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volume 27 número 1 jan./abr. 2020
ISSN on-line 2238-0302
volume 27 número 1 jan./abr. 2020
PRIVATIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO
UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO
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Revista Espaço Pedagógico [online] / Universidade de Passo
Fundo, Faculdade de Educação. – Vol. 16, n. 2 (2009)- . –
Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2009-
Anual: 1994-1998. Semestral: 1999-2016. Quadrimestral:
2017-.
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ESPAÇO
PEDAGÓGICO
SUMÁRIO
Editorial .........................................................................................................................................................................5
La política educativa como negocio. Ajuste presupuestario, discurso meritocrático y el davos” de la educación en
Argentina (2015-2019) ..................................................................................................................................................9
Educational policy as business. Budget adjustment, meritocratic discourse and the “davos” of education in Argentina (2015-2019)
A política educativa como negócio. Ajuste do orçamento, discurso meritocrático e o “davos” da educação na Argentina (2015-2019)
Estela Maria Miranda
Transversalidad y privatización de la educación en México a partir de dos casos ..........................................................30
Mainstreaming and commodication of education in Mexico from two cases
Transversalidade e privatização da educação no México a partir de dois casos
Jaime Moreles Vázquez, Sara Aliria Jiménez García
A avaliação das organizações educativas e a regulação pelo discurso gestionário ........................................................49
Evaluation of educational organizations and regulation by management discourse
Evaluación de organizaciones educativas y regulación por discurso de gestión
Dora Maria Ramos Fonseca
Estado, mercado e formas de privatização: a inuência dos think tanks na política educacional brasileira ...................65
State, market and forms of privatization: an inuence of think tanks on brazilian educational policy
Estado, mercado y formas de privatización: la inuencia de los think tanks en la política educacional brasileña
Valdelaine da Rosa Mendes, Vera Maria Vidal Peroni
Mídia impressa em educação: redes políticas e a nova lantropia em ação .................................................................. 89
Press media and education: political networks and the new philanthropy in action
Medios impresos en educación: redes políticas y la nueva lantropia en acción
Quênia Renee Strasburg, Berenice Corsetti
Escola conveniada ou charter school? Uma abordagem sobre termo de colaboração entre a prefeitura e o terceiro setor
para oferta da educação básica em Porto Alegre ........................................................................................................110
Accredited school or charter school? An approach to a term of collaboration between prefecture and the third sector for the oer of
basic education in Porto Alegre
¿Escuela acretidada o escuela charter? Un enfoque de un plan colaborativo entre la prefectura y el tercer sector para la oferta de la
educación básica en Porto Alegre
Altair Alberto Fávero, Daniela de Oliveira Pires, Evandro Consaltér
O lugar das práticas curriculares diante do avanço da lógica privada sobre o setor público: o Emiti em
Santa Catarina ............................................................................................................................................................131
The place of curriculum practices before the advance of private logic on the public sector: the Emiti in Santa Catarina
El lugar de las prácticas curriculares ante el avance de la lógica privada sobre el sector público: el Emiti en Santa Catarina
Berenice Rocha Zabbot Garcia, Jane Mery Richter Voigt
Democratização da educação superior: nexos entre a armação da excelência e o desao do reconhecimento .........147
Democratization of higher education: nexuses between the armation of excellence and the challenge of recognition
Democratización de la educación superior: vínculos entre la armación de excelencia y el desafío del reconocimiento
Gregório Durlo Grisa, Célia Elizabete Caregnato
Direito à educação: da conquista ao reconhecimento .................................................................................................168
Right to education: from conquest to recognition
Derecho a la educación: de la conquista al reconocimiento
Nilda Stecanela, Caroline Caldas Lemons
Práticas formativas na educação prossional: a emergência de uma didática especíca? ..........................................186
Formative practices in professional education: the emergency of a specic didactics?
Prácticas formativas em la educación professional: ¿lá emergência de una didáctica especíca?
Marilandi Maria Mascarello Vieira, Maria Cristina Pansera de Araújo, Josimar de Aparecido Vieira
A concepção de passado de crianças no 5º ano .......................................................................................................... 203
The past conception of children in the 5th grade
La concepción pasada de los niños en el quinto grado de la escuela primaria
Maria Cristina Dantas Pina, Nallyne Celene Neves Pereira
A prática docente e as relações de gênero e sexualidades: conversando com professoras e professores ....................223
Teaching practice and gender relationships and sexualities: talking with teachers and teachers
Práctica docente y relaciones de género y sexualidades: hablando con profesoras y profesores
AndersonFerrari, Claudete Imaculada de Souza Gomes, Cláudio Magno Gomes Berto
A receptividade e a difusão do pensamento de John Dewey no Brasil entre 1930 e 1960 ...........................................244
The receptiveness and the diusion of John Dewey’s thought in Brazil between 1930 and 1960
La receptividad y la difusión del pensamiento de John Dewey en Brasil entre 1930 y 1960
Samuel Mendonça, José Aguiar Nobre
Diálogo com educadores ............................................................................................................................................268
Ângelo Ricardo de Souza
Resenha
Da universidade à commoditycidade: ou de como e quando, se a educação/formação é sacricada no altar do
mercado, o futuro da universidade se situaria em algum lugar do passado ................................................................278
From the university to the commodity: or how and when, if education/training is sacriced on the market altar, the universitys future
would be somewhere in the past
De la universidad a la comoditycidad: o cómo y cuándo, si la educación/formación és sacricada en el altar del mercado, el futuro de la
universidad estaría en algún lugar del pasado
Maria de Lourdes Pinto de Almeida, Silmara Terezinha Freitas, Diego Palmeira Rodrigues
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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ESPAÇO
PEDAGÓGICO
EDITORIAL
O campo da educação vem se tornando, cada vez mais, objeto de disputas en-
volvendo diferentes agentes com projetos e interesses distintos, muitos dos quais
alheios à própria educação. A construção de direitos, dentre os quais o da Educa-
ção, é resultante de intensas disputas históricas no Brasil, desde a década de 1920.
Os direitos sociais conquistados, desde então, estão hoje ameaçados de múltiplas
formas. A crescente corrosão do conceito de público no âmbito da educação decorre
da intervenção de inúmeros agentes. São instituições privadas com interesses es-
tritamente mercantis que adentram o campo das políticas educacionais; são orga-
nizações privadas que intervêm em redes de educação, alterando substancialmente
a perspectiva pública em favor de um ensino instrumentalizado; são discursos ge-
rencialistas oriundos de agências multilaterais como o Banco Mundial, a OCDE e o
FMI que simplificam processos pedagógicos complexos por fórmulas instrucionais.
Nesse contexto, proposições neoliberais ou ultraliberais obtêm destaque e con-
quistam espaços de gestão em todos os âmbitos. Discursos de privatização em larga
escala ganham, nesse cenário, centralidade. O esfacelamento de políticas educacio-
nais emancipadoras é uma tendência real nesse cenário. Os sistemáticos combates
à educação crítica no Brasil atual e as sistemáticas desqualificações de educadores,
dentre os quais Paulo Freire, são sintomáticas e expressam o avanço de projetos
educativos reacionários que almejam a destituição das parcas conquistas obtidas
nas últimas décadas. Afronta-se, assim, a perspectiva prevista na Constituição
Federal de 1988, especialmente o artigo 205, que enseja a contribuição da educação
para o “pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania
e sua qualificação para o trabalho.” Essas três dimensões estão sendo substituídas,
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i1.10570
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progressivamente, por demandas imediatas do mercado de trabalho que deseja um
sujeito apassivado e serviçal.
A educação brasileira vive, portanto, uma tensão entre duas perspectivas dis-
tintas: uma republicana e outra privatista e mercadológica. Princípios republicanos
de uma educação pública, gratuita e laica amplamente discutidos desde a década
de 1920 pelos Pioneiros da Escola Nova são, progressivamente, desconstituídos.
Em contraposição a esses princípios republicanos, propostas fundamentalistas
ganham notoriedade. Fortalecem-se grupos empresariais interessados no investi-
mento em educação que defendem um Estado mínimo quando se trata de políticas
públicas. Institutos privados proliferam, passando a atuar em assessorias a redes
públicas de educação e assumem protagonismo no âmbito de políticas educacio-
nais, mesmo não tendo trajetórias e experiências históricas em educação formal.
Com base em discursos gerencialistas, defendem projetos e propostas educacionais
sem os pressupostos políticos e pedagógicos imprescindíveis para uma educação
emancipadora, humana e cidadã.
Nesse contexto, ocorrem inversões preocupantes: empresas privadas ganham
a simpatia de gestores públicos e conquistam espaços cada vez mais significativos
e, em contrapartida, instituições educacionais com trajetórias consolidadas cuja
natureza é a própria educação, são desqualificadas. Esse quadro produz, entre edu-
cadores, uma sensação de impotência para fazer frente aos complexos processos
socioculturais, políticos e educacionais da sociedade, vivenciados cotidianamente
nas escolas.
Colocar em pauta o tema da privatização da educação constitui-se, portan-
to, num compromisso fundamental de educadores comprometidos com o caráter
republicano da educação. A Revista Espaço Pedagógico insere-se nesse processo
de discussão. Para tanto, conta com a contribuição de pesquisadores de diferentes
instituições, do Brasil e do exterior para qualificar esse debate.
Os três primeiros artigos do dossiê trazem o olhar estrangeiro de autores
que, desde a Argentina, México e Portugal, investigam os avanços da privatização
da educação. No primeiro artigo, Estela Maria Miranda aborda La política edu-
cativa como negocio. Ajuste presupuestario, discurso meritocrático y el “davos” de
la educación en Argentina (2015-2019). Em seguida, os autores mexicanos Jaime
Moreles Vázquez e Sara Aliria Jiménez García, tratam da Transversalidad y priva-
tización de la educación en México a partir de dos casos. A pesquisadora portuguesa
Dora Maria Ramos Fonseca apresenta o artigo intitulado A avaliação das organi-
zações educativas e a regulação pelo discurso gestionário.
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Autores brasileiros de diversas unidades da federação e de diferentes insti-
tuições acadêmicas e escolares também trazem sua contribuição ao tema. Valdelai-
ne da Rosa Mendes e Vera Maria Vidal Peroni, ambas da Universidade Federal de
Pelotas/RS, subscrevem o artigo intitulado Estado, mercado e formas de privatiza-
ção: a influência dos think tanks na política educacional brasileira. Mídia impressa
em educação: redes políticas e a nova filantropia em ação é o artigo apresentado
pelas pesquisadoras Quênia Renee Strasburg (Rede Municipal de Educação de São
Leopoldo/RS) e Berenice Corsetti (Unisinos/RS). Os pesquisadores Altair Alber-
to Fávero (UPF/RS), Daniela de Oliveira Pires (UFPR/PR) e Evandro Consaltér
(UPF/RS), assinam o artigo nomeado Escola conveniada ou charter school? Uma
abordagem sobre termo de colaboração entre prefeitura e o terceiro setor para oferta
da educação básica em Porto Alegre. O artigo intitulado O lugar das práticas curri-
culares diante do avanço da lógica privada sobre o setor público: o Emiti em Santa
Catarina é apresentado pelas pesquisadoras Berenice Rocha Zabbot Garcia e Jane
Mery Richter Voigt, ambas da Universidade da Região de Joinville (Univille/SC).
É de autoria de Gregório Durlo Grisa, do Instituto Federal do Rio Grande do Sul
(IFRS) e Célia Elizabete Caregnato, professora associada na Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (Ufrgs), o artigo denominado Democratização da educação
superior: nexos entre a afirmação da excelência e o desafio do reconhecimento. Fe-
chando o dossiê temos o artigo Direito à educação: da conquista ao reconhecimento,
subscrito por Nilda Stecanela, da Universidade de Caxias do Sul (UCS), e Caroline
Caldas Lemons, professora da Rede Municipal de Ensino de Caxias do Sul.
Na seção de artigos de fluxo contínuo contamos com a contribuição de Mari-
landi Maria Mascarello Vieira (Unochapecó/SC), Maria Cristina Pansera de Araújo
(Unijuí/RS) e Josimar de Aparecido Vieira (IFRS, campus Sertão), no artigo intitu-
lado Práticas formativas na educação profissional: a emergência de uma didática
específica?
Abordando A concepção de passado de crianças no 5º ano, temos o artigo de
Maria Cristina Dantas Pina (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia) e
Nallyne Celene Neves Pereira (Rede básica de ensino do Estado da Bahia). Ander-
son Ferrari, Claudete Imaculada de Souza Gomes e Cláudio Magno Gomes Berto,
todos vinculados à Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF/MG), tratam A
prática docente e as relações de gênero e sexualidades: conversando com professo-
ras e professores. Encerrando a seção de artigos de fluxo contínuo visualizamos o
trabalho intitulado A receptividade do pensamento de John Dewey no Brasil, subs-
crito por Samuel Mendonça, pesquisador da Pontifícia Universidade de Campinas
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(PUC-Campinas) e José Aguiar Nobre, vinculado ao Santuário Nossa Senhora de
Lourdes (Curitiba/PR).
O Diálogo com Educadores traz a entrevista com o experiente pesquisador
da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Professor Doutor Ângelo Ricardo de
Souza. A entrevista foi mediada pelo organizador desta edição, Altair Alberto Fáve-
ro e pelo editor-chefe, Telmo Marcon, ambos professores do Programa de Pós-Gra-
duação em Educação da Universidade de Passo Fundo. A resenha é subscrita pelos
pesquisadores da Universidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc), Maria de
Lourdes Pinto de Almeida, Silmara Terezinha Freitas e Diego Palmeira Rodrigues,
que se debruçam sobre o livro intitulado Da universidade à commoditycidade: ou
de como e quando, se a educação/formação é sacrificada no altar do mercado, o fu-
turo da universidade se situaria em algum lugar do passado, de autoria de Lucídio
Bianchetti e Valdemar Sguissardi.
Ao encerrarmos este editorial, agradecemos aos autores pela qualificada
participação, com a expectativa de que a interação entre autores e leitores promova
potentes reflexões e fortaleça a luta em prol da educação pública e de qualidade.
Prof. Dr. Altair Alberto Fávero (Organizador)
Prof. Dr. Telmo Marcon (Editor-Chefe)
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La política educativa como negocio. Ajuste presupuestario, discurso meritocrático y el davos” de la educación en Argentina (2015-2019)
La política educativa como negocio. Ajuste presupuestario, discurso meritocrático
y el davos” de la educación en Argentina (2015-2019)
Educational policy as business. Budget adjustment, meritocratic discourse and the “davos” of
education in Argentina (2015-2019)
A política educativa como negócio. Ajuste do orçamento, discurso meritocrático e o “davos” da
educação na Argentina (2015-2019)
Estela Maria Miranda
*
Resumen
El propósito de esta ponencia es identicar algunos “indicadores del imaginario neoliberal” (BALL, 2011) en
las políticas educativas implementadas en la gestión de la Alianza Cambiemos, a partir de diciembre de 2015,
analizando los avances en la privatización de la educación mediante el rediseño de las relaciones entre sector
público/privado a través de una variedad de asociaciones públicas y privadas (BALL; YOUDELL, 2007; RIZVI;
LINGARD, 2013). En ese marco el discurso de la meritocracia construye un sentido común que sirven como
justicación para la introducción de herramientas de la Nueva Gestión Pública (NGP) en las políticas del gobierno
de Cambiemos. Posteriormente, se caracteriza el papel de una variedad de nuevos (y otros no tan nuevos)
“participantes híbridos” que intervienen crecientemente en el diseño y ejecución de las políticas educativas.
Sobre resultados de investigaciones en curso se toman como referencia casos o situaciones para ilustrar los
análisis y luego trazar un balance provisorio.
Palabras-Clave: Neoliberalismo. Políticas Educativas. Privatización. Nueva Gestión Pública.
Abstract
The purpose of this paper is to identify some “indicators of the neoliberal imaginary (BALL, 2011) in the educational
policies implemented in the management of the Cambiemos Alliance, as of December 2015, analyzing the
progress in the privatization of education through the redesign of public/private sector relationships through
a variety of public and private partnerships (BALL; YOUDELL, 2007; RIZVI; LINGARD, 2013). Within that context,
the meritocracy discourse builds a common sense about realities that justify the introduction of New Public
Management (NGP) tools in the Cambiemos government policies. Subsequently, the role of new (and not-so-
new) “hybrid participants” that are increasingly involved in the elaboration and implementation of educational
policies is characterized. On the results of ongoing investigations, cases or situations are taken as references to
illustrate the analyzes and then draw up a provisional balance.
Keywords: Neoliberalism. Educational Policy. Privatization. New Public Management.
*
Doctora en Ciencias de la Educación en Universidad Nacional de Córdoba (UNC, Argentina). Profesora Titular de Polí-
tica Educacional y Legislación Escolar. Directora del Doctorado en Ciencias de la Educación (2002-2013) (UNC, Argen-
tina). ORCID https://orcid.org/ 0000-0002-8499-8888. E-mail: estelam@yh.unc.edu.ar
Recebido em 04/05/2019 – Aprovado em 16/09/2019
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i1.10572
10
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Estela Maria Miranda
Resumo
O propósito deste artigo é identicar alguns “indicadores do imaginário neoliberal” (BALL, 2011) nas políticas
educativas implementadas na gestão da Alianza Cambiemos, a partir de dezembro de 2015, analisando os
avanços na privatização da educação mediante o redesenho das relações entre setor público/privado através
de uma variedade de associações públicas e privadas (BALL; YOUDELL, 2007; RIZVI; LINGARD, 2013). Neste
cenário, o discurso da meritocracia constrói um sentido comum que serve como justicativa para a introdução
de ferramentas da Nova Gestão Pública (NGP) nas políticas do governo de Cambiemos. Posteriormente, se
caracteriza o papel de uma variedade de novos (e outros não tão novos) “participantes híbridos” que intervêm
crescentemente no desenho e execução das políticas educativas. Sobre resultados de investigações em curso se
tomam como referência casos ou situações para ilustrar as análises e em seguida traçar um balanço provisório.
Palavras-chave: Neoliberalismo. Políticas Educativas. Privatização. Nova Gestão Pública.
La educación pública es un sistema abierto a todo el mundo
sin discriminaciones por motivos de género, religión, cultura
o clase social, gratuito, financiado por el sector público, y
gestionado y evaluado conforme a los objetivos y principios
establecidos democráticamente por las autoridades públicas.
(V Congreso Mundial. Internacional de la Educación. Porto Alegre 2004).
Introducción
El análisis de políticas educativas en tiempos de un fuerte avance del
neoliberalismo autoritario en la región es una tarea altamente necesaria aunque
no sencilla.
Interpretar las políticas educativas locales y su vinculación con los movimientos
globales es una forma de visibilizar lo que defino como procesos subterráneos que
están aconteciendo en nuestros países y se han instalado en el sentido común
de las escuelas, los docentes, los padres y de la sociedad toda. La magnitud y el
rápido avance de la mercantilización y privatización de la educación interpela a
la producción de conocimientos para desentrañar los discursos que circulan y las
prácticas que están transformando profundamente los modos como pensábamos
hasta ahora los sistemas educativos nacionales.
En los últimos años los estudios sobre privatización y mercantilización de la
educación fueron ganando centralidad en las agendas de investigación y en los
debates sobre las políticas educacionales. Es importante destacar que disponemos
de un caudal de resultados y referencias analíticas sobre estos procesos en otras
realidades investigadas, que aportan categorías fértiles a nuestras investigaciones.
Sin embargo, persisten dificultades del orden de lo metodológico y, sobre todo,
vinculadas al acceso a fuentes de datos para hacer “etnografía de redes políticas”
11
ESPAÇO PEDAGÓGICO
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La política educativa como negocio. Ajuste presupuestario, discurso meritocrático y el davos” de la educación en Argentina (2015-2019)
que requiere de un intenso y complejo proceso para rastrear esa compleja trama
de nuevos actores con modos de vinculación, articulaciones y relacionamientos
diversos y complejos (BALL, 2014, p. 28).
Respecto de la información oficial, que sería esperable encontrar en el sitio
web del Ministerio de Educación en Argentina, se observa una alta precariedad y
dispersión en las estadísticas educativas y, de modo muy general, algunos datos
sobre las acciones que desarrolla ese organismo. La falta de transparencia sobre la
gestión pública, se agudiza porque fueron cambiados o modificados los sitios web
del gobierno anterior y buena parte de la información se perdió. Lo que implica
claramente una política de desinformación que, además, restringe las posibilidades
de consulta de fuentes necesarias para la investigación y la enseñanza sobre las
políticas educativas recientes (VISACOVSKY, 2019).
El propósito de esta presentación es identificar algunos “indicadores del
imaginario neoliberal” (BALL, 2011) en las políticas educativas implementadas
en la gestión de la Alianza Cambiemos, a partir de diciembre de 2015, analizando
los avances en la privatización de la educación mediante el rediseño de las
relaciones entre sector público/privado a través de una variedad de asociaciones
públicas y privadas (BALL; YOUDELL, 2007; RIZVI; LINGARD, 2013). En ese
marco el discurso de la meritocracia construye un sentido común que sirve para
justificar la introducción de herramientas de la Nueva Gestión Pública (NGP) en
las políticas del gobierno de Cambiemos. Posteriormente, se caracteriza el papel de
una variedad creciente de nuevos (y otros no tan nuevos) “participantes híbridos”
que intervienen crecientemente en el diseño y ejecución de las políticas educativas.
Sobre resultados de investigaciones en curso se toman como referencia casos o
situaciones para ilustrar los análisis y luego trazar un balance provisorio.
I. Poniendo la política educativa en contexto (2015-2019). De la
producción de sujetos de derechos a sujetos consumidores.
Como justificativo de la “modernización” de la educación, la Alianza Cambiemos
que asume el gobierno nacional en diciembre 2015 instala el discurso de la
“refundación” de la educación en Argentina, a partir de un fuerte cuestionamiento
de las políticas educacionales del gobierno anterior.
Cabe recordar que los gobiernos nacionales, a partir de Mayo de 2003,
recuperando la marca de origen de la educación pública, sancionaron un conjunto
de leyes
1
que tuvieron como propósito recomponer la centralidad del Estado en
la formulación y ejecución de las políticas educativas y dejar planteado de modo
12
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Estela Maria Miranda
contundente en el texto de la Ley de Educación Nacional que la educación es
un derecho humano, público y social. Para efectivizar ese derecho
2
se diseñó un
ensamble de políticas sociales y educativas, en una clara ruptura con el discurso
neoliberal y la visión mercantilista de la educación de la década de los noventa
(MIRANDA, 2013, p. 26).
El gobierno actual, con una participación muy activa de los medios de
comunicación hegemónicos y de referentes de la cultura, fue instalando “un sentido
común” en la sociedad sobre el deterioro de la calidad de la educación pública asociada
a las políticas educativas de reconocimiento de derechos del gobierno anterior. En
los discursos de los diferentes funcionarios, incluido el Presidente, expresiones
metafóricas como: “llenar de universidades públicas toda la provincia cuando todos
sabemos que nadie que nace en la pobreza llega a la universidad?” se escucharon
de la actual gobernadora de la provincia de Buenos Aires, en referencia crítica a
las universidades nacionales
3
creadas durante la gestión de Cristina Fernández
de Kirchner (EL PAÍS DIGITAL, 18). Recientemente el Presidente de la Nación
sostenía: “De qué servía repartir computadoras si no tenían conexión a Internet. Es
como repartir asado y no tener parrilla, ni algo para prender el fuego”, para
desacreditar el Programa Conectar Igualdad
4
(CLARÍN, 22/05/19). En medio del
conflicto salarial docente en marzo de 2017, el Presidente en conferencia de prensa
dio a conocer los resultados del Operativo Aprender
5
, comparando y destacando
los resultados aventajados obtenidos en las evaluaciones por los alumnos que
asisten a escuelas de gestión privada, para concluir con una fuerte estigmatización
de la escuela de gestión pública: “Una terrible inequidad de aquél que puede ir
a la escuela privada versus aquél que tiene que caer en la escuela pública”. En
el discurso de Cambiemos a la educación pública no se llega por elección, se cae
por descarte, porque no queda otra. En la educación pública “caen” los sectores
carenciados que no pueden comprar o pagar por escuela privada, eso es lo que
se interpreta como una “terrible inequidad” para estos sectores, sin mencionar la
responsabilidad que corresponde al Estado de garantizar el “derecho de aprender”
establecido en la Constitución de la Nación Argentina desde 1856 y en la Ley de
Educación Nacional (2006) cuando en el artículo 2ª establece: La educación y el
conocimiento son un bien público y un derecho personal y social garantizado por el
Estado.
Otro testimonio que da cuenta del lugar que ocupa la educación pública en las
prioridades del gobierno de Cambiemos se revela cuando analizamos la inversión
educativa. Un estudio publicado por Confederación de Trabajadores de la Educación
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La política educativa como negocio. Ajuste presupuestario, discurso meritocrático y el davos” de la educación en Argentina (2015-2019)
de la República Argentina (CTERA) señala que a partir de 2016 el gobierno
nacional inició un proceso de ajuste en la inversión educativa, con un reducción
del 5% en términos reales. Ese proceso de desfinanciamiento
6
fue sólo el reflejo en
el plano presupuestario del desmantelamiento de planes y programas educativos.
En 2017 continúa el ajuste y la subejecución presupuestaria, un procedimiento
financiero muy usado por este gobierno. Lo mismo para 2018 con un mayor recorte
en programas socioeducativos, becas, ampliación de jornada extendida, formación
docente y distribución de equipos informáticos. El Informe de la CTERA denuncia
la situación y manifiesta su preocupación por el incumplimiento de la meta del 6%
del PBI (Producto Bruto Interno) destinado a educación, se acuerdo a lo establecido
por la Ley de Financiamiento Educativo (2005) y la Ley de Educación Nacional
(2006). Es importante destacar que con el anterior gobierno, en 2015, la inversión
había alcanzado un 6,9% del PBI (CTERA, 2018, p. 4). Estudios realizados por la
Universidad Nacional Pedagógica (UNIPE) indican que la inversión por alumnos
se redujo en alrededor de un 20% entre 2016 y 2019, no obstante, fue significativo
el aumento en la partida para evaluaciones educativas (GOROSTIAGA, 2019, p. 3).
La educación se concibe como un bien de consumo privado que se puede
conseguir con el esfuerzo individual. Los derechos consagrados en la legislación se
asocian a una concepción liberal de igualdad de oportunidades que no reconoce las
diferencias y desigualdades en las trayectorias de vida de los sujetos que ingresan
al sistema educativo. Para la ideología neoliberal y neoconservadora de la Alianza
Cambiemos, la educación como derecho social, resultado de luchas colectivas, va en
desmedro de la “iniciativa individual y privada”.
Para Laval, en la lógica racional neoliberal “cada individuo debe comportarse
como una especie de empresa situada en el mercado” (2018, p. 40). Desde una
concepción meritocrática el éxito es el resultado del talento más esfuerzo individual
para ganarse o merecer lo logrado. En su etimología, meritocracia proviene del
latín meritum. Sistema basado en el mèrito. Participio pasivo de mereri, ganar,
merecer. Acto que hace a una persona digna de galardón o de sanción. También
lo que justifica un fracaso. En el discurso de la meritocracia: talento + esfuerzo
es la ecuación perfecta. Por tanto, el éxito o el fracaso es asunto de cada uno,
mérito propio y no también del modelo económico y del rol que asume el Estado. La
responsabilización y la culpabilización recae en los sujetos.
Porque las personas también se deben gestionar como una empresa privada.
El mérito individual está asociado a inventarse a sí mismo, el “emprendedurismo
es el modelo del éxito”. Parecería que las condiciones contextuales no intervienen,
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no tienen nada que ver con el éxito o el fracaso individual. No se me ocurre cómo con
las tasas siderales de interés que cobran los bancos para obtener un crédito, hoy en
Argentina, se podría generar una cultura de la inversión y del emprendedurismo.
Por mejores ideas que tenga un emprendedor ¿Dónde obtiene el capital/recursos
para iniciar la actividad? Como señala Thomas Piketty,
El neoliberalismo ha demostrado no ser un buen sistema de distribución de la riqueza ya
que no recompensa el trabajo –y por tanto a los trabajadores quienes obtienen sus rentas
del trabajo–, sino que favorece a quienes ya poseen la riqueza heredada, los rentistas
(GARCÍA DELGADO; GRADIN, 2017, p. 27).
Ideas como “Refundar la educación”, la “revolución educativa”, “formar
emprendedores”, “formar para la incertidumbre y disfrutarla” se pueden interpretar
como poner a la educación al servicio de la economía y del empresariado. En el
Documento oficial Educación y trabajo: Diagnóstico, se destacan tres tendencias
relevantes que afectan el mercado laboral a nivel global: a) el desplazamiento
productivo y geográfico de los sectores tradicionales(manufacturas servicios de
bajo valor agregado) hacia sectores nuevos (agroindustria, servicios intensivos en
conocimiento); b) La automatización, es decir la creciente complementariedad de
tecnología y empleo calificado y sustitución de capital por empleo; c) El creciente
cuentapropismo que incluye modalidades de demanda (tipo Uber o AirBnB)
part time o por períodos determinados, que requiere de cambios en los regímenes
laborales vigentes. Como en el mismo documento se menciona se trata de generar
“un marco regulatorio del empleo” “una nueva y difusa relación laboral” que permita
aumentar la maleabilidad, movilidad y capacidad e incorpore nuevas figuras de
contratación (independientes, trabajadores por demanda, etc). En otros términos,
se trata de trabajo precario, aumento de la informalidad, flexibilización laboral en
una reforma laboral con la consiguiente pérdida de derechos laborales, salariales y
de seguridad social (PRESIDENCIA DE LA NACIÓN, JEFATURA DE GABINETE
DE MINISTROS, 2017, p. 4; AMAR, 2019, p.3).
Desde el inicio de la gestión y a través de el primer Ministro de Educación
nacional, Esteban Bullrich, las orientaciones del sistema educativo a las demandas
del economía y del empresariado se plasman, como vimos, en documentos oficiales
y en las expresiones metafóricas utilizadas en diferentes contextos (discursos en
reuniones y foros empresariales, artículos y entrevistas en medios de comunicación).
En un nota periodística el entonces Ministro Bullrich refiriéndose al mercado
laboral señalaba:
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La política educativa como negocio. Ajuste presupuestario, discurso meritocrático y el davos” de la educación en Argentina (2015-2019)
Vivimos en un mundo en el que se están creando nuevos trabajos todos los días. Un chico de
hoy tendrá a lo largo de su vida siete empleos, cinco de los cuales aún no fueron creados. No
podemos preparar a los chicos hoy para los empleos que vendrán, pero podemos formarlos
para dos cosas: para que aprendan a disfrutar de esta incertidumbre y para que sean los
que salgan a crear esos empleos (LA NACIÓN, 21/07/2016)
En oportunidad de la 52º reunión anual de las empresas más grandes del
país en el Coloquio de IDEA, el 16 de Octubre de 2016, el Ministro de Educación
participó del panel “De la educación al trabajo: cómo vamos a llegar” enfatizando
en la necesidad de ir hacia un mundo “donde el sistema educativo pueda
desarrollar los talentos individuales”, para luego señalar que “No sirve más el
sistema educativo argentino. Está diseñado para hacer chorizos, todos iguales. Se
diseñó para tener empleados en una empresa que repetían una tarea todo el día,
que usaban el músculo y no el cerebro y nunca lo cambiamos. Queremos que los
jóvenes salgan a crear trabajo no a buscarlo”. Desde la perspectiva de Cambiemos
el talento es algo que nos viene dado por naturaleza y el capital económico que
el emprendedor necesita para hacer efectiva su idea también. En el planteo del
Ministro no se explica cómo participará el Estado en el diseño y sostenimiento de
un nuevo sistema educativo donde los alunnos puedan adquirir las capacidades
para el “uso del cerebro” que demandan los puestos laborales aún no creados.
Tampoco dice cómo el Estado participa en la creación de créditos para apoyar los
emprendimientos (ya sea para manejar drones o para hacer emprendimientos de
cerveza artesanal como recomendo en varias oportunidades el Ministro)
De regreso del Foro de Davos, en 2018, en el que participó como Senador de la
Nación, escribió una nota publicada en el Diario La Nación en la que retoma uno
de los ejes del Foro: el futuro del empleo,
El tema fue recurrente no solo en los paneles, sino además en los discursos de los líderes
políticos y empresariales (Jack Ma y Bill Gates, por nombrar algunos). La otra palabra
de moda fue reskilling (recapacitarse o reformarse): la práctica de ayudar a trabajadores
que han perdido el empleo o corren riesgo de perderlo a adquirir las competencias y/o
habilidades necesarias para no salir del mundo del trabajo (LA NACIÓN, 2018).
En otro momento de la nota y colocándose en el lugar de las responsabilidades
políticas y empresariales sostiene: “Es, sin lugar a dudas, el desafío más
importante que tenemos dirigentes políticos y empresariales para los próximos
años. Garantizar a nuestros ciudadanos una educación de por vida que les permita
en cualquier momento adquirir las nuevas habilidades necesarias para encontrar
un trabajo digno”. Entre las recomendaciones que surgieron del Foro de Davos
Bullrich destaca
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:
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1. Acuerdos público-privados. La tarea de reskilling no puede ni debe ser solo estatal.
Incluyendo la participación de los empresarios y los sindicatos. 2. Formación en habilidades
blandas para todos y todas. Es fundamental que los ciudadanos activos, estén o no empleados,
tengan la posibilidad de incorporar las llamadas habilidades blandas: creatividad, trabajo
en equipo, expresión oral y escrita, empatía, por citar algunas. Todas necesarias en el
mundo laboral de la cuarta revolución industrial. 3. Reskilling para los maestros. Todos
estos cambios deben llegar a las escuelas de nuestro país. Es decir, a nuestros maestros y
maestras. Esa es la única garantía que tenemos de no repetir una situación de este tipo.
Continuar el trabajo en la formación docente es clave para que nuestros jóvenes dominen
la revolución tecnológica y sean ciudadanos plenos en el mundo actual (LA NACIÓN, 2018).
En definitiva, cuando el Presidente Macri habla de “Refundar la educación”
o la “revolución educativa”, quiere decir sustituir a la escuela pública, que es
lo constitutivo de nuestra identidad nacional, una pieza clave en la conformación
del Estado-Nación, un ámbito de socialización, integración e inclusión educativa
y un poderoso vehículo para la movilidad social ascendente, altamente valorada
en el imaginario colectivo de Argentina. En el pensamiento del gobierno actual el
problema está en la gestión pública porque el supuesto es que la gestión privada
(educación, salud, servicios en general, etc.) garantiza mejor calidad, sin conflictos,
por tanto, es preferible que se ocupen otros proveedores del servicio educativo
mientras el Estado actúa como garante produciendo normas de mercado que
“regulan a distancia” la competencia entre individuos y organizaciones
II. Del gobierno a la gobernanza. Rendición de cuentas (RdC) como
herramienta de gestión de políticas educativas.
Los contextos nacionales particularmente en la región, pero también en
otras partes del mundo, están asistiendo a un conjunto de “movimientos” de
modernización de los servicios públicos, de los aparatos estatales y la arquitectura
total de los Estados en diferentes escalas de operaciones (BALL, 2013, p.177). Lo
que está ocurriendo sostiene el sociólogo inglés es un:
Traspaso hacia un Estado policéntrico y un desplazamiento del centro de gravedad en torno
al que giran los ciclos de la política que incrementan la gama de actores que participan
del diseño y aplicación de las políticas. Este cambio se suele describir como un cambio de
perspectiva: del gobierno a la gobernanza, o a la gobernanza en red, o el paso al estado
posburocrático o “lean government” (gobierno limitado a costo eficiente), que implica el
desarrollo de relaciones que suponen reciprocidad e interdependencia en contraposición a
jerarquía e independencia (BALL, 2011, p. 28)
Desde una perspectiva foucaultiana, Christian Laval sostiene que “la racional
neoliberal” se apoya en “Un sistema de normas o una lógica general que impone
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La política educativa como negocio. Ajuste presupuestario, discurso meritocrático y el davos” de la educación en Argentina (2015-2019)
el modelo de mercado, en todos lados, por el cual los individuos y las instituciones
son puestos en competencia, de manera que cada entidad, cada individuo debe
comportarse como una especie de empresa situada en el mercado”. El Estado es el
“principal agente”, según Laval, y su actuación es determinante para la generación
de “un conjunto de normas de mercado en la sociedad, instituciones e individuos, a
la que trata de reformar” (2018, p. 40).
En los movimientos de modernización de los servicios públicos, Robert Jessop
destaca que se está produciendo un proceso de “desestatización” que
Implica redefinir la separación público-privado, redistribuir tareas y rearticular las
relaciones entre organizaciones y tareas por medio de esa separación. Esta redefinición y
redistribución tiene varios aspectos, algunos viejos otros más nuevos, como la creación de
órganos ejecutivos, o el establecimientos de asociaciones público-privado (de muchos tipos
diferentes), contratación de proveedores privados para que realicen servicios estatales o
contratación de think tanks (laboratorios de ideas), consultores y empresas especializadas
en conocimiento para realizar diagnósticos, investigaciones, evaluaciones de políticas
(BALL, 2013 p. 177).
En otras palabras, lo que antes hacia el Estado ahora es realizado por esos
otros; “nuevas voces e intereses están representados en el proceso político, nuevos
nudos de poder e influencia son construidos y fortalecidos” (BALL, 2013, p. 177)
y “la comunidad que constituye la política educativa es cada vez mayor” (BALL,
2011, p. 2).
Entonces, el Estado no se tiene que ocupar de gestionar los servicios educativos
para garantizar derechos fundamentales como la educación a los ciudadanos.
El Estado tiene la función de “gerente”, utilizando herramientas de gestión que
provienen de la Nueva Gestión Pública (NGP) (New Public Management)
Las reformas promovidas por la NGP buscan generar rediseños organizacionales
en instituciones del sector público para lograr mayores niveles de eficiencia y
promover su calidad, todo ello basado en prácticas ya existentes en el sector privado,
es decir, en la empresa privada que es el modelo a seguir en todos los aspectos de la
vida de los países y de las personas (MIRANDA; SALTO, 2015, p. 278).
Para Verger y Parcerisa la política de Rendición de Cuentas (RdC)
Representa un tipo de reforma educativa atractivo para muchos gobernantes ya que,
por regla general, permite a los gobiernos transmitir a los votantes –y a la ciudadanía en
general- el mensaje de que están trabajando arduamente para el cambio educativo, y
para la mejora de los resultados de aprendizaje y de las oportunidades futuras de los más
jóvenes. Al mismo tiempo, las reformas de RdC tienden a implicar un bajo riesgo político ya
que, en gran medida, la presión de la reforma recae en las escuelas y en los maestros, y no
tanto en el gobierno (2018, p. 66).
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Desde la lógica de la NGP para la Alianza Cambiemos el rediseño del sistema
educativo está dirigida atender la demanda de los sectores empresariales, en dos
sentidos. Por una parte, la formación de capital humano para la “incertidumbre
laboral y disfrutarla” (como propone el ex Ministro Esteban Bullrich) en puestos
laborales que todavía no fueron creados. Por otra, dejar a las empresas que hagan
inversiones en educación, como propone Sanchez Zinny “formar talentos a pedido
de las empresas o bien alentando el compromiso de las empresas para invertir en
educación ante el aumento de la demanda de capital humano calificado” (2015,
p. 50).
Entonces, el Estado debe generar las normas, “actuando como árbitro”, para
facilitar la intervención de los empresarios en las innovaciones y en el sostenimiento
de la educación en la modalidad “nueva filantropía”. En el libro “Educación 3.0: La
batalla por el talento en América Latina” el ex director del Instituto de Educación
Técnica (INET) y actual Director General de Educación de la pcia de Buenos Aires,
sostiene: “Mientras que los empresarios y las compañías impulsan la innovación
en la educación, el sector público debe actuar como árbitro y asegurar que
la dinámica generada por las fuerzas del mercado se canalice de manera efectiva,
coordinada y regulada (SANCHEZ ZINNY, 2015, p. 59).
En su condición de “árbitro” el gobierno de Cambiemos utiliza la evaluación de
los aprendizajes como una herramienta para la rendición de cuentas. La Secretaría
de Evaluación fue creada por Decreto del Poder Ejecutivo Nacional con fecha 6
de abril de 2016, desconociendo que la Ley de Educación Nacional estabelece la
creación de un Consejo Nacional de Calidad de la Educación
8
. Dicha Secretaria fue
creada con un considerable presupuesto, que contrasta con los recortes a otras áreas
de la educación, lo que da cuenta de la importancia que le asigna este gobierno a
la participación en los programas de evaluación internacional como PISA, regional
como ERCE
9
y a los dos operativos nacionales: Operativo Aprender (que reemplaza
al ONE) y Operativo Enseñar, como se señaló anteriormente. La evaluación como
herramienta de la gestión de políticas para la rendición de cuentas tiene propósitos
de control, disciplinamiento y jerarquización de estudiantes y docentes, a la vez
que instala en las instituciones una lógica de la competencia por una matrícula de
estudiantes que garantice los mejores rendimientos en esos operativos. Es lo que se
puede inferir por el modo en que el gobierno utiliza los resultados de los operativos
de evaluación, difundiéndolos en los medios de comunicación para ponderar los
logros de las escuelas de gestión privada. El Presidente de la Nación decía, en el
discurso de apertura de la Asamblea Legislativa, el 1 de marzo de 2018: “Tenemos
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La política educativa como negocio. Ajuste presupuestario, discurso meritocrático y el davos” de la educación en Argentina (2015-2019)
que poder saber cómo le está yendo a la escuela donde van nuestros hijos. Hoy
está prohibido por ley que se publiquen los resultados por escuela y eso
no tiene sentido. Por eso les pido que este año legislativo avancemos para cambiar
esa norma”. La Ley de Educación Nacional (2006) en su artículo 97 establece que
la difusión de información sobre las evaluaciones educativas debe resguardar
la identidad de los alumnos, docentes e instituciones educativas, a fin de
evitar cualquier forma de estigmatización. Se podría interpretar que el Presidente
está pidiendo modificar la normativa para hacer público los resultados de los
operativos de evaluación, habilitando la construcción de un ranking de escuelas.
En Argentina, en la segunda mitad del siglo XIX, cuando se discutía la
incorporación de la educación católica en las escuelas públicas los debates
parlamentarios entre liberales y católicos giraban en torno a la imposición de la fe
religiosa en la disputa por el control de las “almas”. Hoy, dice Susan Robertson, la
disputa es con “[…] otros de un nuevo tipo cuya fe en el mercado, el emprendedorismo
y las ganancias orientan las políticas educativas”. En el discurso de Cambiemos de
lo que se trata es romper la alianza Estado-ciudadano para construir un “ciudadano
consumidor” (FELFEDBER et al., 2018, p. 6), en este caso, consumidor para un
mercado educativo donde “Las familias despliegan entonces estrategias para elegir
su escuela y maximizar las oportunidades de sus hijas e hijos, distinguiéndose en
función de sus ingresos y contribuyendo así en segmentar el sistema educativo en
estratos socio-económicos” (ARMIJO CABRERA, 2019, p. 193).
III. Las relaciones público/privado y nuevas formas de privatización
de la educación. Filantropía empresarial
La educación de gestión privada no es un fenómeno nuevo en Argentina, lo
que es nuevo es la privatización por otros medios, con otros actores y con propósitos
muy diferentes a la privatización tradicional. El proceso de “desestatización”, al que
nos referíamos anteriormente, ha convertido a los Estados nacionales en “Estado
gerencial” de las relaciones del sector público/privado. A partir del gobierno de la
Alianza Cambiemos se profundiza la tendencia a la privatización de las políticas y
de los servicios, a través de la presencia de fundaciones, thinks tanks, empresas y
ONGs en la definición e implementación de las políticas educativas.
Algunas viejas y muchas nuevas y diversas relaciones público-privado podrían
reconocerse en lo que Ball y Youdell (2007) examinan como “formas de privatización
en la educación pública y de privatización de algunas parcelas de la educación
pública”:
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1) La “privatización en la educación” o “privatización endógena”, son “formas
de privatización (que) implican la importación de ideas, métodos y prácticas del
sector privado a fin de hacer que el sector público sea cada vez más como una
empresa y crecientemente comercial” (BALL; YOUDELL, 2007, p. 13). Dentro
de esta modalidad de privatización se destacan las reformas de cuasi-mercado
que promueven la competencia entre escuelas, las autonomía escolar, la gestión
por proyectos, la responsabilidad y los salarios en función de los resultados y la
aplicación de herramientas de gerenciamiento en la gestión de las escuelas.
En el “Plan 2016-2021: Argentina enseña y aprende”, aprobado por Resolución
Nº 285/2016 del Consejo Federal de Educación, en el eje: Comunidad educativa
integrada, define “a la educación como un proceso social que requiere la participación
y el compromiso de todos los actores que son parte de ella para su mejora” y
propone “Articular iniciativas de otros organismos públicos, de las organizaciones
de la sociedad civil y del sector privado para contribuir al cumplimiento de los
objetivos nacionales concertados” (MINISTERIO DE EDUCACIÓN Y DEPORTES,
2016, p. 21; GOROSTIAGA, 2019, p. 7). La propuesta de una mayor participación
de la comunidad educativa puede ser leída como: a) una mayor intervención de
las familias en la toma de decisiones sobre los asuntos de la escuela; b) una mayor
intervención de los mercados para ampliar y diversificar la oferta educativa; c) una
mayor presión sobre los padres para ejercer la “elección” de escuelas (BALL, 1998,
p. 113).
Un testimonio de alianza de la sociedad civil, empresarial y organismos no
gubernamentales es el “Proyecto Eutopía. La Escuela se reinventa”, integrada por
“la Vicaría Episcopal de Educación del Arzobispado de Buenos Aires, la Fundación
Telefónica Movistar y Profuturo, y Panorama de la Organización de los Estados
Iberoamericanos para la Educación, la Ciencia y la Cultura (OEI). Se define como
“un modelo colaborativo, inclusivo e innovador de transformación de la escuela
secundaria, que parte de las posibilidades reales de las escuelas y del liderazgo
de los directivos”. A la fecha la Red Eutopía nuclea “16 escuelas secundarias de la
Ciudad Autónoma de Buenos Aires, una comunidad integrada por 41 directivos,
64 docentes en forma directa y más de 800 en forma indirecta, y cerca de 6 mil
estudiantes, pero se propone escalar a otras escuelas y regiones” (PROTECTO
EUTOPÍA, 2019).
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2) La “privatización de la educación” o “privatización exógena” es
definida como
La apertura de los servicios de educación pública a la participación del sector privado, a
través de modalidades basadas en el beneficio económico, así como la utilización del sector
privado en cuanto a la concepción, la gestión o la provisión de diferentes aspectos de la
educación pública (BALL; YOUDELL, 2007, p. 13).
Sobre esta modalidad, los autores advierten un crecimiento a gran velocidad
y con una variedad de actores y propósitos, como la inversión privada filantrópica
en educación de las empresas nacionales y multinacionales. Para Sanchez Zinny
el deterioro de la educación pública y la ausencia de una reforma por parte del
Estado se resuelve incorporando al sector privado al sistema educativo nacional
e impulsando “el aumento de la inversión privada filantrópica en los programas
educativos”. Destaca la intervención de las empresas “multilatinas”
10
como
Embraer, Bimbo, Vale, Techint y Odebrecht como “las empresas (que) asumen, de
hecho, el asunto en sus propias manos en ausencia de esfuerzos por una robusta
reforma por parte del gobierno”(SANCHEZ ZINNY, 2015, p. 56-58).
La privatización de la política educativa a través de las contrataciones,
tanto por el gobierno nacional y varios gobiernos provinciales, de los servicios de
consultoría de expertos extranjeros que han llevado a cabo reformas de la educación
exitosas, como Finlandia, Singapur, Francia para reformar la educación y a corto
plazo los niños y adolescentes mejoren los magros resultados en las pruebas PISA
y Aprender.
Así, en la prensa nacional como Diario Clarín se podía leer:
[…] Las últimas pruebas Aprender, por ejemplo, mostraron que siete de cada 10
estudiantes salen de la secundaria sin alcanzar un nivel satisfactorio en la disciplina,
lo que dificulta su posterior tránsito por la universidad o conseguir un empleo de calidad.
¿Qué pasa que los chicos no están aprendiendo? ¿Dónde están las trabas?
Para eso, están tomando los conceptos más importantes de los métodos utilizados en
otros países, como Singapur -que es el de mayor éxito en las pruebas internacionales-
o Francia, con una tradición educativa similar a la Argentina y que en estos días está
iniciando un ambicioso proceso de reforma de la enseñanza de la Matemática. Especialistas
de esos países están llegando a la Argentina para explicar a funcionarios y expertos locales
en qué consisten sus métodos. Alejandro Finocchiaro, Ministro de Educación Nacional
le dijo a Clarín que “la idea no es comprar modelos enlatados, sino tomar lo mejor de
los países con éxito y adaptarlo a la historia pedagógica y la realidad argentina, para así
armar el modelo argentino, que luego podremos exportar a otros países del mundo”.
Lo que tomaron de Francia es el Informe con “21 Medidas para la enseñanza de
la matemática” que trajo el especialista francés Charles Torossian y que garantiza
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Estela Maria Miranda
que en tres años los alumnos de Argentina mejorarán los resultados en Matemática
(CLARIN 2018).
Algunos días antes, Clarín publicaba :
Maestros bien formados, salarios atados al rendimiento y programas de estudio con un
fuerte foco en matemáticas y ciencias son algunas de las recomendaciones que surgieron de
un seminario que organizó la Delegación de la Argentina en la Unesco -a cargo de Rodolfo
Terragno- que se hizo en París. Expusieron expertos de Singapur, China, Japón, Corea
del Sur, Finlandia y Estonia, países que ocupan los puestos más altos en los rankings
internacionales sobre calidad educativa. Participaron el Ministro de Educación
Alejandro Finocchiaro, otros ministros provinciales y 19 docentes que ganaron el premio
“Maestros Argentinos” (CLARIN, 2018).
Tres cuestiones a destacar en las recomendaciones del Seminario organizado
por la Delegación de la Argentina en Unesco: Maestros bien formados, salarios
atados al rendimiento y programas de estudio con fuerte foco en matemática y
ciencias.
Sobre el primero de los aspectos y atendiendo a los bajos resultados de las
evaluaciones la estrategia que adopta el gobierno es el “entrenamiento” de líderes
(directores y docentes) o “Reskilling para los maestros” (reciclaje, reconversión,
adaptación como propone Davos 2018), cuando en realidad se trata de un mecanismo
de disciplinamiento de los docentes y de las instituciones escolares en el discurso
de las “prácticas innovadoras para la incorporación de tecnologías de información
y comunicación”, “buenas prácticas” y formación de líderes para llevar adelante
las innovaciones. Mientras los salarios de los docentes atados al rendimiento
significa pagos por productividad o por resultados, vinculados a los resultados en
los operativos de evaluación de aprendizaje. El fuerte énfasis en los contenidos de
Matemática y ciencias responde a lo que diferentes autores mencionan como “El
mejoramiento de los estudiantes en habilidades y competencias relacionadas con
el empleo” (BALL, 1998, p. 122) y ya forma parte de las prioridades curriculares
fijadas por las actuales política nacionales.
Durante el Foro Económico Mundial reunido en Davos en enero 2016 el
entonces Ministro de Educación Lic. Esteban Bullrich invitó a Sunny Varkey,
creador de la Fundación Varkey, a interiorizarse sobre la situación de la educación
en Argentina. La Fundación VARKEY se define como
[...] organización sin fines de lucro creada para mejorar los estándares de educación de
todo el mundo. La misión de la organización es que todos los niños tengan un gran docente.
Trabajamos para desarrollar las capacidades de los docentes y celebramos sus esfuerzos
para que sean reconocidos mundialmente (FUNDACIÓN VARKEY, 2019).
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La política educativa como negocio. Ajuste presupuestario, discurso meritocrático y el davos” de la educación en Argentina (2015-2019)
Apenas un par de meses después de la reunión Bullrich-Varkey en Davos,
un equipo de la Fundación viajó a Buenos Aires para diseñar un primer programa
para el país desde un enfoque colaborativo. En octubre de 2016 comenzó la primera
cohorte de capacitación en la provincia de Jujuy a través del Programa de Liderazgo
e Innovación Educativa. Tras ese lanzamiento otras tres provincias iniciaron la
capacitación de docentes y directores: Salta, Corrientes y Mendoza. Para cada
lanzamiento se conformó un nuevo equipo provincial con tutores locales que luego
de un riguroso proceso de selección fue capacitado para llevar adelante una tarea
que reflejara la dinámica y fuese flexible para responder a las particularidades de
cada región, fortaleciendo el diseño curricular y ajustando el enfoque pedagógico.
El Programa de Liderazgo e Innovación Educativa (PLIE) tiene el objetivo de
brindar nuevas herramientas y potenciar las capacidades de directores y docentes
de escuelas del país sobre temas como: Liderazgo. Consiste en una capacitación
intensiva de seis semanas a la que asiste un director acompañado de un docente de
la misma institución. Cada módulo ocupa cinco días y se desarrolla en un centro de
capacitación especializado donde se trabaja junto a un grupo de expertos locales.
Los participantes son evaluados a través de un portfolio cuyo objetivo es
integrar la teoría vista en cada módulo a la realidad de la propia institución. Cada
participante irá creando su propia carpeta que es evaluada y retroalimentada
por los facilitadores del programa. A su vez, a lo largo de las seis semanas los
participantes tienen que realizar un diagnóstico de su institución y diseñar un
proyecto de mejora conocido como Proyecto de Innovación Escolar (PIE). Se
dedican sesiones específicas para su realización y socialización. La entrega final
es evaluada por los facilitadores del programa y su implementación escolar es
acompañada por la Fundación.
Actualmente, el PLIE se implementa en Mendoza, Corrientes, Salta y Jujuy
con el apoyo del Ministerio de Educación Nacional y de los Ministerios de Educación
provinciales. En Jujuy y Mendoza firmaron convenios con la Fundación y el monto
que pagó cada provincia con fondos que envía el gobierno nacional es de 5,4 millones
de dólares, pagadero en cuotas mensuales de 150.000 dólares entre Diciembre de
2017 y diciembre 2019. Lo llamativo es la cláusula de exclusividad en el contrato
que impide que por tres años se realice en todo el territorio nacional otra actividad
similar con otros prestadores (FELDFEBER; OTROS, 2018).
Hasta agosto 2019 en el sitio web de la Fundación Varkey se exponían los
siguientes resultados:
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- Formación de más de 7100 directores y docentes de 3700 escuelas a través
del Programa de Liderazgo e Innovación Educativa.
- El 93% de quienes asistieron recomendaría el Programa a sus colegas.
- El 90% de docentes que no asistieron manifiesta haber percibido cambios en
su escuela tras la participación de su directivo en el PLIE.
Finalmente, se destaca que el Programa fue tomado como caso de estudio
por la Harvard Graduate School of Education y el Harvard Business School
para el Certificate of Advanced Education Leadership professional programme
(FUNDACIÓN VARKEY, 2019).
La Coalición Latinoamericana para la Excelencia Docente es una red de más
de 14 países que reúne a académicos, gestores de políticas educativas y directivos
de instituciones vinculadas a educación con el objetivo de mejorar y apoyar la
docencia en los países, construyendo una agenda común y coordinando esfuerzos
para su implementación. Algunos de los aspectos del diagnóstico que fundamenta
la propuesta refieren a:
Cada vez es más evidente que los educadores juegan un papel fundamental para fortalecer
el desempeño de los estudiantes, y que elevar la calidad docente es imperativo para mejorar
el aprendizaje estudiantil. Varios países en la región han realizado esfuerzos para reformar
ciertos aspectos de sus políticas docentes, vinculados con la formación inicial, el desarrollo
profesional, la carrera docente y la evaluación. Sin embargo, varios estudios de la muestran
bajos niveles de desempeño docente y una necesidad apremiante de fortalecer las prácticas
pedagógicas, conocimientos y destrezas de la docencia (FUNDACIÓN VARKEY, 2019).
El primer encuentro de la Coalición Latinoamericana para la Excelencia
Docente se celebró en Buenos Aires el 7 y 8 de Febrero de 2019 organizado por el
Diálogo Interamericano, Fundación Varkey e Inicia Educación, con el apoyo de la
Organización de Estados Iberoamericanos.
IV. Imposible concluir… necesitamos profundizar el debate
Carter y O´Neill (citado por BALL, 1998, p. 122) distinguen cinco componentes
de lo que denominan “la nueva ortodoxia” o “solución de mercado” para cambiar la
educación en contextos neoliberales:
1) El mejoramiento de la economía de los países a través del fortalecimiento de
los vínculos entre escolaridad, empleo, productividad y comercio.
2) El mejoramiento del desempeño de los estudiantes en competencias
relacionadas con el empleo.
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La política educativa como negocio. Ajuste presupuestario, discurso meritocrático y el davos” de la educación en Argentina (2015-2019)
3) El control directo sobre el curriculum y la evaluación;
4) La disminución de los costos de los servicios educativos que asumen los
gobiernos;
5) La participación de la comunidad local a través de: a) una mayor intervención
de las familias en las decisiones sobre los asuntos de la escuela y, b) la mayor
presión del mercado que pueden ejercer los padres a través de la “elección”
de escuelas.
En la política educativa de la Alianza Cambiemos estos componentes están
presente y son claramente percibidos en los discursos y textos de las políticas
educativas que comenzaron a ejecutarse a partir de 2015. A lo largo del artículo
se fue ilustrando con discursos y textos la clara orientación de poner al sistema
educativo en relación a las demandas del empleo (al menos en el plano discursivo,
por cuanto el desempleo fue una de las variables de ajuste de este gobierno) y de los
empresarios.
La jerarquización de la evaluación como una herramienta de rendición de
cuenta, de vigilancia y verificación de resultados de aprendizaje que el gobierno
vincula como necesarios para economías futuras, mercados laborales de producción
flexible, nuevas reglas de contratación y con la competencia escolar desde unas
lógica de mercado.
La disminución de los costos en educación que asumen los gobiernos se
traducen en los recortes presupuestarios y subejecuciones presupuestarias desde
2016 a la fecha concentrados en las políticas socio-educativas que atienden a los
sectores mas necesitados.
En la quinta “nueva ortodoxia”, estrechamente vinculada a las anteriores, la
“elección educativa” y la mayor intervención de los padres en las decisiones de las
escuelas está contenida en los documentos del gobierno cuando define como uno de
los ejes de la política educativa el compromiso de la familia, de la comunidad y del
sector privado en alcanzar mejores logros educativos.
Para el sostenimiento de esas ortodoxias o soluciones de mercado en las
políticas educativas los cargos de gestión en áreas estratégicas como educación
fueron ocupados por funcionários, en su mayoría CEOs, que venían del campo
empresarial pero con un desconocimiento sobre el funcionamiento del Estado. Esto
fue el resultado de desplazar a las universidades como agentes prioritarios
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en las
consultorías y asesoramiento en las políticas públicas y reemplazar a los equipos
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profesionales de los ministerios de educación por funcionarios, sin trayectoria ni
formación específica en el campo educativo.
A 13 años de la sanción de la Ley de Educación Nacional precisamos establecer
una agenda de investigación sobre estos nuevos procesos privatizadores que
vulneran el derecho humano y social a una educación pública, gratuita con calidad
socialmente referenciada y brindada por el Estado. Al mismo tiempo, procurarnos
nuevas herramientas teóricas, métodos, conceptos y nuevas sensibilidades para
trabajar con “redes políticas”, como “nueva forma de gobernanza” que “envuelve
tipos específicos de relaciones sociales, de flujos y de movimientos altamente
complejos para suponen un gran desafio para la investigación” (BALL, 2013, p. 34).
Notas
1
Ley de los 180 días de clase Nº 25864/04; Ley de Financiamiento Educativo Nº 26075/05; Ley de Educación
Técnico Profesional Nº 26058/05; Programa Nacional de Educación Sexual Integral Ley Nº 26150/06; Ley
de Educación Nacional Nº 26206/06.
2
En el marco de las políticas educativas para la inclusión educativa se desarrollaron un conjunto de planes,
programas y proyectos, entre los que destacamos aquéllos destinados al reingreso, la permanencia y el
egreso de adolescentes y jóvenes que habían interrumpido su escolaridad secundaria. Como política social,
el Programa Asignación Universal por Hijos (AUH) atiende a las familias con hijos menores de 18 años
en condiciones de vulnerabilidad social (desocupados, familias con hijos discapacitados, trabajadores
informales que perciben bajos ingresos, servicio domésticas, embarazadas, monotributistas sociales)
con el propósito de reinsertar a los alumnas y alumnos que habían abandonado la escuela (primaria y
secundaria) e incorporar a nuevas poblaciones que no habían llegado a la escuela secundaria.
3
En el período 2004-2015 se crearon un total de diecinueve universidades nacionales atendiendo al
criterio de distribución territorial de las universidades y priorizando las provincias o regiones del país
que concentran una población con más restricciones socio-económicas y menor acceso a bienes culturales.
Es una constatación que la cercanía de la oferta universitaria disminuye los costos privados atrayendo a
nuevas poblaciones o primera generación que accede a los estudios universitarios (los que no asistían a la
universidad porque no tenían posibilidades de afrontar los gastos para radicarse en otra ciudad, o tienen
familiares a cargo, especialmente las mujeres, o porque la universidad aparecía lejana en sus expectativas
y mucho menos como un derecho). En el último decenio, la participación en la educación superior del
quintil más pobre creció más del 50% y la relación entre el 20% más rico que cursa estudios de nivel
superior y el 20% más pobre pasó del 4/5, a menos del 2/1. Argentina es el país con mayor equidad en el
acceso a la educación superior: 18,5% provienen del primer quintil de ingresos y 24,3% de segundo quintil,
lo que sumandos alcanzarían 43% del total de alumnos (MIRANDA, 2016; PÉREZ RASETTI, 2014; DEL
BELLO, 2015).
4
El Programa Conectar Igualdad se diseñó en 2010 para ser implementado en escuelas de enseñanza del
nivel medio, de educación técnico profesional, modalidad especial e institutos de formación docente. En
2016 continúa con el nombre de Plan Nacional de Educación Digital y fue transferido de la Administración
Nacional de Seguridad Social (ANSES) al Ministerio de Educación con una fuerte disminución
presupuestaria, del orden del 43% del presupuesto en 2018, lo que significa una pérdida real de – 52,5 %,
acumulados de los presupuestos anteriores.
5
En el marco de la centralidad que ocupa la evaluación en las políticas de Cambiemos se implementa a
partir de 2016 el Operativo Aprender (que reemplaza al Operativo Nacional de Evaluación(ONE) creado
en la década de los noventa, de periodicidad trianual) para evaluaciones anuales de los aprendizajes
aplicable a una muestra de alumnos de los niveles primario y secundario, en diferentes grados o años que
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La política educativa como negocio. Ajuste presupuestario, discurso meritocrático y el davos” de la educación en Argentina (2015-2019)
varían en cada operativo. Por primera vez se llevan a cabo evaluaciones a los estudiantes de instituciones
de formación docente (Pruebas Enseñar). Si bien hubo intentos de modificar la Ley de Educación Nacional
para introducir la difusión pública de resultados de las escuelas, las iniciativas oficiales no prosperaron.
6
En el presupuesto 2018, entre otros programas, se elimina el Programa de Biblioteca del Maestro. El
Programa Formación Docente si bien prevé un incremento del 3%, en la práctica significa una pérdida
real de 14,1 %. La subejecución del presupuesto de 2017 afectó programas de alta sensibilidad social como:
Progresar; los Planes de Distribución de Libros de Texto, Lectura y Manuales, Colecciones literarias y Plan
Nacional de Lectura; cierre de los Programas de Alfabetización de Adultos; disminución de los subsidios a
las escuelas en situación de vulnerabilidad; reducción en cantidad de becas para estudiantes de formación
docente, de grado y de posgrado, para carreras universitarias prioritarias y para alumnos universitarios
de bajos recursos; desfinanciamiento de la Educación Técnica. El área de Infraestructura escolar también
se vio afectada por las políticas de ajuste y de subejecución de los fondos destinados al Mejoramiento de
la Infraestructura de las Escuelas- en 2016 sólo se realizaron 241.587 m2, 65.000 m2 menos que el año
anterior- y en 2017 apenas se construyeron 40.100 metros cuadrados (CTERA, 2018).
7
Reskilling significa reciclaje, reconversión, readaptación profesional.
8
La Confederación de Trabajadores de la Educación de la República Argentina (CTERA) rechazó la
creación de la Secretaría de Evaluación Educativa y defendió la creación del Consejo Nacional porque
“fue el resultado de importantes debates y para su aprobación se contó con el acuerdo de una amplia
mayoría de las representaciones parlamentarias que, en su oportunidad, votaron a favor de contar con esta
instancia que permite construir un sistema integral de evaluación, garantizando un proceso democrático
de participación de los miembros de la comunidad académica y científica, representantes del Consejo
Federal de Educación, del Congreso Nacional, de las organizaciones del trabajo y la producción, y de las
organizaciones gremiales docentes” (CTERA, 2016)
9
El Cuarto Estudio Regional Comparativo y Explicativo (ERCE) se aplica en 2018 a estudiantes de 3° y 6°
año de escuelas primarias de Educación Común de 18 países de América Latina, en las áreas de Lectura,
Escritura, Matemática y Ciencias (esta última solo en 6° año).
10
Empresas “multilatinas” son definidas como empresas con sede en América Latina y en rápida expansión
por todo el planeta (SANCHEZ ZINNY, 2015, p. 55).
11
El Decreto nº 641/2018 introduce cambios en el Decreto firmado por el Presidente de la Nación Eduardo
Duhalde el 19 de junio de 2002, que priorizaba el asesoramiento de profesores universitarios en asuntos
de la administración pública. Por el contrario, este gobierno limita la contratación con las universidades
de asesorías, auditorías, investigación, así como capacitación y formación y excluye los convenios de
asistencia técnica, dejando abierta la posibilidad de contratar nacionales o extranjeras privadas.
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Jaime Moreles Vázquez
Transversalidad y privatización de la educación en México a partir de dos casos
Mainstreaming and commodication of education in Mexico from two cases
Transversalidade e privatização da educação no México a partir de dois casos
Jaime Moreles Vázquez
*
Sara Aliria Jiménez García
**
Resumén
En el presente artículo problematizamos el tema de la privatización de la educación. Planteamos que, a
diferencia de otros temas socialmente relevantes como la formación valoral, la ética o la igualdad de género,
la comercialización de los servicios educativos sí ha sido transversal, pues ha trascendido áreas, niveles y
modalidades educativas. Argüimos que se trata de una paradoja, pues a diferencia de otros asuntos socialmente
deseables, la idea de transversalidad en el ámbito de la privatización sí ha sido concretada, ya sea como efecto
no deseado o como resultado de las iniciativas que se han promovido en el pasado reciente en la educación
mexicana. En razón de tal propósito, en lo que sigue abordamos inicialmente algunos indicadores sociales
y demográcos que hacen de marco de referencia para la discusión de cómo se ha transversalizado la
privatización, y paralelamente mostramos la estructura y algunas de las características del Sistema Educativo
Nacional (SEN); después, a partir de los tipos de privatización, encubierta y visible, exponemos dos casos a modo
de evidencia, cuyos resultados afectan principalmente a los sectores menos favorecidos de la población; por
último, planteamos algunas conclusiones a modo de agenda de discusión.
Palabras clave: Privatización. Educación Básica y Superior. Transversalidad.
Resumo
No presente artigo, problematizamos o tema da privatização da educação. Apontamos que, diferentemente
de outros temas socialmente relevantes como a formação de valores, a ética ou a igualdade de gênero, a
comercialização dos serviços educativos foi transversal, pois transcendeu áreas, níveis e modalidades educativas.
Argumentamos que se trata de um paradoxo, pois, diferentemente de outros assuntos socialmente desejáveis,
a ideia de transversalidade no âmbito da privatização foi concretizada, seja como efeito do desejado, ou como
resultado de iniciativas que foram promovidas no passado recente na educação mexicana. Diante de tal
propósito, a seguir abordamos inicialmente alguns indicadores sociais e demográcos que constituem marco de
referência para a discussão de como foi transversalizada a privatização e, paralalemente, mostramos a estrutura
e algumas das características do Sistema Educativo Nacional (SEN); depois, a partir dos tipos de privatização,
*
Doctor en Educación por la Universidad de Guadalajara (México). Atualmente, é profesor-investigador de tiempo
completo en Universidad de Colima (México). ORCID https://orcid.org/0000-0002-1830-6177. E-mail: jaimemvaz-
quez@ucol.mx
**
Doctora en Educación por la Universidad de Guadalajara (México). Profesora Investigadora de la Facultad de Pedago-
gía de la Universidad de Colima (México). ORCID https://orcid.org/0000-0002-4877-0958 . E-mail: ocsar@ucol.mx
Recebido em 27/05/2019 – Aprovado em 15/09/2019
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i1.10573
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Transversalidad y privatización de la educación en México a partir de dos casos
encoberta e visível, apresentamos dois casos, a título de exemplo, cujos resultados afetam principalmente
os setores menos favorecidos da população; por último, indicamos algumas conclusões a propósito de uma
agenda de discussão.
Palavras-chave: Privatização. Educação Básica e Superior. Transversalidade.
Abstract
In this paper we problematize the issue of the privatization of education. We propose that, unlike other socially
relevant topics such as values, ethics or gender equality, the commercialization of educational services has been
transversal, becasuse commodication has transcended areas, levels and educational modalities. We argue
that as a paradox, because unlike other socially desirable issues, the idea of mainstreaming in the privatization
eld has been concretized, either as an unwanted eect or as initiatives’results that have been promoted in
mexican education. Under this purpose, we initially present some social and demographic indicators as a
reference framework for the discussion of how privatization has been mainstreamed, and in parallel we show
characteristics of the National Educational System (SEN); then, based on the privatization modalities, concealed
and visible, we present two cases as evidence, and his results that mainly aect to sectors of poor population;
nally, we propose some conclusions as a discussion agenda.
Keywords: Commodication. Elementary and Higher Edcuation. Mainstreaming.
Privatizado
Privatizada tu vida, tu trabajo,
tu tiempo de amar y tu derecho a pensar.
La empresa privada es dueña de ti,
de tu pan y de tu salario.
Y ahora, no contentos, quieren
privatizar el conocimiento, la sabiduría,
el pensamiento,
que sólo a la humanidad pertenece.
Brecht (Poemas 1913-1956, 2019)
El Sistema Educativo Nacional y algunos indicadores
Antes de discutir casos de privatización de la Educación Básica (EB) y de
la Educación Superior (ES), presentamos algunos rasgos del SEN mexicano e
indicadores sociales que nos permitirán tener una mejor comprensión de las
cuestiones a discutir, y además porque se relacionan y sustentan la paradoja
argüida. Es preciso que mencionemos también que desde diciembre de 2018 hay
un nuevo gobierno en el país, y algunas de las iniciativas que se han impulsado
desde diciembre de ese año son educativas y prometen modificar el rumbo de la
privatización de servicios educativos en las escuelas públicas.
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Vale recordar que la educación es un derecho, y así permanece en las
regulaciones y normativas correspondientes, así como los desafíos de equidad y
su naturaleza inclusiva que se han mantenido en el discurso al menos durante las
dos décadas recientes. En ese sentido, el SEN mexicano está en consonancia con
algunos países de América Latina (AL), en los que, de acuerdo con la UNESCO
(Organización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura,
2017), se habría renovado el debate acerca de la naturaleza de la educación en
cuanto a servicio comercial o bien público, y como derecho de la población.
El SEN está a cargo de la Secretaría de Educación Pública (SEP), que a su
vez está integrada por diferentes órganos y subsecretarías; por sus dimensiones,
se trata de un Mega-Sistema educativo, más de 30 millones de personas de 3 años
o más asisten a la escuela (INEGI, 2019). El SEN se divide en Educación Básica
y Educación Superior. En el gobierno de 2012-2018 la EB era obligatoria e incluía
preescolar, primaria, secundaria y al bachillerato; con el gobierno entrante (2018-
2024), la ES también será obligatoria.
En esa dirección, los desafíos de equidad y justicia que son inherentes a la
educación como derecho aún parecen poco factibles en la región latinoamericana;
en el caso de México, por ejemplo, las brechas de desigualdad social son históricas,
apenas una mínima parte de las personas provenientes de hogares humildes
mudará su estatus económico y social (DELJARA et al., 2018). Lo anterior es
una consecuencia de la desigual distribución de la riqueza; por ejemplo, podemos
mencionar que no obstante México tiene los más altos ingresos en la región y que
su Producto Interno Bruto (PIB) per cápita es de los más altos, es también uno
de los países más pobres (Instituto Nacional para la Evaluación de la Educación-
Instituto Internacional de Planeamiento de la Educación, INEE-IIPE, 2018).
Con base en el planteamiento anterior, podemos augurar que la escalada de la
privatización tampoco contribuye a reducir las brechas de desigualdad.
Estamos hablando de que casi la mitad de la población mexicana vive en condi-
ciones de pobreza, un poco más de 53 millones de personas, de acuerdo con el Consejo
Nacional de Evaluación de la Política de Desarrollo Social (CONEVAL, 2019). Asi-
mismo, desde hace algunos años la inseguridad y la violencia son parte de la vida co-
tidiana, afectando principalmente a la población infantil y juvenil, y específicamente
a las mujeres. Ese sector de la población, que representa también la mayor parte
de la matrícula escolar, es el más vulnerable, pues uno de cada dos niños vive en
situación de pobreza, así como uno de cada cinco adolescentes; también, un sector de
la niñez mexicana tiene que trabajar para subsistir, y un buen porcentaje de ellos no
asisten a la escuela por esos motivos; de la misma forma, de acuerdo con un reporte
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Transversalidad y privatización de la educación en México a partir de dos casos
reciente, un sector imporante de la población infantil manifestó tener hambre (CO-
NEVAL, 2019). Se trata de la población escolar en edad de cursar los niveles de EB.
La población juvenil, entre las que se encuentran sectores que tienen edad para
asistir a la ES, también representa uno de los grupos más sensibles a los principales
problemas económicos y sociales, como los relativos a la precariedad laboral, el su-
bempleo y el desempleo. Se trata de un problema de la región, pues hacia 2016 en AL
la tasa de desempleo fue de 8.1%, unos 25 millones de desempleados, de los cuales la
mayoría son mujeres y jóvenes entre los 15 y 24 años, mientras que unos 134 millones
se encontraban en el empleo informal (Organización Internacional del Trabajo, OIT,
2016). En el mundo, cuatro de cada 10 jóvenes carece de empleo y en los últimos 20
años el desempleo de la población juvenil se ha triplicado (OIT, 2015). En México,
además de que solamente 2 de cada 10 personas entre 12 y 29 años de edad pueden
ser considerados población no pobre o vulnerable (CONEVAL, 2019), el desafío del
empleo sólo se ha agudizado, pues entre 2000 y 2018 ha aumentado el número de per-
sonas que poseen ES o de nivel medio superior y están desempleadas; asimismom, la
mitad de las personas que no tiene trabajo posee ese nivel de estudios (INEGI, 2019).
Tales condiciones límite para la operatividad del SEN y para el logro de sus
propósitos de equidad e inclusión, y de la educación como derecho, se agravan si
planteamos los retos relativos al número y a la composición poblacional de México,
ya que en la actualidad viven en el país alrededor de 120 millones de personas
(Instituto Nacional de Geografía y Estadística, INEGI, 2019); en cuanto a la
composición poblacional, podemos señalar que hay un número significativo de
personas en la niñez o la adolescencia, que además se encuentran geográficamente
dispersos y con una importante diversidad cultural y lingüística (INEE-IIPE, 2018).
Los rasgos e indicadores que hemos expuesto representan el marco de referencia
para la discusión de los casos de privatización de la educación que planteamos en
lo que sigue, empleando como eje de análisis la idea de transversalidad; argüimos
que, como si fuera un contrasentido con base en la desigualdad en la distribución
del ingreso y la pobreza predominante, en el ámbito de la comercialización de los
servicios educativos ésta sí ha sido efectiva; antes de presentar los casos hacemos
algunas distinciones conceptuales sobre la transversalidad.
Lo que se entiende por transversalidad
El término transversalidad se habría originado del concepto de mainstreaming,
cuya traducción al español ha sido polisémica; esta cualidad puede observarse en
la extensión del concepto y su complejidad y, por tanto, también a la formulación
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vaga en su dimensión práctica (DURÁN, 2012). En el campo de las políticas se ha
empleado como argumento para conjugar programas y proyectos que trascienden
estructuras y sistemas ya constituidos, bajo el propósito de hacerlas más efectivas.
La transversalidad ha sido una iniciativa impulsada por Conferencias Mundiales
promovidas por organismos multinacionales y por los documentos normativos
correspondientes (BIZZOZERO, 2004, citado por PEIXOTO, 2009; FELDFEBER,
2009).
En el ámbito de la educación, con el término ‘transversal’ a menudo se alude
al espacio que se pretende ocupar con ciertos contenidos dentro de la estructura
curricular de cada ciclo o nivel; tales contenidos son concebidos como ejes que
atraviesan en forma longitudinal y horizontal el currículo, de tal manera que en
torno a ellos se articulan los temas de las diferentes áreas de formación (DURÁN,
2012). La transversalidad consiste en plantear estrategias que desde procesos
políticos posibiliten que la temática en cuestión trascienda las aulas y la tradicional
organización curricular. Es uno de los temas puestos a debate para lograr la ruptura
de fronteras disciplinarias y dar respuesta a los nuevos fenómenos sociales; por ello,
más que atender a contenidos cognitivos, los ejes plantean retos de la formación
integral, en dirección a lograr una ciudadanía plena (MUNÉVAR; VILLASEÑOR,
2005, citados en DURÁN, 2012).
Como mencionamos al inicio, en los años recientes podemos poner como
ejemplo las temáticas de género, los valores cívicos, la ética, así como contenidos
y/o capacidades como el trabajo en equipo o la alfabetización académica; incluso en
temas que han sido considerados transversales como la salud, el consumo, el medio
ambiente o la convivencia, y que no son parte de las disciplinas o áreas clásicas del
saber (YUS, 1998).
En esa dirección, se ha referido principalmente a cuestiones de índole
curricular, y cuyos resultados no han sido necesariamente los esperados, sea en la
forma de nuevos diseños curriculares, o bien, en los desafíos didácticos vinculados a
la comprensión de fenómenos complejos (TEDESCO, 1996); la implementación de la
transversalidad aún representa un asunto de la agenda porque implica involucrar,
incorporar, cruzar, estar inmerso en… es decir, casi cualquier noción que remita a
la transformación social y educativa al integrarse varios elementos (DURÁN, 2012).
En política, tales características de la transversalidad pueden ilustrarse a
partir de lo que se concibe como políticas de Estado, pues éstas tienen el rasgo de
trascender períodos, niveles de gobierno, orientaciones y partidos políticos, así como
diferentes programas y proyectos (LATAPÍ, 2004); en razón de lo anterior, podemos
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Transversalidad y privatización de la educación en México a partir de dos casos
augurar que ese tipo de iniciativas son políticas transversales en el sentido que
aquí estamos otorgando al término.
Para el caso de México también podemos citar como ejemplo la concatenación
de diversos programas relativos a la calidad de la educación y que tienen como eje
articulador la búsqueda de financiamiento extraordinario de las instituciones de
educación superior y de las universidades públicas; como una estrategia discursiva,
de acuerdo con Díaz (1996), los cambios al menos se notan en los documentos que
sirven de base para evaluarles. La pretensión de ese tipo de financiamiento articula
y trasciende diferentes programas de evaluación y acreditación externa, por lo que
puede ser considerada como una evidencia de lo que venimos planteando sobre la
transversalidad como herramienta analítica.
Como anticipamos, aquí sostenemos que los resultados de la transversalización
de esos temas y de otros asuntos educativos ha sido poco efectiva, al menos en el
contexto mexicano, porque, aunque están presentes en los discursos, hay escasas
evidencias de la transformación de las prácticas. Paradójicamente, la privatización
de la educación sí representa un ejemplo fehaciente, pues ha trascendido niveles y
modalidades educativas, como se puede observar en los casos que empleamos como
evidencias; antes de explicar los casos, aludimos cuestiones sobre privatización
educativa y sus formas o modalidades.
La privatización de la educación
La privatización de la educación en el país ha ido fundamentándose en las
reformas que tuvieron lugar en los 80 y 90 del siglo pasado; en ese momento, el
debate político estaba orientado a la conformación de una sociedad centrada en el
mercado, y en donde la formación de recursos humanos para la producción era el
objetivo de los sistemas educativos (INEE-IIPE, UNESCO, 2018).
En ese sentido, las políticas de evaluación en la historia del SEN mexicano
han estado asociadas a la medición de los resultados de aprendizaje y a su difusión.
De igual modo, esas políticas habrían sido concebidas en el marco de las crisis
económicas y políticas, y casi a la par de las negociaciones de la Organización
Mundial de Comercio (OMC) con algunos países latinoamericanos, entre ellos
México. De acuerdo con algunas referencias, en ese tiempo había una intención clara
de promover la visión de la educación como servicio o mercancía, la cual se exacerbó
cuando la OMC propuso regular la educación, y en la medida que los gobiernos
aceptaran la existencia de proveedores privados, podría ser tratada como otro
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producto comercial (BIZZOZERO, 2004, citado por PEIXOTO, 2009; FELDFEBER,
2009).
