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volume 27 número 2 maio/ago. 2020
ISSN on-line 2238-0302
volume 27 número 2 maio/ago. 2020
INFNCIA E CIDADANIA
UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO
Bernadete Maria Dalmolin
Reitora
Edison Alencar Casagranda
Vice-Reitor de Graduação
Antônio Thomé
Vice-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação
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FACULDADE DE EDUCAÇÃO
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ISSN on-line 2238-0302
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Revista Espaço Pedagógico [online] / Universidade de Passo
Fundo, Faculdade de Educação. – Vol. 16, n. 2 (2009)- . –
Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2009-
Anual: 1994-1998. Semestral: 1999-2016. Quadrimestral:
2017-.
eISSN 2238-0302.
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1. Ciências humanas – Periódico. 2. Educação – Periódico.
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A revista Espaço Pedagógico é signatária do San Francisco Declaration on
Research Assessment (DORA)
ESPAÇO
PEDAGÓGICO
SUMÁRIO
Editorial .....................................................................................................................................................................289
DOSSIÊ
Childhood and Citizenship: The viewpoint of the 21st Century ...................................................................................297
Infância e Cidadania: O ponto de vista do século XXI
Infancia y Ciudadanía: El punto de vista del siglo XXI
Tom Cockburn
Infâncias e diretos na contemporaneidade: em foco as crianças do campo ................................................................313
Children and rights in contemporaryity: focus on eld children
Infancias y derechos en la contemporaneidad: centrarse en los niños del campo
Franciele Clara Peloso
Najela Tavares Ujiie
Bullying escolar: a (in)visibilidade do fenômeno e dos protagonistas crianças ...........................................................329
Acoso escolar: la (in)visibilidad del fenómeno y de los protagonistas niños
School bullying: the (in)visibility of phenomenon and children protagonists
Rosana Coronetti Farenzena
O encontro intergeracional entre crianças e idosos como espaço de construção de cidadania na infância ..................348
The intergenerational meeting between children and the elderly as a context of building citizenship in childhood
El encuentro intergeneracional entre niños y ancianos como contexto de construcción de ciudadanía en la infancia
Ivone Maria Mendes Silva
Simone Cristina Dalbello da Silva
A docência na Educação Infantil COM a Participação das Crianças ..............................................................................375
Teaching in Early Childhood Education WITH Childrens Participation
La docencia en la educación de la primera infancia CON la participación de los niños
Katia Adair Agostinho
“Participar não é só fazer activismo”: olhares de crianças e adolescentes moçambicanos ..........................................389
“Participation is not just about activism”: views of Mozambican children and adolescents
“Participar no es solo hacer activismo”: opiniones de niños y adolescentes de Mozambique
Elena Colonna
Como se relacionam as crianças em contexto de jogo? um estudo realizado em crianças do 1º ciclo ..........................406
How do children relate in game context? a study of primary school children
¿Cómo se relacionan los niños en el contexto del juego? un estudio con alumnado de primer ciclo
Inês Peixoto Silva
Ana Isabel Silva
Beatriz Oliveira Pereira
Educação infantil: espaço do brincar e da interação da criança .................................................................................. 420
Child education: Space of play and child interaction
Educación infantil: Espacio de juego e interacción infantil
Daniele Vanessa Klosinski
Adriana Salete Loss
(In) visibilidade das crianças imigrantes na cidade de São Paulo: questões para pensar a cidadania da pequena
infância ......................................................................................................................................................................437
(In) Visibility of immigrant children in the city of São Paulo: questions for thinking about early childhood citizenship
(In) Visibilidad de niños inmigrantes en la ciudad de São Paulo: preguntas para pensar en la ciudadanía de la primera infancia
Maria Leticia Nascimento
Carolina Grandino Pereira de Morais
Contributo para a geodesia das culturas da infância: brincadeiras na latitude 0° e 41° ...............................................459
Contributions to childhood cultures geodesy: playing at 0° e 41° latitude
Contribución a la geodesia de las culturas infantiles: juegos en latitud 0° y 41°
Marlene Barra
Manuela Sampaio Pinto
Literatura infantil com personagens negras: narrativas descolonizadoras para novas construções identitárias e
de mundo ..................................................................................................................................................................481
Childrens literature with black characters: decolonizing narratives for new identity and world constructions
Literatura infantil con personajes negros: narrativas decolonizadoras para nuevas construcciones identitarias y de mundo
Simone dos Santos Pereira
Iracema Santos do Nascimento
Participação infantil na escola do campo: narrativas produzidas em contexto de pesquisa com crianças ...................497
Child participation at rural school: narratives produced in the context of research with children
Participación infantil en la escuela rural: narraciones producidas en contexto de investigación con niños
Keylla Rejane Almeida Melo
Iara Vieira Guimarães
DEMANDA CONTÍNUA
A escrita do gênero textual poema no ensino fundamental I .....................................................................................524
The writing of the poem textual gender in elementary school I
La escritura del género textual poema en la educación primaria
Flávio Renato Santos
Andréia Osti
Neide de Brito Cunha
Arte e educação nas escolas do campo: do reconhecimento das tradições à releitura crítica do mundo .....................549
Art and education in rural schools: from the recognition of traditions to the critical re-reading of the world
Arte y educación en las escuelas del campo: del reconocimiento de las tradiciones a la relectura crítica del mundo
Elmo de Souza Lima
Diálogo com educadores ............................................................................................................................................565
Francesco Tonucci
Diálogo com Rosana Coronetti Farenzena
RESENHA
Imaginação e criação na infância ...............................................................................................................................576
Andréia Mendiola Marcon
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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ESPAÇO
PEDAGÓGICO
EDITORIAL
Em 2019, celebramos trinta anos da Convenção sobre os Direitos da Criança,
um instrumento de direitos humanos ratificado em 1989 por 196 países, entre os
quais o Brasil, e considerado o mais abrangente tratado em favor da promoção da
infância e do seu cuidado. A Convenção estabelece que os Estados Partes devem
assegurar a todas as meninas e a todos os meninos, sem nenhuma discriminação,
o direito à convivência familiar e com a comunidade, à saúde, à alimentação, ao
lazer, entre outros, também, a proteção, o cuidado frente a todas as formas de
opressão, de violência e de discriminação, a informação sobre seus direitos e a
participação em decisões que afetem suas vidas. Igualmente, cabe assegurar às
crianças uma educação escolar que lhes ofereça condições para o desenvolvimento
de suas personalidades, habilidades e talentos em seu máximo potencial.
Apesar dos progressos na afirmação desses direitos, como a redução pela me-
tade da mortalidade de crianças menores de cinco anos, conforme dados da Unicef
(2019), há em torno de 262 milhões de crianças e adolescentes fora da escola, 650
milhões de adolescentes casadas antes dos dezoito anos de idade e, aproximada-
mente, 300 mil crianças mortas anualmente por problemas de saúde associados
à qualidade da água, à falta de saneamento e às condições de higiene. Da mesma
forma, ainda que as últimas décadas registrem progressos em todos os indicado-
res relacionados à educação – acesso, permanência e aprendizagem –, segundo a
Unicef Brasil (2019), em diversas latitudes, um grande contingente de crianças de
populações mais vulneráveis permanece fora da escola. Respostas a esse problema
histórico não se limitam ao acesso à instrução, mas remetem à oferta de uma escola
com processos educativos qualificados.
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i2.11418
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Nesse contexto de chamamento às responsabilidades, o qual implica validar/
avaliar as políticas públicas vigentes e reconhecer/enfrentar os desafios à imple-
mentação dessas políticas, o que cabe a uma comunidade intelectualmente prepa-
rada e cientificamente comprometida com uma educação de qualidade para todos?
Nada menos do que um protagonismo responsável, alicerçado na pesquisa e sinto-
nizado com a sua natureza de participação transformadora da realidade.
O dossiê Infância e Cidadania testemunha a atuação ética, política, social,
educacional e científica de uma comunidade de investigadores, representativos des
-
se compromisso, ao mesmo tempo em que participa da difusão de conhecimentos
produzidos por pares em pesquisas com crianças. Por que com crianças e não sobre
crianças? Porque tais estudos se apresentam alinhados com o paradigma da par
-
ticipação infantil, o qual, para além de defender a infância como uma construção
social, considera as crianças atores cuja voz torna evidentes sua percepção do mun
-
do, as condições de estar no mundo e os desejos que embalam a sua presença ativa
no mundo. Este número é, portanto, não somente sinal do compromisso de uma
comunidade de investigadores com essa perspectiva, mas de um veículo – a Espaço
Pedagógico – sensível às demandas de seu tempo e que não mede esforços para que
a voz dos pequenos seja escutada, considerada, admirada e potencializada.
Além disso, Infância e cidadania traz a voz de pesquisadores e intelectuais de
Inglaterra, Portugal e Moçambique, e, também, brasileiros, que não abdicam de
acionar conhecimentos em profunda relação com vários campos do conhecimento e
consideram imprescindível a presença da referência adulta para que sejam univer-
salizadas as condições à cidadania da criança. No conjunto dos doze (12) textos que
compõem este dossiê, estão presentes conceitos interdisciplinares de áreas como
educação, antropologia e saúde, boa parte delas em diálogo com a Sociologia da
Infância, a qual constitui um campo epistemológico emergente, com potencial con-
tribuição para o debate público e político da infância e para o empoderamento das
crianças e contínua revisão sobre o sentido de “ser” humano (PROUT, 2019).
No artigo Childhood and citizenship: the viewpoint of the 21
st
century, Tom
Cockburn, referência nos estudos europeus sobre a cidadania infantil e outros te-
mas relacionados à infância e à juventude, problematiza a última parte do século
XX, o qual testemunhou um reconhecimento crescente das reivindicações de cida-
dania das crianças. Incursões significativas foram feitas em relação aos direitos
da criança, colocadas na agenda global pela Convenção das Nações Unidas para os
Direitos da Criança (UNCRC) em 1989. O campo acadêmico dos estudos da infân-
cia respondeu a esse movimento social problematizando modelos convencionais de
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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cidadania e modelos que seriam adequados para o propósito de serem aplicados às
crianças. No artigo, o autor descreve e analisa os principais aspectos da abordagem
dos estudos da infância para se (re)conhecer as crianças e a sua cidadania no século
XX e XXI.
Sobre crianças camponesas é o ensaio teórico de Franciele Clara Peloso, pro-
fessora da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Campus Pato Branco, e de
Najela Tavares Ujiie, professora da Universidade Estadual do Paraná, intitulado
Infâncias e diretos na contemporaneidade: em foco as crianças do campo. Nele,
as autoras apresentam estudos sobre as infâncias e as crianças, seus direitos e a
constituição de suas identidades. O texto aborda a pluralidade de espaços em que
a infância acontece e problematiza a condição das experiências das crianças nesses
espaços, em sua concretude histórica.
Esse contexto do jogo é o pano de fundo do artigo Bullying escolar: a (in)visibi-
lidade do fenômeno e dos protagonistas crianças, de Rosana Coronetti Farenzena,
docente da Faculdade de Educação da Universidade de Passo Fundo, colaboradora
do CIEC, membro da Rede Pikler Brasil e uma das coordenadoras do Núcleo de
Estudos e Pesquisas da Infância (UPF). Nele, ela apresenta resultados de um estu-
do qualitativo sobre o bullying escolar, desenvolvido com três turmas – pré-escola,
1º e 3º ano – de uma escola de educação básica portuguesa. Evidencia que práti-
cas de bullying são comuns nas três turmas e poucas vezes são percebidas pelos
adultos. Nelas, as crianças exercem papeis de agressoras e de vítimas, sendo que
essas últimas ocupam um lugar social de incapacidade e de não pertencimento. Já
os agressores habituais evidenciam impossibilidade de uma participação lúdica
em jogos e brincadeiras, já que participar em jogos e brincadeiras é uma condição
determinante à pertença e evita possível vitimização. A pesquisa evidenciou que
pertencer à etnia cigana é um fator automático de discriminação e que as crianças
são capazes de uma leitura profunda e propositiva do contexto institucional. A
autora propõe que o modelo de escolarização, alheio às crianças concretas e ao seu
direito de participação, seja dura e expressamente questionado.
A professora Ivone Maria Mendes Silva, da Universidade Federal da Frontei-
ra Sul, Campus Erechim/RS, e Simone Cristina Dalbello da Silva, assistente social
do município de Concórdia/SC, por meio do artigo O encontro intergeracional entre
crianças e idosos como espaço de construção de cidadania na infância, apresentam
reflexões sobre como a educação das novas gerações, para a participação cidadã na
vida social, pode ser fomentada por projetos que promovam encontros intergera-
cionais entre crianças e idosos, intensificando a construção da cidadania, com um
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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olhar integral sobre a vida humana e modos de conhecer e intervir na realidade
local.
Katia Adair Agostinho, professora da Universidade Federal de Santa Catari-
na, apresenta em seu artigo, A docência na educação infantil com a participação
das crianças, a possibilidade de construção de um projeto democrático e emancipa-
dor na educação das crianças, ao considerá-las como sujeitos de direitos e produto-
ras de sentido e, também, ao conceber a docência como um processo intencional e
aberto a apreender o conteúdo expressado-comunicado pelas crianças. Nos desdo-
bramentos da reflexão feita pela autora, fica o desejo de produção e consolidação de
uma sociedade com direitos sociais, tendo a escola como espaço democrático.
De Moçambique vem o artigo Participar não é só fazer activismos: olhares de
crianças e adolescentes moçambicanos, de Elena Colonna, docente da Universidade
Eduardo Mondlane. O texto traz resultados de uma pesquisa de natureza participa-
tiva, realizada em três contextos de Moçambique e financiada pela Unicef daquele
país. A autora analisa as oportunidades e as barreiras para a participação que
crianças e adolescentes encontram nos seus contextos de vida quotidiana, em nível
individual, nas relações de pares e na família. Seus estudos indicam que, apesar
dos desafios enfrentados, a expressão individual, as amizades e o contexto familiar
a que são sujeitas as crianças representam espaços significativos para exercer a
sua agência e participar, no sentido de “tomar parte em” e sentir-se incluídos. Para
as crianças e os adolescentes envolvidos na pesquisa, participar não é apenas o
envolvimento em atividades e contextos formalmente reconhecidos como tendo um
impacto na vida social, mas sim, um exercício quotidiano, que começa em si mes-
mos, da forma individual de expressar-se e apresentar-se ao mundo, e chega até a
escola, à comunidade e à sociedade em geral, passando pelas relações interpessoais
com os amigos e os familiares.
Apresenta-se o artigo de Inês Peixoto da Silva, professora convidada da Uni-
versidade do Minho, Ana Isabel Silva, doutora em estudos da criança, e Beatriz
Pereira Oliveira, professora catedrática da Universidade do Minho, todas membros
do CIEC, - Como se relacionam as crianças em contexto de jogo? Um estudo reali-
zado em crianças do 1º ciclo –, decorre de pesquisa financiada pela Fundação para
a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projeto do CIEC (Centro de Investigação em
Estudos da Criança da Universidade do Minho). As autoras apresentam os resul-
tados de uma pesquisa que buscou compreender como as crianças do 1º e do 3º ano
de uma escola portuguesa de educação básica relacionam-se em contexto de jogo. A
maioria delas, independentemente do gênero e ano de escolaridade, é capaz de tra-
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balhar em equipe, de interagir facilmente com os pares e de ter em consideração as
ideias e os objetivos dos elementos do grupo. Esses resultados reafirmam o valor de
vivências de jogo em contexto escolar para promover, de forma participativa, com-
petências sociais essenciais ao desenvolvimento emocional e social das crianças.
O brincar volta a ganhar espaço no ensaio bibliográfico de Daniele Vanessa
Klosinski, doutoranda do PPGEdu da Universidade de Passo Fundo e professora
da Faculdade Anglicana de Erechim/RS, e Adriana Salete Loss, professora da Uni-
versidade Federal da Fronteira Sul – Campus Erechim. Educação infantil: espaço
do brincar e da interação da criança problematiza a condição subjetiva da criança
como sujeito num contexto fortemente influenciado pelos pressupostos neoliberais
e aponta para uma reflexão sobre os direitos de aprendizagem por meio do brincar.
Intenciona pensar em territórios de experiência, de socialização, criatividade, con-
siderados como espaço de vida coletiva.
Já nos estudos desenvolvidos por Maria Letícia Nascimento e Carolina Gran-
dino Pereira de Morais, da Universidade de São Paulo, os quais subsidiam o artigo
(In)Visibilidade das crianças imigrantes na cidade de São Paulo: questões para
pensar a cidadania da pequena infância, postula-se que considerar as crianças
pequenas sujeitos sociais ainda é um desafio posto à sociedade. Essa necessidade
cresce em complexidade quando o que está em causa são as pequenas crianças
imigrantes, uma vez que são estranhas aos adultos, porque se veem num contexto
diverso daquele que conhecem, porque idioma, hábitos culturais, modos de fazer
as coisas são diferentes e, muitas vezes, ignorados ou depreciados. Dados de 2017,
de escolas de educação infantil da rede municipal de São Paulo, levantados pelas
autoras, mostram que, em 2017, estavam matriculadas nas escolas municipais
4.749 crianças, oriundas de mais de dezesseis países. Parece constituir um grande
desafio torná-las visíveis, porque são crianças pequenas e são imigrantes. A pes-
quisa é um caminho para conhecê-las e uma possibilidade de trazer à luz práticas,
procedimentos e relações diversas das e com as crianças.
Marlene Mendes Barra, colaboradora do CIEC, atuante no Centro de Recursos
para Cooperação e Desenvolvimento da Uminho e está envolvida em programas
educacionais com Guiné-Bissau e Timor Leste, e Manuela Pinto Sampaio, doutora
em Estudos da Criança e professora do Instituto Superior de Ciências Educativas
do Douro, tem como mote de seu artigo – Contributo para a geodesia das culturas
da infância: brincadeiras na latitude 0º e 41º - uma exposição fotográfica sobre as
brincadeiras das crianças de São Tomé e Príncipe (latitude 0º) e as brincadeiras
das crianças de Portugal (latitude 41º) com vistas a refletir sobre a promoção uni-
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
v. 27, n. 2, Passo Fundo, p. 289-296, maio/ago. 2020 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
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versal do direito a brincar e à plena participação cultural das crianças nas suas
sociedades, expressos nos itens 1 e 2 do artigo 31º, da Convenção dos Direitos da
Criança de 1989, respectivamente. Na análise das brincadeiras produzidas pelos
pequenos, é possível o (re)conhecimento dos lugares a partir dos quais as crianças
veem o mundo e atribuem significado ao que os rodeia; ou seja, pode-se realizar o
mapeamento dos tempos, lugares e das formas como se cruzam o mundo adulto e
o mundo infantil ou como são constituídas as culturas da infância. Aqui se sugere
que proclamar, respeitar e promover o direito universal da criança a brincar só terá
sentido se todos os esforços para a concretização desse direito se basearem na ideia
de localização das brincadeiras das crianças.
O artigo Literatura infantil negra como releitura e reescrita de corpos, visões
de si e de mundo, de Simone dos Santos Pereira e Iracena Santos do Nascimento,
doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Faculda-
de de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, de-
riva de uma pesquisa realizada em uma Escola Municipal de Educação Infantil
de São Paulo (SP), durante a qual foram observadas práticas de leitura de textos
de literatura infantil, entre os quais Omo-oba: histórias de princesas e O mundo
no black power de Tayó 31. Tais obras, que remetem às matrizes africanas e ao
empoderamento do corpo feminino negro, são analisadas pela autora. Com base
nisso, ela reafirma seu pressuposto basilar, a saber: as narrativas podem atuar na
subjetividade do leitor, na medida em que oferecem aos sujeitos as múltiplas vozes
que constituem o mundo, ampliando as compreensões de si mesmos.
A narrativa também está presente na pesquisa realizada por Keylla Rejane
Almeida Melo, professora da Universidade Federal do Piauí, e Iara Vieira Gui-
marães, professora da Universidade Federal de Uberlândia, concebida aqui como
estratégia metodológica. No artigo Participação infantil na escola do campo: nar-
rativas produzidas em contexto de pesquisa com crianças, as autoras discutem a
participação de crianças em escolas de campo de duas comunidades rurais do Piauí
(BR) e os sentidos produzidos por elas sobre suas escolas. Observam as pesquisa-
doras que é urgente a participação das crianças em instâncias decisórias da escola,
uma vez que elas podem contribuir para a (re)construção do ambiente educativo ao
assumir o lugar de protagonistas de suas experiências.
Fazem parte do número da revista dois artigos de fluxo continuo: o artigo de
Renato Flávio Santos; Andréia Osti e Neide Cunha A escrita do gênero textual poe-
ma no ensino fundamental I e o artigo de Elmo de Souza Lima, Arte e educação nas
escolas do campo: do reconhecimento das tradições à releitura crítica do mundo.
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v. 27, n. 2, Passo Fundo, p. 289-296, maio/ago. 2020 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
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Esses trabalhos ganham coroamento na seção Entrevista e na seção Resenha.
Na primeira delas, encontra-se a entrevista concedida por Francesco Tonucci à pro-
fessora Rosana Coronetti Farenzena (UPF). Nela, Tonucci apela para não esque-
cermos a infância e seu legado, como o de não trair as expectativas e necessidades
das crianças que se encontram na vida de pais, professores ou simplesmente como
adultos. Esquecer a infância é repetir com os filhos, crianças, alunos, vizinhos,
pacientes... tudo o que não foi compreendido quando criança e fez sofrer: brinque
menos do que o necessário, coma o que não gosta, etc. A participação real das crian-
ças só ocorrerá se quem estiver no poder, o prefeito, o diretor da escola, o chefe do
hospital... sentir necessidade e urgência de conhecer a opinião, o ponto de vista das
crianças.
Já a resenha produzida por Andréia Mendiola Marcon, doutoranda do PPGE-
du, da Universidade de Passo Fundo, e professora do Instituto Federal de Edu-
cação, Ciências e Tecnologia do Rio Grande do Sul, campus Sertão, versa sobre a
belíssima e influente obra Imaginação e criação na infância, de Lev Semionovitch
Vigotski. : Ela teve sua primeira edição em 1930, na União Soviética e foi traduzi-
da para o Português no Brasil em 2009 pela extinta editora Ática e publicada, no-
vamente em 2018 pela editora Expressão Popular, com a tradução de Zoia Prestes
e Elizabeth Tunes. Os temas e conceitos abordados pelo autor resultam de seus es-
tudos sobre a imaginação e a criação como elementos essenciais para a construção
do conhecimento científico, artístico e cultural pelo sujeito, o que sugere intensas e
fecunda reflexões sobre as experiências das crianças.
Como se pode notar, autores e organizadores empenharam-se em apresentar
aos leitores e às leitoras um conjunto de reflexões que permitem reconhecer que a
categoria infância tem a sua historicidade, a sua concretude, a sua dinâmica e que
aponta para a necessidade de zelar pela conquista permanente e consolidação dos
direitos das crianças. Perguntado sobre a mensagem que gostaria de deixar aos
leitores deste número da Revista Espaço Pedagógico, Francesco Tonucci enuncia
algo que diz muito sobre o que impeliu as organizadoras a um percurso de tornar
possível a confluência de todos esses trabalhos – as necessidades das crianças e os
direitos das crianças – e que, com certeza, encerra de maneira lapidar esta apre-
sentação. Segundo ele,
[...] o que meninos e meninas precisam de seus pais, professores e prefeitos, são coisas que
custam pouco ou não custam nada e são o resultado de carinho e confiança. Eles precisam
que os pais entendam suas necessidades e os ajudem a encontrar seu caminho na vida.
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Que os pais confiem em suas habilidades e os deixem sair de casa para brincar com seus
amigos, em vez de matriculá-los em muitos cursos da tarde que custam dinheiro e são
de pouca utilidade. Eles precisam de seus professores para ajudá-los a desenvolver suas
vocações, a usar seus idiomas favoritos para encontrar e desenvolver sua vocação. Isso lhes
permite tardes livres, fins de semana e feriados sem dever de casa, para exercer o direito de
jogar garantido pelo artigo 31 da Convenção. Eles precisam que seus prefeitos devolvam o
espaço público que hoje é quase completamente entregue aos carros, porque esse é o espaço
certo para seus jogos. As cidades poderiam economizar o dinheiro necessário para equipar
espaços de recreação para permitir que as crianças decidissem quando, onde e como brincar
[...]. Eles estão esperando há trinta anos que os compromissos assumidos com a Convenção
sobre os Direitos da Criança sejam respeitados!
Boa leitura!
Adriana Bragagnolo
Adriana Dickel
Rosana Coronetti Farenzena
Organizadoras
Referências
PROUT, Alan. In defense of interdisciplinary childhood studies. Children & Society, v. 33, 2019,
p. 309-3015.
UNICEF. For every child, every right: the convention on the rights of the child at a crossroads.
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Childhood and Citizenship: The viewpoint of the 21st Century
Infância e Cidadania: O ponto de vista do século XXI
Infancia y Ciudadanía: El punto de vista del siglo XXI
Tom Cockburn
*
Abstract
The latter part of the Twentieth Century saw an increasing recognition of childrens claims to citizenship. Signi-
cant inroads were made towards children’s rights, placed onto the global agenda by the United Nations Conven-
tion of the Rights of the Child (UNCRC) in 1989. The academic eld in childhood studies responded to this social
movement (Cockburn, 2013; Warming, 2011) by problematising conventional models of citizenship into one
that would be t for purpose to apply to children. This article will outline the key features of childhood studies
approach to childrens citizenship in the twentieth century. It will then provide a short commentary on the deve-
lopments this century. Finally, it will identify the themes that are likely to be pertinent now and the near future.
Keywords: Childhood. Citizenship. Twentieth Century.
Resumo
A última parte do século XX viu um reconhecimento crescente das reivindicações de cidadania das crianças.
Incursões signicativas foram feitas em relação aos direitos das crianças, colocadas na agenda global pela
Convenção das Nações Unidas para os Direitos da Criança (UNCRC) em 1989. O campo acadêmico nos estudos
da infância respondeu a esse movimento social (COCKBURN, 2013; WARMING, 2011), problematizando modelos
convencionais de cidadania em um modelo que seria adequado ao propósito de aplicar às crianças. Este artigo
descreverá os principais aspectos da abordagem dos estudos da infância à cidadania infantil no século XX. Em
seguida, fornecerá um breve comentário sobre os desenvolvimentos deste século. Por m, identicará os temas
que devem ser pertinentes agora e no futuro próximo.
Palavras-chave: Infância. Cidadania. Século XXI.
Resumen
*
Doutor em Sociologia e diretor do Departamento de Ciências Sociais na Edge Hill University, Inglaterra. Preside a
Rede de Pesquisa da Associação Europeia de Sociologia da Criança e da Infância. Participa de projetos europeus de
pesquisa, sendo uma referência nos estudos europeus sobre a cidadania infantil e outros temas relacionados à infân-
cia e à juventude, Inglaterra. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4705-0633. E-mail: tom.Cockburn@edgehill.ac.uk
Recebido em 06/01/2020 – Aprovado em 25/03/2020
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i2.11423
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Tom Cockburn
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En la última parte del siglo XX se percibió un creciente reconocimiento de las reivindicaciones de la ciudadanía
de los niños. Incursiones signicativas fueron hechas en relación a los derechos de los niños, puestas en la
agenda global por la Convención de las Naciones Unidas para los Derechos del Niño (UNCRC) en 1989. El campo
académico en los estudios de la infancia respondió a ese movimiento social (COCKBUM, 2013; WARMING, 2011),
problematizando modelos convencionales de ciudadana en un modelo que sería adecuad a el propósito de
aplicar a los niños. Este articulo describirá los principales aspectos del abordaje de los estudios de la infancia a la
ciudadanía infantil en el siglo XX. Después, hará un breve comentario sobre los desarrollos de este siglo. Por n,
identicará los temas que debe ser pertinentes ahora y en el futuro próximo.
Palabras clave: I
nfancia. Ciudadanía. Siglo XXI.
Childrens Citizenship
Much of the literature in the Twentieth Century centred on what has been
termed the `Three Ps’ in children’s rights: protection, provision and participation
(Freeman, 2007). But before discussing these further; it is worth commenting
on natural rights. Natural rights are those basic rights that human beings
have by virtue of their existence (recently this has been applied to all living
beings). Discussion of these rights has a very long history and associated with
the development of Christianity and the idea of a soul, however, it is English
philosopher John Locke who developed the idea of natural rights into political
theory. Locke declared that all people have the natural, inalienable right to
“life, liberty and property” (Locke, 1986, first published1694). Thus, all humans
should have their personhood recognised in law and with government. However,
Locke certainly ruled out children from these natural laws as children possess a
“weakness and imperfection of their non-age” (LOCKE, 1986, 148). Thus, children
were to be locked out of political theories that formed the backbone of political
thought until the Twentieth Century.
A lot happened over the 200 years or so since Locke was writing: the industrial
revolution, the abolition of slavery, universal adult and women’s suffrage were
events that began to enlarge the claims of citizenship from the rather limited and
privileged male property owners. By the Twentieth Century the political concerns
around children centred around their protection, provision and participation.
Starting with protection: children had long had the common law right to life.
The industrialised countries of the Nineteenth Century developed this further
with a process of protections of children. Beginning with state intervention into
children working in mines and factories, then protection from abuse and neglect.
By ratification of the UNCRC in 1989 the protections of children were firmly
established (protections from exploitation, inhumane treatment, participation
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in wars, amongst others), and a case made for their special status. However, it
was this special status, centred around children’s perceived vulnerabilities that
arguably excluded them from equality with adults.
The second element of children’s citizenship: their right to provision had also
developed by 1989. By the Twentieth Century children were entitled to the “social
rights” (Marshall, 1992) of an education and a basic income to their parents. Under
the UNCRC entitlements for children from governments are required to meet their
basic needs and help all children reach their full potential. Thus, children are
entitled to health treatment, education, leisure, play, culture, social security and
an adequate standard of living.
The final element: the right to participation, of all the rights generated the
most attention from academics and practitioners (COCKBURN, 2013). This is
arguably because it is very hard to get agreement on what participation is and the
degree to which `full participation’ is possible or indeed appropriate. Childhood
studies, in particular, placed a lot of attention on the processes of participation.
Illustrative here is Roger Hart’s (1992) concept of a `ladder of participation’ that
ranges from `manipulation’ through to “child initiated, shared decisions with
adults” (p. 8).
There are of course other important concepts of citizenship than rights.
Principally, the counter to rights-receiving individuals are the responsibilities
of citizens. Children of course do have responsibilities: a bare minimum is a
child’s responsibility to their own well-being, care and education; to the tangible
responsibilities that children have in the real world; often caring for adults or other
children; having responsibilities to earn a paid income, amongst others. Childhood
studies correctly addresses the fact that children’s responsibilities are rarely given
full recognition, as they are performed by children who are subject to processes of
misrecognition and whose actions and voice are rendered invisible and denigrated
by virtue of the fact that they are performed by children (THOMAS, 2012).
Another important element of citizenship is the notion of belonging. This
is becoming more acute in the increasingly globalised world of migration and
movement. Tensions within individual children over issues of identity become
an increasing focus: be they newly arrived migrants across and within borders,
generational mobilities, or sexual identities. All these shape how individual
children see themselves, see others, or are seen by others.
By the turn of the Twenty First Century childhood scholars, were grappling
with these issues and applied different analytic frames, often associated with
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other social groups asserting their citizenship rights, such as working class people,
women, disabled people, minority or indigenous cultures, languages or ethnicities.
Thus, childhood studies researchers were interested in citizenship ideas that
reflected an inclusive element to citizenship (Lister, 2008). Warming and Fahnøe
(2017) developed the concept of `lived citizenship’ (p. 4) drawing on ideas of radical
democracy and inclusion associated with the ideas of Moosa-Mitha (2005) that
emphasised processes of positioning and identity formation, rather than citizenship
as a state or status. Thus, the lived citizenship position was interested in “who is
and feels included, excluded or not least on the edges, emerges from the multiple
everyday interactions between people in which they perform, learn and experience
citizenship as a self-other relationship” (WARMING; FAHNØE, 2017, 5).
Childrens Citizenship Today
Childhood studies is currently adapting to other global processes. The first,
and in no particular order, is the climate crisis. This for children is a vital issue
and recently children and young people have taken up the role of leadership: Greta
Thunberg and tens of thousands of child activists like her around the globe staged
the Global Climate Strike, the latest held on 21
st
September 2019. The second
process involves the increasing geographical mobility of people across the world
today. Be that migration from the countryside to cities (Unicef, 2012), migration
within nation states and migration across countries (Falkingham, 2001) and at
times across continents (KAGITCIBASI, 1996, de GLIND; KOU, 2013). There is
an acknowledged sense of urgency on how migration effects children’s wellbeing
from 15 hours per week commute to school in Seoul to their risks in exploitation
and trafficking (WHO, 2018). Finally, there is an increasing recognition that
conventions, such as the UNCRC, require focus and attention by academics from
the Global South (HANSON, 2018). Amongst this attention has been a perceived
danger of imposing a minority world idea of `appropriate’ childhood on others; such
as a description of `globalised childhoods’ based on models of childhood premised
on minority world understanding of childhood identified and critiqued by Kaufman
and Rizzini (2002).
Childhood studies, therefore, in order to analyse the processes of lived
citizenship has focused on the concept of children’s agencies within specific spaces.
The latter part of the Twentieth Century childhood studies researchers have paid
attention to the `everyday’ spaces where children live and exercise their agencies.
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These everyday spaces include their relationships with families, their friends, their
streets, amongst their peer groups in schools and so on. Researchers wished to
`reclaim’ children’s agencies and counter the passive image of children in the then
existing sociological, psychological, educational and developmental discourses. The
seminal Prout and James (1990) book Constructing and Reconstructing Childhood
successfully argued for the position of taking seriously the idea of children as
effective social actors. The focus of the plethora of studies that followed looking
at children’s participation and agency identified two main conclusions. The first
identified that children’s agency in their social connections and participation was
seen in relatively consensual and structural terms: often these were understood
by placing children within generational orders (ALANEN, 2009) vis-à-vis
their relationships with adults and within the adult frameworks of education,
patriarchy, class and governance more broadly. Secondly, researchers noted that
children enact their agency in both positive and negative ways. Yes, when looking
at children in their lived social relations they made constructive, telling, observant
and important contributions (PERCY-SMITH, 2010), as Baraldi (2012) notes adult
structures have an element of unpredictability when subject to children’s actions.
However, these were made within adult structures where adults held the power.
Malcolm Hill et al (2004) noted that children’s institutional participation in adult
structures formulated a rather `thin’ form of agency; as participation was a way
of co-opting children into those very adult structures, leaving very little room for
directing social change.
This led to a large body of theoretical literature on creating a more nuanced
understanding of children’s agency. Madeleine Leonard (2015), for instance, looked
at how generational positioning within structures allows children to construct, co-
construct and reconstruct their lives in a process of `generagency’ (p. 4). In this
sense children’s agency unfolds in an interdependent and complex manner. David
Oswell and more recently Spyros Spyrou further problematise children’s agency
within a whole host of complex structures, not just between adults and children
but also between things and spaces. Thus, children’s agency becomes enacted or
constrained within specific geographical contexts, within discursive regimes and
mediated by texts and technologies.
So, given the complexities of children’s agency and their lived lives, where does
this leave childhood studies? As Claudio Baraldi and I argued recently (Baraldi
and Cockburn, 2018) this leads to six important elements to current research that
are firmly interlinked. Firstly, it is necessary to accept theoretical pluralism to
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match the heterogeneous nature of children’s lives across the globe and within
communities. Secondly, concepts, such as citizenship, need to be applied to the
lived citizenships as experienced by children in specific contexts: how do children
interact with the welfare state; what are their social identities of belonging; how
do children experience education systems? Thirdly, how do these lived experiences
intersect with intersectionalities of class, gender, ethnicity, (dis)abilities and so on?
Fourthly, it is necessary to make visible those lived childhoods that are not visible
in intergenerational relations. Children under seven years of age or those children
who have yet gained sufficient linguistic skills to express their wishes or concerns
are largely absent from citizenship discussions. Fifthly, it is still necessary to
continue to subvert existing social and cultural presuppositions of childhood by
elaborating children’s own lived conditions, experiences and explanations. Finally,
this must be achieved by seriously acknowledging the `glocal’ dimensions in
children’s lives.
Taking the last point as an exemplar of the challenges to understanding
children’s citizenship, it is important to acknowledge the diverse experiences, social
structures and lived lives of children both as a plurality across the world (chiefly
but not exclusively between the minority and majority worlds) but also within
specific nation states. As noted above childhood studies is increasingly recognising
the colonisation of childhood from the minority world and scholars in Europe, North
America and Australasia identify, have problematised and theorised the condition
of children in the Global South. The work of Sharon Stephens (1995) onwards have
studied the power relations that children in the majority world inhabit; playing
particular attention to hegemonic structures that international development
demands. Such work has, correctly, mapped processes of children’s poverty,
exclusion, injustices and marginalisation. It has also brought to the attention of
academics and policy makers in the minority world such processes and the role
the international development movement plays in sustaining those processes. For
instance, Pells notesthe ways in which the minority world imposition of `Western’
child rearing practices has located majority world children as lacking and in
deficit. They also suffer from process of misrecognition, emphasising vulnerability,
pathologisation and otherness, that is hard for those children and their carers who
strive through exploitational economic circumstances to make the most of their
lives (PELLS, 2012).
More excitingly, there is a growing body of work from academics from the
majority world itself. Such work provides more nuanced understanding of children
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in their local situations and how these fields are interconnected with global
political, economic and cultural structures (ABEBE, 2013). Abebe (2013) shows
how economic restructuring and neoliberal economic processes weaken a nation
state’s ability to support children. In Ethiopia Abebe maintains that the much-
needed foreign investment served to displace communities from their means of
subsistence in more collectivised societies. There becomes a disjuncture between
the needs and rights, based on a relationship with the state; and those reciprocal
belongings based on child/family and intergenerational relationships in their
communities. Children’s agency within majority world communities tends to be
obvious: children produce, reproduce and contribute. However, what is missing is
a focus on the ways economic and political oppression intersects with children’s
lives, according to age, ethnicity, gender, and so on. It is only when such processes
are understood that strivings for more distributive justice can be deployed.
It is therefore imperative for childhood studies to develop, or at least be
mindful of, a comparative analysis of the workings of the state and transnational
capital on the lives of all children, marginalised or privileged, in both the majority
and minority worlds. Relatedly, children’s lives are closely interrelated with
processes of international trade that effects labour and education markets. Trade
and labour markets have also increased processes of migration and mobility, both
within and between nation states and even across continents. Migration patterns
have thrown up further phenomena for citizenship analysis where families have
become more `intercultural’, or, the ways in which children are exposed to diverse
cultures, where their cultures interact and change in their interactions with
other cultures. This impacts on children in terms of their identities as they may
be children of parents through marriage or partnerships across cultures. Or they
may, as children, cross from one culture to another, most often through migration.
This has led to, at times, a `superdiversity’ where children may move multiple
times across different cultures, each experience leading to familiarity with other
cultures with all the potential opportunities and challenges this may involve. Thus,
there are situations where migrants and ethnic minority groups constitute a high
percentage of a population; their national origins are highly diverse and there is a
mix of migration statuses and associated rights (VERTOVEC, 2007).
The other process affecting citizenship identities and related to the
`intercultural’ experiences of children is around media communications. Firstly,
with the rise of social media, more traditional processes of media have been
subverted. On one level this is a good thing, in that traditional media tended to be
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owned by vested, and powerful interests; the rise of social media has allowed the
voices of those traditionally marginalised, such as children, to have a platform to
express their views and share information, discuss topics of mutual interest, and
work towards common goals. People, goods, services, and information from many
diverse locations flow in and out of places daily, creating a ‘progressive sense of
place’ (MASSEY, 2015, 19), where the character of a place is shaped as much by
processes from outside intersecting with it as those acting within it. This creates
tangible opportunities for children to express their citizenship identities, however,
as David Harvey (2001) has cautioned, technological developments are being
driven by the need to reduce the turnover time of capital, and produced in order
to facilitate capitalism’s reach and accumulate capital. Thus, locking all children,
wherever they are, into process of alienation, exploitation and control.
So, what does all this mean for theorising children’s citizenship in this complex,
interconnected and fluid world? One alluring idea is that of cosmopolitanism. To be
‘cosmopolitan’ is to be ‘well-travelled’ and genuinely curious about the world. With
roots stretching beyond Immanuel Kant in the eighteenth century and arguably
to the European classical period. With processes of `glocalisation’ outlined above,
the hybrid nature of many people’s identities, the superdiverisities of much of
the localities where people live, ideas of cosmopolitanism have proved attractive.
Theorists have turned to ideas of cosmopolitanism to create environments that are
less essentialised and demonising in order to bond class, ethnic and other divisions
and create greater social solidarity and respect (Amin, 2006).
A final note on the current state of research into children’s citizenship is the
influence from the `post-humanist’ turn in childhood studies associated with the
work of Nick Lee (2001) and later, Spyros Spyrou (2011, 2018). This important
research provides further nuance to capturing the complexity of children’s agency
by critiquing the `humanist’ and `rationalist’ assumptions in research with
children. Spyrou (2011) captures the point well in his reflections on his research
into Greek-Cypriot children’s understanding of national identity. Spyrou begins by
questioning current childhood studies research that claims to capture a true and
authentic children’s `voice’; beginning with pragmatic observations about the time
constraints that are part of a modern researcher’s contractual life to identifying
three key observations. The first of these is that researchers do not sufficiently
critically reflect upon their positions of power in their representations of children’s
voices. Secondly, researchers do not adequately make clear their own assumptions
about children, the language we deploy as researchers and theorists, the ideological
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and institutional contexts in which research operate. These multiple factors
constrain and shape our constructions of children in our research, in what children
say and the identities that they express. Finally, Spyrou cautions researchers who
seek to identify a unitary subject speaking the truth; rather, it is necessary to
acknowledge the `polyvocality’ of children’s voices where children’s voices shift
and change according to the discursive possibilities that range and vary according
to context. He describes this point well when reflecting upon his own work with
Greek-Cypriot children constructing their identities, They:
resorted to a more official, nationalistic voice when expressing their identities at school.
The structured and highly controlled space of the school encouraged children to provide the
`correct’ answer while the more child-controlled neighbourhood playground provided them
with significantly more leeway to draw upon alternative discourses which in some cases
undermined or contradicted the ones they drew upon at school (SPYROU, 2011, p. 155).
At the first level, the Greek-Cypriot children understood `Turks’ as invaders,
evil, and so on. However, after time and with more understanding the notion of
`Turks’ and the negative attributes was associated with some Turks, such as the
government and army, but not all Turks. Indeed, children in more informal, relaxed
contexts referred to a more positive viewpoint of Turkish-Cypriots in a more
hyphenated and nuanced manner. The important point made is that children’s
citizenship identities and their viewpoint of others, even traditional `enemies’, can
be framed differently in different discursive contexts by the same children. The
importance for childhood studies scholars is the necessity to lay bare the varying
practices, discourses and narratives of citizenship.
Childrens Citizenship: Future Directions
In terms of thinking through children’s citizenship we have the benefit of
recent theoretical contributions. Following the point made in the last section is the
significance of the `post-human turn’ and the prominence to taking `relationality’
seriously. Of course, this is not new; this author’s early writings on citizenship
emphasised the requirement to take interdependence seriously for both adults and
children (COCKBURN, 1998). Building on the requirement of childhood studies to
go, as Peter Kraftl maintains, `beyond children’s agency’ (2013, 14) it is necessary
to take a reflexive approach to our own standpoints and our representations of
children. Children’s lives involve close family members, are located in local
communities, in local education systems, local economies, local (social) media
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that are at the same time increasingly shaped by global forces. Each of these
elements profoundly shapes children’s lives, those of their parents and carers,
the professionals that work with children and the communities in which children
live. In this respect the natural rights theories of John Locke and the individual,
independent, rational person his theory assumes is inadequate - for adults as well
as children. Relationality is built in to the human experience.
The complexity of our theorising of citizenship identities becomes further
intricate when we add the importance of `differences’ and other `intersectionalities’
into our theorising. Such intersections include gender, as gender identities still
profoundly shape the experiences and life chances of boys as well as girls across
the globe. This calls for a close interest in recent feminist theorising around
citizenship, some feminist theorising specifically focusses on the gendered
citizenship identities of children. This involves a review of our sociological ethics
and theory (SEVENHUIJSEN, 1998; Cockburn, 2005) and an engagement with
feminism’s `post-human turn’ (BRAIDOTTI, 2006) as well as other intersections
based on ethnicity and colonialism (SAADA, 2012).
Added to the importance of interdependence and intersectionalities to
children’s citizenship identities are the processes of `social recognition’; a full
analysis of recognition theory and its application to children has been undertaken
by Nigel Thomas (2012). Children, he argues, are morally responsible persons, are
therefore rights-bearers and entitled to respect. In addition, children are embodied
people with talents and capabilities, who contribute in a variety of ways to society
and culture, and so are deserving of esteem. Thomas convincingly argues that
an analysis of children’s intersubjective claims to love, rights and solidarity are
crucial to understanding the dialogue between children’s identities, what children
think is right, and their ability to change things (THOMAS; STOECKLIN, 2018).
It is worth now returning to the beginning of this text and note Freeman’s `three
Ps’ of participation, protection and provision. Processes of recognition are key to
understanding children’s participation and protection but also to provision. Nancy
Fraser (1997) correctly focuses on a radical redistribution of social resources in
favour of marginalised or misrecognised groups of people. However, `redistribution’
usually involves top-down interventions by the state, either from the political left
or the right. Neither of these approaches involves what might be called `bottom
up’ interventions. This must involve a politics of redistribution that on the one
hand speaks to individual rights and belonging but also to more collectivist
claims through the intersections of class, ethnicity and gender alluded to above.
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It is necessary therefore to have recognition of children that avoids a `top-down’
clumsy manner before redistribution can happen; at the same time redistribution
is necessary so that groups can find a way of greater community mobilisation.
Finally, it is essential to identify the greatest challenge to children’s expressions
of citizenship and that is by acknowledging the form of control over children. This
will be difficult to develop fully in the context of this text. However, control over
children happens on a number of levels; each profoundly shaping and constraining
the social recognition of children. These processes link to the discussion above
about the limits to children’s agency. Control of children occurs at the basic familial
level where children’s citizenship is shaped by family mechanisms; notably there
is a persistence to processes of patriarchal control, even in economically developed
countries with long established equal opportunities legislation. Children’s location
within households have their views shaped by the familial cultures in which they
live, these are dominated by parents or other senior (adult) family members. In
terms of economic control these are sometimes controlled through families directly,
but economic wellbeing is assigned as an accident of birth where some children
are dealt the cards more fairly than others. Children’s social recognition is still
constrained discursively; Nicolas Rose’s (1999) Foucauldian analysis established
the discursive construction of reality of societies and the crucial means by which
social control is directed through children in the education and health systems by
defining as `normal’ an unquestioning striving for educational qualifications, `good’
bodies and `ill’ bodies. Children remain discursively constructed as `vulnerable’,
`innocent’. `blank slates that education is needed to shape’, `damaged’ bodies
to which power/knowledge deploys its medical and psychological regimes upon,
and so on. These discourses continue to shape and damage children’s claims to
political citizenship, across all parts of the globe and still remains a major project
of childhood studies to analyse, deconstruct and challenge such constructions.
Childhood and Citizenship: Changing the Narrative?
Challenging discourses that marginalise children, producing work that
supports children’s social recognition and redistribution, affirming intersectional
solidarities, as well as locating these amidst children’s processes of interdependence
is an important agenda for childhood studies researchers and their supporters.
However, what discourses for citizenship are available for children? As mentioned
above, ideas of Cosmopolitanism would fit well, especially in cities, as exemplified
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by Delanty’s (2006) `critical cosmopolitanism’ and in understanding day-to-day
forms of social solidarity as described through Paul Gilroy’s (2004) analysis of
the `conviviality’ of social groups in superdiverse communities. As Gilroy (2004)
notes in the optimistic side of his book, race and ethnicity become less important
for young people in today’s British cities. However, this does not mean an end to
racism and division in our societies, panics about asylum seekers; hostility to new
eastern European immigrants; fear of “black” gun crime; fear of infiltration by
foreign or Muslim terrorists, suggest in many respects a backward step in race
relations.
There are, of course, important localised projects that children become engaged
in to challenge for social justice. Notable examples are led by those children
and young people in the developing world. The `Penguin Revolution’ in Chile in
2006 were a series of protests by high school students between April and June
2006, culminating in strikes and marches on 30 May being the largest student
demonstration the country had seen. The protestors’ demands ranged from the
delivery of free travel passes on buses to a high-quality education of all. Some of
the demands were accepted by Michelle Bachelet’s government and served to quell
some of the demands of the students. This did not end the discontent with other
surges in protests in 2008 and between 2011-13, not all the demands have been
met and Chile continues to have a large portion of schools under the private sector.
However, some demands were accepted by the government and children remain a
vociferous opposition to national state politics.
In Brazil the Rozelinhos consisted of crowds of young people in 2013 and 2014,
including many people of colour, coming together to protest at being excluded from
shopping malls and exclusive sites of consumerism and other public spaces. The
protests were organised on social media and included other marginalised groups
of young people, such as those who are homeless. While the protests had very
little of their objectives realised they had certainly registered alarm amongst social
elites. The focus of protestors on commercial places demonstrates the intertwining
of citizenship with consumption and citizenship; a new claim to citizenship and
protest against exclusion that is likely to be shared with all young people across
the globe. While nation states guarantee the formal equality and inclusion of
citizens, however, the substantive distribution of rights is still done along the lines
of privilege and unequal power relations.
This arguably for this author hits the crux of the problem for children’s
citizenship in today’s neo-liberal world. John O’Neill (1994) in his classic book
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Childhood and Citizenship: The viewpoint of the 21st Century
ESPAÇO PEDAGÓGICO
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The Missing Child in Liberal Theory provides a critique of market societies,
then and now, being advocated in today’s market capitalism. O’Neill observed
an encouragement of minimal civic obligations and a maximum participation in
market capitalism and consumption. O’Neill centres the importance of the context
of children’s lives: children themselves; their families; and communities, but places
this in the wider context of political economy and market capitalism. The latter
providing children with very little civic attachment and will produce a society that
is hostile to social solidarity and justice. The solution, for O’Neill is to provide a
re-affirmation of the civic foundations of the state. While, a re-affirmation of a
civil state with a generational contract is an admiral ambition, how we get there
is open to debate. The experiences of the Pinguino `Revolution’ and the Rozelinhos
testify divisions and class antagonism prevail if the aims of the movements base
themselves on narrow narratives of `consumption citizenship’. A deeper series of
narratives are required. A variety of radical narratives do exist, the most exciting is
the global phenomenon of children opposed to the climate emergency, led by Greta
Thunberg and other children and young people. However, the objectives will not
be achieved through narratives of market and consumer capitalism but through a
deeper societal retrenchment willing to adopt redistributionist policies and this is
only coming from the political left.
Across the world there is a resurgence of `community politics’: from the recent
Brexit vote in the UK; nationalist governments in Hungary and Poland; the re-
election of Narendra Modi in India; Recep Tayyip Erdoğan in Turkey; Rodrigo
Duterte in the Philippines; and the election of Jair Bolsonaro in Brazil. However, this
`community’ politics is populist and dominated by the divisive and toxic discourses
of a resurgent far right. The discourses deployed are simplistic and feed into the
discomfort and scepticism of politics in general, perhaps as identified and feared
by O’Neill. The discourses deployed by populists engage with fundamental issues
such as education, housing, transport and health with the blame for inadequate
policies, not neo-liberal policies which they share, but with a myth of an `urban
elite’ and an influx of immigrants that have placed residents at the bottom of the
pile. This must be opposed, and new narratives deployed in their place. These must
include redistribution of wealth, a central role for local, national and international
state polities, and an inclusive rhetoric based on shared humanity. This can only
be delivered from the political left. The question remains whether those from
the political left are able to shift from the limited and sometimes poor practices
of socialist states in the twentieth century to develop a political and economic
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Tom Cockburn
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Infâncias e diretos na contemporaneidade: em foco as crianças do campo
Infâncias e direitos na contemporaneidade: em foco as crianças do campo
Children and rights in contemporaryity: focus on eld children
Infancias y derechos en la contemporaneidad: centrarse en los niños del campo
Franciele Clara Peloso
*
Najela Tavares Ujiie
**
Resumo
Este estudo tem como objetivo reetir sobre as infâncias e as crianças, seus direitos e a constituição de suas
identidades, considerando a pluralidade de espaços em que a infância acontece e dando destaque às crianças do
campo. Trata-se de um ensaio teórico. A justicativa deste escrito está voltada à necessidade de problematizar,
bem como dar visibilidade às diferentes infâncias e legitimar as experiências vivenciadas pelas crianças partícipes
de contextos históricos marcados pela desigualdade social. As principais considerações deste estudo sublinham
a coexistência de distintas infâncias e formas de ser crianças. Da mesma forma, evidenciam a invisibilização e o
ocultamento de experiências infantis bem como a efetivação de direitos para crianças que foram segregadas ao
longo da história e continuam sendo, quando homogeneizadas por uma concepção de infância de origem europeia,
branca, cristã e urbana. A principal contribuição deste estudo consiste em problematizar junto às discussões relativas
à infância a condição da experiência infantil das crianças no campo para que tenham seus direitos legitimados e a
constituição de suas identidades reconhecidas com base na pluralidade de espaços em que suas vidas se fazem.
Palavras-chave: Infância. Criança do campo. Direitos.
Abstract
This study aims to reect on childhood and children, their rights and the constitution of their identities
considering the plurality of spaces in which childhood happens and highlighting the children of the countryside.
It is a theoretical essay. The justication of this writing is focused on the need to problematize, as well as to
give visibility to diferente childhoods and to legitimize the experiences lived by children who participate in
historical contexts marked by social inequality. The main considerations of this study underline the coexistence
of diferente childhoods and ways of being children. Similarly, they higlight the invisibility and concealment of
childrens experiences, as well as the realization of rights for children that have been segregated throughout
history and continue to be homogenized by a conception of childhood of European, white, cristian na urban
origin. The main contribution of this study is to problematize together the discussions related to childhood
the condition of the childrens experiencie in the countryside so that they have their rights legitimized and the
constitution of their identities recognized from the plurality of spaces in which their lives are made.
Keywords: Childhood. Country Child. Rights.
*
Doutora em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Docente permanente do PPG em Desen-
volvimento Regional da UTFPR, Campus Pato Branco, Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-9647-001X. E-mail:
fclara.15@gmail.com
**
Pedagoga. Doutora em Ensino de Ciência e Tecnologia (UTFPR/PG). Professora Assistente da Universidade Estadual
do Paraná, Campus de Paranavaí, Brasil. E-mail: najelaujiie@yahoo.com.br
Recebido em 14/10/2019 – Aprovado em 06/03/2020
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i2.11424
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Franciele Clara Peloso, Najela Tavares Ujiie
Resumen
Este estudio tiene como objetivo reexionar sobre las infancias y los niños, sus derechos y la constitución de
sus identidades considerando la pluralidad de espacios donde ocurre la infancia, poniendo énfasis en los niños
del campo. Se trata de un ensayo teórico. La justicativa de este escrito está direccionado a la necesidad de
problematizar, bien como dar visibilidad a las diferentes infancias y legitimar las experiencias vivenciadas por
los niños partícipes de contextos históricos marcados por la desigualdad social. Las principales consideraciones
de este estudio subrayan la coexistencia de distintas infancias y maneras de ser niños. Del mismo modo, ponen
en relieve la invisibilidad y el ocultamiento de experiencias infantiles, bien como el cumplimiento de derechos
para niños que fueron segregados a lo largo de la historia y siguen siendo cuando homogeneizados por una
concepción de infancia de origen europea, blanca, cristiana y urbana. La principal contribución de este estudio
consiste en problematizar junto a las discusiones relacionadas a la infancia la condición de la experiencia
infantil de los niños en el campo para que tengan sus derechos legitimados y la constitución de sus identidades
reconocidas a partir de la pluralidad de espacios en que sus vidas se hacen.
Palabras clave: Infancia. Niños del Campo. Derechos.
Introdução
Somos duas pedagogas, professoras/educadoras da Educação Superior, que se
dedicam a pesquisas na área da educação da infância. Nossos processos formativos
e também de pesquisa se desenvolveram em circunstâncias e com objetivos diferen-
tes. Uma estudando os processos pedagógicos, mais especificamente, a formação de
professores para educação infantil. A outra estudando especificamente a infância
enquanto categoria filosófica bem como os distintos contextos em que as crianças
constituem suas infâncias. Ao nos aproximarmos, iniciamos o diálogo e percebemos
a intersecção de nossos estudos na área da educação da infância: a experiência das
crianças, a garantia de diretos e a constituição de suas identidades.
Assim, objetivamos neste trabalho, que se caracteriza como um ensaio teórico,
refletir sobre as infâncias e as crianças, seus direitos e a constituição de suas iden-
tidades considerando a pluralidade de espaços em que a infância acontece, dando
destaque às crianças do campo.
Estudiosos da infância (FREITAS, 2011; FREITAS, KUHLMANN JUNIOR,
1998; SARMENTO, 2000 e outros) destacam que existem diferentes abordagens
sobre essa temática, uma vez que cada contexto social, cultural e econômico é ca-
paz de criar uma maneira particular de concepção a respeito desse tema. Nesse
sentido, para realizar reflexões sobre as crianças e suas infâncias se faz necessário
compreender essa fase da experiência humana de maneira global, não limitada aos
seus fatores biológicos, e sim relacionada aos contextos em que a vida se faz em
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Infâncias e diretos na contemporaneidade: em foco as crianças do campo
todas a suas nuances. Trata-se de uma temática que apresenta uma abordagem
plural e multifacetada.
Frente ao exposto, podemos inferir que as formas de se relacionar com a infân-
cia resultam de uma complexa rede de valores e regras predominantes no ambiente
ao qual ela está inserida. Müller (2007) afirma que o lugar social das diversas
categorias de infância e, por consequência, de crianças, aparece a partir da ideia
do que é naturalmente aceito ou considerado normal. A autora explica que, até
o século XVIII, situações de pobreza ou riqueza eram consideradas autênticas e,
assim, justificadas naturalmente às trajetórias distintas de crianças de diferentes
condições sociais.
Contudo, é preciso afirmar que a concepção de normalidade a respeito da in-
fância e das crianças nunca representou a totalidade de realidades infantis, uma
vez que a infância das crianças brancas, de origem europeia, cristãs, urbana e de
classes abastadas pautou e unificou, historicamente, a concepção de infância. Po-
demos citar aqui uma das obras clássicas escritas sobre o tema: História Social da
Criança e da Família, de Philippe Ariès. Tal obra referenciou durante muito tempo
os estudos sobre a infância. Na contemporaneidade as discussões a respeito dessa
temática e os avanços na área de estudos sobre a infância (PINTO e SARMENTO,
1997; SARMENTO, 2000; 2008; ARROYO, 2008; 2012a; 2012b; MÜLLER, 2007 e
outros) nos permitem ampliar o olhar e considerar diversas infâncias acontecendo
simultaneamente em vários contextos geográficos. As infâncias e seus entornos ga-
nham destaque por meio desses estudos que, além de expor e definir as concepções
da infância, valorizam as experiências infantis, bem como empreendem denúncias
e anúncios sobre as crianças e suas infâncias.
De maneira geral, a intenção desse escrito é contribuir para a ampliação desse
campo de estudos ao problematizar sobre as infâncias, mais especificamente sobre
as crianças do campo, no sentido de provocar uma discussão que oportunize refletir
sobre o reconhecimento de seus direitos e a legitimação das identidades das dis-
tintas infâncias. Para tanto, num primeiro momento, abordamos as questões da
infância e das crianças, numa perspectiva histórica, dando ênfase nos processos de
constituição das concepções de infâncias. Na sequência, trazemos à baila a proble-
matização sobre as infâncias do campo. Por fim, nas considerações finais, retoma-
mos aspectos que julgamos primordiais discutidos ao longo do texto e afirmamos a
urgência de se colocar no cenário das discussões relativas à infância a condição da
experiência infantil das crianças do campo para que tenham seus direitos legiti-
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Franciele Clara Peloso, Najela Tavares Ujiie
mados e a constituição de suas identidades reconhecidas a partir da pluralidade de
espaços em que suas vidas se fazem.
Infância e criança em foco: perspectivas contemporâneas
A partir da modernidade, tendo em vista o crescimento das cidades, da popu-
lação, do comércio, da inserção da mulher no mercado de trabalho dentre outros
fatores, a infância começa a ser vista como questão social, política e educacional
emergente. Alguns estudiosos e teóricos começam a se preocupar com a concepção
de infância e de criança, surge o sentimento de infância (ARIÈS, 2006).
Com o sentimento de infância, surge também à preocupação com a educação
da criança, seu bem-estar físico e social, sua formação integral para o exercício da
cidadania. Kuhlmann Jr. (1998, p. 31) afirma que:
Pensar a criança na história significa considerá-la como sujeito histórico, e isso requer
compreender o que se compreende por sujeito histórico. Para tanto, é importante perceber
que as crianças concretas, na sua materialidade, no seu nascer, no seu viver ou morrer,
expressam a inevitabilidade da história e nela se fazem presentes, nos seus mais diferentes
momentos.
Assim, constata-se que a concepção de infância e criança tem relação direta
com o contexto histórico, político e social. Kohan (2003) em uma abordagem filosó-
fica evidencia que a infância se caracteriza por uma dinâmica de quatro momentos:
1) inferioridade – sujeitada e desnecessária; 2) superfluidade – pequena e sem fun-
ção 3) possibilidade – projeção do adulto e futuro; e, 4) material da política – sujeito
social e de direitos.
Pondera-se que o ser humano passa por fases ao longo de sua vida, sendo a pri-
meira delas a infância. Nesse sentido, com base no Art. 2º do Estatuto da Criança
e do Adolescente (BRASIL, 1990), compreendemos infância como o período entre
zero e doze anos de idade incompletos. A pessoa que está nessa fase é denominada
criança, a qual é um ser em desenvolvimento físico, psicológico, intelectual e social,
é dotada de direitos garantidos por lei, faz parte da sociedade e do contexto históri-
co, brinca, estuda, imagina, cria e é dotado de competências múltiplas.
Kuhlmann Jr, (1998, p. 16) pontua que a:
Infância tem um significado genérico e, como qualquer outra fase da vida, esse significado
é função das transformações sociais: toda sociedade tem seus sistemas de classe de idade e
a cada uma delas é associado um sistema de status e de papel.
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Infâncias e diretos na contemporaneidade: em foco as crianças do campo
Frente ao exposto é contundente evidenciar que o contexto vivido e o período
histórico têm forte influência na concepção de infância e criança que toma corpus.
Nesse sentido, Lajolo (1997) é tenaz ao considerar que, hoje, existem tantas in-
fâncias quantas forem ideias, práticas, discursos, que em torno dela e sobre ela se
organizem.
De acordo com Oliveira (2002), etimologicamente a palavra “infância” é ori-
ginária do latim (in-fans) e significa “não fala”. No entanto, essa definição na con-
temporaneidade é inadequado, pois a leitura de mundo eminente nos dá a conhecer
que o bebê tem capacidade de comunicar-se com outras pessoas por meio do choro,
do sorriso e de gestos, além do que a fala estruturada é adquirida entre o segundo
e terceiro ano de vida. Portanto, o infante contemporâneo e a criança têm fala,
embora ignorada social e culturalmente por alguns.
A visão naturalizada de que a infância é um período específico, pelo qual todos
passam, é que pode ser questionável, pois ser criança não significa necessariamen-
te ter infância. Pode-se perceber que estamos num processo de alienação da infân-
cia: crianças pobres que precisam trabalhar e crianças da classe média e ricas que
os pais as ocupam com inúmeras atividades que antecipam a fase adulta. É preciso
oferecer à criança aquilo que lhe é próprio: o direito de brincar, criar e aprender.
A infância vem sendo alvo de frequentes estudos relacionados ao meio social
onde está inserida. De acordo com Müller (2006), as concepções sobre a infância va-
riam historicamente e as crianças ao serem parte da sociedade são mutantes, por
um lado, adaptáveis, mas por outro, criativas e criadoras. Portanto, não podemos
enquadrá-las como seres passivos, mas sim como agentes ativos que constroem
suas próprias culturas e conhecimentos.
Nesse contexto, busca-se respaldo na Sociologia da Infância, na concepção de
Sarmento e Gouvêa (2008, p. 11) que prima por “considerar a criança como sujeito
que tem produção simbólica diferenciada produzida na interlocução com a cultura
mais ampla, produção que define uma cultura infantil com identidade própria”.
A infância, dentro desse enfoque, passa a ser concebida como uma categoria
social geracional, isto é, sua ação no contexto de pertença não é passiva e fruto da
reprodução da ordem social, é elaboradora, transformadora e produtora de cultura.
Nesse contexto, os personagens sociais envolvidos e implicados com a criança
têm por compromisso político e pedagógico observar as interações infantis, anali-
sá-las e concebê-las como fonte de apoio para a atuação consciente e intencional de
educadores responsáveis pelo enriquecimento e diversificação dos repertórios das
crianças, a fim de favorecer a construção da cultura da infância.
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Franciele Clara Peloso, Najela Tavares Ujiie
A partir do final do século XX e início do século XXI, a criança e seu desenvolvi-
mento passam a ter concepções valorizadas por estudiosos, entre os quais podemos
destacar Steinberg e Kincheloe (2001, p. 12) que apresentam a seguinte afirmação
sobre a infância no decorrer da história “é uma criação da sociedade sujeita a mu-
dar sempre que surgem transformações sociais mais amplas”.
Desse modo, a criança passa do anonimato para uma contextualização que a
destaca como um sujeito histórico, construtor de identidade e produtor de cultura,
que possui significações próprias do mundo diferenciando-se dos adultos. Sendo
assim, a visão da sociologia da infância oferece reflexões que possibilitam o reco-
nhecimento da criança como produtora de sua própria identidade.
Pode-se destacar que a infância é muito mais que um período vivenciado ra-
pidamente pelas crianças é a fase na qual conquista sua aprendizagem e indepen-
dência, independência que está relacionada à consciência de ser um sujeito que
produz pensamentos e cultura. A infância é um tempo em si, com características,
especificidades e vivências próprias.
Nesse sentido, Arroyo (1994, p. 91) afirma:
A infância já cidadã, é um ser vivo, é ser cultural já, é ser social já. E enquanto ser social
que já é, na medida em que ela viver com mais intensidade e que ela é, estará se preparan-
do para um dia viver com intensidade futuras idades, futuras fases de sua vivência, de sua
formação.
Com base no autor supracitado, a infância não é categoria estática, é constru-
ção permanente, é categoria social. Dessa forma, tendo em vista a incorporação da
educação infantil, como primeira etapa da educação básica, a partir da Constitui-
ção Federal (BRASIL, 1988) e da LDB 9394 (BRASIL, 1996), a nossa preocupação
com a educação da infância deve se dar por compreensão da obrigação pública que
temos frente à infância, considerando que a criança passou a ser sujeito de direitos
e, consequentemente, o Estado passa a ter compromissos educacionais e sociais
para com elas, bem como nós também enquanto profissionais implicados com a
dinâmica educacional.
Como afirmam Sarmento e Gouvea (2008, p. 19), “ao estudar a infância, não é
apenas com as crianças que a disciplina sociológica se preocupa, e sim com a tota-
lidade da realidade social o que ocupa a sociologia da infância”.
Sendo assim, se faz necessário entender as modificações ocorridas na trajetó-
ria da infância até a contemporaneidade e, nesta perspectiva, este texto prima por
dar uma singela contribuição.
Corsaro, citado por Sarmento (2008, p. 29) afirma:
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Infâncias e diretos na contemporaneidade: em foco as crianças do campo
As crianças, na sua interação com os adultos, recebem continuamente estímulos para integra-
ção social, sob a forma de crenças, valores, conhecimentos, disposições e pautas de conduta,
que, ao invés de serem passivamente incorporados em saberes, comportamentos e atitudes,
são transformados, gerando juízos, interpretações e condutas infantis que contribuem para
configuração e transformação das formas sociais. Deste modo, não são apenas os adultos que
intervêm junto das crianças, mas as crianças também intervêm junto aos adultos.
Pode-se afirmar que as crianças integram o meio social, constroem, interpre-
tam e transformam essa herança cultural que é transmitida pelos adultos, são
sujeitos determinantes e determinados.
O olhar das crianças permite revelar fenômenos sociais que o olhar dos adultos deixa na
penumbra ou obscurecem totalmente. Assim, interpretar as representações sociais das
crianças pode ser não apenas um meio de acesso à infância como categoria social, mas as
próprias estruturas e dinâmicas sociais que são desocultadas no discurso da criança (PIN-
TO, SARMENTO, 1997, p. 25).
Nessa dinâmica compreende-se que o preceito fundamental do estudo da cul-
tura infantil, segundo os autores é a interpretação da autonomia da criança em
relação aos adultos, que oportunizam significações próprias, estruturam e consoli-
dam sistemas simbólicos.
Como evidencia Müller (2006, p. 557), “com certeza, as crianças realizam pro-
cessos de significação que são específicos e diferentes daqueles produzidos pelos
adultos”. Pode-se, assim, definir cultura própria da criança como aquela interpre-
tação realizada de forma imaginária, um mundo de fantasias, com significado con-
dizente com sua inocência.
Contextualizando, na atualidade, a Sociologia da Infância volta seu olhar para
a criança de forma que a vê como um ser que possui capacidade de construir sua
identidade e de dar significado às mudanças que ocorrem no meio a que pertence,
isto acontece por meio de suas experiências. “No caso das experiências das crianças
nas sociedades contemporâneas são inegáveis as radicais transformações nas suas
formas de inserção, revelando como a categoria infância vem sendo ressignificada”
(SARMENTO, GOUVEA, 2008, p. 11).
Entretanto, Sarmento e Gouvea (2008) salientam que, ainda que a criança
seja autora de sua forma de interpretação, também recebe influência das cate-
gorias geracionais, ou seja, a dependência daquilo que já está constituído pelas
últimas gerações com as quais cria laços de pertença. São sujeitos de direitos e
históricos determinantes e determinados pelo âmbito social e cultural de inserção.
Segundo Steinberg e Kincheloe (2001), existe uma cultura produzida para
criança, a qual se funda na infância ainda como tempo de inocência e dependência
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dos adultos, explorando a fantasia e o desejo infantil, em prol de ideologias do
mercado. E uma cultura da criança construída em um processo de produção cor-
porativa criança-meio-adulto. A cultura infantil é, pois, constituída por elementos
transmitidos e aceitos da cultura do adulto e elementos elaborados pelas próprias
crianças.
Dentro dessa dimensão, as autoras e Müller (2006) apontam para a necessi-
dade do reconhecimento por parte dos educadores da infância da cultura infantil,
uma vez que seu entendimento tem ligação direta com as concepções que as crian-
ças fazem do mundo, da vida e de si. Eis aí a importância da discussão fomentada,
a qual primou por respaldar a compreensão de dar voz e vez às crianças dentro
de seu contexto de pertencimento, a fim de balizar a proteção integral como foco e
critério de validade para a infância, a criança e o adolescente no cenário social e
educacional mais amplo.
Arroyo (2008, p. 134) em seus estudos bane a visão tradicional da infância e
demarca:
[...] uma infância com voz, pensamento, cultura, autonomia, capacidade de fazer escolhas e
de construir seu universo. [...] apresenta as crianças como atores sociais, morais e culturais
plenos, consequentemente sujeitos da construção de suas formas de ser. As crianças não se
-
riam passivas da conformação social de seu tempo, sofrem a diversidade de efeitos dos aspec-
tos estruturais, mas também suas ações são estruturantes e através delas se autoconstroem.
Enfim, toda criança tem direito de ser criança, de ter infância e de ter uma
educação de qualidade, comprometida com a cidadania e com a formação de uma
sociedade democrática, que a reconheça como um ser social e histórico, pois, em-
bora alguns progressos tenham acontecido em relação à criança, ainda há mui-
tas conquistas a serem alcançadas e que perpassam pelo compromisso coletivo de
agentes educacionais, jurídicos e sociais.
Frente ao exposto, podemos afirmar que na história sempre existiu distintas e
diversas infâncias e formas de ser criança. No entanto, buscou-se, por muito tem-
po, generalidade de concepção sobre infância. A ideia de uma concepção genérica
esteve vinculada junto aos estudos acadêmicos, à religião, à política, dentre outros
campos. Essa concepção passou a ser dominante e desconsiderou aspectos como
sexo, classe social, cultura, espaço físico e geográfico onde a criança vivia/estava, a
relação estabelecida com as pessoas adultas, a época em que se era criança.
Pensar a infância na contemporaneidade é dar visibilidade às crianças que
participam de diferentes espaços, que recriam outras culturas e, a partir disso,
nos permitem outras compreensões de infância. Sob esse olhar, se faz necessário
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Infâncias e diretos na contemporaneidade: em foco as crianças do campo
pensar e reconhecer outros tempos e espaços de produção da infância e educação
das crianças, espaços que têm emergido como formas de organização da própria
sociedade civil, bem como requerem pela garantia de seus direitos.
Nesse entender, tem-se a intenção de chamar a atenção para o fato de que as
crianças, do e no Brasil, construíram história – com sua cultura, seus sofrimentos,
sua desvalorização, sua exploração –, mesmo com a ausência de direitos que as
tivessem como sujeitos principais, e algumas continuam construindo sua história
e a história cultural do país em seu ocultamento, como as crianças que têm sua
infância experienciada nos contextos do campo.
É importante citar, a partir das políticas públicas, quais são consideradas as
infâncias do campo: agricultores familiares, extrativistas, pescadores artesanais,
ribeirinhos, assentados e acampados da reforma agrária, quilombolas, caiçaras,
indígenas e os povos e comunidades tradicionais (BRASIL, 2008). Como essas in-
fâncias têm seus direitos garantidos?
Nossa intenção na próxima seção é ampliar essa discussão e problematizar
sobre as infâncias, mais especificamente sobre as infâncias do campo.
Infâncias e crianças do campo: alargando as perspectivas contemporâneas
Pensar a criança em diferentes contextos como sujeito de direitos significa
pensá-la na história, como sujeito que afirma sua identidade nas relações sociais
e nos contextos de que participa. Sob essa perspectiva, é preciso reconhecer que a
experiência da infância não pode ser padronizada, uma vez que tem características
diferentes que variam de acordo com a classe social, com a cultura, com a etnia,
com o gênero, com a experiência socioeconômica e política de cada sujeito em seu
tempo histórico e da sociedade de que participa.
Mesmo com todo o esforço teórico proveniente de estudiosos da área (PIN-
TO, SARMENTO, 1997; SARMENTO, 2000; 2008; ARROYO, 2008; 2012a; 2012b;
MÜLLER, 2007 e outros) para explicar e compreender a situação da infância, a
realidade apresenta muitas crianças desrespeitadas, oprimidas ou invisíveis em
suas formas de ser e estar no mundo. Podemos dizer que existem, ainda, infâncias
e crianças que são compreendidas a partir de uma concepção única permeada pela
ideia de homogeneidade, que desconsidera a herança histórica de cada sujeito, bem
como condicionantes econômicos, geográficos, culturais, sociais, étnicos, dentre ou-
tros aspectos que constitui suas identidades.
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Há crianças que não têm acesso ao atendimento mantido pelo Estado (conside-
rando a política pública brasileira), seja ele de saúde, educação, assistência social,
cultura, lazer e tantos outros. Essas infâncias não existem? Essas crianças não
participam de processos de socialização ou os processos sociais de participam foram
negados historicamente por não pertencerem à cultura branca, europeia, urbana e
cristã? Como os direitos dessas crianças são assegurados na prática?
Diante disso, consideramos imprescindível pensar sobre como se dá a infância
das crianças do campo e como se afirmam suas identidades. Essas crianças vivem e
convivem em um cenário distinto, muitas vezes marcado pela dificuldade de acesso
aos serviços oferecidos pelo Estado, tais como escola e saúde públicas.
Whitaker (2002) nos ajuda a afirmar que a infância do campo sempre existiu.
A autora sinaliza que ao que concerne ao território brasileiro, talvez tenha surgido
antes mesmo da infância urbana. A estudiosa afirma, ainda, que a ciência contem-
porânea é urbana-centrada e, a partir dessa raiz, estabeleceu padrões universais.
Esses padrões criaram dicotomias hierarquizadoras, tais como masculino x femi-
nino; cultura x natureza; urbano x rural; homem branco x homem não branco,
dentre outros. Sob essa perspectiva, os estudos de Whitaker (2002) sustentam que
o primeiro polo, de acordo com a ciência contemporânea é sempre valorizado em
detrimento do segundo.
Com base na afirmação de Whitaker (2002), consideramos que a concepção de
infância, aquela compreendida como universal ou generalizada, também foi cons-
truída no alicerce de uma cultura e/ou ciência urbano-centrada. Logo, a infância
do campo ficou subjugada a essa concepção e não foi considerada a partir de sua
realidade, de seu contexto e de seus sujeitos.
A partir dos estudos provenientes da sociologia da infância, conforme destaca-
mos ao longo deste texto, podemos compreender a infância em sua pluralidade de
condições, o que sugere o reconhecimento de diferentes formas de viver esse período
da vida. Como parte desse reconhecimento, há também a certificação de categorias
que demarcam a existência dessas diferentes infâncias, suas culturas, suas formas
de ser e estar no mundo. Silva, Felipe e Ramos (2012) destacam que estariam in-
cluídas nessas categorias: crianças pobres e ricas, africanas e europeias, brancas e
negras, do campo e da cidade, dentre outras. Num primeiro momento, essa distin-
ção pode parecer excludente, no entanto, seu reconhecimento nos permite ampliar
o olhar para as diferentes infâncias; olhá-las a partir delas mesmas, de suas espe-
cificidades. Esse movimento, demarca a existência de cidadanias contemporâneas,
as quais passam a requerer também a legitimação e/ou garantia de seus direitos.
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Infâncias e diretos na contemporaneidade: em foco as crianças do campo
No que tange à garantia da cidadania na infância, vale destacar que se trata de
uma construção que deve ter seu alicerce pautado na realidade das crianças, em
sua individualidade, bem como ao seu grupo de pertença e experiências que se
constituem na vivência cotidiana.
As crianças do campo estão inseridas em uma geografia específica e em uma
rede heterogênea. Quando pensamos nessas infâncias, há algo que é comum a to-
das elas: fazem parte de grupos socioculturais historicamente excluídos, oprimidos,
explorados. Por isso, aparecem no cenário social numa linha tênue entre a inclusão
e a exclusão. Incluídas num processo de exclusão.
O campo é o espaço/território de vida, onde pessoas moram, trabalham,
estudam e precisam ter sua dignidade reconhecida a partir do seu lugar, da sua
identidade cultural. As relações estabelecidas no campo vão além da produção
agropecuária e agroindustrial, do latifúndio e da grilagem de terras. O campo é
lugar de relações, é espaço de camponeses, de quilombolas, de indígenas, de ribei-
rinhos e de todas as populações tradicionais do campo. No entanto, a história do
campo brasileiro e dos povos do campo nem sempre foi compreendida, estudada e
socializada como espaço de relações, de cultura e de produção de vida e de educa-
ção. Fernandes (2011) enfatiza que o campo deve ser concebido a partir de toda a
dimensão humana que contempla, bem como das distintas formas de existência
presentes nessa dimensão.
Quando pensamos, especificamente, nas crianças do campo, no contexto brasi-
leiro, historicamente, podemos identificar infâncias que foram negadas e/ou invizi-
bilizadas pela distribuição desproporcional das riquezas, tanto simbólicas quanto
materiais. Essa situação produziu e produz condições sociais desfavoráveis para
uma parcela da população. Essas condições sociais dizem respeito ao acesso a bens
culturais, à educação formal de qualidade – desde a educação infantil, aos pro-
cessos de socialização potencializadores de práticas humanizadoras. Poderíamos
problematizar várias práticas dessas condições desfavoráveis, tais como: acesso à
educação infantil (creche) para crianças do campo, transporte para chegarem até
as escolas, alguns casos de falta de saneamento básico, acesso a diferentes conheci-
mentos culturais, dentre outros. Destaca-se, assim, a necessidade de pensar sobre
essas infâncias, para que sejam reconhecidas suas marcas, sobretudo superados os
processos que as submetem à exploração, à crueldade e, sobretudo, à negação de
direitos.
