender os saberes que envolvem o trabalho do coordenador pe-
dagógico, fez-se necessário abordar as principais contribuições dos autores que es-
tudam sobre essa temática. Para tanto, destacamos os trabalhos de Gauthier (1998)
e Tardif (2002), que discorrem sobre os saberes docentes e a importância destes
para o processo de profissionalização do professor, e de André e Vieira (2007), que
desenvolvem estudos acerca dos saberes específicos do coordenador pedagógico.
Os esforços de todos os profissionais da educação em incluir a sua formação
inicial nos espaços universitários inserem-se na perspectiva de reconhecer o estatuto
epistemológico da ciência da educação. De modo contrário a esse movimento, as refor-
mas políticas vêm descaracterizando o profissional da educação como o responsável
por uma área específica do conhecimento, reduzindo seus saberes a uma dimensão
técnica e tarefeira, que desconsidera sua identidade como cientista e pesquisador.
A desvalorização da formação inicial como espaço de preparação do profissio-
nal do ensino e os conceitos preconcebidos do senso comum sobre os saberes que
embasam o trabalho do coordenador pedagógico dificultam a constituição de um
saber pedagógico. Gauthier (1998) elucida que os saberes encontram-se demarca-
dos por uma espécie de cegueira conceitual, tendo em vista que historicamente se
desconsideram a cientificidade e a especificidade dos saberes e que não ponderam
a complexidade do trabalho pedagógico.
O espaço da formação inicial do coordenador pedagógico
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Faz-se necessário ultrapassar as concepções demarcadas historicamente que
limitam o ofício do professor ao entendimento de que basta conhecer o conteúdo,
ter talento, ter bom senso, seguir a intuição, ter experiência ou ter cultura para
formalizar os saberes do ensino, seja do professor ou do coordenador pedagógi-
co. Entendemos, como Gauthier (1998), que a prática do ensinar ocorre em uma
ampla e abstrusa dimensão. Nesse sentido, os objetivos que orientam a prática
pedagógica, os projetos coletivos que estruturam o trabalho realizado na escola, a
organização do ambiente físico e social, entre outros aspectos, envolvem a dinâmica
do trabalho da escola e obtêm como fim prover melhores condições ao processo de
aprendizagem do aluno. Assim, percebe-se como é complexo o trabalho do coorde-
nador pedagógico na organização do espaço escolar.
Nunes (2001) compreende que os saberes são construídos, reconstruídos e mo-
bilizados de acordo com as necessidades profissionais do professor e, no mesmo
sentido, do coordenador pedagógico. Portanto, o saber curricular é colocado como
imprescindível para o trabalho que o coordenador realiza na escola. No entanto,
uma profissional entrevistada afirmou que esse saber foi pouco aprofundado no
curso de Pedagogia, o que gerou dificuldades em seu trabalho realizado na escola:
Alguns saberes não foram tão trabalhados no curso e eu considero relevante no meu trabalho
na escola, como o currículo que poderia ser mais aprofundado. É preciso um currículo dife-
renciado para a educação infantil, e isso não foi muito aprofundado no curso. E esse conhe-
cimento me fez falta. Às vezes, na graduação, o acadêmico até pensa que é bom quando o
professor não dá muito trabalho, mas depois você percebe que alguns conhecimentos fazem
muita falta (CP1).
Domingues (2014) define o coordenador pedagógico como aquele que orienta
a organização curricular e o desenvolvimento do currículo. Para tanto, esse pro-
fissional precisa obter saberes curriculares para realizar a assistência direta aos
professores na elaboração dos planos de ensino, nas práticas de avaliação da apren-
dizagem, na formação continuada, nas práticas pedagógicas, entre outras atribui-
ções que lhe são pertinentes.
Para Gauthier (1998), o saber curricular é selecionado pela escola a partir dos
saberes produzidos cientificamente, para construir um corpus que será ensinado
nos programas escolares. Assim, o saber curricular formula-se de maneira externa
ao professor, podendo ser produzido pelos funcionários do Estado ou especialistas
das diversas disciplinas. O coordenador pedagógico tem nos saberes curriculares
seu lócus de trabalho, tendo em vista que cabe a esse profissional organizar e sele-
cionar, de forma coletiva, o conjunto de conhecimentos pertinentes na formação do
aluno. Todos os conhecimentos são dotados de posicionamentos, assim, ao excluir
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
ou adotar determinado conhecimento, a escola aguça uma concepção que valoriza
em detrimento de outra.
Pensar que o ato de ensinar está atrelado a apenas transmitir um conteúdo
é reduzir uma atividade tão complexa quanto o ensino a uma única dimensão. Do
mesmo modo, a atuação de coordenar e organizar o trabalho pedagógico não se
limita ao saber-fazer – ela possui intencionalidades e pauta-se em saberes peda-
gógicos definidos. A partir dessa premissa, destacamos que é preciso aprofundar
a compreensão sobre os saberes específicos do coordenador pedagógico, para que
este não limite sua ação ao talento, à experiência ou à intuição. A formalização
do ensino envolve o reconhecimento do coordenador pedagógico como profissional
que detém um corpo de saberes particulares do seu trabalho e que, para tanto,
necessita de um espaço próprio para concretizá-lo, nesse caso a escola: saberes cur-
riculares, saberes sociais, saberes da prática pedagógica, saberes da experiência
(GAUTHIER, 1998; TARDIF, 2002).
Ao tratar dos saberes, Tardif (2002) destaca que o conjunto de processos for-
mativos e de aprendizagem socialmente elaborados destina-se a instruir os mem-
bros da sociedade nos saberes sociais. Para isso, cabe aos grupos de educadores
que realizam os processos educativos definir suas práticas em relação aos saberes
que possuem e transmitem (TARDIF, 2002). Assim, o escopo dos saberes deixa
de ser entendido como elemento exclusivo dos docentes e envolve os grupos de
educadores. Destacamos, neste trabalho, os saberes que envolvem o coordenador
pedagógico como o profissional responsável na organização do trabalho pedagógico.
Todavia, é preciso considerar que as ações de formação continuada e orientação
que o coordenador pedagógico realiza na escola não devem se limitar aos saberes
curriculares, incluindo, assim, no seu trabalho a realidade da escola e sua cultura
organizacional (PINTO, 2011). Portanto, ao concretizar suas atribuições, o coorde-
nador pedagógico precisa mobilizar também o saber formador, conforme relatado
pelas profissionais a seguir:
A formação continuada eu faço na hora-atividade com a leitura e discussão. Não há tempo
disponível, então eu aproveito a hora-atividade. Eu divido o planejamento em três momentos,
para fazer o planejamento, para preparar o material que vai ser usado nas aulas e para as
discussões (CP1).
Na escola, é preciso uma formação mediada pela equipe gestora, deveria haver sempre uma
formação. Momentos de aprender e refletir sobre a prática sua e do outro, mas não tem tempo
(CP2).
O espaço da formação inicial do coordenador pedagógico
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Segundo Nóvoa (1995), a formação continuada possibilita o desenvolvimento
pessoal, profissional e organizacional do professor. Assim, a formação continuada é
parte integrante de um amplo processo formativo, que abrange aspectos históricos,
culturais e sociais do “ser professor”. Desse modo, a escola configura-se como lócus
de formação do docente, efetivada pelo coordenador pedagógico. Com o entendi-
mento da prática pedagógica como uma ação complexa e intencional, a formação
continuada não pode atingir o indivíduo, mas compreende todo o coletivo da escola.
A dificuldade em organizar momentos de formação continuada na escola é
retratada pela coordenadora pedagógica da seguinte forma:
Porque é difícil ter reunião pedagógica para trabalhar no coletivo. Na verdade, tem poucos
momentos durante o ano letivo, mas, normalmente, é feita já sobre questões do dia a dia.
Questões de sala de aula, de disciplina, de trabalho com material diversificado, auxílio aos alu-
nos que têm dificuldade na aprendizagem. Todas essas situações normalmente são realizadas
nas reuniões (CP4).
Cabe ao coordenador pedagógico possibilitar que a formação continuada se
concretize, a fim de superar a mera aplicação de técnicas e assumir a prática pe-
dagógica como práxis, como fio condutor da formação continuada dos professores.
Entretanto, o relato de uma das coordenadoras pedagógicas sobre essa atribuição
responsabiliza o professor pelo seu desenvolvimento profissional:
Se o professor não ir atrás, se ele não buscar, não vai conseguir colocar na prática. Então o
professor tem que permanecer sempre em formação, sempre buscando, e usar essa formação
para colocar em prática aqui na escola. Uma das nossas orientações é que professor tem sem-
pre que reservar um tempo dentro da hora-atividade [...] uma ou duas horas para pesquisa,
para leitura de livros mais aprofundados para usar na sua prática (CP1).
A formação continuada é um importante momento para entender a prática
pedagógica além do espaço da sala de aula. Compreendemos como limitada a for-
mação continuada que se basta no desenvolvimento da reflexão sobre a própria
ação, voltada para uma ação solitária do professor. Cabe ao coordenador pedagógi-
co articular e mobilizar o saber formador, a fim de realizar a formação continuada
de forma coletiva e colaborativa.
Ao realizar a formação continuada, valorizam-se os conhecimentos docentes,
contribuindo para a construção do coletivo escolar. Nesse sentido, o coordenador
pedagógico assume a função de problematizador e mediador na organização da
formação continuada no espaço escolar, por meio de referenciais teóricos e de uma
postura baseada na cooperação, na alteridade e no diálogo, a qual permite que o
professor assuma o processo de construção da sua profissão, como protagonista.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
No que tange ao trabalho em equipe, a coordenadora pedagógica entrevistada
reconhece a importância de as ações que se realizam na escola obterem um caráter
de coletividade:
Eu acredito que a escola não funciona sem o trabalho em equipe. Até porque hoje eu posso ser
coordenadora pedagógica, mas amanhã eu posso voltar para a sala de aula, então as ações
não são para o bem individual, é para o coletivo (CP2).
Ao apresentarem os saberes do coordenador pedagógico, André e Vieira (2007)
ressaltam que em seu cotidiano, imerso por acontecimentos imprevisíveis, mobili-
zam-se saberes a cada nova situação. Com base nas autoras, evidenciamos que, no
trabalho do coordenador pedagógico, são necessários saberes para realizar ações
que envolvem o planejamento da rotina escolar, o acompanhamento do profissional
docente e o atendimento de alunos e de pais. Destacamos os saberes que são mo-
vimentados pelo coordenador pedagógico na mobilização de pessoas na escola de
forma democrática e colaborativa.
A gestão democrática se apresenta a partir dos saberes dialógicos que buscam
superar as relações de poder que perpetuam historicamente no espaço escolar. No
entanto, a gestão de pessoas, com viés democrático, só acontece quando as ações
ultrapassam o âmbito do discurso e se efetivam na escola sustentadas nos princí-
pios dialógicos e na alteridade. O modo como a coordenadora pedagógica mobiliza
os saberes no cotidiano da escola denota os sentidos e os significados do partilhar
coletivamente. Ou seja, ao privilegiar determinada atuação, o coordenador pedagó-
gico estabelece atitudes de colaboração e partilha. Destarte, consideramos que, ao
realizar uma atuação desordenada e/ou autoritária, esse profissional secundariza
atos democráticos no espaço pedagógico.
Ao estabelecer as contribuições de alguns autores (GAUTHIER, 1998; TAR-
DIF, 2002), demarcamos a necessidade de analisar os saberes da formação inicial
que balizam o trabalho do coordenador pedagógico e as contribuições da formação
inicial de licenciatura em Pedagogia. A formação do coordenador pedagógico está
atrelada à formação do professor, por isso entendemos que a formação do pedagogo
precisa considerar a dimensão teórico-prática da educação. De acordo com a pes-
quisa realizada por Cruz (2009), os saberes pautados nos fundamentos da educa-
ção prevaleceram como principal motriz no início do curso de Pedagogia, o que se
modificou ao longo dos anos, a fim de adequar-se às influências da epistemologia
da prática.
A ênfase dos saberes apoiados nos fundamentos da educação permitia ao coor-
denador pedagógico exercer sua profissão com maior segurança em relação às ciên-
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
cias da educação. Portanto, o conhecimento desse profissional não ficava restrito
ao domínio técnico do conteúdo, que resolve os problemas encontrados na escola
com a aplicação de um repertório de conhecimentos e soluções preestabelecidas
cientificamente. Entretanto, a ênfase teórica no curso de Pedagogia foi alvo de crí-
ticas porque, ao não reconhecer a importância da prática no processo de formação,
dificultou a formulação de um saber de cunho pedagógico. Gauthier (1998) aponta
que o fracasso em relação à formação de ordem científica do curso contribuiu para
desprofissionalizar a atividade docente, ao desconsiderar a importância da pesqui-
sa acadêmica.
Contudo, sustentando-se por um viés estritamente prático, a formação do pe-
dagogo recai no modelo pragmático e utilitário, conforme as necessidades neolibe-
rais. Para Gauthier (1998, p. 27), é como se, ao substituir um modelo formativo por
outro, “[...] tivéssemos passado de um ofício sem saberes a saberes sem um ofício”.
Trata-se de desviar a preocupação de ordem estritamente científica dos saberes,
para recair em saberes que desconsideram o contexto real da sala de aula.
Ao conhecer a pluralidade de saberes que envolvem a prática do pedagogo,
Cruz (2009) aponta a dificuldade em nomear um saber específico para a pedagogia,
considerando os inúmeros conhecimentos que envolvem a formação e a prática pe-
dagógica desse profissional. A autora afirma que o saber da pedagogia deve estar
pautado por um entendimento de um saber composto, no qual considera tanto os
saberes de base teóricos como também os saberes práticos. Desse modo:
[...] o aprofundamento teórico, pela via das diferentes disciplinas, precisa considerar a edu-
cação como prática social e o trabalho pedagógico e docente como a referência primeira da
pedagogia e, consequentemente, do seu curso. O tratamento específico dos conhecimen-
tos educacionais, a partir da lógica de cada disciplina e de seu professor, precisa se ligar
ao estudo, à reflexão e à pesquisa sobre a educação como prática social, propiciando aos
pedagogos em formação fundamentos para teorizar sobre suas práticas e condições para
submetê-las à discussão (CRUZ, 2009, p. 13).
Os saberes advêm de diversos contextos e de vários períodos que perpassam
a carreira e a história profissional do ensino: as experiências pessoais, a formação
inicial, a formação continuada, as atividades docentes, as atividades realizadas na
coordenação pedagógica, etc. Assim sendo, os saberes são vastos e diferenciados e,
dessa forma, estabelecem-se individualmente e coletivamente, considerando que
as ações se configuram como um saber social também subjetivo ao pedagogo. Cabe
ressaltar que as ações do coordenador pedagógico não estão desvinculadas das ati-
vidades docentes, é necessário compreender os processos de ensino e aprendizagem
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como aspectos basilares para a ação desse profissional na escola, para que a educa-
ção seja uma prática social.
Envolvida por uma dimensão complexa e ampla, a prática pedagógica não é
uma ação mecânica, o coordenador pedagógico e o professor exercem influências
que não permitem neutralidades políticas e epistemológicas em suas ações. Dessa
forma, a escola é permeada por concepções sociais, políticas, históricas, econômicas
e culturais, que estão presentes nas características singulares de cada ação edu-
cativa, desde o planejamento até o desenvolvimento das práticas pedagógicas. As
ações são cercadas de saberes específicos que caracterizam as práticas com conhe-
cimentos próprios, conforme suas exigências e sua área de atuação.
A ação do coordenador pedagógico é constituída por vários saberes que, de
acordo com Gauthier (1998), englobam conhecimentos, competências, habilidades
e atitudes. A formação é um aspecto complexo da educação, que envolve uma gama
de conhecimentos que estão além de técnicas e de soluções prontas. Dessa forma,
é preciso considerar os saberes que os professores e os pedagogos já possuem ao
adentrar no curso de formação inicial e os saberes que serão construídos no proces-
so formativo.
Tardif (2002) corrobora ao destacar que o saber não é algo indefinido ou que
flutua no espaço; ao contrário, o saber está relacionado a uma pessoa e à sua iden-
tidade. Para compreender os saberes, é necessário estudá-los, relacionando-os com
os elementos constitutivos do trabalho docente (TARDIF, 2002). Nesse mesmo sen-
tido, Gauthier (1998) pontua que os saberes próprios do ensino não são identifica-
dos no vazio, é preciso levar em consideração o contexto real em que o ensino se
realiza, caso contrário temos o risco de formalizar um ofício que não existe.
Para Cruz (2009), o saber é composto, sendo teórico e prático, que reúne traços
conceituais de diferentes campos, mas, quando voltado propositivamente a deter-
minado contexto, transforma-se em um novo saber – não mais vinculado à sua
fonte de origem, mas como expressão de um novo saber de base teórico-prática.
Na busca de consolidar um repertório de conhecimentos específicos do ensi-
no, visando garantir a legitimidade da profissão e definir o status profissional dos
professores, Gauthier (1998) apresenta um conjunto de saberes docentes, a fim de
perceber de que modo os professores os mobilizam, são eles: saber disciplinar, saber
das ciências da educação, saber da tradição pedagógica, saber experiencial, saber
da ação pedagógica.
Ainda de acordo com Gauthier (1998), o saber disciplinar é produto das pes-
quisas e corresponde a diversas áreas do conhecimento. Esse saber não é produzido
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pelo professor, mas, sim, pelos cientistas, os quais deflagram uma dualidade entre
o espaço de produção de pesquisa e o ensino. Entretanto, ao mobilizar o conheci-
mento, o professor extrai o saber produzido pelos pesquisadores, para transformá-
-los em conhecimentos relevantes em sala de aula. Assim, o ato de ensinar exige
um conhecimento. Como pondera Tardif (2002), “[...] um professor é, antes de tudo,
alguém que sabe alguma coisa e cuja função consiste em transmitir esse saber a
outros”. Dessa forma, o domínio do conteúdo torna-se necessário para compreender
determinados conceitos.
Do mesmo modo, para Gauthier (1998), o ato de ensinar exige um conheci-
mento de determinado conteúdo, levando em consideração que não há condições de
ensinar algo sem conhecimentos peculiares de determinada área. Nesse sentido,
o saber disciplinar possibilita ao professor superar o saber-fazer e obter domínio
dos conteúdos que mobiliza em sala de aula. Sem conteúdo, o ensino torna-se va-
zio e cercado de senso comum. Por isso, “[...] os conteúdos são fundamentais, sem
conteúdos relevantes, conteúdos significativos, a aprendizagem deixa de existir,
ela transforma-se num arremedo, ela transforma-se numa farsa” (SAVIANI, 2008,
p. 45). Assim, o saber disciplinar não se realiza com base no entendimento do pro-
fissional do ensino como técnico, mas em uma prática consciente que contribui
para a emancipação dos sujeitos, que passam a obter conhecimentos de conteúdos
historicamente sistematizados. Gauthier (1998) coloca que o conteúdo do saber da
ação, ou seja, o saber-fazer, não é suficiente para atender a complexidade da ação
pedagógica, seja do professor ou do coordenador pedagógico.
Pinto (2011) destaca que a escola realiza inúmeras práticas educativas, mas
que não estão ligadas exclusivamente à sala de aula; elas vão além do trabalho
entre o professor e o aluno. Então, a sala de aula não é um espaço isolado da escola;
ela é cercada por outros elementos e profissionais que, mesmo fora desse espaço,
têm suas contribuições, obtendo como fim o processo de aprendizagem dos alunos.
Assim, entende-se o coordenador pedagógico como profissional que atua tanto no
espaço de sala de aula, na qual realiza o suporte pedagógico para o trabalho docen-
te, como na organização do trabalho pedagógico, articulando os espaços coletivos
de formação contínua do professor, mobilizando a construção e a implementação
coletivas do projeto político-pedagógico, entre outras atribuições.
Ao considerar que o coordenador pedagógico realiza ações tanto em sala de
aula, de forma indireta, como no espaço escolar, é necessário compreender os sabe-
res disciplinares que são mobilizados em sala de aula e como se encontram orga-
nizados na estrutura da escola em um escopo mais amplo. Em relação à atuação
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
do coordenador pedagógico na educação infantil e no ensino fundamental, com-
preender os conteúdos para melhor orientar o professor torna-se imprescindível,
sobretudo com os professores iniciantes.
O saber das ciências da educação é responsável por caracterizar o coordenador
pedagógico, já que esse saber se adquire pelo próprio profissional do ensino duran-
te a sua formação ou em sua trajetória na escola. Conforme Gauthier (1998), é um
saber profissional específico, que nem sempre está ligado à ação pedagógica, mas
se refere à maneira de o professor existir profissionalmente. Em suma, este saber
compreende as noções do coordenador relativas ao sistema escolar, como o projeto
político-pedagógico, o conselho escolar, a Associação de Pais, Mestres e Funcioná-
rios, entre outras noções específicas do espaço escolar e do seu trabalho.
A tradição pedagógica refere-se ao modelo de escola instaurado no século
XVII, que, conforme pontua Gauthier (1998), deixa de ocorrer no singular, no qual
o professor atende o aluno individualmente, passando a realizar-se de maneira si-
multânea. Esse modelo de escola cristalizou uma tradição pedagógica que remonta
às ações desenvolvidas na escola durante períodos anteriores e encontram-se pre-
sentes até os dias atuais. Nesse sentido, a escola não é um espaço neutro, e muito
menos seus agentes o são, pois desenvolvem as atividades escolares arraigados e
permeados por um contexto cultural e histórico.
As atitudes e os automatismos inerentes às profissões do professor e do coor-
denador pedagógico não dizem respeito somente a gestos e atos concretos obser-
váveis, mas, além disso, se realizam por percepções e emoções. Assim, o habitus
constitui-se por meio da reprodução de percepções, de pensamentos e de ações
(BOURDIEU, 2008). Os esquemas de percepções, ações e emoções reproduzem-se
na escola na relação entre o individual e o coletivo. Eles estão presentes desde o
currículo até as práticas cotidianas, muitas vezes sem a devida compreensão dos
significados que nutrem a escola e seus agentes com um sistema de habitus que
perpassa e desenvolve uma cultura escolar.
O saber experiencial compõe os saberes advindos da prática do profissional
da educação e denota um campo significativo para a produção de um repertório
de saberes da experiência e produzido pelo próprio professor (GAUTHIER, 1998).
