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volume 27 número 3 set./dez. 2020
PAULO FREIRE -
PEDAGOGIA DO OPRIMIDO – 50 ANOS
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Revista Espaço Pedagógico [online] / Universidade de Passo
Fundo, Faculdade de Educação. – Vol. 16, n. 2 (2009)- . –
Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2009-
Anual: 1994-1998. Semestral: 1999-2016. Quadrimestral:
2017-.
eISSN 2238-0302.
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1. Ciências humanas – Periódico. 2. Educação – Periódico.
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ESPAÇO
PEDAGÓGICO
SUMÁRIO
Educação popular no Brasil ........................................................................................................................................591
Popular education in Brazil
Educación popular en Brasil
Paulo Freire
La pedagogía del oprimido: una relectura pedagógica...............................................................................................612
The pedagogy of the oppressed: a pedagogical rereading
A pedagogia do oprimido: uma releitura pedagógica
Carlos Ernesto Noguera-Ramírez
La recepción de pedagogía del oprimido en Argentina: una hipótesis sobre la inuencia freireana en la militancia
juvenil de los años ´70 ...............................................................................................................................................628
The reception of pedagogy of the oppressed in Argentina: a hypothesis on the freirean inuence on youth militancy in the 1970s
A recepção da pedagogia do oprimido na Argentina: uma hipótese sobre a inuência freireana na militância juvenil dos anos 1970
Margarita R. Sgró
A la memoria del Profesor Hugo A. Russo
Educação, diálogo e prática da liberdade em Paulo Freire: revisitando a pedagogia do oprimido ............................... 643
Educación, diálogo y práctica de la libertad en Paulo Freire: revisando la pedagogía de los oprimidos
Education, dialogue and practice of freedom in Paulo Freire: reviewing the pedagogy of the oppressed
Thiago Ingrassia Pereira
Jerônimo Sartori
Pedagogia do Oprimido – 50 anos – mais Freire, nunca menos ..................................................................................665
50 Years of Pedagogy of the Oppressed – for more Freire, never less
Pedagogía del oprimido – 50 años – más Freire, nunca menos
Valdo Hermes Barcelos
Maria Aparecida Azzolin
A pedagogia do oprimido de Paulo Freire e o ensino de losoa com crianças ...........................................................685
The pedagogy of oppressed by Paulo Freire and the teaching of philosophy with children
La pedagogía do oprimido de Paulo Freire y la enseñanza de losofía con niños
Ivanilde Apoluceno de Oliveira
Didática freiriana: um reencontro com a pedagogia do oprimido ..............................................................................702
Freirean didactics: reliving the pedagogy of the oppressed
Didáctica freiriana: un re-encuentro con la pedagogía del oprimido
Ivo Dickmann
Ivanio Dickmann
As contribuições da pedagogia do oprimido para a educação preventiva integral ......................................................718
Las contribuciones de la pedagogía de la educación preventiva integral oprimida
Contributions from the pedagogy of the oppressed to integral preventive education
Araci Asinelli-Luz
Michelle Popenga Geraim Monteiro
Tatiane Delurdes de Lima-Berton
Necrolia: repercussão ética, política e educacional – estudo em Paulo Freire e Erich Fromm....................................734
Necrophily: repercussion ehtic, politic and educational – study in Paulo Freire and Erich Fromm
Necrolia: repercusión ética, política y educativa: estudio en Paulo Freire y Erich Fromm
Paulo César Carbonari
Andarilhando: movimentos que se entrelaçam em Marie-Christine Josso e Paulo Freire ............................................ 750
Walking: movements that intertwine in Marie-Christine Josso and Paulo Freire
Caminar: movimientos que se entrelazan en Marie-Christine Josso y Paulo Freire
Celso Ilgo Henz
Patrícia Signor
Ivani Soares
Educação republicana e democrática: potencialidades e desaos para a formação inicial docente ............................776
Republican and democratic education: potentialities and challenges for initial teacher education
Educación republicana y democrática: potencialidades y desafíos para la formación inicial del docente
Maria Regina Johann
Paulo Evaldo Fensterseifer
Cultura popular no planejamento e na prática de professores dos anos iniciais do ensino fundamental ....................792
Popular culture for planning and practice of teachers during the early years of elementary education
Cultura popular en la planicación y la práctica de profesores de los primeros años de la educación fundamental
Edinaldo Medeiros Carmo
Rosa Belém Farias
Marco Antonio Leandro Barzano
Ações armativas: uma análise do acesso e da permanência dos alunos cotistas do IFSul ..........................................809
Positive actions: an analysis of admission and permanence of IFSul balancing students
Políticas de acción armativa: un análisis de la admisión y de la permanência de los estudiantes titulares de cuotas del IFSul
Márcia Helena Sauaia Guimarães Rostas
Maria Cecília Isaacsson
Rafael Montoito
A metáfora, o Enem e a democracia ...........................................................................................................................834
The metaphor, Enem and democracy
Metáfora, Enem y democracia
Diego Bruno Velasco
Ana Angelita Costa Neves da Rocha
Libras no curso de pedagogia: análise de fatores que interferem no processo de ensino-aprendizagem ................... 858
Libras in the pedagogy course: analysis of factors that interfer in the teaching-learning process
Libras en el curso de pedagogía: análisis de factores que intereren en el proceso de enseñanza-aprendizaje
Célia Regina Vitaliano
Josiane Junia Facundo
Relação com o saber e território: experiências de estudantes em tempo integral .......................................................876
Relation to knowledge and territory: experiences of full-time students
Relación con el saber y territorio: experiencias de estudiantes en tiempo integral
Maria Celeste Reis Fernandes de Souza
Miria Núbia Simões Lourenço
“Tem gente caminhando pra lá e para cá”: caminhar com as crianças – a pesquisa em contexto campesino .............901
“There are back walking back and forth”: walking with children – the research in campesino context
“Hay gente caminando para allá y para acá”: caminar con los niños – investigación en contexto campesino
Jeruza da Rosa da Rocha
Marta Nörnberg
Diálogo com educadores ............................................................................................................................................919
Carlos Rodrigues Brandão
RESENHA
Paulo Freire mais do que nunca: uma biograa losóca ...........................................................................................934
Márcio Luís Marangon
Volnei Fortuna
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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ESPAÇO
PEDAGÓGICO
EDITORIAL
Não se brinda com presente de aniversário a quem não se conhece ou que não
merece. Paulo Freire é, entre poucos brasileiros, merecedor desse reconhecimento.
Seu livro clássico Pedagogia do oprimido circula pelo mundo como uma das obras
acadêmicas mais lidas. Em um mundo que faz questão de dizer que tudo muda
rapidamente, o presente número da Revista Espaço Pedagógico evidencia que não
é bem assim. Publicada há cinquenta anos, continua com uma atualidade impres-
sionante e inspira reflexões de múltiplas naturezas, como atestam os artigos que
compõem o presente número. Em 2020, completa-se o cinquentenário da obra Pe-
dagogia do oprimido e, em 2021, comemora-se o centenário de nascimento de Paulo
Freire. Desde 1970, quando da publicação da primeira edição da obra nos Estados
Unidos, até os dias de hoje, milhares de livros e artigos foram publicados e estão
esquecidos. No entanto, há obras preciosas que não desaparecem no tempo, ao con-
trário, renovam-se e criam novas temporalidades. Essa dinâmica é peculiar, pois
coloca questões que ultrapassam seus tempos de vida, como argumenta Calvino, na
obra Por que ler os clássicos
1
.
O que a vida e a obra de Freire têm a nos dizer? Muitas coisas, certamente.
Em primeiro lugar, há o fato de Freire ter sido uma pessoa amorosa, no sentido de
desejar a realização e a felicidade das pessoas, especialmente das sofridas (opri-
midas). É, certamente, essa força amorosa que impulsiona ao encontro do outro
que tem produzido tantas reações de ódio a esse pensador e às suas reflexões. Por
que odiar quem não nos fez mal algum? Essa pergunta precisa ser respondida por
diferentes áreas de conhecimento, entre as quais, psicologia, psicanálise, filosofia,
sociologia, educação, história, pedagogia, entre outras.