Frente ao exposto, é possível afirmar que as populações do campo tiveram seus
direitos sociais e humanos violados. No Brasil, esses direitos são garantidos pela
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Constituição de 1988 e, no caso das crianças, (re) afirmados no Estatuto da Criança
e do Adolescente de 1990, bem como na LDB 9394/96. Os documentos citados ope-
ram em favor das crianças como sujeitos de direitos, que devem ser reconhecidos e
consumados pela sociedade e pelo Estado. Esses documentos legitimam os direitos
para todas as crianças em igual teor, no entanto, alguns estudos (ARENHART,
2007; SILVA, 2012; SILVA, 2013; ROSSETI-FERREIRA, 2012) denunciam que na
prática as crianças do campo carecem ainda de terem seus diretos garantidos.
O reconhecimento das distintas condições em que a infância acontece nos per-
mite autenticar a pluralidade de infâncias existente no campo, bem como reconhe-
cer as crianças que participam desse contexto como aquelas que precisam ter seus
diretos garantidos a partir do respeito à sua identidade. Essa autenticação denun-
cia a disparidade existente nas distintas formas de ser crianças e viver o período da
infância. Consequentemente, os processos de humanização das crianças do campo
são pautados na compreensão dessa realidade complexa, plural e desigual.
A desigualdade entre campo e cidade ainda são marcantes. As crianças do
campo têm uma infância marcada, muitas vezes, pela falta de elementos básicos
para seus processos de socialização. Dentre esses elementos, os mais precários e,
por vezes, ausentes, é o acesso a serviços públicos de saúde e educação escolar,
mesmo que existam políticas públicas específicas para ambas.
No caso dos processos de educação formal, a escola localizada no campo
sofre com o descaso em relação a sua infraestrutura, desqualificação profissional
e com o pouco investimento na implementação das políticas públicas (ARROYO,
2007; 2012a). Geralmente, as escolas do campo comportam classes multisseriadas
e não têm profissionais para todas as demandas da instituição (zeladora/es, meren-
deira/os, corpo docente e gestão escolar). É preciso destacar que as discussões sobre
a Educação do Campo contribuíram para a implantação de Políticas específicas e
alavancaram a qualidade da educação que se oferece no e para o campo. Igualmen-
te, promoveram estudos e abriram uma discussão sobre formação de profissionais
coerente com as práticas do campo (ARROYO, 2007; 2012a). No entanto, é preciso
destacar que essa discussão, bem como a implementação dessas Políticas de Edu-
cação do Campo ainda são incipientes.
Nesse sentido, a falta ou o não cumprimento do que preveem as políticas pú-
blicas fortalece a ideia de atraso a que o campo foi/é associado e, na mesma me-
dida, invisibiliza seus sujeitos, seus processos de desenvolvimento e acesso aos
bens materiais e culturais; logo, invisibilizam-se as crianças e desconsideram-se as
distintas formas de viver a infância.
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Infâncias e diretos na contemporaneidade: em foco as crianças do campo
Retomando as afirmações de Whitaker (2002), podemos inferir que, histori-
camente, houve a reprodução de uma hierarquia – do urbano sobre o rural. Morar
no campo é sinônimo de inferioridade, de pobreza, de falta de instrução e de mo-
dernidade, de inferioridade social e cultural. Nessa relação complexa, marcada por
forças ideológicas e políticas, a infância é afetada e as crianças marcadas por uma
disseminação aviltante da vida no campo. As crianças do campo são chamadas de
caipiras, peões, bregas, colonas, dentre outros termos. Além disso, a vida no campo
é marcada pela sua desvalorização social nos espaços urbanos frequentados, públi-
cos ou privados: supermercados, comércios, instituições escolares, dentre outros.
Direitos para quem?
Stropasolas (2012) afirma que os processos de invisibilidade e exclusão mar-
cam a condição social da infância no Brasil. Especificamente sobre as infâncias do
campo, Arroyo (2012a) destaca que os estudos da infância passaram a denunciar
a invisibilização de distintas formas de viver a infância na história. No entanto, o
mesmo autor destaca que há infâncias tidas não apenas como invisibilizadas, mas
inexistentes, cita como exemplo aquelas que pertencem a coletivos sociais, raciais e
étnicos que não são reconhecidas como parte da história social, econômica, política,
cultural e pedagógica do país.
A história social, política e cultural reconhecida e validada é aquela feita por
e para algumas pessoas, geralmente brancas, de origem europeia, cristã e urbana.
Essas pessoas são definidas pela história como racionais, cultas, laboriosas, enfim,
superiores. As demais, aquelas que não são legitimadas no registro da história,
são definidas como primitivas, improdutivas e irracionais. É preciso refletir sobre
o acesso aos diretos de todas as pessoas subjugadas a esses processos excludentes
e como a infância transita nessas relações tão enraizadas historicamente. Nesse
sentido, questionamos, quais são os alcances e as formas que as crianças do campo
encontram para exercer seus direitos? Destacamos aqui a necessidade de se pensar
na efetivação dos direitos que, historicamente, foram negados às crianças do cam-
po, de modo a respeitar a constituição de suas identidades, sobretudo o direito de
legitimação da especificidade de suas infâncias.
Considerações
Esse escrito objetivou refletir sobre as infâncias e as crianças, seus direitos e
a constituição de suas identidades considerando a pluralidade de espaços em que a
infância acontece e dando destaque às crianças do campo.
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As reflexões feitas ao longo deste texto, transparecem a evidência de que, quan-
do colocamos as infâncias do e no campo na esteira da discussão, somos convidados/
as a repensar nossas concepções. Conhecer as infâncias do campo nos possibilita
construir outra discussão sobre a infância e seus espaços de experiência, legiti-
mando a concretude histórica das crianças que constituem suas identidades nesses
espaços. Nesse sentido, quando colocamos as crianças do campo e suas distintas
infâncias nos holofotes, a história da infância ganha outras leituras, bem como, são
outras as compreensões relativas aos direitos da população infantil. As leituras a
que nos referimos se dão a partir de uma infância situada, real, menos abstrata,
com outros tensionamentos. Uma infância que adquire outros significados e exige
outras teorias para sua compreensão e problematização.
Encerramos esse artigo afirmando a necessidade de colocar no cenário das
discussões as crianças do campo em suas infâncias e, dessa forma, colaborar para
o registro de nossa história social e cultural, para a legitimação dos direitos des
-
sas crianças e o reconhecimento do lugar onde suas identidades são forjadas.
Acreditamos que, sem levar ao conhecimento os processos de marginalização,
invisibilidade e inferiorização a que alguns grupos de crianças foram expostos
durante nossa história nacional – e, como exemplo, podemos citar as crianças dos
povos do campo em toda sua diversidade –, essa história é incompleta. É preciso
problematizar as formas de socialização e construção da cidadania. Que direitos?
Para quais crianças?
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Bullying escolar: a (in)visibilidade do fenômeno e dos protagonistas crianças
Bullying escolar: a (in)visibilidade do fenômeno e dos protagonistas crianças
Acoso escolar: la (in)visibilidad del fenómeno y de los protagonistas niños
School bullying: the (in)visibility of phenomenon and children protagonists
Rosana Coronetti Farenzena
*
Resumo
Este artigo debruça-se sobre o bullying escolar, fenômeno complexo e ativo nas escolas. Com caráter inovador,
também por estruturar-se sobre pesquisa qualitativa, traz resultados de um estudo desenvolvido com três turmas
– pré-escola, 1º e 3º ano – de uma escola de educação básica portuguesa. A metodologia envolveu observações
diárias nos tempos livres e formais, grupos focais com crianças e entrevistas individuais com professores e funcio-
nárias. Constatamos que práticas de bullying, por diversas formas, são comuns nas três turmas e poucas vezes são
percebidas pelos adultos. Crianças de ambos os gêneros exercem papéis de agressoras e de vítimas. No contexto,
essas últimas ocupam um lugar social de incapacidade e de não pertencimento. Agressores habituais evidenciam
impossibilidade para uma participação lúdica em jogos e brincadeiras. Participar em jogos e brincadeiras é uma
condição determinante à pertença e evita possível vitimização. É comum que uma dupla ou um trio de alto de-
sempenho escolar incite os demais pares para práticas de bullying. Pertencer à etnia cigana é um fator automáti-
co de discriminação. As crianças são capazes de uma leitura profunda e propositiva do contexto institucional. Há
que ser questionado um modelo de escolarização, alheio às crianças e ao seu direito de participação.
Palavras-chave: Infância. Bullying escolar. Participação infantil.
Resumen
Este artículo es un estudio hecho sobre el acoso escolar, fenómeno complejo y activo en las escuelas. Con carác-
ter innovador, también por estructurarse sobre pesquisa cualitativa, trae resultados de un estudio desarrollado
con tres grupos – el kínder, 1º y 3º año de la primaria – en una escuela de educación básica portuguesa. La
metodología envolvió observaciones diarias en los tiempos libres y formales, grupos direccionados a niños y en-
trevistas individuales con profesores y funcionarios. Constatamos que prácticas de acoso, por diversas maneras,
son comunes en los tres grupos y pocas veces son percibidas por los adultos. Niños de ambos géneros ejercen
papeles de agresores y de víctimas. En el contexto estos últimos ocupan un lugar social de discapacidad y de no
pertenecer. Agresores habituales evidencian imposibilidad para una participación lúdica en juegos y niñerías.
Participar en juegos y niñerías es una condición determinante a la integración y evita una posible victimización.
Es común que en una pareja o en un trío de alto desempeño escolar estimule a las demás parejas para las prác-
ticas de acoso. Pertenecer a la etnia gitana es un factor automático de discriminación. Los niños son capaces de
una lectura profunda y positiva del contexto institucional. Hay que se cuestionar un modelo de escolarización,
ajeno a los niños concretos y a su derecho de participación.
Palabras clave: Infancia. Acoso escolar. Participación infantil.
*
Doutora em Estudos da Criança pela Universidade do Minho, Portugal. Professora na Universidade de Passo Fundo,
colaboradora do Centro de Investigação em Estudos da Criança, da Universidade do Minho, membro da Rede Pikler
Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7362-5093. E-mail: rosanafarenzena@gmail.com
Recebido em 14/01/2020 – Aprovado em 27/02/2020
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i2.11426
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Rosana Coronetti Farenzena
Abstract
This article focuses on school bullying, a complex and active phenomenon in schools. With innovative character,
also because it is structured on qualitative research. It brings results from a study developed with three classes
- preschool, 1st and 3rd year - of a Portuguese primary school. The methodology involved daily observations
in leisure and formal time, focus groups with children and individual interviews with teachers and sta. It was
noticed that bullying practices, in many ways, are common in all three classes and they are rarely noticed by
adults. Children of both genders play the roles of aggressors and victims. In the context, the victims occupy a
social place of disability and non-belonging. Habitual aggressors show impossibility for a playful participation in
games and childrens play. Participating in games and childrens plays is a determining condition of belonging
and avoids possible victimization. It is common for a pair or a trio with great academical performance incite the
other peers for bullying practices. Belonging to a gipsy ethnical background is an automatic factor of discrimi-
nation. Children are capable of a deep and purposeful reading of the institutional context. A model of schooling,
inattentive to uninvolved to concrete children and their right to participate, must be questioned.
Keywords: Childhood. School bullying. Child participation.
Uma retomada dos estudos sobre o bullying
Com a introdução de metodologias qualitativas, associadas às quantitativas,
produziu-se um sentido de valorização da participação infantil nos estudos sobre
o bullying. Esse alargamento metodológico associa-se à concepção de criança como
um sujeito de direitos, apta a falar sobre as suas vivências e a influenciar o contex-
to de inserção social.
Dentre os participantes do bullying, há que dedicarmos atenção ao agressor
e à vítima. Diversos estudos confirmam a seriedade das consequências para uns
e outros (BOULTON; SMITH, 1994; CRAIG, 1998; KECHENDERFER-LADD;
WARDROP, 2001; MEYER, 2011; OLWEUS, 1993, 1989; SMITH, 2013), de forma
que as questões da agressão e da vitimização não podem ser justificadas enquanto
práticas naturais da infância ou “treino para a vida” (PEREIRA, 2008).
A condição de observador do bullying tem recebido especial atenção, desde
que estudos voltados à intervenção e à prevenção identificaram um potencial de
ação positiva por parte das crianças que presenciam essas ações. Grande parte das
agressões entre pares são testemunhadas. Esses observadores podem influenciar o
curso dessas agressões: podem dar apoio e reforço positivo ao agressor ou à vítima;
nada fazer; intervir para tentar cessar a agressão ou mesmo afastar-se da cena
agressiva (SALMIVALLI; NIEMINEN, 2002).
Conforme Martins (2007), o maior grupo de observadores presencia atos de
bullying sem interferir ou chamar adultos para que o façam, mesmo que não apoie
diretamente o agressor.
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Bullying escolar: a (in)visibilidade do fenômeno e dos protagonistas crianças
Os comportamentos de bullying, distintos das brincadeiras agressivas, ou das
lutas de brincadeira, em que não existe a intenção de magoar ou de causar danos
(MARQUES, 2010), estão categorizados num conjunto de comportamentos em que
é possível identificar estratégias de intimidação, que resultam em práticas vio-
lentas, intencionais, com caráter regular e frequente, exercidas individualmente
ou em grupo. Referem-se à “vontade consistente e desejo de magoar ou amedron-
tar alguém quer fisicamente, verbal ou psicologicamente” (SMITH; SHARP, 1994,
p. 2). São considerados atos de bullying: bater/agredir fisicamente; empurrar, tirar
dinheiro/extorquir; danificar objetos; gozar; chantagear ou ameaçar, intimidar/me-
ter medo; espalhar rumores/disseminar boatos; mentir sobre; falar mal, insultar;
chamar nomes; fazer comentários ou gestos ordinários e/ou piadas sexuais; abusar
ou assediar sexualmente; excluir, discriminar etc. (MATOS et al, 2009; SMITH &
SHARP, 1994). Das especificidades que distinguem o bullying das demais violên-
cias na escola destacamos: as agressões não resultam de provocações, têm caráter
regular e ocorrem numa escala de assimetria de poder de um(ns) sobre o(s) ou-
tro(s). Geralmente, o agressor é mais forte e a vítima não está em condição de se
defender ou de procurar ajuda (PEREIRA, 2008; FANTE, 2005).
Os comportamentos de bullying podem ser manifestados por meio direto e/ou
indireto. Esses últimos não são de fácil identificação e, frequentemente, relacionam
-
-se a quadros de vitimização com efeitos profundos e duradouros (PEREIRA, 2008).
Em relação aos subgrupos etários, diversos estudos, entre os quais os de Costa
Pereira, Simões e Farenzena (2011) e DeHaan (2009) e Martins (1997), indicam
uma diferenciação no uso dos recursos aos comportamentos agressivos. À medida
que aumentam a idade e os anos de escolaridade, parece diminuir a frequência do
bullying (DEHANN, 1997; OLWEUS, 1993). As formas verbal e física aparecem
como as mais frequentes entre crianças e a exclusão como a forma mais frequente
entre adolescentes, seguindo-se a verbal e, na sequência, a agressão física.
Esses resultados, reveladores de uma lógica socializadora, sugerem que a
criança interpreta os significados sociais, as implicações de cada uma das formas
de agressão e de vitimização, e opta por práticas agressivas de menor exposição
social, ou seja, por aquelas associadas a menor visibilidade do ato, como a exclu-
são (MARTINS, 2009; PEREIRA, 2008; SKRZYPIEC; SLEE; MURRAY-HARVEY;
PEREIRA, 2011).
Para Guerra, Williams e Sadek (2011) o ambiente social em que o aluno cresce
influencia no seu envolvimento com a violência escolar. Também Ferrer; Ruiz; Da-
vid; Amador; Orford (2011) e Estévez; Murgui; Musitu e Moreno (2008) apontam
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para a relevância do clima familiar e suas implicações com a violência escolar,
tanto para vítimas quanto para agressores.
Diversos autores têm se dedicado a compreender as relações entre família e
bullying. Olweus (1994) associa o pertencimento das vítimas a famílias com proces
-
sos educacionais restritivos, ou mesmo excessivamente protetivos. Spriggs Iannotti,
Ronald; Nansel; Haynie (2007) enfatizam que escasso apoio e controle por parte dos
pais, e também o maltrato físico geram atitudes violentas nos filhos, que tendem a
perdurar durante o tempo. Garcia e Madriaza (2006) ao analisaram determinantes
da violência escolar situam a família como inibidora ou facilitadora da violência.
Estudos portugueses referem uma naturalização de práticas de bullying,
quando não significadas como atos violentos e com esse teor problematizadas.
Tratá-las como brincadeiras seria uma dessas evidências (COSTA; FARENZENA;
SIMÕES; PEREIRA, 2013a, 2013b).
Segundo a definição de Boulton e Smith (1994), a vítima é alguém com quem
frequentemente implicam ou, que lhe batem ou lhe atormentam ou, que lhe fazem
outras coisas desagradáveis sem razão. Ser vítima tem ação desagregadora sobre a
subjetividade do sujeito, repercute nas questões de autoimagem e de autoconceito,
também compromete o sentimento de confiança básica em relação ao outro e inter-
fere no seu desenvolvimento global (SANMARTIN, 2006).
Sobre as crianças vítimas de bullying, Carvalhosa, Lima e Matos (2001), em
ampla revisão da literatura, apontaram um conjunto de características, dentre as
quais: as vítimas típicas/passivas são mais deprimidas que outras crianças; têm
mais sintomas físicos, como dores de cabeça e dores abdominais; sintomas psicos-
somáticos, nomeadamente falta de apetite, enurese, insônia e irritabilidade; menos
amigos e maior dificuldade em fazê-los porque sofrem rejeição dos pares; não se
sentem bem na escola etc.
Algumas das características das crianças vitimizadas que mais se repetem
nos estudos são: insegurança, ansiedade, dificuldade em ser assertiva, medo exces-
sivo e contínuo e dificuldade em dar respostas à agressão. Vivenciam a incerteza
de não saberem se vão ficar sós ou se vão ter com quem brincar nos momentos de
recreio escolar. O isolamento nos espaços do recreio ou na sala de a aula influência
na sua condição de vulnerabilidade e facilita as agressões que lhe são dirigidas.
Quanto à criança agressora, frequentemente implica com outras e lhes faz coi-
sas desagradáveis, para o que não precisa de atitudes provocativas por parte das ví-
timas, consideradas alvos fáceis (OLWEUS, 1991, 1994). Os resultados de algumas
pesquisas associam crianças agressoras, que também podem ser vítimas agressivas,
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Bullying escolar: a (in)visibilidade do fenômeno e dos protagonistas crianças
a características como: dificuldades no controle dos impulsos; expectativas de que a
agressão resulta no controle da vítima; a certeza de que não sofrerão retaliações e a
ausência de medo ou de remorso pela sua conduta, que percebem como justificada
no contexto (OLWEUS, 1993; SMITH; SHARP, 1994; NEGREIROS, 2003). Tendem
a ser mais populares que as vítimas, denotam elevada autoconfiança e, frequente
-
mente, associam-se aos pares com perfil semelhante, que os apoiam nas práticas
agressivas. Ao contrário das vítimas, não são isoladas socialmente.
Os recreios, territórios de maior liberdade, nem sempre planejados nos espa-
ços, equipamentos e materiais que oferecem aos alunos (MARQUES; NETO; N-
GULO; PEREIRA 2002), são momentos com alta incidência de atos de bullying, nos
quais a ação do agressor é seletiva e avaliada. Nesse sentido, é preciso escolher o
momento em que sua ação produzirá maior efeito sobre a vítima, surpreendendo-a,
também observar para que a iniciativa não seja perceptível ao olhar adulto (SOU-
ZA; PEREIRA; LOURENÇO, 2011).
Seja pelas violências dos atos de bullying, que mobilizam mal estar e sofrimen-
to infantil, com implicações na aprendizagem e desempenho escolar, ou pelas pers-
pectivas futuras à vida de agressores, vítimas e observadores, a escola não pode se
omitir à responsabilidade de acompanhar, documentar e analisar criteriosamente
a qualidade das interações entre crianças e crianças; adultos e crianças; adultos
e adultos, no que se incluem as relações escola família (ROOS; SARMIVALLI;
HODGES, 2011; CARVALHOSA, 2001). Nessas interações afirma-se uma determi-
nada socialização, que deve estar em sintonia com os objetivos institucionais.
A evidência científica aponta para a redução do bullying por meio de políticas
de escola, com a participação ativa de adultos e de crianças, na construção de um
modelo de coexistência pacífica (OLWEUS, 1993, 2004; SALMIVALLI, 2010).
Quanto aos programas de intervenção, para prevenir ou reduzir o bullying,
a grande maioria dos estudos mostra os bons resultados de um modelo ecológico,
voltado ao desenvolvimento de recursos socioemocionais protetivos – pela consciên
-
cia dos efeitos do bullying e pela empatia –, e a uma identidade coletiva/de grupo
orientada pela decisão de garantir uma convivialidade assente no respeito e na coo
-
peração. Essa perspectiva de intervenção mobiliza a comunidade escolar, nos seus
diferentes segmentos, para que em corresponsabilidade, problematize, proponha,
planeje e busque alternativas que concretizem as metas definidas nesse processo
(BRONFENBRENNER, 1996; ESPELAGE, 2014; FERNANDES; SEIXAS, 2012;
FANTE, 2005; LEE, 2011; OLWEUS, 1991; 2004; SALMIVALLI, 2010; SMITH;
SHARP, 1994).
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Rosana Coronetti Farenzena
Ações pontuais e direcionadas à abordagem individual não apresentam bons
resultados. Esses são obtidos, de acordo com os estudos citados, em programas com
um desenho de intervenção longitudinal, iniciados ainda na educação pré-escolar
e consoantes a uma escola inclusiva assim garantida por confrontar – no sentido
de desejar, buscar, construir, avaliar e interrogar – o conhecimento produzido nas
próprias práticas, sem perder de vista a articulação com os princípios e fundamen-
tos das Ciências Sociais e Humanas. Ao fazê-lo estabelece uma linha educativa
fundada em valores éticos e humanos, em capacidades científicas e dialógicas, ou
seja, na participação cidadã das crianças dos diferentes grupos etários.
Metodologia
O enquadramento do estudo que originou este artigo foi orientado pelo objeti-
vo de conhecer e compreender, numa perspectiva crítica e propositiva, o fenómeno
do bullying na educação infantil e no 1º Ciclo da educação básica – 1º CEB.
O contexto de investigação foi uma escola básica encravada em área urbana
e pressionada à ampliação pela crescente lista de espera por vagas. Foram sele-
cionadas, a partir da concordância dos diversos segmentos da comunidade escolar,
uma turma de pré-escolar, uma de 1º ano e uma de 3º ano do 1º CEB. Entrevistas
individuais foram aplicadas a professores e funcionários.
Além de observações diárias no ambiente escolar, foram organizados dois gru-
pos focais por turma, constituídos entre 03 e 06 participantes cada um. As idades
das crianças variaram dos 05 aos 09 anos.
A referência a cada participante do grupo focal é indicada pela letra “P” =
Participante, e pelo número que lhe foi atribuído, de 1 a 6. A simbologia e cor-
responde ao gênero, e na sequência há o numeral indicativo da idade e ao grupo a
que pertence - G1 ou G2. Para exemplificar: P35G2 lê-se participante 3, do gênero
feminino, idade de 5 anos e pertencente ao grupo 2.
Em torno de 260 crianças estão matriculadas na escola, dessas aproximada-
mente 30 pertencem à etnia cigana e habitam um bairro social da mesma freguesia.
Resultados
Há, nas três turmas, clara manifestação de atos de bullying entre os pares,
concretizados em diversas formas de agressões e em diferentes tempos e espaços da
escola por crianças de ambos os gêneros. Ainda que frequentes no cotidiano escolar,
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Bullying escolar: a (in)visibilidade do fenômeno e dos protagonistas crianças
muitas dessas práticas não são percebidas por professores e funcionários ou, se
identificadas, nem sempre são destinatárias da atenção necessária.
Crianças da etnia cigana são apontadas, num primeiro momento, por crianças
e adultos, como as grandes responsáveis pelos episódios de violência física, furtos,
atos de bullying e pelo clima de insegurança nos recreios na escola. Todavia, tem
outro desenho a realidade que desponta nas práticas e nas narrativas das crianças
no decorrer do estudo, isto na medida em que o lugar da pesquisadora é significado
como não sendo o dos adultos que atuam na escola, e em que no espaço dialógico
dos grupos focais cresce, para os participantes crianças, o sentido de legitimidade
da própria voz.
Evidencias de pormenores da problemática do bullying no contexto não são os
únicos resultados de pesquisa. Dinâmicas de socialização são reveladas destacan-
do-se a inequívoca implicação multigeracional nessa forma específica de violência,
bem como na cultura escolar que se apresenta.
O conceito de bullying das crianças remete, inicialmente, apenas para a ação
dos colegas de etnia cigana, generalizada como violenta e associada à prática de
agressão física. “[...] quando as empregadas não estão por perto, os ciganos fa-
zem bullying.” P48G1. Os ciganos estragam esta escola.” P29G1. Há muito
bullying dos ciganos com os outros alunos.P18G1. Condutas dos pares dessa
etnia são ressaltadas como portadoras de violência no contexto: “[...] no recreio,
no campo de futebol quando estamos a jogar futebol, os ciganos que estão a jogar
fazem muitas faltas, mas faltas que aleijam mesmo. Uma vez o “P39G1” levou
uma falta que ficou muito penalizado, ficou muito a doer-lhe a perna.” P19G2.
“Como a P2 disse, o “J” é um cigano que também bate muito... P39G2. “Eles
chegam a nossa beira, eles quando se enervam, soltam tudo o que têm lá dentro e
aleijam bastante, já muita gente fica com marcas porque eles são muito violentos.”
“P29G2”; “[...] os ciganos não podem (brincar) porque são muito brutos” P59G1.
A pertença ao grupo étnico cigano é associada a uma condição social anômala: É
um cigano e muitas vezes não lava os dentes, eu nunca brinquei com ele.” P27G2;
“...Só tem dois ciganos, mas o C5 é o que falta tantas, tantas vezes que não sabe
nada.” P36G2.
Racionalizações, voltadas à comunicação de pontos de vista afinados com ex-
pectativas sociais estão presentes nas lógicas das crianças das diferentes turmas:
“Eu brinco com a D e é cigana. [...] ela é morena e é cigana também e eu brinco com
ela. “P35G1”. A autora dessa afirmação, com um lugar social diferenciado no gru-
po da pré-escola, na medida em que lê e escreve o que lhe confere status de “mais
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avançada da turma”, maltrata repetidamente e por diferentes formas a colega “D”,
o faz de forma a não ser percebida pela educadora e sua assistente. No contexto do
3º ano, “P29G2”, com alto desempenho escolar e representante da turma em di-
versos eventos, lidera os pares, em especial o grupo de meninas, de forma discreta
e contínua, na exclusão e mal tratos à dupla de colegas de etnia cigana: “Só há duas
ciganas simpáticas, que é a “D” e a “M”, o resto é tudo…” “P29G2”.
Se, no início crianças de etnia cigana e pares de outras turmas são apontados
como responsáveis pelas dificuldades no convívio escolar, no decorrer dos grupos
focais janelas para um olhar interior são abertas e permitem que os participantes
falem sobre os seus papeis sociais no clima social produzido. Emergem vozes e
entendimentos resguardados, até então. No caso do 3º ano, reconhecem fraturas
sociais internas numa turma considerada, na comunidade escolar, como profunda-
mente unida. Transitam de uma versão em que afirmam trabalhar em sala de aula
ou brincar no pátio com todos os colegas, ao relato de preferências pessoais e de
intencionalidades concretizadas em atos para afastar, isolar e excluir das relações
alguns colegas.
Não só os pares do grupo étnico cigano são alvos de exclusão social e de dife-
rentes formas de agressão nas três turmas. Em posição semelhante, encontram-se
colegas com deficiências, baixo desempenho escolar, de nacionalidade africana, ro-
mena e brasileira, ainda há um caso emblemático no 3º ano de um menino acima
do peso e cuja fragilidade na estima própria o leva a querer agradar de todas as
formas os agressores.
Nas diversas situações de bullying, os agressores habituais são seletivos nas
práticas violentas ou manipulativas. É o caso de P27G1, do 1º ano, contumaz
agressor de crianças que não possam opor-lhe resistência ou que não informem o
ocorrido de imediato, às auxiliares responsáveis pelos recreios. Perante a profes-
sora apresenta-se numa versão bom menino e aluno dedicado. Associado a “J7”,
também do 1º ano, e a pares de mais idade, dedica o recreio a maltratar colegas
vulneráveis: com deficiências ou avaliados como frágeis. Apesar da proximidade
com “J7”, também sobre o mesmo exerce poder, estimula a dependência e o des-
qualifica constantemente.
É grande a possibilidade de que essas microdinâmicas sociais, de dominação
e de dependência, entre os pares agressores permaneçam invisíveis aos adultos
do contexto. Além de não percebidas são, por vezes, reforçadas pela ação docente.
O entendimento da professora de que há valor positivo nas interações da dupla
P27G1 e J7, a partir do suposto de que potencializam ajuda e melhor aprovei-
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Bullying escolar: a (in)visibilidade do fenômeno e dos protagonistas crianças
tamento nas atividades de sala de aula, favorece a manutenção de mecanismos de
controle, de poder e de submissão entre os mesmos.
Selecionamos aqui dois casos, dentre aqueles constatados nas três turmas,
de vitimização não associada à etnia. São representativos dos demais e permitem
evidenciar uma coprodução multigeracional nas práticas de bullying no contexto.
Essa participação dos adultos é extensiva à totalidade dos quadros de vitimização
no campo de pesquisa.
“J7”, aluna do 1º ano, alvo constante de agressão por diferentes formas é
citada nos grupos focais como colega com quem não brincam ou que não deixam
brincar, por “P27”G2”; “P27G1”; “P47G1”; “P57G1” e “P37G2”. Sua partici-
pação nas brincadeiras é condicionada a um personagem fixo depreciativo. “Quan-
do jogamos às bruxas e assim precisamos de uma bruxa, como ninguém quer ser
uma bruxa, chamamos a “J”. Ela gosta e é mesmo parecida com uma bruxa... E fala
como uma bruxa. É tão malvada como uma bruxa.” P27G2.
Estar em aula não é fator impeditivo às agressões que lhe são dirigidas, sendo
os pares agressores cuidadosos para não serem percebidos pela professora nessa
intencionalidade. Esses contam com o reconhecimento docente pelo bom desem-
penho escolar apresentado e pela forma assertiva ao se colocarem como respeita-
dores das regras de convívio. Ocupam assim um lugar insuspeito que desqualifica
possíveis queixas da colega vítima. Dinâmica semelhante se verifica nos casos de
bullying nas demais turmas.
As referências dos pares em relação à “J” situam-na num lugar de incapa-
cidade, de não pertencimento, e responsabilizam-na por uma diferença que não
compreenderam, porque nisto não contaram com ajuda. Suas particularidades dos
parâmetros motores, de linguagem e de pensamento são tomadas como inaceitá-
veis e o seu desempenho escolar como representação do fracasso absoluto, merece-
dor de desprezo. “Eu às vezes fico chateado com a “J” na sala de aula. E vocês não
sabem o que é que ela faz, um dia estava, ontem estava a comer a cola, no outro
dia estava a comer borracha e no outro dia, na segunda-feira estava a comer o lápis
assim (exemplifica). E hoje comeu também o lápis.” [...]A “J”, sabe como é que ela
faz? Olhe para aqui para a mesa (exemplifica). E mete uma letra só num caderno
todo, uma letra, duma linha abaixo até cima, numa folha de caderno...” P27G2.
Os comentários que, invariavelmente, recebe dos adultos em aula associam-na
a uma marca negativa, como a sua falta de atenção, ao que faz errado, a demora na
realização das atividades etc.
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Rosana Coronetti Farenzena
Com lugar destinado em mesa na primeira fileira, e próxima à professora,
senta-se ao lado de “C”, menino de etnia cigana também destinatário de olhares
críticos. Compõem a única dupla da sala, considerando-se que as demais crianças
estão agrupadas em blocos maiores de mesas. Essa condição diferenciada no espaço
é percebida pelos pares: “As mesas são quadradas e a professora só do “C” e da “J”
é que puseram uma, e com os outros juntaram junto.” P27G2. Também é possível
que o significado de exclusão subjacente a essa leitura corrobore com o juízo de
valor aplicado aos dois colegas. “Eu nunca gostei da “J” nem do “C” porque eles
podem trabalhar na mesma mesa, mas vão sempre… mas eles planeiam alguma
coisa para nos fazer mal….” P37G2.
“J” é destinatária permanente de atos bullying, praticados não só por pares da
turma como por crianças dos diversos anos, uma situação naturalizada no contexto
e a qual não correspondem iniciativas, por parte da equipe docente, com o propósito
de promover outros padrões interativos. Recebe pouca ou nenhuma valorização o
seu esforço para responder de forma positiva aos desafios da educação escolar e a
sua participação diferenciada é motivo contínuo de desqualificação.
Outro caso emblemático no contexto é o de “P48G1”, do 3º ano. Polariza,
enquanto alvo, antipatias, críticas, provocações, e agressões físicas. Apresenta
queixas frequentes, especialmente dirigidas para uma familiar que integra uma
das equipes de trabalho na escola, o que contribui para que seja apontado como
um “queixinhas”: “[...] o P4, sempre que nós fazemos uma coisinha de nada, ele vai
logo dizer à (familiar )e vai “oh (familiar),eles fizeram-me isto”, está sempre a fazer
queixinhas e nunca diz o que é que ele faz… [...] é queixinhas, nunca diz o que é que
ele faz, mas diz o que é que os outros fazem e isso causa algumas confusões e al-
guns conflitos.” P29G2. “[...] ele vai sempre fazer queixinhas à (familiar), mesmo
quando não é nada, ele não conta o que faz, um dia, foi à sua (familiar), ele andava
a nos fazer coisas ali no ATL, depois… há um grupo de pessoas que lhe chamaram
nomes.... E depois a (familiar) dele foi à nossa sala reclamar conosco.” P39G2.
“[...] o “P4” hoje ia dizer a sua (familiar), mas foi porque eu puxei as calças, mas
nem por isso foi contar à... que ele me deu pontapés.” P19G2
É notória, na voz das crianças, a dificuldade no convívio com “P48G1”, e são
muitos os motivos para a sua discriminação, entendida pelos pares como uma rea-
ção aos comportamentos que apresenta. Ao se referir a quem as meninas não con-
fiam, “P29G2” indica “P48G1”, e observa que se trata de uma posição de turma:
“[...] na nossa sala é o “P48G1”, ninguém gosta de ajudá-lo.” P29G2. Nesta lógica
conta com o reforço de colegas: “[...] anda sempre a resmungar conosco, pensa que
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aqui na escola só ele é que existe porque tem a (familiar) cá e depois arma-se que
só ele é que…” P39G2. “Sim, mas ele anda muito, anda muito, como se costuma
dizer, saidinho da casca, mas… ele tem que mudar, ele tem que mudar...” P19G2.
Essa problemática nas interações de “P48G1” não está circunscrita aos pares
do género, ou a um grupo específico de sala de aula. Queixa-se de ser vítima de
violência física, de boatos, mentiras e de exclusão por meninos e meninas. Dois epi-
sódios nos quais teve a cadeira revestida de cola, pelos colegas, são rememorados
pelo grupo e reconhecidos pela vítima como atos de bullying. “Quando me puseram
duas vezes cola na cadeira. Estavam a ver se ficava com as calças estragadas...”
“P48G1”.
Há uma espécie de compromisso dos alunos de melhor desempenho, e da tur-
ma como um todo, para manter “P48G1” numa condição diferenciada – pela nega-
tiva –, para o que se apoiam nas suas especificidades de peso corporal, voz, padrão
de movimentos corporais, padrão de respostas aos pares, relação de dependência
parental explicitada no convívio com a familiar que trabalha na escola etc.
Constata-se também uma predisposição dos pares para atribuir valores ne-
gativos as suas intenções e ações o que, entre outros fatores, contribui para o seu
isolamento e potencializa as divergências:
[...] ele quer criar muita confusão que é para depois culpar os outros. Culpar os outros para
ficar de castigo, ele quer, o que ele quer é ser o único a ir para o recreio, que é isso que ele
quer, mas, por isso, é que ele cria confusão, mas depois nós, o 3º A, como nós dissemos e
criamos uma música também “3º A unido nunca mais será vencido”, por ninguém mesmo...
P19G2.
Habitualmente o grupo recorre à argumentação para reforçar a ideia de ser
“P48G1” o culpado pelos diversos problemas nas interações.
[…] o P48G1 sempre a tentar bater-nos. Hoje quando estava a fazer xixi, as minhas ne-
cessidades, digamos, ele veio a tentar bater-me, eu estava a fazer as minhas necessidades
hoje e ele começa a dar-me pontapés, começa a dar-me pontapés, muitos e eu fui chamar
uma funcionária P19G2.
Em relação a esse fato específico, e apesar da unidade inicial do grupo, mani-
festa-se uma voz dissonante, num ineditismo de participação facilitada no grupo fo-
cal, que confronta a versão apresentada e indica que a violência física de “P48G1”
terá sucedido uma agressão cometida por “P19G2”.
Também hoje aconteceu, que não digas só do “P48G1”, que estava na casa de banho e o
“P19G2” chegou à beira do “P48G1”..., pronto, puxou as calças e as cuecas aoP48G1”
e toda a gente viu, todos os que estavam lá dentro e estavam fora. P39G1.
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O exercício participativo das crianças nos grupos focais confronta a ideia de
entreajuda e inclusão, automatizada como espelho das interações na turma, e tor-
na possível pensar num cotidiano de invisibilidade da violência entre pares. “Des-
culpe interromper, mas elas também não deixam jogar o “P48G1” só porque ele é
gordo e isso não pode ser.” P39G1.
O peso corporal de “P48G1”, acima da média, determina uma participação
levemente diferenciada nos jogos e brincadeiras, nomeadamente nas atividades de
maior movimentação corporal. A essa condição física soma-se uma rotina sedentá-
ria e a superproteção de uma familiar que também compõe o quadro de profissio-
nais da escola. Contudo, apresenta um conjunto ampliado de habilidades corporais
e não lhe faltam condições físicas para participar de quaisquer atividades no âmbi-
to dos jogos e brincadeiras. Mesmo assim permanece solitário nos recreios, que de-
correm em tentativas vãs de aproximação, por vezes vividos num espaço separado,
que está sob a responsabilidade da sua familiar.
Percebe-se, num contexto que demanda condutas defensivas, o quão difícil
torna-se para “P48G1” uma atitude espontânea e não focada no impacto das suas
iniciativas. No grupo focal, quando emerge a lembrança dos episódios em que teve
a cadeira cheia de cola, ensaia uma posição nova, que não a de vítima habitual dos
pares, e comenta que os agressores não conseguiram provocar o dano pretendido.
Assinala, que caso o fizessem teriam que pagar-lhe calças novas. Dessa forma,
alerta para uma consequência da ação, e minimiza o alcance da agressão perpetra-
da contra si: “[...] não ficaram estragadas. Era daquela de stick.”
Uma lógica binária de organização da sala de aula, esvaziada da participação
das crianças e concretizada na definição unilateral do lugar onde cada uma deve
sentar é dada a conhecer nos grupos focais do 3º ano. Condiciona interações e papéis
sociais. “As mesas estão organizadas por grupos, os grupos que trabalham melhor e
os grupos que são mais atrasados.” “P48G1”. A categorização em dois grupos é tam
-
bém mencionada por “P29G2”, que identifica 10 crianças pertencentes ao grupo
das crianças com “mais dificuldade em aprender”. Situa “P48G1” nesse conjunto.
Essa lógica de organizar a sala, as leituras das crianças sobre o pertencimento a
um dos grupos, a demarcação entre “nós e eles” que se estabelece pela ideia de melhor
e de pior, bem como as referências de convívio que dissemina, são forças da socializa
-
ção institucionalizada e precisam ser interpretadas nas suas relações com o bullying.
Nas três turmas, foi observada a ação influente das crianças, na recusa a
um pacto de desqualificação, quando os alvos eram participantes ativos de jogos
e brincadeiras. O caso de “P5”, da pré-escola, revela como o fato de ter amigos e
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partilhar com eles uma interatividade lúdica é vital ao pertencimento – neutraliza
fragilidades e evita possível vitimização. Constitui um bom exemplo de inclusão
na cultura de pares apesar das dificuldades apontadas pela educadora. Conforme
excerto do diário de campo: [...] suas limitações motoras não representam impedi-
mentos, não hesita em apresentar-se para integrar a equipe de futebol e demais
atividades dos tempos livres, mostra-se confiante, diversifica interações e faz-se
ativo. Não há quaisquer indicativos de que seja vítima de bullying nas interações
com os pares. Essa participação plena nas situações informais é também reconhe-
cida pela educadora. “[...] até o meu “P5”, com as limitações que ele tem, interage
muito bem, é verdade. Então a brincar eles adoram-no, é, porque ele é muito bom
a brincar, apesar das dificuldades que tem…” (Educadora M).
Também não se aplicam as lógicas de exclusão social, comuns nessa cultura
escolar, às crianças do 1º e do 3º ano reconhecidas antes como participantes espe-
radas e valorizadas nas interações lúdicas, do que pelo seu não êxito, mesmo que
esse seja continuamente assinalado pelos adultos do contexto.
Entre as crianças diretamente envolvidas em atos de bullying observa-se uma
característica comum, que varia da dificuldade à incapacidade para participar
nos processos de jogo e de brincadeira, notadamente naquilo que diz respeito à
capacidade de envolvimento, enlevamento, convergência de intenções, de ações e
de comunicação com os pares. Esse arranjo de condições – a impossibilidade in-
trínseca para o protagonismo lúdico associada a iniciativas de bullying dirigido
aos pares –, é sugestivo de frágil capacidade empática. Nesse sentido conflitos de
interesse contaminam a cena lúdica e a condicionam.
Assim, em cada criança que pratica o bullying há um brincante incapacitado
para a brincadeira, que também é penalizado por não usufruir de um agir social
pacífico comum ao grupo. As vítimas, entretanto, produzem esforços incansáveis
com vistas à participação, à inclusão, aos laços e à pertença aos grupos de pares, no
que não obtém êxito. Nenhum desses protagonistas – agressores e vítimas – viven-
cia a condição de brincante em plenitude.
Discussão
Da presença diária das crianças na escola, durante cinco dias da semana, re-
petida ao longo de meses e anos não se faz uma plataforma de geração e organi-
zação de conhecimento com e sobre essas. Mantém-se o princípio da negatividade
(Sarmento, 2011), que não reconhece capacidades nas crianças, determinando-lhes
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interdições e prescrições. Preconceitos, estereótipos, solidão e mal-estar são facil-
mente disseminados na cultura escolar, e não se observa que desacomodem o olhar
docente. Indicativos da necessidade de um agir institucional que não exclua das
suas diretrizes os saberes das crianças, e a realidade produzida no contexto são um
apelo ao compromisso com um modelo socializador que não é o do presente.
Precisam ser conhecidas as implicações de uma geração que, sem hipótese de
contar com a mediação de adultos efetivamente dispostos a esse papel, silencia sis-
tematicamente pensamentos, emoções e decisões; converte as suas dúvidas, pres-
supostos e estereótipos sociais em ações não mediadas pelo diálogo multigeracional
e, que aos poucos, se especializa na arte de fazer crer ao adulto a observância de
normativas por ele determinadas, ao tempo em que não as confirma no convívio
nessa comunidade.
Se não há genuíno interesse na observação da cultura produzida pelas crianças
na escola, essas mostram uma atitude curiosa e interpretativa diante dos padrões
do agir adulto, a partir do que apresentam respostas adaptadas, como por exemplo,
nos “interrogatórios” que se seguem a sua participação em conflitos. Para minimi
-
zar ou evitar punições recorrem a estratagemas defensivos, tais como antecipar-se e
afirmar que “foi sem querer”, exitosos às finalidades, diante do tão previsível quanto
superficial roteiro de questionamentos, que em nada fomenta uma formação ética
e com essa a qualificação das interações. Há ainda os abraços impostos, acompa
-
nhados de contagem em sequência numérica, pelos demais pares. É inegável que
provocam efeitos positivos imediatos no humor das crianças, entretanto é ação de
tamponamento que ignora as suas capacidades reflexivas e propositivas.
Igualmente preocupante na forma escolar, é a sua propriedade de anular a
expressão do senso moral das crianças. Verificam-se nas três turmas, mecanismos
pouco favoráveis a uma participação social orientada pela verdade, se entendi-
da como uma percepção crítica não manipulada/manipuladora das vivências do
cotidiano. Esses sujeitos sociais crianças, tão dispostos quanto capazes de uma
intencionalidade ética, que os desobriga de versões ou alianças de conveniência,
ou se necessário os sustenta pacificamente em posições contrárias as dos amigos,
são balizadores que qualificam as interações e restabelecem algum equilíbrio a
relações tão assimétricas. Poderiam ser potencializados na sua ação influente, se
assim reconhecidos, para o que uma cultura dialógica seria necessária. Não há,
nos achados de investigação, qualquer registro que indique ciência ou valorização
desse papel social agregador, democrático e restaurativo, com o que perde força o
projeto de educação cidadã professado pela escola.
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Na medida em que a violência física é uma constante na escola, nota-se a insu-
ficiência dos meios adotados para evitá-la. Há clareza nas narrativas das crianças
quanto à ação dos amigos serem um importante fator protetivo e resolutivo, toda-
via aguardam por reconhecimento adulto a ação influente que as crianças exercem
entre si, bem como os sentimentos de pertença e reciprocidade como valores cen-
trais da cultura de pares. Não faltam, portanto, indicativos à geração dominante,
para a necessidade de abandonar o paradigma de legislar para e sobre a infância,
extraindo-lhe a diversidade e a complexidade.
Escutar as crianças; buscar interações sensíveis às suas múltiplas possibili-
dades de comunicar; valorizar a iniciativa autônoma como promotora do próprio
conhecimento; afirmar uma metodologia em que a rotina seja sinônimo de regu-
laridade nos fatos, nos espaços e no tempo como base do conhecimento de si e do
contexto (FALK, 2004) é uma decisão política, administrativa e pedagógica para
organizar um processo educativo de recusa à dominação e a transformação acelera-
da desses sujeitos sociais em escolares. Antes, trata-se de garantir uma estrutura
plena de oportunidades para que acionem suas capacidades de pensamento e de
linguagem.
A garantia, nos grupos focais, desse espaço ao pensamento autoral, livre para
produzir lógicas inéditas, permite conhecer as crianças concretas e as suas leituras
ostracizadas no/do contexto. É nesse agir reflexivo que se reconhecem num prota-
gonismo transgressor primeiramente atribuído aos pares do grupo étnico cigano,
e que se desapegam de versões convenientes, também convergentes com a lógica
adulta, de que a sala de aula em termos de convívio é um oásis de calmaria.
Os grupos focais mostram-se boas ferramentas para confrontar o discurso
costumeiro, e a polarização enraizada. São convites às crianças para a ousadia de
olhar, ver e pronunciar-se sem recorrer às máscaras sociais usadas no cotidiano,
ou ainda a partir de outras referências e papéis sociais. É neste sentido que inau-
gurando um diálogo autoral, uma ética própria, que não vincula a qualquer ventri-
loquismo, os pares interrogam o discurso de P19G2, não se deixam impressionar
pelo seu fluente aparato argumentativo, confrontando-o na sua corresponsabilida-
de e iniciativas recorrentes de agressão à P48G1. Em situação inédita às vivên-
cias do grupo, o estatuto social vigente na turma é alterado e, o fator desempenho
escolar é relativizado no seu poder de determinar o polo da razão/verdade e o da
sua antítese. Isto é possível porque vozes ganham liberdade, são descomprimidas
da violência das margens apertadas, que determinam a direção e o nível da vazão,
por conseguinte, o que fica retido. Cada grupo focal permite-se deixar de seguir à
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risca os discursos prontos e batidos que enchem de palavras mortas o mundo da
escola e o seu cotidiano.
Por instantes, a partir da intencionalidade reflexiva feita pelo grupo de pares,
P48G1, é reconhecido num outro lugar que não o da negatividade. Esse novo
lugar, até então situado em área utópica fortalece-o para apresentar uma voz des-
conhecida, porque costumeiramente recebida com resistências. O diálogo, que não
acirra animosidades, inaugura uma revisão histórica e não se furta à análise críti-
ca, na primeira pessoa, dos papéis sociais exercidos.
Essa disposição retrospectiva, a tocar o campo propositivo, descarta justificati-
vas estáveis e faz emergir conteúdos até então silenciados, determinantes à quali-
dade das interações entre pares. É assim, em narrativas corajosas, que preconceitos
e interesses são reconhecidos: não deixar jogar porque é gordo, aproximar-se para
obter o empréstimo da bola, estar junto no recreio para jogar no computador garan
-
tido pela familiar do colega... Também o é, numa condição de escuta incomum pelos
pares, a queixa de P48G1 à brutalidade dos colegas e os sentimentos decorrentes.
Considerações Finais
Em acordo à literatura sobre o bullying na infância, confirma-se o recurso às
formas verbal e física como as mais frequentes nas três turmas, entretanto, práticas
que visam a exclusão das vítimas dos grupos de pares, consideradas as mais comuns
entre adolescentes, também são recorrentes, com destaque no grupo do 3º ano.
Escolas que impõem uma norma de silenciamento diante do bullying concor-
rem para uma condição de duplo sofrimento das vítimas, na medida em que lhes
reduzem o poder de resposta frente ao assédio.
Em síntese, mesmo que ações agressivas não sejam toleradas pelo conjunto
de profissionais da escola, se identificadas, há que se observar, como regra, a não
valorização das crianças vitimizadas pelos pares quer por parte das professoras
quer da educadora quer das funcionárias.
É inadiável a decisão e a ousadia para reinventar-se como uma escola para to-
dos, portanto, como modelo que não teme o pensamento, a voz e a ação das crianças,
manifestadas em múltiplas linguagens, e em acordo a sua diversidade. Processos
socializadores que se estendem por até onze horas diárias, ao longo dos três anos de
educação de infância e dos quatro anos do 1º CEB são fundantes de subjetividades.
Podem concorrer para transformar a criança/sujeito em criança/objeto. Há que se
ter a certeza de haver consciência do que se produz, e o suficiente domínio dessa
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organização para modificá-la na medida dos indicadores vivos da socialização em
curso. Esse é também o caminho incontornável para desmistificar entendimentos
de bullying e olhar a problemática, tal qual ela se manifesta, por meio das lingua-
gens das crianças.
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O encontro intergeracional entre crianças e idosos como espaço de construção de
cidadania na infância
The intergenerational meeting between children and the elderly as a context of building
citizenship in childhood
El encuentro intergeneracional entre niños y ancianos como contexto de construcción de
ciudadanía en la infancia
Ivone Maria Mendes Silva
*
Simone Cristina Dalbello da Silva
**
Resumo
Este trabalho apresenta reexões sobre como a educação das novas gerações para a participação cidadã na vida
social pode ser fomentada por projetos promotores de encontros intergeracionais entre crianças e idosos. Como
aporte teórico do trabalho são encapadas contribuições de autores/as que abordam as interconexões entre
infância, cidadania e educação, como Hannah Arendt e Manuel Jacinto Sarmento. O desenho metodológico
do estudo incluiu a realização de pesquisa etnográca, com uso de observação participante e recolhimento de
narrativas produzidas por crianças e idosos ao longo de sua participação no projeto “Idosos Mestres da Vida,
desenvolvido em escolas públicas de Concórdia-SC. Foi possível observar que o projeto funcionou como um
espaço de coeducação, ao possibilitar a ampliação do horizonte de experiências e conhecimentos dos sujeitos
participantes. Conclui-se que o convite feito às crianças para que identicassem relações entre presente e pas-
sado histórico instigou-as a produzirem reexões sobre os processos que afetam a organização da vida social na
atualidade e em outros tempos, bem como seus sentidos e implicações. O fomento dessa capacidade de leitura
crítica da realidade representa um vetor fundamental para a constituição de sujeitos cidadãos plenos, capazes
de se responsabilizarem não apenas pela cidadania individual, mas também comunitária e social.
Palavras-chave: Infância. Velhice. Cidadania. Intergeracionalidade. Coeducação.
*
Doutora em Ciências (área: Psicologia) pela Universidade de São Paulo/USP. Professora adjunta na Universidade Fede-
ral da Fronteira Sul (UFFS), Campus Erechim/RS, Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-0058-091X. E-mail: ivone@
us.edu.br
**
Mestra em Ciências Humanas no PPG da UFFS/Erechim/RS. Assistente social do Núcleo de Apoio à Saúde da Famí-
lia (NASF) da Secretaria Municipal de Saúde de Concórdia/SC, Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9001-2969.
E-mail: simonecdalbello@gmail.com
Recebido em 15/10/2019 – Aprovado em 27/12/2019
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i2.11427
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O encontro intergeracional entre crianças e idosos como espaço de construção de cidadania na infância
Resumen
Este artículo presenta reexiones sobre cómo la educación de las nuevas generaciones para la participación
ciudadana en la vida social puede fomentarse mediante proyectos que promuevan encuentros intergenera-
cionales entre niños y ancianos. Como aporte teórico del trabajo están los aportes de autores que abordan las
interconexiones entre infancia, ciudadanía y educación, como Hannah Arendt y Manuel Jacinto Sarmento. El di-
seño metodológico del estudio se centra en la realización de investigaciones etnográcas, junto con el proyecto
intergeneracional Ancianos Maestros de la Vida, desarrollado en las escuelas públicas de Concordia/SC. Se pudo
observar que el proyecto funcionaba como un espacio de coeducación espacios de coeducación permitiendo
la expansión del horizonte de experiencias de niños y ancianos. Se descubrió que la práctica de hacer compa-
raciones y relaciones entre el presente y el pasado histórico ha brindado a los niños la posibilidad de producir
reexiones sobre los cambios sociales que han afectado la organización de la vida social en el presente y otros
tiempos, así como los sentidos y implicaciones de estos cambios, un proceso que representa un vector funda-
mental para la constitución de sujetos ciudadanos plenos, capaces de ser responsables no solo de la ciudadanía
individual, sino también comunitaria y social.
Palavras clave: Infancia. Vejez. Ciudadania. Intergeneracionalidad. Coeducación.
Abstract
This paper presents reections on how the education of new generations for citizen participation in social life
can be fostered by projects that promote intergenerational encounters between children and the elderly. As a
theoretical contribution of the work, contributions from authors addressing the interconnections between chil-
dhood, citizenship and education, such as Hannah Arendt and Manuel Sarmento. The methodological design
of the study focused on conducting ethnographic research, in the “Elderly Masters of Life” project, developed in
public schools in Concordia/SC, It was possible to observe that the project functioned as a co-education space,
enabling the expansion of the horizon of experiences of children and the elderly. It was found that the practice
of making comparisons and relationships between the present and the historical past gave children the oppor-
tunity to reect on societal changes that have aected the organization of social life in the present and other
times, as well as the senses and implications of these changes, a process that represents a fundamental vector
for the constitution of subjects full citizens, capable of being responsible not only for individual citizenship, but
also community and social.
Keywords: Childhood. Old age. Citizenship. Intergenerationality. Co-education.
Introdução
O presente trabalho apresenta reflexões sobre como a educação das novas ge-
rações para a participação cidadã na vida social pode ser fomentada por projetos
promotores de encontros intergeracionais entre crianças e idosos.
Consideramos que as práticas de coeducação construídas entre crianças e ido-
sos, os quais têm seus processos de subjetivação e socialização marcados por con-
textos históricos distintos, podem exercer um impacto profundo sobre a forma como
esses sujeitos se constroem como indivíduos e cidadãos. A coeducação de gerações,
como lembra Oliveira (1998), supõe que crianças e idosos, ao conviverem, possam
influenciar-se reciprocamente, alcançando aprendizagens múltiplas e se desenvol-
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vendo como pessoas por meio do intercâmbio de saberes, desde que as relações das
quais participem sejam de fato igualitárias e as diferenças respeitadas. Nesse sen-
tido, a coeducação de gerações tem sua importância afirmada como instrumento de
desconstrução de preconceitos e visões estereotipadas sobre infância(s) e velhice(s),
podendo ainda representar um caminho para a superação da indiferença ou intole-
rância em relação à alteridade.
O conceito de alteridade é aqui referido em sua estreita relação com o de ci-
dadania, tomando por base o pensamento de Hannah Arendt, que fundamentará
a discussão feita sobre a educação como dimensão estruturante da cidadania e o
papel dos adultos face às crianças nesse processo.
A concepção de infância da qual partimos baseia-se, principalmente, nos es-
critos de Manuel Jacinto Sarmento (2002, 2004, 2005), que defende a superação do
conceito de infância atrelado apenas a critérios etários e variáveis psicológicas e
biológicas. Ele propõe que concebamos a infância como uma “categoria social do tipo
geracional por meio da qual se revelam as possibilidades e os constrangimentos da
estrutura social” (SARMENTO, 2005, p. 363). Ou seja, ao estudarmos a infância
precisamos considerar o contexto social mais amplo com o qual se relacionam os
“itinerários individuais de cada criança
1
”, pois eles só “fazem sentido se perspec-
tivados à luz das condições estruturais que condicionam cada existência humana”
(SARMENTO, 2002, p. 268). O que nos leva, sob essa perspectiva, a ressaltar a
necessidade de considerar a infância no plural (infâncias), em função de não serem
uniformes ou homogêneos os processos vividos pelas crianças enquanto sujeitos
sociais. Adotamos também o plural ao nos referirmos à velhice, por admitirmos que
são diversas as formas pelas quais pode ser significada e vivida essa etapa do ciclo
da vida (MESSY, 1999).
Considerando as formas de participação social e de consolidação de práticas
cidadãs disponíveis às crianças na atualidade, o alcance de avanços nesse âmbito,
sejam eles promovidos pela ação do Estado na viabilização de políticas públicas
seja pela atuação da sociedade civil organizada, constitui necessidade social das
mais prementes, assim como o fortalecimento da interação comunitária, incluindo
as mais diversas gerações.
Outro grande desafio a ser enfrentado por nossa sociedade na atualidade é
a problematização e superação de visões estereotipadas e excludentes sobre in-
fância(s) e velhice(s), as quais acabam impondo delimitações participativas e res-
trições no exercício da cidadania plena pelas crianças e pelos idosos. Talvez, um
primeiro passo nessa direção seja, justamente, compreender tais visões como cons-
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truções sociais e não realidades fixas e acabadas, o que implica a possibilidade de
serem mudadas.
Diante desse cenário, o tema da intergeracionalidade, considerando-se espe-
cialmente suas relações com a infância e a educação, suscita debates de grande
relevância para o mundo acadêmico e para a sociedade mais ampla. Inserindo-nos
nesse âmbito de estudos, essencialmente multidisciplinar, produzimos a discus-
são apresentada ao longo do presente artigo, que foi desenvolvida com base nas
contribuições teórico-conceituais advindas dos autores supracitados e de outras
fontes teóricas, em articulação com a análise de narrativas produzidas por crianças
e idosos participantes do projeto “Idosos Mestres da Vida”, realizado em escolas
públicas da cidade de Concórdia/SC. Para tanto, foi utilizado o método etnográfico,
baseado na observação participante dos encontros ocorridos como parte do projeto
e a análise das narrativas construídas a partir da interação entre as crianças e os
idosos. O cerne da proposta consistiu na apresentação, pelos idosos, de suas memó-
rias autobiográficas e de conhecimentos acerca da história e cultura locais, seguida
da troca de ideias e experiências com as crianças.
Nas próximas seções, as discussões anteriormente anunciadas serão desen-
volvidas, com o artigo estruturando-se da seguinte maneira: a primeira seção
traz considerações teórico-conceituais sobre coeducação de gerações, cidadania e
infância. A segunda seção expõe o percurso metodológico da pesquisa, seguida da
apresentação e discussão dos resultados obtidos. Por fim, são formuladas algumas
considerações finais.
Coeducação de gerações, cidadania e infância: o lugar das relações
intergeracionais na educação das novas gerações
Ao longo da história, as sociedades frequentemente têm delimitado seus gru-
pos sociais por fronteiras de idade, mas é na Modernidade que esse processo ganha
contornos mais nítidos em função da padronização das etapas da vida, da infância
à velhice (DEBERT, 1998, 2010).
Em nossa sociedade atual, os diferentes grupos etários desenvolvem suas pró-
prias culturas em espaços socio-ocupacionais específicos e há, em geral, pouco con-
vívio viabilizador de práticas coeducativas com outras gerações, acentuando ainda
mais essa fragmentação cronológica. Somado a isso, assiste-se hoje a uma grande
valorização das tecnologias, as quais têm produzido grandes modificações nas rela-
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ções interpessoais. Não por acaso, a intergeracionalidade, e, mais especificamente,
a coeducação de gerações, tem sido, muitas vezes, significada como algo difícil de
ser alcançado no contexto contemporâneo, no qual idosos frequentam grupos de
idosos e crianças ocupam-se das escolas. Tais situações acabam por segmentar as
gerações e os próprios espaços socio-ocupacionais (SILVA; JUNQUEIRA, 2013),
com repercussões negativas em vários planos.
Não obstante, como sustenta Debert (2010, p. 51), podemos considerar que “as
etapas em que a vida se desdobra são relacionais e performáticas”, o que implica
que processos como a segmentação atualmente existente entre diferentes gerações
possam ser colocados em questão e ressignificados. Até porque o convívio entre as
diversas gerações e o processo de transmissão sociocultural por ele oportunizado
são imprescindíveis a qualquer sociedade, sendo inviável concebermos a constru-
ção de um futuro pelas novas gerações sem que essas possam valer-se do legado e
dos ensinamentos dos seus predecessores (BORGES; MAGALHÃES, 2011).
Assim, as relações intergeracionais estão diretamente implicadas na pos-
sibilidade de construção de processos educacionais que envolvam “todas as dimen-
sões do ser humano: o singulus, o civis e o socius” (CURY, 2002, p. 254). Da mesma
forma que “uma geração reúne alguns indivíduos, ela também produz distinções”
(BORGES; MAGALHÃES, 2011, p. 174). Então, a prática intergeracional pode ser
um “meio educacional” que estabelece um “processo de educação/aprendizagem bi-
direcional” (ANTUNES; MOREIRA, 2018, p. 22).
A educação é aqui reconhecida, portanto, como um caminho do qual cada in-
divíduo pode dispor como “chave de autoconstrução e de reconhecer-se como capaz
de opções”. E mais: como uma “oportunidade de crescimento cidadão” (CURY, 2002,
p. 260). Isso porque somente quando efetivamos a educação como um processo de
formação humana, processo para o qual as relações intergeracionais são fulcrais,
é que criamos condições para que as crianças venham a desenvolver habilidades
cognitivas e socioemocionais que, atreladas a uma capacidade de leitura crítica dos
contextos sociais e existenciais nos quais se inserem, ampliam suas possibilidades
de protagonizarem processos de participação social e até mesmo de transformação
da realidade, por intermédio de práticas cidadãs. Nesse sentido cabe reconhecer que
“a educação como direito e sua efetivação em práticas sociais se convertem em ins
-
trumentos de redução da desigualdade e das discriminações” (CURY, 2002, p. 261).
Nesse momento de nossa argumentação, a definição do que entendemos por
cidadania e a explicitação de suas articulações mais profundas com a educação
mostra-se fundamental. Com esse propósito em mente, recorremos às contribui-
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O encontro intergeracional entre crianças e idosos como espaço de construção de cidadania na infância
ções de Hannah Arendt, para quem a cidadania conjuga dois princípios centrais:
por um lado, o princípio de alteridade, assentado no direito a ter direitos; por outro,
nos projetos coletivos e na igualdade, facultada pelas leis que regem os interesses
comuns. A autora convida-nos, portanto, a pensar a cidadania como uma constru-
ção que pode ser alcançada pelos indivíduos a partir da convivência coletiva e do
pertencimento a uma comunidade política, na qual esses tenham seus direitos e li-
berdades fundamentais reconhecidos, assim como suas singularidades (ARENDT,
2010).
A expressão direito a ter direitos tem sido muito comentada como marca dis-
tintiva da definição dada pela autora ao conceito de cidadania. Essa discussão se
faz presente não apenas em sua obra A condição humana, citada anteriormente,
mas também em As origens do totalitarismo. Dessa obra, é conhecida a passagem
na qual Arendt anuncia que “o direito a ter direitos, ou o direito de cada indiví-
duo de pertencer à humanidade deveria ser garantido pela própria humanidade”
(ARENDT, 1989, p. 332). Na sequência de sua argumentação, entretanto, a autora
adverte que “nada nos assegura que isso seja possível”, uma vez que a cidadania,
como o próprio mundo de cultura na qual estamos imersos, é uma construção hu-
mana e, como tal, demanda a existência de certas condições para se tornar realida-
de. Tanto é que, na história recente, alguns sistemas totalitários (o Nazismo, por
exemplo) nos confrontaram com a impossibilidade de exercício da cidadania. Como
bem sintetiza Sawaia (1994), partindo das contribuições de Arendt:
Cidadania é consciência dos direitos iguais, mas esta consciência não se compõe apenas
do conhecimento da legislação e do acesso à justiça. Ela exige o sentir-se igual aos outros,
com os mesmos direitos iguais. Há uma necessidade subjetiva para suscitar a adesão, a
mobilização, tanto quanto condições para agir em defesa destes direitos (SAWAIA, 1994,
p. 152, grifos da autora).
E a formação dessa consciência, que tem como substrato principal a ética, re-
quer a mediação do outro, ou seja, a possibilidade de integrarmos uma comunidade
política que seja fonte de direitos e ao mesmo tempo nos eduque a praticar nossos
deveres. Uma comunidade que nos ensine que “o parâmetro ético da liberdade é
a alteridade, porque esta traz consigo valores como autonomia e responsabilidade
[...]”, dado que “o princípio fundamental da cidadania colocado pela modernidade
contemporânea é o direito de viver a própria vida, ser único e diferente dos demais,
enquanto igual a todos” (SAWAIA, 1994, p. 154-155).
A integração a comunidades plurais se efetiva, na vida cotidiana, via parti-
cipação em contextos diversos, como família, escola, partidos, grupos de amigos e
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pares, associações de bairro etc., a partir dos quais passamos, desde a infância, a
ter acesso ao “espaço público”, aprendendo a cultivar a responsabilidade pelo bem
comum ao fazer um uso consciente da própria liberdade. Ainda segundo Arendt
(2005), o exercício dessa responsabilidade para com o mundo (também referida
como amor pelo mundo) deve ser praticada pelos adultos e ensinada às crianças,
constituindo um princípio fundante da cidadania, como a própria educação o é.
A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos
a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável se não
fosse a renovação e a vinda dos novos e jovens. A educação é, também, onde decidimos se
amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a
seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender
alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as em vez disso com antecedência
para renovar um mundo comum (ARENDT, 2005, p. 247).
Educar as crianças implica, portanto, suscitar nelas o desejo de fazer parte
desse mundo e de cuidar dele para que continue existindo. Para além disso, seria
tornar-se responsável por “introduzi-las” nesse mundo, levando-as a compreender
as relações, instituições e leis que dele fazem parte, bem como outras formas de
legado deixadas pelas gerações anteriores. Trata-se, portanto, de assumir “[…]
na educação a responsabilidade, ao mesmo tempo pela vida e desenvolvimento da
criança e pela continuidade do mundo” (ARENDT, 2005, p. 235).
Apesar de Arendt (2005) destacar o papel dos pais humanos nesse processo,
podemos admitir a existência de diversos atores sociais que podem assumi-lo, se
imbuídos de uma intencionalidade educativa ancorada na responsabilidade pelo
mundo e pelas próprias crianças, incluindo aqueles que aqui destacamos: os idosos.
Cabe lembrar, como bem colocado por Oliveira (1998), que os idosos são aqueles
“nascidos em outro tempo”, fato que lhes confere a “condição de portadores do pas-
sado no presente e, graças ao burilar da memória” podem oportunizar às crianças
o acesso a uma “cultura banhada na história vivida” (OLIVEIRA, 1998, p. 262).
Mas, como pondera Arendt, as sociedades modernas ocidentais têm enfrentado
muitos desafios na concretização da educação das novas gerações se considerados
os princípios anteriormente aludidos. A seu ver, esse processo guarda relação com
a chamada “crise na educação”, instaurada a partir da segunda metade do século
XX em vários países e, mais amplamente, com a chamada crise da Modernidade,
que se alimenta das transformações culturais pelas quais passam as sociedades
ocidentais na atualidade
2
(ARENDT, 2005).
Concordamos com César e Duarte (2010) em sua interpretação do pensamento
arendtiano, quando afirmam que:
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O encontro intergeracional entre crianças e idosos como espaço de construção de cidadania na infância
O aspecto para o qual Arendt chama a atenção em sua reflexão sobre a crise da educação
contemporânea diz respeito ao fato de que as fronteiras entre adultos e crianças vêm se
tornando cada vez mais tênues, problema que, por sua vez, põe em destaque a falta de
responsabilidade e o despreparo dos adultos para introduzir os recém-chegados no mundo.
Afinal, como proceder criteriosamente nessa introdução educacional ao mundo quando a
velocidade das transformações desse mundo é de tal monta que ele permanece desconheci-
do e estranho mesmo para os adultos que nele habitam e que, portanto, deveriam conhecê-
-lo? (CESAR; DUARTE, 2010, p. 826).
Ao nos referirmos à educação das futuras gerações, devemos levar em conside-
ração também as mudanças que atingem a forma como a própria infância tem sido
compreendida e vivida desde o emergir da Modernidade. Os estudos precursores
de Philippe Ariès (1981)
3
sobre a infância como categoria social construída histori-
camente nos apontam que aquilo que se pensa, o que se espera e o que se pratica
em relação às crianças variou muito ao longo da história. A concepção atual de
uma infância dotada de particularidades, direitos, fragilidades e inocências nem
sempre existiu. O que era comum para as crianças de outros tempos pode hoje ser
considerado inadequado, ilegal e até desumano.
Partindo das considerações elaboradas por Áriès e outros autores que discu-
tem a construção social da infância, Manuel Jacinto Sarmento (2004) afirma que
várias mudanças ocorridas nas sociedades ocidentais ao longo dos últimos séculos
possibilitaram a produção de uma “infância global, no plano normativo” (SARMEN-
TO, 2004, p. 4). Dentre as mudanças destacadas pelo autor como propiciadoras
desse processo estão: o surgimento de instituições (escola) e de saberes (pediatria,
psicologia, pedagogia) voltados especificamente às crianças; a transformação dos
cuidados dispensados a elas no interior das famílias e a constituição de normas e de
prescrições indicando como deveriam ser tratadas. Entretanto, reconhece o mesmo
autor, tais processos não eliminam as “desigualdades inerentes à condição social,
ao gênero, à etnia, ao local de nascimento e ao subgrupo etário a que cada criança
pertence. Há várias infâncias dentro da infância global” (SARMENTO, 2004, p. 6).
Nesse sentido, cabe assinalar a existência, na realidade social, de várias infâncias,
ou seja, diferentes formas de se viver essa condição, a despeito do que apregoam os
discursos e práticas normatizadores.
Em outra de suas obras, Sarmento (2002) já alertava para o fato de que, mais
do que nunca, podemos falar de uma “crise social da infância”, reforçada principal-
mente pela exclusão social. Isso porque, contemporaneamente, é na infância que
se refletiriam as maiores repercussões das mazelas sociais, econômicas, étnicas e
de classes da nossa sociedade (SARMENTO, 2002, p. 267). Se, por um lado, há um
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reconhecimento de que a criança é um sujeito de direitos; por outro, é impossível
negar que vivenciamos fragilidades na consecução desses direitos, principalmente
em função do contexto macroestrutural ao qual estamos submetidos. Assim, esta-
belece-se um paradoxo: a infância vista como “depositária da imagem de paz” e, ao
mesmo tempo, carregando os “efeitos geracionais da exclusão social” (SARMENTO,
2002, p. 268-269). E esses efeitos incidem diretamente “na habilidade da criança
para participar” da vida em sociedade, pois além de repercutirem subjetivamente,
ainda afetam o desenvolvimento emocional, crítico e social (TOMÁS, 2013, p. 57).
Esse contexto macroestrutural acaba por dificultar processos de consolidação
da cidadania na infância. Ao pensarmos na criança como sujeito de direitos – ex-
pressão que ganha força, no Brasil, na década de 1980 e 1990, a partir de legisla-
ções específicas e políticas públicas – estamos pensando em um novo conceito de
infância. Ou seja, a criança passou a “ser considerada não só como objeto, mas tam-
bém como sujeito, ator e cidadão” (MONTEIRO; CASTRO, 2008, p, 280). Mas tal
concepção ainda não concedeu às crianças “uma condição plena de cidadão”, pois
disponibiliza-se acesso aos direitos sociais, principalmente o direito à educação,
mas ainda se restringe ao usufruto dos direitos de participação e do exercício dos
direitos políticos. Não obstante, a consolidação de práticas democráticas e cidadãs
na infância deve incluir, necessariamente, a participação das crianças (MONTEI-
RO; CASTRO, 2008). Assim, para a efetiva “expressão dos direitos das crianças”,
a “participação política e da vida democrática” são de extrema importância (SAR-
MENTO, 2002, p. 276). Em outras palavras, a participação é “um imperativo para
concretizar a criança como sujeitos de direitos” (TOMÁS, 2013, p. 51).
Um expoente dessa prerrogativa deve se fazer sentir, segundo a perspectiva
que sustentamos, na própria forma como as crianças são percebidas e incluídas nos
estudos que se propõem a analisar suas realidades de vida e/ou as percepções que
elas nutrem sobre essas realidades. Podemos compreender sua participação, nesse
contexto, por uma ótica que privilegie realizar pesquisa “com” crianças e não “so-
bre” elas (OHLWEILER; FISCHER, 2013), ao considerá-las atores sociais plenos,
capazes de produzir cultura, tendo em vista sua condição de sujeitos de direitos e
de desejos. Com base nessa perspectiva, que confere importância às opiniões e vi-
sões de mundo das crianças e concede espaço para que elas possam manifestá-las, é
que optamos por realizar uma pesquisa de cunho etnográfico com as crianças parti-
cipantes do projeto intergeracional aqui focalizado. Assunto para o qual voltaremos
nossa atenção na próxima seção.
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O encontro intergeracional entre crianças e idosos como espaço de construção de cidadania na infância
Percurso metodológico: cenário, atores e regras” da pesquisa
Esta pesquisa, de cunho qualitativo, foi realizada durante o período de ou-
tubro de 2017, em cidade de médio porte do oeste catarinense
4
. Os dados foram
obtidos por intermédio do método etnográfico, que acompanhou idosos e crianças
durante a execução de um projeto intergeracional.
A pesquisa etnográfica exige, por parte do pesquisador, um movimento de
olhar e de ouvir o outro, bem como a criação de um processo de interação com ou-
tros contextos socioculturais e, nesse caso, geracionais. Como Geertz (1989, p. 15),
entendemos que o que define a etnografia é a prática da “descrição densa” da rea-
lidade estudada e dos sujeitos nela implicados, a partir da imersão do/a pesquisa-
dor/a nessa realidade, aliada à própria interpretação da descrição.
Inspirando-nos nas contribuições de Magnani (2009) sobre a prática da etno-
grafia, adotamos os conceitos de “cenário”, “atores” e “regras”, por ele formulados.
Eles são aqui usados para fazermos referência às dimensões às quais estivemos
atentas durante o processo de pesquisa.
O cenário escolhido para a realização desta pesquisa de campo foram algu-
mas escolas da rede municipal de ensino de uma cidade de médio porte, situada no
oeste catarinense, por meio do projeto intitulado: “Idosos Mestres da Vida”, ideali-
zado pelo Conselho Municipal do Idoso da cidade de Concórdia/SC. Foram contem-
pladas seis escolas; entretanto, dessas, acompanhamos cinco. O Projeto Mestres da
Vida tem como objetivo o fortalecimento de vínculos entre as crianças e os idosos,
o compartilhamento de saberes, de modo a proporcionar às crianças a percepção
daquilo que era importante na época dos avós, incluindo as brincadeiras, o lazer,
o trabalho, as tradições, os costumes e as experiências que marcaram a vida dos
idosos. Conteúdos esses que foram apresentados às crianças por meio de histórias
e de narrativas, as quais ofereceram subsídios para debates sobre assuntos da
atualidade e reflexões acerca das mudanças que ocorreram ao longo dos anos.
O critério de inclusão das escolas para as apresentações do projeto foi a mani-
festação de anuência das próprias escolas, ou seja, o Conselho Municipal do Idoso
divulgou o projeto, e as escolas que demonstraram interesse e disponibilidade de
recebê-lo foram as responsáveis pelo agendamento da visita dos idosos.
Os atores são tanto os idosos que apresentaram suas histórias de vida quanto
as crianças que estudavam no terceiro ano do ensino fundamental e interagiam
com eles.
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A metodologia do projeto consistiu na apresentação de slides com fotos de tra-
dições, costumes, vestuário com os quais os idosos tiveram contato, apresentando
miniaturas de ferramentas e de objetos utilizados há 50 anos ou mais
5
. As apresen-
tações duravam, em média, uma hora e trinta minutos; e as narrativas produzidas
pelos idosos e pelas crianças foram desencadeadas pelo uso dessas fotos e minia-
turas.
A etnografia aconteceu durante o ano de 2017. Para sua realização, foram uti-
lizadas, como instrumentos de pesquisa, a observação participante dos encontros,
acompanhada da produção de diários de campo, com registros que contemplaram
as narrativas dos idosos e das crianças, bem como as percepções e impressões da
pesquisadora sobre o contexto de pesquisa. Também foram realizados relatórios
para registro de informações que se destacaram em cada encontro com os idosos,
os quais foram, em alguns casos, enriquecidos com dados oriundos de conversas
informais realizadas pela pesquisadora com os sujeitos de pesquisa.
Quanto aos cuidados éticos adotados durante a consecução da pesquisa, cabe
afirmar que os idosos assinaram termo de consentimento livre e esclarecido para
o uso de suas narrativas (gravadas e escritas) e de suas imagens. Além disso,
foi registrada, em ata, durante reunião plenária do Conselho Municipal do Idoso
de Concórdia, a autorização para a participação e acompanhamento do projeto
“Idosos Mestres da Vida” e uso dos resultados dos encontros intergeracionais. A
Secretaria de Educação do Município foi comunicada sobre a realização do projeto
e a utilização dos dados obtidos ao longo deste na pesquisa aqui descrita, tendo
concedido autorização para tanto. Também foi obtida autorização dos responsá
-
veis/pais das crianças para que ocorresse sua participação no projeto e na pesqui-
sa associada a esse.
Os nomes das escolas nas quais o projeto “Idosos Mestres da Vida” ocorreu
foram preservados, assim como a identidade das crianças, aqui designadas por no-
mes fictícios: Júlia, Júlio, Felipe, Helena, Larissa, Eduarda, Lara, Sophia, Miguel,
Amanda, Romeu, Juliana, João, Pedro, Ana, André, Igor, Leonardo, Sophia, Cíntia,
Clarice, Luana, Cristina, Gabriel, Alexandre, Alice, Aline, Luiz, Artur, Joaquim,
Rosa
6.