Do mesmo modo, Tardif (2002) seleciona os saberes da experiência como conjunto
de saberes utilizados, adquiridos e necessários no espaço da prática da profissão
docente, que são elaborados pelo próprio professor. O autor aponta que é no cotidia-
no do professor que os saberes experienciais se consolidam e se estabelecem como
núcleo vital do saber docente, que são, acima de tudo, de ordem pessoal.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
O saber da ação pedagógica é legitimado pela pesquisa. Desse modo, é o saber
experiencial dos professores que se torna público, para alvo de avaliação, reprodu-
ção e comparação. Entretanto, Gauthier (1998) denuncia a dificuldade de o saber
fazer-se presente no reservatório de saberes do professor, tendo em vista que o do-
cente se encontra isolado nas práticas em sala de aula e poucas vezes torna públi-
cas as suas experiências particulares. Assim, Gauthier (1998, p. 34) discute sobre
a importância do saber da ação pedagógica para “[...] contribuir enormemente para
o aperfeiçoamento da prática docente”, ao considerar que esse saber constitui um
elemento da profissionalização docente, já que favorece a realização de comprova-
ção científica sobre o saber da ação pedagógica.
As experiências tanto profissionais como pessoais interferem na consolidação
dos saberes do coordenador pedagógico, que os desenvolve em relação às suas prá-
ticas pedagógicas exercidas na escola. Sobre a temporalidade dos saberes, Tardif
(2002) afirma que estes sofrem modificações ao longo do tempo, de modo que não
são imutáveis e homogêneos. No espaço da escola, o coordenador pedagógico elege,
modifica e recompõe seus saberes de acordo com as necessidades do seu trabalho.
Pontuamos que a profissionalização do coordenador pedagógico não está dire-
ta e unicamente associada à constituição de saberes. Gauthier (1998) aponta que
os saberes se caracterizam como elementos imprescindíveis para estabelecer uma
legitimidade ao profissional, mas também é necessário que “[...] se estabeleça uma
distinção nítida entre a produção e a utilização dos conhecimentos” (GAUTHIER,
1998, p. 286). Para tanto, compreendemos que a profissionalização, também, está
relacionada às dimensões políticas do reconhecimento da especificidade do seu tra-
balho. Cabe, então, à formação inicial a preparação do profissional do ensino com o
real reconhecimento do seu trabalho, para que não recaia somente no saber-fazer,
mas nas amplas dimensões históricas, econômicas, culturais, políticas e epistemo-
lógicas da profissão.
Considerações nais
Sendo a universidade, no curso de Pedagogia, o lócus da formação do coorde-
nador pedagógico, esta precisa dotar-se de saberes que permitam ao profissional da
educação que se forma “[...] construir uma competência profissional que o ajude a
intervir frente às demandas de seu trabalho, em especial, na condução dos proces-
sos de formação do docente sistematizadas na escola” (DOMINGUES, 2014, p. 35).
Para além desses aspectos, a formação inicial é uma possibilidade de compreender
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
as contradições que envolvem a escola e o trabalho do coordenador pedagógico.
Porém, muitas vezes, o trabalho do coordenador pedagógico se envolve em uma
atuação fragmentada e alienada.
A atuação dispersa do coordenador pedagógico, que desconsidera os saberes
específicos do seu trabalho, é resultado das contradições presentes na organização
do trabalho na sociedade capitalista. Kuenzer (2006) ressalta que essa atuação
é decorrente da fragmentação do trabalho pedagógico, que inclui a formação ini-
cial, em um espaço que divide o pensamento prático e o teórico. Nesse sentido, a
fragmentação curricular na formação desse profissional divide o conhecimento em
áreas e disciplinas trabalhadas de forma isolada, que supõem uma autonomia da
prática social impossível de acontecer. Analisar a formação inicial do coordenador
pedagógico torna-se uma tarefa árdua quando se consideram as contradições pre-
sentes no processo formativo e, consequentemente, no trabalho desse profissional.
Por meio da análise empreendida nesta pesquisa, pontuamos algumas conside-
rações sobre as contribuições do curso de Pedagogia na construção dos saberes neces-
sários para a prática do coordenador pedagógico. Entretanto, ressaltamos que estas
considerações são partes de um inconcluso processo de problematizar a formação e o
trabalho do coordenador pedagógico, pois esta é uma tarefa complexa, que, segundo
Gauthier (1998), envolve saberes da experiência, saberes da tradição pedagógica,
saberes das ciências da educação, saberes curriculares e saberes disciplinares.
Consideramos a necessidade de um curso de formação inicial consistente teo-
ricamente, que seja desenvolvido pela articulação da teoria com a prática e que
promova mecanismos para tratar e aprofundar os saberes necessários ao trabalho
pedagógico do coordenador. Ao assumir a função na escola, o coordenador peda-
gógico mais se aproxima de um multitarefeiro e deixa de realizar suas principais
atribuições, entre elas a organização e mobilização da construção coletiva do pro-
jeto político-pedagógico e a formação continuada dos docentes, com ações que mar-
ginalizam seus saberes específicos. Nesta pesquisa, apontamos a dificuldade dos
coordenadores em estabelecer espaço e tempo destinados para a formação contínua
dos profissionais do ensino.
Embora se reconheça a formação inicial como um importante espaço de cons-
trução dos saberes do coordenador pedagógico, evidenciamos que a indefinição nas
atribuições desse profissional se torna mais agravante quando se consideram os
modelos assumidos no processo formativo. Conforme analisado, o modelo de forma-
ção do especialista e do professor, ora pesquisador, ora docente e ora gestor, resulta
em uma compreensão histórica de fragmentação, tanto no perfil como no trabalho
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
que assume esse profissional. A amplitude da formação do coordenador pedagógico
desafia as possibilidades de educar um mesmo profissional para diversas funções
que, apesar de correlatas, possuem especificidades próprias.
O curso de Pedagogia apresenta um aspecto abrangente, pois insere várias te-
máticas e disciplinas que caracterizam um “inchaço curricular”, apesar de conside-
rar a importância das temáticas apresentadas. Trata-se de uma formação voltada
mais à docência, que, em decorrência, secundariza saberes específicos da formação
do coordenador pedagógico. Logo, a formação com um aspecto amplo concentra dis-
ciplinas na formação docente, o que resulta, ao final do curso, em um profissional
que não reconhece quem são: o coordenador pedagógico, o gestor e o docente.
Notas
1
Se faz presente na Grécia Antiga o termo paidéia, que se referia à formação do homem para viver em
sociedade. A paidéia estava fundamentada nos conhecimentos filosóficos e culturais, abordando aspectos
teóricos do ensino (SAVIANI, 2008).
2
Ao destacar tais transformações, apontamos: a crise do Estado de bem-estar social; o aumento das taxas
de inflação; o modelo de organização do trabalho com base no taylorismo-fordismo; o questionamento das
noções de razão, de verdade, de progresso, de emancipação, de igualdade; as críticas às metanarrativas, às
noções de estrutura e de totalidade; a descrença no sujeito histórico; entre outras (BOURDIEU, 2008).
3
Vieira (2009) destaca as propostas de reformas do período da Primeira República (1889-1930): Reforma
Benjamin Constant (1890-1891), Reforma Epitácio Pessoa (1901), Reforma Rivadávia Corrêa (1911), Re-
forma Carlos Maximiliano (1915) e Reforma João Luiz Alves (1925).
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O atendimento educacional especializado para a educação infantil em Caxias do Sul
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
O atendimento educacional especializado para a educação infantil
em Caxias do Sul
The specialized educational service for early childhood education in Caxias do Sul
Atención educacional especializada para la educación infantil en la ciudad de Caxias do Sul
Cláudia Rodrigues de Freitas
*
Joseane Frassoni dos Santos
**
Clarissa Haas
**
Resumo
Este artigo analisa as práticas do atendimento educacional especializado para a educação infantil na rede mu-
nicipal de ensino de Caxias do Sul, RS. As questões orientadoras são: como é a organização do atendimento
educacional especializado na educação infantil na rede municipal de ensino de Caxias do Sul? Qual a formação
dos prossionais para atender ao público-alvo da educação especial na educação infantil? Como o apoio educa-
cional especializado vem sendo ofertado a bebês e crianças pequenas, considerando a obrigatoriedade da edu-
cação aos 4 anos de idade? Trata-se de uma pesquisa qualitativa, construída por meio de entrevistas semiestru-
turadas com o gestor da educação especial e com dois professores do atendimento educacional especializado
na educação infantil. Constatou-se que a rede estudada enfrenta limitações na oferta do serviço de apoio para
as crianças pequenas, tais como a falta de espaço próprio para os atendimentos individualizados e a condição
de itinerância dos professores especializados, dicultando o estabelecimento de vínculo com as crianças aten-
didas. Essas diculdades também são enfrentadas na oferta da educação infantil, uma vez que a rede não possui
escolas próprias para essa, atuando em forma de convênios com a rede privada de ensino.
Palavras-chave: Atendimento educacional especializado. Caxias do Sul. Educação especial. Educação infantil.
*
Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Professora na Faculdade de Educação e no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Brasil. ORCID: 0000-0002-7105-8539. E-mail: freitascrd@gmail.com
**
Doutoranda em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. Integrante do Núcleo de Estudos e Políticas de Inclusão Escolar da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Brasil. ORCID: 0000-0003-0778-4162. E-mail: jfrassoni@hotmail.com
***
Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. Integrante do Núcleo de Estudos e Políticas de Inclusão Escolar da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Docente da área da Pedagogia no IFRS – Campus Caxias do Sul. Brasil. ORCID: 0000-0002-8526-7200. E-mail: cla.haas@
hotmail.com
Recebido em 02/12/2018 – Aprovado em 04/06/2019
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v26i3.8287
Cláudia Rodrigues de Freitas, Joseane Frassoni dos Santos, Clarissa Haas
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Abstract
The article analyzes the practices of the Specialized Educational Service for childrens education in the Municipal
Teaching Network (RME) of Caxias do Sul (RS). The questions guiding are: How is the organization of the Special-
ized Educational Service for childrens education in the RME of Caxias do Sul (RS)? What is the qualication of
the professionals attending the children targeted by Special Education? How way has specialized educational
support been oered to children and babies considering the compulsory education at four years of age? This
is a qualitative research, constructed by means of semistructured interviews with the special education man-
ager and two teachers of the Specialized Educational Service for Childrens Education. It was found that the
aforementioned Network faces limitations in the oer of support service for young children, such as the lack of
space for individualized attendance, the roaming condition of the specialized teachers, which makes it dicult
to establish a link with the attended children. These diculties are also faced in the oer of Early Childhood
Education, since the network does not have its own Pre-primary Education schools, acting under agreements
with the Private School Network.
Keywords: Specialized educational service. Caxias do Sul. Special education. Early childhood education.
Resumen
El presente artículo analiza las prácticas de Atención Educacional Especializada para la Educación Infantil en la
Red Municipal de Enseñanza (RME) de la ciudad Caxias do Sul (RS). Las preguntas que orientaron este artículo
son: ¿Cómo se encuentra organizada la Atención Educacional Especializada en la Educación Infantil de la RME
en Caxias do Sul?; ¿Cuál es la formación de los profesionales que atienden la población de Educación Especial
en la Educación Infantil?; ¿Cómo se ofrece el apoyo educativo especializado para bebes e infantes, considerando
que la educación es obligatoria a los cuatro años de edad?. Esta es una investigación de carácter cualitativa,
construida por medio de entrevistas semi-estructuradas con el gestor de Educación Especial y dos profesores
de Atención Educacional Especializada en Educación Infantil. Como resultado se inere que la Red mencionada
enfrenta limitaciones en la prestación de servicios de apoyo para niños pequeños, como la falta de espacio para
la atención Individualizada y la condición de itinerancia de maestros especializados que diculta el vínculo con
los niños atendidos. Estas dicultades también se enfrentan en la oferta de Educación Infantil, considerando
que la red no dispone de instituciones propias de Educación Infantil, actuando a partir de convenios con la Red
Privada de Educación.
Palabras clave: Atención educacional especializada. Caxias do Sul. Educación especial. Educación infantil.
Educação infantil e educação especial: tecendo relações
A infância não é um tempo, não é uma idade, uma coleção de memórias. A infância é quando
ainda não é demasiado tarde. É quando estamos disponíveis para nos surpreendermos,
para nos deixarmos encantar (COUTO, 2011, p. 103-104).
Este artigo é parte de uma pesquisa já finalizada e traz como ponto de análise
as práticas do atendimento educacional especializado para a educação infantil na
rede municipal de ensino de Caxias do Sul, RS. Para tanto, apresentamos o conceito
de infâncias, a fim de entendermos como a criança é vista na contemporaneidade.
O atendimento educacional especializado para a educação infantil em Caxias do Sul
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
As palavras de Mia Couto nos auxiliam a tratar sobre as infâncias como acon-
tecimento, um modo de entender a criança na sua imanência, na possibilidade
de surpresa e encantamento. Para Barbosa (2007, p. 1069), “[...] são estas novas
crianças, com suas experiências de infâncias múltiplas, que chegam todos os dias
na escola. Com seu modo plural de ser, elas manifestam a sua diferença”.
Na infância, por intermédio de suas diferentes linguagens, as crianças ex-
pressam sua compreensão de mundo, atuam e reconstroem a cultura em que estão
inseridas, estabelecem relações com o outro e com o lugar que as cerca, produzindo
novas formas de ser e estar nesses espaços. E é no espaço da educação infantil
que estas relações se estabelecem para além do âmbito familiar, possibilitando à
criança trocas de aprendizagens com o outro e com o novo ambiente em que está
inserida.
Como primeira etapa da educação básica, a educação infantil visa à comple-
mentação das ações da família e da comunidade, tendo como objetivo a formação
integral da criança (BRASIL, 1996). Nesta etapa da vida, as crianças vivenciam
experiências de aprendizagens no brincar, no momento da alimentação, na troca de
fraldas, ou seja, em todos os momentos do cotidiano da instituição escolar infantil
por meio de intervenções com intencionalidade que visam ao seu desenvolvimento.
Um aspecto importante na educação das crianças pequenas está relacionado
com a compreensão que o professor tem da criança como sendo protagonista do seu
processo de desenvolvimento. Para Malaguzzi (1999), isso diz muito às crianças
sobre o que pensamos sobre elas. Esse entendimento requer um olhar sensível, que
acolha as necessidades, as dúvidas, as inquietações e as aprendizagens dos bebês
e das crianças.
A compreensão da criança como sujeito de direitos começa a ser alicerçada em
1959, com o documento Declaração Universal dos Direitos das Crianças (UNICEF,
1959). Conforme o Princípio I do documento mencionado:
A criança desfrutará de todos os direitos enunciados nesta Declaração. Estes direitos se-
rão outorgados a todas as crianças, sem qualquer exceção, distinção ou discriminação por
motivos de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de outra natureza, nacio-
nalidade ou origem social, posição econômica, nascimento ou outra condição, seja inerente
à própria criança ou à sua família (UNICEF, 1959, não paginado).
No Brasil, a Constituição federal de 1988 (BRASIL, 1988) é um marco signi-
ficativo quanto ao reconhecimento da criança como sujeito de direitos. Em 1990, o
Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990) dá visibilidade à igualdade
de condições para o acesso e a permanência da criança na escola.
Cláudia Rodrigues de Freitas, Joseane Frassoni dos Santos, Clarissa Haas
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
No ano de 1996, entra em vigor a Lei nº 9.394/1996 – Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional – (BRASIL, 1996), que aponta a faixa etária para ingresso
na creche e na pré-escola. Essa legislação teve uma recente reformulação por meio
da Lei Federal nº 12.796, de 4 de abril de 2013 (BRASIL, 2013). Dentre as altera-
ções que dizem respeito à educação infantil, destacamos o inciso I do art. 4º, que
prevê: “[...] educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete)
anos de idade, organizada da seguinte forma: a) pré-escola, b) ensino fundamental,
c) ensino médio” (BRASIL, 2013, não paginado). Essa reformulação estabeleceu
o prazo até 2016 para que os estados e municípios garantissem a oferta de vagas
para todas as crianças dessa faixa etária. Consideramos, assim, a importância de
analisar como essas instituições estão dando conta dessa demanda.
O papel da educação infantil para o desenvolvimento da criança nos remete a
salientar a importância da inclusão de crianças com deficiência desde esta etapa
de ensino, tendo em conta o aspecto transversal da educação especial às demais
etapas e modalidades da educação escolar. O laço entre a educação infantil e a
educação especial se torna mais sólido para favorecer os processos de inclusão de
crianças com deficiência nessa etapa. Para Lima e Dorziat (2013), é importante
para os processos de inclusão a compreensão de que a criança com deficiência tam-
bém é criança, pois esses sujeitos também possuem desejos e vontades específicos
que precisam ser olhados/escutados pelos educadores.
No âmbito acadêmico, as pesquisas que relacionam a educação infantil com a
educação especial se apresentam em número reduzido. Dentre os estudos realiza-
dos, destacamos a pesquisa de Benincasa-Meirelles (2016), que analisa os contextos
de Santa Maria (Brasil) e de Bologna (Itália). A pesquisadora aponta que o apoio
especializado em Santa Maria é ofertado nas escolas infantis, tendo como destaque
a docência colaborativa. No contexto italiano, a autora ressalta a presença de um
professor curricular a mais na creche e na pré-escola, e a organização ocorre com a
presença do professor de apoio especializado e do educador profissional.
Em sua pesquisa, Conde (2015) verificou o distanciamento entre as propostas
da sala de aula comum com a sala de recursos multifuncionais e apontou o plane-
jamento conjunto entre professor da sala de aula comum e professor especializado
como um desafio a ser superado. A interlocução entre educação infantil e educação
especial é encontrada também nos estudos realizados por: Freitas, Christofari e
Tezzari (2016), Nunes (2015), Freitas (2015), Bridi e Meirelles (2014), Benincasa
(2011), Zortéa (2007).
A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclu-
siva apresenta como destaque o atendimento educacional especializado, que se
O atendimento educacional especializado para a educação infantil em Caxias do Sul
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
constitui como uma ferramenta para os processos de inclusão escolar. O apoio edu-
cacional especializado possui um caráter complementar e suplementar ao ensino
comum e objetiva a “[...] disponibilização de serviços, recursos de acessibilidade e
estratégias que eliminem as barreiras para sua plena participação [do sujeito] na
sociedade e desenvolvimento de sua aprendizagem” (BRASIL, 2009, p. 1). Cabe
destacar que esse serviço compõe ações que vão além da sala de recursos, pois com-
preende também a ação colaborativa entre o professor da sala de aula comum e o
professor especializado, que, por sua vez, é o profissional que atua no atendimento
educacional especializado, atendendo os requisitos de formação previstos na Reso-
lução CNE/CEB nº 04/2009 (BRASIL, 2009).
Em relação à inclusão de crianças com deficiência, a Nota Técnica nº 02/2015
(BRASIL, 2015) dá visibilidade ao apoio educacional especializado para os bebês e
para as crianças pequenas com deficiência, ao prever:
[...] o acesso, a permanência e a participação das crianças com deficiência de zero a três
anos de idade na creche e dos quatro aos cinco anos na pré-escola são imprescindíveis
para a consolidação do sistema educacional inclusivo. Desde a primeira etapa da Educação
Básica essas crianças têm a oportunidade de compartilhar espaços comuns de interação, de
brincadeiras, de fantasias, de trocas sociais e de comunicação, assegurando seu desenvol-
vimento integral e promovendo a ampliação de potencialidades e autonomia e, sobretudo,
produzindo sentido ao que aprendem por meio das atividades próprias de crianças nessa
faixa etária (BRASIL, 2015, p. 3).
A normativa ressalta a importância da inserção das crianças com deficiência
no espaço das instituições infantis desde a tenra idade para o processo de desenvol-
vimento desses sujeitos. A possibilidade de interagir e ampliar a socialização com
um grupo maior de crianças favorece aprendizagens para a criança com deficiência
e também para a criança sem deficiência. A diferença vista como potência qualifica
as relações dentro e fora da instituição infantil.
Ao apresentarmos a trajetória metodológica, definimos o corpus do estudo, que
mostra como a pesquisa foi tecida. Os participantes e os instrumentos utilizados
como ferramenta para a composição do estudo compõem o próximo item.
Trajetória metodológica
Esta investigação tem caráter qualitativo e abarca uma pesquisa desenvol-
vida no mestrado acadêmico de uma das autoras do estudo. O objetivo do estudo
foi analisar as práticas do atendimento educacional especializado para a educação
infantil na rede municipal de ensino de Caxias do Sul, RS, buscando compreender
Cláudia Rodrigues de Freitas, Joseane Frassoni dos Santos, Clarissa Haas
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
como este serviço vem sendo organizado e ofertado a bebês e crianças pequenas,
bem como analisar qual a formação dos profissionais que atendem o público-alvo
da educação especial na referida rede.
Como referencial teórico, destacamos: Malaguzzi (1999) e Barbosa (2007), sobre
a educação da primeira infância; Baptista (2011) e Bueno (2016), no âmbito da edu
-
cação especial; e as legislações referentes tanto à educação infantil quanto à educa-
ção especial. A trajetória traçada neste processo deu-se com a participação de muitas
mãos, que denominamos como fios que vão compondo o percurso metodológico.
A imersão nas teorias da primeira infância e da educação especial e nas legis-
lações e normativas nacionais e municipais foi o primeiro fio traçado. A pesquisa
no site da Secretaria Municipal de Educação de Caxias do Sul, com a finalidade de
busca das resoluções específicas da educação infantil e da educação especial, cons-
tituiu-se como o segundo fio. O contato com o contexto de investigação via telefone
e e-mail, para convidar uma gestora da educação especial do município e duas
professoras do atendimento educacional especializado da educação infantil, foi o
terceiro fio alinhavado. Após o aceite, foram marcadas as entrevistas. O quarto fio
deu-se com a realização das entrevistas semiestruturadas.
Com o instrumento de pesquisa, buscou-se compreender: 1) a oferta do atendi-
mento educacional especializado; 2) o ano de surgimento do serviço de apoio para a
educação infantil; 3) as normativas que orientam a educação infantil e a educação
especial no cenário municipal de Caxias do Sul, RS; 4) a organização do atendimen-
to educacional especializado com foco na prática pedagógica. Destacamos que todos
os participantes assinaram termo de consentimento livre e esclarecido, sinalizando
a sua participação na pesquisa. Para a análise dos dados, utilizamos as normativas
nacionais da educação infantil e da educação especial, bem como os teóricos que
embasaram este estudo.