Em segundo lugar, tem-se a importância que sua principal obra assumiu no
campo educacional. Como sabemos, o manuscrito inicialmente sem título, depois
nominado Pedagogia do oprimido, foi tornado público de forma restrita em 1968
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e recebeu sua primeira publicação em inglês, nos Estados Unidos, em 1970 e em
espanhol no final do mesmo ano. No Brasil, a obra só foi publicada em 1974. Dadas
as circunstâncias impostas pelas ditaduras em diferentes países, no caso brasileiro
desde 1964, a obra foi escrita de forma artesanal, como revela o próprio autor,
durante o período do exílio no Chile num contexto ainda não ditatorial. Mesmo sen-
do escrita no Chile, a base empírica da sua construção está nas experiências que
realizou como educador popular em diferentes espaços no Brasil. A obra clássica,
objeto de homenagem, resultou de falas com educadores populares, com diferentes
tradições intelectuais e, especialmente, com os próprios “oprimidos”. A fonte prin-
cipal baseou-se nos pronunciamentos e nas ações daqueles com os quais atuava
cotidianamente, especialmente nos espaços coletivos e nos “círculos de cultura ou
de investigação”, que eram formados por educadores e educandos. Freire a consi-
derava uma obra singela, que tinha como objetivo apenas organizar de forma mais
sistemática os registros que fazia em papéis avulsos e em cadernetas que sempre
tinha à mão. À noite e em viagens, foi construindo o manuscrito que deu origem
ao livro. Nesse sentido, pode-se dizer que é uma obra construída coletivamente,
mesmo que Freire seja o grande narrador.
Da primeira edição, em língua inglesa, até os dias atuais, tornou-se uma das
obras mais publicadas e conhecidas no mundo, com tradução em dezenas de línguas
e circulação em praticamente todos os países do mundo. O dado do Google Scholar de
que essa é uma das obras mais reconhecidas internacionalmente, com 75 mil citações,
terceiro lugar dentre as mais citadas nas universidades na área das humanidades,
além de estar entre as 100 obras mais lidas nas universidades de língua inglesa e ser
a única de um autor brasileiro, evidencia o reconhecimento tanto da obra quanto do
autor. No Brasil, já são milhares de artigos, dissertações e teses abordando a produ
-
ção intelectual de Freire. Como educador, ele foi condecorado com inúmeros títulos
honoris causa, em universidades de diferentes países. Recebeu o prêmio Educação
pela Paz da UNESCO, em 1986, e foi declarado patrono da educação brasileira, em
2012. Esse título foi ameaçado de ser cassado pelo governo Bolsonaro.
Apesar de todo o reconhecimento, Paulo Freire vem sendo maldosamente cri-
ticado por setores reacionários e autoritários sob acusação de ser comunista e res-
ponsabilizado por mazelas da educação brasileira e de países do terceiro mundo,
pois, segundo tais críticas, sua proposta pedagógica é demagógica, apresenta forte
ranço ideológico e é inconsistente dos pontos de vista pedagógico e científico. Toda
perspectiva dialógica tem de estar aberta para críticas, postura que o próprio Freire
sempre assumiu. O problema é que muitas das reações na atualidade são decorren-
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tes de preconceitos e distorções teóricas de alguns dos seus críticos. São análises
obscurantistas que pretendem desqualificar toda manifestação problematizadora
que critica visões autoritárias e pleiteiam por práticas emancipadoras. Atacam sua
obra e questionam seus títulos, bem como o reconhecimento que teve em muitos
países e instituições. Ao contrário da visão amorosa, alimentam o ódio e despre-
zam sua luta pela liberdade e justiça social. Diante desse quadro, se Paulo ainda
vivesse, estaria sofrendo intensamente diante da sofisticação dos modernos meios
de opressão e da crescente maldade dos opressores. No entanto, não ficaria calado
e se ocuparia de mobilizar os oprimidos na luta contra a opressão pela mediação
da educação e do fortalecimento da resistência e da luta pela emancipação. Do que
menos iria se ocupar seria, certamente, a defesa dos seus títulos e comendas.
Pautar os oprimidos como foco das reflexões e ações pedagógicas emancipado-
ras não é obra para pensadores medíocres. Essa é, certamente, a razão mobilizado-
ra de ideais pautados no complexo vira-lata, que odeia e despreza as reflexões que
nascem dos contextos de opressão e dos oprimidos. O complexo vira-lata despreza
o que é nosso, que nasceu aqui. Por sua vez, valoriza tudo o que vem de fora. Essa
é a explicação mais plausível do porquê pensamentos medíocres detestarem tanto
os contributos de Paulo Freire.
Na contramão desses ideais medíocres, apresentamos um número da Revista
Espaço Pedagógico, que, em 2020, completa 26 anos de existência, com um dossiê
sobre os 50 anos da obra Pedagogia do oprimido. Além de uma justa homenagem a
Paulo Freire, recuperando uma palestra que ele fez, em 1984, em Passo Fundo, em
um Colóquio de Educação Popular, trazemos contribuições de vários pesquisadores
que se debruçam sobre sua obra e problematizam inúmeros outros temas e ques-
tões emergentes em diferentes realidades. São artigos que atestam a importância
da obra desse educador preocupado com a emancipação humana. Alguns desses
autores conviveram e compartilharam momentos de aprendizagem com o Freire.
Outros vêm promovendo a reinvenção da pedagogia do oprimido, seguindo a sábia
orientação de Freire de não meramente reproduzi-la, mas reinventá-la na busca da
transformação da educação e da construção de uma sociedade livre.
O conjunto de artigos que compõem o dossiê inclui artigos estrangeiros e bra-
sileiros, tratando da pedagogia do oprimido de diferentes pontos de vista. O primei-
ro artigo é do próprio Paulo Freire, na citada palestra que fez em Passo Fundo em
1984, com o foco na educação popular no Brasil. Há uma fala inicial e depois um
diálogo com os participantes do evento.
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Seguimos com o artigo de Carlos Ernesto Noguera Ramírez, da Universidad
Pedagógica Nacional de Colômbia, que faz uma discussão provocativa da obra Pe-
dagogia do oprimido numa perspectiva pedagógica. De Tandil, Argentina, Marga-
rita Sgró discute como ocorre a recepção da pedagogia do oprimido na Argentina
por movimentos juvenis emancipatórios nos anos de 1970.
Thiago Ingrassia Pereira e Jerônimo Sartori analisam a pedagogia do opri-
mido na perspectiva dialógica das suas potencialidades e dos seus limites como
prática emancipadora. Valdo Hermes Barcelos e Maria Aparecida Azzolin reforçam
a tese da atualidade emancipadora de Freire no enfrentamento de posturas autori-
tárias e opressoras, obscurantistas e intolerantes.
Ivanilde Apoluceno de Oliveira aborda a pedagogia do oprimido e suas contri-
buições para o ensino de filosofia para crianças em escolas públicas. Ivo Dickmann e
Ivanio Dickmann fazem uma discussão da pedagogia do oprimido e suas contribui-
ções para uma didática crítico-emancipadora. Araci Asinelli-Luz, Michelle Popenga
Geraim Monteiro e Tatiane Delurdes de Lima-Berton analisam a pedagogia do opri-
mido na ótica de uma educação preventiva e integral para a infância e a adolescência.
Paulo César Carbonari problematiza a necrofilia no contexto da Covid-19, es-
tabelecendo um diálogo entre Paulo Freire e Erick Fromm. Celso Ilgo Henz, Patrí-
cia Signor e Ivani Soares estabelecem um diálogo entre Paulo Freire e Marie-Cris-
tine Josso a respeito da missão ontológica do Homem em ser mais.
Em suas diversas temáticas e abordagens, os textos apresentam um nexo in-
trínseco e conectivo que traduzem o que foi a forma de ser e viver de Freire e a
sua prática investigativa. Não trataram de reproduzir ou reafirmar o pensamento
de Freire, mas de pôr à prova a própria capacidade de criar, de ousar, de abrir
horizontes e estabelecer confrontos que apontam para novas perspectivas de for-
mação. Inspirados em Freire, cada um dos autores reinventou a educação pela sua
presença crítica, criativa e inovadora. Cabe a cada leitor, em uma atitude também
freireana, encontrar e explorar os potenciais dos textos aqui expostos.
Outras contribuições constituem os artigos de fluxo contínuo. A contribuição
de Maria Regina Johann e Paulo Evaldo Fensterseifer traz ao debate os desafios de
uma educação republicana e democrática. Edinaldo Medeiros Carmo, Rosa Belém
Farias e Marco Antonio Leandro Barzano analisam como a cultura popular é abor-
dada em documentos curriculares do ensino fundamental. Márcia Helena Sauaia
Guimarães Rostas, Maria Cecília Isaacsson e Rafael Montoito analisam a política
de contas para o ingresso no IFSul, campus Pelotas, no contexto das políticas de
ação afirmativas. Diego Bruno Velasco e Ana Angelita Costa Neves da Rocha fazem
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um estudo sobre como os sentidos sobre democracia aparecem no Exame Nacional
do Ensino Médio (Enem).