. Os nomes dos idosos também não são revelados, sendo referidos na pesquisa
por meio dos nomes fictícios sr. Apolo e sr. Aquiles
7
. As escolas acompanhadas et-
nograficamente, serão numeradas como cenário 1, 2, 3, 4 e 5, sendo aqui descritas
aquelas que foram acompanhadas durante a execução do projeto. Além disso, op-
tamos por não expor as fotos mencionadas na seção Resultados da pesquisa, como
forma de preservar a identidade dos participantes.
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O encontro intergeracional entre crianças e idosos como espaço de construção de cidadania na infância
Para a análise dos dados obtidos por intermédio da etnografia, utilizamos
princípios da análise de conteúdo segundo o método proposto por Laurence Bardin
(2016). Então, estruturamos a análise de acordo com as escolas visitadas. Poste-
riormente realizamos a descrição das narrativas e, na sequência, a produção das
inferências, buscando relacionar nossas interpretações com as discussões já exis-
tentes na literatura científica sobre o tema.
Resultados da pesquisa
Apresentaremos, a seguir, os relatos do diário de campo produzido durante a
etnografia. Nesse momento, selecionamos as narrativas das crianças e idosos que
mais se destacaram ao longo das interações ocorridas entre eles no contexto do
projeto intergeracional.
Cenário 1
A turma do terceiro ano do ensino fundamental dessa escola era composta por
treze alunos. A turma era bem empolgada, agitada e participativa. Assim, demos
início à apresentação das fotos pelos idosos. No decorrer do processo, mostramos
uma foto que continha rolos de fumo. O fumo fazia parte da economia da região
do Alto Uruguai Catarinense. Sr. Aquiles e sr. Apolo perguntam: “O que é isso?”,
as respostas das crianças foram: “Churrasco”; “Carne”, “Lenha”. Quando os idosos
contaram que eram rolos de fumo, as expressões foram de espanto: “Nossa!”. Júlia
então afirma: “Hoje as pessoas vendem plantas de maconha” (risos da turma). Os
idosos abordam os riscos de fumar e usar drogas, Júlia então comenta: “Eu tenho
religião, não vou fumar”.
No decorrer da conversa que se travou, os idosos foram relatando suas ex-
periências com riqueza de detalhes. Então, perguntam: “Alguém já viu rolo de
fumo?”, respostas: “Não”, “Eu só vi maconha”. Sr. Aquiles e sr. Apolo, espantados,
perguntam quase que simultaneamente: “Vocês conhecem maconha?” a resposta
das crianças foi unânime: “Sim”. Júlio, empolgado pelo diálogo que se construía,
comenta: “Meu primo anda sempre com maconha na mochila”. Felipe, assustado
com o comentário do amigo, lança uma cotovelada de leve em Júlio e adverte-o:
Não conta isso” (mais risos na sala).
Mostramos a foto de uma plantação de trigo, pertencente ao acervo da família
do sr. Apolo. Os comentários das crianças foram: “Era muito trigo”; “Eu conheço
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trigo”. Júlia, muito participativa, pergunta espantada: “As crianças trabalhavam
também?”. Sr. Apolo aponta para a foto e fala: “Sim, as crianças ajudavam nas
tarefas e esse sou eu”. As crianças perguntam quase que ao mesmo tempo: “Sério?”.
Algumas crianças comentam: “Que legal”. Sr. Apolo conta que a mãe estava grá-
vida nessa época em que a foto foi registrada, que o pai dele dizia que a cegonha
iria trazer o bebê. Helena então pergunta: “O que é cegonha?”. Larissa comenta:
Minha mãe fala dessa tal de cegonha”, após o comentário indaga: “Você veio então
da cegonha?”.
Percebemos como as crianças estão atentas ao que acontece ao seu redor. Mis-
turam, muitas vezes, a realidade com a fantasia. Ao mesmo tempo que brincam e
demonstram certa ingenuidade diante de alguns tópicos da conversação, produzem
reflexões e questionamentos face a outros. Sabem participar de um debate sobre o
uso de drogas enquanto acreditam na cegonha.
Ao final da apresentação confeccionamos um brinquedo de botão com as crian-
ças. Os idosos se misturam em meio às crianças e as ensinam a brincar, enquanto
essas ficam fascinadas com o brinquedo, principalmente pelo fato de poderem criá-
-lo. Os comentários foram os mais diversos: “Eu tenho esse brinquedo em casa, mas
é de LED”, “Já estou craque nisso”, “É como um Spinner”.
Na atualidade, vivemos um enraizamento na cultura da tecnologia e do consu-
mismo que nos permite comprar tudo pronto. Construir o próprio brinquedo gerou
uma satisfação tão grande nas crianças que os idosos não conseguiram mais obter
suas atenções para abordar a temática da violência que, no planejamento inicial,
compunha a pauta da apresentação.
Cenário 2
A turma era composta de vinte alunos, turma bem quieta e atenta, talvez por-
que antes dos idosos iniciarem as falas com as crianças, o diretor da escola deu ins-
truções sobre como deveria ser o comportamento das crianças, durante aquilo que
ele denominou de “palestra”. Após essa conversa prévia com o diretor, as crianças
demoraram para criar vínculos e interagirem com os idosos, custando a participar
da conversa. Não teceram muitos comentários, mas demonstraram estar atentas à
apresentação e aos relatos dos idosos.
Mostramos a foto de dois objetos utilizados para cavalgar: o selim e a sela. Os
idosos perguntam: “conhecem?”. As crianças respondem, unanimemente: “sim”. Os
idosos explicam que o selim é uma antiga sela de cavalos para mulheres, pois elas
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O encontro intergeracional entre crianças e idosos como espaço de construção de cidadania na infância
não podiam se sentar com as pernas abertas. Assim, nos casamentos que eram
realizados a cavalo, a noiva sentava de lado utilizando o selim, enquanto a sela era
utilizada pelo homem. Os idosos discutem junto com a professora a questão de que,
na época em que se usava o selim e a sela, a mulher não podia se comportar como
o homem. Havia restrições e convenções sociais a serem seguidas que implicavam
em limitações no que se refere ao exercício de direitos, à presença em determinados
espaços e ocupações.
Conforme o vínculo foi se estreitando as crianças começaram a interagir. Na
foto da família na colheita do trigo, sr. Apolo, que pertence a essa família mostra
como eles “batiam” os trigos. Antes de existirem as trilhadeiras para descascar o
trigo, eles o descascavam com um utensílio chamado de Manguá. Sr. Apolo então
mostra a miniatura do manguá. As crianças perguntam se esse instrumento servia
para brigar. Os idosos explicam que não e fazem os movimentos para mostrar como
era feita a utilização do objeto.
As crianças demonstram curiosidade para saber o que os idosos ganhavam de
presente na época em que eram crianças. Os idosos relatam que ganhavam presen-
tes como enxadas e sapatos de borracha. Sr. Apolo lembra, então, de mostrar como
eram feitas as lanternas para iluminar as casas, que eles chamam de Chiaretto. Os
idosos contam que a utilizavam para iluminar o ambiente para fazer as tarefas da
escola. As crianças comentam: “Nossa!”, “Como fazia luz?”. Sr. Aquiles explica que
eles usavam querosene para fazê-la funcionar. Eduarda muda de assunto e pergun-
ta: “Vocês comiam o que?”. Os idosos explicam que arroz, feijão, mandioca, polenta
e carne, sendo essa dividida entre toda a família. Os pedaços mais nobres eram
destinados aos mais velhos e os demais pedaços, divididos entre os mais jovens.
Durante a conversa, percebemos que a noção de tempo para as crianças é dife-
rente da noção de tempo para os adultos. Tudo no mundo infantil é muito intenso.
Na foto em que aparecem duas meninas, sr. Apolo para, olha para a foto, suspira
e aponta para uma das meninas e exclama: “Essa é minha esposa”. Eduarda per-
gunta: “Quantos anos ela tem?”, sr. Apolo responde :“71 anos” e Eduarda então
exclama: “Nossa!”, Lara ainda complementa: “é muito tempo, né?”.
A noção de transformação e de modificação das paisagens urbanas também
causa espanto nas crianças, pois apresenta-se para elas uma realidade que não
reconhecem e cuja transformação não acompanharam, apenas conheceram tal qual
se apresenta na contemporaneidade. Na exposição da foto de uma Romaria, deno-
minada Filha de Maria, que acontecia na praça, no centro da cidade de Concórdia/
SC, as crianças demonstram seu espanto: “Nossa!”, “Como nossa praça era dife-
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rente”. Sophia, com muita dúvida, não reconhece a paisagem e indaga: “É a nossa
praça?”.
Os idosos falaram dos castigos aplicados na época em que estudavam e os alu-
nos começam a compartilhar experiências que os pais dividiram com eles. Miguel
conta: “O meu pai falava que quando não obedecia na aula ele não podia voltar
para escola durante uma semana e ainda apanhava em casa”. Sr. Apolo contou
uma história de sua infância: sua mãe havia feito um calção para ele ir jogar bola
utilizando o saco de farinha como tecido e, ao utilizá-lo, todas as crianças com quem
costuma brincar riram dele. Intrigado, ele foi verificar o motivo e descobriu que
todos riam porque atrás do calção estava escrito: “cinquenta quilos de farinha”. Ao
escutarem esse relato, as crianças participantes do projeto riem.
Como a cena descrita ilustra, os idosos faziam de tudo para serem atrativos
para as crianças em suas interações para com elas. Deixaram claro que para eles
era importante cativar a atenção e cumplicidade das crianças nesse momento de
diálogo e troca de experiências. Além disso, demonstraram sentir orgulho de suas
trajetórias, da idade que alcançaram e de terem construído uma história permeada
por muito trabalho, dificuldade e luta.
Sr. Aquiles conversa com as crianças sobre violência e respeito para com os
idosos, pede para as crianças visitarem seus avós, conversarem com eles, ouvirem
suas histórias e não desapontarem seus familiares: “vocês são um pedaço deles”.
Amanda, que até então estava quieta, interage: “Todo dia eu vou na minha avó”.
Romeu conta-nos: “Meu avô levou uma garrafada na cabeça por causa de uma
aposta de baralho e ficou cego”. A visão de violência demonstrada pelos idosos, em
suas falas, remete ao plano simbólico, quando passam a mensagem às crianças de
que o desrespeito e a não valorização daqueles que amamos (expressas na falta de
cuidado, atenção e diálogo) podem representar uma violência para com o outro. As
crianças escutam e sentem liberdade para relatar outras formas de violência com
as quais também têm contato, entre elas a violência física. O diálogo se instaura.
Cenário 3
Nessa escola, foram reunidas três turmas: a do terceiro ano, quarto ano e
quinto ano do ensino fundamental. As crianças, por meio de suas falas, expres-
saram certo conhecimento sobre a trajetória histórica da cidade e de sua própria
genealogia, como demonstram os excertos de narrativas reproduzidos a seguir:
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O encontro intergeracional entre crianças e idosos como espaço de construção de cidadania na infância
Minha avó veio da Suécia e teve 10 filhos”, diz Juliana toda orgulhosa.
“Na época tinha a serra com dois lados, cada um pegava de um lado para serrar”, comenta
João, muito seguro de si, quando os idosos explicam sobre as primeiras serrarias.
Na frente da praça, no museu, tem uma”, conta Pedro, quando um dos idosos mostra a foto
de uma Bruaca.
No programa do Chaves tem uma máquina de foto dessa”, observa Ana sobre a câmera
fotográfica de alguns anos atrás.
Meu tio faz isso ainda”, relata André sobre o uso do Mangual para descascar os grãos.
Tem o pilão também”, comenta Igor, quando os idosos mostram um Monjolo.
Eu vi isso, só que era maior”, diz Leonardo sobre o uso no Monjolo para moer grãos.
Minha bisavó tem um ferro de passar roupa igual a esse”, compartilha Shopia, apontando para
a foto projetada, que continha um paneleiro. No topo do paneleiro, havia um ferro de passar
roupa, daqueles que necessitavam ser aquecidos no fogão.
Eu tenho uma dessas para ir na catequese”, explica Cíntia, em resposta à exposição feita
pelos idosos de uma mochila que utilizavam para ir à escola na infância.
Quando a minha mãe não fazia o tema a professora dava uma reguada na mão dela”, afirma
contundentemente Clarice ao compartilhar a experiência de sua mãe, quando conversamos
sobre os costumes escolares vividos pelos idosos.
Todos esses exemplos demonstram o grande interesse por parte das crianças
em relação aos detalhes das fotos e à discussão dos temas propostos pelos idosos.
Esses, por sua vez, apresentaram grande habilidade para escutar as crianças e
dialogar com elas, ao mesmo tempo em que lidavam com suas próprias memórias
e sentimentos face ao passado, que os levaram, em alguns momentos, a tecer com-
parações saudosistas contemplando a realidade à qual tiveram acesso em suas
juventudes e a realidade atual. Revelaram que o tempo histórico que marcou a
forma como foram educados e algumas das tradições e visões de mundo que assi-
milaram é por eles reconhecido e valorizado até os dias de hoje, conforme expresso
nas situações narradas a seguir:
Sr. Apolo comentando com as crianças sobre as serrarias da época expressa:
Levava meio dia para cortar uma árvore”. Sr. Aquiles complementa: “Hoje em dia
para qualquer pedacinho de lenha eles já utilizam a motosserra”.
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Sr. Apolo mostra uma tramela e a chave que utilizavam. A tramela correspon-
de à fechadura utilizada nas portas de suas primeiras casas e a chave consistia em
um pedaço de ferro. Luana, espantada, comenta: “Se alguém tivesse um ferrinho
como esse podia abrir a porta?”. Sr. Aquiles explica que “naquela época” ninguém
pensava nisso e havia muito respeito com a propriedade alheia.
Os idosos contaram como era o namoro em suas juventudes, contextualizando
a importância do casamento e de ter filhos. sr. Aquiles fala sobre se preparar para
o casamento, conhecer bem o cônjuge, pois na época deles o casamento era para
sempre. Laís comenta: “Meus avós disseram que os pais escolhiam o marido e a
mulher para os filhos”. sr. Aquiles comenta algumas diferenças com a atualidade,
em que é cada vez mais comum os casais optarem por não terem filhos, sendo que
os significados atribuídos ao namoro e ao casamento também mudaram.
Ao mostrar a foto de primeira comunhão, sr. Apolo fala a data que o evento
aconteceu, afinal a foto se se refere a sua primeira comunhão: “Foi dia dois de feve-
reiro, há sessenta e três anos atrás, eu tinha sete anos na época”. Gabriel pergunta:
Eram teus colegas esses na foto?”. E o idoso responde: “Sim, eram todos meus
colegas”.
Por várias vezes os idosos mostravam a foto e conversavam sobre ela, ficando
por segundos olhando para a mesma, antes de prosseguirem para o próximo slide,
num momento em que se permitiam reviver o passado ali registrado pela foto. E
as crianças, em geral, também se entregavam, por algum tempo, à contemplação,
num ritmo pautado pela interação com os idosos, como durante as conversações.
Ao término do encontro, sr. Aquiles afirma. “Vocês são um pedacinho dos avós
de vocês, pioneiros de Concórdia”.
Ao final, todos batem palmas e uma menina abraça carinhosamente um dos
idosos, num gesto vívido de afeto e gratidão, como se eles fossem de sua própria
família. Muitas crianças se sentiram familiarizadas com os idosos e com suas histó-
rias, principalmente por remeterem a seus avós e muitas tradições que marcaram
seus antepassados e ainda são presentes em muitas famílias.
Cenário 4
A turma nessa escola era composta por vinte e quatro alunos. Alguns fatos
nos chamaram a atenção durante a interação dos idosos com as crianças nesse dia.
Uma delas foi a capacidade de recordação dos idosos. Sr. Apolo, ao apresentar a foto
de uma serraria, fala o nome completo de todos os homens presentes na foto, como
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O encontro intergeracional entre crianças e idosos como espaço de construção de cidadania na infância
se esse fosse um fato ocorrido no dia anterior. Lembra-se dos detalhes quase como
se ainda fizessem parte de sua realidade atual.
Seguindo as falas, sr. Apolo aponta para a foto de sua primeira comunhão e
indica: “Esse sou eu”. As crianças tecem muitos comentários: “Que fofo”; “Difícil sa-
ber”; “Novinho”; “Tu ainda se lembra dos teus colegas?”. “Sim”, responde sr. Apolo.
Os idosos mostram a mochila que utilizavam para levar seus materiais esco-
lares e a professora da turma diz com muito entusiasmo: “Minha primeira mochila
foi assim”. Um dos idosos coloca a mochila em um dos meninos e as outras crianças
riem. Alexandre, então, percebe um detalhe e diz: “Não dava para colocar o celular
aí dentro”. O fato da mochila não ter espaço para guardar o celular, objeto mui-
to familiar para as crianças, causa espanto nelas. Esse comentário mostra como
as crianças estavam presentes e abertas à interação, fazendo conexões entre as
situações relatadas pelos idosos e a realidade atual vivida e observada por elas.
Em outras palavras, estavam construindo seus próprios aprendizados a partir do
diálogo com os idosos e da mediação das histórias contadas por eles.
Sr. Apolo chama a atenção da foto que está exposta no slide, dessa vez mos-
trando o corte de cabelo do menininho da foto e explicando que os pais cortavam os
cabelos das crianças em casa, pois não havia cabeleireiro ou barbeiro. Alice, então
comenta: “A minha mãe corta o meu cabelo”. Aline retruca: “Claro, ela é cabeleirei-
ra” (risos na sala). Luiz comenta: “Minha mãe cortou minha orelha uma vez”. Sr.
Aquiles conta que para combater a pediculose, seus pais utilizavam veneno. As
crianças falam espantadas: “Meu Deus” e Alice complementa: “Minha mãe passa o
pente”. Nesse momento houve uma grande interação das crianças com os idosos, no
qual aquelas comentam as experiências narradas por esses e as compararam com
sua realidade.
Cenário 5
A turma era composta por dezenove alunos. Ao chegar na sala, arrumamos
os materiais. A turma foi chegando aos poucos e os alunos foram se acomodando.
Questionamos: “vocês sabem o que estamos fazendo aqui?”. Algumas crianças res-
pondem que sim, e então a proposta do projeto é apresentada. Nisso, Artur olha
para os idosos e diz muito feliz, com um brilho no olhar conta: “Deixa eu contar para
vocês do presente que o meu vô fez para mim. Ele demorou um ano para fazer esse
presente: um carrinho de rolimã! Mas não é qualquer carrinho de rolimã, ele tem
uma direção especial e freio!”.
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No embalo, Joaquim conta: “Meu avô tem várias coisas antigas até uns rádios”.
Antônio também comenta: “Eu não sou de comprar brinquedos, eu gosto de fazer
meus brinquedos”. Antes mesmo dos idosos iniciarem suas narrativas, as crianças
já estavam interagindo e compartilhando suas experiências.
Quando foi exposta a foto do churrasco realizado com espetos de madeira
em comemoração a um aniversário de casamento, as crianças tecem os seguintes
comentários: “Nossa Senhora”; “Eu já vi churrasco assim”; Luiz ressalta: “Anti-
gamente a carne era bem mais barata”. Sr. Aquiles explica que ele e sua família
criavam os animais e depois abatiam para comer e diz que a carne era bem mais
saudável, pois os animais pastavam e não eram alimentados com rações. Luiz re-
tribui: “Acredito mesmo”.
Uma conversa de iguais se estabeleceu naquele encontro, com as crianças tra-
zendo os assuntos para a sua realidade, inclusive discutindo o preço da carne ou
a questão da crise da economia, que nos exige uma tarefa de economizar em todos
os aspectos. Como quando os idosos mostram a miniatura do Chiaretto, que era a
lâmpada da época e precisava de querosene para funcionar. “Hoje a gente tem que
economizar luz vocês tinham que economizar querosene”, reflete Luiz.
A conversa estava tão fluída que os idosos contam detalhes do cotidiano das
suas vidas de criança, como o fato de que as fraldas que utilizavam eram feitas de
tecido, assim como os bicos (chupetas). As mães colocavam açúcar no pano para
as crianças chuparem e se acalmarem. A professora comenta que as famílias que
adquiriam açúcar eram consideradas ricas na época: “Só tinha açúcar quem criava
porco e conseguia trocar por açúcar!”.
Então, os idosos mostram a foto de uma família com doze filhos. Sr. Aquiles
chama a atenção para as roupas, todas com a mesma estampa de tecido, pois os
tecidos eram comprados em rolos nos armazéns e completa: “Para poder casar as
mulheres tinham que saber costurar e cozinhar”. Rosa, menina bem ativa, levanta
o dedo e pede autorização para falar, cruza os braços e declama: “E o homem ti-
nha que saber fazer o que? Já que a mulher tinha que saber costurar e cozinhar?”.
Sr. Aquiles explica que o homem tinha que ser trabalhador, saber trabalhar. As
crianças todas levantam a mão para fazer perguntas, mas a professora intervém
dizendo não há tempo para perguntas e pede para deixar os idosos prosseguirem
com as apresentações.
Em todos os outros encontros com as crianças, a foto da família com vários
filhos não gerou um debate feminista; nas outras escolas a foto gerou certo burburi-
nho entre as crianças e uma curiosidade de saber o motivo dos casais terem muitos
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O encontro intergeracional entre crianças e idosos como espaço de construção de cidadania na infância
filhos, já que a realidade atual não diz respeito a famílias muitos extensas. Mas,
essa menina, ao tecer esse comentário, surpreendeu até a professora, questionando
a preparação das mulheres para o casamento em detrimento da preparação dos
homens. Infelizmente, o debate em torno dessas questões não foi fomentado, como
é possível depreender ao considerar a intervenção feita pela professora.
Discussão
Simone de Beauvoir (1990) explica que, em muitas sociedades, as crianças e
os idosos, devido à sua incapacidade prática e liberados de certas pressões sociais,
distanciam-se da seriedade dos adultos e brincam juntos, mantendo, assim, uma
estreita relação. Isso, todavia, não tem sido algo comum de se observar como parte
da realidade cotidiana da população em geral, nas sociedades modernas ocidentais.
E os motivos são diversos, conforme analisamos inicialmente neste artigo.
Não obstante, quando crianças e idosos têm a oportunidade de resgatar e
compartilhar histórias, dialogando a partir delas, possibilidades desconhecidas até
então lhes são apresentadas. Os sujeitos participantes da presente pesquisa, por
exemplo, entregaram-se a um movimento de reconhecimento reflexivo de suas rea-
lidades presentes a partir do resgate e da confrontação com o passado, permitindo
a discussão de ideias, visões de mundo, práticas naturalizadas e processos sociais.
Foi possível notar que, nas interações estabelecidas entre as crianças e os
idosos que participaram da pesquisa, a dominação de certos códigos culturais pelos
idosos, e desconhecidos pelas crianças em função de pertencerem a uma geração
distinta daqueles, não impediu que os processos comunicativos entre eles ocorres-
sem de forma fluída. Um fator que pareceu pesar a esse favor foi o interesse mú-
tuo no estabelecimento das interações, com disposição demonstrada pelas crianças
para compartilhar opiniões e buscar esclarecimento através de perguntas, assim
como o investimento feito pelos idosos na construção de um diálogo acolhedor das
dúvidas e comentários das crianças.
Outro aspecto a ser comentado refere-se ao fato de que os idosos são oriundos
de comunidades rurais que tem como principal fonte econômica o trabalho na agri-
cultura e, das escolas que acompanhamos, apenas uma localizava-se no meio rural.
Ainda assim, foi possível notar que as crianças demonstraram certa familiaridade
com as histórias contadas pelo sr. Aquiles e sr. Apolo e em relação a algumas das
expressões por eles referidas em suas narrativas, até em função do convívio com
os próprios avós, oriundos, em sua maioria, de comunidades rurais. Com isso que-
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remos afirmar que as influências geracionais também se fazem sentir nas relações
familiares. Há que se considerar ainda o fato de compartilharem com os idosos
a mesma inserção socioeconômica e regional, sendo todos eles (crianças e idosos)
oriundos das camadas populares e moradores da cidade de Concórdia/SC.
Cabe ainda, na contemplação dessa questão, lembrarmos o alerta feito por
Sarmento (2005, p. 364) sobre o emprego do conceito de geração como “categoria so-
cial estruturante da infância” nas pesquisas sociológicas atuais, as quais não o to-
mam de modo isolado, mas sim buscando atentar para suas possíveis articulações
com outros marcadores sociais, como as diferenças e desigualdades de classe, etnia/
raça, gênero etc. Nas palavras de Sarmento, esse cuidado no emprego do conceito
é importante para que os/as pesquisadores/as não percam de vista os possíveis
efeitos que esses marcadores, de forma isolada ou conjugada, podem exercer sobre
os processos de estratificação social e sobre a construção dos indivíduos enquanto
sujeitos sociais (SARMENTO, 2005).
Para além do fato de compartilharem certas características relacionadas à
sua posição social, as crianças e os idosos que participaram do projeto tiveram
suas interações, nesse contexto, marcadas pelo respeito mútuo. Tais interações,
segundo nos parece, foram propiciadoras da formação de uma espécie de “corrente
identificatória” (GOLDFARB; LOPES, 2018, p. 2188), percebida mediante análise
das narrativas que demonstraram uma preocupação dos idosos com o porvir das
crianças, com demonstração, inclusive, de certa carga afetiva. As crianças, por seu
turno, corresponderam com perguntas sobre os idosos e suas famílias, buscando
descobrir como estes haviam vivido suas infâncias e como eram quando crianças.
Sinais de solidariedade e empatia foram emitidos várias vezes nas narrativas pro-
duzidas pelas crianças, nos cinco cenários analisados.
As formulações de Hannah Arendt (2005) sobre a relação entre educação e
cidadania são pertinentes para analisarmos mais a fundo esse processo de cons-
trução de laços identificatórios entre as crianças e os idosos, em especial as ideias
que a autora defende acerca do exercício da responsabilidade para com o mundo,
a ser praticada pelos adultos e ensinada às crianças. Uma responsabilidade que,
quando assumida de fato, se converte em atos que garantam que as futuras gera-
ções recebam o legado cultivado por seus antecessores e queiram dar continuidade
à (re)construção desse mundo e sua cultura, instituições, práticas etc. Esses dois
idosos, sr. Aquiles e sr. Apolo, certamente demonstraram que o exercício dessa
responsabilidade é possível e fecundo. E isso ocorreu não apenas ao se colocarem no
papel de educadores dessas crianças – educadores no sentido lato do termo, ou seja,
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O encontro intergeracional entre crianças e idosos como espaço de construção de cidadania na infância
como aqueles que se propõem a ensinar, compartilhando saberes e experiências –,
mas também por se dedicarem a fazê-lo de um modo democrático e inclusivo. O que
pode ser observado nas cenas que ilustram as interações estabelecidas entre esses
sujeitos, pontuadas, em geral, pela participação ativa das crianças na construção
dos diálogos, com reconhecimento tácito, por parte dos idosos, de sua condição de
produtoras de conhecimento.
Ao mesmo tempo que compartilharam suas narrativas com as crianças, trans-
mitindo cultura e o valor de suas experiências pessoais, os idosos abriram espaço
para que as crianças se comportassem como autoras de perguntas, comentários,
divagações, reflexões e análises. E, por essa via, revelam explicitamente como a
educação pode se constituir um princípio fundante da cidadania. Isso fica patente
quando, na descrição do Cenário 5 por exemplo, nos deparamos com a análise da
situação econômica do país feita por Luiz, que pondera sobre as implicações das
restrições materiais vividas por sua família e também pelos idosos (“Hoje a gente
tem que economizar luz vocês tinham que economizar querosene”). Vimos também
a provocação feminista lançada por Rosa (“E o homem tinha que saber fazer o que?
Já que a mulher tinha que saber costurar e cozinhar?”). Essas crianças estão pen-
sando por si mesmas sobre o mundo e as variáveis sociais e econômicas que ditam
possibilidades e limites às pessoas que dele participam; estão indagando sobre as
diferenças e desigualdades existentes entre homens e mulheres no passado e no
presente; estão dialogando sobre as mudanças em curso na contemporaneidade
(“Como pode não haver espaço nessa mochila de antigamente para um celular?”) e
sobre processos que fazem parte de suas realidades existenciais (“Meu avô levou
uma garrafada na cabeça”, “Meu primo anda sempre com maconha na mochila”).
Dessa forma, os encontros intergeracionais favoreceram a ampliação dos ho-
rizontes de experiências tanto dos idosos quanto das crianças, pois o diálogo com
o outro dá acesso a conhecimentos e à possibilidade de ressignificar a própria per-
cepção de realidade dos pares. Esse processo é nomeado por Tomás (2013) como
“processos autônomos” de participação, nos quais as “crianças têm o poder de em-
preender a ação” e tornam-se sujeitos ativos do processo de ensinar e aprender
(TOMÁS, 2013, p. 50).
As palavras de Bosi (1994), ao defender que não há como o ser humano saber
o que ele é sem sair de suas determinações atuais, sintetizam a importância que
encontros intergeracionais como os aqui analisados podem assumir na vida das
crianças:
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Ivone Maria Mendes Silva, Simone Cristina Dalbello da Silva
Um mundo social que possui uma riqueza e uma diversidade que não conhecemos pode
chegar-nos pela memória dos velhos. Momentos desse mundo perdido podem ser compreen
-
didos por quem não os viveu e até humanizar o presente. A conversa evocativa de um velho
é sempre uma experiência profunda: repassada de nostalgia, revolta, resignação pelo des
-
figuramento das paisagens caras, pela desaparição de entes amados, é semelhante a uma
obra de arte (BOSI, 1994, p. 82).
Além das mudanças de valores apontadas pelos idosos na atualidade, a transfor-
mação das paisagens do território local também foram elementos destacados por eles
nos encontros com as crianças, produzindo marcas na constituição identitária das
crianças, uma vez que nossas identidades também são construídas pela relação com
os espaços que habitamos e os significados atribuídos a eles. Ao mostrar, por exemplo,
fotos da praça central da cidade, os idosos refletiram sobre como tudo está diferente
do passado e as crianças pareceram não reconhecer, “nesse território, também ele en
-
velhecido e modificado pelas transformações que lhe foram ocorrendo” (VEIGA; FER-
REIRA, CORDEIRO, 2016, p. 460), o que, até então, lhes parecia familiar: a mesma
praça de sempre. Esse olhar diferenciado para o “de sempre” produz efeitos de estra
-
nhamento e reflexão sobre quem fomos, somos ou almejamos ser, a que sociedade per-
tencemos etc. Movimentos esses que podem ser, em diferentes níveis, favoráveis ao
nosso desenvolvimento como pessoas e cidadãos, uma vez que produz reverberações
em nosso senso de identidade pessoal e social, assim como na forma como vivemos
nossos pertencimentos e lutas (VEIGA; FERREIRA; CORDEIRO, 2016).
A cidadania construída por meio da comunicação entre gerações permite um
olhar integral sobre a vida humana e maneiras de conhecer e intervir na realida
-
de local. Para que se amplie a visão de educação e se construa um entendimento
da criança como um sujeito de direitos, há que se aliar o projeto pedagógico com
práticas educativas que se pautem, também, num convívio promotor do diálogo
de fato, para o desenvolvimento pleno de inúmeras aprendizagens pelas crianças,
percebendo-as como protagonistas desse processo. E nesse ponto concordamos com
Sarmento (2002), quando ele afirma que se a escola, enquanto “política da vida” e
“utopia realizável”, for capaz de assimilar essa lógica dos direitos da criança, ela
poderá “reconstituir-se e refundar-se civicamente” (SARMENTO, 2002, p. 278).
Considerações nais
No projeto intergeracional aqui acompanhado, pudemos constatar que inicia-
tivas no campo da coeducação de gerações podem favorecer a formação de sujeitos
cidadãos. Os encontros ocorridos entre idosos e crianças, nas escolas em que essas
estudam, propiciaram a ampliação dos horizontes de experiências de ambos.
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O encontro intergeracional entre crianças e idosos como espaço de construção de cidadania na infância
Ao terem a oportunidade de conversar com os idosos sobre temas de cunho eco-
nômico, social, educacional e familiar, as crianças puderam não apenas ter acesso a
informações que passaram a fazer parte de seus repertórios culturais, como a exer-
citar o respeito à diferença (de opinião, de valores etc.). Esse processo fomentou a
produção de questionamentos e ressignificações das visões que elas sustentam so-
bre o mundo e sobre as formas efetivas de nele intervirem em prol do bem comum,
para além da afirmação dos interesses e necessidades individuais.
Em vista disso, concluímos que criar condições para formar sujeitos cidadãos
implica, além da garantia de acesso a conhecimentos relativos a direitos e deveres,
a possibilidade de conviver com o outro e aprender, consequentemente, que a so-
ciedade é plural.
Além disso, conhecer e valorizar o passado permite que nossas crianças sai-
bam quem são e no que podem se transformar. Favorecer um percurso escolar que
valorize, por intermédio da intergeracionalidade, a cultura regional e que conside-
re a pluralidade de tradições, media as aprendizagens necessárias para o desen-
volvimento pleno das crianças e a construção de uma cidadania ativa, além da va-
lorização social da velhice. É nesse compartilhamento de experiências de vida que
as novas gerações conhecem o passado, apreendem o presente e projetam o futuro.
O exercício de pensar junto e ouvir o outro facilita momentos de construção e
compartilhamento de saberes, se apresentando como uma arte: a arte de partilhar
e de construir afeições e respeito mútuo e de construir espaços de consolidação da
cidadania (BOSI, 1994). Todas essas dimensões são fundamentais para o desenvol-
vimento, pelas crianças, da capacidade de atuar política e socialmente no mundo
do qual fazem parte.
Notas
1
Sarmento (2005) demarca a diferença conceitual entre infância e criança, ao afirmar que as crianças “são
os actores sociais concretos que em cada momento integram a categoria geracional infância [...], sendo esta
historicamente construída, a partir de um processo de longa duração que lhe atribuiu um estatuto social
e que elaborou as bases ideológicas, normativas e referenciais do seu lugar na sociedade”. Mas, conforme
ressalta, o significado e lugar social atribuído à infância estão sempre sendo atualizados pelos atores so-
ciais, sejam eles crianças ou adultos (SARMENTO, 2005, p. 363-365).
2
A obra Entre o passado e o futuro (ARENDT, 2005) foi escrita nas décadas de 50 e 60 (1954 a 1964) nos
Estados Unidos, país no qual a autora vivia e cuja cultura é analisada por ela considerando as especificida-
des daquele momento histórico. Arendt discute, na obra em questão, aspectos referentes ao que identificou
como “crise na educação”, relacionando esse processo à chamada “crise de autoridade” (ARENDT, 2005).
Ainda que teça suas considerações partindo da análise desse contexto (sociocultural e histórico) específico,
a autora adverte que a chamada “crise na educação” deve ser considerada um fenômeno mais abrangente,
cujas manifestações se fazem sentir em países diversos. Constatação que pode ser estendida também a
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outros momentos históricos, pois a análise de Arendt permanece atual e muito apropriada para problema-
tizarmos cenas da vida contemporânea, como também entendem Ohlweiler e Fischer (2013).
3
A obra História social da infância e da família foi publicada pela primeira vez na França em 1960 e nos
Estados Unidos em 1962.
4
A cidade de Concórdia, na qual realizamos a pesquisa, localiza-se na região oeste do Estado de Santa Ca-
tarina. Conforme estimativa do IBGE (2018), possui cerca de 74.106 habitantes. A colonização deu-se por
gaúchos descendentes, principalmente, de italianos e alemães. No que diz respeito à economia, as ativida-
des concentram-se na agroindústria e na agropecuária. O Índice de desenvolvimento humano municipal
(IDHM) é de 0.800.
5
As miniaturas dos objetos compreendem: uma miniatura de uma tramela (fechadura utilizada nas primei-
ras casas dos idosos); um chiareto, nome dado à lâmpada que era confeccionada com vidro e um tecido que
era queimado com querosene; um monjolo, equipamento de madeira para moer folhas e grãos; uma mochi-
la de pano para simular o modelo de mochila utilizada pelos idosos em seu contexto escolar; uma bola feita
de tecido; um bilboquê, brinquedo de madeira o qual possui duas partes ligadas por um barbante que, ao
serem arremessadas para o ar, se encaixam; e o mangual, que consiste em um objeto de madeira que era
utilizado para “bater” nos grãos que ficavam em cima de um pano e assim descascá-los. Ao final das falas,
os idosos confeccionavam um brinquedo com as crianças, o qual consistia em uma linha que transpassa um
botão formando uma espécie de ioiô. O projeto é realizado pelo Conselho Municipal do Idoso desde 2013.
6
A pesquisa acompanhou cinco escolas, abrangendo um total de 179 crianças, de 8 a 10 anos de idade, que
cursam o terceiro na do ensino fundamental da rede municipal de ensino. Das 5 escolas, 4 localizam-se no
perímetro urbano e apenas 1 escola localiza-se na área rural. Das 179 crianças, 97 eram do sexo feminino
e 83 do sexo masculino.
7
Idosos que conduzem o projeto “Idosos Mestres da Vida”: eles têm idade de 73 e 71 anos, se autodeclaram
brancos e são oriundos da área rural da cidade, além de aposentados, heterossexuais, casados, com filhos
e, atualmente, residentes na área urbana. Ambos são conselheiros do Conselho Municipal do Idoso, sendo
um deles presidente do respectivo Conselho. Outros idosos do Conselho foram convidados a participar do
projeto, porém os únicos que efetivaram a participação foram os dois idosos que executaram o projeto no
ano anterior, ou seja, os aqui referidos. No Conselho Municipal do Idoso de Concórdia, a maioria dos idosos
participantes constitui-se de homens.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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A docência na Educação Infantil COM a Participação das Crianças
A docência na Educação Infantil COM a Participação das Crianças
Teaching in Early Childhood Education WITH Children’s Participation
La docencia en la educación de la primera infancia CON la participación de los niños
Katia Adair Agostinho
*
Resumo
A discussão aqui apresentada defende a docência na Educação Infantil com a participação das crianças. Considera
que creches e pré-escolas ocupam um espaço fundamental na construção da democracia, quando fomentam re
-
lações democráticas nas práticas pedagógicas cotidianas como um modo de vida que insiste na (re)existência e
persiste em tecer a vida coletiva e pública inscrita na ética do encontro em contraponto a exclusão. Em uma conjun
-
tura em que a democracia se encontra em um descrédito abissal e a ofensiva aos direitos sociais incide fortemente
nos mundos de vida das crianças, consideramos que a temática da educação democrática e da participação infantil
ganha especial relevo e precisa de um debate profundo nas instituições de educação infantil, para que seus projetos
educativo-pedagógicos e suas práticas sejam pensados à luz de referenciais críticos e inspiradores de novos modos
de vida. Essa reexão profunda terá de enfrentar nosso acanhado modo de sermos democráticos, em um país que
não tem o legado de uma experiência efetivamente democrática e que se submete facilmente à sedutora forma
de viver ditada pelo mercado, assim como o adultocentrismo existente nas relações pedagógicas; o que desnuda
nossa frágil condição que precisa ser assumida por um pensamento rico, forte de contraposição ao que está posto.
Palavras-chave: Educação Infantil. Docência. Educação Democrática. Direitos. Participação das Crianças.
Abstract
The discussion presented here defends teaching in early childhood education with the participation of children.
Believes that day care centers and preschools occupy a fundamental place in the construction of democracy,
when they foster democratic relations in everyday pedagogical practices, as a way of life that insists on (re)
existence and persists in weaving the collective and public life inscribed in the ethics of the encounter opposing
the exclusion. At a juncture in which democracy nds itself in abyssal discredit and the oensive to social rights
has a strong impact on the worlds of children, we consider that the theme of democratic education and child
participation is particularly important and needs a deep debate on institutions of early childhood education, so
that their educational-pedagogical projects and their practices are thought in the light of critical references and
inspirers of new ways of life. This profound reection will have to face our shy way of being democratic in a coun
-
try that does not have the legacy of a truly democratic experience and which easily submits to the seductive way
of life dictated by the market, as well as the adultocentrism that exists in pedagogical relations; This underscores
our fragile condition that needs to be assumed by a rich thought, strong in opposition to what is set.
Keywords: Early Childhood Education. Teaching. Democratic Educacion. Rights. Childrens Participation.
*
Doutora em Estudos da Criança, na Sociologia da Infância, Universidade do Minho/Portugal. Professora no Centro
de Educação da Universidade Federal de Santa Catarina(CED/MEN/UFSC), Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-
0261-9790. E-mail: katia.ufsc@gmail.com
Recebido em 28/10/2019 – Aprovado em 30/01/2020
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i2.11428
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Katia Adair Agostinho
Resumen
La discusión presentada aquí deende la docencia en Educación Infantil con la participación de niños. Cree que
las guarderías y preescolares ocupan un espacio fundamental en la construcción de la democracia, cuando fo-
mentan las relaciones democráticas en las prácticas pedagógicas cotidianas como una forma de vida que insiste
en la (re)existencia y persiste en tejer la vida colectiva y pública inscrita en la ética del encuentro en contraste con
la exclusión. En una situación en la que la democracia está en desprestigio abismal y la ofensiva a los derechos
sociales tiene un fuerte impacto en el mundo de los niños, consideramos que el tema de la educación democrá-
tica y la participación infantil adquiere especial importancia y necesita un debate profundo en las instituciones
de educación infantil, para que sus proyectos y prácticas pedagógicas y educativas se piensen a la luz de referen-
cias críticas y inspiren nuevas formas de vida. Esta profunda reexión tendrá que enfrentar nuestra forma tímida
de sermos democráticos, en un país que no tiene el legado de una experiencia efectivamente democrática y que
se somete fácilmente a la seductora forma de vida dictada por el mercado, así como las relaciones pedagógicas
centradas em el adulto; que exponen nuestra condición frágil que debe ser asumida por un pensamiento rico,
fuerte en oposición a lo establecido.
Palabras clave: Educación de la primera infancia. Docencia. Educación Democrática. Derechos. Participación in-
fantil.
Adentrando a temática: urgência e obscurantismo
A luz é sempre igual a uma outra luz.
Depois se modificou: de luz se tornou alvorada incerta,
[...] e a esperança teve uma nova luz.
P.P. Pasolini. A resistência e sua luz (1961)
A discussão que aqui propomos ganha contornos de acentuada urgência no
quadro atual de nosso país e para além dele, tristemente! Um momento políti-
co social caracterizado por uma violência crescente, repressão de muitas ordens,
imposição de um projeto civilizador de exclusão. O que torna nosso desafio mais
complexo e vultoso diante do crescimento das desigualdades sociais e estruturais.
Clara está a dificuldade de prosseguir sem que antes possamos nos retirar
de uma proposta de democracia nos moldes mercantilistas e à serviço da manu-
tenção da ordem atual em que o capitalismo – financeirizado e neoliberal – leva
seu projeto colonial às últimas consequências, sua realização globalitária. Em um
contexto que se associa às forças conservadoras que ascendem ao poder gerando
mais violência e barbárie (ROLNIK, 2018) em que reside muito obscurantismo e
necessidade de ressemantização.
Mergulhar nos meandros dessa complexidade e nomear, pronunciar os as-
pectos dessa gramática de guerra e morte exige de nós um pensar/sentir/agir que
detalhe e rememore o que fomenta tal ofensiva – tão forte e excessiva. É certo que
alguns tempos são mais difíceis e incertos do que outros. Para nós, brasileiros,
esses são tempos de profunda tristeza, estamos estarrecidos e (pre)ocupados com
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a velocidade com que muitas conquistas sociais e modos estabelecidos de ver ques-
tões sociais e educacionais são ameaçados e extintos, começam a desgastar-se, e
ainda não somos capazes de dar respostas ou de fazer frente às forças do desman-
telamento social. Como Peter Pal Pelbart, penso queEstamos em guerra!
Guerra contra os pobres, contra os negros, contra as mulheres, contra os indígenas, contra
os craqueiros, contra a esquerda, contra a cultura, contra a informação, contra o Brasil.
A guerra é econômica, política, jurídica, militar, midiática. É uma guerra aberta, embora
denegada; é uma guerra total, embora camuflada; é uma guerra sem trégua e sem regra,
ilimitada, embora queiram nos fazer acreditar que tudo está sob a mais estrita e pací-
fica normalidade institucional, social, jurídica, econômica. Ou seja, ao lado da escalada
generalizada da guerra total, uma operação que a abafa em escala nacional. Essa suposta
normalização em curso, essa denegação, essa pacificação pela violência — eis o modo pelo
qual um novo regime esquizofrênico parece querer instaurar sua lógica, em que guerra
e paz se tornam sinônimos, assim como exceção e normalidade, golpe e governabilidade,
neoliberalismo e guerra civil. Nada disso é possível sem uma corrosão da linguagem, sem
uma perversão da enunciação, sem uma sistemática inversão do valor das palavras e do
sentido do próprio discurso, cujo descrédito é gritante (PELBART, 2017a, sem paginação).
É nesse quadro de corrosão da linguagem, de perversão da enunciação, de
inversão do valor das palavras e do sentido do discurso em que a democracia se
encontra em um descrédito abissal em nosso país, que não tem o legado de uma
experiência efetivamente democrática e que se submete, facilmente, ao sedutor
modo de vida ditado pelo mercado. Essa guerra e ofensiva aos direitos incidem
fortemente nos mundos de vida das crianças.
Embora o momento seja dramático, defendo, junto com outros, que não de-
vemos nos submeter à imagem geral do desespero no sentido da desesperança,
também devemos resistir ao clamor por uma derrota de entrega total. É necessário
falar sobre nossas derrotas, mas não sucumbir a elas, é necessário aprender com
elas, mas não cair na armadilha de discursos forjados que negam a política, a par-
ticipação, a democracia, o que é público.
Em meio a um contexto tão sinistro não é bom deixar-se afundar no catastro-
fismo melancólico e derrotista, porque todo poder visa também a isto: nos separar
de nossa força, nos inculcar a tristeza, a angústia, o medo, a culpa e sobretudo a
sensação de impotência (PELBART, 2017a, sem paginação).
Se a cada dia parecemos mais vencidos, a derrota tem ao menos esta vantagem: ela nos
força a pensar — e a pensar de outra maneira. É preciso fazer valer tal ocasião. [...] fazer
do pensamento uma conspiração cotidiana, uma insurgência indomável (PELBART, 2017a,
sem paginação).
Corroboro Stuart Hall quando afirma que os momentos de conturbação políti-
ca produzem movi mentos teóricos, no seu interesse pela teorização que emerge das
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lutas por transforma ção social, política e cultural, lutas concretas e contextuais
que nos inspira a necessidade de “mobilizar tudo o que podemos encontrar em ter-
mos de recursos intelectuais para entender o que é que segue fazendo as vidas que
vivemos e as sociedades em que vivemos, profundamente anti-humanas” (HALL,
1992, p. 17). É urgente pensar e construir outras lógicas, outros modos de vida e
relacionamento, outros caminhos para a efetiva humanização sonhada.
Nesse contexto, como pensar/defender a democracia, as práticas democráticas
na educação infantil, e para além dela, os direitos de participação das crianças?
Como não naufragar com nossas ideias e palavras no mesmo continuísmo que ali-
menta a força e a voracidade do projeto neoliberal e conservador que nos assola?
O momento nos exige o esforço de pensamento crítico e criação, com atenção
constante e intensa à gramática que utilizamos para poder dizer, mais próximo
e melhor, da tessitura/urdidura complexa da docência nesta etapa educacional.
Enfrentemos com coragem a tarefa de democratizar a educação, aprofundando e
enriquecendo a democracia.
Re(existir) acentuando as relações democráticas nas práticas pedagógicas
Traçamos um caminho de pensamento, no qual uma forma de fazer frente a
tudo isto é a de pensar a educação em um lugar distinto do dominante, dando aten-
ção ao mundo e nele reconhecer a vida (SKLIAR, 2017), contrapondo-se às lógicas
de mercado, consumo desenfreado e destrutivo, ranking e sua concorrência, merito-
cracia, estandardização do pensamento, racismo, sexismo, xenofobia, intolerância,
ódio etc, que elege insistir no público, no bem comum, na política, na coletividade.
Carlos Skliar colabora com nosso desafio de traçar caminhos possíveis de (re)
existir com sua perspectiva de que “la detención sería la única rebelión posible
frente a un mundo que no te deja descansar,” nos contrapondo à ideia da acelera-
ção, com uma ação pedagógica cotidiana que possa fomentar uma nova forma de
fazer política e elaborar novos rumos para pensar e construir a afirmação da vida,
da infância, que possa liberar as crianças do mundo do mercado. Este é “el único
propósito que la educación puede tener, si aún nos queda algo de dignidad y de
alteridad” (SKLIAR, 2017).
Aunque sueñe extraño hoy día: enseñar es enseñar a contra-tiempo. Hay un mundo mucho
más largo y más ancho para mostrar: el del juego, la lectura, el pensamiento, la filosofía,
la música, la escritura, la pintura, los cuerpos, la historia de los hombres y las mujeres, la
literatura, la danza de los números, la danza sin los números, la geografía de las travesías,
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la realidad de los sueños, la memoria de los ancianos, el lenguaje de la infancia. Enseñar
la detención, la pereza, la desatención, la lentitud, el tiempo libre liberado del mercado, la
distracción, el titubeo, la fragilidad (SKLIAR, 2017, s.p.).
A defesa é a de acentuar, adensar, fomentar, fortalecer práticas pedagógicas
democráticas nas creches e pré-escolas, assim como em todas as instituições de en-
sino – universidades, escolas, para que sejam espaços de resistência em tempos de
ataques à democracia, onde possamos pensar e efetivar alternativas democráticas
construídas coletivamente, tendo em atenção que não devemos pensar a mesma
isoladamente das reais condições de realização da escolarização nas atuais cir-
cunstâncias da vida das nações e mundo. Estamos diante hoje de uma “batalha
cultural” pelos sentidos das relações sociais mais amplas e da vida escolar, em
particular. Para tanto,
Es necesario entonces volver a ligar la relación entre la infancia y la política, en el sentido
de la acción y la praxis, y desplazar la preponderancia de las retóricas prolijas sobre los de-
rechos de la infancia que no alteran los núcleos duros de la reproducción de la desigualdad.
[...] la educación desde edades tempranas representa una deuda de la sociedad y del Estado
para llegar justo a tiempo y también una apuesta por las nuevas generaciones en términos
de una batalla cultural central (REDONDO, 2015, p. 157).
A conquista dos direitos das crianças – Constituição Federal (1988), Conven-
ção dos Direitos das Crianças (1989), Estatuto da Criança e do Adolescente (1990)
–, fruto das lutas sociais de diferentes atores e, da produção teórica de abordagens
inclusivas em uma perspectiva de inclusão geracional, aproxima os campos da po-
lítica e da infância por meio do reconhecimento da criança como cidadã. Possuir
direitos é uma das características de ser cidadão, e a partir disso as crianças de-
vem ser consideradas cidadãs embora provavelmente não exerçam sua cidadania
da mesma forma que os adultos (JANS, 2004; LISTER, 2007). Assim, a defesa de
uma educação infantil com a participação das crianças é fulcral para a produção
e consolidação de uma sociedade de afirmação de direitos sociais, como espaços de
educação democráticos que se contraponham à exclusão social.
As crianças como sujeitos de direitos e de conhecimento são produtoras de
sentido e têm “voz”, são legítimas as formas de comunicação e relação que utilizam
para expressar seu ponto de vista. Ao fazê-lo, contribuem na renovação e reprodu-
ção dos contextos em que participam quando existe quem esteja interessado em ou-
vir suas vozes. Aqui incide com muita força as nossas concepções sobre criança e
infância.
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Consideramos a criança como ator social, a infância como construção socio-his-
tórica e a vivencia dos direitos negociada nas relações que são travadas junto aos
seus sujeitos em uma perspectiva de direito à infância. Em um quadro de pedago-
gias contra-hegemônicas, que favoreça e fomente práticas pedagógicas em que as
crianças sejam tidas em conta e seu ponto de vista seja considerado na estrutura-
ção de seus espaços e tempos educativos.
A Pedagogia da Infância, balizada num projeto emancipatório, com uma
concepção de criança como sujeito de direitos e ator social, afirma a imprescin-
dibilidade de considerarmos seu ponto de vista, expressado por diferentes canais
comunicacionais, para a organização e efetivação das práticas pedagógicas, o que
exige uma tomada de posição referente à participação infantil nos contextos de sua
educação.
A discussão a respeito da participação das crianças para uma educação de-
mocrática se cruza com um conjunto de conceitos importantes que precisam ser
aprofundados, compreendidos e conectados pelo coletivo das unidades educativas,
para que seja possível contar com as contribuições delas na efetivação da educação
aqui preconizada, para assim vencer modelos adultocêntricos.
Com esse princípio, as creches e pré-escolas – como lugar de prática ética e
política, de cidadania, de democracia – organizam e efetivam sua docência com
intencionalidade democrática participativa, fomentando tempos e espaços para a
participação de todos os sujeitos envolvidos: crianças, familiares, todos os profissio-
nais e comunidade. Intencionalmente abre espaço-tempo para o Outro, no exercício
diário de construir a vida coletiva da docência.
Compreendendo que a intencionalidade pedagógica nas práticas se tece sa-
bendo-se que ninguém pode antecipar a potência de um encontro, cada contexto
terá suas particularidades no modo de construir sua efetiva vivência, tendo em
vista as materialidades e subjetividades que constituem cada experiência localiza-
da nas diferentes categorias sociais, de modo que o significado de criança sujeito de
direitos são negociados em contexto, para enfrentarmos os riscos de sua reificação
(LLOBET, 2011).
A docência, por se constituir de maneira relacional, nos coloca a presença do
Outro. Mesmo quando esse reconhecimento não ocorre, o Outro sempre está ali e
sua presença incide nas relações pedagógicas que se travam no convício diário da
jornada educativa. Jorge Ramos do Ó contribui para seguirmos neste aprofunda-
mento dos meandros constitutivos da docência que aqui preconizamos com sua
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ideia de um pedagogo em andamento, que convoca a tarefa instante da intenciona-
lidade pedagógica, sendo aquela
[...] que se recusou com a maior verticalidade ética a vestir a pele do transmissor, do di-
vulgador, do comentador da obra alheia. De cada vez que se nos dirigem nessa condição de
professores-investigadores, é invariavelmente para nos mostrar, por meio de seu exemplo
e testemunho, como esse ofício ou posição pode ser ocupado por uma ideia preparada e
refletida, mas que está sempre a recomeçar ali mesmo no espaço da sala de aula
uma pesquisa que se desenvolve como um vento forte: que nos pode mostrar a adjunção,
o desmembramento ou até mesmo a desagregação de uma ideia, de um conceito, de uma
paisagem empírica, mas que não se faz compreender imediatamente, deixando-nos impac-
tados bem para lá do momento da sua passagem. Seja de que ângulo for, deparamo-nos
sempre com uma prática da interrogação que atinge não apenas a matriz da pa-
lavra, quanto a sua organização, mutação e até comunicação pública (Ó, 2019, p. 4,
grifos nosso).
Aqui descortina-se que assumimos como projeto educativo-pedagógico essa
prática sistemática e intensa de pensamento e interrogação, que acolhe o aconteci-
mento como elemento que nos mobiliza à transformação, como
[...] algo que não pode ser programado, irrupção imprevista: o começo de nova narrativa, de
uma nova compreensão, de uma nova relação com o mundo. O acontecimento é, também,
uma determinada experiência de vivência do tempo. Isto significa, então, que o aconteci-
mento só se explica como uma ocasião, como um estado de exceção, como o imprevisível,
como um instante original, como aquilo que quebra por surpresa e racha a continuidade do
tempo. E o impacto do acontecimento só pode estar nessa relação inédita que nós estabe-
lecemos com esse fato ou com o que esse fato produz e provoca em nós. A experiência que
dali nasce transforma o fato em acontecimento significativo e assume, então, a forma de
uma relação de interesse pessoal. E nos interessa particularmente essa ideia de interesse
pessoal, esse “dar-se conta”, que é como uma chave para pensar fertilmente o campo edu-
cativo. “Dar-se conta – diz Jankélévitch – é descobrir sem mover do lugar a velha novidade
[...] mas, completamente renovada pela maneira de percebê-la (1989, p. 161 apud SKLIAR,
2009, p. 42).
Por isso é fundamental um projeto de educação que reivindica a experiência
na Educação Infantil, como potência na transformação da realidade contemporâ-
nea vivida pela humanidade (JANUÁRIO, 2018). A experiência como antidoto para
o apesar de tudo com seu acento na memória e narrativa. Com esta base, temos
alguns aspectos que são importantes de serem salientados e que podem favorecer
e sustentar a participação infantil, compondo um caminho possível para a constru-
ção da educação democrática aqui defendida.
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Desdobramentos no cotidiano das creches e pré-escolas
A temática da participação das crianças é profunda e complexa, exige atenção
em seus desdobramentos e enfrentamentos cotidianos na efetivação da docência,
exige perseguir os modos de sua tradutibilidade. Concordo com Peter Moss (2009)
de que um dos primeiros passos para que essa prática democrática se instaure é
assumir a opção por este direcionamento com intencionalidade política e pedagó-
gica, o que exige pensar, refletir e discutir coletivamente nas unidades educativas:
queremos mesmo a democracia, o que ela significa para nós, como exercitá-la nas
práticas cotidianas? Como pensamos os direitos de participação das crianças? É
esta a posição e defesa da unidade?
É fundamental que as pré-escolas e creches, assim como os sistemas que as
apoiam, pensem, reflitam o que a democracia pode significar nos contextos de edu-
cação infantil (DAHLBERG; MOSS, 2005; MOSS, 2009; BAE, 2009, AGOSTINHO,
2010), evitando visões irrefletidas sobre ela. Essa é uma tarefa que nos coloca a
importância de pensar e discutir os projetos político pedagógicos, em documentos
e ações, das unidades: temos pensado-refletido e discutido em nossas creches e
pré-escolas a temática? Qual a nossa posição? Quais estratégias elegemos para
efetivá-la?
Isto dá relevo à importância de uma formação sólida e crítica em nível inicial
para todas as professoras e professores dessa etapa educacional, demandando es-
paço nos currículos dos cursos de Pedagogia às discussões acerca dos direitos das
crianças e, em especial, os de participação. Esta demanda também se coloca para a
formação continuada e em serviço.
A opção por um projeto educativo pedagógico democrático e emancipador re-
quer professoras e professores críticos, para que com sensibilidade, astúcia e pers-
picácia possam compreender as diferentes formas pelas quais as crianças expres-
sam seus pensamentos e sentimentos, apreender a complexidade da participação
das crianças em suas rotinas educativas, sua multidimensionalidade, e, tendo em
vista nosso reconhecimento da inteireza humana, construir estratégias comunica-
tivas de ausculta.
Explicita-se assim a importância da docência na educação infantil intencional
e cotidianamente disposta a apreender o conteúdo expressado-comunicado pelas
crianças sobre seus pontos de vista, acolhendo-os na estruturação e organização do
cotidiano educativo, com abordagens e práticas pedagógicas que apoiem os fins da
educação democrática, a ética do cuidado e do encontro e uma atitude de inclusão
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das diferenças e construção do bem comum, atento a práticas autoritárias e adulto-
cêntricas, neoliberais e neoconservadoras, que enfraquecem a democracia, em um
pleno exercício de compartilhamento de poder, com vistas à construção da vida em
comum.
Consideramos que as relações democráticas são processos criados pelos par-
ticipantes, algo vivido. A participação não é dada, ao contrário, é um processo que
envolve interação, expressão de ideias, pensamentos, opiniões, escolhas, nego-
ciações em uma perspectiva dialógica da política. Com atenção aos aspectos não
linguísticos da comunicação, ao reconhecimento da diferença, da pluralidade, e à
valorização da emoção e da sensibilidade.
As formas próprias e preferidas das crianças de expressar opiniões precisam
ser melhor compreendidas e traduzidas para que se efetivem os processos de parti-
cipação na docência. Estudos como o de Jans (2004), Bae (2009), Landsdown (2010),
Agostinho (2010), entre outros, indicam algumas formas pelas quais as crianças
comunicam e expressam seus pontos de vista, seus sentimentos e opiniões, com
destaque para:
o corpo, com seus movimentos, gestos e expressões;
os afetos exprimidos e estendidos entre elas mesmas e entre elas e os adultos;
o humor como forma de explicitar e viver a alegria e interrogar a vida com
um pensamento questionador de certezas absolutas;
as culturas de pares – com ênfase nas brincadeiras – como constituidora de
sua identidade geracional.
O corpo, os afetos, o humor, enfim as culturas de pares são ricas formas de
participação das crianças que exigem atenção contínua e intencional às suas ma-
nifestações para apreendermos os conteúdos expressados-comunicados por elas,
realizando a (re)invenção de uma democracia ao alcance das crianças de 0 a 6 anos,
a cidadania vivida nas creches e pré-escolas em que vivem sua infância.
Praticada na relação social, a participação das crianças na docência precisa
manter especial atenção no risco da reprodução de modelos adultocêntricos, consi-
derando-se as especificidades das crianças pequenas, suas diferenças e diversida-
des. Os encaminhamentos pedagógicos precisam cuidar para que não incorram nos
deslizes comuns de que assembleias, eleições e escolhas são suficientes para o pleno
reconhecimento da contribuição geracional. É necessário que sejamos cuidadosos
ao incluir as estruturas formais de participação com as crianças, pois é improvável
que possam acolher a diversidade de vozes infantis. Esses modelos costumam gerar
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relações hierárquicas e tendem a legitimar uma relação de poder desigual, proje-
tados de forma unilateral por adultos, podem silenciar as crianças, nos desafiando
a pensar e efetivar abordagens alternativas à participação das crianças na esfera
pública, em que é necessário acolher uma grande diversidade de vozes infantis.
A propagada máxima de que ouvir as vozes das crianças seria as deixar falar
também precisa ser, cuidadosamente, revista, embora reconheçamos que nem isto
se tenha ainda conquistado plenamente em muitos âmbitos. O que queremos real-
çar aqui são os modos próprios das crianças pequenas que interrogam e tencionam
a reprodução de modelos que nem sempre atendem às suas especificidades e neces-
sitam de tempos diversos para acolher suas manifestações.
A participação se constrói no tempo, se aprende e se refina, comporta um exer-
cício e capacidade de observação e de escuta. Por isso uma das estratégias que jul-
gamos fulcral é a ausculta, imprescindível para o desenvolvimento de abordagens
em que a cultura de comunicação comece a partir da posição da criança, e que se
reconheçam as suas diferenças, a fim de que possamos construir práticas democrá-
ticas estabelecidas no paradigma da escuta, implicadas na comunicação humana.
[...] o termo ausculta não é apenas uma mera percepção auditiva nem simples recepção da
informação - envolve a compreensão da comunicação feita pelo outro. Inclui a recepção e
compreensão, que, principalmente neste caso - o da escuta da criança por adulto sempre
passará por uma interpretação. Tal análise da expressão oral do outro/ criança orienta-se
pelas próprias intenções colocadas nessa relação comunicativa - lembrando que, quando o
outro é uma criança, a linguagem oral não é central nem única, mas fortemente acompa-
nhada de outras expressões corporais, gestuais e faciais (ROCHA, 2008, p. 45).
A observação e escuta atentas aos modos próprios como as crianças comuni-
cam seu ponto de vista exigem um conjunto de conhecimentos e sensibilidade acer-
ca delas para apreender todos os conteúdos expressos pelos seus diversos canais
comunicacionais. Essas estratégias destacadas, de observação e escuta/ausculta,
são acompanhadas por uma prática de registro e documentação pedagógica, em
que documentamos e partilhamos os pontos de vista das crianças com o coletivo
que vivencia a unidade. A documentação pedagógica, assim, apoia a participação
das crianças.
Ao reconhecer o papel ativo das crianças na construção da vida social, temos
de ter em atenção os diferentes ritmos, tempos e formas de sua participação. É
necessária, assim, uma lógica organizacional pedagógica que se abre para a comu-
nicação e o intercâmbio, com o tempo necessário para a escuta, que fomente com
equilíbrio diferentes modos de encontro, diálogo, negociação, com espaços e tempos
plurais, em que sejam possíveis grupos menores e maiores para que as ideias de
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A docência na Educação Infantil COM a Participação das Crianças
todos tenham lugar, para que possam ser expostas, ouvidas, debatidas, negociadas.
Com igualdade de acesso para todos na vida em grupo, vida coletiva, com garantia
de visibilidade e expressão de diferentes racionalidades, em que se exercitam o
respeito pelo outro, proporcionando o confronto entre pontos de vista.
A educação como um lugar onde se dá e tem tempo! Aquela que se contrapõem
ao tempo linear e se abre para a experiência e o acontecimento, como caminho para
ativações mobilizadoras e transformadoras, sacode e desestabiliza a raiz da acele-
rada e sedutora trama enredadora do mercado, com sua incapacidade de presença,
acento no individualismo e sua insaciável privatização e acumulação. Essa edu-
cação fomenta práticas de cooperação democrática em todos os domínios e, assim,
fecundamente nos aproxima do que de fato nos faz viver – a preservação da vida
estabelecida sob o princípio do comum.
A ação docente nessa direção expande o tempo, provê e apoia oportunidades
de debate, negociação e estruturação coletiva da jornada diária, criando outros
espaços, outros tempos para a expansão da potência, do possível e necessário en-
contro, da partilha da vida comum, contrapondo-se à crise de presença com e na
vida a nossa volta. A presença posiciona-se contra a passividade e submissão, nos
inscreve como cidadãos que se ocupam com o que nos diz respeito.
Tal perspectiva exige a contraposição em relação às formas de vida instituídas
para o mercado, contraria o assujeitamento, a submissão da subjetividade, for-
talecendo a capacidade de pensar outras maneiras de viver, novas formas de (re)
existência, inventadas nos encontros de experimentação de novos modos de exis-
tências, com novas formas de cooperação, de sensibilidade, de percepção, de relação
com o tempo, com o corpo, com a infância, com os sonhos (PELBART, 2017b).
Assim propomos re(existir) acentuando as relações participativas nas práticas
pedagógicas inclusivas de todos os sujeitos envolvidos, intensificadoras da diferen-
ça, pensando a educação pública na contramão da comercialização da vida! Com
pensamentos e palavras como “lampejo e a esperança intermitentes dos vaga-lu-
mes. Lampejo para fazer livremente aparecerem palavras quando as palavras pa-
recem prisioneiras de uma situação sem saída” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 130).
Finalizar para abrir o debate
Nessa batalha cultural, compreendida como uma resistência necessária, so-
mos capazes de nas relações educativo-pedagógicas cotidianas nas creches e pré-es-
colas potencializá-las como lócus democráticos? Lugar de participação com vistas
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ao bem comum? Espaço-tempo-lugar em que o projeto educativo-pedagógico vise
novas formas de sociabilidade, de composição e partilha da vida?
As possibilidades de ação no sentido aqui defendido em um contexto tão di-
fícil e desfavorável, nos convoca a criar, reunindo forças próximas e realizando
mudanças locais, considerando as creches e pré-escolas como espaços privilegiados
de construção democrática da vida coletiva pública. A participação das crianças
menores nos espaços educativos pode ser uma força, uma importante contribuição
da geração que chega, especialmente, se estivermos em busca de construir outros
modos de convívio, mais comprometidos com o bem comum, com o que é público.
A radical centralidade na vida coletiva, em que todos nos inscrevemos, nos
convoca para a mudança nos padrões de sociabilidade e consumo das sociedades
ditas desenvolvidas, sendo a redistribuição dos recursos pela população do planeta
base para a democracia. Contemporaneamente, o ataque à democracia nos impõe
a tarefa de fomentar o diálogo democrático e o debate público. As instituições de
educação infantil como local que acolhe a infância tem uma forte possibilidade
de instaurar relações em que a vida coletiva conta com a contribuição de todos os
envolvidos, exercitando a cidadania desde a tenra idade.
Ocupar as creches e pré-escolas experimentando novas formas de organiza-
ção, de auto-organização, de sociabilidade, de produção de uma vida outra, convoca
outros espaços, outros tempos, outra subjetividade, porque esta que aí está inter-
rompe, impossibilita o bem comum, o bem viver. Assim, pensar possibilidades de
resistir a este momento difícil no Brasil e no mundo, no âmbito educacional e em
tantos outros, instaurando processos educativos-pedagógicos coletivos estabeleci-
dos – de praticar e pensar, portanto, de criar – nos leva a encontrar caminhos de
transformação mesmo diante de tantas adversidades.
A docência com a participação das crianças constrói um projeto democrático
e emancipador. Sendo as instituições de educação infantil contextos de socializa-
ção política das crianças, onde elas exercitam e vivenciam sua cidadania na vida
coletiva e individual nos processos de decisão, nas relações de poder diversas, in-
fluenciando, transformando e/ou mantendo a estrutura organizacional cotidiana.
Defendemos, assim, que tempos e espaços educativos-pedagógicos constroem em
sua cotidianidade um tempo de direitos, estruturando suas jornadas com o efetivo
contributo das crianças nas negociações e decisões coletivas organizadoras da es-
trutura institucional.
Com isso, afirmamos a “voz” das crianças, que têm opiniões, ideias, experiên-
cias e sentimentos a nos dizer, assegurando sua expressão pelos diferentes canais
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A docência na Educação Infantil COM a Participação das Crianças
comunicacionais, assumindo como legítimas as suas formas de comunicação e rela-
ção na renovação e reforço dos laços sociais nos espaços em que participam. Assim,
atentamos aos aspectos não linguísticos da comunicação, à ética do cuidado e da
solidariedade para com o Outro, ao reconhecimento da diferença, à preservação da
pluralidade, à valorização da emoção e da sensibilidade, fortalecendo e reinven-
tando a construção da democracia com a docência na Educação Infantil COM a
participação das crianças.
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“Participar não é só fazer activismo”: olhares de crianças e adolescentes moçambicanos
*
Professora italiana, doutora em Estudos da Criança e especialidade em Sociologia da Infância, pela Universidade do
Minho. Docente da Universidade Eduardo Mondlane, Moçambique. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-8639-9686.
E-mail: elenamaputo@yahoo.it
Recebido em 25/10/2019 – Aprovado em 09/04/2020
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i2.11429
“Participar não é só fazer activismo”: olhares de crianças e
adolescentes moçambicanos
“Participation is not just about activism”: views of Mozambican children and adolescents
“Participar no es solo hacer activismo”: opiniones de niños y adolescentes de Mozambique
Elena Colonna
*
Resumo
A participação de crianças e adolescentes tem sido geralmente entendida como um envolvimento em processos
de tomada de decisão e de acção em contextos públicos. A partir de uma pesquisa visual e participativa em três
contextos de Moçambique, o presente artigo apresenta as oportunidades e as barreiras para a participação que
crianças e adolescentes encontram nos seus contextos de vida quotidiana, a nível individual, nas relações de pa-
res e na família. Os resultados indicam que, apesar dos desaos enfrentados, a expressão individual, as amizades
e o contexto familiar representam espaços signicativos para exercer a sua agência e participar no sentido de
“tomar parte em” e sentir-se incluídos.
Palavras-chave: crianças, adolescentes, participação, Moçambique.
Abstract
Children and adolescents participation has generally been understood as involvement in decision-making pro-
cesses and action in public contexts. Drawing on visual and participatory research in three Mozambican con-
texts, this paper presents the opportunities and barriers to participation that children and adolescents face in
their everyday life, at individual level, in peer relationships and in their families. Results show that, despite the
challenges faced, individual expression, friendships, and family represent signicant spaces for exercising their
agency and participating as “taking part in” and feeling included.
Keywords: children, adolescents, participation, Mozambique.
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Resumen
La participación de niños, niñas y adolescentes en general se ha entendido como participación en procesos de
toma de decisiones y de acción en contextos públicos. Basándose en una investigación visual y participativa en
tres contextos mozambiqueños, este articulo presenta las oportunidades y las barreras para la participación que
los niños y adolescentes enfrentan en sus contextos de vida cotidiana, individualmente, en las relaciones con sus
pares y en sus familias. Los resultados indican que, a pesar de los desafíos enfrentados, la expresión individual,
las amistades y el contexto familiar representan un espacio signicativo para ejercer su agencia y participar
como “tomar parte en y sentirse incluido.
Palabras clave: niños, adolescentes, participación, Mozambique.
Introdução
Primeiro, participar não é só estar a fazer activismo, fazer
programas da Radio, não é estar a participar no Parlamento
Infantil, a participação começa dentro da nossa casa: se estão para
tomar uma certa decisão e não nos consultam ou quando nós
opinamos nos mandam calar, então esse é o primeiro obstáculo.
Mardel, 17 anos, Maputo.
A teorização da participação no âmbito da Sociologia da Infância tem sido for-
temente influenciada pela afirmação do direito à participação, no âmbito da Con-
venção dos Direitos da Criança. A partir da elaboração deste documento, tanto na
prática quanto na investigação, foi-se difundindo, a nível global, um entendimento
da participação que a identifica com o “falar e ser ouvido”, isto é, com o envolvimen-
to formal nos processos de tomada de decisão (MASON; BOLZAN, 2010). Neste
contexto, uma das formas dominantes de pôr em prática a participação infantil
é aquela em que as crianças são eleitas para representar os interesses de outras
crianças dentro de estruturas institucionais formais. Entretanto, Wyness (2009)
enfatiza que estas formas de participação tendem a reinforçar as desigualdades
existentes entre grupos de crianças e têm menos probabilidade de incorporar as
vozes dos grupos mais desfavorecidos e socialmente excluídos.
Mason e Bolzan (2010) defendem a necessidade de uma compreensão inter-
cultural do conceito de participação e apresentam as diferentes interpretações do
conceito que emergiram de um projecto de investigação em cinco países da região
pacífico-asiática: a participação como um direito, a participação como “tomar parte
em” e a participação como envolvimento na tomada de decisão. Nos países estuda-
dos, o entendimento da participação das crianças que resultou dominante foi o de
“tomar parte em” actividades, tanto como indivíduos quanto sobretudo como par-
ticipar com outros, como um grupo. De acordo com os autores, esta interpretação
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“Participar não é só fazer activismo”: olhares de crianças e adolescentes moçambicanos
faz todo o sentido em culturas onde a ênfase é colocada na colectividade e as res-
ponsabilidades em relação à família e à comunidade prevalecem sobre os direitos
individuais (MASON & BOLZAN, 2010).
À luz de uma análise intercultural, Liebel e Saadi (2010) propõem uma visão
mais ampla deste conceito, como uma inclusão activa e habitual nos processos so-
ciais essenciais. Segundo estes autores, a participação não seria um tipo particular
de comunicação com as crianças que deve ser organizado em modo pontual para
finalidades específicas, mas uma efectivação seminal e quotidiana de uma agência
significativa. Em trabalho anterior (COLONNA, 2012), já discuti a necessidade de
olhar a participação de crianças e adolescentes em Moçambique mais como um en-
volvimento relevante nos difentes contextos de vida do que apenas como ter “voz”
e participar nos processos de tomada de decisão. No presente artigo, a partir dos
resultados de uma pesquisa visual e participativa, pretendo discutir o que significa
a participação a nível individual, nas relações de pares e na família (LANSDOWN,
2018) para as crianças e os adolescentes (10-19 anos) de três contextos de Moçam-
bique.
Metodologia
Fazer uma pesquisa participativa com crianças e adolescentes sobre a sua
situação significa criar espaço para que eles possam contar a sua própria história,
com as suas palavras e a partir dos seus pontos de vista (FRISINA, 2013). Neste
empreendimento, é fundamental evitar perguntas de pesquisa que encorajam as
respostas “desejadas” e constrangem as possibilidades dos participantes de expres-
sar livremente as suas perspectivas (TISDALL; DAVIS; GALLAGHER, 2009).
Foi utilizado um método de pesquisa-acção participativa, inspirado no Photo-
voice, em que os adolescentes foram convidados a produzir fotos e desenhos para
representar os seus pontos de vista e opiniões e responder as seguintes questões:
O que te faz sentir bem? O que te faz sentir mal? Qual é o teu sonho? Os adoles-
centes explicaram individualmente as suas imagens aos investigadores e depois,
em pequeno grupo, criaram categorias de imagens e debateram sobre elas, identifi-
cando barreiras e oportunidades. Finalmente, os participantes e os pesquisadores
organizaram uma exposição das imagens para divulgar as “vozes” das crianças e
adolescentes nas comunidades em que eles estão inseridos (HUSSEY, 2016; PALI-
BRODA, 2009; HUGHES, 2012).
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Num país como Moçambique, marcado por disparidades regionais, étnicas,
culturais e socioeconômicas, existem muitas “infâncias” e “adolescências” e uma
pluralidade de possibilidades, expectativas, experiências, significados e desafios
para a implementação dos direitos de crianças e adolescentes. Foram assim selec-
cionados três diferentes contextos, isto é, três casos (STAKE, 2007) com caracterís-
ticas sociais, económicas, culturais, territoriais e infraestruturais específicas, onde
as vidas de crianças e adolescentes moçambicanos podem ter lugar: uma grande
cidade (Maputo), um município (Ribaué, em Nampula) e uma vila sede distrital
(Pebane, em Zambézia).
Os participantes da pesquisa foram 31 meninas e 32 rapazes, com idade com-
preendida entre os 10 e os 19 anos de idade. A selecção dos participantes procurou
garantir a diversificação do grupo, em termos de origens culturais, bairros ou ex-
periências de vida para fornecer uma perspectiva mais ampla sobre as diferentes
“infâncias” e “adolescências”. Em particular, houve diversidade em termos de re-
ligião (muçulmana e diferentes igrejas cristãs), escolaridade (de 1ª a 12ª e fora do
sistema escolar, incluindo quem nunca entrou na escola, quem abandonou e quem
terminou o ensino secundário), deficiência, filhos, casamento, orfandade e situação
familiar, trabalho e locar de residência, entre outros.
Em termos éticos, foi pedido o consentimento informado a todos os participan-
tes e também aos encarregados de educação, para os menores de 18 anos. Todos
autorizaram oralmente a usar os nomes reais. Entretanto, foi feita uma selecção
da investigadora das imagens e falas sensíveis, pelas quais não são mencionados os
nomes. A devolução dos resultados da pesquisa à comunidade através das “vozes”
de crianças e adolescentes fez parte da metodologia proposta e do compromisso
ético dos pesquisadores e considera-se que os benefícios em termos de empodera-
mento dos participantes foram maiores do que os riscos de exposição e represálias
(GRAHAM, POWELL, TAYLOR, ANDERSON, & FITZGERALD, 2013).
Para a elaboração deste artigo, foram seleccionados apenas os dados relacio-
nados com a participação de crianças e adolescentes, a nível individual, com os pa-
res e na família. Tratando-se de uma pesquisa visual e participativa, que procura
mostrar a realidade com os olhos de crianças e adolescentes e fazer ouvir as suas
vozes, o texto tem um caracter principalmente descritivo e as interpretações da
investigadora sobre elas são limitadas.
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“Participar não é só fazer activismo”: olhares de crianças e adolescentes moçambicanos
“É uma maneira de ser autêntica”: identidade e expressão dos adolescentes
Gosto de ser diferente e especial. Eu estou a me a ver, eu na verdade
gosto muito de tirar foto e gosto de ser autêntica, achei diferente olhar
para o céu tentar ler o que está escrito apesar de não estar escrito nado
no céu, foi uma maneira de me identificar. É uma maneira de eu mostrar a
minha autenticidade, é um modo de ser autêntica, se formos autênticas as
pessoas vão gostar do jeito que nos somos. Egineta, 15 anos, Maputo
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As crianças e os adolescentes participantes identificaram elementos indivi-
duais que são necessários para poder actuar de forma positiva na sociedade, isto é,
para participar:
requisitos biológicos: ter vida, saúde e necessidades básicas satisfeitas;
requisitos identitários: ter identidade, emoções e sonhos e ter possibilidade
de expressá-los;
capacidades e competências: ter acesso a conhecimentos, ter habilidades
para a vida e a capacidade de relacionar-se com os outros.
Para as crianças e os adolescentes dos diferentes contextos, a vida é o pressu-
posto básico para qualquer forma de participação e não é algo tido como garantido,
mas que deve ser reconhecido e valorizado a cada momento: “Eu tenho vida e todos
também devem ter vida” (Helton, 19 anos, Pebane). Muitos referem que “amam a
vida” e, em particular, os de Ribaué enfatizam que se sentem bem quando come-
ram, tomaram banho e não têm nenhuma doença.