A seção a seguir traz aspectos singulares da rede municipal de ensino de
Caxias do Sul, em relação às normativas que regulam a oferta da educação infantil
e da educação especial e também ao número de matrículas do público-alvo da edu-
cação especial na educação infantil.
O contexto de investigação
O município de Caxias do Sul, como indicado na Figura 1, foi fundado em 20 de
junho de 1890. Atualmente, possui uma população estimada de 479.236 habitantes
(INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2016b), sendo a
O atendimento educacional especializado para a educação infantil em Caxias do Sul
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
segunda maior cidade no estado em número de habitantes, perdendo apenas para
a capital gaúcha, Porto Alegre.
Figura 1 – Mapa de Caxias do Sul
Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2016a).
Segundo Filippi (2014, p. 32), Caxias do Sul é o “[...] polo regional da serra
gaúcha, firma-se como o principal município do interior gaúcho em termos econô-
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
micos”. O município destaca-se entre as 100 maiores economias do país, incluindo
capitais, ocupando o 34º lugar. Caxias do Sul possui um Índice de Desenvolvimento
Humano (IDH) de 0,782, segundo dados do Plano Nacional da Educação (PNE)
(BRASIL, 2010), portanto possui um índice melhor se comparado ao estado do Rio
Grande do Sul, que possui IDH de 0,746.
Em relação à educação infantil, Caxias do Sul organiza a oferta desta etapa
de ensino por meio da Resolução nº 37, de 26 de setembro de 2017, do Conselho
Municipal de Educação (CME) (CAXIAS DO SUL, 2017a), que define como função
desta etapa de ensino a inter-relação entre cuidar e educar de forma complementar
à ação da família e da comunidade, abrangendo as distintas dimensões dos educan-
dos, sejam elas físicas, sociais, intelectuais ou psicológicas, apresentando sintonia
com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/1996).
Em relação à oferta da educação infantil, o art. 37 da normativa, em “Da Ofer-
ta e Regularidade das Escolas”, prevê o oferecimento dessa etapa de ensino em:
[...] escolas municipais de Educação Infantil, escolas conveniadas com o Poder Público
Municipal, escolas privadas com Termo firmado com o Poder Público Municipal, escolas
privadas ou por meio da organização de turmas de Educação Infantil nas Escolas de Ensino
Fundamental da Rede Municipal de Ensino (CAXIAS DO SUL, 2017a, p. 15).
No art. 38 da referida resolução, entende-se por turmas de educação infantil:
“[...] quando estas são ofertadas para crianças na faixa etária de 4 a 5 anos e 11
meses, em espaços próprios juntos as escolas de Ensino Fundamental da Rede
Municipal de Ensino” (CAXIAS DO SUL, 2017a, p. 15).
O município de Caxias do Sul não realiza a oferta de educação infantil em
escolas municipais próprias para essa etapa de ensino. Assim, a oferta ocorre com
apoio das escolas conveniadas ao poder público municipal e por meio da abertura
de turmas de pré-escola em escolas de ensino fundamental. Logo, não contempla
as escolas municipais, como citado no art. 37 da Resolução nº 37/2017 do CME
(CAXIAS DO SUL, 2017a). Conforme o site da Secretaria da Educação do mu-
nicípio, “[...] nas Escolas de Educação Infantil conveniadas, foram estabelecidos
convênios com entidades filantrópicas, associações de bairros e clubes de mães,
que administram as 45 Escolas de Educação Infantil” (CAXIAS DO SUL, 2018,
não paginado).
Além do investimento na abertura de turmas de pré-escola em escolas de en-
sino fundamental, a rede municipal de ensino de Caxias do Sul, por meio do Edital
nº 068/2017 (CAXIAS DO SUL, 2017b), prevê:
O atendimento educacional especializado para a educação infantil em Caxias do Sul
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
[...] o credenciamento de entidades educacionais para aquisição de 1.300 (mil e trezentas)
vagas escolares de educação infantil, para atender as necessidades da Secretaria Municipal
da Educação, tudo conforme este edital, seus anexos e Minuta de Contrato, que fazem parte
deste chamamento público o credenciamento de entidades educacionais para aquisição de
vagas escolares de educação infantil. (CAXIAS DO SUL, 2017b, p. 1).
Conforme o edital, a compra de vagas nas escolas da rede de ensino privada
pressupõe a ampliação de oferta, de forma mais enfática, na faixa etária de 4 a 5
anos e 11 meses de idade, a fim de cumprir com a obrigatoriedade da matrícula.
Das 1.300 vagas, 300 serão para a faixa etária de 0 a 1 ano e 11 meses, 400 para
as crianças de 2 a 3 anos e 11 meses; e 600 vagas para as crianças da pré-escola.
No site da Secretaria Municipal de Educação (CAXIAS DO SUL, 2018) tam-
bém é possível apurar que há turmas de pré-escola em 63 das 86 escolas munici-
pais de ensino fundamental. Os dados do Censo Escolar da Educação Básica (BRA-
SIL, 2016) demonstram a dificuldade enfrentada pela rede municipal de Caxias do
Sul em garantir a oferta da educação infantil. De um total de 16.906 matrículas,
14.267 pertencem à rede de ensino privada.
Considerando o PNE (BRASIL, 2014), na meta 1, quanto à necessidade de
universalização da educação infantil na faixa etária correspondente à pré-escola
(4 a 5 anos de idade) e de ampliação da oferta da educação infantil em creches de
forma a atender, no mínimo, 50% das crianças de 3 anos de idade até o final da
vigência do PNE, as estatísticas reforçam o cenário desafiador para o cumprimen-
to desta meta no município analisado. Conforme dados extraídos do Relatório de
Monitoramento do Plano Municipal de Educação (PME) de Caxias do Sul (CAXIAS
DO SUL, 2017d), referentes à avaliação e ao monitoramento do PNE, no município
de Caxias do Sul, em 2017, 87% das crianças tiveram acesso à pré-escola, e 32%
frequentaram a creche.
Em relação à organização da educação especial na rede municipal, a gestora
da educação especial do município pontuou que, até abril de 2016, o município or-
ganizava suas ações em seis núcleos de aprendizagem, distribuídos em seis regiões
do município, constituído por um assessor da educação especial, um da educação
infantil, um dos anos iniciais do ensino fundamental, um dos anos finais do ensino
fundamental, que se responsabilizavam em atender a uma região do município.
Até aquele momento, existiam três assessoras da educação especial, cada uma res-
ponsável por dois núcleos de aprendizagem. Porém, a partir de abril de 2016, em
virtude de cortes de despesas, a equipe foi reduzida para somente uma assessora,
ficando essa responsável pelos seis núcleos.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Apresentam-se, na Tabela 1 e no Gráfico 1, os indicadores referentes ao pú-
blico-alvo da educação especial na creche e na pré-escola no ensino regular da rede
municipal de ensino de Caxias do Sul.
Tabela 1 Alunos com deficiência, TGD, altas habilidades/superdotação na educação infantil no ensino
regular da rede municipal de ensino de Caxias do Sul
Fonte: elaboração própria com base nos Microdados do MEC/Inep (2007 a 2016) (BRASIL, 2016).
Gráfico 1 – Alunos com deficiência, TGD, altas habilidades/superdotação na educação infantil no ensino
regular da rede municipal de ensino de Caxias do Sul
Fonte: elaboração própria com base nos Microdados do MEC/Inep (2007 a 2016) (BRASIL, 2016).
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
A matrícula de crianças do público-alvo da educação especial nas escolas in-
fantis conveniadas apresentou um crescimento gradativo após 2008, ano em que se
registra a publicação do Documento Orientador da Política Nacional de Educação
Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2008). Na creche, esse
número inexiste em virtude da ausência de matrícula nessa faixa etária, demons-
trando o pouco investimento da rede municipal em garantir a educação para be-
bês, desconsiderando a importância da creche para o desenvolvimento da criança,
pois, segundo Barbosa e Richter (2013), a creche como espaço educativo organizado
possibilita a convivência das crianças com seus pares e também com adultos. Na
pré-escola, constata-se um aumento no período analisado, salvo uma oscilação en-
tre 2012 e 2014, esta ação da rede municipal em focar a pré-escola na garantia de
matrículas se relaciona com a meta 1 do PNE.
A Resolução CME nº 35, de 30 de maio de 2017 (CAXIAS DO SUL, 2017c),
que fixa diretrizes para a educação especial no município, na seção intitulada “Do
acesso e das formas de atendimento”, o art. 6º dispõe sobre o número de alunos a
ser incluído:
§ 2º - Recomenda-se a inclusão de, no máximo, duas crianças/estudantes com deficiência ou
com transtornos do espectro autista em cada turma do ensino regular, devendo ter redução
de 30% da capacidade de crianças/estudantes na turma ou contar com cuidador educa-
cional, segundo o apontamento da avaliação prevista no artigo 7º, da presente Resolução,
sendo que a mesma equipe também definirá o número crianças/estudantes por cuidador
(CAXIAS DO SUL, 2017c, p. 3).
A normativa, ao estabelecer a redução do número de alunos nas classes com
crianças com deficiência incluídas, parece compreender a importância de um aten-
dimento qualificado a toda turma. A figura do cuidador educacional, apontada no
§ 2º, tem por função o apoio nas ações de cuidado, higiene, alimentação e locomo-
ção aos alunos com deficiência e/ou transtornos globais do desenvolvimento que
necessitem alto grau de dependência para a realização das atividades escolares
(CAXIAS DO SUL, 2017c). Sobre esse aspecto, uma das professoras entrevistadas
relatou que há uma busca efetiva para conseguir o cuidador educacional especial-
mente quando o aluno possui um alto grau de dependência para a realização das
atividades no contexto da escola, mas nem sempre isso é possível.
A necessidade de suporte para a locomoção dos alunos até a escola imprime a
necessidade de transporte adaptado. Considerando que o transporte é um aspec-
to que impossibilita a frequência dos alunos com deficiência na escola (BRASIL,
2012), o governo federal criou o Programa Caminho da Escola – Transporte Escolar
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Acessível. Por meio da Nota Técnica nº 42/2011 (BRASIL, 2012), a Secretaria de
Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi) buscou apoio
para a disponibilização de transporte acessível.
Na Rede Municipal de Educação de Caxias do Sul, o transporte adaptado,
segundo relatos da gestora da educação especial e das professoras do atendimento
educacional especializado, não é ofertado a todos os alunos que dele necessitam.
Desse modo, é necessária a ação da família para conseguir acesso ao serviço, sendo
que em alguns casos há o acionamento do Ministério Público. Segundo dados do
Programa Caminho da Escola – Transporte Escolar Acessível (BRASIL, 2012), o
município de Caxias do Sul seria contemplado com três veículos entre 2011/2012.
A oferta do atendimento educacional especializado no presente município é de-
finida no art. 10, “Do Atendimento Educacional Especializado – AEE”, da Resolução
CME nº 35/2017, em que está descrito que este serviço “[...] deve estar articulado
ao processo de escolarização, constituindo-se oferta obrigatória em todos os níveis,
etapas e modalidades da educação” (CAXIAS DO SUL, 2017c, p. 4). O documento
está em sintonia com a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da
Educação Inclusiva, ao estabelecer a transversalidade desta modalidade a todos os
níveis de ensino, porém, ao não ofertar o serviço aos bebês, a rede municipal acaba
por infringir a normativa nacional.
A normativa também aponta que esse atendimento pode ser realizado, dentre
outras formas, por meio da estimulação precoce:
[O] atendimento de crianças com deficiência, defasagem no desenvolvimento e de alto risco,
de zero a três anos e onze meses de idade, no qual são desenvolvidas atividades terapêuti-
cas (segundo capacitação dos professores pelos órgãos da saúde) e educacionais, voltadas
para o desenvolvimento global, contando fundamentalmente com a participação da família
(CAXIAS DO SUL, 2017c, p. 5).
Ressaltamos esse aspecto em virtude de a normativa mencionar a estimulação
precoce, pois em nenhum momento das entrevistas realizadas com a gestora e com
as duas professoras essa forma de intervenção foi mencionada. Sobre esse aspecto,
cabe ressaltar o âmbito pedagógico, pois, ao suprimir o apoio especializado para os
bebês, estes perdem a possibilidade de conviver com seus pares e de ter o laço pa
-
rental fortalecido, visto que, segundo Freitas (2015), este se constitui como principal
intervenção do atendimento. As professoras inclusive afirmaram não ter trabalhado
com nenhum bebê no ano de 2016. Em relação a esse aspecto, podemos considerar,
tendo em vista os dados de matrícula do Censo Escolar da Educação Básica, que a
matrícula de bebês nas instituições de ensino infantis conveniadas é inexistente.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Sobre as parcerias, a rede municipal conta com as universidades, especifica-
mente com a Faculdade da Serra Gaúcha (FSG), onde as crianças fazem hidrotera-
pia e fisioterapia por um preço reduzido, e a Universidade de Caxias do Sul (UCS),
que desenvolve projetos para as crianças com deficiência envolvendo a fisioterapia.
Além da parceria com as universidades, a rede conta com o Instituto da Audiovisão
(INAV), com a Associação dos Pais e Amigos dos Deficientes Visuais (APADEV) e
com a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae), onde alguns alunos
realizam atendimento, no contraturno, nas áreas de saúde, fisioterapia e fonoau-
diologia, por exemplo.
A rede municipal de ensino de Caxias do Sul apresenta um aumento de ma-
trículas dos alunos público-alvo da educação especial no ensino comum entre os
períodos de 2007 a 2008, reportando que houve um percentual de 1,5% de matrí-
culas no ensino comum, um índice inferior aos demais municípios-polo do estado
(BENINCASA-MEIRELLES; FREITAS; BAPTISTA, 2015).
Os últimos dados divulgados do Censo Escolar da Educação Básica (BRA-
SIL, 2016) mostram que a rede municipal de ensino de Caxias do Sul concentra o
maior número de matrículas de estudantes com deficiência em relação às demais
dependências administrativas (redes estadual e privada de ensino), o que sinaliza
a grande responsabilidade da rede em prover e garantir o direito à escolarização
desse público. O total de matrículas de estudantes com deficiência incluídos na
educação básica na referida rede soma 1.097, de um total geral de 34.385 matrícu-
las. Enquanto isso, a rede estadual de educação, em Caxias do Sul, concentra 377
de um total de 30.343 matrículas, e a rede privada, 153 de um cômputo geral de
27.877 matrículas.
Ao tomarmos como referência as matrículas exclusivas na educação especial, a
distribuição de matrículas entre as redes de ensino altera a ordem, observando-se
o maior número de matriculados na rede estadual (191 matriculados) e, em se-
guida, na rede privada (89 matriculados), ficando por último a rede municipal (71
matriculados). Entendemos que esses dados fortalecem o papel da rede municipal
de ensino em Caxias do Sul na oferta do atendimento educacional especializado
como ferramenta pedagógica de inclusão dos estudantes com deficiência no ensino
comum, sendo a educação infantil uma etapa inicial elementar para construir a
coesão e a articulação necessárias entre as etapas que compõem a educação básica.
A fim de analisar como vem ocorrendo a oferta do atendimento educacional
especializado para a educação infantil no contexto referido, a seguir, indicamos as
particularidades deste serviço.
Cláudia Rodrigues de Freitas, Joseane Frassoni dos Santos, Clarissa Haas
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
O atendimento educacional especializado na educação infantil em Caxias do Sul
A formação
Para a formação inicial do professor de apoio educacional especializado, o mu-
nicípio assume como referência a Resolução nº 04/2009 (BRASIL, 2009), que “Ins-
titui Diretrizes Operacionais para o Atendimento Educacional Especializado na
Educação Básica, modalidade Educação Especial”, e prevê, no art. 12, que: “Para
atuação no AEE, o professor deve ter formação inicial que o habilite para o exer-
cício da docência e formação específica para a Educação Especial” (BRASIL, 2009,
p. 3). Conforme Baptista (2011), a formação estabelecida para a atuação no apoio
educacional especializado apresentada na resolução é ampla, permitindo variações
segundo o âmbito em que ocorre.
No que se refere à formação continuada, a Resolução nº 4, de 2 de outubro
de 2009 (BRASIL, 2009), não faz menção a esse aspecto, mas podemos encontrar
essa referência no Programa Educação Inclusiva: direito à diversidade (BRASIL,
2003), que, dentre suas ações, previa a formação dos professores e do Programa
Formação Continuada de Professores em Educação Especial. Para Oliveira e San
-
tos (2011, p. 190), a formação continuada implica:
a) o levantamento da política de Educação Inclusiva implantada pelas Secretarias Muni-
cipais de Educação, na qual está contida a formação de professores e b) como está sendo
executada a formação continuada de professores pelas Secretarias Municipais nas escolas,
visando à Educação Inclusiva, cuja Educação requer que se considere, entre outros aspec-
tos, a realidade sociocultural da escola, dos alunos e dos professores.
Dessa forma, para a oferta de formação continuada, é necessária a análise do
contexto no qual será desenvolvida, considerando a efetividade desses momentos
de qualificação e as especificidades a serem tratadas nas formações.
Em Caxias do Sul, a Resolução nº 35/2017 do CME (CAXIAS, 2017c), que
orienta a formação do professor para atuar no atendimento educacional especiali-
zado, “Da atuação do professor no atendimento educacional especializado (AEE)”,
no art. 22, estabelece:
Para atuar no AEE, o professor deve ter formação inicial que o habilite para o exercício da
docência e formação específica para a educação especial, devendo comprovar:
I - formação em cursos de licenciatura plena em educação especial ou em uma de suas
áreas;
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
II - pós-graduação em áreas específicas da educação especial, posterior à licenciatura plena
nas diferentes áreas do conhecimento;
III - complementação de estudos em áreas específicas da educação especial, posterior à
licenciatura plena nas diferentes áreas do conhecimento (CAXIAS DO SUL, 2017c, p. 10).
No que se refere à formação inicial, pode-se concluir que a presente normativa
não determina formação além da estabelecida na Resolução CNE/CEB nº 04/2009
(BRASIL, 2009), ou seja, específica para a atuação na educação infantil. Salienta-
mos que no município não há concurso para atuação na função, sendo necessário
que os interessados em exercer o cargo de professor de apoio educacional especia-
lizado encaminhem a documentação referente à formação mínima exigida para a
atuação. Após a análise dos documentos, é agendada uma avaliação psicológica
como pré-requisito para indicação ao cargo.
A formação continuada também está prevista na mesma normativa, no seu
art. 3º, inciso IV. No entanto, a diminuição do número de assessores da educação
especial teve efeitos na formação continuada dos professores do apoio educacional
especializado, pois, segundo a gestora da educação especial, foram realizadas al-
gumas reuniões durante o ano, sendo priorizada a assessoria com os professores
especializados.
Percebe-se o impacto que o corte de profissionais da educação especial causou
na organização de formações para os professores especializados. A assessoria aos
professores foi garantida, porém aspectos específicos da formação não foram con-
templados de forma contínua, como a oferta de palestras e seminários com distin-
tas temáticas abordando a educação especial.
A constituição do apoio educacional especializado
A oferta do atendimento educacional especializado desde a educação infantil foi
expressa na Resolução nº 4, de 2 de outubro de 2009 (BRASIL, 2009), e teve maior
visibilidade com a Nota Técnica nº 02/2015, que evidenciou o apoio especializado
para bebês e crianças pequenas com deficiência. Para Bueno (2016), a compreen-
são do atendimento educacional especializado precisa ir além da ação do professor
especializado na sala de recursos, para não se correr o risco de manter espaços se-
gregados aos alunos com deficiência. O atendimento educacional especializado na
etapa da educação infantil começa a ser ofertado no contexto investigado em 2014,
ou seja, de forma tardia em relação à Resolução CNE/CEB nº 4/2009 (BRASIL,
2009), e ainda assim não contempla todas as crianças da educação infantil.
Cláudia Rodrigues de Freitas, Joseane Frassoni dos Santos, Clarissa Haas
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
O apoio educacional especializado na educação infantil é realizado nas escolas
conveniadas pela atuação dos professores do atendimento educacional especiali-
zado lotados nas escolas de ensino fundamental da rede municipal. O processo
de encaminhamento para o atendimento educacional especializado ocorre, primei-
ramente, por meio do preenchimento de uma ficha em que constam aspectos da
percepção do professor em relação ao aluno, como dificuldades de socialização e de
aprendizagem; o professor regular responde essa ficha e a coordenação encaminha
o documento para o professor do apoio educacional especializado, que dará início à
avaliação.
Essa avaliação, segundo a gestora, abarca a anamnese com os pais e momen-
tos de observação do estudante nos espaços da escola. Se o professor do atendimen-
to educacional especializado observa que se configura como aluno público-alvo, a
família é comunicada e dá-se início ao desenvolvimento do serviço. Os professores
especializados elaboram o plano individual (PI) do aluno, no qual constam os da-
dos, a história vital desse estudante, os aspectos relevantes da história de vida e da
trajetória escolar dele até o momento. No caso das crianças de faixa etária maior,
é apontado o que se percebe de potencialidade nesse estudante e quais são suas
dificuldades. Os objetivos são elencados, apontando o que se pretende alcançar
com o estudante, então o professor desenvolve suas ações de acordo com o plano.
Na metade do ano, o PI do aluno é retomado, a fim de analisar seus avanços e fazer
alguns ajustes para dar continuidade no segundo semestre.
Segundo entrevista realizada com as professoras do atendimento educacional
especializado, esse serviço teve início com a atuação de três professoras especia-
lizadas das escolas municipais de ensino fundamental, divididas em três zonas:
norte, sul e leste. Essa organização, segundo o relato de uma das professoras, di-
ficultou o estabelecimento de vínculo com as crianças, pois a cada dia a docente se
dirigia a uma escola diferente.
O serviço de apoio ocorre uma vez por semana, quando as professoras do apoio
especializado do ensino fundamental realizam a itinerância nas escolas infantis
conveniadas. Segundo a gestora da educação especial do município, as professoras
com 20 horas de trabalho semanal tinham um turno por semana para atender as
crianças da educação infantil – a disponibilidade de um turno para a realização
do serviço não garante que este seja específico para uma escola conveniada, pois
uma das professoras especializadas entrevistadas dividia um turno da manhã em
duas escolas infantis. Ainda não houve oferta para todas as escolas conveniadas,
em virtude da falta de professores para o atendimento educacional especializado.