En el caso de México, esos cambios ocurrieron durante el gobierno de 1982-
1988, cuando el país se incorporó al Acuerdo General de Tarifas y Aranceles
(GATT), antecedente de la OMC, y la educación fue considerada como un servicio
o mercancía conformada por cuatro categorías: servicios de enseñanza primaria,
servicios de enseñanza secundaria, servicios de enseñanza superior y servicios de
enseñanza para adultos, además se especifica el tipo ‘otros servicios de enseñanza’
que incluye cualquier modalidad fuera del esquema general (RODRÍGUEZ, 2009).
A menudo los países subdesarrollados o en vías de desarrollo como México, se
adhieren a las directrices de organismos multilaterales como el BM (Banco Mundial),
la OCDE (Organización para la Cooperación y Desarrollo Económicos) o el FMI (Fondo
Monetario Internacional); tales organismos influyen en la agenda política mediante
las condiciones de sus créditos y la asesoría de sus grupos de expertos, quienes en
sus visitas se coordinan con especialistas del país en cuestión, con el objeto otorgar
legitimidad a diversas propuestas y programas. Algunas de las directrices de esos
organismos multinacionales habrían estado relacionadas con la comercialización
de la educación, de acuerdo con Petrella (2001, citado por FELDFEBER, 2009),
esa forma de subordinación es una trampa para los sistemas educativos, pues ha
reducido la política a la racionalidad tecnocrática que debilita la soberanía estatal.
En ese marco, entendemos la privatización como la delegación de las
responsabilidades públicas a entidades privadas o que no pertenecen al sector
público; el Estado deja parte de su responsabilidad a ese tipo de organizaciones.
Existen dos formas de privatización, privatizar los servicios con la participación
de particulares o privatizar su funcionamiento importando prácticas y modelos del
sector empresarial; a la primera se le denomina privatización exógena o visible y
a la segunda endógena o encubierta. En la privatización visible la participación
privada se da por medio de la financiación de las escuelas y la externalización
de los servicios escolares (comedor, transporte, actividades extraescolares, etc.), y
mediante el control por resultados; como efectos de estos procesos podemos citar
los recortes al financiamiento, la promoción de la gestión pública inspirada en el
ámbito empresarial, así como el énfasis de la formación por competencias y de mano
de obra. En la privatización encubierta se asume que las prácticas privadas son
más eficientes que las públicas, por lo que se busca incorporar diseños, métodos y
prácticas del sector privado, sistemas de control y evaluación, autonomía regulada
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Transversalidad y privatización de la educación en México a partir de dos casos
y la publicación masificada de resultados educativos (BALL y YOUDELL, 2007,
citados por BERNAL y LACRUZ, 2013).
En AL primero se buscaba privatizar la ES, principalmente en la década de los
90 con el marco del neoliberalismo, ahora la EB, aparentemente desde el movimiento
neoconservador. Un aspecto en común de las versiones encubiertas o endógenas, y
que nos llama la atención, es el ataque abierto a la educación pública y que en ambos
momentos históricos ha sido evidente. En el caso de México, podemos poner como
ejemplo el desprestigio al que fue sometido el trabajo docente en algunos sectores
de la opinión pública. También hemos observado un aumento exponencial de la
oferta de educación privada de baja calidad, a la que asisten quienes no pueden
beneficiarse de la ES y que pertenecen a sectores desfavorecidos de la población, y
sobre los cuales expusimos algunos indicadores sociales en páginas previas. Sobre
esos temas son los casos que presentamos a continuación como evidencias.
Los casos
La transversalidad en la privatización de los servicios educativos en México es
evidente, por lo que en esta parte del texto ejemplificamos tales procesos, aludiendo
en algunos casos a regiones del mundo y a México. Podemos anticipar que, aunque
la educación global se autodenomine como obligatoria y se promueva como un
derecho para todos, en la práctica ha ido abandonando su gratuidad.
Para elaborar los casos, en coincidencia con Popkewitz, Tabachnik y Wehlage
(2007, p. 21), “convertimos en sujetos de investigación el lenguaje, las costumbres,
las tradiciones de la práctica escolar y de la reforma –de las escuelas-…, -dado que-
nos preocupan –sus- suposiciones subyacentes y los valores sociales implícitos”, así
como los cambios que parece que no suceden pero que definen las posibilidades de
estar en las aulas, debido a que tales modificaciones cumplen, contrarían o tuercen
los discursos que señalan que hay que universalizar la educación y acercarla a los
que menos tienen.
Como hemos mencionado a lo largo del documento, empleamos la idea de
transversalidad para mostrar evidencias de la privatización, arguyéndola como
paradoja en el sentido de que en la comercialización de servicios educativos esta
iniciativa sí ha sido efectiva. Los casos que exponemos son sobre la privatización
encubierta de la ES y acerca de la gratuidad de la educación pública; en los dos
casos existen riesgos evidentes de agudizar las brechas de desigualdad a las que
nos hemos referido. Y en ambos hay muestras de privatización visible y encubierta.
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Efectos no deseados de la privatización de la Educación Superior
En México hay más de 4 millones de estudiantes universitarios, de los cuales
7 de cada 10 están matriculados en instituciones privadas (SEP, 2019). En la ES,
hay una importante diversificación institucional pues el Subsistema comprende:
Universidades Públicas Federales, Públicas Estatales, Públicas Estatales con Apoyo
Solidario, Institutos Tecnológicos, Universidades Tecnológicas, Universidades
Politécnicas, Universidad Pedagógica Nacional, Universidad Abierta y a Distancia
de México, Universidades Interculturales, Centros Públicos de Investigación
y Otras instituciones Públicas, de acuerdo con la Subsecretaría de Educación
Superior, SES (2017). Y las universidades privadas.
Las universidades privadas pueden dividirse en tres grandes grupos, las
consideradas de élite, las de absorción de la demanda, y un sector intermedio
entre las dos opciones anteriores. Podríamos argüir que la calidad, entendida como
se ha definido y evaluado desde las políticas correspondientes, oscilaría entre un
mayor cumplimiento de indicadores mediante los que ésta se mide por parte de
las instituciones de élite, y así en orden decreciente hasta las de absorción de la
demanda, las cuales suelen ofertar las licenciaturas que solamente requieren de un
espacio para el aula y de un profesor; casi siempre son las que cuentan con el mayor
número de matrícula y son de las áreas económico-administrativas, las humanidades
y la educación.
Es importante que mencionemos que las universidades privadas no están
obligadas a participar en los programas de evaluación y acreditación impulsados
por la SEP, y que los planteamientos anteriores los exponemos con pretensiones de
ejemplificar cuáles instituciones poseerían una propuesta formativa más sólida,
y cómo algunas instituciones privadas de absorción de la demanda pululan sin
que ni el gobierno mexicano o los potenciales estudiantes tengan claro cuáles son
los factores de calidad académica que las impulsan. También es preciso señalar
que no hay una relación directa entre los indicadores en cuestión y la calidad de
las instituciones, estamos conscientes de ello; sin embargo, son algunas de las
evidencias disponibles sobre el quehacer de las universidades.
Del cumplimiento de esos indicadores depende el financiamiento extraordinario
de las instituciones públicas. Asimismo, vale la pena que mencionemos que el
financiamiento para la ES se encuentra estancado desde hace ya varios años y
períodos de gobierno, lo que constituye, como dijimos, una forma de privatización.
En pos de ese tipo de financiamiento, las instituciones públicas sí deben participar
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Transversalidad y privatización de la educación en México a partir de dos casos
en los programas de acreditación de la calidad. Dos de esos programas son los que
se refieren a la evaluación externa de egresados de las licenciaturas por medio de
pruebas estandarizadas, y a la evaluación externa de programas de licenciatura,
realizada por organismos acreditadores.
Las políticas de acreditación de la calidad de la ES en México han sido
propuestas como garantes del reconocimiento público y de la rendición de cuentas
a la sociedad (MARÚM, 1995 citada por MÁRQUEZ y ZEBALLOS, 2017); esas
fueron algunas de las razones que dieron origen a la creación del CENEVAL (Centro
Nacional de Evaluación para la Educación Superior), cuyo propósito es contribuir a
la calidad educativa, corroborada ésta mediante pruebas de desempeño; una de esas
pruebas es el Examen General de Egreso de la Licenciatura (EGEL), especializado
por carrera profesional, y cuyo objetivo es identificar en qué medida los egresados
cuentan con los conocimientos y las habilidades para el inicio del ejercicio profesional
(CENEVAL, 2017). En casi todos los países de AL existen institutos destinados a
evaluar la calidad y se encuentran vinculados a los sistemas de educación; las
pruebas internacionales y nacionales se han multiplicado, generando una suerte
de epidemia por la evaluación (MURILLO y ROMAN, 2010), a la vez que han
simplificado los procesos educativos en indicadores o resultados numéricos.
En el caso de la evaluación de la pertinencia de los planes de estudio de
programas de licenciatura, ésta la realizan los Organismos Acreditadores
coordinados por el COPAES (Consejo Para la Acreditación de la Educación Superior),
desde el Marco de Referencia vigente (COPAES, 2017). El COPAES fue promovido
en el año 2000 por la Asociación Nacional de Universidades e Instituciones de
Educación Superior (ANUIES), con el objeto de regular los procesos de acreditación
y a los Organismos Acreditadores; forma parte también del conjunto de políticas y
programas de evaluación de la ES de los 80 y 90 del siglo pasado, para contribuir y
asegurar la calidad de la educación del nivel.
Según el COPAES (2018), la calidad se traduce en servicios eficaces, oportunos,
transparentes que buscan siempre la innovación y la mejora continua que satisfaga
las necesidades y expectativas de los usuarios, con estricto apego al marco normativo
y a los objetivos del Programa Nacional de Educación vigente… es la propiedad de
una institución o programa que cumple los estándares previamente establecidos
por una agencia u organismo de acreditación… suele implicar la evaluación de la
docencia, el aprendizaje, la gestión, y los resultados obtenidos.
Como dijimos antes, las instituciones de ES privadas no son evaluadas
mediante esos mecanismos. La proliferación de este tipo de instituciones, la
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ausencia de indicadores que nos hablen de sus procesos educativos y su probable
baja calidad, en la forma como ésta se concibe desde las políticas en cuestión, son
manifestaciones de privatización de la educación, tanto en la modalidad visible como
en la encubierta. Podemos citar dos evidencias de ello, la promoción de la ES privada
en acciones específicas desde el gobierno de México y la no regulación de la oferta de
educación privada de baja calidad; ambas evidencias en perjuicio social y económico
de los sectores menos favorecidos de la sociedad que se matriculan en ese tipo de
instituciones.
En primera instancia, podemos señalar que las acciones de gobierno, además
de la promulgación de normas específicas que incentivan la participación de la ini
-
ciativa privada en la oferta de servicios educativos, han actuado en detrimento de
la población juvenil, cuando aparentemente buscan su beneficio o la mejora en la
cobertura. Como ejemplo podemos referir el Programa de Financiamiento de la Edu
-
cación Superior, que otorgaba créditos para cursar la ES, y que era promovido por
el gobierno mexicano (2006-2012). El Programa contaba con 2 mil 500 millones de
pesos mexicano para financiar a 23 mil aspirantes, cifra que en ese entonces tripli
-
caba el total de recursos asignados al programa de becas para estudiantes del nivel.
Por sí mismas, ambas pruebas dicen mucho de la idea del gobierno en turno
sobre la ES, pero aún podemos referir otras evidencias que agravan el caso,
como la promoción del Programa empleando un discurso de igualdad y justicia,
y el ocultamiento de aspectos que nosotros consideramos muy relevantes como la
calidad de las instituciones de educación superior que entonces se promovieron;
también podemos enunciar en ese sentido las condiciones de los préstamos y los
intereses que deberían cubrir quienes se hicieran acreedores a esos créditos.
La banca que gestora de los créditos acabaría por cobrar hasta tres veces el
monto de lo prestado, y parte del dinero iría a parar a universidades privadas; al
hacer público el Programa, el entonces Presidente de México celebraba la medida
en pos de un ‘país más más justo e igualitario’, que ‘democratizaría el acceso a la
ES y aceleraría la ampliación de la cobertura’ (IGARTÚA, 2012). Con la garantía
de Nacional Financiera (NAFIN) y la Secretaría de Hacienda y Crédito Público
(SHCP), los préstamos estaban a cargo de Financiera Educativa México (FIEM),
Banco Santander, HSBC, Bancomer y Banorte, y comprendían 250 para estudios
de licenciatura y 280 mil pesos para posgrado, a pagar en plazos de 15 años; las
tasas de interés oscilaban entre el 9 y el 13% anual (Comisión Nacional para
la Protección y Defensa de los Usuarios de Servicios Financieros, CONDUSEF,
2019; IGARTÚA, 2012). Un sistema de créditos similar al estadunidense, el cual
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Transversalidad y privatización de la educación en México a partir de dos casos
ha ocasionado la generación de universitarios más endeudada de la historia, al
convertir a los estudiantes en esclavos de su deuda en beneficio de universidades e
instituciones bancarias (IGARTÚA, 2012).
Las condiciones ideales de los créditos las mostramos en las imágenes que
siguen; la de la izquierda muestra las características del crédito en las condiciones
que mencionamos en el párrafo previo. La imagen de la derecha muestra la opción
crediticia del Infonacot (Instituto del Fondo Nacional para el Consumo de los
Trabajadores), destinada a las personas que estudian y trabajan, bajo la condición
de que la universidad a la que se aspire tenga un convenio con ese Instituto; en
este caso la tasa de interés es de 14% y el monto del préstamo de 500 mil pesos
mexicanos. Ambos créditos están calculados sin IVA (Impuesto al Valor Agregado).
Fuente: Condusef (2019).
En segunda instancia, la regulación de la oferta educativa privada, y como
sustento a lo que venimos argumentando, realizamos una búsqueda simple por
institución en el Padrón Nacional de Programas Educativos de Calidad del SEN
mexicano (https://www.pnpec.sep.gob.mx), el cual consiste en un inventario de
los programas de licenciatura que han sido evaluados y acreditados mediante
los mecanismos y programas que mencionábamos antes, Ceneval y Copaes,
además de los Comités Interinstitucionales para la Evaluación de la Educación
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(CIEES). No encontramos ninguna de las instituciones promovidas en el Programa
de Financiamiento de la Educación Superior, lo cual, como apuntamos antes,
es esperable con base en la no obligatoriedad de las instituciones privadas de
someterse a las regulaciones de los programas de evaluación externa.
Por consiguiente, lo que podemos citar como evidencia, con el objeto de
hacer más sólido nuestro argumento de la privatización de la ES, concretada
transversalmente, es el Índice de Calidad de la Inversión, creado por el Instituto
Mexicano de la Competitividad (IMCO); el Índice comprende cuatro categorías,
desde las cuales se valora la inversión realizada al estudiar ciertas carreras en
determinadas instituciones o universidades, y que se valorada a partir de ciertos
componentes. Las categorías del retorno de la inversión consisten en: Excelente,
rendimiento alto y riesgo bajo; Buena, rendimiento medio-alto y riesgo medio-bajo;
Insegura, rendimiento medio-bajo y riesgo medio-alto; y, Muy insegura, rendimiento
bajo y riesgo alto. El retorno de la inversión equivale al rendimiento neto de estudiar
una carrera, es la tasa de retorno por cada año de vida laboral; por su parte, el
riesgo es considerado a partir de la población desocupada y desanimada en el área en
cuestión, así como la tasa de informalidad (IMCO, 2018). Enseguida presentamos los
retornos de la inversión Excelente, rendimiento alto y riesgo bajo, y, Muy inseguras,
rendimiento bajo y riesgo alto, a partir del reporte del IMCO (2018):
Carrera
Salario promedio,
pesos mexicanos
Tiempo para recuperar la inversión con
base en el sueldo promedio de la carrera
Universidad pública:
Meses
Universidad privada:
Meses
Química $ 33,265 2 30
Física $ 17,771 2 82
Estadística $ 16,674 2 73
Finanzas, banca y seguros $ 16,719 3 80
Ingeniería química $ 13,912 3 108
Carrera
Salario promedio,
pesos…
Tiempo para recuperar la inversión con base
en el sueldo promedio de la carrera
Universidad pública:
Meses
Universidad privada:
Meses
Filosofía y ética $ 8,060 20 594
Lenguas extranjeras $ 8,422 13 232
Diseño $9,289 8 299
Bellas artes $ 10,540 8 233
Terapia y rehabilitación $ 9,041 5 240
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Transversalidad y privatización de la educación en México a partir de dos casos
Aunque puedan ser debatibles los indicadores mostrados, pensamos que son
muy relevantes para lo que hemos propuesto aquí en torno a la transversalidad
de la privatización de la ES. Asimismo, observamos que la proliferación de la ES
privada de baja calidad, actúa en perjuicio de la población juvenil y de su desarrollo
personal y profesional, incluso podemos conjeturar que esto ha ocurrido al amparo
del gobierno en turno, ya sea por acción u omisión.
La oferta de ES con ese tipo de características suele estar destinada a
estudiantes de sectores desfavorecidos de la población y que tienen que trabajar
mientras estudian, o adquieren préstamos monetarios como los mencionados,
los cuales son ventajosos para las instituciones que se los otorgan y para las
universidades en cuestión. Además, suelen ofertar irresponsablemente las carreras
de mayor demanda y cuyo campo laboral se encuentra saturado y cada vez resulta
más difícil conseguir empleo. Bajo el amparo del gobierno, algunas instituciones
lucran con las expectativas profesionales y las aspiraciones de movilidad social de
la juventud, y con su situación de pobreza económica.
Educación pública pero no gratuita
Valoramos que transversalizar la privatización de servicios educativos agrava
la falta de acceso a la educación a millones de personas alrededor del mundo,
especialmente a las que migran, no tienen un trabajo fijo o su economía no cubre sus
necesidades básicas, por lo que, además de su condición de precariedad, no estarían
en condiciones de pagar los servicios que ahora tienen costos. Nos referimos a la
privatización encubierta o endógena que asigna costos a los desayunos escolares,
los materiales, el transporte, las actividades extraescolares (BERNAL y LACRUZ,
2013).
Una evidencia de la precariedad económica en la población mundial y de la
falta de acceso a la escuela son las cifras que presenta la Unicef (Fondo de las
Naciones Unidas para la Infancia, 2018, p. 1): “más de 104 millones de niños y
de jóvenes –1 de cada 3– no van a la escuela en los países afectados por guerras o
desastres naturales. Los adolescentes en los países en situaciones de emergencia
confrontan un futuro incierto, ya que 2 de cada 5 jóvenes de 15 a 17 años no han
terminado la escuela primaria…, una cifra que representa más de un tercio de la
población mundial sin escolarizar. En total, 303 millones de niños de 5 a 17 años no
asisten a la escuela en todo el mundo”. Tomando en cuenta esos indicadores, poner
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corto a los servicios escolares solamente dificulta el acceso y la permanencia en la
escuela de los sectores desfavorecidos de la población.
Para la Unicef (2018), la pobreza representa el obstáculo más importante para
la educación en todo el mundo, ya que los niños más pobres en edad de asistir a la
escuela primaria tienen cuatro veces más probabilidades de no asistir a la escuela
que sus compañeros de las familias más ricas. También este organismo denuncia la
falta de gratuidad de la educación pública alrededor del mundo, “hace hincapié en la
necesidad de reducir los costos directos e indirectos de la educación para las familias.
Los nuevos datos… confirman que muchos hogares todavía deben sufragar los gastos
relacionados con la educación, que en total representan 87 dólares estadounidenses
por niño para la educación primaria en Ghana, 151 dólares por niño en Côte d’Ivoire
y 680 dólares en El Salvador” (UNESCO, 2017, p. 1). La garantía del derecho a la
educación tendría repercusiones efectivas en la disminución de las desigualdades,
pues “la pobreza en el mundo podría reducirse a la mitad si todos los adultos
terminaran la educación secundaria” (UNESCO, 2017, p. 1).
En este contexto de retraimiento del Estado de los asuntos públicos, y mientras
que los recursos que se destinaban al bienestar común son menores, se invierten
con otros propósitos o no se invierten, la educación se ha convertido en un foco de
atracción para la iniciativa privada; los gobiernos de los países siguen recabando
impuestos de sus ciudadanos, pero han ido abandonando lo público.
Un ejemplo de los gastos que se añaden a la escuela pública a través de la vida
de un escolar, lo podemos mostrar con la siguiente evidencia:
en Estados Unidos una familia gasta hoy en día alrededor de $685 dólares en promedio, en
el material escolar de su hijo en todos los años que asiste a clases. Desde que empieza en la
guardería hasta que acude a la enseñanza secundaria. Esto representa un aumento de casi
US$250 desde 2005, y equivale a un total de US$27.5000 millones en el curso escolar 2018.
Si además a esto se le agrega el gasto universitario, la cifra asciende a US$83.000 millones
(El nacional web, BBC News Mundo, 2018, p. 1).
Además, también se puede notar que esta racionalidad de que las familias
paguen costos de la educación pública es una tendencia mundial, pero conlleva
costos muy distintos, los cuales dependen del financiamiento educativo que otorga
cada país a la educación. Según el nacional web de la BBC News Mundo (2018, p. 1),
después de combinar el costo de matrículas escolares, libros, transporte y alojamiento desde
la escuela primaria hasta la universidad, se descubrió que Hong Kong es el lugar más caro
del mundo para estudiar… en otros países, como en Francia, el costo es mucho más bajo
para la familia. Allí los padres solo contribuyen alrededor de US$16.000 a la totalidad de
la educación de sus hijos…
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Transversalidad y privatización de la educación en México a partir de dos casos
En México, la privatización de servicios educativos agravó otros problemas
sociales y ha generado crisis regionales. De acuerdo con PONCE (2019, p. 1), éste
es el segundo país con mayor flujo de migrantes en el mundo, con 13 millones, la
cifra representa casi 20% del total de desplazados en el mundo, que se estima en
más de 70 millones de personas”.
Así, la venta de servicios, ante la carencia de recursos públicos para cubrirlos,
hace imposible que algunos vayan a la escuela en México, según SUÁREZ (2017,
p. 1),
más de un millón de alumnos abandonan sus estudios cada año, … a mi papá se le
complicaba pagar la escuela porque somos cuatro hermanos y yo decidí darme de baja para
que él pudiera juntar dinero, dice Valeria… -pues- a mayores problemas económicos, una
menor probabilidad de asistir a la escuela… Además, la deserción escolar es más frecuente
en localidades rurales, en comunidades indígenas y en sitios de alta marginación.
1. La comercialización de la educación en el escenario internacional faculta y
legitima a los gobiernos a evadir la responsabilidad de educación pública y
gratuita para todos. Aquellos que podían encontrar un lugar en el aula, ahora
tendrían que costear algunos de sus servicios para ganarse un derecho que
antes tenía más probabilidades de ser garantizado; con acciones u omisiones
como éstas, además, se incrementa la presión por la privatización, por lo que
en estos procesos se desdeña tanto a los estudiantes como a los trabajadores
educativos, a la vez que se abaratan las condiciones laborales de los últimos
(ALTBACH, REISBERG, YUDKEVICH, ANDROUSHCHAK Y PACHECO,
2012).
Conclusiones
En el presente artículo hemos mostrado que, si bien los discursos de política
educativa refieren que la educación internacional y nacional pública es gratuita, sus
usuarios deben asumir varios de sus costos, pues actualmente el gobierno mexicano
y de otros países abren las puertas a la iniciativa privada, y a la comercialización
de la educación, evadiendo su responsabilidad histórica como garantes del derecho
a la educación.
En ese sentido, con base en los casos que hemos expuesto y los indicadores
analizados, consideramos que la educación sí se está privatizando; además,
sostenemos que representa una paradoja el hecho de que la idea de transversalidad
pueda ser sustentada a partir de diferentes evidencias, cuando como iniciativa
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aún es un asunto pendiente en otras temáticas socialmente deseables como la
formación cívica, género, entre otros. Una iniciativa en pos de la cohesión y el
desarrollo social, pero que en la práctica se concreta justamente en un rubro en el
que hace más vulnerable al sector juvenil.
Desde luego, los casos que exploramos son discutibles; sin embargo, pensamos
que son pertinentes para lo que hemos propuesto aquí en torno a la transversalidad
de la privatización educativa. Suponemos que la educación pública lo es con el
objeto de compensar desigualdades y que las formas que hemos planteado de
privatización solamente exacerbarán la brecha entre ricos y pobres y entre la
calidad de los servicios educativos a los que pueden acceder. La privatización de
los servicios educativos agravará aún más el asunto del acceso a la educación a
millones de personas alrededor del mundo, especialmente a las que migran, no
tienen un trabajo fijo o su economía no cubre sus necesidades básicas.
Tanto en el caso de la gratuidad de la EB, con la aparición de costos en
algunos servicios, como en el caso de la privatización de la ES y la baja calidad de
la oferta, hemos expuesto evidencias de la comercialización de la educación, y en
ese sentido la planteamos como uno de los principales desafíos del país y de AL,
ya que, por acción u omisión, los gobiernos han priorizado y propiciado formas
visibles y encubiertas de la mercantilización, en detrimento de la educación como
bien público y como derecho humano.
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A avaliação das organizações educativas e a regulação pelo discurso gestionário
A avaliação das organizações educativas e a regulação pelo discurso gestionário
Evaluation of educational organizations and regulation by management discourse
Evaluación de organizaciones educativas y regulación por discurso de gestión
Dora Maria Ramos Fonseca
*
Resumo
Os documentos orientadores para a gestão educacional produzidos pelas entidades supranacionais espelham
a adoção de um discurso de natureza gestionária com a tónica na comparabilidade e na competitividade e
reetem, ainda, a assunção da educação como instrumento ao serviço do mundo económico. Regista-se uma
propagação do ideário neoliberal no campo educativo traduzido na expansão das ideias de mercado ou quase-
-mercado educacional introduzindo na esfera educativa uma mudança discursiva que se traduz em um certo afas-
tamento do discurso democratizante e em uma aproximação ao discurso gestionário. Este artigo tem como centro
de análise os processos de avaliação das organizações educativas enquanto mecanismos reguladores da gestão
educacional. Importa perceber, a partir dos estudos que temos vindo a desenvolver sobre a temática, de como
as construções discursivas presentes nos documentos normativos e nos instrumentos de avaliação contribuem
para a forte regulação no sentido da mercantilização da educação.
Palavras-chave: Avaliação organizacional. Discursos. Regulações. Mercado educacional.
Abstract
The guidance documents for educational management produced by supranational entities mirror the adoption
of a management discourse with a focus on comparability and competitiveness, and also reect the assumption
of education as an instrument at the service of the economic world. There is a propagation of neoliberal ideas
in the educational eld translated into the expansion of educational market or quasi-market ideas, introducing
in the educational sphere a discursive change that translates into a certain departure from the democratizing
discourse and an approach to the gestational discourse. This article focuses on the evaluation processes of edu-
cational organizations as regulatory mechanisms of educational management. It is important to understand,
from the studies we have been developing on the theme, how the discursive constructions present in normative
documents and evaluation instruments contribute to the strong regulation towards the commodication of
education.
Keywords: Organizational evaluation. Speeches. Regulations. Educational market.
*
Doutora em Ciências da Educação pela Universidade de Aveiro (UA, Portugal) e pós-doutora em Administração
Educacional pela mesma universidade. É docente, com a categoria de Professor-Auxiliar, no Departamento de
Educação e Psicologia e investigadora do Centro de Investigação em Didática e Tecnologia na Formação de For-
madores (CIDTFF) da Universidade de Aveiro (UA, Portugal). ORCID https://orcid.org/0000-0003-4408-9716. E-mail:
dorafonseca@ua.pt
Recebido em 02/07/2019 – Aprovado em 01/10/2019
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i1.10574
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Dora Maria Ramos Fonseca
Resumen
Los documentos de orientación para la gestión educativa producidos por entidades supranacionales reejan
la adopción de un discurso de gestión centrado en la comparabilidad y la competitividad, y también reejan el
supuesto de la educación como un instrumento al servicio del mundo económico. Existe una propagación de
ideas neoliberales en el campo educativo que se traduce en la expansión del mercado educativo o ideas cuasi-
mercado, introduciendo en la esfera educativa un cambio discursivo que se traduce en una cierta desviación del
discurso democratizador y un enfoque del discurso gestacional. Este artículo se centra en los procesos de eva-
luación de las organizaciones educativas como mecanismos reguladores de la gestión educativa. Es importante
comprender, a partir de los estudios que hemos estado desarrollando sobre el tema, cómo las construcciones
discursivas se presentan en documentos normativos e instrumentos de evaluación contribuir a la fuerte regula-
ción hacia la mercantilización de la educación
Palabras-clave: Evaluación organizacional. Discursos. Regulaciones. Mercado educativo.
Introdução
O processo da globalização, enquanto fenómeno homogeneizante, tem vindo a
marcar, nestes últimos tempos, o campo das políticas educacionais nos diferentes
países do mundo e, também, em Portugal. As políticas educativas nacionais es-
tão, assim, dependentes das “produções” e decisões de entidades supranacionais
que, hoje, influenciam, claramente, os processos de gestão educativa interna. Os
múltiplos instrumentos/documentos produzidos por entidades transnacionais e as
respetivas recomendações determinam a agenda global da educação. Os processos
e instrumentos de avaliação dominantes no panorama educacional são exemplo de
mecanismos que induzem a competição e “alimentam” lógicas de ação de natureza
economicista – o designado “comparativismo globalizador” caraterizado pelo papel
central de especialistas que se dedicam e hipervalorizam os processos de avaliação
comparativa com a tónica em processos/registos de natureza quantitativa.
Contudo, esta tendência não nos parece que contribua, francamente, para o co-
nhecimento e melhoria dos processos educacionais nem para estudar os diferentes
processos educativos (na sua complexidade e especificidades) no sentido de operar
transformações ou melhorias de forma contextualizada. Como têm vindo a mostrar
várias vozes da investigação em educação, os estudos de avaliação têm servido,
especialmente, para legitimar determinadas políticas educativas reforçando uma
“agenda globalmente estruturada” para a educação numa perspetiva económica da
educação e não numa lógica emancipatória e de natureza sociocomunitária. A ob-
sessão pela comparação, pelos resultados comprováveis, pela eficácia e eficiência,
pela excelência e pela performatividade é um problema atual na educação pois, em
prol do mito da objetividade e do rigor, são feitas leituras globais, muitas vezes de
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A avaliação das organizações educativas e a regulação pelo discurso gestionário
forma fragmentada e descontextualizada. Reforçamos, ainda, a ideia de que os es-
tudos de avaliação em larga escala têm vindo a contribuir para o desenvolvimento
de processos hegemónicos e homogeneizantes conduzindo a que em cada país se
implementem medidas “avulsas” e, muitas vezes, incongruentes entre si e des-
contextualizadas. Tal como entendem Sudbrack e Fonseca (2019), a avaliação em
larga escala, revela uma forte característica estandardizada e traduz uma matriz
económica ao gosto mercadológico.
Este artigo tem como centro de análise os processos de avaliação das organi-
zações educativas enquanto mecanismos reguladores da gestão educacional numa
perspetiva gerencialista. Importa perceber, a partir dos estudos que temos vindo
a desenvolver sobre a temática, de como as construções discursivas presentes nos
instrumentos de avaliação contribuem para a forte regulação no sentido da mer-
cantilização da educação. É pois central, no nosso trabalho: perceber como é que a
avaliação se constitui como um instrumento regulatório e, de certa forma, indutor
de discursos, no campo da gestão, de natureza gestionária sob a esfera da mercan-
tilização educacional. Para isso, invocamos um estudo recente, e já apresentado de
forma estendida em publicação anterior
1
, onde destacamos a regulação educacional
através do discurso refletindo de como os atores se apropriam e/ou transformam as
orientações presentes no discurso político-normativo.
Regulação educacional e reconguração do papel do Estado
A regulação educativa sob o signo da modernização é, especialmente, reforça-
da pela integração de Portugal na Comunidade Económica Europeia, aspeto que
acabara por desencadear uma crescente influência de organizações interna cionais,
com particular destaque para a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Económico (OCDE). A partir deste marco há uma intensificação de processos re-
gulatórios sobre a educação e que, crescentemente, se tem vindo a revelar a uma
escala transnacional. Para que fosse possível modernizar a educação passou a ser
dada grande centralidade aos processos de avaliação com reforço pelos processos de
mensuração, comparação numa lógica mais competitiva.
Os processos de avaliação, quer aqueles considerados de larga escala, quer
aqueles que se desenvolvem a nível meso e/ou micro, são os principais mecanismos
de regulação da educação. Como proposto em outros trabalhos (CASTRO, 2011;
CASTRO, 2015), entendemos que as políticas de educação refletem o cruzamento
de várias pressões que emergem de centros de decisão transnacional. O entendi-
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mento do que se entende por regulação requer a revisão do conceito, em particular
aquele tratado no âmbito das políticas educativas e administração educacional
(NETO-MENDES, 2004; BARROSO, 2006; LIMA, 2006; AFONSO, 2006; PINHAL,
2006; AZEVEDO, 2008). Segundo BARROSO (2006, p. 11-12), falar de regulação
é entender duas dimensões da problemática, ou seja, “descrever dois tipos de fe-
nómenos diferenciados, mas interdependentes. Os modos como são produzidas e
aplicadas as regras que orientam a ação dos atores e os modos como esses mesmos
atores se apropriam delas e as transformam”.
São vários os organismos que contribuem formal ou informalmente para a
regulação (transnacional) da educação nos diferentes países (AZEVEDO, 2000;
SEIXAS, 2001; TEODORO, 2001; NETO-MENDES, 2004; DIAS, 2004; BARROSO,
2006, NÓVOA, 2009; CASTRO, 2011). Considerando os vários estudos realizados,
instituições como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Or-
ganização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), a Organi-
zação das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), a
União Europeia e o Conselho da Europa, entre outras, têm marcado a direção das
políticas educativas nos diferentes países.
Na esteira de Teodoro (2001), dizemos que o gerencialismo global faz deslo-
car, progressivamente, o poder dos vários Estados-Nação para organizações su-
pranacionais, as quais, aos poucos, assumem o controlo das agendas políticas em
educação. Tal como entende Pacheco (2011), as questões do currículo ilustram bem
a homogeneização, nos diversos países e em diferentes níveis, das estruturas e
percursos curriculares. A seleção e organização de conteúdos e áreas curricula-
res, a valorização de determinadas áreas curriculares em detrimento de outras,
as formas de avaliação de escolas e alunos e as formas de regulação e controlo
externo como é o caso dos vários mecanismos de avaliação em larga escala revelam
a tendência para processos uniformizantes e, inclusive, hegemónicos (FONSECA;
COSTA, 2018).
O discurso da modernização, no campo da educação, tem vindo a ser asso-
ciado, nestes últimos tempos e em vários países, ao discurso da descentralização
da educação e da autonomia pela “via da contratualização e da privatização da
escola pública focada na satisfação do cliente” e, ainda, através da valorização da
“cultura de gestão da qualidade e de uma gestão racionalizadora com prestação de
contas à comunidade, em uma lógica de eficácia e eficiência” (FONSECA; COSTA,
2018, p. 214). A obsessão da avaliação na sua faceta quantitivista domina o pano-
rama das organizações em geral e, também, das organizações educacionais que têm
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A avaliação das organizações educativas e a regulação pelo discurso gestionário
vindo a ser analisadas com a lente dominante: a comparabilidade. Como aponta
Nóvoa (2009, p. 29), temos assistido a uma “série de classificações internacionais
que não se limitaram a descrever uma situação, mas que constituíram categorias
de pensamento, que definiram modalidades de ação”. Tal como referem (FONSE-
CA; COSTA, 2018, p. 216), são vários os estudos que “revelam que se regista uma
propagação do ideário neoliberal no campo educativo traduzido na expansão das
ideias de mercado ou quase-mercado educacional”. Os documentos orientadores
produzidos pelas entidades supranacionais espelham a adoção de um discurso de
natureza gestionária com a tónica na comparabilidade e competitividade e refle-
tem a assunção da educação como instrumento ao serviço do mundo económico.
A gestão educacional, em Portugal, tem sido marcada pela centralização, pela
burocratização e hierarquização. Apesar de nos últimos tempos as regulações do
espaço supranacional exercerem grande impacto nas políticas e práticas educacio-
nais nacionais, o Estado português nunca abandonou o seu papel determinante na
gestão dos processos educacionais. Não obstante defender em termos discursivos
a descentralização e a autonomia das escolas e dos profissionais da educação con-
tinua a desenvolver ações que inibem, efetivamente, processos emancipatórios. O
poder central (Ministério de Educação) continua a exercer uma regulação do tipo
verticalista direta ou indiretamente através da forma como impõe a estrutura e
gestão organizacional, do tipo de dispositivos de controlo que coloca em ação e,
ainda, através do discurso politico-legal.
Temos vindo a identificar várias formas de controlo externo das escolas no do-
mínio da avaliação, dentre as quais destacamos as provas externas e os exames dos
alunos nos diferentes níveis educativos e a avaliação externa das escolas. O controlo
dos resultados educativos e da atuação dos profissionais da educação têm sido focos
importantes no processo de monitorização que o Estado tem assumido. O Estado
não abdicando do seu papel de figura central na gestão do sistema educativo alia-se
à força mercantil, revelando alguma subordinação às regras do mundo económico
(CASTRO, 2011). Relembramos Estevão (2008, p. 506) quando refere que o “Estado
acaba por entrar “na lógica dominante, a mercantil, “desmonumentalizando-se” e
deixando o seu antigo poder imperial, mas assegurando a difusão das ideias da efi-
ciência e eficácia, dando assim o seu contributo para o funcionamento do mercado”,
reforçando a sua faceta de Estado-avaliador. Neto-Mendes (2004, p. 26) entende
que os profissionais de educação estão sob duas lógicas de certa forma antagónicas
e que como o autor sublinha trata-se de “uma lógica de regulação estatal e uma
lógica de regulação de mercado”. O discurso politico – normativo (no seu conteúdo e
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formas de disseminação) tem vindo a contribuir para a implementação dessas duas
lógicas distintas. Esta posição do Estado que tenta manter as lógicas burocrático-
-racionais e defender os princípios de liberdade subjugados ao mercado contribuem
para um discurso ambíguo e contraditório na sua essência. Esta ambiguidade é
percecionada quando comparamos as intenções políticas (presentes nos preâmbu-
los dos normativos) com as ações concretas propostas para atuação.
Registamos, ainda, incongruências discursivas quando comparamos normati-
vos ou outros documentos produzidos pelas diferentes estruturas do Ministério da
Educação, ou mesmo quando estudamos a coerência interna de cada documento
(FONSECA; COSTA, 2018). A ressignificação de termos como “autonomia” e “des-
centralização” bem como “participação” e “colaboração” são exemplos importantes
nas construções discursivas do poder político. A este respeito Fontoura (2008, p.
20-21) entende que as medidas utilizadas “despojam a «descentralização e a au-
tonomia de sentido político democrático-participativo” revelando-se, sobretudo, as
“suas conceções instrumentais de tipo gerencial, técnico-implementativo ou des-
regulador”. Existe, como entende Lima (1999) uma interseção entre os ideais da
democracia e as lógicas gerencialistas. Na perspetiva de Seixas (2001, p. 220), o
discurso do Estado-avaliador, “associado aos discursos da modernidade tecnocráti-
ca, é essencialmente um discurso de mercado”.
Ora, a mudança de papel do Estado e as pressões que recebe do espaço supra-
nacional leva ao que consideramos uma mudança discursiva e que se evidencia nas
produções legislativas. A preocupação exacerbada com a avaliação pela parte do
poder central, revelada em muitos dos normativos, anuncia que o Estado passou
a atuar, efetivamente, como avaliador e como monitorizador do sistema educativo
(Fonseca; Costa, 2018).
Discursos e instrumentos de avaliação
Embora a terminologia de natureza democrática não tenha sido completamen-
te abandonada nos normativos legais que têm sido produzidos pelo poder central no
âmbito educacional, a faceta gestionária está cada vez mais reforçada. São vários os
investigadores (SEIXAS, 2001; SÁ, 2002; BARROSO; VISEU, 2003; LIMA, 2011)
que nos alertam para essa forte orientação nas políticas educativas em Portugal,
o que, aliás, tem acontecido também em outros países (FONSECA; COSTA, 2018).
As alterações registadas nas produções discursivas presentes nos documentos nor-
mativos e legais remetem para novas categorias de pensamento e que se mostram
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A avaliação das organizações educativas e a regulação pelo discurso gestionário
em sintonia com as tendências globais e que, em síntese, consistem no deslocar de
um discurso marcadamente de natureza democrática para um gerencialista.
A necessidade de gerir a educação com base nos princípios da qualidade e de
uma forma mais racionalizadora e rigorosa são aspetos hipervalorizados nos tem-
pos atuais. Dias (2004, p. 255) explica que temos assistido ao privilegiar de novas
posições como “a abertura às regras do mercado, a redefinição das competências
entre a administração central e as escolas, a diluição entre as fronteiras dos setores
público e privado, a diversificação das formas de prestação de contas e de controlo”.
Também Seixas (2001) já explorava a questão do reforço da ideologia tecnocrática
como base das ideologias modernas da maioria dos países que se consideravam
desenvolvidos, referindo que esta tendência acentua a importância da educação
para a competitividade económica nacional, num mercado cada vez mais global
(SEIXAS, 2001) e, ainda, que essa situação coloca a política educativa subalterni-
zada às políticas económicas. Sabemos que o discurso que justifica a realização de
processos de avaliação organizacional se centra nos objetivos de melhoria de fun-
cionamento das escolas e na prestação de contas à comunidade. Nesta perspetiva,
a avaliação assume-se como um instrumento ao serviço de processos de melhoria
de qualidade organizacional promovendo processos de competição entre as escolas
com a intenção de favorecer lógicas de desenvolvimento de eficácia e eficiência
educativas.
Neste artigo, em um primeiro momento, procuramos assinalar o fato de as
regulações transnacionais influenciarem as políticas educativas dos vários países
revelando o abandono progressivo de um discurso democrático, que era dominante
no plano das orientações normativo-legais, avançando para novas formas discur-
sivas que combinam discursos de natureza democrática e gerencialista, com o pre-
domínio deste em relação ao anterior (LIMA, 1994; LIMA, 2011; CASTRO, 2016;
CASTRO, 2017). Registámos depois, que o discurso politico-normativo sobre as
questões de avaliação organizacional, em Portugal, assume a mesma feição tecno-
crática revelando a forte regulação que as entidades supranacionais exercem sobre
as agendas educativas nacionais. Em seguida, com base na análise dos documentos
de avaliação das escolas, exploramos a ideia de que as construções discursivas pro-
duzidas pelos atores (profissionais de educação), em seus contextos, revelam essa
mesma tendência, podendo ser entendidas como resultado das pressões/regulações
externas a que os indivíduos e as organizações se encontram sujeitos. A análise que
efetuámos a relatórios de avaliação externa de escolas descobre a mesma tendência
gestionária com uma visível reprodução discursiva do discurso político-normativo e
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das recomendações veiculadas nos documentos produzidos a nível transnacional. A
análise dos relatórios de avaliação interna das escolas produzidos pelos profissio-
nais de educação procura mostrar que os processos de avaliação não se constituem
como efetivos mecanismos de emancipação e de desenvolvimento organizacional,
mas como reproduções dos múltiplos discursos político-legais produzidos externa-
mente à escola (FONSECA; COSTA, 2018). Este controle/poder, pela via do discur-
so, poderá constituir um inibidor do desenvolvimento de processos autonómicos
dos atores, em contexto local, alimentando, em simultâneo, a “manutenção” de um
discurso educacional marcado por tendências mercantilizadas de educação.
Tendo em conta os nossos estudos, a partir da análise discursiva sobre a cons-
trução de instrumentos de gestão educacional nomeadamente projetos de inter-
venção dos diretores, projetos educativos e cartas educativas, podemos assinalar
que o discurso político-normativo influencia a construção discursiva dos atores em
âmbito local (COSTA, 2007; CASTRO, 2011; CASTRO, FIGUEIREDO; DIOGO,
2015). Como assinalam Fonseca e Costa (2018), a relação do poder central e o poder
local “continua a ser de natureza hierárquica e verticalista, encontrando-se regula-
dos os processos e os resultados pela via do discurso político-normativo difundido
pelos diferentes canais de comunicação entre o Ministério da Educação e as esco-
las” (p. 219).
A avaliação das escolas: o discurso dominante
O conceito de avaliação organizacional não pode ser explorado de forma li-
near pois a sua exploração dependerá do posicionamento teórico a partir do qual
nos colocamos. Para Moreira (2005, p. b18), as diferentes dimensões da avaliação
educacional perspetivam-se “num quadro político-pedagógico e organizacional de
avaliação”, conduzindo a fins distintos conforme os próprios interesses dos atores e
das organizações. É, portanto, em um quadro político específico que determinadas
ações avaliativas têm sido levadas a cabo. Seguindo, ainda, na esteira de Moreira
(2005), consideramos que a avaliação não se constitui como um ato neutro pois tal
como entende o autor a “avaliação coloca-se como uma questão eminentemente
política, como uma amálgama de valores políticos, técnico-científicos, atitudinais,
éticos e pedagógicos” (MOREIRA, 2005, P.19)
Tendo por base o estudo sobre os mecanismos de avaliação externa, Afonso
(2001) alerta para a necessidade de perceber que:
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A avaliação das organizações educativas e a regulação pelo discurso gestionário
[…] a adopção de certos dispositivos de avaliação externa (sobretudo os que são exclusiva-
mente baseados em indicadores quantificáveis e mensuráveis) não contribuirá para a tão
propagandeada melhoria da qualidade do ensino, representando antes um retrocesso polí-
tico e educacional injustificável face sobretudo, aos progressos científicos e epistemológicos
que vinham conduzindo a avaliação para perspectivas anti-positivistas mais complexas e
plurais (AFONSO, 2001, p. 24).
Nesta linha, reforçando a tendência para a hipervalorização dos resultados
educacionais com referência a padrões instituídos, também Formosinho e Macha-
do (2007, p. 101) afirmam que a “garantia de uma excelência máxima” se apoia
no “controlo direto e tanto possível objetivo dos resultados” e que “corresponde à
verificação industrial do produto, no que diz respeito à quantidade e qualidade”.
Estas lógicas de verificação e controle de resultados levam à introdução, como bem
entende Barroso (2005) de “processos «racionais» de gestão, com a formulação ex-
plícita de metas, elaboração de planos estratégicos para identificar prioridades de
desenvolvimento, avaliação de resultados, «controlo de qualidade»” (BARROSO,
2005, p. 97). Assim, estamos perante um quadro avaliativo de controlo e de monito-
rização da ação, tendo como referentes padrões pré-determinados e que constituem
aspetos fundamentais para conferir a excelência da escola. Fonseca e Costa (2018)
lembram que a “qualidade organizacional é associada à verificação da eficácia e da
eficiência da organização traduzida em resultados que se «medem» através de indi-
cadores e evidências” (P.NNN). Por sua vez, Rufino (2007, p. 33) entende que a “ma-
triz de indicadores de qualidade de um instrumento de avaliação exprime valores
subjacentes a objetivos políticos, reveladores do sentido pretendido da modelação
do objeto onde são aplicados”. Ainda sobre os processos de avaliação das escolas.
Simões (2007, p. 399) alega que existem novos referenciais associados a conceitos
como eficácia, eficiência e qualidade e, tal como entende Lima 2011), são termos
que estão “naturalizados e associados a dimensões positivas” (LIMA, 2011, p. 39).
São vários os conceitos-chave que são veiculados nas orientações de vários organis-
mos e em diversos níveis de atuação. Pacheco (2011, p.17) entende que os efeitos
económicos e políticos estão bem presentes através de “conceitos-chave, tais como
«qualidade», «prestação de contas», «aprendizagem ao longo da vida», «economia do
conhecimento», «competência», «excelência»”. Com base nestes termos dominantes
nos discursos políticos e que se transformam em lentes de análise organizacional
e, também, em princípios de orientação e atuação na avaliação organizacional, as
escolas confrontam-se com a necessidade de produzir instrumentos, de considerar
indicadores e taxas, de determinar metas e de revelar evidências para desenvolve-
rem processos de monitorização do(s) processo(s) educativo(s). Como temos vindo
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a demonstrar nos nossos trabalhos, os processos avaliativos externos (hipervalo-
rizados) acabam por determinar como serão desenvolvidas as formas de avaliação
interna das organizações educativas.
Nos contextos educativos os próprios atores ao reproduzirem o discurso domi-
nante e ao analisarem os seus processos internos através das lentes impostas pelos
mecanismos e instrumentos de avaliação externa acabam por intensificar uma cer-
ta subordinação a centros instituídos e, ao mesmo tempo, alimentar as lógicas de
mercado educacional que se têm afirmado (FONSECA; COSTA, 2018).
Os documentos de avaliação das escolas em investigação exploratória: alguns
dados
Apresentamos neste ponto, de forma sucinta, algumas conclusões a partir da
análise das construções discursivas presentes em diferentes documentos de avalia-
ção organizacional e a distintos níveis de gestão. O estudo a que nos reportamos diz
respeito ao contexto educacional português e, em um primeiro momento, integra a
análise do discurso político-normativo presente na lei que orienta os processos de
avaliação das escolas em Portugal (Lei n.º 31/2002, de 20 de dezembro), bem como
em outros documentos produzidos pela Inspeção da Educação, nomeadamente o
Quadro de referência para a avaliação externa das escolas. Posteriormente, pro-
cedemos à análise de dez relatórios de avaliação externa de escolas produzidos
por equipas da responsabilidade da Inspeção da Educação e outros dez relatórios
de avaliação interna de escolas desenvolvidos pelas equipas de avaliação destas.
Todos os relatórios de avaliação foram recolhidos na internet aleatoriamente. Neste
artigo apenas passamos a apresentar textos globais sobre as diferentes análises
efetuadas com o objetivo de revelar a regulação, através do discurso, existente nos
processos de avaliação das organizações educativas. Os textos, aqui apresentados,
foram retirados do nosso trabalho de investigação e apresentados em publicação
anterior referente ao estudo desenvolvido (FONSECA; COSTA, 2018).
A análise feita ao normativo legal e ao documento orientador da Inspeção in-
cidiu nas questões estruturais e de conteúdo e na contagem de termos/conceitos
presentes que consideramos pertencerem a uma gramática gerencialista ou a uma
gramática democrática (socorremo-nos, nesse caso, ao quadro teórico que desenvol-
vemos anteriormente sobre o tema (CASTRO, 2011). Posteriormente, analisamos
os relatórios de avaliação das escolas, tendo em conta as seguintes categorias: i) a
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A avaliação das organizações educativas e a regulação pelo discurso gestionário
estrutura; ii) orientações gerais dos processos, iii) domínios e campos de análise;
iv) referentes e/ou indicadores explícitos; v) enquadramento legal do relatório; vi)
construção e aprovação do documento; vii) vinculações a outros documentos. Nesse
caso dos relatórios, também procedemos à contagem dos termos/conceitos aí pre-
sentes na sua ligação à gramática gerencialista ou à democrática.
A Lei da avaliação da educação e do ensino não superior
Na Lei n.º 31/2002, a avaliação aparece como um instrumento importante de
definição de políticas educativas. Conseguimos inferir o seu efeito de forte regu-
lação sobre os processos avaliativos das organizações educativas atendendo a que
revela uma lógica de imposição do centro para as periferias. Os objetivos expressos
no documento legal remetem-nos para a valorização das funções de garantia da
qualidade (associada à eficácia e à eficiência) e para a prestação de contas como
forma de garantir a credibilidade, bem como para a sua importante função na re-
colha de informação que permita desenvolver estudos comparados internacionais.
Trata-se portanto de um normativo que assume um forte caráter prescritivo, sendo
ainda notória a sua dimensão técnico-reguladora de feição gestionária (FONSECA;
COSTA, 2018, p. 229).
Documentos orientadores da avaliação produzidos pela Inspeção
O Quadro de referência para a avaliação externa das escolas define os objetivos, os domí-
nios, os campos de análise e referentes, a metodologia de intervenção da equipa de ava-
liação externa e os descritores dos níveis de classificação utilizados (escala de avaliação).
Integra ainda as indicações para a construção do documento de apresentação da escola a
fazer pela respetiva Direção, aquando da visita da equipa de avaliação externa. Salien-
tamos, ainda, que os domínios campos de análise e referentes encontram-se em sintonia
com o expresso na Lei n.º 31/2002. A apresentação da metodologia de trabalho e da escala
de avaliação, que a equipa de avaliação pretende utilizar, favorece o desenvolvimento de
processos hegemónicos da avaliação externa sobre a interna, na medida em que é imposta
uma agenda de trabalho e de discurso com caminhos e referenciais bem determinados. As
imposições apresentadas nos documentos relativamente aos processos a desenvolver no
âmbito avaliativo, bem como a centralidade que a escala de avaliação assume nos documen-
tos faz com que se percecionem regulações fortes das equipas de avaliação externa sobre as
de avaliação interna e docentes em geral (FONSECA; COSTA, 2018, p. 229).
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Relatórios de avaliação externa das escolas
Numa nota conclusiva sobre esta matéria podemos afirmar que os relatórios
de avaliação externa das escolas, tendo em conta as nossas categorias, revelam: i)
estrutura – ela é a mesma em todos os relatórios observados e o número de pági-
nas varia entre doze e catorze; ii) orientação geral dos processos – é feita em todos
os relatórios uma apresentação clara dos processos que vão ser desenvolvidos no
relatório, registando-se uma homogeneização discursiva; iii) domínios e campos
de análise – são exatamente os mesmos em todos os relatórios; iv) referentes e/
ou indicadores explícitos – os pontos destacados para análise e avaliação são os
mesmos em todos os relatórios, digamos que a “lente” de observação está focada
em aspetos tidos e naturalizados como certos e positivos ou seja “boas práticas”; v)
enquadramento legal do relatório – em todos os relatórios é visível a importância
da legislação como forma de legitimação da ação avaliativa externa; vi) construção
e aprovação do relatório – o documento tem a mesma estrutura e conteúdo seme-
lhante em todos os relatórios e foi aprovado pela tutela central; vii) vinculações
a outros documentos – em todos os relatórios é visível a vinculação expressa aos
normativos legais definidos centralmente (FONSECA; COSTA, 2018, p. 231).
Relatórios de avaliação interna das escolas
Em jeito conclusivo sobre os relatórios de avaliação interna das escolas e ten-
do em conta as nossas categorias podemos referir: i) estrutura – é diferente em
todos os relatórios, embora possamos indicar que, nos três em que foi utilizada a
metodologia CAF, as estruturas sejam próximas; são documentos muito extensos
com uma média de 60 páginas; integram muitos gráficos e quadros de dados; ii)
orientação geral dos processos – é feita em todos os relatórios uma apresentação dos
processos que vão ser desenvolvidos no relatório, com destaque para a metodologia,
para as fases do processo avaliativo, para os domínios de análise e indicadores ou
descritores e para as estratégias de ação para a melhoria com base no levantamen-
to de pontos fracos e constrangimentos; iii) domínios e campos de análise – estão
muito próximos daqueles que estão presentes nos relatórios de avaliação externa
desenvolvidos pelas equipas da Inspeção (em alguns casos são exatamente os mes-
mos); iv) referentes e/ou indicadores explícitos – os pontos destacados para análise
e avaliação são os mesmos em todos os relatórios, digamos que a “lente” de obser-
vação está focada em aspetos tidos e naturalizados como certos e positivos ou seja
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A avaliação das organizações educativas e a regulação pelo discurso gestionário
“boas práticas”; também aqui é a medição e a comparação que imperam em todos
os relatórios; v) enquadramento legal do relatório – em quase todos os relatórios se
invoca a legislação e é apresentada, tal como nos relatórios de avaliação externa,
como uma resposta às demandas legais; vi) construção e aprovação do documento
– é feita referência aos participantes, sendo, na maioria dos casos, equipas que in-
tegram vários elementos da comunidade educativa, incluindo muitas vezes alunos
e encarregados de educação; alguns relatórios (cerca de metade) indicam a apro-
vação nos órgãos de gestão da escola; vii) vinculações a outros documentos – em
todos os relatórios é visível a vinculação aos normativos legais e, em alguns, é feita
referência aos relatórios de avaliação externa (FONSECA; COSTA, 2018, p. 234).
Considerações nais
Este artigo procurou revelar que o discurso veiculado pelas entidades supra-
nacionais e pelos Estados via normativos pode induzir, de certa forma, a manuten-
ção e/ou reforço da faceta gestionária e mercantilizada da educação. Socorremo-nos
de um estudo por nós realizado recentemente sobre as construções discursivas pre-
sentes nos documentos orientadores dos processos de avaliação das escolas e sobre
as construções discursivas presentes em documentos produzidos, pelos próprios
atores, nos contextos educativos. Percebemos que o discurso politico-normativo re-
ferente aos processos de avaliação das escolas assumem a perspetiva gerencialista,
em consonância com as diretrizes e recomendações supranacionais. Por sua vez, os
discursos desenvolvidos pelos atores nas organizações educativas, no registo escri-
to, seguem de perto aqueles que são veiculados nos relatórios de avaliação externa
das escolas (da responsabilidade da Inspeção da Educação) e os que são difundidos
nos normativos legais.
Tendo em conta a análise efetuada de natureza exploratória, entendemos que
os próprios atores acabam por facilitar ou mesmo intensificar uma certa subordi-
nação a centros instituídos e, ao mesmo tempo, alimentam as lógicas de mercado
educacional que se afirma. Assim as equipas de avaliação externa reproduzem e
executam um trabalho subordinado ao poder central e os docentes, nas escolas, re-
produzem, ao nível discursivo, essas mesmas lógicas. Nesse sentido, os referenciais
que suportam essa realidade são criados de cima para baixo por entidades externas
às organizações educativas e que ditam as regras do jogo avaliativo, impondo de
forma muitas vezes oculta – ou menos explicita – os caminhos que deverão ser
seguidos, no próprio processo avaliativo ou nas metas a atingir.
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Dora Maria Ramos Fonseca
Nota
1
O estudo foi publicado, em 2018, na Movimento -Revista de Educação, n. 8, Niterói.
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Dora Maria Ramos Fonseca
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Estado, mercado e formas de privatização: a inuência dos think tanks na política educacional brasileira
Estado, mercado e formas de privatização: a inuência dos think tanks na política
educacional brasileira
State, market and forms of privatization: an inuence of think tanks on
brazilian educational policy
Estado, mercado y formas de privatización: la inuencia de los think tanks en la política
educacional brasileña
Valdelaine da Rosa Mendes
*
Vera Maria Vidal Peroni
**
Resumo
Há, especialmente no século XXI, uma proliferação dos think tanks que operam como produtores e inuenciado-
res de ideias acerca do mercado, que defendem a redução do intervencionismo estatal nas tomadas de decisões.
Este estudo tem como objetivo discutir a inuência que têm exercido na organização das políticas educacionais
de forma a alargar e intensicar a penetração dos interesses do mercado na área educacional. Para alcançar este
propósito, é realizada uma discussão sobre as formas de privatização que têm levado a lógica do mercado para o
interior das políticas educacionais. É traçado um panorama da distribuição dessas organizações no mundo, com
as características de seus nanciadores e apoiadores. Por m, são apresentados os princípios que orientam as
ações de três think tanks: um estadunidense e dois brasileiros, com foco nas questões educacionais. Este estudo
demonstrou que os interesses do capital, representados por organizações nanciadas por grandes empresas
(com capacidade de penetração na imprensa, nos governos, nas universidades, nas mídias sociais, na indústria
cultural), pretendem claramente determinar ao Estado uma perspectiva privada na denição e na concepção
das políticas educacionais.
Palavras-chave: Política educacional. Think tank. Privatização. Mercado.
*
Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP, Brasil), com estágio pós-doutoral em Educação pela Uni-
versidade de São Paulo. É professora associada da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas (UFPel,
Brasil). ORCID http://orcid.org/0000-0003-4376-1080. Pós-doutorandano Programa de Pós-graduação em Educação
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: valdelainemendes@outlook.com
**
Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC SP, Brasil), com estágio pós-doutoral
pela Universidade do Minho (Uminho, Portugal). Professora convidada do Programa de Pós-graduação em Educação
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs, Brasil) e professora visitante na Universidade Federal de Pelotas
(UFPel, Brasil). ORCID http://orcid.org/0000-0001-6543-8431. E-mail: veraperoni@gmail.com
Recebido em 13/04/2019 – Aprovado em 29/08/2019
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i1.10575
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Valdelaine da Rosa Mendes
Abstract
There is, especially in the 21st century, a proliferation of think tanks that operate as producers and inuencers of
market ideas, advocating the reduction of state interventionism in decision making. This study aims to discuss
the inuence they have exerted on educational policies in order to broaden and intensify the penetration of ma-
rket interests in the educational area. To achieve this purpose, a discussion is held on the forms of privatization
that have brought the logic of the market into educational policies. An overview is given of the distribution of
organizations in the world, with characteristics of their funders and supporters. Finally, the principles that guide
the actions of two think tanks are presented, one American and two Brazilian, which focus on educational issues.
This study has shown that the interests of capital, represented by organizations funded by large corporations
(which are able to gain entrance into the press, governments, universities, social media and the cultural industry)
are intended to clearly determine the State a private perspective in the denition and design of educational
policies.
Keywords: Educational policy. Think tank. Privatization. Market.
Resumen
Existe, especialmente en el siglo XXI, una proliferación de think tanks que operan como productores e inuen-
ciadores de ideas acerca del mercado, que deenden la reducción del intervencionismo estatal en la tomada
de decisiones. Este estudio tiene como objetivo discutir la inuencia que han ejercido en la organización de las
políticas educacionales de forma a estrechar e intensicar la penetración de los intereses del mercado en el área
educacional. Para alcanzar este propósito realizamos una discusión acerca de las formas de privatización que
han permeado la lógica del mercado en el interior de las políticas educacionales; se ha trazado un panorama de
la distribución de esas organizaciones en el mundo, con las características de sus nanciadores y apoyadores.
Por n, son presentados los principios que orientan las acciones de dos think tanks: un estadunidense y dos
brasileños, con foco en las cuestiones educacionales. Este estudio ha demostrado que los intereses del capi-
tal, representados por organizaciones nanciadas por grandes empresas (con capacidad de penetración en la
prensa, en los gobiernos, en las universidades, en los medios de comunicación social y en la industria cultural),
pretenden claramente determinar al Estado una perspectiva privada en la denición y concepción de las políti-
cas educacionales.
Palabras-clave: Política educacional. Think tank. Privatización. Mercado.
Introdução
Os think tanks são organizações que existem desde o século XIX e atuam como
formuladoras de ideias e opiniões, produtoras de conhecimento e influenciadoras
de políticas públicas nas mais diversas áreas de atuação. Essas organizações estão
presentes em diferentes partes do planeta e operam muito próximas das instâncias
governamentais. Trata-se de um tipo de atuação capaz de dar o direcionamento
para os fundamentos das ações tanto no legislativo quanto no executivo.
Na segunda década do século XXI, há um crescimento significativo do número
de think tanks no mundo e, mais especificamente na América Latina, em áreas
como saúde, defesa, meio ambiente, educação, política externa, libertarianismo,
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Estado, mercado e formas de privatização: a inuência dos think tanks na política educacional brasileira
entre outras. Essas organizações agem de forma articulada com outros grupos de
interesse e, mesmo com registro em uma nação, criam ramificações em diferentes
países, para exercer influência na formação de políticas e de opinião pública.
O Brasil assiste, em especial na segunda década do século XXI, o crescimento
dos think tanks pró-mercado, que podem operar eminentemente com as questões
econômicas, ou ter uma atuação ampliada para outras esferas da vida social como
meio ambiente, saúde, educação, violência, segurança pública, entre outras, atre-
ladas aos valores gerencialistas do mercado.
Ainda são poucos os estudos no país que se debruçam sobre a interpretação
do papel que essas organizações têm na educação brasileira. Observamos, tanto
dentro quanto fora do meio acadêmico, a urgência de aprofundamento sobre a am-
plitude, o tamanho e a capilaridade dessas organizações.
Este estudo tem como objetivo discutir a influência que os think tanks têm
exercido na organização das políticas educacionais, de forma a alargar e intensifi-
car a penetração dos interesses do mercado na área educacional. Neste artigo, em
um primeiro momento, é realizada uma discussão sobre as formas de privatiza-
ção que têm levado a lógica do mercado para o interior das políticas educacionais,
como reflexo de uma disputa por um projeto societário. Para entender o papel que
desempenham os think tanks, neste momento de desenvolvimento do capitalismo,
e sua influência nas políticas externas e internas dos países, logo em seguida, é
traçado um panorama da distribuição dessas organizações no mundo, com as ca-
racterísticas de seus financiadores e apoiadores. Depois de construída essa funda-
mentação, são apresentados os princípios que orientam as ações de think tanks, um
estadunidense e dois brasileiros, com foco nas questões educacionais.
Estado, mercado e formas de privatização
Este texto tem como base pesquisas acerca da relação entre o público e o pri-
vado na educação, entendida como parte de um processo de correlação de forças
que ocorre na sociedade. Partindo do conceito de políticas sociais como parte da
materialização do Estado, em um período particular do capitalismo, buscamos en-
tender como se efetiva a relação entre o público e o privado na educação, por meio
de sujeitos que defendem projetos societários distintos. Assim, o foco deste artigo é
mostrar como atuam dois sujeitos, via think tanks, vinculados ao mercado e qual o
conteúdo de suas propostas para a educação.
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Valdelaine da Rosa Mendes
Os processos de privatização do público podem ocorrer via execução e direção,
em que o privado opera diretamente na oferta da educação, ou quando a atuação do
privado ocorre na direção das políticas públicas ou das escolas, sendo que a proprie-
dade permanece pública (PERONI, 2016). Nesse sentido, reiteramos que na nossa
concepção, a relação público-privada não está vinculada apenas à propriedade, mas
à projetos societários em disputa em uma perspectiva de classe. Classe aqui enten-
dida como “uma relação e não uma coisa” (THOMPSON, 1981, p. 11), sendo que
“[...] não é esta ou aquela parte da máquina, mas a maneira pela qual a máquina
trabalha” (THOMPSON, 2012, p. 169).
Assim, os processos de privatização do público, materializam-se principalmen-
te através da disputa pelo conteúdo da educação, assim como, pelo fundo público.
Rikowski (2017) ressalta que existem duas formas básicas de privatização: a pri-
vatização direta, que se refere à propriedade e trata da conversão da receita do
Estado em lucro privado; e a privatização da educação, que se refere a formas de
controle sobre a educação por parte das empresas. É importante distinguir a na-
tureza da privatização, pois pode trazer diferentes consequências para a educação.
A privatização na educação envolve o controle das escolas e ocorre quando
não há mudança de propriedade, mas o privado assume o conteúdo da educação
com pautas como o individualismo, a competição, a meritocracia. Envolve o que
Rikowski (2017) chama de capitalização da educação, que ocorre quando o privado
transforma a receita estatal em lucro:
[...] a privatização da educação não é realmente sobre educação: trata-se de se beneficiar da
receita do Estado e transformá-la em lucro. [...] A política de privatização educacional (ou
de qualquer outra forma) é a obtenção de lucros, que por sua vez se baseia na capitalização
de instituições e serviços educacionais; educação tornando-se capital. Trata-se do desenvol-
vimento capitalista na educação (2017, p. 401).
Esta pauta é parte do diagnóstico neoliberal, pactuado pela terceira via (atual
social- democracia), de que o Estado é o culpado pela crise e o mercado deve ser o
padrão de qualidade. Nessa perspectiva, a responsabilidade pela execução e dire-
ção das políticas sociais deve ser repassada para a sociedade civil com ou sem fins
lucrativos.
A terceira via, desloca das bases teóricas históricas da social-democracia, a
questão da igualdade social para a meritocracia, passando de uma proposta coleti-
vista para uma individualista vinculada ao mercado, sem evidenciar a profundida-
de dessa mudança e suas consequências para a efetivação dos direitos sociais (PE-
RONI, 2013). Para Giddens (2007, p. 253), “os social-democratas precisam revisar
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não apenas sua abordagem, mas também seu conceito de igualitarismo [...] não há
futuro para o igualitarismo a todo custo, que absorveu por tanto tempo os esquer-
distas”. Nesse sentido, a terceira via defende o empreendedorismo como elemento
estruturante da sociedade para o enfretamento dos problemas sociais.
O empreendedorismo civil é qualidade de uma sociedade civil modernizada. Ele é neces-
sário para que os grupos cívicos produzam estratégias criativas e enérgicas para ajudar
na lida com problemas sociais. O governo pode oferecer apoio financeiro ou proporcionar
outros recursos a tais iniciativas (GIDDENS, 2007, p. 26).
A terceira via defende que a social-democracia deve passar dos princípios de
direitos sociais universais para uma concepção individualista. O objetivo geral “de-
veria ser ajudar os cidadãos a abrir seu caminho através das mais importantes
revoluções do nosso tempo: globalização, transformações na vida pessoal e nosso
relacionamento com a natureza” (GIDDENS, 2001b, p. 74). Assim, cada um é res-
ponsável por, individualmente, abrir o seu caminho de modo que as transformações
aconteçam na esfera pessoal e não societária. Essa concepção exacerba o que sem-
pre foi um princípio do capitalismo, o individualismo.
Harvey (2008), ao tratar da neoliberalização, que é o balanço da teoria neoli-
beral na prática, destaca que o mercado regula o bem-estar humano e a competição
é o mecanismo regulador. Assim, o sucesso e o fracasso são considerados indivi-
duais, resultado das virtudes empreendedoras do indivíduo. Para essa teoria, as
classes inferiores pioraram por razões pessoais e culturais, na tarefa de aprimorar
o capital humano e, consequentemente, a dedicação à educação. Tudo pode ser
tratado como mercadoria. A mercadificação presume a existência de direitos de
propriedade sobre processos, coisas e relações sociais. É o que o autor chama de
“mercadificação de tudo”.
Para Harvey (2008), as questões das liberdades individuais, no contexto atual,
trouxeram perdas para um projeto societário baseado na coletividade, justiça social
e democracia:
[...] os valores ‘liberdade individual’ e ‘justiça social’ não são necessariamente compatíveis.
A busca da justiça social pressupõe solidariedades sociais e a propensão a submeter von-
tades, necessidades e desejos à causa de uma luta mais geral em favor de, por exemplo,
igualdade social ou justiça ambiental (HARVEY, 2008, p. 51).
Verificamos, assim, que o individualismo é uma posição comum ao neolibera-
lismo e à terceira via. De alguma forma, as duas teorias propõem o repasse para a
sociedade, em alguma medida, da direção e da execução das políticas sociais.
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Valdelaine da Rosa Mendes
Atualmente, além do privado vinculado ao mercado também vivenciamos o neo-
conservadorismo. Conforme Moll Neto (2010, p. 65), a “ideologia neoconservadora
resgatou e reconstruiu pressupostos de correntes conservadoras que os antecederam,
basicamente do velho conservadorismo e do libertarianismo”. Conforme o autor, os
intelectuais que construíram as bases ideológicas do neoconservadorismo resgataram
do tradicionalismo a ênfase moral que, a partir da década de 1960, serviu para atacar
o Estado de Bem-Estar Social e os movimentos sociais liberais; e do libertarianismo,
a ideia de que a sociedade era uma relação contratual entre indivíduos e não um or
-
ganismo que guarda interesses e objetivos coletivos. Para eles, “[...] nada justificava
projetos estatais que interferissem na vida das pessoas e limitassem as liberdades,
sobretudo a econômica” (MOLL NETO, 2010, p. 67). A partir da crise da década de
1970, inicia-se uma mobilização neoconservadora por meio da criação de think tanks
em que “os empresários da nova direita organizaram fundações para reunir capital
para apoiar e financiar universidades, pesquisas e centros de estudo (think tanks) a
fim de elaborar projetos políticos nacionais” (MOLL NETO, 2010, p. 69).
Destacamos, assim, que a retirada de direitos sociais e trabalhistas, com a
lógica de mercado na esfera pública, bem como o avanço do neoconservadorismo
não foi simplesmente aceito pela população, foi um longo trabalho de sujeitos in-
dividuais e coletivos, organizados ou não em redes nacionais e internacionais. A
seguir, traremos o papel dos think tanks nesse processo de convencimento.
Rocha (2015, p. 262), define think tanks: “[...] como instituições permanentes
de pesquisa e análise de políticas públicas que atuam a partir da sociedade civil,
procurando informar e influenciar tanto instâncias governamentais como a opinião
pública no que tange à adoção de determinadas políticas públicas”. Desde o início
da sua atuação, a pretensa excelência dos think tanks pró-mercado estava em per-
tencer à sociedade civil, no sentido de não serem públicos, de serem apolíticos e
isentos, partindo do ideário neoliberal de que a crise é do Estado, sendo o mercado
o parâmetro de qualidade, como já apresentamos neste texto.
[...] estas organizações não sofreriam interferência ou pressão de grupos de interesse es-
pecíficos, como ocorreria em agências estatais, governos, universidades ou partidos, o que
lhes facultaria a possibilidade de conduzir suas atividades-fim de forma mais ‘neutra’,
‘científica’ e ‘desinteressada’, e por isso mais ‘confiável’ em comparação a outros locais de
pesquisa e produção de ideias e políticas públicas [...] (ROCHA, 2017, p. 97).
Apesar de se colocarem como neutros e apolíticos, os think tanks têm clara
perspectiva de classe. Moraes (2016) ressalta que os milionários americanos disse-
minaram a cultura de mercado, entre outros fatores, como parte do esforço de mu-
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Estado, mercado e formas de privatização: a inuência dos think tanks na política educacional brasileira
dar a imagem do empresariado perante a opinião pública e influenciar o ambiente
político, por meio dos think tanks:
[...] a ‘novíssima direita’ cria e multiplica think tanks e aparatos de mídia (impressa, eletrô-
nica, virtual etc.) para modelar o ambiente político. De outro lado, operando também como
lobbies (pressionando para aprovação de certas políticas ou para o direcionamento das já
existentes), eles conseguem esse mesmo objetivo: policies make polity, diz a sentença. Assim,
por exemplo, ocorre com o fato de determinados programas públicos (provisão de saúde,
educação etc.) serem financiados pelo público, mas ‘entregues’ através de canais privados:
isto os faz, ainda que públicos, reconhecíveis pelo usuário como privados (2016, p. 240).
A seguir, abordaremos como atuam os think tanks, quem são, como estão dis-
tribuídos internacionalmente, quem são seus apoiadores e financiadores.
A distribuição dos think tanks no mundo
A Universidade da Pensilvânia, localizada nos Estados Unidos da América
(EUA), elabora anualmente um relatório dos think tanks mais influentes no mun-
do. Esses relatórios são produzidos desde o ano de 2007 e estão disponíveis para
consulta no site da universidade. Os critérios definidos pela instituição para ava-
liar cada think tank são: comprometimento e liderança de suas equipes; reputação
acadêmica; número, qualidade e alcance das publicações; presença nas redes so-
ciais; habilidade de recrutar e manter analistas de renome e desenvolver parcerias
com outras organizações, entre outros.
Os think tanks têm como propósito exercer influência tanto na política interna
dos países onde estão sediados, quanto nas políticas externas. Para tanto, criam
redes de relações e propagam-se por diversas nações. No ano de 2018, a Europa era
a região do planeta que concentrava o maior número de think tanks, acompanhada
da América do Norte, conforme pode ser visto na tabela a seguir:
Tabela 1 – Distribuição de think tanks no mundo em 2018
Região Quantidade
América do Norte 2.058
América do Sul e Central 1.023
África Subsaariana 612
Europa 2.219
Leste e Norte da África 507
Ásia 1.829
TOTAL 8.248
Fonte: University of Pensylvania Scholarly Commons. Global Go To Think Tank Index Reports, 2018.
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Valdelaine da Rosa Mendes
Essa é uma distribuição que mostra a presença de número significativo de
think tanks em todas as partes do mundo, entretanto, uma análise direcionada
para cada região revela que alguns países concentram a existência dessas orga-
nizações. De um total de 8.248, em 2018, um único país, os EUA, sediava 1.871
think tanks, o que representa quase um quarto da totalidade dessas organizações.
A tabela a seguir mostra os 25 países com maior número de think tanks nos anos
de 2008, 2017 e 2018.
Tabela 2 – Os 25 países com o maior número de think tanks, 2008, 2017, 2018
País
2008 2017 2018
Quantidade Colocação Quantidade Colocação Quantidade Colocação
Estados Unidos 1.777 1.872 1.871
Reino Unido 283 444 321
Alemanha 186 225 218
França 165 197 203
Argentina 122 146 227
Índia 121 293 509
Rússia 107 103 215
Japão 105 116 128
Canadá 94 100 10º 100 12º
Itália 87 10º 100 10º 114 10º
África do Sul 78 11º 92 12º 92 13º
China 74 12º 512 507
Suíça 72 13º 76 14º 78 17º
Suécia 68 14º 89 13º 90 14º
Holanda 55 15º 76 14º 83 16º
México 54 16º 74 16º 86 15º
România 53 17º
Espanha 49 18º 63 21º 66 22º
Bélgica 49 19º 61 23º
Israel 48 20º 67 18º 69 19º
Ucrânia 45 21º
Hungria 40 22º
Polônia 40 23º 60 24º
Brasil 39 24º 93 11º 103 11º
Nigéria 38 25º
Áustria 68 17 º 74 18º
Olívia 66 19 º 66 20º
Chile 63 21 º 64 22º
Colômbia 64 22º
Irã 64 20 º 64 22º
Taiwan 58 25 º 61 25º
Fonte: University os Pesylvania Scholarly Commons. Global Go To Think Tank Index Reports, 2008, 2017 e 2018.
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Estado, mercado e formas de privatização: a inuência dos think tanks na política educacional brasileira
Na Tabela 2, é possível observar que os cinco países com maior número de
think tanks somam quase 44% do total existente no mundo. Os EUA, o primeiro co-
locado, não muda de posição e tem um crescimento dessas organizações de aproxi-
madamente 5% de 2008 para 2018, diferentemente do que ocorre com Índia, China
e Brasil que têm um crescimento expressivo e mudam de posição na classificação
da Universidade da Pensilvânia. A Índia ocupava a 6ª colocação em 2008, com 121
think tanks, e passa a ocupar a 2ª posição em 2018, com 509, o que significa um
aumento de 322%. A China ocupava a 12ª colocação em 2008, com 74 think tanks,
e passa a ocupar a 3ª em 2018, com 507, o que representa uma expansão de 585%.
Além dos três países que se encontram nas primeiras colocações vale aqui
observar a posição da Argentina e do Brasil. A Argentina ocupava a 5ª colocação
em 2008, com 122 think tanks, e conserva a mesma posição em 2018, mas com 227
organizações e um crescimento de 86%. O Brasil, que particularmente interessa a
este estudo, ocupava em 2008 a 24ª colocação e passa a ocupar a 11ª em 2018, com
um aumento de 165% no número de think tanks. Apenas três países da América
Latina aparecem entre os 25 primeiros colocados na classificação quantitativa do
Relatório da Pensilvânia. Além de Argentina e Brasil, o Chile figura em 22º lugar,
com 64 think tanks, no Relatório de 2018.
O quantitativo de organizações internas pode não representar exatamente a
força de influência dos think tanks nas políticas locais, já que o relatório analisa a
organização com base na informação de localização de sua sede e não na atuação
internacional. Muitas dessas organizações possuem sede em um país, mas operam
em dezenas de outras nações, exercendo grande influência na política interna dos
países.
Na tabela 2, é possível perceber que justamente os países que compõem o
G20
1
, em sua maioria, figuram entre aqueles com maior número de think tanks. As
duas maiores economias do mundo EUA e China ocupam as primeiras colocações
no ranking. Há, indubitavelmente, uma correlação entre think tanks e a conser-
vação do modo de produção capitalista. Prevalece na atuação dos think tanks pró-
-mercado (conservadores e libertários) a lógica da defesa da liberdade econômica,
sendo os libertários mais avessos a qualquer intervenção do Estado na promoção de
políticas sociais (TEIXEIRA, 2007). Há produção e difusão de conhecimentos para
alavancar políticas públicas alicerçadas nos princípios da liberdade individual, em
detrimento da organização de políticas que promovam a redução da concentração
de riqueza. É o que Harvey (2008) chama de projetos incompatíveis com a justiça
social.
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Essas organizações atuam nas mais variadas áreas para influenciar econô-
mica, social e culturalmente os povos, tanto na elaboração de políticas, quanto na
formação da opinião pública, para fazer valer os interesses dos grupos que represen
-
tam e dos que financiam essas instituições, aspecto que revela o perfil do think tank.
Eles realizam pesquisas, produzem materiais, sistematizam dados, concedem en
-
trevistas em canais de TV e escrevem artigos para jornais, como forma de inculcar,
em parcela significativa da sociedade, suas formas de interpretação da realidade.
Para Ravitch (2011), em gerações de acadêmicos e jornalistas foram incubadas
ideias pró-mercado por essas organizações. A autora faz uma análise da realidade
estadunidense e mostra que a defesa dos interesses do capital não ficará restrita ao
período de um governo, pois ao serem assimiladas por gerações, serão defendidas
por indivíduos ou grupos, mesmo ao término dos mandatos.