Ainda, para os adolescentes, é importante expressar através das palavras quem
eles são realmente, a sua identidade, os seus sonhos e as suas emoções. Para os
mais novos, apesar de eles acharem positivo partilhar e não guardar as suas emo
-
ções, costuma ser mais difícil conversar sobre o que sentem e preferem expressar-se
através do canto, da dança e das brincadeiras. Os adolescentes mais velhos dos três
contextos mencionam também a música, tanto escutar assim como produzir músi
-
cas, como algo que ajuda a gerir e expressar as suas emoções. Entretanto, a música
é produzida de forma diferente de acordo com o texto onde os adolescentes se encon
-
tram inseridos: eles utilizam um aplicativo do telefone ou do computador no contexto
urbano, em Maputo, enquanto usam instrumentos musicais como os batuques nas
zonas mais rurais, em Pebane e Ribaué. Segundo André, 18 anos, de Maputo: “a
música é a fonte de consolo em todos momentos. Se a tal pessoa quer expressar uma
coisa, ela poderia recomendar uma música para expressar o que ela sente”.
Para os adolescentes de todos os contextos, os conhecimentos representam o
primeiro passo em direcção a uma participação activa na sociedade: conhecer os
seus direitos é importante para poder concretizá-los, estudar é o caminho para
conseguir o emprego desejado e saber alguma coisa e ensiná-la aos outros aumenta
também a autoconfiança: “eu já reparei uma coisa, os adolescentes gostam muito de
mostrar que sabem uma coisa, fazer uma coisa nova, pode ser uma coisa da igreja,
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“Participar não é só fazer activismo”: olhares de crianças e adolescentes moçambicanos
do basquete, da escola, só de eu saber que uma coisa que a outra não sabe, tipo me
sinto mais, mais!” (Egineta, 15 anos, Maputo).
Os adolescentes de Maputo (15 – 19 anos) mencionam também algumas habi-
lidades individuais que consideram importantes para alcançar a felicidade e rea-
lizar os seus sonhos: ser optimista e capaz de sorrir em qualquer ocasião; ter foco,
determinação e força de vontade para alcançar os seus objectivos; ter paixão e dedi-
cação nas actividades desempenhadas; ter capacidade de fazer as escolhas certas,
avaliando custos e benefícios; não ter medo de tentar. Para elesm estas atitudes
representam a chave do sucesso no presente e no futuro e podem ser cultivadas nas
situações quotidianas, por exemplo, decidindo usar o dinheiro para ir passear na
praia em vez de sentar na barraca a beber ou experimentando um novo passo de
dança, mesmo sabendo que não vai sair bem.
Todos os adolescentes, independentemente da idade e do contexto, mostram o
prazer de estarem juntos como outras pessoas e de poder ajudar quem precisa. Os
adolescentes mais velhos de Maputo enfatizam a capacidade de colaborar com os
outros para alcançar um objectivo. A capacidade de ouvir e respeitar a opinião dos
outros, sobretudo dos mais velhos, é valorizada em todos os contextos. Outras prá-
ticas mencionadas, mas ainda pouco implementadas, são a demostração de afecto
(sorrir, abraçar) e pedir ajuda em caso de necessidade: “devemos falar para os nos-
sos mais velhos, para dizer que se acontecer uma coisa devemos correr para falar
para eles resolver muito rápido” (Artur, 13 anos, Pebane). Finalmente, na relação
com os outros, os adolescentes mencionam também a capacidade de não sucumbir
a opinião dos outros, respeitando a si mesmos e aos seus gostos. Algumas meninas,
que costumam ser gozadas pelos colegas devido à sua magreza, explicam:
[...] eu gosto do meu corpo assim. Pessoas falam que eu sou modelo, eu mesmo eu ser ma-
grinha, não me importo. Meu corpo não é como vosso, quando nos dão corrida com cão e na
educação física, vos ganho, vocês com vossa gordura também choram com vossa gordura e
querem ser magras como eu (Meninas, 12 -13 anos, Pebane).
As barreiras que se colocam à livre expressão dos adolescentes são, em parte,
especulares aos requisitos mencionados. Em termos biológicos, os adolescentes de
Ribaué mencionam as doenças como algo que lhes impede de participar das activi-
dades com os outros. As limitações nos requisitos identitários e nas capacidades e
competências acabam se influenciando umas com as outras, sendo que os adoles-
centes de Maputo e Pebane mencionam a falta de autoestima e o medo como obs-
táculos para a sua participação: uma vez que “a maioria dos adultos pensa que as
crianças não sabem nada, às vezes elas próprias se limitam”, acreditando que são
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novas e, portanto, sem valor e capacidades para participar. Esta ideia faz-lhes ter
medo de aproximar a polícia ou outras autoridades competentes para apresentar
queixa, caso aconteça alguma violação, tendo um impacto negativo na implemen-
tação de todos os seus direitos (provisão, protecção e participação). Finalmente,
enquanto as condições económicas não tinham sido referidas pelos participantes
como um elemento necessário para a participação, a falta de meios financeiros é
apontada como um entrave, porque mina a sua autoeficácia (BANDURA, 1997),
isto é, as crenças individuais sobre a sua capacidade de alcançar objectivos e so-
nhos. Este aspecto é mais notável nos contextos de Pebane e Ribaué, onde efecti-
vamente os participantes viviam em condições materias desfavorecidas em relação
aos da cidade de Maputo.
“União de amigos” e destruidoras de amizade”: as relações de pares
Eu gosto de brincar com os meus amigos. Brincar me faz sentir bem.
Delmiro, 13 anos, Ribaué
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“Participar não é só fazer activismo”: olhares de crianças e adolescentes moçambicanos
Essa foto saquei porque me faz sentir bem, porque gosto de conviver
com as minhas amigas. Vanessa, 12 anos, Pebane
Os amigos representam um elemento central na vida de todos os participan-
tes. Para as participantes de Pebane, de 12-14 anos, a amizade é “uma união de
amigos, estamos unidos, ficamos unidos, falando sobre coisas boas”. Em geral, para
os mais novos, a amizade é baseada sobretudo nas brincadeiras, enquanto os mais
velhos enfatizam as conversas e os interesses comuns. As actividades entre amigos
também se diferenciam de acordo com o género. Enquanto as meninas mais novas
cantam, dançam e fazem jogos tradicionais e as mais velhas conversam, os rapazes
de todas as idades são mais virados para actividades físicas e desporto (sobretudo
futebol). Em muitos casos, sobretudo em Pebane e Ribaué, a amizade entre ho-
mens e mulheres é mais rara e não muito aceite socialmente. Para as crianças e
os adolescentes, a amizade representa um espaço de aprendizagem, troca de ideias
e partilha de conhecimentos. Enquanto os participantes mais novos, através dos
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amigos, “aprendem brincando”, os mais velhos gostam de partilhar os seus conhe-
cimentos para ficarem mais “famosos”:
Esse jogo é txemurama, em português, “comermos arroz”. Assim aí puseram um pau, estão aí
a comer pouco pouco se deixar cair o pau, vai correr até bambu a pessoa vão lhe bater. Esse
jogo nos ensina a sorrir. A brincar, a comer devagar, não comer depressa. Meninas, 12 – 14
anos, Pebane
Uma vez que ela vai ensinar uma pessoa e vai dizer eu é que lhe ensinei, acho que vai ser
bonito e engraçado. Acho que a pessoa gosta, porque vai dizer: hi! eu é que lhe ensinei, eu é
que ensinei Fátima eu é que ensinei, então os adolescentes gostam muito, ficam populares por
causa disso, a maioria gosta de ser populares, ou aumenta teu próprios conhecimentos porque,
quando você ensina outra pessoa acabas aprendendo coisas novas. Egineta, 15 anos, Maputo
Apesar de os amigos serem tão importantes, os participantes referem que não
é fácil conseguir amigos verdadeiros, capazes de escutar, aconselhar e partilhar to-
dos os momentos. Estes amigos se diferenciam dos conhecidos, com os quais podem
andar juntos, “bater papo” e partilhar vícios (beber, fumar), mas não existe uma
comunhão e uma expressão aberta da sua identidade e dos seus sentimentos. Ain-
da, os adolescentes de Maputo sugerem que é necessário ser proactivos na procura
de amigos, não sendo recomendável ficar em casa e lamentar que os amigos não
visitam, mas sim fazer o primeiro passo e ir ao encontro deles.
Entretanto, mesmo considerando a amizade uma experiência geralmente
positiva, é juntos dos amigos que os participantes vivenciam diferentes situações
de exclusão. Em particular, os adolescentes sentem-se mal quando: os pares ex-
cluem-nos das conversas e das brincadeiras; os pares “roubam-lhes” os amigos; os
pares gozam com eles; os pares querem mostrar-se superiores. As participantes de
Pebane, de 12 - 14 anos de idade assim descrevem o conceito de “destruidoras de
amizade”:
Quando encontra as outras a brincar, quando essa aproxima, outras proíbem essa de brincar.
Porque ela foi a última a chegar. Ou quando querem dançar, alguém prepara o passo dele para
dançar, então vem uma menina lhe proíbem, falam para procurar alguém para dançar com ele.
No dia seguinte, ela basta ver algo, ou comprar bolacha, ela proíbe, fala ‘vocês me proibiram
de brincar com vocês, também não vou-te dar minha bolacha’. Aqui em Pebane, amizade
também não dura porque tem destruidoras de amizade. Estão na escola essas pessoas. Vem
vê Fatu e Bia a brincar ali, ela chega, vai leva ela e vai com ela onde ela vai. Fala no ouvido e
nós que ficamos ali, ficamos tristes.
Em muitos casos, a pressão de pares e a ridicularização no grupo acabam im-
pedindo aos adolescentes de fazerem o que eles gostam, por vergonha. Finalmente,
outra barreira vivenciada na amizade, é a dificuldade de crianças e adolescentes de
abrir-se, contar as suas preocupações e pedir ajuda aos amigos:
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“Participar não é só fazer activismo”: olhares de crianças e adolescentes moçambicanos
Há muitos rapazes ou meninas que gostam de se angustiar, serem por exemplo essa menina
aqui está nervosa, está triste, não quer contar para amiga dela o que está a sentir, ela foi viola-
da ou aconteceu alguma uma coisa e ela não quer contar para amiga dela, então por isso fica
sobre ela só, se aconteceu uma coisa, ela se contar para amiga podia-lhe ajudar a dizer essa
coisa que ela está a sentir. Rapazes, 12 -13 anos, Pebane
“Uma mãe ou pai dizer amo-te’ a informar a um lho é muito difícil”: a vida familiar
Outra coisa que torna o meu dia especial e alegre, é conversar
com a minha mamã. Érica, 16 anos, Maputo
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A família constitui um espaço muito importante de convivência e inclusão so-
cial, entretanto apresenta oportunidades e barreiras para a participação de crian-
ças e adolescentes, em diferentes âmbitos:
existência da família;
respeito pelos direitos das crianças;
relação pais – filhos;
apoio recíproco;
• liberdade.
Os adolescentes consideram que “a família é a base de tudo. Tudo o que você
pode ser, o que você pode conquistar também está na base da família e muitas vezes
não beneficia só você, beneficia também a família, então a família é uma coisa
muito importante” (Rapazes, 12 -13 anos, Pebane). Estar com a família e ver os fa-
miliares felizes é motivo de satisfação para os participantes da pesquisa. Em geral,
os adolescentes valorizam os pais, os irmãos, os tios e os avós, dependendo da sua
situação familiar e o nascimento de mais um membro da família é recebido com
grande alegria: “quando a tua mãe está grávida, já deu filho, você fica emocionado,
ter um irmão ou uma irmã” (Artur, 13 anos, Pebane).
Quando as meninas se tornam mães, uma realidade bastante comum em Mo-
çambique onde cerca metade das mulheres têm um filho antes dos 18 anos (UNI-
CEF, 2015), os outros familiares passam para o segundo plano e o bem-estar dos
seus próprios filhos é considerado como principal influenciador do seu próprio bem-
-estar:
A minha filha, eu gosto assim porque ela está bem, amanheceu bem. Ela é minha filha, e ela
está bem, e ela está a brincar. Eu não fico bem quando está doente. Assim se está aí deitada
melhor levar ao hospital, eu também vou ficar bem e ela também vai ficar bem. Mércia, 16 anos,
Ribaué
Nos contextos estudados, não ter família é, portanto, motivo de tristeza. Esta
situação é apresentada por um participante de Maputo, que nunca conheceu o pai
e sente falta de um guia masculino na sua vida, e também por um participante
de Ribaué que está preocupado com a ausência dos avós, uma vez que a tradição
local exige que sejam eles a assinar na cerimónia de casamento. A distância dos
familiares representa outro motivo de tristeza, amenizada pelas visitas ocasionais
que acontecem: “eu não gosto de ficar longe dos meus irmãos. Nos somos 9, depois
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“Participar não é só fazer activismo”: olhares de crianças e adolescentes moçambicanos
eles saíram, outro para África do Sul, outros foram viver nas outras casas, eu vou
la nas férias, às vezes eles vêm” (Isaura, 12 anos, Maputo).
O conhecimento e o respeito pelos direitos das crianças representariam uma
oportunidade de participação na vida familiar na perspetiva de crianças e adoles-
centes envolvidos no estudo: “os direitos, os nossos pais devem conhecer os nossos
direitos porque ser um pai assim uma criança fica lá muito feliz, o dia depois os
nossos pais nos dão amor, carinho, isso” (Rapazes, 12 -13 anos, Pebane). Entre-
tanto, em muitos casos, estes direitos não são conhecidos e implementados e a
vida dos participantes é marcada por experiências de diferentes tipos de violência
doméstica. A situação é particularmente crítica para os enteados, que costumam
ser discriminados e maltratados por madrastas e padrastos, como referido pelos
adolescentes de Pebane e Ribaué.
Alguns adolescentes, sobretudo os mais velhos de Maputo, referem ter uma
relação próxima e aberta com os seus pais e esta é uma experiência positiva para
eles. Para os outros, existem geralmente espaços limitados de conversa. Mesmo
sobre os comportamentos dos filhos, os adultos costumam conversar só entre eles,
enquanto os filhos gostariam de ser corrigidos abertamente pelos pais. No caso os
pais não tomem a iniciativa de falar com eles, alguns adolescentes sugerem que
eles mesmos deveriam aproximar-se dos pais para conversar, mas outros confes-
sam que têm medo de dar o primeiro passo, porque acham que os pais poderiam
zangar e levantar a voz, não considerando apropriado este tipo de interacção:
Num quintal, uma criança pode falar ‘pai, aqui podemos jantar assim’, o pai vai recusar, vai
dizer ‘você não tem idade de falar, eu é que sou mais velho que mando aqui‘, determinar a
criança, ‘você não nasceu a mim!’ Rapazes, 15 – 21 anos, Ribaué
Segundo os participantes, existem pais que não têm paciência de ensinar aos
filhos e ficam nervosos com facilidade quando estes erram. A expressão de afecto
através de gestos e palavras é outra barreira identificada na relação entre pais e
filhos. Na melhor das hipóteses, sobretudo em Pebane e Ribaué, o amor dos pais
é manifestado através do apoio material às necessidades dos filhos. Da mesma
forma, os filhos não estão acostumados a manifestar verbalmente o seu afecto para
os pais e a agradecer por aquilo que têm feito por eles. Finalmente, a sinceridade
entre pais e filhos é valorizada pelos participantes: eles não devem mentir para os
adultos para que estes possam continuar a confiar neles. Ao mesmo tempo, quando
um dos pais não é sincero com a família, ausentando-se de casa sem informar é
motivo de tristeza e preocupação para os filhos.
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As crianças e adolescentes consideram muito importante o apoio dos pais, em
termos emocionais mas sobretudo materiais, para satisfazer as suas necessidades
e alcançar os seus objectivos. A falta de apoio por parte dos pais promove mal-estar
nas crianças e nos adolescentes. Da mesma forma, os participantes reconhecem
que é seu dever apoiar os pais e contribuir para a vida familiar, cuidando dos ir-
mãos, realizando trabalho domésticos e colaborando nas actividades agrícolas e
nos negócios da família. Um dele refere que sente-se mal quando um familiar dis-
tante precisa de ajuda, por exemplo porque está doente, e ele não consegue apoiar.
Um jovem de Ribaué refere ter medo da morte porque deixaria os familiares sem
o seu apoio. Segundo os participantes, a inveja representa uma barreira para o
apoio no seio da família, levando alguns familiares a envolver-se na feitiçaria para
prejudicar os outros:
[...] tem inveja que a própria família vira uma coisa perigosa. Por exemplo quando você tem, o
outro não tem, então têm pessoas da família que se envolvem nas drogas tradicionais para te
prejudicar, porque você tem e eles não ficaram felizes (Helton, 19 anos, Pebane).
A liberdade experienciada no seio das famílias é um aspecto discutido pelos
participantes. Em particular, eles criticam o facto de os pais lhes proibirem de sair
para brincar (no caso dos mais novos) ou para ir as festas (no caso dos mais velhos).
O que eles acham apropriado é estabelecer limites, uma vez que a proibição total
prejudica a participação e o bem-estar de crianças e adolescentes e também os
motiva a infringir a regra estabelecida. Os adolescentes de Maputo referem que,
em relação à escolha do curso universitário, hoje os pais deixam maior liberdade
em relação ao passado. Pelo contrário, as adolescentes de Ribaué que terminaram
a 12ª estão à espera de os pais conseguirem uma oportunidade para elas continua-
rem os estudos.
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“Participar não é só fazer activismo”: olhares de crianças e adolescentes moçambicanos
Considerações nais
O que me faz sentir bem em primeiro lugar é a minha família, quando estou
com a minha família sinto-me muito a vontade e em segundo lugar sinto-me
a vontade quando estou com os meus amigos sem brigas e sem brincadeiras
de mau gosto. Isto me faz sentir bem a vontade. Artur, 13 anos, Pebane
Para as crianças e os adolescentes envolvidos no estudo, participar não é ape-
nas o envolvimento em actividades e contextos formalmente reconhecidos como
tendo um impacto na vida social, mas sim um exercício quotidiano, que começa
de si mesmos, da forma individual de expressar-se e apresentar-se ao mundo e,
passando pelas relações interpessoais com os amigos e os familiares, chega até a
escola, a comunidade e a sociedade em geral.
A inclusão social, na sua dimensão relacional, isto é, experimentar um senti-
mento de pertença e aceitação (BAILEY, 2005) é mencionada por todos os partici-
pantes como uma experiência positiva, seja com amigos, familiares e vizinhos, as-
sim como na igreja ou mesquita, nas equipas e nas associações locais. No contexto
da Convenção dos Direitos das Crianças, três principais direitos remetem para a
participação de crianças e adolescentes na sociedade:
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a liberdade de expressão, associação e religião;
o direito à informação;
o direito a dar opinião e esta ser considerada, em todos os assuntos que os
afectam.
Ao longo da pesquisa, nota-se que o primeiro direito, com algumas barreiras,
é vivenciado pelos adolescentes de todas as idades e de todos os contextos, sobre-
tudo ao nível dos amigos, da família e da comunidade. Os adolescentes participam
de diferentes formas na sociedade, através da brincadeira, da música, da dança,
do desporto e da religião, através da sua contribuição nas actividades domésticas
e produtivas na família e na comunidade. Entretanto, o acesso à informação e o
direito à opinião representam uma realidade ainda “incipiente” e reservada quase
exclusivamente aos adolescentes mais velhos e que vivem no contexto urbano de
Maputo.
As crianças e os adolescentes moçambicanos têm poder de decisão limitado
desde o nível familiar, em particular as meninas que são casadas com homens
mais velhos, até ao nível comunitário e ao nível nacional de discussão de políticas
(BIZA, 2007). Entretanto, a pesquisa mostrou que eles encontram espaço para pro-
mover novos conhecimentos, atitudes e práticas nas suas vidas, nas suas relações
de amizade e nas suas famílias. Enfrentar desafios e relações de poder desiguais
não significa ficar calados ou ser passivos e as situações difíceis podem inspirar os
mais novos a engendrar soluções criativas (HONWANA, 2014).
Nota
1
Os dados apresentados são resultado de uma pesquisa desenvolvida com financiamento do UNICEF Mo-
çambique no âmbito da Análise da Situação dos Adolescentes em Moçambique 2018. Entretanto, as opi-
niões expressas no artigo são da exclusiva responsabilidade da autora, não reflectindo a política ou a
posição da UNICEF.
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BIZA, A. M. Associações de Jovens, Estado e Política em Moçambique. Maputo: IESE, 2007.
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Inês Peixoto Silva, Ana Isabel Silva, Beatriz Oliveira Pereira
*
Doutora em estudos da Criança, Universidade do Minho. Professora convidada da Universidade do Minho, Portugal
e membro do Centro de Investigação em Estudos da Criança. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-4547-5336. E-mail:
inexota@hotmail.com.
**
Doutora em estudos da criança e membro do Centro de Investigação em Estudos da Criança, Universidade do Minho,
Portugal. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-5751-3902. E-mail: anasilva0883@gmail.com
***
Doutora em estudos da criança, professora catedrática da Universidade do Minho e membro do Centro de Investiga-
ção em Estudos da Criança, Instituto de Educação, Universidade do Minho, Portugal. Orcid: https://orcid.org/0000-
0003-4771-9402. E-mail: beatriz@ie.uminho.pt
Recebido em 21/10/2019 – Aprovado em 09/04/2020
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i2.11430
Como se relacionam as crianças em contexto de jogo? um estudo realizado em
crianças do 1º ciclo
1
How do children relate in game context? a study of primary school children
¿Cómo se relacionan los niños en el contexto del juego? un estudio con alumnado de primer ciclo
Inês Peixoto Silva
*
Ana Isabel Silva
**
Beatriz Oliveira Pereira
***
Resumo
O jogo é um comportamento característico de qualquer criança constituindo-se como promotor do seu de-
senvolvimento pois através da sua prática estas interagem entre si em brincadeiras aprendendo a negociar,
cooperar e trabalhar em equipa. Objetivo: Compreender como se relacionam as crianças em contexto de jogo.
Metodologia: participaram 35 alunos (19 meninos e 16 meninas), 18 do 1º ano e 17 do 3º ano com idades entre
os 6 e 9 anos (7,2±1,1). Foi utilizado um guião de observação construído para o efeito com 3 subcategorias para
a categoria “relações interpessoais”: 1) Ser capaz de trabalhar em equipa; 2) Ser sociável, relaciona-se facilmente
com o próximo; 3) Ter em consideração as ideias e objetivos dos elementos do grupo. Foi realizado um jogo
entre duas equipas com objetivo de percorrer um de três percursos pontuados de acordo com o grau de di-
culdade. Resultados: nas 3 subcategorias vericou-se que a maioria dos alunos, independentemente do género
e ano de escolaridade apresentou este comportamento de forma positiva não se vericando diferenças esta-
tisticamente signicativas (p<0,05). Conclusões: as crianças, na sua maioria, demonstraram relacionar-se com
os pares no decorrer do jogo sendo assim essencial promover na criança estas competências essenciais ao seu
desenvolvimento emocional e social.
Palavras-chave: Jogo. Relações Interpessoais. Criança.
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Como se relacionam as crianças em contexto de jogo? um estudo realizado em crianças do 1º ciclo
Abstract
Play is a typical behaviour of any child and a promoter of their development, through which they interact, along
the play, and learn to negotiate, cooperate and work in teams. Objective: Understand how children relate in a
context of game. Methodology: 35 students (19 boys and 16 girls), 18 from the 1st year and 17 from the 3rd
year aged between 6 and 9 years (7.2 ± 1.1) participated. A purpose-built observation guide was used with 3
subcategories for the category “interpersonal relationships”: 1) Being able to work in a team; 2) Be sociable, easily
relate to others; 3) Consider the ideas and goals of the group members. A game was held between two teams
with the objective of covering one of three courses scored according to the degree of diculty. Results: In the 3
subcategories it was veried that the majority of students, despite the gender and grade, showed this positive
behaviour, without a statistically signicant dierence (p<0.05). Conclusions: Most children have shown to relate
to peers throughout the game, and it is essential to promote in children these skills, essential for their emotional
and social development.
Keywords: Play. Interpersonal relationships. Children.
Resumen
El juego es un comportamiento característico de los niños y es un importante promotor de su desarrollo inte-
gral, a través de la práctica ellas interactúan, negocian, cooperan y trabajan en equipo. Objetivo: Comprender
se relacionan los niños en el contexto del juego. Metodología: participaron 35 estudiantes (19 niños y 16 niñas),
18 del primer año y 17 del tercer año, con edades entre 6 y 9 años (7.2 ± 1.1). Se utilizó una guía de observación
especialmente diseñada con 3 subcategorías para la categoría “relaciones interpersonales”: 1) Poder trabajar en
equipo; 2) Ser sociable, relacionarse fácilmente con los demás; 3) Considerar las ideas y objetivos de los miem-
bros del grupo. Se realizó un juego entre dos equipos con el objetivo de cubrir uno de los tres campos anotados
de acuerdo con el grado de dicultad de la tarea. Resultados: en las 3 subcategorías vericadas, la mayoría de
los estudiantes mostraron un comportamiento positivo, sin vericar las diferencias estadísticamente utilizadas
(p <0.05). Conclusiones: se ha demostrado que la mayoría de los niños se relacionan con sus compañeros en
el desarrollo de los juegos, siendo necesario promover esas habilidades con el n de contribuir a su desarrollo
físico, psíquico, social y emocional.
Palabras clave: Juego. Relaciones interpersonales. Niños.
Introdução
O jogo é uma atividade comum a qualquer criança, permite que esta entre num
mundo imaginário, assuma personagens, recrie situações através das quais exprime
os seus sentimentos aprendendo a adaptar-se às exigências que o mundo lhe confere
no momento. É o modo de aprender e descobrir o mundo, uma forma de movimento,
comunicação, exploração e aprendizagem, um meio essencial à socialização sendo
a sua principal característica a longevidade individual e social (MIHAELA, 2013).
A mesma autora acredita na existência de uma relação próxima entre jogo e
desenvolvimento, onde o jogo é promotor não só da componente motora mas tam-
bém da cognitiva, emocional e social. Sob ponto de vista motor, o jogo permite o
desenvolvimento da destreza e força física (GINSBURG, 2007) e ainda a diminui-
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Inês Peixoto Silva, Ana Isabel Silva, Beatriz Oliveira Pereira
ção dos efeitos negativos dos estilos de vida sedentários, cada vez mais patentes na
infância (PELLEGRINI & BOHN, 2005), promovendo ainda competências cogni-
tivas como a linguagem expressiva, o sentido numérico, o raciocínio e a resolução
de problemas (HURWITZ, 2002), a criatividade, a imaginação (MIHAELA, 2013;
MILTEER & GINSBURG, 2012; GINSBURG, 2007; HURWITZ, 2002) a capaci-
dade de assumir riscos e de lidar com os seus medos, capacidade de resiliência e
superação de desafios (MILTEER & GINSBURG, 2012) a criação de algo novo, a
descoberta e pensamento (HURWITZ, 2002). Todavia, para além das competências
acima referidas, o jogo como momento privilegiado de interação social (HUIZINGA,
2003; KISHIMOTO, 1998) possibilita também a promoção da capacidade de nego-
ciação (MILTEER & GINSBURG, 2012), o trabalho de equipa, a cooperação entre
pares (MILTEER & GINSBURG, 2012; HURWITZ, 2002; NETO, 1997), o diálogo,
o respeito pelo outro e pelas regras (FILGUEIRAS, 2002) ou seja as relações in-
terpessoais e ainda a melhoria da perceção corporal, autoeficácia, autoestima e
bem-estar psicológico (NETO, 1997).
As relações interpessoais são essenciais no processo de formação das crianças,
essencialmente sob o ponto de vista do seu desenvolvimento social e emocional, es-
tas interagem entre si em brincadeiras e jogos, aprendendo a negociar, a cooperar
e a trabalhar em equipa para atingirem um objetivo (MENDES, 2012). Segundo
Brougère (1998, p. 112) só existe jogo quando “a criança dispõe de significações, de
esquemas em estruturas que ela constrói no contexto de interações sociais que lhe
dão acesso a eles.”
Estas competências, que permitem o relacionamento entre pares, podem ser
essenciais a longo prazo, num contexto pessoal e profissional na medida em que é
também considerada uma das mais relevantes características de um empreende-
dor. O jogo e a brincadeira devem assim ser valorizados no contexto escolar, como
meio facilitador de aprendizagens primordiais ao seu processo de formação.
Apesar de todos os benefícios evidentes associados à prática do jogo, a sua
aplicação tem sido, ao longo dos anos, negligenciada. Analisada a literatura sobre
esta temática, em particular sobre as caraterísticas empreendedoras em crianças,
verificamos que existe uma grande lacuna científica, uma vez que estes estudos
têm sido realizados com adultos e em contexto laboral. No nosso entendimento é
necessário ir à escola, às crianças no início da escolaridade uma vez que estas se
encontram numa fase de desenvolvimento e de aprendizagens de excelência. Este
estímulo, desde cedo, permitiria também responder a um mundo em constante
mudança que necessita de novas respostas para novos problemas.
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Como se relacionam as crianças em contexto de jogo? um estudo realizado em crianças do 1º ciclo
São já alguns os programas a ser implementados em escolas com vista a de-
senvolver as caraterísticas empreendedoras, mas escasseiam os trabalhos científi-
cos que avaliem esses programas.
Compreendemos quão arriscado seria enveredar por este caminho, mas a
nossa motivação para aprofundar estas questões não deixou que as dificuldades
se sobrepusessem à necessidade de conhecer esta realidade que se demonstrou
desafiante.
Objetivos
Compreender como se manifesta a característica “Relações interpessoais” em
contexto de jogo em crianças do 1º ciclo.
Metodologia
Delineamento da investigação: trata-se de um estudo exploratório com recurso
a metodologias mistas. Este estudo pretendeu dar voz às crianças utilizando ins
-
trumentos não convencionais por sabermos que os estudos realizados com crianças
necessitam de ser aprofundados e, por isso, o recurso ao jogo e discussão livre entre
as crianças para a resolução de um problema, foi essencial para a recolha dos dados.
Participantes: 37 alunos sendo 18 alunos do 1º ano de escolaridade (9 do género
feminino e 9 do género masculino) e 19 alunos do 3º ano (9 do género feminino e 10
do género masculino). As 37 crianças tinham idades compreendidas entre os 6 e os
9 anos (7,2±1,1). O estudo foi realizado numa escola do 1º ciclo do ensino básico da
área urbana de Braga.
Instrumentos: Foi desenvolvido um jogo para testar as competências empreende-
doras das crianças, sendo uma delas as “relações interpessoais”. O diálogo entre os
vários elementos de ambas as equipa foi gravado e transcrito para análise do seu
conteúdo.
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Protocolo do jogo:
Fonte: autora.
Idades: 1º e 2º ciclo
Participantes: podem participar duas ou mais equipas mistas, de quatro elemen-
tos. O número de equipas varia em função do número de participantes disponíveis
para a realização do jogo.
Objetivo para as crianças: transpor um percurso com sucesso com três varian-
tes de transposição com o intuito de obter a máxima pontuação para a equipa no
final de todas as variantes.
Objetivo para a investigação: identificar características empreendedoras em
contexto de jogo estruturado. As características avaliadas são assunção do risco,
autoconfiança, criatividade/inovação, identificação de oportunidades, liderança/
tomada de decisão, organização/planeamento, persistência/resistência ao fracasso
e relações interpessoais.
Descrição: o jogo consiste na escolha de um de três percursos existentes. A escolha
deve ser ponderada na medida em que os percursos são pontuados de acordo com o
grau dificuldade. Em cada um dos percursos são dispostas três barreiras espaçadas
entre si cuja altura vai aumentando progressivamente sendo o percurso 1 de menor
dificuldade e o 3 de maior dificuldade.
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No final de cada percurso encontra-se uma caixa com diferentes pontuações,
ou seja, no percurso 1 a caixa contém papeis de 1 ou 2 pontos, no percurso 2, 2 ou 3
pontos e no percurso 3, 3 ou 4 pontos.
Na primeira variante, o objetivo é que as crianças ultrapassem as barreiras
transpondo-as por cima, na segunda variante por baixo e na terceira intercalando
por cima e por baixo. Deve ter-se em atenção que, na segunda variante, deve inver-
ter-se a ordem das pontuações de modo a que o percurso 1 se mantenha como o de
menor e o 3 de maior dificuldade.
Cada equipa terá até 3 minutos para decidir qual a ordem de partida de cada
um dos seus elementos que poderá alterar-se entre variantes.
Uma equipa de cada vez e, individualmente, cada aluno opta por um dos per-
cursos, retira o papel correspondente, abre-o, lê em voz alta e coloca-o numa outra
caixa atribuída à sua equipa que se encontra no fundo da sala. Em seguida deve
correr o mais rapidamente possível pela lateral destinada para o efeito e toca na
mão do colega que parte de imediato e assim sucessivamente durante três minutos.
No final dos 3 minutos o jogo termina, estes sentam-se e recomeça para a equipa
adversária. Após ambas as equipas terminarem o jogo, estas reúnem-se para a con-
tagem dos pontos conseguidos. A contagem é realizada pelo mediador em voz alta
e mostrando sempre os pontos a todos os elementos. A soma dos pontos é realizada
oralmente por todos os participantes. No final da contagem são escritas as pon-
tuações conseguidas por cada equipa. Aquando do término da atividade somam-se
todas as pontuações verificando aí qual a equipa vencedora.
Duração: três minutos para cada equipa. Visto ser um jogo em que, para cada
variante, os alunos têm de optar por um de três percursos com diferentes níveis de
dificuldade é importante que a sua duração seja por tempo e não por número de
percursos pois é essencial que a criança aja em função do risco / benefício da sua
opção caso contrário, terá tempo para ultrapassar o percurso com maior dificulda-
de na perfeição sem que a sua ação tenha uma consequência.
Disposição do material: em todos os percursos as barreiras têm o comprimento
de 121 centímetros (cm) e as três barreiras são espaçadas por 110 cm. No percurso
1 as barreiras estão colocadas a uma altura do solo de 15,5 cm e por isso, é designa-
do como nível mais fácil. No percurso 2, as barreiras estão colocadas a uma altura
do solo de 31,5 cm e por isso é denominado como nível médio e no percurso 3 as
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barreiras estão colocadas a uma altura do solo de 46,5 cm e por isso é denominado
como o nível mais difícil.
Nos níveis de maior dificuldade deve considerar-se, na primeira variante, a estru-
tura física dos alunos e caso se verifique que para parte considerável não é possível
a sua transposição então deve ser ajustada a altura do solo da barreira. Na segun-
da variante, a barreira não deve ultrapassar a altura da cintura da maioria das
crianças.
Material: 24 Blocos, respetivas barreiras (9), várias bases de suporte com 4 cm
para aumentar a altura das barreiras, 5 caixas (3 são para os percursos e 2 para
a colocação das pontuações de cada equipa). Podem ser utilizados diferentes ma-
teriais desde que as barreiras tombem se tocadas pelas crianças e com isso as
condições de segurança asseguradas.
Procedimentos: inicialmente foram pedidas todas as autorizações necessárias
para concretização do estudo nomeadamente ao Conselho Científico do Instituto
de Educação da Universidade do Minho, à Direção Geral de Inovação e Desenvol-
vimento Curricular, à Comissão Nacional de Proteção de Dados (autorização nº
842/2016) à Comissão de ética para as Ciências Sociais e Humanas da Universi-
dade do Minho, ao agrupamento de escolas, aos professores, encarregados de edu-
cação e crianças que deram o seu consentimento informado tendo sido informadas
que a sua participação era voluntária e poderiam desistir a qualquer momento se
o entendessem.
Para a análise dos dados recolhidos foram construídas à priori as subcate-
gorias referentes à categoria relações interpessoais, tendo por base a revisão da
literatura.
Quadro 1 – Categoria e subcategorias
Categoria Subcategoria
Relações Interpessoais
Ser capaz de trabalhar em equipa
Ser sociável, relaciona-se facilmente com o próximo
Ter em consideração as ideias e objetivos dos elementos do grupo
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Tratamento dos dados:
Foram utilizadas análises descritivas para quantificar os comportamentos ob-
servados, o teste Kruskal-Wallis para verificar as diferenças entre as subcategorias
quanto ao género e idade e análises interpretativas em cada uma das subcategorias
para a “relações interpessoais”. Cada aluno foi analisado com base na observação
das gravações realizadas.
Resultados
A observação do jogo permitiu observar três tipos de comportamento: Compor-
tamento positivo (CP) - verifica-se o comportamento; Comportamento Inverso (CI)
– Verifica-se o comportamento, contudo é demonstrado de modo inverso e Compor-
tamento não observado (CNO) – não se verifica o comportamento.
No quadro 2 consta o número de comportamentos positivos (CP), inversos (CI)
e não observados (CNO) em cada uma das subcategorias da categoria “relações
interpessoais” em função do género.
Quadro 2 – Relações interpessoais das crianças por género
MENINOS (n=19)
n (%)
MENINAS (n=16)
n (%)
TOTAL (n=35)
n (%)
CP CI CNO CP CI CNO CP CI CNO
Relações
Interpessoais
1 15(78,9) 4 (21,1) 0 (0,0) 13 (81,3) 3 (18,8) 0 (0,0) 28 (80,0) 7 (20,0) 0 (0,0)
2 11(57,9) 8 (42,1) 0 (0,0) 14 (87,5) 2 (12,5) 0 (0,0) 25 (71,4) 10 (28,6) 0 (0,0)
3 15(78,9) 3 (15,8) 1 (5,3) 11 (68,8) 4 (25,0) 1 (6,3) 26 (74,3) 7 (20,0) 2 (5,7)
Total 41(71,9) 15 (26,3) 1 (1,8) 38 (79,2) 9 (18,8) 1 (2,1) 79 (75,2) 24(22,9) 2 (1,9)
Legenda: CP - Comportamentos positivos; CI- comportamentos inversos; CNO - comportamentos não observados
No quadro 3 consta o número de comportamentos positivos (CP), inversos (CI)
e não observados (CNO) em cada uma das subcategorias da categoria “relações
interpessoais” em função do ano de escolaridade.
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Quadro 3 – Relações interpessoais das crianças por ano de escolaridade
1º ANO (N=18)
N (%)
3º ANO (N=17)
N (%)
TOTAL (N=35)
N (%)
CP CI CNO CP CI CNO CP CI CNO
Relações
Interpessoais
1 13(72,2) 5 (27,8) 0 (0,0) 15(88,2) 2 (11,8) 0 (0,0) 28(80,0) 7 (20,0) 0 (0,0)
2 14(77,8) 4 (22,2) 0 (0,0) 11(64,7) 6 (35,3) 0 (0,0) 25(71,4) 10(28,6) 0 (0,0)
3 11(61,1) 6 (33,3) 1 (5,6) 15(88,2) 1 (5,9) 1 (5,9) 26(74,3) 7 (20,0) 2 (5,7)
Total 38(70,4) 15(27,8) 1 (1,9) 41(80,4) 9 (17,6) 1 (2,0) 79(75,2) 24(22,9) 2 (1,9)
Legenda: CP - Comportamentos positivos; CI - comportamentos inversos; CNO - comportamentos não observados
Relativamente a esta característica, Relações Interpessoais, mais concreta-
mente à subcategoria 1 “É capaz de trabalhar em equipaaferimos que, este com-
portamento foi verificado na totalidade dos alunos no decorrer do jogo, no entanto,
uns de forma positiva e outros, inversa. Assim, o CP foi observado em diferentes
situações tais como, ter em consideração as opiniões do grupo antes de tomar uma
decisão; negociar com os colegas, sem impor a sua vontade e auxiliar os colegas de
equipa com intuito do sucesso coletivo. Por sua vez, aqueles em que se verificaram
CI não demonstraram interesse pelas opiniões ou vontades dos colegas de equipa
nem não pensam ou agem coletivamente.
A análise relativa ao género não demonstrou diferenças estatisticamente sig-
nificativas (p>0,05). Na maioria dos alunos, de ambos os géneros, verificaram-se
CP (78,9% e 81,3% respetivamente). Relativamente aos CI, também os resultados
entre meninos e meninas foram semelhantes (21,1% e 18,8% respetivamente).
Quanto à idade também não se verificaram diferenças estatisticamente signi-
ficativas (p>0,05). Constatou-se que, a maioria dos alunos, de ambas as faixas etá-
rias, revelou CP (72,2% para a faixa etária mais baixa e 88,2% para a faixa etária
mais alta) e 27,8% dos alunos mais novos e 11,8% dos mais velhos manifestaram
CI. Assim, os alunos mais velhos destacaram-se ligeiramente ao evidenciarem uma
maior percentagem de CP.
Também na subcategoria 2 “É sociável, relaciona-se facilmente com o próxi-
mo”, constatou-se que, a totalidade dos alunos revelou este comportamento no de-
correr do jogo, no entanto, uns de forma positiva e outros, inversa. Assim, o CP foi
observado através da interação entre a própria equipa, mas também com a adver-
sária. Por sua vez, os CI verificaram-se pela ausência de interação com os colegas,
isolando-se das brincadeiras e da própria ação do jogo.
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No que respeita ao género, apesar de não se constatarem diferenças esta-
tisticamente significativas (p>0,05), verificou-se um destaque do género femini-
no (87,5%) relativamente ao masculino (57,9%) na observação de CP. Já nos CI o
destaque recai sobre o género masculino onde se observaram 42,1%, percentagem
consideravelmente superior à observada no género feminino (12,5%).
Quanto à idade, os resultados assemelham-se, não se verificando também di-
ferenças estatisticamente significativas (p>0,05) havendo, contudo, na observação
de CP, um ligeiro destaque para os alunos mais novos (77,8%) comparativamente
com os mais velhos (64,7%). O mesmo se verifica nos CI com o ligeiro destaque
agora, para a faixa etária mais alta (35,3%) comparativamente com a mais baixa
(22,2%).
No que concerne à subcategoria 3 “Tem em consideração as ideias e objetivos
dos elementos do grupo”, e tal como verificado nas categorias anteriores, este com-
portamento observou-se no decorrer do jogo, no entanto, uns de forma positiva e
outros, inversa. Assim, o CP foi observado através da consideração demonstrada
pelas opiniões e vontades dos colegas e os CI observaram-se através da imposição
da sua vontade, sem considerar a dos colegas. Os CNO pertencem a alunos em
que, no decorrer de todo o jogo se alhearam de qualquer posição relativamente a
opiniões ou decisões dos colegas e também não tomaram iniciativa de demonstrar
qual a sua vontade ou opinião. Nesse sentido não foi possível verificar este com-
portamento.
Analisando por género, não se constataram diferenças estatisticamente sig-
nificativas (p>0,05) todavia os CP corresponderam à maior percentagem de com-
portamentos observados tanto nos alunos do género masculino como do feminino
(78,9% e 68,8% respetivamente) destacando-se, contudo, nos meninos, uma percen-
tagem mais elevada. Relativamente aos CI, os resultados entre géneros também
se assemelham com 15,8% dos meninos e 25,0% das meninas a manifestarem este
comportamento constatando-se assim um ligeiro destaque para as meninas.
No que respeita à idade, tal como se verificou anteriormente, não se consta-
taram diferenças estatisticamente significativas (p>0,05) contudo a maioria dos
alunos apresentou, em ambas as faixas etárias, CP (61,1% nos alunos mais novos
e 88,2% nos mais velhos), destacando-se assim, os alunos mais velhos. Quanto aos
CI constataram-se em 33,3% dos alunos mais novos e 5,9% dos mais velhos deste
modo, os alunos mais novos relevaram mais este tipo de comportamento do que os
mais velhos.
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Somadas todas as subcategorias, constatamos que independentemente do gé-
nero e idade na maioria dos alunos (75,2%) se verificaram CP, 22,9% dos alunos
manifestaram CI e apenas em 1,9% dos alunos não se observou o comportamento.
Analisando por género e idade os comportamentos são bastante semelhantes.
A grande percentagem registada nos alunos refere-se a CP (71,9% nos meninos e
79,2% nas meninas e 70,4% na faixa etária mais baixa e 80,4% para a mais alta).
Quanto aos CI verificaram-se em 26,3% dos meninos e 18,8% das meninas e 27,8%
dos alunos mais novos e 17,6% dos mais velhos. Relativamente aos CNO, apenas se
verificou um caso em ambos os géneros e idades. Assim, tanto nos totais como nos
valores de cada subcategoria foi nos CP que os alunos apresentaram percentagens
mais elevadas, independentemente do género e idade.
Discussão dos Resultados
Relativamente à subcategoria 1, o trabalho de equipa é substancial no alcance
dos objetivos (MENDES, 2012). O trabalho entre pares e em pequeno grupo faz
parte das orientações curriculares para a educação pré-escolar que afirmam a sua
relevância como ação “facilitadora do desenvolvimento e aprendizagem”. Este mé-
todo de trabalho permite que as crianças confrontem as suas opiniões, encontrem
soluções conjuntas para a mesma atividade. Assim, é natural que a maioria dos
comportamentos seja positivo, não se verificando uma distinção entre meninos e
meninas, mas uma tendência para o aumento de CP e diminuição dos CI com o au-
mento da idade, o que também nos parece natural na medida em que com a evolu-
ção dos anos de escolaridade a utilização dos trabalhos em grupo ganha relevância
não só na sala de aula, mas também nos recreios e no tipo de jogos e brincadeiras.
Segundo Piaget (2010), aos 6/7 anos de idade surgem os jogos de regras com intuito
de promover a socialização, onde as regras surgem na tentativa de definir modelos
de interação entre pares, papeis a desempenhar e o contexto espácio-temporal.
Desta forma, a partir destas idades as crianças entendem a utilização da regra
bem como o respeito pela mesma, cooperando com os colegas, envolvendo-se em
equipas onde se unem em torno de um único objetivo. O trabalho em equipa surge
e vai-se fortalecendo à medida que as capacidades cognitivas, sociais e emocionais
se desenvolvem em cada um. Com este argumento, justificam-se também os re-
sultados relativos à idade na subcategoria 3 que destacam os alunos mais velhos
relativamente aos mais novos.
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No que refere à subcategoria 2 foram as meninas quem se destacou nos CP,
o que na nossa opinião pode estar relacionado com as brincadeiras preferidas por
meninas e meninos. Se por um lado, os meninos são mais competitivos e preferem
jogos mais dinâmicos, as meninas preferem atividades de menor dinamismo (CAR-
VALHAL & VASCONCELOS-RAPOSO, 2007) e com menor recurso à manipula-
ção de objetos, como ficar a conversar, jogar ao “mata” ou “apanhada” (PEREIRA;
MOURÃO, 2005), atividades estas que não requerem formação de uma equipa. Por
outro lado, Harten, Olds e Dollman (2008) consideram que o jogo praticado pelas
meninas é mais cooperativo e como tal, estas têm maior capacidade de incluir do
que os meninos. Assim, as meninas através dos jogos cooperativos conseguem re-
lacionar-se com um maior leque de colegas, promovendo mais eficazmente, a sua
capacidade de relacionamento do que os meninos que pelo cariz mais competitivo
e agressivo dos jogos praticados não permitem que qualquer um os integre, aca-
bando por se concentrarem em grupos mais específicos que não são acessíveis a
todos. Também esta razão justifica os resultados da subcategoria 3. A prática de
jogos mais competitivos como são os jogos coletivos, onde existe normalmente uma
equipa, permite que os meninos melhorem a sua capacidade de negociação e coo-
peração entre os pares e por isso tenham também a competência associada a esta
subcategoria mais desenvolvida do que as meninas.
Verificou-se também na subcategoria 2, quanto à idade, um ligeiro destaque
dos alunos mais novos na observação de CP, que podem ser explicados por Pereira
e Mourão (2005) que constataram que as crianças mais pequenas, independen-
temente do género, brincam mais em grande grupo e, com o aumento da idade, a
criação de grupos acontece progressivamente.
Assim constatamos que, em cada quatro crianças, três apresentam compor-
tamentos de interação social com uma ou outra das seguintes características, ser
capaz de trabalhar em equipa, ser sociável e relacionar-te com os outros ou ter em
atenção, considera as ideias e objetivos dos elementos do grupo. No entanto, ainda
assim verificamos que uma em cada quatro crianças não revela estas caraterísticas
pró-sociais o que nestas idades traduz dificuldade de relacionamento que, caso não
haja uma atenção cuidada por parte da escola e da família, pode conduzir ao isola-
mento das crianças e consequentemente a uma lacuna na promoção de competên-
cias de socialização essenciais ao seu desenvolvimento integral. Ainda em relação
a estes comportamentos inversos (CI) seria interessante, verificar a sua associação
com comportamentos de bullying. É do nosso entendimento que a manifestação
deste comportamento é importante mesmo que seja de um modo inverso pois temos
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uma base importante de interação. A dificuldade centra-se no sermos capazes de
fazer com que a criança se coloque no lugar do outro, crie empatia e manifeste
compreensão pelos pares e pelas suas ideias e opiniões.
Quanto aos comportamentos não observados (CNO), parece-nos que estas
crianças revelam dificuldade em interessarem-se pelos outros e pelas práticas o
que representa um grupo que merece grande atenção.
Conclusões
Assim, no final do estudo, concluímos que, é possível afirmar que a partici-
pação em jogos estruturados, permite às crianças relacionarem-se, cooperando e
apoiando-se mutuamente, sendo a escola um local privilegiado para que tal ocorra.
A escola detém um papel fundamental na promoção de competências de relaciona-
mento interpessoal.
Retirar da criança a oportunidade de jogar é negligenciar o seu desenvolvi-
mento, é limitar as suas capacidades e dificultar a sua integração no mundo, na
verdade, é não permitir que seja criança.
Assim sugerimos que sejam realizados programas de intervenção ao nível da
comunidade educativa incluindo professores, funcionários, alunos e encarregados
de educação para realçar a relevância do jogar e brincar, essencial ao desenvolvi-
mento destas competências que para além dos benefícios a curto prazo poderão ser
também relevantes no futuro. Contudo estes programas devem ter em consideração
a existência de CI, e encontrar estratégias para transformar estes comportamentos
em atitudes positivas promovendo o trabalho em equipa, momentos de discussão e
debate permitindo que todos participem, opinem e respeitem a opinião dos outros.
Este estudo sobre as caraterísticas empreendedoras das crianças é um estudo
inovador que vem preencher uma lacuna na investigação científica e, por isso, tam-
bém se recomenda a realização de outras investigações com crianças aplicando os
mesmos instrumentos que se revelaram motivadores para as crianças permitindo
a recolha de informação junto das crianças com qualidade e rigor.
Nota
1
Este trabalho foi financiado por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecno-
logia no âmbito do projeto do CIEC (Centro de Investigação em Estudos da Criança da Universidade do
Minho) com a referência UID/CED/00317/2019.
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Este artigo está licenciado com a licença: Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
Daniele Vanessa Klosinski, Adriana Salete Loss
Educação infantil: espaço do brincar e da interação da criança
Child education: Space of play and child interaction
Educación infantil: Espacio de juego e interacción infantil
Daniele Vanessa Klosinski
*
Adriana Salete Loss
**
Resumo
O presente artigo objetiva problematizar a condição subjetiva da criança enquanto sujeito num contexto forte-
mente inuenciado pelos pressupostos neoliberais. Desse modo, o estudo qualitativo e de abordagem explora-
tório-interpretativa buscou reetir sobre a necessária construção conceptual da criança como sujeito histórico e
de interação, no sentido de superar as inuências paradigmáticas neoliberais da Educação Infantil. Desse modo,
a metodologia de estudo englobou a pesquisa bibliográca, alicerçada em autores como: Ariès (1981); Sarmento
(2005); Dewey (1979); Teixeira (1934); Dardot e Laval (2016); Larrosa (2015). A pesquisa constituiu-se da contrapo-
sição do paradigma neoliberal de infância pela concepção da subjetivação infantil, tendo em vista as interações,
as experiências e o brincar. Por m, as reexões chamam atenção para o fato de os espaços educacionais rompe-
rem com a dogmatização pedagógica neoliberal, de modo a rmar-se na concepção da criança com direitos de
aprendizagem por meio do brincar.
Palavras-chave: Infância. Subjetividade infantil. Cultura neoliberal. Interações. Brincar.
Abstract
This article aims to problematize the subjective condition of the child as subject in a context strongly inuenced
by neoliberal assumptions. Thus, the qualitative study and exploratory-interpretative approach, seeks to reect
on the necessary conceptual construction of the child as a historical and interaction subject, in order to overcome
the neoliberal paradigmatic inuences of early childhood education. Thus, the study methodology was through
bibliographic research, which had its foundations in authors such as: Ariès (2006); Sarmento (2005); Dewey (1979);
Teixeira (1934); Dardot and Laval (2016); Larrosa (2015). The research consisted of the counterposition of the neo-
liberal paradigm of childhood by the conception of child subjectivation, through interactions, experiences and
play. Finally, the reections draw attention to the fact that educational spaces break with neoliberal pedagogical
dogmatization, so as to be grounded in the conception of children with learning rights through play.
Keywords: Childhood. Child Subjectivity. Neoliberal culture. Interactions Play.
*
Doutoranda em Educação no PPGEDU/UPF. Coordenadora Pedagógica no SENAI Erechim/RS e Professora do Ensino
Superior na Faculdade Anglicana de Erechim/RS (FAE), Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-3219-9806. E-mail:
daninessa_604@hotmail.com
**
Doutora em Educação pela PUC/RS com estágio no Instituto de Educação da Universidade de Lisboa/Portugal (2008-
2009). Pós-doutorado em Educação pelo Instituto de Educação da Universidade de Lisboa (2014-2015). Professora as-
sociada da Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS, Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5576-0929. E-mail:
adriloss@us.edu.br
Recebido em 04/10/2019 – Aprovado em 15/01/2020
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i2.11433
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Educação infantil: espaço do brincar e da interação da criança
Resumen
Este artículo tiene como objetivo problematizar la condición subjetiva del niño como sujeto en un contexto
fuertemente inuenciado por los princípios neoliberales. Así, el estudio cualitativo y el enfoque exploratorio-in-
terpretativo, busca reexionar sobre la necesaria construcción conceptual del niño como sujeto histórico y de
interacción, para superar las inuencias paradigmáticas neoliberales de la educación de la primera infancia. Así,
la metodología de estudio fue a través de la investigación bibliográca, que tuvo sus fundamentos en autores
como: Ariès (2006); Sarmento (2005); Dewey (1979); Teixeira (1934); Dardot y Laval (2016); Larrosa (2015). La
investigación consistió en la contraposición del paradigma neoliberal de la infancia mediante la concepción de
la subjetivación infantil, a través de interacciones, experiencias y juegos. Finalmente, las reexiones llaman la
atención sobre el hecho de que los espacios educativos rompen con la dogmatización pedagógica neoliberal,
para fundamentarse en la concepción de los niños con derechos de aprendizaje a través del juego.
Palabras clave: Infancia. Subjetividad infantil. Cultura neoliberal. Interacciones. Jugar.
Introdução
Fortemente influenciadas pelos pressupostos neoliberais, as culturas infantis
e as infâncias acabam por destituir a condição subjetiva da criança como sujeito a
partir de contexto social predeterminante, o que as obriga, desde a mais tenra idade,
a se constituírem como seres que já projetam em si a possibilidade de uma função
profissional que seja vista com esmero e potencialize um capital econômico farto.
A sociedade como um todo acaba por negligenciar a infância, ao mesmo tempo
em que a insere em dinâmicas sociais simplistas, não dando a devida importância
a esse momento vivido pelos sujeitos. Todo adulto já viveu a infância que, por vezes,
acaba sendo perdida por se projetar a partir de um viés individualista, de trabalho,
agendas cheias, comandado exclusivamente pelos compromissos em prol da produ-
ção e do mercado.
A instituição social “família”
1
, à qual a criança pertence desde o seu nascimen-
to, reproduz uma prática cultural que determina precocemente como este sujeito
será inserido num contexto sociocultural e de valores. Sua limitação, portanto, é
percebida nos primeiros anos de vida, ao passo que se determina onde, com quem,
com o que e de que maneira brincar, omitindo, assim, sentimentos, especialmente o
choro, que é sua principal forma de expressão. Nessa perspectiva, chega-se ao pon-
to de negar-lhe a sua imaturidade, potencial capacidade de seu desenvolvimento.
Ao brincar, a criança tem em si a maneira precípua de se perceber como sujeito
pertencente ao seu meio social. Nesse sentido, é por meio das brincadeiras, que a
criança potencializa vontades, anseios, escolhas e desejos, manifesta-se, bem como
expressa e reconstrói sua percepção de mundo, reconhecendo-se como protagonista
de sua própria história na interação com o mundo que a cerca. Todavia, ao passo
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que se nega à criança o elemento condutor e potencializador da sua infância que é
o brincar e sua essência, passa-se a desconstruir as identidades infantis a partir
de uma lógica neoliberal que nega o direito primordial que é ser criança em sua
ingenuidade, imaturidade e inocência.
A infância, aqui entendida como categoria social, apresenta as crianças, me-
ninos e meninas, em suas subjetividades, entendidas como atores sociais, dotados
de voz e perspectivas próprias, ativos em suas escolhas e manifestações, enfim,
cidadãos de direitos e co-construtores do momento vivido. Categoria na qual as
crianças são vistas a partir das relações estabelecidas com os adultos e seus pares,
numa dinâmica de respeito aos seus anseios e vontades, mesmo que ainda interde-
pendentes de grupos sociais como a família e as instituições escolares (MARTINS
FILHO, 2016). Ou seja, uma categoria que propaga o não esquecimento da infância
como integrante do desenvolvimento do ser humano e da sociedade, na percepção
do quanto as crianças necessitam compreender os sentidos das relações que são
estabelecidas nos grupos de sua convivência, a significação, a pauta do diálogo e
suas vivências.
Sob essa ótica, o texto que segue objetiva refletir sobre a necessária superação
paradigmática neoliberal de infância para a construção da concepção da infância
como território de subjetivações, do ser criança protagonista de sua história e de
suas experiências pelas interações e pelo brincar.
O artigo está organizado em três partes. A primeira parte apresenta os fun-
damentos teóricos que embasam o estudo; a segunda expõe uma breve contextua-
lização do percurso metodológico; a terceira e última parte põe em evidência as
reflexões pertinentes à pesquisa.
Dos fundamentos teóricos: conceitos de infância e criança
Ao longo da história, o conceito de infância passou por transformações signifi-
cativas, tanto é que, na antiga Grécia, as crianças, assim como mulheres e escravos,
não eram consideradas cidadãs. As crianças eram introduzidas no mundo adulto,
sem o devido respeito pelas características e necessidades da infância. Ademais,
havia a diferenciação da educação dos meninos e das meninas.
Na idade média, de acordo com Ariès (1981), as crianças eram denominadas
seres de Deus, com bondade, singeleza, perfeição e necessitavam de cuidado si-
giloso e correção. Segundo o autor, a partir do século XVII, as crianças passam a
vivenciar um processo de convivência social denominado escolarização. Nesse viés,
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Educação infantil: espaço do brincar e da interação da criança
“A escola confinou uma infância outrora livre num regime disciplinar cada vez
mais rigoroso que nos séculos XVIII e XIX resultou no enclausuramento total do
internato” (ARIÈS, 1981, p. 195), tendo em vista que a escola para a aprendizagem
disciplinar não era o espaço para todas as crianças, pois as da classe subalterna
continuavam junto com adultos aprendendo um ofício.
Na modernidade, período da urbanização e comercialização, a escola passa a
ser necessária para todos, para a aprendizagem da leitura, da escrita e do cálculo.
Ou seja, todas as crianças, indistintamente de classe social, precisam ir à escola.
Tal período é marcado por transformações sociais, de concepções do modo de produ-
ção, da vida familiar e propriamente do papel da criança na sociedade.
Entre as transformações, podem ser citadas as contribuições da filosofia rou-
sseauniana que influenciam na concepção da infância e na compreensão do desen-
volvimento da criança. Nesse sentido, aduz Rousseau (2004, p. 4):
Não se conhece a infância; no caminho das falsas ideias que se têm, quanto mais se anda,
mais se fica perdido. Os mais sábios prendem-se ao que aos homens importa saber, sem
considerar o que as crianças estão em condições de aprender. Procuram sempre o homem
na criança, sem pensar no que ela é antes de ser homem.
Nessa direção, Rousseau (2004) explicita que a “natureza” quer que as crian-
ças sejam crianças antes de serem homens, pois a infância tem maneiras de ver,
de pensar que lhe são próprias. O autor ainda adverte que é necessário ensinar à
criança tudo o que é útil para a sua idade; que não aprenda ela a ciência, mas a
invente, pois o ar científico mata a ciência.
A infância é historicamente construída, a partir de um processo de longa duração que lhe
atribuiu um estatuto social e que elaborou as bases ideológicas, normativas e referenciais
do seu lugar na sociedade. Esse processo, para além de tenso e internamente contraditório,
não se esgotou. É continuamente actualizado na prática social, nas interacções entre crian-
ças e nas interacções entre crianças e adultos. Fazem parte do processo as variações demo-
gráficas, as relações económicas e os seus impactos diferenciados nos diferentes grupos etá-
rios e as políticas públicas, tanto quanto os dispositivos simbólicos, as práticas sociais e os
estilos de vida de crianças e de adultos. A geração da infância está, por consequência, num
processo contínuo de mudança, não apenas pela entrada e saída dos seus actores concretos,
mas por efeito conjugado das acções internas e externas dos factores que a constroem e das
dimensões de que se compõe (SARMENTO, 2005, p. 365-366).
Em conformidade com o referido autor, compreende-se a infância como cate-
goria social e as crianças como atores sociais. Para defini-las como atores sociais,
é necessário conceber o estudo dessas a partir de si mesmas, reconhecendo o seu
olhar e suas representações sociais.
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Pressupostos neoliberais e infância
A compreensão do papel da infância, na sociedade, vem sendo descrita por
vários estudiosos, nos últimos anos, sendo que muitos deles chamam a atenção
para a compreensão da infância como construção social. Nessa perspectiva, Prout
e James argumentam: “a imposição crescente de uma concepção muito ocidental
da infância para todas as crianças, cujo efeito foi mascarar o fato de que a infância,
como tal, nada mais é, na realidade, que uma construção social” (PROUT; JAMES
1990 apud MONDATON, 2001, p. 51).
Sob essa ótica, a construção social da infância passa a ser vista a partir das
relações estabelecidas nos diferentes grupos, especialmente a partir da sensibilida-
de do adulto que percebe a criança e o seu meio. Ou seja, um adulto que considera
as relações entre a criança e seus pares e com os próprios adultos, valorizando a
maneira dessa reagir perante as situações cotidianas, seu ponto de vista sobre os
assuntos de seu interesse, entre tantos outros aspectos que surgem por meio de
vivências que lhes são possibilitadas.
Prout e James (1990 apud MONDATON, 2001) apresentam algumas proposi-
ções que servem de aporte para o entendimento da relação entre infância e socie-
dade, pois, segundo os autores, os elementos que constituem essa relação, especial-
mente quando é concebida como construção social, são consequências de um novo
paradigma. Assim sendo, não há apenas uma infância, mas diferentes infâncias ao
longo de diversos grupos sociais que se estabelecem nos mais diferentes contextos.
1. A infância é uma construção social.
2. A infância é variável e não pode ser inteiramente separada de outras variáveis como a
classe social, o sexo ou o pertencimento étnico.
3. As relações sociais das crianças e suas culturas devem ser estudadas em si.
4. As crianças são e devem ser estudadas como atores na construção de sua vida social e da
vida daqueles que as rodeiam.
5. Os métodos etnográficos são particularmente úteis para o estudo da infância.
6. A infância é um fenômeno no qual se encontra a dupla hermenêutica. Das ciências sociais
evidenciadas por Giddens, ou seja, proclamar um novo paradigma no estudo sociológico da
infância é se engajar num processo de reconstrução da criança e da sociedade (PROUT;
JAMES, 1990 apud MONDATON, 2001, p. 51).
Essa quebra de paradigma exige da sociedade a percepção das infâncias, o que
parece um tanto distante em vários momentos da vida em sociedade. Por conse-
guinte, o controle exaustivo pelo comportamento das crianças acaba sufocando-as.
O mesmo ocorre quando há uma exacerbada busca por meritocracia desde muito
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cedo, com uma negação aos seus anseios e vontades, como assevera Elias: “o esforço
da longa jornada pode ser tão grande que a pessoa perca a capacidade de desfrutar
a realização ou de vê-la como uma realização satisfatória” (1994, p. 105).
A justificativa, ou melhor, a compreensão das atitudes adultas nas infâncias
visa ao estabelecimento de um padrão de elementos que potencializem esses sujei-
tos para que, desde muito cedo, saibam se “autogestar” a partir de um padrão mer-
cadológico e de competitividade que inunda e contamina as respectivas infâncias.
Esse padrão imposto pelo atual cenário social e econômico, por vezes, não na
sua integralidade, toma conta de uma grande parcela da sociedade, atingindo cer-
teiramente os grupos minoritários, nos quais se destacam as crianças. Dessa forma,
elas são submetidas às escolhas e aos ordenamentos sociais predeterminados para
o seu desenvolvimento, devendo se adequar aos grupos de interesse manifestados
por aqueles que as conduzem.
Evidencia-se, assim, uma nova lógica de organização social que promove um
novo modelo ou estímulos que têm o objetivo de reproduzir ou treinar os sujeitos
e pensamentos, para que estejam alinhados aos comportamentos de mercado e
às suas relações de interesses. Numa perspectiva de liberdade subjetiva e num
arranjo de processos de normatização e de técnicas disciplinares, as quais Dardot e
Laval (2016) denominam “dispositivo de eficácia”, cuja finalidade é a de organizar
uma estratégia sem estrategistas, passam a configurar “os tipos de educação da
mente, de controle do corpo, de organização do trabalho, moradia, descanso e lazer
que seriam a forma institucional do novo ideal de homem, a um só tempo indivíduo
calculador e trabalhador produtivo” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 324). Essa estraté-
gia se destina a conduzir as preferências mercadológicas por uma “mão invisível”,
que guia o sujeito a escolhas que são proveitosas a todos e a um, constituindo-se
sujeito produtivo, cada vez mais individualista, governado, em outras palavras,
pelas regras ditadas pela economia por seu capital.
Diariamente, essa lógica mercadológica, capitalista e neoliberalista controla
as crianças e suas infâncias, assim como os autores descrevem, por uma “mão in-
visível” a qual se encontra fortemente presente nos grupos sociais frequentados
pelas crianças, de modo especial, o espaço institucional da escola.
A escola constitui-se em um espaço contraditório que, em um curto espaço de
tempo, vem se tornando uma reprodutora do sistema multifacetado da sociedade
vigente. É nesse espaço, pois, que se faz necessário preparar as crianças para os
papéis adultos que irão desempenhar em um tempo futuro, o que acarreta uma
“remodelação do comportamento infantil”, partindo de um processo civilizatório
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individualista, com vistas a prepará-las para viver em sociedade, visando seguir
carreiras pré-estabelecidas.
Esse desenho de sociedade data de meados do século XIX, período em que as
instituições eram organizadas para enquadrar os sujeitos rebeldes a uma lógica
acumuladora do capital, exercendo, sobre si mesmos, o esforço de maximização de
prazeres e dores, requeridos pelas relações de interesse. Em continuidade a essa
discussão, Dardot e Laval (2016, p. 326), enfatizam:
Por oposição, o momento neoliberal caracteriza-se por uma homogeneização do discurso do
homem em torno da figura da empresa, essa nova figura do sujeito opera uma unificação
sem precedentes das formas plurais da subjetividade que a democracia liberal permitiu que
conservasse e das quais sabia aproveitar-se para perpetuar a sua existência.
Os autores estruturam alguns pressupostos neoliberais que contribuem para
a análise das mudanças que ocorreram e para a emergência de um novo sujeito
que eles definem como “sujeito empresarial”, “sujeito neoliberal” ou simplesmente
“neossujeito”. O que há de novo, então? Há um sujeito com envolvimento total de si
mesmo. Nesse sentido, o objetivo é governar um ser, para que sua subjetividade seja
envolvida exclusivamente no exercício de sua atividade, ao passo que ele trabalhe
para a empresa como se trabalhasse para si mesmo, convencido de ter eliminado
qualquer sentimento de alienação. A busca, portanto, é pela aproximação entre o
indivíduo e a empresa. Esse sujeito moldado pela racionalidade neoliberal produz
os meios para governá-lo. Em consequência disso, ele propriamente se conduz, o
tempo todo, como uma entidade competitiva, tendo em vista a maximização de seus
resultados e a inteira responsabilidade por seus fracassos, conforme asseveram
Dardot e Larval:
Sujeitos empreendedores que por sua vez produzirão, ampliarão e reforçarão as relações de
competição entre eles, o que exigirá, segundo a lógica do processo autorrealizador, que eles
se adaptem subjetivamente às conduções cada vez mais duras que eles mesmos produziram
(2016, p. 320, grifo dos autores).
A valorização do trabalho, por parte do indivíduo, tornou-se, assim, um princí-
pio absoluto, haja vista que todas as relações passam a ter, em sua base, a relação
empresarial, pois tudo deve ser pensado e realizado sob o âmbito de uma lógica em
-
presarial. Isso porque o sujeito é visto como um ser ativo e autônomo que desenvolve
elementos para operar sobre si mesmo. Desse modo, constrói “estratégias de vida”,
intuindo aumentar o seu capital humano e valorizá-lo da melhor maneira possível,
centralizando e complexificando as relações sociais que se estabelecem na sociedade.
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Na medida em que as sociedades vão se tornando mais complexas e centrali-
zadas, aumentam as especializações e especificidades das necessidades que vão se
constituindo nos diferentes grupos sociais, o que gera o efeito da diversificação de
carreiras profissionais as quais necessitam de maior tempo de preparação e forma-
ção para seu desempenho. Nessa lógica, desenvolvem-se barreiras que separam o
mundo interior do exterior, ao mesmo tempo em que se tem um controle sobre os
processos exteriores de forma naturalizada. Todavia, cada vez mais, dificuldade
para se estabelecer relações com as pessoas, com os grupos sociais (ELIAS, 1994).
Não se pode deixar de pensar que a sociedade, cada dia que passa, modela as
infâncias a partir daquilo que é de interesse de grupos e classes sociais, como já se
mencionou. Isso posto, percebe-se que, quanto mais complexa a sociedade, mais es-
pecialistas ela necessita, o que, consoante Elias (1994), diz respeito à transição das
fases de vida do indivíduo, uma vez que esse necessita de experiências frequentes
a partir de novas vivências. Isso é o que lhe possibilita, portanto, variadas formas
de se relacionar consigo e com o outro. Notoriamente, o que ocorre é uma fissura
eminente, enfrentada com ou sem acolhimento por parte dos sujeitos.
Segundo Dewey (1979), o desenvolvimento humano se dá em sua complexi-
dade devido à relação com o outro e com o grupo social, no entendimento que cada
sujeito é diferente em sua constituição. Logo, seu crescimento se fundamenta a
partir da sua imaturidade – capacidade e potencialidade para aprender, evoluir,
controlar seus instintos naturais, além das suas peculiaridades constitucionais,
determinantes pelas estruturas sociais nas quais está inserido.
Nesse contexto social, o neoliberalismo vê o sujeito como empreendedor de si
mesmo, devendo potencializar suas competências e capacidades, para que suas re
-
lações sejam gestadas a partir da lógica do capital, numa sociedade complexificada
e, cada vez mais, individualizada a qual entende que, desde muito cedo, é necessário
treinar os sujeitos para esse modelo social. Contrapondo esse pensamento, Dewey
(1979) faz referência à necessidade de desenvolvimento dos sujeitos nas relações so
-
ciais estabelecidas com o outro, destacando a importância da distinção entre os su-
jeitos e seu desenvolvimento, bem como do respeito para com suas individualidades.
Nesse sentido, faz-se necessário compreender a criança como sujeito de inte-
ração e de experiências, pois, como afirma Teixeira, “[...] Não é mais o adulto, com
seus interesses, a sua ciência, a sua sociedade, que governa a escola; mas a criança,
com as suas tendências, os seus impulsos, as suas atividades e os seus projetos”
(1934, p. 49). Dessa forma, a criança aprende e se desenvolve pelas experiências,
haja vista que, em conformidade com Dewey (1979) o ato de aprender se dá por
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experiências. Logo, na lógica deweyana, a interação, a continuidade e os afetos são
princípios fundantes e inseparáveis das experiências. No entanto, para que isso se
efetive na prática, é fundamental que a criança seja respeitada como criança, em
suas necessidades, seus desejos e interesses, como também em suas vontades.
Percurso metodológico do estudo
O estudo qualitativo e de abordagem exploratório-interpretativa busca refletir
sobre a necessária construção conceptual da criança como sujeito histórico e de
interação, no intuito de superar as influências paradigmáticas neoliberais da Edu-
cação Infantil. Assim, o estudo norteador deste artigo se deu pelo viés da pesquisa
bibliográfica que, de acordo com Boccato (2006, p. 266),
[...] busca a resolução de um problema (hipótese) por meio de referenciais teóricos publi-
cados, analisando e discutindo as várias contribuições científicas. Esse tipo de pesquisa
trará subsídios para o conhecimento sobre o que foi pesquisado, como e sob que enfoque e/
ou perspectivas foi tratado o assunto apresentado na literatura científica. Para tanto, é de
suma importância que o pesquisador realize um planejamento sistemático do processo de
pesquisa, compreendendo desde a definição temática, passando pela construção lógica do
trabalho até a decisão da sua forma de comunicação e divulgação.
Tendo como base essa concepção, a pesquisa bibliográfica embasou seus fun-
damentos em autores como: Ariès (1981), Sarmento (2005), Dewey (1979), Teixeira
(1934), Dardot e Laval (2016) e Larrosa (2015), de modo a problematizar a condi-
ção subjetiva da criança num contexto fortemente influenciado pelos pressupostos
neoliberais. Relevante salientar que esses incidem na instrumentalização de meios
tecnológicos por meio de programações com fortes apelos mercadológicos de con-
sumo, destituindo, assim, o direito de brincar e a desconstrução das identidades
infantis. O estudo bibliográfico buscou contrapor o paradigma neoliberal de infân-
cia (assistencialismo e cognitivista), com abordagem da subjetivação da infância
direcionada à interação e ao brincar, como também à criança como sujeito histórico
e protagonista de suas experiências.
Educação Infantil: espaço para a subjetivação da infância
Nas sociedades, a individualização da infância acaba por se tornar um pro-
cesso de “domar” suas funções internas, visando a modos de moralidade e civiliza-
ção, como se buscasse uma evolução das crianças para, posteriormente, viverem
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Educação infantil: espaço do brincar e da interação da criança
em conformidade com as regras sociais estabelecidas. Destarte, os processos que
ocorrem não são mais tidos como experiências de vida social, como sujeitos que
vivenciam diversas possibilidades e delas buscam seu conhecimento próprio e do
grupo em que se inserem.
A dualidade que se apresenta na infância está na imperícia dos adultos per-
ceberem a importância da imaturidade das crianças para seu desenvolvimento. À
vista disso, surge a disputa acirrada pelo controle rígido de seus dóceis corpos, além
do treinamento para atendimento das demandas mercadológicas, o que evidencia
uma incapacidade de se perceber que as relações sociais estabelecidas em grupos
estão com dificuldades de encontrar um equilíbrio, uma harmonização. Para Elias
(1994), tais dificuldades se dão entre anseios e normas, entre desejos pessoais e
objetivos comuns, o que massacra e aliena as crianças, uma vez que a infância já
não é vista como tempo de liberdade, nem mesmo a imaturidade e a ingenuidade
como elementos que compõem o desenvolvimento do ser.
Não obstante, o que se verifica é que os espaços e tempos de brincar e das brin-
cadeiras infantis estão sendo substituídos por compromissos diários, com um ar-
cabouço de horários para a realização de tarefas e atividades que limitam o tempo
de ser criança. Treinamentos, escolas especializadas em desenvolver uma profissão
futura são a “sensação do momento” e, cada vez mais, os adultos e responsáveis
pelas crianças têm buscado esses espaços com a falsa impressão de, desde cedo,
incutir na cabeça das crianças a profissão futura, direcionando-a a um sucesso
futuro perante o mercado de trabalho.
A infância se caracteriza pelo elemento social que é a brincadeira, isto é, existe
pelo fato do brincar e vice-versa. No ano de 1959, a Organização das Nações Uni-
das (ONU) estabeleceu o brincar como ato essencial e garantido por lei por meio
da aprovação da Declaração dos Direitos Universais da Criança, em Assembleia
Geral. Essa Declaração foi reiterada em 1989, com a Convenção dos Direitos da
Criança a qual declara que toda criança tem o direito de brincar e se divertir. Para
tanto, é dever da sociedade e das autoridades públicas garantir esse direito.
Nesse sentido, infere-se que todo sujeito em desenvolvimento precisa viven-
ciar possibilidades, isto é, tudo aquilo que é de sua capacidade e potencialidade.
Sendo assim, o espaço para brincar é seu por direito, para que tenha condições de
se desenvolver a partir do respeito ao tempo de sua maturidade infantil.
Comumente, perde-se muito tempo com o que a criança não tem, projetando-
-lhe um futuro incerto e um tanto insano se a consideração se voltar à perspectiva
do tempo presente, sobretudo, da evolução tecnológica que se modifica em segun-
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dos. A sociedade, como um todo, esquece-se facilmente da infância vivida, ou de tão
“doutrinados” e “preparados” para a vida adulta, deixaram-na passar despercebi-
da, como corrobora Dewey:
Se as crianças pudessem se exprimir clara e sinceramente contar-nos-iam coisas mui di-
versas; e entre os adultos acha-se bastante autorizada a convicção de que, para certos fins
morais e intelectuais devem eles, os adultos, tornar-se verdadeiras crianças (1979, p. 45).
No Brasil, o brincar na infância é amplamente garantido na Constituição
Federal vigente, em seu artigo 227, reiterado na legislação que atende à infância
e adolescência - Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seus artigos 4 e
16, os quais determinam que o direito à liberdade e ao brincar constitui um dos
seus principais agentes. Já as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Infantil (DCNEI, 2009), em seu artigo 4º, propõem que as crianças, dentro das
propostas curriculares, sejam respeitadas em suas especificidades, sem deixar de
considerar as infâncias inseridas nos espaços escolares, mediante um processo de
produção de culturas que objetivam contemplar, em seus direitos, a diversidade e o
respeito.
As propostas pedagógicas da Educação Infantil deverão considerar que a criança, centro do
planejamento curricular, é sujeito histórico e de direitos que, nas interações, relações e prá-
ticas cotidianas que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina,
fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta, narra, questiona e constrói sentidos sobre
a natureza e a sociedade, produzindo cultura (BRASIL, 2009, n.p).
Todavia, o que vem se confirmando é uma reprodução constante dos processos
de cunho neoliberal da sociedade dentro das escolas e da infância, com propostas
de escolarização precoce que se reduzem a um esforço gigantesco de achar “o me-
lhor entre os melhores”, numa disputa individualista e competitiva, com “direito”
à preparação para a alfabetização, potencializando quem “sabe mais” ou “o quanto
de letras e números” se sabe com a mais tenra idade. Enfim, uma doutrinação de
corpos à obediência insana por parte de adultos.
Outrossim, as crianças são vistas como se fossem sujeitos irracionais, inca-
pazes de constituírem os grupos sociais dos quais fazem parte, “ensinados”, então,
a omitir seus sentimentos, desejos, angústias ou dúvidas, compreendidas como
fraquezas do ser humano. Em conformidade com Elias (1994), esse processo de
controle geral dos afetos desencadeia a negação e a transformação dos instintos
de isolamento e encapsulação dos indivíduos em suas relações uns com os outros.