O atendimento educacional especializado para a educação infantil em Caxias do Sul
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
O serviço no município é recente e mostra-se ainda precário, especialmente
por não existir a sala de recursos como espaço prioritário para a realização do
atendimento. Segundo entrevistas com as professoras do apoio especializado, o
atendimento ocorre em espaços que estão ociosos, disponíveis no momento, como
no refeitório, no pátio e na sala da educação infantil.
Dessa forma, o apoio educacional especializado para a faixa etária não possui
um espaço específico – a sala de recursos – para sua efetivação, nas escolas infantis
conveniadas. Assim, gostaríamos de compartilhar com o leitor a ideia de que esse
serviço não deva ocorrer exclusivamente nesse espaço, porém, compreendemos a
importância da sala de recursos para a realização dos atendimentos educacionais
individualizados, por ser uma sala adequada, com materiais facilitadores para o
desenvolvimento de propostas pedagógicas. Para Baptista (2011, p. 70), “[...] no
caso da sala de recursos, a grande vantagem é que esse processo tem condições de
alternância contínua com aquele desenvolvido na sala de aula comum”.
Nas escolas infantis de Caxias do Sul o atendimento educacional especializado
tem duração de 50 minutos a 1 hora, tempo em que são desenvolvidas atividades
individualizadas, com ênfase na psicomotricidade, no lúdico, na brincadeira. Além
do atendimento individual que acontece em diferentes espaços, conforme a dispo-
nibilidade da escola, o atendimento educacional especializado nas escolas infantis
conveniadas ocorre, em alguns momentos, juntamente com o professor da sala de
aula comum, na sala de aula regular. Benincasa-Meirelles (2016), em sua pesqui-
sa, ressalta a importância da docência colaborativa, porém, na rede municipal de
Caxias do Sul, em virtude da itinerância do professor especializado e de sua res-
trita carga horária em cada escola, esta docência colaborativa parece não ocorrer
de fato.
O planejamento do professor do atendimento educacional especializado em
conjunto com o professor da sala de aula regular nas escolas infantis conveniadas
de Caxias do Sul é um ponto difícil de execução, devido à carga horária das pro-
fessoras especializadas nas escolas infantis. Segundo uma das professoras espe-
cializadas, o fato de atender uma escola, uma vez por semana, permite que ocorra
apenas troca de ideias de forma oral, sem sistematização de um efetivo planeja-
mento. Dessa forma, o planejamento em conjunto é um aspecto não contemplado
nas escolas infantis conveniadas; existe uma predisposição em realizá-lo, porém,
efetivamente ele não acontece. Esse aspecto vai ao encontro do desafio apontado
por Conde (2015), que é a dificuldade de interlocução entre professor da sala de
aula comum e professor especializado na elaboração do planejamento.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Em relação à avaliação processual para os alunos público-alvo da educação
especial, definida na Resolução CME/CS nº 035/2017 (CAXIAS DO SUL, 2017c),
em “Da avaliação da aprendizagem”, art. 15:
A avaliação do desempenho escolar da criança/estudante com deficiência, transtornos
do espectro autista ou altas habilidades/superdotação deve ser embasada no Art. 24, da
LDBEN - “avaliação contínua e cumulativa do desempenho do aluno, com prevalência dos
aspectos qualitativos sobre os quantitativos e dos resultados ao longo do período sobre
os de eventuais provas finais”- realizada como processo dinâmico, considerando as habi-
lidades imprescindíveis apontadas nos planos de estudos individualizados ou adaptados,
configurando uma ação pedagógica processual e formativa que analisa o seu desempenho
em relação ao seu progresso individual.
§ 1º - A avaliação do processo de ensino e aprendizagem deve contemplar as adequações de
instrumentos e procedimentos que atendam à diversidade das crianças/estudantes.
§ 2º - o processo de avaliação do desempenho escolar deve envolver, além dos professores da
sala de aula, o professor do AEE e a coordenação pedagógica da escola, e, quando necessário
a assessoria da mantenedora (CAXIAS DO SUL, 2017c, p. 7).
Nesse sentido, destaca-se a fala da professora Chiara, quando relata que a
avaliação precisa ser “comparando o aluno ele com ele mesmo”, pois se percebe o
aspecto fundamental no processo avaliativo. A avaliação deve partir do princípio
de analisar como o aluno “chega” e os avanços que obtém no processo de aprendi-
zagens. Meirieu (2002) salienta como primordial a avaliação do aluno tendo como
parâmetro “si mesmo”.
Sobre o espaço escolar como terceiro educador, já foi destacada a ausência da
sala de recursos no apoio especializado nas escolas infantis conveniadas e o que isso
acarreta. Além desse aspecto, salienta-se algo muito preocupante, que demonstra
um descaso com a educação da primeira infância: a divisão de sala de aula para
duas turmas. Conforme as professoras do atendimento educacional especializado:
A maioria das escolinhas infantis tem duas turmas na mesma sala. Este ano, as duas escolas
que eu estou, são duas turmas em cada sala. Ano passado não, nas três escolas que eu aten-
dia ficava o grupo específico para aquela professora (professora Caterina, 2016).
Uma escolinha que eu estou esse ano, duas professoras dividem a mesma sala, dividem o
mesmo espaço, tentam se coordenar da melhor maneira possível, mas o espaço físico é bas-
tante reduzido (professora Chiara, 2016).
As professoras relatam um tipo de revezamento do espaço: um professor vai
para o pátio ou para o refeitório com a sua turma, enquanto o outro realiza ativi-
dade na sala de aula. Essa espécie de revezamento nos leva aos questionamentos
sobre as dificuldades (e a impossibilidade?) de se concretizar um trabalho de quali-
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
dade onde não existe um espaço físico determinado para a realização das interven-
ções, pois o espaço como terceiro educador requer a organização de materiais, de
propostas com intencionalidade.
Desse modo, foi possível verificar como a rede municipal de ensino de Caxias
do Sul organiza o serviço de apoio para a primeira infância. A seguir, damos ênfase
aos desafios da referida rede na oferta do atendimento educacional especializado
para a educação infantil.
Palavras nais
Ao se tratar da especificidade de um contexto específico, a rede municipal de
ensino de Caxias do Sul, na oferta do atendimento educacional especializado na
educação infantil, pode-se analisar como esta rede vem organizando e compreen-
dendo a importância tanto da educação infantil como primeira etapa de ensino
quanto da educação especial como modalidade transversal a todas as etapas.
A opção em ofertar a educação infantil apenas na rede conveniada parece de-
monstrar um descaso com a educação de bebês e crianças pequenas, especialmente,
ao se considerar que em muitos momentos as crianças dividem a sala de aula com
outras turmas. Consequentemente, a oferta dos serviços de atendimento educa-
cional especializado para as crianças com deficiência ocorre em espaços ociosos
das escolas infantis conveniadas e é realizada por professores que não possuem
formação específica para atuar na etapa de ensino, ou seja, que desconsideram as
especificidades de atuação com essa faixa etária.
A oferta tardia do atendimento educacional especializado, em relação à Re-
solução CNE/CEB nº 04/2009 (BRASIL, 2009), é outro aspecto a ser salientado.
Caxias do Sul tarda em ofertar esse serviço, reafirmando, assim, o espaço reser-
vado à educação das crianças pequenas na formulação de suas políticas públicas.
Cabe ressaltar também a precariedade do serviço no que tange ao desempenho
das atribuições por parte das professoras especializadas na forma de itinerância, o
que além de limitar a possibilidade de um trabalho articulado com o professor do
ensino comum não coaduna com as necessidades de construção de uma relação de
vínculo e confiança entre a profissional do atendimento educacional especializado
e as crianças, necessidades que, por sua vez, são elementares nessa faixa etária.
Sobre a formação para atuar como professor do atendimento educacional es-
pecializado, constata-se que as normativas municipais definem a formação mínima
para atuação como professor do atendimento educacional especializado na educa-
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
ção infantil. Por meio da análise, foi possível verificar que a formação inicial segue
o que a Resolução CNE/CEB nº 04/2009 (BRASIL, 2009) prevê como formação mí-
nima: licenciatura para habilitação ao exercício da docência e formação específica
em educação especial. Porém, a normativa municipal não apresenta nenhuma es-
pecificação de formação em educação infantil.
Portanto, na rede municipal de ensino de Caxias do Sul, encontramos indí-
cios da necessidade de maior investimento de políticas públicas na constituição do
apoio educacional especializado para a faixa etária, bem como na própria formação
de uma rede para a oferta da educação infantil, pois as estatísticas demonstram
que o município está muito aquém de ter uma rede que atenda as crianças peque-
nas nas suas especificidades, cumprindo com as prerrogativas do Plano Nacional
de Educação (BRASIL, 2014). Considerando o papel da educação infantil como pri-
meira etapa de sustentação dos pilares da educação básica ou de “base”, urge que
a educação infantil na rede municipal de Caxias do Sul desloque-se de um espaço
secundário e passe a ter visibilidade, por meio de ações efetivas que envolvam a
garantia de acesso e de qualidade na oferta da respectiva etapa de ensino.
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Cláudio Emidio Silva, Lucas Antunes Furtado
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Educação escolar e direitos indígenas: uma revisão integrativa
de teses e dissertações a partir do BDTD
School education and indigenous rights: an integrative review of theses and
dissertations from the BDTD
Educación escolar y derechos indígenas: uma revisión integrativa de tesis y
disertaciones a partir del BDTD
Cláudio Emidio Silva
*
Lucas Antunes Furtado
**
Resumo
Este estudo aborda a relação entre a educação escolar e os direitos indígenas no Brasil. Tem como objetivo ana-
lisar e sintetizar as teses e dissertações que versam sobre as categorias: educação escolar e direitos indígenas.
Caracteriza-se como uma revisão integrativa, utilizando como base bibliográca teses e dissertações do Banco
de Dados de Teses e Dissertações do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia. Foram selecio-
nadas doze pesquisas no período de 2008 a 2018, totalizando 10 anos de recorte temporal. Os resultados apre-
sentam análises interpretativas sobre o modo como as pesquisas abordam as categorias de análise. O estudo
está estruturado da seguinte forma: primeiramente, explica-se a abordagem metodológica, a revisão integrativa
e seus processos. No segundo momento, apresentam-se os resultados do levantamento das teses e disserta-
ções, seguidos das análises e sínteses dos estudos selecionados. Por último, constam as considerações nais.
Palavras-chave: Direitos humanos. Direitos indígenas. Educação escolar.
Abstract
The study addresses the relationship between school education and indigenous rights in Brazil. Its objective is
to analyze and synthesize the theses and dissertations that deal with the categories: school education and indig-
enous rights. It is characterized as an Integrative Revision, using as bibliographic basis theses and dissertations
of the Database of Theses and Dissertations, of the Brazilian Institute of Information in Science and Technology.
Twelve researches were selected in the period from 2008 to 2018, adding up to 10 years of time cut. The results
*
Doutor em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Pará (UFPA). Profes-
sor de Prática e Metodologia do Ensino de Ciências, Biologia e Química no Instituto de Ciências Naturais da Universi-
dade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA). Brasil. ORCID: 0000-0001-8769-5383. E-mail: emidiosilva@yahoo.
com.br
**
Doutorando em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Professor de Sociologia e Antropologia da Educação na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Amazo-
nas (UFAM). Brasil. ORCID: 0000-0001-5782-7584. E-mail: lucasfurtado@ufam.edu.br
Recebido em 08/04/2019 – Aprovado em 01/07/2019
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v26i3.9309
Educação escolar e direitos indígenas: uma revisão integrativa de teses e dissertações a partir do BDTD
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
present interpretive analyzes on the way in which the surveys approach the categories of analysis. The study is
structured as follows: rstly, the methodological approach, integrative review and its processes are explained.
In the second moment, the results of the theses and dissertations are presented, followed by the analyzes and
syntheses of the selected studies. Finally, the nal considerations.
Keywords: Human rights. Indigenous rights. Schooling.
Resumen
El estudio plantea la relación entre educación escolar y los derechos de los indígenas en Brasil. Tiene como
objetivo analizar y sintetizar las tesis y disertaciones que tratan de las categorías: educación escolas y derechos
indígenas. Se caracteriza como una Revisión Integrativa, utilizando como base bibliográca tesis y disertaciones
del Banco de Datos de Tesis y Disertaciones, del Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia. Se
seleccionaron doce investigaciones en el periodo de 2008 a 2018, totalizando 10 años de recorte temporal. Los
resultados presentan análisis interpretativas sobre la forma como las investigaciones abordan las categorías de
análisis. El estudio se estructura de siguiente forma: en primero lugar, se explica el abordaje metodológico, revi-
sión integrativa y sus procesos. En un segundo lugar, se presentan los resultados de la recopilación de las tesis
y disertaciones, seguida de los análisis y síntesis de los estudios seleccionados. Por último, las consideraciones
nales.
Palabras-clave: Derechos humanos. Derechos indígenas. Educación escolar.
Introdução
O projeto de escola imposto aos povos indígenas é contemporâneo ao processo
de colonização europeia, tendo como marco temporal a invasão das Américas a
partir de 1492. O projeto de escolarização foi orquestrado para controlá-los e domi-
ná-los, pois o modelo de escola eurocêntrica encobria e marginalizava os elementos
socioculturais, objetivando o embranquecimento contínuo dos povos tradicionais.
O processo de escolarização dos povos indígenas foi pensado e operacionaliza-
do por missionários jesuítas, em sua maioria a mando da Coroa Portuguesa, que
instituiu a educação eurocêntrica aos indígenas a partir de instrumentos oficiais
como Cartas Régias e Regimentos. O controle da educação para os indígenas foi
regido pelos missionários no período compreendido entre os séculos XVI e XVIII.
Em outras palavras, foram 200 anos de embranquecimento a partir de processos
educativos cristocêntricos, patriarcais e coloniais, forçando os indígenas a “esque-
cerem” suas culturas, substituindo-as pela cultura do colonizador, seus hábitos e
seus costumes, deixando até de falarem suas próprias línguas, substituindo-as pelo
português. Tudo isso para que o indígena deixasse de ser indígena, alinhando-se
aos interesses do colonizador.
Cláudio Emidio Silva, Lucas Antunes Furtado
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
A partir do século XVIII, a Coroa Portuguesa começa a redimensionar a res-
ponsabilidade de instruir os “gentios”. Aos poucos, outros sujeitos leigos foram con-
duzidos a ombrear os processos educativos, que, mesmo na ausência dos jesuítas,
continuavam com as chagas cristocêntricas no ato de “educar”. A conversão e o em-
branquecimento dos indígenas continuaram sendo o objetivo central das escolas.
Nos idos do século XIX, no Brasil Império, a herança perversa da educação eu-
rocêntrica foi mantida e consolidada. Após a Declaração da Independência, em 07
de setembro de 1822, foram elaborados Projetos Constitucionais que propunham a
criação de “estabelecimentos para a Catechese e civilização dos índios” (LUCIANO,
2007, p. 04). Em 1845, a partir do Decreto 246, atribui-se às Assembleias Provin-
ciais a competência de promover junto aos governos gerais as missões de catequese
e civilização dos índios. Desta forma, a questão da educação dos povos indígenas se
manteve até o início da primeira república, em 15 de novembro de 1889.
Na primeira república, as questões dos povos indígenas, sobretudo a escola-
rização, foram redimensionadas ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abaste-
cimento (Mapa) e, em 1910, foi criado o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), órgão
ligado ao Mapa e destinado exclusivamente às questões dos povos tradicionais.
Como consequência desse novo cenário jurídico-administrativo, ampliou-se o pro-
cesso de implementação dos projetos de escolas “indígenas”, visando reprimir o
trânsito dos aldeados para outras regiões, principalmente para os grandes centros
urbanos, ou seja, objetivava-se a sedentarização dos povos tradicionais a partir da
alfabetização das crianças e dos adultos.
Com a promulgação da Constituição federal de 1934 (CF/34) (BRASIL, 1934),
a questão dos povos originários fora atribuída ao poder exclusivo da União. A refe-
rida Constituição estabeleceu a competência da União para legislar sobre o proces-
so de “incorporação dos silvícolas à comunhão nacional” (BRASIL, 1934), princípio
esse reiterado nas Constituições posteriores, a exemplo das de 1946 e 1967 (BRA-
SIL, 1946, 1967). A partir de então, 66 escolas “indígenas” foram organizadas pelo
SPI até a sua extinção em 1967. Essas escolas, junto aos projetos de escolarização
de missionários, passaram a representar instrumento institucional para cumprir
com a “civilização” dos indígenas, uma vez “incorporados” à sociedade envolvente.
Esse processo foi fortemente marcado pela característica da negação das diferenças
socioculturais e pelo assimilacionismo nacional, até porque as supostas escolas “in-
dígenas” reproduziam currículos das escolas rurais, voltadas para a alfabetização
em português e o ensino de ofícios como corte e costura, marcenaria, culinária,
entre outros.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Em paralelo com a realidade da questão indigenista no Brasil, em 1951,
ocorreu a 6ª Conferência Geral das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e
a Cultura (UNESCO), surgindo as primeiras propostas para implementação de
uma educação bilíngue para os povos tradicionais. No entanto, tais orientações
foram consideradas inadequadas à realidade brasileira pelos técnicos do SPI. “Um
dos argumentos mais significativo era de que programas de educação bilíngue po-
deriam colidir com os valores da incorporação dos índios à comunhão nacional”
(LUCIANO, 2007, p. 04). Não obstante, em 1957, ocorreu a Convenção nº 107 da
Organização Internacional do Trabalho (OIT), que tratou sobre a proteção e in-
tegração dos indígenas dos países independentes, sendo ratificada e incorporada
no Brasil anos depois. Salienta-se que as orientações da UNESCO, de 1951, e da
OIT/107, de 1957, não discutiram aspectos de uma educação aberta às realidades
socioculturais específicas dos povos originários. Considera-se, então, que a ideia
da educação bilíngue fosse meramente técnica, instrumental, sem interesses na
valorização cultural dos povos tradicionais.
A escolarização dos povos indígenas, até a década de 1960, foi utilizada como
um instrumento perverso para desestruturar, desarticular e controlar os povos tra-
dicionais, a fim de “ajustá-los” aos interesses do “desenvolvimento” nacional. No
entanto, os indígenas, desde o início das invasões, em 1492, sempre se colocaram
como resistentes ao processo de colonização. No que se refere à educação escolar
indígena, a partir da década de 1970 houve um giro na condução da questão. A es-
cola tornou-se um espaço tático de pós-contato, objetivando a preparação dos povos
para ampliação das relações com a sociedade envolvente, assim, o sentido de escola
foi ressignificado. Nas mãos dos próprios indígenas, a escola passou a ser mais uma
estratégia para contribuir com a autonomia e a afirmação identitária. Portanto,
a escola foi/é vista como uma das possibilidades para decifrar o “mundo” do não
indígena, e esse giro foi/é mais uma forma de resistência dos povos tradicionais.
Entretanto, é preciso salientar que a mudança não foi total nem de uma hora
para outra. Assim, as duas formas de conceber as escolas indígenas passaram a
coexistir, havendo tanto escolas ressignificadas quantos outras, que reproduziam
a escola do colonizador. Atualmente as escolas indígenas, na concepção de uma
educação escolar indígena a partir da Constituição federal de 1988 (CF/88) e das
leis subsequentes que tratam da educação, lutam por direitos alcançados para que
exista realmente uma educação intercultural, bilíngue/multilíngue, comunitária,
diferenciada e específica, o que ainda se constitui em um grande desafio, que mui-
Cláudio Emidio Silva, Lucas Antunes Furtado
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
tas estão superando, mas outras se encontram no processo de luta, reestruturação
e, ainda, ressignificação.
Nesse sentido, tem-se o caso do movimento dos professores indígenas dos esta-
dos Amazonas, Roraima e Acre, iniciando os encontros no ano de 1988 e finalizando
em 1997, ou seja, foram 10 anos de reflexões e proposições sobre os processos so-
cioeducativos dos povos indígenas.
1
Esse movimento tornou-se referência nacional,
pois as discussões giravam em torno das especificidades da questão da educação
escolar indígena, discutindo sobre as condições objetivas para a formulação de po-
líticas públicas sensíveis às realidades concretas dos indígenas no Brasil (LUCIA-
NO, 2007; SILVA, 1999).
Após duas décadas, o Estado, através da promulgação da CF/88, incorporou as
questões reivindicadas pelos movimentos indígenas. O Estado foi forçado, por pres-
são pública nacional e internacional, a reconhecer os avanços e as conquistas das
experiências dos povos indígenas. As experiências dos povos tradicionais sempre
se caracterizaram como um contraponto aos projetos colonialistas que tendiam a
homogeneizá-los e integrá-los à sociedade nacional. Em termos conceituais, jurídi-
cos e políticos, a CF/88 é um marco para as políticas indigenistas oficiais. Segundo
Luciano (2007, p. 05):
A CF/88 superou de forma definitiva a concepção absolutamente equivocada da incapacida-
de indígena que fundamentou o princípio jurídico da Tutela, [...] explicitando a garantia dos
direitos dos povos indígenas ao reconhecer suas culturas, tradições, línguas, organizações
sociais, crenças, enfim, o direito de continuarem vivendo segundo suas culturas e suas
livres escolhas.
À vista disto, a lógica e as práticas coloniais ainda persistem nos âmbitos cul-
tural e político, porém, avançou-se nos campos teórico e legal. Como consequência,
houve outras conquistas constitucionais com o foco na garantia e efetividade dos
direitos dos povos indígenas. Isso posto, destacam-se os principais marcos regula-
tórios que orientam a implementação das escolas indígenas no Brasil atualmente.
Educação escolar e direitos indígenas: uma revisão integrativa de teses e dissertações a partir do BDTD
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Quadro 1 – Principais marcos regulatórios para a educação escolar indígena – Belém, 2018
Constitui-
ção federal
de 1988
Art. 210 Serão xados
conteúdos mínimos para o
ensino fundamental, de ma-
neira a assegurar formação
básica comum e respeito
aos valores culturais e artís-
ticos, nacionais e regionais.