Célia Regina Vitaliano e Josiane Junia Facundo analisam a implantação da
disciplina de Libras na grade curricular do curso de Pedagogia da Universidade Es-
tadual de Londrina. Maria Celeste Reis Fernandes de Souza e Miria Núbia Simões
Lourenço aprofundam as relações que alunos do ensino fundamental estabelecem
com o saber e o território na escola de tempo integral. Jeruza da Rosa da Rocha e
Marta Nörnberg analisam o caminhar com crianças, em contexto campesino, como
possibilidade metodológica para o desenvolvimento de pesquisas com crianças, fun-
damentando o argumento de que caminhar com crianças oferece elementos para
interagir com elas em suas dinâmicas sociais.
No Diálogo com educadores, contamos com prestigiosa contribuição de Carlos
Rodrigues Brandão. É prestigiosa não apenas pela trajetória de Brandão como edu-
cador popular e pesquisador, mas também pela sua convivência com Paulo Freire,
especialmente após o retorno deste do exílio. São contribuições que tratam de refle-
xões, experiências partilhadas e compromissos políticos em prol de uma educação
efetivamente emancipadora.
A resenha de Márcio Luís Marangon e Volnei Fortuna da obra Paulo Freire
mais do que nunca: uma biografia filosófica, de Walter Kohan, ressalta a relevân-
cia da obra num contexto em que crescem tendências antidemocráticas, xenofóbi-
cas e reacionárias. Essa obra reforça todo o empenho na organização do presente
número da revista, que é de ampliar cada vez mais os horizontes da pedagogia do
oprimido. Somente assim, será possível pensar em direitos humanos, justiça social
e democracia de alta intensidade.
Eldon Henrique Mühl – organizador do dossiê
Telmo Marcon – Editor-chefe
Nota
1
CALVINO, I. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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Educação popular no Brasil
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Educação popular no Brasil
Popular education in Brazil
Educación popular en Brasil
Paulo Freire
*
26 de outubro de 1984
Resumo
O artigo de Paulo Freire é resultante de uma palestra feita em 1984, por ocasião da realização do I Colóquio
Nacional de Educação Popular, em Passo Fundo, sob a coordenação do 7º Núcleo do Centro de Professores do
Estado do Rio Grande do Sul. O evento ocorreu entre os dias 23 a 26 de outubro de 1984.
Palavras-chave: Prática educativa. Politicidade da educação. Educação popular.
Abstract
Paulo Freire’s article is the result of a lecture given in 1984, on the occasion of the 1st National Colloquium on
Popular Education, in Passo Fundo, under the coordination of the 7th Nucleus of the Teachers Center of the State
of Rio Grande do Sul. The event occurred between the 23rd to the 26th of October 1984.
Keywords: Educational practice. Politicity of education. Popular education.
Resumen
El artículo de Paulo Freire es el resultado de una conferencia dictada en 1984, con motivo del I Coloquio Nacional
de Educación Popular, en Passo Fundo, bajo la coordinación del VII Núcleo del Centro Docente del Estado de Rio
Grande do Sul. El hecho ha ocurrido entre el 23 y el 26 de octubre de 1984.
Palavras clave: Práctica educativa. Politicidad de la educación. Educación popular.
Saudações e introdução
Minhas amigas e meus amigos, não apenas de Passo Fundo.
Há dias passados, há mais de uma semana, por motivos que transcendem a mi-
nha vontade, eu estive próximo a apanhar o telefone e chamar Passo Fundo para des-
*
Paulo Reglus Neves Freire nasceu em Recife, no dia 19 de setembro de 1921 e faleceu em São Paulo, no dia 2 de maio
de 1997.
Recebido em 04/08/2020 – Aprovado em 10/08/2020
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i3.12365
592
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convidar-me. Às vezes, eu venho sendo desconvidado reacionariamente. Mas, agora,
quase que eu me obrigava, há dias passados, a telefonar à Solange e a pedir desculpas
por não vir. Mas, ao mesmo tempo em que certas razões de ordem muito privada me
empurravam a pensar nesta hipótese, outras razões de ordem política me faziam
contornar as razões de ordem mais privada e continuar, ou preservar, ou manter a
aceitação deste convite que me foi feito há quase um ano atrás, para vir aqui hoje.
Em certo sentido, eu quase adivinhava – e acho que uma das qualidades, das vir-
tudes de um educador ou uma educadora de perspectiva, no mínimo, progressista, é de
viver, gestar, através de sua prática, a qualidade de quase adivinhar as coisas, de agu
-
çar sua sensibilidade, o sentido das coisas – e quase adivinhando o que faria, tal qual
se fez, de se divulgar que a professora Vanilda Paiva e eu não estaríamos aqui, quase
adivinhando isso, eu preferi estar aqui para mostrar como adivinhei direitamente.
Mas – e isso eu peço, no começo dessa conversa, dessa tarde calorosa e calorenta
que se parece muito com as minhas tardes do Nordeste, que vocês conhecem de perto
–, eu gostaria de dizer que, em mantendo a aceitação do convite, eu tive, porém, ra
-
zões privadas que não cabem aqui expor. Tive, então, que aceitar uma fórmula de vir
a vocês pela metade e não totalmente. Significa que eu tive que antecipar a minha
volta a São Paulo para hoje, e não para amanhã; eu preciso dormir em casa hoje. E
essa é a razão pela qual, às quatro e meia, eu viajo, e gostaria que vocês me perdoas
-
sem, mas às quatro e vinte e cinco eu me levanto daqui com eles dois e saímos sem
nenhum empecilho para tomar o carro, porque eu preciso tomar o avião hoje de noite.
Depois dessas explicações de ordem privada, mas que se tornam públicas, eu gos
-
taria, então, de começar, de introduzir a nossa conversa desta tarde. Eu gostaria de,
mais ou menos, pensar em voz alta num primeiro momento deste encontro, de pensar
em voz alta sobre educação popular. Não tanto do ponto de vista histórico – tomando
a história como se deu e como se dá –, mas tomando a educação popular como eu a
entendo, a compreendo, não necessariamente como muitas de vocês compreendem.
Antes de chegar a falar um pouco sobre como entendo a educação popular, me
parece, como questão de exigência metodológica, importante ou fundamental que
reflexione um pouco, nesse sentido, reiteradamente, porque seria inviável que eu,
hoje, dissesse aqui coisas absolutamente diferentes das que disse há oito dias pas-
sados em Rio Grande, quando estive lá falando para um auditório bem menor que
este. Eu não sou um homem de gênio e não invento coisas todos os dias. Mas, mes-
mo reiterando algumas das minhas afirmações anteriores, gostaria de aqui, agora,
pensar um pouco sobre alguns aspectos do que eu venho chamando a natureza da
prática educativa, e depois chegar à educação popular.
593
Educação popular no Brasil
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A natureza da prática educativa
Em primeiro lugar, não importa se a gente pensa como pai ou mãe, como pro-
fessor ou professora de uma pré-escola ou de uma escola de 1º Grau ou de 2º Grau,
ou de universidade. Tenho a impressão de que se a gente exercita uma operação
que é a de, em certo momento, tomar distância da prática que a gente vive, que a
gente encarna, como pai, mãe, professor ou professora; se a gente toma distância
da prática e se a gente objetiva a prática; se a gente se afasta dela e toma na mão
da gente e pergunta sobre ela, o que é que se dá nessa prática que eu vivo todo dia
e da qual agora no meu quarto de estudo eu tomo distância, objetivando-a; de que
se dá nela que possa despertar em uma compreensão menos ingênua dela?
Me parece que, ao fazer isso, um primeiro caráter desta prática se sublinha
diante de nós: é que não importa se sou mãe, pai, professor de pré-escola, ou de
escola de 1º Grau, 2º Grau, ou universitária, toda vez que me vejo diante da prática
que faço, eu descubro que há sempre nela um certo objeto a ser desvelado pelo edu-
cando, a ser apreendido pelo educando somente como o educando apreende o obje-
to. Objeto diante do qual a educadora assume uma posição que é sempre diferente
da posição do educando – e muito rica –, porque é a de quem reapreende o objeto no
processo de apreensão do objeto feita pelo educando. No fundo, é uma experiência
em que a educadora reconhece o objeto conhecido no processo de conhecer, o objeto
em que o educando se engaja.
Então, vejam bem, minhas amigas e meus amigos: não importa que ensinemos
Biologia, Matemática, História, Filosofia; não importa que trabalhemos com um
grupo de pré-escolares, no que se chama de roda, de papo, de leitura da palavra:
há sempre na prática educativa um certo conhecimento a ser conhecido, como há,
também, sobretudo em certos níveis dessa prática associada ao nível de pesquisa,
a preocupação com produzir o conhecimento que ainda não existe. Eu espero que,
com esse calor, todo vocês aguentem essa conversa minha, que em seguida eu paro.