As DCNEIs (2009), em seu artigo 9, especificam como eixos norteadores das
propostas curriculares para as infâncias as “interações e brincadeiras” as quais
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garantem às crianças experiências de si e do mundo que as rodeia, bem como sua
imersão nas diferentes linguagens, possibilitando vivências éticas e estéticas com
outras crianças e demais grupos sociais, além da ampla e ilimitada inserção nas
tradições culturais brasileiras.
Voltar-se às infâncias é dar oportunidade às crianças de se reinventarem, re-
descobrirem-se, desenvolverem-se a partir de experiências promovidas por suas
próprias vivências, contrariamente à posição de seres impotentes que se mantêm a
cargo de outros. Ademais, é acreditar em sujeitos em potencial, com uma dependên-
cia acompanhada por um desenvolvimento de aptidões, sem parasitismos, distante
da construção de muralhas em torno da impotência e da dependência constante
pelo outro ou por algo, como assevera Dewey (1979, p. 47):
A aptidão especial de um imaturo para crescer constitui sua plasticidade. Esta coisa mui
diversa da plasticidade do mástique ou da cera. Não é propriedade de mudar de forma
conforme pressão exterior. Parece-se mais com elasticidade com que algumas pessoas assu-
mem a cor de seu ambiente, conservando, ao mesmo tempo, as próprias inclinações. Mas é
algo mais profundo do que isto. Em sua essência, é a aptidão de aprender com a experiên-
cia, o poder de reter dos fatos alguma coisa aproveitável para solver as dificuldades de uma
situação ulterior. Isto significa – poder modificar seus atos tendo em vista os resultados de
fatos anteriores, o poder de desenvolver atitudes mentais.
Aprender com a experiência constitui algo de maior profundidade, de maior
significação, é um aprender a aprender com as próprias vivências e com os desafios
apresentados, reaprendendo se necessário ou quando o aprendido já não dá conta
de resolver as situações enfrentadas.
Ao se referir à experiência, Larrosa, em seus escritos, explicita, com certa
clareza, o que se entende por tal conceito.
A experiência é o que nos passa, nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, o que
acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo quase
nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo que se passa está organizado para que nada nos
aconteça. Walter Benjamin, em um texto célebre, já observava a pobreza de experiências
que caracteriza o nosso mundo. Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada
vez mais rara (LAROSSA, 2015, p. 12).
Sob esse prisma, é possível perceber que a infância está passando pelas crian-
ças sem, de fato, elas viverem experiências. Ou seja, a infância não lhes toca, não
lhes acontece; ao contrário, permanece em meio a estímulos imediatos, aproximan-
do-se da teoria skinneriana do estímulo – resposta. Nesse sentido, fundamental-
mente aquilo que é possibilitado à criança precisa imediatamente de um retorno
dela, como se isso mensurasse sua aprendizagem.
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Cotidianamente, nas sociedades, vive-se um aligeiramento de ações, trans-
pondo-se em informações imediatistas, que têm por característica o saber no senti-
do de estar informado e não de sabedoria. Esse excesso de informação não é expe-
riência, como afirma Larrosa (2015), pois não deixa lugar para tal. Ao anular suas
possibilidades, potencializa sujeitos fadados a nutrirem-se de informes tais como
se apresentam, sem questionamento ou, até mesmo, aprofundamento de temáticas
ali encontradas, opinando sobre tudo, sem efetivamente saber.
Esse parece ser o retrato da atual conjuntura social desenvolvida com as
crianças, especialmente ao que tange ao processo educacional da infância. As insti-
tuições infantis, em seu cotidiano, estimulam as crianças a esse processo aligeirado
de informações, jogando-lhes um turbilhão de possibilidades, sem refletir sobre
esses processos e sua adequação às crianças.
Dessa forma, as vivências restringem-se, cada vez mais, à obediência exacer-
bada de ordens pelo controle de seus corpos e ações.
Consequentemente, olha-se para as crianças numa perspectiva verticalizada,
de cima para baixo, impondo-lhes aquilo que o adulto e a sociedade consideram
conveniente. De maneira pertinente, Dewey (1979) contribui para essa reflexão:
Finalmente, a teoria da preparação obriga-nos a recorrer em grande escala ao uso de mo-
tivos artificiais de prazer e de dor. Como o futuro não tem poder estimulante e orientador
quando separado das possibilidades do presente, algo deve ser descoberto para exercer
aquela função. Empregam-se então promessas de recompensa e ameaças de punição. Traba-
lho sadio, realizado por motivos atuais e inerente ao próprio processo de viver, é, por assim
dizer, automático e inconsciente. O estímulo se acha na situação que se depara atualmente
a alguém. Mas desde que se atende a esta situação, precisa-se dizer aos alunos que, se não
procederem do modo prescrito, sofrerão a imposição de pena; e, caso obedeçam, podem es-
perar daí a algum tempo, no futuro, recompensas a seus sacrifícios presentes. Todos sabem
quão fartamente se houve de recorrer aos sistemas de punições nos métodos educativos que
esquecem as possibilidades presentes, em proveito da preparação para o futuro. Para que,
depois, o desgosto pela rudeza e esterilidade desse método faça o pêndulo oscilar para o ex-
tremo oposto e já agora, não apenas, mas atrações artificiais, engodos, rebuçados de açúcar,
que farão com que os alunos aceitem as doses de informações por que não se interessam,
mas que lhes devem ser misturadas em virtudes das necessidades futuras (p. 47).
Por fim, nota-se que muitas experiências são nulas na infância. Isso porque os
grupos sociais estão desenvolvendo sujeitos para atenderem às suas especialidades
e às necessidades impostas por um sistema capitalista que os obriga, desde cedo, a
serem responsáveis por si.
No paradigma neoliberal, é crucial a preparação das crianças o mais cedo pos-
sível, negando-lhes o espaço de vivências da infância, como também a imaturidade
como potencial em desenvolvimento. Assim, potencializam-se sujeitos individua-
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lizados em meio à sociedade que suprime sentimentos e emoções, impondo-lhes
uma “ilusão social” de que o melhor resolvido é aquele que não demonstra suas
fraquezas, que delibera sobre sua vida de forma autônoma, sem dependência.
Em contraposição ao paradigma neoliberal, a Educação Infantil deve direcio-
nar seu olhar às práticas pedagógicas com foco nas interações e na brincadeira.
Complementarmente, indicar que não se pode pensar no brincar sem as interações
com a professora, com as crianças, com os brinquedos e materiais, entre criança
e ambiente e entre a Instituição, a família e a criança. Interagir e brincar são,
portanto, duas ações fundamentais na Educação Infantil, pois, segundo Ambrogi,
“É pela interação com o outro que podem ser forjadas capacidades que vão sendo
internalizadas com base em seu repertório; assim, a criança é capaz de formular
novas possibilidades combinatórias [...]” (2011, p. 70).
Por configurar uma atividade lúdica de aprendizagem que favorece aspectos
sociais, cognitivos e emocionais, o brincar é indispensável à vida das crianças.
Logo, é pelo brincar que a criança compreende a si mesma, como também a rela-
ção com o meio, com o outro e com o objeto. Desse modo, o valor das brincadeiras
para o desenvolvimento infantil e para as vivências de experiências é primordial
às crianças.
Conforme Vygotsky (1998, p. 130), o brincar possibilita a imitação, a imagina-
ção e a criatividade em ação, criando, para as crianças, uma “zona de desenvolvi-
mento proximal”.
A criação de uma situação imaginária não é algo fortuito na vida da criança; pelo contrário,
é a primeira manifestação da emancipação da criança em relação às restrições situacionais.
O primeiro paradoxo contido no brinquedo é que a criança opera com um significado aliena-
do numa situação real. O segundo é que, no brinquedo, a criança segue o caminho do menor
esforço – ela faz o que mais gosta de fazer, porque o brinquedo está unido ao prazer – e ao
mesmo tempo, aprende a seguir os caminhos mais difíceis, subordinando-se a regras e, por
conseguinte renunciando ao que ela quer, uma vez que a sujeição a regras e a renúncia a
ação impulsiva constitui o caminho para o prazer do brinquedo (VYGOTSKY, 1998, p. 130).
Para a prática do brincar, da ludicidade e dos jogos, é imprescindível a com-
preensão da concepção de criança e de infância, assim como da organização dos
tempos e espaços, promotores das experiências. Nessa direção, a interação, com-
preendida como princípio educativo em unicidade com o princípio da continuidade,
requer, do ato pedagógico, a possibilidade da interação do sujeito com o outro e com
o objeto, mediatizado pelas situações que envolvem o respeito às necessidades, aos
desejos, às capacidades das crianças e ao contexto real vivido por elas.
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Sob essa ótica, por meio do brincar e pela interação, no sentido de realizar
experiências significativas, as crianças são orientadas a vivenciar situações de
aprendizagem contextualizadas, isto é, do mundo, da vida.
Nesse viés, Teixeira (1934) salienta que são os interesses e os propósitos das
crianças que governam a escolha das atividades. Dessa maneira, estas devem ser
reais e ter semelhança com a vida prática, para que as crianças as reconheçam.
À vista disso, pode-se afirmar que o ato de aprender depende profundamente de
situações reais de experiências.
Na Educação Infantil, os tempos e espaços são imbricados pelos princípios
da continuidade-interação-situação. Assim sendo, são pensados e organizados pe-
dagogicamente com base nos fundamentos de liberdade dos sujeitos, em que “o
professor perde a posição de chefe ou ditador, acima e fora do grupo, para se fazer
líder das atividades do grupo” (DEWEY, 1979, p. 55).
Para a compreensão do processo pedagógico com base na liberdade, as pala-
vras de Dewey (1979, p. 59) são basilares:
A única liberdade de importância duradoura é a liberdade de inteligência, isto é, a liber-
dade de observação e de julgamento com respeito aos propósitos intrinsicamente válidos e
significativos. O erro mais comum que se faz em relação à liberdade é o de identificar com
liberdade de movimento, ou com o lado físico e exterior da atividade. Este lado exterior
e físico da atividade não pode ser separado do seu lado interno, da liberdade de pensar,
desejar e decidir.
Nesses termos, a Educação Infantil deve constituir um espaço de vida e de
experiências reproduzido em um território do movimento, da ação e da prática da
subjetivação infantil.
Considerações nais
As questões, aqui explicitadas, são algumas das que se sobressaem nos pro-
cessos que ocorrem cotidianamente nos diferentes contextos sociais. Ou seja, espa-
ços educativos que deveriam ser de produções, relações e saberes infantis acabam
sendo influenciados fortemente pelos pressupostos sociais carregados de premissas
neoliberais que determinam precocemente como devem se constituir as identida-
des infantis. Tal evidência abre espaço para questionamento e reflexão a respeito
da sociedade que, como um todo, avança cegamente em seus aspectos sociais e cul-
turais para o viés neoliberal, voltando-se exclusivamente ao capital. Por extensão,
expõe a infância, cada vez mais, a essa ideologia.
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Desse modo, não se pensa mais na criança presente, mas sim, em uma proje-
ção de um sujeito futuro, utilizando-se, para isso, exercícios de repetição, controle
e dominação das mesmas como se fossem sujeitos que virão a ser. Por conseguinte,
rotinas rígidas e de significação nula são impostas, visando ao desenvolvimento
cultural das crianças e privando-as de seus direitos em várias situações. Logica-
mente parece que esses direitos não estão suficientemente claros dentro dos espa-
ços escolares, pois ainda há práticas retrógradas e opressoras com as crianças.
O desfio, portanto, é o de projetar o todo da sociedade nas relações que se esta-
belecem, tendo em vista uma harmonização entre as necessidades, as inclinações
pessoais e as exigências feitas para a eficiência do todo social (ELIAS, 1994). Não
obstante, cotidianamente o que se vivencia são as contradições, tensões e indivi-
dualizações dentro dos grupos sociais.
Em contraposição às concepções neoliberais (assistencialistas e cognitivistas)
que perpassaram (e ainda perpassam) as instituições educativas da primeira in-
fância, há um movimento mundial e nacional para a instauração de um novo olhar
à Educação Infantil.
É a esse movimento que educadores devem se aproximar para poderem refle-
tir sobre a função da Educação Infantil na vida das crianças. Função esta que diz
respeito a um território da experiência, da socialização, da estética, da criativida-
de, da liberdade, da imaginação, da fantasia, da investigação, enfim, a um espaço
de vida coletiva.
À guisa de conclusão, pode-se afirmar, então, que as experiências na Educação
Infantil precisam acontecer em processos educativos e formativos de significados
e sentidos.
Nota
1
A família e a escola historicamente sempre foram as duas mais importantes instituições socializadoras,
pelas quais a educação transformou-se no principal agente transmissor da cultura, numa perspectiva de-
terminista e predominantemente funcionalista, reprodutora da sociedade (MARTINS FILHO, 2016).
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(In) visibilidade das crianças imigrantes na cidade de São Paulo: questões para pensar a cidadania da pequena infância
(In) visibilidade das crianças imigrantes na cidade de São Paulo: questões para
pensar a cidadania da pequena infância
(In) Visibility of immigrant children in the city of São Paulo: questions for thinking about early
childhood citizenship
(In) Visibilidad de niños inmigrantes en la ciudad de São Paulo: preguntas para pensar en la
ciudadanía de la primera infancia
Maria Leticia Nascimento
*
Carolina Grandino Pereira de Morais
**
Resumo
Apoiado em dados de pesquisa em andamento, o artigo pretende pôr em discussão a pesquisa sobre a pequena
infância imigrante presente nos centros e escolas públicas de educação infantil da cidade de São Paulo, a partir
do paradigma dos estudos sociais da infância, da legislação sobre os direitos das crianças e das práticas sociais
cotidianas, destacadas nas investigações encontradas em breve levantamento sobre a produção da área, para
pensar sobre as relações entre visibilidade, infância e cidadania.
Palavras-chave: Pequena infância. Estudos sociais da Infância. Imigração. Invisibilidade. Direitos das crianças.
Abctract
Supported by ongoing research data, the aim of this article is to discuss the research on immigrant young chil-
dren at public early childhood education centres and schools in the city of São Paulo, based on the paradigm
of childhood studies, the legislation on childrens rights and daily social practices, highlighted in a brief review
about the production of the area, to think about the relations between visibility, childhood and citizenship.
Keywords: Early childhood. Childhood studies. Immigration. Visibility. Childrens Rights.
*
Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de São Paulo. Professora
Associada da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP). Coordenadora do Grupo de Estudos
e Pesquisa Sociologia da Infância e Educação Infantil (GEPSI), Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-5598-9472.
E-mail: letician@usp.br
**
Formada em Letras (FFLCH-USP) e Pedagogia (FEUSP). Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisa Sociologia da
Infância e Educação Infantil (GEPSI), Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-0941-5937. E-mail: carolina.gpmorais@
hotmail.com
Recebido em 12/10/2019 – Aprovado em 09/04/2020
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i2.11435
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Maria Leticia Nascimento, Carolina Grandino Pereira de Morais
Resumen
Apoyado por datos de investigación en curso, el objetivo de este artículo es discutir la investigación sobre niños
inmigrantes en centros y escuelas públicas de educación infantil en la ciudad de São Paulo, basada en el para-
digma de los estudios sociales de la infancia, en la legislación sobre los derechos del niño y las prácticas sociales
cotidianas, a partir de investigaciones encontradas en una breve búsqueda sobre la producción en el campo,
para reexionar sobre las relaciones entre visibilidad, infancia y ciudadanía.
Palabras clave: Niñez temprana. Estudios de la infancia. Immigración. Visibilidad. Derechos de los niños.
Introdução
[...] tornar as crianças e a infância (mais) visíveis tem sido um
objetivo explícito dos chamados estudos sociais da infância, pois,
como indica o objetivo, verifica-se que elas têm sido invisíveis ou
insuficientemente visíveis até agora (QVORTRUP, 2014, p. 25).
Considerar as crianças sujeitos históricos e de direitos, atores sociais, produ-
tores de cultura é resultado de uma construção social que vai sendo configurada a
partir de estudos desenvolvidos principalmente na década de 1990, sob a ótica de sua
dinâmica histórica, cultural e social (QVORTRUP, 2002). Essa concepção, contudo,
tem convivido com outras, que universalizam a condição de ser criança e que se ca
-
racterizam pelas expectativas com relação ao seu futuro como pessoa adulta. Nessa
linha, a escolha pela concepção de infância cidadã, pela consideração das crianças
em seu próprio direito, significa tensionar a invisibilidade da infância por meio do
campo interdisciplinar dos estudos sociais da infância, que a define como uma cons
-
trução social, como categoria geracional estrutural, ou seja, “a infância como forma
estrutural não é, como a criança, definida em termos de características ou disposições
individuais, mas em termos de parâmetros contextuais” (QVORTRUP, 2007, p. 59).
Isso significa que as crianças são influenciadas por eventos políticos, econômi
-
cos, tecnológicos, dentre outros; que estabelecem relações com outras crianças e com
adultos, como pessoas que participam da sociedade; que utilizam recursos, criati
-
vidade e inventividade nessas relações, constituindo as culturas da infância, que
“exprimem a cultura societal em que se inserem, mas fazem-no de modo distinto das
culturas adultas, ao mesmo tempo que veiculam formas especificamente infantis de
inteligibilidade, representação e simbolização do mundo”(SARMENTO, 2004, p. 22).
Além disso, são sujeitos de direitos, condição firmada pela Convenção dos Di-
reitos da Criança, de 1989, assim como pelo Estatuto da Criança e do Adolescente,
de 1990, o que reforça a ideia de que as crianças devem ser estudadas em seu pró-
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(In) visibilidade das crianças imigrantes na cidade de São Paulo: questões para pensar a cidadania da pequena infância
prio direito. Isso não significa negar o princípio de interdependência entre crianças
e adultos, mas de também focalizá-las, pois sua visibilidade como sujeitos sociais
parece ainda restrita, indicando que as relações entre adultos e crianças, de modo
geral têm sido, em muitos aspectos, ambivalentes e contraditórias.
Particularmente, em arenas não consideradas exatamente infantis, nas quais
predomina a família como objeto de estudo e, nesse sentido, seus membros adultos,
as crianças passam desapercebidas, como se não fizessem parte daquele contexto
ou situação. Podem ser inseridos os movimentos migratórios como uma dessas are-
nas, ao lado de desemprego, de falta de moradia, por exemplo, e, nesse sentido, no
Brasil, há pouca pesquisa sobre a imigração infantil, ou que tenha como sujeitos
as crianças imigrantes
1
. Em se tratando das crianças menores de cinco anos, a
pesquisa ainda é mais escassa. Nesse sentido, a partir do interesse sobre as crian-
ças pequenas, imigrantes, matriculadas na rede pública de educação infantil do
município de São Paulo, esse artigo pretende tratar, ainda que brevemente, das
contradições presentes nestas instituições, refletindo sobre diferentes entendimen-
tos sobre as crianças, sua produção de culturas, seu lugar como sujeitos sociais,
históricos e de direitos, para compreender as relações entre o acolhimento nos cen-
tros/ escolas públicas de educação infantil e seus direitos como cidadãs.
As crianças nas arenas sociais
Defendemos assim que só pela aquisição de uma nova maneira
de pensar, adoptando novas formas de reflexão sobre a infância e
sobre o papel das crianças na sociedade se adquirirão a capacidade
e postura crítica; a novidade e a “surpresa científica” só regressarão
quando se questionar como certo o que parecia incontestável.
(TOMÁS; SOARES, 2004, p. 355).
Não é novidade apontar que, apesar de ser parte integrante da sociedade, o
reconhecimento das crianças como sujeitos sociais e de direitos se dilui a partir de
uma concepção de infância como um período de passagem, que privilegia o sujeito
adulto e, ao hierarquizar idades, atesta que somos uma sociedade-centrada-no-a-
dulto (ROSEMBERG, 1976), com práticas sociais e pedagógicas coerentes com esse
ponto de vista. Sarmento (2004) aponta que, desde a modernidade, foi constituído
um conjunto de procedimentos, normas, atitudes e prescrições que vão regular a
vida social das crianças, que denomina administração simbólica da infância. Essa
regulação vai produzir práticas sociais de confinamento e proteção, definindo tanto
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os lugares permitidos/proibidos às crianças quanto as possibilidades de participa-
ção delas em diferentes arenas e, de modo geral, restringe sua visibilidade, além de
atribuir negatividade
2
a características infantis.
Se a negatividade normativa vai condicionar as crianças como sujeitos sociais,
para Qvortrup (2011) a indiferença estrutural
3
as mantém distantes de contextos
macrossociais, visto que são consideradas atribuição da família e não da sociedade.
Nas palavras do pesquisador, “o cenário da infância têm sido responsabilidade de
outros, [...] que nem por um momento pensaram do ponto de vista da infância. Não
porque eram hostis às crianças, mas simplesmente porque a infância não estava
em suas mentes” (QVORTRUP, 1999, p. 15). Nesse sentido,
[...] uma coisa é estudar medidas políticas e econômicas diretas, como apoio à criança ou ins-
tituições; e outra, igualmente importante, embora menos visível, é atender às medidas que
são decididas politicamente ou que são implementadas em organizações ou empresas (p. 13).
Tais medidas atingem também as crianças, visto que a infância é uma categoria
na estrutura social (QVORTRUP, 2010), embora não de forma explícita, o que é dizer
que questões de diferentes ordens a atravessam e que diferentes condições econômi
-
cas, políticas e sociais interferem nas vidas e nas oportunidades dirigidas às crianças.
Em consonância tanto com a indiferença estrutural quanto com administra-
ção simbólica, prevalece uma identidade da infância relativa ao “seu estatuto face
aos direitos sociais: as crianças não têm capacidade jurídica de decisão autónoma,
necessitam de protecção e têm uma responsabilidade social em parte depositada
em quem exerce o poder paternal” (SARMENTO, 2004, p. 20). A infância vista
como preparação para a vida adulta é, assim,
[...] compreendida dentro de parâmetros de um estatuto minoritário, como um período onde
os indivíduos requerem protecção, porque sabem menos, têm menos maturidade e menos
força, em comparação com os adultos; proteção implica provisão, que implica, por sua vez,
relações de poder desiguais (MAYALL, 2002:21, apud TOMÁS; SOARES, 2004, p. 350).
Predominantes, as vozes e as expectativas dos adultos “sobre as crianças cor-
respondem a colocá-las numa posição de espera. O destino das crianças é a espera
– paciente, até tornarem-se adultas, [...] para ser parte da coletividade de cidadãos”
(QVORTRUP, 2014, p. 32).
A perspectiva da proteção, da preparação, das relações desiguais de poder se
apoia na ideia de vulnerabilidade atribuída às crianças. Para Lansdown (1994),
pais e Estado compartilham um mesmo entendimento sobre as crianças, “percebi-
das como vulneráveis e necessitadas de proteção” (p. 34). A pesquisadora argumen-
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(In) visibilidade das crianças imigrantes na cidade de São Paulo: questões para pensar a cidadania da pequena infância
ta que a vulnerabilidade tem duas vertentes: a inerente, relacionada à fragilidade
e à falta de experiência das crianças, que as torna dependentes dos adultos ao
seu redor, e a estrutural, identificada por uma “completa falta de poder político e
econômico e a falta de direitos civis [das crianças] em nossa sociedade”(p. 35). A
primeira encobre a segunda, isto é, “a vulnerabilidade inerente é a desculpa para a
falta de enfrentamento de sua vulnerabilidade estrutural” (p. 35), como aconteceu,
anteriormente, com as mulheres, reflete a pesquisadora.
A vulnerabilidade não é característica só da infância, mas, como diz Celis
(2016, p. 22),
Se no capitalismo moderno nós todos vivemos algum nível de vulnerabilidade e/ou exclusão,
as crianças concentram desigualdades e perdas somente por serem crianças, ao fazerem
parte de uma relação social que os situa abaixo do mundo adulto, fato que tem consequên-
cias diretas nas suas dinâmicas de vida cotidiana.
A hierarquização do poder configura desequilíbrio nas relações sociais crian-
ça-adulto, privilegia os adultos como sujeitos sociais e invisibiliza as crianças na
arena social. Nessa lógica, as crianças são sujeitos de direitos, mas predominam
os direitos a proteção
4
e a provisão em detrimento ao direito a participação. Soares
(2005, p. 8) avalia que
A tarefa de atribuir direitos à criança tem tido um longo e, muitas vezes, tortuoso caminho,
quer devido à lenta consciencialização da sociedade acerca de tal necessidade, quer devido
às dificuldades que se colocam à interpretação e aplicação de direitos para as crianças em
contextos culturais diversos e em épocas históricas distintas.
O estabelecimento de direitos à infância, contudo, conta com a Convenção
dos Direitos da Criança
5
(1989), da ONU, que os define em 54 artigos que consi-
deram os princípios de proteção, de provisão, e de participação, ou seja, a CDC
6
vai considerar as crianças como membros de uma rede de relações, como sujeitos
sociais, capazes de produzir mudanças nos sistemas nos quais estão inseridas, e
como cidadãs nos cenários social, político e cultural. O Art. 12 configura “um direito
substantivo, que indica que as crianças têm o direito de ser atores em suas próprias
vidas e de participar das decisões que as afetam” (LANSDOWN, 2001, p. 2). Em
consonância com esse movimento internacional, a Constituição Federal brasileira,
de 1988, e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de julho de 1990, assegu-
ram à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde,
à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao
respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a
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salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade
e opressão (Art. 227 da CF/88; Art. 4° e Art. 5° do ECA).
Estabelece-se, assim, uma tensão entre a administração da infância e a legis-
lação, entre a restrição e a ação social. Se, por um lado, a CDC, o ECA e a CF/88
podem ser consideradas como documentos indispensáveis para o fortalecimento
das crianças sujeitos de direitos, na perspectiva da infância cidadã, por outro, a
administração simbólica da infância restringe as arenas de ação das crianças, em
razão dos próprios interesses, mantendo sua subordinação e invisibilidade social.
As práticas sociais que configuram a relação geracional entre infância e idade
adulta tanto podem focalizar a interdependência entre crianças e adultos quanto
evidenciar as relações de poder estabelecidas. De qualquer modo, cabe recompor os
espaços de ação social a partir de uma perspectiva que permita examinar os modos
pelos quais as crianças participam da sociedade.
Infância e movimentos migratórios
A migração de crianças e jovens não é nova, mas a literatura que trata
dessa questão é recente, pois esses agentes migratórios foram, durante
muito tempo, ignorados nos estudos migratórios, visto que apenas
se discutiam as piores formas de migração infantil como o tráfico de
menores (PUNCH, 2007, p. 1, apud MARTUSCELLI, 2015, p. 151).
De modo geral, acontecimentos macrossociais parecem ter pouca conexão com
as vidas das crianças, exceto em determinadas situações em que, por imagens for-
tes produzidas pelas mídias, chocam até mesmo quem pouco presta atenção ao ce-
nário, em geral. Em relação aos processos migratórios, há duas imagens de abran-
gência mundial que focalizam crianças em circunstâncias trágicas na mudança de
país: em 2015, a imagem do menininho de bruços, na praia, encontrado por um
soldado
(AP); em 2018, a garotinha chorando, enquanto um guarda de fronteira re-
vista sua mãe (John Moore/Getty Images/AFP). As imagens revelam, em situação
extrema, que, sim, crianças fazem parte dos processos migratórios e que sofrem os
efeitos das restrições colocadas – oficialmente – aos adultos.
A imigração se caracteriza pelo deslocamento de pessoas, motivado por condi-
ções sociais; na maioria dos casos, por questões de ordem econômica, mas também
por questões políticas ou religiosas. O deslocamento ocorre no espaço físico, mas
também nos espaços social, econômico, político, cultural. Nas palavras de Sayad
(1998, p. 16), “de fato, o imigrante só existe na sociedade que assim o denomina,
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a partir do momento em que atravessa suas fronteiras e pisa seu território; o imi-
grante ‘nasce’ nesse dia para a sociedade que assim o designa.”
Em relação ao Brasil, num breve recorte histórico, pode-se dizer que a imigração
sempre esteve presente. Cerca de 3 milhões de africanos entraram no país de 1550 a
1850, na condição de escravos. Entre os anos de 1850 e 1930, o país recebeu grande
contingente de estrangeiros para trabalhar na lavoura. Segundo Baeninger (2003, p. 2),
[...] a partir da segunda metade do século XIX, a implantação da cultura do café conduziu a
uma imigração europeia de grande magnitude; na primeira onda de imigração estrangeira
(de 1880 a 1903) entraram 1,9 milhão de europeus, principalmente italianos, seguidos de
portugueses, espanhóis, alemães (Levy, 1974), na segunda onda (de 1904 a 1930) entraram
outros 2,1 milhões, destacando-se que essa etapa – em particular no pós Primeira Guerra
Mundial – além dos italianos, nota-se a presença de poloneses, russos e romenos. A terceira
onda de imigrantes estrangeiros (1930-1953) foi marcada por volumes bastante inferiores de
entradas, com a chegada dos japoneses entre 1932 a 1935 e das novas imigrações espanholas,
gregas e sírio-libanesas entre 1953-1960 (imigrações dirigidas em parte ao setor industrial).
Depois disso, a década de 1990 traz novos imigrantes internacionais e cerca de
40% deles vem de países da América do Sul – Argentina, Chile, Bolívia Paraguai,
Peru e Uruguai –; mais de 20% da Europa; 12,5% da Ásia e 9,1% da América do
Norte
7
. (PATARRA, 2005, p. 28). No início do século XXI, “a entrada de estrangeiros
no país voltou a se configurar como um movimento crescente, com grupos advindos
tanto de países desenvolvidos quanto de países pobres, principalmente da América
Latina” (BOGUS; FABIANO, 2015, p. 126). As pesquisadoras esclarecem ainda
que o Brasil “recebe um número cada vez maior de pessoas oriundas de países como
o Haiti, Bolívia e Congo, além de pedidos de refúgio de indivíduos que fogem de
conflitos armados em países do Oriente Médio, África e Ásia” (BOGUS; FABIANO,
2015, p. 128). Em números, o Censo Demográfico de 2010, do IBGE, revela que
havia no Brasil quase 268,5 mil migrantes internacionais
8
. O número de refugia-
dos, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR),
atingiu a marca de 11.231 em 2018
9
.
É num contexto de globalização que o espaço vai tornar-se mais desigual e
excludente (PATARRA, 2005). Martine (2005, p. 5) destaca que
Ao discutir o tema da migração internacional dentro do contexto da globalização, depara-se
de imediato com o fato de que existe uma discrepância flagrante entre o discurso e a prática
liberal. Como bem observa Pellegrino (2003, p. 8): o projeto liberal em matéria de circulação
de capitais e mercadorias, sustentado por grande parte dos Estados centrais, entra em con-
tradição com os severos controles impostos à livre mobilidade dos trabalhadores e à fixação
das pessoas nos territórios nacionais desses Estados. Essa inconsistência é um empecilho
enorme para a idealização de políticas e ações migratórias que sejam condizentes com a
promoção do desenvolvimento e a redução da pobreza.
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Se, por um lado, a imigração pode ser compreendida como uma situação pro-
visória, que vai se prolongando de modo indefinido para os que chegam, por outro,
o país que acolhe pode definir direitos limitados para essa situação provisória (SA-
YAD, 1998). Dessa maneira,
[...] a figura do imigrante transcende [...] o ser simplesmente estrangeiro, levando em conta
sua vivência cotidiana e seu relacionamento mais próximo com a cultura do país de desti-
no, mas, também, não alcança, ainda, a mesma condição social que os nacionais possuem
(WALDMAN, 2012, p. 22).
Para Baeninger (2012a, p. 7),
[...] nas condições sociais contemporâneas, a complexidade, a importância, as novas rotas
e direções coexistem com processos migratórios antigos (internos e internacionais), que se
redefinem na composição de um movimento mais amplo de transformação social.
Os estudos sobre esses processos têm constituído importante material tanto
para registro e reflexão dos movimentos migratórios quanto para a elaboração de
políticas públicas e sociais.
Algumas questões, entretanto, não têm estado suficientemente presentes na
pesquisa nacional, como a imigração infantil, e, em particular, há reduzida pro-
dução acadêmica de estudos sobre/com crianças pequenas. Se é fato que as crian-
ças sempre migraram, principalmente com suas famílias, para buscar melhores
condições de vida e de futuro e/ou para fugir de conflitos e desastres ambientais,
pode-se constatar que as crianças não são vistas como pessoas capazes de tomar
decisões independentes sobre migração
10
(WHITEHEAD; HASHIM, 2005, p. 36).
Isso reflete na literatura sobre movimentos migratórios, concentrada nos adultos,
nas famílias, isto é, raramente as perspectivas das crianças migrantes são ouvidas.
Além disso, como destaca Rossi (2008, p. 4), “poucas estatísticas sobre migração
fornecem dados desagregados por idade”. Nas palavras de Whitehead e Hashin
(2005, p. 2),
[...] as crianças geralmente não aparecem separadamente dos adultos nas estatísticas; da-
dos nacionais confiáveis sobre a incidência de todos os tipos de migração infantil são extre-
mamente raros; onde essas categorias estão disponíveis, são usadas de maneiras diferentes
por diferentes pesquisas e escritores, e existe uma falta de consenso sobre os termos e sua
operacionalização.
A argumentação apresentada até aqui evidencia que, nos movimentos migra-
tórios, as crianças são invisibilizadas. Entretanto, como aponta Martuscelli (2015),
a CDC garante direitos a todas as crianças, independentemente de sua própria
situação migratória ou do status de seus pais, ao mesmo tempo em que o “garante
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o princípio da prevalência dos direitos das crianças, de modo que esses direitos e a
proteção integral da infância deveriam prevalecer sobre quaisquer outros objetivos
da política migratória” (CERNADAS; GARCÍA; SALAS, 2014, p. 17, apud MAR-
TUSCELLI, 2015, p. 159). Para a pesquisadora,
Crianças migrantes revelam outros paradoxos que não são pensados ao se analisar a mi-
gração adulta. O principal deles é que as crianças migrantes ocupam dois papéis contras-
tantes: o de crianças, que possuem uma proteção internacional reconhecida na convenção
de direitos humanos mais ratificada da história, e o de migrantes, que são sujeitos ao con-
trole da soberania estatal e se misturam com a visão construída de “ameaça” e do “Outro”,
do qual os nacionais devem se proteger (MARTUSCELLI, 2015, p. 165, grifos no original).
As ambiguidades e contradições na arena das migrações infantis podem afetar
a qualidade da experiência migratória das crianças. Para Punch (2007), outros
fatores que podem ser levados em conta são o próprio motivo da migração, as con-
dições de vida, as relações e o acolhimento do espaço novo.
Crianças imigrantes em escolas de Educação Infantil na cidade de São Paulo
[...] o que eu sou e o outro é não se faz de modo linear e único, porém
constitui um jogo de imagens múltiplo e diverso. Saber o que eu sou
e o que o outro é depende de quem eu sou, do que acredito que sou,
com quem vivo e por quê. Depende também das considerações que
o outro tem de si, a respeito de si mesmo, pois é nesse processo que
cada um se faz pessoa e sujeito, membro de um grupo, de uma cultura
e uma sociedade. Depende também do lugar a partir do qual nós
nos olhamos (GUSMÃO, 2003, p. 87, apud SILLER, 2011, p. 103).
As escolas têm sido o principal lugar da infância desde a modernidade, e, em
grandes centros urbanos, as crianças vivem a maior parte de seus dias nessas ins-
tituições. Certamente, é um dos lugares nos quais se pode investigar as crianças
imigrantes
11
e seu acolhimento pelos adultos e pelas outras crianças. Nas escolas
também podem ser encontrados elementos das políticas de imigração previstas
para a infância e, certamente, procedimentos e práticas sociais dirigidas a elas.
Além disso, é nas escolas que as crianças realizam seu direito à educação.
A condição de sujeitos de direitos das crianças imigrantes é garantida pela
CF/88, que, em seu Art. 5º determina que “todos são iguais perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade”. O Art. 6º, por sua vez, define que “são direitos sociais
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a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a
segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistên-
cia aos desamparados”. Em consonância à CF/88 está a CDC que, em seu Art. 28,
define o direito de todas as crianças à educação, e, no Art. 29, estabelece que
[...] a educação deve se preocupar, especialmente, em desenvolver de maneira plena a per-
sonalidade, as habilidades e a capacidade mental e física da criança; trabalhar o respeito
ao meio-ambiente, aos direitos humanos, às liberdades fundamentais, aos seus pais, à sua
identidade cultural, ao seu idioma e aos seus valores, aos valores nacionais do país em que
reside e, em determinados casos, do país de origem e aos das civilizações diferentes da sua;
e preparar a criança para adotar uma vida responsável em uma sociedade livre, pautada
na compreensão, paz, tolerância, igualdade de sexos e amizade entre todos os povos, grupos
étnicos, nacionais e religiosos (WALDMAN, 2012, p. 74, grifos nossos)
Ao referir país de residência e de origem, o texto inclui e reforça a educação
de crianças imigrantes, assim como a Lei de Migração, nº 13.445, de 2017, que, em
seu Art. 3º, inciso XI, garante “acesso igualitário e livre do migrante a serviços,
programas e benefícios sociais, bens públicos, educação, assistência jurídica inte-
gral pública, trabalho, moradia, serviço bancário e seguridade social”; e no Art. 4º,
inciso X, reitera o “direito à educação pública, vedada a discriminação em razão da
nacionalidade e da condição migratória”.
Garantido o direito à educação
12
, pode-se perguntar quantas são e de onde
vem as crianças imigrantes que frequentam os centros e as escolas municipais de
educação infantil na cidade de São Paulo? Localizar essas crianças matriculadas
na rede pública municipal paulistana possibilita obter resposta à primeira questão.
A Prefeitura do Município de São Paulo, por meio da página Dados Abertos, ofere-
ce acesso a esse tipo de informação. Em 2017, estavam matriculadas nas escolas
municipais 4749 crianças, espalhadas pelas 13 Diretorias Regionais de Educação
(DRE) que constituem a Secretaria Municipal de Educação (SME), como se observa
na tabela, a seguir.
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Tabela 1 – Crianças imigrantes por DRE-2017
DRE Crianças
BUTANTA 84
CAMPO LIMPO 128
CAPELA DO SOCORRO 72
FREGUESIA/BRASILANDIA 454
GUAIANASES 204
IPIRANGA 410
ITAQUERA 416
JACANA/TREMEMBE 1035
PENHA 1158
PIRITUBA 320
SANTO AMARO 54
SAO MATEUS 173
SAO MIGUEL 239
Total Geral 4747
Fonte: PMSP/SME. Dados organizados
13
por MORAIS, Carolina G. P.
Em relação às crianças imigrantes matriculadas nos centros (CEI) e escolas
municipais (EMEI) de educação infantil, estudo de Rodrigues et al (2014, p. 12) nos
informa que, em 2014, elas eram 1638. Destas, 1054 crianças vindas da Bolívia;
58, da Argentina; 57, do Japão; 41, do Peru; 35, do Paraguai; 28, de Angola; 25, do
Haiti; 5, do Chile; 1, da China; e 305 de outros países.
Uma atualização dos dados foi possível por meio de solicitação direta à Divisão
de Educação Infantil (DIEI) da SME, no início de 2018, como apresenta a tabela a
seguir:
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Tabela 2 – Crianças imigrantes em CEIs e EMEIS, por DRE-2017
DRE Crianças
Butantã 36
Campo Limpo 35
Capela do Socorro 28
Freguesia/Brasilândia 166
Guaianases 87
Ipiranga 284
Itaquera 212
Jaçanã/Tremembé 459
São Miguel 58
Penha 646
Pirituba 59
Santo Amaro 14
São Mateus 58
Total 2142
Fonte: PMSP/SME/DIEI. Dados organizados por MORAIS, Carolina G. P.
Assim, em 2017, estavam matriculadas 2142 crianças, das quais 1191 crianças
de origem boliviana e 333 crianças de origem angolana, as maiores quantidades,
além de outras nacionalidades, como se verifica na tabela que se segue:
Tabela 3 – Crianças imigrantes por país de nascimento - 2017
País Crianças
Bolívia 1191
Angola 333
República do haiti 112
Paraguai 86
Peru 77
Argentina 51
Congo 42
Colômbia 29
Nigéria 29
Síria 20
Venezuela 19
Equador 17
Estados Unidos da América (EUA) 14
Japão 13
Outros 91
Total 2142
Fonte: PMSP/SME. Dados organizados por MORAIS, Carolina G. P.
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A seguir, organizadas por continente, as quantidades revelam aspectos dos
movimentos migratórios sul-sul e norte-sul para o município de São Paulo. Pode-se
perguntar se há similaridade com outros municípios do estado e de outros estados.
Tabela 4 – Crianças imigrantes na Educação Infantil por continente – 2017
CONTINENTE Total
África 435
América Central 127
América do Norte 14
América do Sul 1482
Ásia 25
Europa 24
Não definido 2
Oceania 1
Oriente Médio 32
TOTAL 2142
Fonte: PMSP/SME. Dados organizados por MORAIS, Carolina G. P.
Grande parte das pesquisas, em São Paulo, está voltada às crianças bolivia-
nas, ou filhas de bolivianos, nascidas no Brasil. Das quatro realizadas no contexto
da educação infantil, encontradas no breve levantamento realizado, somente uma
não trata desse grupo, e, somadas às que investigam crianças maiores ou adultos,
revelam que, essa é a nacionalidade
14
mais examinada, sobre a qual se tem mais
informação.
Considerando que os CEIs e as EMEIs paulistanas recebem crianças de todos
os continentes, conforme a Tabela 4, pode-se perguntar: como é que, vindas de
países de idiomas e culturas singulares, são recebidas e percebidas nos centros e
escolas de educação infantil paulistanas? Essa é uma questão que aponta para a
complexidade das relações presentes nesses contextos.
Pode-se pensar sobre o conceito de acolhimento, que demanda uma disponi-
bilidade para receber o outro, o de fora, o que chega. “Acolhimento” é uma palavra
conhecida nas instituições de educação infantil, significando procedimentos de re-
cepção às crianças pequenas, a partir da compreensão de que aquele lugar onde
as crianças chegam lhes é desconhecido, estranho. Talvez, por essa suposta fami-
liaridade com a chegada regular de novas crianças, ou pela pequena proporção de
crianças estrangeiras numa rede de educação infantil que é a maior do Brasil, não
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foi publicado qualquer documento de orientação
15
voltado às crianças imigrantes,
dentre os variados documentos encontrados no portal da SME.
Em busca de resposta à questão, a leitura das poucas pesquisas que buscam
visibilizar as crianças pequenas imigrantes em escolas de educação infantil (SIL-
LER, 2011; SILVA, 2014; SANTOS, 2018) destaca tensões no processo de acolhi-
mento e durante a permanência das crianças nestas escolas. Siller (2011), que in-
vestigou crianças pomeranas, constata um processo de inferiorização da cultura de
origem das crianças, e, nesse sentido, afirma que é
[...] necessário contestar e superar essas práticas hierarquizadas que contribuem para le-
gitimar as desigualdades sociais, e desenvolver desde a educação infantil outras práticas
que respeitem, valorizem e reafirmem a língua, os costumes, os saberes desse grupo étnico
(p. 185).
Silva (2014) aponta que as crianças imigrantes bolivianas e suas famílias são
estigmatizadas visto que há, em nossa sociedade, um repertório valorativo pro-
fundamente etnocêntrico, que é assimilado e reproduzido pela cultura pedagógi-
ca institucional (p. 127). Em seu estudo, o próprio título (¡No hablamos español!)
refere uma não disponibilidade em relação ao idioma de origem das crianças, que
se espalha por outras manifestações culturais. Nas palavras de Santos (2018), “as
crianças imigrantes não reconhecem patrimônios de suas culturas no interior da
escola, pois eles não são tomados como conteúdo, como objeto de estudo” (p. 16).
Destaca-se, contudo, que, em relação ao grupo de crianças, Silva (2014) con-
sidera que “a nacionalidade [é] um aspecto de pouca relevância para as crianças”
(p. 97), o que parece indicar que “a dificuldade inicial de interação das crianças
estrangeiras nas escolas pesquisadas é reflexo de um processo natural de aceitação
de novos membros” (p. 97). Nesse sentido, parece que entre crianças se estabelece
um contato menos tenso, que demanda tempo e confiança.
Cabe perguntar se a origem dos procedimentos que dificultam uma aproxi-
mação entre adultos e as crianças imigrantes, encontradas nos estudos apontados,
poderia ser explicada pela sociedade-centrada-nos-adultos e a hierarquização do
poder, tensão constante nas relações geracionais. Ou, talvez, se possa caracterizar
um estranhamento etnocêntrico, isto é, são crianças como as outras, porém são
diferentes – pelo idioma falado, pelos hábitos culturais, pela expressão de outros
valores. Vandenbroeck (2010), refletindo sobre as crianças imigrantes na Europa,
discute o que se pode aprender com as variadas culturas trazidas pelas crianças
imigrantes, destacando que são diversas identidades e pertencimentos que estão
em interação nos contextos de igualdade e diferença nos quais as crianças convi-
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vem coletivamente. Critica a prática de ignorar as diferenças socioculturais, ale-
gando o ganho na convivência com a diversidade, posição oposta à indiferença,
que simplesmente ignora e, assim, parece não considerar o diverso e o plural no
cotidiano da educação infantil.
As contradições presentes nas instituições de educação infantil refletem di-
ferentes entendimentos sobre as crianças, sobre seu lugar como sujeitos sociais,
históricos e de direitos, e vão evidenciando as relações entre o acolhimento nos
centros/escolas públicas de educação infantil e seus direitos como cidadãs. Consta-
ta-se a insuficiência de estudos sobre as crianças imigrantes na educação infantil
que, se representam uma porcentagem pequena no que se refere à rede pública
de educação infantil paulistana, provocam questões que precisam ser formuladas
e respondidas. Percebe-se na Tabela 4 que outros grupos de imigrantes vêm cres-
cendo e que ainda não são foco de pesquisa, tampouco as crianças, suas culturas e
experiências.
Visibilidade infantil, imigração e cidadania
Se considerarmos as inconsistências da realização dos direitos das
crianças, para além da sua proclamação retórica, reconheceremos
que é na garantia das condições fundamentais da existência e na
ruptura com as relações estruturais da sociedade, que promovem
a desigualdade e a exclusão, que se joga o essencial da cidadania
da infância (SARMENTO; SOARES; TOMÁS, 2004, p. 3).
Pode-se dizer que, nestes últimos anos, se observa uma grande variedade de
situações que afrontam uma política de direitos humanos pautada pela ética, pelo
bem-estar e pela equidade. Verificamos a elaboração de documentos e leis que, im-
plementados, têm competência para tornar o mundo mais justo, mas, em paralelo,
vemos avançar governos autoritários, baseados num dito nacionalismo, excludente
e capaz de procedimentos questionáveis, ou em premissas sustentadas por inver-
dades, construídas a partir de suposições particulares. O aparente desprezo pelo
conhecimento produzido cientificamente, o cerceamento à participação política em
diferentes níveis, a recusa ao reconhecimento das culturas de amplas categorias
sociais tem constituído um contexto cotidiano, presente também nas vidas das
crianças.
Para Qvortrup (2010, p. 780), “nas discussões sobre direitos das crianças, como
também sobre cidadania de maneira geral, pesquisadores e políticos nos deixam
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em uma espécie de limbo e demonstram que não se pensou realmente nas crian-
ças”. Nessa linha, o reconhecimento das crianças, de sua agência e das estratégias
que utilizam para dar conta do mundo, está pouco presente no campo da política,
como argumenta o pesquisador. Ao mesmo tempo, a agência e as estratégias das
crianças, em seus contextos de convívio coletivo, não deixam de acontecer, visíveis
ou não.
Pode-se pensar que as políticas para a infância, ainda que evoquem as crian-
ças agentes e participativas, focalizam principalmente o provimento dos direitos
básicos, de saúde e educação. Ainda que haja uma efetiva tensão entre a proteção e
a participação, há garantia legal de que as crianças são sujeitos de direitos. Tomás
e Soares (2004, p. 356) argumentam que
[...] se apesar de no campo dos princípios se verificar uma intenção de intitular as crianças
com competências indispensáveis ao exercício da cidadania - a possibilidade de ter voz e se
fazer ouvir na sociedade, o exercício da cidadania infantil continua em muitos contextos a
fazer-se por decreto, ou seja, com grande visibilidade nos discursos teóricos pós-modernos
e mesmo nas propostas de intervenção das instituições que actuam no sentido de divulgar
e promover os direitos da criança, mas com escassa visibilidade no quotidiano das crianças
com que nos cruzamos na rua, que aparecem nos noticiários e mesmo com aquelas com
quem lidamos diariamente (p. 356).
Em suma, há contradições e ambiguidades envolvendo os direitos da infância
e as políticas voltadas a ela, embora seja patente que a afirmação de direitos das
crianças tenha provocado a criação de obrigações por parte do Estado, cumpridas
por meio de políticas ou programas.
A visibilidade das crianças pequenas como sujeitos sociais ainda é um desafio.
Esse se torna mais intenso quando tem as crianças pequenas imigrantes como
foco. Isto porque são estranhas aos adultos, porque se veem num contexto diverso
daquele que conhecem, porque idioma, hábitos culturais, modos de fazer as coisas
são diferentes e, como se vê nas pesquisas anteriormente mencionadas, são, mui-
tas vezes, ignorados ou depreciados. Parece constituir um grande desafio torná-las
visíveis porque são crianças pequenas e porque são imigrantes. A pesquisa é um ca-
minho para conhecer crianças em contextos diversos, pela possibilidade de trazer
à luz práticas, procedimentos e relações diversas das e com as crianças. Têm sido
ouvidas as diferentes crianças ribeirinhas, as diversas quilombolas, as múltiplas
indígenas, as variadas pantaneiras, por exemplo, entre tantos pertencimentos cul-
turais e sociais. Talvez seja, ainda, insuficiente, mas já há referências a elas e aos
processos pelos quais se apropriam dos mundos sociais nos quais vivem.
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A cidadania da infância tem suas bases no ver e ouvir as crianças, no prever
espaços e tempos para que elas criem e recriem os mundos culturais nos quais es-
tão inseridas (NASCIMENTO, 2012). Em relação às crianças imigrantes na cidade
de São Paulo, presentes nos centros e escolas de educação infantil, fica um convite
a mais pesquisa sobre sua participação social, sua visibilidade como sujeitos sociais
e de direitos, como cidadãs.
Notas
1
Breve pesquisa realizada resultou em quatro pesquisas específicas a respeito crianças pequenas imigran-
tes, três em instituições de educação infantil (SILLER, 2011; SILVA, 2014; SANTOS, 2018) e uma em
ocupação na cidade de São Paulo (GONÇALVES, 2018). Outros trabalhos encontrados referem a infân-
cia imigrante e educação ou práticas sociais (MAGALHÃES, 2010; MAGALHAES e SCHILLING, 2012;
WALDMAN, 2012; LIBERATO e YOKOI, 2014; RODRIGUES et al, 2014; CARVALHO, 2014, 2015; MAR-
TUSCELLI, 2014, 2015; ALVES, 2015; NEVES, 2018).
2
“[...] a infância deve a sua diferença não à ausência de características (presumidamente) próprias do ser
humano adulto, mas à presença de outras características distintivas que permitem que, para além de to-
das as distinções operadas pelo facto de pertencerem a diferentes classes sociais, ao género masculino ou
feminino, a seja qual for o espaço geográfico onde residem, à cultura de origem e etnia, todas as crianças
do mundo tenham algo em comum. ” (SARMENTO, 2005, p. 24)
3
“[...] Franz-Xaver Kaufmann, que sugere que nossa sociedade exibe uma “desconsideração estrutural em
relação às crianças” (“strukturelle Rücksichtslosigkeit”). Há, diz ele, em nossas sociedades, uma “indife-
rença estrutural” em relação às crianças nos diversos segmentos da vida política, que, como efeito cumula-
tivo, tem conduzido à necessidade de consideração das crianças e de suas famílias. A questão é, entretanto,
que isso não acontece em função de uma hostilidade em relação às crianças, mas, antes, em virtude de uma
tendência secular, entre os adultos em geral, de considerar prioritariamente outros fatores da vida que não
as crianças, em nossa sociedade moderna.” (QVORTRUP, 2011, p. 203, grifos no original)
4
Ver a provocativa discussão sobre proteção e não-proteção em Qvortrup (2015).
5
Para uma discussão de debates e tensões presentes no documento, ver Rosemberg e Mariano (2010).
6
Especificamente em relação às crianças pequenas, o Comitê dos Direitos da Criança da ONU, em 2005,
admite que nos relatórios dos Estados Parte há pouca informação sobre a pequena infância, e que, “em
muitos casos, [...] comentários [são] limitados principalmente a mortalidade infantil, ao registro de nasci-
mento e aos cuidados de saúde” (2005, p. 1). A Observação Geral n.7, publicada em 2005, está voltada aos
pequenos, recuperando as implicações de cada um dos artigos e retomando que as crianças são titulares de
todos os direitos consagrados desde o nascimento, isto é, incluindo todas as crianças.
7
Para Patarra (2005), as informações sobre pedidos de concessão de vistos específicos do Ministério do
Trabalho e Emprego permitem considerar a “hipótese da configuração de um mercado dual de imigrantes:
com os pobres não documentados - oriundos principalmente de países sul-americanos - e, em menor núme-
ro, imigrantes documentados, mão-de-obra qualificada, empresários e pessoal de ciência e tecnologia - de
origem europeia e americana” (p. 28).
8
Em 2017, foi elaborada uma nova Lei de Migração, a Lei nº 13.445, que garante ao migrante internacional
as mesmas condições dos nacionais.
9
Desse total, os sírios representam 36% da população refugiada com registro ativo no Brasil, seguidos dos
congoleses, com 15%, e angolanos, com 9%. (https://www.acnur.org/portugues/dados-sobre-refugio/dados-
-sobre-refugio-no-brasil/).
10
Embora já haja pesquisa acadêmica internacional sobre crianças que migram independentemente de seus
pais, que possuem objetivos e estratégias próprias. A maioria das crianças migrantes independentes tem
13 anos ou mais (HASHIM, 2006).
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Maria Leticia Nascimento, Carolina Grandino Pereira de Morais
11
Incluindo as refugiadas, visto que, no Brasil, em 2016, de acordo com o Ministério da Justiça, 7% dos
deferimentos de refugiados tinham de 0 a 12 anos de idade. (http://www.justica.gov.br/news/brasil-tem-au-
mento-de-12-no-numero-de-refugiados-em-2016/20062017_refugio-em-numeros-2010-2016.pdf)
12
Do ponto de vista municipal, em 2016, a cidade de São Paulo publicou a Política Municipal para a Popula-
ção Imigrante, Lei nº 16.478, que, no Artigo 7º, inciso IV, garante “a todas as crianças, adolescentes, jovens
e pessoas adultas imigrantes o direito à educação na rede de ensino público municipal, por meio do seu
acesso, permanência e terminalidade”. É do mesmo ano o Decreto nº 57.533, que regulamenta a Lei. Toda a
subseção V, Artigos 19 e 20, diz respeito à educação, principalmente às obrigações da Secretaria Municipal
de Educação (SME).
13
Foi necessária a criação de ferramenta que possibilitasse a consulta dos dados, de forma rápida e prática.
Para isso, a partir dos dados obtidos pela página Dados abertos ou daqueles fornecidos pela SME foram
organizadas outras tabelas mais funcionais do que as fornecidas pela Prefeitura.
14
Segundo Baeninger (2012b), a imigração boliviana foi decisiva para o reconhecimento da sociedade brasi-
leira também como receptora de novos contingentes de imigrantes. Dessa forma, à “tradicional e histórica
imigração boliviana na fronteira” foi acrescentado um “expressivo fluxo de imigração boliviana para a me-
trópole paulista” (p. 7). Somente entre 2000 e 2016, 106.000 imigrantes vieram da Bolívia, segundo dados
da Polícia Federal. Acrescenta-se a estes os que são denominados indocumentados. No mesmo período,
chegaram 81.500 haitianos.
15
Ao contrário, mas parece que tardiamente, visto que os primeiros documentos que organizam a matrícula
de crianças imigrantes são da década de 1990, a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo publicou
dois documentos de apoio, em 2018, para integrar estudantes imigrantes, nas séries escolares de sua
responsabilidade. O documento de acolhimento da SEE (2018) esclarece que o recebimento das crianças é
uma “ação pedagógica intencional, organizada e estruturada, uma vez que na escola convivem pessoas que
possuem diferentes trajetórias pessoais e culturais [...]” (p. 8) e recomenda que professores/as verifiquem
se há crianças imigrantes ou refugiadas e que, em caso positivo, pesquisem seus países de origem e com-
partilhem as informações com os demais estudantes (p. 9).
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Contributo para a geodesia das culturas da infância: brincadeiras na latitude 0° e 41°
Contributo para a geodesia das culturas da infância: brincadeiras na latitude 0° e 41°
Contributions to childhood cultures geodesy: playing at 0° end 41° latitude
Contribución a la geodesia de las culturas infantiles: juegos en latitud 0° y 41°
Marlene Barra
*
Manuela Sampaio Pinto
**
Resumo
Uma exposição fotográca sobre as brincadeiras das crianças de São Tomé e Príncipe (latitude 0°) e as brincadei-
ras das crianças de Portugal (latitude 41°) são o mote para reetir sobre a promoção universal Direito a BRINCAR
e a plena participação cultural das crianças nas suas sociedades, expressos nos nº 1 e 2 do artigo 31º da Conven-
ção dos Direitos da Criança de 1989, respetivamente. Na análise das brincadeiras dessas crianças, é possível o (re)
conhecimento dos lugares a partir dos quais as crianças vêm o mundo e atribuem signicado ao que as rodeia.
Ou seja, o mapeamento dos tempos, lugares e das formas como se cruzam o mundo adulto e o mundo infantil
ou como são constituídas as culturas da infância. Aqui se sugere que proclamar, respeitar e promover o direito
universal da criança a brincar só terá sentido se todos os esforços para a concretização desse direito se basearem
na ideia de localização das brincadeiras das crianças.
Palavras-chave: Direitos da Criança. Culturas da Infância. Brincadeiras.
Abstract
A photographic exhibition about São Tomé and Príncipe childrens play (latitude 0°) and the play of children
from Portugal (latitude 41°) is the motto to reect on the promotion of the Universal Right to play and the full
cultural and social participation of children, expressed in Article 31 (number 1 and 2) of the 1989 Convention on
the Rights of the Child, respectively. Analysing childrens play it was possible to recognize the places from which
children see the world and give meaning to their surroundings. That is, the mapping of time, place, and the way
in which are intersect the adult and the child’s world and constituted childhood’s cultures. Proclaiming, respec
-
ting and promoting childrens universal right to play, this article suggests, only makes sense if all these eorts are
based on the idea of locating childrens play.
Keywords: Rights of the Child. Childhood Cultures. Pranks.
*
Doutora em Estudos da Criança pelo Instituto de Educação da Universidade do Minho, é colaboradora no Centro de
Recursos para a Cooperação e Desenvolvimento do IE-UMinho e no Centro de Investigação em Estudos da Criança
da UMinho. Trabalhou em diversos projetos internacionais, tal como a reestruturação do Programa Educativo Na-
cional da Guiné-Bissau e a implementação do primeiro curso de Educação de Infância na Universidade Pública de
Timor-Leste. Consultora na UNICEF de São Tomé e Príncipe entre 2016 e 2018, foi responsável pelo desenho e im-
plementação do Programa de Educação Parental (MEAS-DPSS), alargado a todo o país em 2020. Orcid: https://orcid.
org/0000-0002-1196-2956. E-mail: marlenebarra2016@gmail.com
**
Doutora em Estudos da Criança. Educadora de Infância e Coordenadora do Departamento de Educação Pré-escolar
e Coordenadora da EMAEI (Educação Inclusiva) no Agrupamento de Escolas Amadeo de Souza Cardoso, Amarante,
Portugal. Professora Coordenadora no Instituto Superior de Ciências Educativas do Douro, Penael, Portugal. Orcid:
https://orcid.org/0000-0002-1294-3597. E-mail: mansampaio@gmail.com
Recebido em 11/10/2019 – Aprovado em 08/02/2020
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i2.11436
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Marlene Mendes Barra, Manuela Pinto Sampaio
Resumen
Una exposición fotográca sobre el juego de niños de Sao Tomé y Príncipe (latitud 0°) y el juego de niños de
Portugal (latitud 41°) es el lema para reexionar sobre la promoción universal del derecho al juego y la plena
participación cultural de los niños en la sociedad, expresadas en el Artículo 31 (números 1 y 2) de la Convención
sobre los Derechos del Niño de 1989, respectivamente. En el análisis del juego de estos niños, es posible (re)
conocer los lugares de donde los niños ven el mundo y dar signicado a su entorno. Es decir, el mapeo de los
tiempos, lugares y las formas en que el mundo adulto y el mundo infantil se cruzan, o donde se constituyen
las culturas de la infancia. En este artículo se sugiere que proclamar, respetar y promover el derecho universal
de los niños a jugar solo tendrá sentido si todos los esfuerzos para realizar este derecho se basan en la idea de
ubicación del juego de los niños.
Palabras-clave: Derechos del niño. Culturas de la infancia. Juegos.
Introdução
O presente artigo converge para a reflexão sobre o 31º artigo da Convenção
sobre os Direitos da Criança (1989), ou sobre o Direito de Brincar, partindo da
análise de algumas imagens sobre a prática da ludicidade protagonizada por crian-
ças habitantes em latitudes distintas: as crianças santomenses da latitude 0° e as
crianças portuguesas da latitude 41°. A inspiração para realizar o encontro entre
estes dois mundos das crianças surge também do encontro entre duas educadoras
de infância e investigadoras em sociologia da infância: as imagens das crianças que
nutrem o presente texto foram capturadas no contexto de recolha de dados de duas
investigações de doutoramento em Estudos da Criança, na área da Sociologia da
Infância
1
: sobre as brincadeiras das crianças santomenses – latitude 0° – e o traba-
lho quotidiano
2
num Jardim de Infância da rede pública portuguesa – latitude 41°.
Esses registos “funcionam” aqui como “pontos de partida” para a análise e “molas
inspiradoras” para as reflexões que aqui se adiantam (MALINOWSKI, 1974). Com
este exercício pretendemos lançar luz sobre as formas como a “gramática das cultu-
ras da infância” (SARMENTO, 2004, p. 22) se exprime nas duas latitudes por meio
das brincadeiras das crianças. Ou seja, pretende-se contribuir para o mapeamento
dos tempos, lugares e das formas como se cruzam o mundo adulto e o mundo infan-
til ou como são constituídas as culturas da infância.
Num primeiro momento, faremos algumas considerações sobre o direito da
criança a brincar e a sua relação com as culturas da infância, explicitando se-
guidamente as dimensões da “gramática das culturas da infância” (SARMENTO,
2004, p. 22). Finalmente, com base nos registos fotográficos resgatados junto das
crianças que brincam em São Tomé e Príncipe (latitude 0°) e junto das crianças que
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Contributo para a geodesia das culturas da infância: brincadeiras na latitude 0° e 41°
brincam em Portugal (latitude 41°), refletiremos sobre os significados, princípios e
regras, processos e formas subjacentes e constituintes das brincadeiras das crian-
ças santomenses e portuguesas.
O direito de brincar e as culturas da infância
O direito de brincar está consagrado no Artigo 31° da Convenção sobre os
Direitos da Criança (1989), onde se lê nos números 1 e 2:
1. Os Estados Partes reconhecem à criança o direito ao repouso e aos tempos livres, o direito
de participar em jogos e atividades recreativas próprias da sua idade e de participar livre-
mente na vida cultural e artística.
2. Os Estados Partes respeitam e promovem o direito da criança de participar plenamente
na vida cultural e artística e encorajam a organização, em seu benefício, de formas ade-
quadas de tempos livres e de atividades recreativas, artísticas e culturais, em condições de
igualdade.
Que o brincar faça parte do tempo designado para se viver a infância é hoje
visto como essencial no mundo ocidental: ser criança é brincar (CALLOIS, 1958;
HUIZINGA, 1954; DENZIN, 1977; LOPES, 1998; AMADO, 2002) e os tempos e
espaços para que as crianças brinquem estruturam-se como meios para proteger as
crianças (TOMÁS; FERNANDES, 2014) ou como garantia para que as crianças vi-
vam plenamente os dias da infância (FERREIRA, 2004). As mudanças a que estão
sujeitas todas as sociedades na contemporaneidade (na família, nas instituições,
nas tecnologias de informação e comunicação, no mercado global de produtos para
as crianças, etc.), e, consequentemente, nas vidas das crianças, modificam, dificul-
tam ou impedem que muitas crianças brinquem. A ideia que essencializa o brincar
das crianças – como intrínseco à natureza das crianças e realizado de forma es-
pontânea e livre – é paradoxal com a normalização e excessiva regulamentação a
que estão sujeitas as brincadeiras na contemporaneidade (SILVA, 2011; TOMÁS;
SOARES, 2011; UN-CDC, 2013). Dessa forma, fica também obscurecido aquilo que
de facto significa brincar e, sobretudo, aquilo que no brincar é significante para as
crianças.
De acordo com o ponto de vista que assumimos no presente texto, brincar é
a atividade dominante nas vidas das crianças: não como uma preparação para as
suas futuras vidas adultas, mas como a construção presente das suas vidas de
crianças (CORSARO, 1985, 1997; JAMES, 1993, 1998; BROUGÉRE, 1994; SAR-
MENTO, 2004; FERREIRA, 2004). Ou seja, entendemos que a “participação plena
das crianças na vida cultural das suas sociedades” (nº 2 do artigo 31º da CDC, 1989)
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se realiza quando o direito a brincar é promovido com respeito ao contexto social de
pertença de cada uma das crianças. Assim, torna-se indispensável a promoção do
diálogo entre as culturas da infância e os direitos da criança com o firme propósito
de se conhecer, localmente, para se criticar (e construir) no âmbito de um quadro
global (BURMAN, 1996). Entendemos por culturas da infância os processos simbó-
licos postos em ação pelas crianças, gerados na relação das culturas societais a que
pertencem com as culturas de pares, através dos quais procedem à interpretação
do mundo e ao desenvolvimento das suas práticas sociais (CORSARO, 2002; DE-
LALANDE, 2004; SARMENTO, 2004). As culturas infantis surgem das interações
entre as crianças e os seus grupos de pares e entre as crianças e os adultos, ou seja,
entre as culturas próprias das crianças e as culturas dos adultos (CORSARO, 1997)
que sofrem, por sua vez, influências de outras culturas, variadas, plurais, globais
e até contraditórias. Falar em várias culturas infantis esclarece a sua diversa pro-
dução, ou seja, a sua (re)construção na interação com as diferentes culturas da so-
ciedade onde se inserem assim como na inter-relação entre geração, classe, gênero
e etnia (SARMENTO, 2003). É na convergência destes universos relacionais que
são geradas as culturas da infância na sua globalidade e pluralidade e assim são
entendidas como diferentes, e não como menores ou inferiores como são muitas
vezes cunhadas pelo discurso adultocêntrico e pelo discurso etnocêntrico (FERREI-
RA; SARMENTO, 2008; KOPPELE, 2012; COLONNA, 2012; SARMENTO, 2013;
ROCHA; COSTA, 2014; BARRA, 2016).
O brincar é entendido como um dos pilares fundamentais das culturas da in-
fância (SARMENTO, 2003; 2004), uma atividade social muito significativa no espa-
ço temporal da infância e central na construção de visões individuais ou coletivas,
ou na reprodução interpretativa do mundo (CORSARO, 2002). Entendemos que a
análise das práticas e significados relacionados com a brincadeira e os brinquedos
utilizados pelas crianças podem aproximar-nos das suas culturas e dos sistemas de
construção dos modos de significação e de ação intencional das crianças no mundo
(SARMENTO, 2003). Por outras palavras, os modos como as crianças recebem as
diferentes formas culturais que chegam até elas, como as interpretam e reprodu-
zem nos seus universos sociais, em suma, como é que as crianças se caracterizam
enquanto fruidores e criadores culturais distintos dos adultos.
Seguimos então o trilho das brincadeiras, costumes lúdicos, jogos tradicio-
nais, universais e/ou geracionais das crianças santomenses e portuguesas na ten-
tativa de mapear os lugares das culturas da infância. A “gramática das culturas da
infância” proposta por Manuel Sarmento (2004) pode auxiliar-nos na identificação
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Contributo para a geodesia das culturas da infância: brincadeiras na latitude 0° e 41°
destes lugares de criação ou na topografia das culturas lúdicas nas latitudes 0º e
41° contribuindo, mais amplamente, para a geodesia das culturas da infância – tal
como anunciado no título deste artigo.
A gramática das culturas da infância
A “gramática das culturas da infância” (SARMENTO, 2004) sugere a existên-
cia de princípios lógicos e regras que estruturam as culturas que são próprias das
crianças, ou da infância, embora em simbiose com os mundos adultos. Levando
em conta essa metáfora gramatical no estudo das culturas da infância poderemos
capitulá-la em:
- Semântica das culturas da infância, que diz respeito aos processos de re-
ferenciação e significação elaborados e entendidos pelos/entre os membros
deste grupo geracional;
- Sintaxe que dita as regras de articulação entre os elementos simbólicos mo-
bilizados nos mundos de vida das crianças;
- Morfologia que apresenta as formas singulares e os processos específicos de
formação dos elementos constitutivos das culturas da infância;
- Pragmática que explicita as relações de comunicação e os processos de coo-
peração e estratificação entre as crianças nos contextos.
A identificação e análise dessas dimensões da gramática das culturas da in-
fância, no sentido de definir e delinear os princípios e traços que as distinguem das
culturas adultas, implica ter em conta os “quatro eixos estruturadores das culturas
da infância” (SARMENTO, 2004, p. 14) propostos pelo autor: a interatividade, a
ludicidade, a fantasia do real e a reiteração.
- A interactividade, como um dos eixos estruturadores das culturas da Infân-
cia, é concebida no mundo da criança no “plano sincrónico e no plano diacró-
nico” (JAMES, JENKS; PROUT, 1998) e não pode ser compreendida fora do
contexto das interações do mundo adulto. Essa interação é particularmente
visível nos jogos e brincadeiras das crianças, que partilhados ou proporcio-
nados no contexto de interação com os pares, no quotidiano das crianças,
são passíveis de reprodução por diversas gerações de crianças, condiciona-
das sempre pelos diversos contextos históricos, sociais e culturais de onde
emergem. Esta situação é particularmente reveladora de comportamentos
“infantis”, pois, muitas vezes, os adultos não têm acesso ao que “está na
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moda” em determinado momento no mundo das crianças. No entanto, a in-
teração sistemática que se manifesta está envolta num processo que trans-
forma tanto as formas como a criança “controla” o mundo adulto, como nas
formas que os adultos encontram de administrar os mundos das crianças e
de onde procedem, afinal, muitas das ideias que os adultos possuem acerca
daquilo que é especificamente infantil ou não.
- A ludicidade constitui-se também como um traço fundamental e distintivo
das culturas da Infância, manifestando-se recorrentemente nas atividades
diárias das crianças quando ela brinca com tudo e tudo lhe serve para brin-
car e, assim, diversão e jogos são assuntos sérios para a criança, ou aquilo
que ela faz de mais sério e interessante. O culto da ludicidade, ou a cultura
lúdica, constitui-se como o referencial da própria ideia de Infância, ou da-
quilo que é “infantil”, embora por vezes extremamente naturalizado, e cons-
tituem-se como basilares na (re)produção que as crianças fazem do mundo,
assim como na (re)construção dos seus próprios universos.
- A fantasia do real é, no âmbito das culturas infantis, “fundacional do modo de
inteligibilidade” (SARMENTO, 2002, p. 15), ou seja, dos modos de vida das
crianças no mundo. A “transposição imaginária” das situações vivenciadas,
das pessoas que coabitam no universo da criança ou daquilo que a rodeia,
constitui-se como um modo específico de “ser criança” e um elemento central
de reforço da sua capacidade de resistência e entendimento do mundo, que se
lhe deparam por vezes de formas muito confusas ou dolorosas. O “pensamen
-
to fantasista” característico do universo infantil está, por exemplo, presente
nas (re)configurações que faz dos objetos: “Agora faz de conta que isto é…”;
ou “…é de mentirinha” são sentenças tipicamente infantis na língua portu
-
guesa, paradigmáticas das suas formas de brincar, representar ou apropriar-
-se da realidade que a rodeia. Segundo Manuel Sarmento, a criança fá-lo na
sua luta “[…] contra todos os determinismos e contra todas as pretensões de
subordinação a um controle total, para uma ordem habitável, e sendo o faz
de conta processual permite à criança continuar o jogo da vida em condições
aceitáveis” e inteligíveis para ela própria (SARMENTO, 2002, p. 15).
- A reiteração, como o quarto eixo estruturante das culturas da Infância, re-
vela também a especificidade dos mundos da Infância pela constatação de
que o “tempo” para a criança não é linear, constituinte de uma ordem, ele
será antes “recursivo”. Esse tempo da Infância exprime-se, tal como a in-
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Contributo para a geodesia das culturas da infância: brincadeiras na latitude 0° e 41°
teratividade de que anteriormente se falou, no plano sincrónico quando a
criança recria continuamente as mesmas situações e acontecimentos. Este
tempo sem medida é repetidamente investido de novas possibilidades, po-
dendo ser iniciado e/ou repetido, quando a criança desejar. Nesse processo,
se constroem “fluxos de (inter)ação”, estruturantes de práticas ritualizadas
ou como motivo de ruturas nas atividades das crianças, que reestruturam
as rotinas de ação onde são estabelecidos os protocolos de comunicação e
reforçadas as regras das brincadeiras e jogos. As competências de interação
assim adquiridas são transmitidas e repetidas no plano diacrónico, também
quando se transmitem rituais, jogos e modos de brincar de uma geração
de crianças para a seguinte. “Isto permite que seja toda a Infância que se
reinventa e recria, começando tudo de novo” (SARMENTO, 2003, p. 16).
Estes quatro eixos estruturadores das culturas da Infância orientam a repro-
dução interpretativa do mundo pelas crianças, onde se cruzam as culturas locais
(re)produzidas entre as crianças e a cultura global que emerge – quer infantis quer
adultas. São processos manifestos transversal e cumulativamente nas brincadei-
ras das crianças de ambas as latitudes, tal como pode verificar-se no ponto que de
seguida apresentamos.
Brincadeiras nas latitudes 0° e 41°
Apresentam-se de seguida 16 imagens em que as crianças brincam nos dois
contextos geográficos, aglutinados em 8 momentos que registam brincadeiras mui-
to semelhantes, de acordo com o nosso ponto de vista. A análise incide sobre 1 – os
significados de cada jogo ou brincadeira; 2 – as regras e princípios assumidos pelos
grupos de crianças; 3 – as formas de que se revestem as brincadeiras e uso dos
brinquedos; 4 – as (re)significações dos objetos para brincar e/ou brinquedos.
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Os signicados da brincadeira
Figuras 1 e 2 – Brincadeiras com água
Fonte: registo das investigadoras.
A água exerce um fascínio sobre as crianças que, talvez, se deva às suas pro-
priedades quase mágicas: ela muda de cor, gela, desaparece, etc. Será também no
seio desses mistérios que as crianças interagem entre si trocando ideias, questio-
nando possibilidades, fantasiando as descobertas e repetindo, uma e outra vez, as
brincadeiras com água. Escolher a água para brincar, concentrar-se nesta atividade
e divertir-se experienciando-a de diferentes formas são elementos comuns nestas
imagens, capturadas em São Tomé e Príncipe (Figura 1) e em Portugal (Figura 2).
No entanto, a reflexão sobre o contexto em que essa brincadeira é realizada permi-
te-nos compreender mais profundamente sobre o seu significado em cada um dos
mundos de vida dessas crianças: para a criança portuguesa que brinca, a água é
considerada como mais uma ferramenta de aprendizagem disponível na torneira
do lavatório da sua sala de atividades, onde existem vários materiais que equipam
o espaço “laboratório” da sala e onde é promovida a sua manipulação e a experi-
mentação de diversas formas pelas crianças (fazer bolhinhas, colocar vinagre, jun-
tar tinta, soprar, vazar e fazer medições de volume, etc.); em São Tomé e Príncipe,
as duas crianças brincam com duas velhas garrafas de vinagre cheias de água, que,
sendo de plástico, podem ser apertadas para gotejar ou esguichar água aos com-
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Contributo para a geodesia das culturas da infância: brincadeiras na latitude 0° e 41°
panheiros. No contexto santomense, as crianças são muitas vezes instruídas pelos
adultos sobre o dever de não brincar com a água, ou são mesmo proibidas, pois a
água é um bem precioso que não corre nas torneiras das casas de muitas famílias
santomenses. Ela tem que ser acartada desde as torneiras comunitárias ou desde
os rios e riachos, chegando em ombros ou à cabeça com sacrifício, em recipientes
maiores ou menores conforme o seu transporte é feito por adultos ou crianças (mui-
tas vezes esta é tarefa dos meninos), e nas casas das famílias aguarda o destino de
auxiliar a limpeza pessoal nos banhos, no lavar da loiça ou roupa, mas sempre com
cuidado de não ser desperdiçada, não sendo contemplado/autorizado o seu uso nas
brincadeiras das crianças.
Para as crianças de ambos os contextos a água é manipulada ludicamente, ou
seja, é ela própria um brinquedo nas mãos das crianças (mesmo que “sagrada” em
contexto de escassez) constituindo atividades lúdicas plenas de diversão. Aquilo
que nessa brincadeira é diverso nos dois contextos é o significado da brincadeira:
para as crianças portuguesas é uma brincadeira que pode suportar as suas desco-
bertas e aprendizagens, são impulsionadas pelos adultos e orgulhosamente exibi-
das pelas crianças; para as crianças santomenses esta brincadeira específica com
a água poderá ter um carater transgressor (AMADO, 2002), podendo mesmo ser
repudiada ou proibida por algum adulto ou criança mais velha enquanto decorre.
Figuras 3 e 4 – Brincadeiras com o corpo
Fonte: registo das investigadoras.
Nas imagens selecionadas, são capturadas brincadeiras que as crianças rea-
lizam apenas com o próprio corpo, sem recurso a brinquedos, onde a exibição das
suas habilidades, perícia na execução dos movimentos e divertimento na vertigem
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é visivelmente comum. Percebemos também que ambos os grupos fazem a recria-
ção do real: nas movimentações das crianças santomenses poderemos perceber os
papéis de “cavaleiros” e “cavalos”; “carregadores” e “cargas” (Figura 3) e no jogo
lúdico das crianças portuguesas elas se esmeram na construção de criativas pon-
tes com o corpo (Figura 4). Esse momento, aproveitado também pelo adulto que
faz o registo, conversa sobre a atividade e tenta explorá-la com mais profundida-
de, acontece na espontaneidade do tempo de recreio destas crianças, porque foi
assim que desejaram brincar, sem uma organização de suporte, a montante, por
parte do adulto que, no caso, é espetador da organização grupal de crianças de
duas salas e do modo como exploram o espaço com o próprio corpo, ludicamente.
Para as crianças santomenses, brincar com o próprio corpo e/ou com o corpo dos
seus pares é atividade lúdica muito frequente e rotineira nos seus quotidianos.
Nessas brincadeiras, o brincar com os outros, e não com objetos, assume papel
fundamental (SARMENTO, 2004) e a interatividade surge como fundadora de fan-
tasias imaginadas e partilhadas pelas crianças santomenses. Socorrendo-nos de
Gilles Brougère (2005) poderemos adiantar que se os adultos estão alheados da
cultura lúdica infantil deste grupo de crianças julgarão como brigas, e até ofensas
corporais, tais movimentações criativas e atividades de interação lúdica entre as
crianças santomenses, pois desconhecem as referências que permitem interpretar
estas atividades como brincadeiras e diferenciá-las de outras.