Art. 215 – O Estado garanti-
a todos o pleno exercício
dos direitos culturais popu-
lares e acesso às fontes da
cultura nacional, e apoiará e
incentivará a valorização e a
difusão das manifestações
culturais.
Art. 231 – São reconheci-
dos aos índios sua orga-
nização social, costumes,
línguas, crenças e tradi-
ções, e os direitos origi-
nários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam,
competindo à União demar-
cá-las, proteger e fazer res-
peitar todos os seus bens.
Art. 232 – Os índios, suas co-
munidades e organizações são
partes legítimas para ingressar
em juízo em defesa de seus di-
reitos e interesses, intervindo o
Ministério Público em todos os
atos do processo.
Lei nº 9.394
de 1996
Art. 32 – O ensino funda-
mental regular será minis-
trado em língua portuguesa,
assegurada às comunida-
des indígenas a utilização
de suas línguas maternas
e processos próprios de
aprendizagem.
Art. 78 – O Sistema de Ensi-
no da União, com a colabora-
ção das agências federais de
fomento à cultura e de assis-
tência aos índios, desenvol-
verá programas integrados
de ensino e pesquisa, para
oferta de educação escolar
bilíngue e intercultural aos
povos indígenas.
Art. 79 – A União apoiará
técnica e nanceiramente
os sistemas de ensino no
provimento da educação
intercultural às comunida-
des indígenas, desenvol-
vendo programas integra-
dos de ensino e pesquisa.
Plano
Nacional de
Educação
– Lei nº
10.172 de
2001
1. Atribuir aos Estados a
responsabilidade legal pela
educação indígena quer di-
retamente, quer através de
delegação de responsabili-
dades aos seus municípios,
sob a coordenação geral e
com o apoio nanceiro do
Ministério da Educação.
2. Universalizar imediata-
mente a adoção das dire-
trizes para a política nacio-
nal de educação escolar
indígena e os parâmetros
curriculares estabelecidos
pelo Conselho Nacional de
Educação e pelo Ministério
da Educação.
6. Criar, dentro de um ano,
a categoria ocial de “es-
cola indígena” para que a
especicidade do modelo
de educação intercultural
e bilíngue seja assegurada.
8. Assegurar a autonomia das
escolas indígenas, tanto no que
se refere ao projeto pedagógico
quanto ao uso de recursos -
nanceiros públicos para a manu-
tenção do cotidiano escolar, ga-
rantindo a plena participação de
cada comunidade indígena nas
decisões relativas ao funciona-
mento da escola.
Convenção
169/OIT –
Decreto nº
5.051/2004
Art. 26 – Deverão ser ado-
tadas medidas para garantir
aos membros dos povos em
questão a oportunidade de
receberem educação em to-
dos os níveis, ao menos em
condições de igualdade com
o restante da comunidade
nacional.
Art. 27 – Os programas e os
serviços de educação desti-
nados a esses povos deve-
rão ser desenvolvidos e im-
plementados em cooperação
com eles, a m de atender às
suas necessidades particula-
res, e deverão incorporar sua
história, seus conhecimentos
e técnicas, seus sistemas
de valores e todas as suas
demais aspirações sociais,
econômicas e culturais.
Decreto
Presiden-
cial nº 26
de 1991
Atribui ao Ministério da Edu-
cação a competência para
integrar a educação escolar
indígena aos sistemas de
ensino regular.
Decreto nº
1.904 de
1996
Instituiu o Programa Nacio-
nal de Direitos Humanos,
que estabelece a formula-
ção e implementação de po-
líticas de proteção e promo-
ção dos direitos indígenas.
Fonte: elaboração dos autores com base em: Cenário Contemporâneo da Educação Escolar Indígena no Brasil (LUCIANO, 2007); Edu-
cação escolar indígena: diversidade sociocultural indígena ressignificando a escola (BRASIL, 2007); e Referencial Curricular
Nacional para as Escolas Indígenas (BRASIL, 1998).
Cláudio Emidio Silva, Lucas Antunes Furtado
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Portanto, o direito à educação escolar indígena bilíngue, intercultural, es-
pecífica, diferenciada e de gestão comunitária se deu em um campo de disputas
políticas em direção ao processo de democratização do Brasil. Sendo assim, faz-se
necessário pesquisar acerca dos direitos indígenas para conhecer as produções aca-
dêmicas e traçar um panorama sobre o processo de implementação dos direitos
garantidos nos marcos regulatórios.
Dessa maneira, este estudo caracteriza-se com uma revisão integrativa, ob-
jetivando analisar e sintetizar as teses e dissertações que versam sobre direitos
indígenas e educação escolar, usando como plataforma de pesquisa o Banco de Da-
dos de Teses e Dissertações
2
do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e
Tecnologia, do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, que
reúne pesquisas acadêmicas de 107 instituições de ensino superior.
O estudo está estruturado da seguinte forma: primeiramente, explica-se a
abordagem metodológica, revisão integrativa e seus processos. No segundo mo-
mento, apresentam-se os resultados do levantamento das teses e dissertações,
seguido das análises e sínteses dos estudos selecionados. Por último, constam as
considerações finais.
Revisão integrativa e seus processos
A revisão integrativa (RI) é uma abordagem metodológica para revisão de li-
teratura que contribui para um amplo estudo sobre fenômenos teóricos e/ou empí-
ricos, tornando-se, assim, uma alternativa para produzir o estado da arte de uma
pesquisa científica. Um dos objetivos da RI é produzir uma ampla amostragem
para gerar um panorama consistente e significativo sobre o fenômeno estudado
(SOUZA; SILVA; CARVALHO, 2009).
Foram seguidas as etapas da RI com o intuito de manter os padrões do ri-
gor metodológico propostos na abordagem. No primeiro passo, delimitaram-se
as principais categorias do estudo (descritores): direitos humanos, direitos indíge-
nas e educação escolar indígena. No segundo passo, iniciou-se o levantamento
das teses e dissertações que trataram das categorias delimitadas, utilizando como
plataforma de pesquisa o Banco de Dados de Teses e Dissertações (BDTD). Após o
levantamento dos estudos, no terceiro passo, houve a seleção das teses e disser-
tações a partir das análises dos títulos, dos resumos e das considerações finais. O
quarto e o quinto passos correspondem a apresentação, análise dos resultados e
produção da síntese das teses e dissertações incluídas.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Resultados da pesquisa no BDTD
Foram identificadas 74 teses e dissertações, de 24 universidades públicas e
privadas do Brasil. Da amostragem, excluíram-se 62 estudos por três motivos: 1)
os repositórios de teses e dissertações de algumas universidades – Universidade
Federal da Grande Dourados (UFGD); Universidade do Oeste Paulista (UNOEST);
Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC/GO); Universidade Federal Rural
de Pernambuco (UFRPE); Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) – es-
tavam com erro de conexão (EC), impossibilitando o acesso, a leitura e o download
dos estudos, total de 10 trabalhos; 2) alguns estudos não correspondiam com as
categorias delimitadas, discutindo a questão dos direitos humanos de forma ampla
e não com o foco nos direitos indígenas, total de 48 trabalhos; 3) por duplicação de
trabalhos no sistema, total de 4 trabalhos. Restaram, portanto, 12 teses e disserta-
ções como amostragem, conforme o Quadro 2.
Quadro 2 Repositórios consultados, universidades, quantitativos de referências e referências selecionadas
por título e resumo – Belém, 2018
Repositórios consultados das
universidades
Quantitativo de
referências
Referências selecionadas
por título e resumo
Nº de teses e
dissertações
Repositório da USP 09 02 T: 02
Repositório da Ufam 08 02 D: 02
Repositório da UnB 07 01 T: 01
Repositório da UFS 05 01 D: 01
Repositório da Famerp 04 00
Repositório da UFGD 04 EC
Repositório da PUCRS 03 02 T: 02
Repositório da PUC-SP 03 00
Repositório da UFBA 03 01 D: 01
Repositório da UFG 03 00
Repositório da UFSCar 03 00
Repositório da Unisinos 03 01 D: 01
Repositório da Unoeste 03 EC
Repositório da PUC Goiás 02 00
Repositório da UEFS 02 00
Repositório da Ufes 02 00
Repositório da UFRPE 02 EC
Repositório da Uninove 02 01 D: 01
Repositório da ESPM 01 00
Repositório da UFCG 01 EC
Repositório da UFJF 01 00
Repositório da UFMT 01 01 D: 01
Repositório da Unesp 01 00
Repositório da Unigranrio 01 00
Total 74 12 12
Fonte: elaboração dos autores com base nos dados da pesquisa realizada em: 28/11/2018 no BDTD.
EC: erro de conexão; T: tese; D: dissertação.
Cláudio Emidio Silva, Lucas Antunes Furtado
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
As teses e dissertações selecionadas apresentam características distintas. São
estudos desenvolvidos em 6 programas de pós-graduação, são eles: Programa de
Pós-Graduação em Educação – Ufam/UFMT/UFS/Uninove –, 4 estudos; Programa
de Pós-Graduação em Direito – USP/UnB –, 3 estudos; Programa de Pós-Gradua-
ção em Serviço Social – PUCRS –, 2 estudos; Programa de Pós-Graduação Inter-
disciplinar Sociedade e Cultura na Amazônia – Ufam –, 1 estudo; Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social – UFBA –, 1 estudo; e Programa de Pós-
-Graduação em Ciências Sociais – Unisinos –, 1 estudo. Todos os estudos compõem
a grande área do conhecimento: Ciências Humanas e Sociais.
A maior parte dos estudos utilizaram como metodologia a pesquisa documen-
tal e bibliográfica, ou seja, 7 trabalhos (61%), já aqueles que optaram pela pesquisa
empírica, que envolvem seres humanos, somaram 5 estudos (59%). Todos os estu-
dos caracterizam-se como pesquisas qualitativas. Outra característica a ser desta-
cada é que os estudos foram realizados entre os anos de 2008 a 2018, totalizando
um recorte temporal de 10 anos de produção. Assim sendo, no Quadro 3, apresen-
tam-se as teses e dissertações selecionadas para análise e produção do panorama
geral sobre os direitos indígenas e educação escolar.
Quadro 3 Teses e dissertações selecionadas para a análise – Belém, 2018
(continua...)
Título Autores
Ano de
publicação
Universidade
Tese /
Dissertação
A Universidade Federal do Amazonas e
o acesso dos povos indígenas ao ensino
superior: desafios da construção de uma
política institucional
Rita Floramar
dos Santos Melo
2008 Ufam Dissertação
Direito ao desenvolvimento de comunida-
des indígenas no Brasil
Robério Nunes
dos Anjos Filho
2009 USP Tese
As comunidades Quilombolas do campo
em Sergipe e os desafios da formação
docente
Glezia Kelly
Costa Santos
2011 UFS Dissertação
A educação em diretos humanos e o di-
reito dos povos indígenas: um estudo de
caso sobre o desenvolvimento e diversida-
de no Mato Grosso do Sul
Ângela Apare-
cida da Cruz
Duran
2013 USP Tese
Territorialidade e condições de vida dos
indígenas Cocama da Comunidade Nova
Esperança de Manaus/AM
Roseane Gui-
marães Cabral
Costa
2014 Ufam Dissertação
Educação escolar e direitos indígenas: uma revisão integrativa de teses e dissertações a partir do BDTD
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
(Re)Tomando a escola: reflexões sobre
educação escolar indígena entre os Pata-
xó Hãhãhãe
Ivan Dutra Belo 2014 UFBA Dissertação
Escola Pública Mbyá Guarani Tekoa Porã:
entre a preservação e o aniquilamento cul-
tural
Ana Paula da
Costa Krumel
2014 Unisinos Dissertação
Os direitos dos povos indígenas à educa-
ção superior na América Latina: concep-
ções, controvérsias e propostas
Soledad Bech
Gaivizzo
2014 PUCRS Tese
Aprendizagens da Lei 11.645/08 na expe-
riência intercultural dos XII Jogos dos Po-
vos Indígenas em Cuiabá-MT
Gerda Langman-
tel Eichholz
2015 UFMT Dissertação
Igualdade como diversidade no direito à
educação: erradicando a discriminação ét-
nico-racial no sistema de ensino brasileiro
Gianna Ales-
sandra Sanchez
Moretti
2017 UnB Tese
Experiência escolar Kariri-Xocó: discrimi-
nação e preconceito
Claudinei de Aro
Poço
2018 Uninove Dissertação
A política de cotas na educação superior:
as (a)simetrias entre o acesso nas univer-
sidades federais e o desenvolvimento so-
cial brasileiro
Carolina Ritter 2018 PUCRS Tese
Fonte: elaboração dos autores com base nos dados da pesquisa realizada em: 15/12/2018 no BDTD.
Análises e discussões
A análise das teses e dissertações levou em consideração a fundamentação
teórica, os objetivos traçados e as categorias: educação escolar e direitos indígenas,
a partir das quais as sínteses serão apresentadas.
O direito à educação escolar para os povos indígenas é tratado como um terri-
tório social, no qual se produzem conhecimentos diversos e específicos que podem
contribuir para a produção de condições objetivas para uma realidade mais justa e
equânime. Para Gaivizzo (2014, p. 106), “[...] tais direitos são representativos, na
medida em que servem também como indicadores para analisar o grau de sociabili-
dade alcançado entre o Estado e as sociedades indígenas”. Nesse contexto, o direito
à educação escolar indígena é garantido pelo Estado por meio de políticas públicas
que são ações afirmativas e de reconhecimento das diferenças, orientando-se pelo
princípio de justiça compensatória e redistributiva.
Ritter (2018, p. 196) explica que no Brasil só se tornaram possíveis tais di-
reitos a partir “[...] das demandas e da pressão exercida pelos movimentos negros
e indígenas, que vêm denunciando as desigualdades raciais no país”. Sabe-se que
(conclusão)
Cláudio Emidio Silva, Lucas Antunes Furtado
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914
ESPAÇO PEDAGÓGICO
as reivindicações dos povos indígenas por uma educação escolar indígena se de-
ram em um contexto de conflitos políticos, contrapondo-se ao modelo de educação
eurocêntrico, patriarcal, colonial e cristocêntrico, que objetivava a “integração e
humanização dos povos tradicionais”. Foram os movimentos indígenas que propu-
seram o giro do sentido da educação escolar indígena, e esse giro é uma amostra da
resistência e da luta dos povos.
Com esse giro do sentido, a partir da década de 1970, foi possível identificar
e acompanhar algumas experiências de escolarização que se aproximavam dos pi-
lares que sustentariam a educação escolar indígena nos anos posteriores. Como é
o caso do processo de escolarização dos Pataxó Hãhãhãe, habitantes da região sul
da Bahia, que se “[...] apropriaram da instituição, que ainda permanece como ins-
tituição de fronteira [...] sendo um lugar de conflitos e negociações” (BELO, 2014,
p. 132). Os Pataxó Hãhãhãe resistiram ao processo perverso de contato com a so-
ciedade nacional, e nesse processo perceberam que uma das formas de exclusão
foi o letramento na língua portuguesa. Assim, segundo Belo (2014, p. 132), “[...] a
experiência de exclusão [...] os motivou a lutar pelo direito da escolarização”. Para o
povo em questão, a escola é vista como um projeto de resistência e luta contra uma
cultura de preconceito e ignorância que autoriza o racismo e a violência estrutural,
reconfigurando o processo de escolarização. Eles transformaram a escola em um
espaço de valorização cultural, “[...] fizeram da escola um lugar de saber sobre a
sua história de luta, um lugar de união” (BELO, 2014, p. 136).
Os Guarani Mbyá, do Rio Grande do Sul, BR-116, Km 335, também veem a es-
cola como um projeto de “fortalecimento da identidade pessoal e social dos indíge-
nas” (KRUMEL, 2014, p. 138). A partir do letramento em português e em guarani,
com intuito de registrar os elementos socioculturais e históricos, fortaleceram os
movimentos indígenas no processo de acompanhamento e proposição de políticas
públicas para as demandas do seu povo.
Embora se considere que “[...] a palavra falada é mais do que uma ligação
entre humanos e o sagrado, é a própria substância da divindade” (KRUMEL, 2014,
p. 139), os Guarani Mbyá entenderam a importância da coexistência entre a orali-
dade e a escrita, mostrando que é possível a existência de uma escola que respeite a
cosmologia, as concepções de mundo, ou seja, “anunciando possibilidades para ou-
tro fazer escolar” (KRUMEL, 2014, p. 139), fazer esse que pauta a “arte de viver”,
a lógica do povo Guarani Mbyá.
Já os Kariri-Xocó, habitantes do baixo São Francisco, Alagoas, concebem a es-
cola como uma instituição cujo papel fundamental é a discussão sobre a questão da
Educação escolar e direitos indígenas: uma revisão integrativa de teses e dissertações a partir do BDTD
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915
ESPAÇO PEDAGÓGICO
demarcação de terras indígenas. Para Poço (2018, p. 175), “[...] ainda permanecem
quadros de hostilidades oriundos de suas relações com latifundiários e fazendei-
ros”, sendo que tais conflitos resultam em etnocídios. Sendo assim, os Kariri-Xocó
não estão isentos da perversidade da especulação do agronegócio e da grilagem.
Os conflitos pelas terras no baixo São Francisco constituem um dos motivos
que levam os Kariri-Xocó a evadirem de suas aldeias, rumo às grandes cidades. O
esvaziamento das terras indígenas é um dos objetivos do agronegócio, pois se tor
-
na mais simples a invasão das terras quando o povo está reduzido e desarticulado.
Essa realidade não é específica aos Kariri-Xocó, é uma estratégia utilizada pela
grande indústria para desarticular, desvalorizar e desestruturar os movimentos
indígenas, e o detalhe é que geralmente esse processo é violento, legitimado pela
bancada evangélica e ruralista do Congresso Nacional. Isso posto, Poço (2018,
p. 177) afirma que a escola dos Kariri-Xocó contribui para eles “[...] resistirem à
hegemonia imposta, à discriminação, ao preconceito e à invisibilidade social”.
Eichholz (2015) destaca, nesse sentido, a Lei nº 11.645, de março de 2008, que
tornou obrigatório o estudo das histórias e culturas afro-brasileira e indígena nas
escolas públicas e privadas. A referida lei foi direcionada para as escolas não in
-
dígenas, a fim de contribuir com a formação dos brasileiros acerca da diversidade
sociocultural indígena e suas contribuições nas áreas social, ambiental, econômica
e política, pertinentes à história do Brasil. Segundo Eichholz (2015, p. 119), “[...] a
Lei foi fruto de lideranças dos povos negros e indígenas por sua cultura, tradição e
espiritualidade, diferenciadas da sociedade envolvente”. Em outras palavras, a Lei
nº 11.645/2008 é mais um mecanismo para garantir que os povos indígenas ocupem
e transitem nos espaços “comuns” da sociedade, sem abdicar dos elementos sociocul
-
turais, de suas histórias, dos seus valores, dos seus princípios e de suas identidades.
Nesse sentido, o trabalho educativo nas escolas públicas e privadas deverá
estar alinhado às questões dos direitos humanos, para que haja a garantia da am-
pla divulgação das histórias e culturas afro-brasileira e indígena, objetivando a
desconstrução de uma cultura homogênea, branca, eurocêntrica, para a produção
de uma pluralidade cultural que se aproxime da complexidade sociocultural do
povo brasileiro. Para isso, o Estado precisa, como afirma Duran (2013, p. 164),
“[...] investir maciçamente na educação para os Direitos Humanos e organizar-se
politicamente e juridicamente”.
Acredita-se que a questão étnico-racial também deve ser pautada nas agendas
dos movimentos indígenas e sociais, pois os índices de desigualdades socioeconômi-
cas e educacionais no Brasil voltaram a crescer. O Brasil ocupa o 10º lugar no ran-
Cláudio Emidio Silva, Lucas Antunes Furtado
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
king dos países mais desiguais do mundo, segundo o Relatório de Desenvolvimento
Humano (RDH), elaborado pela Organização das Nações Unidas (ONU) (2016).
Segundo o RDH, a desigualdade social é apontada como um dos desafios que o Bra-
sil precisa enfrentar, e sabe-se que o enfretamento se dá no campo político. Nesse
sentido, “[...] as desigualdades são acentuadas ainda mais pelo fator étnico-racial,
além do fator gênero e territorial” (MORETTI, 2017, p. 161).
Segundo Moretti (2017, p. 161), os indicadores sugerem que existem “[...] ní-
veis de desigualdades sociais mais elevados entre os brasileiros autodeclarados
negros em comparação com os autodeclarados brancos”. Entre os povos indígenas
essa realidade não é diferente. Eles enfrentam cotidianamente inúmeros desafios
pela persistência da discriminação, do racismo e do preconceito na sociedade en-
volvente, que influencia direta e intencionalmente a violação dos seus direitos ga-
rantidos na CF/88. Os desafios enfrentados pelos povos indígenas são fenômenos
históricos, pois a cultura de exploração de grupos ou indivíduos rotulados como
vulneráveis assola o presente e é legitimada pelo Congresso Nacional, reitera-se.
É consenso universal que as desigualdades sociais comprometem o processo
de desenvolvimento humano. Ainda há a necessidade de humanizar as políticas
públicas voltadas para as questões socioeconômicas e educacionais, para contri-
buir com ampliação e melhorias das condições de trabalho, saúde, segurança, etc.,
sobretudo para os povos indígenas, que ainda são marginalizados e taxados como
um grupo social vulnerável.
Promover uma educação em ou para os direitos humanos é pensar novos pa-
radigmas sociais, é reinventar processos sociais mais humanos, é lutar por justiça
social, sem esquecer que a justiça social só será alcançada com a justiça cognitiva.
Sendo assim, a educação escolar precisa dialogar com a diversidade de forma críti-
ca, aprender com os povos indígenas como promover o giro de resistência e luta por
uma sociedade verdadeiramente democrática, criando, assim, “[...] um ambiente
favorável para a busca de soluções para superar as violências exacerbadas contra
os povos indígenas” (DURAN, 2013, p. 166).
À vista disso, considera-se que as questões discutidas evidenciam os esforços
dos povos indígenas pela dignidade humana que estão representados nos princípios
que sustentam o direito constitucional indigenista, considerando o desejo genuíno
de desconstruir o paradigma assimilacionista em prol da garantia do direito à alte-
ridade e à diferença, sem esquecer também que o Estado deve preservar o princípio
de reconhecimento e proteção às organizações sociais, aos costumes, às línguas, às
crenças e às tradições dos povos indígenas (ANJOS FILHO, 2009).