A seguir, apresentaremos a relação de um think tank internacional, Instituto
Brookings com um think tank brasileiro, Fundação Getúlio Vargas (FGV). Esco-
lhemos este exemplo, pois, o Instituto Brookings é o think tank mais bem avaliado
no Relatório da Universidade Pensilvânia, por vários anos, e tido como o mais
influente no mundo e, a FGV, por ser o think tank mais influente na América do
Sul e Central, no mesmo Relatório, e por abrigar o Centro de Excelência e Inovação
em Políticas Educacionais (Ceipe), primeiro think tank especializado em política
educacional no Brasil.
Instituto Brookings e Fundação Getúlio Vargas: parceiros no Brasil
O Instituto Brookings, sediado em Washington, foi fundado em 1916 e, de
acordo com Teixeira (2007, p. 123), nas últimas décadas, concentrou esforços “para
desenvolver novas abordagens para saúde, políticas fiscais, educação, bem-estar
social, serviço público, financiamento de campanhas eleitorais e o novo ambien-
te de segurança internacional resultante do fim da Guerra Fria e da integração
global”. A autora ainda lembra que, após o 11 de setembro de 2001, passaram a
ganhar maior atenção da organização temas como: terrorismo, democracia, segu-
rança x liberdade individual, assim como questões de governança e liderança.
O Instituto Brookings “é uma organização sem fins lucrativos dedicada a pes-
quisas independentes e aprofundadas que levam idéias pragmáticas e inovadoras
sobre como resolver problemas enfrentados pela sociedade” (BROOKINGS INSTI-
TUTE, 2018, não paginado). É uma organização que se define como independente
e neutra em relação às questões que analisa.
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Essa é uma característica que pode ser observada nos thinks tanks pró-mer-
cado, como se a interpretação dos dados de pesquisa pudesse estar desconectada
dos pressupostos epistemológicos que fundamentam os processos investigativos
(GAMBOA, 2012); como se a própria escolha de um tema ou foco para análise não
estivesse carregada de intenções e interesses e pudesse ser considerada indepen-
dente e neutra. A pretensa neutralidade das organizações pode ser analisada a
partir da composição dos seus financiamentos, conforme observamos no gráfico 1,
que apresenta dados do Instituto Brookings:
Gráfico 1 – Composição do orçamento do Instituto Brookings
Fonte: Brookings, quality, Independence, impact, 2018, annual report.
Destacamos que a composição orçamentária de um think tank é muito impor-
tante para entender os interesses que determinam e definem as ações a serem exe-
cutadas, o que coloca “em xeque” a independência dessas organizações. As fundações
privadas exercem, nos EUA, uma influência importante nas reformas educacionais,
já desde a segunda metade do século XX. Se, por longo tempo, os investimentos pri-
vados, oriundos de doações e subvenções, não representavam uma ameaça porque
eram destinados às instituições educacionais, que decidiam autonomamente como
alocar esses recursos, isso se modifica, a partir dos anos 1990, quando as reformas
educacionais naquele país passam a sofrer a influência direta dos “filantropos”, que
usam seus recursos para promover seus objetivos na área educacional e “defender
estratégias de reforma que espelhavam sua própria experiência em adquirir grandes
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fortunas, como a competição, a escolha escolar, a desregulamentação, os incentivos e
outras abordagens de livre-mercado” (RAVITCH, 2011, p. 224).
As prioridades educacionais são antagônicas às prioridades do mercado, po-
rém “a oferta de uma doação multimilionária por uma fundação é o bastante para
fazer com que a maior parte dos superintendentes e conselhos escolares largue
tudo e reorganize suas prioridades” (RAVITCH, 2011, p. 224).
O grande perigo da presença dessas instituições nos sistemas educacionais
é que elas não são organizações públicas, a sua intervenção nas escolas e redes
não está sujeita ao controle público do cidadão. Sobre esta questão, Ravitch (2011,
p. 225) analisa o papel da intervenção das fundações privadas nos EUA e afirma
que “elas assumiram por si mesmas a tarefa de reformar a educação pública, tal-
vez de maneiras que nunca sobreviveriam ao escrutínio dos eleitores em qualquer
distrito ou estado. Se os eleitores não gostam da política de reforma da fundação,
eles não podem votar para que ela saia do cargo”.
No quadro a seguir, são apresentados alguns dos doadores do Instituto Broo-
kings, devidamente alocados na sua faixa de doação.
Tabela 3 – Doadores Instituto Brookings
Faixa de doação em U$ Nome da Instituição Total de Doadores
2.000.000 ou mais Bill & Melinda Gates Foundation
Anne T. and Robert M. Bass
06
1.000.000 – 1.999.999
Laura and John Arnold Foundation
BHP Foundation
10
500.000 – 999.999
Ford Foundation
LEGO Foundation
16
250.000 – 499.999
Bank of America
Microsoft Corporation
The Rockefeller Foundation
38
100.000 – 249.999
Shell
Facebook
Hewlett-Packard Company
Omidyar Network
PepsiCo
Volvo Research and Educational Foundation
92
50.000 – 99.999
Amazon.com
Intel Corporation
Visa Inc.
88
25.000 – 49.999 Airlines for America 67
10.000 – 24.999* 94
5.000 – 9.999* 40
Up to 4.999* 176
Total 527
Fonte: Brookings 2018, Annual Report 
* nessas faixas não são mencionados os nomes, apenas a quantidade de doadores.
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Na Tabela 3, aparecem empresas que operam no ramo financeiro, automobi-
lístico, aéreo, de combustíveis, de brinquedos, de bebidas, de e-comerce. Empresas
com atuação diversificada no mercado e que estão presentes em diferentes partes
do planeta, tanto no comércio quanto na produção de mercadorias. Foram 527 doa-
dores no ano de 2018 para o Instituto Brookings. São volumosos aportes finan-
ceiros feitos diretamente por empresas, ou fundações vinculadas a empresas ou a
grandes acionistas, para financiar think tanks que levam as forças pró-mercado e
os valores capitalistas para diversos campos da vida social.
Neste estudo, interessa compreender como se constitui e como atua o Instituto
Brookings, tanto pelo lugar que ocupa como um think tank no mundo, quanto pela
parceria que firma com uma importante organização brasileira que realiza amplo
trabalho na área educacional, a Fundação Getúlio Vargas (FGV). No relatório da
Universidade da Pensilvânia, a FGV aparece em primeiro lugar, como o think tank
mais influente na América do Sul e Central.
No ano de 2016 é inaugurado no Brasil o Ceipe, lotado na Escola de Adminis-
tração Pública e de Empresas (Ebape) da FGV. O Ceipe está vinculado ao Progra-
ma de Política Educacional Internacional da Universidade de Harvard e conta com
o apoio do Instituto Brookings. No Brasil seus parceiros são: a Fundação Lemann,
o Instituto Unibanco, o Instituto Natura, o Itaú Social, a Fundação Maria Cecília
Souto Vidigal, o Itaú BBA e a Omidyar Network. Compõem o conselho da organiza-
ção representantes da Fundação Lemann, da Fundação Maria Cecília Vidigal, do
Instituto Unibanco, da Aondê Educacional, da Granergia, do Todos pela Educação
e representantes da FGV.
De acordo com os dados disponibilizados pela FGV, trata-se do primeiro think
tank brasileiro especializado em política educacional que pretende influenciar a
organização das políticas nas secretarias de educação no país.
O Ceipe tem como missão contribuir para que o Brasil tenha uma educação pública equitati-
va, inovadora e de qualidade por meio do apoio às Secretarias no desenho e implementação
de políticas educacionais, da produção de conhecimento aplicado em políticas educacionais
e da formação de líderes (FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS, 2019).
Com o declarado propósito de melhorar a educação brasileira, o Ceipe concen-
tra suas atividades em três áreas de trabalho: apoio às redes públicas de ensino,
produção de conhecimento aplicado e formação de líderes. Como já mencionado,
está lotado na Ebape, uma unidade da FGV, que, tradicionalmente, forma admi-
nistradores de empresas em uma perspectiva afinada com a lógica do mercado.
Conceitos como meritocracia, concorrência, liderança e liberdade individual orien-
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tam o trabalho dessa organização e da formação acadêmica dos estudantes que
frequentam cursos de graduação e pós-graduação na instituição.
O Ceipe apresenta-se como um think tank que pretende contribuir diretamen-
te na qualificação da educação básica ao afirmar: “possuímos uma visão ambiciosa:
almejamos nos tornar um centro de referência nacional e internacional em políti-
cas educacionais, contribuindo de forma significativa e duradoura para a melhoria
da educação básica brasileira” (FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS, 2019, não pagi-
nado). Mesmo com o curto período de existência o Ceipe já atuou em quatros mu-
nicípios brasileiros: Pelotas/RS, Lajeado/RS, Guarulhos/SP e Taubaté/SP. Entre as
ações desenvolvidas estão: gestão pedagógica, gestão da rede e gestão financeira.
Esse braço da FGV tem menos de três anos de existência, mas merecerá um
acompanhamento da comunidade acadêmica, pois sustenta suas propostas e proje-
tos na lógica do mercado e pretende exercer grande influência na organização das
políticas educacionais. Para as organizações que pautam sua atuação na defesa
incondicional à propriedade privada e à economia de mercado, o monopólio do Es-
tado na definição e indução dos modelos educacionais para uma nação, representa
uma ameaça à perpetuação de valores e princípios que promovam a conservação
das estruturas sociais.
A seguir, abordaremos o Instituto Millenium, que se define como um think
tank representativo dos interesses das classes dominantes brasileiras (CASIMI-
RO, 2018a), com estrutura e meios organizacionais que pretendem a penetração
em instâncias de decisão estatais e, a área educacional, é uma delas.
Instituto Millenium: o liberalismo e o mercado na educação
O Instituto Millenium foi lançado em 2006, durante a realização do XIX Fórum
da Liberdade, em Porto Alegre/RS. De acordo com Casimiro (2018b), o discurso em
defesa do mercado e dos princípios liberais atraiu membros que atuavam em meios
de comunicação de largo alcance no país, como TV Globo; Grupo Abril; Jornais Fo-
lha de São Paulo, O Estado de S. Paulo e Valor Econômico. Para Casimiro (2018b,
p. 44) “uma fração representativa desses jornalistas e empresários está ligada a
inúmeras universidades brasileiras e, de alguma forma – seja como colunista, re-
dator ou como dirigente –, a outros importantes veículos de comunicação da grande
mídia brasileira”, o que significa o alcance de milhões de pessoas, de diferentes
grupos e camadas sociais, com grande capilaridade no tecido social brasileiro.
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Estado, mercado e formas de privatização: a inuência dos think tanks na política educacional brasileira
Uma publicação no site do Instituto Millenium do ano de 2009, intitulada “O
que significa um think tank no Brasil hoje” permite a compreensão de qual é a
concepção dessa organização.
O conceito de think tank faz referência a uma instituição dedicada a produzir e difun-
dir conhecimentos e estratégias sobre assuntos vitais – sejam eles políticos, econômicos ou
científicos. Assuntos sobre os quais, nas suas instâncias habituais de elaboração (estados,
associações de classe, empresas ou universidades), os cidadãos não encontram facilmente
insumos para pensar a realidade de forma inovadora (INSTITUTO MILLENIUM, 2009).
Na perspectiva do Instituto Millenium os think tanks são capazes de fornecer
respostas aos problemas coletivos de forma mais eficiente que os governos. Há uma
reivindicação da condução e da formulação das políticas por parte dessas organi-
zações. Isso representa uma brutal ameaça à democracia na medida em que essa
condução é repassada para instâncias privadas sem a legítima delegação do voto.
No referido artigo é afirmado, se “comparado com a realidade dos Estados Uni-
dos e dos principais países europeus, o Brasil é hoje quase um deserto de think tanks”.
De fato, de acordo com a Tabela 2, apresentada anteriormente, no ano de 2008 o
Brasil, figurava na 24ª colocação, com 39 think tanks no Relatório da Pensilvânia,
número pequeno se comparado aos países que ocupavam as primeiras colocações.
O Instituto Millenium propõe-se a atuar como um verdadeiro intelectual co-
letivo (CASIMIRO, 2018a) voltado para a difusão da ideologia
2
do mercado, sus-
tentado na crítica ao intervencionismo do Estado como responsável pela criação de
obstáculos ao crescimento econômico do país. Essa percepção pode ser identificada
no seguinte trecho da publicação da organização, “nas sociedades modernas e cada
vez mais complexas, [...], há a necessidade de espaços que reúnam pessoas de des-
taque, com autonomia suficiente para se atreverem a contestar criativamente as
tendências dominantes, especialmente quando elas se tornam anacrônicas” (INS-
TITUTO MILLENIUM, 2009).
Para alavancar ideias e propor soluções para os problemas brasileiros, a ne-
gação da ideologia e a defesa da neutralidade do pensamento são declarados como
princípios que devem orientar o comportamento daqueles que integram um think
tank pró mercado:
[...] um think tank está obrigado a colocar as ideologias num segundo plano. Seus membros
não podem nunca guiar seus comportamentos de forma ideológica, se quiserem cumprir seu
papel. As ideologias podem dar eventualmente subsídios importantes para pensar a realida
-
de, mas na hora de emitir juízos e elaborar estratégias, antes de qualquer ideologia, se coloca
a análise crua e concreta da dinâmica da realidade. Por assim dizer, os think tanks devem,
assumir seus valores de forma científica e pragmática (INSTITUTO MILLENIUM, 2009).
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Para assegurar credibilidade e confiabilidade a um think tank pró-mercado
é defendida a sua competência técnica, desprovida de intencionalidade política.
Esse discurso se mantem mesmo quando integrantes da organização vão ocupar
cargos importantes em uma gestão governamental. A CEO do Instituto Millenium,
Priscila Pereira Pinto, quando questionada sobre a escolha de nomes como Paulo
Guedes, Salim Mattar, Marcos Troyjo e Paulo Uebel, ligados ao instituto, para
compor a equipe do governo Jair Bolsonaro declarou:
A gente está sentindo um orgulho enorme. O Instituto Millenium contribui há mais de dez
anos com conteúdo para um público bem amplo. Ao longo desses dez anos, essas pessoas fize
-
ram parte da nossa rede de articulistas, rede de entrevistados, rede de conselheiros. Foi muito
empolgante para o instituto ver que esse conteúdo, isto é, as ideias que eles compartilhavam
no nosso site, nas nossas redes sociais, nos nossos eventos e no “Imil na sala de aula”, chega
-
ram ao governo. Por essas pessoas serem muito técnicas e preparadas acabam sendo convi-
dadas a executar propostas específicas com todo esse conhecimento que têm (PINTO, 2018).
É relevante destacar que mesmo ocupando funções importantes em um gover-
no, com declarada e evidente afinidade com viés político conservador, a CEO insiste
no pressuposto da competência técnica, como requisito eminentemente necessário
para a execução e indicação para as funções.
Em uma busca no site, para compreender a composição orçamentária do Ins-
tituto Millenium, localizamos um quadro com receitas e despesas de 2009 a 2018 e
relatórios de atividades de exercícios de 2015 a 2018. São documentos resumidos,
mas permitem identificar que as receitas duplicam de 2009 para 2018 e que são
predominantemente formadas por doações.
Tabela 4 – Evolução das despesas e receitas do Instituto Millenium
Natureza da Receita 2009 2018
Doações 524.000,00 952.083,76
Financeiras 54.000,00 305.947,18
Eventos 42.000,00 6.000,00
DESPESAS 632.000,00 1.041.565,13
Operacionais 393.500,00 845.563,25
Website 37.500,00 135.822,38
Eventos e ações 154.000,00 23.136,64
Redes 34.500,00 33.871,02
Financeiras e outras 12.800,00 3.171,84
SALDO 12.000,00 222.465,81
FUNDO PATRIMONIAL 160.000,00 316.884,63
TOTAL DE RECEITAS 620.000,00 1.264.030,94
Fonte: INSITUTO MILLENIUM.
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O predomínio das despesas está na faixa “operacional”, no entanto, não é onde
se evidencia a maior concentração de gastos, já que nos relatórios de exercício os
eventos são as atividades que prevalecem no Instituto Millenium. Os referidos re-
latórios de exercício, disponíveis para consulta, limitam-se à exposição dos eventos
promovidos e/ou apoiados pela organização, com dados como: nome do evento, data,
público presencial, palestrante e tema. Não há um detalhamento de onde vêm os
recursos, quem são os doadores ou apoiadores.
Interessa particularmente a este estudo destacar o “IMIL na sala de aula” que
são atividades realizadas no interior de instituições de ensino superior no país,
com o objetivo de “discutir com os jovens valores como liberdade, Estado de direi-
to, economia de mercado e democracia” (INSTITUTO MILLENIUM, 2018). São
atividades promovidas gratuitamente pelo Instituto Millenium para possibilitar
o encontro entre “especialistas de sua rede e alunos dos cursos de graduação”. A
especificidade de um think tank de difundir valores e formar a opinião pública
– contrariando a pretensa neutralidade – se explicita nesta declaração: “O Insti-
tuto Millenium acredita que é de fundamental importância difundir seus valores
entre o público jovem, pelo seu importante papel na construção de um Brasil mais
próspero e jovem” (INSTITUTO MILLENIUM, 2018). A CEO da organização, faz
algumas considerações ao avaliar essa ação do Instituto.
O Imil na sala de aula é o meu “bebê”. É um projeto que eu criei em 2011 para o Instituto
Millenium. Antes de virar CEO do Instituto, dava palestras para universidades, lidava
diretamente com jovens, e percebia que faltava conteúdo em sala de aula, até nas apresen-
tações dos professores, para que pudessem debater qualquer assunto. Por exemplo, direitos
humanos, microeconomia. Havia um déficit de conteúdo tanto material quanto oral. Os
professores só tinham uma visão estabelecida. Entravam em sala de aula, só pas-
savam essa visão e os alunos compravam a ideia, mas no fundo ficavam em dúvida se só
tinha isso mesmo funcionando no Brasil. Como tínhamos uma rede de 120 especialistas
no Instituto Millenium, nos perguntamos sobre e por que não convidar essas pessoas para
palestrar nas salas de aula. Muitos não são professores, sequer palestrantes, mas
são especialistas, técnicos na área em que atuam. Essas pessoas podiam entrar em
sala de aula e conversar, por exemplo, sobre o que é o tripé econômico, o que é a liberdade
de expressão, o que são as fake news. O alvo inicial eram as universidades públicas, tanto
federais quanto estaduais. Mas o projeto ficou de tal tamanho que até os particulares co-
meçaram a convidar o Instituto Millenium a entrar. O nosso relacionamento é direta-
mente com os alunos: a gente não passa pela burocracia da reitoria, de conversas
com mil departamentos entre universidades. Não é essa a proposta (PINTO, 2018,
grifo nosso).
Esse é um dado que merece reflexão, pois nas instituições públicas de ensino
superior os eventos são, normalmente, discutidos, analisados e avaliados em várias
instâncias, justamente para assegurar tanto o conhecimento e o registro, quanto
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a pertinência da ação no interior da instituição. São registros públicos que podem
ser acessados por qualquer cidadão de forma transparente. Não se trata de mera
burocracia, mas de uma forma de organização do trabalho que possibilite o controle
social sobre a coisa pública e impeça que cada indivíduo tome suas decisões e faça
suas escolhas, como o faz no âmbito privado da sua existência. Ao buscar atuar
diretamente com os alunos e fazer uma crítica à organização das universidades,
o Instituto Millenium procura, na realidade, introduzir outra forma de agir em
uma organização pública, mais individualista e privada e menos transparente e
democrática.
O “IMIL na sala de aula” já realizou 135 edições, em instituições públicas
3
e
privadas, que ocorreram nas regiões sul, sudeste, nordeste e centro oeste do país.
Há um pequeno predomínio dessa promoção nas instituições privadas, que recebe-
ram pouco mais da metade dos palestrantes do Instituto Millenium, com destaque
para as católicas, como Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e
Universidade Católica de Brasília, que tiveram sete e cinco eventos, respectiva-
mente. Entre as públicas a Universidade de São Paulo, a Universidade Federal do
Mato Grosso do Sul e a Universidade Federal do Rio de Janeiro concentraram os
maiores números de atividades com nove, oito e sete palestras, respectivamente.
Os temas das palestras são bastante variados e versam sobre macroeconomia,
capitalismo de Estado, liberalismo, empreendedorismo, criatividade, inovação, me-
ritocracia. Com relação aos palestrantes observamos que prevalece uma diversida-
de de expositores. Contabilizaram-se nas 135 edições 68 palestrantes diferentes
para conduzir as atividades, sendo destes apenas nove mulheres. Em sua maioria,
são realizadas individualmente, já que, em apenas oito edições, atuaram duplas
ou trios de palestrantes. Merece destaque a atuação de Vitor Wilher, com a partici-
pação em 18 momentos diferentes, expondo sobre temas variados como: economia
de mercado; criatividade, inovação e desenvolvimento econômico; meritocracia e
cobrança de mensalidades nas universidades.
Na edição 128, do “IMIL na sala de aula”, realizada na Universidade Federal
de Pelotas, no ano de 2019, com o tema “Cobrança de mensalidades nas universida-
des”, o palestrante Vitor Wilher, logo no início da sua exposição, afirmou que aquela
palestra encontraria muitas barreiras em uma instituição pública alguns anos an-
tes. Isto porque, na sua opinião, certamente grupos identificados com partidos de
esquerda promoveriam manifestações para impedir a realização de um evento, que
pretendesse discutir a cobrança de mensalidades, em uma universidade pública,
mas reconhece, com evidente satisfação, que se trata de um outro momento em que
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Estado, mercado e formas de privatização: a inuência dos think tanks na política educacional brasileira
– ao se falar sobre um tema como esse, que ataca um dos pilares mais importantes
da educação pública brasileira, dentro de uma instituição federal de ensino – não
se encontra resistência, impedimento ou mesmo manifestação contrária.
Barreiras antes intransponíveis agora são atravessadas. Cumpre o seu papel
o think tank de “difundir seus valores entre o público jovem pelo seu importante
papel na construção de um Brasil mais próspero e livre” (INSTITUTO MILLE-
NIUM, 2018).
[...] a questão crucial, sob o domínio do capital, é assegurar que cada indivíduo adote como
suas próprias as metas de reprodução objetivamente possíveis do sistema [...] no sentido
verdadeiramente amplo do termo educação, trata-se de uma questão de “internalização”
pelos indivíduos [...] da legitimidade da posição que lhes foi atribuída na hierarquia social,
juntamente com suas expectativas ‘adequadas’ e as formas de conduta ‘certas’, mais ou me-
nos explicitamente estipuladas nesse terreno. (MÉSZAROS, 2005, p. 44, grifos do autor).
Na análise de cada edição do “IMIL na sala de aula” percebemos que a quan-
tidade de presentes varia de instituição para instituição. Há eventos com 650
participantes em uma edição e eventos com 7 em outra. De modo geral, há um
predomínio de palestras com menos de 60 pessoas. Porém, ainda que o número de
presentes possa ser um indicador importante para avaliar a amplitude do público
atingido e, consequentemente, pela possibilidade de exposição de determinados va-
lores e conhecimentos, o que talvez mereça uma atenção maior é a receptividade
que determinados temas passam a ter nas instituições de ensino, o que minimiza
a relevância do número de participantes e amplia a importância da penetração e
de um possível enraizamento de determinados valores e princípios no interior das
instituições de ensino, como ocorreu na Universidade Federal de Pelotas.
A produção e a disseminação de material é uma das estratégias utilizadas pe-
los think tanks para convencer as pessoas sobre suas formas de enxergar o mundo,
suas convicções e suas propostas de intervenção na realidade, ainda que insistam
na premissa de que são neutros, desprovidos de ideologia, apartidários
4
. Entre os
materiais disponíveis para consulta no site do Instituto Millenium foram aqui se-
lecionados aqueles que representam mais fortemente a força que o capital exerce
na formação humana, justamente pelo tipo de público que almeja atingir. Além do
“Imil na sala de aula” foi, para este estudo, analisada a produção e divulgação de
dois livros infantis. O link em destaque dentro do site do Instituto Millenium cha-
mado “Turminha da Liberdade” remete para a divulgação de dois livros produzidos
pelo Instituto Liberdade e Justiça (ILJ), seguido de ampla matéria, produzida pelo
Instituto Millenium, sobre as características e o conteúdo dos livros: “Antônio e o
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segredo do universo em breves lições” e “Anya e o mistério do sumiço do cãozinho
Galt” (INSTITUTO MILLENIUM, 2019).
Os dois livros são inspirados nas ideias defendidas por nomes do liberalismo
como Ludwig Von Misses. O livro “Antônio e o segredo do universo em breve lições”,
pretende “trazer para o universo infantil os ensinamentos contidos no livro ‘As seis
lições’, do economista Ludwig von Mises” (INSTITUTO MILLENIUM, 2019). O
autor do livro, Giuliano Miotto, afirma na matéria que deseja “levar o liberalismo
aos pequenos” (INSTITUTO MILLENIUM, 2019), e destaca a importância de tra-
balhar valores, desde os primeiros anos de vida escolar e não escolar das crianças,
que favoreçam a conservação das estruturas do capital. Em uma declaração
5
o au-
tor do livro afirma:
Acredito na importância dos valores que a Turminha defende. O que está sendo passado
para as crianças são valores errados e coletivistas e que retiram a importância e a res
-
ponsabilidade do indivíduo. A meritocracia, por exemplo, é mal-entendida. Muitos acham
que o mérito dos outros tem que ser dividido com todos. Portanto, ensinar meritocracia, no
ambiente escolar, é fundamental, já que a escola vem privilegiando a mediocridade”, critica
Miotto, salientando a ineficiência do sistema também com os professores: É um sistema todo
errado que premia mal os bons profissionais. Os bons professores da rede pública não têm
estímulo nenhum para serem bons ou investirem o tempo deles em conhecimento e em uma
boa didática. A meritocracia é fundamental para que o sistema educacional brasileiro saia
deste buraco onde ele está. A educação precisa de liberdade, inclusive didática. Ter mais
liberdade de conteúdos e não ficar tão amarrada a uma agenda governamental, que é tam
-
bém um fator que prejudica bastante a educação infantil (INSTITUTO MILLENIUM, 2019).
Essa produção para o público infantil é reveladora do propósito de internali-
zar
6
nas crianças os princípios e valores que orientam o capital, o que comprova
a existência de uma verdadeira batalha de ideias em disputa por um projeto de
educação para o país.
Nas duas ações do Instituto Millenium aqui analisadas evidenciamos uma crí-
tica ao trabalho dos professores, no primeiro (“Imil na sala de aula”), por apresen-
tarem uma única visão aos alunos sobre determinados temas; na segunda (livros
infantis), por não estarem sujeitos a um sistema de bonificação e compensação pelo
esforço individual e pelo mérito, não teriam qualidade.
Considerações nais
Já foi amplamente demostrado pela literatura educacional brasileira (SAVIA-
NI, 2018; PARO, 2012; PERONI 2016) a incompatibilidade entre os valores que
orientam a ação do mercado e os que sustentam um projeto de educação democráti-
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Estado, mercado e formas de privatização: a inuência dos think tanks na política educacional brasileira
ca. Se, no primeiro, a exploração da força de trabalho, as relações de mando e sub-
missão, a valorização da concorrência, a criação de rankings e o estabelecimento de
classificações são inerentes a um sistema que tem como finalidade o aumento da
taxa de lucro e da riqueza; no segundo, tais premissas se constituem verdadeiros
entraves à formação de sujeitos independentes. Neste caso, à escola cabe contribuir
para criar as condições para uma percepção do lugar que cada um ocupa na socie-
dade e sua relação com as condições históricas que produziram as diferenciações de
posições. Um projeto de educação democrática busca uma formação que possibilite
uma intervenção qualificada na vida social na luta por uma sociedade mais justa
e menos desigual.
Os think tanks pró-mercado, na condição de “laboratório de ideias”, têm cum-
prido o papel de desconstruir e destruir qualquer projeto que se volte para a cole-
tividade. A eliminação das hierarquias nas instituições de ensino, a formação de
coletivos, o compartilhamento de decisões, o abandono do princípio da avaliação
escolar classificatória, tão reivindicados pela sociedade brasileira (movimentos so-
ciais, sindicatos, organizações estudantis) nas últimas décadas, sofre um processo
de destruição interna. A valorização da colaboração dá lugar à competição, à res-
ponsabilização e ao individualismo. Os princípios adotados no mercado para obter
lucro, precisam agora fazer parte do universo educacional.
No caso brasileiro, olhamos neste estudo, para duas organizações que apare-
cem no Relatório da Pensilvânia como instituições que exercem influência interna
no país, para identificar algumas premissas que orientam suas ações no campo
educacional. Foram escolhidos o Instituto Millenium e a Fundação Getúlio Vargas.
O primeiro, pela vinculação com as questões econômicas e por ter integrantes em
seus quadros que exercem funções nos governos. Esse perfil é relevante porque as
determinações das políticas econômicas repercutem em todas as áreas de atuação
do governo. Olhar para as políticas globais é necessário para entender como se
constituem as ações na área educacional. O segundo, pela sólida atuação no país e,
especialmente, por ter criado recentemente um segmento definido como o primeiro
think tank brasileiro de política educacional.
Observamos, ainda, as implicações para a democratização da educação, em
nosso país e as consequências para um projeto societário democrático, pela impor-
tância que tem a educação para essa construção. A existência de think tanks espa-
lhados pelo mundo com viés progressista, não atrelados aos interesses do capital,
não tem sido capaz de fazer frente à pesada influência de organizações que são
financiadas por grandes empresas com capacidade de penetração na imprensa, nos
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governos, nas universidades, nas mídias sociais, na indústria cultural. São gera-
ções formadas em um modelo pautado na aceitação dos princípios que reproduzem
os valores dominantes na sociedade e na resignação em relação à posição social
ocupada por cada indivíduo (MÉSZAROS, 2005).
Notas
1
Grupo das 19 maiores economias do mundo mais a união europeia.
2
Conceito refutado pela organização que se posiciona contra as ideologias.
3
Na análise das edições do IMIL na sala de aula foram contabilizadas atividades em 22 instituições de
ensino superior públicas diferentes (a maioria é federal) e em 34 privadas. Há um número inexpressivo
de palestras que foram realizadas em empresas, secretarias de algum estado ou em um evento. O último
levantamento foi realizado em 30 de julho de 2019.
4
“Apartidária, a organização já lançou livros, eventos, vídeos e podcasts” (Boletim da Liberdade, 2018).
5
O Instituto Millenium realiza uma entrevista com o autor do livro, Giuliano Miotto, para produzir a refe-
rida matéria de divulgação do material.
6
Expressão utilizada por Mészaros (2005) para tratar de valores e conceitos que são aceitos pelos indiví-
duos, a partir de longos processos de legitimação, dos quais as instituições educacionais fazem parte, de
expansão do modo de produção capitalista.
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Mídia impressa em educação: redes políticas e a nova lantropia em ação
Mídia impressa em educação: redes políticas e a nova lantropia em ação
Press media and education: political networks and the new philanthropy in action
Medios impresos en educación: redes políticas y la nueva lantropia en acción
Quênia Renee Strasburg
*
Berenice Corsetti
**
Resumo
O presente texto constitui parte de uma pesquisa de doutorado que teve como objetivo investigar as conver-
gências, tensões e desaos das políticas educacionais de formação e de carreira para professores. A investigação
destacou o contexto internacional a partir de documentos do Banco Mundial, a m de compreender como essas
políticas têm se desdobrado no contexto brasileiro através da mídia impressa, no caso, das Revistas Nova Escola
e Gestão Escolar como superfície de análise. Apoiada no referencial teórico metodológico do Ciclo de Políticas
e na metodologia da busca em sites institucionais, foi mapeada uma rede política de empresários brasileiros,
que por meio da mídia impressa, sugerem, induzem e prescrevem caminhos para educação. No geral, as ideias
divulgadas por esses impressos pedagógicos estão alinhadas ao âmbito da lógica privada de soluções para edu-
cação pública, no sentido de deixá-la cada vez mais privada ou de transformá-la em um mercado educacional.
Palavras-chave: Políticas educacionais. Mídia impressa. Redes políticas. Nova Filantropia.
Abstract
This text is part of a doctoral research that aimed to investigate the convergences, tensions and challenges of
educational training and career policies for teachers. The research highlighted the international context through
the analysis of documents by the World Bank, in order to understand how these policies have impacted the
Brazilian context through the print media, taking Revista Nova Escola and Gestão Escolar as a surface of analysis.
Based on the methodological theoretical framework of the Cycle of Policies and on a search on institutional
sites a network of political inuence consisting of Brazilian entrepreneurs was mapped. This network proposes,
prescribes and induces paths for education by means of magazines. Overall, the ideas disclosed by these peda-
gogical magazines are aligned with the scope of the private logic for solutions in public education, in order to
increase that same private logic and to transform public education into an educational market.
Keywords: Educational Policies. Print Media. Political Networks. New Philantropy.
*
Doutora em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos, Brasil). Professora da Rede Municipal de
Educação de São Leopoldo (Brasil). ORCID https://orcid.org/0000-0001-8448-1785. E-mail: qrstras@gmail.com
**
Doutora e Pós-Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp, Brasil). Bolsista Produtivida-
de em Pesquisa do CNPq e professora titular da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos, Brasil), vinculada ao
Programa de Pós-Graduação em Educação. ORCID https://orcid.org/0000-0002-4457-8790. E-mail: cor7@terra.com.br
Recebido em 23/06/2019 – Aprovado em 30/09/2019
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i1.10576
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Quênia Renee Strasburg, Berenice Corsetti
Resumen
El presente texto constituí parte de una pesquisa de doctorado, que tuvo como objetivo investigar las con-
vergencias, tensiones y desafíos de las políticas educacionales de formación y de la carrera para profesores. La
investigación destacó el contexto internacional a partir de documentos del Banco Mundial, a n de compren-
der cómo esas políticas tienen se desdoblado en el contexto brasileño a través de los medios impresos, en ese
caso, de las Revistas Nova Escola y Gestão Escolar como supercie de análisis. Basada en el referencial teórico
metodológico del Ciclo de Políticas y en la metodología de buscas en sitios institucionales, fue mapeada una
red política de empresarios brasileños, que, utilizando de los medios impresos, sugieren, inducen y prescriben
caminos para la educación. En general, las ideas divulgadas por eses impresos pedagógicos están aliñados al
ámbito de la lógica privada de soluciones para educación pública, en sentido de dejarla cada vez más privada o
de transformarla en un mercado educacional.
Palabras-clave: Políticas educacionales.Medios Impresos. Redes políticas. Nueva lantropía.
Introdução
A problemática da qualidade da educação é tema recorrente em todos os âm-
bitos da sociedade e, nesse sentido, todos parecem procurar uma resposta para a
questão
1
, apontando essa ou aquela solução. Uma resposta, também recorrente, é
a de que o problema se concentra nos professores, no seu preparo para o exercício
profissional e na carreira pouco atrativa. A sociedade mudou e a escola é a única
instituição que não muda nunca. Então, de quem é a culpa? Na maior parte das
vezes, a questão parece ser jogada para os professores, por meio das afirmações de
que esses que não mudam, de que são resistentes e de que não se propõem a fazer
diferente para que haja uma reforma escolar. A reforma da escola virou o grande
objetivo da sociedade e dos governos na contemporaneidade. Entretanto, faz-se
necessário compreender para onde a questão da qualidade e da reforma nos tem
levado e, mais do que isso, entender qual projeto de educação está relacionado à
reforma.
No estudo de políticas educacionais, diante do contexto da globalização, emer-
gem as discussões do papel de Organismos Internacionais (OI) e do Banco Mundial
(BM) e sua influência nas tomadas de decisão dos Estados-Nação. Os documentos
desses organismos não apresentam uma proposta unificada para o campo da edu-
cação, porém algumas tendências comuns são verificadas no que diz respeito ao
tema da formação e da carreira docente. A literatura regista que o BM é um forte
indutor de políticas nos diversos países ao redor do globo e em especial nos países
em desenvolvimento. Por isso, documentos do BM serviram de base documental
para análise das políticas em educação.
91
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Mídia impressa em educação: redes políticas e a nova lantropia em ação
Um poderoso meio de divulgar e mobilizar a sociedade para construção da
qualidade da educação é a mídia. Essa última ocupa grande espaço de divulgação
de ideias e de opiniões no século XXI, em múltiplos formatos: revistas, jornais,
televisão, internet, cinema, outdoors, para citar apenas alguns. Para a jornalista
Marisa Sanematsu, a mídia informativa é um importante espaço de poder, debate
e mediações de conflitos (VIEIRA, 2010). “Em outras palavras, a mídia tem o poder
de selecionar e hierarquizar temas, definindo prioridades” (VIEIRA, 2010). Nesse
contexto, a pesquisa teve como objetivo conhecer e analisar como as orientações do
BM por meio dos seus documentos para educação e para as políticas para profes-
sores são abordadas nas pautas da mídia impressa, tendo como objeto de análise
empírica as Revistas Nova Escola e Gestão Escolar.
A opção pela análise empírica das Revistas Nova Escola e Gestão Escolar ocor-
reu por essas estarem entre as revistas educacionais mais vendidas para o público
docente e, consequentemente, constituírem-se formadoras de opinião para um sig-
nificativo grupo de profissionais da educação, sendo, às vezes, a única referência
pedagógica e de gestão em muitos municípios e estados do país.
No presente texto, privilegiamos o recorte a respeito das relações estabeleci-
das no campo da mídia impressa nas revistas Nova Escola e Gestão Escolar, orga-
nizadas por redes políticas privadas e uma nova filantropia. A pesquisa teve como
base o referencial teórico-metodológico do Ciclo de Políticas formulado por Ball
e Bowe (1992) e das contribuições de pesquisadores brasileiros como Mainardes
(2006) para compreender e analisar os contextos pelos quais as políticas em edu-
cação são pensadas, formuladas e colocadas em prática. O estudo foi desenvolvido
por meio de uma metodologia de busca em sites institucionais para mapear a rede
de laços estabelecidas no cenário nacional que influenciam os rumos das políticas
educacionais no cenário macro, da mesma forma que influenciam o pensar e a to-
mada de decisões no cenário micro das redes (estaduais e municipais) de educação,
das escolas e dos professores.
Notas sobre a Mídia impressa
No Brasil, temos – historicamente – uma população com acesso recente à es-
colarização, de forma mais abrangente a partir da década de 1970. Nessa perspec-
tiva, é correto afirmar que a população brasileira pouco letrada e cada vez mais
urbana convive com uma terceira cultura
2
. Segundo Melo e Tosta (2008), o fenôme-
no da comunicação passou por três momentos distintos na sua história. A primeira
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e mais longa fase foi a comunicação mediada por sons, gestos e símbolos por meio
do diálogo face a face nas comunidades. A segunda fase se instalou a partir do
surgimento das tecnologias eletrônicas, na qual a comunicação passou de mediada
à midiática, permeada pela técnica; os seres humanos começam a se comunicar a
distância. Essa comunicação se desenvolveu no contexto da industrialização e da
urbanização. E a terceira fase, na qual nos encontramos na atualidade, é aquela
cujo processo de industrialização dá lugar à comunicação de serviços, das lingua-
gens e dos processos comunicacionais da era digital.
A entrada da sociedade nessa terceira era da comunicação digital abre um cam-
po de investigação para os pesquisadores nas mais diversas áreas, já que a mídia
e a comunicação são compreendidas como áreas interdisciplinares que abrangem
uma diversidade de conhecimentos e interações que movimentam toda a sociedade.
A mídia tem relação com a indústria dos bens simbólicos, que compreende um
sistema de produção, circulação e consumo de bens culturais. Seu objetivo está
em fabricar artefatos acionados por redes tecnológicas – as rotativas do tempo da
imprensa, os transmissores do tempo do rádio, os satélites do tempo da TV e os
computadores da era digital. Esse aparato tecnológico movimenta a esfera pública,
entretanto, é gerido pela esfera privada em função do seu financiamento por meio
de anúncios e classificados (MELO; TOSTA, 2008).
Nessa perspectiva, a mídia é uma fonte de poder que pode ser caracterizada de
duas formas: em primeiro lugar, como um poder que faz engrenar a indústria que
a mantém e, em segundo lugar, por influenciar a opinião pública.
A mídia e a educação operam em espaços diferentes e a partir de lógicas dis-
tintas, porém, possuem laços e relações de dependência. A mídia constitui os sis-
temas de comunicação de massa
3
. A escola é o local onde se realiza a formação dos
cidadãos sob a mão do Estado, fundado na razão iluminista, através de um modo
sequencial, ordenado, sistemático, enquanto que a mídia opera através de princí-
pios da modernidade, quais sejam, de maneira rápida, informal e dispersa (MELO;
TOSTA, 2008).
A análise de mídias neste trabalho não se vinculou à discussão sobre a indús-
tria cultural
4
e aos aspectos da cultura, que sabemos que a mídia representa, mas,
sim, à utilização da mídia para compreender os movimentos do campo político de
modo a narrar ideias, conceitos e criar regimes de verdade para auxiliar na própria
criação e implementação de políticas na educação. Quando tratamos de mídia, dife-
rentes visões ou tomadas de posições sobre o assunto podem ser incluídas no tópico,
devido à sua complexidade.
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Mídia impressa em educação: redes políticas e a nova lantropia em ação
As mídias, segundo Setton (2010), precisam ser analisadas como agentes de
socialização e podem ser comparadas com a família, a religião, a escola e outras
instâncias que agem como transmissoras de valores, padrões, normas de compor-
tamento e construções identitárias que são expressas em variados arranjos.
O fenômeno da cultura das mídias deve ser caracterizado como um sistema integrado, por
um mercado de bens simbólicos, todavia, um sistema de mercado fragmentado em uma
infinidade de instituições produtoras de cultura. Um sistema empresarial, política e econo-
micamente forte e muito diversificado. Uma estrutura comercial que se fortalece interna e
externamente já que tem acesso e visibilidade planetária. (SETTON, 2010, p. 31).
Nesse cenário, as mídias se constituem como um grande projeto que abrange
todos os aspectos da vida. Para obter informação sobre qualquer questão, basta
uma busca rápida do Google. As conexões são planetárias e se pode facilmente
acessar qualquer matéria ou produção de mídia de qualquer parte do mundo por
meio da internet. Assim, “estamos imersos numa sociedade global, cuja cultura
mundializada só é possível por conta das tecnologias de massa e digitais” (MELO;
TOSTA, 2008, p. 25).
Destaca-se que as pesquisadoras não têm como pressuposto a radicalidade
de que a mídia é um todo homogêneo de disseminação de ideias únicas e coesas.
Entretanto, defendemos que a mídia, digital, virtual e impressa trabalham dentro
de algumas conformações de ideários. Para isso, as mídias oferecem narrativas de
mundo da mesma maneira que oferecem narrativas sobre a política educacional.
As narrativas de mundo e de políticas se asseguram dentro de uma lógica de pen-
samento imersa na sociedade contemporânea sobre as bases de um mercado global,
flexível, performático e de excelência.
Segundo o site da Associação Nacional de Editores de Revista (ANER), o mer-
cado editorial de revistas é bastante competitivo e, por isso, em 1986, foi fundada
a associação, com o objetivo de promover e defender os interesses comuns do mer-
cado de revistas, editorial e comercial, nos seus mais diversos segmentos, tanto
em impressão como por mídia eletrônica. A ANER estima que, mensalmente, são
lançados, cerca de 2000 títulos de revistas no território nacional.
Nas revistas Nova Escola e Gestão Escolar, que serviram como base de análise
de políticas educacionais, foi identificado que os documentos do BM permeiam as
capas e as matérias desses impressos. Esses materiais – as revistas – foram esco-
lhidas como objeto de análise por se constituírem como um impresso pedagógico
5
, e
um meio de circulação nacional, que atinge grande parte dos professores, gestores,
estudantes e comunidade, com custo acessível, além de serem adquiridas e servi-
94
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rem como material de apoio de muitas Secretarias de Educação e escolas das redes
públicas brasileiras.
Relações público-privadas
A constituição dos argumentos que sustentam o modelo de união entre os se-
tores público e privado estão ancorados nos desdobramentos do neoliberalismo e do
gerencialismo.
Pode-se identificar dois momentos inseparáveis, mas distintos, das políticas neoliberais em
educação. Um, mais definido pela criação e implementação dos exames, testes, classifica-
ções (rankings), políticas de avaliação em larga escala, definição de padrões curriculares
nacionais/regionais e formas de certificação. Outro, melhor identificado mais recentemen-
te, caracteriza-se por introduzir, de forma mais agressiva, as parcerias público-privadas, as
relações de quase-mercado, com profundas mudanças na gestão e na organização escolar,
a partir de modelos tipicamente gerencialistas (LIPMAN & HAINES, 2007). De fato, é um
único processo com momentos distintos, mas constitutivos das mesmas políticas (HYPOLI-
TO, 2011, p. 4).
A privatização no campo educacional faz parte desse processo de expansão das
teorias neoliberais após a ruptura com o modelo de Estado Keynesiano para um
Estado Schumpeteriano (JESSOP, 1994). A transformação do modelo de Estado
substituiu também o modelo de produção fordista baseado na produtividade e no
planejamento para o modelo pós-fordista, baseado na flexibilidade e no empreen-
dedorismo. O Estado Schumpeteriano “vai além da mera redução do estado de
bem-estar social para reestruturá-lo e subordiná-lo às forças do mercado” (JES-
SOP, 1994). Essa reestruturação afetou os valores e a cultura do setor público por
meio de discursos como excelência, eficácia e qualidade, que são parte da matriz do
gerencialismo.
O gerencialismo
6
é a forma de gestão alinhada ao neoliberalismo e, por isso,
está sempre associado a esse processo, bem como às teorias da nova gestão pública.
Não há dúvida de que o gerencialismo tornou-se algo como um modelo global para reforma,
em relação ao qual, noções de desenvolvimento ou subdesenvolvimento de estados eram
avaliadas, alimentando um extenso mercado para importação de habilidades e modelos
do Reino Unido, EUA e Nova Zelândia e para expansão de consultorias em gestão que
embrulhavam modelos de negócios e modelos de reforma e os comercializavam através de
fronteiras nacionais. De fato, neste sentido, a dinâmica de globalização e de gerencialização
parece intimamente conectada, mas não pode ser compreendida como processos universais
nem uniformes (NEWMAN; CLARKE, 2012, p. 354-355).
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Nesta perspectiva, não é adequado pensar em uma padronização no modo que
cada nação recebe, interpreta e adota determinadas condicionantes globais. Em
sentido amplo, a lógica gerencial traduz no seu cerne os negócios do setor privado
para o setor público. Esta lógica se sustenta com base na crítica ao modelo buro-
crático por ser difícil de gerir, pouco produtivo e repressivo para o espírito empreen-
dedor. A crença é que o sucesso competitivo deve ser alcançado pela restrição dos
sistemas de controle, dando liberdade para que as pessoas possam produzir livre-
mente com excelência. Dessa maneira, gerentes tornam-se líderes que promovem
visão e inspiração. Essa máxima atinge, na educação, principalmente os diretores
de escola, produzindo uma mudança de valores e de subjetividade. (BALL, 2011).
Entretanto, essas mudanças devem ser vistas em um contexto maior de estrutura
conceitual da política que estabeleceu a infraestrutura e os incentivos na forma de
mercado, através de mecanismos de financiamento e de responsabilização (accon-
tability) relacionados à performance. A adoção da performatividade na educação
e no setor público promoveu uma cultura dos modos de regulação e de controle,
característicos do setor privado. “Nos termos de seus modos de operação, o setor
público não é mais visto como tendo qualidades especiais que o distinguem de um
negócio” (BALL, 2011, p. 25).
Na Inglaterra, o gerencialismo promoveu uma profunda onda de privatização
dos serviços públicos e mesmo onde estes continuaram a ser públicos passou-se
a exigir que atuassem dentro do mercado competitivo se tornando negócios. “O
gerencialismo, então, atuou como um tipo de isomorfismo discursivo: uma lingua-
gem que todos precisavam falar para soar modernos” (NEWMAN; CLARKE, 2012,
p. 361-362).
A mudança de gestão de pública para privada não era o único objetivo do
gerencialismo, uma vez que as instituições contratadas para prestarem serviço pú-
blico estavam sujeitas a comprovação de desempenho, metas, regimes e exigências
contratuais. A essas características, Clarke (2005) chamou de nexo desempenho-
-avaliação, pois ao contratar empresas privadas para realizar o serviço público,
ocorreu uma demanda por novas formas de auditoria, fiscalização e vigilância, for-
mas essas que combinaram aspectos de efetividade e de busca por dinheiro para
governar a distância. Essas características e formas de governar continuam pre-
sentes na gestão e, ao primeiro sinal de crise ou de cortes para austeridade, essas
combinações são colocadas em prática. A crise reforça a necessidade de inovação
tanto dos sistemas de controle financeiro e organizacional, quanto do governo de si,
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à medida que possam ser ofereceridas novas estratégias de mercado para sobrevi-
vência e transformação (NEWMAN; CLARKE, 2012).
Uma das bases do modelo gerencial é a dispersão do poder do Estado de ma-
neira a liberar os que gerenciam o controle governamental para encontrar ma-
neiras flexíveis que correspondam às permanentes mudanças, o que Newman e
Clarke (2012) chamaram de estado gerencial.
A exigência de desempenho foi se alterando diante de distintos momentos de
mercantilização que proporcionaram a introdução de parcerias público-privadas
e da terceirização como meio de redução de custos e o desenvolvimento de novas
formas organizacionais. Entretanto, algumas dessas organizações podiam ser isen-
tas da obrigação por resultados. “A responsabilidade para com o estado e o público
mais amplo era enfraquecida na medida em que a lógica dos negócios era intensifi-
cada” (NEWMAN; CLARKE, 2012, p. 364).
Os efeitos, dessa perspectiva na educação são diversos, como pode ser verifi-
cado em algumas políticas em execução no Brasil que carregam a lógica gerencial
como pressuposto teórico. O primeiro aspecto a ser registrado é o da gestão escolar,
que tem sido transformada de um modelo de administração pública para um mo-
delo de gestão gerencial. O segundo aspecto é da escolha dos pais, o que introduz a
competitividade entre escolas para atrair o cliente.
No início dos anos 1990, enquanto muitos falavam que a educação havia sido privatizada
e mercantilizada, muito do esforço da reforma educacional nos países de alta renda cen-
trou-se na introdução da concorrência e de políticas de escolha (mais conhecida como qua-
se-mercados) para a governança da educação (Chubb & Moe, 1988; Gewirtz, Ball & Bowe,
1995), ao invés de privatização em linha direta (Dale, 1997) (ROBERTSON; VERGER,
2012, p. 1137).
Consequentemente, a educação como direito subjetivo e como bem público so-
fre uma mutação que a transforma em um negócio. Estudos comprovam que essa
tendência não fica restrita ao campo educacional, e se desdobra em outros serviços
públicos, como na saúde (NEWMAN; CLARKE, 2012).
Milton Friedmam (1995), em um artigo no jornal Washington Post, defendeu
ardentemente, que o sistema público de educação precisava ser privatizado. O pre-
texto era que a indústria privada tem melhores condições de concorrência e de
oferta para os clientes, de maneira a incentivar a escolha dos pais pela melhor
escola para seus filhos.
Mais recentemente, Ball (2007) estudou o crescimento da privatização da edu-
cação como um grande negócio. O autor, contudo, adverte para os perigos de uma
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Mídia impressa em educação: redes políticas e a nova lantropia em ação
análise totalizante, na qual o avanço das parcerias público-privadas teriam um
único elemento de origem. A privatização envolve uma
[...] diversidade de tipos de mudanças em processos políticos e o papel do Estado, em orga-
nizações, pessoas e suas relações sociais. É possível que devêssemos encarar a privatização
como parte de um quadro muito maior de mudanças sociais e mudanças no social (BALL,
2007, p. 185, tradução nossa).
7
Ball e Youdell (2007) fazem uma diferença entre dois tipos de privatização: a
endógena e a exógena. A endógena diz respeito à privatização como importação de
métodos de gestão, de valores e de conceitos oriundos da iniciativa privada no espa-
ço público. E a exógena é aquela que abre a possibilidade para que o setor privado
tenha uma participação nos serviços públicos. (AKKARI, 2011).
A privatização, segundo Barroso (2013), é, hoje, um termo amplamente usado,
mas fracamente definido, servindo apenas para polarizar os debates em bom ou
ruim. Apesar das várias perspectivas que o conceito pode ser desdobrado, a priva-
tização se refere à diminuição estatal e à redução do dinheiro público, para uma
maior desregulação e passagem de serviços para o setor privado. O autor trabalha
com quatro modelos de intervenção do Estado: (1) a educação como bem essencial-
mente público, (2) a educação como bem essencialmente privado, (3) a educação
como bem predominantemente público e (4) a educação como bem predominante-
mente privado (BARROSO, 2013).
A privatização aparece, assim, como uma alternativa para melhoria dos ser-
viços públicos, de fronteiras indefinidas. Cada vez mais o privado ganha formas,
modos sofisticados e elaborados de organização e execução. Privatizar, entretanto,
não significa uma mudança total e radical dos sistemas de ensino.
Ao contrário do que as teses radicais querem fazer crer, hoje em dia, na maior parte dos
países, os dois sistemas sobrepõem-se em muitos domínios, as suas fronteiras diluem-se, a
sua especificidade diminui, Em vez de um jogo de soma nula entre dois setores estanques,
verifica-se uma hibridização do público e do privado e uma complexificação das suas rela-
ções (BARROSO, 2013, p. 52).
Essa hibridização entre público e privado tem diluído as fronteiras dos dois
sistemas, fazendo desaparecer qualquer questão de fundo que antes os separava,
tais como: ética, religião e filosofia. Maroy (2011), ao se referir à experiência da
comunidade francófona na Bélgica, na qual os pais podem escolher as escolas em
decorrência da liberdade religiosa, afirma que essa escolha acaba relacionada mais
ao paradigma da eficácia organizacional do que por valores e modelos pedagógicos
(BARROSO, 2013). Assim, decorre do clima organizacional a atratividade das fa-
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mílias pela escola privada a partir da impressão de que há uma facilidade e maior
individualidade nas respostas às demandas e expectativas dos clientes (estrutura,
recursos e modos de funcionamento) do que nas escolas públicas (BARROSO, 2013).
Nesta perspectiva, a instituição dos modelos de parcerias público-privadas
tem levantado questões que afetam a educação na sua forma de direito público com
consequências variadas nos seus diversos contextos e arenas.
No Brasil, os pesquisadores que estudam a interpenetração do privado no pú-
blico e suas relações indicam que essas parcerias tiveram início, com maior força, a
partir dos anos 1990, como consequência internacional da proposta de reorganização
do Estado. Apesar de o país não ter vivido, em nenhum momento da sua história, o
modelo de Estado de Bem-Estar Social, as suas ideias e conceitos tiveram influência
na legislação brasileira. Porém, mesmo que em termos de legislativo se procurou
assegurar direitos cidadãos, esses não se concretizaram na realidade social.
Entendemos que, no caso brasileiro, há uma especificidade, pois, com o processo de abertu-
ra política, após longa ditadura, a luta pela democratização da sociedade passou também
pela construção de uma gestão democrática da educação. No entanto, ao mesmo tempo que
lutávamos muito, na América Latina, para conquistar os nossos direitos, as estratégias
do capitalismo para superar suas crises já redefiniam o papel do Estado, com a perda de
direitos sociais, materializados em políticas públicas (PERONI, 2012, p. 20).
As redefinições entre o público e o privado no Brasil têm sido foco de estudos
no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
por meio do grupo de pesquisa coordenado pela Professora Vera Peroni. O grupo
desenvolve seus trabalhos a partir da perspectiva teórica neomarxista, debruçan-
do-se sobre a relação público-privada e seus desdobramentos na Educação Básica
e nas políticas educacionais atuais (PERONI; ROSSI, 2011). Os estudos da relação
público-privado não ficam restritos unicamente a este grupo e são tema de vários
outros trabalhos em Programas de Pós-Graduações que tenham como viés as polí-
ticas educacionais. Em 2017, houve em Porto Alegre o I Seminário Nacional Rede-
finições das Fronteiras entre o Público e o Privado, o que comprova a emergência
da temática como foco de interesse.
Em vista disso, as pesquisas sobre as relações público-privadas no Brasil têm
se desenvolvido nos últimos anos e crescem, na medida em que crescem também as
parcerias, redes e laços entre os dois setores, com a introdução de outros elementos
como o Terceiro Setor ou Terceira Via
8
.
As primeiras leis brasileiras não instituíram a obrigatoriedade do ensino público,
o que privilegiou que as primeiras instituições educativas estivessem sob a responsa
-
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bilidade privada de instituições religiosas voltadas para a elite. Consequentemente, a
relação entre o público e o privado no Brasil ocorreu de maneira diferente dos países
desenvolvidos, que conseguiram tornar a educação pública acessível para todos.
A Constituição de 1988, segundo Oliveira (2005), ao legislar sobre as formas de
oferta educacional no país, contou com a disputa de três grupos: (1) os defensores
da escola pública universal como única a receber verbas públicas; (2) os setores re-
ligiosos confessionais que defendiam uma diferenciação entre as escolas públicas,
classificando-as como: públicas estatais e públicas não estatais e incluindo-se nesta
última categoria e (3) o setor privado empresarial, que não se opunha ao repasse
de verbas públicas (ao contrário) e solicitava liberdade para regular seus preços.
A Constituição Federal abriu possibilidade à terceira via de receber recursos
públicos ao ser reconhecida como público não estatal, naturalizando essa transfe-
rência de financiamento. O interesse do empresariado na educação brasileira não
era algo novo e ganhou vigor com a concretização, nos anos 2000, do Movimento
Todos Pela Educação (TPE).
Os empresários, há algum tempo, vinham dialogando com setores do governo
sobre as demandas e necessidades de qualificação diante dos rearranjos dos mode-
los de trabalho. Nesse sentido, o setor se organizou para proporcionar a elevação
do nível de escolarização e a qualificação profissional para competir na economia
globalizada. Os interesses privados no campo público seguiram, num primeiro mo-
mento, a lógica da intervenção no currículo para que os conteúdos básicos fossem
prioridade para formação da mão de obra trabalhadora. E, no segundo momento,
passaram a focar em campos diversificados, como: material didático, tecnologias
educacionais, modelo de gestão gerencial, pacotes de serviços entre outros.
Em 2005, pela primeira vez de forma orgânica, esse segmento conseguiu se or-
ganizar e criar o TPE com a justificativa de melhorar a qualidade da educação bra-
sileira para a capacidade competitiva (STRASBURG; CORSETTI; GARCIA, 2017).
Fundado em 2006, o Todos Pela Educação é um movimento da sociedade civil brasileira
que tem a missão de contribuir para que até 2022, ano do bicentenário da independência do
Brasil, o país assegure a todas as crianças e jovens o direito a Educação Básica de qualida-
de. Apartidário e plural, congrega representantes de diferentes setores da sociedade, como
gestores públicos, educadores, pais, alunos, pesquisadores, profissionais da imprensa, em-
presários e todas as pessoas ou organizações sociais que são comprometidas com a garantia
do direito a uma Educação de qualidade (BRASIL, 2008).
O Movimento TPE incorporou o discurso das lutas do período da democrati-
zação ressignificando-o de acordo com os ideais dos empresários em consonância
com as ideias gerenciais. O movimento TPE criou, em 2007, o Plano de Metas
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Compromisso Todos Pela Educação, que foi assumido pelo governo federal e inse-
rido no Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE). O PDE se tornou a política
educacional dos governos Luís Inácio Lula da Silva, com continuidade no governo
de Dilma Rousseff. Por meio do PAR (Plano de Ações Articuladas), os municípios
e Estados poderiam utilizar parcerias com os setores privados para várias ações e
aquisições de materiais e tecnologias. Dessa maneira, o MEC serviu como poten-
cializador de parcerias público-privadas na educação.
O Brasil vem seguindo a mesma perspectiva de avanço do setor privado sobre o
setor público, como ocorre no contexto internacional. Esse avanço pode ser identifi
-
cado pelo crescimento tanto das parcerias público-privadas a nível nacional como das
pesquisas que têm aprofundado os formatos de ocorrência das relações de parceria, e
de quem são os atores envolvidos. Nesse sentido, o Instituto Ayrton Senna (COMER
-
LATTO; CAETANO, 2013), o Instituto Unibanco (MONTEIRO, 2013), o Grupo Posi-
tivo (MONTANO, 2013), entre outros, são alguns representantes dessas instituições
que estão em estudo pelas múltiplas relações que estabelecem com o setor público.
Um aspecto relevante das parcerias público-privadas está na configuração de
quase-mercado na gestão pública. Segundo Souza e Oliveira (2003), o quase merca-
do é a alternativa de trazer para as instituições públicas as concepções da iniciati-
va privada sem mudar a propriedade dessa. Assim, o quase-mercado diferencia-se
da noção de mercado, podendo ser implantado no setor público sob a justificativa
de melhorias. Nessa mesma perspectiva, está conectada a tentativa da utilização
do Terceiro Setor na execução de tarefas públicas. Ambas as respostas: (1) quase
mercado e (2) Terceira Via ou Terceiro Setor se adunam como alternativas para
falência do Estado, conforme a perspectiva neoliberal (PERONI; ADRIÃO; 2005).
A parceria público-privado tornou-se objeto de análise como algo contingen-
te, pois foi ao aprofundar as referências do material empírico e o histórico das
instituições que editam as Revistas Nova Escola e Gestão Escolar que uma rede
de relações e parcerias entre o setor público e o setor privado ficaram evidentes.
Assim, o público e o privado emergiram como algo paralelo ao objeto, mas que na
essência o constitui.
As fundações lantrópicas e suas redes políticas
As Revistas Nova Escola e Gestão Escolar fazem parte da Associação Nova
Escola, que pertence hoje à Fundação Lemann. Segundo o site da Associação Nova
Escola, a referida Fundação se constituiu em uma entidade sem fins lucrativos,
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Mídia impressa em educação: redes políticas e a nova lantropia em ação
cuja missão é transformar a educação brasileira por meio de conteúdos e serviços
de alta qualidade, com foco em professores e gestores. A partir de 2015, a Fundação
Lemann passou a ser a mantenedora da Associação, que antes disso era de proprie-
dade e editada pela Fundação Victor Civita (FVC).
Segundo os dados da Associação Nacional dos Editores de Revista (Aner), des-
de 2007, a Revista Nova Escola é a revista brasileira de maior circulação entre o
público docente. As duas fundações que estão na gênese de Nova Escola e Gestão
Escolar, Victor Civita
9
e Lemann
10
, são fundações formadas por grandes empre-
sários brasileiros que estabelecem o campo educacional como prioridade de suas
ações filantrópicas, como podemos encontrar nas missões das fundações:
Fundação Victor Civita
Criada em 1985 pelo próprio Victor Civita, a fundação tem como missão Contribuir para a melhoria da qua-
lidade da Educação Básica no Brasil, produzindo conteúdo que auxilie na capacitação e valorização de
professores e gestores e influencie políticas públicas. O objetivo da organização é ajudar professores,
gestores escolares e formuladores de políticas públicas. O sonho do fundador era lutar por um país no qual
não faltassem escolas, bons professores, incentivo ao trabalho docente e materiais de apoio às práticas
pedagógicas.
Fonte: Grupo Abril (2017).
Fundação Lemann
Colaborar com pessoas e instituições em iniciativas de grande impacto que garantam a aprendizagem de
todos os alunos e formar líderes que resolvam os problemas sociais do país, levando o Brasil a um salto
de desenvolvimento com equidade.
Fonte: Fundação Lemann (2017).
A preocupação da Fundação Victor Civita está no problema da qualidade da
educação básica no país e, por isso, tem como iniciativa produzir um conteúdo que
proporcione ao professor e ao gestor uma capacitação. No mesmo sentido, a preocu-
pação da Fundação Lemann também se centra na garantia da aprendizagem para
resolver os problemas sociais e formar líderes para o país, levando-o ao desenvol-
vimento.
Registra Ball (2014) que, de maneira global, existe uma disseminação de
ideias privadas e empreendedorismo social que pretende resolver os problemas da
educação pública no sentido de desnacionalização do Estado. Essa soma de mudan-
ças, segundo o autor, sugere o fim da educação pública na sua forma de bem-estar.
Um novo grupo de conceitos e métodos é necessário para lidar com as contínuas mudanças
em governança educacional dentro de uma estrutura global. As formas como a política
educacional, as empresas, a filantropia e o desenvolvimento internacional se organizam
e se inter-relacionam estão mudando em função dos métodos que daquilo que se pode ser
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entendido como capitalismo social-global. Dentro dessa nova configuração, soluções inova-
doras e velhas soluções para problemas sociais de desenvolvimento baseadas no mercado
estão sendo privilegiadas e fortalecidas através de uma nova elite global, conectada em
rede, formada por promotores de políticas e novos filantropos. O que há de novo na nova
filantropia é a relação direta entre caridade e resultados e o envolvimento direto dos doa-
dores nas ações filantrópicas e nas comunidades políticas (BALL; OLMEDO, 2013, p. 33).
As missões da Fundação Victor Civita e da Fundação Lemann deixam trans-
parecer os paradigmas da nova filantropia, ao estabelecerem como objetivo a con-
tribuição das experiências privadas para o setor da educação pública brasileira.
Além disso, ambas têm redes de contatos, importando experiências internacionais
para o setor. A Fundação Lemann possui o Lemann Center for Educational Entre-
preneurship and Innovation in Brazil
11
, o qual busca ampliar a investigação e o
diálogo sobre a educação brasileira. Além da realização de um seminário interna-
cional, no qual pesquisadores apresentam resultados e propõem diálogo com atores
de liderança da sociedade brasileira, o centro conta com um programa de bolsas
chamado Lemann Fellowship.
Por meio do Programa, a fundação pretende oferecer oportunidades excepcio-
nais de desenvolvimento profissional e pessoal a indivíduos de alto potencial como
registra o documento do Banco Mundial Professores Excelentes (2014) para que,
posteriormente, essas mesmas pessoas ocupem cargos de destaque no setor público
com sua visão educacional.
As duas fundações aqui pesquisadas mantêm relações de parcerias com outros
grupos e entidades que estabelecem filantropia na educação, como podemos ver
nas páginas iniciais da própria revista: Instituto Unibanco, Fundação Itaú Social,
Instituto Península.
Imagem 1 – Recorte da página de apresentação da Revista Gestão Escolar
Fonte: Edição Especial Gestão Escolar: Mapa dos Currículos (2015, p. 3).
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A Fundação Instituto Unibanco, criada em 1982, tem, entre os seus objetivos,
promover investimento social privado do Unibanco que, em 2008, formou o con-
glomerado Itaú Unibanco. A partir do ano de 2002, o Instituto redirecionou suas
ações e passou a trabalhar prioritariamente com educação. Com a criação do pro-
jeto Jovem de Futuro, em 2007, a instituição se concentrou em atuar na melhoria
do Ensino Médio público, por considerar essa fase estratégica para a formação da
juventude e o desenvolvimento do país.
A Fundação Itaú Social, criada em 1999, após vários programas de incentivo
social do Banco Itaú, atua na perspectiva de uma abordagem sistêmica e com-
preende que o campo educacional é peça-chave para o desenvolvimento sustentável
do país, seguindo os valores e compromissos do Banco. Além disso, o investimento
em educação é uma das forças motrizes de transformação social na visão do Itaú.
O instituto Península é um braço social da Península Participações, criado em
2010, pela família Abílio Diniz, tendo como causas a educação e os esportes. Como
projetos de destaque no site do instituto referentes ao campo da educação, encon-
tramos referência de outro instituto: o Instituto Singularidades, que tem como foco
a formação de professores.
Como o Instituto Península incorpora ainda um outro instituto, este também
foi inserido na investigação para um maior detalhamento do nível de abrangência
dessa rede. O Instituto Singularidades atua na formação de professores e é um
braço social do Instituto Península. O instituto foi criado em 2001 para atender às
novas necessidades da formação de professores, gestores e especialistas em ensino
do século XXI. Oferece cursos de graduação, pós-graduação, lato-sensu e extensão
universitária.
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Quadro 1 Redes de relações estabelecidas a partir da Revista Nova Escola e Gestão Escolar
Fonte: Elaborado pelas autoras a partir de dados encontrados nos sites das instituições.
Essa rede política atua no campo educacional divulgando suas ideias, con-
cepções e influenciando políticas públicas. No estudo com as revistas, no período
de 2013 a 2017, foi identificado um alinhamento dos materiais impressos com as
propostas do Banco Mundial para o setor educacional. O BM é reconhecido por di-
vulgar, propagar e financiar políticas neoliberais e de mercado nos diversos campos
do social.
Considerações nais
Neste texto, foi delineada a existência de uma rede política em atuação no
campo da mídia impressa em educação. Essa rede emergiu a partir da escolha do
objeto empírico na investigação das convergências, tensões e desafios nas políticas
de formação e carreira com base em documentos do Banco Mundial. O estudo com
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as Revistas Nova Escola e Gestão Escolar que serviram como superfície analítica
identificou pontos de convergência ou tensão quanto às prescrições externas nas
temáticas de interesse.
Muitas reportagens analisadas comprovaram a aproximação do pensamento e
de referências a documentos do Banco Mundial nas orientações à formação e à car-
reira de professores. Nova Escola e Gestão Escolar defendem uma formação de pro-
fessores voltada cada vez mais para prática e para o saber fazer. Quanto à carreira,
as Revistas impulsionam um discurso de performatividade e responsabilização dos
professores sobre a qualidade da educação por meio de resultados educacionais.
As Revistas Nova Escola e Gestão Escolar têm como característica a cons-
trução de narrativas com conteúdos gerenciais e neoliberais, que se diluem nas
análises de especialistas em educação. Muitos dos especialistas estão ligados à rede
de parceiros privados e fundações que estabelecem laços com a Fundação Lemann.
Outro elemento representativo é a abordagem de temáticas complexas de maneira
rápida e sem aprofundamento e as receitas pedagógicas de como fazer uma aula
como marca das Revistas. Vários assuntos e soluções são arranjadas para compor
um quadro discursivo que no âmbito da formação e da carreira docente se adequam
ao quadro maior de convergências.
As ações dessas fundações privadas no âmbito público, na teoria, são divulga-
das como de bem-estar social e sem qualquer caráter financeiro. Porém, na prática,
evidenciam o interesse de influenciar as políticas em educação conforme o modelo
privado. A filantropia tem como tendência a proposta de parcerias público-priva-
das, nas quais recursos públicos são injetados no setor privado na compra de asses-
soria à gestão, pacotes tecnológicos, materiais didáticos e paradidáticos, sistemas
de monitoramento e avaliação das redes de ensino, entre outros.
Nesse sentido, a mídia impressa, suas relações e prescrições, tornam-se um
campo para futuras pesquisas pela sua abrangência e permeabilidade nos diversos
contextos educacionais. A atuação da rede de parceiros da Fundação Lemann é
extensa e provavelmente maior do que a abordada nestas páginas.
No momento histórico que vivemos no Brasil, após a eleição do presidente Jair
Bolsonaro, é esperado que essas relações se tornem cada vez mais poderosas e que
a influência de grandes grupos privados passe a ser ainda mais forte diante do re-
cuo de diversas políticas sociais. A utilização de dados analisados superficialmente
e de narrativas como das Revistas Nova Escola e Gestão Escolar auxiliam na cons-
trução de um discurso de excelência do privado sob o público. Esses discursos e
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narrativas abrem caminho para o quase-mercado e para privatização da educação
com a anuência da sociedade.
Notas
1
“A educação precisa de respostas” foi tema de uma campanha recente da emissora gaúcha, que divulgou o
assunto na mídia. Foi uma campanha liderada pelo Grupo RBS veiculada, em especial, aos estados do Rio
Grande do Sul e de Santa Catarina, nos anos de 2012 e de 2013. Disponível em: http://www.clicrbs.com.br/
especial/rs/precisamosderespostas/pagina,0,0,0,0,Sobre-o-projeto.html. Acesso em: 20 out. 2018.
2
Terceira cultura é a chamada cultura da comunicação de massa, que pode ser compreendida como alimen-
tada a partir de outras culturas, como a cultura nacional, a cultura familiar, a cultura religiosa etc. Os
meios de comunicação de massa, tais como rádio, jornal, televisão, revista, livro, cinema, entre outros, são
dirigidos, em geral, para entretenimento, lazer e informação. Além disso, integra a divulgação por meios
eletrônicos como TV, antenas, celulares e internet (MELO; TOSTA, 2008, p.14).
3
O termo meios de comunicação de massa é entendido como designando meios tecnológicos, eletrônicos,
digitais que realizam uma intermediação entre a mensagem e o receptor entre os quais estão: a imprensa,
a TV, o rádio, a internet etc.
4
A indústria cultural, termo cunhado por Theodor Adorno e Max Horkheimer (1944), propunha criticar
e denunciar a cultura de massa, nas décadas de 30 e de 40 do século XX. Para os autores, a indústria
cultural era a forma utilizada para produção de uma falsa cultura que descaracterizaria uma cultura
de fato, ou seja, aquela compreendida como cultura erudita. Essa cultura de massa designa uma cultura
produzida longe de seus consumidores, apenas para entretenimento. Os dois autores, de formação eru-
dita, fizeram uma crítica ao formato que a cultura moderna estava tomando. Para eles, a racionalidade
comercial e tecnológica da burguesia domina todas as esferas da vida através da ideologia capitalista. O
ser humano comum estaria perdido numa névoa, sem condições de fazer a análise crítica desse processo
de desenvolvimento e acumulação a qualquer custo. A denúncia se fixava na questão de que a indústria
cultural do entretenimento era produto da estrutura econômica do mercado, o que não favorece a crítica e
auxilia na manutenção de uma sociedade autoritária. Assim, esses autores possuem uma visão negativa
sobre a indústria da cultura, que está assentada na dominação e na manipulação. A principal recusa aos
apontamentos da Teoria da Indústria Cultural, que se faz na atualidade, está centrada na concepção da
escola de Frankfurt, com relação ao entendimento do conceito de cultura, que foi sendo problematizado
nas décadas posteriores do século XX. Nesse sentido, é como se os referidos autores trabalhassem com uma
compreensão estreita de cultura, na qual a diversão e o entretenimento não são importantes, tais como
a arte popular e/ ou a arte para diversão. Somente as manifestações que elevassem o espírito e tivessem
como intenção conhecimentos mais profundos e reflexivos poderiam sem consideradas verdadeiras formas
de cultura. As outras formas de criar, consumir e difundir cultura eram vistas como alienantes, pois es-
tavam ligadas ao conformismo. “A indústria cultural teria o monopólio da formação das consciências, pois
atingiria a todos igualmente, reduziria a participação ativa dos grupos sociais e dos indivíduos. Em linhas
gerais, então, todos aceitariam passivamente a dominação da sociedade burguesa ao consumir seu entre-
tenimento”. (SETTON, 2010, p. 46).
5
Por impresso pedagógico, compreendemos todos os meios de comunicação especializados em educação, os
quais estão desde os livros didáticos passando por jornais, revistas, manuais e divulgações utilizadas pelos
professores. (ROCHA, 2016, p. 7).
6
O gerencialismo foi estudando, primeiramente, na Grã Bretanha sob os governos de Tatcher (1979-1992)
e John Major (1992-1997) e, posteriormente, foi introduzido também nos EUA e na Nova Zelândia. New-
man e Clarke (2012) ressaltam que o gerencialismo, assim como todos os outros movimentos que temos
descritos aqui, sempre precisam ser analisados dentro das particularidades da história nacional. Essa
interpretação complexa deve ocorrer mesmo quando as análises são endereçadas às redes internacionais
ou transnacionais de modelos de políticas.
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Mídia impressa em educação: redes políticas e a nova lantropia em ação
7
[...] variety of kinds of change in political processes and the role of the state, in organisations, people and
their social relationships . It maybe that we should see privatisation as part of a much larger can vas of
social changes and changes in the social.
8
Por Terceiro Setor/Terceira Via, compreende-se as instituições públicas não estatais. A Terceira Via surge
como uma alternativa para a social democracia e o neoliberalismo, na qual a estratégia para superação da
crise está no Terceiro Setor. Esse Terceiro Setor pressupõe a existência do Estado e do mercado que atuem
através de uma série de inciativas privadas com sentido público, como por exemplo: das Organizações
Não-Governamentais (ONGs). (PERONI, 2011). A terceira via também conta com trabalho filantrópico e
trabalho de voluntariado, de acordo com site da bhbit, que oferece softwares para o setor. Disponível em:
https://www.bhbit.com.br/. Acesso em 01 de mar. 2018.
9
A Fundação Victor Civita é comandada por Vitor Civita Neto, filho de Roberto Civita, f
alecido
em 2013.
Em 2014, Victor Civita Neto entrou para lista da Revista Forbes dos bilionários do ano.
Naquele ano, o
grupo emprega
va
cerca de 7.000 pessoas. Seu braço da Editora Abril tem uma participação de mercado
de 54% na circulação de revistas e
de
58% de receita de publicidade em revistas no Brasil. Publica cinco
dos dez principais títulos de revistas do país, incluindo o influente periódico Veja, fundado por Roberto
em 1968. A família também é dona da maioria da empresa de ensino de capital aberto, a Abril Educação.
Disponível em: https://www.forbes.com/profile/victor-civita-neto/. Acesso em: 09 de jul., 2019. Em 2018, o
empresário não consta na lista.
10
A Fundação Lemann é propriedade do empresário Jorge Paulo Lemann, o homem mais rico do Brasil, se-
gundo o ranking da Revista Forbes, desde o ano de 2013. Em 2017, era o 22º colocado em nível mundial e
em 2018, ficou na posição 29º na lista dos bilionários. Sua riqueza vem de grupos como a Anheuser-Busch
InBev, holding que controla a cervejaria Ambev, a Kraft Heinz, dona do ketchup Heinz, e do Restaurant
Brands International, proprietário do Burger King. O sucesso conquistado em duas décadas à frente do
Banco Garantia se ampliou com a fusão das cervejarias Brahma e Antártica, que deu origem à Ambev. Dis-
ponível em: http://forbes.uol.com.br/negocios/2017/04/18-fatos-curiosos-sobre-o-bilionario-jorge-paulo-le-
mann/. Acesso em: 09 de jul., 2019.
11
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Altair Alberto Fávero, Daniela de Oliveira Pires, Evandro Consaltér
*
Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs, Brasil) com pós-doutoramento (Bolsista
Capes) pela Universidad Autónoma del Estado de México (UAE-México). Atua como professor e pesquisador no Curso
de Filosoa, no Mestrado e Doutorado em Educação da Universidade de Passo Fundo (UPF, Brasil). ORCID https://
orcid.org/0000-0002-9187-7283. E-mail: altairfavero@gmail.com
**
Professora Adjunta da Universidade Federal do Paraná (UFPR, Brasil). Doutora em Educação pela Universidade Fe-
deral do Rio Grande do Sul (Ufrgs, Brasil). ORCID https://orcid.org/0000-0003-2755-4911. E-mail: danielaopires77@
gmail.com
***
Doutorando em Educação (Bolsista Capes) pela Universidade de Passo Fundo (UPF, Brasil). Pesquisador e vice-coor-
denador do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação Superior – Gepes, vinculado ao Programa de Pós-Gradu-
ação em Educação da Universidade de Passo Fundo (Brasil) e aoGrupo Internacional de Estudos e Pesquisas sobre
Educação Superior - Giepes, com sede na Universidade de Campinas (Unicamp, Brasil). ORCID https://orcid.org/0000-
0001-8798-8960. E-mail: evandroconsalter@gmail.com
Recebido em 07/05/2019 – Aprovado em 17/09/2019
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i1.10577
Escola conveniada ou charter school? Uma abordagem sobre termo de
colaboração entre a prefeitura e o terceiro setor para oferta da educação
básica em Porto Alegre
Accredited school or charter school? An approach to a term of collaboration between prefecture
and the third sector for the oer of basic education in Porto Alegre
¿Escuela acretidada o escuela charter? Un enfoque de un plan colaborativo entre la prefectura y
el tercer sector para la oferta de la educación básica en Porto Alegre
Altair Alberto Fávero
*
Daniela de Oliveira Pires
**
Evandro Consaltér
***
Resumo
O presente estudo analisa se as parcerias rmadas entre o Poder Público e o Terceiro Setor para a oferta de
educação básica podem ser conguradas como modalidades de escola charter. Em particular, aborda Termo de
Colaboração rmado entre a Prefeitura de Porto Alegre e uma Organização da Sociedade Civil. Além disso, anali-
sa como o Marco Regulatório do Terceiro Setor pode servir de aporte para a perpetração do setor privado sobre
o setor púbico na área da educação através de termos de colaboração entre o Poder Público o Terceiro Setor. O
estudo caracteriza-se como qualitativo, valendo-se de dados bibliográcos e documentais, ancorado no método
dedutivo-analítico. Como resultados, aponta que as parcerias analisadas podem ser comparadas às escolas char-
ter, embora a nomenclatura diferenciada. Além disso, representam uma concepção de educação que se afasta
do ideário da gestão democrática, do exercício da cidadania e da emancipação social.
Palavras-chave: Escolas Charter. Marco Regulatório. Terceiro Setor. Parceria Público-Privadas.
111
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Escola conveniada ou charter school? Uma abordagem sobre termo de colaboração entre a prefeitura e o terceiro setor para oferta da educação...