Para as crianças de ambos os contextos, os seus próprios corpos são assumidos
como brinquedos e com eles são exercitadas formas lúdicas através da imagina-
ção e do exercício físico criativo, possível sobretudo pela partilha de significados
e regras entre as crianças. A diferença está no significado atribuído a esse tipo de
brincadeiras, pois para as crianças santomenses o brincar com o próprio corpo e
com o do outro como com brinquedos é frequente nas suas vidas quotidianas, sendo
que o bligá faz parte das atividades recreativas tradicionais santomenses. Para as
crianças portuguesas será uma brincadeira criativa, um exercício lúdico de criati-
vidade, uma mostra de habilidades contorcionistas perante os companheiros.
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Regras e princípios da brincadeira
Figuras 5 e 6 – Brincadeiras de colecionar e jogar
Fonte: registo das investigadoras.
Nas duas imagens selecionadas é possível verificarmos a presença de grupos
de rapazes que, sentados em círculo, se concentram em alguns objetos que têm em
mãos: as crianças santomenses negoceiam a troca de anilhas de latas de refrigerante
e preparam-se para jogar chichi-cala (Figura 5); e as crianças portuguesas jogam
numa imitação do jogo de cartas dos adultos, criando as suas próprias regras com os
cromos do Pokémon (Figura 6). Em ambas as brincadeiras, ou jogos, está inscrita uma
forma lúdica comum entre o género masculino: o gosto em possuir (poder), colecio
-
nar e trocar determinados elementos e divertir-se com os companheiros jogando com
eles. Nesse jogo, aqueles itens transbordam de ludicidade, pois deixam de ser simples
cartões impressos ou anilhas coloridas de refrigerantes para, de acordo com a sua
configuração (forma, cor, tamanho ou quantidade) obterem significados diferentes e
possibilitando a quem os possui (ou possui em maior quantidade): mais força, energia
extra, ou um poder especial que podem levar à vitória no jogo anunciado e negociado.
Aquilo que é comum nas brincadeiras dessas crianças, para além do facto dela
ser protagonizada por rapazes em ambos os contextos, são as regras assumidas
pelos jogadores: coletar, colecionar, trocar e jogar com os melhores elementos pos-
síveis para ganhar um jogo. Aquilo que difere são os meios, brinquedos ou elemen-
tos lúdicos em cada contexto, pois as cartas Pokémom consistem em brinquedos
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industriais mundialmente conhecidas e comercializadas, enquanto as anilhas das
latas de refrigerante são materiais de desperdício reaproveitados pelas crianças,
de acesso relativamente fácil e gratuito.
Figuras 7 e 8 – Brincadeiras com construções
Fonte: registo das investigadoras.
Nas fotografias dessas duas crianças, é visível a sua concentração num jogo de
construção com peças de madeira. A sua habilidade e criatividade dita a colocação
de cada uma das peças e apenas a sua imaginação limitará a forma final que obje-
tivam construir, ou as diversas construções (e destruições) que vão descobrindo ser
possíveis. Ambos os rapazes, de idades aproximadas, escolhem brincar de forma
similar com estas peças de madeira: contar, sequenciar, classificar, alinhar, empi-
lhar, distribuir, etc.; permitindo-lhe a realização das experiências e configurações
que desejam. Aparentemente parece-nos que apenas a estética, geometria dos ele-
mentos, e do cenário onde decorre a brincadeira, diferem nos contextos: a criança
santomense brinca com pedaços de madeira em bruto no chão do refeitório da sua
escola (Figura 8) e a criança portuguesa brinca com peças industriais polidas na
mesa da sala de atividades da sua escola (Figura 8). A contextualização dessas
brincadeiras revela-nos, no entanto, um mundo de diferenças entre as brincadeiras
destas crianças: a criança santomense brinca com esses pedacinhos de madeira
durante a observação e acompanhamento dos adultos que serravam tábuas para
construir bancos para o refeitório da sua escola. A criança portuguesa encontra
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este jogo disponível, entre outros, na sua sala de atividades e escolhe fazer constru-
ções num dos tempos regulamentados para isso.
Aquilo que aproxima essas crianças, nessa atividade lúdica, é o patente gosto
na concentração, imaginação, criatividade, etc. que este tipo de materiais e ativi-
dade permite e aquilo que as diferencia são os materiais utilizados assim como a
oportunidade de o fazer – e fazendo-o – os significados que povoam o imaginário e
as criações de cada um desses meninos nas suas realizações.
Morfologia da brincadeira
Figuras 9 e 10 – Brincadeiras na casinha
Fonte: registo das investigadoras.
Nas fotografias selecionadas, percebemos que estes pequenos grupos de crian-
ças manipulam ludicamente diferentes materiais embora as suas posturas corpo-
rais e ações nos contem histórias com sentidos idênticos nas brincadeiras de faz de
conta que protagonizam: na primeira imagem (Figura 9) as crianças santomenses
envolvem-se numa velha rede mosquiteiro e acomodam-se no seu interior como
numa casa que todos ocupam, mas que permite entrar e sair abrindo e fechando “as
portas” e “janelas”. As crianças portuguesas (Figura 10) partilham uma casinha de
plástico no recreio da sua escola com os companheiros de faz de conta, entrando,
saindo ou simplesmente “a ver as amigas no baloiço” ao apear-se na janela.
Aquilo que é inequívoco na análise de ambas as imagens é que as crianças
realizam um jogo simbólico com significados que parecem ser muito aproximados:
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ambos os grupos se confinam a um espaço de abrigo imaginário onde uma das
meninas, em cada contexto, parece espreitar o mundo assumindo o papel de “mes-
sias”. Aquilo que difere visivelmente nesta brincadeira de faz de conta são os mate-
riais que suportam a história que nos é contada: as paredes, portas e janelas destas
casas de fazer de conta; assim como muito provavelmente diferem as mensagens
que possam chegar a um e outro lugar.
Figuras 11 e 12 – Brincadeiras com bonecas
Fonte: registo das investigadoras.
Nas imagens selecionadas, as bonecas inserem-se no universo dos jogos de
faz-de-conta das crianças, fazendo parte de um jogo simbólico idealizado pelo grupo
de crianças cujos princípios e regras são entre elas partilhadas e os papéis sociais
desempenhados são também negociados. As crianças santomenses simulam um
almoço típico que costuma ser realizado nos quintais das casas em São Tomé e
Príncipe (Foto nº 11) com muita importância nas comunidades como momentos de
convívio entre gerações. Na brincadeira representada nesta fotografia, é signifi-
cativo que as crianças partilhem a mesa de refeição com uma boneca branca, que
possui vestes, penteado e maquilhagem de estilo oriental. A criança portuguesa
escolhe para objecto do seu afecto e cuidados dois bebés de pele negra (Figura 12),
disponibilizados na área de faz-de-conta da sua sala de actividades. As relações
com os outros, a necessidade de pertença a um grupo de pares e a reinterpretação
de papéis sociais são visíveis na fala desta criança quando legenda a sua foto:
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“Eu estava a brincar com os bonecos do faz de conta... com as minhas colegas...
e brinquei com... os bonecos a fazer festinhas... e também estava a brincar com a
Mariana e com a Joana e com a Adriana... e o Francisco era o pai”.
Tratando-se em ambos os casos de brincadeiras de faz-de-conta com bonecas,
as formas como as crianças escolhem brincar com as bonecas diferem de acordo
com o quotidiano das suas sociedades: as crianças santomenses tratam esta boneca
como um convidado na mesa de uma festa ritual santomense e a criança portugue-
sa assume o papel de cuidadora, mãe carinhosa e esposa. As duas situações eviden-
ciam a forma como as crianças exprimem a cultura societal em que se inserem e
veiculam formas especificamente infantis de representar os seus mundos, influen-
ciadas ambas pelo tipo de bonecas disponibilizados pelos adultos em cada contexto.
Fórmulas do brincar
Figuras 13 e 14 – Brincadeiras com carrinhos
Fonte: registo das investigadoras.
Nesta brincadeira em que são transportados, como se fossem cargas, a organi-
zação e entendimento entre as crianças envolvidas (assunção das regras, respeito
pela idade, habilidade e requisitos físicos de cada um – hierarquia) é fundamental.
Essa atividade pode ser observada com alguma frequência entre os rapazes san-
tomenses (Figura 13), sendo esse meio de transporte manipulado pelos rapazes
mais velhos e apenas os rapazes mais novos são transportados, podendo ser esta
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também uma forma de acautelar o seu bom estado, pois este brinquedo, e outros
similares, servem também (sobretudo?) para o transporte de diversos bens para
a realização de “recados” aos adultos: trazer água para casa, comprar algum bem
na quitanda ou no mercado, carregar lenha, etc.. Na análise contextualizada das
brincadeiras dos rapazes portugueses percebemos que essa é uma brincadeira inu-
sitada e inédita, surgida da disponibilidade de uma caixa de fruta deixada pela co-
zinheira da escola e, assim, também da liberdade de brincar oferecida pelos adultos
da instituição a estes rapazes, no espaço exterior, onde a imaginação é fértil, livre
e útil ao movimento corporal (Figura 14).
A diferença entre as brincadeiras desses rapazes nas duas latitudes está, so-
bretudo, no entendimento que cada grupo de crianças tem dos princípios de reali-
zação desta atividade lúdica, ou da sua pragmática: inventar meios de transporte,
transportar e ser transportado; e, subsequentemente, das regras que existem, cria-
ram ou vão criando nos diferentes contextos de execução da brincadeira – embora
seja inegável a diversão causada por este tipo de brincadeira, que se realiza tam-
bém apenas entre rapazes em ambos os contextos.
Figruas 15 e 16 – Brincadeiras com moluscos
Fonte: registo das investigadoras.
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Nas imagens selecionadas, os rostos das crianças revelam o seu fascínio atento
pelo mundo natural que as rodeia, e que em ambos os contextos têm moluscos como
protagonistas. Essas formas de interagir com o mundo animal, caçando, pescando
e observando atentamente é algo comum nas brincadeiras das crianças que aqui
estão representadas. Em São Tomé e Príncipe, as crianças descobrem esses seres
vivos nas poças de lama deixadas pelos dilúvios, frequentes numa determinada
época do ano, no âmbito de uma brincadeira de “fazer de conta que se pesca”. Nes-
ses momentos lúdicos é possível observar as crianças que interagem, questionando
soluções, procurando materiais, ou no arranjo de estratégias para que a pescaria
seja bem-sucedida. Após o cativeiro diversificam-se as observações do grupo de
crianças, cada vez mais atentas a tão prestigiados e microscópicos tesouros (Figura
15). A criança portuguesa ampara e observa, da mesma forma maravilhada, os
caracóis que descobriu no recreio e que levou para a sala, desencadeando todo um
processo que envolveu outras crianças e os adultos no fornecimento de alimento e
de condições de sobrevivência aos caracóis; o seu fascínio por estes animais – que
repugnavam outros adultos, inclusive a sua mãe – o que despoletou mesmo um
projeto de investigação (Figura 16).
A importância de brincar e observar atentamente esses seres vivos parece ser
similar para essas crianças, sendo os princípios para que ela aconteça, contudo, di-
versos: num contexto foram descobertos, noutro são mostrados; num momento são
pescados pelas crianças, noutro são obtidos pela mão do adulto; assim como são li-
bertados num contexto e mantidos em cativeiro no outro, por exemplo. Percebemos
o interesse comum das crianças pelo mundo animal, mas que a fantasia da reali-
dade pelas crianças pode alavancar e justificar de mil e uma formas diferentes: as
crianças santomenses “pescam” por diversão os moluscos nas poças de lama; e as
crianças portuguesas cuidam dos caracóis que passaram a ser seus “companheiros”
durante todo um ano letivo.
Conclusões
As fotografias escolhidas para serem aqui analisadas mostram-nos crianças
que brincam e ajudam-nos a perceber a transversalidade do divertimento e da ver-
tigem desses momentos. A sua análise sugere brincadeiras universalmente reco-
nhecíveis com materiais naturais (vegetais ou animais), materiais de desperdício
(nem sempre com brinquedos), ou com o próprio corpo. Verifica-se, ainda, a escolha
de jogos com princípios incontestados pelos companheiros de jogo e com regras es-
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tabelecidas e conhecidas pelos grupos de crianças, assim como a escolha de lugares
para brincar. Ou seja, no âmbito das culturas lúdicas infantis existem brincadei-
ras, jogos e brinquedos que surgem como eleitos das crianças independentemente
da latitude onde ocorrem.
Percebe-se que algumas brincadeiras são escolhidas em ambos os contextos
geográficos por meninos e outras escolhidas apenas por meninas, participadas pe-
las crianças mais velhas ou pelas crianças mais novas, exigindo algumas delas o
prévio conhecimento de regras e formas de jogar, elas próprias universalizadas. A
par disso, uma análise mais aprofundada deixa-nos vislumbrar um complexo in-
tricado de ações e interações que, fazendo parte de ambos os mundos das crianças,
possuem leituras diferentes de acordo com o contexto geográfico, natural, econó-
mico, social e cultural, assim como com as relações estabelecidas (ou não) com os
adultos e entre as crianças com as suas diferenças etárias e de género. Ou seja, des-
cobrimos que as especificidades da brincadeira da criança santomense e da criança
portuguesa, assim como os significados atribuídos à natureza da atividade, ao seu
desenrolar e produções finais, estão profundamente ligados ao contexto social, eco-
nômico e cultural onde ocorrem (SARMENTO, 2004).
Os valores mobilizados e os significados atribuídos pelas crianças às suas
ações, o desenvolvimento de linguagens para comunicar, a apresentação de normas
e a definição de regras em cada contexto lúdico (jogo, brincadeira de faz-de-con-
ta, brinquedo, etc.) definem as características das ordens sociais instituídas pelas
crianças e instituintes da infância em cada contexto relacional (FERREIRA, 2004).
Embora as crianças portuguesas e santomenses pertençam a culturas diferentes,
heterogéneas e complexas, elas contribuem igualmente para a construção das cul-
turas da infância e deste ponto de vista existe uma “universalidade das culturas
infantis” (SARMENTO, 2004, p. 22). Na linguagem da sociologia da infância, dire-
mos que se reafirma a categoria estrutural da Infância porque em todos os casos
se trata de crianças que brincam e se confirma a pluralidade de infâncias pelas
especificidades que o brincar assume em cada contexto, ou como nos diz Qvortrup:
“[…] a infância como categoria não se dissolve porque existe uma pluralidade de
infâncias; ao contrário, confirma-se por meio destas” (2010, p. 1133).
O direito de brincar é universal e, normativamente, proclamado pelos adultos,
mas são as crianças que nos especificam como querem, gostam e qual é o sentido
que o brincar faz localmente, tal como nos foi possível perceber pelo mapeamento
das suas culturas lúdicas. Buscar os saberes junto das crianças implica que nos dei-
xemos embrenhar na especificidade dos seus universos de vida para constatar que
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na diversidade dos mundos sociais e culturais da infância encontramos a univer-
sal peculiaridade de estar sempre a falar de crianças e que estas crianças sempre
brincam. Inspirados em dois importantes autores na área da Infância, diremos que
com “[… ] um mundo de diferenças: de condição social, de contexto, de valores, de
referências simbólicas, de expectativas e possibilidades […]” (Sarmento, 2003:53)
todas as crianças brincam e enquanto brinca “[...] a criança em qualquer parte do
mundo age com o mesmo instinto de magia e felicidade que é a própria expressão
da vida e constitui a relação eterna entre o homem e o conhecimento do mundo”
(Lambadaridou-Pathou, s/d apud AMADO, 1998, p. 30).
Essa abordagem denuncia a importância da contextualização das análises que
se possam realizar sobre as brincadeiras, mas sobretudo a importância de con-
siderar a escuta das crianças sobre esta matéria na delineação de estratégias e
implementação de programas de estímulo à brincadeira e ao uso dos brinquedos,
ou para a efetivação do direito a brincar em cada sociedade. A participação plena
das crianças na vida cultural das suas sociedades através da promoção do direi-
to a brincar concretiza-se quando direito a brincar é promovido com respeito ao
contexto social específico onde ocorre, ou seja, quando os adultos se predispõem
a (re)conhecer o lugar a partir do qual as crianças vêm o mundo e entender os
significados que elas atribuem ao que as rodeia, ou quando os adultos se permitem
identificar as culturas da infância e reconhecer a sua autonomia (CORSARO, 1999;
SARMENTO, 2000).
Concluiremos dizendo que a escuta das crianças na liberdade das suas brin-
cadeiras quotidianas pode ser precioso guia para os adultos interessados em fazer
cumprir o direito de brincar. Antes de construir muros, equipar espaços e contratar
profissionais adultos para a vigilância da brincadeira, valerá a pena refletir sobre
a simplicidade – e gratuitidade – das demandas das crianças. E sempre obser-
vamos largos sorrisos e apontamentos de bem-estar espontâneo. Sugerimos que
proclamar, respeitar e promover o direito universal do brincar da criança só terá
sentido se as brincadeiras das crianças se realizarem no seio da pluralidade das
suas culturas infantis e todos os esforços para a concretização desse direito de-
vem basear-se na ideia de localização das brincadeiras: as formas diversas como as
crianças brincam e gostam de brincar é que torna universal o brincar e o direito de
todas as crianças a fazê-lo – ou a diversidade como estruturante da universalidade
das culturas da infância.
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Notas
1
Tese 1 : “A Infância na Latitude Zero – As brincadeiras da criança ‘global’ africana” - Bolsa de Investigação
da Fundação da Ciência e Tecnologia, no âmbito do QREN - POPH - Tipologia 4.1 - Formação Avançada,
comparticipada pelo Fundo Social Europeu e por fundos nacionais do MCTES com a referência: SFRH/
BD/71978/2010. ; Tese 2: “E de dentro do circo saiu um passarhomem, metade homem e metade pássaro”
As Culturas Infantis no Jardim de Infância. Tese Doutoramento em Estudos da Criança.
2
De acordo com a Metodologia de trabalho MEM – Movimento da Escola Moderna -, adoptada pela educa-
dora no Jardim de Infância de Estrada/Agrupamentos de Escolas Amadeo de Souza Cardoso, Amarante-
-Portugal.
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Literatura infantil com personagens negras: narrativas descolonizadoras para novas construções identitárias e de mundo
Literatura infantil com personagens negras: narrativas descolonizadoras para
novas construções identitárias e de mundo
Childrens literature with black characters: decolonizing narratives for new identity and world
constructions
Literatura infantil con personajes negros: narrativas decolonizadoras para nuevas
construcciones identitarias y de mundo
Simone dos Santos Pereira
*
Iracema Santos do Nascimento
**
Resumo
Este artigo parte de reexões sobre a fabricação de uma história única, que elege e valoriza determinada cosmo-
visão em detrimento das outras que compõem a formação histórico-cultural de um povo ou nação, legitimando
e transmitindo apenas uma herança cultural. No Brasil, esse discurso tem apresentado o povo negro como es-
cravo, submisso, inferior... Na escola, uma das importantes vias de transmissão de tal narrativa são as histórias
nos livros de literatura, que sugerem padrões do que é verdadeiro, bom e bonito, a partir da supremacia branca
e heteronormativa. Este artigo analisa e problematiza, de modo interdisciplinar, dois textos da literatura infantil
contemporânea que provocam a desnaturalização das narrativas e das relações colonizadoras e dualistas: entre
o bem e o mal, o certo e o errado, o belo e o grotesco, o incluído e o excluído. Eles mobilizam discursos de africa-
nidades e negritudes para o empoderamento da criança negra. Conforme observado em pesquisa de campo em
escola municipal de educação infantil da cidade de São Paulo, sua leitura por educadoras para crianças peque-
nas possibilita releituras e reescritas de corpos negros, a partir da interseccionalidade de gênero e de etnicidade,
permitindo às (aos) leitoras uma ampliação de visões de si e de mundo.
Palavras-chave: Literatura infantil contemporânea. Descolonização. Processos identitários. Relações de poder.
Negritudes.
*
Doutoranda no PPG em Antropologia Social da Faculdade de Filosoa, Letras e Ciências Humanas (PPGAS FFLCH)
da Universidade de São Paulo (USP), Brasil. Professora da Educação Básica. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3177-
2575. E-mail: simone.pereira@alumni.usp.br
**
Professora doutora na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP). Áreas de pesquisa e atuação:
Democracia, Gestão Educacional e Diversidade; Direito à Educação; Educação, Raça e Gênero; Direito à literatura.
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6114-5949. E-mail: iranasci@usp.br
Recebido em 13/10/2019 – Aprovado em 27/12/2019
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i2.11440
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Simone dos Santos Pereira, Iracema Santos do Nascimento
Abstract
This article starts with reections on the fabrication process of a single history, which elects and values a certain
worldview over all others in the historical-cultural formation of a people or a nation, legitimizing and trans-
mitting only one cultural heritage. In Brazil, this discourse has presented the black people as slave, submissive,
inferior... At school, one important way of transmitting such discourse is the stories present in children’s literature
which suggest patterns of what is true, good and beautiful, based on white and heteronormativity supremacy.
This article analyzes and problematizes, in an interdisciplinary way, two stories of the contemporary childrens
literature which provokes the denaturalization of colonized and dualist relations: between good and evil, right
and wrong, beautiful and grotesque, included and excluded. These stories mobilize discourses of Africanities
and blackness for the empowerment of black children. As observed in the eld research in a public school in
the city of São Paulo, as the educators read to and with the children they enable black bodies’ rereading and
rewriting, considering gender and ethnicity intersectionality, allowing readers to broaden views of themselves
and of the world.
Keywords: Contemporary children’s literature. Decolonization. Identity Processes. Power relations. Blackness.
Resumen
Este artículo comienza con reexiones sobre el proceso de fabricación de una história única, que elige y valora
una determinada cosmovisión en detrimento de todas las demás en la formación histórico-cultural de un pueblo
o una nación, legitimando y transmitiendo solo un patrimonio cultural. En Brasil, este discurso ha presentado a
los negros como esclavos, sumisos, inferiores… En la escuela, una forma importante de transmitir dicho discurso
son las historias presentes en la literatura infantil que sugieren patrones de lo que es verdadero, bueno y bello,
basado en la supremacía blanca y en la heteronormatividad. Este artículo analiza y problematiza, de manera
interdisciplinaria, dos historias de la literatura infantil contemporánea que provocan la desnaturalización de las
narrativas y de las relaciones colonizadoras y dualistas: entre el bien y el mal, lo correcto y lo incorrecto, lo bello
y lo grotesco, lo incluido y lo excluido. Ellas movilizan discursos de africanidades y negritudes para el empodera-
miento de las (os) niñas (os) negras (os). Estos cuentos permiten relecturas y rrescrituras de los cuerpos negros,
basados en la interseccionalidad de género y etnia, permitiendo a las (os) lectores ampliar sus puntos de vista
sobre sí mismos y sobre el mundo.
Palabras clave: Literatura infantil contemporánea. Descolonización. Procesos identitarios. Relaciones de poder.
Negritudes.
Literatura e descolonização na construção de identidades
Quão importante são os livros que lemos? Ao discutir a capacidade da litera-
tura de confirmar a humanidade do ser humano, Antonio Candido aponta que ela
tem certo tipo de função psicológica que satisfaz as necessidades mais elementares
de ficção e de fantasia. Contudo, “[...] a fantasia quase nunca é pura. Ela se refe-
re constantemente a alguma realidade: fenômeno natural, paisagem, sentimento,
fato, desejo de explicação, costumes, problemas humanos, etc.” (CANDIDO, 1972,
p. 113, grifo no original). Assim, as narrativas podem atuar na subjetividade do
leitor em uma medida que não podemos avaliar.
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Literatura infantil com personagens negras: narrativas descolonizadoras para novas construções identitárias e de mundo
O autor questiona se há intencionalidade na literatura, uma vez que os pa-
drões do que é verdadeiro, bom e bonito são discursos construídos a partir de inte-
resses dos grupos dominantes, que reforçam a manutenção de concepções sociais.
Ele responde que sim e que a literatura pode ser humanizadora ou alienadora, de
acordo com as escolhas realizadas por autoras e autores e de como leitoras e leito-
res as interpretam.
Nesse sentido, a literatura tem papel fundamental nos processos subjetivos de
significação das crianças. Enquanto direito básico do ser humano e equipamento
intelectual e afetivo, ela “confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate,
fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas” (CANDIDO,
1989, p. 113). Ela possibilita múltiplas vozes e narrativas, amplia compreensões de
si mesmo e de mundo, contribui para o equilíbrio social...
Mariosa e Reis sugerem que a construção da identidade da criança passa, ine-
vitavelmente, pelos referenciais que forem a ela apresentados. Esses referenciais
estão presentes nos brinquedos, nas personagens de desenhos animados, de filmes,
de histórias infantis, etc. As autoras ressaltam que as crianças influenciadas pe-
los padrões do que é bonito e do que é bom, sugeridos pelas personagens dessas
narrativas, podem constituir sua própria identidade positiva ou negativamente.
Por vezes, a literatura serve “[...] como fonte de significados existenciais que pode-
rão ser aplicados ao mundo real. Então, conforme Abramowicz (1989), para que o
indivíduo possa formar a sua própria identidade, ele precisa recriar a realidade e
imaginá-la” (MARIOSA; REIS, 2011, p. 48).
Pode-se afirmar que a estrutura dominante da indústria para o mercado de
cultura infantil no Brasil passa pela influência de construções históricas proceden
-
tes da Europa e dos Estados Unidos. Elas definem modelos de corpos, de sentimen-
tos, de histórias e de culturas, que são naturalizados como histórias verdadeiras,
únicas e normatizantes. Seguindo, por exemplo, as histórias “clássicas” de princesas
[...] as crianças brancas vão se identificar e pensar serem superiores às demais, vão estar
em posição privilegiada em relação às outras etnias. As crianças negras [por silenciamen-
tos, ausências e papéis sociais estanques] alimentarão a imagem de que são inferiores e
inadequadas. Crescerão com essa ideia de branqueamento introjetada, achando que só
serão aceitas se aproximarem-se dos referenciais estabelecidos pelos brancos. Rejeitando
tudo aquilo que se assemelhe com o universo do negro (MARIOSA; REIS, 2011, p. 42).
Contudo, apropriadamente, vem se intensificando, nos últimos anos, uma pro-
dução literária que valoriza a cultura, a história e a tradição africana e afro-brasi-
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leira, apresentando a leitores e leitoras de todas as idades outras possibilidades de
perceber o mundo.
Em um momento em que a pluralidade demanda descolonizações das ideias
fixas e estruturantes para o fortalecimento de identidades e de direitos para mais
equidade, analisamos neste artigo duas narrativas infantis que posicionam o corpo
negro e a descendência africana de modo a constituir positivamente a subjetivida-
de da criança negra. Trata-se do conto Oduduá e a briga pelos sete anéis, do livro
m-oba histórias de Princesas
1
e do livro O mundo no black power de Tayó
2
, ambos
de autoria de Kiusam Oliveira.
A escolha de escrever um artigo sobre literatura infantil com personagens
negras se deu a partir da observação de práticas de leitura dos dois textos mencio-
nados por professoras da Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) Carolina
Maria de Jesus, de São Paulo (SP), durante pesquisa de campo realizada entre
maio e junho de 2018. Na experiência etnográfica vivenciada na EMEI
3
pudemos
perceber representações positivas dos corpos negros e das tradições africanas na
literatura oferecida para as crianças.
Perceber-se negra ou negro é algo proposto e incentivado pela EMEI, cons-
truído desde os primeiros dias
4
, com leitura de histórias, cantigas, brincadeiras,
estudos de africanidades, oficinas de turbantes e tranças, entre outras atividades.
De acordo com as professoras, muitas vezes as crianças, em sua maioria negras,
chegam à EMEI rejeitando sua cor. Após algum tempo, passam a se reconhecer
como negras, de forma positiva, desconstruindo ideias, para além dos muros da
escola, de preconceito, de discriminação, de inferioridade, etc. (PEREIRA, 2020).
Entre as atividades da EMEI podemos destacar a Sessão Simultânea de Lei-
tura
5
, realizada, quinzenalmente, às quartas-feiras, durante um período de dois
meses. As crianças se aproximam das narrativas por suas próprias escolhas e não
por divisões em idades, turmas, etc. Para incentivar o protagonismo e a autono-
mia, a atividade começa com cada criança escolhendo a história que quer ouvir.
Individualmente, em suas respectivas salas, cada criança recebe um adesivo com
seu nome. Ela deve colá-lo na cartolina que contém a foto do livro que escolheu. As
leituras são realizadas em diferentes espaços da escola. As crianças saem de suas
salas de aula e buscam a professora que segura a cartolina com a imagem do livro
de sua preferência. Desse modo, se formam novos grupos a partir da afinidade das
escolhas. As professoras encorajam as crianças a selecionarem uma história dife-
rente a cada sessão, todavia, há aquelas que decidem pelo mesmo livro em todos
os encontros.
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Literatura infantil com personagens negras: narrativas descolonizadoras para novas construções identitárias e de mundo
No bimestre observado, os livros escolhidos foram: O Grúfalo, de Julia
Donaldson e Axel Scheffler (Ed. Brinque-book), A verdadeira história de Chapeu-
zinho Vermelho, de Agnese Baruzzi e Sandro Natalini (Ed. Brinque-book), Por que
você não me aceita assim? de Helme Heine (Ed. Iluminuras), A Princesa Sabicho-
na, de Bebette Cole (Ed. Martins Fontes), m-oba: histórias de princesas (Mazza
edições) e O mundo no black power de Tayó
6
(Ed. Peirópolis). Selecionamos os dois
últimos títulos para análise neste artigo por se referirem diretamente às matrizes
africanas e ao empoderamento do corpo feminino negro.
Corpos descolonizados, subjetividades livres
Com sua escrita literária, Kiusam
7
de Oliveira busca fortalecer a subjetividade
das crianças negras e apresentá-las positivamente às crianças não-negras. Promove
também ressignificações de olhares e de lugares de fala para as (os) adultas (os), as
famílias, as professoras e demais actantes que leem, contam e recontam essas his
-
tórias. Conforme explica a autora em vídeo
8
gravado para a Comissão Permanente
de Avaliação das Políticas Públicas em Educação (COPAPPE), ela quer contribuir
para um processo de constituição identitária livre de hierarquias e desigualdades.
Nos textos escolhidos para análise, Kiusam foca personagens femininas ne-
gras. No vocabulário iorubano, m-oba significa “criança do rei” e a autora escolhe
como protagonistas princesas, que se tornaram orixás. Tal escolha está relacionada
à força que quer imprimir ao feminino, uma vez que a mulher negra é desvalori-
zada, não é reconhecida como produtora de intelectualidade, de arte e de cultura.
Pelas palavras de Kiusam e pelos traços do ilustrador Josias Marinho, as
orixás
9
femininas Oiá, Oxum, Iemanjá, Olocum, Ajê Xalugá e Oduduá são repre-
sentadas como lindas princesas. Oduduá traz a narrativa da origem do céu e da
terra e também do poder e da força do feminino. As (re)criações de Kiusam buscam
desvelar elementos de cosmovisões africanas e ampliar as possibilidades de corpos
femininos para além daqueles das tradições cristãs e das princesas ocidentaliza-
das, amplamente difundidas nos últimos séculos no Brasil e no mundo.
Assim, o trabalho de Kiusam opera na contracorrente da história única, o que
nos remete ao pensamento e à obra da escritora nigeriana Chimamanda Adichie. A
partir de sua história de vida, Adichie (2009) alerta para o quão as crianças são im-
pressionáveis e vulneráveis aos perigos que uma história única representa. Porque
os livros de fácil acesso na Nigéria narravam histórias das princesas de Charles
Perrault, Irmãos Grimm e Disney, a autora explica que as primeiras personagens
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dos textos que escrevia eram idênticas àquelas que lia: brancas, com olhos azuis,
brincando na neve... Ou seja, como decorrência dos processos de colonização euro-
peia no continente africano, a partir dos sete anos de idade, Adichie reproduzia em
seus primeiros escritos a cultura que lhe era apresentada como legítima, em que
a literatura imposta lhe fazia acreditar que só caberiam em livros personagens
estrangeiras à sua cor, à sua cultura e à sua territorialidade. Ela relata que, ao ler
as histórias de autores africanos, tais como Chinua Achebe e Camara Laye, (re)co-
nheceu a representatividade negra na literatura, fato que transformou a percepção
de si, de sua cultura e da literatura.
A (não) representatividade da criança negra no cinema, nos desenhos, na lite-
ratura, na música, nas redes sociais, nas revistas em quadrinhos, etc., influencia
diretamente na constituição da subjetividade das crianças. A não presença nesses
espaços as posiciona dentro de uma hierarquia fixa, socialmente construída por uma
cultura dominante, que valoriza modelos únicos de narrativas, de beleza, de perten
-
cimento, etc., naturalizando o devir dos corpos. Assim, é também dever da escola e
das (os) educadoras (es) a tomada de posição na escolha de narrativas que valorizem
todas as formas de ser e estar na sociedade (PEREIRA; SILVA; SIQUEIRA, 2019).
A escrita de Kiusam questiona as narrativas únicas, possibilitando outras for-
mas de ser do corpo negro. A autora narra algumas das versões da mitologia dos
iorubás
10
das comunidades de tradição Ketu
11
: Oiá e o búfalo interior, Oxum e seu
mistério, Iemanjá e o poder da criação do mundo, Olocum e o segredo do fundo do
oceano, Ajê Xalugá e o seu brilho intenso, Oduduá e a briga pelos sete anéis. Essas
princesas negras africanas possibilitam perceber outros tempos, espaços e locais de
fala, sugerindo inúmeras formas de vivenciar o feminino na sociedade. São prin-
cesas fortes, que possuem instrumentos (psicológicos e materiais) para enfrentar
seus adversários. Nesse sentido, a autora busca apresentar formas diversas de
compreender a História, as mitologias, as culturas e as religiosidades africanas,
como também o posicionamento das mulheres negras na sociedade.
Oduduá e a briga pelos sete anéis
A narrativa aqui comentada é Oduduá e a briga pelos sete anéis, uma versão
de mito de origem da tradição oral iorubá, em que uma princesa guerreira luta por
sete anéis e o resultado é a separação da terra e do céu. Hampâté Bâ aponta que a
tradição oral é a grande escala da vida no continente africano. Nela
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Literatura infantil com personagens negras: narrativas descolonizadoras para novas construções identitárias e de mundo
[...] o espiritual e o material não estão dissociados. Ao passar do esotérico para o exotéri-
co, a tradição oral consegue colocar-se ao alcance dos homens, falar-lhes de acordo com o
entendimento humano, revelar-se de acordo com as aptidões humanas. Ela é ao mesmo
tempo religião, conhecimento, ciência natural, iniciação à arte, história, divertimento e re-
creação, uma vez que todo pormenor sempre nos permite remontar à Unidade primordial”
(HAMPTÉ B, 2010, p. 169).
Seguindo a tradição oral, Kiusam de Oliveira inicia a narrativa apresentando
a princesa orixá com elementos de ordem psicológica (rapidez e determinação) e da
natureza: “Tinha uma beleza rústica e não gostava de se enfeitar. Ela era a Terra e
tinha a força da Terra e cor da Terra(OLIVEIRA, 2009, p. 43).
Há a representação de um feminino que entrelaça o corpo, o espaço, o tempo,
a beleza, a força e a rapidez. Nesse corpo feminino há também determinação e
coragem enquanto características psicológicas que a acompanham ao longo de sua
história de vida, de criança à princesa, à mulher, à guerreira e à orixá. As relações
de mulher e natureza estão imbricadas.
Oduduá vivia dentro de uma cabaça com o príncipe Obatalá, e como o espaço
era pequeno, um corpo tinha que ficar em cima e o outro embaixo. Nessa versão os
corpos feminino e masculino ocupam, proporcionalmente, o mesmo espaço dentro
da cabaça.
Figura 1 – Páginas iniciais da história Oduduá e a briga pelos sete anéis
Fonte: Ilustração retirada do livro.
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“Todas as noites, o príncipe Obatalá decidia que a princesa Oduduá deveria
dormir embaixo dele” (OLIVEIRA, 2009, p. 44). E lhe ordenava que ali ficasse.
Obatalá assume uma postura identitária de superioridade do gênero masculino
e determina uma relação de poder, favorecendo a quem ficasse em cima. Oduduá
retrucava e insistia que parasse de ordenar: “Temos que chegar a uma decisão
comum” (OLIVEIRA, 2009, p. 44). Apesar das reclamações da princesa, o prínci-
pe não mudava sua forma de agir. Nesse exemplo, Obatalá inventa diferenças e
produz desigualdade ao engendrar uma oposição dualista entre poder-obediência,
dominação-submissão, superioridade-inferioridade...
De acordo com Woodward (2014), “as identidades são fabricadas por meio da
marcação da diferença. Essa marcação da diferença ocorre tanto por meio de siste
-
mas simbólicos de representação quanto por meio de formas de exclusão social (p.
40, grifos no original). A diferença fabricada pela relação “eu” e “a outra (o outro)”,
na forma de oposições binárias, gera classificação e hierarquia em que um será mais
forte ou mais valorizado que o outro, produzindo necessariamente desigualdades.
Em algum momento Oduduá e Obatalá ganharam, de um parente próximo,
sete anéis de ouro e, porque a divisão dos anéis não seria igual para cada um,
o príncipe Obatalá ordenou que quem dormisse em cima ficaria com quatro dos
anéis. E assim foi feito por muito tempo.
Um dia Oduduá parou de aceitar tais determinações: “Príncipe Obatalá, eu
não aceito mais esta imposição sobre mim. Não é por que você é homem que deve
sempre ter sua vontade atendida. Sou mulher e tenho meus direitos do mesmo
jeito que você os tem” (OLIVEIRA, 2009, p. 45). Oduduá desnaturaliza a ordem
de gênero
12
ora imposta por Obatalá. Esse posicionamento questiona diferenças,
classificações, hierarquias e desigualdades construídas histórica e socialmente.
O príncipe não aceitou a proposta de equidade e “a princesa Oduduá, irada,
partiu para cima dele numa briga sem-fim. Enquanto lutavam, tentavam cada um
pegar os anéis, sem sucesso. Lutaram, mas lutaram tanto que a cabaça se rompeu
em duas partes” (OLIVEIRA, 2009, p. 45). Foi aí que, lançada a parte inferior para
baixo, Oduduá se tornou a Senhora da Terra e, ao ser lançada para cima, a parte
superior da cabaça, Obatalá se tornou o Senhor do Céu. Uma briga por sete anéis,
que se espalhou pelo mundo, separou Céu e Terra, marcando o mito da origem para
as comunidades Ketu.
Oduduá questiona as imposições de seu companheiro de “universo-cabaça”,
o lindo príncipe Obatalá, que, “por ser homem”, acreditava que só ele possuía di-
reitos. Ao posicionar o lugar de fala e de atitude da princesa Oduduá em busca de
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Literatura infantil com personagens negras: narrativas descolonizadoras para novas construções identitárias e de mundo
equidade de direitos, Kiusam desconstrói estereótipos de gênero muito comuns em
narrativas infantis, ou seja, da princesa que espera passivamente pelo príncipe
encantado.
Nessa história, a princesa orixá guerreira é protagonista da ação do surgimen-
to do mundo. As tensões e as brigas resultantes de seus questionamentos, literal-
mente, levaram à explosão do mundo em que viviam. Eis uma metáfora poética
para a tremenda força dos movimentos de mulheres e feministas – sobretudo do
feminismo negro – que vêm teimando em transformar as relações de gênero e o
mundo generificado em que vivemos
13
.
O tempo, enquanto episteme, “[...] só existe como significação, como sen-
tido, como valor porque é legitimado por uma comunidade, uma sociedade que a
formula, a autoriza, interage com ela através de manifestações religiosas, estéti-
cas, econômicas” (BARROS, 2003, p. 24). Essas significações passam por múltiplas
versões, mas a algumas delas são atribuídos mais valor e mais poder, ou mesmo,
valor e poder ditamente universais. Assim, questionamos: que discursos de origem
são valorizados e transmitidos enquanto herança cultural? A ideia de origem que
povoa o imaginário da maioria de nós brasileiras (os) e de outros povos colonizados
por europeus, provém do mito cristão, em que “[...] no princípio Deus criou o céu e a
terra” (A BÍBLIA, 1987, p. 25), e do mito grego, em que a união entre Gaia (deusa
da terra) e Uranos (potestade do céu), gerou Cronos (deus do tempo) e também
Mnemosine (deusa da memória). Os mitos de origem se tornam discursos únicos e
se alternam na relação de significados culturais dominantes.
A história de Oduduá traz um novo discurso sobre o corpo, o espaço, o tempo,
a origem do universo, que põe em cheque a produção das histórias únicas dos pro-
cessos de colonização do Brasil, do continente americano e do continente africano.
Kiusam, intencionalmente, permite novas possibilidades de se (re)conhecer en-
quanto corpos negros na sociedade, contextualizados no desenvolvimento histórico
e na produção de diferentes visões de cultura. Desse modo, a leitura do livro per-
mite a discussão de outra(s) forma(s) de origem do céu e da terra, de outros mitos,
de outras culturas. Provoca ainda a desnaturalização das histórias e das relações
colonizadoras e dualistas: entre o bem e o mal, entre o certo e o errado, entre o belo
e o grotesco, entre o incluído e o excluído.
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O mundo no black power de Tayó
Tayó, na língua Iorubá, significa “da alegria / aquela que pertence à alegria”
e, dessa forma, a personagem nos é apresentada pela narrativa de Kiusam e pelos
traços da ilustradora Taísa Borges. Tayó tem seis anos e, assim como outras per-
sonagens de outros livros infantis, é uma criança negra muito feliz, que adora seu
cabelo, a sua história e a sua cultura.
Figura 2 – Ilustração do livro O mundo no black power de Tayó
Fonte: Ilustração retirada do livro.
A narrativa possibilita a valorização das características do corpo (de Tayó) e de
elementos de culturas do continente africano. Kiusam inicia o texto por destacar as
belezas do corpo negro com cores, movimento e vivacidade: o rosto de Tayó parece
uma moldura de valor, “[...] seus OLHOS são NEGROS, tão negros como as mais
escuras e belas noites que do alto miram com ternura qualquer ser vivo. Do fundo
desses olhos escuros saem faíscas de um brilho que só as estrelas são capazes de
emitir”
14
(OLIVEIRA, 2013, p. 11, grifos do original), sua boca só se move para dizer
palavras de amor.
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Literatura infantil com personagens negras: narrativas descolonizadoras para novas construções identitárias e de mundo
Em seguida, a autora se atém ao penteado black power que está no cerne da
questão do fortalecimento da beleza do cabelo crespo. O penteado de Tayó é a parte
do corpo que ela mais gosta e, por isso, está sempre a embelezá-lo com os mais
divertidos enfeites: borboletinhas, flores coloridas, fios de lã... Kiusam apresenta a
alegria e a força do cabelo de Tayó e como a criança significa o mundo através dele:
[...] Ela ama tanto os bichos, a natureza, os alimentos, as pessoas e os planetas
que, por vezes, projeta todo esse universo em seu penteado” (OLIVEIRA, 2009,
p. 24). Seu cabelo é tão grande quanto sua imaginação e carrega suas concepções
de mundo nele.
Kiusam ressalta a forte ligação entre Tayó e a história dos povos e culturas
africanas de modo que o (a) leitor (a) possa valorizá-las, ressignificá-las e preservar
as memórias e as tradições. Tayó projeta
[...] em seu penteado todos os sons e cores alegres das tradições que negros e negras con-
seguiram criar e preservar, como as danças, os jogos, as religiões de matriz africana, as
brincadeiras, os cantos, as contações de histórias e todos os saberes, demonstrando que
nem corrente nem grilhões conseguiram aprisionar a ALMA POTENTE DOS SEUS ANTE-
PASSADOS (OLIVEIRA, 2009, p. 31).
Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) explicitam que durante a
maior parte do século XX o Estado promoveu ações, inclusive por meio das escolas,
objetivando uma
[...] homogeneidade cultural, enquanto se propagava o “mito da democracia racial brasilei-
ra”. Essas interpretações conduziram a atitudes de dissimulação do quadro de fato existen-
te: um racismo difuso, porém efetivo, com repercussões diretas na vida cotidiana da popu-
lação discriminada. Disseminou-se, por um lado, uma ideia de um Brasil sem diferenças,
formado originalmente pelas três raças – o índio, o branco e o negro – que se dissolveram,
dando origem ao brasileiro” (1997, p. 25, grifo no original).
No processo de fabricação da história, a partir do ponto de vista dos vencedo-
res, a ideia de uma identidade nacional única se reafirmava pelo ocultamento de
produções de diferenças e, consequentemente, de desigualdades.
Os PCNs, com o intuito da valorização da diversidade cultural, destacam o
tema étnico-racial no volume de Pluralidade Cultural, entre os temas transversais.
Ao discorrer sobre os conteúdos fundamentais propostos pelo documento, Mattos
(2003) ressalta que os entrelaçamentos de conexão histórica realizados entre o con-
tinente africano, a escravidão e a questão racial ainda são problemáticos uma vez
que: i. parecem estar desvinculados da análise do conjunto da sociedade na época
da colônia, e; ii. resultam em uma quase naturalização da relação entre africanos e
escravidão, que possibilita associação da questão racial como justificativa do perío-
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do escravista. Nesse sentido, a autora propõe para a Educação Básica, entre outros
elementos: i. que a história da África seja tratada com a mesma profundidade que
a história europeia; ii. que o processo de racialização das (os) negras (os) nas Amé-
ricas seja historicizado de forma a relacioná-lo às definições de direitos civis; e iii.
que se incorpore outros olhares sobre a construção da história do país.
Depois de muitos enfrentamentos dos movimentos negros, o Estado reconhe-
cendo a importância dessas questões, promulga as Leis 10.639 em 2003 e 11.645
em 2008. Ambas modificam a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDB) e versam sobre a inclusão, no currículo da Educação Básica, de reescritas da
história e da cultura a partir das contribuições das (os) africanas (os), afro-brasilei-
ras (os) e indígenas para a formação do Brasil.
O livro de Kiusam é uma das contribuições sobre a desconstrução dos discur-
sos históricos únicos: “[...] TAYÓ projeta em seu penteado, mesmo sem se dar conta
disso, todas as memórias do sequestro dos africanos e das africanas, sua vinda à
força para o Brasil nos navios negreiros, os grilhões e correntes que aprisionavam
seus corpos” (OLIVEIRA, 2013, p. 28), apresentando outras formas de refletir so-
bre esse período histórico de dominação, opressão e hierarquização dos povos, das
culturas, da história e das riquezas do continente africano.
Entre essas memórias sequestradas houve uma imposição da religiosidade
dos povos dominantes sobre aquelas dos povos nativos. A mitologia dos orixás é
resgatada por Kiusam ao mostrar que enquanto dorme o penteado de Tayó é “[...]
povoado por seus ancestrais, os zelosos ORIXÁS, que a protegem e não a deixam
se esquecer de que é descendente da mais nobre CASTA REAL AFRICANA” (OLI-
VEIRA, 2009, p. 32, grifos do original).
A presença da realeza africana torna possível outras formas de compreender
e se relacionar com as histórias de princesas, a partir de corpos negros. Possibilita
ainda perceber outras formas de interação entre mãe e filha
15
, pois a mãe de Tayó
sempre a apoia e a ajuda na constituição de sua identidade e nas tantas formas de
vivenciar o cabelo e, consequentemente, o mundo.
Ainda que tenha muito orgulho de sua história, de sua ancestralidade e de
seu cabelo, Tayó passa por situações de enfrentamento em espaços não familiares:
[...] Quando seus colegas de classe dizem que seu cabelo é ruim, ela responde: - MEU CA-
BELO É MUITO BOM porque é fofo, lindo e cheiroso. Vocês estão com dor de cotovelo,
porque não podem carregar o mundo nos cabelos como eu posso (OLIVEIRA, 2009, p. 27,
grifos do original).
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Literatura infantil com personagens negras: narrativas descolonizadoras para novas construções identitárias e de mundo
Impossível não nos remetermos aos estudos antropológicos de Nilma Lino
Gomes sobre corpo e cabelo como elementos fundamentais na construção da iden-
tidade e beleza negra. A autora lembra que “o corpo evidencia diferentes padrões
estéticos e percepções de mundo”.
E é justamente o olhar sobre o corpo negro na escola que nos leva a considerar como profes-
sores/as e alunos/as negros e brancos lidam com dois elementos construídos culturalmente
na sociedade brasileira como definidores do pertencimento étnico/racial dos sujeitos: a cor
da pele e o cabelo (GOMES, 2002, p. 42-43).
Quando confrontada, Tayó responde à falta de gentileza de seus colegas, de
forma a ressaltar as qualidades materiais e subjetivas de seu cabelo. Uma das
características marcantes da menina é conseguir transformar as lembranças tris-
tes – dessas situações hierárquicas realizadas por outros corpos – em memórias
felizes, apresentando, dessa forma, possibilidades de resistência e enfrentamento
ao racismo e de valorização do cabelo crespo. Por meio de sua cabeleira, ou seja,
por meio de seu próprio corpo, a menina resgata tempos, espaços, materialidades
e vivências das memórias e das tradições africanas, possibilitando às leitoras e
leitores (crianças e adultos) outras tantas interpretações necessárias e urgentes.
Considerações nais
O marco legal internacional e nacional, como a Declaração Universal dos
Direitos Humanos (1948), a Constituição Federal do Brasil (1988), o Estatuto da
Criança e do Adolescente (1990), postulam que todas as pessoas nascem livres, sem
distinção de raça, de classe, de religião e que são iguais em dignidade, garantindo
a todos e todas os direitos à educação, à saúde, à liberdade de expressão, etc. Con-
tudo, visões de mundo hegemônicas e colonizadoras classificam e hierarquizam a
cor, o gênero, a região, entre outros marcadores sociais, transformando diferenças
em desigualdades, muitas delas inscritas nos corpos dos sujeitos. É fundamental
que outras narrativas sejam desveladas e compreendidas para que todos os tipos
de corpos coexistam em igualdade.
Para além do enfrentamento ao machismo e ao racismo, os textos utilizados
na EMEI e aqui analisados somam-se aos esforços por recuperar as bases invisibi-
lizadas de nossa civilização, ao apresentar referências culturais de matriz africana
com a mesma força de influência da matriz europeia (de origem greco-romana).
Como afirma Ferreira-Santos, é preciso que reencontremos “nossas maneiras de
ser, sentir, pensar, amar, compartir”, escondidas “desde que um estrangeiro se
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apropriou do centro de nossa aldeia”. O autor convoca-nos a “reconhecer a impor-
tância de nossas próprias matrizes de pensamento e alma para que seja possível
dialogar com esta parte da cultura ocidental no mesmo grau de validade epistemo-
lógica”
16
(FERREIRA-SANTOS, 2012, p. 3-4, tradução nossa a partir do espanhol).
Entre tantas outras narrativas, as que foram aqui apresentadas colaboram
para a reescrita e a releitura da história do Brasil, de sua cultura e de seu povo,
assim como de seus corpos. Tais histórias devem ser oferecidas às crianças peque-
nas como um ingresso mais justo (e cientificamente mais bem informado) na cul-
tura escolar, contribuindo para a adequada implementação das Leis 10.639/2003 e
11.645/2008.
Notas
1
Selecionado pelo Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), em 2011, distribuído para aproximada-
mente 29 mil escolas públicas no Brasil. Recomendado pela Fundação Nacional do Livro em 2010.
2
Vencedor do prêmio Programa de Ação Cultural (ProAC) de Cultura Negra em 2012 em São Paulo. Em 2014
foi distribuído às unidades educacionais da cidade de São Paulo, pelo projeto Leituraço que consistia “[...]
na difusão, estímulo à leitura e estudo da produção literária africana e afro-brasileira” Disponível em: ht-
tps://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/direitos_humanos/igualdade_racial/noticias/?p=184138.
A escolha deste título para análise aqui é anterior à polêmica, em 2018, em torno de sua suspensão por uma
unidade educacional em município fluminense depois da reclamação de uma família, por motivos religiosos.
Após ganhar enorme visibilidade e críticas nas redes sociais, a escola voltou atrás na adoção do livro.
3
Agradecemos às professoras, crianças, funcionárias (os) e famílias da EMEI pelos tempos, espaços e inte-
rações compartilhados.
4
No início de cada ano letivo, no período de acolhimento, há uma atividade coletiva em que as crianças e
suas famílias ouvem uma história da Abayomi e confeccionam sua própria boneca de pano. Conforme texto
produzido coletivamente, por uma turma no ano de 2017, e publicado no jornal da escola: “As pessoas da
África foram pegas a força para vir para o nosso país que é o Brasil trabalhar. Elas viajavam de barco e as
crianças choravam porque não tinham brinquedos. Então as mães rasgavam as roupas e faziam bonecos
com nós de pano e eles acalmavam e brincavam. Essas bonecas se chamam Abayomi”.
5
Os livros que ficam à disposição das crianças são escolhidos coletivamente pelas professoras nas reuniões
da Jornada Especial Integral de Formação (JEIF).
6
A obra está disponível pelo programa Livros animados A cor da Cultura no Canal Futura. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=70THqWkRg9w&list=PLNM2T4DNzmq5aA3D0dOxNSrhsu9g7rxcS.
7
Seu nome, na língua Iorubá, significa Rainha da noite.
8
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=FQqRY4NUxTg. Acesso em: 20. jan. 2020.
9
Ori significa cabeça e Xá senhor(a), protetor(a).
10
Que engloba tanto a visão de mundo, quanto as religiões iorubás, assim como o Candomblé no Brasil e a
Santería na América Central.
11
Localizadas na África Ocidental, na atual República do Benim.
12
Compreendemos gênero como “[...] um dispositivo cultural, constituído historicamente, que classifica e po-
siciona o mundo a partir da relação entre o que se entende como feminino e masculino” (LINS, MACHADO,
ESCOURA, 2017, p. 10).
13
Sobre a generificação do mundo, ver Connell, Pearse Gênero: uma perspectiva global (2015). Sobre o fe-
minismo negro brasileiro, destacam-se a pioneira Lelia Gonzalez e a contemporânea Sueli Carneiro. De
Gonzalez, sobressaem-se artigos como As amefricanas do Brasil e sua militância, Por um feminismo afro-
latinoamericano, A importância da organização da mulher negra no processo de transformação social,
todos de 1988. De Carneiro, podemos mencionar Racismo, Sexismo e Desigualdade no Brasil (2011).
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Literatura infantil com personagens negras: narrativas descolonizadoras para novas construções identitárias e de mundo
14
Esses e todos os próximos grifos estão na obra original.
15
As histórias de princesas de origem europeia costumam apresentar relações de hierarquias e dominações
por parte das madrastas e das bruxas malvadas, marcando os corpos femininos com relações desiguais de
poder (PEREIRA; SILVA; SIQUEIRA, 2019). Kiusam ressalta a relação positiva entre mãe e filha, ressig-
nificando questões em torno do marcador geracional.
16
Por eso mi cuestión hace décadas ha sido ¿Dónde se ocultan nuestras matrices de pensamiento y alma? [...]
es más que hora de reconocer la importancia de nuestras propias matrices de pensamiento y alma para que
sea posible dialogar con esta parte de la cultura occidental en el mismo grado de validad epistemológica.
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Participação infantil na escola do campo: narrativas produzidas em contexto de pesquisa com crianças
Participação infantil na escola do campo: narrativas produzidas em contexto
de pesquisa com crianças
Child participation at rural school: narratives produced in the context of research with children
Participación infantil en la escuela rural: narraciones producidas en contexto
de investigación con niños
Keylla Rejane Almeida Melo
*
Iara Vieira Guimarães
**
Resumo
Este trabalho discute resultados de pesquisa sobre a infância camponesa, realizada com crianças, na perspectiva
do protagonismo infantil. Tendo a Sociologia da Infância como arcabouço teórico-metodológico, empreendeu-
-se uma investigação com narrativas, tecidas em grupos focais com 20 crianças de 8 a 10 anos de idade, em
escolas do campo localizadas em duas comunidades rurais do Estado do Piauí. As interações, nos grupos focais,
foram desencadeadas a partir de fotograas e desenhos produzidos pelas crianças. Os resultados do estudo
revelaram o potencial que as crianças têm para participarem ativamente de instâncias decisórias na escola, pois
tecem críticas contundentes à forma como esta instituição está organizada, além de apresentarem sugestões
viáveis ao aprimoramento das práticas pedagógicas que se realizam em seu interior. Conclui-se que é urgente
o reposicionamento das crianças no âmbito escolar, como sujeitos que possuem experiências, pensam e contri-
buem para a (re)construção do ambiente educativo, como sujeitos de direitos, aptos à participação social.
Palavras-chave: Educação do Campo. Sociologia da Infância. Práticas Pedagógicas. Direito à Educação. Protago-
nismo Infantil.
*
Doutora em Educação (2019) pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Professora da Universidade Federal do
Piauí. Membro do Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão em Educação do Campo - Nupecampo (UFPI) e do Grupo
de Estudos e Pesquisas em História e Geograa - GEPEGH (UFU), Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3818-5955.
E-mail: keyllamelo@ufpi.edu.br
**
Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo. Pós doutorado na Universidade Federal Fluminense. Professo-
ra Associada da Faculdade de Educação e do PPGEDU da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Integra a coor-
denação do Grupo de Pesquisa Formação Docente, Saberes e Práticas de Ensino de História e Geograa - GEPEGH, da
UFU, Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-5509-8805. E-mail: iaravgm@gmail.com
Recebido em 09/10/2019 – Aprovado em 04/02/2020
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i2.11441
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Keylla Rejane Almeida Melo, Iara Vieira Guimarães
Abstract
This paper discusses results of research on peasant childhood, conducted with children, from the perspective
of child protagonism. Having the Childhood Sociology as a theoretical-methodological framework, an investi-
gation was conducted with narratives, woven in focus groups with 20 children from 8 to 10 years old, in rural
schools located in two rural communities of the State of Piauí. The interactions in the focus groups were trigge-
red from photographs and drawings produced by the children. The results of the study revealed the potential
that children have to actively participate in decision-making bodies at school, as they give scathing criticism to
the way this institution is organized, besides oering viable suggestions for improving the pedagogical practi-
ces that take place within them. It is concluded that the repositioning of children in the school environment is
urgent as subjects who have experiences, think and contribute to the (re) construction of the educational envi-
ronment, as subjects of rights, able to social participation.
Keywords: Rural Education. Childhood Sociology. Pedagogical Practices. Right to Education. Child Protagonism.
Resumen
Este artículo discute los resultados de la investigación sobre la infancia campesina, realizada con niños, desde la
perspectiva del protagonismo infantil. Teniendo la Sociología de la Infancia como marco teórico-metodológico,
se realizó una investigación con narraciones, tejidas en grupos focales con 20 niños de 8 a 10 años de edad, en
escuelas rurales ubicadas en dos comunidades rurales en el estado de Piauí. Las interacciones en los grupos
focales se desencadenaron a partir de fotografías y dibujos producidos por los niños. Los resultados del estudio
revelaron el potencial que los niños tienen para participar activamente en los órganos de toma de decisiones en
la escuela, ya que hacen críticas convincentes sobre la forma en que esta institución está organizada y presentan
sugerencias viables para mejorar las prácticas pedagógicas que se realizan em su interior. Se concluye que es
urgente el reposicionamiento de los niños en el entorno escolar, como sujetos que tienen experiencias, piensan
y contribuyen en la (re)construcción del entorno educativo, como sujetos de derechos, capaces de participación
social.
Palabras clave: Educación rural. Sociología de la infancia. Prácticas pedagógicas. Derecho a la Educación. Prota-
gonismo infantil.
Introdução
A escola é um tempo/espaço que abarca uma boa parte do cotidiano das crian-
ças, definindo muitas vezes sua vida, em função de suas formas de organização. É
como se a escola fosse a atividade central a partir da qual se organizam as outras
atividades infantis. Assim, é importante que a forma de organização desse tempo/
espaço seja, cuidadosamente, pensada de modo a contribuir, efetivamente, no pro-
cesso de aprendizagem e desenvolvimento das crianças.
Acreditamos que essa organização não é tarefa apenas de adultos que se dedi-
cam a concebê-lo para as crianças sem, no entanto, reconhecer que essas apresen-
tam plena capacidade para pensar e elaborar projetos. Trazer à tona as singulari-
dades infantis, considerando as potencialidades e limitações próprias da categoria
geracional a que pertencem, se mostra fundamental, pois a vida das crianças deve
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Participação infantil na escola do campo: narrativas produzidas em contexto de pesquisa com crianças
se desenvolver num contexto de participação ativa, visto que diversos estudos e
pesquisas já comprovaram a afeição da criança à participação social, e a legislação
reconhece o seu caráter político, ao defini-la como sujeito de direitos.
Este trabalho tem como objetivo discutir os sentidos produzidos por crianças
camponesas sobre a escola do campo, demonstrando o potencial que possuem para
analisar o contexto institucional, apontar contradições e propor estratégias de me-
lhoria das práticas que nele se desenvolvem. Sentidos produzidos em pesquisa com
20 crianças, na faixa etária de 8 a 10 anos de idade, à luz dos referenciais teórico-
-metodológicos da Sociologia da Infância. Optamos pelas narrativas como método
de investigação, que foram tecidas em grupos focais, realizados em duas escolas
localizadas em comunidades rurais do centro-norte piauiense.
Para a feitura deste trabalho, dialogamos com estudiosos que se inserem na
vertente da Sociologia da Infância (GOUVÊA, 2011; HENDRICK, 2005; QVOR-
TRUP, 2010; SARMENTO, 2011a, 2011b, 2005, 2003) e da Educação do Campo
(CALDART, 2015), com o intuito de olhar a escola como instituição de educação
formal das crianças, sobretudo das classes populares, que foram mais tardiamen-
te atendidas, como as crianças do campo. Tal entendimento nos remete à ideia
de que é necessária e possível uma organização dessa instituição para atender
às singularidades do contexto campesino, de modo a oferecer às crianças efetiva
aprendizagem para uma formação humana, levando-se em conta a potência que
têm esses sujeitos para participarem de decisões relacionadas a questões que lhes
digam respeito, pois são sujeitos de experiências, mesmo antes de seu ingresso na
escola. Por isso, precisam ser melhor compreendidas e aceitas no cotidiano escolar.
A escola como espaço/tempo de institucionalização da infância
Como processo dialético de formação humana, a Educação do Campo conduz
ao desvelamento da realidade, fazendo emergir as contradições existentes de modo
que possamos compreender a trajetória histórica de constituição do que se coloca
como real. Olhar a escola numa perspectiva de construção histórico-social ajuda-
-nos a compreender que outras formas de organização desse espaço/tempo são pos-
síveis e viáveis. Por isso, é controversa a lógica de naturalização da escola e de suas
práticas, pois subtrai aos sujeitos da educação (alunos, docentes, famílias) o poder
de escolha, de criação, de transformação, o que cristaliza práticas, posturas e ações.
A Sociologia da Infância também lança um olhar crítico sobre a escola, so-
bretudo a escola pública, como espaço institucional, por excelência, de pertença
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das crianças, “criada no final do século XVIII e cuja frequência obrigatória se
institucionalizou a partir da 1ª metade do século XIX, tendo a escolaridade gene
-
ralizada, alargada e estendida desde então, ininterruptamente” (SARMENTO,
2011a, p. 586). É importante que compreendamos a invenção da escola, nos mol
-
des como ela se apresenta hoje, como lugar e tempo privilegiado de socialização
e formação das gerações mais novas. Essa compreensão leva-nos a romper com
uma visão da escola como instituição universal e neutra, de existência necessária
e independente da vontade humana, tão naturalizada a ponto de ser impensável
a sua não existência.
As condições históricas que determinaram a necessidade de existência da es-
cola que, nos seus primórdios, na Grécia, é direcionada a atender a uma parce-
la muito reduzida e privilegiada da população, expandiram-se na modernidade,
tornando-a instituição de passagem obrigatória também das classes populares, a
partir da reivindicação da escola como direito público, gratuito e laico.
Varela e Alvarez-Uria (1992), no texto A maquinaria escolar, ao analisarem as
determinações das condições históricas de existência da escola no interior de nossa
formação social, mostram que desde o século XVI tais condições vinham emergindo,
com destaque para a Igreja Católica como a precursora na instalação do sentimen-
to de infância inocente. Os autores destacam a instituição de diferentes infâncias
no bojo da sociedade de classes: a infância angélica e nobilíssima do Príncipe, a in-
fância de qualidade dos filhos das classes distinguidas e a infância rude das classes
populares. A cada uma delas, uma atenção educacional diferenciada por parte dos
educadores católicos.
A função que a escola ocupa socialmente está diretamente relacionada ao tipo
de sociedade que se pretende construir ou manter. São, portanto, as crises que se
instalam dentro de uma sociedade, a partir das lutas de classes e pelo poder, que
levam ao repensar e à, consequente, reestruturação das instituições sociais, como a
escola. “Na Época Moderna, com a crescente utilização dos códigos formais, houve
a exigência de que a população tivesse domínio de cultura intelectual, cujo com-
ponente elementar era a leitura e a escrita, o que provocou a pressão social pela
escola e a necessidade de sua expansão” (RAMOS; LEITE; FILGUEIRAS FILHO,
2012, s/p). Assim, instituiu-se o privilégio do Estado no campo da educação escolar.
Os estudos de Gondra (2018, p. 21) esclarecem que a emergência de consoli-
dação do Estado Nacional brasileiro no século XIX trouxe consigo a necessidade
de construção do sistema educacional, sendo instaurados muitos dispositivos de
controle, de modo a alcançar um modelo de escola menos arcaico e mais profis-
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Participação infantil na escola do campo: narrativas produzidas em contexto de pesquisa com crianças
sionalizado, buscando produzir “uma estrutura cada vez mais hierarquizada, por
meio de uma forte ramificação do poder”, levando os administradores do Estado
a culparem os professores pelo fracasso da educação. Em relação aos saberes e
modos de transmissão às crianças, o que vigorou, nesta época, foi uma perspectiva
cientificista, que, como afirma Gouvêa (2011, p. 557, grifo da autora), “uma meno-
rização da imaginação e mesmo a negação de sua importância na construção do
conhecimento. Toda uma pedagogia foi edificada na crítica ao uso da imaginação no
trabalho pedagógico com a criança”. Portanto, um aspecto universal do ser criança
foi negligenciado na sua formação.
Sarmento (2011a, p. 588) ressalta que a escola, historicamente, tem se ocu-
pado mais do aluno do que da criança, pois desconsidera seus “saberes e emoções,
aspirações, sentimentos e vontades próprias, para dar lugar ao aprendiz, destina-
tário da acção adulta, agente de comportamentos prescritos, pelo qual é avaliado,
premiado ou sancionado”. Desde a primazia da pedagogia católica, sistematizada
pelo Ratio Studiorum, que se busca a fabricação de um modelo de comportamento
infantil aceitável socialmente, isto é, educado para se tornar um sujeito governado
pelo sistema, pelas regras e pelos docentes.
Desse modo, a ação do Estado vai se ampliando sobre o governo de uma parce-
la da população, por meio da escola, definindo quem são os sujeitos dessa institui-
ção, o que devem aprender, como devem agir, os modos de ensinar, a qualificação
dos quadros do magistério, além de “regulamentar o raio de atuação da própria
escola, adotando um critério baseado na demanda, com base no estatuto de fregue-
sia, paróquia ou curato, delineando, assim, uma geografia desigual da instrução”
(GONDRA, 2018, p. 16).
É nítida, portanto, a histórica exclusão dos povos do campo do processo de
escolarização na sociedade brasileira, pois às populações dispersas ou era negado
o acesso à escola ou era oferecida uma escola de qualidade inferior às das vilas. Se
pensarmos na situação da menina pobre, residente no campo, as oportunidades de
escolarização eram ainda mais raras no Brasil colônia. No capitalismo, a condição
de exclusão desses povos é reforçada, já que o parâmetro hegemônico é dado pelo
urbano, que é a marca da modernidade. Nesse ínterim, o campo, concebido como
espaço de produção, e não de vida humana, ou de vidas que pouco interessam, não
se constitui como prioridade em termos de escolarização, num projeto de sociedade
“civilizada”, como o que se propunha no período imperial.
Nesse sentido, a Educação do Campo (EdoC), constituída no final da déca-
da de 1990, vem se consolidando “como uma articulação nacional das lutas dos
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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trabalhadores do campo pelo direito à educação, materializando ações de disputa
pela formulação de políticas públicas no interior da política educacional brasileira”
(CALDART, 2015, p. 1-2).
O processo de redemocratização do Brasil, na década de 1980, resultou na
aprovação da Constituição de 1988, que determinou que o acesso ao ensino obriga-
tório e gratuito é direito público subjetivo. Esse processo foi decisivo para o forta-
lecimento das lutas dos movimentos sociais, inclusive para a garantia de reivindi-
cações atendidas pela nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB),
instituída em 1996, que dentre as conquistas, destacamos o que define o Art. 28 no
que tange à oferta de educação básica para a população do campo, determinando
que sejam promovidas as adaptações necessárias, considerando-se as peculiarida-
des da vida rural, especialmente em relação aos conteúdos curriculares e metodo-
logias; à organização escolar, com calendário escolar que considere as fases do ciclo
agrícola e as condições climáticas; “à adequação à natureza do trabalho na zona
rural” (BRASIL, 1996).
“A escola, enquanto instituição construída socialmente para realizar a for-
mação humana nas diferentes temporalidades de vida, se tornou, no movimento
histórico, dever do Estado e direito do cidadão” (RAMOS; LEITE; FILGUEIRAS
FILHO, 2012, s/p). Contudo, as dificuldades têm se dado na materialização da le-
gislação que assegura esse dispositivo constitucional. Em relação ao Art. 28 da
LDB, por exemplo, supracitado, a realidade tem mostrado que, mesmo localizadas
em contexto rural, as escolas do campo não têm promovido práticas educativas e
pedagógicas centradas nas peculiaridades da vida no campo, apesar das determi-
nações legais, pois ainda são escassas as políticas públicas que permitam trans-
por as conquistas do plano jurídico para o real. Assim, pressões dos Movimentos
Sociais do Campo são traduzidas em textos legais, mas pouco materializadas no
dia-a-dia da escola, a começar pela padronização do tempo escolar, com calendário
letivo igual ao da zona urbana, mesmo a legislação determinando a consideração
dos ciclos agrícolas.
Pelo exposto, é possível afirmar que, historicamente, não há neutralidade nem
universalidade na educação institucionalizada. No caso brasileiro, a escola sempre
foi calcada na separação entre trabalho intelectual e trabalho manual, apesar da
expansão do acesso à escola às camadas populares, preparando-as para as ativida-
des pouco valorizadas socialmente. Uma escola que inclui a garantia da presença
da criança no espaço escolar, mas que continua excluindo os mais pobres por não
oferecer uma escola de qualidade para todos.
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Participação infantil na escola do campo: narrativas produzidas em contexto de pesquisa com crianças
Temos a configuração de um modelo dual de escola: uma destinada aos filhos
da classe burguesa e outra aos filhos dos trabalhadores, com objetivos diferentes,
mas com a disseminação de conhecimentos legitimados por essa classe. Sarmento,
em entrevista a Delgado e Muller (2006, p. 21), destaca os efeitos geracionais ne-
fastos “do sistema dual educativo brasileiro (público para os pobres, privado para
as classes médias e altas)”.
A transformação histórica da escola nos leva a perceber que essa instituição
serve para legitimar um tipo de sociedade que é sustentada a partir da formação
de um modelo de ser humano para nela atuar. No contexto da modernidade, foi
concebida com o objetivo de atender a um conjunto de demandas específicas do pro-
jeto histórico que a planejou e procurou pô-la em prática: educar todos os cidadãos,
alfabetizar cada habitante no uso correto do seu idioma pátrio, ensinar a fazer
cálculos e incutir certos valores e normas, isto é, disciplina como humanização
(SIBILIA, 2012). Contudo, no caso brasileiro, isso não se efetivou e os mais pobres
continuam expropriados de saberes básicos por conta dos problemas enfrentados
pelas escolas.
A escola escolhe o que, como e quando ensinar, com base em intenções que nem
sempre são conscientes para todos os atores que nela atuam. Sarmento (2011a, p.
588) afirma: “Com a escola, a criança assume o estatuto de ser social, objecto de um
processo intencional de transmissão de valores e saberes comuns, politicamente
definidos, e destinatário objectivo de políticas públicas”. Contudo, nada garante
que a presença da criança na escola seja consubstanciada por uma formação de
qualidade, fruto de políticas públicas consequentes e tampouco executadas de for-
ma a garantir os direitos anunciados na legislação.
Assim, a escola acaba por não ajudar a transpor a segregação social que marca
historicamente a sociedade brasileira. Apesar de estar alicerçada em discurso jurí
-
dico de igualdade e equidade, não consegue afetar as enormes barreiras que os mais
pobres enfrentam no processo de mobilidade social, nem consegue atuar de forma
incisiva na indigna concentração de renda e nas desigualdades sociais do país.
O processo de institucionalização da infância é crescente no Brasil, com a pre-
sença das crianças nas instituições escolares sendo concretizada em termos numé-
ricos, mas em relação à qualidade, é preciso questionar. Há dados positivos dessa
institucionalização, assim como há contradições. A Sociologia da Infância ajuda-nos
a compreender esse processo, “que promoveu, progressivamente, um conjunto de
exclusões das crianças do espaço-tempo da vida em sociedade” (SARMENTO, 2005,
p. 368). O autor destaca uma negatividade constituinte na institucionalização da
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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infância, que prevalece no disciplinamento das crianças no contexto das escolas,
isto é, há uma “interdição simbólica de pensar as crianças a partir da positivida-
de das suas ideias, representações, práticas e acções sociais” (SARMENTO, 2005,
p. 368). O pensamento infantil não é visto pelos adultos como pensamento distinto,
mas como ilegítimo, incompetente, impróprio e inadequado e isso acabou sendo
reproduzido na escola.
Cumpre-nos destacar a importância inegável de visibilização social das crian-
ças na modernidade, destinando-lhes um lugar social próprio, sendo decisiva a
criação da escola para a construção social do estatuto da infância. No entanto, o
que questionamos são as formas de controle e dominação que assujeitam as crian-
ças e lhes tiram a possibilidade de se constituírem como sujeitos sociais. Hendrick
(2005, p. 38) destaca ser importante a consciência que temos hoje das crianças
como atores sociais, mas ainda prevalece, entre adultos, inclusive professores, a
concepção modernista de criança como ser frágil, carente, sem desejo, sem expe-
riência. “Sempre se faz para as crianças e não com elas”.
Esta não é a perspectiva que deveria estar em voga a partir da legislação que
instituiu como direito da criança, o direito à participação. Nesse sentido, Sarmento,
em entrevista a Delgado e Muller (2006), leva-nos a refletir, a partir de pressupos-
tos da Sociologia da Infância, a possibilidade de construção de uma escola emba-
sada em uma proposta crítica de promoção e estímulo aos direitos das crianças. O
autor propõe estudar “a criança antes do aluno e a interação social inter e intra-
geracional antes da instituição”, considerando que “o aluno é institucionalmente
investido sobre um ser social concreto, a criança, cuja natureza biopsicossocial é
incomensuravelmente mais complexa do que o estatuto que adquire quando entra
na escola” (DELGADO; MULLER, 2006, p. 17).
É fundamental que a escola se ocupe da criança e não apenas do aluno; que
assista a ela com base nas suas necessidades e potencialidades do presente e não
como cidadão do futuro. Com base nessa concepção de criança como um vir a ser,
como alguém que ainda não se configura como cidadão pleno, a natureza lúdica,
imaginativa, interativa, coletiva, das crianças tem sido um aspecto negligenciado
pela escola, pelo próprio modelo organizacional adotado, inspirado em certos aspec-
tos nas fábricas (SARMENTO, 2011a).
É possível compreender o percurso histórico-social, não livre de conflitos e rup-
turas, que permitiu a instalação da escola como instituição que foi se estruturando
para contribuir na conformação de modelos sociais. No entanto, Lefebvre (apud
TELLEZ, 2017) assevera que, apesar de o espaço ser socialmente produzido e his-
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Participação infantil na escola do campo: narrativas produzidas em contexto de pesquisa com crianças
toricamente determinado pelo capital, o espaço escolar é uma espécie de potência
criadora e subversiva na produção do espaço cotidiano, por seu dinamismo social.
No espaço, os grupos sociais se reinventam e produzem outras configurações, nem
sempre confluentes com os interesses dos atores hegemônicos. Isso nos anima para
a resistência e para a luta pela transformação da escola, acreditando que esse
espaço se transforma constantemente.
Reconhecer a criança como ator social significa estabelecer outras pretensões,
exigências e desejos para a escola, de modo geral, e para as práticas docentes, de
modo particular. O modelo pedagógico fundamentado nos preceitos da pedagogia
da transmissão já não dá conta da infância contemporânea. Oliveira-Formosinho
(2007, p. 13) lembra-nos que temos “uma herança rica e diversificada de pensar a
criança como ser participante, e não como um ser em espera de participação”. No en
-
tanto, a pedagogia transmissiva persiste, ignorando um fazer pedagógico que leve
em conta a criança como sujeito de direitos, competente e apta a ter espaço de parti
-
cipação. Retomar essa herança pedagógica pode ser um caminho para a construção
de experiências mais mobilizadoras para as crianças e também para os docentes.
Metodologia
Fundamentada em pressupostos teórico-metodológicos da Sociologia da In-
fância, a pesquisa foi orientada por uma concepção de criança como ator social,
possuidora de experiências, desejos, pontos de vista, que as torna com capacidade
de participação social. Dessa forma, foi imperativo optarmos por um processo in-
vestigativo tendo as crianças como coparticipantes, coprodutoras de dados para a
consecução do objetivo de pesquisa.
Assim, optamos por utilizar a pesquisa com narrativas, entendendo-a como
uma forma de compreensão da experiência vivida que, ao ser narrada, permite
uma rede de interações entre pesquisadora e participantes, produzindo sentidos
sobre o mundo, as pessoas, os lugares. Como afirmam Clandinin e Connelly (2015,
p. 51): “É um tipo de colaboração entre pesquisador e participantes, ao longo de um
tempo, em um lugar ou série de lugares, e em interação”.
Essa interação se deu por meio de grupos focais, num contexto muito especí-
fico de vivência das crianças: a escola, por um período de tempo que possibilitou
o estabelecimento de vínculos de confiança, necessários ao desencadeamento das
narrativas. Grupo focal é entendido aqui como “um conjunto de pessoas seleciona-
das e reunidas por pesquisadores para discutir e comentar um tema, que é objeto
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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de pesquisa, a partir de sua experiência pessoal” (POWEL E SINGLE, 1994 apud
GATTI, 2005, p. 7). Considerando o caráter lúdico, imaginativo, criativo das crian-
ças, utilizamos, como dispositivos desencadeadores das interlocuções, fotografias e
desenhos, produzidos por elas, de espaços institucionais que lhes despertavam afe-
tos. Esses dispositivos, apesar de importantes no processo de produção dos dados,
não foram considerados nas análises, sendo o foco apenas as falas das crianças.
Como contextos empíricos foram selecionadas duas escolas localizadas na
zona rural de municípios piauienses, denominadas, neste trabalho, de Escola A e
Escola B. Em cada uma, foi formado um grupo focal com 10 crianças, de 8 a 10 anos
de idade, selecionadas a partir da adesão voluntária destas. Essa faixa etária foi
escolhida pelo fato de considerarmos que, nesta etapa do seu desenvolvimento, as
crianças já conseguem expressar melhor suas experiências.
Em pesquisa com crianças, o cuidado ético tem uma dimensão especial, por
isso, as crianças e suas famílias foram informadas sobre detalhes da pesquisa,
inclusive sobre a condição de anonimato dos participantes na divulgação dos resul-
tados. No texto, foram utilizados nomes fictícios para as crianças e para os sujeitos
por elas citados em seus relatos. Para tanto, cada pai ou responsável assinou um
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, e cada criança interlocutora assinou
um Termo de Assentimento para participar da pesquisa.
Os dados foram organizados em eixos temáticos, definidos com base nas inte-
rações, destacando-se não somente as opiniões majoritárias, mas também as que
ficaram em minoria. Todo o material coletado (transcrições, registros em diários
de pesquisa) foi compatibilizado de modo que o conjunto dos relatos fosse o mais
completo possível. Ancorados em Gatti (2005), construímos planos descritivos das
falas, dividindo-os por contexto empírico, destacando as semelhanças e diferenças
entre os relatos, e agrupando-os em função dos sentidos percebidos.