Educação escolar e direitos indígenas: uma revisão integrativa de teses e dissertações a partir do BDTD
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Considerações nais
Tendo em vista o objetivo de analisar e sintetizar as teses e dissertações sobre
direitos indígenas e educação escolar, foram selecionadas 12 pesquisas. É possível
considerar que a educação escolar e os direitos indígenas são questões dialéticas
e tensionadas. O conflito político é axial na sociedade nacional, haja vista que o
espectro da colonialidade está presente nas instituições sociais, ou seja, a lógica
perversa da exploração e marginalização social dos não brancos é um fenômeno
estrutural historicamente imposto e consolidado no país. É por essa razão que os
movimentos indígenas são egrégios. Não existe educação escolar indígena sem
movimentos indígenas. O movimento está imbricado com a educação, e por isso
o movimento é educativo, é pedagógico, é formativo. O movimento é o modus ope-
randi de resistência e de luta contra os retrocessos políticos que surgiram a partir
do Golpe de Estado de 2016 e, sobretudo, contra as manobras imorais impostas e
avigoradas pelo atual governo, a saber: PEC/2015, que propõe a alteração da Cons-
tituição para transferir ao Congresso o poder de decisão final sobre a questão de de-
marcação de terras indígenas, territórios Quilombolas e unidades de conservação
no Brasil, impactando em todas as terras que estão no processo de reconhecimento
e demarcação e possibilitando a ampliação do poderio do agronegócio.
Nessa perspectiva, a educação escolar gerida pelos sujeitos indígenas torna-se
de fato um projeto étnico-político, visando atender às diversas necessidades dos
povos, deixando de ser proposta externa que pouco contribuiu com o bem-estar e
para o seu desenvolvimento, mas serviu para consolidar o processo de embranque-
cimento, alienação e controle.
Na ordem da colonização, além das implicações já discutidas, outra que se
apresenta como resultado desse processo de substituição é o empobrecimento cul-
tural do país, que é uma das marcas da colonização. Além de os povos indígenas se-
rem obrigados a falarem apenas uma língua (o português) e de expressarem apenas
uma cultura (a do colonizador), a colonização deixa como legado a perda de muitas
línguas e culturas. Tratar do diverso, ainda nos dias de hoje, é um grande desafio
para a educação escolar, que, além de ser eurocêntrica, pretende-se monolíngue e
monocultural. Nesses desafios se encontram as escolas indígenas por todo o país,
tendo que lidar com essas situações de fronteiras, o que tem possibilitado novas
formas de organização da educação e dos direitos indígenas.
As experiências de educação escolar indígena apresentadas sugerem que,
quando os sujeitos indígenas estão na vanguarda dos processos educativos, as rela-
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
ções entre povos indígenas, Estado e sociedade civil se entrelaçam, possibilitando
o trânsito e a ocupação nos espaços “comuns” da sociedade. A educação é direito
garantido e se caracteriza como um território social, um ponto de contato interét-
nico estratégico.
Dessa forma, o direito à educação escolar é visto como um processo de ins-
trumentalização política para que os sujeitos indígenas, a partir dos movimentos,
possam se organizar enquanto coletivo, para continuar pressionando e cobrando o
Estado para a garantia, ampliação, continuidade e aplicação dos direitos conquis-
tados historicamente.
Cabe salientar que o direito indígena, segundo a CF/88 e a Lei nº 9.394/1996,
tem como objeto os direitos à autodeterminação, à manutenção dos elementos so-
cioculturais, à possibilidade de optar por um projeto de desenvolvimento social, à
permanência e à vida no território indígena, ao usufruto dos recursos naturais nos
territórios indígenas, ao desenvolvimento socioeconômico, à saúde, ao trabalho, à
renda e à educação bilíngue/multilíngue, específica, diferenciada, intercultural e
de gestão comunitária.
Assevera-se que o direito à educação deve ser apresentado como um direito
fundamental na ordem constitucional, pois os direitos fundamentais, bem como
os direitos humanos, representam um elenco de direitos garantidos na constitui-
ção, que reconhece a autonomia e o potencial dos povos indígenas em se organizar
efetivamente como um ato de emancipação, sendo condição para a concretização e
efetivação dos mecanismos legais.
Contudo, tais procedimentos legais só serão possíveis a partir dos movimentos
indígenas, em um contínuo diálogo tensionado com a sociedade envolvente e com o
Estado, que deve prover planejamento e implementação de políticas públicas que
auxiliem os povos originários no processo de reconfiguração da educação escolar,
tornando-a plural, diversa, dinâmica, respeitando a perspectiva de pertencimento
e identitária de cada povo.
Nota
1
Ressalta-se que o movimento articulou uma rede de 1.156 professores indígenas que trabalharam com um
universo de 25.902 alunos. Organizou-se em nove regiões: alto e médio Solimões, baixo Amazonas, alto,
médio e baixo Madeira, Rio Negro (no Amazonas); Roraima e Acre. Participaram diretamente dos encon-
tros anuais 390 professores de 32 povos.
2
A Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações integra e dissemina, em um só portal de busca,
os textos completos das teses e dissertações defendidas nas instituições brasileiras de ensino e pesquisa.
Disponível em: www.bdtd.ibict.br. Acesso em: 28 nov. 2018.
Educação escolar e direitos indígenas: uma revisão integrativa de teses e dissertações a partir do BDTD
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Referências
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ESPAÇO
PEDAGÓGICO
DIÁLOGO COM
EDUCADORES
Profa. Dra. Margarita R. Sgró
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Recebido em 19/03/2019 – Aprovado em 02/07/2019
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v26i3.9876
Diálogo com educadores
1
Profa. Dra. Margarita R. Sgró
Margarita R. Sgró es profesora titular del Departamento de Educación de la
Facultad de Ciencias Humanas de la Universidad Nacional del Centro de la Pro-
vincia de Buenos Aires con sede en la ciudad de Tandil. Profesora responsable del
área Filosófico-pedagógica. Formación académica: Profesora y licenciada en Cien-
cias de la Educación (1982-1983). Magister en Educación con mención en Filosofía
e Historia de la Educación (1999), títulos expedidos por la Universidad Nacional
del Centro de la Provincia de Buenos Aires. Doctora en educación por la Universi-
dad Estadual de Campinas (2004). Hasta el mes de mayo de 2019, Coordinadora
del Programa de Posgrado en Educación de la Facultad de Ciencias Humanas de
UNICEN. Temas de investigación: Teoría crítica de educación, Pensamiento crítico
latinoamericano con especial referencia a Teología de la Liberación. Paulo Freire y
la pedagogía de la liberación Teoría crítica de la sociedad y educación, Modernidad
e Iluminismo, Educación, igualdad y justicia social. E-mail: msgro@speedy.com.ar
Revista Espaço Pedagógico (REP): Quais são suas primeiras lembranças
referentes ao seu processo de escolarização? Que aspectos dele consideras mais sig-
nificativos? Que experiências de sua formação escolar foram mais significativas e
que perfis de professores mais lhe marcaram?
Margarita R. Sgró (MRS): Primero quiero agradecer el convite a este ejerci-
cio particular de revisión que conjuga la sensibilidad y la reflexión, ambas integran
este recorrido por la memoria de mi vida profesional.
Nací en Tandil, una ciudad del interior de la Provincia de Buenos Aires, con
un paisaje natural muy bonito y una buena calidad de vida si se la compara con
ciudades más grandes. Soy hija de un trabajador por cuenta propia, que trabajaba
de manera artesanal el hierro, y una madre ama de casa que siempre quiso estu-
diar pero no pudo, porque en la Argentina anterior al Peronismo solo estudiaban
los hijos de familias acomodadas económicamente, los demás terminaban la escue-
la primaria y salían a trabajar.
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Tandil tiene una universidad nacional, la Universidad Nacional del Centro de
la Provincia de Buenos Aires. Fundada en 1964, como Instituto universitario para
Formación de profesores que fue convertida en Universidad pública nacional, en
el año 1974. La historia de la UNCPBA o UNICEN como se la conoce más recien-
temente, es muy interesante. La UNCPBA tiene sede central en Tandil, y tiene, lo
que uds. llaman una extensión, en una ciudad cercana llamada Olavarría, en esa
ciudad hay una familia muy poderosa vinculada a los negocios del cemento para
construcción, la familia Fortabat, que sigue estando entre las más adineradas de
Argentina. Los Fortabat querían llevar la Universidad a Olavarría comprometién-
dose a financiar todo lo que hiciera falta. Pero en Tandil hubo una movilización
popular enorme de la que participaron hombres y mujeres de todas las clases socia-
les, especialmente trabajadores que aspiraban a que sus hijos fueran a la universi-
dad, así de importante era la educación en Argentina. Recuerdo que fue la primera
marcha (paseata) a la que asistí, porque las escuelas secundarias se organizaron
para llevar a todos sus alumnos. A partir de allí se acordó que en Olavarría habría
una Facultad de ingeniería. Y Tandil quedó como sede central con la mayoría de los
cursos que tiene hoy la universidad.
Asistí a una escuela pública Nº 7, hoy denominada “Pueblos originarios”, es
una escuela primaria a la que iban alumnos de una institución de menores, huérfa-
nos o abandonados por sus familias que vivían en lo que se denominaba el Instituto
Bernardo Houssay, en homenaje a un científico que había ganado el Premio Novel.
En esa institución había especialmente niños pobres y sin familia, o con familias
que no podían cuidarlos adecuadamente. Ellos iban a la misma escuela a la que
asistíamos niños de familias constituidas de clase media baja, como es mi caso, o
clase baja. Ese es mi primer recuerdo, mi esfuerzo por entender cómo podía haber
niños que no tuvieran familias.
Pasada esa primera impresión, tuve una escolarización que me marcó fuerte-
mente en la percepción de las diferencias sociales y en las injustas condiciones en
las que muchos niños de mi edad vivían. Pero también, a la distancia, valoro mucho
lo que la escuela hizo por todos nosotros, primero el trato cariñoso de la mayoría de
los maestros, un sentido patriótico que incluía la enseñanza de la historia nacional,
con mucho de mitología y una formación de cierto sentido ciudadano. La escuela
era imprescindible para “progresar” pero no solo en un sentido económico, también
en el sentido de la integración al mundo adulto.
Esa fue en la primera escolarización mi experiencia más fuerte y la que re-
cuerdo más nítidamente. Por lo demás, pertenezco a una generación que tardía-
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mente empezó a ver televisión y a una familia de padres que no habían estudiado
pero en la que, especialmente mi madre, tenía la firme convicción que sus hijas
llegaran a la universidad. Una aspiración propia de la época en la que la educación
en Argentina fue realmente un factor de movilidad social ascendente. Soy primera
generación de universitarios en mi familia.
A la distancia, valoro mucho la posibilidad de una escolarización que me en-
señó, sin proponérselo pedagógicamente, sobre la pobreza, las privaciones y las
diferencias sociales. En ese sentido, la escuela pública argentina fue una herra-
mienta de igualación social como no hubo otra.
Con respecto a los profesores, recuerdo más vivamente a los de la escuela pri-
maria, afectuosos y sensibles, dispuestos a cuidarnos y otros, mucho más rigurosos
que encarnaban el ideal de la “formación del niño para la vida adulta”.
Curiosamente los recuerdos que tengo de mis profesores de escuela secunda-
ria están más caracterizados por la oposición a formas de autoritarismo, y de lo
que hoy podría caracterizar como un intelectualismo injustificado y vacuo, que al
mismo tiempo se asentaba sobre el desprecio a las culturas populares, eso me llevó
a ser muy crítica de mi escuela secundaria.
REP: Como foi sua formação durante a graduação e o que a levou a escolher o
campo da educação?
MRS: Terminé la escuela secundaria en una institución pública, en la época
muy prestigiosa, que era la “Escuela Normal Nacional” (diseminadas en todo el
país, creadas por Domingo Faustino Sarmiento, la primera en 1871, destinada a la
formación de maestros). Terminé en 1976, año que comenzó la última Dictadura en
mi país, que se extendería hasta diciembre de 1983. En 1977 ingresé a la Universi-
dad Nacional del Centro en la que finalicé la carrera de Ciencias de la educación y
de la que soy actualmente profesora. Toda mi formación universitaria transcurrió
en la Dictadura.
Tenía una clara inclinación por las problemáticas sociales y políticas y cuando
fui a preguntar por las carreras de la Facultad de Ciencias Humanas me gustó mu-
cho una que tenía tres cursos de Filosofía, dos de sociología, dos o tres de psicología,
dos historias de la educación y una general, etc.
Alcancé, durante los dos o tres primeros años de curso, a tener profesores
brillantes, uno al que recuerdo con mucho cariño se llama Jorge Pérez San Román,
afortunadamente fue mi profesor y al año siguiente en 1978 se exilió en Méxi-
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
co, que recibió a muchos argentinos en la época. Era profesor de Introducción a
la Filosofía, retornó después de la Dictadura y nos ayudó mucho al proceso de
“Normalización” de la universidad, es decir, a retomar las reglas que regían la
vida universitaria, por ejemplo, que se accediera a los cargos por concurso público,
a restaurar la libertad de cátedra, el gobierno tripartito, viejas tradiciones de la
Universidad argentina que la Dictadura desconoció. Tuve otro excelente Profesor
de Introducción a la Sociología que se llama Edgardo Marggiota, recuerdo que en
épocas trágicas, leíamos los textos de los padres de la sociología clásica y siempre
hacía hincapié en estudiar las fuentes, un gran profesor. La mayoría de los otros
docentes eran personas con poca formación académica, y un marcado pensamiento
de Derecha que se justificaba diciendo “yo soy apolítico”. En el otro extremo tuvi-
mos también colaboradores de la Dictadura, profesores y alumnos.
Sin embargo, lo que la universidad no ofrecía formalmente, un saber actua-
lizado y crítico, circulaba como lo prohibido, lo que no debía decirse, “lo que había
que aprender por afuera”. Paradójicamente, esa experiencia fue posible porque se
recordaba lo que la universidad argentina había sido en democracia. Fue, para
mí, un tiempo muy rico de experiencias de participación social. Dos colegas de
estudio, alumnas, tuvieron sobre mí, mucha influencia, las dos tenían militancia
social-cristiana y política en el Peronismo, ambas fallecieron muy jóvenes. Nieves
Isabel Santellan, era una militante de la Juventud Peronista que llegó a la Facul-
tad de Ciencias Humanas después de haber sido presa política, en 1979 y María del
Carmen Borga, militante del Movimiento Familiar Cristiano, en la época un mo-
vimiento progresista del catolicismo argentino que por un lado, estaba fuertemen-
te comprometido con la Dictadura y por otro lado, tuvo movimientos pioneros de
sacerdotes comprometidos, en términos generales, con la Teología de la liberación,
con el Peronismo, y aun con un movimiento guerrillero denominado “Montoneros”,
de raíz cristiana. Por ellas conocí a un sacerdote que también había sido preso
político durante casi toda la Dictadura, el Padre Miguel Beratz, con él empeza-
mos a leer el Concilio Vaticano II, los documentos de la Iglesia latinoamericana
de Medellín y Puebla, y algunos pensadores del Peronismo. Con un joven profesor
llamado Néstor Dipaola, nos juntábamos, fuera de la Facultad, a leer Pedagogía
del Oprimido de Paulo Freire. Participé muy activamente de un Grupo de caridad
denominado, Fraterna ayuda cristiana, dirigidos por otro sacerdote al que recuer-
do con mucho afecto que fue el Padre Esteban Mancisidor, un Carmelita vasco,
que tenía una muy buena formación intelectual y al que recurríamos para que nos
explicara cuestiones teológicas que nunca quedaban del todo claras. En ese Grupo,
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algunos compañeros y los más jóvenes, discutíamos mucho la contradicción entre
caridad y justicia social.
Más tarde, cuando ya terminaba la Dictadura, participé de una manera muy
activa en el Partido Justicialista de Tandil. Siendo muy joven fui Directora de
educación de la Municipalidad y aunque fue una experiencia de alto costo personal,
obtuve de ella mucho aprendizaje. Continuo, como militante, vinculada al Partido
Justicialista.
Señalo estas cuestiones, aun corriendo el riesgo de extenderme demasiado,
porque a la distancia, entiendo que mi formación más valiosa no provino de lo
que la Universidad ofrecía formalmente, durante la Dictadura. Sí de lo que infor-
malmente circulaba como saberes contestatarios y militancia social y política que
secretamente íbamos aprendiendo. Tan intenso fue el vaciamiento, que visto en
perspectiva, las experiencias formativas más marcantes de ese tiempo, estuvieron
fuera de la Facultad, impulsadas por personas que habían conocido el esplendor de
la universidad en democracia. Afortunadamente, el Proceso de Reorganización Na-
cional, así se llamó a sí misma la Dictadura cívico-militar, terminó en 1983 después
de una guerra perdida con Inglaterra por las Islas Malvinas.
Ese sentimiento, tal vez un poco exagerado de moverse en la clandestinidad,
generó al mismo tiempo amistades que conservo hasta hoy.
REP: Quais foram as principais influências intelectuais ao longo de sua traje-
tória de pesquisadora?
MRS: Terminé mi formación como Profesora en 1982 y como Licenciada en
1983, en Argentina el Profesorado es el título que habilita a enseñar y la Licencia-
tura forma en Investigación.
Con el retorno de la Democracia, empieza otra historia en mi país y especial-
mente en la Universidad. En el año 1986 llegó a Tandil un Profesor de la Univer-
sidad de la Plata, el Prof. Hugo Antonio Russo, con formación en filosofía que fue
mi director de tesis de Maestría, con el que ya oficialmente comencé a estudiar el
pensamiento crítico latinoamericano y especialmente Paulo Freire, fueron años de
lectura ingenua y discusión asistemática sobre sus textos, pero muy valiosos desde
el punto de vista de una nueva perspectiva de formación en investigación.
La carrera de Ciencias de la Educación, que fue la primera de la Facultad de
Ciencias Humanas, empezó a tener un perfil más académico, comenzaron los pro-
yectos de un Núcleo de investigación que se concretó en 1994, el Núcleo de Estudios
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Educacionales y Sociales, se publicó por primera vez la Revista Espacios en Blanco
que completa en 2019 los 25 años.
El Prof. Russo había hecho su formación doctoral en la Universidad Estadual
de Campinas, por su gestión se firmó un convenio, extremadamente provechoso
con UNICAMP, que permitió crear el Programa de Posgrado en Educación, Maes-
tría y Doctorado en 1994. Inmediatamente se puso en marcha solo la Maestría y
muchos años después el Doctorado, en el año 2013.
En 1999 después de terminar la formación de Maestría, y en el marco del
Convenio con UNICAMP, también fui a hacer mi formación de Doctorado, pasé en
esa Universidad cinco años, que yo considero vitales en mi formación profesional.
Bajo la dirección del Prof. Pedro Goergen, a quien yo había conocido en Tandil,
comencé una experiencia de formación más sistemática, seminarios, lecturas y
debates realizados con regularidad y con un grupo de estudio que formó el Prof.
Goergen, integrado por los doctorandos de esos años. La experiencia de ese grupo,
del que participó frecuentemente el Prof. Angelo Cenci, marcó un salto de calidad
en la formación de todos nosotros, formado en el año 2000, se mantuvo activo y aun
se mantiene a pesar de las inestabilidades políticas y financieras que enfrentan
nuestros respectivos países. Desde el punto de vista teórico, también pude acceder
a una lectura sistemática de la Teoría crítica de la sociedad y tuve la oportunidad
de conocer excelentes Profesores, con algunos de los cuales continuo vinculada.
Cuando volví a Tandil en el año 2004, fui co-directora del Grupo de Investi-
gación que dirigía el Prof. Russo y en el año 2005, inicié una experiencia de Grupo
de estudio con alumnos avanzados de graduación que fue variando con distinta
intensidad y que pretendemos revitalizar este año. Ahí se fundó el grupo de inves-
tigación Teoría crítica de educación: democracia y ciudadanía. No puedo dejar de
mencionar que lo poco o mucho que se haya conseguido académica e institucional-
mente con él, fue en gran medida por la parcería con UNICAMP, especialmente por
la gestión del Prof. Goergen y con la Universidad de Passo Fundo, especialmente
con los Profesores Angelo Cenci, Claudio Dalbosco y Eldón Mühl, con quienes el
diálogo fluido fue cimentando una relación académica y de amistad que ha sido
fundamental para la evolución de las investigaciones que realizamos. Esa parcería
institucionalizada entre las tres universidades, dio lugar a un Convenio de coope-
ración basado en el trabajo académico, en el intercambio y en la concreción de un
diálogo entre áreas diferentes de conocimiento, que para el grupo de investigación
de UNCPBA, que yo dirijo, ha sido de vital importancia.
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REP: Que aspectos considera mais significativos na sua experiência docente?
MRS: Mi experiencia docente estuvo siempre muy definida por la preocupa-
ción de mostrar a la educación como una herramienta de transformación social, de
inclusión y de democratización. Tal vez porque esa había sido mi propia vivencia.
Complejizar el problema educacional como un problema político, enseñar los mar-
cos histórico-políticos donde se desenvuelven las lecturas del mundo, dejar claro
que solo se construye saber en un diálogo crítico, que no siempre está exento de
conflictos.
Trabajé con formación de profesores en Institutos Superiores de Formación
Docente, que en Argentina se consideran de educación superior no universitaria.
En la Facultad de Ciencias Humanas comencé a trabajar siendo alumna de la car-
rera de Ciencias de la educación en una modalidad que existe que es el “ayudante
de cátedra”, un alumno avanzado que ayuda a otros alumnos guiando sus lecturas,
reforzando contenidos, etc.
REP: Se pudesse identificar um fio condutor em sua produção intelectual,
como o explicitaria?
MRS: El hilo conductor de los problemas sobre los que he ido trabajando
académicamente estuvieron signados por la idea de emancipación social. En Ar-
gentina hay una generación paradigmática, anterior a la mía, que fue la llamada
generación de los años ’70. Ella encarnó los ideales de la Liberación contra los
proyectos coloniales o dependientes del Imperialismo Norteamericano, la mayoría
de sus militantes adhirió a movimientos de guerrilla urbana y la historia acabó con
un baño de sangre y 30.000 personas desaparecidas, en su mayoría obreros y estu-
diantes. En la época, se generó también la resistencia y la lucha de los movimientos
de Derechos humanos, las Madres de Plaza de mayo y las Abuelas de Plaza de
mayo, que hicieron una tarea pedagógica formidable. Por ellas, fue posible apresar
y juzgar a los responsables de los innumerables crímenes cometidos. Pero también
alertar a la sociedad, habitualmente distraída, afirmando que la peor democracia
es mejor que una dictadura y eso se cristalizó en una frase emblemática, “NUNCA
MÁS”. El trabajo de reconstruir la memoria de ese tiempo trágico fue paciente e
incansable y aun continua.