Abstract
The present study analyzes if the partnerships established between the Government and the Third Sector for
the provision of basic education can be congured as a charter school modality. In particular, it deals with a
Collaboration Agreement signed by the Porto Alegre City Hall and a Civil Society Organization. It also analyzes
how the Third Sector Regulatory Framework can serve as a contribution to the perpetration of the private sector
over the public sector in the area of education through terms of collaboration between the Government and the
Third Sector. The study is characterized as qualitative, using bibliographic and documentary data, anchored in
the deductive-analytical method. As a result, it points out that the analyzed partnerships can be compared to
charter schools, although the dierent nomenclature. Moreover, they represent a conception of education that
is far from the ideal of democratic management, the exercise of citizenship and social emancipation.
Keywords: Charter Schools. Regulation Mark. Third Sector. Public-Private Partnership.
Resumen
El presente estudio analiza si las alianzas establecidas entre el Gobierno y el Tercer Sector para la provisión de
educación básica pueden congurarse como modalidades de escuela charter. En particular, se trata de un Acuer-
do de Colaboración rmado por la Prefectura de Porto Alegre y una Organización de la Sociedad Civil. También
analiza cómo el Marco Regulatorio del Tercer Sector puede servir como una contribución a la perpetración del
sector privado sobre el sector público en el área de la educación a través de los términos de colaboración entre
el Gobierno y el Tercer Sector. El estudio se caracteriza por ser cualitativo, utilizando datos bibliográcos y docu-
mentales, anclados en el método deductivo-analítico. Como resultado, señala que las asociaciones analizadas
se pueden comparar con las escuelas charter, aunque la nomenclatura es diferente. Además, representan una
concepción de la educación que parte del ideal de la gestión democrática, el ejercicio de la ciudadanía y la
emancipación social.
Palabras clave: Escuelas Charter. Marco Regulatorio. Tercer Sector. Asociación Público-Privadas.
Introdução
Muito disseminadas nos Estados Unidos, as charter schools, introduzidas
inicialmente em Minnesota, em 1992, são financiadas com dinheiro público, mas
gerenciadas de forma privada. Segundo Abrams (2016), essa modalidade de escola
consolida as ideias de Friedman, que há décadas já recomendava que operadores
com fins lucrativos administrassem escolas públicas como critério para elevar a
qualidade do ensino. Abrams (2016) elenca uma série de empresas especializadas
em administrar escolas americanas com fundos públicos. Entre as maiores, destaca
a Edison Schools Inc., com sede no décimo quinto andar de uma torre de escritórios
em Manhattan. Em 2001, a Edison já administrava uma rede de 114 escolas com
74.000 estudantes em 23 estados. Um pouco mais da metade dessas escolas eram
escolas distritais, enquanto o restante eram escolas charter.
Empresas como a Edison passaram a ser conhecidas como Educational Mana-
gement Organizations (Organizações de Gerenciamento Educacional), ou apenas
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EMOs. Conforme Abrams (2016), as EMOs eram uma resposta da educação às
Health Maintenance Organizations (Organizações de Manutenção de Saúde), ou
HMOs, muito comuns na época por administrarem com fundos públicos setores da
saúde. Com o mesmo escopo, as EMOs operavam o propósito de “melhorar o servi-
ço, conter custos e, em muitos casos, obter lucro” (ABRAMS, 2016, p. 9, tradução
dos autores). Hoje, as escolas charter americanas compõem um universo de mais
de 6 mil escolas em 42 estados.
O que Abrams (2016) destaca da experiência americana, Bunar (2012) tam-
bém evidencia em seus estudos sobre o sistema educacional da Suécia, outro país
que apostou muito em um modelo descentralizado e nas Charter Schools. Ambos
constatam que, embora os aparentes resultados positivos das avaliações e rankings
nacionais e das enfáticas defesas desses sistemas como modelos modernos e mais
eficazes, há elementos negativos a serem considerados. Conforme os autores, o
estresse ligado à escolha da escola pela família, o tempo excessivo dedicado ao
marketing e a inflação de notas, como forma de melhorar a posição de uma escola
no mercado resultaram em significativos indicadores de aumento de mecanismos
socialmente injustos e segregadores do sistema educacional, que em sua constru-
ção socio-histórica deveria conceber uma educação pautada pelo princípio do bem
comum (DARDOT; LAVAL, 2017).
Apesar de outros países latino americanos terem experienciado essa moda-
lidade escolar em maior escala, como é o caso do Chile (ELACQUA, 2009) e da
Colômbia (EDWARDS JR.; HALL, 2017), no Brasil, pouco se tem registrado sobre
tal temática ou iniciativas dessa natureza organizacional. Sardinha (2013) cita o
exemplo de uma breve tentativa em Pernambuco, entre os anos de 2005 e 2007,
por meio de um projeto denominado “Procentro”, uma parceria entre o governo do
estado, municípios e a Fundação Itaú Social (SARDINHA, 2013, p.79).
A escassez de registros de tal iniciativa no Brasil é constatada por Adrião
(2014), que em levantamento sobre publicações brasileiras no Scielo e Banco de
Tese da Capes, referentes ao período de 1990 a 2012, que tenham adotado como pa-
lavras-chave (descritores) os termos charter ou choice associadas à educação, cons-
tatou a inexistência de publicações sobre a temática. No entanto, Adrião (2014)
ressalta que, de outro modo, o que a literatura e os manuais consultados para a
pesquisa realizada caracterizam por charter pode englobar tanto escolas públicas
geridas por instituições privadas, quanto escolas privadas subsidiadas por fundos
públicos. Todavia, “as condições exigidas para que tais escolas sejam charter é que
não haja cobrança de mensalidades ou matrículas, que operem segundo as normas
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estabelecidas pelos setores responsáveis e que possam ser escolhidas pelas famí-
lias” (ADRIÃO, 2014, p. 278).
Dessa forma, o estudo de Adrião (2014) questiona se não seriam as escolas
“conveniadas” brasileiras, tão disseminadas e mesmo induzidas por diversos pro-
gramas governamentais para o atendimento da educação básica uma modalidade
de charter? Além disso, não estaríamos a vivenciar essa experiência com outra
designação e para a qual as desigualdades observadas são objetos de estudos e
denúncias?
É importante destacarmos que essas parcerias se acentuaram, sobretudo, a
partir do novo marco regulatório do terceiro setor, por meio da Lei nº 13.019/14, que
cria as Organizações da Sociedade Civil – OSC. Por intermédio da nova legislação
e de leis anteriores que continuam regulando boa parte dessas parcerias, como
a chamada Lei das Organizações Sociais (Lei 9.637 de 15 de maio de 1998), entidades
de caráter privado, mas que ganham esse status social caso cumpram uma série de requi-
sitos, como eficácia comprovada e fins sociais, o poder público acaba não conseguindo
exercer uma fiscalização e um monitoramento adequado dessas relações, tendo em
vista a sua complexidade. Essa nova legislação (OSC) começou a vigorar em janeiro
de 2016, nos âmbitos da União, Estados e Distrito Federal. Para os municípios, foi
estabelecido o início de sua vigência para 1° de janeiro de 2017. É importante frisar
que nesse novo modelo de parceria, a gestão das finanças, a contratação de professores
e as questões pedagógicas são de responsabilidade do parceiro privado.
Um exemplo dessas parcerias é o projeto piloto desenvolvido pela prefeitura
do município de Porto Alegre – Rio Grande do Sul/Brasil – em 2018, por meio de
uma parceria público-privada (a primeira do município para esta finalidade) para
o atendimento de 350 alunos de Ensino Fundamental na Escola Pequena Casa da
Criança, no Bairro Partenon. Para a viabilidade do projeto, o governo municipal re-
passa à entidade mantenedora da escola recursos públicos no valor mensal de R$:
452,00 por aluno. O termo de colaboração assinado entre a prefeitura e a entidade
terá vigência de 5 anos, prorrogável por igual período.
Diante desse cenário e dos questionamentos de Adrião (2014), propomos neste
estudo, primeiramente, uma análise de como o marco regulatório do terceiro setor
pode servir de aporte para a perpetração do setor privado sobre o púbico na área
da educação. Além disso, se as parcerias firmadas entre o setor público e o terceiro
setor para a oferta de educação infantil e ensino fundamental podem ser configu-
radas como modalidades de escola charter, assim como as abordadas por Abrams
(2016) e como sugerido por Adrião (2014). Em seguida, nosso esforço será em ana-
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lisar o termo de colaboração assinado entre a prefeitura de Porto Alegre e a ONG
mantenedora da Escola Pequena Casa da Criança. Observaremos, em especial, os
aspetos relacionados à gestão das finanças, à contratação de professores e às questões
pedagógicas.
Entendemos que sob o discurso de oferecer uma educação de melhor qualidade,
essas parcerias podem ocorrer menos como alternativa democratizadora, de oferta
de uma educação de qualidade para todas as crianças e mais como mecanismo de
ampliação do mercado educacional. Tentaremos debater essa realidade e com base
nos resultados, lançar e reforçar olhares críticos e propositivos sobre programas
governamentais para a educação que flertam com setores privados.
O marco regulatório do terceiro setor como aporte para a perpetração do setor
privado sobre o setor púbico na área da educação
As parcerias público-privadas na educação, amplamente difundidas a partir
dos anos 1990, foram estimuladas pela orientação política e econômica neoliberal,
mas fundamentalmente pela terceira via. A terceira via foi relacionada ao novo
trabalhismo inglês, que sucedeu a política inglesa anterior de Margareth Thatcher.
De acordo com Anthony Giddens, tal orientação se coloca entre a antiga social-
democracia e o neoliberalismo, pois pretende “adaptar a socialdemocracia a um
mundo que se transformou fundamentalmente ao longo das duas ou três últimas
décadas” (GIDDENS, 2001, p. 36). Dentre as suas premissas constam, a presença
do voluntariado, a desresponsabilização da esfera estatal para com os direitos so-
ciais, a meritocracia nas questões da avaliação escolar e a responsabilidade pela
execução da sociedade civil, sendo efetivadas por meio das entidades do chamado
terceiro setor.
Tal contexto acaba por estimular novas regulamentações entre a esfera públi-
ca e a privada. Nesse sentido, ao prevalecer a sociedade de tipo solidária e volun-
tariosa, identificada pela terceira via como a sociedade civil ativa, tem-se o fortale-
cimento da relação entre o público e o privado, no qual o poder público financia, na
maioria das vezes, a prestação das políticas sociais, que são executadas seguindo
uma lógica privatista, estimulando assim, a “mercantilização dos direitos sociais”.
Setores da sociedade mercantil passam a vincular-se às organizações do terceiro
setor, legalmente reconhecidas, firmando parcerias com o poder público, agindo no
cumprimento das obrigações que o último deixa de executar. Para Lucia Bruno,
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[...] falam e procuram justificar a redução dos investimentos estatais nas políticas sociais,
transferindo parte da responsabilidade sobre esses serviços para a própria classe trabalha-
dora, que além de sua jornada de trabalho diária (quando a tem), deve também assumir
uma segunda, durante a qual haverá de produzir para si mesma aquilo que o Estado deso-
brigou-se de fornecer-lhe. Outra parte desses serviços é transferida para o setor privado,
onde estes são produzidos como mercadoria, operando-se assim a expansão do mercado de
bens e serviços consumidos pela classe trabalhadora. Esse processo é bastante visível no
caso da educação (BRUNO, 2002, p. 27).
Em que pese, quem passa a controlar a promoção das políticas sociais, seja a
direção, ou ainda, a direção e a execução são uma parcela do setor privado identi-
ficado com os valores do mercado. É exatamente o que acorre quando do advento
das parcerias firmadas entre a esfera pública e o terceiro setor. Tais entidades,
regulamentadas pelo próprio Estado brasileiro, por meio da aprovação de duas le-
gislações infraconstitucionais, a das Organizações Sociais – OS e das Organizações
da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIPs. A lei das OS foi instituída pela
Medida Provisória nº 1.591, de 09 de outubro de 1997, posteriormente convertida
na Lei Federal nº 9.637, de 15 de maio de 1998. De acordo com o artigo 20 do diplo-
ma legal assinalado, deveriam ser criados, mediante decreto do Poder Executivo, o
Programa Nacional de Publicização (PNP), com o objetivo de estabelecer diretrizes
e critérios para a qualificação de organizações sociais. Isso tinha o fim de assegurar
a absorção de atividades desenvolvidas por entidades ou órgãos públicos da União,
que atuassem nas atividades referidas no artigo 1°, por organizações sociais, qua-
lificadas na forma de lei, observadas as seguintes diretrizes: I – ênfase no atendi-
mento do cidadão cliente; II – ênfase nos resultados, qualitativos e quantitativos
nos prazos pactuados; III – controle social das ações de forma transparente.
A legislação das OSCIPs é a de nº 9.790, de 23 de março de 1999, no qual tam-
bém institui e disciplina o termo de parceria. Podem solicitar a qualificação como
OSCIP, as pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, que tenham
pelo menos uma das seguintes finalidades (art. 3°, da Lei nº. 9.790/99): promoção
da assistência social; promoção da cultura, defesa e conservação do patrimônio his-
tórico e artístico; promoção gratuita da educação, ou saúde, observando-se a forma
complementar de participação das organizações de que trata esta lei; promoção
da segurança alimentar e nutricional; defesa, preservação e conservação do meio
ambiente e promoção do desenvolvimento sustentável; promoção do voluntariado;
entre outros.
De acordo com a Lei nº. 9.790/99 nos seus art. 9º e 10º, o termo de parceria de-
signa o ajuste ou o acordo estabelecido entre o poder público e a OSCIP, destinado à
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formação de vínculo de cooperação entre as partes, para o fomento e a execução das
atividades de interesse público por estas desempenhadas, tendo, como cláusulas
essenciais, as determinadas no art. 10º, § 2° e incisos seguintes. Observamos que o
termo de parceria é mais um instrumento alternativo às concessões e permissões
de serviço público.
Assim, ao fazer do Estado um mero “parceiro”, ou ainda um “Estado Contra-
tual”, ou mesmo um “Estado Financiador”, constata-se um movimento no sentido
de institucionalizar as OS e OSCIPs, na seara do Direito Administrativo, enquanto
integrantes do terceiro setor. As discussões a respeito da transferência dos serviços
sociais do estado para a sociedade civil denotam, fundamentalmente, uma forma
de privatização, pois de acordo com Maria da Glória Gohn:
As Organizações Sociais (OSs) recebem recursos públicos consignados no orçamento da
União ou do respectivo Estado, constituindo receita própria. A alocação dos recursos e a
execução orçamentária das OSs não estão submetidas aos ditames da execução orçamen-
tária, financeira e contábil, como os demais órgãos públicos, que têm de submeter-se a um
controle processualístico. Seu controle se dá pelos seus resultados, por meio da avaliação
das metas que ela estabeleceu. Além disso, as OSs recebem toda a infraestrutura montada
que antes servia de base a um órgão estatal na prestação do serviço (GOHN, 2008, p. 99).
Uma questão que precisa ser observada é o controle social com relação às enti-
dades do terceiro setor, pois o que se observa é que o estado, na maioria das vezes,
repassa recursos físicos e financeiros a essas entidades, não exerce a correta fis-
calização, favorece a sua criação, sob o argumento de que a execução das políticas
sociais, principal campo de atuação dessas entidades, se tornou mais eficaz, tendo
por base o discurso de que a esfera privada é mais eficiente do que a esfera pública.
Em síntese, a denominação tanto de OS como de OSCIPs refere-se às entida-
des privadas, fundações ou associações sem fins lucrativos, no qual são asseguradas
vantagens e sujeições incomuns para as antigas pessoas jurídicas qualificadas pelo
título de utilidade pública; essas passam a gozar de benefícios especiais não extensí
-
veis às demais pessoas jurídicas privadas, isenções tributárias e vantagens adminis-
trativas diversas. A rigor, nenhuma entidade é constituída como OS nem tampouco,
como OSCIPs. Ser considerada OS ou OSCIPs é uma qualidade adquirida, resultado
de um ato formal de reconhecimento do poder público, facultativo e eventual, seme
-
lhante em muitos aspectos à qualificação deferida às instituições privadas sem fins
lucrativos quando recebem o título de utilidade pública. Maria Sylvia Zanella Di Pie
-
tro afirma que “não há dúvidas de que as organizações sociais se constituem em um
instrumento de privatização do qual o governo se utiliza para diminuir o tamanho do
aparelhamento da Administração Pública” (DI PIETRO, 1999, p. 201).
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Em 2014, foi aprovado o chamado marco regulatório do terceiro setor por meio
da Lei 13.019/2014, alterada pela Lei 13.204/2015, traz uma série de mudanças na
relação entre Poder Público – em suas esferas e as Organizações da Sociedade Civil
(OSCs). O principal defendido para a sua aprovação foi o de promover uma maior
“profissionalização” do terceiro setor e uma política de ampliação dos incentivos
fiscais para todas as entidades. Na tabela a seguir, é possível vislumbrar as princi-
pais diferenças entre as entidades do terceiro setor:
Tabela 1 – Diferenças entre as entidades do terceiro setor
OS – Lei nº 9.637/98 OSCIP – Lei nº 9.790/99 OSC – Lei nº 13.019/14
Podem ser criadas por iniciativa
do Poder Público para absorver
órgãos extintos.
Criadas exclusivamente por iniciati-
va de particulares. Em verdade, elas
vieram substituir o antigo modelo de
entidades de utilidade pública.
Criadas por iniciativa do Poder Pú-
blico ou de particulares. Não subs-
tituem o modelo das OS e OSCIPs,
admite um novo sujeito – OSC.
Participação de representantes
do Estado e da Sociedade Civil
no órgão de deliberação superior
em proporção elevada em rela-
ção aos seus associados.
Corpo decisório formado exclusi-
vamente pelos associados. A par-
ticipação do Estado se dá apenas
no acompanhamento gerencial dos
termos de parceria eventualmente
firmados.
Comissão de Seleção, Monitoramen-
to e Avaliação e do Chamamento
Público.
Obrigatoriedade de se firmar o
Contrato de Gestão.
Faculdade de se firmar o termo de
parceria em substituição ao tradicio-
nal convênio.
Faculdade de firmar parceria com o
objetivo de promover atividade ou
projeto, termo de colaboração ou ter-
mo de fomento.
Publicação anual no Diário Ofi-
cial da União do relatório de exe-
cução do contrato de gestão, no
formato de relatório gerencial.
Publicação anual da prestação de
contas da totalidade dos recursos
recebidos, públicos ou privados, no
formato tradicional.
Publicação anual da prestação de
contas da totalidade dos recursos
públicos recebidos, no formato tradi-
cional.
Possibilidade de acumulação da
qualificação de utilidade pública
para todos os efeitos.
Impossibilidade de acumular quali-
ficações.
Impossibilidade de acumular qualifi-
cações.
Rol aberto e genérico de enti-
dades que podem se qualificar
como OS.
Rol taxativo de entidades que não
podem se qualificar como OSCIPs.
Rol amplo e específico de entidades
que podem se qualificar como OSC
Ausência de detalhamento das
atividades próprias da OS.
Detalhamento das atividades a que
devem se dedicar as OSCIPs.
Detalhamento meticuloso das ativi-
dades a que devem se dedicar as
OSC.
Objetivos sociais mais restritos Objetivos sociais amplos Objetivos sociais mais amplos
Regramento mais específico,
que desce a minúcias sobre o
funcionamento.
Regramento mais genéricos, sem
imposição de estruturas.
Regramento específico, com imposi-
ção de estruturas.
Fonte: Santos (2008). Adaptada pelos autores.
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A lei nº 13.019/14, entrou em vigor, somente em janeiro de 2016, nos âmbitos
da União, Estados e Distrito Federal. No entanto, para os Municípios foi estabele-
cido o início de sua vigência para 1° de janeiro de 2017. A partir da aprovação do
marco regulatório tem-se uma nova perspectiva na relação entre o poder público e
as OSC, que passam a ser definidas como entidades privadas sem fins lucrativos,
sociedade cooperativas e organizações religiosas (art. 2º, I, a, b e c), ampliando com
isso, as possibilidades de realização de parcerias, com diversos sujeitos privados.
Entretanto, conforme o Art. 30. A administração pública poderá dispensar a reali-
zação do chamamento público:
I - no caso de urgência decorrente de paralisação ou iminência de paralisação de atividades
de relevante interesse público, pelo prazo de até cento e oitenta dias;
VI - no caso de atividades voltadas ou vinculadas a serviços de educação, saúde e assistên-
cia social, desde que executadas por organizações da sociedade civil previamente credencia-
das pelo órgão gestor da respectiva política (Incluído pela Lei nº 13.204, de 2015).
É possível observar, analisando o Art. 2º, VII, combinado com o Art. 30, refe-
rente às condições para a realização do chamamento público, que as Organizações
da Sociedade Civil – OSC, deverão observar os princípios da administração públi-
ca, recepcionados pelo Art. 37, da Constituição Federal de 1988, pois de acordo com
o art. 2º do marco regulatório,
XII - chamamento público: procedimento destinado a selecionar organização da socie-
dade civil para firmar parceria por meio de termo de colaboração ou de fomento, no qual
se garanta a observância dos princípios da isonomia, da legalidade, da impessoali-
dade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa,
da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que
lhes são correlatos (grifos nossos).
Considera-se importante salientar que, mesmo que a atual legislação busque
ampliar o controle social em relação às parcerias, e assim, adequando-se à própria
perspectiva constitucional brasileira, as legislações que regulamentam as OS e as
OSCIPS não foram revogadas perante a nova lei, sendo que ainda são mais utili-
zadas na formalização das parcerias público-privada na educação. Segundo tais
normas, não possuem a garantia de um controle social efetivo, criando entraves
e prejuízos para a democratização da educação pública, pois afasta do âmbito da
atuação, bem como do controle, fiscalização e avaliação, o estado. Em compara-
ção com as legislações das OS e das OSCIPs, o marco regulatório promoveu uma
ampliação das possibilidades de atuação das entidades do terceiro setor, havendo
como consequência que os direitos sociais passam a ser reconhecidos, em grande
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medida, sob o caráter de mercadoria ou sob o prisma da filantropia, concepções
essas que se afastam do ideário da gestão democrática da educação, do exercício da
cidadania e da emancipação social.
Escola gerenciada por Organização da Sociedade Civil – OSC e subsidiada por
fundos públicos: o exemplo da Escola Pequena Casa da Criança
No final de 2017, a Secretaria Municipal de Educação (SMED) de Porto Ale-
gre, amparada no novo marco regulatório das Organizações da Sociedade Civil,
integrantes do terceiro setor, sob a justificativa de suprir um déficit de vagas na
rede pública e de oferecer uma educação de melhor qualidade, assinou termo de
colaboração com a Escola Pequena Casa da Criança para atividades de Educação
Infantil e Ensino Fundamental. A Pequena Casa da Criança, conforme informa-
ções disponíveis em sua página na internet
1
é uma instituição não governamental,
sem fins lucrativos, filantrópica, educacional e de assistência social, de utilidade
pública, que atua com base na doutrina e nos princípios cristãos, e prioriza a ação
preventiva dirigida a crianças, adolescentes, família e idosos.
A instituição foi fundada em 15 de agosto de 1956 pela Congregação das Mis-
sionárias de Jesus Crucificado. Está localizada na comunidade Maria da Conceição,
zona leste de Porto Alegre, e atende cerca de 600 crianças, jovens e idosos diaria-
mente. Entre os objetivos da OSC está a promoção da educação integral por meio
do ensino regular, profissionalizante e cursos livres de capacitação profissional,
com vistas à melhoria da qualidade de vida dos atendidos. Consta em divulgação
da entidade que, em 2019, a Pequena Casa da Criança foi aprovada no processo
de avaliação dos princípios internacionais de Transparência e Boas Práticas So-
ciais da Phomenta, instituição que representa o Brasil no Comitê Internacional
de Agências que monitoram ONGs no Mundo (ICFO). Sendo aprovada, a Pequena
Casa recebeu o Certificado de Transparência e Boas Práticas Sociais.
Conforme dados da Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre, a en-
tidade já atendia 350 crianças: 134 na educação infantil (maternal 2, jardim A e
jardim B) e 216 do 1º ao 5º ano do ensino fundamental, no prédio da organização, lo-
calizado na rua Mario Aragão, 13, no bairro Partenon, Porto Alegre – RS, por meio
de vagas compradas pelo município. Todavia, o contrato era renovado anualmente.
Agora, com a assinatura do termo, a parceria terá vigência de 5 anos, renovável
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por igual período, e prevê um repasse mensal de até R$ 158 mil do município para
a entidade contratada.
De acordo com SMED, essa é a primeira escola charter de Ensino Fundamen-
tal de Porto Alegre. Abrams (2016) define escolas charter como instituições públi-
cas, apoiadas por fundos públicos. No entanto, elas têm maior liberdade das regras
e regulamentos estatais do que as escolas públicas tradicionais. Por exemplo, nor-
malmente as escolas charter são livres para contratar ou demitir funcionários, pro-
fessores, planejar currículos e promover valores específicos. Além disso, nos termos
entre o órgão público e a escola charter devem estar claramente descritas as metas
da escola, como a escola será administrada, a quantidade de dinheiro público que
receberá e o grau de liberdade que será dado. A definição de Abrams (2016) por
escola charter vai ao encontro dos questionamentos levantados por Adrião (2014)
se não seriam muitas das parcerias público-privadas na educação brasileira, como
essa em questão, uma modalidade charter, embora com outra nomenclatura, uma
vez que para ser charter, define Adrião (2014), basta que não haja cobrança de
mensalidades ou matrículas, que operem segundo as normas estabelecidas pelos
setores responsáveis e que possam ser escolhidas pelas famílias.
Dessa forma, trataremos de explorar nesta seção, em especial, o termo de co-
laboração assinado entre o Município de Porto Alegre e a OSC Pequena Casa da
Criança para a oferta de Educação Infantil e Ensino Fundamental, vislumbrando
como os detalhes de parcerias como essa podem implicar na noção de escola en-
quanto bem público e democrático. Além disso, com base na literatura sobre escolas
charter e modelos de descentralização da gestão escolar, característico dessas es-
colas, abordaremos as consequências dessa relação entre público e privado no que
tangencia ao exercício docente, à gestão e às questões pedagógicas.
Por meio do Serviço de Informação ao Cidadão (E-Sic) da prefeitura de Porto
Alegre, protocolamos solicitação de cópia do termo de colaboração assinado entre o
município e a escola conveniada. Após 36 dias, a prefeitura forneceu o documento
solicitado, o qual serve de base documental para a redação desta seção. Na figura
que segue, que estampa a cláusula terceira do termo de colaboração, pode ser cons-
tatado o número de alunos atendidos e os repasses efetuados pela administração
pública à OSC.
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Escola conveniada ou charter school? Uma abordagem sobre termo de colaboração entre a prefeitura e o terceiro setor para oferta da educação...
Figura 1 – Cláusula terceira do termo de colaboração
Fonte: Termo de colaboração entre o município de Porto Alegre e a Pequena Casa da Criança.
Parcerias como esta implicam no tensionamento entre o que é público e o que
é privado, comprometendo as próprias estatísticas educacionais, uma vez que os
municípios contabilizam como pública a vaga contratada na instituição privada.
Para Adrião (2008), esse movimento indica uma preocupante ampliação do atendi-
mento à demanda custeada por recursos públicos, mas subsumida à ampliação e à
disponibilidade do setor privado.
Conforme previsto no termo de colaboração assinado entre a prefeitura e a
OSC Pequena Casa da Criança, a responsabilidade pela contratação dos professo-
res, pela coordenação pedagógica e de finanças, bem como pelos serviços de limpeza
e zeladoria, ficam sob responsabilidade da contratada. Tal prerrogativa fica refor-
çada na cláusula quinta do termo, quanto ao que compete à entidade. O item 5.2/
VII aborda essa responsabilidade, apontando como dever da OSC manter contrato
de trabalho que assegure direitos trabalhistas, sociais e previdenciários aos seus
trabalhadores e prestadores de serviços.
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Figura 2 – Cláusula quinta do termo de colaboração – itens VII e VIII
Fonte: Termo de colaboração entre o Município de Porto Alegre e a Pequena Casa da Criança.
Conforme dados da instituição, apresentados no relatório de atividades de
2018, os recursos humanos envolvidos na Escola de Ensino Fundamental contam
com 01 diretora, 01 vice-diretora supervisora pedagógica, 01 coordenadora peda-
gógica, 01 secretária, 02 funcionários de higienização dos espaços, 01 professora
de Atendimento educacional especializado, 02 professores de educação física (Edu-
cação infantil e Ensino fundamental), 02 professoras de reforço escolar, 07 profes-
soras de educação infantil de 20 horas, 03 professoras de educação infantil de 40
horas, 03 professoras de ensino fundamental de 20 horas, 04 professoras de ensino
fundamental de 40 horas, 01 assistente de ensino para o Ensino Fundamental, 06
profissionais de apoio para Educação Infantil.
2
Com a autonomia para constituir seu quadro docente, a OSC pode contratar e
demitir seus professores de acordo com critérios próprios de escolha, desvinculados
de um plano de carreira e de atuação na perspectiva democrática da educação
pública e da criação de uma identificação do profissional com o seu local de tra-
balho. Da mesma forma, as atividades de formação docente e pedagógica podem
ser orientadas a partir dos preceitos da OSC contratada. Outros recursos, como
materiais didáticos, assessoramentos e questões relacionadas à infraestrutura,
também podem ser contratados pelo parceiro privado, com autonomia de escolha.
Além disso, apesar de, obrigatoriamente, desenvolver um projeto político pedagó-
gico em consonância com as Diretrizes Nacionais e as Orientações pedagógicas da
SMED possui flexibilidade para orientar suas práticas a partir de valores específi-
cos, como religiosos e culturais. Nesse caso, a OSC em questão, “atua com base na
doutrina e nos princípios cristãos”.
3
Para a manutenção das atividades, além dos valores provenientes do muni-
cípio de Porto Alegre, os quais somaram cerca de R$ 3 milhões entre 2017 e 2018,
conforme mostra a planilha a seguir, a OSC possui outros parceiros também como
fontes de recursos, conforme consta no seu site.
4
Em seus balancetes contábeis
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disponíveis ao público geral, a entidade divulga a sua receita operacional, conforme
estabelecido no próprio termo de colaboração com o município de Porto Alegre, para
dar publicidade acerca dos gastos com os recursos oriundos dos cofres públicos.
Figura 3 – Relatórios contábeis de receita
Fonte: Disponível em: http://www.pequenacasa.org.br/transparencia-e-governanca/. Acesso em: 24 ago. 2019.
Conforme a Secretaria de Educação, essa parceria foi uma saída encontrada
para atender ao déficit na oferta de vagas na rede pública municipal. Porém, o
histórico dos valores mostra um montante razoável para expandir as estruturas fí-
sicas da rede municipal ou a até mesmo a sua ampliação por meio de novas escolas.
Porém, essa parece não ser a intenção da atual gestão do município. Pelo contrário,
em suas declarações à imprensa, o secretário municipal de educação, Adriano Na-
ves de Brito, tem ratificado a intensão de expandir esse modelo de convênios.
Em entrevista à Rádio Gaúcha, em 19 de fevereiro de 2018, Naves de Brito foi
questionado sobre por que não ampliar a oferta na rede pública. Em sua resposta,
considerou preferir ampliar esse modelo de parceria, argumentando que as vagas
privadas podem ser oferecidas de forma mais rápida, já que não dependem da rea-
lização de concursos públicos para professores e da construção de novos prédios.
“Tem uma questão financeira, de economizar recursos, mas não é só isso. O princi-
pal é que é um novo modelo de ensino, aumentando a pluralidade do ecossistema
educacional do município. Teremos a possibilidade de comparar e saber qual fun-
ciona melhor (se é a escola pública ou a parceira)”,
5
afirmou Naves de Brito.
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Esse discurso em defesa da colaboração com o setor privado e das virtudes de tais
parcerias consolida a posição de Laval (2004), que sustenta a perspectiva de que pro-
cessos de descentralização da gestão escolar podem ser muito mais associados a um
avanço em direção à constituição de um mercado escolar do que, propriamente, em
direção a uma intensificação da democracia nos estabelecimentos e da melhora na
qualidade da educação. Conforme Laval (2004, p. 158), “é em nome da concorrência,
do papel do consumidor, da eficácia, da redução dos custos, da colaboração escola-
-empresa, que a descentralização é, na maior parte do tempo, exaltada”.
A concretização e a ampliação desse modelo de escola conveniada, que per-
mite uma clara comparação ao modelo charter, ao invés de trazer os resultados
positivos, teoricamente expressos por meio de indicadores de larga escala, pode
consolidar um claro aumento da desigualdade de condições de aprendizagem e se-
gregação escolar. Apesar de ser um projeto piloto da prefeitura de Porto Alegre, o
cenário educacional e político nacional aponta para uma aposta significativa nessa
modalidade de oferta da educação básica, justamente argumentando a redução de
custos do estado e o aumento da qualidade do ensino. Todavia, tomando a am-
plitude em que tais parcerias se consolidaram em outros países que apostaram
fortemente na modalidade charter, é legítimo e necessário apontarmos para os efei-
tos negativos dessas parcerias, já amplamente relatados nos estudos de Abrams
(2016) sobre experiência americana e de Bunar (2012) sobre o sistema educacional
Sueco, conforme já indicamos no início deste texto.
Tomando essas proporções maiores e exemplos de países como Estados Uni-
dos, Suécia e a própria França, Laval (2004) considera que a desigualdade frente
à escola não é mais somente fruto de uma seleção pela escola. Ela é o resultado
das condições desiguais de escolha da escola. Se antes existia uma escola pública
cuja qualidade e igualdade de condições de aprendizagem deveria ser assegurada
a todos, a lógica das escolas charter é a da disputa por alunos, pelo prestígio social
e, consequentemente, pela escolha dos pais.
Nesse sentido, a liberdade de escolha que a lógica do mercado encerra não é,
decerto, a escolha de todos. Daí deriva uma grande variável de acordo com as clas-
ses sociais, não permitindo que se igualem as condições de ensino. Se os pais das
classes médias, por exemplo, privilegiavam na sua escolha o sucesso escolar, por
outro viés, os pais dos meios populares apresentam uma tendência a escolha de um
estabelecimento no qual seus filhos “se sentiriam mais à vontade”, escolhendo esta-
belecimentos onde os jovens da mesma origem seriam majoritários (LAVAL, 2004).
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Além disso, os pais de classes populares não conseguem entrar no quadro im-
posto pela lógica da escolha. Eles percebem as escolas como sendo bastante seme-
lhantes umas às outras e limitam seu horizonte às escolas próximas. Diante dessa
realidade, Laval (2004) considera que a “livre escolha” é uma obrigação de escolher
e não uma liberdade da qual os pais disporiam naturalmente ou à qual eles teriam
sempre aspirado. É uma obrigação feita a “jogadores” mais ou menos de acordo em
“jogar” o jogo da competição de todos contra todos, quer eles queiram ou não. Esse
contexto legitima o risco de que cada vez menos pessoas, inclusive professores,
acreditem ser ainda possível fazer uma “escola comum”, misturando jovens de di-
ferentes classes sociais.
No contexto dessas parcerias, Dardot e Laval (2016) consideram que toda a
reflexão sobre a administração pública adquire um caráter técnico, em detrimento
das considerações políticas e sociais que permitiriam evidenciar tanto o conceito da
ação pública como a pluralidade das opções possíveis. Essa prerrogativa afeta di-
retamente a própria concepção dos bens públicos bem como os princípios regentes
de sua distribuição.
A igualdade de tratamento e a universalidade dos benefícios são questionadas tanto pela
individualização do auxílio e pela seleção dos beneficiados, na qualidade de amostras de
um “público-alvo”, quanto pela concepção consumista do serviço público (DARDOT; LAVAL,
2016, p. 380).
Além desse distanciamento das características democráticas originais de uma
escola pública, outro fator merece a nossa atenção. Como bem abordado por Picho-
nelli (2019), apesar de o Supremo Tribunal Federal (STF) ter reiterado em setem-
bro de 2018 que, com a atual legislação, os pais não têm direito de tirar filhos da
escola para ensiná-los exclusivamente em casa, prática conhecida como educação
domiciliar (ou “homeschooling”, no termo em inglês), proposta que ganhou força
no governo Bolsonaro. Segundo o autor, sob uma série de alegações pouco ou nada
fundamentadas cientificamente, o governo tenta regulamentar uma proposta de
educação que está mais para atender aos interesses dos empresários da educação
e de grupos religiosos do que propriamente a oferecer uma educação de melhor
qualidade.
Os defensores do ensino domiciliar elegem como principal argumento para a
defesa dessa modalidade de ensino que, dessa forma, as crianças estariam livres
de doutrinação e poderiam receber uma educação de acordo com os valores cultu-
rais e religiosos da sua família. Nesse sentido, não serviriam essas parcerias entre
o Poder Público e o terceiro setor uma alternativa ao homeschooling? Embora a
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educação não aconteça no berço familiar, os pais poderiam escolher matricular os
filhos em uma escola alinhada política, religiosa e ideologicamente à família, con-
siderando que, normalmente, as escolas charter são livres para desenvolver suas
atividades orientadas por valores específicos. O próprio termo de colaboração ora
analisado é estruturado, como já apontamos, a partir do novo marco regulatório,
firmado entre o Poder Público e uma instituição religiosa, do terceiro setor, que
atua com base na doutrina e nos princípios cristãos.
Algumas considerações
No atual momento político brasileiro, as parcerias entre o Poder Público e
Organizações da Sociedade Civil integram as propostas de muitos governantes
orientados por uma racionalidade neoliberal. Como já abordamos, a partir da apro-
vação do novo marco regulatório tem-se uma nova perspectiva na relação entre
o Poder Público e as OSC, que passam a ser definidas como entidades privadas
sem fins lucrativos, sociedade cooperativas e organizações religiosas. Dessa forma,
tem razão Adrião (2014) quando questiona se não seriam as escolas “conveniadas”
brasileiras, uma modalidade de charter, mesmo vivenciando essa experiência com
outra designação, para a qual as desigualdades observadas em outros países, tam-
bém devem ser objeto de estudos na realidade brasileira.
A preocupação de Adrião (2014) pode ser atestada quanto observada, por
exemplo, a crítica lançada por Bunar (2012) sobre o modelo educacional da Suécia,
que apostou em uma descentralização e nas escolas charter, crítica que também
se comprova com dados do relatório da OCDE de 2010. Conforme o relatório, vinte
anos depois de sua implantação, é possível observar que os custos do sistema edu-
cacional sueco não diminuíram, que as notas nas escolas de ensino fundamental
e médio estão em constante declínio e que a Suécia perdeu terreno em estudos
comparativos internacionais, como o PISA e o TIMSS (OCDE, 2010). Esses dados
fazem perder sustentação o argumento de muitos gestores, de empresários da edu-
cação e de políticos, de que a iniciativa privada oferece uma educação com mais
qualidade do que a esfera pública.
No caso específico que analisamos neste estudo, é oportuno considerar que
não se trata de questionar a OSC Pequena Casa da Criança quanto à sua atuação.
Pelo contrário, as informações disponíveis apontam para uma instituição séria e
comprometida com suas funções, digna dos diversos prêmios de transparência e
responsabilidade social que tem conquistado. O que está em jogo, e essa é nossa
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crítica, é a concepção de escola republicana, enquanto bem público, e o flerte com a
iniciativa privada, sob a pretenciosa intenção de associar a escola a uma empresa,
os alunos a clientes e a educação a uma mercadoria, um bem de consumo.
É oportuno destacarmos que sob esta ótica, Ball e Youdell (2007) consideram
que não se trata do abandono por parte do estado do controle que ele exerce sobre
os serviços públicos de educação, mas o estabelecimento de uma nova forma de
controle ou de uma redução controlada desse controle, o que favorece a descentra-
lização e a perpetração do setor privado sobre o público. Isso só é possível, segundo
Akkari (2011), com o declínio da qualidade das escolas públicas; desenvolvimento
da educação permanente por meio de políticas públicas ou por empresas (subsídios
para a formação continuada); homogeneização dos conteúdos de ensino, permitindo
o aumento do mercado de livros didáticos e softwares.
Reforçamos nossa constatação de que o marco regulatório promoveu uma am-
pliação das possibilidades de atuação das entidades do terceiro setor. Nesse senti-
do, a ampliação de parcerias da esfera pública com o terceiro setor tem permitindo
que, sob o prisma da filantropia, direitos sociais consolidados, como a educação
pública de qualidade para todos, sejam gradativamente afastados do ideário da
gestão democrática da educação, do exercício da cidadania e da emancipação social.
Dessa forma, concordamos com Adrião (2008) que estas parcerias ocorrem
menos como alternativa democratizadora, com vistas ao atendimento criativo das
especificidades de comunidades e dos interesses das faixas etárias atendidas pela
escola básica e mais como mecanismo de ampliação do mercado educacional. Esse
tipo de política, como expressado por Adrião (2008, p. 8), “além se não resultar de
discussões com a comunidade escolar, dado ser definida em função de um padrão
construído pelo agente privado, redefine o espaço do público e minimiza sua auto-
nomia diante do privado”.
Esse modelo de gestão educacional baseada em princípios do mercado retoma
o que Ball e Youdell (2007) definem como prática que objetiva atrair clientes, oca-
sionais e regulares, com ênfase sobre a atribuição de recursos àqueles considerados
mais aptos. As avaliações são restritas do mérito, com base na contribuição dos in-
dicadores de desempenho e a educação das crianças é avaliada com base nos custos
e resultados. Esse modelo abre espaço para a performance individual das escolas e
dos alunos, para processos de diferenciação e hierarquias, de canalização, seleção e
exclusão, representando um grande risco ao princípio democrático de educação, de
caráter igual e acessível a todos.
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Considerando o exposto neste estudo, a denúncia de Adrião (2014) de que es-
sas parcerias podem ser consideradas modalidades de escolas charter, mesmo sob
outra designação, merece a atenção e estudos que se debrucem sobre “a natureza e
as consequências para a extensão do direto à uma educação de qualidade de todos
os programas governamentais que transfiram a gestão da educação para setores
privados” (p. 279). Na perspectiva da educação e da escola pública, essa inquieta-
ção legitima, sobretudo, a preocupação pela manutenção de uma educação como
direito humano e bem comum.
Notas
1
Disponível em: http://www.pequenacasa.org.br/quem-somos/. Acesso em: 06 ago. 2019.
2
Relatório de atividades disponível em: http://www.pequenacasa.org.br/wp-content/uploads/2019/05/Rela-
tório-de-Atividades-2018.pdf. Acesso em: 24 ago. 2019.
3
Disponível em: http://www.pequenacasa.org.br/quem-somos/. Acesso em: 24 ago. 2019.
4
Ver: http://www.pequenacasa.org.br/parceiros/. Acesso em: 24 ago. 2019.
5
Conteúdo disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/porto-alegre/noticia/2018/02/prefeitura-de-porto-
-alegre-faz-primeira-parceria-com-escola-privada-de-ensino-fundamental-saiba-como-funciona-cjds2y7a-
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1999.
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O lugar das práticas curriculares diante do avanço da lógica privada sobre o setor público: o Emiti em Santa Catarina
*
Doutora em Educação - Psicologia da Educação, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP, Brasil). É
professora titular da Universidade da Região de Joinville (Univille, Brasil). ORCID https://orcid.org/0000-0002-0353-
4310. E-mail: berenice.rocha@univille.br
**
Doutora em Educação - Psicologia da Educação, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP, Brasil).
Atualmente é professora titular da Universidade da Região de Joinville (Univille, Brasil). ORCID https://orcid.org/0000-
0003-2180-5476. E-mail: jane.mery@univille.br
Recebido em 19/05/2019 – Aprovado em 26/09/2019
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i1.10578
O lugar das práticas curriculares diante do avanço da lógica privada sobre o setor
público: o Emiti em Santa Catarina
The place of curriculum practices before the advance of private logic on the public sector:
the Emiti in Santa Catarina
El lugar de las prácticas curriculares ante el avance de la lógica privada sobre el sector público:
el Emiti en Santa Catarina
Berenice Rocha Zabbot Garcia
*
Jane Mery Richter Voigt
**
Resumo
Fatores políticos e, principalmente, econômicos têm afetado as políticas educacionais, inuenciando o funcio-
namento dos sistemas de ensino, que numa visão utilitarista e economicista vêm promovendo um avanço da
lógica privada sobre o setor público. A questão de pesquisa a ser abordada centra-se no que representa a adoção
de uma proposta educacional advinda de uma instituição privada no contexto da educação pública. O presente
artigo tem como objetivo discutir o lugar das práticas curriculares dos professores no Ensino Médio Integral em
Tempo Integral (Emiti), considerando a parceria da Secretaria de Educação do Estado de Santa Catarina com o
Instituto Ayrton Senna (IAS). A pesquisa, de abordagem qualitativa, foi desenvolvida por meio de entrevistas
com professores de uma escola de Ensino Médio da rede pública do referido estado. O referencial teórico con-
templa os estudos curriculares no que tange às políticas e às práticas. A discussão está pautada na percepção
desses docentes a respeito das suas práticas curriculares diante da proposta do IAS. Os resultados apontam para
as diculdades na adaptação da infraestrutura para viabilização de propostas que não reconhecem as realidades
locais e para a restrição da autonomia curricular dos professores.
Palavras-chave: Políticas educacionais. Práticas curriculares. Ensino integral em tempo integral. Parceria público-
privada.
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Berenice Rocha Zabbot Garcia, Jane Mery Richter Voigt
Abstract
Political and, mainly, economical factors have been aecting educational policies, inuencing the functioning
of education systems, which in a utilitarian and economist point of view has promoted an advance of private
logic over the public sector. The issue to be addressed focuses on the meaning of the adoption of an educational
proposal from a private institution in the context of public education. This article aims to discuss the place of
teachers’ curricular practices in integral High School- Full Time High School (Emiti), considering the partnership
of Santa Catarina State Department of Education with the Ayrton Senna Institute. The research, with a qualitative
approach, was developed through interviews with teachers of a public high school in the state. The theoretical
framework contemplates curriculum studies, in terms of policies and practices. The discussion is based on the
perception of these teachers about their curricular practices regarding the proposal of the Ayrton Senna Institu-
te. The results indicate diculties in adapting the infrastructure to enable proposals that do not recognize local
realitiesand to restriction of the curricular autonomy of the teachers.
Keywords: Educational policies. Curriculum practices. Integral full time education. Public-private partnership.
Resumen
Los factores políticos y principalmente econômicos, han afectado a las políticas educativas, inuyendo en el fun-
cionamiento de los sistemas educativos, que desde una perspectiva utilitaria y economista han promovido un
avance de la lógica privada sobre el sector público. La pregunta de investigación que debe abordarse se centra
en la adopción de una propuesta educativa de una institución privada en el contexto de la educación pública.
Este artículo tiene como objetivo discutir el lugar de las prácticas curriculares de los maestros en la escuela
secundaria a tiempo completo (Emiti), considerando la asociación del Departamento de Educación del Estado
(Provincia del Brazil) de Santa Catarina con el Instituto Ayrton Senna (IAS). La investigación, con un enfoque
cualitativo, se desarrolló a través de entrevistas con maestros de una escuela secundaria provincial. El marco
teórico incluye estudios curriculares sobre políticas y prácticas. La discusión se basa en la percepción de estos
maestros con respecto a sus prácticas curriculares en vista de la propuesta de IAS. Los resultados apuntan a las
dicultades para adaptar a la infraestructura para permitir propuestas que no reconocen las realidades locales y
a la restricción de la autonomía curricular de los docentes.
Palabras clave: Políticas educativas. Prácticas curriculares. Enseñanza Integral. Escuelas de tiempo completo. Aso-
ciación público-privada.
Introdução
A reforma do Ensino Médio, proposta pela Lei n. 13.415/2017, introduz modi-
ficações na organização do currículo do Ensino Médio, como a introdução de itine-
rários formativos e da formação técnica profissional de nível médio de forma mais
abrangente do que nas políticas anteriores. Além disso, essa lei também fomenta a
implementação de escolas de ensino médio em tempo integral.
Em meio a esse cenário, o estado de Santa Catarina aderiu ao programa de
Fomento à Implementação de Escolas em Tempo Integral, instituído pela Portaria
MEC n. 1.145, de 10 de outubro de 2016 (BRASIL, 2016). Esse programa transfere
recursos para que as secretarias estaduais de educação implementem o programa
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O lugar das práticas curriculares diante do avanço da lógica privada sobre o setor público: o Emiti em Santa Catarina
Ensino Médio Integral em Tempo Integral (Emiti). De acordo com informações do
site oficial da Secretaria de Estado da Educação de Santa Catarina
1
, em 2017, 16
escolas da rede pública estadual, que atendiam aos critérios da referida portaria,
adotaram o programa, e em 2019, o programa já conta com 31 escolas. A imple-
mentação do Emiti em Santa Catarina tem como parceiro o Instituto Ayrton Senna
(IAS) e apoio do Instituto Natura, o que caracteriza uma parceria público-privada.
A parceria com o IAS representa a adoção de um modelo educacional que con-
templa uma proposta pedagógica, a adoção de um material didático, acompanha-
mento e formação de professores. A proposta do IAS tem como premissa a inte-
gração curricular. O currículo é dividido em Áreas de Conhecimento (Linguagens,
Matemática, Ciências da Natureza e Ciências Humanas) e Núcleo Articulador
(Estudos Orientados; Projeto de Intervenção e Pesquisa, Projeto de Vida). Atual-
mente, é uma das propostas ofertadas no Guia de Implementação do Novo Ensino
Médio
2
como itinerário formativo na Base Nacional Curricular Comum (BNCC).
Considerando a parceria já em execução e a proposta do Emiti, há questões
que precisam de atenção, primeiramente a oferta de carga horária diária de 7 ho-
ras, tornando necessária a reorganização do quadro de professores e funcionários.
Outro aspecto é a flexibilização e a integração curricular, além da introdução de
componentes técnico-profissionais na matriz curricular do nível médio. Todas essas
reestruturações têm efeito direto sobre as práticas curriculares, na medida em que
cabe aos docentes e gestores a tarefa de atender aos novos objetivos e pressupostos
metodológicos que tal política pública fomenta e, ao mesmo tempo, estar em conso-
nância com o que preconiza o projeto proposto pelo IAS.
O foco da nossa discussão recai, sobretudo, sobre aspectos que dizem respeito
às práticas curriculares dos professores, procurando entender de que forma elas
são afetadas pela parceria firmada entre a Secretaria de Estado da Educação de
Santa Catarina e o IAS, no que tange à adoção de uma proposta educacional ad-
vinda de uma instituição privada no contexto da educação pública. Dessa forma,
o objetivo deste artigo consiste em discutir o lugar das práticas curriculares dos
professores no Emiti, considerando a referida parceria.
Esta investigação também leva em conta as modificações sociais, políticas,
econômicas e culturais pelas quais estamos passando, uma vez que somente assim
é possível criticar as atuais políticas curriculares e sermos capazes de “dar respos-
tas a essas modificações, empreender novas interpretações sobre as questões de
nosso tempo” (LOPES, 2004, p. 110).
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Para isso, foi realizada uma pesquisa, de abordagem qualitativa, que, segundo
André (2013), se fundamenta numa perspectiva em que o conhecimento é socialmente
construído pelas pessoas, que transformam a realidade e ao mesmo tempo transfor
-
mam a si mesmas. A investigação ocorreu em uma das escolas que implantou o pro-
grama do Emiti, numa cidade da região norte de Santa Catarina. Nessa escola, foram
ouvidos quatro professores, por meio de entrevista semiestruturada, sobre diversos
aspectos referentes às suas práticas curriculares. Após a transcrição das entrevis
-
tas, os dados foram analisados por intermédio de análise de conteúdo, que permite
“conhecer os textos e as mensagens contidas, deixando-se invadir por impressões,
representações, emoções, conhecimentos e expectativas” (FRANCO, 2012, p. 44).
Sintetizando, o presente artigo traz uma breve introdução, para apresentar
a lei que implementa o Emiti, seus desdobramentos e implicações em relação à
parceria com o IAS. Em seguida, foram trazidas questões referentes às políticas
curriculares e à inserção da lógica privada sobre o setor público e como essa lógica
chega até os professores participantes da pesquisa, trazendo a percepção desses
professores acerca da aplicação da proposta do Instituto.
Considerando as falas dos referidos docentes, fez-se uma divisão em duas catego-
rias para análise, sendo elas: infraestrutura necessária para a efetivação das práticas
curriculares no Emiti; e práticas curriculares e a autonomia curricular no Emiti.
As considerações trazem algumas discussões que precisam ser retomadas
diante do atual cenário nacional em relação ao avanço da lógica privada sobre a
pública.
Políticas curriculares e o avanço da lógica privada sobre o setor público
Para refletir sobre as atuais políticas curriculares para o Ensino Médio, não
podemos deixar de mencionar os desafios que se colocam a partir do caráter de
padronização e de homogeneização advindo da proposta de um currículo nacio-
nal. De acordo com Apple (2011, p. 71), o currículo não é um conjunto neutro de
conhecimentos, “ele é sempre parte de uma tradição seletiva, resultado da seleção
de alguém, da visão de algum grupo acerca do que seja conhecimento legítimo”. A
questão é: Como unificar um currículo numa sociedade tão desigual? Considerando
que vivemos numa época denominada por Apple (2011, p. 73) de “restauração con-
servadora”, diante de uma proposta de currículo unificado, o princípio de educação
pública e de currículo que atenda às culturas e histórias de toda a população pode
estar ameaçado.
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O lugar das práticas curriculares diante do avanço da lógica privada sobre o setor público: o Emiti em Santa Catarina
O currículo nacional para a Educação Básica já é realidade em muitos países.
Conforme Pacheco (2002, p. 88), estabelecer um currículo nacional faz parte de um
“processo de construção da identidade coletiva”, que pode servir para a regulação
e a seleção de objetivos de aprendizagem e de organização do conhecimento oficial.
Todavia, numa perspectiva conservadora, um currículo nacional poderá represen-
tar a criação de critérios de controle da aprendizagem dos alunos e das práticas do-
centes. Nesse cenário, encontram-se as recentes políticas curriculares no Brasil, e
entre elas destacamos o Emiti, que, em Santa Catarina, está sendo implementado
por meio de uma parceria público-privada. Esse tipo de parceria pode representar
a perda da autonomia da rede pública de ensino e, como afirmam Comerlatto e
Caetano (2013, p. 246), a “coisificação humana”, atribuindo aos professores a tarefa
de executar propostas previamente definidas pela lógica privada.
Para Lopes (2004, p. 111), uma política curricular é
[...] uma política de constituição do conhecimento escolar: um conhecimento construído si-
multaneamente para a escola (em ações externas à escola) e pela escola (em suas práticas
institucionais cotidianas). Ao mesmo tempo, toda política curricular é uma política cultu-
ral, pois o currículo é fruto de uma seleção da cultura e é um campo conflituoso de produção
de cultura, de embate entre sujeitos, concepções de conhecimento, formas de entender e
construir o mundo.
Se partirmos do pressuposto de que a política curricular é um campo de dispu-
tas, de concepções de mundo, não podemos deixar de mencionar que é também um
espaço público. Por essa razão, a escola também é um local de tomada de decisões,
pois é lá que a política se consolida, o que exige o posicionamento dos professores,
dos pais, dos alunos e de todos os demais profissionais que atuam nas escolas. Eles
são produtores de discursos e dão significado a tudo o que acontece no âmbito es-
colar (PACHECO, 2000). De acordo com o documento da BNCC (BRASIL, 2018), a
autonomia dos sistemas e das redes de ensino consiste em adequar as proposições
da base nacional à realidade local, ao contexto e às características dos alunos. A
nossa questão é: se o Instituto Ayrton Senna é parceiro na implementação do Emiti
em Santa Catarina, qual será de fato a autonomia curricular dos professores e da
escola? De que forma os contextos locais serão considerados no currículo?
Ao refletir sobre a autonomia das escolas e dos professores, Barroso (2013) diz
que esse conceito pode ser visto de duas formas, a primeira por permitir ultrapas-
sar a rigidez e o caráter homogêneo de oferta do currículo, “através do recurso à ter-
ritorialização das políticas educativas, ao desenvolvimento de projetos educativos
próprios, ao reforço da participação e à diversificação da oferta” (BARROSO, 2013,
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p. 48). Na segunda, a autonomia delegada pela introdução de características da
oferta privada torna a escola e os professores reféns da regulação e da concorrência,
gerando segmentação e segregação dos setores públicos.
Diante disso, a racionalidade de mercado é delineada pelos instrumentos de
regulação: a escola, o currículo e a avaliação.
Desse modo, o mercado não dispensa o Estado, esperando que este se responsabilize pelos
aspetos mais questionados do currículo – os conteúdos e a avaliação – e estabeleça os crité-
rios para que a qualidade escolar seja determinada pelos pais, transformados em consumi-
dores e clientes (PACHECO, 2002, p. 85).
Nessa perspectiva, a avaliação torna-se um instrumento fundamental no pro-
cesso, como afiança Hypólito (2010, p. 1.339):
A introdução de sistemas de avaliação da educação e do desempenho docente é crucial
para essa regulação por parte do Estado, que passa a controlar e a avaliar desde longe,
por meio da contratação de terceiros para realizar a avaliação externa – considerada como
prestação de contas à sociedade civil (accountability). Tais modelos gerenciais são baseados
na qualidade e no mérito e os problemas da educação ficam reduzidos a problemas técni-
co-gerenciais.
Nesse cenário, a escola assume o lugar central, faz as escolhas, porém dá a
contrapartida por meio das avaliações externas. Na realidade é isso o que ocorre
com a BNCC; o Estado definiu o modelo, os itinerários formativos, as aprendi-
zagens essenciais e cabe aos sistemas e às redes de ensino e às escolas operacio-
nalizar, construir um currículo e reelaborar os projetos pedagógicos de modo que
possam dar as respostas por intermédio das avaliações.
Ao analisar as parcerias estabelecidas entre o Estado e instituições privadas,
de que autonomia estamos falando? Para Barroso (2013), há um impulso do setor
público em estabelecer as parcerias, o que está acarretando mudanças na educação
“sem que isso signifique forçosamente uma privatização global do sistema” (BAR-
ROSO, 2013, p. 52). No entendimento do autor, com a hibridização do público e
do privado, observamos a diluição das fronteiras, a complexificação das relações.
Portanto, ainda não há como classificar esse movimento, é necessário acompanhar
e investigar. Além disso, ressaltamos um aspecto relevante defendido por Barroso
(2013, p. 53):
No contexto atual da crise do Estado Providência (e do modelo social a que deu origem),
torna-se necessário reforçar a dimensão pública da escola pública, o que obriga a reafirmar
os seus valores fundadores perante a difusão transnacional de uma vulgata neoliberal, que
vê no serviço público a origem de todos os males da educação e na sua privatização a única
alternativa.
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O lugar das práticas curriculares diante do avanço da lógica privada sobre o setor público: o Emiti em Santa Catarina
Além dos aspectos relacionados às parcerias público-privadas, ressaltamos
que os avanços da lógica privada na educação podem ocorrer de outras maneiras.
Moreira e Ramos (2015), ao refletirem sobre as questões curriculares, chamam
a atenção para a mercantilização da educação, quando empresas educacionais
oferecem sistemas apostilados, plataforma digitais, sistemas avaliativos e muitos
outros produtos. Muitos docentes já sentem os impactos dessas mudanças, que
acarretam empobrecimento de suas práticas curriculares, pois os objetivos se dire-
cionam apenas para o bom desempenho (dos alunos e dos professores) nas avalia-
ções em larga escala. Isso está afetando as práticas curriculares dos docentes que
atuam na educação básica.
Outro aspecto a ser observado é que o capital privado está cada vez mais pre-
sente por meio de education business na prestação de serviços educacionais, muitas
vezes em nome do Estado. Ball (2014) ressalta que é cada vez mais frequente a
criação de redes educacionais internacionais, com o objetivo de garantir o acesso
em massa das crianças à educação básica, especialmente em países onde a popu-
lação é de baixa renda. Para o autor, ainda não é possível ter noção dos impactos
dessas redes de negócios para as políticas de educação. Nota-se que existe uma
crescente desestatização e mercantilização da educação e que os bens públicos es-
tão se convertendo em bens privados. As pesquisas vêm mostrando que as parce-
rias público-privadas trazem novas práticas, novos valores e novas sensibilidades
para a educação (BALL, 2014).
De acordo com Peroni (2013), as parcerias público-privadas estão aliadas ao
fortalecimento do terceiro setor, no qual “o privado acaba influenciando ou definin-
do o público, não mais apenas na agenda, mas na execução das políticas, definindo
o conteúdo e a gestão da educação, com profundas consequências para a democra-
tização da educação” (PERONI, 2013, p. 30).
Acrescenta-se a essa reflexão que o controle social e a valorização do coletivo
na tomada de decisões, importantes num processo democrático, acabam cedendo
espaço para instituições privadas e organismos internacionais na definição das
políticas educacionais e na definição dos currículos (PERONI, 2013).
As implicações dessa agenda repercutem nas práticas curriculares dos profes-
sores e na formação das subjetividades dos estudantes da educação básica.
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As práticas curriculares no Emiti e o avanço da lógica privada sobre o setor
público: a percepção dos professores
A presente pesquisa, cujo objetivo é discutir o lugar das práticas curriculares
dos professores do programa Emiti, considerando a parceria da Secretaria de Edu-
cação do Estado de Santa Catarina com o IAS, foi realizada em uma das escolas
que implantou o programa, numa cidade da região norte de Santa Catarina. Nessa
escola, foram ouvidos quatro professores, por meio de entrevista semiestruturada,
sobre aspectos referentes às suas práticas curriculares.
É necessário explicitar que, embora a instituição de ensino tenha implemen-
tado a carga horária de 7 horas diárias como parte do programa Emiti em 2017,
os arranjos curriculares chamados itinerários formativos ainda não tinham sido
colocados em prática no momento da pesquisa, o projeto estava na primeira fase de
implementação e a BNCC ainda não estava em vigor. De acordo com os Cadernos
de Sistematização do IAS
3
, o currículo do Emiti está dividido em duas grandes
áreas: Área de Conhecimento, que contempla as Linguagens, Matemática, Ciên-
cias da Natureza e Ciências Humanas; e Núcleo Articulador, que envolve Estudos
Orientados (EO); Projeto de Intervenção e Pesquisa (PIP) e Projeto de Vida (PV).
Os EOs são voltados para o estudo mais aprofundado de assuntos de interes-
se dos alunos, e o reforço dos conteúdos abordados nas disciplinas acontece com
participação voluntária. O PIP visa engajar os estudantes em temas relevantes e
encorajá-los a conduzir pesquisas científicas, expor os dados encontrados e relacio-
ná-los com os aspectos significativos para eles e para a comunidade que circunda
a escola. A participação nesse projeto é compulsória para os alunos da modalidade
de Emiti. Além disso, os PIPs são divididos em duas fases: na primeira, os alunos,
sob a supervisão de um professor designado para tal, conduzem a pesquisa sobre
o tema selecionado; na segunda parte, os alunos entram em contato com a comu-
nidade a fim de relacionar seus achados e as realidades que os cercam. Por fim, o
PV consiste em uma reunião com um grupo reduzido de estudantes para falar de
assuntos que os atinjam de alguma maneira, como problemas na família, projetos
pessoais e profissionais (SED; IAS, 2017?).
Com base nos resultados das entrevistas feitas com os professores do Emiti,
considerado o cenário descrito anteriormente, observaram-se duas categorias nas
falas, são elas: infraestrutura necessária para a efetivação das práticas curricula-
res no Emiti; e práticas curriculares e a autonomia curricular no Emiti.
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O lugar das práticas curriculares diante do avanço da lógica privada sobre o setor público: o Emiti em Santa Catarina
Infraestrutura necessária para a efetivação das práticas curriculares no Emiti
Levando em conta a análise de dados da pesquisa, pode-se afirmar que exis-
tem dificuldades que não devem ser ignoradas quando da efetivação de um currí-
culo oferecido em período integral de forma ampla, pois há que se considerar as
condições materiais das escolas e suas realidades. Nesse foco, parece-nos evidente
que o professor B, ao descrever sua percepção diante da obrigatoriedade do tempo
integral, identifica uma das limitações em relação à implementação do referido
currículo:
Às vezes, a gente tem alguns documentários que podem passar direto da internet, baixar
lá e tal. Vamos assistir isso aqui e fazer uma baita de uma aula. Uma aula ampla, dinâmica,
diferenciada, se tu tiveres ferramentas. Então a gente não tem. A parte estrutural das escolas,
não é só da nossa, vamos dizer assim, a visão geral, é muito defasada.
Ao observar a fala do professor B, a possibilidade de trabalhar o conteúdo por
meio da web é uma ótima oportunidade, porém as escolas não oferecem a infraes-
trutura necessária, limitando a ação docente e também a sua possibilidade de fazer
escolhas para suas aulas.
O professor C percebe dificuldade semelhante, haja vista compreender que o
tempo integral prevê atividades para além do espaço da sala de aula:
é mais a questão estrutural. A questão de você ter, de repente, uma quadra coberta, um giná-
sio, de ter uma internet que funcione [...] então, assim, o que a gente sente é essa questão da
estrutura.
Da mesma forma, o professor A ratifica a percepção dos outros, quando afirma:
Dentro de um modelo desse, que é de pesquisa, se não tiver internet... essas novas escolas,
que estão na manchete ali. Essas novas escolas já estão berrando. Como vocês trazem para
nós um projeto que depende 80% de pesquisa e tem escola que não tem internet. E a gente
está no segundo ano aqui. [...] É um problema maior esse de estrutura, de não ter o material
que precisa para esse modelo. Não é pedagógico.
Com as dificuldades enfrentadas nas escolas, o professor se vê limitado pela
regulação e com dificuldades de implantar o que está proposto nos materiais didá-
ticos do Instituto. Essa percepção não é apenas em relação ao Emiti, mas ocorre
em todas as ofertas curriculares de Ensino Médio, conforme a fala do professor 1:
“Olha, no Ensino Médio é assim. Em relação ao Estado, nós temos uma defasagem na parte
estrutural. É o único problema tanto no regular, no integral: é a falta de estrutura”.
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Nas afirmações dos professores participantes desta pesquisa, está claro que a
proposta do Instituto Ayrton Senna traz opções de pesquisa e de realização de pro-
jetos, porém a proposta pode não ter condições de viabilidade e isso limita a prática
e a autonomia curricular do professor, impedindo outras escolhas e possibilidades.
Para Lopes (2004), isso mostra que, se por um lado o currículo é o centro de uma
reforma, nesse caso do Ensino Médio, por outro, as escolas ficam limitadas à sua
capacidade, que muitas vezes não atende às mudanças propostas.
Para a implementação de uma política curricular e para que a autonomia cur-
ricular do professor possa ocorrer, Morgado (2003) diz que são necessárias algumas
condições, entre as quais está o acesso a recursos necessários para a implantação
das mudanças e condições que permitam a escola ser um espaço de decisão curricu-
lar, e não apenas de implementação.
Práticas curriculares e a autonomia curricular no Emiti
Em suas reflexões sobre as práticas curriculares, Sacristán (2017) ressalta
que sempre que se tem uma política curricular há um conjunto de forças atuando
na determinação do currículo materializado por meio dos conteúdos, das práticas
pedagógicas e da avaliação. No caso da presente pesquisa, temos o Instituo Ayrton
Senna, a Secretaria de Estado da Educação, a direção da escola e os professores; to-
dos compõem essas forças. “O equilíbrio de forças resultante dá lugar a um peculiar
grau de autonomia de cada um dos agentes na definição da prática” (SACRISTÁN,
2017, p. 100). Por essa razão,
[...] o currículo que se realiza por meio de uma prática pedagógica é o resultado de uma sé-
rie de influências convergentes e sucessivas, coerentes e contraditórias, adquirindo, dessa
forma, a característica de ser um objeto preparado num processo complexo, que se transfor-
ma e constrói nesse processo (SACRISTÁN, 2017, p. 100).
A percepção de professores do Emiti ratifica essas forças convergentes e con-
traditórias presentes num ensino público com uma lógica privada. A fala do profes-
sor B exemplifica tal lógica:
O Instituto Ayrton Senna, que elabora todos os cadernos, a parte pedagógica. Então vêm algu-
mas coisas prontas, só que a gente tem essa abertura que a gente pode reelaborar as aulas
dentro do assunto, não fugindo muito, e também incluindo alguma coisa que a gente acha
pertinente tocar no assunto no primeiro e segundo ano, porque algumas coisas vêm meio fora,
tanto no currículo do Estado quanto do Instituto também.
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O lugar das práticas curriculares diante do avanço da lógica privada sobre o setor público: o Emiti em Santa Catarina
Nessa fala, também há um aspecto contraditório, pois, ao mesmo tempo em
que o professor B afirma que é possível “reelaborar as aulas”, ele também relata
que isso deve ser feito “dentro do assunto, não fugindo muito”. Por meio dessa
contradição nota-se que pode estar faltando clareza no tocante ao que representa
a presença do IAS na escola, uma vez que o Instituto elabora todos os cadernos e
define o papel do professor, implicando limitação da prática e da autonomia curri-
cular docente. Dessa forma, o professor não é o protagonista da decisão curricular
e acaba tornando-se um executor de tarefas.
Morgado (2003) define autonomia curricular como sendo a possibilidade de os
professores tomarem decisões no âmbito do desenvolvimento curricular, tanto no
que diz respeito à adaptação ao currículo prescrito quanto às necessidades de seus
alunos e às especificidades do contexto no qual a escola está inserida. Isso ocorre
numa perspectiva de territorialização das políticas educativas na escola. A auto-
nomia curricular, tanto da escola como do professor, efetiva-se quando o currículo
é considerado um projeto, com a possibilidade de construir intenções pensadas de
forma colegiada. Esse processo é sempre permeado pelas tensões e contradições,
necessárias e pertinentes (MORGADO, 2011).
Para o mesmo autor, decisões coletivas de o que, para quem, quando e como
ensinar e avaliar são imprescindíveis. Com isso, é possível mobilizar os docentes
em torno dos objetivos de cada área do saber, entendidos também como “capa-
cidades, atitudes e competências a desenvolver pelos estudantes, bem como dos
modelos metodológicos que devem presidir ao desenvolvimento dos processos de
ensino-aprendizagem” (MORGADO, 2011, p. 397). Além desses aspectos, a parti-
cipação dos professores na elaboração do projeto faz com que a escola se torne um
local de reconstrução do currículo, e não apenas o de implementação de algo pres-
crito. Portanto, a implementação de um projeto como o do Instituto Ayrton Senna
pode limitar a autonomia curricular, comprometendo a construção de um projeto
educacional coletivo e democrático.
Para reforçar essa visão, há que se considerar também o relato do professor C:
A gente tem esse... essas OPAs [Orientações para Planos de Aula], que são as apostilas que
vêm do Instituto que, como eu falei para ti, é o esqueleto, e aí a gente tem suporte dos livros
didáticos que vêm, e aí a gente senta, conversa, internet. A gente procura amarrar de todos
os lados para fazer esse planejamento, mas vem um suporte já, um esqueleto mais ou menos
pronto do Instituto Ayrton Senna, e aí a gente vai inserindo outras atividades, vai enriquecendo
com vídeos, com links, então você vai conseguindo fazer esse processo todo. É bem legal.
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Se considerarmos a realidade das escolas brasileiras e as condições de traba-
lho oferecidas aos professores, como baixos salários, carga horária excessiva, pouco
acesso à formação continuada, é possível compreender a razão pela qual o professor
C acha “bem legal” o movimento feito por ele e seus colegas, justamente pela pos-
sibilidade de um momento de diálogo e discussão de suas práticas em sala de aula.
Esse mesmo sentimento é expressado pela professora D:
Então a gente sempre conversa para adaptar, e essa adaptação muitas vezes o professor não
consegue, por isso as formações com o Instituto Ayrton Senna, para ensinar esse professor a
adaptar.
O que pode passar despercebido para os professores é o que representa uma
proposta advinda de uma instituição privada no contexto da educação pública. Os
professores parecem aceitar a proposta da parceria, porém não compreendem que
a lógica que a sustenta é a de uma formação com base em princípios conservadores,
que valoriza a aplicação prática dos conhecimentos, de formação para o mercado de
trabalho, pouco abertos para uma prática curricular que contemple o caráter pú-
blico e democrático do currículo e da escola. Uma das principais implicações dessas
parcerias consiste na redução da autonomia do professor,
[...] desde quando recebe o material pronto para utilizar em cada dia na sala de aula e tem
um supervisor que verifica se está tudo certo até a lógica da premiação por desempenho,
que estabelece valores como o da competitividade entre alunos, professores e escolas (PE-
RONI, 2013, p. 27-28).
Para os professores da escola investigada, há autonomia na escolha de alguns
projetos, como mencionado pela professora D:
Nós temos essa liberdade, também essa autonomia de “Ah, eu quero trabalhar isso. Isso é
pertinente”. Vamos supor, eu quero trabalhar a questão do meio ambiente e reciclagem. Posso
trabalhar isso. Por mais que o caderno vá numa linha, eu posso trabalhar, adaptar ele dentro
dessa linha.
Essa abertura para o trabalho com projetos é possível em decorrência da
ampliação da carga horária no Emiti; os professores podem planejar e executar
projetos que não estão previstos no material didático, ainda que eles devam estar
relacionados ao conteúdo. Podemos considerar que há uma autonomia curricular
controlada. Diante dessas possibilidades relatadas pelos professores, verifica-se
que na implementação de uma política curricular, de acordo com Lopes (2004,
p. 113), os professores “têm diferentes histórias, concepções pedagógicas e formas
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O lugar das práticas curriculares diante do avanço da lógica privada sobre o setor público: o Emiti em Santa Catarina
de organização, que produzem diferentes experiências e habilidades em responder,
favoravelmente ou não, às mudanças curriculares, reinterpretando-as”.
Nas parcerias analisadas por Cormelatto e Caetano (2013, p. 248), referindo-
-se justamente ao Instituto Ayrton Senna, alguns aspectos da lógica dessas parce-
rias são apresentados: “como os programas do Instituto são prontos, padronizados,
a função do professor fica restrita a um técnico atuando apenas como executor
das decisões já estabelecidas”. As autoras alertam, ainda, no mesmo estudo, que
os “programas em larga escala são heterônomos e não possibilitam a participação
dos reais interessados, a comunidade escolar” (CORMELATTO; CAETANO, 2013,
p. 236). As autoras asseveram ainda que a ausência de participação dificulta o
exercício da gestão democrática da educação, cujos princípios se pautam na auto-
nomia, na participação e no diálogo.
Ao perceber que a proposta do Instituto traz uma realidade de outro estado,
necessitando de adaptações para a sua execução em Santa Catarina, já é um indí-
cio de que há alguma resistência por parte dos professores dessa escola. Isso pode
ser observado na afirmação da professora D:
o OPA, ele foi construído em cima de uma realidade de uma periferia no Rio de Janeiro, a
escola Chico Anísio, então nós temos que adaptar a nossa vivência aqui em Santa Catarina.
Para a mesma professora, o material não atende às necessidades locais, pois
ela observa no diálogo com os colegas do Emiti que as OPAs, por não atender à
expectativa, necessitam de melhorias e adaptações. Essa prática curricular é ne-
cessária para que os estudantes tenham a garantia de acesso aos conhecimentos e
de atribuição de sentidos às situações vivenciadas na escola (LEITE, 2012).
Ainda que se observe, com os resultados desta pesquisa, que as práticas curri-
culares são afetadas pelas parcerias público-privadas, no sentido de limitar a auto-
nomia do professor por meio de roteiros preestabelecidos e pela falta de condições
de infraestrutura, notamos o esforço dos professores em garantir o acesso dos estu-
dantes aos conhecimentos historicamente construídos. Mesmo que o Emiti seja um
projeto educacional operacionalizado numa parceria público-privada, com a oferta
de materiais didáticos, orientações, formação de professores, o caráter humano não
se perde, tendo em vista que os professores, em meio às contradições desse sistema,
exercem movimentos que levam à adaptação e modificação do currículo prescrito.
Assim, a proposta inicial não se efetiva na íntegra.
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Considerações
Em relação à discussão proposta pelo presente artigo, pode-se afirmar que a
parceria do Instituto Ayrton Senna é uma realidade no estado de Santa Catarina,
apesar da sua aplicação ser restrita às escolas do Emiti. Diante do cenário e do
referido avanço da inciativa privada sobre a pública, há que se considerar que os
professores participantes desta pesquisa se colocam de forma clara no que se refere
às limitações da infraestrutura existente nas escolas nas quais atuam e às adapta-
ções que são necessárias no âmbito da prática.
Esses docentes entendem que a proposta do Instituto pode ser inviabilizada
em função das condições, por hora, existentes em seus locais de trabalho. Apre-
sentam-se, assim, as implicações do que significa o não reconhecimento das ter-
ritorialidades e das realidades locais, refletindo no cotidiano básico das escolas e
dificultando as ações e as práticas pedagógicas. Para Morgado (2000, p. 71), “a ter-
ritorialização, traduzida globalmente pela possibilidade de interpretar e adequar
localmente as resoluções centrais, é a palavra chave de todo o processo”.
Quanto às implicações do que representa uma proposta baseada na lógica pri-
vada, no que tange à restrição da autonomia do professor, surge um fato contra-
ditório na fala dos participantes da pesquisa, pois eles afirmam que podem fazer
adaptações e sugestões no material recebido do Instituto e consideram tal possibi-
lidade muito boa, todavia, em vários momentos, percebe-se que as possibilidades se
restringem à inclusão de itens no que já está proposto. A inserção das sugestões a
que se referem os professores não está na base da proposta, mas sim na adaptação
dentro de uma lógica que não privilegia ou não permite construir uma identificação
entre professores, estudantes e gestores, os quais são os atores essenciais e real-
mente capazes de respeitar as subjetividades, conhecer as limitações e possibilida-
des de seus espaços de trabalho.
Assim, apresenta-se a necessidade urgente da exigência do respeito à autono-
mia e às decisões curriculares da comunidade escolar, por meio de trabalho coleti-
vo, permitindo atender às diferenças culturais de cada região do país
.
Diante das considerações aqui colocadas, reiteramos a ideia de que parcerias
público-privadas, como a do Emiti em Santa Catarina, não podem perder de vista
a defesa de uma escola pública, “de uma escola democrática e não segregativa,
baseada na universalidade do acesso, na igualdade de oportunidades, na partilha
de uma cultura comum e na continuidade dos percursos escolares” (BARROSO,
2013, p. 54).
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O lugar das práticas curriculares diante do avanço da lógica privada sobre o setor público: o Emiti em Santa Catarina
Notas
1
Disponível em: http://www.sed.sc.gov.br/. Acesso em: 10 jun. 2019.
2
Disponível em: novoensinomedio.mec.gov.br/#!/guia. Acesso em: 10 jun. 2019.
3
Disponíveis no site da Secretaria de Estado de Educação: <sed.sc.gov.br/programas-e-projetos/27909-ensi-
no-medio-em-tempo-integral>. Acesso em: 11 jul. 2019.
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Democratização da educação superior: nexos entre a armação da excelência e o desao do reconhecimento
Democratização da educação superior: nexos entre a armação da
excelência e o desao do reconhecimento
Democratization of higher education: nexuses between the armation of
excellence and the challenge of recognition
Democratización de la educación superior: vínculos entre la armación de
excelencia y el desafío del reconocimiento
Gregório Durlo Grisa
*
Célia Elizabete Caregnato
**
Resumo
As universidades públicas federais brasileiras vivem um importante processo de democratização. Assegurado
majoritariamente pela Lei 12.711/2012, ele expõe novas dinâmicas e contradições. Este artigo discute a relação
entre excelência acadêmica e o reconhecimento institucional aos novos públicos que ingressam nessas institui-
ções. A base empírica é constituída por oito entrevistas com gestores que ocupam cargos acadêmicos de des-
taque em uma universidade pública comprometida com a excelência acadêmica, conforme seus documentos
ociais. Para a discussão dos dados, recorremos à ideia de excelência acadêmica e à noção de reconhecimento.
Elas apoiam a compreensão de que se está tratando de um universo institucional tensionado entre o objetivo
de ser excelente e o de exercer sua função social. Para cumpri-los, a universidade precisa desenvolver formas
de lidar com públicos estudantis não tradicionais, os quais crescentemente estão presentes no cotidiano insti-
tucional. Concluímos que o processo de democratização em uma instituição que busca armação com base na
excelência acadêmica necessita rearmar práticas que ofereçam condições aos novos públicos de estudantes
para alcançarem, além do acesso, espaços de prestígio e sucesso acadêmico.
Palavras-chave: Excelência acadêmica. Ações armativas. Reconhecimento.