Os sentidos produzidos pelas crianças camponesas sobre a escola
A partir da discussão da escola como espaço privilegiado de institucionalização
da infância, passamos a discutir a instituição escolar situada no campo, tendo como
mote as perspectivas das crianças interlocutoras sobre este espaço/tempo de ensino
e aprendizagem, depreendidas por meio de suas narrativas nos grupos focais. Como
seres de experiência, ao refletirem sobre a escola, as crianças narraram histórias,
teceram pontos de vista e construíram novos entendimentos de si e do mundo.
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Participação infantil na escola do campo: narrativas produzidas em contexto de pesquisa com crianças
Muitos afetos, risos, brincadeiras foram compartilhados nas seções de grupos
focais sobre a escola, quando narravam acontecimentos marcantes das trajetórias
escolares. Porém, também fizeram denúncias, demonstraram indignação e repul-
sa diante de algumas situações que relataram. Além disso, teceram sugestões de
mudanças que poderiam aprimorar a organização da escola. A seguir, analisamos
cada um dos eixos temáticos.
Infraestrutura física de escolas do campo
As duas escolas possuem prédio escolar próprio, que possibilitam condições
aceitáveis de funcionamento. Os únicos espaços existentes para recreação e lazer
são o pátio e o campo de futebol. O primeiro não foi escolhido por nenhuma criança
para ser fotografado, talvez porque sua função como local de socialização, encontro,
diversão não esteja sendo desempenhada. Durante o tempo em que permanecemos
nas duas escolas, esse espaço funcionou apenas como uma espécie de refeitório.
Já o campo de futebol foi um espaço em que todas as crianças das duas escolas
dirigiram afeto positivo, mesmo reconhecendo a necessidade de melhorias nas es-
truturas existentes.
O campo de futebol da Escola A foi escolhido por três duplas de crianças, mas,
quando perguntamos quem gosta do local, todas as crianças levantaram a mão e
gritaram: “-Eu!”. Na verdade, o campo de futebol dessa escola, é um espaço impro-
visado, organizado durante a execução de um projeto de Educação Ambiental que
reciclou pneus, transformando-os em item de decoração, de delimitação de espaços.
Mesmo assim, as crianças atribuem a esse local improvisado uma grande impor-
tância no contexto escolar, pois representa o lúdico, a liberdade, a brincadeira,
a possibilidade de socialização com os outros. É o espaço onde podem vivenciar
situações típicas da infância (correr, brincar, jogar bola, movimentar o corpo livre-
mente). Porém, elas fazem uma análise muito crítica do lugar, apontando diversas
problemáticas, bem como destacam possibilidades de melhoria. Uma criança cita,
por exemplo, a necessidade de construir uma quadra.
O mesmo pode ser dito em relação ao campinho da Escola B, que se assemelha
mais a um campo de futebol, mas também apresenta diversos problemas aponta-
dos pelas crianças, mesmo sendo um lugar de afeto positivo para todas elas. Em
seus posicionamentos, as crianças consideram diversos aspectos para aprimorar
o espaço que já existe, embora uma criança fale da possibilidade de construção de
uma quadra em outro terreno. Há concordâncias, discordâncias, complementações
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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a ideias dos outros, mas, em síntese, desejam um espaço melhor estruturado, mais
amplo, com telas que impeçam a bola de sair, com cobertura que as abrigue do sol,
possibilitando sua utilização em qualquer momento do dia.
O campo de futebol representa, para as crianças, a materialização da pecu-
liaridade do ser criança. Apesar dos problemas apontados, é um espaço pelo qual
nutrem grande afeto, o que pode ser visivelmente constatado pelo trecho de anota-
ção escrito e lido pela Flávia (10) no momento em que analisávamos as fotografias
do campo de futebol: “- O campo é legal porque a gente pratica coisas novas e faz
a gente se sentir bem. Quando eu entro nesse campo eu sinto uma coisa tão legal
dentro de mim, eu não sei nem explicar”.
Passeggi, Nascimento e Oliveira (2016), em pesquisa narrativa realizada com
crianças da zona rural, explicitam que a educação no meio rural reflete o que há de
mais rudimentar no que se refere ao tratamento dado à educação no Brasil. Sem
deixarem de reconhecer que essa é uma situação que aflige a educação brasileira
de forma geral, as autoras reconhecem que a precariedade é preponderante nas
áreas rurais. Vemos, pelos diálogos com as crianças, a importância atribuída por
elas a uma quadra de futebol na escola. E, mesmo sendo uma construção cujos
custos não são altos, não se configura como um investimento prioritário do poder
público, o que faz com que a própria escola, com parceria de voluntários, alunos,
famílias, improvisem espaços para a prática de esportes.
As crianças, em suas narrativas, trouxeram evidências dessa precariedade
histórica a qual estão submetidas as escolas do campo brasileiro. A infraestru-
tura física insuficiente para dar conta de todas as atividades que precisam ser
desenvolvidas na/pela escola agrava-se com a falta de manutenção adequada dos
espaços. Em suas análises pormenorizadas sobre mais um espaço improvisado na
Escola A: local onde armazenam o lixo, as crianças denunciaram a precariedade
das instalações, a ausência de um espaço específico com tal finalidade, as questões
de higiene, promoção da saúde. É apontada a possibilidade de construção de um
espaço próprio e outras formas de organizar esse armazenamento, apesar da au-
sência desse espaço.
Em pesquisa realizada sobre a oferta e demanda de Educação Infantil no cam-
po, Leal e Ramos (2012, p. 174) constataram problemas enfrentados pelas escolas
com relação ao armazenamento e coleta do lixo, que não ocorrem de maneira re-
gular, destacando que tais problemas, além de interferirem no funcionamento das
escolas e afetarem as condições de higiene e saúde, também “parecem se relacionar
a uma questão mais ampla: a ainda insuficiente atuação do poder público no que
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Participação infantil na escola do campo: narrativas produzidas em contexto de pesquisa com crianças
diz respeito a políticas que assegurem a infraestrutura para a sobrevivência das
populações do campo”. Notadamente, a precariedade não se resume ao contexto
escolar, mas é generalizada ao contexto comunitário.
As autoras citadas ainda destacam situações diversas quanto à infraestrutura
dos prédios. Concluindo que, “na maioria dos municípios, as escolas necessitam de
reformas, com ampliação dos espaços, substituição de portas e janelas, além de
reparos de piso e teto, e pintura” (LEAL; RAMOS, 2012, p. 173-174). As crianças
da Escola B descrevem bem essa situação, conforme descrito no excerto a seguir:
Marina (10): - As portas têm as fechaduras esculhambadas.
Raíssa (9): - Uma vez eu, a Marina e vários alunos ficamos trancados na sala. O coordenador
fechou a porta e ela não abriu mais.
Ravi (9): - Foi. Aí precisou abrir com uma tesoura. A Ana Clara também trancou a gente. Ela
não sabia que a porta não abria, aí foi preciso chamar o diretor.
Raíssa (9): - E um dia desses nós ficamos trancados nessa outra sala bem aí.
Mediadora: E por que não pularam as janelas?
Raíssa (9): - Ah, porque nas salas não tem janelas.
Kelly (8): - Se tivesse janelas, era só pular. Mas não têm... Seria bom se tivesse.
As narrativas das crianças evidenciam uma situação que se estende há algum
tempo na escola, por falta de manutenção nas instalações do prédio. Outro aspecto
a ser ressaltado é a ausência de janelas nas salas, que nos leva a constatar que os
projetos arquitetônicos dos prédios não se coadunam com as necessidades peda-
gógicas das escolas. Janelas é um item essencial nesses projetos, tendo em vista a
necessidade de contato visual das crianças com o mundo exterior e mesmo pela im-
portância de se ter um espaço iluminado pela luz solar, arejado, ventilado. No caso
específico do problema das fechaduras das portas, ter janelas nas salas resolveria
em parte a dificuldade de abrir a sala em caso de ter pessoas trancadas.
Diversos outros problemas foram apontados pelas crianças na infraestrutura
das escolas, como banheiros pequenos, com chuveiros e vasos sanitários disputan-
do o mesmo espaço; vasos sanitários e pias que não funcionam e não se adequam à
altura das crianças da educação infantil. Os banheiros são um elemento do espaço
escolar que muito evidencia essa precariedade, por falta de manutenção nas insta-
lações. Além da ausência de banheiros adequados, as crianças apontam a falta de
espaços como biblioteca, salas de leitura e jogos, piscina, parquinho; muito mato
ao redor das escolas e insuficiência de árvores; pisos quebrados; calçadas altas
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e estreitas; muro rachado, prestes a cair; vidros das janelas quebrados; paredes
sujas; jardins sem a devida proteção das plantas, ocasionando situações de tristeza
nas crianças ao verem tais plantas pisadas, arrancadas, como aconteceu com um
espaço escolar muito apreciado pelas crianças da Escola A: a horta.
A horta foi um espaço organizado durante a execução de um projeto de exten-
são na escola, sendo criado e organizado com a participação efetiva das crianças,
por isso, é um espaço que lhes desperta afeição. Elas reconhecem a importância de
a escola ter uma horta, já que esta oportuniza a produção de alimentos saudáveis,
reduzindo, inclusive, gastos para a escola.
Consideramos a horta um espaço importante, sobretudo no contexto das es-
colas do campo, por contemplar especificidades do modus vivendi das populações
camponesas e, portanto, fortalecer a identidade do homem do campo. Na pers-
pectiva teórico-metodológica da Educação do Campo, possibilita a materialização
de alguns dos seus princípios, como a integração educação-trabalho, articulação
teoria-prática, aproximação entre conhecimentos escolares e saberes da cultura
camponesa. Em torno da horta, portanto, várias possiblidades pedagógicas, enfa-
tizadas pela Educação do Campo, podem ser ressaltadas: fortalecimento da iden-
tidade camponesa, contextualização do ensino-aprendizagem, materialização de
princípios da Educação do Campo e da Educação Ambiental, adoção de hábitos
alimentares saudáveis desde a infância, além do despertar um senso de responsa-
bilidade e cooperação na escola, que se estende para o fortalecimento dos vínculos
entre família, comunidade e escola.
Organização do ambiente educativo
A organização dos espaços e materiais está diretamente relacionada à infraes-
trutura, pois cada espaço existente na escola é potencializado pela forma como é
organizado, que se pretende que se leve em conta a intencionalidade educativa, vol-
tada para proporcionar a vivência de experiências múltiplas. As crianças da Escola
A pensaram a organização da escola desde a entrada do prédio, incrementando-a
com itens da natureza, como flores e árvores. Em muitos desenhos da escola, as
árvores ocupam espaço central, junto com outros elementos, no cenário imaginado.
Algumas crianças disseram ser importante que na escola tenha mais árvores,
porque “enfeitam”, “dá mais ar e sombra”, “ficaria mais frio por causa da sombra”
e “poderia ter umas árvores que dão flores”. Esse aspecto, que se refere a um am-
biente bonito, limpo, colorido, florido, arborizado, arejado, foi reiterado diversas
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Participação infantil na escola do campo: narrativas produzidas em contexto de pesquisa com crianças
vezes pelas crianças, tanto que esses espaços livres, com áreas verdes, foram os
mais fotografados. Esses são espaços que as crianças demonstram apreciar, porém,
ao conversarem sobre eles, sempre sugeriam mudanças que os qualificariam, na
visão delas.
As crianças prezam pelos detalhes, podendo contribuir em grande medida com
a organização dos espaços institucionais. Os adultos, com o olhar automatizado,
diminuem/perdem o senso de organização pelo excesso de atividades a que estão
submetidos, podendo ser auxiliados pelas contribuições criativas das crianças.
Como explica Sarmento (2011b, p. 44), esse processo criativo das crianças é tam-
bém reprodutivo, “isto é, nele se presentifica um passado histórico culturalmente
sedimentado e a inovação sempre inerente a toda a acção humana”.
As experiências vivenciadas pelas crianças aprimoram esse processo criativo,
como podemos verificar nas falas de Tadeu (8) sobre o reaproveitamento da água
utilizada para aguar as plantas, tendo em vista ter participado de ações de Educa-
ção Ambiental em projetos de extensão, sendo esta estratégia de reaproveitamento
uma das realizadas em parceria com as crianças: Tadeu (8): “- Eles podiam mudar
a caixa d’água de lugar, para onde ela estava antes e só instalar um cano para levar
a água para o lugar onde as mulheres lavam as coisas. Fazer que nem fizeram com
o bebedouro”. Ao que a Mediadora pergunta: “- Mudaram o bebedouro de lugar?”.
E ele responde: “- Não. Eles instalaram um cano e toda vez que derrama água, eles
aproveitam e ela vai para um pezinho de planta”.
O cuidado com a organização do ambiente educativo constitui-se importante
dimensão da qualidade da educação oferecida às crianças. Conforme estudos de
Silva e Luz (2012, p. 189), a configuração desses ambientes “pode favorecer ou des-
favorecer o sentimento de segurança, o desenvolvimento da autonomia das crian-
ças, valorizando suas práticas e as interações criança-criança e entre as crianças
e os adultos”.
É importante planejar pedagogicamente a organização dos espaços e mate-
riais visando à construção de um ambiente efetivamente educativo na escola. A
disponibilidade dos espaços e dos materiais interferem diretamente na riqueza ou
na escassez desse ambiente. Na pesquisa já citada, Leal e Ramos (2012, p. 174)
constatam que a maioria das escolas pesquisadas não possui mobiliário adequado
às crianças de 0 a 6 anos nem livros de literatura infantil, brinquedos, etc. “Dessa
forma, a ausência desses equipamentos apropriados não favorece um trabalho pe-
dagógico que permita, à criança, o seu desenvolvimento integral”.
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As crianças da Escola B deixam transparecer incômodo em relação à desor-
ganização dos espaços e materiais existentes. Inclusive, pensam num tipo de am-
biente educativo que assista melhor às crianças da educação infantil, com espaços,
materiais, tempos diferenciados. Em diversos momentos do grupo focal, elas tra
-
ziam a necessidade de organização do espaço da sala onde trabalhávamos. Com-
preendem que o ambiente educativo bem elaborado é condição para o bom fun-
cionamento da escola. Horn (2004 apud SILVA e LUZ, 2012, p. 189) pontua: “Os
espaços integram a dimensão pedagógica da escola, e sua adequação relaciona-se
com as possibilidades que ele oferece de ser transformado, de modo a proporcio
-
nar os meios para as experiências de crianças e adultos”. Em suas narrativas, as
crianças parecem compreender bem a dimensão pedagógica da escola. Elas fazem
críticas a materiais guardados, à dificuldade de acesso a eles, e à desorganização
de espaços e materiais.
A partir das interlocuções das crianças, diversas questões podem ser discuti-
das, como: 1) a consciência que têm as crianças de que está lhes sendo negado o
acesso a materiais que estão na escola para uso pedagógico e, no entanto, perma-
necem encaixotados ou à vista, mas indisponíveis para elas. A observação da Ma-
rina (10) esclarece: “- Não adianta ter os livros e a biblioteca e não poder pegar os
livros”; 2) a necessidade de organizar os materiais, pois da forma como estão, seja
guardados ou expostos, não podem permanecer. Como observa Kelly (8): “- Olha
bem aqui essa prateleira, toda horrível!”; 3) os gestores não investem no trabalho
de educar as crianças para cuidar do material, acreditando que negar-lhes o acesso
é a melhor estratégia. No entanto, pelos posicionamentos registrados, há evidên-
cias de que algumas crianças já formaram um comportamento adequado para esse
cuidado, como diz a Milane (8): “- Quando batesse o sinal, a gente vinha guardar de
novo”. O pensamento de Hendrick (2005, p. 49) traduz bem essa postura do adulto/
profissional responsável pela gestão da escola:
Deste modo, a personalidade é sempre associada à idade adulta. Já que as crianças não são
adultos, são excluídas de conjuntos de compreensões, tanto quanto é possível e desejável
em relações humanas. O que quero afirmar é que os adultos não sentem que têm de inves-
tigar a natureza das suas relações com crianças, já que a compreensão delas consiste na
falta de capacidade racional. Assim, facilmente se lhes nega a acção, privando-as, por isso,
de direitos civis como pessoas. Isto permite que adultos ponham as crianças – os sujeitos do
paternalismo – fora da definição de personalidade.
Vemos, portanto, que as crianças, como sujeitos concretos, possuem conheci-
mentos, desejos, opiniões próprias, que lhes possibilitam pensar a escola. Contudo,
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Participação infantil na escola do campo: narrativas produzidas em contexto de pesquisa com crianças
a postura adultocêntrica de diversos profissionais da educação lhes nega a possibi-
lidade de atuação ativa, entendendo-as como seres sem capacidade para participar
das decisões que lhes afetam ou com capacidade ainda em formação. Sendo assim,
as relações que esses adultos estabelecem com as crianças é ora de indiferença ora
de superproteção, acreditando que são eles que melhor definem aquilo de que as
crianças necessitam. Nos eixos temáticos seguintes, é possível adentrar nas ques-
tões acima pontuadas: negação de acesso a materiais; necessidade de organização
destes e postura adultocêntrica de profissionais da escola.
A perspectiva do direito nas vozes das crianças
Sarmento (2011b, p. 43) afirma que “as crianças, porque são crianças, vivem
um processo de desenvolvimento que as coloca numa particular relação de depen-
dência ante os adultos”. Porém, tal dependência não significa que não devam ser
reconhecidas e tratadas como sujeitos de direitos sociais; inclusive, a própria legis-
lação lhes assegura esse reconhecimento e diversos estudos e pesquisas compro-
vam a sua capacidade de participação em diferentes instâncias da vida social.
É evidente que, como diz o autor, “o seu modo de interpretar e significar o
mundo, sendo permeado pelas culturas nas quais se inserem, é marcado pela sua
condição biopsicológica e pelo estatuto social dependente em que se encontram”
(SARMENTO, 2011b, p. 43). As crianças esperam a proteção, o cuidado e a segu
-
rança que os adultos precisam lhes garantir, tanto é que em seus posicionamen-
tos tecem críticas muito contundentes aos adultos, mas entendem que esses são
imprescindíveis na organização e no funcionamento dos contextos institucionais.
Assim, “nas suas relações com os adultos e nas suas relações com outras crian
-
ças, partilham, reproduzem, interpretam e modificam códigos culturais que são
actualizados nesse processo interativo” (SARMENTO, 2011b, p. 44). Por mais que
muitos adultos não enxerguem isso, além de reprodutoras, elas são também pro
-
dutoras da cultura.
As crianças vivem um contexto histórico marcado pelo paradoxo do que delas
se espera: dependência e autonomia, ambos relativizados de acordo com a conve-
niência dos adultos. Na escola, não é diferente. Porém, em suas interlocuções, as
crianças demonstraram muita autonomia de pensamento, embora ainda demons-
trem um comportamento passivo devido aos constrangimentos e às interdições que
lhes impõe a governação adulta.
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As crianças têm consciência de que a merenda escolar constitui um direito
delas e um dever da escola nas palavras de Flávia (10), da Escola B: “- É obrigação
da escola oferecer merenda para os alunos. Tem alguns alunos que saem de casa
sem merendar, tem alunos que não têm dinheiro para comprar o lanche”. Repro-
vam com veemência notícias que têm de escolas cujo direito não é garantido. Elas
iniciam a conversa sobre a cantina atribuindo-lhe afeição, mas, ao conversarem,
vão demonstrando desapontamentos em virtude do não cumprimento do cardápio,
da diferenciação do que é servido nos turnos manhã e tarde (inclusive com desen-
tendimentos sobre este ponto) e da pouca qualidade das refeições. A preferência
é por carne, frango, mas o que prevalece é biscoito, pão, suco artificial, portanto,
alimentos industrializados.
Por mais que as escolas afirmem que na aquisição dos produtos que compõem
a merenda escolar cumprem o percentual de, no mínimo, 30% proveniente da agri
-
cultura familiar, vê-se que, pelas narrativas das crianças, são poucos os produtos in
natura oferecidos a elas, embora estejam num contexto cuja economia provém, basi
-
camente, da agropecuária. Portanto, a formulação de políticas públicas universais,
que não reconhecem as particularidades dos contextos e dos sujeitos a que se des
-
tinam, e a escassez de recursos destinados à educação como um todo no Brasil, são
problemas seculares que impedem o sucesso da escolarização das crianças no país.
Barbosa, Gehlen e Fernandes (2012, p. 76) defendem a necessidade de as políti
-
cas públicas gestadas pelo Governo Federal levarem em conta a “heterogeneidade de
modos de vida, da inserção nos processos produtivos e de seus universos simbólicos
e as diferentes identidades socioculturais da população residente no campo”. Sem
atender a esse critério, essas políticas nem sempre são divulgadas e enraizadas em
âmbito municipal. No caso do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE),
o valor per capita disponibilizado pelo Governo Federal é tão baixo (Creche: R$
1,07; Pré-escola: R$ 0,53; Ensino Fundamental: R$ 0,36) (MEC, 2017), que chega a
inviabilizar, muitas vezes, a determinação de incrementar a merenda com produtos
da agricultura familiar, fazendo com que os municípios optem por uma alimentação
não saudável, como produtos industrializados, por serem mais baratos.
As crianças não podem participar nem mesmo da escolha dos produtos que lhe
serão servidos na merenda escolar, mesmo que esta seja uma questão que lhes toca
diretamente. Mas, como observam Sarmento, Fernandes e Tomás (2007, p. 184): “O
confinamento da infância a um espaço social condicionado e controlado pelos adul-
tos produziu, como consequência, o entendimento generalizado de que as crianças
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estão ‘naturalmente’ privadas do exercício de direitos políticos”. E acrescentam:
“A infância é especialmente prejudicada, entre todos os grupos e categorias sociais
excluídas, quer pela relativa invisibilidade face às políticas públicas e aos seus
efeitos, quer porque é geralmente excluída do processo de decisão na vida colectiva”
(SARMENTO; FERNANDES; TOMÁS, 2007, p. 183).
É visível esse processo de exclusão das crianças e indiferença aos seus pontos
de vista. A escola, como instituição dedicada às crianças, poderia ser, antes de tudo,
um espaço/tempo de formação humana e cidadã. Tolher as crianças de participar,
de ser consultada e de expressar pensamentos é negar-lhe o direito à cidadania.
Além da merenda escolar, outras situações provocaram indignação das crianças
em relação a esse aspecto do direito, como jogos que ficam trancados em armários
e, com os quais elas não podem brincar.
Desconfiamos que a natureza questionadora das crianças desestabiliza as cer-
tezas de muitos adultos, que as afastam de qualquer possibilidade de emitirem
opiniões sobre o funcionamento institucional. Hendrick (2005, p. 48) enfatiza que
apenas a superação da mentalidade do adultismo possibilitará “ouvir um conjunto
mais autêntico e, provavelmente, mais inquietante de vozes – porque haverá cer-
tamente muitas ocasiões em que as crianças contestam e contradizem as nossas
visões”. Por outro lado, alguns professores aguçam a criticidade das crianças ao
compartilhar com elas situações constrangedoras a que são submetidos, mostran-
do dificuldades de acesso a materiais importantes do ponto de vista pedagógico.
Assim, as crianças refletem e concluem que elas também são constrangidas pe-
los obstáculos que são colocados para que tenham acesso a brinquedos, jogos, por
exemplo.
Ao analisar diversas posições de teóricos sobre a participação política das crian-
ças, Qvortrup (2010b, p. 779) questiona: “Deveríamos fazer de tudo para proteger
as crianças ao preço de deixá-las fora da ‘sociedade’ ou deveríamos reconhecê-las
como pessoas, participantes, cidadãs com o risco de expô-las às forças econômicas,
políticas, sexuais [...]?”. Continuamos defendendo que o confinamento das crian-
ças em instituições não deve mais servir para segregá-las, tirando-lhes o direito a
exercer o papel de ator social, como aconteceu nos primórdios da escola de massas.
Corroboramos, portanto, o pensamento de Qvortrup (2010b, p. 779-780): “De fato,
ninguém está disposto a sacrificar a necessária proteção das crianças expondo-as a
todos os riscos de uma sociedade moderna; porém, ninguém concordaria em privar
as crianças de se experimentarem como pessoas que contribuem para a sociedade”.
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Oportunidades de pesquisa tendo as crianças como coparticipantes demons-
tram que não há motivos para se negar tal experimentação, pois as crianças consti-
tuem um coletivo que pensa os espaços institucionais com bom senso e criticidade.
As crianças têm discernimento suficiente em diversas questões e conseguem, no
coletivo, lançar um olhar escrutinador, sensível e crítico para diversas dimensões
do ambiente escolar, já que este é fonte de experiências cotidianas que as constitui
como pessoas inseridas socialmente.
O espaço micro da sala de aula
A sala de aula é o espaço escolar dentro do qual as crianças passam a maior
parte do tempo em que permanecem na escola. Petschen (apud BENITO, 2017,
p. 33) considera que os estudos sobre as instituições escolares deveriam destinar
maior atenção a esse microcontexto, que ele define como uma mescla de “lógica,
magia, drama e retórica”. Realmente, nos momentos em que conversávamos sobre
as aulas, as crianças explicitaram muitos aspectos que merecem uma detida refle-
xão, em narrativas densas, carregadas de afetos em relação às práticas dos profes-
sores, aos componentes curriculares, ao conhecimento, às relações com os pares.
Diversos elementos podem ser retirados para análise da escola na perspectiva
das crianças, o que vai ao encontro das recomendações de Benito (2017, p. 35):
acontecimentos triviais que se sucedem durante as aulas permitem compreender
a escola, pois “sob essas banalidades, subjaz não apenas um sistema estruturado
de sociabilidade, mas toda uma cultura”. Como agentes produtores dessa cultura,
junto a seus professores e professoras, as crianças nos permitiram uma visão pri-
vilegiada da sala de aula, ao voltarem seus olhares para os sujeitos, os objetos e as
ações, categorias fundamentais.
Apesar das contradições apontadas ao falarem sobre a escola, elas demons-
traram, em diversos momentos das interações nos grupos focais, compreenderem o
papel desta instituição, considerando-a importante para sua formação, como espa-
ço de acesso ao conhecimento, mas também de socialização, como disserta Marília
(10), da Escola B: “- A melhor coisa do mundo é a escola, porque a gente aprende
mais coisas, a ler, a respeitar, a educar. Tipo quem quer ser professora aprende
a ser professora”. Essa ênfase na formação profissional foi reiterada também por
Murilo (9), da Escola A: “- Meu sonho é estudar para ser veterinário”. As crianças,
portanto, têm sonhos para o futuro que esperam que a escola possa contribuir para
sua consecução.
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Participação infantil na escola do campo: narrativas produzidas em contexto de pesquisa com crianças
Outro aspecto ressaltado é a amizade com professores e com seus pares (An-
dré (8): “- O que eu mais gosto é de ficar aqui junto com meus colegas e com meus
professores.”), embora destaquem também afetos negativos em relação a alguns. Ao
tempo em que elogiam o tratamento atencioso e carinhoso que recebem de alguns
professores, algumas crianças também reprovam atitudes de outros docentes, prin-
cipalmente porque brigam muito em sala de aula com os alunos. O professor legal,
na concepção das crianças, é aquele que sabe explicar os conteúdos, que propõe
atividades mais lúdicas, com jogos, desenho, pintura, etc., e, claro, que “sabe respei-
tar os alunos”, como diz Flávia (10). Gallego e Silva (2011, p. 43) lembram “que os
alunos produzem avaliações sobre os professores e informalmente, com frequência,
associam características pessoais, como responsabilidade, paciência, dedicação,
empenho etc., a competências ‘técnicas’, como o conhecimento ou a atualização”.
As aulas de Artes foram muito citadas pelas crianças como as preferidas, e
as práticas tradicionais de cópia e de memorização foram bastante criticadas por
elas. Oliveira-Formosinho (2007, p. 13) alerta para propostas que “criam alguma
ressonância ao nível da retórica da política educativa, [mas que] nunca consegui-
ram penetrar a carapaça burocrática que protege a pedagogia tradicional, ou seja,
nunca conseguiram transformar a esfera praxiológica”.
As crianças questionam práticas docentes que se resumem a escrever no qua-
dro, outras que os deixam ociosos depois que concluem a tarefa solicitada. Que-
riam mais inovações nas aulas para não ficar sem fazer nada: “brinquedos, jogos,
livros”. Oliveira-Formosinho (2007, p. 13) denuncia “a persistência de um modo
de fazer pedagógico que ignora os direitos da criança a ser vista como competente
e a ter espaço de participação (o modo pedagógico transmissivo ou a pedagogia
transmissiva), não por falta de pensamento e propostas alternativas”. É preciso
problematizar as práticas para que sejam transformadas numa perspectiva que
contemple as crianças, seus desejos, anseios, necessidades e potencialidades, além
de seus direitos.
As próprias crianças, em suas interlocuções, dão ideias de como mobilizar os
alunos nas aulas: Flávia (10): “- Eu queria que tivesse mais aulas-passeio para o
Monumento do Jenipapo, Museu, Zoológico, Parque. Tinha uma professora aqui
que fazia jogos, brincadeiras, era bom demais”; Jeane (9): “- As professoras não
levam mais livros infantis para as salas, porque pensam que a gente não é mais
criança; Ravi (9): “- Os professores levam só o livro, pincel, caneta e estilete. Passa
a atividade do livro ou para escrever no caderno. Às vezes escreve muito no quadro.
Era bom se tivesse aula-passeio. Seria bom ir para o zoológico”.
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Um aspecto positivo, conectado com as necessidades das crianças, é o dia de
jogos educativos, citado por Amália (9), da Escola A. Cumpre destacar que a Edu-
cação em Tempo Integral, que tem lugar na Escola B, vai em direção desse caráter
mais lúdico, pois as crianças têm a oportunidade de desenvolverem outros tipos de
atividades que não sejam apenas focadas no cognitivo. Na Escola A, as crianças
sentem saudade do tempo em que esse Programa Federal foi implantado na escola,
como enfatiza Vívian (8), em outro momento do grupo focal sobre a escola: “- Tia,
para melhorar, poderia ter aula em que todos podem participar. Tinha aula de balé
na escola e só podia participar as meninas. E futebol para meninos. Capoeira para
meninos e meninas. Já teve, mas não tem mais. Quando acabou o ano, os professo-
res não vieram mais”.
Há aspectos universais que caracterizam o ser criança, conforme Sarmento
(2003): a fantasia, a criatividade, a interatividade, a ludicidade. Por isso, a novida-
de as fascina, e a escola deveria considerar isso ao organizar seus espaços, tempos,
atividades pedagógicas. Em suas falas, as crianças deixam clara a necessidade
de propostas mais desafiadoras e lúdicas, inclusive imaginando cenários para o
ambiente escolar tomando por base escolas vistas em programas televisivos, como
retrata Flávia (10), da Escola B, em uma de suas falas: “- Meu sonho é estudar
numa escola que tivesse freira, um quarto para a gente dormir, tinha aula de músi-
ca, jogos,...”. Mediadora estranha e questiona: “- Freira?”. Ao que ela responde fir-
memente: “- Sim”. E Jeane (9) ajuda a explicar: “- É que nem a da novela Carinha
de Anjo, né Flávia?”.
Na contemporaneidade, é inegável a transformação dos cotidianos das crianças
por efeito dos meios de comunicação e informação. As crianças da Escola A também
narram seus desejos de terem acesso a inovações tecnológicas, como sugere Tadeu
(8): “- Sabe qual é meu sonho? Meu sonho é que a escola coloque internet, que a gente
use as tecnologias para estudar”. O sonho da criança nos remete à observação de
Sarmento (2011a, p. 595) de que, atualmente, a escola “é compungida a incorporar
as tecnologias de informação e comunicação no seu programa institucional, procu-
rando evitar a desvalorização do seu capital simbólico”.
A própria atividade de pesquisa comprova a atração das crianças pela novida-
de. Elas demonstraram muita satisfação em fotografar espaços, dar suas opiniões,
expressar seus pontos de vista e desenhar. Em suas falas deixam transparecer, com
nitidez, que desenhar é uma atividade muito prazerosa e, falar dos desenhos, ao
mesmo tempo em que causa timidez em algumas crianças, todas exprimem felici-
dade por expressarem suas ideias.
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Participação infantil na escola do campo: narrativas produzidas em contexto de pesquisa com crianças
As crianças da Escola A reiteram, ainda, em suas narrativas, problemas que
atrapalham a aprendizagem, como a falta de condições materiais das salas de aula
e a indisciplina de alguns de seus pares, como André (8) relata: “- Tia, o quadro
da sala está manchado, poderia mudar para melhorar as aulas e o ventilador não
presta, e o armário está todo quebrado. Eu também não gosto quando meninos
ficam pulando a janela da escola. Tem vezes que a professora briga e bota para a
diretoria”. Esta situação é reforçada por Murilo (9): “- Uma coisa que eu não gosto
também é da bagunça. Tem uns meninos que jogam cadeiras no chão. E os profes-
sores e o diretor não fazem nada”.
A indisciplina de colegas é muito recorrente nas falas das crianças, nas duas
escolas, a ponto de Danilo (8), da Escola A, dizer que o que menos gosta nas aulas
é de um colega, que “é muito atentado e fica caçando conversa o tempo todo”, su-
gerindo, inclusive, que ele seja tirado da sala de aula para melhorar as aulas. E
na Escola B, Flávia (10) relata: “- Professora, têm alunos que brigam na sala e a
professora fica sorrindo”. Também Jeane (9) demonstra incômodo com esse tipo de
comportamento de alguns colegas durante as aulas: “- Os meninos poderiam fazer
menos barulho, jogar os papeis no lixo. Às vezes, a tia está escrevendo e os meninos
jogam a atividade no lixo. A tia manda eles escreverem de novo”.
As crianças externam representações sociais do que seja o mau e o bom aluno,
sendo este último aquele que se adequa às normas institucionais. Gallego e Silva
(2011, p. 34-35) chamam a atenção para problemas recorrentes nas aulas, deriva-
dos da cristalização de práticas incorporadas do ensino simultâneo instituído no
final do século XIX no Brasil, que tentam homogeneizar o que é diverso:
Cópias, ditados, leituras, exercícios sempre para todos da turma e a serem feitos ao mesmo
tempo no mesmo ritmo! Quem não consegue é lento, portanto atrapalha. Quem vai rápido
demais, também atrapalha! O ideal é ao mesmo tempo, sem momentos vazios e ociosos,
pois o término antecipado gera bagunça e os lentos promovem igualmente a desordem!
Ao passar por isso como alunos é esse modelo que incorporamos e nos serve de referência
quando assumimos a profissão docente.
As crianças consideram que as relações interpessoais no ambiente escolar de-
vem ser trabalhadas para que se tornem melhores, e esperam que os adultos assu-
mam a função de intervir para proporcionar essa melhoria. Chamamos a atenção,
ainda, para uma fala de Tadeu (9), da Escola A: “- Eu queria que as salas fossem
maiores e não precisasse os alunos serem transferidos para outras escolas”. Inclu-
sive, em seu desenho da escola, ele produziu uma arte na qual esta instituição era
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muito grande e, ao falar sobre seu desenho, ele disse: “- Nessa escola, cabem cinco
mil alunos, para que nunca os alunos tenham que mudar de escola”.
Delalande (2011, p. 73), em suas pesquisas sobre a escola, tendo crianças como
interlocutoras, também detecta, por parte dessas, “uma impaciência ao deixar uma
escola e um grupo de crianças que se conhecem muito bem, associado ao medo do
desconhecido e dos grandes colégios”. É, portanto, importante que a escola pense
em estratégias para que essa transição de uma escola para outra seja mais tran-
quila. A autora francesa, com base nessa dificuldade apresentada pelas crianças,
associou a pesquisa à realização de uma oficina, cujo objetivo foi realizar um pe-
queno jornal a ser divulgado entre os alunos do último ano de uma escola e os da
outra escola, que estudavam na série em que aqueles ingressariam no ano seguin-
te, “a fim de que os primeiros se beneficiem dos testemunhos de seus predecessores
e que os alunos jovens do colégio constatem que eles vivem, uns e outros, emoções
e acontecimentos comuns em torno da sua iniciação ao colégio” (DELALANDE,
2011, p. 75).
Diante das análises dos eixos temáticos, reafirmamos a importância de se
olhar para as possibilidades de ação das crianças, planejando, no coletivo, formas
de considerá-las no contexto da prática pedagógica. Caldart (2015) esclarece que a
luta do movimento de Educação do Campo deve ser por uma escola comprometida
com as crianças e com as suas experiências e aprendizados, o que alarga a visão
sobre o papel formativo desta instituição educativa. No entanto, as análises aqui
apresentadas colocam-nos diversos desafios no sentido de materializar os princí-
pios da Educação do Campo e os pressupostos da Sociologia da Infância, em defesa
de uma escola no/do campo que respeite e reconheça, em suas práticas, os direitos
das crianças.
Considerações nais
A discussão em torno dos sentidos produzidos pelas crianças camponesas so-
bre a escola do campo revelou a capacidade que possuem para analisar o contexto
institucional, apontando contradições e propondo estratégias de melhoria das prá-
ticas que nele se desenvolvem. É possível afirmar que, se as crianças forem ouvidas
com respeito e atenção, poderão contribuir de modo significativo para fortalecer a
instituição escolar como espaço de formação humana, de aprendizagem e de de-
senvolvimento do protagonismo infantil. Assim, é preciso redefinir os papeis atri-
buídos às crianças e por elas assumidos, no bojo da escola e das práticas docentes.
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Participação infantil na escola do campo: narrativas produzidas em contexto de pesquisa com crianças
As análises empreendidas revelaram que, na escola, ainda estão cristalizados
pensamentos e práticas que traduzem uma concepção de criança como ser da fal-
ta, da incapacidade, por isso lhes são interditados a atuação ativa, o exercício da
cidadania, dentro das possibilidades que possuem. No entanto, ao pensarem a es-
cola, demonstraram firmeza em seus posicionamentos em relação à forma como os
espaços e materiais estão organizados, que afetam diretamente no tipo de relações
que são construídas e vivenciadas. Além disso, evidenciaram que têm consciência
do que lhes é de direito e que, porém, lhes é negado.
Nesse sentido, o estudo comprovou o potencial que as crianças possuem para
a participação social, no sentido de serem efetivamente inseridas em instâncias
decisórias na escola, sendo urgente o reposicionamento delas como sujeitos que
pensam e contribuem para a (re)construção do ambiente educativo.
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Flávio Renato Santos, Andréia Osti, Neide de Brito Cunha
*
Mestre em Educação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp). Professor de Língua Por-
tuguesa no colégio Claretiano, Rio Claro-SP e na rede estadual de Educação do estado de São Paulo, Brasil. Orcid:
https://orcid.org/0000-0001-7957-3757. E-mail: avioguap@hotmail.com.
**
Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Pós-doutora-
mento em Psicologia na Universidade São Francisco, USF. Professora do Departamento de Educação da Universidade
Estadual Paulista (Unesp) e no PPGEdu UNESP, Rio Claro, Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-7605-2347. E-mail:
andreia.osti@unesp.br
***
Doutora em Psicologia. Pós-doutorado em Educação pela UNICAMP e em Avaliação Psicológica Educacional pela
USF. Coordenadora adjunta do Mestrado em Educação da Universidade do Vale do Sapucaí e docente no Mestrado
Prossional do Centro Paula Souza e da Fatec de Bragança Paulista, Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-4945-
4495. E-mail: neidedebritocunha@gmail.com
Recebido em 26/07/2019 – Aprovado em 28/02/2020
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i2.11442
A escrita do gênero textual poema no ensino fundamental I
The writing of the poem textual gender in elementary school I
La escritura del género textual poema en la educación primaria
Flávio Renato Santos
*
Andréia Osti
**
Neide de Brito Cunha
***
Resumo
Este artigo, de natureza qualitativa, discute a escrita do gênero textual poema no Ensino Fundamental, bus-
cando avaliar seus componentes internos (conteúdo temático, estilo de linguagem e estrutura composicional),
relacionando-os à sequência didática elaborada e executada por uma docente. O estudo inicia-se com um breve
resgate da história do ensino da escrita, do início das práticas de letramento e do ensino dos gêneros textuais
nas escolas brasileiras. Além disso, recuperam-se trabalhos sobre a importância das sequências didáticas para o
ensino dos gêneros. Por m, observa-se a atividade de escrita do gênero textual poema por alunos de um quinto
ano de escola pública, cujos textos são descritos e analisados. Os resultados obtidos apontam, positivamente,
para a adequação ao tema e à estrutura composicional requeridos, porém, indicam fragilidades, sobretudo, no
estilo de linguagem adotado. A análise dos resultados sugere relação direta entre as atividades da Sequência
Didática e os componentes desenvolvidos nos poemas.
Palavras-chave: Gênero Textual. Poema. Produção de texto. Ensino Fundamental. Sequência Didática.
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A escrita do gênero textual poema no ensino fundamental I
Abstract
This article, of qualitative nature, discusses the writing of the textual gender poem in Elementary School, trying
to evaluate its internal components (thematic content, language style and compositional structure), relating
them to the Didactic Sequence elaborated and executed by the teacher. The study begins with a brief rescue
of the writing teaching history, the beginning of literacy practices and the teaching of textual genders in
Brazilian schools. In addition, recovered work about the importance of the Didactic Sequences for the teaching
of genders. Finally, we observe the writing activity of the textual gender poem by fth grade students in
Elementary school, whose texts are described and analyzed. The obtained results point, positively, to suit the
theme and the required compositional structure, but indicate weaknesses in the language style. The analysis
of the results suggests a direct relationship between the activities of the Didactic Sequence and the developed
components in the poems.
Keywords: Textual Gender. Poem. Production of Text. Elementary School. Didactic Sequence.
Resumen
Este artículo cualitativo discute la redacción del género textual poema en la escuela primaria, buscando evaluar
sus componentes internos (contenido temático, estilo de lenguaje y estructura compositiva), relacionándolos
con la secuencia didáctica elaborada y realizada por un maestro. El estudio comienza con una breve revisión de la
historia de la enseñanza de la escritura, el comienzo de las prácticas de alfabetización y la enseñanza de géneros
textuales en las escuelas brasileñas. Además, se está recuperando el trabajo sobre la importancia de las secuen-
cias didácticas para la enseñanza de géneros. Finalmente, se observa la actividad de escritura del género poema
por parte de estudiantes de quinto año de escuela pública, cuyos textos se describen y analizan. Los resultados
apuntan positivamente a la adecuación al tema requerido y la estructura compositiva, sin embargo, indican de-
bilidades, sobre todo, en el estilo de lenguaje adoptado. El análisis de los resultados sugiere una relación directa
entre las actividades promovidas en la secuencia didáctica y los componentes bien desarrollados en los poemas.
Palabras clave: Género textual. Poema. Producción de texto. Educación primaria. Secuencia Didáctica.
A escrita de gêneros textuais nas escolas
Sabe-se que a preocupação com o ensino da escrita de textos funcionais nas
escolas é muito recente. Os estudos de Mortatti (2006) revelaram que a escola bra-
sileira, desde o século XIX, período em que as aulas régias foram substituídas pela
escola obrigatória, leiga e gratuita, até o início da década de 1980, praticamente
não ensinava a escrever textos com os quais crianças e adolescentes interagiam em
sua vida cotidiana. A autora revela que, durante quase dois séculos, privilegiou-se
o ensino da leitura, considerando-se o ato de escrever como espontâneo e natural,
ocorrendo em função apenas do aprendizado da leitura. Assim, as práticas de escri-
ta, exercidas pela escola, restringiram-se, por séculos, aos treinos de caligrafia, às
cópias, aos ditados, às redações/composições escolares etc., cujo propósito não era
ensinar os gêneros textuais que circulavam na sociedade, e, sim, promover o mero
aprimoramento linguístico.
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Tal realidade, segundo Soares (2006), começou a mudar com as discussões
sobre letramento que chegaram ao Brasil na década de 1980. Segundo a autora,
a sociedade da época percebeu que apenas a alfabetização (ensino da codificação e
da decodificação das letras do alfabeto) não era suficiente para que as pessoas uti-
lizassem a escrita com sucesso em práticas sociais. Muitas pessoas, então, saiam
da escola, naquele período, sabendo as letras do alfabeto, mas incapazes de ler e de
escrever textos necessários às suas ações cotidianas. Assim sendo, percebeu-se a
necessidade de letrar, de ensinar a leitura e a escrita de modo funcional, formando
sujeitos capazes de participar dos mais diversos eventos sociais de uso da lingua-
gem escrita. Dessa forma, o processo de letramento, juntamente com a alfabetiza-
ção, passou a fazer parte do processo de ensino da escrita, seguindo o entendimento
dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) (BRASIL, 1997) de que:
[...] ensinar a ler e a escrever somente pelo estudo isolado de letras, palavras ou frases
representaria a descontextualização do processo de ensino-aprendizagem, já que se retira
o objeto de estudo (a linguagem escrita) do seu ambiente natural (o texto). O que se propõe
também não é a exclusão do estudo segmentado das letras, das palavras ou das frases e sim
que ele seja contextualizado, que o aprendiz compreenda que essas partes integram o todo
que, no caso, sempre será um texto, seja ele complexo, como um romance, ou mais simples,
como um bilhete (p. 29).
Nesse sentido, a alfabetização e o letramento passaram a ser entendidos como
processos simultâneos e complementares para a formação do proficiente usuário da
escrita. Tfouni (2005, p. 9, grifo do autor) sintetiza a relação entre alfabetização, le-
tramento e escrita da seguinte forma: “a relação entre eles é aquela do produto e do
processo: enquanto os sistemas de escrita são um produto cultural, a alfabetização
e o letramento são processos de aquisição de um sistema escrito”. Essa mesma con-
cepção de alfabetização e de letramento é também compartilhada pelo Ministério
da Educação (MEC), já que esse entende que a alfabetização envolve a apropriação
do sistema de escrita (princípios alfabéticos e ortográficos) e que o letramento deve
ser compreendido:
[...] como o processo de inserção e participação na cultura escrita. Trata-se de um processo
que tem início quando a criança começa a conviver com as diferentes manifestações da
escrita na sociedade (placas, rótulos, embalagens comerciais, revistas, etc.) e se prolonga
por toda a vida, com a crescente possibilidade de participação nas práticas sociais que
envolvem a língua escrita (leitura e redação de contratos, de livros científicos, de obras
literárias, por exemplo) (BRASIL, 2012, p. 12-13).
Constatou-se, então, que o ensino da escrita de textos voltado meramente para
o aperfeiçoamento linguístico pouco contribuía com a formação plena do escritor.
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A escrita do gênero textual poema no ensino fundamental I
Ou seja, percebeu-se que a escola “produzia” muitos analfabetos funcionais, indiví-
duos que dominavam as técnicas do ler e do escrever, todavia, eram incapazes de
usá-las em boa parte das atividades sociais que as envolviam. Assim sendo, com
tais mudanças de concepção de ensino e de adoção do letramento como prática
necessária para a inserção dos sujeitos na cultura escrita, reconheceu-se também a
urgência do ensino dos gêneros textuais, já que esses são entendidos como materia-
lização dos textos que ocorrem no cotidiano, ou seja, os gêneros textuais apresen-
tam-se como formas que concretizam toda e qualquer comunicação verbal, a qual
não ocorre senão por meio deles, o que torna obrigatório seu ensino.
Neste sentido, Bakhtin (2003) explica que os gêneros textuais são construções
que, para atender determinadas especificidades de um campo discursivo, assumem
conteúdo temático, estrutura de linguagem e construção composicional relativa-
mente estáveis. Ou seja, as diferentes atividades humanas, mediadas pelo uso das
diferentes linguagens, necessitam, muitas vezes, dos gêneros textuais (escritos ou
orais) para que ocorram, os quais apenas ocorrerão com êxito se respeitarem as
características próprias do campo discursivo no qual é utilizado.
Os estudos de Marcuschi (2002) e Schneuwly e Dolz (2004) seguem nessa mes-
ma direção. Marcuschi (2002) considera que toda comunicação verbal depende da
ocorrência de gêneros textuais; para o autor, é por meio deles que as ações socio-
discursivas “dizem” e “agem” sobre o mundo. Tais ações se dão de modo “relativa-
mente estáveis realizadas em textos situados em comunidades de práticas sociais
e em domínios discursivos específicos” (MARCUSCHI, 2002, p. 24). Isso significa
que, para funcionar em determinados espaços sociais, é preciso que haja certa;
padronização, isto se dá, como supracitado, em relação aos conteúdos e conheci-
mentos dizíveis, à estrutura comunicativa (o “esqueleto” composicional) e ao estilo
de linguagem empregados no texto, que, com tais características, se concretizam
em um gênero textual (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004).
Conclui-se, então, que todas as variantes envolvendo a escrita dos gêneros
textuais devem ser ensinadas nas escolas. Para Marcuschi (2002, p. 32-33), “to-
dos os textos se manifestam sempre num ou noutro gênero textual”, assim, “um
maior conhecimento do funcionamento dos gêneros textuais é importante tanto
para a produção como para a compreensão”. Analogamente, Val (2007), reconhe-
cendo que toda comunicação verbal se dá por meio dos gêneros textuais, ressalta
a necessidade do ensino dos gêneros textuais nas escolas, uma vez que, segundo a
autora, muitos estudantes chegam à escola com pleno domínio de gêneros menos
elaborados, principalmente os orais, contudo, é, por meio da escola, que aprendem
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gêneros novos ou mais elaborados, os quais não seriam aprendidos fora dela, seja
pela complexidade, seja pelo desconhecimento de sua existência.
Assim sendo, acredita-se que o ensino dos gêneros textuais significa sobretudo pos-
sibilitar que os sujeitos participem dos mais diversos campos de atividades humanas
que usam a escrita, inclusive daqueles de maior prestígio social. Portanto, aprender a
ler e a escrever o maior número de gêneros textuais possíveis torna-se condição impor
-
tante para alcançar mudanças e melhorias nas condições sociais dos homens. Eviden-
cia-se, então, o importante papel da escola de promover a continuidade do processo de
letramento por meio do ensino sistemático dos gêneros para que crianças e adolescen
-
tes possam cada vez mais participar dos eventos sociais mediados pela escrita.
Contudo, é preciso ressalvar que não é suficiente que a escola substitua as
frases soltas pelo simples ensino dos conteúdos, linguagem e estrutura necessária
em cada gênero textual para que o problema do ensino da linguagem escrita este-
ja resolvido. Segundo Santos, Mendonça e Cavalcante (2007), é necessário que se
aborde, nas escolas, tanto os componentes internos dos gêneros textuais quanto
seus componentes externos para que a escrita seja, efetivamente, aprendida. Isso
significa que o ensino do conteúdo temático, da linguagem e da estrutura compo-
sicional de um gênero deve ocorrer em consonância com o estudo das motivações
externas que geram tais características. Para tanto, deve-se conduzir o aluno a
compreender quem são o campo discurso, os usuários envolvidos, o contexto social,
a cultural, o aspecto geográfico etc. que determinam a escolha de um determinado
gênero textual, de seu conteúdo, de suas estrutura e linguagem.
Portanto, não é possível, por exemplo, ensinar, nas escolas, a linguagem uti-
lizada em um gênero textual sem abordar as motivações externas para a adoção
desta linguagem. Nesse sentido, surgem, para atender a essa exigência, as Se-
quências Didáticas (SD), discutidas, sobretudo, por Schneuwly e Dolz (2004), as
quais revelam-se fundamentais para o ensino dos gêneros textuais, já que, se bem
elaboradas e aplicadas, contemplam o ensino de todos os seus componentes (exter-
nos e internos).
O uso das sequências didáticas para o ensino dos gêneros textuais
Diante da necessidade do ensino dos aspectos internos (conteúdo temático,
estilo de linguagem, estrutura etc.) e externos (finalidade do texto, usuários, con-
texto social, cultural, regional etc.) dos gêneros textuais nas escolas, o uso das
Sequências Didáticas (SD) mostra-se necessário a tal propósito, já que, segundo
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A escrita do gênero textual poema no ensino fundamental I
Schneuwly e Dolz (2004), essa ferramenta dispõe de um conjunto de atividades es-
colares programadas sistematicamente para que o aluno aprenda um determinado
gênero. As SD têm a finalidade de auxiliar o trabalho do professor, levando o aluno
à apropriação e à consequente utilização dos gêneros nos mais diferentes espaços
sociais, nesse sentido, as SD devem possibilitar, ao aluno, o aprendizado tanto dos
gêneros desconhecidos quanto daqueles conhecidos, porém, difíceis de serem utili-
zados (orais ou escritos).
O reconhecimento das SD como ideais ao ensino dos gêneros se dá pela plas-
ticidade dos procedimentos nelas adotados para o ensino: toda a SD se constrói em
função do gênero a ser ensinado e do grupo para qual será utilizada. Assim sendo,
cada SD terá características peculiares que devem, de acordo com Schneuwly e
Dolz (2004), atender a alguns pressupostos: 1. A adaptação da escolha do gêne-
ro e das situações de comunicação às capacidades dos alunos; 2. Antecipação das
transformações possíveis e de etapas que possam ser transpostas; 3. Simplificação
de tarefas para que não excedam as capacidades iniciais das crianças; 4. Esclare-
cimento dos objetivos da escrita e do caminho a ser percorrido; 5. Tempo suficiente
para que ocorra a aprendizagem; 6. Organização das intervenções para que ocor-
ram transformações/avanços na escrita dos textos; 7. Organização de momentos de
colaboração entre os alunos para que contribuam entre si com as transformações;
8. Avaliação das transformações ocorridas.
Em síntese, a utilização das SD passa por quatro etapas que devem ser con-
templadas em sua elaboração: 1. Apresentação inicial (conhecimento do projeto de
escrita a ser executado: apreciar o gênero – o que envolve sua leitura e estudo, a
quem se dirige, a forma que ele assume, quais sujeitos o utilizam etc.); 2. Primeira
produção escrita (responsável pela manifestação das primeiras representações que
o aluno-escritor tem do gênero, funcionando como “termômetro” para que o profes-
sor identifique quais capacidades de escrita ainda precisam ser desenvolvidas; 3.
Módulos de intervenção (atividades que buscam solucionar os problemas encontra-
dos); 4. Produção final (acompanhamento dos avanços obtidos).
As vantagens da utilização das SD como estratégias de ensino foram observa-
das em algumas pesquisas. O estudo qualitativo desenvolvido pela pesquisa-ação
de Galvão (2015) revelou avanços significativos no aprendizado dos gêneros por
alunos do 5º ano do Ensino Fundamental, explicitando sobretudo avanços das pri-
meiras versões dos textos escritos em relação à versão definitiva. A pesquisa, rea-
lizada com 66 alunos de uma escola pública, valeu-se de diferentes instrumentos,
tais como questionários, observações, leituras e escritas de textos, para observar o
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desenvolvimento da escrita em diferentes gêneros textuais: carta, bilhete, música,
poesia, fábula e conto. A análise dos 90 textos escritos e dos 58 questionários res-
pondidos revelou que houve avanço significativo na leitura e na escrita dos gêneros
no que se refere à construção de informações explícitas e implícitas no texto, à
inferência de sentido de palavras e expressões, à relação de lógica entre partes de
textos de diferentes gêneros e temáticas, além da relação entre textos verbais e não
verbais (GALVÃO, 2015). Avaliou-se que as SD contribuíram com:
[...] O planejamento dos textos considerando o contexto de produção; a organização do texto
dividindo-o em tópicos, parágrafos ou estrofes; a produção de diferentes gêneros com auto-
nomia, atendendo a distintas finalidades; além da pontuação, estruturação dos períodos e
utilização de recursos coesivos para organização das ideias e fatos (GALVÃO, 2015, p. 333).
A pesquisa ainda constatou que as SD foram capazes de motivar a produção
escrita em sala de aula, uma vez que se observou o maior envolvimento dos dis-
centes nas atividades de escrita. Diante de todos os resultados, concluiu-se que
o aprendizado e o aperfeiçoamento da escrita por meio das SD são possíveis com
quaisquer gêneros textuais, já que o estudo fez uso de um número diversificado de
gêneros e observou avanço em todos (GALVÃO, 2015).
Analogamente, o estudo desenvolvido por Souza (2015) constatou resultados
muito positivos nas escritas de trinta alunos do Ensino Fundamental de uma escola
pública quando utilizada a SD para o ensino dos gêneros textuais Carta Pessoal e
Carta do Leitor. A aplicação da SD (apresentação e estudo dos gêneros, a produção
inicial - diagnóstica-, os módulos de intervenção e a reescrita da versão definitiva
dos gêneros), de acordo com a pesquisa, provocou maior interesse dos alunos pela
escrita: constatou-se melhoria da atenção dos alunos no processo de leitura, maior
participação nas discussões, no processo de escrita do texto, na análise linguística,
na autocorreção e na reescrita do texto, corroborando a formação escritora daque-
les sujeitos. O estudo também observou melhorias na construção dos gêneros tex-
tuais escritos: as comparações entre a primeira e a última versão, realizadas como
parte do percurso metodológico adotado pela pesquisadora, revelaram progressos
significativos nos dois gêneros escritos. As versões finais das cartas pessoais mos-
traram avanços, sobretudo, no que se refere às soluções gramaticais encontradas
pelos alunos, uma vez que essa era a maior dificuldade no gênero. Além disso, hou-
ve melhoria na organização estrutural do gênero: saudação, desenvolvimento do
conteúdo temático, despedida etc. Na escrita da carta do leitor, as mudanças mais
significativas ligavam-se à utilização da linguagem (SOUZA, 2015).
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A escrita do gênero textual poema no ensino fundamental I
Diante das constatações supramencionadas em torno da importância das SD
para o ensino de gêneros textuais é que esse estudo se interessou por observar
como ocorre a escrita de um gênero textual ao final do Ensino Fundamental I, a
partir de uma proposta de escrita elaborada e aplicada pelo docente. Assim sendo,
considerando o contexto de produção em que aconteceu o ensino do gênero, discute-
-se aqui o quanto os alunos conseguiram produzi-lo respeitando as características
de estilo de linguagem, conteúdo temático e estrutura composicional relativamente
estáveis de acordo com o campo discursivo no qual ocorre.
A pesquisa de campo
A razão deste estudo qualitativo está no objetivo geral desta pesquisa: ava-
liar os componentes internos (conteúdo temático, estilo de linguagem e estrutura
composicional) de um gênero textual escrito por alunos do Ensino Fundamental I
em uma escola pública a partir de uma proposta elaborada e aplicada pelo docente
titular. Realizou-se, então, a pesquisa de campo para compreender o quanto os
gêneros textuais, escritos pelos discentes em situações cotidianas propostas pelo
professor, estão adequados no que se refere às suas características formais inter-
nas. Assim sendo, espera-se provocar uma reflexão sobre a capacidade escritora de
gêneros textuais por alunos nas escolas de Ensino Fundamental I.
Para melhor entender como os alunos estão escrevendo no Ensino Fundamen-
tal I, decidiu-se observar o processo de escrita de um gênero textual no 5º ano,
porque é o último ano escolar e entende-se que o trabalho sistemático com ensino
da escrita dos gêneros já esteja mais avançado. Tornaram-se, então, participantes
dessa pesquisa 21 alunos, que aceitaram participar e tiveram autorização de seus
responsáveis, e a docente da turma, que também autorizou o trabalho. O estudo
foi desenvolvido em uma escola municipal do interior do estado de São Paulo. Vale
ressaltar que esse estudo apenas teve iniciou após a aprovação do Comitê de Ética
em Pesquisa em Seres Humanos (parecer nº 1.185.377), de acordo com a Resolução
CNS 466/12.
Os instrumentos de pesquisa foram decididos em função do propósito de ava-
liar a escrita dos alunos e de observar o desenvolvimento das atividades em sala de
aula. Assim sendo, foram utilizados o diário de observação para relatar a atividade
de escrita desenvolvida, uma Escala de Observação Sistemática (elaborada pelos
pesquisadores) para orientar o olhar da pesquisa e auxiliar na interpretação da SD
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e, por fim, as versões finais das escritas dos discentes (21 textos) para avaliar as
características do gênero escrito.
Para descrição e análise dos resultados das escritas dos alunos, dois aspectos
foram considerados: o primeiro diz respeito ao contexto de produção (as intenções
expressas pela professora na apresentação da proposta de escrita, o espaço social:
a cidade e a escola, e o tempo: momento histórico) no qual a escrita aconteceu, ou
seja, os fatores que podem ter interferido para que o gênero textual fosse escrito de
uma ou de outra forma; e o segundo aspecto considerado para a leitura e a inter-
pretação dos dados foi o ponto de partida e o modo como foi elaborada e aplicada a
SD pelo docente, já que isso pode determinar as características do gênero escrito.
A sequência didática para o ensino de poemas
As atividades de escrita do gênero textual ocorreram em três diferentes dias,
segundo o planejamento feito pela docente do grupo. A professora decidiu trabalhar
com o gênero textual poema para que continuasse o trabalho que, segundo ela,
vinha sendo feito e estava gerando bons resultados.
No primeiro dia de observação da atividade, a professora iniciou sua Sequên-
cia Didática anunciando, aos alunos, a escrita do gênero poema e do tema “O lugar
onde vivo” e revelando o propósito de apresentá-lo no sarau da escola. Lembrou-os
também que já haviam estudado poemas em outras situações e que era um gênero
próximo à paródia, gênero trabalhado na semana anterior. A docente prosseguiu
como uma discussão sobre a relação dos alunos com o gênero: o que já haviam lido,
do que tratavam, se gostaram etc. Em seguida, o poema “Prazer de Poeta”, de Mar-
dilê Friedrich Fabre, foi lido, discutiu-se o título do poema, o conceito de estrofes,
de versos e de rimas e como se organizavam tais componentes no poema (além da
discussão, os discentes também responderam a um questionário). Posteriormente,
passaram a tratar do vocabulário: buscar os significados de termos desconhecidos,
o que subsidiou a discussão sobre a temática do poema lido. Por fim, a professora
atribuiu duas lições de casa aos alunos: encontrarem poemas com apenas uma
estrofe e pesquisarem sobre o lugar onde vivem: clima, paisagem, pessoas, coisas
boas e/ou ruins.
No segundo dia de observação, ocorreu a escrita dos poemas. A professora
não conferiu ou retomou a tarefa solicitada anteriormente, mas começou a aula
elogiando o envolvimento dos alunos com os poemas, pois estavam escrevendo-os
espontaneamente em casa. Prosseguiu, então, com a leitura e a interpretação dos
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A escrita do gênero textual poema no ensino fundamental I
poemas “Cidadezinha”, de Mário Quintana e “Milagre no Corcovado” (de Ângela
Leite de Souza), os quais abordavam o tema “O lugar onde vivo”. Em seguida,
ocorreu a escrita, que foi orientada, pela docente, a fim de que acontecesse em ver-
sos, em estrofes e com rimas. A docente também ressaltou a importância do tema,
pediu para que, ao escrever, recuperassem o bairro, a casa ou outros espaços que
gostassem. Durante o trabalho dos alunos, houve duas intervenções da professora:
primeiro, ela colocou 5 questões na lousa para avaliação do tema, das estrofes, dos
versos e das rimas do poema que os alunos estavam escrevendo, depois insistiu
para que os alunos não se restringissem a um único espaço da cidade, pedia para
alternarem suas escritas sobre diferentes lugares. Por fim, a aula terminou com a
leitura e com a discussão do poema “Poesia das capitais”, de Luiz de Miranda.
No último dia de observação, houve a reescrita dos poemas. A professora co-
meçou a atividade lendo poemas aleatórios e, posteriormente, fez a entrega dos
poemas dos alunos por ela corrigidos e solicitou a reescrita. Contudo, a docente
havia feito apenas correções ortográficas e gramaticais e não solicitou nenhuma
revisão por parte dos alunos. Portanto, os alunos, nessa atividade, apenas “passa-
ram a limpo” seus textos, solucionando os problemas indicados pela docente refe-
rentes à ortografia, à acentuação e à pontuação. Em apenas um ou outro texto a
docente pediu para reorganizar a estrutura do poema, alterando o texto construído
em parágrafos para um texto organizado em versos. Não houve também nenhuma
correção, intervenção ou solicitação de revisão do conteúdo temático ou do estilo de
linguagem do poema. Em síntese, a atividade do dia restringiu ao exercício de “pas-
sar a limpo” os textos, eliminando erros apontados pela professora e, enquanto isso
acontecia, ela lia oralmente alguns poemas. Não ocorreu também a avaliação, por
parte da docente, da escrita final dos poemas, ou seja, as versões finais dos textos
escritos não foram lidas ou discutidas individualmente ou em grupo para avaliar
os avanços e apontar possíveis melhorias.
A escrita de poemas no ensino fundamental I
Sabe-se do caráter normativo que qualquer avaliação possui, elas ocorrem
sempre a partir de escolhas que podem se manifestar menos ou mais arbitrárias.
Quando se trata da avaliação da escrita de gêneros textuais deve-se, então, dar
atenção aos componentes internos ao gênero necessários para que ele se manifeste
como tal, ao mesmo tempo que se deve considerar os componentes externos que
motivam sua escrita e determinam a construção textual do gênero textual escrito.
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Assim, para avaliar a escrita de um poema, é preciso, primeiramente, conside-
rar a multiplicidade de formas que esse gênero pode assumir: um dos mais antigos
gêneros da história da escrita, o poema, ao longo dos séculos, sofreu e sofre trans-
formações em todos seus componentes – assume novas construções composicionais,
adota diferentes conteúdos temáticos e estilos de linguagem diversos a depender
da história, do espaço sociocultural, das intenções artísticas, estéticas, políticas,
econômicas etc. em que ocorre.
Por isso, antes de se determinar como avaliar o conteúdo, a estrutura e o estilo
de linguagem empregados, pelos alunos, na escrita dos poemas, considerou-se o
contexto de produção no qual essas escritas ocorreram: primeiro, atentando-se à
finalidade de escrever um texto para a declamação no sarau da escola e, segundo,
reconhecendo a concepção de gênero construída, juntamente aos alunos, ao longo
do ano letivo, pela professora, já que esta relatou desenvolver recorrentemente
atividades de escrita de poemas. Ademais, considerou-se também como a SD foi
construída e desenvolvida com os alunos: quais pressupostos, concepção de poema,
procedimentos etc. estavam presentes na atividade de escrita desenvolvida.
Assim sendo, chegou-se a dois trabalhos importantes que nortearam a ava-
liação dos poemas. O primeiro foi o de Altenfelder e Armelin (2010), visto que as
atividades propostas pela docente se apoiaram no material didático “Poetas da
escola: caderno do professor: orientação para produção de textos”, fascículo que
faz parte do “Programa Escrevendo o Futuro”, desenvolvido pela “Fundação Itaú
Social”. A escolha do tema “O lugar onde vivo”, alguns poemas lidos para tratar da
temática, algumas questões de interpretação sobre o tema ou mesmo questões re-
flexivas sobre a construção composicional do gênero foram trazidas integralmente
ou adaptadas desse material.
Outro trabalho que sustentou a avaliação dos poemas escritos foi o estudo
de Val e Marcuschi (2010), já que as pesquisadoras fizeram um extenso estudo
avaliando 250 poemas escritos por alunos do quinto e do sexto ano do EF que parti-
ciparam da “Olimpíada Brasileira de Língua Portuguesa”, cujas aulas ministradas
pelos docentes também adotaram a concepção de poema e atividades que compuse-
ram a Sequência Didática trazida pelo material didático “Poetas da escola: caderno
do professor: orientação para produção de textos”, de Altenfelder e Armelin (2010).
Assim, com o objetivo de padronizar os critérios de avaliação e de construí-la de
forma mais justa possível, elaborou-se o Quadro 1, apoiado sobretudo nos trabalhos
desses autores.
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A escrita do gênero textual poema no ensino fundamental I
Quadro 1 – Descritores observados no gênero textual Poema
NULO OU AUS ENTE PRECÁRIO OU INSUFICIENTE
ADEQUADO
Estrutura
Compos icional: Rima
e/ou métrica
Estrutura
Compos icional: Versos e
estrofes
Conteúdo Temático:
Autoria
Estilo de Linguagem:
Conotação e Recursos
Formais Especiais
Prevalece a denotação, o
s ujeito lírico não revela
suas impressões.
Construção da temática
por meio de clichês, de
imagens pertencentes ao
senso comum.
Emprego apenas da
função denotativa da
linguagem. Ausência de
recursos sonoros
(aliteração, assonância,
aliteração etc.) que
contribuem com a
significação.
Quando o texto se
organiza em prosa
(organização paragrafal).
Prevalecem os clichês e, em apenas
alguns versos, palavras ou
expressões em que o eu lírico
manifesta sua subjetividade, suas
impressões e/ou tom avaliativo.
Tratamento crítico ou
humorístico da temática e/ou
surpreende pela presença de
tom poético.
Presença de figuras de
linguagem que reconstroem o
real, há o inusitado: metáfora,
antítese, comparação,
personificação etc. capazes de
surpreender. A significação é
ampliada por esses usos.
Presença de recursos sonoros
(aliteração, assonância etc.) que
contribuem com a significação.
Organização do texto em uma
ou mais estrofes, em que os
versos apresentam ideia
completa e contribuem com o
desenvolvimento da temática.
Ausência de figuras de linguagem
que reconstroem a realidade.
Ocorrem apenas metáforas
desgastadas ou comparações
desprovidas de tom poético. Não se
nota a ampliação da significação
por meio das figuras de linguagem.
Pouco ou nenhum recurso sonoro
(aliteração, assonância etc.) que
contribui com a significação.
Ainda que pareça que o texto es
organizado em estrofes e versos,
isto ocorre apenas pela falsa
aparência de mudança de linhas.
Percebe-se que há versos que não
possuem uma ideia coerente ou
completa, nota-se também palavras
soltas usadas como versos.
Rimas e/ou métrica obtidas por meio
de combinações forçadas, presença
constante de incompatibilidade
vocabular ou de ideias que não
contribuem com o desenvolvimento
do tema, tudo em prol da rima ou do
ritmo .
Não se percebe
quaisquer marcas de
ritmo no poema.
Utilização de versos mais
longos, mas que, metricamente,
garantem o ritmo do poema e/ou
presença de rimas ricas, aquelas
em que, além da regularidade
que garante a musicalidade,
contribuem com a significação.
Fonte: Elaborado pelos autores.
Assim sendo, os descritores expostos no Quadro 1 foram utilizados para orien-
tar a leitura dos textos escritos pelos alunos e a descrição dos resultados, que foram
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sistematizadas no Quadro 2. Nele, os dados revelaram o percentual de alunos cujo
desenvolvimento foi nulo/ausente, precário/insuficiente ou adequado dos seguintes
componentes do gênero poema: Atendimento ao tema e autoria (para o Conteúdo
Temático), Linguagem conotativa e recursos formais especiais (para o Estilo de
Linguagem) e Versos/estrofes e rimas/métrica (para a Estrutura Composicional).
Quadro 2 – Atendimento aos componentes internos do gênero Poema escrito pelos alunos do 5º ano
mero
absoluto de
textos
Porcentagem
mero
absoluto de
textos
Porcentagem
mero
absoluto de
textos
Porcentagem
NULO OU AUSENTE
PRECÁRIO OU
INSUFICIENTE
ADEQUADO
Conteúdo
Temático
Atendimento ao
Tema
0
0,0%
0
0,0%
21
100,0%
Autoria
7
33,3%
11
52,4%
57,1%
Estilo de
Linguagem
Linguagem
Conotativa e
Recursos
Formais
Es pec iais
16
76,2%
4
19,1%
5
23,8%
12
TOTAL DE TEXTOS
ESCRI TOS: 21
4
19,0%
33,3%
Rima e/ou
métrica
8
38,1%
6
28,6%
7
3
14,3%
1
4,8%
Estrutura
Composicional
Versos e
estrofes
Fonte: Elaborado pelos autores.
No Quadro 2, os dados relativos ao desenvolvimento do Conteúdo Temático dos
poemas revelaram, primeiramente, que todos os alunos desenvolveram o tema que
foi solicitado pela docente, ou seja, todos abordaram o tema “O lugar onde vivo”,
não havendo fuga ao tema. Contudo, uma investigação mais profunda da temática
revelou que poucos conseguiram desenvolver a autoria, apenas 14,3% de forma ade-
quada, sendo que esse componente considerou o quanto os alunos manifestavam-se
de forma crítica, humorística, irônica ou poética, o que prevaleceu, nas escritas dos
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A escrita do gênero textual poema no ensino fundamental I
alunos (85,7% categorizadas como precárias ou insuficientes), foram apenas avalia-
ções superficiais ou apreciação do espaço por meio de adjetivações, como se observa
na utilização dos termos “lindo” e “bonito” no Exemplo 1, porém, sem qualquer in-
dício de recriação da realidade, de sua apresentação de forma inusitada ou crítica.
Exemplo 1 (Poema 13A)¹
O lugar onde eu
vivo é um lindo
lugar de céu azul.
Um lugar muito
bonito, cheios de
pessoas que eu
gosto e adimiro [...]
Em outros poemas, os discentes pareciam iniciar um posicionamento mais
crítico, contudo, abandonavam a ideia ou não conseguiam desenvolvê-la, o que pre-
judicava a construção da autoria nos textos. No Exemplo 2, o aluno revelou o amor
pelo lar, contrapondo-o ao fato de morar perto de um bar, isto foi expresso pela con-
dicional “mesmo que”, porém, a ideia não foi desenvolvida completamente, o que
impossibilitou depreender os motivos da crítica ao fato de se viver próximo ao bar.
Exemplo 2 (Poema 9A)
[...] Amo muito meu lar
não quero mudar
mesmo que more
perto de um bar.
Houve, no entanto, dois poemas que, respeitadas as idades das crianças, foram
capazes de surpreender, de revelar impressões, sensações ou imagens inusitadas
sobre o lugar onde se vive. No Exemplo 3, constatou-se a recriação do espaço por
meio da analogia que o aluno fez entre o “claro” do “céu”, do “sorriso das pessoas” e
das “ruas”. Observou-se, então, o desejo de surpreender o leitor por meio da repre-
sentação do espaço de modo inusitado.
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Exemplo 3 (Poema 17A)
[...] claro e o céu
o sorriso das pessoas
as ruas também [...]
O segundo componente do gênero poema analisado foi o estilo de linguagem,
observando-se, sobretudo, a capacidade do aluno em desenvolver o sentido conota
-
tivo da palavra (sentido figurado), já que este aspecto é fundamental ao texto poé-
tico, uma vez que promove a ampliação da significação, sugere leituras múltiplas e
a construção de imagens inusitadas da realidade. Isso também é possível quando
o aluno faz uso de recursos formais sonoros (sons sugestivos), como é o caso da
assonância e da aliteração, que ampliam a significação temática, ou da repetição
intencional de palavras ou versos para enfatizar ou reforçar significados.
Todavia, ao contrário do que se esperava para a escrita de poemas, prevaleceu
o uso denotativo da linguagem e os alunos não fizeram uso de recursos sonoros
para ampliar os significados da palavra. Dos 21 textos escritos, 16 apenas descre
-
veram o espaço e/ou o elogiaram, sem apresentar nenhum indício de linguagem
figurativa e de estratégias de exploração da sonoridade com o objetivo de reforçar
ou ampliar significados, o que ocorre no Exemplo 4.
Exemplo 4 (Poema 19A)
o lugar onde eu vivo
é muito bonito e lega
De se viver
E é tudo azul lá.
É uma cidade de tamanho
Porte médio, mas lá
Tem várias atrações dentro
Da cidade.
Há um lago Lá que se
Cama Lago-azul e é
Lindo de morar Lá
Na cidade que eu moro!
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A escrita do gênero textual poema no ensino fundamental I
Quanto ao uso de recursos formais, principalmente os sonoros, não se perce-
beu nenhum uso intencional de repetições, aliterações ou assonâncias com o obje-
tivo de reforçar ou sugerir interpretações inusitadas. Houve apenas casos em que
os alunos se valeram da repetição, sobretudo da expressão “o lugar onde eu vivo”,
para manter a progressão temática e não para criar um determinado efeito de
sentido, como é possível notar no Exemplo 5.
Exemplo 5 (Poema 15A)
O lugar omde eu vivo
É bom e harmoniozo
Sou feliz
Por causa dele
O lugar omde eu vivo
Eu tenho amigos
Educados e parentes
Carinhosos
O lugar omde eu vivo
É saudável tem pessoas de
Todos os jeitos que possa
Imaginar
Já no Exemplo 6, classificado como insuficiente no estilo de linguagem, em-
pregou-se a linguagem de forma mais expressiva, porém, utilizou-se uma metáfora
desgastada, ou seja, um clichê para anunciar o nome da cidade da qual tratava, isto
porque ele associa a cidade a uma “joia”.
Exemplo 6 (Poema 11A)
[...] Pensando agora
já está na hora
de dizer o nome
de nossa joia
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Ainda que a maioria dos alunos apresentasse dificuldade no tratamento da
linguagem nos poemas, visto no Exemplo 3, mostrou-se diferente, já que o aluno
foi capaz de associar elementos incomuns, o que se configura, ainda que de modo
simples, como um processo metafórico: “[...] claro e o céu/ o sorriso das pessoas/ as
ruas também”. Nesse poema, “céu”, “sorriso” e “rua” ganham a mesma propriedade
“claro”. Essa construção revelou também o potencial criativo do aluno ao fazer um
trocadilho com o nome de sua cidade, já que ele se aproveitou de parte de seu nome
para criar o adjetivo “claro” que a qualifica, ou seja, fez uso de um recurso formal
(o trocadilho), alcançando um estilo especial e surpreendente ao usar a linguagem,
algo importante para o fazer poético.
O último componente analisado na escrita dos poemas foi a Estrutura com-
posicional, vista sob dois aspectos: a organização do texto em estrofes e versos,
cujos dados revelaram que 57,1% dos alunos conseguiram produzi-los; e obtenção
de ritmo, por meio de rimas ou de métrica, o que foi alcançado adequadamente por
33,3% dos discentes. O Exemplo 7, assim como mais da metade dos outros poemas,
revelou organização adequada das estrofes, já que elas serviram para dividir os
versos de acordo com os diferentes espaços que eram tratados no poema; também
estavam adequadas as construções dos versos, uma vez que cada verso possuía
sentido completo, não havia quebras sintáticas e estabeleciam relação semântica
entre si, o que contribuía com o desenvolvimento da temática.
O Exemplo 7 mostrou-se exemplar também na produção do ritmo, assim como
outros 33,3%. Nesse exemplo, é possível notar que o aluno zelou pelas rimas cons-
tantemente e elas, ainda que não contribuíssem com a reconstrução poética da
realidade, não prejudicaram o desenvolvimento da temática, ou seja, não foram
“forçosas”. O poema também manifestou certa regularidade rítmica: muitos versos
com a mesma quantidade de sílabas métricas, o que contribuiu com a melodia.
Nesse sentido, esse poema mostrou-se exemplar no tratamento do eixo Estrutura
Composicional.
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A escrita do gênero textual poema no ensino fundamental I
Exemplo 7 (Poema 9A)
Eu vivo no Brasil
minha cidade
é muito legal
O que mais gosto
É pular no quintal
Amo muito meu lar
não quero mudar
mesmo que more
perto de um bar
Os poemas categorizados como adequados tiveram estrutura composicional se-
melhante ao apresentado no Exemplo 7, ainda que houvesse, por exemplo, quebra
sintática em um verso ou alguma rima forçosa, que prejudicasse esporadicamente
o desenvolvimento da temática, o que, no entanto, não foi o suficiente para clas-
sificá-los como precários. Contudo, 23,8% dos poemas observados apresentaram
constantes problemas como esses na constituição dos versos e foram classificados
como precários na sua construção, como pode ser observado no Exemplo 8.
Exemplo 8 (Poema 19A)
O lugar onde eu vivo
é muito Bonito e Legal
De se viver
e é tudo azul lá.