É duro, viu, isto aqui está como o sol de Recife e, para mim, está uma beleza.
Bem, parece-me que seria muito difícil pretender provar o contrário disso, isto
é: em toda situação educativa se envolve sempre um certo objeto de conhecimento
a ser conhecido ou reconhecido. Por isso, a gente poderia dizer que a educação, não
importa se popular, se informal ou formal, é sempre, também, uma certa teoria do
conhecimento posta em prática. É inviável não reconhecer isto. Mas o reconheci-
mento desta – e agora vou dizer um nome muito acadêmico, mas que deve ser dito
– natureza epistemológica da educação – ou em outras palavras, o reconhecimento
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Paulo Freire
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da epistemologicidade da educação, que significa a qualidade epistemológica de ser
uma teoria da educação posta em prática –, isso, na continuidade do processo que
estou propondo, do exercício que estou propondo e me propondo, de tomar a nossa
prática nas mãos e perguntar sobre ela, neste momento exato em que percebo essa
natureza que envolve o ato de conhecer e que faz parte da prática educativa, eu me
obrigo, imediatamente, a iniciar uma série de perguntas que são fundamentais.
Até diria a vocês todos que acho que uma das coisas que a gente precisa apren-
der a resgatar é o ato de perguntar, eu diria que a nossa educação vem sendo, sobre-
tudo, uma pedagogia da resposta cuja pergunta fundamental se perde na história.
O professor entra no primeiro dia de aula do ano e começa a responder aos alunos
perguntas que eles nunca fizeram, porque foram feitas por alguém duzentos anos
atrás. Eu insistiria neste exercício, em propor algumas perguntas, de tal maneira
que, mesmo que vocês estejam neste primeiro momento em silêncio, entrem na inti
-
midade mesma do movimento do meu discurso e se apoderem dele, refazendo-o em
vocês. Toda prática educativa implica uma certa teoria do conhecimento posta em
prática – eu disse uma certa teoria, porque há teorias e teorias do conhecimento.
A primeira pergunta seria: se toda prática educativa implica nisso, quem co-
nhece, então, na situação pedagógica? E nós temos hipóteses diferentes de respos-
tas. Uma resposta poderia ser: quem conhece na situação pedagógica é o educador
ou é a educadora. E eu perguntaria: e o papel dos educandos? E a pessoa que me
tivesse respondido anteriormente me diria: os educandos recebem a transmissão
do conhecimento do objeto que o educador faz. Eu não preciso dizer que não aceito
essa resposta. E é interessante ver como essa resposta coincide com a definição
ingênua de educação que a gente encontra em certos livros de filosofia, que dizem:
a educação é a tarefa através da qual a geração mais velha transfere às gerações
mais jovens os valores da cultura. É uma resposta tradicional, reacionária, autori-
tária e quase histórica.
Para mim, a questão não é bem essa, e aí eu já começo a entrar numa briga
gostosa. Quem conhece a prática educativa, de um lado, é a educadora, do outro,
é o educando. O que passa é que se supõe que a educadora, pelo fato mesmo até
de ter chegado ao mundo antes, deve ter tido uma experiência intelectual no trato
do objeto de sua disciplina que precede a experiência do educando. Mas isso não
significa que o educando possa comparecer a seu curso como mero recipiente da
transferência da sua sabedoria, porque o que o educando tem que fazer, no meu
entender, para poder conhecer é, primeiro, apreender o objeto, memorizá-lo porque
quer conhecer, porque o conhece.
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Educação popular no Brasil
ESPAÇO PEDAGÓGICO
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O papel do educador de maneira nenhuma é igual ao do educando – e me
parece uma demagogia, por exemplo, dizer que o educador e o educando são iguais;
é demagógico isso, eles não são iguais –, mas a diferença que há, necessária, entre
ambos não justifica a exacerbação dessa diferença, criando-se, a partir dela, um
antagonismo entre a autoridade necessária do educador e a liberdade fundamental
do educando.
A politicidade da educação
Uma outra pergunta que se coloca na continuidade desse exercício é: que é co-
nhecer? É uma pergunta que tem que ver com a teoria do currículo, com a delimitação
do objeto do conhecimento, com a delimitação dos objetos dos itens do programa – e
não só do programa, mas da própria estruturação da vida dentro da escola. Por isso
que eu falei que ela é mais ampla, ela é uma pergunta curricular. Quem decide o que
deve ser conhecido? Aí é que é a pergunta fundamental, evidentemente que uma vez
mais nós temos hipóteses diferentes de resposta. Eu não nego, de maneira nenhuma,
a responsabilidade que a educadora tem nisso, que é uma responsabilidade social,
eminentemente política, e não só pedagógica, com relação à escolha de uma temática
fundamental que deve ser tratada rigorosamente pela geração jovem que chega. Mas
o que me parece impossível é decretar a absoluta ignorância delas, é decretar absolu
-
ta inocência das massas populares, por exemplo, agora no campo da educação popu-
lar, em nome da supremacia quase ontológica, metafísica, da rigorosidade científica.
Evidentemente que eu jamais pensei, renunciando a impor um programa, que
não devesse propor programas, mas há diferença fundamental entre não impor e
deixar de propor ou propor. Para mim, o erro está em, criticando a imposição, negar
a proposição. Isso, sim, é que seria espontaneísmo. Ao negar a imposição, em nome
do que eu chamo radicalidade democrática – que independe de se é burguês ou so-
cialista –, uma pergunta que se impõe, eu acho, à educadora é a seguinte: conhecer
a favor de que e, portanto, contra quê? Conhecer a favor de quem e contra quem?
E, observem, como desde a primeira pergunta a gente começa a perceber que as
respostas a essas perguntas não são especificamente epistemológicas, ou melhor,
não se situam na esfera estrita da teoria do conhecimento, nem tampouco na esfera
estrita da pedagogia. Essa de agora, por exemplo, acaba de esclarecer que quem
responde a ela é exatamente a política. Quando eu me pergunto, por exemplo, a
favor de quem eu conheço, contra quem eu conheço, a favor de que, contra que eu
conheço, e, portanto, a favor de que e de quem, contra que e contra quem eu traba-
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Paulo Freire
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lho em educação, eu estou, obviamente, no campo político. Eu preciso esclarecer,
são perguntas que eu não posso deixar entre parênteses, e elas todas têm que ver
com o meu sonho como educador, e o meu sonho não é só pedagógico, ele é substan-
tivamente político e adjetivamente pedagógico.
No momento em que o educador, no exercício que eu proponho, vai pouco a
pouco aclarando sua prática e chega a essa altura, ele percebe que é impossível
pensar a educação sem pensar a questão do poder, que é impossível admitir que a
educação seja um que-fazer neutro ou tecnicamente neutro, precisamente porque a
educação se apresenta à luz das perguntas radicadas na própria prática, e não nos
livros. A educação se apresenta com uma radicalidade política, que faz com que sua
natureza mesma seja política. É essa a natureza política da educação que eu chamo
de politicidade da educação: a qualidade que tem a educação de ser política e que,
por isso, não pode ser neutra.
É interessante, às vezes, eu gosto de fazer um exercício que é muito meu e que
devia ser de quem me critica, que é o exercício de me reler, de me acompanhar des-
de o começo até hoje. E eu vejo, nesse exercício – como, por exemplo, nos primeiros
momentos da minha prática e da minha experiência de pensar a minha prática
refletida nos textos que eu escrevi, com suas ingenuidades indiscutivelmente –,
que se eu só fosse crítico até hoje, eu não era Paulo Freire, era um outro cara. Mas,
Paulo Freire, esse cara que eu conheço, é um sujeito comum que nunca pensou em
ser um gênio e nunca pediu a ninguém para cultuá-lo. Eu nunca pedi a ninguém
para me cultuar, eu brigo até. Mas, bem, eu vejo, então, nas minhas releituras,
como houve um momento em que eu não falava sequer em política na educação.
O meu primeiro livro é um exemplo bem flagrante dessa ingenuidade; houve um
segundo momento em que avancei mais, e esse momento se deu exatamente no
contexto do exílio, que necessariamente me radicalizou e me ajudou a superar
algumas ingenuidades anteriores. Num segundo momento, eu falei num aspecto
político da educação; eu hoje falo na politicidade da educação, quer dizer, eu hoje
falo na qualidade que tem a educação de ser política, precisamente como uma edu-
cabilidade no ato político, que explica que o ato político seja também pedagógico.