*
Doutor em Educação e Pós-Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs, Brasil). Pro-
fessor do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS, Brasil). ORCID https://orcid.org/0000-0002-1395-7704. E-mail:
grisagregorio93@gmail.com
**
Doutora em Educação pela Ufrgs. Realizou estágio pós-doutoral na University of Wisconsin (EUA).É professora asso-
ciada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, membro do corpo permanente do Programa de Pós-Graduação
em Educação (Ufrgs, Brasil). ORCID https://orcid.org/0000-0002-9326-590X. E-mail: celia.caregnato@gmail.com
Recebido em 25/06/2019 – Aprovado em 01/10/2019
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i1.10579
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Gregório Durlo Grisa, Célia Elizabete Caregnato
Abstract
Brazilian federal public universities are undergoing an important process of democratization. Assured mainly by
Law 12.711 / 2012, it exposes new dynamics and contradictions. This article discusses the relationship betwe-
en academic excellence and institutional recognition for new audiences. The empirical basis consists of eight
interviews with managers who hold prominent academic positions in a public university which, according to
its ocial documents, is committed to academic excellence. For the discussion of the data, we turn to the idea
of academic excellence and the notion of recognition. They support the understanding that one is dealing with
an institutional universe strained between the goal of being excellent and exercising its social function. To fulll
them, the university needs to develop ways of dealing with non-traditional student audiences, which are incre-
asingly present in the daily institutional. We conclude that the process of democratization in an institution that
seeks armation based on academic excellence needs to rearm practices that oer conditions for the new
student audiences to achieve, beyond access, spaces of prestige and academic success.
Keywords: Academic excellence. Armative action. Recognition.
Resumen
Las universidades públicas federales brasileñas están experimentando un importante proceso de democratiza-
ción. Principalmente asegurado por la Ley 12.711 / 2012, el expone nuevas dinámicas y contradicciones. Este ar-
tículo analiza la relación entre la excelencia académica y el reconocimiento institucional para las nuevas audien-
cias que ingresan a estas instituciones. La base empírica consiste en ocho entrevistas con gerentes que ocupan
puestos académicos sobresalientes en una universidad pública comprometida con la excelencia académica, de
acuerdo con sus documentos ociales. Para la discusión de los datos, recurrimos a la idea de excelencia académi-
ca y la noción de reconocimiento. Apoyan la comprensión de que este es un universo institucional encadenado
entre el objetivo de ser excelente y el ejercicio de su función social. Para cumplirlos, la universidad necesita
desarrollar formas de tratar con audiencias de estudiantes no tradicionales, que están cada vez más presentes
en la vida cotidiana institucional. Concluimos que el proceso de democratización en una institución que busca
la armación basada en la excelencia académica necesita rearmar prácticas que ofrezcan condiciones para
que las nuevas audiencias de estudiantes alcancen, además del acceso, espacios de prestigio y éxito académico.
Palabras-clave: Excelencia académica. Acciones armativas. Reconocimiento
Introdução
A universidade pública brasileira, em sua rede federal, segue a norma legal
que prevê a reserva de vagas para estudantes egressos de escolas públicas, confor-
me a Lei 12.711/2012, de 29 de agosto de 2012. Isso significa uma transformação
expressiva, não apenas no acesso a essas instituições, mas no cotidiano da vida
universitária. Diferente de outras realidades nacionais, nas quais as instituições
têm prioritariamente funções de pesquisa ou de ensino, no caso da universidade
pública brasileira, uma única instituição está sendo chamada a ser competitiva
internacionalmente, sendo inclusiva socialmente.
Diante disso, perguntamo-nos: de que forma a universidade concebe-se na sua
afirmação pela excelência acadêmica, que remete à obtenção de destaque por meio
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Democratização da educação superior: nexos entre a armação da excelência e o desao do reconhecimento
de atividades de pesquisa e de internacionalização, e, ao mesmo tempo, se posicio-
na frente à necessidade de práticas de reconhecimento relacionadas à inserção e
à valorização dos novos segmentos estudantis? O pressuposto é que se a noção de
excelência remete à ideia de competitividade internacional, ela também necessita
formar o cidadão/profissional com vistas ao desenvolvimento – científico, tecnoló-
gico e social – da nação, especialmente no caso de instituições financiadas com re-
cursos públicos. Trata-se da formação de segmentos de elite intelectual, dirigentes
para sociedade nacional, e também da oferta de condições para que as novas gera-
ções de jovens tenham desenvolvimento pessoal, profissional e sejam protagonistas
de mudanças sociais necessárias.
Simon Marginson (2009) analisou aspectos que determinam a formação dos
rankings internacionais das instituições de ensino superior, os quais balizam cri-
térios de financiamento do Banco Mundial para países em desenvolvimento. O
autor mostra que há tipos básicos de instituições, voltados para a pesquisa ou para
o ensino, como é o caso do sistema norte-americano. Para situar-se nos rankings
internacionais é preciso atender à lógica da competitividade a partir de dois movi-
mentos exigidos aos sistemas nacionais. Primeiro, a adaptação ao modelo de uni-
versidade com crescente identidade ligada à lógica empresarial. Segundo, o mapea-
mento do domínio do ensino superior, na forma de uma hierarquia de desempenho
institucional, representada pelo resultado da concorrência no mercado. Essas duas
políticas de gestão do ensino superior são interdependentes e fazem parte do atual
cenário da vida universitária (MARGINSON, 2009). Essa demarcação indica que,
para ser uma universidade de excelência acadêmica, a instituição precisa conti-
nuar a responder pela atividade de pesquisa num campo de disputas, de eficiência
e produtividade.
Para além da constatação de que a universidade forma elites e obedece cres-
centemente a lógicas exógenas, no caso brasileiro, o sistema necessita democrati-
zar o acesso e as práticas em seu interior para estar habilitado a lidar com novos
públicos. Esse desafio se apresenta em um cenário de lutas em que variadas forças
disputam reconhecimento por meio de diferentes formas de exercício de poder.
Diferentemente da massificação por meio de títulos desvalorizados (BOUR-
DIEU, 1997) como ocorre num conjunto de vagas criadas em diferentes épocas no
Brasil e em outras realidades nacionais, a universidade pública está sendo ins-
tigada a garantir qualidade suficiente para o trabalho acadêmico a fim de que
os estudantes possam dar saltos em sua formação, compensando, muitas vezes,
a trajetória escolar anterior. Nesse contexto, a noção de democratização (SOBRI-
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Gregório Durlo Grisa, Célia Elizabete Caregnato
NHO, 2013) ao invés de massificação (TROW, 2005) do sistema se torna pertinente.
Entretanto, caso a instituição se torne incapaz de qualificar seus públicos para par-
ticipar dos processos de excelência acadêmica, sua capacidade de reconhecimento à
diversidade e seu processo de democratização evidenciarão precariedade.
A análise desenvolvida neste artigo tem como base empírica a ótica de di-
rigentes institucionais de uma universidade pública do sul do Brasil e objetiva
problematizar a relação entre a ideia de excelência e competitividade acadêmica
e reconhecimento, participação e formação dos novos grupos de estudantes que
ingressam na instituição.
Bill Readings (2003) destaca que para entendermos o que é a universidade
contemporânea, temos de perguntar o que quer dizer excelência, ou o que não quer
dizer. Plenamente inserido no discurso de administradores e gestores universitá-
rios, o termo excelência tem origens na área da Ciência da Administração e ganhou
ampla circulação no universo acadêmico nos últimos trinta anos
1
.
Ao ter como foco a formação de recursos humanos para o mercado de trabalho
e a entrada na disputa científica transnacional, já que a globalização assim a in-
duz, a universidade encontra no termo excelência uma espécie de cobertor semân-
tico. Isso representa uma mudança na função da universidade, em que aquilo que é
ensinado e pesquisado interessa menos do que o fato de ser ensinado e pesquisado
com excelência (READINGS, 2003).
Diferentemente de uma concepção moderna de universidade, na contempora-
neidade, de fato, direcionar as energias do ensino e da pesquisa para a elaboração
de uma cultura nacional de referência deixa de ser preponderante na prática aca-
dêmica. As relações entre Estado e universidades perdem força, e estas passam a
ser instituições em busca da internacionalização como ferramenta de reconheci-
mento e financiamento. A legitimidade política que outrora era conferida à univer-
sidade pela produção e difusão da cultura nacional, hoje seria alcançada através da
produção científica de excelência internacional. Assim como ensina Lyotard (2004),
na condição pós-moderna do conhecimento, a performance substitui as meta-nar-
rativas como critério de legitimação.
Esse processo, segundo Readings (2003, p. 24), é a transição vivida pela uni-
versidade de uma ideia humboldtiana de cultura para a noção tecno-burocrática de
excelência. O autor salienta que a excelência é o princípio integrador que permite,
inclusive, que a “diversidade” (o outro lema dos prospectos da universidade) seja
tolerada sem ameaçar a unidade do sistema. A busca da excelência responde bem
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Democratização da educação superior: nexos entre a armação da excelência e o desao do reconhecimento
às demandas do capitalismo tecnológico de tornar o conhecimento uma mercadoria
e, por carecer de sentido claro, atende a outras demandas sociais no discurso, mas
em menor intensidade na prática.
De outra parte, no âmbito das disputas sociais e também do conhecimento
filosófico e social, principalmente a partir da segunda metade do século passado,
se faz repercutir o uso da noção de reconhecimento. No contexto da relativização
de valores universalistas modernos, devido a questões de geopolítica mundial, de
afirmação de segmentos antes excluídos ou marginalizados dos processos socais e
acadêmicos, o reconhecimento passa a estar no centro de discussões das ciências
humanas e sociais (HONNETH, 2003; TAYLOR et al., 1994).
Neste artigo a noção de reconhecimento não é entendida a partir de elemen-
tos identitários reivindicados por algum grupo ou segmento social. A compreende-
mos como componente fundamental da gramática das sociedades contemporâneas
(HONNETH, 2003) e inserida na disputa pela definição de uma sociedade mais
justa. Nancy Fraser (2001; 2007) defende que o conceito de reconhecimento tem
de ser vinculado à noção de justiça e analisado como uma questão de status social
ao invés do modelo de identidade cultural. O modelo de reconhecimento ligado a
identidades priorizaria reivindicações de exclusivismo em detrimento de reivindi-
cações de superação de subordinações injustas. Na perspectiva de Fraser, questões
subjetivas dariam espaço para demandas coletivas que implicam valorizar cultu-
ras institucionais e status ocupados em seu interior pelos diferentes grupos sociais.
O reconhecimento, no âmbito dos novos públicos da educação superior, cujo in-
gresso tenha ocorrido com base na reserva de vagas de acordo com a Lei 12.711/2012,
precisaria colocar os grupos sociais em paridade para participar da vida acadêmica,
seja no âmbito da formação geral, seja no âmbito científico investigativo. Segundo
essa abordagem, tanto as condições objetivas, quanto as subjetivas são necessárias
para a materialização do reconhecimento. Portanto, o reconhecimento adquire um
caráter moral de construção de códigos políticos coletivos no âmbito acadêmico,
mais do que a noção ética individual de reconhecimento ou de realização de anseios
de personalidade. Com base no material empírico, trataremos da ótica de gestores
que ocupam cargos acadêmicos sobre a compreensão do que seja a excelência aca-
dêmica, a função social e cultural da universidade na relação com a perspectiva do
reconhecimento dos públicos estudantis não tradicionais ou não herdeiros (BOUR-
DIEU; PASSERON, 2014).
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Gregório Durlo Grisa, Célia Elizabete Caregnato
Metodologia
Os dados coletados têm origem em um conjunto de oito entrevistas com gesto-
res acadêmicos de uma universidade pública do sul do Brasil, composto da seguinte
maneira: seis diretores de unidades acadêmicas e dois membros da administração
central, pró-reitores. A escolha dos entrevistados buscou atender à representação
das diferentes áreas do conhecimento.
Os diretores de unidade acadêmica ocupam posição estratégica, uma vez que,
ao mesmo tempo em que têm contato direto com a administração central e suas
políticas, eles também mantêm relação constante com seus pares docentes, com
discentes e com o corpo técnico administrativo. Além disso, em geral, são pessoas
experientes em suas áreas e na relação com a dinâmica da instituição na qual
atuam. Essa realidade confere aos diretores a possibilidade de uma análise global
da instituição, o que os torna “informantes-chaves”.
Nas entrevistas, indagou-se aos entrevistados suas ideias sobre excelência
acadêmica, função social da universidade e cultura acadêmica. As entrevistas fo-
ram gravadas com o consentimento de cada um dos entrevistados. Todos encontros
ocorreram na universidade por ocasião da pesquisa desenvolvida durante estudos
de doutoramento. A figura a seguir codifica e apresenta a composição dos partici-
pantes da pesquisa e suas respectivas áreas.
Figura 1 – Entrevistados de acordo com área de conhecimento que atuam
Entrevistado Área de atuação
E1 Administração Central
E2 Administração Central
E3 Área da Comunicação
E4 Área das Humanidades
E5 Área das Engenharias
E6 Área da Saúde
E7 Área da Psicologia
E8 Área da Educação
Fonte: elaborado pelos autores.
Descrição e análise das entrevistas
Analisamos o conteúdo das entrevistas organizando-o com base nas três cate-
gorias anunciadas, quais sejam, excelência acadêmica, função social da universida-
de e cultura acadêmica. O objetivo foi abordar o tema em foco a partir de categorias
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Democratização da educação superior: nexos entre a armação da excelência e o desao do reconhecimento
que são tradicionais na discussão sobre o papel de uma instituição universitária
– função social e cultura acadêmica – bem como pela introdução de uma categoria
mais recente – excelência acadêmica - que está presente de maneira intensa no
discurso das autoridades e nos documentos oficiais da universidade, como é o caso
do Plano de Desenvolvimento Institucional.
Uma universidade de excelência
Obtivemos um conjunto interessante de representações acerca do estágio de ex-
celência no qual a universidade estaria, bem como sobre o que significa alcançar um
nível maior de excelência. Quase todas as respostas valorizaram o tripé que compõe
as atividades fundamentais da universidade (ensino, pesquisa e extensão) e que deve
ser trabalhado de forma indissociável, segundo a Constituição Brasileira de 1988.
Mesmo assim há perspectivas variadas sobre o que seja excelência na universidade.
No entender do gestor E3, uma universidade de excelência é:
Uma universidade que tenha uma grande inserção internacional, que faça parcerias com ou-
tros países, que nossos alunos possam fazer cursos fora e voltar e ter várias possibilidades
de intercâmbios com outros países, que seus pesquisadores tenham em sua maioria bolsa de
produtividade, que consigam produzir e alcançar essas metas de bolsas de produtividade de
pesquisa (E3).
Há tanto nas palavras de E3, como de E6 uma dimensão de amplitude espa-
cial, produtividade e medição. E6 avalia que excelência “quer dizer tu publicar,
saber se as pessoas leem, quer dizer ser referência para as pessoas, [uma vez que
há] medidas que podem ser feitas das publicações, índices de impacto”. Nota-se
aqui visão cunhada pela interpretação segundo a qual o que legitima a qualidade
das universidades é sua capacidade de se internacionalizar e sua produtividade
de pesquisa reconhecida pelos órgãos reguladores. O discurso da excelência, nesse
caso, parece dar legitimidade à implantação de um modelo tecnocrata de univer-
sidade que tende a substituir o modelo universitário humboldtiano de pesquisa e
cultural, convergindo assim com a interpretação de Readings (2003).
E5 afirma:
Acho que, em primeiro lugar, é uma universidade em que as pessoas queiram trabalhar, acho
que isso é uma prova de excelência muito grande, quando os alunos almejam estar numa
universidade, quando atrai talentos, sejam eles novos alunos e novos docentes e parceiros
externos é uma universidade de excelência. E o que precisa para chega lá? Precisa ter com-
petência, bons espaços internos, precisa ter uma boa infraestrutura de pesquisa, precisa ter
cursos modernos e bons métodos de ensino.
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Em um exercício estritamente semântico, poderíamos dizer que essa defini-
ção de universidade de excelência se assemelha a de uma empresa de excelência,
especialmente no que tange a competência, a atração de talentos e a ser moderna.
Essa semelhança é fruto da hegemonia de um pensamento de gestão, tanto na
esfera pública como na privada, que prioriza aspectos oriundos historicamente da
iniciativa privada em escala global. Em outras palavras, ao se lembrar de palavras
como competência, destacar necessidade de parcerias com outros setores e cursos
“modernos” para uma universidade de excelência, o gestor se utiliza de conceitos
chaves da ideologia que sustenta o managerialismo ou a chamada nova gestão
pública (HOOD, 1991; POLLITT, 1993). Dentre as características dessa corrente
de pensamento, destaca-se a crença de que a ciência da Administração pode ser
aplicada a qualquer instituição pública ou privada, isto é, que todos os métodos,
medidas e princípios que produzem “bons” resultados no mercado devem ser leva-
dos para o setor público onde também teriam êxito.
Destacaremos, agora, respostas que, de alguma maneira, distanciam-se do
conceito de excelência criticado por Readings (2003) e que nos convidam a pensar
em um conceito de excelência diferente, calcado em outros pressupostos. Na res-
posta de E7, uma universidade de excelência:
É uma universidade que conseguisse dar conta das três dimensões que ela se propõe, mas
que de fato houvesse uma retroalimentação desses três eixos [ensino, pesquisa e extensão].
Na minha opinião, isso ainda é muito precário, essa articulação. Às vezes, a impressão que eu
tenho é que são mundos paralelos, o mundo da graduação, o mundo da pós-graduação e o da
extensão, para mim o que faltaria para essa excelência nem é tanto o número de artigos cien-
tíficos, até pode ser, mas deveria ser decorrência de uma outra questão, que é o impacto que
essa produção de conhecimento tem junto à comunidade, à sociedade. Portanto, ele vai para
a sociedade, produz coisas e volta como forma de conhecimento que pode ser passado para
outros atores e entrar nos Rankings internacionais. Que fosse algo que avaliasse o impacto
que a universidade tem junto à comunidade, que isso fosse uma coisa mais avaliada interna-
cionalmente do que a produção científica, certamente a universidade teria um outro olhar para
extensão, porque ainda não vejo grandes projetos onde as diferentes unidades trabalhassem
em projetos comuns, a não ser coisas muito pontuais e nem tanto é extensão (E7).
No caso supracitado, vemos destaque ao compromisso da universidade com as
comunidades e a sociedade nacional. Obtivemos outras respostas que entendiam
que a prioridade de uma universidade de excelência é sua relação com a realidade
local, ou seja, sua capacidade de responder às demandas sociais e econômicas que
a realidade próxima apresenta. É possível afirmar que produzir respostas a de-
mandas mais próximas não seria tão somente atender a interesses de determinado
setor produtivo ou de determinada empresa que financia a pesquisa, como ocorre
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Democratização da educação superior: nexos entre a armação da excelência e o desao do reconhecimento
por meio de programas de transferência de tecnologia referendados como exemplos
de excelência, mas incluiria a capacidade, inclusive, de questioná-los (GOERGEN,
2006) e de apresentar alternativas caso isso viesse a beneficiar mais amplamente
a sociedade.
E4 afirma que a excelência está relacionada a bons projetos de formação e a
um grupo docente altamente qualificado. Ele explica:
O altamente qualificado eu vejo em dois sentidos, isso nós enfrentamos aqui, nos nossos
concursos anualmente: existe uma qualificação que é a qualificação científica, no sentido do
pesquisador, da produção do conhecimento, do novo, isso, obviamente, é uma questão funda-
mental, esse é um lado. Mas o outro lado é um docente fortemente inserido na realidade onde
ele está, então, isso também é importante para nós, principalmente, no campo da licenciatura,
que o cara tem que estar familiarizado com as questões que se colocam de educação na
cidade, no estado, no país e no mundo como um todo. Então, esse engajamento, que envolve
muito mais do que uma competência técnica na área científica, mas envolve o engajamento
político, uma consciência ética, eu diria assim, isso para nós é fundamental (E4).
Identifica-se aqui a valorização do compromisso social dos docentes que não
está presente em todas as áreas do conhecimento. Em muitos casos, o sentido da
excelência como internacionalização e medição de resultados é o único levado em
conta nas seleções feitas nas universidades, mesmo as públicas que têm o concurso
público como forma de ingresso. Cabe destacar que o gestor em questão se referiu
a licenciaturas, à formação de professores, mostrando com isso sua ligação com a
atuação educacional na sociedade.
O gestor reforça sua perspectiva, afirmando que:
Hoje me parece que, muitas vezes, os pesquisadores estão mais preocupados em fazer uma
pontuação para se manter dentro dos programas de pós-graduação, para receber financia-
mento para suas pesquisas, do que ter um engajamento com as grandes questões que são
colocadas no mundo, não só para o desenvolvimento do país, mas do ponto de vista global,
inclusive. A universidade tem de estar engajada também nessas questões e, às vezes, eu sinto
a nossa universidade um pouco distanciada desses aspectos mais prementes, quer dizer, a
universidade precisa participar dessas discussões, por exemplo, sobre o ensino médio, o ensi-
no fundamental, o ensino infantil, a educação no campo, a educação de jovens e adultos (E4).
Esse discurso apresenta uma visão de como a rotina no meio acadêmico está
criando e valorizando um perfil de pesquisador que não vem conseguindo promover
a relação entre o “universal (conhecimentos científicos e tecnológicos) com a diver-
sidade do particular (o ambiente sociocultural)”, como sugere Kawasaki (1997). A
autora propõe a conjugação das necessidades da realidade local com a globalização
econômica em nível mundial. O papel das universidades públicas é ressaltado pela
formação de quadros profissionais críticos. O estudo de Kawasaki (1997) aponta
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para a necessidade de as universidades desenvolverem projetos integrados de pes-
quisa e educação que atendam às áreas de relevância social e econômica.
A interpretação de E4 apresenta uma noção própria de excelência na qual ga-
nha importância a capacidade de inserção das universidades no seu círculo social,
nas comunidades que as cercam, não apenas como órgão que legitima um tipo de
conhecimento competitivo, mas que convive com atores sociais, principalmente, com
aqueles excluídos dos processos de produção do conhecimento. O impacto social que
essa inserção da universidade produz representaria a qualidade de uma instituição,
segundo esse entrevistado. Essa inserção comunitária, em geral é vista por meio do
pilar da extensão universitária, entretanto, para representar uma noção nova de
excelência, ela precisaria ser transversal ao ensino, à pesquisa e à extensão.
A interpretação crítica de E1 sobre a noção de excelência vincula o discurso da
excelência a alguns grupos de docentes da universidade, que priorizam as relações
internacionais e as pesquisas de ponta. Eles entendem essas atividades como de
excelência universitária e “não consideram excelentes as respostas a demandas
ligadas a sua formação por terminalidade, a demandas ligadas a qual caminho
sucessivo faz o egresso, uma série de outros efeitos que [temos a] oferecer [como]
formação para o conjunto dos alunos” (E1).
Nas palavras de E8, “uma universidade de excelência é uma universidade
vinculada à escola pública, porque somos instituições públicas e, para nós sermos
de excelência, nós precisamos de escolas públicas de excelência também”. Ainda
são muitos os passos para que esse vínculo aconteça de modo mais estruturado,
as políticas públicas de formação continuada de docentes que trabalham na rede
pública de educação básica estão cada vez mais se apoiando no trabalho das uni-
versidades
2
, mas há muito a se avançar nesse sentido.
A responsabilidade pela educação básica não é das universidades, porém, no
contexto brasileiro, elas teriam papel importante no sentido de qualificar o sistema
educacional público historicamente precário. Como já afirmamos neste artigo, não
basta que a universidade cumpra seu papel clássico de formar elites intelectuais e
dirigentes, profissionais de ponta, produzir pesquisa básica e aplicada e lidar com
a formação cultural para seu público estudantil. Seu desafio transcende essas prer-
rogativas, a universidade tem funções mais amplas a assumir junto à sociedade.
Para isso, é interessante pensarmos sobre o que diz o gestor E2 que, ao relem-
brar o mote de campanha para reitor da candidatura vencedora, “Excelência inclusi-
va”, pontua que devemos reinventar muitas coisas no Brasil, e a universidade é uma
delas. “É possível a gente ter uma universidade que dê uma formação diferenciada,
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Democratização da educação superior: nexos entre a armação da excelência e o desao do reconhecimento
que tenha produção científica e cursos de graduação de alto nível, tendo alunos, que
nas condições dadas anteriormente, não entrariam [aqui] de jeito nenhum” (E2).
Segundo o gestor, temos de ressignificar a palavra excelência, dar a ela um
conteúdo mais abrangente, não confundir com elitismo como ocorre com alguns
setores da universidade. A divisão entre alta e baixa cultura permanece e tem força
nas diversas áreas do conhecimento, inclusive naquelas que são ligadas a projetos
inovadores de sociedade. Entretanto, também há reprodução de hierarquias e va-
lores elitistas, como mostra o relato a seguir:
Temos a obrigação de criar um quarto modelo de universidade, tem o modelo medieval
que chamo de modelo da erudição, o modelo napoleônico que é da formação profissional e
o modelo Humboldtiano que é o da pesquisa, o quarto modelo é a gente conseguir juntar
esses três porque eu vi professor da universidade, da área de ciências humanas, dizer para
os alunos que é inadmissível que aluno universitário goste de pagode, isso é confundir
excelência com elitismo. Sim, eu espero que o aluno universitário quando ouça pagode faça
uma leitura disso, mas ele pode gostar de escutar pagode, não tem problema nenhum nisso.
Infelizmente, existe dentro da universidade, uma confusão muito forte entre elitismo e
excelência (E2).
A materialidade do habitus acadêmico (BOURDIEU, 1980) não se constitui
apenas de ações autoconscientes, advindas de avaliações e debates acerca de que
princípios e valores irão guiar o fazer acadêmico. Pelo contrário, em grande medida,
a organização das atividades acadêmicas, suas tradições e formatos, reproduzem
uma visão elitista, apoiada em discursos que naturalizam exclusões e evidenciam
a falta de análise mais crítica sobre o papel social da universidade.
A noção de excelência presente nos depoimentos apresentados não é única.
Ela pode se apresentar por meio da mais alta competitividade internacional da
produção do conhecimento, sendo avaliada por parâmetros de produtividade e pela
repercussão visível por meio de métricas de avaliação e citações. De outra parte,
pode aparecer como compromisso público e social na de qualificação de profissio-
nais para a educação e de desenvolvimento de pesquisas que solucionem problemas
concretos da sociedade. Diante disso, cabe verificar de que maneira é compreendi-
da a função social da universidade.
A função social da universidade e a excelência acadêmica
O objetivo no tratamento deste tema não foi contrapor função social à exce-
lência, como elementos antagônicos, mas instigar que os entrevistados relacionas-
sem essas dimensões de atuação da universidade. Alguns lembraram a extensão
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universitária instantaneamente, pois correlacionam função social com algo como
“responsabilidade social corporativa ou empresarial”, semelhante a instituições
privadas. A extensão universitária cumpriria o papel de promover atividades com
comunidades e, com isso, estaria atendida a responsabilidade social da universida-
de, nos moldes expostos por Ashley (2001, p. 6 e 7):
Responsabilidade social é o compromisso que uma organização deve ter para com a socie-
dade, expresso por meio de atos e atitudes que a afetem positivamente, de modo amplo, ou
a alguma comunidade, de modo específico, agindo proativamente e coerentemente no que
tange ao seu papel específico na sociedade e à sua prestação de contas para com ela.
Essa é uma visão genérica conceituada para o mundo dos negócios, mas ela
se reflete com força na perspectiva de vários gestores acadêmicos de instituições
públicas. Alguns entrevistados não se alongaram na resposta relativa à função so-
cial da universidade, apenas fizeram menção à extensão universitária, tratando-as
como equivalentes.
O entrevistado E5 propõe pensar função social em dois eixos: o primeiro re-
lacionado ao ensino, seria a função de formar novos talentos, dando oportunidade
para todos os segmentos acessarem à universidade. O segundo eixo estaria ligado
à função geradora de conhecimento da universidade, como impulsionadora do de-
senvolvimento do país.
Então aí se conectam os dois eixos, a universidade tem que ser transformadora, que dê opor-
tunidades ao seu povo, mas ela tem que ser uma universidade que dê competência ao seu
mercado privado, que gere empregos para que essas pessoas tenham onde trabalhar, se a
gente quer de fato enriquecer o país e dar prosperidade às pessoas. Então o que é preciso? É
preciso saber balancear entre as coisas (E5).
Ele sugere, inclusive, que se rompa com o isolamento da universidade e que
essa comece a trabalhar em parceria com as escolas desde o ensino médio para
atrair talentos, no caso em questão para áreas de engenharias. “Se a universidade
tiver de formar em física e matemática, acho que é uma carga muito grande de
formação básica e menos formação aplicada que é o que hoje o mercado está nos
pedindo”, afirma E5. Ele lembra da importância de programas governamentais,
para promover uma “transição mais suave” do ensino médio para o superior, como
os de popularização da ciência que trabalham com o reforço das exatas, segundo o
gestor há muito a se avançar nesse sentido.
Outro caminho tomado para responder à questão sobre função social na re-
lação com a excelência, foi concebê-la como dicotomia. E1 afirma que os setores
sociais que fundaram as universidades brasileiras não as prepararam para formar
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sujeitos comprometidos socialmente e nem para que as instituições tivessem prota-
gonismo de induzir mudanças estruturais no país. Pelo contrário, a elite social que
criou e frequentou o ensino superior, por quase um século, tinha como prioridade
a formação de uma elite intelectual e de profissionais liberais que se perpetuavam
nas posições privilegiadas socialmente. Quando convidado a pensar sobre função
social e excelência, o gestor afirma:
Acho que é uma dicotomia verdadeira que reproduz dicotomias externas à universidade. E é
uma dicotomia também ligada ao fato de que a gente não vem de uma egrégia história, os se-
tores que aparelharam a universidade para que ela servisse às suas demandas não o fizeram
em cima de uma história consolidada na qual outras coisas eram feitas e iriam continuar sendo
feitas e concorrem para outras funções. [...] Aqui se instalou uma universidade profissionali-
zante sobre o nada, e essas escolas [profissionais] são fortes até hoje (E1).
Ao afirmar que a dicotomia tem origem fora da universidade, o gestor remete
ao sentido de que as disputas da sociedade, de classe, raciais, de gênero e outras,
constituem embates também nas universidades. As hegemonias constituídas na
sociedade por meio do poder econômico, do racismo e do machismo exercem suas
forças nas instituições, mesmo nas que se pretendem o berço do saber e da civili-
zação. Com a democratização das universidades, processo complexo em curso, am-
pliam-se as contradições entre aqueles que representam os setores que fundaram
as universidades para si e os grupos sociais historicamente excluídos que trazem
demandas mais ousadas no que tange à atual função social da universidade.
Vivemos uma transição paradigmática acerca do que significa a função social
da universidade. Uma visão liberal sobre as relações entre universidade, estado
e mercado, tende a ver a universidade atendendo demandas primordialmente de
mercado, tanto no que se refere à formação profissional, quanto à produção de pes-
quisa. Esse tipo de gestão é comum entre instituições de ensino superior privadas
que se expandem no mercado em diversos países (MARGINSON, 2009). Com o
advento de políticas como as ações afirmativas e a ampliação das vagas públicas,
no caso brasileiro, vive-se uma oportunidade histórica de erigir a relação entre uni-
versidade e sociedade de modo distinto da tradição elitista da universidade pública
e também distinto de tendências mercadológicas internacionais. O desafio é cons-
truir um significado mais plural para o que seja a função social da universidade.
As análises teóricas mais recentes das políticas de reserva de vagas sociais e
raciais na universidade brasileiras adotam uma concepção assimilacionista (CAM-
POS, FEREZ JÙNIOR, 2014). Isso significa que é ofertada “a equalização de opor-
tunidades sociais e a consequente assimilação de grupos subalternos aos estratos
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superiores da sociedade”, sendo que tais políticas tendem a produzir um efeito de
inclusão social, mas não necessariamente de construção de pertencimento étnico e
cultural (CAMPOS, FEREZ JÙNIOR, 2014). Esse limite se deve ao impacto restri-
to das políticas afirmativas, bem como à presença restrita de macrocenários de pes-
quisa e de mudanças epistêmicas substanciais no que tange às práticas de ensino,
à pesquisa socioeducacional e a atividades de extensão junto desses grupos sociais.
Cultura acadêmica e extra-acadêmica
Relativamente à compreensão sobre cultura acadêmica e extra-acadêmica,
sua relação e os limites de sua interlocução, questionamos os gestores sobre a ca-
pacidade dos atores que fazem a universidade, de reconhecerem os saberes acu-
mulados pelo novo público ingressante, saberes não científicos, modos culturais de
manifestação e modos próprios de estudos, diferentes dos públicos tradicionais da
universidade.
Há gestores que entendem haver pouco avanço na compreensão do tema, mes-
mo diante da reserva de vagas para públicos que ingressam com base em escola-
rização distinta daquela que dominou a universidade até então. Por outro viés, há
gestores que destacam haver maior abertura da universidade para experiências
e saberes obtidos por meio de uma história cuja presença de lógicas científicas é
mais rarefeita. Todos os entrevistados mencionaram as diferenças entre as áreas
do conhecimento quanto ao tema em questão.
Como se pode notar abaixo, existe uma clara visão de que os cursos ligados
às Ciências Humanas podem oferecer mais receptividade às experiências trazidas
pelos estudantes.
Acho que isso depende muito da área, as humanas têm mais sensibilidade para acolher esse
tipo de questão (...) para valorizar saberes locais, para não chegar lá colocando uma banca
achando que só tu sabe (...) Acho que as humanas têm essa experiência, nas outras áreas isso
é mais difícil, na saúde e nas exatas (E7).
Em uma linha mais otimista, E3 entende que a universidade está mais aberta
a conhecimentos não científicos do que há alguns anos. Ele usa como exemplos
alguns convênios da universidade com a iniciativa privada que financiam o tra-
balho de comunidades originais, o “da museologia que está recebendo recursos do
Santander Cultural para investir nas artesãs da Ilha da Pintada que trabalham
com as escamas de peixe”, citou o gestor.
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Para além dessa perspectiva mais imediata, de como a universidade pode re-
conhecer, no seu cotidiano, conhecimentos tradicionais, as entrevistas provocaram
reflexões sobre os efeitos dessa “abertura” da universidade, por exemplo, na forma-
ção de professores. E5, um dos gestores área de Ciências Exatas, destacou que para
os professores mais velhos as mudanças de público que acessam a universidade
representam um desafio maior, porque o docente já está acostumado a trabalhar
“de certa forma” há mais tempo. Comentou que as Comissões de Graduação de cur-
sos mais novos, com docentes recém-concursados têm uma relação com os discentes
bem mais harmônica e sugere que quem organiza os cursos mais tradicionais e
antigos deve aprender com essa experiência.
A formação continuada de professores universitários concursados, promovida
pela instituição, em modalidade de capacitação e outros cursos, ainda encontra
resistências em muitas áreas. A necessidade de renovar metodologias, aprender
acerca de aspectos socioculturais da população negra e de baixa renda vem se tor-
nando pauta com as ações afirmativas, mas a execução de formações nesse sentido
não é de fácil implementação.
Vamos ter que pensar um ambiente mais complexo, mais tolerante em várias coisas, acho que,
para áreas mais duras, vai ser um pouco mais difícil, algum conjunto dos docentes da enge-
nharia ainda tem um modelo de relacionamento com o aluno e uma expectativa da dedicação
desse aluno que talvez hoje exclua parte do percentual de alunos que está entrando, vamos ter
que tentar transformar isso, acho que é um processo de experiências com responsabilidade,
porque a gente não pode ser experimentalista e tentar fazer coisas diferente e prejudicar a
formação dos alunos e vai passar por um processo, inclusive, da gente quase que recapacitar
os nossos docentes para trabalhar com essa maior diversidade de alunos. Vamos ter que dar
novas experiências para os nossos docentes (E5).
Nas palavras do gestor, identificamos a aceitação da necessidade de recapa-
citar docentes que não sejam familiarizados com a linguagem, as demandas e os
modos de vida da população que está ingressando pelas ações afirmativas. Aqui
estamos diante de um grande desafio para os gestores universitários responsáveis
por planejar e executar tais formações ou capacitações, tendo em vista que, facil-
mente, pode-se cair em simplificações, reproduções de estereótipos e idealizações
desse aluno cotista.
Daí a necessidade de que a formação contemple dimensões como diversidade e
o debate acerca do racismo em toda sua complexidade. As universidades têm limi-
tes e terminam por cumprir parcialmente ou não cumprir a Lei 10.639, a qual obri-
ga que se trabalhe a cultura africana e afro-brasileira nos cursos de formação de
professores e, transversalmente, em todos os cursos da instituição. Nas avaliações
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feitas pelo MEC, para fins de reconhecimento, credenciamento e recredenciamento
de cursos da universidade em questão, a aplicação da lei é reiteradamente cobrada.
Um segundo obstáculo relativamente ao aluno que tem ingressado na univer-
sidade é a formação no Ensino Médio. Imaginar que aquele jovem paupérrimo, ne-
gro, com dificuldades, que perambula no imaginário da classe média, irá usufruir
do direito garantido pelas ações afirmativas seria ingenuidade. O percentual de
estudantes negros que finalizam o ensino médio é muito aquém do índice de bran-
cos
3
. A segregação ocorre antes do ensino superior, o público que consegue terminar
o ensino médio talvez seja aquele que tenha alguns recursos econômicos na família.
O elemento da formação continuada dos docentes foi sugerido por E1 de ma-
neira peculiar. Ao ouvirmos depoimentos como o de E5, acima, identificamos que
algumas áreas, nomeadamente as engenharias, a física, a química, demonstram
desconforto quando se trata de reconhecer conhecimentos não científicos, popu-
lares ou de senso comum, ou seja, conjunto de saberes simples, pouco elaborados
que resultam da experiência de vida e não de investigações científicas. Vejamos a
opinião de E1:
Existem áreas nas quais eu não vejo lugar para isso, nem agora nem no futuro, penso espe-
cialmente nas engenharias, acho que a noção seminal da engenharia é pós-popular, é diferen-
te da saúde. Fico muito sensibilizada com a legítima inquietação de alguns professores desses
campos. Igualmente a física. Existe um limiar de precisão da racionalidade desses atores que
é inegociável, a vida humana no sentido estético e de projeto social é intrinsecamente variável,
a sua potência passa pela variabilidade e nesses campos a precisão é a noção seminal, a
produção do igual dali para a frente (E1).
Quando fala em noção seminal da área, o gestor assevera que tal área surgiu
em função de outro estágio qualitativo do conhecimento, isto é, “houve uma conver-
são qualitativa necessária no conceito seminal do campo e que fez o campo ser, exis-
tir” (E1). No caso das áreas citadas, o projeto seminal tem a ver com a matemática,
com um grau de precisão e exatidão conceitual que não ocorre nas áreas da saúde
e das humanas, cujas raízes conceituais de suas áreas são cânones culturalmente
produzidos e constantemente variados e motivo de disputas políticas.
Com isso, o gestor afirma que, nas engenharias e exatas, existe uma relação de
causalidade no cerne do conhecimento da área, ou seja, busca-se uma ciência pre-
ditiva, que visa identificar causa e efeito e não oferecer um prisma hermenêutico.
Diferentemente, na saúde, por exemplo, o processo do diagnóstico é interpretativo,
no direito, os códigos e normas são passíveis também de interpretações.
Essa característica seminal do campo de conhecimento das áreas duras faz
com que elementos culturais e sociais não tenham espaço na sua formação, o que
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Democratização da educação superior: nexos entre a armação da excelência e o desao do reconhecimento
produz uma visão política determinada sobre as relações sociais e as ações insti-
tucionais. Ao compreender a dificuldade dessas áreas em reconhecer saberes de
senso comum, não se está justificando eventuais posturas de descaso ou de pre-
conceito para com estudantes cotistas ou pessoas cujos conhecimentos empíricos e
argumentos utilizados não tenham legitimidade acadêmica.
Esse fato indica que, desenvolver a noção de reconhecimento como justiça
(FRASER, 2001; 2007), ou seja, com ocupação de status similar entre todos os es-
tudantes, as áreas precisam ser consideradas em suas especificidades. A formação
pedagógica dos docentes precisa ser diferenciada de forma a produzir diálogo en-
tre a estrutura do conhecimento e as concepções de aprendizagens e de requisitos
indicados para acessar o conhecimento em cada um dos campos. A construção de
uma cultura do reconhecimento passa pela renovação do modo como vemos o outro,
como desenvolvemos os conteúdos e as atividades pedagógicas. Partir dos mesmos
princípios didáticos que se trabalhava quando os alunos eram mais homogêneos é
corroborar, em alguma medida, com a reprodução de injustiças socialmente acumu-
ladas entre estudantes negros e alunos de baixa renda.
Consideramos que direito à educação pública de qualidade (CURY, 2008) não
se materializa facilmente no caso brasileiro, sendo negado historicamente um con-
junto de prerrogativas que garantiriam acesso e qualidade a segmentos sociais
e indivíduos que têm permanecido a margem dos benefícios do desenvolvimento
social e educacional no país. No ensino superior, também direito do cidadão, deve-
-se ter em conta que proporcioná-lo significa algo mais abrangente que a educação
formal em si e envolve uma dimensão de oportunidade para o aprendizado efetivo,
atendendo assim a uma dimensão de justiça.
Conforme Fraser (2001 e 2007), a promoção da justiça no mundo contempo-
râneo passa por dois movimentos básicos que não se excluem, a redistribuição e
o reconhecimento. À medida que as ações afirmativas oferecem acesso, há uma
redistribuição da educação como um bem social que implica em custos materiais.
Por outro viés, cabe às universidades ofertarem a dimensão do reconhecimento, por
meio da permanência e do sucesso acadêmico.
No quadro a seguir, reunimos os posicionamentos dos gestores entrevistados,
a fim de que possamos ter uma visão sintética do material obtido, visualizando-o
na relação com as categorias produzidas para a discussão.
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Gregório Durlo Grisa, Célia Elizabete Caregnato
Quadro 1 – Percepção dos gestores em relação a categorias de atuação da universidade
Variáveis Excelência Acadêmica Reconhecimento
Internacionalização
do conhecimento
Gestores das áreas da comunicação,
engenharia e medicina deram priorida-
de a elementos ligados a internacio-
nalização e publicações com fator de
impacto.
Gestores das áreas da educação, huma-
nidades e psicologia priorizaram a capa-
cidade de inserção no meio social local
e a capacidade de pesquisar e contribuir
para a solucionar problemas locais e na-
cionais.
Função social da uni-
versidade
Gestores das áreas de medicina, da
comunicação e psicologia entendem
que função social está primordialmen-
te ligada às atividades de extensão ou
à qualidade das atividades estritamen-
te acadêmicas.
Gestores das áreas de educação, huma-
nidades e engenharias consideraram que
a função social está na capacidade de re-
ceber e responder a demandas locais, no
vínculo com outros níveis educacionais.
Gestor da administração central concebe
as noções de excelência e de função so-
cial como antagônicas politicamente.
Relação entre sabe-
res acadêmicos e não
acadêmicos
Gestores das áreas de engenharia e
comunicação avaliam que a relação
com saberes não acadêmicos está
obtendo mais atenção, mas entendem
que há desafios grandes para que isso
se consolide na universidade.
Todos gestores salientaram que o poten-
cial de reconhecimento extra-acadêmico
depende da área do conhecimento. A
maioria enfatizou a necessidade de maior
interlocução entre tipos de conhecimen-
tos e de culturas distintas.
Fonte: elaborado pelos autores.
Considerações nais
Discutimos sobre desafios apresentados as universidades públicas brasileiras
que trabalham com a perspectiva de excelência no cenário competitivo internacio-
nal e, ao mesmo tempo, precisam ser socialmente inclusivas e democráticas, isto é,
promover o reconhecimento dos novos públicos da educação superior. Realizamos
entrevistas com gestores acadêmicos que ocupam lugar privilegiado na arquitetura
institucional de uma grande universidade federal do sul do Brasil.
Vimos que há perspectivas diferentes e até opostas sobre os temas indagados,
de modo que as áreas de conhecimento nas quais os gestores atuam evidenciam
concepções de ciência e de conhecimento acadêmico mais ou menos rígidos e mais
ou menos capazes de visualizar a aprendizagem do estudante como um aspecto do
trabalho acadêmico. Nesse sentido, há diferenças que se tornam disputas no inte-
rior da instituição de ensino superior. Há cargos estratégicos ocupados por pessoas
críticas ao modelo tradicional de universidade, isso faz com que temas ligados à
democratização e ao reconhecimento de grupos de estudantes sejam colocados em
relevo.
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Democratização da educação superior: nexos entre a armação da excelência e o desao do reconhecimento
A categoria excelência foi tomada como um elemento norteador das atividades
da universidade e, em geral, foi relacionada à pesquisa de ponta e à internaciona-
lização. Alguns gestores propuseram ressignificar o que seja excelência na univer-
sidade, com o argumento de que não se poderia confundir excelência com elitismo
acadêmico, elemento da tradição universitária no Brasil.
A materialização de uma cultura acadêmica do reconhecimento indicaria um
processo de construção político, cultural, valorativo, de costumes, de mentalidades
e de posturas capazes de contribuir para a superação de desigualdades, pensando
em processos do campo acadêmico-educacional. Esse processo avançará com base
nas condições de permanência dos estudantes, na existência de espaços de partici-
pação, na defesa de diferentes formas de aprendizagens e na afirmação dos sujeitos
por meio da sua presença em espaços institucionalmente prestigiados.
Poucas instituições possuem potencial para desenvolver processos de reconhe-
cimento sociocultural como as universidades. Elas têm capacidade para assumir
papel importante no combate às desigualdades culturais, na valorização da dife-
rença, no enfrentamento ao racismo, a preconceitos e intolerâncias. Essas insti-
tuições e seus sujeitos possuem ferramentas para fazê-lo, tais como os recursos
intelectuais, estéticos e políticos que podem se constituir em força propulsora para
mudanças. Para tanto, necessitam superar um conjunto de valores enraizados que
foram herdados de uma sociedade desigual e elitista que criou a universidade no
Brasil e que, por vezes, encontra refúgio em discursos que exaltam a excelência
acadêmica e desconsideram outros temas importantes para a universidade pública.
Notas
1
No início dos anos oitenta, foi publicado por dois consultores chamados Tom Peters e Robert Waterman, um
livro chamado “In Searche of excelence”. Tornou-se um fenômeno de vendas e começou a servir como base
para gestão empresarial e, ainda, passou a ser referência da defesa de que preceitos que funcionam na
iniciativa privada poderiam ser adotados no setor público. PETERS, Thomas & WATERMAN, Robert. In
Search of Excellence: Lessons from America´s Best Run Companies. New York: Harper&Row, Pub. 1982.
2
Como exemplos de processos de formação continuada dos professores da educação básica relacionados as
universidades públicas podemos citar, a partir de 2008, a elaboração pelo MEC (Ministério da Educação) e
pela Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) do Sistema Nacional Público
de Formação dos Profissionais do Magistério. Diversos programas de formação continuada de profissionais
de educação básica ligados ao FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação) e a oferta de edu-
cação continuada a professores através de cursos semipresenciais da UAB (Universidade Aberta do Brasil)
fizeram parte dessas ações.
3
Dados da “Taxa de abandono escolar precoce” medido pelo IBGE de 2010. Concebendo jovens de 18 a 24
anos que não haviam concluído o ensino médio e não estavam frequentando a escola. O abandono geral é de
36,50%, mas entre os brancos, o total de abandono fica em 29,40%, já entre os pretos e pardos tal abandono
alcança 42,40%, uma diferença significativa. Dado extraído de aplicativo da página do IBGE em: 4 out.
2018. http://www.ibge.gov.br/apps/snig/v1/?loc=0.
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Nilda Stecanela, Caroline Caldas Lemons
Direito à educação: da conquista ao reconhecimento
Right to education: from conquest to recognition
Derecho a la educación: de la conquista al reconocimiento
Nilda Stecanela
*
Caroline Caldas Lemons
**
Resumo
O texto apresenta uma tessitura conceitual-analítica do direito à educação e tem na Ciência Jurídica e na Teoria
do Reconhecimento suas principais fundamentações teóricas. As reexões sobre o direito à educação articulam
aspectos que envolvem tanto a natureza do direito, sua validez e expressão legal quanto fatores atuantes para
que esse seja reconhecido, de modo especíco, no âmbito da educação escolar. À análise macro da temática
acresce-se uma apresentação panorâmica do atual período histórico que demarca os trinta anos da conquista
do direito à educação no Brasil como bem comum. De caráter bibliográco, o estudo procurou aprofundar a
discussão em torno do pressuposto que é preciso reetir acerca da natureza, validez e expressão legal do direito
para que o direito à educação possa ser reconhecido no âmbito da educação escolar. O argumento desenvolvido
considera que, embora a conquista jurídica seja importante, quando se trata de assegurar um direito, isolada-
mente é incapaz de garantir seu reconhecimento.
Palavras-chave: Direito à Educação. Direito subjetivo. Educação escolar. Reconhecimento de direitos.
Abstract
The text presents a conceptual-analytical framework of the right to education and has in Legal Science and in the
Theory of Recognition its main theoretical foundations. Reections on the right to education articulate aspects
that involve both the nature of the law, its validity and legal expression as well as acting factors so that it is rec-
ognized, specically, in the scope of school education. To the macro analysis of the theme is added a panoramic
presentation of the current historical period that marks the thirty years of the conquest of the right to education
in Brazil as a common good. With a bibliographic character, the study sought to deepen the discussion around
the assumption that it is necessary to reect on the nature, validity and legal expression of the right so that the
right to education can be recognized within the scope of school education. The developed argument considers
*
Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs, Brasil) com estágio pós-doutoral em
Educação, como bolsista Capes, no Institute of Education/University of London (EUA). É Pró-Reitora Acadêmica e
docente do corpo permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Caxias do Sul
(UCS, Brasil). É bolsista CNPq de Produtividade em Pesquisa. ORCID https://orcid.org/0000-0001-9946-0848. E-mail:
nildastecanela@gmail.com
**
Mestre em Educação e Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
de Caxias do Sul (UCS, Brasil). Bolsista Capes/Prosuc. Professora da Educação Básica da Rede Municipal de Ensino de
Caxias do Sul. ORCID https://orcid.org/0000-0003-4178-8036. E-mail: caroline.lemons35@gmail.com
Recebido em 26/03/2019 – Aprovado em 22/08/2019
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i1.10580
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Direito à educação: da conquista ao reconhecimento
that, although legal achievement is important, when it comes to securing a right, it alone is incapable of guar-
anteeing its recognition.
Keywords: Right to education. Subjective right. Schooling. Recognition of rights.
Resumen
El texto presenta una textura conceptual-analítica del derecho a la educación y tiene en la Ciencia Jurídica y la
Teoría del Reconocimiento sus principales fundamentos teóricos. Las reexiones sobre el derecho a la educación
articulan aspectos que involucran tanto la naturaleza del derecho, su validez y expresión legal, como factores
que actúan para su reconocimiento, especícamente, dentro del alcance de la educación escolar. Al análisis ma-
cro del tema se agrega una presentación panorámica del período histórico actual que marca los treinta años de
la conquista del derecho a la educación en Brasil como un bien común. Con un carácter bibliográco, el estudio
buscó profundizar la discusión en torno al supuesto de que es necesario reexionar sobre la naturaleza, validez
y expresión legal del derecho para que el derecho a la educación pueda ser reconocido dentro del alcance de la
educación escolar. El argumento desarrollado considera que si bien el logro legal es importante, cuando se trata
de garantizar un derecho, por sí solo no puede garantizar su reconocimiento.
Palabras clave: Derecho a la educación. Derecho subjetivo. Educación escolar Reconocimiento de derechos.
Contextualização inicial
O que efetivamente significa ter direito à educação? Na dimensão escolar, sob
quais condições ele pode ser reconhecido? Estas são algumas das questões mo-
bilizadoras das reflexões almejadas neste texto, que trata das origens do direito
subjetivo no qual se insere o direito à educação, de sua concepção na filosofia hon-
nethiana e seu reconhecimento na dimensão da educação escolar.
A dimensão escolar da educação remete àquela que ocorre em uma instituição
de ensino, pública ou privada, em que o ensino é planejado, os currículos previa-
mente organizados e na qual são definidos espaços e tempos para a construção dos
conhecimentos. Por ser um processo institucionalizado e específico, situado entre o
primeiro ano de escolarização da criança até o final do Ensino Superior do adulto,
pensar o direito à educação e também sua vivência no âmbito da Educação Básica
implica ao menos três coisas: (a) refletir acerca da natureza do direito, sua validez
e expressão legal, incluindo-se aí a diferença entre conquistá-lo e tê-lo reconhecido;
(b) considerar os processos educacionais que envolvem a organização curricular, a
formação de professores e a infraestrutura oferecida pelas escolas; e (c) problema-
tizar as práticas ou modos de apropriação das políticas educacionais e dos recursos
materiais e humanos disponíveis, especialmente por parte dos docentes.
Nesta escrita, propõe-se um aprofundamento da discussão em torno do pri-
meiro pressuposto: o de que é preciso refletir acerca da natureza, validez e expres-
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são legal do direito para alargar o entendimento jurídico e, assim compreender os
processos que envolvem o reconhecimento social do direito à educação no âmbito
da educação escolar.
Para tanto, adotou-se como metodologia a pesquisa bibliográfica. Seu de-
senvolvimento deu-se a partir do aprofundamento conceitual-analítico do direito
à educação em duas perspectivas complementares, a da Ciência Jurídica e a da
Filosofia. Enquanto por intermédio da Ciência Jurídica, fundamentada em Bobbio
(1992), foi possível definir o direito supracitado como um direito subjetivo para
o qual se voltam obrigações morais; na perspectiva da Filosofia contemporânea,
especificamente da Teoria do Reconhecimento discutida por Honneth (2003), foi
possível ressaltar as questões práticas relacionadas ao reconhecimento do direito à
educação no âmbito da educação escolar.
Diante dessas considerações, inicia-se refletindo sobre os pressupostos ju-
rídicos e filosóficos dos direitos subjetivos; em seguida, apresenta-se a Teoria do
Reconhecimento de Honneth (2003) em correlação com o direito à educação e, por
fim, antecipando as conclusões, situa-se parte do caminho percorrido – entre a
conquista e o reconhecimento – pelo direito à educação no Brasil.
Direitos subjetivos
Para qualquer realidade social em que exista o estabelecimento de relações
entre os seres humanos presume-se a existência de regras ou garantias jurídicas.
O ordenamento jurídico ou o Direito somente pode ser concebido em relação a uma
coletividade, pois para essa coletividade se volta no sentido de salvaguardar e am-
parar a convivência social.
Toda regra de Direito visa a um valor, reconhecido dentre toda a pluralidade
de valores que o ser humano representa. A partir desses valores são fundadas as
normas jurídicas, com a pretensão de assegurar uma forma de vida compatível
com a dignidade humana em termos de saúde, segurança, educação, habitação,
alimentação etc.
Assim como a sociedade se renova, se reorganiza e se redefine, o ordenamen-
to jurídico também não permanece estático. Seu movimento se opera a partir de
demandas da própria sociedade e sua imperatividade está condicionada à diretriz
expressada e considerada obrigatória pela coletividade.
A imperatividade do Direito está acompanhada de ações e exigências a serem
cumpridas no meio social e, sendo assim, para cada norma anunciada há uma
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Direito à educação: da conquista ao reconhecimento
exigência de comportamento coletivo. Essa exigência opera como um dever ser,
compreendendo tanto a obrigatoriedade quanto a possibilidade da não obediência,
omissão ou violação da norma jurídica, para as quais resultam consequências ou
sanções.
Nas palavras de Reale:
A imperatividade de uma norma ética, ou o seu dever ser não exclui, por conseguinte, mas
antes pressupõe a liberdade daqueles a quem ela se destina. É essa correlação essencial en-
tre o dever e a liberdade que caracteriza o mundo ético, que é o mundo do dever ser, distinto
do mundo do ser, onde não há deveres a cumprir, mas previsões que têm de ser confirmadas
para continuarem sendo válidas (REALE, 2002, p. 36, grifos do autor).
A existência da norma ou a previsão de sanções pelo seu descumprimento não
basta para que ela possa vir a ser. Também é preciso que seja explicitado o que
deve ser feito e de que maneira deve ser feito para que a norma seja aquilo que se
propõe socialmente. A explicitação do como deve ser da norma jurídica visa escla-
recer as normas éticas e as condutas esperadas. Ela também deve prever, havendo
situações de desobediência, omissão ou violação, o uso da força via Judiciário, con-
siderando que deve ser rigorosamente impedida toda e qualquer transgressão aos
dispositivos que a coletividade considera indispensáveis à paz social.
As normas jurídicas não estão, portanto, destinadas a atender as pretensões
individuais dos sujeitos, mas a coletividade, definindo juridicamente o que todos
devem cumprir. Na acepção de Reale, o caráter heterônomo do Direito indica que:
A lei pode ser injusta e iníqua, mas, enquanto não for revogada, ou não cair em manifesto
desuso, obriga e se impõe contra a nossa vontade, o que não impede que se deva procurar
neutralizar ou atenuar os efeitos do “direito injusto”, graças a processos de interpretação
e aplicação que teremos a oportunidade de analisar (REALE, 2002, p. 49, grifos do autor).
Há que se destacar, entretanto, que o direito obriga, impõe, define – nem sempre
de forma explícita – o que deve ser feito ou constituído. A falta de clareza em alguns
aspectos, sobretudo no que diz respeito às lacunas ao enunciar ou expor as condições
para o cumprimento da obrigação, abre espaço para diferentes interpretações.
Por obrigar ao que deve ser feito, nem sempre definindo os caminhos, a norma
jurídica costuma valer-se de uma série de disposições complementares que traçam
os rumos da ação e distribuem as competências e as atribuições para aqueles – ór-
gãos públicos, por exemplo – que devem ordenar e pôr em funcionamento a obriga-
toriedade prevista.
Mesmo visando finalidades comuns de uma coletividade e sendo o Direito le-
gislado racional, heterônomo, de execução imediata por força de sua obrigatorieda-
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Nilda Stecanela, Caroline Caldas Lemons
de (desde que não haja elementos condicionantes ou impedientes à sua executorie-
dade), alguns questionamentos emergem: Como assegurar que as relações sociais
convirjam na direção do cumprimento da obrigatoriedade jurídica – e quiçá moral
– das normas jurídicas? Como é possível saber o que cabe a cada um dos membros
de uma comunidade?
De modo geral, cabe ao sujeito a faculdade de pretender ou fazer o que a norma
lhe atribui, quer tratando-se de direito objetivo ou de direito subjetivo, porquan-
to complementares
1
. Reale faz o convite à compreensão do direito subjetivo como
sendo “o interesse protegido que dá a alguém a possibilidade de agir. É, portanto, o
interesse protegido enquanto atribui a alguém um poder de querer” (REALE, 2002,
p. 255, grifos do autor).
O Direito subjetivo, portanto, constitui algo independente do fato de ser ou
não reconhecido pelo Estado, mas para que seja garantido e protegido juridicamen-
te é preciso observar se a vontade é possível ou potencial, uma vez que ele expressa
aquilo que é devido em função de uma normativa jurídica
2
.
O Direito subjetivo está dentro de uma situação subjetiva que “é a possibili-
dade de ser, pretender ou fazer algo, de maneira garantida, nos limites atributivos
das regras de direito”. (REALE, 2002, p. 259, grifos do autor). Pode-se atestar que
só existe direito subjetivo quando é possível pretender aquilo que é a exigibilidade
do próprio direito objetivo, como explica Reale:
Assim sendo, a possibilidade de pretender ou fazer algo, - tal como se acha enunciada
na regra de direito -, não tem alcance meramente descritivo ou puramente formal, mas
representa, ao contrário, uma visão antecipada dos comportamentos efetivos, aos quais é
conferida uma garantia. Isso corresponde, aliás, a um dos princípios já enunciados como
sendo da essência do Direito: a sua realizabilidade garantida. Direito, não destinado a con-
verter-se em momento de vida, é mera aparência de Direito. Norma de direito que enuncia
numa possibilidade de fazer ou pretender algo, sem que jamais surja o momento de sua
concretização na vida dos indivíduos e dos grupos como ação ou pretensão concretas, é uma
contradição em termos. É próprio do Direito prever comportamentos prováveis, configu-
rando, por antecipação, nos modelos jurídicos instaurados, aquilo que normalmente deverá
ocorrer (REALE, 2002, p. 258, grifos do autor).
Conforme esclarece o autor, a pretensão está entre a norma – orientada para a
realidade social – e a experiência, explicitando que se é possível pretender alguma
coisa que está prevista na norma jurídica, deve ser possível exigir a garantia dessa
pretensão.
Avançando na direção do entendimento histórico da questão dos direitos sub-
jetivos, sabe-se que a primeira previsão e a redação desses direitos ocorreram a
partir da segunda metade do século XVIII quando a França, por intermédio da De-
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Direito à educação: da conquista ao reconhecimento
claração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), passou a cuidar dos direitos
públicos dos seres humanos em uma perspectiva política.
Mais tarde, em 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos
(DUDH) proclamada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas
(ONU), esses direitos foram ampliados e complementados pelos direitos sociais
dos indivíduos e dos povos. Naquele período histórico inaugural, tais Declarações
conservaram um caráter jurídico-político, não se estendendo para além do estabe-
lecimento de garantias das ações dos indivíduos no Estado ou contra ele e, apenas
tardiamente, incorporaram perspectivas sociais e econômicas.
Logo após, contudo, muitas nações passaram a redigir seus ordenamentos ju-
rídicos e a pautar suas políticas públicas na contemplação dessas previsões inter-
nacionais. Os desdobramentos da DUDH não convergiram para um único texto ju-
rídico de alcance mundial, mas variaram de um país para outro e diferenciaram-se
pela extensão das garantias previstas, bem como em seus processos de proteção.
No Brasil, os direitos públicos subjetivos fundamentais estão assegurados na
Constituição Federal de 1988, no Título II, em especial nos capítulos I, II e IV, dentre
os quais estão minuciosamente elencados os direitos e os deveres individuais e coleti
-
vos, os direitos sociais e políticos, da saúde, da previdência, da educação e da cultura.
Certamente o Direito, mesmo sendo lei, passa por interpretação lógica a fim de
acompanhar as vicissitudes sociais num sentido compreensivo, correlacionando-as
às fontes originais, aos outros dispositivos jurídicos e aos novos valores históricos,
sem os quais seria inútil e prejudicial à coletividade. Nas palavras de Reale (2002)
seria uma visão dupla (retrospectiva e prospectiva) da norma que resultaria na
possibilidade de sua concretude, visto que seu significado inteligível é o que asse-
gura que o caráter imperativo ou prescritivo da norma poderá ser aplicado.
Por ser atribuição daqueles que dela estão legalmente investidos, a aplicação
da lei traz consigo o desafio da interpretação e da aplicabilidade em decorrência do
princípio de sua realizabilidade ou efetividade. Para Reale, “a aplicação do Direito
envolve a adequação de uma norma jurídica a um ou mais fatos particulares, o
que põe o delicado problema de saber como se opera o confronto entre uma regra
‘abstrata’ e um ‘fato concreto’ [...]” (REALE, 2002, p. 300-301, grifos do autor).
Sendo possível, pelo próprio indicativo dos direitos subjetivos e, na medida
em que a sociedade lhe confere reconhecimento, exigir de maneira garantida o que
é de direito (objetivo), os direitos subjetivos tendem a alargar-se, mas também a
tornarem-se mais complexos, pois, retomando o questionamento anterior: Como
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assegurar que as relações sociais convirjam na direção do cumprimento da obriga-
toriedade jurídica – e quiçá moral – das normas jurídicas?
Bem, reconhecer os direitos públicos subjetivos, alicerçados sobre garantias
eficazes, constitui o pilar característico do Estado Democrático de Direito, no qual a
garantia efetiva e concreta não coexiste simplesmente como questão jurídica, mas
vai além dessa esfera para vestir-se de questão fundamentalmente política.
Ainda com relação aos direitos subjetivos:
[...] podemos dizer que eles se impõem ao reconhecimento e ao respeito do Estado, sobre-
tudo quando correspondem ao que temos denominado invariantes axiológicas, isto é, a
valores universalmente proclamados e exigidos pela opinião pública como absolutamente
essenciais ao destino do homem na face da Terra. Passa-se mesmo a falar em um Direito
planetário consagrador de valores transnacionais e transestatais que conferem um novo
fundamento aos direitos públicos subjetivos no plano do Direito Interno e do Direito Inter-
nacional. (REALE, 2002, p, 276, grifos do autor).
Por serem direitos públicos subjetivos eles exigem a parte do outro: seja ele in-
divíduo, coletivo ou Estado, uma vez que os deveres que correspondem a quaisquer
direitos são partilhados pelas coletividades e pelas individualidades. Nesse sentido,
para a realização do Estado Democrático de Direito é imperativo que o Estado as
-
suma deveres e os faça corresponder à efetividade dos direitos públicos subjetivos.
A justiça, que “vale para que todos os valores valham” (REALE, 2002, p. 375,
grifos do autor), não é gratuita nem acabada, mas é primordialmente intenção ra-
dical de garantir ao ser humano sua humanidade em uma convivência harmônica,
plural e integral.
Reconhece-se, contudo, que a implantação das normas jurídicas de caráter so-
cial é bastante problemática porque algumas condições não dependem tão somente
dos governantes (ainda que sejam políticas), mas dependem de ações individuais
que as sustentem. Conforme afirma Bobbio, “o problema fundamental em relação
aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los.
Trata-se de um problema não filosófico, mas político” (1992, p. 24, grifos do autor)
e é nesse ponto que muitas nações estão estagnadas.
A proteção e o reconhecimento são adiados dia após dia e relegados à vontade
dos sujeitos que, muitas vezes, quando o fazem, fazem da forma como lhes apraz,
apenas para o cumprimento de uma obrigação moral ou política. Por todas essas
razões pode-se afirmar que somente boas intenções não resolvem o problema da
sustentação dos direitos sociais e, em muitos desses casos, somente por intermédio
da pressão da opinião pública ou mesmo da exigência social é que eles podem ser
ao menos equilibrados.
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Direito à educação: da conquista ao reconhecimento
Da conquista do direito à luta por reconhecimento
Apesar de o reconhecimento não ser um tema novo nas discussões e teorias
filosóficas, uma das reatualizações contemporâneas sobre o assunto o aborda a
partir das deficiências deixadas por modelos teóricos tradicionais, acrescentando
ao não reconhecimento o caráter propulsor para as mudanças sociais.
Em Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais, Honneth
(2003) explicita como os indivíduos se colocam nas sociedades contemporâneas a
partir das experiências de não reconhecimento
3
vivenciadas por eles. Embora o
assunto tenha sido tratado de forma muito ampla é possível inferir que o filósofo
situa o conflito social no centro da discussão sobre o reconhecimento, pois para
ele as possibilidades de emancipação dos sujeitos não estão apenas inseridas na
própria realidade social, mas são dela projetadas.
Assim, de acordo com o autor, seriam três as etapas do reconhecimento recí-
proco
4
buscadas pelo sujeito e as quais ele muitas vezes vê-se privado: o amor, o
direito e a estima social. O amor, encontrado na dedicação emotiva (tanto nas rela-
ções primárias de amizade, quanto nas de amor), quando bem atendido - por meio
da satisfação mútua dos indivíduos - gera autoconfiança no sujeito, mas quando
violado ou maltratado, afeta sua integridade física e sua personalidade. O direi-
to, encontrado no respeito cognitivo presente nas relações jurídicas, quando bem
atendido gera no indivíduo autorrespeito, mas, ao sentir-se dele desprovido, tem
inteligência social atingida. A estima social, encontrada na solidariedade da comu-
nidade de valores, gera autoestima no indivíduo, embora a degradação e a ofensa
comprometam sua dignidade.
Como todas essas formas de reconhecimento são imprescindíveis para que
o indivíduo desenvolva a autorrelação prática de que necessita para tornar-se
membro de uma coletividade digna (autoconfiança, autorrespeito e autoestima),
o desrespeito a qualquer uma concorre para impulsionar os conflitos sociais e, por
intermédio desses, as mudanças sociais. Nas palavras de Salvadori:
A ruptura dessas autorrelações pelo desrespeito gera as lutas sociais. Portanto, quando
não há um reconhecimento ou quando esse é falso, ocorre uma luta em que os indivíduos
não reconhecidos almejam as relações intersubjetivas do reconhecimento. Toda luta por
reconhecimento inicia por meio da experiência de desrespeito (SALVADORI, 2011, p. 191).
Ainda nessa perspectiva, Salvadori (2011) corrobora a teoria honnethiana,
afirmando que as tensões sociais e as motivações morais dos conflitos advêm das
três formas de reconhecimento malsucedidas ou desrespeitadas e que a superação
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dessas condições pelos indivíduos passa pelo reconhecimento de si e, posteriormen-
te, pelo reconhecimento de si no outro.
O pressuposto de que o indivíduo, depois de reconhecer a si, passa a reconhe-
cer-se no outro traduz o princípio da horizontalidade entre os seres humanos. Esse
princípio faz com que pela luta social todos os direitos individuais fundamentais
sejam ampliados na direção de uma medida maior de igualdade e para um número
progressivo de membros da sociedade que passariam também a considerar – e a
exigir - condições de seguridade iguais. Para Honneth:
[...] os confrontos práticos, que se seguem por conta da experiência do reconhecimento de-
negado ou do desrespeito, representam conflitos em torno da ampliação tanto do conteúdo
material como do alcance social do status de uma pessoa de direito (HONNETH, 2003,
p. 194, grifos do autor).
Concebendo que possuir direitos significa levantar pretensões que já se con-
sideram socialmente justificadas, somente quando os direitos básicos universais
não forem mais estendidos ao coletivo de maneira díspar a pessoa de direito terá
o princípio de reconhecimento concretizado. Como explica o filósofo alemão, ainda
que o indivíduo consiga tornar aceitas suas pretensões individuais por meio do
direito, “é o caráter público que os direitos possuem [...] que lhes confere a força de
possibilitar a constituição do autorrespeito” (HONNETH, 2003, p. 197).
O caráter público, referido por Honneth por meio da terceira forma de re-
conhecimento, a da estima social, implica na compreensão de duas questões. A
primeira delas é que a estima social ou a solidariedade, como denomina Honneth,
significa “[...] numa primeira aproximação, uma espécie de relação interativa em
que os sujeitos tomam interesse reciprocamente por seus modos distintos de vida,
já que eles se estimam entre si de maneira simétrica” (HONNETH, 2003, p. 209).
É como se os sujeitos autônomos vissem em si mesmos, e nos outros, capacidades e
propriedades e compartilhassem reciprocamente os valores que consideram signi-
ficativos para a coletividade.
A segunda é que, embora essa forma de reconhecimento já tenha tido histori-
camente outros sentidos
5
, na modernidade e na discussão proposta, a estima social
estaria relacionada de forma mais específica com a questão da dignidade e da inte-
gridade humanas, excluindo qualquer privilégio jurídico relacionado às qualidades
morais outrora valorizadas, e se vincularia às finalidades sociais que a comunidade
interpreta como sendo valiosas. Na contemporaneidade, portanto, ser reconhecido
ou estimado socialmente exigiria a conquista da atenção pública.
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Assim sendo, a experiência de desrespeito, seja ela por violação, degradação,
denegação, privação, negação, recusa, ofensa ou rebaixamento a qualquer uma das
formas de reconhecimento afetaria a integridade psíquica do sujeito e provocaria
nele a perda da autoconfiança. Os abalos psíquicos e as reações emocionais nega-
tivas, tais como a vergonha, a ira e o desprezo, provocadas pela percepção do não
reconhecimento dos direitos, que para o sujeito é algo injustificado, acabariam por
converter-se em propulsão para a luta por reconhecimento.
Isso significa que, ao sentir-se ferido em suas pretensões e tomado por senti-
mentos negativos, o indivíduo problematizaria suas expectativas, ou seja, diante
do insucesso e tomado por sentimentos de culpa e de indignação moral – em geral,
paralisantes –, ele tomaria consciência e seria impulsionado para a ação. Esse pro-
cesso assinala que as experiências individuais iniciais de desrespeito se flexibiliza-
riam e seriam superadas pela constituição de uma identidade coletiva.
Honneth (2003) explica que da experiência inicialmente particularizada do in-
divíduo emergiria a compreensão de que ela é sentida e vivida potencialmente por
muitos outros sujeitos. Diante dessa descoberta, o indivíduo passaria a pensar na
luta pelo reconhecimento jurídico e social não mais como uma questão de interesse
individual, mas coletivo.
Tendo sido esclarecido que (a) o impulso do indivíduo para a luta por reco-
nhecimento é decorrente de sua identidade lesada ou destruída pela infração da
expectativa de ser estimado socialmente, (b) que a negação experienciada o apro-
xima do coletivo e que (c) é no coletivo que ele encontra as condições para lutar
pela autorrealização, adentra-se na análise dos caminhos percorridos pelo direito à
educação no Brasil, no âmbito da educação escolar.
Antecipa-se que a luta pelo reconhecimento jurídico do direito à educação no
Brasil, alcançado por intermédio de governos representativos, movimentos políti-
cos e pressões sociais, ainda demanda movimentos. Contudo, é para o reconheci-
mento social que os esforços se voltam neste momento, pois sua concretude é mais
difícil do que a jurídica, exigindo investimentos por parte de quem o pode legitimar
na(s) prática(s).
Direito à educação no Brasil
Na perspectiva honnethiana, as experiências morais – por sua alta carga
emotiva e cognitiva – são as propulsoras das lutas sociais e dos movimentos cole
-
tivos pelo reconhecimento dos direitos. A título de exemplo e também de análise
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tem-se o caso do direito à educação no Brasil em que da negação inicial à violação
atual nasceu o impulso para a luta pelo reconhecimento, tanto jurídico quanto
prático.
Embora socialmente justificada durante vários séculos, a tratativa jurídica e
a regulamentação do assunto somente ocorreu com a promulgação da Constituição
Federal de 1988. Sua inserção no texto da Carta Magna decorreu tanto da pressão
popular exercida pelos movimentos sociais quanto da movimentação dos repre-
sentantes políticos do país. Essa semântica coletiva que conduziu os processos de
socialização na direção da garantia da educação escolar abriu espaço para a alfa-
betização da população e também para o exercício de outros direitos como o direito
ao voto, à saúde e a assistência social, a ampliação do conhecimento cultural e ao
acompanhamento dos progressos técnicos e científicos contemporâneos.
A extensão progressiva do acesso à escola, que pode ser acompanhada (a) nos
índices de matrícula dos estudantes em idade escolar nas instituições públicas e
particulares de ensino do país nos últimos anos, bem como por meio (b) do fluxo
de entrada e saída dos estudantes do Ensino Fundamental para o Ensino Médio,
(c) da proporção entre as taxas de reprovação, abandono e aprovação e (d) da defa-
sagem idade/escolaridade, relacionados nas Tabelas 1 a 4, permite que se fale em
uma quase universalização da Educação Básica.
Nas tabelas a seguir, é possível observar o total de matrículas no Ensino Fun-
damental em 2016 e no Ensino Médio nos anos de 2016 e 2017.
Tabela 1 – Total de matrículas no ensino fundamental
2016
1 º ano 2.866.919
2 º ano 2.987.495
3 º ano 3.293.034
4 º ano 3.179.597
5 º ano 3.114.994
6 º ano 3.421.168
7 º ano 3.182.329
8 º ano 2.831.086
9 º ano 2.814.856
Fonte: QEdu (2019).
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Tabela 2 – Total de matrículas no ensino médio
2016 2017
1 º ano 2.986.788 2.901.789
2 º ano 2.436.965 2.362.706
3 º ano 2.151.914 2.080.294
Fonte: QEdu (2019).
Pelas Tabelas 1 e 2, percebe-se que, entre o 1º e o 3º ano, o número total de
matrículas no Ensino Fundamental sofreu acréscimos consideráveis; tendo na se-
quência, na passagem do 3º para o 4º ano e do 4º para o 5º ano, um decréscimo e,
do 5º para o 6º ano, novo crescimento. A partir daí os dados nacionais demonstram
um decréscimo progressivo em direção ao 9º ano. Tais acréscimos e/ou decréscimos
na passagem de um ano para outro indicam pontos de retenção e/ou avanço de es-
tudantes e merecem discussão mais aprofundada, visto que entendê-los extrapola
a dimensão da educação escolar.
Na comparação sobre o total de matrículas entre os níveis de ensino, obser-
va-se que o total de matrículas no 1º ano do Ensino Médio em 2017 (2.901.789) foi
superior em 3% ao total de matrículas de estudantes no 9º ano do Ensino Funda-
mental no ano de 2016 (2.814.856), indicando uma possível matrícula de estudan-
tes repetentes no 1º ano do Ensino Médio.
Outra observação que merece atenção diz respeito ao total de estudantes ma-
triculados e concluintes do Ensino Médio, pois de um total de 2.436.965 estudantes
matriculados no 2º ano em 2016, que deveriam ter concluído esta etapa de ensino
em 2017, somente 2.080.294 haviam se matriculado para o 3º ano do Ensino Médio.
Isso representa apenas um pouco mais de 85%; sem considerar aqueles que não
frequentaram ou não concluíram o ano letivo.
Na tabela a seguir, outras questões convidam a reflexão. Em todas as etapas
da Educação Básica, a situação de reprovação ou abandono tem melhorado nacio-
nalmente. Entretanto, somadas, ainda representavam, em 2016, o porcentual de
6,8% nos anos iniciais, 14,5% nos anos finais e 18,6% no Ensino Médio (em 2015
eram respectivamente 6,8%, 14,3% e 18,4%; e em 2014, 7,3%, 15,2% e 19,8%).
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Tabela 3 – Proporção de estudantes com reprovação, abandono ou aprovação
2014 2015 2016
R Ab Ap R Ab Ap R Ab Ap
Anos iniciais 6,2% 1,1% 92,7% 5,8% 1,0% 93,2% 5,9% 0,9% 93,2%
Anos finais 11,7% 3,5% 84,8% 11,1% 3,2% 85,7% 11,4% 3,1% 85,5%
Ensino médio 12,2% 7,6% 80,2% 11,6% 6,8% 81,6% 12,0% 6,6% 81,5%
Fonte: QEdu (2019)
Legenda: R (Reprovação); Ab (Abandono); Ap (Aprovação).
Ainda que as últimas três décadas tenham sido marcadas por avanços nos ín-
dices de matrícula na Educação Básica, observam-se enormes proporções de estu-
dantes com defasagem idade/escolaridade que precisam ser superadas. Analisando
as informações na tabela a seguir – em que são dispostos os dados referentes a
proporção de estudantes com defasagem idade/ano de dois anos ou mais –, fazendo
um retrospecto um pouco mais distanciado do momento atual e relacionando-o a
dados mais recentes, pode-se dizer que há uma população discente afastada dos
ideais educacionais de idade/escolaridade.
Tabela 4 – Proporção de estudantes com defasagem idade/ano de dois anos ou mais
2008 2014 2016
Anos iniciais 18% 14% 12%
Anos finais 27% 27% 26%
Ensino médio 24% 28% 28%
Fonte: QEdu (2019).
Em nível nacional, de 2008 para 2016 o porcentual de estudantes com esse
descompasso nos anos iniciais do Ensino Fundamental diminuiu 6%, sendo 1%
nos anos finais e 4% no Ensino Médio. Reunidas e analisadas essas questões, cabe
ainda trazer alguns números para observar a educação escolar no país. Em 2010,
segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a partir dos dados
coletados no Censo Demográfico (decenal), havia mais de 2,8 milhões de crian-
ças e adolescentes em idade escolar fora da escola
6
. Detendo-se sobre os números
líquidos, torna-se mais palpável perceber que não ter essa expressiva quantida-
de de crianças matriculadas e frequentando adequadamente a escola, no período
determinado para isto, é mais desafiador do que se pode pensar em um primeiro
momento.
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Apesar de os números de matrículas serem mais animadores do que os que
foram verificados em décadas anteriores, não se pode falar em universalização da
Educação Básica, visto que não se conseguiu ainda atingir a totalidade da popu-
lação de crianças e jovens em idade escolar. O índice de 92% sinaliza que o acesso
e a permanência, que, por vezes, parecem resolvidos, ainda demandam esforços
políticos, de gestores escolares e de professores, pois há indícios de que estejam
relacionados a fatores endógenos e exógenos que adentram a escola e o sistema
escolar.
As situações de crianças fora da escola decorrem de inúmeras questões (pobre-
za, violência, gravidez, trabalho etc.) e não se tem aqui a pretensão de determiná-
-las. Destaca-se, entretanto, a grande dificuldade que é assegurar o acesso a todos,
a permanência, a superação da defasagem idade/escolaridade e, especialmente, a
aprendizagem
7
, disputada com os porcentuais de reprovação e abandono.
Outro dado importante e que merece ser observado diz respeito ao índice de
analfabetismo da população com 15 anos ou mais, divulgado pelo IBGE em maio
de 2018, uma vez que caiu de 7,2% em 2016 para 7,0% em 2017, longe dos 6,5% es-
tipulados no Plano Nacional de Educação (PNE
8
) para o ano de 2015 e, mais longe
ainda de atingir a meta estabelecida pelo PNE de zerar os mais de 11 milhões de
pessoas que não sabem ler nem escrever, até o ano de 2024.
Certamente, o atendimento do direito à educação inclui o aumento de matrícu-
las, mas acompanha várias preocupações em relação à aprendizagem, a qualidade
do ensino e as experiências proporcionadas aos estudantes. Ter direito à educação
não se restringe a possibilidade de acessar e frequentar a escola. Ocorre que o
direito à educação é histórico, nascido em determinado contexto e estendido gra-
dualmente à medida que se tornou requerido. Trinta anos atrás, o desejo maior era
pela conquista, ou seja, pelo reconhecimento jurídico. Hoje, contudo, a exigência é
por reconhecimento social e por novas formas de proteção.