É uma cidade de tamanho
porte médio, mas lá
tem várias atrações dentro
Da cidade
[...]
Nota-se que, no Exemplo 8, os primeiros versos apresentaram certa organi-
zação, já que mantiveram uma relação de complementação sintática, ou seja, os
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versos possuíam uma ideia completa e coerente. Contudo, isso se perdeu ao longo
do poema, sobretudo a partir da segunda estrofe, cujos versos ocorreram de modo
incompleto e com sua significação fragmentada, apenas completando-se nos versos
seguintes.
As quebras sintáticas foram ainda mais frequentes no Exemplo 9, parece que
a única concepção do que seja verso, para esse aluno, é a ideia de que são produ-
zidos em linhas mais curtas, deste modo, o discente, assim como outros, construiu
uma espécie de parágrafo em linhas bem curtas e de tamanho semelhante para que
se parecesse com versos de um poema. Ou seja, os textos apresentavam algumas
palavras soltas que não produziam significados completos nos versos. Portanto,
a construção de versos e de estrofes do Exemplo 9, assim como de outros três, foi
considerada nula.
Exemplo 9 (Poema 3A)
A nossa
cidade é
ótima para
viver em
paz, amor
e Alegria
A nossa
praça é
especial o
nome é
sete de Setembro
[...]
Em relação à construção do ritmo, além do Exemplo 7, que tanto produziu
rimas quanto estabeleceu certa regularidade métrica entre os versos, houve outros
poemas que também foram classificados como adequados, uns por construir rimas
ao longo de todo poema, contribuindo com a temática, mesmo sem desenvolver a
métrica e outros por preservar relativamente a simetria métrica entre os versos,
ainda que não construísse rimas. Contudo, 38,1% dos poemas não possuíam ritmo
em nenhum excerto, a maioria desses textos foram os mesmos que também não
foram capazes de construir versos com sintaxe completa, como pode ser notado
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no Exemplo 9. Ou seja, houve uma relação direta entre a dificuldade de construir
versos com estrutura sintática preservada e a ausência de ritmo nos poemas.
Por fim, houve também 28,6% dos poemas em que o ritmo foi categorizado
como precário. Boa parte desse resultado se deve ao fato de os poemas, em algum
momento, produzirem rimas simples, mas, ao longo da produção, abandonarem
esse recurso. Também foi recorrente a produção de rimas forçosas, o que significa
que a busca pelas rimas se sobrepôs ao desenvolvimento produtivo e criativo da
temática, como pode ser visto no Exemplo 10, no qual o discente não foi capaz de
trazer à tona o lugar onde vive, entretanto, conseguiu, por meio das rimas e do
recurso da repetição, conferir ritmo ao poema.
Exemplo 10 (Poema 6A)
Na minha cidade
tem ação
Ela também tem
um céu azulão
Todo dia
tem ação
E todo dia tem
Emocao no coração
Todo dia a
ação é plena
Aprendendo um tema
Em síntese, os resultados expressos revelaram tanto aspectos positivos quanto
negativos na escrita dos poemas. De positivo, avalia-se a capacidade de desenvol-
vimento do tema, que foi 100% atendida pelos alunos, já que nenhum mostrou-se
incapaz de produzi-los. Também se mostrou positiva a elaboração de versos e de
estrofes (do componente Estrutura Composicional), pois, ainda que muitos alunos
os produzissem de modo precário, a maioria (80,9%) conseguiu, em certa medida,
construi-los. No entanto, no componente Estrutura Composicional, os resultados
apresentaram-se de modo mais negativo quanto à produção de rimas e/ou métrica.
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Os dados mais preocupantes foram os relacionados ao desenvolvimento da
autoria (do eixo Conteúdo Temático) e ao Estilo de Linguagem empregados nos
poemas. Isso porque, além de apresentarem, como expresso no Quadro 2, baixo
índice de produções adequadas, também revelaram a ausência desses componentes
em uma quantidade significativa de poemas, sobretudo no que se refere ao uso da
linguagem conotativa e de outros recursos formais da linguagem poética, já que
76,2% dos alunos não tiveram aproveitamento algum na avaliação do Estilo de
Linguagem poético.
Considerações nais
Diante dos resultados das escritas dos poemas por alunos do 5º ano do Ensino
Fundamental, algumas discussões em torno das características dessas escritas e
da forma como a professora organizou e aplicou a atividade são necessárias para
que se conclua até que ponto a organização didática, as atividades e as intervenções
propostas influenciaram na escrita dos textos. O primeiro aspecto a ser ressaltado
é o de que os alunos foram capazes de produzir gêneros textuais e que os poemas
(uns mais, outros menos) são capazes de funcionar socialmente, em especial pela
sua adequação ao tema, alcançado por todos os textos, e pela construção composi-
cional em versos e estrofes que, em maior ou menor escala, foi obtida pela maioria
dos alunos. Entretanto, os resultados também revelaram alguns componentes mais
frágeis na escrita dos poemas, dentre eles estão o desenvolvimento da linguagem
conotativa e de outros recursos formais para alcançar a plasticidade da linguagem
poética e o desenvolvimento da autoria.
Esta pesquisa estabelece uma relação direta entre tais resultados e as prá-
ticas desenvolvidas durante as Sequências Didáticas pela docente e a principal
relação refere-se à leitura e ao estudo de outros poemas que subsidiaram as escri-
tas. Os resultados obtidos no desenvolvimento do componente conteúdo temático
evidenciaram a importância da leitura e do estudo do gênero antes do processo de
escrita: ao ler, com os alunos, diversos poemas e ao discutir constantemente o tema
“O lugar onde vivo”, a professora fez com que 100% dos alunos se adequassem ao
tema requerido. Contudo, a professora não trabalhou a necessidade de os alunos
escreverem textos autorais, expressando-se criticamente, com ironia, com humor
etc., e os resultados, por sua vez, revelaram que apenas 14,3% dos alunos expres-
saram algum grau de autoria em seus poemas.
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A escrita do gênero textual poema no ensino fundamental I
O trabalho com a leitura também se mostrou valioso para o desenvolvimen-
to da construção composicional dos poemas em versos e em estrofes. A realização
das leituras de poemas, as discussões em torno de sua organização em versos, em
estrofes e com presença de rimas, além de exercícios escritos para revisão da estru-
tura dos poemas fizeram com que 57,1% dos alunos fizessem uso adequado dessa
estrutura e outros 23,8% obtivessem êxito parcialmente. Ou seja, o trabalho de ler,
de reconhecer as estrofes e versos, de contá-los, de estudá-los e de conceituá-los
resultou na estrutura composicional desejada para os poemas.
Porém, o componente estilo de linguagem conotativo e outros recursos esti-
lísticos capazes de ampliar a significação e trazer múltiplos significados ao poema
não foram estudados, o que resultou em apenas um texto conseguindo alcançar tal
estilo. Atribui-se, portanto, esse resultado negativo à ausência de atividades de
estudo da linguagem poética e de outras intervenções que propusessem a revisão
da linguagem adotada. As intervenções de linguagem feitas pela professora ocorre-
ram apenas no sentido de editar os textos escritos, corrigindo somente os erros de
ortografia e de concordância verbal e nominal, o que, ainda assim, não foi capaz de
solucionar todos os desvios de uso da linguagem padrão.
Assim sendo, este estudo admite que as atividades de leitura do gênero poe-
ma para o estudo de suas características promoveram bons resultados na escrita
do gênero, contrariamente, quando isso não foi feito, alguns componentes foram
insuficientemente desenvolvidos ou mesmo não aconteceram. A observação da SD
comparada aos resultados obtidos nos textos dos alunos revelaram que as caracte-
rísticas do gênero que foram estudadas por eles a partir de leituras, de análises, de
questionamentos ou de discussões foram mais recorrentes em suas escritas. Já as
características não trabalhadas foram justamente aquelas que os discentes mais
tiveram dificuldade ou não conseguiram desenvolver em seus textos.
Dessa forma, esta pesquisa constata o impacto que a SD tem sobre a escrita de
um gênero textual, em especial o quanto as intervenções feitas pelo docente antes e
após a escrita da primeira versão do texto podem provocar resultados significativos
na construção do gênero textual. Essa relação direta das atividades contempladas
pela SD com os bons resultados das escritas dos alunos e, contrariamente, a au-
sência de alguns estudos que resultaram em pontos mais frágeis nessas escritas
dialoga com os estudos de Souza (2015), os quais constataram avanços no desen-
volvimento da linguagem de cartas pessoais, sobretudo soluções gramaticais, após
a aplicação de módulos de intervenção que visavam sanar tais dificuldades, além
de avanços no desenvolvimento da temática.
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Isso permite que esta pesquisa defenda que as atividades de intervenção pode-
riam auxiliar os alunos a eliminar ou a minimizar as defasagens no tratamento da
linguagem escrita dos poemas. Nesse sentido, atividades de leitura e de interpreta-
ção, por exemplo, poderiam intervir solucionando as dificuldades com o uso conota-
tivo das palavras, obtendo significados inesperados, combinações surpreendentes
entre as palavras, fazendo com que um número maior de alunos conseguisse usar
adequadamente a linguagem poética.
Portanto, os resultados das escritas dos alunos relacionados às atividades de-
senvolvidas pela docente permitem que este estudo conclua primeiramente que
a presença da SD é necessária para o sucesso da escrita do gênero. Porém, a SD
pode contribuir muito ou pouco para essas escritas: colaborará mais quando os
docentes elaborarem as intervenções de acordo com as dificuldades apresentadas
pelos alunos na escrita do gênero textual e menos quando apenas propor atividades
de correção sem se atentar às reais necessidades/dificuldades de escrita do grupo.
Assim sendo, conclui-se que as intervenções pontuais realizadas no Ensino Funda-
mental I, como fez a professora ao trabalhar a construção dos versos e das rimas
e o tema dos poemas, foram capazes de fazer com que os alunos desenvolvessem o
que foi estudado no gênero. Ao contrário, as correções “tradicionais”, que apenas
apontaram os erros, produziram pouca ou nenhuma melhoria nas escritas.
Em síntese, os resultados aqui expostos e as discussões realizadas não servem
para apontar os responsáveis pelos problemas encontrados na escrita dos poemas,
mas são importantes para se reconhecer que o sucesso da escrita depende muito da
elaboração das SD, o qual ocorre apenas quando há a aproximação do aluno (autor)
com o texto (objeto a ser conhecido) e com o professor-mediador (aquele que apre-
senta o que ainda não se sabe). A Sequência Didática é, então, o elo que aproxima
os três e promove, assim como defendido por Schneuwly e Dolz (2004), o aprendiza-
do do gênero textual por meio de sua apresentação (com leituras, estudos, discus-
são e observação do que os alunos já sabem), da escrita da primeira versão do texto
(e identificação do que ainda é necessário aprender), dos módulos de intervenção
(atividades orais, em dupla, em grupos, coletivas, exercícios de reflexão, reescritas,
roteiros de correção, autocorreção, troca de textos entre os pares, revisão orientada,
leituras de textos do mesmo gênero e de outros gêneros etc.) e da produção final (a
fim de avaliar o que foi aprendido).
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Nota
1
Todos os exemplos citados pertencem ao corpus utilizado neste estudo e são transcrições das versões finais
escritas pelos alunos, cujo conteúdo, linguagem e estrutura empregados nos poemas foram integralmente
preservados, mantendo inclusive possíveis desvios da norma culta da Língua Portuguesa e outros proble-
mas encontrados.
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Arte e educação nas escolas do campo: do reconhecimento das tradições à releitura crítica do mundo
Arte e educação nas escolas do campo: do reconhecimento das tradições à
releitura crítica do mundo
Art and education in rural schools: from the recognition of traditions to the critical
re-reading of the world
Arte y educación en las escuelas del campo: del reconocimiento de las tradiciones a la relectura
crítica del mundo
Elmo de Souza Lima
*
Resumo
Neste trabalho discutimos sobre os projetos de educação do campo construídos numa articulação com os mo-
vimentos sociais, associados à formação crítica dos educandos. Trata-se de uma educação que tem a realidade
socio-histórica e cultural dos camponeses como ponto de partida no processo de produção do conhecimento
e na compreensão crítica da realidade, associado ao desvelamento das relações políticas e culturais de domina-
ção instituídas historicamente neste território. A partir dos estudos de Freire (1985, 2005), Boal (2005), Barbosa
(2002) e Duarte Jr. (1981), destacamos as contribuições da arte-educação na construção de práticas educativas
emancipadoras que favoreçam, por um lado, a imersão dos jovens no universo da cultura e das tradições locais,
rearmando identidades e pertencimentos, por outro, uma releitura crítica do mundo, evidenciando as riquezas
das experiências e saberes produzidas pelos diferentes grupos sociais, assim como, as contradições e injustiças
sociais que permeiam historicamente essa região.
Palavras-chaves: Educação do Campo. Arte-Educação. Transformação Social.
*
Doutor em Educação pela Universidade Federal do Piauí, com Doutorado Sanduíche na Università degli Studi di Verona
(2014). Professor adjunto do PPGEd da UFPI e coordenador do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Extensão em Educação
do Campo (NUPECAMPO/UFPI), Brasil. Orcid: http://orcid.org/0000-0002-8102-2062. E-mail: elmolima@gmail.com
Recebido em 03/10/2017 – Aprovado em 21/09/2018
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i2.11443
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Elmo de Souza Lima
Abstract
In this work, we discuss about the rural education projects built in an articulation with the social movements,
associated with the critical formation of the students. It is an education that has the socio-historical and cultural
reality of the rural people as a starting point in the process of knowledge production and in the critical unders-
tanding of reality, associated to the unveiling of the political and cultural relations of domination historically sta-
blished in this territory. From the studies of Freire (1985, 2005), Boal (2005), Barbosa (2002) and Duarte Jr. (1981),
we highlight the contributions of art-education in the construction of emancipatory educational practices that
favor, on one hand, the immersion of young people in the universe of culture and local traditions, rearming
identities and belongings, and on the other, a critical re-reading of the world, highlighting the potential of ex-
periences and knowledge produced by dierent social groups, as well as the social contradictions and injustices
that historically permeate in this region.
Keywords: Rural education. Art-education. Social transformation
Resumen
En este trabajo discutimos sobre los proyectos de educación del campo hechos en articulación con los movi-
mientos sociales, relacionados a la formación crítica de los educandos. Se trata de una educación que tiene la
realidad socio histórica y cultural de los campesinos como punto de partida en el proceso de producción de
conocimiento y en la comprensión crítica de la realidad, asociado al desvelamiento de las relaciones políticas y
culturales de dominación instituidas históricamente en este territorio. A partir de los estudios de Freire (1985,
2005), Boal (2005), Barbosa (2002) y Duarte Jr. (1981), destacamos las contribuciones de arte-educación en la
construcción de prácticas educativas emancipadoras que favorezcan, por un lado, la inmersión de los jóvenes en
el universo de la cultura y de las tradiciones locales, rearmando identidades y pertenecimientos, por otro, una
relectura crítica del mundo, evidenciando la riqueza de las experiencias y saberes producidos por los distintos
grupos sociales, así como, las contradicciones e injusticias sociales que permean históricamente esa región.
Palabras clave: Educación del Campo. Arte-Educación. Transformación Social.
Introdução
O debate sobre a educação do campo se intensificou no Brasil a partir dos anos
2000, com a mobilização dos movimentos sociais e de educadores e pesquisadores
comprometidos com uma proposta de educação associada à formação crítica dos
jovens. Contrapondo-se ao modelo de educação tradicional, descontextualizado e
acrítico, propõe-se uma educação que tenha a realidade socio-histórica e cultural
dos camponeses como ponto de partida na produção do conhecimento, associada à
compreensão crítica da realidade e ao desvelamento das relações políticas e cultu-
rais de dominação instituídas historicamente neste território, que limita o poder de
ação e transformação social desses sujeitos.
Se por um lado, há essa preocupação com a formação crítica dos camponeses
por meio da construção de conhecimentos que reafirmem seu protagonismo na luta
pela transformação social, superando o modelo excludente e injusto que imperou
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Arte e educação nas escolas do campo: do reconhecimento das tradições à releitura crítica do mundo
historicamente no campo, por outro, busca-se pensar numa escola que esteja em
sintonia com os anseios das comunidades, que reconheça os saberes e as práticas
culturais construídas pelos grupos sociais, refirmando suas identidades e perten-
cimentos.
Nessa perspectiva, os projetos de educação do campo precisam estabelecer um
diálogo com a cultura camponesa, refletindo sobre os elementos simbólicos que dão
significado à vida desses sujeitos, frutos de suas intervenções no mundo. A cultura
está associada às relações dialéticas que o ser humano estabelece com a realidade,
numa dinâmica de transformação de si e do mundo. Portanto, é parte desse pro-
cesso de produzir-se enquanto sujeito histórico na relação entre sujeito-mundo, por
meio das estratégias de intervenção na natureza para a produção de alternativas
sobrevivências.
Para Chauí (2000, p. 295), “[...] a cultura é a maneira pela qual os humanos se
humanizam por meio de práticas que criam a existência social, econômica, política,
religiosa, intelectual e artística”. Desse modo, um projeto de educação comprome-
tido com a formação humana, baseada no estudo e na reflexão sobre a vida dos
educandos, não pode deixar de estabelecer esse diálogo com o universo da cultura.
Por essa razão, o trabalho pedagógico desenvolvido nas escolas do campo deve
estabelecer um diálogo permanente com os elementos simbólicos e materiais que
compõem esse universo cultural, buscando, pela imersão, compreender o modo
como os sujeitos pensam este contexto e reelaboram suas estratégias de ação e de
relação com o mundo.
A articulação entre educação e cultura é condição essencial ao desenvolvimen-
to de uma educação do campo comprometida com a transformação social, associada
à inserção crítica das crianças e adolescentes na vida da comunidade. Uma educa-
ção que favoreça o desvelamento dos códigos simbólicos que dão sentido aos modos
de ser e pensar nesse território. Por meio desse processo, os educandos terão a
oportunidade de compreender-se e reconhecer-se enquanto membro de um grupo
social, reafirmando sua identidade, numa relação com os projetos de sociabilidade
construídos coletivamente neste contexto.
Com essa articulação entre educação e cultura, os jovens terão a capacidade
de problematizar os valores, crenças e modos de organização política que orientam
as práticas sociais no campo, construindo novas estratégias transformação social,
referenciadas em parâmetros ético-políticos, associados aos princípios da justiça,
solidariedade e sustentabilidade.
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Elmo de Souza Lima
Diante dessas reflexões, propomo-nos a discutir sobre a diversidade sociocul-
tural que permeia o território rural brasileiro, evidenciando a importância do En-
sino de Arte na construção de alternativas teórico-metodológicas voltadas à forma-
ção crítica dos camponeses, por meio da implementação de projetos educativos que
reconheçam e valorizem as experiências artísticas e culturais, construídos pelos
povos do campo numa articulação com suas práticas sociais.
O campo e suas diversidades étnicas e culturais
Numa análise das comunidades rurais brasileiras, observamos que, apesar
dos diversos problemas sociais e econômicos que ainda estão presentes nesse ter-
ritório, nos deparamos com uma grande diversidade cultural, negada e silenciada
historicamente, tanto no campo das políticas públicas, quanto pelas políticas edu-
cacionais, principalmente aquelas relacionadas com a construção do currículo das
escolas.
Os discursos difundidos acerca do campo evidenciam, na maioria das vezes, os
aspectos negativos relacionados à pobreza e ao subdesenvolvimento, negando suas
riquezas e potencialidades. Contrapondo-se a esses estereótipos, os movimentos
sociais vêm denunciando os descasos políticos com a população camponesa, desta-
cando as riquezas econômicas, políticas e culturais do campo, construídas a partir
da agricultura familiar, que são ignoradas e/ou invisibilizadas pelos discursos he-
gemônicos comprometidos com o modelo de desenvolvimento capitalista, pautado
no processo de industrialização e no agronegócio.
Diante desse contexto, os debates empreendidos em torno da educação do cam-
po estão voltados à construção estratégias políticas e pedagógicas que possibilitem
às crianças e os adolescentes a realização de novas leituras acerca da realidade do
campo, compreendendo-o como espaço de produção de vida, de relações sociais e
culturais.
Na visão dos movimentos sociais, o campo precisa ser compreendido como
esse espaço de diversidade cultural, política e econômica, em constante processo
de construção e reconstrução a partir da ação dos diferentes grupos sociais que
compõem o meio rural brasileiro. Caldart (2004, p. 153) alerta que:
O campo tem diferentes sujeitos. São pequenos agricultores, quilombolas, povos indígenas,
pescadores, camponeses, assentados, reassentados, ribeirinhos, povos da floresta, caipiras,
lavradores, roceiros, sem-terra, agregados, caboclos, meeiros, assalariados rurais e outros
grupos mais.
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Arte e educação nas escolas do campo: do reconhecimento das tradições à releitura crítica do mundo
Esses diferentes grupos sociais que constituem o mundo rural estabelecem
relações diversas com a terra e a produção da vida, utilizando-se de distintas estra-
tégias de organização política e social para o desenvolvimento de suas atividades
produtivas. Dentre esses grupos, prevalece em grande medida o uso coletivo da
terra por meio dos trabalhos familiares e/ou associativos,
[...] permeado por um regime de solidariedade que reflete uma prática diferenciada de uso
do solo agriculturável, na criação de animais, no tratamento da natureza, nas manifesta-
ções comunitárias, nas tradições religiosas, na arquitetura das casas, nas vestimentas, na
culinária, entre outras manifestações [...] (SIMÕES, 2009, p. 31).
Além disso, há também uma diversidade geoambiental que permeia o terri-
tório rural e reflete fortemente no modo como os camponeses se relacionam com o
meio ambiente, na organização das atividades produtivas e, consequentemente,
das relações sociais e culturais. Os modos como os sujeitos se organizam e pro-
duzem sua sobrevivência no sul do Brasil, são diferentes daqueles adotados no
nordeste e norte do país, influenciados principalmente pelas características am-
bientais, climáticas e das forças produtivas.
Os elementos socioambientais e as alternativas de produção da vida, a partir
das atividades econômicas, têm uma influência na forma como esses sujeitos orga-
nizam suas práticas culturais. De outro modo, temos ainda as influências políticas
e culturais oriundas do processo de colonização e da dominação política e econô-
mica que refletem na maneira como esses povos se organizam e imprimem suas
relações simbólicas com o mundo.
Diante desse contexto, observamos que as práticas culturais cultivadas na
relação dos sujeitos com o campo têm uma relevância na vida dos camponeses
uma vez que norteiam e alimentam seus projetos de vida e fortalecem as lutas em
defesa dos direitos, na construção dos sonhos e utopias. As celebrações construídas
nas comunidades rurais em torno da religiosidade, das festividades, nos rituais de
produção, nos mutirões, dentre outros, ampliam os laços de solidariedade, fraterni-
dade e união entre os grupos locais, bem como renovam as esperanças na luta pela
construção de um mundo melhor.
A partir das atividades cotidianas, os camponeses constroem relações diversas
com o mundo – permeadas pelas atividades do mundo do trabalho e por tradições
culturais – festas, rituais, recheados de cantorias, danças e celebrações que refor-
çam seus modos de viver, sentir e pensar no mundo. São tradições que dão sentido
às suas vidas e reafirmam suas identidades e práticas sociais. Desse modo, a arte
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e a cultura refletem as experiências e os sentimentos construídos pelos povos do
campo acerca do mundo e das vivências com este território.
Esse modo de pensar o campo em sua diversidade e especificidade traz outras
preocupações com relação à complexidade dos processos sociais, culturais e educa-
tivos instituídos nesse contexto, demandando projetos educativos abertos ao diálo-
go e à troca de experiências e conhecimentos com estes povos e suas organizações
sociais. Nesse caso, precisamos compreender que:
Os povos do campo têm uma raiz cultural própria, um jeito de viver e de trabalhar, distinta
do mundo urbano, e que inclui diferentes maneiras de ver e de se relacionar com o tempo, o
espaço, o meio ambiente, bem como de viver e de organizar a família, a comunidade, o tra-
balho e a educação. Nos processos que produzem sua existência vão também se produzindo
como seres humanos (ARROYO; CALDART; MOLINA, 2004, p. 16).
Com base nessa reflexão, os projetos educativos desenvolvidos nas escolas do
campo precisam criar estratégias pedagógicas que favoreçam o diálogo entre os
saberes diferentes e práticas, reconhecendo a importância das experiências dos
camponeses para a consolidação do processo de luta e construção de uma sociedade
democrática. Só teremos uma sociedade efetivamente democrática quando os vá-
rios grupos sociais forem reconhecidos enquanto produtores de saberes e culturas,
tiverem seus direitos sociais garantidos e suas práticas sociais reconhecidas e in-
corporadas no contexto das experiências pedagógicas das escolas.
As possibilidades de diálogos entre educação e cultura nas escolas do campo
Os primeiros movimentos em defesa de uma educação que respeite as diversi-
dades culturais no Brasil iniciaram no começo da década de 1960, com o desenvol-
vimento de projetos voltados à valorização e à defesa da cultura popular, instituí-
dos pelos Centros Populares de Cultura (CPCs), o Movimento de Educação de Base
(MEB) e pelo Movimento de Cultura Popular (MCP), inspirados nos ideais políticos
e filosóficos do pensamento freireano.
Na visão de Freire (2005), a valorização da cultura popular é o caminho para o
reconhecimento e a afirmação das pessoas enquanto sujeitos históricos e o diálogo
entre as diferentes culturas, constituindo-se numa estratégia para se ampliar a
visão e a compreensão desses sujeitos acerca do mundo e numa alternativa para a
emancipação das classes populares. Na perspectiva freireana,
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Arte e educação nas escolas do campo: do reconhecimento das tradições à releitura crítica do mundo
[...] a cultura não é só a manifestação artística e intelectual que se expressa no pensamento.
A cultura manifesta-se, sobretudo, nos gestos mais simples da vida cotidiana. Cultura é
comer de modo diferente, é dar a mão de modo diferente, é relacionar-se com o outro de
outro modo. A meu ver, a utilização destes três conceitos – cultura, diferenças, tolerância
– é um modo novo de usar velhos conceitos. Cultura para nós, gosto de frisar, são todas as
manifestações humanas, inclusive o cotidiano e é no cotidiano que se dá algo essencial: o
descobrimento da diferença (FAUNDEZ; FREIRE, 1985, p. 34).
Segundo Brandão (2002, p. 45), o projeto de educação popular, instituído a
partir do pensamento freireano e das práticas sociais e políticas dos movimentos
dos anos 1960, foi um marco na luta contra a educação colonizadora implementa-
da no Brasil, na medida em que reconheceu “na educação brasileira uma cultura
alienada, produtora de sucessivas estruturas sociais de dominação e tradutora de
sequentes esquemas simbólicos de valores, conhecimentos e princípios de relações
sob controle de grupos e classes dominantes […]”.
O diálogo proposto por Freire (1986), entre educação e cultura está associado
ao desenvolvimento de práticas educativas que sejam constituídas numa interação
constante com as práticas sociais, colocando-se enquanto espaço de trocas de expe-
riências e vivências de novos e velhos conhecimentos. Nessa direção, as experiên-
cias de educação precisam adentrar-se no universo sociocultural dos educandos,
reafirmando-se enquanto prática cultural. Isso porque, para o autor,
Todos os produtos que resultam da atividade do homem [e das mulheres], todo o conjunto
de suas obras, materiais ou espirituais, por serem produtos humanos que se desprendem
do homem [e das mulheres], voltam-se para ele [ela] e o [a] marcam, impondo-lhe formas
de ser e de se comportar também culturais. Sob este aspecto, evidentemente, a maneira de
andar, de falar, de cumprimentar, de se vestir, os gestos são culturais. Cultural também é
a visão que tem ou estão tendo os homens [e as mulheres] da sua própria cultura, da sua
realidade (FREIRE, 1986, p. 57).
Entendemos que a cultura está associada à existência humana, ao processo
de criação e recriação do mundo, implicado naquilo que dá sentido à vida dos su-
jeitos sociais. Nesse caso, discutir processos educativos implicados com as práticas
culturais dos sujeitos constitui-se numa condição essencial ao desenvolvimento
de processos educativos que, primeiro, tenham os sujeitos como protagonistas da
educação e da produção do conhecimento; segundo, que tenha a capacidade de
dialogar com os saberes e valores produzidos nesse contexto, possibilitando uma
maior apropriação dessa experiência enquanto conhecimento crítico do seu fazer/
agir no mundo, práxis social. Por fim, que assume o compromisso político de pro-
duzir conhecimento acerca da realidade como condição necessária ao processo de
transformação social.
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Para Freire (1996), é fundamental compreender a importância do diálogo en-
tre as diferentes culturas como forma de tornar as práticas formativas mais ricas
com relação à formação humana e crítica, associada à construção de alternativas
de democratização da sociedade. Entretanto, os educadores precisam compreender
que a construção dessas relações dialógicas entre os diferentes sujeitos nem sem-
pre ocorre de forma pacífica, pois, para Freire (1992, p. 156), esse diálogo:
[...] não se constitui na justaposição de culturas, muito menos no poder exacerbado de uma
sobre as outras, mas na liberdade conquistada, no direito assegurado de mover-se cada
cultura no respeito uma da outra, correndo risco livremente de ser diferente, sem medo de
ser diferente, de ser cada uma “para si”, somente como se faz possível crescerem juntas e
não experiência da tensão permanente, provocada pelo todo-poderosíssimo de uma sobre as
demais, proibidas de ser.
A construção dessas práticas formativas, fundadas no princípio da dialogici-
dade, exige que os educadores estejam preparados, tanto no campo ético-político,
quanto no teórico-metodológico, para mediarem os conflitos e os embates que sur-
girão desses diálogos interculturais, possibilitando não a unificação das culturas e,
muito menos, a negação de sua diversidade, mas a reafirmação de suas diferenças
e a compreensão da importância dessa diversidade para a constituição de uma ge-
ração que respeite os diferentes modos de ser/estar no/com o mundo, engajando-se
na defesa de uma sociedade pluricultural.
Diante desse contexto, o ensino de arte pode oportunizar aos jovens do campo
uma leitura crítica de seu contexto socio-histórico e cultural na medida em que se te
-
nham as condições para o reconhecimento e a problematização dos elementos simbó-
licos que compõem a cultura do campo e suas inter-relações como as práticas sociais.
Os trabalhos educativos desenvolvidos na perspectiva da arte e educação pre-
cisam evidenciar a riqueza e a importância dos elementos culturais para a for-
mação da população e no desenvolvimento sociocultural e político da comunida-
de, desmistificando os discursos hegemônicos, construídos a partir de narrativas
colonizadoras, que impõem ou silenciam as práticas culturais distintas daquelas
referenciadas no mundo “eurocêntrico” ou “norte-americano” (DUARTE Jr., 1981).
O ensino da arte como espaço de releitura crítica do mundo
Os processos educativos construídos por intermédio da arte devem desenvol-
ver no educando a sensibilidade para compreensão e captação dos sentidos e signi-
ficados atribuídos pelos diferentes grupos sociais às suas manifestações e tradições
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Arte e educação nas escolas do campo: do reconhecimento das tradições à releitura crítica do mundo
culturais, construídas historicamente na sua relação/interação com o mundo. Os
jovens precisam compreender que as tradições e as linguagens culturais são forma
de expressão de suas vivências, sentimentos e experiências coletivas, formas de
comunicação das suas experiências no mundo.
É fundamental que os profissionais da educação compreendam o papel es-
tratégico da arte e da cultura no desenvolvimento da visão crítica dos educandos
acerca da organização política, social e econômica da sociedade. Por meio das tra-
dições culturais e artísticas, os grupos humanos retratam seus modos de vida, de
produção e de significação e compreensão do mundo. Esse processo de compreensão
e valorização do universo simbólico que permeiam as tradições culturais é impor-
tante para a compreensão do modo como os diferentes grupos sociais se produzem
na relação no/com o mundo e como esses pensam, atuam e se vem no/com o mundo.
Os projetos de educação do campo comprometidos com a compreensão crítica
da realidade e a valorização/reconhecimentos das práticas sociais dos campone-
ses precisam mergulhar nesse universo artístico e cultural, possibilitando que os
educandos busquem, por meio das diferentes linguagens artísticas e culturais, des-
velar as formas de pensar-se no mundo destes sujeitos, extraído deste processo “o
pensar do próprio povo”, como conforme propõe Freire (2015), condição essencial
para o desenvolvimento de práticas educativas libertadoras.
Para Freire (2005), os processos de formação crítica precisam partir desse
trabalho rigoroso e ético voltado à compreensão do pensar do próprio povo, de des-
vendar seus modos de compreensão e significação do mundo e das suas relações
com o mundo e com os demais seres humanos. É por meio desse diálogo crítico
com o pensar do próprio povo que se constroem as estratégias de problematização,
visando à superação do conhecimento ingênuo, do pensamento acrítico, para uma
compreensão crítica do mundo, o desenvolvimento de uma consciência crítica do
mundo, condição fundamental para a emancipação.
Nessa perspectiva, os projetos de arte e educação devem contribuir na imersão
dos jovens no universo da cultura e das tradições locais, reforçando esse processo
de reprodução e transmissão de conhecimentos, valores e práticas sociais que rea-
firmam a identidade e o pertencimento do grupo. No entanto, precisam também
instigar questionamentos e problematizações acerca dessas práticas culturais,
evidenciando contradições e injustiças sociais presentes naquele contexto social
e político, favorecendo novas leituras do mundo e da atuação daqueles sujeitos no
processo de transformação daquela realidade.
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Dentro desse contexto, o ensino da Arte precisa fomentar nos educando uma
releitura da realidade, compreendendo como as diversas linguagens artísticas são
utilizadas pelos diferentes grupos sociais como de manifestar suas emoções, sen-
timentos, angustias e sonhos coletivos, bem como estratégia de ação política em
torno das lutas pela garantia dos direitos básicos necessários a uma vida digna no
campo.
Por essa razão, as estratégias pedagógicas utilizadas no ensino de arte na
educação do campo precisam instigar os educandos a mergulharem no universo
cultural e artístico das comunidades rurais como forma de compreender como os
diferentes grupos sociais utilizam as linguagens artísticas como meio de dar sen-
tido e significados às suas práticas sociais. Com esse trabalho, não significa que os
educadores irão negar aos educandos o direito de apreciar e conhecer o patrimônio
artístico e cultural construído historicamente pela humanidade.
Pelo contrário, o ensino de arte desenvolvido numa perspectiva crítica deve
criar estratégias teórico-metodológicas que garantam aos jovens a oportunidade
de estabelecer relações entre a arte produzida pelos povos do campo, no âmbito da
cultura popular, com aquelas construídas historicamente pelos diferentes grupos
sociais, possibilitando com isso uma leitura crítica do processo de transformação e
evolução da sociedade a partir dos trabalhos artísticos e culturais.
De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) da área de Ar-
tes, o conhecimento da arte abre perspectivas para que o educando tenha uma
maior compreensão da realidade sociocultural do Brasil, das diversidades cultu
-
rais e artísticas produzidas pelos vários grupos sociais que compõem o nosso país.
Nesse caso, o estudo da arte constitui-se numa oportunidade para que os jovens
tenham uma compreensão do contexto local, numa relação com os aspectos sociais,
artísticos, culturais e econômicos que constitui a sociedade brasileira (BRASIL,
1998, p. 20).
Ainda com base nos PCNs, o ensino de Arte tem o propósito de levar os edu-
candos a compreenderem a diversidade de valores que orienta, tanto seus modos
de pensar e agir, como dos diversos povos que compõe a sociedade, valorizando o
que lhe é próprio, bem como, favorecendo o entendimento da riqueza e diversidade
sociocultural brasileira (BRASIL, 1998). Com base nessa proposta, as práticas edu-
cativas voltadas ao trabalho com a arte-educação precisam instigar o olhar crítico
e criativo dos educandos, tornando-os:
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Arte e educação nas escolas do campo: do reconhecimento das tradições à releitura crítica do mundo
[...] capazes de perceber sua realidade cotidiana mais vivamente, reconhecendo e decodifi-
cando formas, sons, gestos, movimentos que estão à sua volta. O exercício de uma percepção
crítica das transformações que ocorrem na natureza e na cultura pode criar condições para
que os alunos percebam o seu comprometimento na manutenção de uma qualidade de vida
melhor (BRASIL, 1998, p. 19).
A partir dessa reflexão, o estudo da arte apresenta-se como um importante
instrumento de formação crítica e cidadã, na medida em que faz uma reflexão so-
bre a contribuição da arte para a compreensão da história da humanidade e das
lutas políticas instituídas pelos grupos sociais na implementação de estratégias de
desenvolvimento social, políticos e cultural.
Nesse trabalho com a arte na educação do campo, é importante que os edu-
cadores procurem construir com os educandos estratégias de mapeamento das
linguagens artísticas vivenciadas no campo, buscando evidenciar os potenciais ar-
tísticos e culturais da região, bem como criar uma compreensão mais ampla acer-
ca da diversidade e da especificidade das linguagens artísticas desenvolvidas nas
diferentes regiões do país, desconstruindo aquela visão hegemônica acerca da arte
associada somente ao modelo clássico europeu.
Os projetos educativos desenvolvidos na perspectiva da valorização da arte e
da cultura permitem que os diferentes grupos sociais possam reconhecer e reafir-
mar suas identidades, valorizando as tradições culturais e a própria história dos
povos do campo, na medida em que tem a oportunidade de compreender as rique-
zas e a importância daquelas tradições para a história e a trajetória de constituição
daquele grupo social.
Normalmente, são histórias e tradições imbuídas de valores, sentimentos, ex-
periências e modos de vidas que dão sentido aos processos políticos e organizativos
dos grupos, bem como com suas relações com o mundo do trabalho e das relações
sociais, consolidando práticas de relações sociais e políticas e modos de socialização
e sociabilidade, pautadas no respeito aos seres humanos e à natureza, na solida-
riedade e na cooperação entre os sujeitos. Por essa razão, é fundamental que os
educadores e educandos compreendam que:
[...] aprender arte envolve não apenas uma atividade de produção artística pelos alunos,
mas também compreender o que fazem e o que os outros fazem, pelo desenvolvimento da
percepção estética, no contato com o fenômeno artístico visto como objeto de cultura na
história humana e como conjunto de relações. É importante que os alunos compreendam
o sentido do fazer artístico, ou seja, entendam que suas experiências de desenhar, cantar,
dançar, filmar, videogravar ou dramatizar não são atividades que visam a distraí-los da “se-
riedade” das outras áreas. Sabe-se que, ao fazer e conhecer arte, o aluno percorre trajetos
de aprendizagem que propiciam conhecimentos específicos sobre sua relação com o mundo
(BRASIL, 1998, p. 43).
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Diante desse contexto, é fundamental que os educandos tenham a capacidade
de reconhecer a riqueza das atividades artísticas desenvolvidas pelos povos do cam
-
po como meio de comunicar-se com o mundo e de expressar sua percepção do mundo
por meio de pinturas, esculturas, gravuras, músicas, dentre outros objetos construí
-
dos para manifestar seus sentimentos, sua compreensão e sua relação com o mundo.
Mergulhar nesse universo artístico-cultural favorece tanto à apropriação das
técnicas utilizadas naquelas produções artísticas, quanto à compreensão daqueles
sujeitos nas suas relações sociais e políticas, considerando que as atividades ar-
tísticas estão imbuídas de sentimentos e manifestação de ideias e valores que os
sujeitos produzem acerca da sua vida. Por isso, compreender o universo artístico
produzido pela humanidade, requer esse olhar atento para os elementos sociais,
políticos e culturais que se configuram como pano de fundo para aquela obra ou
atividade artística (BARBOSA, 2002).
Os trabalhos artísticos buscam, em grande medida, expressar as questões
vividas pelos seres humanos nos diferentes tempos históricos. Desse modo, as
linguagens artísticas são utilizadas para dar eco às angústias do povo, ou seja,
buscam retratar “problemas sociais e políticos, de relações humanas, de sonhos,
medos, perguntas e inquietações”, bem como, buscam documentar “fatos históricos,
manifestações culturais particulares”. Por essa razão, um estudo crítico da arte
pode contribuir para uma releitura dessa realidade, “propiciando uma aprendiza-
gem alicerçada pelo testemunho vivo de seres humanos que transformaram tais
questões em produtos de arte” (BRASIL, 1998, p. 48).
Nesse contexto, Augusto Boal (2005, p. 48) destaca que o trabalho com a arte
e a cultura ultrapassa os limites estéticos e se apropria de outros espaços políti-
cos e sociais, constituindo-se numa estratégia de politização, de desvelamento da
opressão e injustiças sociais. Por meio da arte, os grupos sociais podem evidenciar
seus conflitos, desejos e angústias, oportunizando aos educadores e educando uma
compreensão mais ampla dos sentimentos que permeiam os modos de agir e pensar
dos sujeitos sociais.
O trabalho com a Arte no contexto da Educação do Campo se institui como um
importante instrumento de emancipação social, na medida em que favorece ao gru-
po a oportunidade de refletir sobre estes elementos sociais, políticos e econômicos
que permeiam suas atividades artísticas e culturais, ressignificando seus modos de
pensar e atuar no mundo (DUARTE Jr., 1981).
Nessa perspectiva, os projetos de arte e educação não podem limitar-se à
construção de coreografias, de peças teatrais, de músicas folclóricas, de desenhos
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Arte e educação nas escolas do campo: do reconhecimento das tradições à releitura crítica do mundo
e pinturas. Os educadores precisam compreender que as manifestações artístico-
-culturais são construções históricas, portanto, estabelecem uma intrínseca rela-
ção com as lutas políticas e sociais dos grupos sociais, podendo retratar elementos
significativos da história da humanidade. Nesse caso, a “Arte não é somente a
Música, a Dança, o Cinema, enfim, as artes ditas oficiais, mas são todas as formas
de expressão dos sentimentos e emoções concretos do ser humano” (QUEIROZ;
NASCIMENTO, 2012, p. 03).
Na visão de Freire (2005), o processo de segregação e/ou negação da cultura
popular, em detrimento da valorização de determinados padrões culturais ditos
“universais”, constituiu-se numa estratégia de dominação política e cultural dos
grupos populares, principalmente, os trabalhadores do campo. Diante desse con-
texto, os projetos educativos desenvolvidos com o intuito de valorizar as experiên-
cias políticas e culturais dos povos do campo, bem como, seus conhecimentos e va-
lores, constitui-se numa importante estratégia de emancipação e libertação destes
grupos sociais historicamente excluídos.
Considerações nais
Os projetos de educação do campo trazem como princípio básico a formação
crítica e a emancipação dos camponeses. Nesse contexto, o ensino de arte pode
potencializar esses projetos educativos desenvolvidos nas escolas do campo, na me-
dida em que, possibilita o reconhecimento e a valorização da cultura e da história
desses grupos sociais, reafirmando suas identidades e práticas socioculturais. Es-
sas experiências podem também ampliar as estratégias de emancipação através do
processo de problematização acerca dos valores, crenças e ideologias presentes nas
atividades artísticas e culturais, favorecendo uma compreensão crítica dos aspec-
tos sócio-histórico daquele contexto.
Com base nas reflexões tecidas neste trabalho, compreendemos as experiên-
cias de arte educação oferecem aos educandos um conjunto de oportunidade para
o desenvolvimento de conhecimentos técnicos e estéticos, associados ao processo
de compreensão crítica do mundo. Além disso, esse trabalho de imersão crítica no
contexto socio-histórico e cultural da comunidade, por meio da arte e da cultura,
favorece o desenvolvimento da autonomia e criticidade frente às questões sociais
presentes no contexto no qual está inserido, reafirmando o papel estratégico da
arte na formação crítica dos sujeitos, bem como, enquanto instrumento de trans-
formação social.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Acreditamos que esse processo de reflexão crítica sobre a cultura do campo
possibilita que educadores e educandos redescubram novos valores e novas formas
de ver e interpretar o mundo, a partir de ângulo e contextos diferenciados daqueles
vistos anteriormente, com base num padrão político e cultural “eurocêntrico”, asso-
ciado à lógica colonizadora. Nesse caso, o ensino de arte pode trazer referenciais de
análise da realidade e dos processos históricos e culturais construídos e vivencia-
dos pelos diferentes grupos sociais, ampliando as possibilidades de interpretações
de suas práticas sociais e suas experiências artísticas.
Entretanto, esse trabalho de construção de práticas educativas capazes de
dialogar com essa diversidade sociocultural que permeiam a realidade do meio
rural brasileiro passa, prioritariamente, pelo desenvolvimento de novos processos
de formação docente voltados para a formação crítica dos educadores com o intuito
de possibilitar a (re)significação dos valores e saberes internalizados por meio das
experiências socioculturais, da formação escolar e profissionais que, muitas vezes,
as impedem de compreender o trabalho com a diversidade como uma oportunidade
para se reconhecer e afirmar as diferenças como um caminho para a construção de
uma educação democrática.
Referências
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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ESPAÇO
PEDAGÓGICO
DIÁLOGO COM
EDUCADORES
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Diálogo com educadores
Diálogo com educadores
Francesco Tonucci
Diálogo com Rosana Coronetti Farenzena
Francesco Tonucci è una delle voci mondiali più attive e influenti quanto
alla partecipazione dei bambini all’ecosistema urbano. Nato in Italia nel 1940, ha
lavorato come insegnante nella decade del 1960, e poi ha fatto il commissario di
pubblica sicurezza all’Istituto nazionale di psicologia del Consiglio Nazionale delle
Ricerche (CNR) d’Italia. I suoi disegni su contesti educativi contraddittoriamen-
te ostili all’infanzia erano diversi dal fatto che portavano sempre la prospettiva
dei bambini e cominciarono ad essere pubblicati su riviste pedagogiche italiane
dal 1968. Le sue satire grafiche, firmate dallo pseudonimo Frato, si sono eternate
come potenti attivatori di riflessione e pubblicate in numerose edizioni nei diversi
continenti. In Brasile spiccano due titoli: “Com Olhos de Criança” (“Con gli occhi
del bambino”), e “A Solidão da Criança” (“La solitudine del bambino”). Noto per
il progetto internazionale “Cidade das Crianças” (“Città dei bambini”), lanciato
nel 1991, il cui obiettivo è trasformare le città in base sulla vita e sui bisogni dei
bambini, ha proposto come alternativa al degrado urbano la trasformazione delle
città a partire dagli occhi dei bambini che ci abitano. L’essenza di questa iniziativa
sostiene che uno dei compiti centrali delle politiche pubbliche sia quello di garanti-
re ai bambini il diritto di giocare. Oggigiorno centinaia di città sono impegnate in
questo progetto. Altre sue opere pubblicate in portoghese sono “Criança se Nasce”;
“A Cidade das Crianças – Uma Nova Forma de Pensar a Cidade”; “Quando as
Crianças Dizem: Agora Chega!”; “40 Anos Com Olhos de Criança”; “Seja bem-vin-
do! Cartas a Uma Criança Que Vai Nascer” – in collaborazione con Maria Novo. Ha
scritto numerose opere pubblicate in italiano e spagnolo, come per esempio “Peri-
colo, bambini: appunti sull’istruzione”; “A come elefante - Alfabetiere per bambini
che non vogliono imparare a scrivere”; “Un sorso dopo l’altro - Disegni e pensieri
per tuffarsi nel mondo dell’acqua”; “Manuale di guerriglia urbana - Per bambine e
bambini che vogliono conoscere e difendere i loro diritti”; “La scuola come ricerca”;
“I materiali - la creta, il colore, il legno nel nido, nella scuola dell’infanzia ed ele-
mentare, in casa”; “Il consiglio dei bambini” ecc. Conferenziere richiesto a livello
Recebido em 14/01/2020 – Aprovado em 21/02/2020
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i2.11444
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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internazionale, si è distinto per numerosi premi, tra i quali “Laurea Honoris Cau-
sa” da università europee e latine come riconoscimento dei contributi nel campo
dell’istruzione e della difesa dei bambini.
Intervista concessa a Rosana Coronetti Farenzena, Dottoressa in Studi del
Bambino all’Università di Minho, in Portogallo, e professoressa della Facoltà di
Scienze dell’educazione all’Università di Passo Fundo.
Sig. Tonucci, Lei è un’autorità mondiale nella difesa dei bambini. Il Suo
percorso, costruito su proposizioni originali, rivela una vitalità ammirabile. I
Suoi disegni firmati come Frato, da decadi provocano dell’autoriflessione ai lettori
dappertutto, sempre con della forza possibile a pochi testi scritti. Sono tante le
Sue iniziative: quella che si è diffusa come un progetto internazionale della città
dei bambini; le ricerche, le conferenze; i libri, insomma, tutta la Sua produzione è
ispiratrice e potente. Riprendendo l’iconico “Con gli occhi del bambino”, ha l’idea di
come conserva splendente questi occhi da bambini, che gli permettono la sensibilità
interpretativa e di dialogo dispari, cioè, la capacità di realizzare il desiderio della
coerenza nell’atteggiamento con i bambini, soggetti attivi e lucidi, bisognosi di
un’appartenenza libera, creativa e trasformatrice nel mondo?
All’inizio del suo libro “Il Piccolo Principe” Antoine de Saint-Exupéry scrive:
“Tutti i grandi sono stati bambini una volta. (Ma pochi di essi se ne ricordano).”
Il primo suggerimento per non tradire le aspettative e le esigenze dei bambini
che incontreremo nella nostra vita tanto come genitori, come insegnanti o
semplicemente come adulti è non dimenticarci della nostra infanzia. Ricordare
cosa ci faceva felici e cosa ci faceva soffrire per fare rendere felici e non far soffrire
i nostri bambini. Il secondo suggerimento è ascoltare i bambini. Quando noi ci
dimenticheremo della nostra infanzia, e questo è molto probabile e frequente, se
sapremo ascoltare i bambini, loro ce lo ricorderanno.
Non ce n’è nessun’esagerazione quando si parla della diffusione, fra i continenti,
delle Sue idee e della Sua opera, non essendo possibile citarne questioni come i diritti
dei bambini, la qualità della scuola materna ed elementare e tutti gli altri contesti
inerenti ai bambini senza ricordare il Suo nome. A cosa attribuisce la potenza e la
solidità del messaggio della Sua opera?
Non lo so, me lo domando spesso anche io e spero che qualcuno un giorno
sappia spiegarmelo. Non credo che questa mia confessione sia un atto di falsa
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modestia, ma un sincero stupore. Ho sempre pensato di dire cose di senso comune,
di non aver inventato niente né sull’educazione né sul rapporto con i bambini. Ho
avuto la fortuna di conoscere bravi maestri e ho divulgato le loro esperienze. Ho
cercato di non dimenticare la mia infanzia e di ascoltare le bambine e i bambini e
ho cercato di difendere le loro esigenze e le loro richieste. Proporre che gli adulti
debbono amare i bambini e rispettare le loro opinioni mi sembra che debba essere
considerato senso comune; così come affermare che l’educazione tanto familiare che
scolastica debba avere come obiettivo la felicità dei figli e degli allievi. Denunciare
quando questo non avviene è ancora una conseguenza ovvia e di senso comune. Che
affermazioni di senso comune vengano tanto apprezzate e premiate sinceramente
mi mette a disagio e mi mette anche un po’ di paura. Significa che il buon senso
comune si è perduto.
A quale tappa della Sua vita si è reso conto della consapevolezza di una società
centrata sull’adulto, con pratiche naturalizzate di padronanza intergenerazionale
sull’infanzia, e ha preso l’impegno etico di trasformare la negatività incollata a
coloro che “non sanno, non possono, non devono, non sono preparati/emancipati...”?
Nel 1991, quando il Comune di Fano, mia città natale, mi chiese di assumere
la direzione scientifica del progetto “La città dei bambini” il primo obiettivo che
proposi al sindaco di raggiungere fu che i bambini potessero di nuovo uscire di
casa senza essere accompagnati da adulti. Una esperienza che fino a pochi decenni
prima era assolutamente normale per tutte le bambine e i bambini era diventata
impossibile. I genitori avevano paura della città, i bambini non potevano più vivere
adeguatamente la loro esperienza più importante: il gioco. La città aveva scelto
l’adulto, maschio, lavoratore e si era dimenticata di chi non era adulto, maschio e
lavoratore. Si era dimenticata della maggioranza dei suoi cittadini e aveva accettato
di diventare la città delle auto (il giocattolo preferito di quel cittadino privilegiato)
invece che della persone. Da qui la proposta di cambiamento che il nostro progetto
presenta ai sindaci: cambiare il parametro, dall’adulto al bambino, nella certezza
che una città adatta ai bambini sarà migliore per tutti.
Fra le Sue opere, ce n’è qualcuna che abbia un senso speciale per Lei?
Difficile e ingiusto per un padre scegliere fra i suoi figli. Mi sono sempre
rifiutato non solo di dire ma anche di pensare se preferisco uno dei miei tre figli e
se ci penso sono sicuro che non c’è. Ogni libro e ogni vignetta ha una sua storia e
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nel momento che l’ho scritto o l’ho disegnata era per me una cosa importante. Poi
evidentemente alcuni libri e alcune vignette hanno avuto un peso più importante e
hanno creato un dibattito o un seguito più rilevante di altri. Ma non sempre il loro
successo corrispondeva al mio interesse per loro. Insomma anche i libri e i disegni
si comportano come i figli, hanno una loro vita, spesso diversa da quella desiderata
dai genitori e dagli autori.
Quale feedkback riceve dai lettori dei Suoi libri? Basicamente sono studenti
che devono conseguire l’abilitazione all’insegnamento? Insegnanti? I bambini Le
hanno già detto qualcosa su questo argomento?
I miei libri hanno avuto una notevole diffusione, specialmente nei paesi di
lingua spagnola e sono entrati sia nel circuito educativo formale sia in quello
familiare, ma anche in quello amministrativo delle città e tecnico dell’urbanistica
o della pediatria. Mi è capitato di ascoltare persone che mi dicevano che dopo aver
letto un libro avevano deciso di diventare insegnanti o di avere un figlio. Queste
testimonianza mi mettevano paura e mi caricavano di una responsabilità e di
meriti che non credo di avere. Ho spesso avuto anche testimonianze di genitori
che mi raccontano che i loro bambini passano lunghi tempi a sfogliare i libri delle
mie vignette quando non sanno ancora leggere. Questi racconti mi emozionano e
mi fanno pensare che i bambini, anche di fronte a disegni così essenziali, in bianco
e nero, e poco comprensibili, sentono nei miei confronti qualcosa che assomiglia
alla complicità e questo mi piace molto. I bambini mi dicono molto, sempre;
direttamente quando parlo con loro o indirettamente attraverso i racconti dei loro
genitori e insegnanti. Spesso le mie vignette nascono dalle parole vere dei bambini.
La solidità democratica di un individuo, di una scuola, di una comunità e
di una società si rivela nei rapporti che abbiamo con i bambini, come ci rendiamo
conto di garantire o meno il loro diritto alla partecipazione?
La partecipazione di tutti, adulti o bambini, è garantita dall’ascolto. Una
persona partecipa se è ascoltata ed è ascoltata se chi ha potere è in grado di
ascoltare, interessato ad ascoltare e disposto a tiene conto di quello che gli viene
detto. Nel caso degli adulti tutto questo si capisce facilmente perché l’adulto che
ha potere comprende facilmente quello che gli dicono i suoi colleghi adulti e sa
che, se terrà conto delle loro richieste, il suo potere potrà aumentare. perché
considerandosi ascoltati e soddisfatti e gli garantiranno il loro consenso elettorale.
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Ma con i bambini non funziona così. Prima di tutto i bambini non votano e quindi
perdono questa arma nei confronti che chi ha potere. In secondo luogo i bambini
non hanno fiducia nelle loro idee perché sanno che gli adulti si aspettano da loro
che le abbandonino il più presto possibile per giungere ad atteggiamenti e modi di
pensare adulti. Quindi, la reale partecipazione dei bambini avverrà solo se chi ha
potere, nel nostro caso il sindaco, il direttore della scuola, il primario dell’ospedale,
sentiranno la necessità e l’urgenza di conoscere il parere, il punto di vista dei
bambini perché ne hanno bisogno per rendere la città, la scuola, l’ospedale migliori,
adeguati alle esigenze di tutti, a partire dai bambini.
Considerando la propria condizione umana, poiché furono anche loro bambini,
gli adulti avrebbero a loro disposizione risorse interne per non stabilire o non
ripetere interazioni di padronanza, dispettose e abusive con figli, studenti e altri
bambini. Dall’organizzazione di scuole e classi, per esempio, che non fa attenzione
all’espressività corporale, alla mobilità necessaria alla scoperta del mondo, o
ancora l’imposizione di troppi compiti che prendono un bel tempo da apprendimenti
importanti. Questa incoerenza che allontana i bambini dalla loro partecipazione in
città, che mette la vita dei bambini e gli ambienti naturali in lati oposti, potrebbe
essere affrontata e superata o siamo condannati a essa?
Ho già citato la frase di Saint-Exupéry e credo che sia veramente una specie
di maledizione della condizione di adulti: dimenticarsi della propria infanzia e
ripetere con i nostri bambini figli, alunni, vicini di casa, pazienti ecc. tutto quello
che da bambini non abbiamo capito, non abbiamo condiviso e ci ha fatto soffrire:
mangiare quello che non piace, giocare meno del necessario, essere sempre vigilati e
accompagnati, passare ore del pomeriggio a fare i compiti di scuola invece di giocare.
E molto altro. E di fronte a tutto quello che non capivamo e non condividevamo la
frase risolutiva: “Quando sarai grande capirai”. E forse era proprio vero perché da
gradi si fa esattamente come i grandi facevano quando noi eravamo piccoli.
Ci sono tante prove del fatto che l’attuale sistema di istruzione per bambini
non risponde ai loro bisogni di partecipazione, non riconosce e non considera le loro
caratteristiche e capacità, non garantisce ambienti inclusivi in cui tutti possono
crescere, imparare, giocare e consolidarsi pienamente. Anche questo coinvolgerebbe
una scuola che non teme la diversità. Nel caso del Brasile, e non solo, abbiamo
bambini che dai primi anni di vita restano fino a 11 ore al giorno in queste istituzioni.
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Grande parte o la maggior parte della loro infanzia è vissuta in questi spazi con
programmi e routine coordinati da persone ritenute specialiste dei bambini. Quali
principi ritiene fondamentali affinché le scuole siano davvero posti di esperienza
istruttiva, fortemente umanizzate e di applicazione dei diritti dei bambini a tutti
quanti?
Oggi la scuola dei nostri paesi è una offerta educativa la cui frequenza
è obbligatoria perché ritenuta un diritto dei bambini e una esigenza per le
nostre società. Ha una sua precisa proposta definita nelle leggi dello stato e nei
programmi ministeriali. Compito degli insegnanti è proporre quei contenuti nella
forma migliore possibile e compito degli alunni impegnarsi per apprenderli. La
scuola infine valuta se l’impegno degli allievi è stato sufficiente per raggiungere i
livelli indicati e a seconda del risultato di questa valutazione promuove o boccia.
Sembra tutto normale. Così è stato per me più di settanta anni fa, così per i mei
figli e così per i miei nipoti. Bene, tutto questo è illegale. Non solo scientificamente
sbagliato, pedagogicamente scorretto e comunque assolutamente inefficace e
perfino controproducente, ma illegale. La legge brasiliana come quella italiana,
spagnola o argentina e di tutti i paesi del mondo dice che l’educazione familiare e
scolastica ha un obiettivo completamente diverso e in qualche modo opposto a quello
indicato. Infatti l’articolo 29 della Convenzione dei diritti dell’Infanzia approvata
dalle Nazioni Unite bel 1989 e ratificata da tutti i nostri paesi recita: “Gli Stati
parti convengono che l’educazione del bambino deve avere come finalità: a) favorire
lo sviluppo della personalità del bambino nonché lo sviluppo delle sue facoltà e
delle sue attitudini mentali e fisiche, in tutta la loro potenzialità”. Non quindi
proporre un proprio programma che gli allievi debbono imparare, ma fare in modo
che ciascuno degli allievi (e dei figli) possa scoprire le proprie facoltà, attitudini,
vocazioni, e svilupparle in tutta la loro potenzialità. Se questo non succede la colpa
sarà delle scuola e non degli alunni. Altrimenti la scuola, come diceva don Milani,
rischia di essere come un ospedale che cura i sani e rifiuta i malati. Vale la pena
notare che quanto scritto in un trattato internazionale come la Convenzione ha un
valore giuridico superiore alla legislazione ordinaria e ovviamente ai programmi e
regolamenti.
Qui in Brasile c’è un’innovazione importante davanti alla meta di formazione
professionale specifica di docenti per l’istruzione, tuttavia, alla facoltà di Pedagogia
c’è un fattore nuovo: la crescita grandissima di corsi di laurea a distanza. Questa
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flessibilità formativa può essere interpretata in diversi modi ed è imposta in un contesto
di reinvenzione dei corsi in classe, consapevoli in misure maggiori o minori della sfida
di presentare risposte e pratiche curricolari adatte ai contributi portati dagli studi
dell’infanzia. Che cos’è indispensabile alla formazione degli insegnanti dell’infanzia?
Quali sono i valori irrinunciabili ai progetti pedagogici dei corsi di Pedagogia?
I nostri paesi pensano che per cambiare le pratiche scorrette o inadeguate sia
sufficiente cambiare le leggi. In Italia quasi tutti i governi hanno ritenuto necessario
o opportuno varare riforme del sistema educativo cambiando la struttura, le
discipline, i sistemi di valutazione. Nei più di cinquanta anni che seguo la nostra
scuola è cambiato tutto parecchie volte a livello legislativo, ma la scuola è rimasta
sostanzialmente la stessa. Quella che oggi frequenta la mia nipotina assomiglia
terribilmente alla mia. Gli unici che possono cambiare la scuola sono gli insegnanti.
Per cambiare la scuola bisogna formare buoni insegnanti e considerare che prima
di tutto il diritto allo studio, assicurato dagli articoli 28 e 29 della Convenzione è il
diritto per ogni bambina e per ogni bambino ad avere un buon insegnante.
Qui ovviamente si apre un capitolo che richiederebbe uno spazio che non
abbiamo: come si formano buoni insegnanti? Mi limito a tre note che potrebbero
essere tre capitoli per successivi chiarimenti. 1. Non tutti possono essere insegnanti,
bisogna saperli selezionare. 2. La loro formazione deve essere coerente con il
modello educativo che pensiamo debbano realizzare (non può continuare ad essere
di tipo accademico con insegnanti in cattedra ed esami di verifica). 3 La professione
docente deve essere socialmente ed economicamente rivalutata come una delle più
importanti per un paese democratico.
Temo che per ottenere questi risultati dei corsi a distanza non siano la
soluzione migliore.
Non è raro che scuole materne adottino un concetto ristretto di ricerca: la
raccolta di informazioni da presentare all’insegnante con l’obiettivo di ottenere del
voto. Il senso di un rapporto appassionato della conoscenza – di portare avanti
un processo di indagine e di condivisione del processo come fattore di promozione
della cultura scolastica – non raramente è secondario, quando non viene anche
ignorato totalmente. Questa cultura scolastica può essere cambiata per migliorare
il rapporto organico con una cultura scientifica fin dall’infanzia?
Non solo fin dall’infanzia ma specialmente nell’infanzia! Dal secolo scorso i
nostri grandi maestri da Freud a Piaget a Bruner ci hanno aiutato a capire che
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gli anni più importanti della vita sono i primi e le neuro scienze moderne lo hanno
confermato. Per questo deve essere chiaro che le cose più importanti non verranno
dopo, ma sono avvenute prima. La massima attenzione, il massimo investimento
culturale e sociale deve essere effettuato nella scuola dell’infanzia e primaria.
Considerando il Suo profondo legame e conoscenza del sistema di istruzione
italiano, quali sono i meriti che riconosce per la scuola pubblica italiana dell’infanzia?
Nel 1991 la scuola dell’Infanzia “Diana” di Reggio Emilia è stata considerata
dalla rivista americana Newsweek la migliore del mondo. Era questo un importante
riconoscimento del grande lavoro fatto dal Comune di Reggio Emilia per le sue
scuole infantili e dal suo direttore Loris Malaguzzi che ho avuto la fortuna di avere
come grande amico e del quale nel 2020 ricorderemo i 100 anni della nascita. I
suoi meriti principali sono stati quelli di liberare l’educazione infantile dalle
strettoie della cura e della protezione, allora ancora molto presente nelle strutture
sostanzialmente assistenziali e custodialistiche della prima infanzia, tutte volte
a preparare i bambini ai primi importanti apprendimenti che sarebbero iniziati
con l’inizio della scuola primaria e gli apprendimenti della lettura e scrittura.
Malaguzzi, più ancora che Montessori, dà una grande importanza ai diversi
linguaggi dei bambini perché ciascuno possa trovare e sviluppare il suo. Perché
non succeda, come dice una sua bella poesia che il bambino ha cento lingue, ma
gliene rubano novantanove!
Lei crede che abbiamo potenziale per trasformare la scuola per pochi in una
scuola per tutti, in un paese con una disuguaglianza sociale brutale come in Brasile?
Questo è l’obiettivo della scuola, altrimenti non è scuola. In un paese di
ingiustizie la scuola deve educare alla giustizia; in un paese di violenze deve
educare alla solidarietà, alla non violenza; in un paese di abusi ambientali deve
educare al rispetto e alla cura dell’ambiente. Lo dice ancora chiaramente la legge,
lo stesso articolo 29 della Convenzione dopo il punto a) che abbiamo commentato
sopra continua dicendo:
b) sviluppare nel bambino il rispetto dei diritti dell’uomo e delle libertà fonda-
mentali e dei principi consacrati nella Carta delle Nazioni Unite;
c) sviluppare nel fanciullo il rispetto dei suoi genitori, della sua identità, della
sua lingua e dei suoi valori culturali, nonché il rispetto dei valori nazionali
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del paese nel quale vive, del paese di cui può essere originario e delle civiltà
diverse dalla sua;
d) preparare il fanciullo ad assumere le responsabilità della vita in una società
libera, in uno spirito di comprensione, di pace, di tolleranza, di uguaglianza
tra i sessi e di amicizia tra tutti i popoli e gruppi etnici, nazionali e religiosi
e delle persone di origine autoctona;
e) sviluppare nel fanciullo il rispetto dell’ambiente naturale.
Lei, Sig. Tonucci, ha l’idea della grandezza della Sua opera tra gli insegnanti
brasiliani, e fra gli studenti della facoltà di Pedagogia? Se invitato a lasciare un
messaggio a questo pubblico, che raggiunge milioni, quale sarebbe?
Sinceramente non conosco questo aspetto. Sono venuto in Brasile poche
volte e sempre per tempi troppo brevi e per partecipare a congressi. Spero nel
prossimo viaggio di poter avere un incontro più diretto e personale sia con il mondo
dell’educazione che con il mondo politico delle città.
Per concludere e con molta gratitudine per questo momento di attenzione a
questa edizione della Rivista Spazio Pedagogico, che verrà letta da migliaia di
brasiliani, cosa possono sperare i bambini dagli adulti? C’è speranza di convivenza
democratica nella sua essenza?
Che il loro amore si manifesti più nel rispetto, nell’ascolto, che nel consumo.
Nella società di oggi sembra che tutto si possa comprare e pagare. Se stiamo poco
con i nostri figli possiamo farci perdonale regalando loro oggetti costosi. Ma quello
di cui i bambini e le bambine hanno bisogno dai loro genitori, dai loro insegnanti
e dai loro sindaci, sono cose che costano poco o non costano nulla e sono frutto di
affetto e di fiducia. Hanno bisogno che i genitori sappiano capire le loro esigenze
e che li aiutino a trovare la loro strada nella vita. Che abbiano fiducia nelle loro
capacità e li lascino uscire di casa per giocare con i loro amici piuttosto che iscriverli
a tanti corsi pomeridiani che costano soldi e servono poco. Hanno bisogno che i loro
insegnanti li aiutino a sviluppare le loro vocazioni, ad usare i loro linguaggi preferiti
per trovare e sviluppare la loro vocazione. Che lascino loro liberi i pomeriggi, i
fine settimana e le vacanze senza compiti per casa, per esercitare il loro diritto al
gioco garantito dall’articolo 31 della Convenzione. Hanno bisogno che i loro sindaci
restituiscano loro lo spazio pubblico che oggi viene regalato quasi completamente
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alle auto, perché quello è lo spazio giusto per i loro giochi. Le città potrebbero
risparmiare i soldi necessari per attrezzare gli spazi di gioco per lasciare che siano
i bambini stessi a decidere quando, dove e come giocare (essendo un loro diritto).
I bambini vogliono sperare che quando gli adulti prendono un impegno
lo ricordino e lo assolvano. Sono trenta anni che aspettano che si rispettino gli
impegni presi con la Convenzione dei diritti dell’Infanzia!
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PEDAGÓGICO
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Andréia Mendiola Marcon
Imaginação e criação na infância
Andréia Mendiola Marcon
*
Imaginação e criação na infância é uma obra bastante relevante relacionada
aos estudos da aprendizagem. Embasado por Vigotski (1896-1934), um dos maiores
estudiosos nessa área, este livro foi publicado pela primeira vez na União Soviética
em 1930, foi traduzido para o Português no Brasil em 2009 pela extinta editora Áti-
ca e publicado novamente em 2018 pela editora Expressão Popular, com a tradução
de Zoia Prestes e Elizabeth Tunes.
A obra começa com um prefácio escrito pelas tradutoras, no qual elas expres-
sam a necessidade de publicar novamente as ideias geniais desse que foi um dos
maiores responsáveis pelos estudos da aprendizagem como campo de ciência. As
tradutoras apresentam a preocupação referente à tradução da obra publicada no
Brasil em 2009 e justificam essa apreensão em razão de que em sua percepção, essa
edição, em diferentes aspectos, apresenta divergências no que refere à tradução de
alguns termos e palavras utilizados por Vigotski, a exemplo do que ocorre também
na versão traduzida dessa mesma obra para outros idiomas, como por exemplo o
inglês, o espanhol e o italiano.
Sobre essa divergência as tradutoras explicam que, de modo geral, as obras
de Vigotski traduzidas para diferentes línguas são constantemente marcadas por
interferências de ideias e conceitos equivocados, que deturpam o seu pensamento.
Isso faz com que se apresentem traduções de termos modificados e, por muitas
vezes – ou quase sempre –, compostas por normas técnicas de redação que determi-
nam o que pode ser usado ou não em uma língua sem considerar o estilo linguístico
do autor e o contexto histórico-cultural de sua época. Exemplo disso é o caso da
tradução do livro ora apreciado: Imaginação e criação na infância.
Por essa razão, a edição de 2018 apresenta uma criteriosa tradução e revisão
técnica feita por Zoia Prestes e Elizabeth Tunes. A obra objetiva compartilhar com
*
Doutoranda em Educação pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Professora efetiva no Instituto Federal de Educação,
Ciências e Tecnologia campus Sertão/RS. Participa do Grupo de Estudo e Pesquisa em Alfabetização (Gepalfa). Brasil.
E-mail: mendiolamarcon@gmail.com . Agradeço ao Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do
Sul, Câmpus Sertão, pelo incentivo aos estudos no doutorado em Educação pela Universidade de Passo Fundo/UPF/RS.
Recebido em 08/02/2020 – Aprovado em 09/04/2020
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i2.11445
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Imaginação e criação na infância
a família, a escola e a sociedade uma nova oportunidade de leitura sobre essa temá-
tica fantástica, considerando assim o modo singular e especial de Vigotski.
Os temas e conceitos abordados por esse livro dizem respeito aos vários anos
de investigação realizada por Vigotski a respeito da imaginação e da criação como
elementos essenciais para a construção do conhecimento científico, artístico e cul-
tural pelo sujeito. O pensador e psicólogo apresenta, de forma muito clara, uma
analogia sobre os conceitos de imaginação e de criação e fala sobre como esses
elementos se desenvolvem como resultado da recuperação e da reelaboração das
experiências de vida da criança.
No desenrolar da obra, encontra-se um conjunto de reflexões sobre o modo
pelo qual a criança experiencia as situações e os acontecimentos ao seu redor. Nela,
encontram-se oito capítulos que trazem argumentos teóricos do autor com relação
à imaginação criadoura, sendo esses capítulos compostos pelos seguintes temas:
a) criação e imaginação, b) imaginação e realidade, c) o mecanismo da imaginação
criativa, d) a imaginação da criança e do adolescente, e) os suplícios da criação, f)
a criação literária na idade escolar, g) a criação teatral na idade escolar, h) o dese-
nhar na infância.
No primeiro capítulo do livro, intitulado “criação e imaginação”, Vigotski
(2018, p. 13) conceitua a “atividade criadora do homem” como “aquela em que se
cria algo novo”. Para reforçar esse argumento, o autor explica que há dois tipos de
atividades realizadas pelo homem denominadas de reconstituidor ou reprodutivo e
que estão inteiramente ligadas à memória. Para o autor, isso significa compreender
que a memória refere-se à capacidade do sujeito de desenvolver atividades como,
por exemplo, assimilar, mudar ou adaptar, entre outras, frente a novas experiên-
cias cotidianas da vida do sujeito.
No segundo capítulo, “imaginação e realidade”, Vigotski esclarece que, para
compreender o mecanismo da imaginação e da atividade de criação, é importante
entender a relação entre a fantasia e a realidade no comportamento humano. Para
explicar tal relação, o autor apresenta quatro aspectos essenciais que podem aju-
dar nesse entendimento. O primeiro aspecto refere-se às construções fantasiosas,
como, por exemplo, os contos, as fábulas, as lendas e os mitos, sendo esses entendi-
dos como algo distante da realidade, porém, são frutos das experiências de vida hu-
mana e que, por algum motivo, sofrem uma reelaboração da imaginação, tomando
como combinações os traços fantasiosos. No segundo aspecto, Vigotski ressalta que
a própria experiência se apóia na imaginação para criar novas representações que
se desenvolvem na relação entre as ideias já formuladas e a experiência do outro.
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O terceiro aspecto trata dos traços afetivos ou emocionais como elemento capaz de
influenciar a relação entre a imaginação e a realidade. Por fim, o quarto e último
aspecto consiste na ideia de que a construção da imaginação pode ser algo novo,
porém, ao ser cristalizada no mundo como objeto concreto, ela passa a influenciar
outras causas.
No capítulo três, “o mecanismo da imaginação criativa”, Vigotski estuda o
desenvolvimento da criatividade apontando-a como um processo extremamente
complexo e também essencial para o desenvolvimento cognitivo do sujeito. Nela,
observa-se uma atividade orientada por dois processos. O primeiro refere-se à dis-
sociação de uma experiência em partes. O segundo foca-se na associação dos ele-
mentos adquiridos e modificados por meio de novas experiências humanas. Para
Vigotski, esse processo é fundamental na formação dos conceitos e do pensamento
abstrato dos sujeitos no contexto escolar.
No quarto capítulo, “A imaginação da criança e do adolescente”, Vigotski pres-
supõe que o processo da imaginação ocorre de modo diferente entre as crianças e
os adultos. Para o autor, isso significa dizer que, em cada fase do desenvolvimento
infantil, existem fatores e características específicas ligadas à maturidade cogni-
tiva da criança. Vigotski (2018, p. 47) explica que a atividade da imaginação não é
mais rica para a criança do que para o adulto. Pelo contrário, a criança não possui
uma trajetória de experiências como a do adulto, portanto, a sua imaginação é
moderada. Para o autor, isso ocorre devido ao fato de a criança estar em uma fase
pertencente ao mundo da fantasia, em que tudo pode e no qual não se fazem pre-
sentes exigências precisas que a impedem de exercer a sua criatividade. Assim se
diferencia do universo adulto ou da fase de adolescente, quando os interesses são
outros e, consequentemente, a fantasia amadurece.
No quinto capítulo, “os suplícios da imaginação”, Vigotski expressa a ideia de
que a criação não é um processo mental simples, e, sim, um processo mental difícil.
Para o autor (2018, p. 55), “o desejo de contagiar o outro com o sentimento que nos
domina e, junto a isso, o sentimento da impossibilidade de fazê-lo estão fortemente
expressos na criação literária da juventude”. De outro modo, a imaginação não
pode ser tratada somente como uma mera capacidade humana que necessita ser
exercitada no sujeito durante sua escolarização. Tem, sim, de ser tratada como
uma capacidade humana essencial que reflete em todo o comportamento humano
do sujeito.
No capítulo seis, “a criação literária na idade escolar”, Vigotski convida os pro-
fessores para refletir sobre o desenvolvimento mental da criança. Nessa reflexão, o
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autor explica que, na fase infantil, a criança expressa as suas ideias por meio do de-
senho e isso ocorre em razão de essa atividade criadora possibilitar mais segurança
naquilo em que ela tem domínio. Contudo, Vigotski (2018, p. 62) salienta que, ao
passar para outra fase do desenvolvimento, a criança modifica também o modo da
sua criatividade. Em outras palavras, o desenho passa a ser uma experiência de
sua vida deixada no passado, e, assim, abre-se espaço para um novo ciclo – no caso,
a adolescência – e, consequentemente, se dá o amadurecimento mental que facil-
mente é percebido diante de outras atividades, tal como a criação verbal e literária.
No capítulo sete, “a criação teatral na idade escolar”, Vigotski discute sobre
a brincadeira e a dramatização na infância como ferramentas para concretizar a
criação da imaginação. Diante disso, Vigotski (2018, p. 98) ressalta que a criança,
a partir das suas experiências, é capaz de encarnar um personagem, um animal,
um elemento da natureza ou objeto para pôr em prática o que está contido em seu
processo de imaginação. Nesse sentido, o autor faz uma crítica a ações que deman-
dem que a criança tenha de decorar textos como se fossem atores da vida real. Para
ele, essa situação engessa a criatividade da criança, fazendo com que ela somente
reproduza falas alheias. Por essa razão, o autor visualiza um processo pedagógico
cujas ações pautam-se no sentimento de satisfação da criança em construir a sua
própria história e em interpretá-la a partir da sua imaginação.
No capítulo oito, “o desenhar na infância”, Vigotski apresenta quatro estágios
do desenho na primeira infância: I. Estágio das Garatujas, caracteriza-se por
representações do objeto muito distantes da sua realidade. II. Estágio de Sur-
gimento, caracteriza-se por um número bem maior de detalhes sobre o objeto no
desenho. III. Representação Verossímil, caracteriza-se pela forma real do obje-
to, próxima da sua aparência. IV. Representação plástica, caracteriza-se pelas
partes isoladas do objeto com mais detalhes em relevo, luz e sombra. Dessa foram,
Vigotski sinaliza a importância de as ações pedagógicas serem conduzidas por uma
perspectiva em que a criação e a imaginação sejam colocadas como elementos es-
senciais na escolarização da criança.
Por fim, o livro Imaginação e criação na infância trata-se de um referencial
relevante para os professores e todos aqueles que desejam aprofundar estudo sobre
a relação entre imaginação e criação. O profundo conhecimento de Vigotski sobre a
temática abordada e traduzida com tanta excelência e cuidado por Elizabeth Tunes
e Zoia Prestes permite ao leitor um amplo panorama dos principais conceitos que
abordam a relação “imaginação e criação” e proporciona tantas e profundas refle-
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xões sobre esses elementos nos processos educativos dos sujeitos da primeira e da
segunda infância.
Cabe ressaltar, ainda, que o livro apresenta um estilo agradável de escrita,
o qual indica de forma clara e acessível o pensamento de Vigotski, possibilitando,
desse modo, uma reflexão sobre como podemos modificar as próprias ideias diante
dessa obra que apresenta conteúdos tão riquíssimos. Isso tudo se revela relevante
em razão de que, na prática, a imaginação e a criação na infância caminham juntas
e são elementos imprescindíveis para o entendimento a respeito de como acontece
esse fenômeno no processo cognitivo da criança e de como o professor pode organi-
zar o ensino, considerando um caminho complexo para ela.
Referência
VIGOTSKI. Lev Semionovitch. Imaginação e Criação na Infância. Tradução e revisão técnica:
Zoia Prestes e Elizabeth Tunes. Ed. Expressão. São Paulo: Expressão Popular, 2018.