A esse propósito, inclusive, eu creio que é interessante chamar a atenção a um
estudo recente do professor Dermeval Saviani, quando ele, tomando essa questão
da educação como política, da política como pedagógica, ele diz isso muito bem,
mas, na verdade, não basta: é preciso, diz Saviani, alcançar-se a especificidade do
educativo e do político. A especificidade do educativo é o convencer e a do político
é o vencer.
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Educação popular no Brasil
ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Agora, eu retomaria o professor Saviani para dizer que não é isso. Para mim,
quando analisamos o político – pelo menos até agora, 1984, como pode ser que
daqui para o ano que vem a coisa mude, como outros estudos do próprio Saviani –,
há uma certa intimidade, um tal compromisso entre as duas naturezas, a natureza
do político e a natureza do pedagógico, que faz com que, ao pensar que aprendemos
a especificidade de um, nós caímos de novo no outro.
Vou tentar explicar, pelo menos, como eu vejo isso: evidentemente que uma
professora ou um professor que trabalha um semestre, um ano, com um grupo de
estudantes, não importa se na graduação, na pós-graduação, na escola de 1º Grau,
não importa; é evidente que qualquer um de nós, ao trabalhar com um grupo de
estudantes de Língua Portuguesa, por exemplo, Biologia, Filosofia da Educação,
não há dúvida nenhuma de que a gente está empenhado em convencer os educan-
dos em torno do que nos parece ser acertado. Se não fosse assim, olha, eu digo a
vocês, se o professor não tem nenhum interesse de convencer o educando do acerto
de suas teses, pelo amor de Deus, arranje outro emprego, porque não dá. Eu com-
preendo que não possa arranjar outro logo, que a crise é grande, o que não pode
é continuar, porque a contradição é grande demais. Quando a gente é professor, é
porque a gente está convencido de que a gente precisa de convencer.
Agora, o que eu quero dizer, porém, é que não há convencimento pelo conven-
cimento. O convencimento é a mediação da vitória fora do contexto da escola. O
que eu quero quando discuto, por exemplo, a impossibilidade de, numa sociedade
burguesa capitalista de classe, se fazer uma pedagogia e de se viver integralmente
uma pedagogia que liberte, quando eu digo isso, o que eu estou querendo dizer,
ao tentar convencer o educando disto, é que, fora daí, do contexto da escola, ele se
insira numa luta política maior, para que engrosse as fileiras dos que combatem o
sistema capitalista, é isso que eu quero. Então, não há convencimento pelo conven-
cimento, mas no momento que eu pretendo, pelo convencimento, chegar à vitória,
a especificidade da educação penetra no campo político de novo. Mas o mesmo se
dá quando o líder político vem à praça pública, que é o seu grande contexto de se-
minário, quando ele vai a um canal qualquer, televisão, um meio de comunicação, e
ele luta para defender sua tese. No momento que ele está envolvido na necessidade
de vencer politicamente, de objetivar as teses que ele traz, essa vitória política
passa pelo convencimento das massas populares, se ele é um líder revolucionário
de índole democrática. Se ele é uma liderança de direita, a vitória que propõe passa
pela manipulação das massas populares.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Paulo Freire
v. 27, n. 3, Passo Fundo, p. 591-611, set./dez. 2020 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
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O que parece ser específico do político corre de novo para o campo educativo,
eu acho normal isso. É que há uma tal inter-relação entre as duas naturezas, que,
a não ser que estudos, pesquisas e reflexões maiores cheguem um dia a encontrar
o mínimo, é claro que há pormenores. Gente que está ensinado que quatro vezes
quatro é dezesseis é diferente de um líder político, mas até aí há uma maneira
de compreender o multiplicar, o dividir, o diminuir na sociedade capitalista e na
sociedade burguesa. Aqui, a burguesia acrescenta ao seu poder o que diminui da
classe proletária através da mais-valia, multiplica o seu poder pela diminuição e
pelo esmagamento da capacidade produtora das classes populares – até aí, a gente
tem que ver como é. Agora, vejamos um outro passo mais adiante, aí, eu paro e a
gente conversa. Se isso é uma verdade, se essa politicidade da educação é inegável,
me parece que há uma conclusão a que ninguém pode fugir, que é a seguinte: a
educadora é política enquanto educadora, o educador é político enquanto educador.
Num parênteses, eu gostaria de deixar aqui o meu veemente abraço a vocês
todos, professores e professoras deste estado, que vêm levando a sério, corajosa-
mente, a tarefa política que cabe aos organismos de categorias nesta sociedade
brasileira de hoje: desenvolver a tarefa política que deve ultrapassar os limites da
política que já há na reivindicação social. Indiscutivelmente que brigar para exigir
salários menos imorais é já um ato político, mas é preciso ultrapassar esse limite e
brigar também por melhores condições de trabalho como educador, é preciso brigar
não para fazer reforminhas de cafiaspirina, de emplastro no sistema escolas, mas
para dar a ele, exigir dele, uma dimensão que necessariamente a política reacioná-
ria nega. Eu felicito vocês do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina, de São Paulo,
para citar só esses três estados onde os organismos de professores se empenham
em luta e lutam intensamente. Um encontro como esse é bem uma prova disso.
Mas, voltando à coisa, no momento em que a gente se reconhece como educador,
se reconhece como político também. Eu acho, então, que cabe uma nova pergunta
que tem que ver com aquela primeira a que eu me referia ou que eu citava e que
dizia em favor de quem... Cabe a nós indagar sobre o sonho político nosso, o sonho
possível e que, mesmo sendo impossível, precisa, porém, ser possibilitado. Eu não
sei se está claro: o sonho é possível, eu não tenho nada que esconder a ninguém,
eu sonho por uma sociedade socialista realmente, mas esse sonho não se realiza se
não se trabalhar no sentido de realizá-lo. É nesse sentido que estou dizendo o sonho
possível que precisa, porém, ser viabilizado, que precisa ser possibilitado.
E essa pergunta, que é fundamental para mim também, coloca buscas – se não
outras perguntas –, e, centralmente, uma busca que seria a seguinte: a procura de
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Educação popular no Brasil
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aproximar tanto quanto possível a explicação verbal do meu sonho com a minha
prática, através da qual eu procuro viabilizar o meu sonho. No fundo, é isso que a
gente chama de coerência: é preciso um mínimo de coerência entre o discurso que
verbaliza o sonho e a prática que explicita ou que procura materializar o sonho.
Evidentemente que no mundo ninguém conseguiu juntar os dois iguaizinhos, é
impossível uma coerência absoluta, e eu até diria a vocês que seria profundamente
incômoda e antipática uma existência totalmente coerente.
E eu confesso que acharia chato pra burro todo dia eu ser igual, não ter nenhum
momentozinho de tentação, de pecado. Eu acharia isso horrível. Eu estou dizendo
isso de brincadeira, porque eu não acredito muito em pecado. Os pecados que estão
por aí são virtudes às vezes, mas é evidente que eu não quero um negócio absoluto,
não existe isso. O que eu estou dizendo é que há limites para a incoerência. Eu não
posso compreender, e digo a vocês, eu entendo que haja muita gente, mas em mim é
inviável, por exemplo, defender uma revolução sem as massas populares, defender
uma transformação radical ou sonhar com uma transformação radical da sociedade
burguesa para a criação de uma sociedade socialista feita apenas por minorias in
-
telectuais, que ganharam a sabedoria rigorosa na universidade e que desprezam o
saber comum como impossível de transformar. Eu não posso conciliar um sonho de
transformação do mundo com um procedimento autoritário na minha classe como
professor; eu não posso conciliar o meu sonho de libertação com a ironia que eu faça
a um estudante porque me fez uma pergunta que eu considerei boba. Para mim,
não há perguntas bobas, nem há respostas bobas, nem há respostas definitivas. Há,
simplesmente, perguntas que precisam ser respondidas. No fundo, eu acho que mui
-
to professor tem medo não é nem da pergunta, tem medo da resposta que deve dar,
e por isso dificulta a pergunta. Essa coerência, que não é uma coerência de santo,
é essa coerência mínima que um educador – enquanto político e político enquanto
educador – tem que ter em função de seus projetos e dos que não são só seus.