As emergências contemporâneas caminham em direção ao alargamento do
direito e da discriminação das obrigações públicas e individuais, pois uma vez sa-
tisfeita a conquista jurídica (ainda que não na totalidade), os envolvidos sentem a
necessidade de lutar por padrões ampliados de reconhecimento. Para consegui-los,
engajam-se em ações políticas e deixam para trás a situação passiva ou acomoda-
da em que se encontravam. Emerge, assim, uma autorrelação nova e positiva de
si mesmo que restitui ao indivíduo, ao menos em parte, o autorrespeito perdido.
Como pondera Honneth:
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[...] sentimentos de desrespeito formam o cerne de experiências morais, inseridas na estru-
tura das interações sociais porque os sujeitos humanos se deparam com expectativas de re-
conhecimento às quais se ligam as condições de sua integridade psíquica; esses sentimentos
de injustiça podem levar a ações coletivas, na medida em que são experienciadas por um
círculo inteiro de sujeitos como típicos da própria situação social (HONNETH, 2003, p. 260).
O não reconhecimento, além de privar os atingidos daquilo que era uma preten-
são legítima, os deixa tomados por um sentimento de inferioridade de valor. É im-
portante lembrar que para autorrealizar-se o indivíduo depende do reconhecimento
de si como um membro único e insubstituível de uma coletividade, com capacidade
de contribuir para a manutenção e reprodução da vida social de forma positiva.
Assim, para o reconhecimento moral dos direitos, não basta que apenas se
considere o outro com o mesmo respeito que tem para com si mesmo, mas que não
se ofereça a ele um reconhecimento distorcido ou limitado. Para Honneth, a con-
tingência recorrente da não consideração de que as condições que um sujeito tem
para alcançar sua autorrealização são parte do reconhecimento, permite afirmar
que “[...] a experiência da privação de direitos se mede não somente pelo grau de
universalização, mas também pelo alcance material dos direitos institucionalmen-
te garantidos” (HONNETH, 2003, p. 217).
Essa perspectiva é suficiente para afirmar que há uma tendência a certa
naturalização do direito, ou seja, depois das pretensões individuais tornarem-se
coletivas, da conquista jurídica ter sido alcançada por meio da luta, que institui
legalmente o exercício da cidadania, há um processo de estagnação. Para sair desse
estado e assegurar a manutenção do direito, novas intervenções são requeridas.
Como todo direito induz a uma obrigação moral correspondente, na medida
em que, ao saber-se sujeito de direitos, o indivíduo entende que tem obrigação para
com o outro na mesma proporção que tem para consigo, há o encaminhamento para
a luta por condições concretas de realização que permita a todos saber mais sobre
as condições e as possibilidades da autorrealização.
A intensa defasagem no campo dos direitos sociais dá-se em razão da dificul-
dade de assegurar às condições intersubjetivas (atendimento do amor, do direito e
da estima social), a incorporação de elementos materiais adjacentes (materialidade
necessária para que as capacidades e habilidades sejam externadas), sem deixar de
contemplar as condições históricas.
Observa-se finalmente que o direito não pode limitar-se à existência das normas
jurídicas. Para o exercício democrático do Direito, é preciso que se coadunem o aper
-
feiçoamento jurídico e as possibilidades de sua aplicação, ou seja, considerar mais as
condições particulares dos indivíduos, sem perder de vista o conteúdo universalista.
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Por sorte – ou por luta –, nas sociedades desenvolvidas, as condições da au-
torrealização vêm sendo ampliadas. Experiências individuais ou coletivas de ne-
gação, desrespeito ou violação de direitos converteram-se em impulso para luta e
organização de movimentos políticos. Contudo, seu cumprimento demanda tempo,
paciência e, acima de tudo, mudança cultural que conduza a uma ampliação essen-
cial das relações de reconhecimento.
É difícil apontar o caminho mais rápido, eficaz ou seguro de reconhecimento e
realização dos direitos humanos, especialmente quando se trata de proteger um di-
reito subjetivo como é o direito à educação, mas é possível afirmar que as condições
de exequibilidade dos direitos proclamados é a meta a ser buscada.
Considerações nais
A opção por estabelecer aproximações entre Honneth (2003), a Ciência Ju-
rídica e o campo da Educação parte da compreensão de que os conflitos sociais
oriundos do desrespeito às formas de reconhecimento podem explicar a evolução ou
o desenvolvimento moral das sociedades. O desejo por mudanças educacionais pre-
cisa estar acompanhado tanto da segunda, quanto da terceira forma de reconheci-
mento, pois à medida que se avança na jurisprudência, novas relações práticas são
reivindicadas.
Diante da constatação de que, mesmo havendo uma justificada garantia ju-
rídica para o direito à educação, ele não está dado, entende-se que a legitimidade
precisa ser construída por meio de processos de luta resultantes de interações en-
tre sujeitos. Conclui-se que é pressuposto da garantia do direito à educação a luta,
passando pela conquista, para o exercício da cidadania e a requisição de interven-
ção para a sua manutenção.
O direito à educação, como um direito subjetivo que se legitima quando as con-
cessões legais e as relações intersubjetivas se transformam em ações práticas, re-
quer (muita) luta. Estendê-lo, garanti-lo e legitimá-lo sob o princípio da igualdade
universal independente das disposições econômicas, ainda é miragem. A propósito,
diante da imputabilidade moral referida e de novas situações sociais conflitantes em
que o sujeito se sinta lesado, cabe a ele a ampliação de suas pretensões jurídicas e a
luta pelo reconhecimento das propriedades universais das quais se considera digno.
Consoante com os dizeres de Bobbio de que “[...] uma coisa é um direito; ou-
tra, a promessa de um direito futuro. Uma coisa é um direito atual; outra, um
direito potencial” (1992, p. 83) e, observando a história das políticas educacionais
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Nilda Stecanela, Caroline Caldas Lemons
no Brasil, é possível afirmar que hoje o direito à educação ainda está em processo
de aproximação entre o plano da conquista jurídica e o da legitimidade universal,
horizontal e inalienável.
É mais um vir a ser do que realmente o é, pois embora não dependa exclusi-
vamente das políticas públicas para existir, ainda requer, para a sua legitimidade
e manutenção, a intervenção do Estado e, no mesmo patamar de importância, dos
atores da educação, pois é na intimidade da sala de aula que as compreensões de
educação são postas em prática.
Notas
1
Ao direito objetivo corresponde a norma ou lei, tal como está redigida. Já ao direito subjetivo, pode-se dizer
genericamente, corresponde à vontade e ao interesse expressados e juridicamente protegidos.
2
Um direito é subjetivo na medida em que vai ao encontro do sujeito para quem o direito objetivo se realiza,
o que explica não ser possível que haja direito subjetivo sem que haja a regra jurídica.
3
Ainda que não esgote a questão, ao tecer sua versão da Teoria Crítica iniciada por Hegel, Honneth (2003)
explora detalhadamente as três formas de reconhecimento e o conceito de luta, trazendo para o centro do
debate filosófico a estrutura das relações sociais de reconhecimento. Busca na Psicologia Social essa atua-
lização para afirmar que os conflitos sociais são consequências do não reconhecimento a qualquer uma das
formas de reconhecimento explicadas na sequência do texto.
4
É importante considerar que qualquer uma das formas de reconhecimento exige o reconhecimento inter-
subjetivo e a complementaridade, uma vez que não apenas inexiste entre elas graduação, quanto o desres-
peito a uma delas, qualquer que seja, impede a autorrealização do sujeito. A autorrealização mencionada
corresponde: a) no amor, à autoconfiança; b) no direito, ao autorrespeito e c) na estima social, à autoestima.
5
Ser reconhecido no sentido da estima social teve por longo tempo (embora ainda presente em algumas
sociedades) o sentido de honra, ou seja, vinculado as expectativas socioeconômicas e de prestígio social, a
capacidade individual ou a reputação social a partir daquilo que o indivíduo realizava ou que era capaz em
função dos objetivos da sociedade.
6
Os dados fazem referência à faixa etária que vai dos seis aos dezessete anos de idade e não contempla as
crianças de quatro e cinco anos de idade, considerando que a obrigatoriedade de matrícula para crianças
nessa faixa etária somente ocorreu em 2016, por força da Lei nº 12.796/2013.
7
Neste momento não há condições de aprofundar tais questões, mas considera-se importante sinalizar para
uma problematização mais cuidadosa em torno das indagações que se referem ao acesso, a frequência,
sucesso ou insucesso escolar; do ponto de vista de como estão relacionadas às políticas educacionais que
por meio das mantenedoras - municipais e estaduais - adentram as escolas de Educação Básica do país.
8
É possível conhecer as metas do Plano Nacional de Educação (2014-2024), lei nº 13.005/2014, acessando o
site indicado nas referências.
Referências
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 11. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 1992.
BRASIL, Lei 13.005, de 25 de junho de 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação – PNE
e dá outras providências. Disponível em: https://presrepublica.jusbrasil.com.br/legisla-
cao/125099097/lei-13005-14. Acesso em: 21 mar. 2019.
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Marilandi Maria Mascarello Vieira, Maria Cristina Pansera de Araújo, Josimar de Aparecido Vieira
Práticas formativas na educação prossional: a emergência de uma
didática especíca?
Formative practices in professional education: the emergency of a specic didactics?
Prácticas formativas em la educación professional: ¿lá emergência de una didáctica especíca?
Marilandi Maria Mascarello Vieira
*
Maria Cristina Pansera de Araújo
**
Josimar de Aparecido Vieira
***
Resumo
Este trabalho tem por objeto a discussão acerca da existência de uma didática especíca para a Educação Pro-
ssional e seu propósito central foi identicar como autores referenciais dessa área, dentre eles Kuenzer (1998,
2010), Machado (2008, 2010), Ramos (2011, 2014), Barato (2004, 2008), Araujo (2008, 2010) Gruber, Allain; Wollin-
ger (2017) e Wollinger; Allain; Gruber, (2017) compreendem essa temática. A abordagem metodológica foi orien-
tada pela pesquisa qualitativa do tipo bibliográca, analisando os trabalhos dos autores na tentativa de respon-
der a seguinte indagação: Como os autores referenciais da área apresentam a discussão acerca da didática para
a educação prossional e como têm caracterizado as práticas formativas que nela são desenvolvidas em suas
produções acadêmicas? Os resultados indicam que, como expresso na primeira seção, as categorias gerais da
didática, como as nalidades, os conteúdos, a metodologia e a avaliação são objetos de análise nos trabalhos,
porém, embora se advogue a necessidade da elaboração de uma didática própria, posição defendida por auto-
res analisados na segunda seção do trabalho, a educação prossional não conta com conhecimentos sucientes
sobre os processos de produção e de aprendizagem dos saberes técnicos, especialmente dos processos opera-
cionais, que subsidiem a formulação de proposições para elaboração dessa didática especíca.
Palavras-chave: Educação Prossional. Didática. Cursos técnicos.
*
Doutora em Educação nas Ciências pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNI-
JUI, Brasil). Professora do Programa de Mestrado em Educação da Unochapecó. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-
5531-9946. E-mail: mariland@unochapeco.edu.br
**
Doutora em Genética e Biologia Molecular pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs, Brasil). Professora
pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências na Universidade Regional do Noroeste do
Estado do Rio Grande do Sul (Unijui, Brasil).ORCID http://orcid.org/0000-0002-2380-6934. E-mail: pansera@unijui.
edu.br
***
Doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS, Brasil). Professor do Institu-
to Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul, campus Sertão. (IFRS, Brasil). ORCID https://orcid.
org/0000-0003-3156-8590. E-mail: josimar.vieira@sertao.ifrs.edu.br
Recebido em 29/05/2019 – Aprovado em 30/09/2019
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i1.10581
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Práticas formativas na educação prossional: a emergência de uma didática especíca?
Abstract
This paper aims to discuss the existence of a specic didactics for Professional Education and its main purpose
was to identify how reference authors of this area, among them Kuenzer (1998, 2010), Machado (2008, 2010), Ra-
mos (2011, 2014), Cheap (2004, 2008), Araujo (2008, 2010) Gruber, Allain; Wollinger (2017) and Wollinger; Allain;
Gruber, (2017) understand this theme. The methodological approach was guided by qualitative research of the
bibliographic type, analyzing the works of the authors in an attempt to answer the following question: How the
referential authors of the area present the discussion about the didactics for professional education and how
they have characterized the formative practices that in it are developed in your academic productions? The
results indicate that, as expressed in the rst section, the general categories of didactics, such as the purposes,
the contents, the methodology and the evaluation are objects of analysis in the works. However, although the
need for the elaboration of its own didactics is advocated, position defended by authors analyzed in the second
section of the paper, vocational education does not have sucient knowledge about the processes of produc-
tion and learning of technical knowledge, especially the operational processes, which support the formulation
of propositions for the elaboration of this specic didactics.
Keywords: Professional Education. Didactics. Technical courses.
Resumen
Este documento tiene como objetivo discutir la existencia de una didáctica especíca para la Educación Profe-
sional. Su objetivo principal es identicar cómo autores de referencia de esta área, entre ellos Kuenzer (1998,
2010), Machado (2008, 2010), Ramos (2011, 2014), Barato (2004, 2008), Araujo (2008, 2010) Gruber, Allain; Wollin-
ger (2017) y Wollinger; Allain Gruber, (2017) entienden este tema. El enfoque metodológico fue guiado por la
metodología cualitativa del tipo bibliográco, analizando los trabajos de los autores e intentando responder la
siguiente pregunta: ¿Cómo los autores-referencia del área presentan la discusión sobre las didácticas para la
educación profesional y cómo han caracterizado estas prácticas formativas en sus producciones académicas?
Los resultados indican que, como se expresó en la primera sección, las categorías generales de didáctica, como
los propósitos, los contenidos, la metodología y la evaluación son objetos de análisis en los trabajos. Sin embar-
go, aunque se aboga por la necesidad de elaborar sus propias didácticas, posición defendida por los autores
analizados en la segunda sección del artículo, la educación profesional no desarrolla conocimientos sucientes
sobre los procesos de producción y aprendizaje de saberes técnicos, especialmente los procesos operativos, que
apoyan la formulación de propuestas para la elaboración de esta didáctica especíca.
Palabras clave: Educación profesional. Didáctica Cursos técnicos.
Introdução
O uso de expressões ligadas à didática da/na educação profissional ou a meto-
dologia de ensino são frequentes em vários âmbitos: intitulam cursos de formação
continuada, são objeto de série de livros e constituem o currículo de cursos de es-
pecialização destinados a professores dessa modalidade de ensino. Além disso, as
práticas educativas da educação profissional têm constituído pauta de trabalhos
acadêmicos especialmente a partir de 2008, com a criação dos Institutos Federais
de Educação, Ciência e Tecnologia - Ifes e consequente expansão do oferecimento
de cursos de educação profissional.
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Marilandi Maria Mascarello Vieira, Maria Cristina Pansera de Araújo, Josimar de Aparecido Vieira
Essas referências indicam que se busca delinear procedimentos de ensino
para essa modalidade devido às suas características distintivas: objeto de ensino,
formas de organização, modalidades de oferta dos cursos e perfil dos estudantes
e professores. Se ela é peculiar, a prática educativa que nela se efetiva também é
diferenciada.
Em decorrência disso, este trabalho trata da emergência das discussões sobre
o tema, circunscrito pela seguinte questão: Como os autores referenciais da área
apresentam a discussão acerca da didática para a educação profissional e como têm
caracterizado, em suas produções acadêmicas, as práticas formativas que nela são
desenvolvidas?
Para lançar luzes sobre essa indagação, empregou-se a pesquisa qualitativa
de natureza interpretativa por meio de revisão bibliográfica de produções de au-
tores referenciais na educação profissional, como Kuenzer (1998, 2010), Machado
(2008, 2010), Ramos (2011, 2014), Barato (2004, 2008), Araujo (2008, 2010) Gruber,
Allain; Wollinger (2017) e Wollinger; Allain; Gruber, (2017) com a intenção de iden-
tificar pressupostos metodológicos que auxiliam na educação dos trabalhadores. A
opção pelos autores citados deve-se ao fato de serem referências na área da edu-
cação profissional, sendo que a maioria deles tem uma vasta produção acadêmica
sobre educação profissional, abordando suas diferentes facetas e, dentre elas, a
preocupação com a organização do ensino.
Assim, para apresentar o presente trabalho, optou-se por uma estrutura tex-
tual organizadas em duas seções: a primeira parte, escrita a partir das produções
de Kuenzer (1998, 2010) e Machado (2008, 2010), trata das categorias gerais que
constituem a didática articuladas às práticas formativas da educação profissional e
a segunda seção aborda como os autores apresentam a discussão acerca da didática
para a educação profissional e como têm caracterizado as práticas formativas que
nela são desenvolvidas em suas produções acadêmicas. Por fim, apresenta-se as
considerações finais.
Categorias gerais da didática na educação prossional
Antes de adentrar no tema de abordagem do presente trabalho, impende ex-
plicitar o que se compreende por didática e por educação profissional. Em relação
ao primeiro vocábulo, utilizamo-nos das reflexões de Pimenta (2003, p. 51) que
conceitua a didática como a área da pedagogia que “investiga os fundamentos,
as condições e os modos de realizar a educação, através do ensino”, e de Libâneo
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(1994, p. 16) que a caracteriza como “[...] uma disciplina que estuda os objetivos, os
conteúdos, os meios e as condições do processo de ensino tendo em vista finalidades
educacionais, que são sempre sociais”.
Em relação à educação profissional, tomamos como referência Ferreti (2010,
p. 1) que afirma que o termo educação profissional “refere-se aos processos educati-
vos que têm por finalidade desenvolver formação teórica, técnica e operacional que
habilite o indivíduo ao exercício profissional de uma atividade produtiva” (grifos
nossos). O autor faz referência ao conceito de Militão (2000, p. 133 apud Ferreti,
2010, p. 1), que estabelece diferenciação entre as expressões educação profissio-
nal e formação profissional, pois essa última enfatiza o “saber fazer” enquanto
a primeira valoriza, em tese, “a formação integral do profissional”, o que reflete
diferentes concepções acerca da sua função na sociedade atual.
Demarcados os conceitos fundamentais do trabalho, situamos a discussão so-
bre a existência ou a necessidade de elaboração de uma didática específica para
a educação profissional, tema de pesquisa de Barato (2004, 2008), Ramos (2014),
Araujo (2010), Gruber; Allain; Wollinger (2017) e Wollinger; Allain; Gruber (2017).
Entretanto, outros autores ligados à educação profissional têm contribuído nesse
sentido, explicitando elementos centrais da didática advindos das pesquisas que
realizam no campo da educação e trabalho, como é o caso de Kuenzer (1998, 2010)
e de Machado (2008, 2010) que apontam categorias gerais da didática que podem
contribuir para o esclarecimento do tema.
As pesquisas de Kuenzer, em sua maioria, tratam de temas como as mudanças
ocorridas no mundo do trabalho na transição da base de produção do modelo taylo-
rista/fordista para o novo paradigma tecnológico, o regime de acumulação flexível,
ou seja, a passagem da base eletromecânica para a base microeletrônica, anali-
sando as articulações entre conhecimentos científicos e práticas laborais. Em seus
trabalhos a autora procura estabelecer a relação entre esse cenário e o trabalho
pedagógico, enfocando as relações de trabalho, conhecimento e educação no contex-
to da educação profissional, como podemos verificar em Kuenzer (2003, 2007, 2004)
que analisaremos a seguir a título de exemplificação.
Embora Kuenzer não faça referências a uma pedagogia/didática ou metodolo-
gia da educação profissional, dos resultados das suas pesquisas emergem princí-
pios didáticos que ajudam a direcionar e organizar o trabalho docente na educação
profissional, como ilustra o excerto transcrito a seguir:
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Marilandi Maria Mascarello Vieira, Maria Cristina Pansera de Araújo, Josimar de Aparecido Vieira
Embora, no limite, esta competência só vá ser desenvolvida pelo aluno no transcurso da
prática laboral, não será possível o professor mediar aprendizagens significativas apenas
no plano teórico; ele precisará organizar situações de aprendizagem em que o aluno arti-
cule os conhecimentos à prática laboral, desenvolvendo sua capacidade de análise, síntese,
diagnóstico e solução de problemas. Isto não será possível se o docente não articular conhe-
cimento científico e conhecimento tácito (KUENZER, 2010, p. 509.)
Outrossim, Kuenzer (1998), faz referência a uma “nova pedagogia do traba-
lho”, que se desenvolve no âmbito das forças sociais e produtivas determinadas
pelo mundo do trabalho e que, segundo a autora, auxiliam a compreensão acerca
do que denominou “nova pedagogia escolar”. A autora sintetiza os resultados das
pesquisas analisando categorias fundantes dessa nova pedagogia - os conteúdos, as
formas metodológicas, os espaços e atores educativos e as novas formas de controle
-, que, em última análise, constituem as categorias gerais da didática.
Em relação aos conteúdos, Kuenzer (1998) afirma que não é necessária a in-
clusão de novos conhecimentos para a formação da classe trabalhadora, mas a
democratização do saber socialmente produzido, transformado em saber escolar
1
.
Ela sintetiza:
Os conteúdos são os mesmos: a forma de selecioná-los, organizá-los e trabalhá-los é que é
diferenciada, uma vez que os tratamentos fragmentados por área do conhecimento e que
tomam a memorização como habilidade fundamental, típicos do taylorismo/fordismo, estão
superados (p. 39).
[...] as transformações no mundo do trabalho exigem, mais do que conhecimentos e habi-
lidades demandadas por ocupações específicas, conhecimentos básicos, tanto no plano dos
instrumentos necessários para o domínio da ciência, da cultura e das formas de comuni-
cação, como no plano dos conhecimentos científicos e tecnológicos presentes no mundo do
trabalho e das relações sociais contemporâneas (p. 36).
Relacionado a essa exigência no tratamento do conteúdo, Kuenzer (1998) res-
salta a importância da transformação das formas metodológicas de ensino que, em
linhas gerais, superem a ênfase na memorização de conteúdos, privilegiando o de-
senvolvimento de habilidades cognitivas, tais como “[...] localizar informações, tra-
balhar produtiva e criativamente com elas na construção de soluções para proble-
mas postos pela dinâmica da prática social e produtiva” (KUENZER, 1998, p. 40).
Nessa direção, o papel do professor e da escola é abordado quando trata dos
espaços e atores educativos e afirma que é o engenheiro o novo pedagogo do pro-
cesso pedagógico que ocorre no espaço da fábrica. Que implicações isso traz para
o professor e a sala de aula? Kuenzer (1998) defende a necessidade de a escola ar-
ticular-se com o lócus de produção: o mundo das relações sociais e produtivas. Ela
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Práticas formativas na educação prossional: a emergência de uma didática especíca?
afirma que o novo papel do professor é fazer a mediação entre os alunos e a ciência
na práxis social e produtiva, gerenciando, portanto, o processo de aprender, que
não ocorre mais no âmbito individual, “[...] mas por meio de relações que são sociais
e, portanto, articulam as dimensões individual e coletiva, subjetiva e objetiva, teó-
rica e prática, que caracteriza o trabalho humano enquanto categoria fundante dos
processos de produção do conhecimento” (KUENZER, 1998, p. 41).
Quanto às formas de controle, Kuenzer (1998) concluiu que essa foi a dimen-
são que mais sofreu alteração no espaço produtivo e a nova pedagogia do trabalho
visa ao “desenvolvimento de uma nova subjetividade, que viabilize a internalização
do processo de controle, o estabelecimento do controle inter-pares e a apropriação
dos conhecimentos necessários para que esta participação ativa se realize” (KUEN-
ZER, 1998, p. 41). Assim, a autora defende que a nova pedagogia escolar invista no
contrário, ou seja, “[...] na formação da consciência crítica por intermédio dos novos
conteúdos, métodos, espaços e atores pedagógicos, incorporando novas sistemáti-
cas de avaliação” (p. 41).
Inventariando as produções de Machado, identifica-se que ela aborda as prá-
ticas educativas na educação profissional apresentando duas categorias gerais da
didática, como os conteúdos e princípios metodológicos para o seu ensino.
Ao tratar do ensino médio integrado, Machado (2010) menciona que o currícu-
lo dessa etapa da educação básica é constituído por conteúdos gerais ou básicos e
profissionais ou tecnológicos que, entretanto, não se encontram em polos opostos:
“[...] esta diferenciação não pode, a rigor, ser tomada como absoluta ainda que haja
especificidades que devem ser reconhecidas” (MACHADO, 2010, p. 2). Para a au-
tora (2010), as principais contribuições dos conteúdos básicos para a formação dos
sujeitos são: os fundamentos para uma concepção científica da vida, o desenvolvi-
mento das faculdades cognitivas e capacidades, a autonomia e capacidade para a
autoaprendizagem contínua e crítica, a criatividade, o espírito de inovação e dispo-
sições à versatilidade que os atuais processos produtivos requerem.
Por sua vez, a educação profissional tem, na tecnologia, seu foco fundamental,
a qual Machado (2008, p. 16) define como a ciência transdisciplinar “das atividades
humanas de produção, do uso dos objetos técnicos e dos fatos tecnológicos”, e que
estuda o trabalho humano e suas relações com os processos técnicos. Os conheci-
mentos tecnológicos são referências obrigatórias ao exercício de atividades técnicas
e de trabalho e não podem ser confundidos com saberes empíricos, mas com os
quais esses se relacionam.
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Marilandi Maria Mascarello Vieira, Maria Cristina Pansera de Araújo, Josimar de Aparecido Vieira
Ela afirma não ser mais aceitável a crença que os “conteúdos considerados
gerais não seriam profissionalizantes; isto porque uma sólida formação geral tem
sido reconhecida não só como um requisito de qualificação profissional no atual
mundo do trabalho, como, talvez, o mais importante” (MACHADO, 2008, p. 82).
No que concerne à metodologia, Machado (2010) defende propostas de ações
didáticas integradas que relacionem esses conteúdos tipificados como diferenciados,
pois, segundo a autora, “por razões didáticas, se divide e se separa o que está unido.
Por razões didáticas, também se pode buscar a recomposição do todo. Tudo depende
das escolhas entre alternativas de ênfases e dosagens das partes e das formas de
relacioná-las” (p. 82). Ela sustenta a necessidade de o professor saber contextualizar
esses conteúdos, o que envolve “[...] um processo de construção de conhecimentos,
situado historicamente e socialmente, que provém e se desenvolve em íntima relação
com a prática social” (p. 88) e ainda “dar centralidade à relação teoria e prática,
integrar áreas de conhecimento e desenvolver as capacidades de observação, experi-
mentação e raciocínio” (idem). Nesse sentido, reconhece que o processo educacional
[...] se transforme num processo investigativo, o qual inclui o planejamento, a colocação
em prática de processos pedagógicos ordenados, lógicos e coerentes e a avaliação contínua.
Qualquer que seja ele, este processo não se resume, porém, a procedimentos técnicos e a
sistemas de instruções predefinidas aos quais cabem professores e alunos se adaptarem. Os
conteúdos, métodos, processos, meios e técnicas pedagógicas estão subordinados às finali-
dades do processo educativo. Eles não são, portanto, um mero resultado da racionalidade
do planejamento (MACHADO, 2010, p. 92).
Os espaços educativos de formação para o trabalho também são mencionados
por Machado (2010), que advoga que a escola “precisa atuar com suas fronteiras
ampliadas, pois os relacionamentos com o ambiente externo podem lhe proporcio-
nar diversos benefícios. Sua estabilidade está também vinculada à sua inserção,
relação e envolvimento com a realidade local e regional” (MACHADO, 2008, p. 91).
Explicitadas as categorias gerais da didática articuladas às práticas forma-
tivas da educação profissional expressas nos artigos analisados, a próxima seção
está direcionada a identificar a emergência do debate acerca da elaboração de uma
didática específica para essa modalidade de ensino.
A didática da educação prossional como campo em construção
A primeira dificuldade para elaborar uma possível didática para a educação
profissional está ligada à resposta que é possível formular para a seguinte questão:
que didática é requerida para qual educação profissional?
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Práticas formativas na educação prossional: a emergência de uma didática especíca?
Essa dificuldade está ligada ao fato que as opções que se faz para promover
a formação dos trabalhadores – como a seleção dos conteúdos e metodologia de
ensino, por exemplo –, não são neutras, mas reveladoras de um projeto político e
de uma concepção de educação que se materializam por meio delas, já que, numa
sociedade capitalista como a brasileira, segundo Ramos (2011, p. 45):
A formação da classe trabalhadora em suas dimensões tanto geral e cultural quanto especí-
fica para o exercício da vida produtiva, está no plano de disputa por hegemonia pelas clas-
ses burguesa e trabalhadora. Na perspectiva da primeira, a educação dos trabalhadores
subsume-se à necessidade do capital em reproduzir a força de trabalho como mercadoria.
Ao contrário, a classe trabalhadora disputa um projeto educativo que possibilite sua forma-
ção como dirigentes visando à superação de sua dominação pela classe antagônica.
Assim, vários autores apontam, na história da educação brasileira e profissio-
nal, a disputa entre dois projetos de educação profissional, que exemplificamos com
o excerto de Araujo (2008, p. 55).
[...] o pragmático, que busca subordinar a educação aos interesses imediatos da realidade
dada, e o de uma pedagogia da práxis, que se orienta para um tipo de formação compro-
metida com a construção de um futuro mais justo e que busca um modelo de formação
que favoreça os processos de qualificação dos trabalhadores. Estes projetos se estruturam
respectivamente sobre uma filosofia da educação com bases no pragmatismo e sobre os
princípios da filosofia da práxis (Grifos nossos).
A existência desses dois projetos, na educação profissional, se materializa em
pedagogias diferenciadas: de um lado, a formação pragmática de Roberto Mange,
baseada no Taylorismo e na aplicação das séries metódicas de ensino e, posterior-
mente, como herdeira dessa tradição, a pedagogia das competências e, de outro
lado, a educação politécnica
2
, termo esboçado, inicialmente, por Karl Marx, em
meados do século XIX. Em torno dos dois projetos educacionais, gravitam duas
possibilidades de construção da didática da educação profissional já que seus ele-
mentos constitutivos – finalidades/objetivos educacionais, conteúdos curriculares,
métodos de ensino e avaliação – se estruturam de forma diversa, de acordo com
projeto que o professor se propõe a efetivar.
Feita essa advertência, passa-se a analisar a pesquisa de Araujo (2010), que
partiu da premissa da necessidade de elaboração de uma didática especial para en-
sinar os saberes profissionais, dada as suas especificidades. O projeto de pesquisa
“As práticas formativas em educação profissional do estado do Pará: em busca de
uma didática da educação profissional” (2010, p. 2), teve como propósito identificar
a existência de uma didática da educação profissional e foi orientado, em síntese,
por dois objetivos centrais:
194
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Levantar, organizar e sistematizar a produção brasileira da área de tra-
balho e educação que reflita sobre propostas e estratégias formativas em
educação profissional;
Analisar as estratégias formativas de trabalhadores efetivadas nas institui-
ções sediadas na Região Metropolitana de Belém.
Para a consecução do primeiro objetivo analisou os artigos publicados na Revis-
ta Trabalho e Educação, entre os anos 2000 a 2006, e o Boletim Técnico do SENAC
(2000 a 2008), e em trabalhos apresentados nas reuniões da ANPED no período de
2000 a 2007 para neles identificar as características da didática da educação pro
-
fissional. Foram elencados, como categorias de análise, os elementos constituintes
da didática: finalidades, conteúdos, métodos de ensino e de avaliação da educação
profissional que foram analisados a partir dos pressupostos do materialismo histó
-
rico. A pesquisa apontou, nos trabalhos analisados, a existência de duas concepções,
a pragmática e a filosofia da práxis, que Araujo (2010, p. 86, p. 112 e p. 156) chamou
de Pedagogia do Capital e Pedagogia do Trabalho e, como exemplo, reproduzimos as
suas conclusões quanto às finalidades da educação profissional:
O discurso da formação do cidadão produtivo, da educação para a empregabilidade e da
referência fundamental no mercado se coloca enquanto elemento discursivo da perspectiva
pragmática, enquanto o homem amplamente desenvolvido serve como principal referência
para a pedagogia da práxis (ARAUJO, 2008, p. 56).
O segundo objetivo de Araujo (2010, p. 167) foi o de “identificar, na realidade
paraense, elementos das práticas pedagógicas dos professores de diferentes insti-
tuições de educação profissional que permitissem uma caracterização (e posterior
análise) acerca de uma didática da educação profissional”. Para tanto, entrevistou
professores de quatro instituições de EP do Pará e os dados foram categorizados
da mesma forma que os artigos. A conclusão também se repetiu, pois identificou
finalidades/objetivos, conteúdos e métodos de ensino e de avaliação ligados aos dois
projetos políticos. Araujo (2010, p. 208) conclui que: “[...] mesmo questões técnicas
da didática são definidas, explicadas e entendidas em função dos projetos políti-
co-filosóficos aos quais elas se assentam e se articulam. Não há forma de ver a
dimensão pedagógica dissociada da dimensão política”.
Também se buscou em Ramos (2014), indícios de existência de uma didática
da educação profissional. Embora a autora não use essa denominação – seu objeti-
vo é elucidar como a filosofia da práxis pode contribuir para a formação dos traba-
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Práticas formativas na educação prossional: a emergência de uma didática especíca?
lhadores na escola – afirma que o planejamento e execução da proposta pedagógica
são orientados pelas perguntas: ensinar por quê? (finalidades/objetivos), o que?
(conteúdos), como? (metodologia e avaliação), o que inclui os elementos constituin-
tes da didática. Segundo ela, as respostas a essas indagações são divergentes em
função do projeto político a que se está a serviço, mas ela toma como balizadora da
formação de trabalhadores a filosofia da práxis e a pedagogia histórico-crítica e, a
partir delas, aponta os princípios, finalidades, conteúdos e metodologias de ensino
da educação profissional.
Quanto aos princípios, Ramos (2014) referencia o trabalho como princípio edu-
cativo, a formação omnilateral e a formação politécnica. Em relação às finalidades,
defende que deveria ser a formação profissional politécnica, a escola unitária que,
a princípio, não inclui a profissionalização. Entretanto, compreende ser essa uma
necessidade conjuntural do Brasil e, por isso, argumenta que a adoção de uma polí-
tica consistente de profissionalização no ensino médio “[...] desde que condicionada
à concepção de integração entre trabalho, ciência e cultura, pode ser a travessia
para a organização da educação brasileira com base no projeto de escola unitária,
tendo o trabalho como princípio educativo” (RAMOS, 2014, p. 210).
No que concerne aos conteúdos e métodos da educação profissional, aponta os
conhecimentos científicos e os de ordem ética e estética, que conformam o elemento
cultural dos grupos sociais, traduzidos em teorias e conceitos. Porém, tomando
como referência a dialética marxista, adverte que esses têm a totalidade como exi-
gência metodológica, pois
[...] teorias, conceitos e fatos isolados são abstrações; são momentos artificialmente sepa-
rados do todo. Eles só adquirem concreticidade quando inseridos no todo correspondente.
Assim, o processo cognoscitivo da realidade é um movimento circular em que a investigação
parte dos fatos e a ele retorna, num movimento de interpelação, interpretação, avaliação e
crítica dos fatos. Os conteúdos de ensino são, portanto, conceitos explicativos de fenômenos
e relações que constituem a totalidade concreta (RAMOS, 2014, p. 211).
Para a autora, o desafio metodológico é articular as particularidades – expres-
sas nos processos produtivos objetos da formação profissional com a totalidade,
que se refere às relações sociais próprias ao modo de produção capitalista. Ainda
no campo metodológico, defende que os processos de ensino se baseiem na categoria
da práxis, tomando o sujeito que aprende e as suas atividades como elementos cen-
trais “[...] pela proposição de desafios, problemas e/ou projetos, desencadeando, por
parte do aluno, ações resolutivas, incluídas as de pesquisa e estudo de situações, a
elaboração de projetos de intervenção, dentre outros” (RAMOS, 2014, p. 213).
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Destarte, Barato (2004, 2008) procurou identificar a existência de uma didá-
tica para a educação profissional e sua abordagem é especificamente em relação
ao ensino do saber técnico. Ele reporta a existência de uma tipologia de saberes –
fatos, conceitos, princípios e processos –, e defende que o ensino de cada um deles
demanda formas diferenciadas de tratamento: os três primeiros podem ser ensina-
dos no plano discursivo, enquanto os processos exigem demonstração. Para o autor,
a didática utilizada na educação profissional ainda é acentuadamente semelhante
à da educação geral, que dá conta satisfatoriamente do ensino de fatos, conceitos e
princípios, mas não é adequada para o ensino de processos, que envolvem a execu-
ção de técnicas profissionais e, por isso, requerem tratamento didático específico.
Barato (2004, 2008) não faz referência às concepções e finalidades da educação
profissional, mas aborda os conteúdos e métodos de ensino. No que concerne aos
conteúdos, afirma que há a valorização do conhecimento científico, em detrimento
do empírico, ou seja, a educação profissional desvaloriza os saberes constituídos no
e pelo trabalho.
Barato (2008) trata dos métodos de ensino e, nesse sentido, aponta como pro-
blema central da didática da EP a falsa dicotomia teoria e prática, em que o saber
técnico – que chama de “saber como” – é visto como prática e essa precisa estar
fundada em teorias consistentes – o “saber que”. Ele explica: “O saber como é cons-
tituído por processos de execução que dão fluência à ação. O saber que é constituído
por proposições que explicam as coisas, define-as, estabelecem critérios de verdade.
Cada uma dessas dimensões tem status epistemológico próprio” (BARATO, 2008,
p. 9, grifos do autor). Via de regra, segundo ele, a teoria é ensinada por meio da
linguagem, enquanto o aprendizado da prática se efetiva pela mediação do corpo,
com explorações visuais e táteis. A concepção predominante na educação profissio-
nal é de que:
Teoria é verbo, explicação, discurso sistematizado. Qualquer experimentação, execução,
manipulação está fora do jogo. Depois de bem assentada a teoria, supõe-se que os alunos
estarão preparados para aplicá-la. E a aplicação constitui a prática, um fazer guiado pela
teoria. Uma prática sem teorização prévia é um ato desprovido de inteligência. Em si mes-
mo, o fazer não é inteligente (BARATO, 2008, p. 8).
Entretanto, Barato (2004, p. 53) discorda dessa concepção por defender que
teoria e prática são duas instâncias distintas: a prática não é a aplicação da teoria,
o saber fazer, “saber como” exige processos cognitivos diferentes do “saber que”:
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Práticas formativas na educação prossional: a emergência de uma didática especíca?
Ao que tudo indica, as aprendizagens que demandam execução engajam os aprendizes em
modos de pensar necessários para que se constitua um conhecimento que represente o
fazer. Falar e fazer [...] requerem diferentes formas de pensar. [...] o fazer demanda um
conhecimento específico, próprio, em vez de ser aplicação de um conhecimento que dele
pode ser desvinculado.
Para o autor, o reconhecimento dessas diferenças entre aprender a teoria e a
prática tem implicações para o ensino porque:
[...] explicações bem estruturadas não são garantia de execuções fluentes e corretas. Estas
últimas requerem uma aprendizagem própria, pois o saber que lhes é intrínseco não é
aplicação da teoria, mas uma dimensão de conhecimento cuja base é um entendimento
[geralmente não-verbal] da ação (BARATO, 2008, p. 10).
A exigência de competências operacionais básicas da profissão, portanto, ra-
tifica a importância das aulas práticas em cursos técnicos, que tem como um dos
seus objetivos o desenvolvimento de habilidades para o exercício de práticas pro-
fissionais. Por isso, Barato (2004), embora advirta que não se propõe a esmiuçar
prescrições sobre como ensinar processos, apresenta uma sequência de passos para
esse ensino: 1. Apresentação sintética do processo; 2. Análise de passos e opera-
ções; 3. Demonstração comentada; 4. Praticagem dos aprendizes; 5. Avaliação.
Ele reporta que esse procedimento não dispensa a “teoria” porque fatos, con-
ceitos e princípios podem ajudar a realização do processo e são retomados na etapa
da análise dos passos e operações. Em suas palavras: “[...] na aprendizagem de um
processo (saber como) certas explicações relacionadas com ciência (saber que) po-
dem clarear determinada decisão ou indicar o sentido de uma operação. Em muitas
construções teóricas o fazer precede a teorização e é necessário para que ela ocorra”
(BARATO, 2008, p. 9). Como se constata, o autor aponta indícios sobre a aprendi-
zagem dos saberes técnicos, especialmente processos.
Por fim, analisamos os trabalhos de Gruber; Allain; Wollinger (2017) e Wollin-
ger; Allain; Gruber (2017) que buscam identificar uma epistemologia da educação
profissional, com base nos aportes teóricos da didática profissional francesa, para a
criação de uma didática da educação profissional. Os autores, tomando como referên
-
cia o trabalho de Pastré; Mayen; Vergnaud (2006), situam a gênese dessa corrente
teórica na França na década de 1990 a partir da análise do trabalho e que tem por
objetivo formar as competências profissionais, criando uma aproximação entre a for
-
mação profissional e a atividade de trabalho. Essa didática da educação profissional
está apoiada nos princípios que norteiam a educação de adultos e em três correntes
teóricas: a psicologia do desenvolvimento, a ergonomia cognitiva e a didática.
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No tocante à educação de adultos, a didática profissional francesa toma como
referência a engenharia de formação, que segundo Pastré; Mayen; Vergnaud (2006,
p. 2),
É um campo de práticas que consiste em construir dispositivos de formação correspon-
dentes a necessidades identificadas para um dado público no âmbito de seu ambiente de
trabalho. A formação escolar tende a descontextualizar as aprendizagens. A engenharia
de formação vai insistir pelo contrário no contexto social no qual deve efetuar-se a apren-
dizagem de adultos em formação. Pois estes adultos são antes de mais nada pessoas que
trabalham e, quando resolvem fazer uma formação, esta é habitualmente concebida com
base no seu trabalho, e não a partir de recortes disciplinares, os quais geralmente fazem
pouco sentido para eles.
A ergonomia cognitiva toma como referência Leplat (1997), a psicologia do
desenvolvimento fundamenta-se nos trabalhos de Piaget e Vygotsky e na didática,
toma como aporte teórico os estudos de Guy Brousseau e de Régine Douady.
Gruber; Allain; Wollinger (2017, p. 6) identificam três orientações que susten-
tam a didática profissional francesa:
1) a análise das aprendizagens não pode estar separada da análise da atividade
dos atores, pois há uma continuidade profunda entre agir e aprender de e em sua
atividade; 2) para analisar a formação das competências profissionais é preciso
observá-las primeiro nos locais de trabalho; 3) vale a pena utilizar a teoria da con-
ceituação na ação para compreender como se articulam atividade e aprendizagem
num contexto de trabalho.
Essas orientações indicam a necessidade de ampliar os estudos acerca da
natureza da aprendizagem no processo do trabalho cotidiano para, a partir dela,
organizar as práticas educativas na educação profissional. Os autores ratificam o
pensamento de Pastré (2002), que defende não ser possível formar um profissional
sem antes recorrer à análise do trabalho e à compreensão da cognição do sujeito
trabalhador. Esse parece ser o maior desafio para a elaboração da didática da edu-
cação profissional, pois como bem explicitou Oliveira (2015, não paginado)
O que nos falta muito é conhecer realmente o processo de trabalho, tal como ele ocorre nas
áreas técnicas. Quer dizer, há pouco estudo sobre o trabalho cotidiano, por exemplo, saber
como o mecânico, o eletricista, a pessoa que trabalha com a informática, como ocorre a
relação desse sujeito com o objeto de conhecimento e de trabalho dele. Não há estudos sobre
como o sujeito aprende determinada atividade relativa a uma área técnica propriamente
dita, sobre essa construção do conhecimento do profissional na prática nas áreas técnicas.
Então, a forma como o professor acaba trabalhando em sala de aula é de dizer assim: “faz
primeiro isso, depois isso, depois isso”. O que ele faz? Ele passa a ensinar as etapas que ele
cumpre lá na atividade prática. Passa a ensinar para os seus alunos isso. Então entendo
que quando essas pesquisas – acho que a gente tem que incentivar pesquisas mesmo –, pas-
sarem a ter um corpo mais denso, isso vai nos ajudar na docência da educação profissional.
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Tomando como referência as categorias da didática, a exemplo do que se bus-
cou nos demais trabalhos analisados, partiu-se da explicitação do conteúdo da edu-
cação profissional. Gruber; Allain; Wollinger (2017) partem do pressuposto que a
educação profissional se distingue dos demais níveis e modalidades de ensino por-
que trata da formação para o trabalho e essa, por sua vez, se relaciona ao exercício
social da técnica. A concepção de técnica é tomada de forma mais alargada que
o domínio de um saber fazer, mas como [...] uma intervenção humana no mundo
para produzir a sua existência. Essa produção da existência refere-se tanto às suas
condições materiais de vida de ser humano, quanto à constituição de seu ser social,
cultural, identitário, entre outras dimensões envolvidas no Trabalho (GRUBER;
ALLAIN; WOLLINGER, 2017, p. 4).
Segundo os autores, é ingênuo pensar o conhecimento técnico da educação pro-
fissional como aplicação do conhecimento teórico, de que a tecnologia é a aplicação
da ciência. Eles exemplificam essa posição:
As técnicas da eletrotécnica, enfermagem, química, radiologia, etc., envolvem saberes, ha-
bilidades, atitudes e valores que podem ter (ou não) origem nas disciplinas científicas, mas
que se constituem numa área técnica, numa tradição ou corporação profissional. As técni-
cas se conectam e se apoiam em conhecimentos científicos diversos, tanto das chamadas
ciências “exatas” como das “humanas”, mas suas especificidades extrapolam as ciências.
Sua riqueza aparece nos currículos de cursos técnicos e resiste à crença em uma formação
científica genérica que as englobaria (WOLLINGER; ALLAIN; GRUBER, 2017, p. 10).
Citando Tourmen et al. (2017, p. 18 apud WOLLINGER; ALLAIN; GRUBER,
2017, p. 9), os autores analisados concluem que “conhecimento e ação interagem: a
ação não é vista como uma aplicação do conhecimento formal, nem como separada
dele. Não existe ação sem conceitos, e os conceitos são construídos e usados em
ação.”
Do ponto de vista metodológico, essa ideia implica na compreensão de que a
didática de educação profissional tem por objeto o processo de intervenção e exer-
cício social do educando., como afirma os autores, “[...] tanto no que diz respeito
ao planejamento, às estratégias de ensino ou à avaliação, o conhecimento verbal/
teórico deixa de ser o centro das atenções e passa a ser elemento do processo”
(GRUBER; ALLAIN; WOLLINGER, 2017, p. 5). É a reflexão orientada pela ação
sobre o mundo e, mais objetivamente, sobre os processos e técnicas que, na educa-
ção profissional, não se esgota no plano discursivo.
200
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Considerações nais
O propósito deste trabalho foi identificar como autores referenciais da área da
educação profissional apresentam a discussão acerca da didática para essa moda-
lidade de ensino e como têm caracterizado as práticas formativas, em suas produ-
ções acadêmicas, que nela são desenvolvidas. Assim, ao analisar os trabalhos dos
autores identificou-se que Ramos (2011) e Araujo (2008) apontam para a existência
de duas pedagogias que representam posições diferenciadas quanto às finalidades
da educação profissional: a pedagogia pragmática e a educação politécnica. Assim,
tão importante quanto explicitar o que caracteriza essa didática é compreender a
que/quem ela se destina.
Quando tratam da didática na educação profissional, Kuenzer (1998, 2010)
e Machado (2008, 2010) apontam os seus elementos centrais, como os conteúdos,
as formas metodológicas, o espaço educativo e a avaliação. Defensoras do ensino
técnico integrado ao ensino médio, as autoras reafirmam a importância desses ele-
mentos para a formação geral dos educandos, articulando-os às exigências para a
formação profissional.
Dentre os autores referenciais que tratam de forma mais específica a didática
da educação profissional estão Ramos (2011, 2014), Barato (2004, 2008), Araujo
(2008, 2010) Gruber, Allain; Wollinger (2017) e Wollinger; Allain; Gruber, (2017)
que procuram explicitar os elementos que podem constituir uma didática específica
para a educação profissional.
Embora os trabalhos analisados demonstrem a necessidade de elaboração de
uma didática específica para a educação profissional – posto que ela se diferencia
dos demais níveis e modalidade de ensino – e apontem elementos significativos
para a sua constituição, não se pode advogar a sua existência, já que faltam pes-
quisas que, incidindo sobre os processos de produção e de aprendizagem dos sabe-
res técnicos, especialmente dos processos operacionais, subsidiem a formulação de
proposições para elaboração dessa didática. Esse é um tema que pode constituir
novos estudos nesta área.
Notas
1
Referimo-nos a saber escolar na perspectiva apontada por Chevallard (1998) que identificou três tipos de
saberes: saber sábio (ou de referência ou científico), o banalizado (do cotidiano) e o ensinável (o escolar).
O primeiro é elaborado pelo grupo dos especialistas que, por meio da investigação, procura respostas para
problemas concretos. Mas esse saber não pode ser transposto para o currículo escolar com as mesmas ca-
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racterísticas com que foi produzido, ou seja, precisa ser transformado para tornar-se saber ensinável que,
por sua vez, não pode se reduzir a versões simplificadas do conhecimento científico, que lhe deu origem
e transferidas para a sala de aula. Ele deve manter certa semelhança com o original, mas adquire signi-
ficado diverso de acordo com o contexto escolar no qual será ensinado. Para tornar-se objeto de ensino,
portanto, o saber sábio precisa ser deslocado do seu contexto de produção, simplificado, fragmentado em
unidades de estudo que comporão o currículo e que serão ensinadas num tempo pré-determinado, o tempo
escolar.
2
Tomamos como referência Saviani (2007, p. 10) para quem “Politecnia significa, aqui, especialização como
domínio dos fundamentos científicos das diferentes técnicas utilizadas na produção moderna”. A educação
politécnica, portanto, refere-se àquela que se contrapõe à formação profissional como adestramento, pre-
paração para o desempenho de determinadas funções ou atividades sem a compreensão dos fundamentos
dessas atividades e sua relação com o mundo do trabalho.
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A concepção de passado de crianças no 5º ano
A concepção de passado de crianças no 5º ano
The past conception of children in the 5th grade
La concepción pasada de los niños en el quinto grado de la escuela primaria
Maria Cristina Dantas Pina
*
Nallyne Celene Neves Pereira
**
Resumo
O objetivo principal deste estudo foi a compreensão do conceito de passado em crianças que estudam no 5º
ano, do ensino fundamental, a partir dos conhecimentos históricos que são trabalhados em sala de aula. Os
sujeitos da pesquisa são crianças matriculadas no Centro de Educação Municipal Prof. Paulo Freire, localizado no
município de Vitória da Conquista e três professoras que lecionam nas turmas do 5º Ano. A pesquisa se insere
nas discussões da Educação Histórica, com o foco na aprendizagem histórica escolar, compreendendo que os
conceitos históricos que são trabalhados nessa fase são importantes para sustentar a aprendizagem durante
o percurso vivenciado na escola e nas próprias relações que serão estabelecidas por essa criança ao longo da
vida cotidiana. Nesse sentido, nos aproximamos da perspectiva defendida por Hilary Cooper (2012), Lee (2003),
Oliveira (2006) no tocante à compreensão das ideias históricas e temporalidade apresentadas pelas crianças nos
anos iniciais de escolarização. Adotamos a pesquisa qualitativa como abordagem metodológica e a Análise de
Conteúdos para o tratamento dos dados. Assim, buscamos por meio deste estudo adentrar nos signicados so-
bre o passado e a história, construídos pelas crianças no espaço escolar, relacionando com o processo de ensino
e aprendizagem da disciplina História. Vericamos que o passado elaborado por elas não as leva a desenvolver
a empatia histórica, o que permitiria uma aprendizagem histórica mais signicativa.
Palavras-chave: Educação Histórica. Anos Iniciais. Passado. Aprendizagem Histórica.
Abstract
The main objective of this study has been the understanding of concept of past in children who study in the 5th
grade of Elementary School, from historical knowledge which is worked in the classroom. The research subjects
are children enrolled at Prof. Paulo Freire Municipal Education Center, located in the city of Vitória da Conquista
and three teachers who teach in the 5th grade classes. The research inserts in discussions of Historical Educa-
tion, with the focus in historical school learning, understanding the historical concepts which are worked in
that phase are important to sustain the learning during the course lived in school and in the own relations that
will be established by that child to throughout everyday life. In that sense, we’ve approached the perspective
*
Doutora em História da Educação pela Universidade de Campinas (Unicamp, Brasil). Com estágio pós-doutoral em
História pela Universidade Estadual de Londrina (UEL, Brasil). Professora Titular na área de Metodologia do Ensino de
História e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb, Brasil).
ORCID https://orcid.org/0000-0003-1787-8541. E-mail: maria.pina@uesb.edu.br
**
Mestre em Educação pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb, Brasil). Professora de História da rede
básica de ensino do Estado da Bahia. ORCID https://orcid.org/0000-0002-1116-3361. E-mail: nannycel@gmail.com
Recebido em 21/10/2018 – Aprovado em 04/06/2019
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i1.10582
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Maria Cristina Dantas Pina, Nallyne Celene Neves Pereira
defended by Hilary Cooper (2012), Lee (2003), Oliveira (2006) regarding the understanding of historical ideas
and temporality presented by children in the early years of schooling. We’ve adopted qualitative research as a
methodological approach and Content Analysis for data treatment. Thus, we’ve sought through this study to
enter the meanings about the past and history, built by children in school space, relating to teaching and lear-
ning process of History subject. We’ve found their past does not lead them to develop historical empathy, which
would allow more meaningful historical learning.
Keywords: Historical Education. Early years. Past. Historical learning.
Resumen
El objetivo principal de este estudio fue la comprensión del concepto del pasado en los niños que estudian en
el quinto grado de la escuela primaria, a partir del conocimiento histórico que se trabaja en el aula. Los sujetos
de investigación son niños matriculados en el Centro de Educación Municipal Prof. Paulo Freire, ubicado en la
ciudad de Vitória da Conquista, y tres maestros que enseñan en las clases de quinto grado. La investigación se
inserta en las discusiones de la Educación Histórica, con el foco en el aprendizaje escolar histórico, entendiendo
que los conceptos históricos que se trabajan en esta fase son importantes para mantener el aprendizaje durante
el curso vivido en la escuela y en las propias relaciones que este niño establecerá para a lo largo de la vida co-
tidiana. En este sentido, nos acercamos a la perspectiva defendida por Hilary Cooper (2012), Lee (2003), Oliveira
(2006) con respecto a la comprensión de las ideas históricas y la temporalidad presentada por los niños en los
primeros años de escolaridad. Adoptamos la investigación cualitativa como enfoque metodológico y análisis de
contenido para el tratamiento de datos. Por lo tanto, buscamos a través de este estudio ingresar los signicados
sobre el pasado y la historia, construidos por los niños en el espacio escolar, relacionados con el proceso de
enseñanza y aprendizaje de la disciplina Historia. Encontramos que su pasado no los lleva a desarrollar empatía
histórica, lo que permitiría un aprendizaje histórico más signicativo.
Palabras-clave: Educación histórica. Primeros años. Pasado. Aprendizaje histórico.
A disciplina História permeia todo o percurso escolar do estudante até a con-
clusão do Ensino Médio. Compreende-se, portanto, que o conhecimento produzido
durante esse percurso é fruto de um processo contínuo de aprendizagem iniciada
ainda na Educação Infantil e que ao mesmo tempo, busca realizar uma aproxima-
ção de crianças e adolescentes ao conhecimento histórico. O contato inicial com
a disciplina se dá nos Anos Iniciais, o que nos leva a refletir sobre quais saberes
históricos precisam ser desenvolvidos nessa etapa de escolarização e que vão sus-
tentar a aprendizagem histórica nas etapas escolares subsequentes e nas próprias
relações que serão estabelecidas por essa criança ao longo da vida cotidiana. Nesse
sentido, o presente texto apresenta uma reflexão sobre como a criança pensa e
aprende o conhecimento histórico, especificamente quanto à noção de passado, nos
Anos Iniciais, a partir dos resultados de uma pesquisa realizada em três turmas do
5º ano do Ensino Fundamental, com o total de 57 crianças, na faixa etária de 10 a
12 anos de idade, em uma escola da rede municipal de Vitória da Conquista- BA.
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A concepção de passado de crianças no 5º ano
Segundo Maria Borges e Jezulino Braga (2006), o importante no ensino da
disciplina nos Anos Iniciais é a construção do conceito de História para essas crian-
ças, uma vez que ele precisa ser compreendido como o produto da ação de diversos
grupos e não de um indivíduo ou grupo isolado. E nesse processo de construção é
preciso levar em consideração a relação que a criança estabelece com alguns con-
ceitos históricos e, portanto, como ela compreende a História.
A compreensão sobre a aprendizagem dos conceitos históricos leva em conside-
ração a distinção entre conceitos históricos substantivos e os conceitos de segunda
ordem,
Os conceitos históricos substantivos são específicos da História e estão mais vinculados
às informações históricas, por exemplo: Revolução Francesa, Feudalismo, Renascimento,
Guerra de Canudos, Revolução Industrial, etc.
Os conceitos de segunda ordem são constitutivos da cognição histórica, isto é, dizem res-
peito aos fundamentos teóricos e metodológicos da História, à natureza do conhecimento
histórico, entre outros: explicação histórica, fontes e evidências, consciência histórica, in-
ferência, imaginação histórica, interpretação, narrativa, etc. Tais conceitos também são
ligados à noção temporal, como mudança, permanência, evolução e transição (LEE, 2001
apud RAMOS, 2012, p. 10).
Embora em sala de aula o professor priorize, na maioria das vezes, o trabalho
com os conceitos substantivos, uma vez que esses estão prescritos nos programas
curriculares, são, como afirma Peter Lee (2001), os conceitos de segunda ordem
ou também denominado de meta-histórico, os elementos fundamentais para que
o estudante consiga compreender a natureza do pensamento histórico. Na pers-
pectiva de Lee (2001), a compreensão sistemática dos conceitos substantivos e dos
conceitos de segunda ordem dará o ritmo da aprendizagem histórica. Ao mesmo
tempo, o autor alerta para a importância que é preciso dar às ideias que as crian-
ças possuem sobre os conceitos que constituem a natureza histórica, pois uma vez
apropriadas de forma errada será difícil desconstruí-las
. Nas palavras do autor,
“é importante investigar as idéias das crianças sobre estes conceitos, pois
se tiverem idéias erradas acerca da natureza da História elas manter-se-ão
se nada fizer para as contrariar”
(LEE, 2001 apud GERMINARI, 2011, p. 58).
A pesquisa centrou no estudo sobre os conceitos de segunda ordem que devem
ser trabalhados nos Anos Iniciais, considerados aqui, como importantes para a
compreensão da natureza histórica nos níveis seguintes. Escolheu-se, dentre os
conceitos de segunda ordem, o conceito de passado construído pelas crianças pelo
entendimento de que o conhecimento histórico é produzido dentro de uma perspec-
tiva temporal. Outro elemento que justifica a escolha pelo estudo com crianças é
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Maria Cristina Dantas Pina, Nallyne Celene Neves Pereira
por se aproximar do pensamento de Hilary Cooper (2012) ao defender que a criança
possui uma percepção de passado e, portanto, capacidade de aprender História.
A compreensão da aprendizagem histórica das crianças perpassa pelo entendi-
mento da relação que estas estabelecerão com a História, com as pessoas e objetos
do passado. Nesse sentido, nos propomos a investigar a aprendizagem histórica no
ambiente escolar, entendido aqui, como um dos diversos espaços onde esses saberes
históricos são construídos e em razão disso, a pesquisa dialogou com as professoras
e os estudantes do 5º ano do Ensino Fundamental.
Diálogo com as professoras
As reflexões sobre a aprendizagem histórica de crianças nos levaram a dialo-
gar com as professoras que lecionam nas turmas investigadas. Esse diálogo surge
da perspectiva de compreender a percepção do docente em relação à disciplina His-
tória e pelo entendimento que a construção do conceito de passado pelas crianças
na escola se relaciona em algum nível com a concepção de passado e de História
adotadas pelas professoras.
De acordo com Marta Margarida de Andrade Lima (2013), em sua pesquisa
sobre os saberes docentes que atuam nos Anos Iniciais, os professores exercem a
função de orientar a relação entre a história ensinada e a formação para a cidada-
nia das crianças. Na definição da autora,
[...] as professoras dos anos iniciais potencializam práticas pedagógicas que inserem as
crianças no universo do conhecimento histórico, ao trabalharem com conteúdos, noções
e conceitos deste campo, com a intenção formativa e a adequação pedagógica necessárias
para que estas compreendam e reflitam a respeito das experiências humanas através dos
tempos, possibilitando-as um lastro de desenvolvimento de capacidades para apreender
e dominar informações históricas, bem como para analisá-las, interpretá-las e narrá-las
(LIMA, 2013, p. 64).
Os professores, portanto, realizam um papel fundamental no processo de
intermediação entre os saberes acadêmicos – aqui compreendidos como aqueles
que são resultado das pesquisas realizadas dentro das Universidades e que vão
renovando o conhecimento histórico – e o saberes escolares – entendidos como os
saberes oriundos da prática pedagógica. Sendo assim, conhecer a compreensão do
passado perpassa pelo olhar atento sobre a voz das professoras, pois como destaca
Marta Margarida Lima (2013), um dos aspectos centrais da história ensinada nos
Anos Iniciais é tornar o passado inteligível para as crianças.
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A concepção de passado de crianças no 5º ano
Um dos aspectos centrais da história ensinada nos anos iniciais é, portanto, tornar inteligí-
vel para as crianças a invocação do passado, na construção interpretativa sobre o que, por
que e como as pessoas construíram esses diferentes tempos (LIMA, 2013, p. 178).
Blanco Nieto (1996 apud SANTOS, 2013, p. 160) afirma a importância sobre o
estudo das ideias dos professores para compreender os elementos que constituem e
dirigem a prática pedagógica. A relação que o professor estabelece com o passado,
seja ele formado em História ou não, segundo Freitas (2010), é construído tanto no
espaço acadêmico quanto em outros espaços por eles vivenciados. Logo, compreen-
demos que as ideias e concepções que foram forjadas ao longo do tempo e do percur-
so formativo desse profissional serão norteadoras da sua prática em sala de aula.
Dialogamos com as três professoras regentes das turmas investigadas. Elas
atuam há mais de duas décadas nas turmas dos Anos Iniciais, possuem formação
inicial em Magistério, Nível Superior em Pedagogia e Normal Superior além de
especialização em Psicopedagogia. Utilizamos como instrumento investigativo a
entrevista semiestruturada com objetivo de perceber a concepção de passado, o
lugar que a disciplina História ocupa na sala de aula e a importância atribuída
por elas em ser trabalhada com as crianças dos Anos Iniciais. Em outro momento,
realizamos observação das aulas de História.
O passado aparece nas falas das professoras como algo necessário para a com-
preensão do presente. Evidenciam uma compreensão do passado como algo que é
parte do presente, mas que ao mesmo tempo é constituído de diferenças. O passado
possui uma relação muito tênue com o presente, pois este é “o mundo para qual
abro meus olhos é inequivocamente presente” (OAKESHOTT, 2003, p. 51). Suas
falas demonstram que somente pelo estudo do passado é que compreendemos o
presente. Essa percepção aproxima da compreensão de Oakeshott (2003) ao definir
que os elementos que surgem no presente qualificam o passado.
A minha visão e eu trabalho com meu aluno da seguinte maneira: pra criança entender o
contexto atual, a conjuntura atual se faz necessário que faça um estudo, uma retrospectiva no
passado (Profa. Daniela).
Observamos que as professoras identificam que o estudo sobre o passado assu-
me a função de ser um orientador das ações no presente. Suas falas são permeadas
de questionamentos sobre o “como era antes e o agora”. Nesse sentido, no olhar
das professoras, compete à disciplina História ser formadora de um sujeito crítico.
Aqui, o saber histórico escolar assume um aspecto formativo, pois assume o caráter
de buscar nas experiências do passado os elementos que vão permitir uma melhor
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interpretação do presente. A ausência da compreensão desse passado e de uma
abordagem crítica pode, portanto, ser comprometedor na formação do sujeito.
Eu só vou poder formar um cidadão crítico se ele entender o passado, conseguir entender o
atual, o momento atual, para ele poder ter uma visão que rumo a História pode tomar (Profa.
Vitória).
As falas das professoras apontam para a concepção de História e de passado
que elas constituíram ao longo de suas vidas. O passado visto como acontecimento
vivido, que é causa do presente e fundamental para ações de mudanças no presente
e orientação para o futuro. Um passado no sentido prático, como denomina Oake-
shott (2013), de modo que a relação passado e presente é vista como necessária e
como contrapartes lógicas.
Por outro lado, se o que eu percebo é um homem que perdeu uma de suas pernas e a subs-
tituiu por uma de madeira, então o presente foi qualificado pelo passado. Essa consciência
do passado é evocada não por negligenciar-se o presente, mas por uma leitura que evoca
o passado, expresso na palavra “perdeu” (OAKESHOTT, 2013, p. 52, destaque do autor).
Outro aspecto percebido por meio das respostas das professoras é sobre a im-
portância da presença da disciplina no currículo dos Anos Iniciais. Elas conside-
ram que o tempo destinado para a disciplina é pouco e que, às vezes, o conteúdo
é acionado em outras disciplinas. As aulas acontecem às terças-feiras intercalada
com Geografia e Matemática. A existência desse horário, segundo a professora do
5º Ano C, organiza a rotina do estudante para que não traga o material escolar
todos os dias. Suas falas evidenciam que mesmo existindo uma rotina, a disciplina
está interligada com as outras disciplinas. Ainda segundo as professoras, o livro
didático, é o único recurso utilizado em sala de aula para abordar o passado. Esses
elementos que emergiram das falas das professoras, levou a investigação para a
observação das aulas de História.
As três aulas observadas, embora poucas, apresentam alguns elementos im-
portantes para pensarmos sobre como o passado histórico é acionado na sala de
aula. Realizamos as observações nos dias destinados as aulas de História. A inves-
tigação envolvia crianças das três turmas de 5º ano do turno matutino, portanto,
cada semana foi acompanhada uma turma.
Nas aulas observadas, o livro didático direcionou a organização da rotina diá-
ria, ele é instrumento que auxilia a professora na abordagem do conteúdo assim
como as suas atividades são utilizadas como avaliação da Unidade Letiva. Ele
assume um papel metodológico muito importante tanto na elaboração das aulas
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A concepção de passado de crianças no 5º ano
quanto na prática da sala de aula. As explicações dos conteúdos partem da leitura
do texto presente no livro, realizada pela professora e pelos alunos. A exploração do
conteúdo com base no que está posto no texto didático, sem apresentar outro ele-
mento que possa contribuir para a compreensão do tema abordado. Como podemos
perceber na situação descrita a seguir.
O texto de abertura do capítulo do livro, “O começo da República”, é uma his-
tória em quadrinhos apresentando o diálogo entre o candidato a presidente, um
coronel e um eleitor retratando como era feito a troca de favores para assegurar o
voto e a vitória nas urnas. Após a leitura, a professora passou a questionar aos alu-
nos sobre o texto, tendo como referência um roteiro de perguntas que acompanha a
HQ. Em duas perguntas, em especial, ocorre o seguinte diálogo:
Profa. Vitória: Em que momento da política brasileira a história se passa?
Alunos: Hoje.
Profa. Vitória: A situação mostrada em quadrinhos ocorre também no presente?
Alunos: Sim.
Os alunos associaram a compra de votos descrita no diálogo referente ao início
do século XX, como algo que faz parte do presente por eles vivido. A professora
teceu breves comentários relacionado à conjuntura política atual e seguiu-se a lei-
tura. Em nenhum momento foi dado ao aluno informações para que ele compreen-
desse que o diálogo pertencia a outro período histórico e, com base nisso, provocar
reflexões entre as semelhanças e as diferenças na prática identificada. Observa-se
que a proposta do livro didático ao questionar o aluno sobre esse período, propunha
debate em sala de aula, uma vez que esse conteúdo ainda seria abordado.
Nota-se que houve uma tentativa da professora em refletir o presente a partir
dos elementos do passado que estão no texto, porém o conteúdo sobre a República
Velha foi iniciado sem essa contextualização temporal. O aluno, considerando que
a pouca idade dificulta a fazer algumas abstrações, necessita de elementos que o
auxilie a estabelecer relações presente-passado e em compreender a história en-
quanto processo.
A prática docente observada nas aulas permite afirmar que existe, por parte
das professoras, uma tentativa em fazer com que o aluno relacione os conteúdos
que estão estudando com a sua vida prática. Contudo, a abordagem da relação
passado e presente realizadas na sala de aula, muitas vezes, não trouxe elementos
para que os alunos construíssem essa relação. Constatamos a permanência de um
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ensino baseado na ideia de continuidade e de progresso da História, contada aos
alunos por meio de somente uma fonte didática.
O passado sob o olhar das crianças
O primeiro contato com as crianças aconteceu após o período das entrevistas
com as professoras. A partir desse contato inicial, estabelecemos o perfil das crian-
ças participante que, juntamente das observações, contribuíram para elaboração
dos instrumentos que seriam aplicados com as crianças. A criança em nossa pes-
quisa foi entendida, a partir das contribuições da Sociologia da Infância, como um
ator social, um sujeito que constrói e produz História.
Desenvolvemos quatro momentos com a criança, sendo que três foram para
aplicação dos instrumentos e um durante a observação das aulas. Todo o contato
com os sujeitos foi realizado no cotidiano das aulas.
Aplicamos um questionário da etapa exploratória com seis perguntas destina-
das a conhecer a aproximação da criança com a disciplina, o conceito de passado por
ela elaborado além de identificar as ideias de mudanças, ruptura e permanência e
as relações passado/presente desenvolvidas pelas crianças nesse nível de ensino.
Inicialmente, foi proposto que as crianças citassem os conteúdos estudados
nas aulas de História. Entre os conteúdos citados, a maioria refere-se aos momen-
tos da História política e econômica do Brasil. Não houve referência a conteúdos
relacionados à História local, o que indica que, ainda permanece na seleção dos
conteúdos para esse nível de ensino, a ênfase ao ensino de História do Brasil nor-
teado pelas questões políticas e econômicas. Ao mesmo tempo, permite-nos pensar
sobre qual é o entendimento dessas crianças sobre o que vem a ser conteúdo de His-
tória. O conteúdo é o acontecimento factual, apresentado a ele pelas professoras,
selecionado a partir do que está exposto no seu livro didático.
A ênfase nos conteúdos substantivos evidencia que a mudança na forma de
se trabalhar o conhecimento histórico nos Anos Iniciais ainda caminha a passos
lentos. Em apenas três respostas percebemos que os alunos compreendem a tem-
poralidade como conteúdo de História. Para esses alunos, os conteúdos lembrados
dão ênfase aos estudos sobre o passado vivido anteriormente ao seu nascimento,
como podemos observar nas transcrições a seguir: “Eu aprendi que as histórias de
muito tempo atrás”, “O antepassado das pessoas de antes e das de hoje em dia,
“O que aconteceu no passado antes da gente existir”. Essas falas alinham-se ao
pensamento de Cooper (2012) ao afirmar que a criança desde muito cedo possui
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A concepção de passado de crianças no 5º ano
uma noção de temporalidade, mas que é preciso ensiná-la a entender o passado por
meio das deduções e inferências às fontes.
Entretanto, a abordagem factual observada nas aulas, pode colaborar para
que o aluno elabore uma compreensão do aprendizado histórico como um acúmulo
de fatos ocorridos no passado, refletidos na listagem apresentada pelas crianças so-
bre os conteúdos lembrados. Essa mesma referência de acúmulo de fatos apareceu
na resposta à terceira questão e que procurou saber das crianças “Qual ou quais
conteúdos que você mais gostou de estudar? Por quê?”.
Dentre os conteúdos citados, o nome D. Pedro II foi o mais citado pelos alunos.
Segundo as professoras os alunos se identificaram com o fato do Imperador assu-
mir o trono ainda criança. As palavras “interessante”, “muito bom” e “muito legal”
aparecem em suas justificativas comprovando a afirmação das professoras.
“Por que eu acho interessante a forma como D. Pedro II assumiu o poder” (S. ID., 10 anos).
“O Segundo Reinado, porque fala de D. Pedro II”(M. G. G. P., 10 anos).
A prática observada constatou a manutenção do ensino tradicional de His-
tória, pautada na ênfase dos nomes, fatos e datas. Observa-se que a informação
histórica foi incorporada pela criança, elas sabem quem foi D. Pedro II e qual foi a
sua ação na História do Brasil. Outro elemento percebido nas justificativas apre-
sentadas é que elas identificam a personagem com o tempo histórico por ela vivido.
Em nenhuma justificativa dada, a figura de D. Pedro II aparece associada a outro
período histórico. A noção de passado histórico apresentado pela criança obedece a
sequência cronológica em que o conteúdo foi a ela apresentado.
O período da escravidão também aparece entre os conteúdos que mais gos-
taram de estudar. Os alunos justificaram sua escolha a partir da curiosidade em
saber como era a vida do escravo.
“Escravidão porque me ensina como era o tempo do escravo” (V. M., 10 anos).
“As minas e a escravidão porque é importante a gente saber como os escravos sofreram” (J.,
11 anos).
As respostas apresentadas pelas crianças sobre o porquê gostaram de estudar
sobre a escravidão aproxima-se das ideias defendidas por Peter Lee (2003) sobre
a compreensão histórica, embora não aparece nas respostas nenhum indício de
como acessar esse conhecimento sobre os escravizados. O autor acredita que com-
preensão histórica acontece por meio do processo pelo qual o aluno e até mesmo
o historiador, consegue pensar nas pessoas do passado como seres humanos, ou
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seja, quando sabemos como é que as pessoas sentiam, entendemos suas ações e
conseguimos compreender os motivos pelos quais as pessoas agiam. A essa capaci-
dade de se desenvolver o pensamento histórico, Lee (2003) denominou por empatia
histórica.
[...] a empatia pode ser melhor entendida como uma realização – algo que acontece quando
sabemos o que o agente histórico pensou, quais os seus objetivos, como entenderam aquela
situação e se conectamos tudo isto com o que aqueles agentes fizeram (LEE, 2003, p. 20).
Deste modo, segundo Lee (2003), quando aluno consegue desenvolver a capa-
cidade de “se colocar no lugar do outro por meio da imaginação, compreendendo
seus sentimentos e perspectivas e usando essa compreensão para guiar as próprias
ações” é que se dá aprendizagem (KRZNARIC, 2015, p. 10). Os sujeitos dessa pes-
quisa conseguem pensar no sofrimento vivido pelos negros no passado, no entanto
pouco evidenciam compreensão como esse conhecimento chegou até eles.
Lee reforça que uma condição necessária para que o aluno desenvolva a ca-
pacidade de pensar historicamente é o uso da evidência. São as evidências que
permitem ao aluno o contato com pessoas e objetos do passado, seu uso em sala
deve auxiliar o aluno a pensar historicamente.
[...] Só quando as crianças compreendem os vestígios do passado como evidência no seu
mais profundo sentido – ou seja como algo que deve ser tratado não como mera informações
mas como algo de onde se possam retirar respostas a questões que nunca se pensou colocar
– é que a história se alicerça razoavelmente nas mentes dos alunos enquanto atividade com
algumas hipóteses de sucesso (LEE, 2013, p. 25).
Outro elemento extraído das narrativas produzidas pelas crianças, referem-se
a alguns elementos importantes relacionados aos conceitos históricos construídos.
Elas compreendem a existência de uma dimensão temporal com relação à História,
essa dimensão cronológica está demarcada e adjetivada pela expressão “mais an-
tiga”. Segundo Solé (2009) a aprendizagem da noção de tempo é fundamental para
a compreensão da disciplina História, para ela, inicialmente, as crianças utilizam
de expressões como “mais antigo”, “tempo antigo” para demarcar uma dimensão
temporal. Nessa fase, a concepção de passado está associada ao que a autora deter-
minou por passado cronológico. Solé defende que essa dimensão temporal precisa
ser explorada, pois
Todas as crianças têm alguma familiaridade com imagens do passado. A compreensão da
cronologia pelas crianças pode ser efectivamente desenvolvida através de um conjunto de
métodos usados de forma consistente e continuadamente. Promover-se experiências va-
riadas no ensino primário que promovam a História e a compreensão cronológica é uma
mais-valia para o ensino da História no secundário (SOLÉ, 2009, p. 51).
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A concepção de passado de crianças no 5º ano
As respostas apresentadas pelas crianças evidenciam a noção de temporali-
dade, que como afirma Cooper (2012) toda criança possui. Nesse sentido, foi ques-
tionado a elas se gostavam da disciplina justificando a respostas. A maioria das
crianças entrevistas afirmaram gostar da disciplina. Nas justificativas apresenta-
das pelos alunos, cerca de 55% das respostas identificam o passado como a razão
para justificar o seu gosto ou não pela disciplina. A palavra “passado” aparece em
25 questionários e as respostas que se aproximam da ideia de passado aparecem
em 06 questionários.
As respostas apresentadas pelos alunos evidenciam que eles compreendem
que existe uma relação entre o passado e a História, identificam que por meio da
disciplina História é possível conhecer o passado e, em razão disso, a disciplina se
torna atrativa. Segundo Cainelli (2008), para se compreender como o conhecimento
histórico é produzido em crianças é preciso que ela entenda que o passado é o objeto
de estudo da História.
Um dos primeiros passos é fazer com que o educando perceba que o objeto do trabalho da
disciplina de história é o conhecimento histórico elaborado por historiadores, cuja matéria-
-prima é o passado (CAINELLI, 2008, p. 99).
As crianças responderam que a disciplina História permite que eles aprendam
sobre o passado; é através da história que é possível conhecer as coisas do passado:
“Sim, porque é através da História que nós estudamos e descobrimos o que aconteceu no
passado” (N. S. M.,10 anos).
“Sim, porque é legal e fala das coisas que ainda não aprendi. A aula de história é a aula de que
eu percebi que fala de coisas antigas” (M. L., 10 anos).
As respostas das crianças apontam para o entendimento que o passado é pos-
sível de ser conhecido. Segundo Lowenthal (1998), o passado não é possível de ser
conhecido em sua totalidade, o que conhecemos é apenas parte do que foi preser-
vado no presente. Os registros históricos e as lembranças permitem-nos supor a
existência do passado. Entretanto, para as crianças a disciplina História os ajuda
a entender tudo sobre o passado:
“Mais ou menos. Porque fala tudo sobre o passado” (M. S. L., 9 anos).
“Ensina tudo sobre o passado” (D. B., 12 anos).
Essa noção de totalidade sobre o passado presente na fala das crianças pode
também está associada a ideia de verdade, pois, segundo Bernado (2010), em uma
pesquisa realizada com alunos dos Anos Inicias sobre a apropriação da História e
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do livro didático, para o aluno desse nível de ensino a “história é o que (realmente)
aconteceu no passado” (BERNADO, 2010, p. 90). Nesse sentido, como afirma Peter
Lee (2003), dizer a verdade na infância está associado ao passado próximo, ao que
é conhecido, um passado fixo, logo, a ideia de verdade se aproxima do sentido de
totalidade sobre o passado que elas acreditam serem capazes de alcançar por meio
da História. Nesse caso, conforme nos alerta Lowenthal (1998) duvidar do passado
histórico traz problemas adicionais, colocaria a nossa própria sanidade em dúvida
[...] Duvidar do passado histórico, no entanto, traz problemas adicionais. Um mundo criado
durante tempos históricos iria adulterar não apenas alguns, mas todos os relatos da his-
tória passada, com terríveis implicações para a credibilidade humana. Desacreditar todos
os relatos sobre o passado, duvidar da autenticidade ou da sanidade de todos aqueles que
documentaram vastamente aquilo que não havia ocorrido, poria em dúvida nossa própria
sanidade e veracidade (LOWENTHAL, 1998, p. 70, grifo do autor).
Assim, a partir dos dados coletados nas três primeiras questões observamos
alguns elementos que nos ajudam a pensar sobre a relação entre a concepção de
História adotada pelas professoras e os conceitos históricos produzidos pelos alu-
nos. A relação de conteúdos citados na primeira e terceira questão refletem um
ensino tradicional, centrado nos grandes acontecimentos, como percebemos na
prática observada. Nas respostas apresentadas pelos alunos na segunda questão,
não encontramos elementos que indiquem que o interesse ou não pelo estudo do
passado esteja relacionado à necessidade de compreendê-lo para conhecer o pre-
sente, como percebemos nas falas das professoras ser esse objetivo com o ensino da
disciplina. O interesse deles pelo passado está mais relacionado a uma curiosidade
em saber como “era a vida de antigamente”, mas sem relação com o presente.
Em um segundo momento, o questionário propôs verificar as ideias de mudan-
ças e permanências das crianças. Foram apresentadas fotos da Praça Barão do Rio
Branco que fica localizada no centro da cidade de Vitória da Conquista. A escolha
do local se deu pela praça ser um lugar de intensa movimentação comercial, pois
em seu entorno estão bancos, grandes lojas de referência nacional, além de ser
palco para a realização de eventos na cidade.
A questão apresentava fotografias da praça em diversos períodos da história
de Vitória da Conquista, dispostas numa ordem aleatória. A partir dessas fotogra-
fias foram propostas três perguntas. Na primeira, as crianças deveriam ordenar
as fotos da mais antiga até a mais atual, construindo uma linha do tempo. Em
seguida, elas deveriam explicar os aspectos que chamaram a atenção para fazer o
ordenamento entre a mais antiga até a mais atual. A última questão era para que
dissessem se perceberam mudanças na praça e quais seriam essas mudanças.