En un punto, muchos de mis colegas estudiantes, nos sentíamos simbólica-
mente herederos de esa generación. Creíamos en la política como el único vehículo
de transformación social. La oposición entre Liberación o Dependencia marcó el
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
interés por Paulo Freire, la Teología de la Liberación, la Teoría de la dependencia,
el acompañamiento teórico y práctico a la militancia social y política.
Con el Prof. Hugo Russo, empecé a analizar tímidamente el pensamiento de
Jürgen Habermas, recuerdo haber leído primero “La reconstrucción del materia-
lismo histórico” y recuerdo que me impresionó esa idea básica de desmontar una
teoría para reconstruirla, sin que pierda su sentido histórico-emancipatorio, en
parte porque esa idea me permitía recuperar a muchos autores que se pensaban
liberales o de derecha, y por ello poco interesantes. Hablo de Durkheim, de Dewey
y de otros muchos que no resultaban atractivos. En ese momento, percibimos que
el pensamiento latinoamericano, ya no alcanzaba y que lo lógico era ampliar los
marcos de referencia. Cuando comencé a leer la Teoría de la acción comunicativa,
tuve la certeza de que aportaba, no solo complejidad sino la posibilidad de integrar,
de recomponer la historia de la pedagogía, asentada sobre el eje de la emancipación
social.
Luego, mi estadía en Unicamp me permitió estudiar mucho más y encontrar
los hilos que unen ese concepto de emancipación en las diferentes generaciones
de autores de la Teoría crítica, hasta los más contemporáneos. Las relaciones aca-
démicas y de amistad que se forjaron en ese tiempo fueron muy productivas, se
cristalizaron en Convenios que legalizaron una variada actividad académica, reite-
radas reuniones en Tandil, o en Passo Fundo, seminarios, coloquios, publicaciones,
participación en defensas de tesis, etc.
REP: Como avalia sua experiência de internacionalização com a pós-gradua-
ção em educação e, sobretudo, sua relação com o Brasil?
MRS: La UNCPBA es una universidad de carácter regional, particularmente
nuestro programa de Posgrado en educación, tiene un alumnado que proviene de
la Provincia de Buenos Aires, unos pocos residentes en Tandil, algunos pocos alum-
nos del resto del país y algunos extranjeros, colombianos y brasileños.
La universidad tuvo entre sus misiones fundamentales la de producir saber,
discutimos y continuaremos discutiendo las políticas públicas de fomento a la in-
vestigación, la evaluación de la Investigación, sobre todo en el campo de las cien-
cias sociales, pero no debemos renunciar a la misión de producir saberes nuevos.
Con el paso del tiempo y el peso más reciente de los sucesivos proyectos neo-
liberales, la universidad fue cediendo esa tarea y concentrándose en la formación
de Profesionales. Aunque esta misión también debe estar estrechamente unida a
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la investigación, poco a poco la formación profesional fue admitiendo una lógica de
reproducción del saber existente y de respuesta a las demandas de la sociedad, en-
tiéndanse como tal las demandas cambiantes del mercado de trabajo, o en general,
reclamos de modernización del sistema educacional, resueltos con la incorporación
de Tecnologías altamente valoradas, o Educación a distancia, que ha sido una res-
puesta que dieron casi todas las casas de estudio.
Atender y revitalizar la misión de generar conocimiento en un mundo global,
implica, de hecho una propuesta de internacionalización que en nuestro caso fue y
es muy estrecha con Brasil como ya lo he señalado, con Uruguay, Paraguay y Bra-
sil, los colegas del área de Política educacional, también profesores del Programa
de posgrado.
Cabe destacar que desde el comienzo del presente siglo, políticas públicas de
impulso a la internacionalización y políticas tendientes a la unidad latinoame-
ricana, propiciaron y facilitaron en gran parte, el financiamiento necesario para
el desarrollo de la ciencia y la técnica con un sentido de soberanía científica que,
lamentablemente fue abandonada por los actuales gobiernos neoliberales y neoco-
loniales.
REP: Como avalia a atual crise da cultura em geral e como, a seu ver, esta
afeta a educação e a escola em particular?
MRS: Lo que llamamos crisis de la cultura en general, de la cultura política,
y también de la cultura pedagógica, es un tema que últimamente me preocupa
mucho, porque creo que la primera consecuencia de esa crisis es la inestabilidad
permanente en la que vivimos, sobre todo los jóvenes, la imposibilidad, en nuestros
países, de pensar el largo plazo, genera un problema muy importante. La conse-
cuencia es vivir en un presente permanente. La fragilidad de las relaciones hu-
manas, el individualismo asentado sobre la satisfacción de los deseos inmediatos
y pocas referencias al mundo externo, aun a aquél mundo de nuestras relaciones
más próximas. El emprendedurismo, el convertirse en empresario de uno mismo,
la cultura de la felicidad inmediata, genera en buena parte de la sociedad una de-
manda, a mi criterio, excesiva a la educación, especialmente escolar. Se exige, que
la escuela forme a un niño lector, respetuoso, paciente, obediente a sus mayores,
etc. cuando esa cultura ya es, prácticamente, inexistente. Y es inexistente porque
las familias, los medios de comunicación, las redes sociales no están propiciando
esas conductas. Hablo como educadora, hay en la vida de los niños y jóvenes una
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carencia de adultos que acompañen, que protejan, que los contengan en un mundo
que se ha vuelto muy hostil para ellos.
Ese me parece un primer punto, del cual saldríamos si pudiéramos, como so-
ciedad, colocar un nuevo contrato, un acuerdo mínimo de lo que queremos o a lo
que podemos aspirar. No podemos ser ingenuos y creer que la escuela puede salvar
o condenar la vida de un joven, pero tiene un poder muy grande para acompañar el
crecimiento intelectual y afectivo de un alumno, así como tiene poder para conver-
tirse en un actor de la comunidad en la que se encuentra. Yo creo que si las escuelas
tomaran la decisión de proponer un diálogo, con objetivos de cooperación, en las
pequeñas comunidades en las que se insertan, tanto la tarea educacional como
la vida de la comunidade, mejorarían notablemente. En los sectores socialmente
más desfavorecidos de la población, la escuela es una referencia, que como decía
en estos días un sindicalista argentino, se percibe como inalterable, todo puede
quebrarse pero la escuela está. En Argentina, tanto en la crisis de 2001 como ac-
tualmente, las escuelas se mantienen en pie, aun con enormes privaciones y, como
he dicho otras veces, para muchos jóvenes es el único lugar seguro.
Claro que la educación no puede limitarse a aceptar las condiciones que impo-
nen los vaivenes políticos, solo respondiendo urgencias. Es imperioso que la peda-
gogía reflexione sobre las condiciones de la formación del ciudadano y las limitacio-
nes de los sistemas democráticos en nuestros países. De otro modo, no tendremos
más alternativa que aceptar que la educación escolar se convierta en una ficción
deteriorada, en un edificio histórico. Afortunadamente, creo que estamos lejos de
que eso ocurra, pero no podemos desconocer que es una posibilidad.
Otro tema fundamental de la crisis de la cultura se patentiza en la forma-
ción de los profesores. Dedicada casi exclusivamente a aspectos instrumentales del
proceso de enseñanza y aprendizaje, el professor adquiere una cantidad de cono-
cimientos fragmentados y descontextualizados sobre la gestión, el currículum, la
evaluación, las estratégias didácticas, que luego cuesta reconstruir en una mirada
más compleja de la práctica educacional.
REP: Qual é o papel da escola hoje no contexto de nossos países latino-ameri-
canos?
MRS: La escuela hoy se encuentra con un gran desafío porque debe enseñar
en condiciones de creciente desigualdad, de extrema pobreza, com altos índices de
violência en algunos países y en muchos sectores de la sociedad y creo que, como en
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2001, en Argentina es el lugar del plato de sopa caliente o de una taza de leche ca-
liente. Y para muchos, un lugar medianamente limpio con techos donde no llueve.
Digo esto porque hay muchos especialistas en educación inclusive, que creen que
la crisis de la escuela proviene de haber abandonado su misión pedagógica, como
si fuera posible enseñar a un niño que no comió, ese es un debate que se reedita en
mi país, al que yo considero absolutamente fuera de lugar. Son tiempos en los que
hay que actuar para salvar lo que se pueda salvar.
Ahora bien, con respecto a la cuestión propiamente educacional, creo que hay
que hacer una profunda revisión para decir sin hipocresías, qué queremos de la
escuela. La escuela debe poder plantear sus limitaciones y sus potencias mejores,
sincerarlas, promover un diálogo abierto con las comunidades en las que se inserta,
estar deliberadamente abierta a la diversidad cultural, y a las problemáticas que
quiera o no, se introducen en las aulas, independientemente de la voluntad de los
docentes o de la propia institución.
REP: Como entende a relação entre justiça social e educação?
MRS: Sin duda la problemática de la desigualdad y la justicia social son muy
importantes para pensar una teoría crítica de educación. A grandes rasgos, el au-
mento de la desigualdad por una distribución cada vez más regresiva de la renta,
es un problema que aqueja a toda la sociedad capitalista. Las injusticias surgidas
de las muchas formas de desprecio a los más pobres, a los extranjeros pobres, a las
mujeres, a los excluidos de cualquier forma de participación social, se han multi-
plicado en las sociedades actuales. Analizarlas pedagógicamente significa recurrir
a un soporte sociológico y político que enmarque la relación entre igualdad, justicia
social y educación.
El tratamiento pedagógico del tema se ha reducido a propuestas que asignan
a la educación un papel compensatorio. Ellas van desde la idea de distribuir equi-
tativamente el conocimiento socialmente significativo y abandonar la proclama
igualadora de la escuela pública, hasta propuestas como la de Connell, que a pesar
de que declara a la educación como un bien público y social, finalmente aboga por
reducir el tema de la Justicia social a una justicia curricular o educacional.
La sistematización de los aportes de distintos autores de la Teoría crítica de
la sociedad, como Habermas, Honneth, Fraser entre otros, permiten sortear ese
callejón sin salida al que entran los que convierten el tema de la justicia social
en un problema curricular. Nuestro esfuerzo está puesto en sistematizar el deba-
Diálogo com educadores
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
te contemporáneo sobre la justicia social e identificar, críticamente las diferentes
apropiaciones que se han realizado en el campo pedagógico.
REP: Quais seriam, do seu ponto de vista, os maiores desafios colocados hoje à
pesquisa no campo da filosofia da educação?
MRS: Creo que hay dos desafíos fundamentales que se presentan al campo de
la investigación en Filosofía de la educación y en Pedagogía, el primero de ellos es
romper el carácter estático de las disciplinas y en cambio profundizar un diálogo in-
terdisciplinar, que tal vez deba ampliarse al campo de la antropología educacional
y la sociología. Menciono estas dos disciplinas porque ambas han desarrollado, en
los últimos años, un trabajo importante de investigación empírica que es necesario
para enriquecer las perspectivas teóricas y cumplir, en el caso de la pedagogía, con
la demanda de orientar críticamente la práctica educacional.
La segunda cuestión que quiero destacar es la responsabilidad intelectual y
política de los investigadores, en haber aceptado la lógica productivista y mercantil
a la que nos someten las políticas neoliberales a través de los procesos de evalua-
ción. Considero que para las ciencias sociales es doblemente gravoso, porque se nos
evalúa con criterios no siempre adecuados para nuestras disciplinas. Si bien en el
presente, hay mayores exigências de productividad y competencia por el desfinan-
ciamiento que los gobiernos neoliberales de Argentina y Brasil aplican, los inves-
tigadores no nos preocupamos suficientemente de discutir las reglas de evaluación
del trabajo académico y por consiguiente los criterios de financiamiento.
REP: Que projetos de investigação tem em andamento e que projetos pensa em
articular para o futuro próximo?
MRS: El proyecto actual de investigación se denomina Teoría crítica de edu-
cación: Igualdad y justicia social. El hilo conductor de todas nuestras indagaciones
– hablo en plural porque el equipo está constituido por varios pesquisadores - ha
sido el de caracterizar una teoría crítica de educación, situada en la realidad lati-
noamericana. Sin embargo, nuestro marco de referencia se asienta sobre autores
de la Modernidad clásica, de la Teoría crítica de la sociedad y del pensamiento
crítico latinoamericano, digamos que esas son nuestras fuentes, en ellas se origi-
nan las preguntas necesarias para las indagaciones, las discusiones con diferentes
enfoques teóricos de colegas con los que debatimos.
Profa. Dra. Margarita R. Sgró
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Actualmente, estamos dedicados a trabajar sobre una propuesta que tiene
como primer paso recabar las nociones de justicia social-injusticia e igualdad-de-
sigualdad, con actores del sistema educacional, profesores y alumnos de escuelas
secundarias e Institutos Superiores de Formación docente.
En un segundo paso, realizaremos el mismo trabajo con miembros de los sin-
dicatos que integran la Mesa intersindical de Tandil, compuesto por los gremios de
educadores, telefónicos, bancarios, metalúrgicos, obreros de la construcción, etc.
Luego realizaremos la misma experiencia, pero esta vez con miembros de los dife-
rentes Movimientos sociales de Tandil, Cooperativas, Recicladores, trabajadores
desocupados, trabajadores de la economía popular, de la economía social y familiar,
movimientos de mujeres.
Si esta segunda parte de la experiencia resulta satisfactoria, avanzaremos
con una propuesta de trabajo más sistemático que nos permita conceptualizar y
discutir con los involucrados las diferentes perspectivas que, sobre el tema, surjan
de los encuentros que tenemos previstos.
El año próximo deberemos elaborar un nuevo proyecto de investigación que,
con certeza dará continuidad al presente.
Agradezco nuevamente la oportunidad de reflexionar, pensar y evaluar a la
distancia el desenvolvimiento de mi vida personal y professional.
Nota
1
O presente Diálogo com educadores contou com a mediação, em nome da Revista Espaço Pedagógico, do
Prof. Dr. Angelo Vitório Cenci, integrante do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
de Passo Fundo.
ESPAÇO
PEDAGÓGICO
RESENHA
Ênio Freire de Paula
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
O frango de Newton: a ciência na cozinha
Ênio Freire de Paula
*
Originalmente publicado na Itália em 2013, como Il Pollo di Newton: La scien-
za in cucina, a obra do italiano Massimiano Bucchi, professor na Universidade de
Trento, tem agora sua versão em português publicada pela Editora da Unicamp. O
livro integra a Coleção Meio de Cultura,
1
organizada pelo Prof. Dr. Marcelo Knobel,
a qual completou uma década de existência em 2018 e reúne a tradução de títulos
voltados à divulgação científica publicados em diversos países, entre eles: Argenti-
na, Austrália, Espanha e Itália, além de publicações brasileiras.
A problemática da obra – cujo título sugestivo foi um dos responsáveis por a
adquirirmos – discute as inovações sociais e tecnológicas envolvidas no avanço da
Gastronomia e os eventos históricos – no decorrer da história recente – responsá-
veis por inter-relacionar a “ciência como culinária e a culinária como ciência”, como
diz o autor.
Aliás, vale destacar que o momento de publicação desse livro coincide com o
aumento expressivo da temática gastronômica no contexto nacional. Um desses in-
dícios é sem dúvida o crescimento vertiginoso da oferta de cursos de Gastronomia
(tecnólogos e bacharelados) em especial aqueles ofertados em instituições privadas
de ensino superior. Comparando os resultados de Rubim e Rejowski (2013) com os
de Anjos, Cabral e Hostins (2017) – nos dois estudos, os pesquisadores realizaram
levantamentos sobre a oferta de cursos de Gastronomia no país –, a oferta de cursos
livres nessa área teve início na década de 1970; em 2016, o país atingiu o número de
151 cursos em funcionamento (grande parte tecnólogos). Aproximadamente a meta-
de deles se concentra nos estados da Região Sudeste, da qual São Paulo reúne 1/3 de
toda a oferta nacional. Outro indício é o aumento de atrações culinárias na programa-
ção dos canais de TV aberta, a cabo e nos serviços de streaming. Os diversos reality
shows culinários, pelos quais cursos na tradicional escola de gastronomia francesa
Recebido em 20/10/2018 – Aprovado em 24/06/2019
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v26i3.9878
*
Doutor em Ensino de Ciências e Educação Matemática na Universidade Estadual de Londrina (UEL). Professor do
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, Campus de Presidente Epitácio (IFSP/PEP), Brasil.
ORCID: 0000-0003-0395-4689. E-mail: eniodepaula@ifsp.edu.br
O frango de Newton: a ciência na cozinha
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Le Cordon Bleu (fundada em 1895) figuram entre os prêmios, são representantes do
sucesso que a cozinha profissional e seus avanços despertam nos brasileiros.
Contudo, o livro não trata a Gastronomia ou a Ciência isoladamente. As apro-
ximações entre ciência, tecnologia e sociedade, exemplificadas pelas relações hu-
manas com a culinária, a ciência e os avanços tecnológicos, constituem o prato
principal da obra.
Organizada em quatro capítulos que, embora sejam curtos, são nomeados com
títulos grandes, que nos remetem às obras do medievo, a obra exige fôlego para
acompanhar os insights do autor com referência a diversos personagens e períodos
históricos. O livro é um deleite aos apaixonados pela História da Ciência e um
convite aos leitores interessados nesse campo.
“Entrada, seguida de primeiro prato – a culinária como ciência, a ciência como
culinária, de Sócrates à fusão a frio” é o capítulo de abertura que inicia a discus-
são da problemática. Ao refletir sobre o quadro de um famoso programa de TV
italiano chamado “A ciência na cozinha”, em que são questionados os processos
físicos e químicos ocorridos na preparação de alimentos, deparamo-nos com uma
curiosa pergunta: como se faz maionese? É possível que muitos de nós, em algum
momento, já tenhamos nos questionado a respeito dos processos de produção de
algumas iguarias, posto que muitas vezes nós as compramos já prontas, indus-
trializadas. O autor retoma diversos eventos e modificações ocorridas no processo
de produção dos alimentos a partir do século XVII, que culminaram em técnicas
sofisticadas e proporcionaram desconfianças e ceticismo frente aos considerados
“novos alimentos”, como o extrato de carne, criado pelo químico alemão Justus
von Liebig (1803-1873). Prosseguindo na história, somos apresentados a diversas
pesquisas – criativas e curiosas –, inclusive algumas ganhadoras do famoso Prêmio
Ignobel, ofertado pela revista Annals of Improbable às pesquisas científicas mais
excêntricas em cada ano.
“Segundo prato – a ciência do frango” é o capítulo seguinte. O frango, mote de
anedotas curiosas e eventos científicos efetivamente ocorridos, é o fio condutor das
discussões a respeito do interesse em experiências com esse animal que perpas
-
sam os campos de criação (desenvolvimento e aprimoramento de métodos de cria,
engorda e armazenamento), preparo (crítica e desvelamento de práticas culinárias
difusas, ingênuas e inconsistentes) e experimentação (desenvolvimento de vacinas
e cura de doenças), entre os séculos XVII e XXI. Situações envolvem o frango com
Francis Bacon (1561-1626), Louis Pasteur (1822-1895), Isaac Newton (1643-1727),
os iluministas e a produção Encyclopédie e os episódios da gripe aviária em 2006. O
Ênio Freire de Paula
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
caráter acidental de algumas descobertas científicas – a serendipidade –, a realiza-
ção de experimentos públicos e a visão estereotipada do cientista são problematiza-
dos. Ao tratar especificamente da visão pública do cientista, destaca-se o machismo,
tão presente no decorrer da História da Ciência (colocando o homem como cientista
e a mulher como responsável pelo cuidado com os afazeres domésticos e a culinária),
e também a praticamente substituição da iconografia religiosa para a iconografia do
cientista, na qual o desinteresse pelos anseios e frivolidades humanos é visto como
uma prerrogativa para forjá-la: “É uma iconografia que enfatiza o caráter intelec
-
tual e desencarnado do homem de ciência, o seu distanciamento das necessidades
materiais e até mesmo da dimensão corpórea” (BUCCHI, 2015, p. 66).
Dentre as seções que integram o segundo capítulo e o seguinte, “Bebidas à par-
te – cerveja, vinho, café, chá, chocolate e... controvérsias à vontade”, aprofundam-
-se as discussões no sentido de evidenciar o (des)cuidado (da mídia, dos cientistas e
governantes) nas tentativas de elucidar/comunicar os avanços da Ciência. O autor
discute e problematiza a percepção pública de ciência, assunto intrinsicamente
associado à divulgação científica enquanto campo de investigação. No Brasil, a
esse respeito, podemos destacar os trabalhos de Vogt (2006), Massarani (2002)
Massarani, Moreira e Brito (2002), Werthein e Cunha (2009) e Munhoz, Hattge e
Zanotelli (2013). Em todos eles, o cerne das reflexões envolve analisar, discutir e
principalmente fomentar ações e processos que envolvam a divulgação da ciência
e da tecnologia ao grande público, em espaços formais e não formais. Como afirma
Sánchez Mora (2003, p. 9): “O problema da divulgação da ciência é de grande com-
plexidade. Enfrentá-lo é tão difícil quanto visar um alvo em movimento”. A própria
nomenclatura do termo (divulgação – popularização – alfabetização – comunicação
– científica) é alvo de discussão (SASSERON, CARVALHO, 2011).
Como se espera de uma boa refeição, após Entrada, seguida de primeiro prato
(primeiro capítulo), do Segundo prato (segundo capítulo) e das Bebidas à parte
(terceiro capítulo), temos a sobremesa como quarto capítulo: “Sobremesa sabor de
ciência (e de sociedade) – de Brillat-Savarin à gastronomia molecular, passando
pela culinária futurista”. Um histórico desde o tempo em que a Gastronomia se es-
forçava para reivindicar espaço enquanto área científica até sua íntima e presente
relação com a Química, na produção/desenvolvimento de novos produtos, pratos
e receitas, antes impensáveis, é o centro das discussões. A culinária futurista, da
qual a gastronomia molecular é uma representante, os experimentos e as receitas
secretas (de chocolate, por exemplo) destacam as peculiaridades que associam ciên-
cia e culinária.