Viver essa coerência demanda algumas virtudes ou a concretização de algu-
mas qualidades que a gente também não recebe de presente, mas que a gente cria
na própria prática de buscar a coerência. Por exemplo, a humildade de encarar o
real, o concreto, para interpretá-lo, a humildade de aprender com o outro e não
apenas de querer sempre, todo dia, ensinar o outro. A tolerância – que não é uma
virtude apenas dos liberais, mas deve ser uma virtude dos revolucionários – signi-
fica, no fundo, viver com o diferente e, obviamente, com o igual, para poder brigar
com o antagônico. De um modo geral, há, entre nós, uma enorme intolerância entre
diferentes, enquanto o antagônico pode dormir em paz.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Paulo Freire
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Diante da inviabilidade de se ter uma educação que fosse ou pudesse ser neutra,
por isso mesmo, então, a educação, enquanto sistema de um sistema maior ou en-
quanto subsistema, é reprodutora da ideologia dominante. Essa é a tarefa que a edu-
cação sistemática recebe – com aspas – do poder, que é, exatamente, a de reproduzir
a sua ideologia. A questão que se coloca é saber se há ou não, no espaço institucional,
a possibilidade de contestar a tarefa fundamental que o subsistema educacional tem
de reproduzir a ideologia dominante, e essa tarefa existe e esse espaço existe, mas ob-
viamente que não pode ser tarefa do educador que opta pelo processo de reprodução
da ideologia dominante. A tarefa de contestar o processo de reprodução da ideologia
dominante é a tarefa daqueles cujo sonho político é o da transformação da sociedade
burguesa numa sociedade socialista. Essa tarefa é muito mais difícil de ser cumprida
do que a tarefa de quem reproduz. Quem reproduz, consciente ou inconscientemente,
nada a favor da maré. Observem o que significa nadar a favor e contra a maré: o
poder boatou que a professora Vanilda e eu não estaríamos aqui, porque exatamente
aqui o que fizeram os que antecederam a professora Ivanilda Paiva e a mim, o que
fizemos nós, é exatamente contestar o poder reprodutivo da ideologia dominante no
sistema escolar. Então, é muito mais difícil fazer isto, contestar a reprodução do que
reproduzir, e quem reproduz usa de todas as artimanhas no sentido de manipular.
Educação popular
Muito bem, é claro que nos anos 1970 se desenvolveu toda uma teoria da re-
produção ideológica que foi muito mecânica, e houve um período no tempo, nos anos
1970, em que se pensou, se disse, que não era possível de maneira nenhuma fazer
educação popular ou pôr o sistema de educação oficial a serviço dos interesses das
classes populares. E se afirmava isso, para mim, de forma ingênua e mecânica – e
eu quero fazer uma exceção a um professor brasileiro, professor Celso Baisiguel; eu
estava no exílio, mas lia os seus trabalhos, e ele nunca aceitou isso. É interessante
observar que, na década de 1980, agora que a gente começou a viver, se mudou
de novo, muita gente disse que era absolutamente inviável fazer qualquer coisa
no Brasil dentro do âmbito da escola durante o período. Também não era muito
para ter esperança; quem viveu as experiências do Presidente Médici – que não se
mede – não podia chegar muito facilmente a outras conclusões. Mas, o que acontece
agora, na década de 1980, com a vitória de alguns governos de oposição, é que não
podemos deixar de ocupar o espaço vital para cumprir a tarefa política. Desde que
a gente tenha claros os objetivos, não há por que não fazer.
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Educação popular no Brasil
ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Muito bem, adiante dessas indagações ou reflexões, eu agora diria a vocês
que, partindo dessa inviabilidade óbvia de que é impossível uma neutralidade
educativa, e, portanto, educação pode ser opressora ou libertadora, eu diria que
a educação popular só o é na medida em que ela explicita, vive e persegue um
objetivo de transformação, de ruptura com o estado burguês capitalista – essa é
a minha posição, não necessariamente a dos outros – e se encaminha no sentido
de um sonho e transformação da sociedade para um projeto socialista. Em outras
palavras, para mim, a educação popular é aquela que está a serviço dos interesses
reais das classes populares, mas que, em estando a serviço dos interesses reais das
classes populares, tem nelas, também, sujeitos desta educação, e não meras inci-
dências da educação popular feita pelos intelectuais ou pelos educadores. Então, é
uma educação que não significa, por exemplo, um simplesmente estar a favor dos
pobres, isso é um pouco demais. O que traduz a educação popular não é um voto de
solidariedade paternal aos pobres, mas o que sela um projeto de educação popular
é o seu compromisso radical de transformação do mundo.
Agora, vejam: isso implica métodos, caminhos, conteúdos, e isso não significa
que quem está envolvido em um projeto como esse não tenha e não deva ter a
consciência dos limites da sua própria prática, limites que são históricos, políticos.
Ninguém transforma o mundo na cabeça, a cabeça não é o lugar em que as trans-
formações históricas da sociedade se realizam: é na sociedade, na práxis política,
que a gente transforma a realidade. Não resulta, também, decretar que a realidade
está desta ou daquela forma e montar um esquema de ação para a realidade que a
gente descreveu na cabeça da gente, porque a ação não funciona. Por isso mesmo
é que eu acho que sem comunhão com as massas populares, sem comunhão com
elas, sem sintonia com elas, sem o aprendizado diário que aqueles e aquelas que,
por sua posição de classe sem culpa deles e delas, não são da classe proletária, mas
estão aderidos ao esforço de transformação do mundo, eu acho que o papel de quem
assim se acha é aprender diariamente na própria prática como intensificar a sua
comunhão com as massas populares.
No fundo, é desenvolver a sensibilidade das coisas que Gramsci fazia referên-
cia, no sentido de juntar a sensibilidade dos fatos, essa quase adivinhação que a
gente desenvolve, essa intuição, na medida em que a gente realmente convive com
essas massas populares e não só com os livros – mesmo que seja importante essa
convivência com os livros. Mas só na medida em que você se contagia, no melhor
sentido desta palavra, com os sonhos populares, com isso que eu venho chamando
de “manhas dos oprimidos”, que eles expressam através da sua linguagem e atra-
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vés do seu corpo; é na medida em que, mais do que intelectualizando as manhas e
a cultura dos oprimidos, eu as sinto, ou, na medida em que eu sinto e compreendo,
portanto, ponho juntas a compreensão e a rigorosidade que eu devo ter alcançado
nos meus estudos. Eu junto essa rigorosidade à sensibilidade que a massa popular
me ensina, só que quem me ensina é ela mesma.
Agora, evidentemente que, para mim, eu vou falar só em dois ou três pontos
mais, eu acho que, quando a gente faz essa opção, a gente precisa, tanto quanto a
gente possa, praticamente, diariamente, evitar um sem número de tentações que
a gente recebe. Por exemplo, a tentação de sublinhar permanentemente a teoria
contra a prática das massas populares, ou o contrário, a tentação de reduzir tudo
só à prática nas áreas populares e não aceitar a contribuição de intelectuais que
nunca foram a um córrego. Eu acho que essas duas tentações nos levam a caminhos
errados: de um lado, o perigo de você virar elitista pelo trato exclusivo do que lhe
parece ser o teórico e romper com a prática; do outro, o perigo de você romper com a
teoria e passar a considerar todo o esforço acadêmico como desnecessário e ridículo,
e aí você cai no basismo, que também é errado. Eu acho que nem o elitismo e nem
o basismo resolvem e nos ajudam em nada disso.
Na primeira hipótese – eu tenho visto muito isto –, o intelectual que, durante
muito tempo, inclusive seriamente, estuda Marx, Hegel e Gramsci, e, lá um dia, por
insistência de alguém, vai a uma área periférica de sua cidade, chega lá, descobre
em dez minutos que ele fica cheio de dedos e de palavras porque não tem palavra, ele
não sabe comunicar-se. O risco que corre aí é ser simplista, e, para mim, quando ele é
simplista, continua elitista, porque o que tem que ser é simples, mas nunca simplista
– então, são esses riscos que a prática da gente vai ensinando. Agora, é claro, só não
é possível superar esses riscos quando a gente só conhece o endereço ou o caminho
entre o apartamento da gente e o salão do seminário da universidade, não dá mesmo.
Mas quando a gente – além do endereço da universidade, que é fundamental – tem
outros endereços, o caminho para ir a outros lugares termina ensinando a gente
como é que a gente pode ser simples falando com o povão sem ser simplista.