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A concepção de passado de crianças no 5º ano
Nas cinquenta e sete crianças entrevistadas, quarenta e três afirmaram que
houve mudanças e conseguiram identificá-las. Oito crianças disseram que não sa-
biam responder à questão e seis deixaram em branco. Vale a ressalva que as mes-
mas crianças que não explicaram ou deixaram essa questão em branco, também
não as responderam nas duas últimas questões, o que nos sinaliza para a dificulda-
de da criança em identificar mudanças ou mesmo em explicá-las. Segundo Siman
(2006) essa dificuldade está relacionada ao fato de nem sempre conseguirmos ter
essa percepção de continuidade e rupturas, pois não somos educados a percebê-la,
O fato de nem sempre sermos educados para perceber a dimensão temporal das ações hu-
manas manifestas, no presente, sob as mais diferentes formas, aumenta a dificuldade de
problematizar a relação presente, passado, futuro (SIMAN, 2006, p. 116).
Assim, as mudanças percebidas com mais facilidade pelas crianças estão rela-
cionadas aos elementos que mais caracterizam a praça no presente que é o fato de
seu entorno ser de grandes lojas de produtos eletroeletrônicos de circulação nacio-
nal. A ausência dessas lojas aparece como grande destaque nas falas das crianças.
A partir das narrativas, observamos que as ideias de permanência e mudan-
ças que vão contribuir para a criança desenvolver as relações de passado e presente
são frágeis nas crianças investigadas. Como já sinalizou Abud (2012a), esses são
conceitos abstratos e que a sua compreensão é feita de modo gradativo, principal-
mente em crianças nessa faixa de escolarização. Segundo Piaget, citado em Olivei-
ra (2006), a noção de tempo na criança se fundamenta a partir de dois aspectos:
a avaliação da duração e da seriação dos acontecimentos. No instrumento, esses
aspectos ficam mais evidentes com relação aos conteúdos estudados, pois as lis-
tagens de conteúdos seguem uma sequência linear e cronológica como lhes foram
apresentados. Entretanto, o sentido de duração se perde na predominância do uso
dos termos temporais para situar o “acontecimento em um lugar atemporal apenas
denominando enquanto passado” (CAINELLI, 2006, p. 64).
As narrativas produzidas nos permitiram perceber que as crianças, em con-
sonância com o pensamento de Hilary Cooper (2012) e Peter Lee (2003), possuem
noção de passado e capacidade de compreender as temporalidades históricas. Es-
ses elementos apareceram em suas narrativas. O passado assume um caráter de
deficitário em relação ao presente, mas sem que um esteja relacionado ao outro. A
noção de causalidade histórica é frágil. O passado se apresenta como algo distante
deles, eles não se percebem inseridos numa conjuntura de desenvolvimento histó-
rico. Esse passado deficitário se confirma quando eles trazem a tecnologia como
algo que é pertencente a esse presente vivido por eles. A ausência de tecnologia é
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sinônimo de obsoleto “Eles não tinham tecnologia”. O uso de termos “coisa antiga”,
“velho” adjetivam os objetos do passado como algo que não tem mais utilidade nos
dias atuais.
A cor das fotografias foi um elemento que, ao olhar do aluno, trazia informa-
ções sobre o presente e o passado. O preto e o branco assumiram ser sinônimo de
passado. O tom acinzentado das fotografias trazia um aspecto rústico ao que ali
estava retratado. Ao mesmo tempo, evidenciou a limitação de alguns alunos sobre
a interpretação de imagens. Poucos alunos conseguiram identificar que na última
questão do segundo instrumento havia uma fotografia atual, mas que estava em
preto e branco. Essa associação direta entre as cores com o passado induziu as
crianças a classificar a foto como antiga em relação às coloridas.
Quando foram provocados a estabelecer comparações entre imagens do pas-
sado e o presente vivido verificamos que, diferente da atividade proposta no livro
didático, os alunos não demonstraram as mesmas dificuldades, eles conseguiram
demonstrar que são capazes de identificar as diferenças entre o passado e o pre-
sente. As crianças tomaram como referência o seu cotidiano em contraposição às
fotografias do instrumento. As diferenças estavam associadas à não existência de
alguns objetos no presente, enquanto as semelhanças estão associadas à função
que o objeto possui. O bonde é pertencente ao passado porque ele não existe mais,
mas a função dele, de transportar as pessoas, foi substituída pelo ônibus. Peter Lee
(2003) nos chama a atenção que, muitas vezes, em conversas de adultos e crianças
sobre as diferenças entre o passado e o presente ser demarcado pela existência ou
não de algo. Nesse sentido, o que não faz parte do presente vivido é pertencente ao
passado.
Esse mesmo movimento de compreensão sobre as mudanças e permanências
foi constatado em duas situações dentro de uma mesma questão. As crianças, a
partir das fotografias de períodos diferentes da Praça Barão do Rio Branco, foram
provocadas a construírem uma linha do tempo partindo da foto mais antiga até a
fotografia mais recente. A construção de linha do tempo nos permitiu identificar
que as crianças foram capazes de demonstrar, dentro de uma sequência de ima-
gens, noções de cronologia. Ao mesmo tempo, identificar as mudanças e permanên-
cias em um espaço público e de grande movimentação de pessoas. Nesse sentido,
podemos considerar que, mesmo elas não conseguindo demonstrar que as mudan-
ças decorridas no tempo são formadoras do presente vivido por elas, a percepção
desse movimento de mudanças e permanências evidencia a capacidade delas em
compreender a dinâmica do processo histórico.
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A concepção de passado de crianças no 5º ano
Segundo Tuma, Cainelli e Oliveira (2010), o entendimento do aluno sobre os
deslocamentos temporais auxilia na identificação de mudanças e permanências.
Os resultados da pesquisa realizadas pelas autoras, com crianças entre nove e dez
anos, apontam que o olhar delas sobre situações que envolve presente e passado,
permanece na descrição dos elementos que estão perceptíveis para elas. Elas não
conseguem compreender os ritmos da História, pois as suas respostas vão trazer o
presente de cada tempo. Essa percepção sobre as diferentes temporalidades, vista
de forma linear, implica a não compreensão de uma das categorias fundamentais
para a compreensão do tempo: a duração.
É como se organizasse dois cenários estáticos para uma ação comparativa propiciada pelo
diálogo entre diferentes temporalidades, mas de forma linear e em uma dada sequência:
passado-presente, perdendo-se no contexto uma das categorias fundamentais para a com-
preensão do tempo: a duração (TUMA; CAINELLI; OLIVEIRA, 2010, p. 360).
Nesse sentido, as respostas das crianças investigadas em nossa pesquisa
dialogam com os resultados da pesquisa realizada por Tuma, Cainelli e Oliveira
(2010), no sentido em que, a identificação das mudanças e permanências por elas
dão conta das diferenças entre o passado e o presente vivido. No entanto, elas não
conseguem estabelecer as relações de ruptura e continuidade nas diversas tempo-
ralidades que envolve a praça Barão do Rio Branco.
As narrativas produzidas pelas crianças nos mostram que elas “explicam o
passado da forma como elas o compreendem” (OLIVEIRA, 2006, p. 169). Essa com-
preensão decorre da percepção que o olhar sobre o passado se origina no presente
(LEE, 2003; OLIVEIRA, 2006). Os vestígios do passado estão em um lugar atem-
poral que elas denominam por antigo, e este é deficitário e demarcado pela existên-
cia de objetos que são semelhantes no presente: O bonde que agora é ônibusou
“ônibus antigo”. Nessa perspectiva, as pessoas, embora sejam como nós, eram mais
despreparadas “elas jogavam lixo no chão”.
Visiona-se e compreende-se o passado à luz das lentes do que é entendido como normal no
presente e, desta forma, as pessoas do passado poderão ser vistas com “falhas de inteligên-
cia” por agirem da forma como o fizeram, já que no presente existe maior progresso, fruto
das capacidades das pessoas do presente (GAGO, 2007, p. 128).
Sendo assim, verificamos que nessa concepção, as crianças não estabelecem
uma relação de proximidade com o passado. O passado elaborado por elas não as
leva a desenvolver a empatia histórica, entendida por Lee (2003) como a possibili-
dade de auxiliar a criança em seu processo de aprendizagem histórica. Nesse sen-
tido, as ideias históricas sobre o passado e as fragilidades identificadas na elabo-
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ração do conceito de tempo pelas crianças nos permite indicar que o conhecimento
histórico é visto como um processo de acúmulo de fatos e eventos ao longo do tempo
(LEE, 2006). Perde-se, nessa concepção, a compreensão da função da História de
“orientar, intencionalmente, sua vida prática no tempo” (RUSEN, 2010).
Considerações nais
A nossa pesquisa teve como objetivo principal a compreensão sobre a elabo-
ração do conceito de passado em crianças em atividade escolar. Partimos da com-
preensão que a cognição histórica se dá dentro de uma conjuntura que implica dois
sujeitos: o que ensina e o aprendente. Nesse sentido, iniciamos o nosso trabalho
entrevistando as três professoras que lecionam nas turmas nas quais realizamos a
nossa investigação.
Nossas aproximações com as professoras tinham como objetivo identificar
suas concepções de História e de passado. Por meio de suas falas, identificamos a
compreensão que o objeto da História é o estudo sobre o passado, em razão disso,
consideram que a disciplina possui caráter formativo das crianças, pois a experiên-
cia do passado orienta as ações do presente e do futuro. O passado se apresenta
como uma sucessão dos grandes eventos registrados e que o seu conhecimento leva
o aluno a entender a conjuntura atual. Em suas falas, registra-se que há uma
preocupação em fazer o aluno compreender que o presente é o resultado das trans-
formações decorridas ao longo do tempo.
O livro didático emergiu das falas das professoras como o recurso principal
para o trabalho e, portanto, o instrumento que aproxima o passado dos alunos.
Essa condição foi percebida na prática observada, tanto como ponto de partida para
a explanação dos conteúdos, quanto na exploração das atividades. A professora
Ângela mencionou que o livro didático adotado possuía muitas atividades interdis-
ciplinares, o que facilitava o planejamento das aulas, principalmente em razão do
pouco tempo. Não realizamos uma análise do livro para comprovar essa afirmação,
aliás, no percurso dessa investigação destacamos o lugar central que esse instru-
mento didático ocupa, merecendo pesquisas mais específicas para entender a sua
relação com o aprendizado histórico das crianças.
A prática observada nos provocou inúmeras inquietações e possibilidades de
reflexão sobre a História ensinada. Os saberes, o processo formativo, a prática
pedagógica são elementos que carregam potencialidade de pesquisas, mas que em
razão do tempo e do nosso objeto investigativo, não foi possível aprofundar suas
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A concepção de passado de crianças no 5º ano
possibilidades. A observação das aulas nos permitiu verificar a permanência de
uma prática assentada na perspectiva linear da História e na ausência de ele-
mentos que sustentem ao aluno compreender a dinâmica temporal das relações
passado-presente.
Em nossa aproximação com o campo, analisamos o conceito de passado elabo-
rado pelas crianças. A compreensão deste conceito se aproximou da noção de tem-
po, entendido aqui, como um dos conceitos fundamentais no desenvolvimento da
aprendizagem histórica. Sendo assim, identificamos em suas narrativas, as ideias
de mudanças e permanência e as relações passado-presente, que são inerentes ao
processo histórico.
A aplicação dos instrumentos em sala nos permitiu verificar elementos que
não aparecem em seus registros, captamos a espontaneidade e a curiosidade na-
tural da infância “Ah! Porque eu tenho curiosidade de saber como eram as coisas
do passado, os objetos que não tem hoje em dia”. A curiosidade sobre o passado
norteou as suas respostas sobre as razões pelas quais gostavam ou não de estudar
História, e ao mesmo tempo, nos permitiu constatar que as crianças não demons-
traram dificuldade em relacionar passado e História.
Em sua pesquisa, Lima (2013) considera que a tarefa das professoras que
atuam nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental é tornar o passado inteligível à
criança. Sendo assim, as respostas apresentadas pelas crianças indicam a com-
preensão que o acesso ao passado é possível por meio das aulas de História. Cainel-
li (2014, p. 10) considera que ter noção dessa relação “é um dos pontos centrais do
entendimento do que se ensina ou se aprende em História”, logo, a apreensão dessa
relação reafirma o nosso posicionamento teórico sobre a capacidade de aprendi-
zagem histórica das crianças e das possibilidades de elaboração do pensamento
histórico tendo como referência a própria epistemologia da História.
Esse passado que ensina sobre antigamente”, mas que também não é inte-
ressante, acionado nas aulas de História, foi o foco da nossa análise. Em muitas
respostas identificamos uso de termos temporais: “naquele tempo”, “naquela épo-
ca”, como formas de se referirem ao passado. O uso desses termos indica a capa-
cidade de situar artefatos em um tempo que eles denominam por passado, mas
também, que os alunos, na faixa de escolarização em que se encontram, ainda não
conseguem localizar os acontecimentos num determinado período temporal. Entre-
tanto, eles demonstram ser capazes de sequenciar cronologicamente as imagens da
Praça Barão do Rio Branco, por exemplo, quando exposto a atividade aplicada. As
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respostas das crianças também evidenciam a capacidade em identificar mudanças
e permanências em relação aos objetos, as pessoas e espaços físicos.
Tais elementos nos ajudam a identificar as noções de temporalidades nas res-
postas das crianças. Contudo, as noções identificadas não auxiliam a criança a
perceber o presente como um resultado das mudanças ocorridas ao longo do tempo,
assim, a relação entre o passado e o presente não se estabelece, ou quando aparece
é muito frágil e fragmentada.
O olhar sobre o passado tem o presente como referência e não o inverso. Os
vestígios do passado são identificados a partir das diferenças com o presente. O uso
de expressões como “velha”, “coisas antigas” demarcam a compreensão de passado
deficitário, identificado por Lee (2003). Assim, aos olhos das crianças, “O passado é
o país estrangeiro de L. P. Hartley, onde tudo é feito de modo diferente” (LOWEN-
THAL, 1998, p. 73).
Investigar o ensino de História dos Anos Iniciais permite nos aproximarmos
de um espaço de aprendizagens que não se fez presente em nosso processo formati-
vo, enquanto professores especialistas. Coloca-nos ante a possibilidade de ampliar
o nosso olhar sobre a cognição histórica em todo o percurso escolar. Um desafio
posto e que se soma a outros estudos que trazem em suas reflexões teóricas e me-
todológicas contribuições ao ensino e à aprendizagem em História.
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A prática docente e as relações de gênero e sexualidades: conversando com professoras e professores
A prática docente e as relações de gênero e sexualidades: conversando com
professoras e professores
Teaching practice and gender relationships and sexualities: talking with teachers and teachers
Práctica docente y relaciones de género y sexualidades: hablando con profesoras y profesores
AndersonFerrari
*
Claudete Imaculada de Souza Gomes
**
Cláudio Magno Gomes Berto
***
Resumo
Qual tem sido o trabalho com gênero e sexualidade realizado por professores e professoras em 3 escolas na
cidade de Juiz de Fora? Essa é a pergunta foco que direciona as análises neste artigo em torno das questões
surgidas em uma pesquisa de mestrado realizada entre os anos de 2015-2016. Como gênero e sexualidade são
organizadores sociais, resultado de construção histórica e cultural, ouvir e dialogar com professoras e professo-
res é reforçar a ideia de que escolas não são essências, mas fruto de relações entre indivíduos e sociedade. Nesse
sentido, estamos assumindo a perspectiva teórico-metodológica pós-estruturalista, inuenciada pelos estudos
foucaultianos, principalmente a partir da noção de problematização, vinculada à história do pensamento, que,
não se propondo a oferecer soluções, proporciona a oportunidade de ampliar o debate sobre pesquisa no cam-
po educacional. Como processo metodológico aplicamos um questionário nas escolas da cidade para identicar
que professoras e professores assumiam fazer um trabalho com gênero e sexualidade. Dos 36 professores e
professoras que assumiram tal trabalho, somente 5 aceitaram participar dos grupos focais em que discutimos as
respostas ao questionário. São com essas falas construídas nos grupos focais que vamos trabalhar. Dois aspectos
aparecem como resultados das conversas. O primeiro é a evidencia de que as professoras e os professores ad-
quirem e colocam em prática conhecimentos que se referem às relações de gênero e sexualidade e conseguem
fazer articulações com o seu fazer docente. O segundo é a demonstração de que as escolas que trabalham reali-
zam um trabalho com gênero e sexualidade.
Palavras-chave: Escolas. Gênero. Sexualidades.
*
Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp, Brasil). Professor adjunto de Ensino de His-
tória da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF, Brasil). ORCID https://orcid.org/0000-
0002-5681-0753. E-mail: aferrari13@globo.com
**
Mestre em Educação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF, Brasil). Professora de Ciências e Biologia na edu-
cação básica, Secretaria de Estado de Educação (SEE/MG), e na formação de professores na Faculdade de Educação
da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF, Brasil). Professora de Ciências e Biologia no Colégio de Aplicação João
XXII/UFJF. ORCID https://orcid.org/0000-0003-2499-9659. E-mail: cl_claudete@hotmail.com
***
Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG, Brasil) e integrante do Núcleo de Pesquisas
e Práticas em Psicologia Social, Políticas Públicas e Saúde (Núcleo PPS - UFJF) e do Núcleo de Cidadania e Direitos
Humanos LGBT (Nuh - UFMG). ORCID https://orcid.org/0000-0002-1660-1519. E-mail: cl-magno@hotmail.com
Recebido em 28/02/2019 – Aprovado em 29/07/2019
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i1.10583
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AndersonFerrari, Claudete Imaculada de Souza Gomes, Cláudio Magno Gomes Berto
Abstract
What has been the work with gender and sexuality performed by female teachers in 3 schools in the city of Juiz
de Fora? This is the focus question that directs the analyzes in this article around the issues raised in a masters re-
search conducted between 2015-2016. As gender and sexuality are social organizers, the result of historical and
cultural construction, listening and dialogue with teachers is to reinforce the idea that schools are not essences,
but the result of relationships between individuals and society. In this sense, we are taking the poststructuralist
theoretical-methodological perspective, inuenced by Foucaultian studies, mainly from the notion of proble-
matization, linked to the history of thought, which, not proposing to oer solutions, provides the opportunity
to broaden the debate about research in the educational eld. As a methodological process we applied a ques-
tionnaire in the city’s schools to identify which teachers assumed to do work with gender and sexuality. Of the
36 teachers who took on such work, only 5 agreed to participate in the focus groups in which we discussed the
questionnaire responses. It is with these lines built in focus groups that we will work. Two aspects appear as a
result of conversations. The rst is the evidence that teachers have acquired and put into practice knowledge
that refers to gender relations and sexuality and can articulate with their teaching practice. The second is the
demonstration that working schools do gender and sexuality work.
Keywords:schools, gender, sexualities
Resumen
¿Cuál ha sido el trabajo con género y sexualidad realizado por maestras en 3 escuelas de la ciudad de Juiz de
Fora? Esta es la pregunta principal que dirige los análisis en este artículo en torno a los temas planteados en una
investigación de maestría realizada entre 2015-2016. Como el género y la sexualidad son organizadores sociales,
el resultado de la construcción histórica y cultural, la escucha y el diálogo con los docentes es reforzar la idea de
que las escuelas no son esencias, sino el resultado de las relaciones entre los individuos y la sociedad. En este
sentido, estamos tomando la perspectiva teórico-metodológica postestructuralista, inuenciada por los estu-
dios foucaultianos, principalmente desde la noción de problematización, vinculada a la historia del pensamien-
to, que, al no proponer soluciones, brinda la oportunidad de ampliar el debate sobre investigación en el campo
educativo. Como proceso metodológico, aplicamos un cuestionario en las escuelas de la ciudad para identicar
qué maestros asumían que trabajaban con género y sexualidad. De los 36 maestros que asumieron dicho traba-
jo, solo 5 aceptaron participar en los grupos focales en los que discutimos las respuestas al cuestionario. Es con
estas líneas integradas en grupos focales que trabajaremos. Dos aspectos aparecen como resultado de las con-
versaciones. La primera es la evidencia de que los maestros han adquirido y puesto en práctica conocimientos
que se reeren a las relaciones de género y la sexualidad y que pueden articularse con su práctica docente. La
segunda es la demostración de que las escuelas que trabajan hacen trabajo de género y sexualidad.
Palabras-clave: Escuelas. Género. Sexualidades.
Introdução
Segundo Joan Scott (1995), podemos e devemos assumir o gênero como cate-
goria de análise, o que significa dizer que podemos olhar o mundo e problematizar
a realidade a partir das relações de gênero. É possível conceber, ainda, os gêneros
como organizadores sociais. Tomando como ponto de partida essa proposta, gênero
e sexualidade variam ao longo da história e se referem ao que a sociedade atribui
como feminino ou masculino. Nas ações docentes, a construção de gênero se dá co-
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A prática docente e as relações de gênero e sexualidades: conversando com professoras e professores
tidianamente, mesmo que não haja uma intenção ou clareza disso por parte das/os
professoras/es. As aulas colocam em circulação diferentes noções de gênero e seus
atravessamentos com as sexualidades, que são atribuídas aos sujeitos. Os gêneros
estão presentes nas escolhas de imagens, textos, cores, lugares, músicas e perfor-
mances para afirmar essa demarcação entre o que constitui homens e mulheres,
seus corpos e desejos.
No Brasil, a relação entre gênero e sexualidade diz de um embaralhamento entre
eles, visto que ser homem ou mulher significa ser heterossexual (LOURO, 1997). A
sexualidade passa a ser um componente de constituição do gênero. Nesse sentido, é
importante deixar claro o que estamos entendendo como sexualidade. Estamos nos
inspirando em Michel Foucault (2011) que entende sexualidade como dispositivo.
Para o autor, desde o século XVI o Ocidente moderno ligou o sexo à verdade dos sujei
-
tos, de maneira que somos incitados a confessar (pelo menos para nós mesmos) sobre
os nossos desejos, paixões, emoções, num processo de exame de consciência, vigilância
para saber e responder o que somos. “E, através desse dispositivo, pôde aparecer algo
como a “sexualidade” enquanto verdade do sexo e de seus prazeres” (FOUCAULT,
2011, p. 67). Afirmar que a sexualidade como um dispositivo é uma forma de entendê
-
-la como resultado de uma rede heterogênea de relações de poder que envolve práticas
discursivas e não discursivas. As escolas são parte dessa rede e desse processo de
constituição de sujeitos nos atravessamentos entre gênero e sexualidade.
Além do aspecto da construção histórica, outro ponto de ancoragem do gêne-
ro é o seu entendimento como um conceito relacional, que traz a ampliação das
discussões não só em torno da constituição das feminilidades, mas também da
constituição das masculinidades, uma vez que homens e mulheres são constituídos
a partir das interações e referências recíprocas que ambos estabelecem. Judith
Butler (2015) nos convida a pensar como vamos construindo gênero como se ele
sempre estivesse lá, pronto para ser acionado. Problematizando essa forma de li-
dar, a autora descreve como gênero é um processo que não tem nem origem e nem
fim, de maneira que é algo que fazemos e não algo que somos. Gênero e sexualidade
não são inatos. É quando gênero se afasta daquilo que estabelecemos como sua
sexualidade “natural” que parece ser o “problema”. O sentido de normalidade tam-
bém ocorre no encontro entre gênero e sexualidade, de tal maneira que ser homem
ou mulher está diretamente ligado a ser heterossexual. A heterossexualidade é
tomada como a norma. As diferenças são construídas discursivamente no distan-
ciamento a essa norma. A noção de “problema” se relaciona com o entendimento
do que Butler (2006) vai denominar de “matriz heterossexual”, como aquela que
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coloca em circulação a “[...] grade de inteligibilidade cultural por meio da qual os
corpos, gêneros e desejos são naturalizados” (BUTLER, 2015, p. 216).
Para desenvolver essa ideia, Butler (2015) analisa as estruturas jurídicas con-
temporâneas como aquelas que cristalizam as identidades de gênero e sexualidade
nos termos da coerência da matriz heterossexual. Dessa forma, a presunção de
uma identidade masculina e feminina estaria servindo também para excluir outros
corpos, sujeitos e identidades que não se enquadram nessa normatividade. Nosso
interesse é problematizar esse jogo de construção das relações de gênero no encon-
tro com as sexualidades nas falas das professoras/es.
Para isso, vamos tomar as falas de cinco professoras/es como provocativas
para nossa escrita. Cinco participantes de uma pesquisa de mestrado – realizada
entre 2015 e 2016 – que tinha como objetivo geral a problematização dos saberes e
práticas a respeito das relações de gênero e sexualidades colocadas em vigor nas au-
las. Na tentativa de identificar professoras/es que afirmavam trabalhar com essas
temáticas, foi elaborado e aplicado um questionário com quatro questões abertas
1
a docentes de três escolas públicas municipais de Juiz de Fora-MG que aceitaram
participar dessa fase inicial da pesquisa. De posse da análise dos questionários,
convidamos as/os 36 professoras/es que responderam a participar de grupos focais
em que discutiríamos a relação entre gênero, sexualidades e educação a partir do
agrupamento das respostas em categorias de análise como “respeito”, “preconcei-
to”, “diversidade”, “conteúdo”, “silêncios”, “formação docente”, que apareceram nas
respostas. Portanto, este texto é um convite a pensar as questões que organizam
as falas das/os docentes das três escolas participantes da pesquisa. De um total de
36 professoras/es que responderam ao questionário, somente cinco aceitaram e as-
sinaram o termo de consentimento: Luiz
2
, professor de Inglês; Ana e Paulo, profes-
sores de História; Marília, de Geografia e Cristiano, de Educação Física. Docentes
de faixas etárias variadas, com tempo de trabalho que oscilava entre 8 e 23 anos.
O foco de problematização que elegemos para organizar este artigo foi o en-
contro entre a ação docente e a insegurança com o trabalho, levando-nos a pensar
o aspecto paradoxal e complexo do trabalho com gênero e sexualidade na sala de
aula. Paradoxal porque, ao mesmo tempo em que reconhecem a importância do
trabalho, as/os professoras/es não conseguem identificar o protagonismo na ação,
não percebendo o gênero e a sexualidade como atravessados nas suas disciplinas.
Tais pontos apareceram na pesquisa a partir da convocação das/os professoras/es
para que nos contassem sobre o faziam, como faziam e seus desdobramentos na
relação com as temáticas e com os desafios e potencialidades da ação docente. É
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A prática docente e as relações de gênero e sexualidades: conversando com professoras e professores
relevante dizer, ainda, que as narrativas se referem a situações e atividades ocor-
ridas no cotidiano dessas três escolas pesquisadas, ou seja, não se pretende uma
generalização da educação municipal de Juiz de Fora. A organização da escrita diz
dos tópicos relacionados diretamente aos assuntos mais abordados, aos quais as/
os docentes dedicaram maior tempo e/ou demonstraram maior empenho e atenção.
Diante dessas colocações introdutórias, queremos situar nossa escrita na pers-
pectiva dos estudos foucaultianos, no trabalho com a noção de problematização
como um caminho para frente, vinculado à história do pensamento, e que não se
propõe a oferecer soluções, proporcionando a oportunidade de ampliar o debate
sobre pesquisa no campo educacional e buscando a problematização como possibili-
dade de fazer pesquisa em educação. A problematização está inscrita na história do
pensamento para questionar por que pensamos o que pensamos, como construímos
nossas formas de pensar e agir e como somos resultados desses saberes e poderes.
A perspectiva pós-estruturalista amplia o conceito de poder como proveniente não
somente das esferas do Estado, mas presente “em toda parte”.
Segundo Guilherme Lima Cardozo (2014, p. 128), essa perspectiva inova,
[...] ao trazer ao campo as questões de identidade/alteridade/diferença, considerando a
subjetividade dentro da pesquisa científica, dando espaço às relações de saber e poder
influenciando na cultura e na sociedade, onde tensões advindas de gênero, raça, etnia e
sexualidade trazem à tona o multiculturalismo. Sobre isso, o pós-estruturalismo trouxe
colaboração ímpar à educação.
A pesquisa e seus achados não necessariamente “representam aproximação da
verdade, mas uma de suas múltiplas possibilidades” (COSTA, 1996, p. 5) de conhecer
e construir sentidos para o que é realizado pela escola e pelas/os professoras/es. As
-
sim, nossa intenção é contribuir para as discussões do campo de conhecimento de Gê-
nero, Sexualidade e Educação, trazendo para a escrita o que surge das narrativas de
professoras/es quando são convidadas/os a refletir sobre o fazer docente nas escolas.
O que aparece quando se fala de gênero e sexualidades com docentes?
Abrir a escuta às/aos professoras/es exige certo cuidado e atenção. Cuidado
para buscar as formas de organização dos sujeitos pela/na fala, pelas/nas formas
de pensar e dizer, de concordar e discordar do outro, de maneira que possam ficar à
vontade para se colocarem em diálogo. A análise das falas também demanda aten-
ção para sentir e dar lugar às resistências, aos detalhes e para aguçar os sentidos
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e ver o que comumente não conseguimos enxergar. Cabe ressaltar, portanto, como
aponta Alfredo Veiga Neto (2013, p. 112-113):
A leveza de um estilo de investigação que, mesmo rigorosa, se abre para suas fronteiras na
esperança de ultrapassar a si mesma e de conseguir enxergar nas regiões de indecidibilida-
de que até então permaneciam na penumbra [...] usando o que Foucault nomeia como uma
“maneira de ver as coisas”, “um modo de ver”.
Para Veiga Neto (2013, p. 114), o comprometimento de Foucault “está em co-
locar sob escrutínio práticas que permitem entender as relações do ser consigo e
com os outros”. Assumindo essa perspectiva de análise, procuramos entrever nas/
os parceiras/os de pesquisa essas diferentes e ricas formas de se relacionar com os
saberes, os acontecimentos e os discursos presentes em suas escolas. As respostas
das/dos professoras/es possibilitaram trazer para a discussão suas/seus alunas/os,
as vivências no/com o cotidiano da escola, para interrogar como as/os professoras/es
se veem em relação a suas práticas, diante da provocação desencadeada pelas falas
de seus companheiros de trabalho, de seus pensamentos e ações em seus contextos
profissionais. Nesse sentido, foi importante deixar que cada uma/um definisse, en-
tre os termos e assuntos sugeridos a partir das respostas dadas aos questionários,
em que direção gostaria de conduzir a conversa.
Durante os grupos focais, o ponto mais marcante para as/os professoras/es
foi a recorrência à palavra “respeito” quando falavam do trabalho com gênero e
sexualidade. Partimos, então, da ideia de “respeito”, que já havia despertado nossa
atenção desde as primeiras análises, ainda nos questionários. O uso da palavra
“respeito”, relacionada às diferenças, foi recorrente, quando perguntadas/os sobre
a convivência nos espaços das escolas. O que significa esse “respeito”? Porque essa
palavra surge quando perguntamos sobre a convivência das diferenças na escola?
O professor Paulo afirma que “de início o que aparece não é o respeito, mas o des-
respeito às diferenças. Uma orelha maior, um nariz ou o cabelo, tudo vira motivo
de piada”
3
, ao que a professora Marília complementa dizendo que “o visual atrai
mais”, identificando, na prática discriminatória, algo comum direcionado à aparên-
cia das/dos alunas/os e outras pessoas presentes nesses espaços. Segundo Paulo,
o desrespeito aparece e a partir dele começa a se trabalhar a questão do respeito,
desde a aparência até a opção sexual”. O docente sinaliza que é importante estar
atento às temáticas que surgem nas conversas cotidianas de alunas e alunos e,
partindo delas/es, suscitar discussões que coadunem com o que cada uma/um vive
na escola e na sociedade.
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A prática docente e as relações de gênero e sexualidades: conversando com professoras e professores
Respeito é acionado para falar das relações estabelecidas neste espaço de dis-
puta e negociação que é a escola. O respeito é entendido como necessário para as
relações entre alunos e alunas como adequadas, pacíficas, sem conflitos e sobretu-
do, como forma de aceitação das diferenças. Respeito pode ser entendido como re-
sultado das relações de saber-poder em Foucault (2011). Aquilo que sabemos diz de
formas de conhecer ancoradas historicamente e que nos constitui. Somos sujeitos,
resultado de saberes, atravessados por relações de poder, de maneira que respeitar
alguém está diretamente ligado a construção de si e do outro.
As falas demonstram que as/os professoras/es estão atentos ao que ocorre na
escola, identificam situações em que respeito e desrespeito estão em negociação
entre os alunos e as alunas, percebendo-se com interlocutores importantes para
problematizar essas construções. Também conseguem citar os aspectos causadores
do que estão classificando como desrespeito. Enfim, eles e elas constroem um qua-
dro que aponta para uma dicotomia representada pelos termos respeito/desrespei-
to, que não havia aparecido nos questionários respondidos. Ampliando um pouco
mais a análise, podemos sugerir que as/os alunas/os constroem suas identidades
(e seus pertencimentos) nas diferenças. Isso chega à escola, lugar de confronto e
negociação. A/O professora/or age e, ao agir, ela/e põe em prática um projeto de
“ser professor(a)”, “ser escola” e do aluno(a) “ideal”. Para esses docentes, a ética e o
respeito ao outro e às suas subjetividades devem ser praticados por todos e todas,
alcançando professoras/es e alunas/o, assim como sugerem que o desrespeito tam-
bém vem de ambos, o que deve ser repensado, conforme Marília e Paulo. Tal ponto
de vista é compartilhado pelo professor Luiz, que declara que
[...] o respeito deve ser ponto de partida em qualquer escola, pois os professores precisam
saber que os indivíduos têm suas escolhas [...] a questão da homossexualidade, por exemplo,
a gente percebe que tem muita criança que tem uma tendência ao homossexualismo e isso...o
ser humano tem que ter o direito de nascer do jeito que nasceu e ser do jeito que é.
De acordo com essas falas, é possível inferir que, nessas escolas, a partir des-
ses docentes, existe a preocupação em desenvolver, durante suas aulas, a prática
do respeito ao outro. Ferrari e Castro (2013b, p. 296) enfatizam a relevância de
[...] deixar claro que os discursos e práticas sobre os quais e desde os quais vamos trabalhar
partem do pressuposto de que as sexualidades não são fatos naturais, mas sim resultados
de articulação histórica, discursiva e socialmente construída.
Na defesa do respeito, as/os professoras/es demonstram ter conhecimento de
que as questões de discriminação e preconceito dizem de construções sociais, daí
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o entendimento sobre a necessidade de a escola implementar ações no sentido de
combater práticas que discriminam e desrespeitam, visando à construção de uma
sociedade menos preconceituosa e violenta. As narrativas das professoras/es estão
ancoradas na concepção de que a escola e a ação docente estão ligadas à construção
dos sujeitos. Como reflexo disso, tentam fazer as/os alunas/os se colocarem no lugar
do “outro”, como percebemos na afirmação do professor Luiz:
Pra mim, tudo passa pelo respeito. [...] eu falo muito com os meninos: “e se fosse com você?”
Quem se coloca no lugar [...] Eu sempre falo com eles “se coloque no lugar do outro, indepen-
dente de que situação seja, antes de julgar, de qualquer coisa, se fosse com você, como você
ia reagir a isso?
O professor coloca em prática uma forma de saber que, atravessada por rela-
ções de poder, diz dos encontros e desencontros entre sujeitos, buscando promover
o combate às discriminações e ao preconceito por meio do incentivo à empatia.
Partindo do princípio de que o gênero é um organizador social e de que a escola é
produto e produtora dessa divisão binária dos gêneros que marca nossa sociedade,
podemos pensar que uma das dificuldades enfrentadas no conjunto respeito/des-
respeito diz das relações de gênero. Com isso, queremos dizer que as questões de
enquadramento do gênero ocorrem cotidianamente, o que nos convida a pensar os
modos como os discursos funcionam para construir sujeitos detentores de um gêne-
ro e de uma sexualidade. A necessidade de respeito passa a ser uma reivindicação
das professoras e professores como ataque ao desrespeito.
Assim, respeito e desrespeito às expressões de gênero podem ser entendidos
como discursos que cumprem alguns propósitos políticos em nomear os sujeitos
generificados. Mais do que isso, diz dos embaralhamentos entre gênero e sexuali-
dade. Para Judith Butler (2018), os gêneros são resultados de atos performativos,
atos que, insistente e repetidamente, constituem homens e mulheres de acordo com
as normas de gênero que cada sociedade vai construindo. A escola e as relações que
se desenvolvem no seu interior são parte desse processo de construção de homens e
mulheres. Ao se apresentarem no espaço público, de forma geral, e nas escolas, em
especial, os corpos generificados não apenas demonstram sua existência, mas rei-
vindicam reconhecimento e valorização, exercendo o direito de aparecer e colocar
em prática a liberdade, reivindicando, em última instância, o direito a uma vida
que possa ser vivida (FOUCAULT, 2011a).
“Uma vida que possa ser vivida” é uma expressão cunhada por Michel Fou-
cault que nos convida a pensar nos modos de vida que experimentam outras for-
mas de ser e estar no mundo. Inspirado no arcabouço foucaultiano, Jamil Cabral
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A prática docente e as relações de gênero e sexualidades: conversando com professoras e professores
Sierra (2013) toma a vida de Gilda, uma travesti que viveu nas ruas de Curitiba da
década de 1980 para colocar sob investigação o modo de viver uma vida como sua
manifestação da verdade. Sierra (2013) argumenta que o investimento em vidas
que possam ser vividas diz do “trabalho de elaboração de uma noção sobre estética
da existência e modos de vida para, com isso, arriscar outras experimentações de
vivibilidade diante dos limites que individualizam o sujeito na lógica objetivadora
das identidades” (SIERRA, 2013, p. 103). Quando o professor Luiz provoca os/as
alunos/as a se colocarem no lugar do outro, ele as/os está incitando a viverem ou-
tras vidas, outras formas de ser e estar no mundo. Para isso, cada uma/um terá que
acionar formas de conhecer sobre o “outro”, que possibilitem se aproximar desse
outro que é o diferente.
Temos na escola um ambiente fértil, no qual é possível conduzir as mais va-
riadas discussões. As temáticas surgem o tempo todo, cruzando o currículo formal
com as demandas trazidas pela comunidade escolar, pelas/os funcionárias/os, pais,
alunas/os e docentes que percebem a necessidade de incluir novas problematiza-
ções e situações do interesse coletivo. O que as/os professoras/os nos dizem é que
a escola não fica limitada aos conteúdos prévios e programados, mas que há um
movimento vivo de construção do currículo a partir do que emerge no cotidiano
escolar, presente em discussões informais surgidas durante as aulas e/ou no tempo
de permanência na escola, elaborando, assim, um currículo oculto. Segundo Mar-
lucy Paraiso e Lucíola Santos,
A expressão “currículo oculto” tem sido muito utilizada, significando o conjunto de normas
e valores implícitos nas atividades escolares, porém não mencionados pelos professores
ou não intencionalmente buscados por eles. São, portanto, aprendizagens ou efeitos de
aprendizagens não intencionais que se dão como resultado de certos elementos presentes
no ambiente escolar. É constituído tanto de práticas como de mensagens não explicitadas
(SANTOS; PARAÍSO, 1996, p. 84)
A esse respeito, Antonio Flávio Moreira e Vera Candau (2007) acrescentam
que rituais e práticas fazem parte do currículo oculto, assim como relações hierár-
quicas, regras e procedimentos, modos de organizar o espaço e o tempo na escola,
modos de distribuir as/os alunas/os por grupamentos e turmas, assim como mensa-
gens implícitas nas falas dos/as professores/as e nos livros didáticos. Esse currículo
é o reflexo social e cultural de uma determinada forma de ver o mundo, trazida por
todas/os que constroem a educação no dia a dia de cada escola, configurando-se
como um instrumento político ligado à ideologia e às relações de poder institucio-
nalizadas nesses grupos e lugares e que se operacionaliza nas salas de aula.
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Para a professora Marília, “a escola reflete tudo, ela é o celeiro, tudo para ali,
e é normal que as diferenças apareçam... e por isso eu acho que a escola precisa tra-
balhar isso”. Ao dizer da necessidade de trabalhar com aquilo que chega à escola,
Marília se refere a um entendimento do currículo como algo vivo, em construção e
imprevisível, capaz de acolher e tratar dos temas e espaços que dialogam com a es-
cola. Recorrentemente, os/as alunos/as trazem temas que entrecruzam com gênero
e sexualidade, tais como bullying, preconceito, relações afetivas, dentre outros que
convidam as/as professoras/os a abordarem as relações de gênero e sexualidades,
assim como a manterem o diálogo aberto para outras questões trazidas para as
aulas, tendo “como desafio ‘manter viva a pergunta’, o que significa que os(as)
professores(as) não se tornem a própria ‘personificação do conhecimento’ sabendo
lidar com a dúvida, com as ‘novidades’ vivenciadas pelos(as) alunos(as)” (FERRA-
RI; CASTRO, 2013a, p. 76).
Ampliando os entendimentos da “necessidade de trabalhar isso”, como suge-
rido pela professora Marília, queremos pensar o porquê de o currículo oficial não
contemplar esses temas e como a escola lida com essa ausência. Alexsandro Ro-
drigues (2009, p. 66) afirma que “as pessoas desconfiam/reagem/resistem a esses
efeitos normatizantes de condutas e comportamentos, que são impressos nos tex-
tos/discursos do currículo e, ao reagirem, produzem”, ajudando-nos a entender os
enxertos cotidianos de temas nos currículos praticados, que extrapolam e superam
o currículo oficial, buscando atender às demandas de cada escola e de seus sujeitos.
O autor ainda acrescenta que, durante suas vivências nas escolas, as/os profes-
soras/es percebem e sentem que “a partir dos muitos fios de saberes das redes
cotidianas do fazer escola, que professores e alunos transgridem o receituário das
tecnocracias impressas no currículo prescritivo, oficializado, alterando-o e impri-
mindo seus significados” (RODRIGUES, 2009, p. 67).
O que as/os professoras/es nos dizem, de forma enfática, é que a escola propõe
algo, ela tem um planejamento que se relaciona com o que é oficial, com os currí-
culos, com os limites dos conteúdos e das disciplinas, com a pressão das provas em
larga escala. No entanto, esse planejamento não está garantido, sendo, o tempo
todo, afetado por aquilo que as alunas e os alunos trazem de fora, que diz dos seus
interesses e que, muitas vezes, está ligado às questões de gênero e sexualidades,
aos desejos, às paixões, aos conflitos, enfim, algo que é vida, que diz dos sujeitos e
suas aproximações e diferenças. Para Anna Paula Vencato (2014,
p. 24),
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A prática docente e as relações de gênero e sexualidades: conversando com professoras e professores
Embora a existência de diferenças possa ocasionar conflitos na escola, é preciso que tenha-
mos claro que o problema a ser enfrentado não são as diferenças, mas as desigualdades.
Diferenças devem ser entendidas como um sinônimo de riqueza, e devem ser valorizadas
dentro da escola e das práticas pedagógicas. É importante que estejam incluídas nos con-
teúdos, currículos, debates e nas relações entre os diferentes sujeitos que circulam nesse
ambiente. É preciso compreendê-las, conhecê-las e respeitá-las.
Ao trabalhar com as falas das professoras/es, queremos tomá-las como convite
ao pensamento, à história do pensamento que organiza nossas formas de ver o
mundo e de lidar com os sujeitos e conosco. É possível pensar novas abordagens a
partir da reação docente a episódios que categorizam, classificam e excluem. Para
Ferrari e Castro
(2013b, p. 316),
A formação docente pode ser um espaço/tempo em que os/as professores/as têm a oportuni-
dade de desconstruir concepções naturalizadas, abalar certezas prontamente construídas,
revisar seus próprios valores, colocá-los sob suspeita, repensar os currículos escolares e as
práticas pedagógicas, com vistas à ampliação das noções de saberes legítimos.
O olhar docente diz da percepção das possibilidades que cada sujeito traz
consigo e que exige problematizar as características visíveis relacionadas à sua
aparência, situação econômica e social numa perspectiva histórica, construindo, a
partir desse olhar sensível, novas formas de ver e viver no mundo do qual fazem
parte.
A construção de gênero na escola
Partindo da necessidade de problematizar os lugares que mulheres e homens
ocupam na sociedade atual, podemos colocar em perspectiva o papel desempe-
nhado pela escola na construção e na perpetuação do modelo que constrói e fixa
esses lugares, como sendo adequados para uns e não para outros. Sobre isso, as/
os docentes declaram que “as construções sociais estão dentro da escola, e a gente
mesmo precisa ter cuidado com isso, porque a gente mesmo às vezes brinca com o
aluno e essas brincadeiras reforçam o preconceito e reforçam o desrespeito com o
outro” (Paulo). Ou ainda: “a menina já tem que ter um caderno mais arrumadinho,
a gente já carrega isso pra dentro da escola”; “se você elogia a letra de um aluno,
o pessoal fica gozando...e a gente precisa combater isso”; “tem isso de isso não é
coisa de menina, isso não é coisa de menino” (Marília). Enfim, falas que conduzem
para o entendimento dos gêneros como construção relacional entre ser homem e
ser mulher. Tais aspectos são defendidos por autoras como Judith Butler (2015),
que afirma que o gênero se constrói por diferentes discursos os quais, para além
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de descrevê-los, atuam formando o que ele é. O gênero de cada criança, ao nascer,
já aparece vinculado à sua genitália de forma contundente, como se tivesse sua
origem a partir de um pênis ou uma vulva, quando não se pode mais negar que
essas construções se dão por meio dos reiterados discursos (hetero)normativos que
nos dizem cotidianamente como ser uma “mulher de verdade” ou um “homem de
verdade”.
Segundo o professor Cristiano, “quando a gente tem casos de gêneros distintos,
de opções sexuais, o desrespeito aflora mais”. Esse professor relata o caso de um
aluno, numa turma de faixa etária de cerca de 11 anos de idade, que “tinha um
corpo de menino, mas se identificava como menina e assumiu essa identidade, e os
outros faziam piadas, brincadeiras entre si, ou outros brincavam com desrespeito”,
e reforça que, nesses casos, em que o desrespeito “aflora” ele precisa ser combatido
mais efetivamente. Nas respostas e comentários, as/os entrevistadas/os ressaltam
que é comum entre as/os docentes, de uma forma geral, a falta de conhecimento,
por exemplo, sobre os processos de transgeneridades
4
. No exemplo utilizado, o pro-
fessor afirma que “muitos colegas e funcionários da escola não sabiam como tratar
esse aluno”, chamando-nos a problematizar as oportunidades de discussão que as/
os docentes têm a respeito das múltiplas possibilidades de gênero, para além dos
binarismos que compõem a norma padrão e os exercícios possíveis da sexualidade
para além da heterossexualidade compulsória.
A esse respeito, Vencato (2014, p. 29) ressalta a importância da discussão na
formação de professoras/es:
Não é novidade nos cursos de licenciatura a ausência, para a formação de docentes, de
subsídios que lhe proporcionem a construção de um arcabouço teórico-metodológico que
lhes ajude a lidar com as diferenças. Essa ausência se amplia ainda mais quando a diferen-
ça refere-se a questões de gênero, das sexualidades – ou orientações sexuais, termo mais
comumente (re)conhecido na arena das políticas públicas – e da raça/etnia.
As/os docentes entrevistadas/os percebem, de forma efetiva, que a construção
de gênero se dá nos espaços das escolas em que cada uma/um atua. Também reco-
nhecem o incômodo diante de situações nas quais esse estabelecimento de papéis
dirigidos a um ou a outro gênero binário se converte em recursos discriminatórios,
em meios opressivos contra aquelas/aqueles que não se enquadram às normas e
regras sociais previamente estabelecidas. Segundo Butler (2018, p. 41), “a preca-
riedade está, talvez de maneira óbvia, diretamente ligada às normas de gênero,
uma vez que sabemos que aqueles que não vivem seu gênero de modos inteligíveis
estão expostos a um risco mais elevado de assédio, patologização e violência”.
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A prática docente e as relações de gênero e sexualidades: conversando com professoras e professores
De acordo com o professor Paulo, os lugares estão marcados. Como, na escola,
essas marcações não estão sendo colocadas sob suspeita, são pouco questionadas:
“para o menino, é o lugar da rua, a menina é o lugar da casa. Então, eu acho que
essa marca da nossa sociedade, ainda, ela acaba por definir isso”. Os lugares de
gênero parecem confirmados na escola, tanto para meninos quanto para meninas.
Porém, identificar esse processo não garante a atuação nele, ou seja, parece que
confirmam o que já sabem e, ao encontrarem essa confirmação, não se sentem
chamados a atuar sobre ela. A professora Marília corrobora com a afirmação do
colega, dizendo que “ela é mais cobrada, ela é mais vigiada mesmo”, referindo-se
à condição em que as meninas são colocadas em seus cotidianos, incluindo-se, aí,
a escola.
As/os docentes chamam a atenção também para a vigilância promovida pe-
las/os próprias/os professoras/es, quando parte destas/es assume o discurso que
naturaliza a heteronorma, tendo efeito de controle sobre os corpos, o que é exem-
plificado na fala de Paulo: “Não adianta fazer o discurso politicamente correto e
chegar na sala de aula e falar: ‘você fez isso, ah veado!’, e a gente vê isso na escola”.
A professora Ana argumenta, ainda, que essa construção é aliada à discriminação,
muitas vezes presente, sobretudo, no curso noturno de sua escola:
No noturno, a gente percebe muito. Que ainda tem: “não, isso não é coisa de homem.” […] É
o chorar. “Nossa, fulano… Nossa, isso não é coisa de homem, não. Homem não chora, não”.
E se a gente for parar pra pensar, esse tipo de comentário, ele já vem recheado de muito tipo
de preconceito. Eu sinto por parte de alguns professores algumas piadas que a gente… meio
que… aceita como comum entre, quando você está falando, quando vários homens estão
conversando e tudo… Mas, principalmente, a gente percebe o desviar do assunto. É mais fácil
não abordar do que enfrentar. É mais fácil você em momento algum se indispor. Mas isso é
muito uma postura de direção. Pra que promover um debate?
O professor Cristiano também contribui para a discussão, ao trazer o relato
sobre a presença dessas falas em sua escola:
E a questão das piadinhas, isso também é muito comum, é muito comum: “Não, isso é coisa
de mulher, isso é coisa de homem”; “ó, não abraça o colega não que isso é coisa de viado”;
“ó, pô, você é viadinho, pelo amor de Deus, vira homem”. O “vira homem”, então, você escuta
cotidianamente na escola aluno falando com outros alunos e professor na hora da aula.
O professor Paulo complementa, dizendo também a respeito de tais práticas
na escola em que atua: “lá a gente escuta professor falando com aluno: ‘vira ho-
mem’”, traduzindo e reafirmando práticas as quais reforçam o modelo binário que
está imposto na escola, ao declarar que existe uma forma de ser homem, não várias
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formas de ser, além de outras opções e possibilidades para além do que se configura
como ser homem.
Retornando às falas da professora Ana, ela constrói várias situações que
nos permitem problematizar as relações em sua escola, envolvendo alunas/os e
professoras/es, cujas posições de discriminação às vezes se confundem, se repe
-
tem e/ou coincidem. Quem educa também deseduca, ou educa para o preconceito,
quando deixa de combater as posturas e os discursos de discriminação. Também
chama a atenção para o que é comentado por outras/os docentes a respeito da
prática de ignorar o ocorrido, o que se ouve, fingir que não aconteceu e deixar
como está, sugerindo, inclusive, ser esta uma postura da direção da escola que,
segundo ela, prefere se abster a tomar posições contrárias às práticas sexistas e
homofóbicas.
Ela nos conta, ainda, de outra prática de sua escola: “a chamada é separada:
meninos primeiro, meninas depois. [...] É estranho esse tipo de organização. Porque,
se você segue a questão alfabética, é o mais correto. É o lógico”. O gênero é uma
forma de organizar o social. Assim como a fila ou a ordem alfabética dos diários,
o gênero pode ser utilizado para organizar a realidade. Segundo Larissa Pelúcio
(2014, p. 114),
O desafio de se trabalhar fora dos marcos identitários e das referências binárias relativas
aos gêneros e à orientação sexual é exigente, pois demanda torções na nossa forma de
perceber as dinâmicas sociais que oferecem esses termos classificatórios capazes de definir
e fixar identidade.
Nesse sentido, cabe, então, questionar: o que faz alguém definir essa divisão
como organização de uma burocracia escolar? Como investir em outras maneiras
de lidar com os corpos sem a manutenção da divisão binária? Essas são questões
que incomodam, ou que deveriam incomodar, as/os professoras/es que estão coti-
dianamente participando da reprodução dessas separações autoritárias do gênero.
As/os professoras/es reconhecem sua formação social enquanto sujeitos e como isso
é atravessado pelo gênero, ao mesmo tempo em que reconhecem também que a
escola é o local de pensar e investir em outras formas de ser e estar no mundo.
A insegurança docente: “não me sinto preparada/o para tratar esses assuntos”
O roteiro utilizado nos grupos focais, elaborado a partir das respostas dos
questionários, trazia para a discussão o sentimento de despreparo que professo-
ras e professores afirmaram vivenciar. Em muitos momentos de suas declarações,
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A prática docente e as relações de gênero e sexualidades: conversando com professoras e professores
deixaram claro que existe demanda por formação, assim como a possibilidade e
a necessidade de discutir relações de gênero e sexualidades na escola. Durante
esses encontros, quando vieram à tona as respostas que deixavam clara essa
sensação de despreparo, uma nova questão emergiu, quando o professor Paulo
afirma:
[...] quanto à falta de capacitação, eu acho que, sim, falta capacitação, mas falta principalmen-
te interesse e disposição pra se colocar o debate porque muitas vezes essa capacitação é
oferecida, mas não há um interesse pela procura dessa capacitação.
Já o professor Cristiano complementa:
Eu penso que falta realmente vontade e falta, às vezes, [...] conhecimento e falta também a
pessoa querer fazer esse trabalho porque muitas vezes a pessoa, ela já tem determinados
preconceitos, determinados pensamentos relacionados às discussões… relacionados à di-
ferença, a gênero e outras mais, e a partir dessa vontade dela de não abordar esse assunto
porque vai ser polêmico, vai trazer determinadas situações pra sala de aula, ela simplesmente
não aborda. E talvez por isso falte o interesse na capacitação porque a pessoa realmente não
quer trazer pra sala de aula algo que é polêmico.
Não é possível simplificar as decisões e as atitudes das/dos docentes a um sen-
so comum, de “quero ou não quero”, pois a possibilidade de formação vem associada
a vários outros fatores presentes na vida cotidiana dos sujeitos. Ser professora e
professor traz consigo o ser mulher/homem, mãe/pai, esposa/o, namorada/o, ami-
ga/o, estar muitas vezes em mais de uma escola ou outro espaço profissional, que
não apenas à docência, espaços de lazer e prazer, viagens, família e tantas outras
possibilidades de viver no mundo que cada pessoa traz em si e para si. A esse res-
peito, Antônio Nóvoa (1992, p. 12-13) afirma que
[...] a formação de professores tem ignorado, sistematicamente, o desenvolvimento pessoal,
confundindo “formar” e “formar-se”, não compreendendo que a lógica da atividade educa-
tiva nem sempre coincide com as dinâmicas próprias da formação [...] Urge por isso (re)
encontrar espaços de interação entre as dimensões pessoais e profissionais, permitindo aos
professores apropriar-se dos seus processos de formação e dar-lhes um sentido no quadro
das suas histórias de vida.
Podemos inferir, portanto, que há demanda real e extensa por formação, mas
há, ainda, a necessidade de olhar com sensibilidade para as questões subjetivas
das/dos docentes, que as/os formam e transformam em professoras/es. Nóvoa (1992)
considera que os indivíduos trazem consigo suas bagagens emocionais, culturais,
religiosas e outros fatores de formação que, juntos, constituem cada uma/um. A
formação está em diálogo com esses aspectos que constituem cada indivíduo, que
não pode e nem consegue despir-se totalmente disso, que é parte da sua individua-
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lidade, em pouco tempo ou de um momento para o outro. Sobre os professores, Ma-
rília diz: “Eles têm a opinião formada e ela tem que se despir de todo o preconceito”.
Podemos dizer, então, que ser docente é um exercício de aprendizagem constante,
em oportunidades que se somam no cotidiano de cada sujeito, enquanto este se
forma e se transforma como ser humano e profissional.
A professora Ana insiste a respeito da necessidade de formação, seja na gra-
duação, seja na formação continuada. A docente relata ser comum ouvir de alunas/
os e na mídia termos cujo significado ela desconhece, demonstrando, também, a
preocupação com a linguagem que chamou de “politicamente correta”, pois “a cada
dia a gente ouve a mesma coisa sendo dita de outro jeito”. E complementa sua fala:
Falta, falta. Falta sim. Principalmente com relação ao que eu te falei, a questão dos termos,
terminologia… Outro dia a gente estava comentando exatamente isso, como você chama uma
criança que tem isso de uma forma não preconceituosa? Ah, mas a partir do momento que
você rotula que tem isso, você já está sendo preconceituoso, então… Eu falei até na questão
de necessidades especiais aqui dentro da escola. Um dia, eu lembro que eu comentei com
uma amiga minha: nossa, vai ter um deficiente visual na Malhação. E ela: nossa, demorou
tanto pra falar cego. Que eu parei e pensei assim, até que ponto o politicamente correto não
está fazendo a gente deixar de discutir muita coisa? Porque, às vezes, você percebe na fala do
outro, que tem um conhecimento maior, igual colocou aqui da questão do… amor afetivo (Ana).
Essas falas demonstram que não é o caso de apenas construir a formação
numa dimensão pedagógica. É preciso investir em produção de saberes e, nesse
sentido, pensar na criação de redes de formação, em que seja permitido atuar com
o sujeito, sugerindo a troca de informações, experiências e partilha de saberes, na
construção do espaço de formação.
Outra ideia que surgiu e suscitou debate foi a busca pela sensação de “estar
preparado” para lidar com as questões que propusemos. Contudo, podemos inda-
gar: que preparo é esse? Existe uma forma de estar preparada/o para esta ou outras
abordagens ou o aprendizado se dá nas relações que se estabelecem no cotidiano?
A esse respeito, Ferrari e Castro (2013b, p. 299) contribuem com nossa discussão,
ao também indagarem:
É mesmo necessário que professoras e professores recebam formação para lidar com as
homossexualidades nas escolas? Se for o caso, como deve ser essa formação? Por que foi
possível formular essas questões? O que elas dizem de nós? Essas são reflexões que buscam
problematizar o interesse pelas homossexualidades, pela formação docente, relacionando-
-as às questões da sexualidade e das homossexualidades e anunciando algumas possibili-
dades para a construção de olhares plurais e “desconstrutivos” sobre as identidades sexuais
nas escolas.
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A prática docente e as relações de gênero e sexualidades: conversando com professoras e professores
Variadas afirmações ouvidas durante esse trabalho de escuta e pesquisa su-
gerem que, nos currículos de formação de professoras/es, não havia, até recente-
mente, espaço para as discussões de gênero e sexualidades. De acordo com Kelly
da Silva (2015), a abordagem do tema e sua introdução nos currículos de formação
das universidades, na forma de disciplinas eletivas/optativas, é bastante recente e,
como disciplina obrigatória, ainda é uma novidade e uma esperança.
Perguntadas/os se haviam discutido na formação acadêmica esses temas, a
resposta foi negativa. Todas/os, sem exceção, afirmaram que nunca se depararam
com a discussão durante seus processos de formação acadêmica. Segundo Cristia-
no, graduado em Educação Física:
Não que eu me lembre. Assim, de tratar o tema, de trazer a discussão, do tema gênero e
sexualidade, não. Diferença, sim, uma discussão numa matéria de Educação Física adaptada,
mas mais voltada pra questão do aluno deficiente.
Marília, professora de Geografia, lembrou que, em sua área de formação, havia
poucas mulheres nas turmas: “e meu curso já é um curso que a maioria é homem,
né? Eu lembro quando eu entrei eram quatro mulheres na sala. Então, a Geografia
tem uma predominância masculina muito grande. Aí então não discutia mesmo”. E
essa informação é reforçada por Paulo, ao dizer: “História também, na minha época,
quando eu formei… Na minha época, o meu curso tinha mais homem”. É possível
perguntarmos, por meio dessas falas: por que em turmas nas quais predominam
estudantes do gênero masculino, espera-se que não haja a discussão relacionada
a gênero e sexualidades, como sugerem a e o entrevistada/o? Será a discussão de
gênero e sexualidades um assunto para docentes mulheres?
Pensando na formação dos conhecimentos, Silva Junior (2013, p. 71) afir-
ma que “o reforço dos controles e das resistências encadeiam-se uns aos outros,
segundo algumas grandes estratégias de saber e poder”. Recorrendo também à
perspectiva de desvelamento do que está implicado na sexualidade, como Foucault
(2011, p. 100) defende, podemos ter, como um ponto de partida, a premissa de que
vivemos ancorados em normas que impõem o binarismo de gênero. Estamos vendo
esse processo acontecer nos cursos de formação, em que ainda temos áreas que são
tidas como mais de mulheres e outras de homens. Segundo Kelly da Silva (2015),
é possível perceber que as discussões de gênero e sexualidades estão chegando
às instituições de formação de professoras/es, porém, ainda precisamos perguntar
como isso está se dando nos diferentes conteúdos. A autora demonstrou, em seu
trabalho, que, nos cursos de Pedagogia, as disciplinas já estão acontecendo, embora
ainda haja demanda por mais espaço nos currículos desses cursos.
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AndersonFerrari, Claudete Imaculada de Souza Gomes, Cláudio Magno Gomes Berto
Para Ferrari e Castro (2013b, p. 312):
O “tornar-se professor(a)” não é algo que se possa fazer apenas durante um curso de for-
mação inicial ou através de cursos específicos de formação continuada. Esse é um processo
constituído a partir de inúmeras experiências, construídas no movimento e nas mudanças
que se dão ao longo do trajeto. Através da “viagem de formação”, o(a) professor(a) constrói
e reconstrói a sua subjetividade. Desse modo, as práticas de formação de professores(as)
não só produzem sujeitos, mas instauram uma relação reflexiva do(a) professor(a) consigo
mesmo(a).
Nesse sentido, Roney Polato de Castro (2014) argumenta a favor da problema-
tização das relações entre os currículos de formação docente e as temáticas das re-
lações de gênero e sexualidades, afirmando que isso deve ser feito “a partir de con-
dições de emergência de redes discursivas que vem se delineando no plano político,
de produção e conhecimentos e da vida cotidiana” (CASTRO, 2014, p. 73). É tempo
de repensar esses currículos, trazendo para seus espaços porosos novas formas de
discussão que possam fomentar a constituição de mais disciplinas e o trânsito dos
temas em questão pelas áreas que já existem. Isso pode trazer enriquecimento e
amplitude de abordagem aos cursos de formação.
Considerações nais
O conjunto das respostas demonstra que as/os professoras/es adquiriram, em
algum momento da vida, um conhecimento que se refere às relações de gênero e
sexualidade e conseguem fazer articulações com o seu fazer docente. Esse conhe-
cimento é, ao mesmo tempo, um reconhecimento das contribuições teóricas das
discussões de gênero e sexualidades. Para além disso, dizem também do processo
de fabricação dos sujeitos, sejam como professoras/es ou como alunas/os. Elas/eles
trazem à tona saberes sobre o que seria gênero e sexualidades e, assim, o que signi-
fica trabalhar com essas temáticas, acionando entendimentos de escola e educação.
A escola é esse espaço de fabricação dos sujeitos. Como gênero é um organi-
zador social, ele está presente na escola, convocando professoras/es a trabalhar
com ele, mesmo que não tenham clareza disso. Nesse sentido, o que é apontado
neste trabalho é que fazemos coisas com os gêneros e as sexualidades, que somos
subjetivados pelos saberes que nos povoam e que nos dizem dos sujeitos. Na sala de
aula, isso se soma às subjetividades de professoras/es, numa posição de sujeito que
convoca a questionar: “quem eu penso que sou?”, “quem eu penso que meus alu-
nos e alunas são?” e “quem eu quero ser?”, assim como “quem eu quero que meus
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A prática docente e as relações de gênero e sexualidades: conversando com professoras e professores
alunos e alunas sejam?”. O trabalho das/os professoras/es está implicado nesse
processo de investimento nos sujeitos. Não é por acaso que trazem para o debate
a associação com outras categorias como “diferenças”, “diversidade”, “preconceito”,
conceitos que se somam às discussões e que fornecerão o entendimento de gênero e
sexualidade; conceitos e saberes que são atravessados por relações de poder, como
nos lembra Foucault (2011).
O que estas/estes professoras/es nos dizem é que as escolas trabalham com
as relações de gênero e sexualidades de diferentes maneiras. Saem e nos tiram
do lugar de reclamação, que marca esse campo, de que a escola não discute e, por-
tanto, não trabalhamos com gênero e sexualidade nas escolas. Não negam que as
escolas – traduzidas nas suas ações, já que escola diz do conjunto da ação docente
em articulação com currículo, com a relação ensino/aprendizagem, etc. – têm difi-
culdades em discutir essas questões, mas isso não significa que não fazem nada.
Nesse sentido, o que a pesquisa demonstrou é que a questão mais importante não
é saber se fazemos ou não, mas o que fazemos sem, muitas vezes, nos darmos conta
de que estamos construindo ideias e sujeitos. As/os docentes abordam os temas re-
ferentes às relações de gênero e sexualidades porque reconhecem que as/os alunas/
os estão interessadas/os nas temáticas, elas dizem delas/es e trazem as questões.
As discussões de gênero e sexualidade suscitam a atenção para aquilo que “invade”
a escola, num olhar que se traduz na identificação das pequenas possibilidades de
fugas e resistências, micropoderes cotidianos que nos constituem, sendo possível
pensar outras formas de ser e estar no mundo.
Por isso, acreditamos na potencialidade deste trabalho ao refletir sobre o fa-
zer/ser professoras/es em meio às práticas cotidianas, que devem ser retomadas e
problematizadas para pensar outras formas de ser escola, de ser educação, de ser
sujeito. Existem resistências nas escolas, seja no voltar o olhar para o seu próprio
fazer docente para colocar sob suspeita o que pensamos e como agimos, seja no
voltar o olhar para o que as/os alunas/os estão propondo nos gestos, nas conversas,
nas dúvidas e que está presente no conjunto do que são as relações de gênero e se-
xualidades. Podemos, por fim, perceber, nas escritas das/dos professoras/es, como o
gênero e seus atravessamentos com a sexualidade estão diretamente ligados à no-
ção de verdade dos sujeitos, como vamos nos tornando sujeitos de uma sexualidade.
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AndersonFerrari, Claudete Imaculada de Souza Gomes, Cláudio Magno Gomes Berto
Notas
1
As quatro questões foram: você aborda, durante suas aulas, os temas referentes a relações de gênero e
sexualidades? Se a resposta foi afirmativa, quais temáticas são abordadas dentro desses temas? A escola
é um bom espaço para as discussões de gênero e sexualidades? Você identifica problemas, preconceitos,
discriminações, ligadas a gênero e sexualidades em suas aulas? Descreva um pouco o que tem observado.
2
Todos os nomes são fictícios, respeitando o anonimato das/dos participantes.
3
O itálico está sendo usado para diferenciar excertos da pesquisa de citações bibliográficas.
4
Utilizamos o termo “transgeneridades”, seguindo a definição proposta por Magno (2017, p. 12), como ter-
mo “guarda-chuva”, referindo-se de forma genérica ao conjunto de identidades e/ou práticas de gênero
que rompem as expectativas de identificação e/ou performance baseadas no sexo/gênero designado ao
nascimento, englobando, assim, travestis, transexuais, crossdressers, pessoas de gênero não-binário, entre
outras.
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Samuel Mendonça, José Aguiar Nobre
A receptividade e a difusão do pensamento de John Dewey no
Brasil entre 1930 e 1960
1
The receptiveness and the diusion of John Dewey’s thought in Brazil between 1930 and 1960
La receptividad y la difusión del pensamiento de John Dewey en Brasil entre 1930 y 1960
Samuel Mendonça
*
José Aguiar Nobre
**
Resumo
Ao comemorar, em 2019, 160 anos de nascimento do lósofo John Dewey, há interesse em saber como a sua
losoa tem sido explorada nas reexões escolares no Brasil. Frente a isso, indaga-se: qual a receptividade do
pensamento de John Dewey no Brasil e a difusão atual de suas ideias? A tarefa é árdua, no entanto, necessária,
dadas as leituras e interpretações feitas no Brasil por meio do pensamento de John Dewey. O objetivo central do
ensaio consiste em entender como e em que medida houve difusão do pensamento losóco de John Dewey
no Brasil bem como os desaos atuais para que a difusão de suas ideias continue. Não se ousa esquadrinhar
todos os escritos sobre Dewey no Brasil, pois isso resultaria em uma tarefa impraticável. A metodologia está cir-
cunscrita a uma pesquisa bibliográca que busca evidenciar a receptividade do pensamento de Dewey e atual
difusão de suas ideias no período de 1930 a 1960. A hipótese é de que, considerando a grande contribuição da
losoa deweyana na educação brasileira, ainda há muito o que ser explorado e pesquisado, não obstante a
caudalosa literatura já produzida sobre ele no Brasil. Isso é apontado com um desao para a formação humana
integral e crítica. Os resultados demonstram que a democracia e a liberdade de expressão, fundamentadas na
losoa revolucionária de John Dewey, ganham peso ao permitirem um maior desenvolvimento dos indivíduos.
Argumenta-se que, no Brasil, quanto mais a sua losoa estiver presente nas atividades escolares, mais fornecerá
instrumentos para a manutenção emocional e intelectual dos educandos e, consequentemente, para um maior
aporte à educação no país.
Palavras-chave: John Dewey. Difusão. Educação. Receptividade. Brasil.
*
Pós-doutorado pelo Departamento de Economia da Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São
Paulo (USP, Brasil). Bolsista Produtividade em pesquisa do CNPq. Professor Titular vinculado ao Programa de Pós-
graduação em Educação, Mestrado e Doutorado, na Pontifícia Universidade de Campinas (PUC-Campinas, Brasil).
ORCID https://orcid.org/0000-0002-2918-0952. E-mail: samuelms@gmail.com
**
Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ Brasil). Docente da Faculdade de
Teologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP Brasil). ORCID https://orcid.org/0000-0002-6624-
7888. E-mail: nobre.jose@gmail.com
Recebido em 09/05/2019 – Aprovado em 22/09/2019
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i1.10584
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A receptividade e a difusão do pensamento de John Dewey no Brasil entre 1930 e 1960
Abstract
By celebrating in 2019, 160 years of the birth of the philosopher John Dewey, there is an interest in knowing how
his philosophy is being explored in school reections. However, one asks: what is the receptivity of John Dewey’s
thinking in Brazil? The proposal is arduous, however, necessary, given the readings and interpretations made in
Brazil through the thought of John Dewey. The central objective of the essay is to understand how and to what
extent John Dewey’s philosophical thinking has spread in Brazil as well as the current challenges for the spread
of his ideas to continue. One does not dare to scan every writing about Dewey in Brazil, as this would result in an
impractical task. The methodology is limited to a bibliographical research that seeks to highlight the receptivity
of Dewey ‘s thought and the current diusion of his ideas from 1930 to 1960. The hypothesis is that, in view of
the great contribution of Deweys philosophy in Brazilian education, there is still much to be explored and rese-
arched, despite the abundant literature already produced on it in Brazil. The results express that democracy and
freedom of expression, grounded in the John Dewey’s revolutionary philosophy, gain weight by allowing greater
development of individuals. In Brazil, the more its philosophy is present in school activities, the more it will pro-
vide instruments for the maintenance of emotional and intellectual development of children and, consequently,
for a greater contribution to education in the country.
Keywords: John Dewey. Diusion. Education. Receptivity. Brazil.
Resumen
Al conmemorar en 2019, los 160 años de nacimiento del lósofo John Dewey, se tiene interés en saber cómo
se explora su losofía en las reexiones escolares en Brasil. Ante a esto se pregunta: ¿cuál es la receptividad del
pensamiento de John Dewey en Brasil y la difusión actual de sus ideas? Del mismo modo, se considera conscien-
temente el inmenso desafío de encontrar una respuesta mínimamente satisfactoria. El objetivo principal de
este artículo es comprender cómo y en qué medida el pensamiento losóco de John Dewey se ha asimilado
en Brasil, así como los desafíos actuales para continuar la difusión de sus ideas. No si espera como logro, exami-
nar cada escrito sobre Dewey en Brasil, ya que esto resultaría en una tarea poco práctica. La metodología está
limitada a una investigación bibliográca que busca evidenciar la receptividad del pensamiento de Dewey y la
difusión actual de sus ideas en el período de 1930 a 1960. La hipótesis es que, considerando la gran contribución
de la losofía de Dewey en la educación brasileña, todavía hay mucho por explorar e investigar, apesar de la
literatura caudal ya producida al respecto en Brasil. Esto se señala como un desafío para la formación humana,
integral y crítica. Los resultados muestran que la democracia y la libertad de expresión, basadas en la losofía
revolucionária de John Dewey, crecieron al permitieren mayor desarrollo de las personas. Se argumenta que, en
Brasil, cuanto más esté presente su losofía en las actividades escolares, más va a proporcionar instrumentos
para el mantenimiento emocional e intelectual de los estudiantes y, como consecuencia, una gran contribución
a la educación del país.
Palabras claves:John Dewey. Difusión. Educación. Receptividad. Brasil.
Introdução
Em 20 de outubro de 1859, na cidade de Burlington, Vermont, EUA, nasce
John Dewey, que se tornou um dos maiores pedagogos e filósofos norte-americanos.
Após uma belíssima e vasta trajetória acadêmica e intelectual, veio a falecer no dia
1º de junho de 1952, em Nova Iorque, EUA. No meio educacional, é inegável a sua
ousadia na defesa de valores democráticos, demonstrando que a sua preocupação
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se volta para a formação do indivíduo na sociedade. Por isso, entende-se que a sua
filosofia da educação diz respeito à área de apropriação de um pensamento tão
complexo, atual e relevante para a formação humana.
A pesquisa tem como problema a seguinte pergunta: qual a receptividade do
pensamento de John Dewey no Brasil e a difusão atual de suas ideias? A tarefa é
árdua, no entanto, necessária, dadas as leituras e interpretações feitas no Brasil
por meio do pensamento de John Dewey. O objetivo central do ensaio consiste em
entender como e em que medida houve assimilação do pensamento filosófico de
John Dewey no Brasil bem como os desafios atuais para que a difusão de suas
ideias tenha continuidade. Não se ousa esquadrinhar todos os escritos sobre De-
wey no Brasil, pois isso resultaria em uma tarefa impossível. A metodologia está
circunscrita a uma pesquisa bibliográfica que busca evidenciar a receptividade do
pensamento de Dewey e atual difusão de suas ideias no período de 1930 a 1960. A
hipótese é de que, tendo em vista a grande contribuição da filosofia deweyana na
educação brasileira, ainda há muito o que ser explorado e pesquisado, não obstante
a caudalosa literatura já produzida sobre ele no Brasil. Isso é apontado como um
desafio para a formação humana, leitmotiv de pesquisas sobre o campo da filosofia
da educação no Brasil, sejam as desenvolvidas pelo GT Filosofia da Educação da
Anped, Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (2019) ou
mesmo da Sociedade Brasileira de Filosofia da Educação (2019).
A originalidade deste artigo remete à consideração de que em revisão de
literatura feita nas bases SciELO e Scopus, por meio do Portal de Periódicos da
Capes, em janeiro de 2019, utilizando-se dos descritores receptividade e John De-
wey, refinando para a área de educação e da formação humana, não se encontrou
estudos que tivessem feito este balanço de como a obra de John Dewey chegou no
Brasil. Que houve a influência de Anísio Teixeira, é preciso reconhecer, no entanto,
buscar conhecer como se deu a receptividade de sua filosofia no Brasil e mesmo
avaliar a sua difusão nos dias de hoje é novidade. A relevância do estudo se justi-
fica, em primeiro lugar, pela expressividade do autor, um teórico da educação re-
nomado em países do hemisfério norte. Um elemento a mais diz respeito a estudos
que têm sido feitos no Brasil sobre Dewey, como é o caso do dossiê sobre os 100 anos
do livro Democracy and Education, publicado pela Revista Espaço Pedagógico, da
Universidade Passo Fundo (2019). Então, este estudo poderá auxiliar a outros pes-
quisadores, de níveis distintos, da graduação ao doutorado, com pesquisas sobre
democracia ou mesmo sobre aspectos que tratam do ambiente escolar e da forma-
ção humana em geral.
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A receptividade e a difusão do pensamento de John Dewey no Brasil entre 1930 e 1960
John Dewey levou o mundo para dentro da escola e das ciências com o espírito
inerente ao dinamismo da vida. Vale destacar que em todos os tempos e lugares se
faz necessário entender que “[...] a ciência é procura, não é conquista do imutável.
[...] os grandes inovadores, na órbita das ciências, ‘são os primeiros que temem e
duvidam de suas descobertas’” (DEWEY, 1959, p. 26, grifo do autor). É nesse senti-
do de conhecimento da riqueza da sua filosofia que, no caso específico deste texto,
os autores preocupam-se em entender como e em que medida houve difusão do
pensamento filosófico de John Dewey no Brasil. Desse modo, ao se debruçar sobre
o alcance da teoria de Dewey aplicada no Brasil, quiçá poder-se-ia ter uma nova
visibilidade e inserção da caudalosa literatura de tão eminente figura da educa-
ção nos currículos escolares. E, por certo, a democracia e a liberdade de expressão
poderão continuar a ter vida nas terras tupiniquins, em épocas que reivindicam
resistências e maleabilidade, conceitos protagonizadas pela filosofia pragmatista,
que prioriza o diálogo e o combate a quaisquer tipos de censuras e retrocessos.
Não obstante todo o volume de textos que já existe sobre John Dewey no Brasil,
ressalta-se que ainda se faz necessário avançar na reflexão e análise da filosofia de
John Dewey no campo escolar brasileiro. Lins (2015), Mendonça e Gotierra (2019)
argumentam, por exemplo, que Dewey sempre aparece em currículos de cursos de
Pedagogia, seja porque há referência ao Movimento dos Pioneiros da Educação,
seja em disciplinas como História da Educação ou mesmo de Filosofia da Educação,
no entanto, estudos mais sistemáticos que focalizem a sala de aula ou mesmo a ad-
ministração da educação em cursos de Pedagogia precisam ser estimulados. Dewey
se faz presente em discussões em torno de política educacional e mesmo de avalia-
ção, mas, é preciso estimular o seu estudo em curso da área de Educação, bem como
naquelas em que a interdisciplinaridade para a concretização da formação humana
se fizer necessário. Nos Estados Unidos da América, muitos estudos têm sido feitos
utilizando-se de John Dewey, sejam por meio da John Dewey Society (JDS, 2019)
ou mesmo da Philosophy of Education Society (PES, 2019).
Em um contexto tão exigente em escala global como o atual, marcado de forma
contundente por tamanha crise humanitária, que atinge vários níveis – moral, po-
lítico, religioso, econômico e ambiental –, entende-se que se faz necessário revisitar
constantemente literaturas como a de John Dewey. No caso específico do Brasil,
que atravessa um momento de crise na política, com supressão de recursos para
as universidades, segue urgente e redobrado esse intuito em forma de resistência
como, por exemplo, a dos defensores da falaciosa Escola sem Partido, cuja confusão
e clima de medo comprometem a qualidade da aprendizagem
2
.
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Samuel Mendonça, José Aguiar Nobre
Corroborando a argumentação de Lins (2015), a mudança de foco na Pedago-
gia que passa a valorizar a ação do estudante, mantendo a figura do professor como
autoridade se deve à compreensão do pensamento de Dewey, que criticou a chama-
da escola tradicional na defesa do que chamou de escola progressista. A discussão
mais detalhada desta defesa e crítica pode ser encontrada em seu livro Experience
and Education (1997).
A escola, na filosofia de John Dewey, é compreendida como instrumento de
transformação. Com o tripé experiência, investigação e descoberta, a filosofia de
John Dewey possibilita aos atores do processo educacional perceberem que, para
essa escola, as ideias só têm importância quando servem de instrumento para a
resolução de problemas reais. Passamos a tratar da linha do tempo a partir da
seguinte indagação: como a filosofia de John Dewey veio para o Brasil?
Como a losoa de John Dewey veio para o Brasil?
Para situar na história a chegada da filosofia de John Dewey no Brasil, é pre-
ciso balizar esse acontecimento na iniciativa do educador baiano, Anísio Teixeira,
ao visitar os Estados Unidos depois de exercer, de 1924 a 1928, o cargo de Diretor
da Instrução Pública da Bahia. Anísio Teixeira, ao se deparar com a dureza da vida
pública constituída de excesso de burocracias e oposições intransigentes, ao mesmo
tempo visualizava a crueza da realidade educacional do sertão baiano. Frente a
isso, Anísio fazia o jogo político, estabelecendo uma proximidade profunda
3
com
a crua realidade de precariedade da escola pública de então. A partir daí “[...] ia
travando contato com o ensino público que não conhecia, um ensino muito diferen-
te dos colégios jesuítas nos quais estudara” (NUNES, 2000, p. 90). Anísio tomou
conhecimento dos problemas da educação brasileira, que, ao passar por reformas
em vários estados do Brasil e no Distrito Federal, proporcionou ao educador baiano
– enquanto ocupava o alto cargo no estado da Bahia - a responsabilidade de fomen-
tar a reforma no seu estado. Ele acabou por promover inovações que o projetaram
nacionalmente, como se pode perceber:
Seu interesse pela educação o levou aos Estados Unidos da América, onde conheceu a vida
social e as instituições educacionais americanas, obteve o título de Master of Arts no Tea-
chers College da Columbia University e conheceu as ideias de John Dewey e William H.