O frango de Newton: a ciência na cozinha
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Finalizamos a resenha dessa obra em um momento complexo. No mesmo
instante em que a comunidade científica se esforça na realização de pesquisas
envolvendo a compreensão e a busca da cura de diversas doenças, discutimos a
preocupante proliferação desenfreada de notícias falsas. As famosas fake news, via
internet e (principalmente) pelos aplicativos de trocas de mensagens, presentes em
nossos smartphones, alastram boatos em mensagens que, por exemplo, pregam a
não vacinação como um ato saudável.
Triste ironia do progresso científico: algo fruto do desenvolvimento da Ciência
utilizado como meio de divulgar ideias equivocadas. Afirmações pseudocientíficas,
quando propagadas, “adquirem” status científico, e isso é um problema grave. A
preocupação com os investimentos (e esforços) públicos com o intuito de propiciar
uma educação/cultura científica de qualidade é real, urgente e necessária, como
problematizado no documento Ensino de ciências: o futuro em risco, da Organização
das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) (2005, p. 3):
[...] o ensino de Ciências é fundamental para a população não só ter a capacidade de des-
frutar dos conhecimentos científicos e tecnológicos, mas para despertar vocações, a fim de
criar estes conhecimentos. O ensino de Ciências é fundamental para a plena realização do
ser humano e a sua integração social. Continuar aceitando que grande parte da população
não receba formação científica e tecnológica de qualidade agravará as desigualdades do
país e significará seu atraso no mundo globalizado. Investir para constituir uma população
cientificamente preparada é cultivar para receber de volta cidadania e produtividade, que
melhoram as condições de vida de todo o povo.
A obra que resenhamos possibilita e potencializa ações de reflexão a respeito
da Ciência, dos seus avanços presentes em nossas ações cotidianas, das percepções
públicas relacionadas à ciência e também aos cientistas, bem como as problemáti-
cas envolvidas em seus processos de divulgação. Saímos desse restaurante científi-
co satisfeitos e recomendamos aos leitores interessados na temática que o visitem.
Discutir a ciência é o prato principal, e a companhia de Massimiano Bucchi torna
essa uma experiência intelectual agradável.
Notas
1
Dezesseis títulos compõem essa coleção. Além do livro que resenhamos, foram publicados O Sol morto de
rir (2008); A extinção dos tecnossauros (2008); Ciência: use com cuidado (2008); O gozo intelectual (2009);
Inventando milhões (2009); Dez teorias que comoveram o mundo (2009); Kluge (2010); Borges e a mecânica
quântica (2011); Superstição (2011); O sonho de Einstein (2011); A fórmula secreta (2012); Almanaque
(2013); Os remédios da vovó (2013); Um esqueleto incomoda muita gente (2013); e O jogador científico: por
que perdemos no pôquer, na loteria, na roleta... (2015).
Ênio Freire de Paula
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Referências
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RUBIM, Rebeca Elster; REJOWSKI, Mirian. O ensino superior da gastronomia no Brasil: análi-
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SÁNCHEZ MORA, Ana Maria. A divulgação da ciência como literatura. Rio de Janeiro: Casa
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Um convite ao elogio da escola
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Um convite ao elogio da escola
Renata Maraschin
*
A ilustração de capa do livro Elogio da escola, organizado por Jorge Larrosa
(2017), mostra um menino maltrapilho que espreita, através da porta, os demais
garotos estudando. A referida ilustração desperta inúmeras perguntas. Por que há
um menino que, supostamente, não tem acesso ao universo escolar? Que razões
o tornam não apto a vivenciar este espaço-tempo com os demais? Que limitações
ou vantagens terá este menino sobre os outros em razão desta porta, que, em-
bora aberta, permanece metaforicamente fechada para ele? Se considerarmos a
configuração da escola nestes primeiros dezenove anos do século XXI, quais as
possibilidades e os limites formativos daqueles que se encontram de um lado ou de
outro da porta? Com que lentes aqueles que se dedicam a estudar e a refletir sobre
o ambiente escolar espreitam para o lado de dentro da porta? O que veem?
A obra organizada por Jorge Larrosa pode ser definida como um convite ao
pensar sobre o que veem aqueles que olham para o lado de dentro da porta. Ela cria
condições, desde a capa, para espreitar o lado de dentro das verdades assumidas
sobre a escola, convidando o leitor a revê-las, a repensá-las e a transformá-las, a
partir de um olhar amoroso sobre suas entranhas, seu interior, seu modo de ser,
suas características ordinárias.
O livro integra a coleção Educação: Experiência e Sentido. A apresentação da
coleção, assim como a capa, convida à reflexão, pois nela Jorge Larrosa e Walter
Kohan alertam o leitor para a proximidade existente entre as experiências de es-
crever e de educar. Essa proximidade se estabelece pela transformação que ambas
possibilitam àqueles que as vivenciam, uma vez que oportunizam a liberação de
certas verdades, tornando os sujeitos diferentes daquilo que vêm sendo.
A apresentação do livro também convida o leitor a olhar para as verdades que
cultiva sobre a escola. As autoras Karen Christine Rechia, Geovana Mendonça,
Recebido em 20/03/2019 – Aprovado em 16/06/2019
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v26i3.9320
*
Doutora em Educação. Bolsista Capes em Estágio Pós-Doutoral no Programa de Pós-Graduação em Educação, Uni-
versidade de Passo Fundo. Brasil. ORCID: 0000-0003-0595-1641.
Renata Maraschin
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Lunardi Mendes e Ana Maria Hoepers Preve tomam como base a obra Em defesa
da escola: uma questão pública, dos filósofos da educação Jan Masschelein e Maar-
ten Simons (2015), para comporem a apresentação. Elas intencionam, com o texto,
revelar que o foco de ambas as obras, a apresentada e a que tomam como base para
a apresentação, encontra-se na pergunta sobre o que é a escola e não sobre qual
a sua função ou seu papel social. Quer dizer, a obra apresentada pelas autoras
pretende olhar para os aspectos constitutivos da escola e não para sua função. E os
textos que constituem Elogio da escola são considerados exercícios de pensamento
sobre esses aspectos.
Ainda na apresentação, as autoras esclarecem que “[...] os textos que com-
põem este livro foram produzidos a partir das atividades de um grande projeto
denominado ‘Elogio da Escola’, que aconteceram entre agosto e novembro de 2016,
em Florianópolis, ilha de Santa Catarina, no sul do Brasil” (RECHIA; MENDON-
ÇA; MENDES; PREVE, 2017, p. 5). Este projeto
1
foi originado de uma iniciativa
interinstitucional (Universidade de Barcelona, Universidade do Estado de Santa
Catarina e Universidade Federal de Santa Catarina), que, a partir de 2016, almeja
convocar educadores, estudantes, artistas e demais interessados a compor um gru-
po de pensamento e experimentação sobre a escola.
O projeto contou com a presença do filósofo e educador Jorge Larrosa, pro-
fessor de Teoria e História da Educação da Universidade de Barcelona. Por meio
de encontros, exposições de arte, debates e textos, o projeto teve como propósito
exercitar a reflexão sobre “[...] o que compõe uma escola num mundo que parece
se preocupar apenas com sua função ou sua dissolução” (RECHIA; MENDONÇA;
MENDES; PREVE, 2017, p. 5). Para tanto, a obra de Jan Masschelein e Maarten
Simons foi tomada como base, pois os idealizadores do projeto, assim como Jorge
Larrosa, recusam a “condenação” da escola e defendem sua “absolvição”. Retoman-
do os sentidos etimológicos das palavras “elogio” e “escola”, Larrosa afirma “tempo
livre” e “espaço público”, aos moldes da obra de referência, como fundamentos e
fios condutores da maior parte dos textos do livro originado do projeto de mesmo
nome – Elogio da escola.
O livro originado do projeto encontra-se dividido em quatro partes. Cinco tex-
tos compõem a primeira parte, intitulada “Elogio da escola” (2017, p. 12). O primei-
ro texto intitula-se “A língua da escola: alienante ou emancipadora?” (2017, p. 13);
o segundo, “Experiências escolares: uma tentativa de encontrar uma voz pedagó-
gica” (2017, p. 31); o terceiro, “Em defesa de uma defesa: elogio de uma vida feita
escola” (2017, p. 48). O quarto texto intitula-se “Sobre a precariedade da escola”
Um convite ao elogio da escola
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
(2017, p. 64); e o quinto, “Um povo capaz de skholé: elogio das Missões Pedagógicas
da II República Espanhola” (2017, p. 85).
Destaca-se, na primeira parte, a reflexão de Jan Masschelein e Maarten Si-
mons sobre uma língua própria da escola, a partir de uma perspectiva educacional
e apreciativa. Não se trata, no texto, de defender a escola como uma instituição do
Estado, mas de enfatizar que a escola, assim como a democracia, é uma invenção
surgida na Grécia Antiga, e como tal difere sobremaneira das concepções contem
-
porâneas referentes a ela e assumidas pelos que a condenam e/ou a defendem. O
leitor é convidado a acompanhar o esforço desenvolvido pelos autores para com
-
preender o que faz da escola uma escola, a partir de um prisma educacional, quer
dizer, “[...] em termos das operações efetivas e reais, realizadas por um arranjo
particular de pessoas, tempo, espaço, matéria. Essas operações são emancipado
-
ras em si mesmas” e almejam, conforme revela a origem grega desta perspectiva,
“[...] tornar coisas públicas e [...] reunir pessoas e o mundo” (MASSCHELEIN;
SIMONS, 2017, p. 13-14).
Mas como se define esta língua própria da escola? Os autores se apressam em
esclarecer que não possuem uma resposta definida para esta pergunta, mas, antes,
pretendem oferecer algumas reflexões sobre a língua pela perspectiva da escola, e
não do indivíduo, da família e da sociedade. Assim, uma língua própria da escola
configurar-se-ia enquanto “arranjo para oferecer aos ‘menores’ (e talvez também
minorias) ao mesmo tempo a oportunidade de encontrar ou definir o seu próprio
destino (isto é, tornarem-se alunos ou estudantes) e para questionar direta ou in-
diretamente o que os ‘adultos’ (ou outras maiorias) valorizam e lhes apresentam”
(MASSCHELEIN; SIMONS, 2017, p. 17).
Trata-se, portanto, de uma língua artificial, não natural ou vernácula, na me-
dida em que compatibiliza a geração vindoura e transforma o mundo em assunto
escolar. É uma língua diferente daquela falada antes de se chegar à escola ou da-
quela falada depois que se sai dela. Os autores formulam a seguinte hipótese: “[...]
não importa qual língua é falada na escola, mas quando uma língua se torna uma
língua de escola, a escola impõe certas operações sobre a língua para poder atuar
como uma escola” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2017, p. 22).
Para finalizar, são extraídas cinco consequências a partir da hipótese elabo-
rada sobre uma língua da escola: 1) trata-se de uma língua artificial e bastan-
te arbitrária; 2) torna-se responsabilidade da escola ensiná-la aos estudantes; 3)
na escola, a língua paterna ou materna é transformada em uma matéria, sendo
gramaticalizada e, portanto, escrita, derivando-se daí que não se pode ter escola
Renata Maraschin
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sem escrita; 4) a escola, ao oferecer mais do que uma língua para ser aprendida
e estudada como matéria, produz maneira poderosa de contribuir para o que os
autores denominam “profanação da comunicação”, ou seja, “[...] permitir aos jovens
a experiência da habilidade/potencialidade de comunicar e a habilidade/potencia-
lidade de traduzir” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2017, p. 24); 5) a domesticação da
língua da escola, pela imposição de línguas oficiais ou de outras maiorias, consiste
possivelmente em modo efetivo de domesticar e neutralizar a escola. Ao final do
texto, os autores questionam sobre qual língua, afinal, deve-se falar na escola. E,
como resposta, afirmam que não importa qual língua se fale, desde que sua grama-
ticalização e seu estudo sejam realizados concomitantemente à gramaticalização
de outra língua.
Quatro textos compõem a segunda parte do livro, intitulada “Em defesa da
escola – notas à margem” (2017, p. 110), os quais se configuram como traduções de
entrevistas feitas com Jan Masschelein e Maarten Simons por Inés Dussel, Walter
Omar Kohan, Maximiliano Valerio López, Jorge Larrosa e outros participantes dos
encontros do projeto. O primeiro texto intitula-se “A politização e a popularização
como domesticação da escola: contrapontos latino-americanos?” (2017, p. 111); o
segundo, “Sobre a escola que defendemos” (2017, p. 124); o terceiro, “Skholé e igual-
dade” (2017, p. 136); e o quarto, “A escola: formas, gestos e materialidades” (2017,
p. 149).
Destaca-se, na segunda parte do livro, a reflexão de Maximiliano Valerio Ló-
pez, Jan Masschelein e Maarten Simons sobre Skholé e igualdade. Trata-se da
transcrição de um seminário realizado que tomou como base a obra Em defesa
da escola, de Jan Masschelein e Maarten Simons. Neste seminário, Maximiliano
Valerio López apresenta a hipótese de que a escola, constituída pelo vínculo entre
skholé e igualdade, não pode ser compreendida de modo definitivo a partir de uma
forma-escola arquetípica. Ao invés disso, propõe a necessidade de uma análise ar-
queológica, cujo objetivo seja “[...] distinguir, cuidadosamente, os estratos que, ao
longo do tempo, foram se sedimentando até chegar a constituir a forma atual” (LÓ-
PEZ; MASSCHELEIN; SIMONS, 2017, p. 136). Em tal análise, são distinguidas
três camadas: a escola antiga (skholé grega compreendida como ócio, modo de vida
grego), a escola moderna e a escola contemporânea. Com essa distinção, López pre-
tende mostrar que a forma-escola apresentada no livro de Masschelein e Simons,
enquanto lugar de possibilidade, presença, indeterminação e igualdade, revela-se
uma questão contemporânea que, embora apresente elementos da Antiguidade,
não poderia ter sido pensada antes da Segunda Guerra Mundial.
Um convite ao elogio da escola
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Três textos compõem a terceira parte do livro, intitulada “Exercícios de pensa-
mento sobre a escola” (2017, p. 170). O primeiro texto intitula-se “Filmar a escola:
teoria da escola” (2017, p. 171) e refere-se ao filme Teoria da escola, dirigido e
montado por Maximiliano Valerio López e produzido pelo Núcleo de Estudos em
Filosofia, Educação e Poética. O filme traduz-se em meio e resultado de um exer-
cício filosófico em torno da escola e no qual “[...] se apresentam pequenos lampejos
de uma escola pública municipal, da cidade de Juiz de Fora, no estado brasileiro
de Minas Gerais” (LÓPEZ, 2017, p. 171). O autor destaca, no filme, o fato de que
“[...] essas pequenas porções de vida cotidiana apareçam nele sem a companhia
de qualquer tipo de palavra. [...]. Apenas o estar das coisas e das pessoas. Apenas
gestos, vozes, objetos, lugares, brilhos, texturas, barulhos e silêncios cotidianos”
(LÓPEZ, 2017, p. 171). Mas, então, por que nomear o filme como Teoria da escola,
se não há palavras nele? O autor responde a esta pergunta afirmando que “[...] a
palavra ‘teoria’ não designa um discurso produzido acerca da realidade, mas um
tipo de olhar atento e cuidadoso que permite que o mundo se revele diante de nós”
(LÓPEZ, 2017, p. 171). O autor almeja que esse olhar atento e cuidadoso que o
filme propõe sobre a escola leve seus espectadores a pensar e a conversar sobre a
escola e sobre as diferentes maneiras de estar nela.
O segundo texto intitula-se “Curar uma exposição sobre a escola: um exercício
de pensamento” (2017, p. 179), de autoria de Daina Leyton. Refere-se à exposição
“Educação como matéria-prima”, que teve curadoria conjunta de Felipe Chaimo-
vich, curador do Museu de Arte Moderna de São Paulo, e Daina Leyton, coorde-
nadora do setor educativo e da acessibilidade, e aconteceu em 2016, no Museu de
Arte Moderna. O objetivo de realizar uma exposição de educação em um museu de
arte atrelou-se à criação de “[...] um espaço comum e fecundo que possibilitasse ao
público vivenciar experiências significativas, e que, para tanto, deveria trazer ca-
racterísticas da escola no seu conceito mais radical: de sua etimologia grega skholé:
tempo livre” (LEYTON, 2017, p. 179). A autora afirma que realizar a exposição
articulada com a participação no projeto Elogio da Escola configurou-se como ex-
periência que a fez pensar que “[...] talvez uma das missões essenciais dos museus
seja a de lutar pela escola, pela escola em sua forma” (LEYTON, 2017, p. 179, grifo
do autor).
O terceiro texto, de autoria de Jorge Larrosa, Eduardo Malvacini, Karen
Christine Rechia, Luiz Guilherme Augsburger, Juliana de Favere e Caroline Ja-
ques Cubas, intitula-se “Desenhar a escola: um exercício coletivo de pensamento”
(2017, p. 192). Constitui-se em exercício de pensamento orientado a desenhar a
Renata Maraschin
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escola, pois, na perspectiva dos autores, “[...] é agora, neste momento de dissolução
da forma da escola, que queremos repensá-la amorosamente para reencontrar a
sua especificidade e a sua autêntica natureza” (2017, p. 192). Foram convocados
para este exercício educadores, artistas e outras pessoas interessadas na forma
da escola, com vistas a constituir um grupo de pensamento e experimentação, em
que as atividades desenvolvidas foram caminhar, observar, mapear, ler, conversar,
propor, definir, escrever ou desenhar. Tratou-se de proposta para vivenciar a escola
de diferentes modos, não para escrever academicamente sobre ela. Finaliza-se com
o depoimento de uma participante, afirmando, sobre o exercício realizado, que:
[...] praticamos e estudamos. Muito. Copiamos e listamos. Tentamos, erramos e repetimos.
Lemos e relemos. Caminhamos. Exercitamos. Desenhamos. Fomos iguais. Juntos, começa-
mos algo. Todos fomos capazes de ler, sublinhar, falar, caminhar e pensar. Mais ou menos,
dependendo do tempo e da atenção. Tínhamos um ambiente escolar que, como tal, era am-
biente de potência. A escola era trazida para o nosso presente. Era repensada e, a partir de
nossas leituras, sublinhados e caminhadas, seria talvez redesenhada. Dependia de nosso
tempo e atenção. De nosso interesse e nossa vontade. Era potência. [...]. O que importa,
creio, é o que fomos, enquanto éramos. O que fizemos, enquanto estávamos fazendo. Algo
nos aconteceu. Algo nos passou. Algo bonito. Findo o exercício, o sentir provocado pela
experiência das derivas, de alguma maneira, permanece (2017, p. 192).
Filmes que tomam a escola como mote, colocando-a em evidência, constituem
o fio condutor dos três textos que compõem a quarta e última parte do livro,
intitulada “Mirar a escola: uma mostra de cinema” (2017, p. 209). O primeiro
texto intitula-se “Celebração da revolta: a poesia selvagem de Jean Vigo” (2017,
p. 210); o segundo, “Elogi de l’escola e Escolta: o ordinário da escola em imagens”
(2017, p. 220); o terceiro, “Ser e ter: a produção de sentidos – por uma topologia
das infâncias e suas relações com a escola” (2017, p. 232).
Assim, por meio dos exercícios de pensamento apresentados em cada capítulo,
de diferentes modos, os autores almejam elogiar a escola. Elogiar não no sentido de
defendê-la ou celebrá-la, mas no sentido grego originário de mostrar o que a escola
é, suas virtudes, sua forma (RECHIA; MENDONÇA; MENDES; PREVE, 2017,
p. 9). As reflexões do livro podem criar condições para que, atentando-se para a for-
ma da escola, o leitor desperte outra sensibilidade em relação ao universo escolar,
abrindo-se à experiência de vivenciá-lo pela leitura das experiências vividas em
cada texto. É possível que essas reflexões ajudem o leitor a espreitar a escola com
novos olhares, a escutar cuidadosa e atentamente seus sons, a sentir seu pulsar
vivo nas relações estabelecidas por seus atores. Oxalá os leitores tenham a sensibi-
lidade de ler Elogio da escola desde a capa.
Um convite ao elogio da escola
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Nota
1
Informações adicionais sobre o projeto estão disponíveis em: https://www.elogiodaescola.com/.
Referências
LARROSA, Jorge; MALVACINI, Eduardo; RECHIA, Karen Christine; AUGSBURGER, Luiz
Guilherme; FAVERE, Juliana; CUBAS, Caroline Jaques. Desenhar a escola: um exercício cole-
tivo de pensamento. In: LARROSA, Jorge (org.). Elogio da escola. Tradução de Fernando Coe-
lho. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. p. 192-208.
LEYTON, Daina. Curar uma exposição sobre a escola: um exercício de pensamento. In: LAR-
ROSA, Jorge (org.). Elogio da escola. Tradução de Fernando Coelho. Belo Horizonte: Autêntica,
2017. p. 179-191.
LÓPEZ, Maximiliano Valerio. Filmar a escola: teoria da escola. In: LARROSA, Jorge (org.).
Elogio da escola. Tradução de Fernando Coelho. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. p. 171-178.
LÓPEZ, Maximiliano Valerio; MASSCHELEIN, Jan; SIMONS, Maarten. Skholé e igualdade.
In: LARROSA, Jorge (org.). Elogio da escola. Tradução de Fernando Coelho. Belo Horizonte:
Autêntica, 2017. p. 136-147.
MASSCHELEIN, Jan; SIMONS, Maarten. A língua da escola: alienante ou emancipadora? In:
LARROSA, Jorge (org.). Elogio da escola. Tradução de Fernando Coelho. Belo Horizonte: Au-
têntica, 2017. p. 13-28.
RECHIA, Karen Christine; MENDONÇA, Geovana; MENDES, Lunardi; PREVE, Ana Maria
Hoepers. Apresentação. Elogio da escola: o desafio de pensar uma forma sem função. In: LAR-
ROSA, Jorge (org.). Elogio da escola. Tradução de Fernando Coelho. Belo Horizonte: Autêntica,
2017. p. 5-9.