Eu me lembro – vou contar a vocês porque achei lindo – que no ano passado
estive conversando em São Luís do Maranhão com um grupo de intelectuais que
trabalhavam em áreas populares camponesas, e nós estávamos exatamente falando
sobre certas diferenças na linguagem, ou entre a linguagem do intelectual e a lingua-
gem das classes populares, o problema da sintaxe, da semântica, que são diferentes,
o papel que tem o conceito entre nós, o papel que tem a metáfora na linguagem popu-
lar, e, de repente – é coisa que os intelectuais, às vezes, não pensam, a não ser os lin-
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guistas, noutro ângulo, não nesse –, um deles me disse: “Paulo, estive numa reunião
com um grupo de camponeses e fui três vezes seguidas tentando uma aproximação,
e falava, conversava... na quarta tentativa de encontro, houve um silêncio durante
um tempo em que falei, e um camponês, finalmente, falou e disse o seguinte: ‘Moço,
eu queria te dizer uma coisa, se tu pensas que tu vens aqui ensinar a nós como se
derruba o pau da árvore, não precisa, porque nós já sabemos, o que queremos saber
é se tu vais estar aqui na hora do tombo do pau’”. É exatamente isso que tem muito
intelectual que não quer de jeito nenhum: estar na hora do tombo do pau. Mas é
preciso estar para poder aprender como é que se defende do pau tombado, senão não
aprende. E, então, nessa mesma reunião, uma outra pessoa me contou que, em um
seminário de avaliação entre camponeses e intelectuais, um camponês disse: “Não
vai dar pra gente continuar com esse diálogo, porque, enquanto vocês aí – e o aí dizia
já bem a diferença – estão interessados no sal, nós aqui estamos interessados no
tempero, e o sal é somente parte do tempero”. Então, vejam: com linguagem metafó-
rica, simbólica, o que o camponês dizia aos intelectuais é que eles estavam perdendo
uma visão totalizante da realidade, caindo numa visão fatalística da realidade, e os
intelectuais, em um primeiro momento, não entenderam o discurso do camponês.
Então, minhas amigas e meus amigos, eu repito que as coisas que eu digo eu
digo porque vivi os fatos que me levaram a dizê-las. E não digo de jeito nenhum
que as coisas que eu digo são as coisas que devam, necessariamente, ser ditas –
mas não as coisas que eu devo dizer, que eu acho que eu devo escrever. Eu assumo
as coisas que digo, com humildade, sem nenhuma vacilação, tampouco nenhuma
pretensão de pensar que fiz muita coisa. Eu acho que estou fazendo alguma coisa
que satisfaz a mim enquanto gente, mas não que eu pense que essa alguma coisa
é uma coisa extraordinária, mas também não é coisa desprezível, que não tem o
seu valor relativo no processo de que nós todos fazemos parte. Eram considerações
assim, para não demorar mais, que eu queria fazer a vocês. E agora temos, aí, um
bom tempo para conversar.
Debate:
Prof. Paulo, em suas obras, frequentemente, aparece a palavra epistemologia.
Gostaria que o senhor, resumidamente, tecesse algumas considerações a respeito.
Em segundo lugar, gostaria que o senhor tecesse algumas considerações sobre op-
ção política, pois os professores, muitas vezes, diante da coerência, não sabem se
posicionar por medo, desconhecimento ou omissão. Em terceiro lugar, gostaria que
604
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Paulo Freire
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o senhor falasse alguma coisa sobre a educabilidade do partido no partido e sobre
qual é a sua opção partidária.
Bem, vou começar, assim, de trás para frente. Eu gostaria de, falando sobre
a questão do partido, dizer o seguinte: em primeiro lugar, para mim, o educador é
político pela própria natureza política de sua prática, cedo ou tarde. O ideal é que
o educador se insira numa prática partidária e que ele perceba a dimensão política
ou a natureza política da própria prática pedagógica. Para mim, porém, o fato de ser
político (inaudível) não pode levar, e digo mais ainda, ao fato de pretender e de bus-
car até convencer o educando do acerto de minha análise, não me leva, de maneira
nenhuma, a restringir o espaço e a voz do educando, porque esse não pertence ao
partido a que eu me filiei; esse é um pormenor que eu acho fundamental. Eu me lem-
bro que uma vez dei dez a um texto com o qual eu discordava totalmente do ponto de
vista político. Agora, por exemplo, que eu explicite a minha filiação, eu gostaria, não
há por que não expressar isso, mas o que eu gostaria – nós vivemos numa sociedade
tão intolerante, que tem um ranço tão antidemocrático –, que eu me vejo a dizer o
que vou dizer agora, eu vou dizer a todos vocês que estão aqui, e todas que estão aqui
– quer não concordem com minha posição partidária, eu os respeito e as respeito –,
mas não posso esconder que sou um membro não muito bacana, mas um militante
razoável do Partido dos Trabalhadores. Só estou falando isso porque ele me pergun-
tou e eu acho que toda a pergunta tem que ser respondida, até quando é provocadora,
o que não é o caso. Mas eu tenho total respeito por quem não fez esta opção, nem eu
vim aqui tentar ver se mudo a opção de ninguém nesse encontro, de forma nenhuma.
Eu sou PT por inúmeras razões, inclusive por esta radicalidade democrática. Eu sou
PT porque o PT é uma das coisas novas – eu não diria melhor, de jeito nenhum –, mas
é um fato novo na história política desse país, porque é a primeira vez, na história
política desse país, que um partido de trabalhador surge das classes trabalhadoras
sem uma minoria de intelectuais se decretando vanguarda dos trabalhadores. Eu
acho esse um fato novo que me fez aderir ao PT.
Sobre a epistemologia, toda vez que eu uso essa palavra, eu uso sob um
sentido mais restrito, que tem que ver com a teoria do conhecimento.
Prof. Paulo, manifesto-lhe o carinho do Rio Grande do Sul, porque o senhor
o viu oito dias atrás em Rio Grande, e, hoje, em Passo Fundo. Isso é realmente a
manifestação de carinho dos gaúchos para com o senhor, e o reconhecimento da sua
liderança. Considerando que há uma luta, o povo quer mudar, mas há uma luta
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Educação popular no Brasil
ESPAÇO PEDAGÓGICO
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entre em ir ao colégio eleitoral ou não ir ao colégio eleitoral, porque isso implica
numa contradição ou não, e admitindo que o meu sonho seja o socialismo – porque
acredito que o socialismo está mais perto do cristianismo do que do capitalismo,
eu sou cristão –, sendo este o meu sonho, de que forma o senhor aconselharia como
prática: uma mudança gradual ou uma mudança radical? Lutar por isso que eu
acredito desesperadamente, sem caminhos, mas lutar apenas com isso como meta,
ou fazer mudanças gradativas? Eu gostaria de uma observação a respeito.
Eu acho que essa pergunta, em primeiro lugar, não é uma pergunta abstrata, é
uma pergunta profundamente histórica, é uma pergunta histórica no caso brasileiro
de hoje. Não é uma pergunta que vá se fazer noutro campo igual a essa, ou melhor,
pode-se fazer noutro sítio, a resposta não pode ser igual, nem sempre. E houve mo-
mentos em que essa pergunta foi feita na Nicarágua, e a resposta foi outra porque
pode ser outra. Não é o caso brasileiro, não acredito que a gente tenha outras respos-
tas. Eu acho que das qualidades que um homem e uma mulher de esquerda devem
revelar é essa possibilidade de usar a história, adivinhar. Ora, evidentemente, eu
acho que nós estamos em um momento – e parece que nunca teremos vivido tanto no
Brasil como hoje – de uma espécie de vontade de encarnar a democracia. Quando eu
falo em democracia, não estou falando em democracia burguesa, democracia disso,
democracia daquilo. É que há a inexperiência do brasileiro nisso – o ranço autoritário
do país é tal que a democracia é sempre vista no Brasil como adjetivo, e nunca em
sua substantividade. Aliás, eu queria, em um parênteses, sugerir a vocês a leitura de
um livro que saiu em São Paulo, exatamente há oito dias, disse-se que já se esgotou
a primeira edição, que se chama Por que democracia?, de Francisco Weffort, que
é secretário-executivo do PT e que está sendo chamado por alguns democratas de
social-democrata, etc.; você vê, o ranço contra a democracia nesse país quanto à subs-
tantividade democrática é terrível; você fala em democracia, o outro já está assim
cutucando o adjunto e dizendo “Está vendo? Já caiu na social-democracia” ou “Está
vendo como ele é populista?”, quer dizer, não dá. Evidentemente que no momento a
gente está vivendo isso, a possibilidade de cunhas dentro do processo.
Agora, se a pergunta do nosso amigo teria que ver com saber de mim a posição
do partido a que eu pertenço, está claro, todo mundo sabe aí, mas pode querer sa-
ber a minha com relação ao chamado colégio. Uma das coisas boas do PT é a gente
poder discordar do PT, sem nenhum problema de levar carão, não ter medo que
venha uma caderneta com letra encarnada, em casa, com “O Paulo se comportou
mal”. Eu tenho uma posição parecida com a posição aceita até hoje pelo PT – que é
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Paulo Freire
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diferente em grande parte da posição do meu amigo, companheiro, deputado e líder
do PT em Brasília, Soares –, que é a seguinte: o PT foi às praças públicas, às ruas,
durante a campanha das diretas, não porque pretendesse conseguir um cacique
para depois transar com o poder, de cima para baixo, dizendo “os senhores viram
o povão que veio, vamos fazer acordos agora de cima para baixo”. O PT não foi lá
para isso, o PT foi porque radicalmente não concebe a democracia sem povo. O que
está acontecendo neste país é que tem muito democrata para quem a democracia
se estraga se o povo chega. É como alguns professores, também, que acham uma
beleza dar aulas desde que não haja alunos.