Kilpatrick (BORTOLOTI; CUNHA, 2010, p. 2).
Foi então que, ao tomar contato com a gama de desafios circunscritos à educa-
ção pública brasileira, e “[...] preocupado em melhorar sempre mais sua visão sobre
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A receptividade e a difusão do pensamento de John Dewey no Brasil entre 1930 e 1960
educação, afastou-se da Direção Geral da Instrução Pública da Bahia para visitar
algumas escolas dos Estados Unidos” (NOBRE; MENDONÇA, 2016, p. 55). Até
esse momento da sua vida, Anísio Teixeira conhecia apenas os ditames de um con-
servadorismo europeu aprendido nos colégios jesuítas e era com atitudes drásticas
que tratava os problemas encontrados. Porém, esse seu jeito mudou ao ver a rea-
lidade da educação norte-americana. O resultado de sua passagem pelos Estados
Unidos é assim registrado: “[...] se alguma lição tem a América a dar ao mundo, se
algum grande ideal sustenta a sua civilização e dá vigor e sentido à sua obra – essa
lição e esse ideal se consubstanciam em democracia” (TEIXEIRA, 2006, p. 49). Ao
aproximar-se do pragmatismo deweyano, Anísio Teixeira adota uma postura abso-
lutamente nova no Brasil, quando retorna em 1931.
Foi nesse contexto que Anísio Teixeira, já como discípulo de John Dewey, as-
sumiu o cargo de Diretor da Instrução Pública no Distrito Federal, promovendo
nova reforma no ensino público e criando uma universidade na capital federal,
a Universidade de Brasília, UnB. Vale registrar que é exatamente nesse período
que a filosofia de John Dewey vem para o Brasil. Por ser um participante ativo
da Associação Brasileira de Educação, juntamente com um grupo denominado de
“educadores liberais”, ele integra e articula o famoso Manifesto dos Pioneiros da
Educação Nova
4
, datado de 1932.
A partir de tal iniciativa, ele e outros tantos intelectuais sofreram fortes pres-
sões políticas contrárias às suas atuações, que buscavam uma educação de quali-
dade e acessível a todos. Sobre Anísio Teixeira, enfatiza-se que:
[...] todas as suas atuações como educador e como administrador público na área da edu-
cação foram inspiradas no pragmatismo Deweyano. (...). Teixeira ocupava um alto cargo
administrativo na área educacional e sofria constantes ataques de intelectuais de linha
política conservadora, especialmente vinculados à Igreja Católica, e por esse motivo foi
afastado de suas funções públicas (BORTOLOTI; CUNHA, 2010, p. 1).
Em seu livro Educação Progressiva, publicado em 1933 e reeditado, respec-
tivamente, em 1934 e em 1938, esses ataques se intensificaram tanto que ele se
demitiu do cargo no Distrito Federal em 1935. A esse respeito, escreve Nunes
(2000, p. 477): “[...] já em seu livro Educação Progressiva (1933), acompanhado
de Dewey, Anísio defendia a reconstrução material, social e moral da escola e da
civilização na formação de consciências independentes e responsáveis” (NUNES,
2000, p. 477).
Vale à pena refinar a atenção a fim de que se tenha uma ideia do forte impacto
positivo da receptividade do educador norte americano no Brasil e das reações de
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suas ideias, a partir da força de influência e da perspicácia da sua filosofia prag-
matista. Ela se difundiu no Brasil, mediante às ações administrativas e escritos de
Anísio Teixeira. Corrobora tal fato, observando na citação a seguir, sobre a produ-
ção da Escola de Belas Artes instaurada na universidade que criara. A Universida-
de do Distrito Federal (UDF) produziu, na Escola de Belas Artes, sob orientação de
Portinari, quadros que retratavam as imagens do Rio de Janeiro e as suas classes
mais empobrecidas, como se pode notar:
Do pincel redondo até a bucha e pano e do dedo até a escova de dente, a imaginação dos
estudantes, viajando na forma e na cor, produzia imagens da cidade e de suas classes mais
pobres: gente carregando água na cabeça, operário arrebentando calçamentos, operários
comendo marmita, mendigos da rua (NUNES, 1992, p. 169).
Ao observarmos o texto supracitado, entende-se porque os protagonistas da
Revolução de Trinta se viam constrangidos ao se depararem com a força do expres-
sionismo que intimidava as elites para quem eles governavam. Indubitavelmente,
tudo isso era visto como uma afronta, pois a vida das ruas passava a penetrar a
escola e a saltar de lá para as telas de obras de arte que iam parar nos lugares
frequentados pela elite, atrelada ao poder dominante de então. A esse respeito é
possível entender com maior detalhe no trecho a seguir:
Esses quadros foram parar no Palace Hotel. [...] agora, os problemas sociais saltavam das
telas. Numa época (...) em que se procurava esconder toda a miséria brasileira, Portinari a
fazia enfurnar-se nas suas obras e nos trabalhos dos alunos. Justamente aquelas imagens
“desagradáveis” e “chocantes” da vida brasileira. Por ocasião do fechamento da UDF, os
quadros produzidos pelos alunos, e aí localizados, foram apreendidos. Afinal, por que esses
quadros eram tão temidos? (NUNES, 2000, p. 318).
Observando o trecho acima, é possível entender que a acolhida do pensamento
filosófico de John Dewey no Brasil teve um forte impacto positivo e grande in-
fluência na formação crítica dos cidadãos a ponto de gerar ações reacionárias como
apreensão e temor das obras que retrataram a crua realidade de desigualdades.
Essa dupla recepção se manifestava por um lado, na busca por um processo de
construção democrática do país e, por outro lado, na tentativa de frear o movimento
democrático, a fim de preservar a vida aburguesada que já estava arraigada nas
classes dominantes. A acolhida se deve, portanto, ao empenho de Anísio Teixeira
e dos seus pares signatários do Movimento dos Pioneiros da Educação Nova, em
difundir as ideias de Dewey para que a sociedade democrática pudesse começar
a criar corpo na dura e desigual realidade brasileira. A esse respeito é possível
observar que:
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A receptividade e a difusão do pensamento de John Dewey no Brasil entre 1930 e 1960
Houve uma época no Brasil na qual a discussão e a reflexão sobre Educação tinham como
um dos eixos de sustentação as ideias de John Dewey. Decorrente deste entusiasmo, obser-
va-se que a filosofia da experiência, proposta por este filósofo como a filosofia da educação,
era atentamente estudada. Por meio de pesquisas, pretendia-se que os princípios expostos
e defendidos pelo filósofo norte-americano acontecessem na prática das escolas de educação
básica. Havia uma sede de conhecimento sobre estas ideias e por isso não se podia pensar
em Educação sem que se recorresse a este nome e às suas inovações, críticas e tentativas de
modificação da escola tendo em vista uma melhor qualidade da formação dos alunos. Como
se sabe, isto aconteceu no Brasil devido à difusão desta teoria feita por Anísio Teixeira, que
tendo sido discípulo de John Dewey trouxe para nosso meio educacional esta filosofia da
educação revolucionária (LINS, 2015, p. 23).
Por meio desses fragmentos, é possível notar a riqueza e a força do pensamen-
to do filósofo estadunidense em terras brasileiras. A acolhida da filosofia pragma-
tista de John Dewey na realidade escolar do Brasil, ao aglutinar teoria e prática,
possibilitou, por exemplo, aos alunos de pinturas a se destacarem como críticos do
duro realismo brasileiro, maculado de contrastes sociais e de injustiças, como é
possível observar:
Os alunos de pintura, ao frequentarem seus cursos específicos e outros que fugiam à sua
especificidade, estavam, de fato, se armando de uma cultura erudita e histórica que pas-
sava a impregnar suas obras, tornando-as não apenas uma imagem da realidade, mas
uma crítica a essa mesma realidade. [...] A presença de professores estrangeiros em vários
(cursos) estimulou [...] os brasileiros a serem brasileiros e a criarem com base em temáticas
nossas. Tudo isso acontecia numa época conturbada, convulsionada pelas passeatas e pelas
múltiplas manifestações constantes até 1937. Associar tais manifestações às atividades
intelectuais promovidas pela UDF não foi tarefa difícil (NUNES, 2000, p. 319).
Argumenta-se assim, que com um jeito prático e incisivo, Anísio Teixeira real-
mente se esmerava para fazer com que a filosofia pragmatista de John Dewey
pudesse ser acolhida e assimilada a fim de enfrentar as dificuldades sociais de
então. Observa-se que a interlocução entre teoria e prática, própria da filosofia de
John Dewey, ganha corpo no ensino protagonizado e conduzido pelo seu discípulo,
Anísio Teixeira, em terras brasileiras. Nesse sentido, entende-se que: “O liberalis-
mo deweyano forneceu-lhe um guia teórico que combateu a improvisação e o auto-
didatismo, além de abrir a possibilidade de operacionalizar uma política e criar a
pesquisa educacional no país” (NUNES, 2009, p. 5).
Mesmo considerando que o contexto de John Dewey se diferencia do atual e
ainda, evitando o anacronismo, é possível argumentar que problemas sociais da-
quele tempo permanecem no Brasil. As constantes críticas do governo federal em
2019 em relação ao fenômeno do comunismo, inexistente no Brasil, já estavam
presentes no tempo de Teixeira:
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Samuel Mendonça, José Aguiar Nobre
A vida das ruas passava a penetrar nas escolas de muitas formas e a provocar acusações
caluniosas dos católicos que apontavam Anísio Teixeira e seus colaboradores como comu-
nistas e que viam até nas instalações sanitárias comuns às crianças de ambos os sexos,
dentro dos novos prédios escolares primários, a corporificação do “comunismo ateu”, em
seu afã de dissolver a família e perverter moralmente as crianças. A força dessa vida que
se estendia além dos muros escolares acabou abalando, inclusive, a produção acadêmica da
recém inaugurada Universidade do Distrito Federal (NUNES, 1992, p. 169).
Pelo que se percebe no fragmento citado, ele corrobora a relevância da presen-
te reflexão ao evidenciar a atualidade da obra de Dewey que Anísio se fundamen-
tou para continuação do avanço democrático no Brasil. A crítica que necessita ser
feita neste trecho aponta que a expressão “acusações caluniosas dos católicos”, no
fragmento acima, deveria ser escrita “acusações caluniosas de alguns católicos de
vertente conservadora”, dado que certamente nem todos os católicos consideravam
Anísio Teixeira comunista.
As consequências da ação de Anísio Teixeira ao trazer para os currículos es-
colares o pensamento revolucionário de John Dewey lhe renderam um tempo de
ausência da vida pública: “[...] entre os anos de 1937 e 1945, período em que vigorou
no Brasil uma ditadura, Teixeira permaneceu afastado da vida pública, dedicando-
-se à tradução de livros e a atividades comerciais em seu estado natal” (NUNES,
2000, passim). Isso, hoje, pode ser visto como uma consequência do dinamismo
histórico que lhe possibilitou uma dedicação à reflexão e aos trabalhos de tradução,
permitindo posteriormente, fomentar uma inflexão para novas atividades dedica-
das à educação e à formação humana em geral.
Depois desse período, já na década de 1950, com a comemoração do primeiro
centenário de John Dewey, como discípulo por excelência do filósofo estadunidense
em terras brasileiras, ele retoma os trabalhos de difusão da filosofia de Dewey no
Brasil como é possível observar:
Anísio Teixeira, o discípulo brasileiro de John Dewey, a quem se deve a difusão da sua obra
e de sua filosofia no Brasil, foi convidado pela Columbia University em carta publicada pela
Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (1959) para fazer parte do comitê internacional
para o planejamento das comemorações desta importante data (LINS, 2015, p. 21).
Nessa ocasião importante, Anísio Teixeira retoma a sua oportunidade de re-
inserir, na reflexão brasileira, o processo de acolhida e difusão do pensamento de
John Dewey. Para tanto, Teixeira encomendou uma análise sobre a filosofia do
pensador homenageado – trabalho que foi feito pelo filósofo brasileiro Newton Su-
cupira, da Universidade de Recife. É assim que o impulso dado pelo Manifesto dos
Pioneiros da Educação Nova de 1932 revive na década de 1950 – mesmo que com
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A receptividade e a difusão do pensamento de John Dewey no Brasil entre 1930 e 1960
outro cenário – mas mediante um novo manifesto, o Mais Uma Vez Convocados,
datado de 1959.
Vale lembrar ainda que o artigo de Newton Sucupira, que só foi publicado em
1960, bem como os escritos de Paulo Freire, possibilitaram uma nova visualização
desse processo de acolhida e difusão do pensamento de John Dewey no Brasil. É
possível observar isso, por exemplo, na dedicação de várias pessoas em traduzir
para o nosso idioma a obra do filósofo norte-americano, como é o caso de: Antônio
Pinto de Carvalho, que traduziu Reconstrução em Filosofia (1959); Haydée Camar-
go Campos, que traduziu Como Pensamos (1979); Godofredo Rangel e Anísio Tei-
xeira, que traduziram Democracia e Educação (1979); e Anísio Teixeira, que tam-
bém traduziu Vida e educação (1959) e Liberalismo, Liberdade e Cultura (1970).
Recordam-se ainda outras traduções, como: Experiência e Natureza; Lógica – a
teoria da investigação; A arte como experiência, por Murilo Otávio Rodrigues Paes
Leme. Vida e educação, por Anísio Teixeira e Teoria da Vida Moral, por Leonidas
Contijo de Carvalho. Quer dizer, tais traduções constituem um sinal de grande
acolhida do pensamento do autor norte-americano, consolidando a força da filoso-
fia de John Dewey no pensamento brasileiro. Essas traduções, inevitavelmente,
ganharam espaço nos currículos escolares. Percebe-se como urgente e necessário
retomar esses textos em grupos de estudos da atualidade a fim de que a nova gera-
ção possa dar continuidade ao processo de refinamento do texto de Dewey e, nessa
direção, fortalecimento de parâmetros da organização escolar, da mesma forma que
da sociedade.
Como o pensamento de John Dewey ganhou espaço no meio escolar brasileiro?
Na procura por uma resposta a esta questão, vale um aceno ao texto encomen-
dado por Anísio Teixeira ao professor da Universidade de Recife, Newton Sucupira,
por ocasião do centenário de John Dewey. Nele, além de redação clara e contun-
dente, é passível observar que o seu próprio ato de pesquisar, escrever e refletir em
formato de conferência já corrobora uma maneira de acolhida e difusão da filosofia
de John Dewey no espaço escolar brasileiro. Entende-se que a teoria educacional
de John Dewey circula no país não somente mediante o escrito e a conferência de
Newton Sucupira, mas também por meio de suas aulas e de suas tertúlias no am-
biente escolar e social. Seu texto enfatiza a importância e o alcance do pensamento
de John Dewey nos Estados Unidos bem como em outros países, dentre eles o Bra-
sil. O autor evidencia, igualmente, tanto a atualidade da filosofia de John Dewey
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quanto as críticas endereçadas a ela, como é o caso da crítica de Bertrand Russell,
que o acusa de filósofo do poder. Acerca disso ele escreveu que:
É um expressivo testemunho da vitalidade e importância do pensamento de John Dewey
que, ao comemorarmos o centenário de seu nascimento, o grande filósofo americano se im-
ponha diante de nós, não apenas como uma figura consagrada na história do pensamento
humano, mas como um pensador atual e atuante de nosso tempo, signo de contradição
entre os espíritos e sua doutrina, ponto crucial de apaixonadas controvérsias. E porque o
impacto revolucionário de suas ideias filosóficas, pedagógicas e sociais sobre sua época não
amorteceu ainda, falta-nos precisamente esta distância no tempo, que é a condição neces-
sária para emitirmos um julgamento sereno e equilibrado sobre a significação e alcance de
uma obra verdadeiramente excepcional como a sua. Por isso mesmo, Dewey continua a ser
ainda uma grande figura controvertida de nossos dias, suscitando os juízos mais contra-
ditórios. Assim, enquanto discípulos e admiradores entusiastas o elevam ao mesmo nível
de Platão e Aristóteles, um filósofo da responsabilidade intelectual de Bertrand Russell
caracterizava sombriamente seu pensamento como uma filosofia do poder, um exemplo a
mais daquela embriaguez destrutiva que invadiu a filosofia com Fichte e constitui o grande
perigo de nosso tempo (SUCUPIRA, 1960, p. 78).
No que diz respeito à atualidade, à difusão e ao alcance da produção filosófica
de Dewey, o texto de Sucupira inaugura uma nova época para os anos seguintes ao
primeiro centenário do filósofo. O autor assevera que o empenho de toda a obra do
filósofo norte-americano se articula sistematicamente e de forma visível em um in-
tuitivo e consciente processo que busca sanar os problemas concretos da existência
humana. Sucupira ressalta que, por meio da fecundidade e contribuição da filosofia
deweyana, é possível amenizar ao menos parte desses problemas. De acordo com
ele, ao passo que a filosofia de John Dewey se debruça sobre a formação humana,
é mister entender que ela é “[...] ao mesmo tempo uma teoria geral da educação.
Mas como elaborar uma teoria da formação humana sem uma filosofia do homem
e como este pode ser pensado sem ao mesmo tempo pensar-se sua inserção no uni-
verso?” (SUCUPIRA, 1960, p. 81).
Sobre a empreitada em analisar a difusão do pensamento filosófico de John
Dewey, ele se dedica com grande motivação; contudo, assim se expressa:
Mas a obra de Dewey se apresenta tão vasta e multiforme, se alonga e ramifica numa tal
quantidade de escritos, e constitui um marco tão importante na história do pensamento
moderno que não nos é possível, nos limites de uma conferência, avaliar devidamente todo
seu alcance e significação e nem mesmo traçar uma síntese de seu pensamento que o abran-
gesse em toda a sua complexidade (SUCUPIRA, 1960, p. 79).
Esse sentimento de impotência, ao se dedicar à obra de John Dewey, por certo
atinge todo pesquisador que se dedica a quaisquer aspectos circunscritos ao pen-
samento deweyano. Paradoxalmente, o pensamento filosófico do autor em questão
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A receptividade e a difusão do pensamento de John Dewey no Brasil entre 1930 e 1960
é tão intuitivo e motivador que desperta, ao mesmo tempo, grande interesse no
pesquisador ao deparar-se com a riqueza e a profundidade dos seus escritos. A sua
teoria parece transformar as dificuldades em forças. “Sem dúvida, não deixa de
ser verdade que as dificuldades que os homens experimentam são as forças que
os induzem a planear quadros de mais sorridente situação; mas convenhamos que
tal quadro é de tal maneira delineado que pode tornar-se instrumento de ação”
(DEWEY, 1959, p. 127). Certamente, esse vigor emitido da obra de Dewey, em mui-
tos momentos, contribuiu para educadores brasileiros continuarem avançando em
meio aos desafios – e isso não será diferente no presente.
Diante de tamanhos desafios inerentes às condições educacionais do país, ar-
gumenta-se que ao revisitar à obra de John Dewey, certamente lançará luzes a fim
de que os educadores possam continuar tendo ânimo e motivação para a criativida-
de, bem como para que possam marcar resistências em vista de transformações so-
ciais positivas na direção de uma formação humana integral. Argumenta-se, pois,
que o filósofo brasileiro Newton Sucupira, ao refletir no Brasil sobre a filosofia de
John Dewey, seguindo o exemplo do próprio autor pesquisado, ao mesmo tempo faz
com que, no decurso de suas aulas e pesquisas, insiram-se no processo de acolhida
e difusão do pensamento de Dewey no Brasil, em prol de uma formação humana.
Desse modo, assevera-se que as antropologias se tornam o núcleo de todo filosofar:
E na verdade a preocupação constante e única do filosofar de Dewey é o problema antropo-
lógico. Mas como para ele a filosofia era na realidade uma quest for wisdom, um instrumen-
to de crítica e um método de vida, e não um saber puramente especulativo, uma filosofia
do homem não poderia deixar de ser ao mesmo tempo uma teoria da formação humana, ou
seja, uma filosofia da educação. Se o pensamento é um instrumento de ação, e a filosofia
a forma por excelência do pensamento crítico, pensar o homem implica ao mesmo tempo
pensar a sua formação, desde que o homem é um ser que se autoconstitui (SUCUPIRA,
1960, p. 81).
A possibilidade de construção de um arrazoado dessa natureza no espaço edu-
cativo brasileiro, como é possível ver no fragmento anterior, evidencia, a partir da
leitura da obra de John Dewey, a sua contribuição no processo de construção de um
indivíduo crítico e inserido ativamente nos problemas sociais que protagonizam a
defesa da vida plena para todos. As consequências inerentes a este processo são a
educação para a coletividade.
A partir do alcance e da atuação de Anísio Teixeira no meio educativo, inevi-
tavelmente, ao solicitar outros colegas para disseminar o pensamento do filósofo
John Dewey nos currículos escolares, ele possibilita que as ideias e teorias do pen-
sador norte-americano se fizessem presentes em terras tupiniquins. Mediante a
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inflexão ativa de Anísio Teixeira, a acolhida do pensamento de John Dewey emite
o seu reflexo na reconstrução da sociedade brasileira. Essa ganha um alcance sem
precedentes de transformações que causam abalos nas estruturas até então crista-
lizadas em prol de benefícios destinados exclusivamente a uma classe privilegiada.
Acerca disso, é possível entender que:
A maior diferença de Anísio para seus antecessores é que, efetivamente, ele criou uma rede
municipal da escola primária à Universidade e fez dela, junto com seus colaboradores, um
poderoso campo cultural que interferiu sobre a vida urbana e, ao mesmo tempo, produziu
conhecimento sobre ela. Dessa forma, ele ampliou o seu olhar sobre a cidade e precisou suas
formas de intervenção, atingindo em cheio códigos culturais inscritos nas relações pessoais
e estremecendo representações cristalizadas da realidade (NUNES, 2009, p. 6).
Vale destacar, contudo, que há críticas fortes ao processo de recepção da peda-
gogia de John Dewey no Brasil, protagonizadas especialmente por Jorge Nagle, a
partir do seu livro Educação e Sociedade na Primeira República (1974). Na mesma
linha de pensamento estão os textos do professor Dermeval Saviani (1980, 1981,
1981a, 1982, 1982a). Acerca do pensamento de John Dewey, tais pensadores já es-
creveram que o movimento escolanovista implantado no Brasil tem uma perspec-
tiva tecnicista que favorece ou legitima uma visão elitista da educação, acusando
a Escola Nova como um movimento caracterizado de “otimismo pedagógico”. Tais
críticos entendem que o campo educacional fica fixado como um meio reduzido ao
tecnicismo e apenas favorável à classe dominante. Sobre isso, pode-se ver que “[...]
a tese da tecnificação é reposta e endossada por Dermeval Saviani que defende que
a Escola Nova serviu como mecanismo de recomposição da hegemonia da classe do-
minante” (MURARO, 2015, p. 207). A crítica circunscreve-se ao pensamento equi-
vocado de que a Escola Nova apenas aprimorou a qualidade de ensino destinado às
elites, forçando, dessa maneira, a baixa qualidade do ensino destinado às camadas
populares. Acerca disso, há uma fala de Nunes (2009), uma estudiosa devidamente
autorizada no assunto, como se pode ver:
Ao repor a tese da tecnificação educacional à luz das reflexões de Gramsci e Zanotti, Savia-
ni constrói uma visão específica da burguesia, a de que ela usou a pedagogia da essência
para emancipar-se enquanto classe e a substituiu pela pedagogia da existência ao preten-
der manter-se no poder (NUNES, 2009, nota n. 13, p. 180).
Vale destacar que a crítica de Saviani (1980, 1981, 1981a, 1982, 1982a), ao
apontar que a visão de escola renovada carece de critérios éticos, estéticos e políti-
cos, revela ainda que o autor parece não ter compreendido o texto de Dewey.
5
Igual-
mente, ele parece não ter compreendido também o pensamento de Anísio Teixeira,
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A receptividade e a difusão do pensamento de John Dewey no Brasil entre 1930 e 1960
que se esmerou em fazer com que o pensamento de John Dewey fosse acolhido no
Brasil, a fim de que o processo de democratização pudesse dar o seu passo inicial.
Isso é, que se pudesse ser ofertado um ensino de qualidade indistintamente a todos
os brasileiros a fim de que, mediante a máquina democrática que é a escola, o indi-
víduo se tornasse cada vez mais agente sócio transformador e capaz de fomentar a
vida democrática no sentido genuíno do termo. Acerca da crítica de Saviani, escre-
ve Muraro (2012, p. 208):
Saviani entende que Dewey vê a educação como processo ligado à vida fazendo-se neces-
sário os conhecimentos científicos da vida orgânica e social para a intervenção pedagógica.
Anísio Teixeira se apropriou desse olhar pragmatista e progressista de Dewey para investir
na ideia da reconstrução individual para a reconstrução social no âmbito nacional pela
educação pública, tendo como meta a sociedade democrática. A recepção do pragmatismo de
Dewey no pensamento educacional brasileiro, através de A. Teixeira, subsidia o movimento
de renovação educacional, de forma tecnicista, funcionalista e pragmatista, sob a influência
do conhecimento científico, excluindo os critérios éticos, estéticos e políticos.
Entende-se que, em pleno uso da razão e em face da descentralização procura
por acesso democrático à educação, não é possível, vislumbrar a atuação de Anísio
Teixeira em prol de uma educação de qualidade no Brasil como desprovida de crité-
rios éticos, estéticos e políticos. Destaque merece ser dado ao alcance da Pedagogia
de Paulo Freire, discípulo de Anísio Teixeira. Em face disso, só para oferecer ape-
nas um destaque, vale considerar Paulo Freire como um marco importante no pro-
cesso de disseminação de um conhecimento que tem a práxis como um fundamento
imprescindível, para dar continuidade ao estudo do processo de receptividade do
pensamento de John Dewey no Brasil. Faz-se necessário, agora, analisar o estado
atual dessa recepção e disseminação.
Qual o estado recente de continuidade dessa receptividade?
É importante destacar e reconhecer que, como uma baliza no pensamento pe-
dagógico brasileiro, a teoria de John Dewey foi bastante utilizada pelo educador
Paulo Freire, a fim de dar continuidade no processo de efetivação da vida demo-
crática brasileira. A acolhida da obra deweyana por parte de Paulo Freire se deu a
partir do momento em que se tornou um leitor de Anísio Teixeira. Sendo assim, ele
abraçou de vez os ideais pragmatistas por ele trazido. Acerca da filosofia de John
Dewey e sua acolhida por Paulo Freire, já foi ponderado que:
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Samuel Mendonça, José Aguiar Nobre
Para Dewey, a democracia como “forma de vida” depende de dois critérios: a existência de
interesses comuns compartilhados entre os componentes do grupo social e a interação e
reciprocidade cooperativa entre as diferentes formas de associação. O ideal democrático de
vida se sustenta no processo de pensar reflexivo sobre os problemas comuns da comunidade
e na liberdade de comunicação. A democracia se constitui numa escolha moral, a única dig-
na para o ser humano. Para Freire esta pauta da democracia proposta por Dewey, precisa
ser encarnada e construída historicamente na sociedade brasileira ainda inexperiente da
vida democrática. Na visão de Freire a educação tem um papel limitado, mas de significa-
tiva importância na construção da democracia (MURARO, 2012, p. 205).
Entende-se que os avanços alcançados no processo democrático brasileiro se
devem, em parte, à acolhida de uma educação progressista. Essa anela por uma
educação democrática, isto é, que possa ser genuinamente dialógica, questionadora
e transformadora da realidade política e histórico-social. Entende-se que a pedago-
gia freireana, que circunscreve um processo de conscientização das classes oprimi-
das em vista de sua contínua libertação, deve-se, em grande parte, a uma acolhida
dos conceitos fundamentados no pensamento de John Dewey. Isto não significa
afirmar que Paulo Freire seja um seguidor de todas as ideias de John Dewey, dadas
outras influências recebidas e outros caminhos seguidos. Mesmo assim, a educação
popular protagonizada por Paulo Freire possibilitou um avanço na libertação dos
empobrecidos pela exploração econômica e política no País. Na contemporaneida-
de, a fragilidade da jovem democracia brasileira reivindica um novo olhar na teoria
pragmatista de John Dewey. Isso em vista de se obter um novo fôlego no processo
de garantia dos direitos adquiridos, mediante longas e sofridas lutas decorrentes
do processo de conscientização educacional. Sobre a sintonia entre Dewey e Freire,
registra-se que:
Ao observar as ideias de cada um conforme sua realidade é possível entender seus pensa-
mentos. John Dewey buscava a democracia dentro da sala de aula, já Paulo Freire buscava
a igualdade social em um país com tanta desigualdade. No entanto, conclui-se que as ideias
de ambos autores tinham o mesmo objetivo, uma sociedade mais justa e igualitária, com ci-
dadãos com consciência crítica (CARON; COSTA SOUZA; MENDONÇA DE SOUZA, 2016,
p. 100).
Nunca é demais ressaltar que é necessária a compreensão da “[...] não lineari-
dade do processo histórico com avanços, recuos e imprevistos, no qual a burguesia
movimenta-se de maneira contraditória com as demais classes sociais” (MURARO,
2012, p. 207). Essa compreensão permite ao cidadão fazer o movimento de retros-
pectiva e prospectiva, a fim de ajustar o passo e o foco na continuidade dessa recep-
tividade e difusão do pensamento de John Dewey no Brasil, dada a sua importân-
cia já experimentada historicamente. Isso se faz mediante à compreensão do papel
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da educação como forte instrumento de influência nas mudanças das estruturas
sociais e políticas e como contraponto de força às crueldades das classes dominado-
ras. Em vista disso, pode-se compreender as classes sociais como um fazer-se, e não
como massas de manobra capitaneadas por “[...] uma dominação que se sustenta
por modos fascistas da existência” (PAGNI, 2017, p. 68). Sabe-se que esses modos
fascistas da existência e de domínio do poder sempre estão de prontidão para agir
e manipular, capitaneados pelo mercado, configurando-se uma forma cruel e exclu-
dente de dominação.
Vale registrar que a dialética do processo de receptividade do pensamento de
John Dewey no Brasil seguiu a dinâmica que é comum dos conflitos históricos.
É sabido que as teses dos defensores da Escola Nova advindas dos seguidores do
pensamento do autor eram rebatidas tanto pelos movimentos conservadores de
cunho tradicionalista, quanto pelos renovadores de cunho tecnicista. Frente a isso,
é importante entender que “[...] o tema da Escola Nova como ponte de recepção de
Dewey no Brasil merece ainda um tratamento mais aprofundado do ponto de vista
histórico, filosófico e educacional” (MURARO, 2012, p. 207). Essa advertência é im-
portante como reforço da necessidade atual de revisitar, disseminar e acolher con-
tinuamente o pensamento de John Dewey no Brasil devido aos imensuráveis bene-
fícios que ele traz. Sobre isso é possível observar que, conscientes do dinamismo do
processo histórico, “[...] ao trazerem Dewey para o debate sobre os fins pedagógicos,
sociais e políticos da escola renovada, os editores dos periódicos introduziram uma
série de concepções voltadas para a equilibração entre os ideais de respeito à indi-
vidualidade e normas de atendimento às necessidades sociais” (CUNHA, 2002, p.
259). Esse entendimento é importante para que se possa notar aquilo que se chama
de equilíbrio do pensamento de John Dewey. Ao ser acolhido no Brasil, ao menos o
mínimo de igualdade social é alcançado, bem como o consequente combate à explo-
ração humana, dado que a sua filosofia aponta para um bom senso tanto em favor
da dignidade humana quanto da atenção às necessidades sociais.
Como foi acenado a respeito da vastidão de escritos sobre Dewey, vale destacar
ainda o texto de Pedro Pagni (2018), que faz uma leitura do livro Democracia e
educação, após cem anos de sua publicação. Procura valer-se dos conceitos dewe-
yanos de democracia e educação para analisar a realidade política contemporânea,
especificamente a crise democrática brasileira. É um texto que, por si só, corrobora
tanto a receptividade quanto a atualidade dos escritos de John Dewey no Brasil.
Pagni, ao se deparar com o problema do esvaziamento da democracia no presente,
recorre, pois, ao pensamento de John Dewey em interlocução com Michel Foucault
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a fim de argumentar que talvez seja o caso de potencializar o entendimento de que
a educação é um espaço ou instrumento de resistências. A esse respeito pondera:
A proposta é a de ler essa obra a partir de um problema da democracia posto por Michel
Foucault em seus últimos cursos e da inflexão ética que evoca acerca da política na atuali-
dade. Especificamente, objetiva-se analisar os efeitos daquele problema sobre a educação e
discutir a hipótese de que esta poderia se constituir como uma forma de resistência a certo
esvaziamento da democracia representativa no presente. Ao retomar a noção deweyana de
democracia como uma forma ética de vida, defende-se que essa hipótese seria possível no
âmbito educativo, sobretudo, se fosse recobrada do ponto de vista não de uma sociedade
cada vez mais inclusiva, como requerido pelo seu original formulador, mas de uma socie-
dade em que a diferença seja o seu princípio e o seu fim, como sugere a perspectiva política
foucaltiana (PAGNI, 2018 p. 65).
A crítica de Pagni ao que ele chama de esvaziamento da democracia represen-
tativa do presente fundamenta-se na compreensão de que a democracia fomentada
no liberalismo se torna uma democracia fria no regime neoliberal. Isso se percebe
por ser calculada economicamente e controlada pelas tecnologias do biopoder. O
resultado é fazer com que o sistema escolar corrobore um sistema de democracia
transmutada para a existência neoliberal hodierna. A confusão gerada no sistema
democrático neoliberal, por exemplo, faz com que a educação seja confundida com
ensino, a formação com qualificação para o mercado e assim por diante, invertendo,
desse modo, o papel da educação como instrumento de resistência. O desafio nesse
caso será fomentar um sistema de educação que seja capaz de resistir a todo tipo de
dominação mediante à crítica e o imperativo ético do julgamento reflexivo. E nesse
ponto o papel da escola se torna imprescindível, especialmente quando esta acolhe
o modo de pensar protagonizado pela filosofia deweyana. A esse respeito assevera
Pagni:
Por isso, parece-nos necessário retomar o sentido ético que preside o exercício do pensar
reflexivo na escola e a sua contribuição para o preparo dos futuros cidadãos atuarem po-
liticamente em consonância com seus modos de vida nos termos expressos, que conferem
atualidade à obra Democracia e Educação, de John Dewey (PAGNI, 2018, p. 77).
Diante do exposto, entende-se que a obra de John Dewey terá sempre uma
contribuição imprescindível nos currículos escolares, contra os descalabros da de-
mocracia na escola e na sociedade. Frente aos retrocessos na educação brasileira, é
preciso utilizar-se do texto de John Dewey para que se possa compreender e ressig-
nificar a educação brasileira: “Ainda é preciso averiguar e aprofundar melhor essas
pesquisas com o intuito de descobrir até que ponto a educação pensada por Dewey
se encontra presente na educação da atualidade” (CARVALHO, 2011, p. 76). Se a
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A receptividade e a difusão do pensamento de John Dewey no Brasil entre 1930 e 1960
presente dúvida persiste, entende-se que é um sinal positivo de que a acolhida terá
sempre o caminho aberto para uma educação fundamentada na filosofia de John
Dewey no Brasil.
Considerações nais
Como se afirmou, a originalidade deste artigo diz respeito à ausência de es-
tudos feitos que colocassem em relevo a receptividade de John Dewey no Brasil e
constante difusão de suas ideias para a formação humana. Foi a revisão de lite-
ratura o procedimento adotado para confirmar este diagnóstico. Ademais a rele-
vância social do artigo está assegurada pela relevância que tem o pensador para o
contexto educacional e mais, este estudo servirá, por certo, para outras pesquisas
que serão feitas sobre Dewey no Brasil, da graduação ao doutorado.
O texto de John Dewey nasceu em um contexto em que as mudanças ganha-
vam um célere ritmo jamais visto seja no campo das políticas, da economia, do
conhecimento científico, seja no campo da moral e dos costumes. Diante desse ce-
nário, ele se posicionava sempre em favor de uma sintonia entre a escola e o movi-
mento acelerado da sociedade em seu entorno. “Nesse contexto, a escola era vista
como espaço privilegiado para a inserção do ímpeto transformador; uma escola
transformada, evidentemente, uma educação nova, como se pôde ver no Manifesto
dos Pioneiros de 1932” (CUNHA, 201, p. 87). Considerando as aceleradas mudan-
ças sociais, vale lembrar que, em que pesem as diferenças entre hoje e os anos 1930
a 1960, em que o Brasil se viu diante da necessidade de acompanhar a evolução dos
países ocidentais, o movimento da realidade brasileira reivindica que se traga no-
vamente à tona a filosofia pragmatista de John Dewey. Não é demais recordar que
“[...] a concepção deweyana de movimento – entendida como sinônimo de mundo
em mudança – desempenhou papel sobremaneira relevante no pensamento educa-
cional renovador brasileiro naquelas décadas. Se hoje ainda desempenha, talvez
não seja com a mesma conotação de antes” (CUNHA, 2001, p. 87).
Em face do exposto, vale destacar que o nexo entre filosofia e educação, defen-
dido pelo pensamento pragmatista de John Dewey, teve no Brasil uma excelente
acolhida e se faz mister a continuidade urgente de sua disseminação e estudos sis-
tematizados. Acolhida essa que talvez seja consenso entre os apoiadores de críticos
de Dewey. Há de se concordar que é gritante a necessidade e o desafio de utilizar a
leitura direta dos textos de John Dewey em cursos de licenciaturas e das ciências
humanas em geral. É necessário entender que Dewey, “[...] com forte inspiração
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Samuel Mendonça, José Aguiar Nobre
estoica e por influência da teoria pragmatista da ação, compreende a filosofia como
forma de vida que possui a tarefa de refletir sobre a dimensão social e comunitária
da práxis humana” (DALBOSCO, 2018, p. 567). Vale registrar que, para assumir
essa condição reflexiva, a filosofia precisa problematizar a condição humana, con-
centrando-se em sua capacidade participante, uma vez que está inserida na ordem
social.
Assim compreendendo o processo educativo, a consequência será a não redu-
ção do componente humano a uma máquina, fazendo com que o indivíduo seja de-
sinstalado do isolamento social e passe exercer a sua participação nas decisões do
tecido social. Desse modo, ele adquirirá as condições materiais e sociais para gozar
de uma vida digna e com participação concreta na cooperação social aprendida na
escola. Argumenta-se que os valores de cooperação e solidariedade serão sempre
desenvolvidos a partir da acolhida e difusão do pensamento deweyano no ambiente
educativo, enquanto pequena comunidade, que daí se expandirá para a edificação
da grande sociedade democrática.
Não é distanciar-se muito longe da realidade brasileira para perceber que,
inspirando-se no pensamento filosófico de John Dewey, “[...] investir esforços pe-
dagógicos em experiências formativas localizadas, que fomentem o espírito de coo-
peração social responsável, é um grande desafio da educação atual” (DALBOSCO,
2018, p. 468). Isso se faz com maior facilidade quando família e escola se unem em
vista de uma genuína e mútua contribuição para a formação democrática e uma
vida boa. “[...] se realmente acreditamos que que uma filosofia educacional pode
contribuir para uma vida boa, ela não pode ser imparcial ou insensível às forças
destrutivas do capitalismo” (KOHAN, 2019, p. 240).
Vale relembrar que os educadores se utilizaram do pensamento de John De-
wey para refletir sobre os valores democráticos. Da mesma forma, é importante
ressaltar que tais valores não são dados a priori, mas buscados em um mundo em
movimento, com intencionalidade. Vida e educação acontecem ao mesmo tempo
como a literatura deweyana deixa transparecer. A esse respeito, é mister entender
que a acolhida e difusão do pensamento de John Dewey no Brasil deverá sempre
ser contínua, pois:
O pragmatismo deweyano não foi elaborado para descansar nas estantes das bibliotecas,
para sustentar uma sociedade desumana ou para dar crédito à passividade, mas sim para
implementar a compreensão e a alteração da ordem do mundo em benefício do enriqueci-
mento contínuo da experiência humana (CUNHA, 2001, p. 98).
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A receptividade e a difusão do pensamento de John Dewey no Brasil entre 1930 e 1960
Por fim, sabe-se que a compreensão de experiência e educação atrelada à filo-
sofia pragmatista de John Dewey não perde a sua atualidade; muito pelo contrário,
ela continua atual, principalmente se pensada a partir da filosofia da educação,
cuja fundamentação conceitual lhe é inerente.
Neste sentido, a busca conceitual elucida a construção e elaboração de teorias educacionais,
algo que John Dewey fez com competência em seu tempo histórico, tanto que ele é um dos
mais importantes teóricos deste campo, com boa exploração entre pesquisadores brasileiros
(MENDONÇA; ADAID, 2019, p. 136).
Como resultado, diante da pergunta pela receptividade e difusão do pensa-
mento de John Dewey no Brasil, com enfoque principal de 1930 a 1960, conside-
rando tudo o que foi exposto, nota-se que houve uma grande recepção desse filó-
sofo no país e difusão de suas ideias. Contudo, ainda se faz necessária uma maior
valorização da relação entre teoria e prática e da experiência na educação, noções
tão presentes nos escritos de John Dewey, para que a educação faça sentido na
vida do cidadão e no ideal de formação integral do ser humano. “A concepção de
Dewey revela a importância da filosofia enquanto instrumento na busca por uma
ressignificação da educação. [...] Sendo assim, muito embora a educação tenha mu-
dado bastante desde a época em que Dewey publicou sua obra, ainda há muito
que refletir e discutir visando seu aperfeiçoamento” (MENDONÇA; ADAID, 2019,
p. 149). Essa observação corrobora a importância da acolhida do pensamento do
filósofo estadunidense em terras brasileiras e da sua corrente necessidade para
continuar a movimentar uma ação construtiva no presente em vista de um futuro
promissor. A esse respeito propomos sempre a relevância da difusão das ideias de
John Dewey no Brasil, mediante a intersecção entre o desenvolvimento escolar e
o movimento próprio do dinamismo social em que a formação humana se encontra
situada e aplicada.
Notas
1
Pesquisa financiada pelo Programa Nacional de Pós-doutorado/CAPES: Processo Código
88882.314799/2019-01 e Bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPq: 311111.
2
Não se trata do objeto do artigo, mas cabe recomendar as análises de Pagni (2017, p. 69). A esse respeito
ele pondera que: “Numa conjuntura particular como a brevemente descrita, reler a obra Democracia e edu-
cação é recobrar o juízo reflexivo perdido por, em e dessa instituição, rememorar o papel que o problema
da democracia representa para a educação e para a sociedade atual, pois, por mais liberais que sejam os
princípios da filosofia deweyana, concorrem para interpelar o nosso tempo e a conjuntura mencionada.
Afinal, John Dewey jamais fez esta confusão entre comunidade e relação comercial que se observa no
presente, tampouco entendeu a democracia apenas como uma isonomia quantitativa, que ignoraria as
diferenciações éticas, como se tem observado em nosso país. Muito menos postulou que o aprendizado
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democrático, como um modo de vida, não seria uma tarefa da escola, mesmo admitindo o risco de que se
teria, nisso, um conflito geracional que poderia ultrapassar os seus próprios como instituição – risco que se
tenta evitar a todo custo nas instituições atuais (a ponto de vermos emergir programas reacionários como o
ESP). Dessa forma, a leitura dessa obra de John Dewey pode nos auxiliar a compreender a potencialidade
de suas concepções de democracia e de educação para a formação ética, num contexto em que esta última
somente pode ser vista como uma forma de resistência aos descalabros contra a democracia e a escola”.
3
“As poucas escolas em funcionamento estavam concentradas em Salvador, localizadas em antigas residên-
cias, muitas em ruínas. Era generalizado o costume do professor custear, com seus próprios vencimentos, o
aluguel da sala ou do prédio em que instalava a escola ou a cadeira. O governo não oferecia mobiliário esco-
lar, nem o professor o adquiria. Cabia ao aluno fornecer cadeiras e mesas. A pobreza permitia, no máximo,
o improviso em barricas, caixões, pequenos bancos de tábua, tripeças estreitas e mal equilibradas, cadeiras
encouradas ou tecidas a junco. Como Anísio chegou a presenciar, o comum era os alunos escreverem no
chão, estirados de bruços sobre papéis de jornal, ou então, fazerem seus exercícios de joelhos, ao redor de
bancos ou à volta das cadeiras” (NUNES, 2000, p. 90).
4
“Fernando de Azevedo se incumbiu da redação desse manifesto público que procurou conciliar, provisoria-
mente, posições teóricas e políticas divergentes, produzindo um texto coeso assinado por cerca de vinte e
seis intelectuais brasileiros. Anísio Teixeira teve um papel decisivo na elaboração das ideias e da filosofia
desse documento, assim como aqueles que o assessorava na Direção Geral da Instrução Pública do Distrito
Federal” (PAGNI, 2008, p. 27).
5
Mendonça (2019) demonstrou, em artigo publicado na Revista Philosophy of Education, que a crítica de
Dermeval Saviani a John Dewey em seu livro Escola e Democracia carece de rigor, dado que não há, nas
referências do pensador brasileiro, qualquer texto de John Dewey que autorizasse qualquer menção, so-
bretudo crítica.
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PEDAGÓGICO
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Ângelo Ricardo de Souza
Diálogo com educadores
1
Ângelo Ricardo de Souza
A sessão Diálogo com Educadores tem o prazer de contar com a colaboração do
professor doutor Ângelo Ricardo de Souza da Universidade Federal do Paraná. A
sua participação no presente dossiê justifica-se pela trajetória política e intelectual
em defesa da educação pública, mas, também, pelos vínculos que tem com o Pro-
grama de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Passo Fundo. A defesa
de uma educação pública de qualidade e uma gestão democrática da educação têm
caracterizado a trajetória do professor Ângelo, de modo particular na construção
do Plano Nacional de Educação aprovado em 2014. Um dos grandes embates foi o
caráter público da educação e o papel do Estado no seu financiamento.
As questões que orientaram o presente diálogo com o professor Ângelo per-
mitem uma reconstrução da sua formação acadêmica, a inserção em atividades de
gestão, as pesquisas em andamento e os desafios da pós-graduação stricto sensu.
Sua vasta produção acadêmica é materializada na publicação de mais de 60 artigos
em periódicos, em torno de 30 capítulos de livros, em livros autorais e como orga-
nizador, em dezenas de trabalhos apresentados e publicados em eventos científicos
no Brasil e no exterior. Toda essa produção é transversalizada por temas como:
gestão democrática da educação; financiamento da educação; formação docente;
pesquisas em políticas educacionais, avaliação, entre outros.
Desejamos que essa experiência nos ajude a refletir sobre os desafios de uma
educação pública de qualidade num contexto de crescente privatização dessa.
REP – Você é hoje um pesquisador reconhecido no Brasil e na América Latina.
Conte-nos um pouco de sua trajetória de vida e a formação acadêmica. Qual foi o
percurso de sua formação até chegar ao campo das políticas?
Ângelo Sou licenciado em Educação Física, e assim que me graduei fui tra-
balhar, após aprovação em concurso público logo no final da graduação, na Rede
Recebido em 14/06/2019 – Aprovado em 30/09/2019
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i1.10587
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Diálogo com educadores
Municipal de Ensino de Curitiba, como docente para os anos iniciais do ensino
fundamental, na época 1º grau, em 1991.
Dois anos depois, assumi outro concurso na Rede Estadual de Ensino do Pa-
raná, para trabalhar com a educação física para alunos dos anos finais do ensino
fundamental e para o ensino médio. Atuei por vários anos na docência e então, por
motivo de problemas de saúde com nossa candidata, acabei assumindo uma candi-
datura à direção na escola municipal na qual trabalhava.
Uma vez eleito, mas ainda não empossado, fui convocado para assumir uma
vaga na UFPR, por conta de um concurso para professor que eu havia feito no
departamento de educação física da universidade. Fiquei muito dividido, mas optei
por permanecer na rede de educação básica, pelo compromisso com a comunidade
que acabava de participar do processo eletivo e construído junto conosco uma pro-
posta de mudança para a escola. Desisti, portanto, daquela vaga para professor na
UFPR.
Permaneci na direção da escola por seis anos, tendo sido reeleito após o pri-
meiro mandato de três anos.
Quando estava no segundo mandato, iniciei meus estudos de mestrado na
PUC-SP, e focalizei minha investigação no campo da Política e Gestão da Educa-
ção, especialmente nas questões atinentes à gestão escolar. Com isto, eu sabia que
adentrava outro campo, o qual poderia inclusive me distanciar definitivamente da
educação física.
Após o mestrado, já no final do período de gestão da escola pública, prestei ou-
tro concurso na UFPR, agora no Departamento de Planejamento e Administração
Escolar, para o qual fui aprovado. Afastei-me da escola e da rede de educação bási-
ca, na qual havia retornado às aulas de educação física e fui trabalhar na educação
superior.
Ali dei sequência à formação acadêmica e continuei estudando a gestão escolar,
ampliando nos estudos de doutorado o alcance da investigação, e se no mestrado
eu havia investigado a gestão escolar a partir de um estudo de caso, no doutorado
elaborei um dos primeiros perfis sobre a gestão escolar no Brasil, tomando dados
nacionais para tanto.
Esta formação agregada à temática do departamento no qual me insiro na
UFPR trouxe-me ao campo da política e gestão da educação.
Todavia, sempre que possível pego uma turma do curso de licenciatura em
educação física, para ministrar a disciplina de Políticas Educacionais, pois assim
consigo manter próximas minhas duas paixões acadêmicas.
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Ângelo Ricardo de Souza
REP – De 1999 a 2001, você realizou seu mestrado da PUC/SP, defendendo
a dissertação “A escola, por dentro e por fora: a cultura da escola e o programa de
descentralização financeira em Curitiba/PR”; e, de 2003 a 2007, realizou o douto-
rado também na PUC/SP, defendendo uma tese sobre “O Perfil da gestão escolar no
Brasil”, com a orientação do professor José Geraldo Silveira Bueno. Quais aspectos
importantes poderiam ser ressaltados nessas duas pesquisas e suas contribuições
para sua formação como pesquisador e na produção acadêmica atual?
Ângelo – Eu fui estudar essa temática provocado pelas experiências profis-
sionais na gestão da escola pública de educação básica. Sempre tive interesse em
conhecer melhor as pessoas que dirigem as escolas e os processos de condução des-
sas instituições.
No mestrado, tomei a discussão da gestão financeira da escola, pois tendo
sido diretor escolar, verifiquei mudanças significativas no cotidiano da gestão, com
fortes impactos na política escolar, advindas dos câmbios promovidos pela transfe-
rência de recursos financeiros. Assim, minha questão ali se articulava ao quanto
a organização e a cultura (de gestão) escolar é impactada pelas políticas educacio-
nais, particularmente as de natureza financeira. Minhas conclusões indicam que
a gestão escolar constitui modos próprios de acolher e, ao mesmo tempo, rejeitar
aspectos das políticas educacionais, ressignificando-as e adaptando-as às suas ne-
cessidades e tradições.
Já na pesquisa de doutorado, meu foco foi produzir um panorama amplo da
gestão da escola pública no Brasil, buscando identificar se o perfil dos sujeitos e
processos de gestão escolar se articulam, e em que proporção, ao perfil das ideias e
conceitos consagrados no campo na história do Brasil. Isto é, interessava-me saber
se os dirigentes escolares e a administração escolar eram devedores em qual pro-
porção da história das ideias sobre gestão escolar no país. Após um levantamento
amplo, com base de dados nacionais, identifico uma correlação entre o perfil dos
sujeitos, dos processos e das ideias, mas com marcas temporais um tanto definidas,
tendo em vista especialmente a natureza político-pedagógica na gestão escolar.
Este ponto, por sinal, é o elemento que ainda hoje persigo em meus estudos.
Meu foco recai, em estudos mais aggiornados, sobre a condição política de se condu-
zir uma escola de educação básica, uma vez que as relações sociais e a disputa por
poder que atravessam diuturnamente a gestão escolar são marcantes.
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Diálogo com educadores
REP – Como você avalia os avanços e as dificuldades em fazer pesquisa no
campo das políticas educacionais no atual cenário brasileiro?
Ângelo – Nosso objeto é a conjuntura. Em políticas educacionais estudamos a
relação entre as demandas sociais por educação e a resposta (na forma de ação ou
não-ação) do Estado diante dessas demandas.
Sempre haverá demanda educacional, explícita, latente ou potencial, e o Es-
tado não pode argumentar que a desconhece. O atendimento a dada demanda,
também gera, em boa proporção, não atendimento a outras demandas, isto é, o
Estado promove escolhas que se articulam ao movimento próprio da luta política.
Vivemos tempos complexos e difíceis, nos quais o Estado escancara priorida-
des outras, em detrimento do atendimento a muitas demandas sociais por educa-
ção. Nossos estudos ganham, assim, um novo cenário, uma nova conjuntura. Nem
por isto, ao contrário, justamente por isto, temos diante de nós um novo movimento
da política, que precisa ser explicado. Nosso ofício de pesquisador, neste caso, é
conseguir explicar bem quais processos políticos têm se alterado na educação (vin-
culados ou não à macro política), como isto tem ocorrido, porque temos visto essas
opções políticas e, em especial, quais decorrências desses processos são perceptí-
veis e/ou previsíveis.
Ou seja, nossa função diante desta conjuntura é auxiliar o entendimento do
contexto e movimentos, de maneira a amparar as ações das pessoas (gestores pú-
blicos, docentes, sindicalistas, cidadãos em geral, pesquisadores mesmo) no enfren-
tamento dos problemas.
Contudo, tal conjuntura traz um componente que torna nosso trabalho mais
difícil, que são os cortes de recursos para a ciência e a tecnologia, os quais gerarão
a interrupção ou cancelamento de pesquisas e da formação de novos pesquisadores,
comprometendo aquele objetivo que destaquei anteriormente.
REP – Em 2014-2015 você realizou um Pós-Doutorado na University of Bristol
da Inglaterra. Como foi essa experiência e o que destacaria de significativo nas
pesquisas inglesas sobre as políticas de educação?
Ângelo – Esta experiência de pesquisa foi muito importante para minha for-
mação, pois conheci pessoas, realidades e abordagens de pesquisa bastante dife-
rentes do que estava acostumado.
Em essência, os objetos de pesquisa que percebia no grupo em que estive in-
serido, sob comando dos professores Roger Dale e Susan Robertson, na University
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of Bristol, abarcam temáticas muito amplas, pois em tal grupo havia pessoas de
vários lugares do mundo, com contextos muito diversos, portanto, com políticas
educacionais peculiares.
Contudo, como o grupo tem por eixo o debate sobre Globalização e Educação,
tínhamos quase todos uma “amarra” comum: o reconhecimento sobre a influência
das macropolíticas internacionais no desenho de políticas educacionais nacionais
ou locais. No mundo todo, temos observado o crescimento da transferência de res-
ponsabilidades educacionais do Estado para a sociedade civil e/ou a aproximação e
assunção de tarefas educativas por agentes privados, tanto na educação superior,
onde isto é mais evidente, quanto na educação básica.
Assim, estudos sobre planejamento educacional, como o que eu próprio de-
senvolvia, ou sobre livros didáticos, ou sobre financiamento da educação superior,
ou sobre reformas curriculares, ou sobre políticas de formação docente, etc., en-
contrávamos um eixo comum, que mais que supranacional é transnacional, isto é,
alcança aspectos culturais da conformação e organização dos sistemas educativos,
chegando, portanto, às pessoas que atuam em cada classe de aula.
Na Inglaterra, em particular, as discussões sobre a chamada economia do
conhecimento e a força do capital privado na educação superior continuam, as-
sim como a questão da responsabilização docente e a questão dos impactos sobre
a organização escolar provocados pelas políticas de avaliação. Mas, é crescente o
debate sobre educação e questões étnicas, educação e desigualdade, educação e
diversidade, dentre outros temas correlatos, tendo em vista as pressões geradas
pelas demandas sociais como a crise dos refugiados, o número muito elevado de
estrangeiros (e seus filhos que vão à escola) sem o domínio da língua inglesa, etc.
REP – Atualmente, você está desenvolvendo dois projetos de Pesquisa: “Aná-
lise comparada das políticas educacionais nas Américas: contextos, movimentos e
direito à educação” e “Políticas públicas e mudanças sociais”. Ambos os projetos
contam com inúmeros pesquisadores. Conte-nos um pouco destes dois projetos e de
que forma a pesquisa realizada nos PPG em Educação podem contribuir com as
políticas públicas na educação básica?
Ângelo – São dois projetos que articulam grupos de pesquisa. O primeiro
deles, “Análise Comparada das PE...”, congrega pesquisadores do Brasil, Chile,
Argentina, EUA e Uruguai. Este projeto de pesquisa se propõe a investigar com-
parativamente os movimentos da macropolítica e suas decorrências no alcance
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e na efetivação do direito à educação básica e superior nos países mencionados,
considerando as consequências das continuidades e descontinuidades das políticas
educacionais elaboradas em contextos democráticos após trocas nas orientações po-
líticas e ideológicas nos governos desses países. Vimos nos quatro primeiros países
mencionados um câmbio ao conservadorismo nas últimas eleições e gostaríamos de
saber as resultantes deste movimento da macropolítica na política educacional. O
Uruguai entra na pesquisa como uma espécie de contraprova.
O segundo projeto, “Políticas Públicas e Mudanças Sociais”, é um projeto de
pesquisa, mas antes é um projeto institucional e foi criado no âmbito do edital
Capes-PrInt. Este projeto propõe o desenvolvimento de processos inovadores de
análises comparadas, desenvolvimento de metodologias, avaliações e propostas de
implementação de políticas públicas, em particular as de caráter social. Metodolo-
gicamente, a proposta indica troca de experiências no plano da pesquisa empírica,
comparando realidades diferentes; produção cooperada de modelos analíticos e; no
campo epistemológico, na consolidação de teorias explicativas que permitam arti-
cular a complexidade das relações entre Estado, mercado e sociedade civil organi-
zada em contexto de globalização, destacadamente atentando-se para os elementos
contribuintes do desenvolvimento da democracia e da cultura, como a Educação.
Ele articula sete PPG da UFPR (Educação, Sociologia, Políticas Públicas, Educa-
ção Física, Enfermagem, Direito e Informática) com grupos de pesquisa dentro da
temática mencionada em 34 universidades estrangeiras.
Avalio que ambos trarão contribuições importantes. Neste segundo projeto, a
discussão mais ampla sobre a proposição, implementação e avaliação de políticas
públicas (em educação) contribuirá, potencialmente, com os estudos que o campo
vem desenvolvendo no Brasil, em especial na temática denominada de Avaliação
de Políticas Educacionais.
O outro projeto produzirá, esperamos, um panorama sobre o background no
qual a política educacional é desenhada e implementada. Nossa hipótese, todavia,
é que as macropolíticas produzem mudanças imediatas, mas com efeitos um tanto
retardados, o que amplia chances de resistências a tais mudanças.
REP – Você é, atualmente, coordenador adjunto da área de Educação na Ca-
pes. Fale-nos um pouco dessa experiência e de que forma você avalia o processo de
expansão e interiorização da pós-graduação ocorrido nas duas últimas décadas?
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Ângelo Ricardo de Souza
Ângelo – Nossa área cresceu muito. Uma década atrás éramos 94 PPG, hoje,
chegamos a 184. Estamos em todos os estados da federação, e temos crescido tam-
bém a oferta dos níveis (89 doutorados) e modalidade (49 PPG profissionais). Con-
tinua havendo ainda forte disparidade regional, pois na região Norte temos apenas
13 PPG contra 73 no Sudeste e 47 no Sul, portanto, ainda há que se buscar melho-
rar a distribuição desta oferta no contexto nacional.
A pós-graduação em educação tem um papel significativo na qualificação de
quadros altamente especializados e, portanto, um potencial de contribuição signi-
ficativo para a formação docente da educação básica e superior.
Precisamos, contudo, ampliar a inovação nesta oferta, buscando produzir no-
vas formas mais criativas para a formação no nível da pós-graduação, pois temos
visto uma tendência de muita homogeneidade na área, no que se refere à proposta
e desenho curricular dos PPG.
Sou otimista quanto a isto, pois vejo potencial nas equipes que tocam os PPG.
O sistema de avaliação da Capes também tem um papel importante aqui, valori-
zando mais as iniciativas dos programas nesta direção.
REP – Como você avalia as medidas recentes de cortes do governo em cortar
recursos para o financiamento das pesquisas e das bolsas de mestrado e doutorado?
Ângelo – Os cortes de recursos podem inviabilizar boa parte dos trabalhos
que a pós-graduação desenvolve, não apenas nas bolsas de mestrado, doutorado e
pós-doutorado, mas no fomento ao funcionamento dos programas, tornando mais
complexa a inter-relação entre eles e, portanto, diminuindo as chances de aprendi-
zado mútuo e cooperação no desenvolvimento científico e tecnológico no país.
Penso que a comunidade acadêmica deve continuar a reivindicar a reposição
do quadro orçamentário anterior, lutando pela qualidade da ciência e, mesmo an-
tes, pela sobrevivência do sistema nacional de pós-graduação.
REP – Qual sua avaliação em relação às mudanças que estão sendo introduzi-
das no sistema de avaliação da Capes atualmente?
Ângelo – O sistema nacional de pós-graduação é construído gradualmente pe-
los organismos próprios na Capes, em constante diálogo com as diferentes áreas.
Assim, as mudanças que estão sendo propostas agora não são inovação de uma ou
outra gestão na Capes. Ao contrário, expressam as discussões e amadurecimentos do
CTC da Educação Superior, que reverberam também o desenvolvimento das áreas.
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Diálogo com educadores
As mudanças em curso sinalizam, dentre outros aspectos, para um Qualis
Periódicos referência, o que permitirá que não tenhamos mais diversas classifica-
ções para um mesmo periódico, acolhendo reivindicação antiga de todas as áreas.
Também aponta para uma nova ficha de avaliação, mais sintética e focalizada nos
aspectos mais relevantes, em especial, na centralização no entorno das ideias de
Formação e Impactos. Teremos também parâmetros para a avaliação que versam
sobre Internacionalização e Inovação, que são aspectos importantes para o dimen-
sionamento da qualidade da PG, mas que não possuem ainda um padrão avaliativo.
REP – Especificamente sobre a “Privatização da Educação” (temática do Dos-
siê da Espaço Pedagógico), que processos estão em curso no Brasil e em que medida
tais processos ameaçam a escola (educação??) Pública?
Ângelo – Cresce a olhos vistos a presença e participação privada na educação
básica, especialmente nas redes dos municípios menores e com menor capacidade
técnica. Em particular, tal presença se traduz: a) no conveniamento na educação
infantil e na educação especial; b) na venda de sistemas didáticos (apostilas, livros)
e de formação de professores; c) na venda de mecanismos de planejamento e gestão,
avaliação e controle; d) na definição de objetivos e metas da educação.
Mas, também, discute-se sem pudor alterações no modelo de financiamento da
educação superior, no que tange à cobrança de taxas nas Instituições Públicas de
ES e à retomada da ideia de priorização de algumas IES (Centros de Excelência)
em detrimento da maioria (Centros de Formação).
Minha percepção é que isto é parte de um processo mais complexo, que passa
pela ressignificação do papel do Estado para com a Educação. Assim, creio que
continuaremos vendo nos próximos anos: ampliação do atendimento assistencial
via educação na educação infantil e na educação especial por meio de parcerias
com o privado e com o informal; aprovação de mecanismos de desobrigação da fre-
quência escolar (home schooling); manutenção ou ampliação da isenção fiscal para
os usuários da escola privada; incentivo à política de transferências de responsa-
bilidades educacionais das redes públicas para a sociedade (Charter School; OS/
OSCIP; Políticas de voucher etc.); segmentação do ensino médio em dois grandes
modelos: escolas de formação ampla e de qualidade (privadas e algumas públicas) x
escolas com um itinerário e foco na singela formação profissional; mercantilização
absoluta da educação superior; risco sério de desmonte do SNPG.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Ângelo Ricardo de Souza
REP – Até que ponto a expansão do setor privado empresarial no campo da
educação afronta os pressupostos do artigo 205 da Constituição de 1988 de uma edu
-
cação como dever do Estado e da família, visando “ao pleno desenvolvimento da pes-
soa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”?
Ângelo – A Constituição Federal de 1988, segundo Jamil Cury, mudou um dis-
positivo importante na relação entre o público e o privado na educação: converteu
a ideia de concessão para autorização. Isto é, a partir de 1988, o segmento privado
precisa de autorização para oferta dos serviços educacionais, mas a educação deixa
de ser uma concessão do Estado, portanto, “enfraquece” neste momento o peso e
o poder no Estado na regulação e controle da oferta educacional pelo segmento
privado.
De toda forma, o segmento privado que mais cresce neste período é o empre-
sarial, ou o privado stricto sensu, e este lida com um elemento novo, pelo menos
oficialmente, na educação nacional: o lucro. Aqui temos um problema de fundo: é
possível uma instituição lucrativa acolher e desenvolver o princípio constitucional
de colocar a educação como ativo para o pleno desenvolvimento da pessoa e para o
exercício da cidadania?
Minha hipótese é que isto não parece possível. O mais complexo é que tem se
esparramado a ideia de que são essas as instituições educacionais de referência,
que devem servir de modelo não apenas pelos resultados escolares, mas pelos mo-
delos de gestão e pelas propostas pedagógicas. O risco que se corre aqui, com a di-
fusão de tal ideia, é o que Jorge Alarcon Leiva chama de privatização da alma, que
é representada pela diminuição tamanha do público que ele ficará em um gueto,
atendendo apenas aqueles que não podem, em absoluto, pagar por qualquer serviço
educacional, como tem se passado no Chile.
Minha esperança reside, todavia, no fato de que a história e a presença do Es-
tado na educação nacional é tamanha e, de outro lado, a resistência especialmente
dos educadores das redes públicas, organizados nos sindicatos docentes, tem força
suficiente para, junto conosco, nas universidades, possamos fazer frente a esta for-
te onda conservadora e privatista.
Nota
1
O presente Diálogo com Educadores contou com a mediação, em nome da Revista Espaço Pedagógico, do
Prof. Dr. Altair Alberto Fávero e do Prof. Dr. Telmo Marcon, integrantes do Programa de Pós-Graduação
em Educação da Universidade de Passo Fundo.
ESPAÇO
PEDAGÓGICO
RESENHA
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Maria de Lourdes Pinto de Almeida, Silmara Terezinha Freitas, Diego Palmeira Rodrigues
Da universidade à commoditycidade: ou de como e quando, se a educação/
formação é sacricada no altar do mercado, o futuro da universidade se situaria
em algum lugar do passado
From the university to the commodity: or how and when, if education/training is sacriced on
the market altar, the universitys future would be somewhere in the past
De la universidad a la comoditycidad: o cómo y cuándo, si la educación/formación és sacricada
en el altar del mercado, el futuro de la universidad estaría en algún lugar del pasado
Maria de Lourdes Pinto de Almeida
*
Silmara Terezinha Freitas
**
Diego Palmeira Rodrigues
***
Refletir sobre a universidade é muito importante para compreendermos a di-
nâmica histórica da Educação Superior e o contexto de influências que interferem
na autonomia da universidade e que a colocam como mais um instrumento a ser-
viço do mercado. É nesta perspectiva que foram elaboradas as reflexões contidas
na obra “Da universidade à commoditycidade: ou de como e quando, se a educação/
formação é sacrificada no altar do mercado, o futuro da universidade se situaria
em algum lugar do passado”, publicada pela editora Mercado de Letras (Brasil) em
setembro de 2017.
Escrito em coautoria pelos Professores Lucídio Bianchetti e Valdemar Sguis-
sardi, o livro tem o objetivo de apresentar, por meio de 124 páginas, o histórico
da universidade ocidental desde sua origem até o momento atual. Para tanto, os
*
Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp, Brasil). Professora Titular da Universidade do
Oeste de Santa Catarina (Unoesc, Brasil). ORCID https://orcid.org/0000-0001-8515-2908. E-mail: malu04@gmail.com
**
Especialista em Coordenação Pedagógica pela Universidade Federal de Santa Catarina (Ufsc, Brasil). Mestre em Edu-
cação pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc, Brasil). ORCID https://orcid.org/0000-0003-1657-4781.
E-mail: silmara.sica@gmail.com
***
Doutorando em Educação pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc, Brasil). ORCID https://orcid.
org/0000-0002-2431-654X. E-mail: diegopalmeirarodrigues@gmail.com
Recebido em 27/04/2019 – Aprovado em 04/09/2019
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i1.10588
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Da universidade à commoditycidade: ou de como e quando, se a educação/formação é sacricada no altar do mercado, o futuro da universidade...
capítulos tecem discussões construídas sob um olhar crítico quanto ao processo de
intervenção sobre o qual sempre passou a universidade.
Com uma redação dotada de coerência argumentativa, possibilita perceber
um encadeamento entre os três capítulos que compõem a obra e são assim intitu-
lados: “Universidade, Tutelas e Políticas Educacionais: Da instituição medieval
à moderna. Alguns antecedentes da situação atual”; “Brasil: De Instituições de
Ensino Superior Tuteladas – Passando por experiências fundantes – à regulação”;
e “... À Commoditycidade”. Antecedendo os capítulos, constam o prefácio intitulado
“Da universidade à commmoditycidade: mudança ou metamorfose na Educação
Superior?”, escrito por Almerindo Janela Afonso, e uma breve introdução. Nas pá-
ginas finais são expostas as Referências dos autores citados ao longo de todo o texto
e ainda, em Sobre os autores é apresentada uma breve descrição do currículo e o
e-mail de contato dos autores Bianchetti e Sguissardi.
O livro fornece uma leitura crítica do contexto em que a Universidade Con-
temporânea está envolta, a partir de uma análise que se inicia por uma tênue
linha do tempo da história da criação das universidades brasileiras, apresentando
os dilemas sofridos e os desafios com os quais, atualmente, elas se enfrentam no
campo da investigação, reflexão e formação. Já no prefácio da obra, os leitores são
brindados com uma excelente descrição da magnitude do livro realizada por Alme-
rindo Janela Afonso, o qual enfatiza que os autores apresentam de maneira clara
e ao mesmo tempo crítica, que com o passar do tempo as Instituições de Ensino
Superior (IES) foram sofrendo rupturas do ethos da universidade em função dos
interesses do capitalismo, transformando-se numa organização subordinada às
lógicas mercantis.
Na introdução os autores Bianchetti e Sguissardi apresentam quais são os
contextos que delineiam a obra, situando o leitor no espaço e no tempo histórico
no qual as universidades brasileiras foram criadas e como essas foram sendo tu-
teladas e perdendo a autonomia até chegar ao extremo de regulação heterônoma.
Nesse sentido, apresentam também o Parecer 977/65, que institui os programas
de pós-graduação stricto sensu, o qual, no Capítulo II, é discutido detalhadamente
como o marco criado com o intuito de renovar, reconstruir, qualificar e transformar
a instituição universitária, pois é neste âmbito que os autores buscam demonstrar
o contexto no qual a educação superior pública se estagnou, abrindo caminho para
a expansão das instituições privadas, as quais se tornaram, nas palavras dos au-
tores, “protagonistas” do efetivo processo de mercadorização da educação superior.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
v. 27, n. 1, Passo Fundo, p. 278-283, jan./abr. 2020 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
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Maria de Lourdes Pinto de Almeida, Silmara Terezinha Freitas, Diego Palmeira Rodrigues
Com essa abordagem, os autores explicam o significado do termo que define
o título da obra: commoditycidade – expressão essa que é usada de maneira heu-
rística para explicar o processo de transformação, tanto da definição, quanto do
funcionamento da universidade e da própria educação superior, no sentido de a
educação ser tratada como mercadoria.
No Capítulo I, Universidade, Tutelas e Políticas Educacionais: Da instituição
medieval à moderna. Alguns antecedentes da situação atual, é apresentada uma
linha do tempo que explicita a condição da universidade tutelada, no início, pelo
domínio da Igreja (Idade Média – Europa), já no século XVI, pela burguesia na fase
comercial do capitalismo, momento em que a estrutura e as funções da universi-
dade passaram por transformações e que se agregou à educação o termo “laica”.
Nessa parte do texto, os autores destacam que na condição de universidade tute-
lada, as transformações ocorridas desde a criação das universidades até o século
XIX foram mínimas no que tange aos objetivos, estrutura e modo de organização e
funcionamento das instituições (p. 23).
Seguindo a linha cronológica, de acordo com os autores, no século XIX emerge
a questão social em que são criadas as universidades cuja identidade passam a des-
locar-se do lugar, não apenas geograficamente, em que algumas continuam sendo
tuteladas, enquanto outras são direcionadas a fins como pesquisa e prestação de
serviços com o desafio de gestões ou regulações menos tuteladoras (p. 25).
Na parte final do capítulo, Bianchetti e Sguissardi enfocam um pouco da histó-
ria da universidade/educação superior no Brasil. A abordagem começa pelo século
XVIII em que a influência em termos de educação superior é napoleônica, quando o
Rei D. João VI, ao chegar no Brasil, autoriza o funcionamento das escolas superio-
res com características de faculdades para atender as necessidades da coroa por-
tuguesa, ofertando curso de Direito, Medicina, Engenharia Naval, Mineralurgia.
Contudo, após apresentação de um breve relato da instituição das universidades
brasileiras, os autores sinalizam para a importância em se perceber que com o pas-
sar do tempo as exigências da divisão técnica e social do trabalho foram impondo a
maneira como a universidade foi sendo organizada e funcionando na direção tanto
de especializações, terminalidades, quanto nas áreas de saber insulares, voltadas
para atender as demandas do mercado, no sentido de formar especialistas (p. 28).
O fechamento da primeira parte do livro situa-se na abordagem referente ao
século XIX, momento em que pelas inúmeras transformações na forma de orga-
nização e funcionamento das universidades, foram estabelecidos os modelos que
passaram a predominar até os dias atuais, ou seja, foi a partir de então que se ma-
281
ESPAÇO PEDAGÓGICO
v. 27, n. 1, Passo Fundo, p. 278-283, jan./abr. 2020 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
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Da universidade à commoditycidade: ou de como e quando, se a educação/formação é sacricada no altar do mercado, o futuro da universidade...
terializou o tripé da universidade: ensino, pesquisa e extensão, mas com diferentes
pesos e medidas, administradas e geridas como organizações e desta forma cada
vez mais se distanciando como instituição educativa em sua essência.
O Capítulo II intitulado Brasil: De Instituições de Ensino Superior Tuteladas –
Passando por experiências fundantes – à regulação, conecta a história da educação
superior no Brasil, a qual se iniciou em 1808, com os aspectos da evolução da so-
ciedade, que guiada pelo capitalismo, foi caracterizando a educação superior num
contexto de tutela e pragmatismo utilitarista dos cursos superiores. Os autores
novamente seguindo uma linha do tempo, vão expondo fatos pontuais referente à
criação de cursos, iniciando pelo período imperial
1
até a passagem da primeira para
a segunda década do século XX onde surgem as universidades privadas (Manaus –
1909, São Paulo – 1911 e Curitiba – 1912).
Tecendo considerações sobre a “identidade” do ensino superior, na sequência
do capítulo, são apresentadas considerações a respeito de como as relações entre
a universidade e a sociedade foram caracterizando o modelo contemporâneo de
universidade a partir de três experiências/modelos de universidade/educação supe-
rior: a Universidade de São Paulo (USP), a Universidade do Distrito Federal (UDF)
e a Universidade de Brasília (UnB). Para os autores, essas três instituições foram
criadas com objetivos de resgatar o sentido original de universidade e alimentar
o pensamento crítico e reflexivo, destacam ainda que nos documentos dessas ins-
tituições está presente a preocupação com a formação de professores em todos os
níveis.
Nesse sentido, o seguimento do capítulo expõe os fatos que originaram a cria-
ção e implantação formal de um modelo de pós-graduação stricto sensu, tendo como
marco inicial o parecer 977/65, o foco da implementação estava voltado à renovação
ou reconstrução da universidade brasileira a partir do ideário de melhoria da/na
formação de professores. Contudo, os autores alertam para o fato de que tanto o
nome quanto o sistema da pós-graduação têm sua origem na estrutura das uni-
versidades norte-americanas e que isso está explícito no referido parecer. Assim,
finalizando o capítulo, são apresentados argumentos e detalhes que nos levam a
entender como foi constituída a pós-graduação stricto sensu no Brasil, como por
exemplo, a questão referente à sua regulamentação e às implicações na carreira
docente, enfocando a necessidade da regulação, do controle em relação à abertura
dos cursos (p.72).
No Capítulo III, À Commoditycidade, são expostos alguns fatos e argumentos
que esclarecem a maneira de como a perspectiva de mercado está presidindo o pro-
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
v. 27, n. 1, Passo Fundo, p. 278-283, jan./abr. 2020 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
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Maria de Lourdes Pinto de Almeida, Silmara Terezinha Freitas, Diego Palmeira Rodrigues
cesso de ampliação do número de Instituições, sejam novas ou resultados de pro-
cessos de fusões. Nesse sentido, o termo usado como título da obra “commodityci-
dade” representa essa nova especificidade das Instituições de Educação Superior,
com características de empresas mercantis que buscam ampliação numérica de
alunos-clientes (p.76).
Pelo detour apresentado pela linha do tempo, os autores reúnem alguns ele-
mentos da história da educação superior/universidade, relacionando o passado
mais distante com o presente, com o fito de prospectar o cenário para os próximos
anos, caso se mantenha essa tendência que têm se mostrado hegemônica, a mer-
cantilização da educação. De maneira reflexiva frente a esse possível cenário para
a educação superior, indagam: Quais são as indicações reveladoras do futuro da
formação dos jovens universitários, no plano imediato, mediato e de longo prazo, a
prevalecer a tendência que vem se impondo como hegemônica no atual processo de
expansão da educação superior? (p. 80).
A fim de ilustrar a expansão da educação superior, é apresentado um caso
como exemplo, o de Santa Catarina que mesmo com o Sistema Acafe (Associação
Catarinense das Fundações Estaduais) também sucumbiu à expansão de institui-
ções e organizações privadas-mercantis. Ainda são apresentados fatos pontuais
que representam o processo de mercantilização da educação: a ida de “empresas de
educação” à Bolsa de Valores, ou seja, a abertura de capital das empresas educacio-
nais onde se formam monopólios e oligopólios a partir da aquisição e incorporação
entre algumas empresas do setor educacional pela compra e venda de ações na
Bolsa de Valores, de um produto chamado “educação/ensino”, transformando esse
produto em mercadoria/commodity, momento no qual, bem enfatizam os autores,
a condição da universidade, da educação superior e dos alunos chega ao extremo
representado pela “mercadoria/ensino” que se negocia na bolsa de valores, uma
estratégia mercantil que segue as lógicas do capital (p. 95).
Com a subseção do capítulo Oligopolização da educação superior, os autores
trazem à discussão um pouco da história da constituição da maior empresa de edu-
cação superior do planeta – a Kroton – a partir da exposição de dados e tabelas com
informações a respeito do número de matrículas em instituições educacionais com
fins lucrativos vinculadas a esse grupo, os autores enfatizam ainda mais a ques-
tão de que a tendência hegemônica firmada para a universidade contemporânea é
voltada aos interesses imediatos de empresas, descaracterizando a quase milenar
missão universitas voltada à formação cultural e humanística.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
v. 27, n. 1, Passo Fundo, p. 278-283, jan./abr. 2020 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
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Da universidade à commoditycidade: ou de como e quando, se a educação/formação é sacricada no altar do mercado, o futuro da universidade...
Na Conclusão da obra Bianchetti e Sguissardi apresentam uma crítica aos
“ataques” sofridos pela universidade no decorrer da história que se materializam
na forma da educação tratada como mercadoria vendável, do aluno como cliente/
comprador e também da formação mínima e simplesmente utilitária.
O livro “Da universidade à commoditycidade: ou de como e quando, se a educa-
ção/formação é sacrificada no altar do mercado, o futuro da universidade se situa-
ria em algum lugar do passado” configura-se como uma importante contribuição
para as discussões sobre os caminhos percorridos pela Universidade e o contexto de
influencias no seu entorno. É uma importante obra de referência para os estudos
sobre Universidade e ensino superior e, dessa forma, é uma leitura recomendada a
todos interessados em conhecer o percurso histórico da Universidade e as influên-
cias por ela sofrida. É uma obra especialmente indicada aos que pesquisam na área
de políticas públicas educacionais.
Nota
1
Neste período foram criadas as Faculdades de Direito devido à necessidade de formação humanística- ju-
rídica para realizar as tarefas de administração do país e das províncias (p. 36).
Referência
BIANCHETTI, Lucídio; SGUISSARDI, Valdemar. Da universidade à commoditycidade: ou de
como e quando, se a educação/formação é sacrificada no altar do mercado, o futuro da universi-
dade se situaria em algum lugar do passado. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2017.