Sobre o colégio eleitoral, o PT diz: não vou lá. Agora, qual a minha posição?
Minha posição seria a seguinte: se, e daqui para lá vai se saber bem se Maluf ganha
por dez votos, não tem por que irmos ao colégio; se Maluf perde por seis, também
não tem por que ir lá. Em última análise, eu acho que o PT só deveria ir ao colégio no
caso em que Maluf pudesse ganhar, porque eu acho que até numa análise de classe
eu distingo o Maluf de Tancredo. Tancredo é um homem da classe dominante, um
liberal conservador. Aliás, em entrevistas, ele revela o seu conservadorismo, o seu
realismo, com aspas, de que Cuba, por exemplo, é exportadora de revolução, portan
-
to, não se pode reatar relação com Cuba, de que a teologia da libertação é uma coisa
ruim, porque não é teologia, é uma ciência social, quer dizer, são declarações, cá pra
nós, que deixam muito a desejar. Mas eu estabeleço uma radical diferença, e essa
diferença faz a diferença, entre o senhor Tancredo e o senhor Maluf. Maluf é uma
espécie de lumpen da burguesia, e Tancredo é um homem da burguesia, mas de an
-
temão ele já disse como pensa sobre Cuba, não tem que esperar outra coisa, vai con-
tinuar dificultando cubano de entrar aqui, tudo isso. Mas, indiscutivelmente, para
mim, esta diferença mínima faz a diferença no período de transição, então se fosse
fundamental o voto do PT, o PT devia dar o voto, mas não tinha que pedir coisíssima
nenhuma, nem fazer acordo nem aceitar nada. O PT não precisa ter ministro, nem
delegado de polícia, e cumpre a tarefa e continua lutando cá, independentemente,
porque eu também tenho a impressão de que muita gente que reclama por que o
PT já não decidiu, é porque se encontra incomodada de estar sem nós, precisa de
alguém que chegue para contestar a posição de ir ao colégio eleitoral. Mas, vejam
bem: esta é a posição do puro militante de partido que não interfere nos destinos do
partido, a não ser como militante. Essa é a minha posição, que eu digo de público,
porque disse numa conversa íntima com o Lula, é assim que eu penso.
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Educação popular no Brasil
ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Prof. Paulo Freire, dentro da colocação de educação popular, como o senhor co-
loca a preocupação, nos termos de educação popular, com a questão ecológica, o pro-
blema da fome, da criança ter condições de aprender nos meios, e sobre como tem-se
usado o homem como instrumento para explorar o meio-ambiente, a natureza?
Eu acho que esta questão tem dois pontos. Ela pergunta quanto à questão da
educação popular e fome; e educação popular e meio ambiente, o homem e a explo
-
ração do meio-ambiente, a política do meio-ambiente. Eu gostaria de dizer a vocês,
com relação a essa segunda questão: nos anos 1970, quando eu estava ainda no exílio,
movimentos feministas e de defesa do meio-ambiente começavam a ganhar força nos
EUA, na Europa, e eu me lembro de alguns amigos com quem eu conversava, de
esquerda também, que em certo sentido não apostavam nada nesses movimentos por
-
que diziam que a luta das mulheres, por exemplo, não estava com o porte de classe,
de luta de classes – a luta dos ecologistas, que essa coisa estava fora da ótica da luta
de classes. Eu dizia: olha, eu acho que vocês estão errados. Sabe, em primeiro lugar,
indiscutivelmente, seria um absurdo, uma miopia trágica não pretender reconhecer
isso. A questão não é nem sequer inventar uma luta de classes, é simplesmente reco
-
nhecê-la, está aí, e foi isso que Marx disse numa de suas cartas: os economistas bur-
gueses me antecederam, me precederam, na constatação da luta de classes. O que fiz,
diz ele, foi etc., etc. Mas acontece o seguinte: sem a compreensão da luta de classes me
parece difícil entender essas coisas, mas a luta de classes sozinha também não explica
tudo. Eu acho que é essa ótica que, às vezes, falta em uma perspectiva mais estreita,
mais sectária dos fenômenos, e a ciência não está aí para ser distorcida.
Acontece que, por exemplo, eu não sei se bem ou mal, não quero discutir o
acerto ou desacerto, os ecologias trouxeram um milhão e quinhentos mil votos du-
rante a campanha de François Mitterand, e derrotaram a direita, caíram num so-
cialismo que é o possível lá. Os “verdes”, na Alemanha, há um ano ou dois, fizeram
mais ou menos o mesmo. Eu até diria que um dos problemas que a ciência política
– também os educadores, os políticos, os militantes – teriam que encarar, neste fim
de século, é exatamente o do papel dos movimentos populares sociais, problema
ligado ao papel fundamental não própria e exclusivamente da tomada do poder,
mas da reinvenção do poder. Esse é um fato absolutamente fundamental, impor-
tante, e digo mais: na medida em que partidos populares e não populistas deixarem
de se aproximar dos movimentos sociais populares, para, aprendendo com eles,
ensinar algo a eles sem nunca pretenderem se apoderar deles; na medida em que
os partidos de esquerda, populares e não populistas, não aprendam a fazer isso,
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Paulo Freire
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eu acho que eles são postos entre parênteses, de escanteio, neste fim de século. A
questão é saber como. Implica toda uma metodologia de aproximação, implica toda
uma compreensão das culturas das massas, implica toda uma análise das “manhas
populares” dos oprimidos, que nunca introjetam a ideologia dominante totalmente
– como muita gente pensa, antidialeticamente, de que tudo que vem das massas
populares é ideologia dominante, quando não é a própria ideologia dominante, ou
certos valores dominantes são apropriados pelas massas populares, tal qual se faz.
O capitalismo é sobretudo um regime, um sistema de apropriação, e as massas po-
pulares também se apropriam, às vezes, de valores culturais dominantes e refazem
os valores, reinventam esses valores. Eu acho que ou a gente como se faz isso, e a
gente só aprende isso na medida em que a gente convive, comunga com as massas
populares, e não apenas na medida em que a gente fala delas, como conceitos, como
análises de textos, ou eu acho que aí não dá, tem que se estar com as massas.
Gostaria de saber qual é a maneira mais lógica de estabelecer uma educação
socialista num país que é dominado pela ideologia imperialista americana.
Não há essa receita. Teve um cara barbudão, com a barba maior que a tua e
a minha e com uma contribuição ao mundo que nem tu nem eu demos – tu, pelo
menos, não deste ainda, e eu não vou dar mais –, que disse uma vez uma coisa mais
ou menos assim: “a história não é nenhum poder, nenhuma entidade poderosa que
paire sobre os homens (e simplesmente diria ‘e as mulheres também’) e que os faça à
sua maneira. Pelo contrário, em lugar de ser este poder supra, a história é feita pelos
homens (e eu acrescentaria, com todo o respeito, ‘e pelas mulheres’) que ao fazerem a
história são feitos pela história”. Eu não sei se vocês conhecem, aqui, no Rio Grande
do Sul, uma coisa que se usava no Nordeste, que se usa ainda hoje por lá, que é de
tirar manga verde, banana verde, de botar dentro de um caixão, meter carbureto, e
depois de um certo período, se tira a manga e ela está toda corada, com a pinta de
madura. Eu sempre digo o seguinte: se é possível fazer a aparência de uma manga
mudar com carbureto, não é possível a história com carbureto. História se faz mesmo
ou não se faz, e não se faz na cabeça da gente, se faz lutando, brigando, sabendo
lutar, aprendendo a lutar, aprendendo a encontrar o momento exato da luta.
Então, o fato de a gente ter um imperialismo grandão, desse tamanhão aí, de-
fronte à gente, não é suficiente, porque ele é maior ainda na Nicarágua do que aqui,
e o povo nicaraguense se independenciou. É possível que até se acabe aquilo, porque
eles já invadiram Granada, que eu conheci de perto a lindeza daquela revolução,
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Educação popular no Brasil
ESPAÇO PEDAGÓGICO
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onde eu estive, também, imediatamente à vitória da revolução – eu fui convidado,
e estive lá duas vezes e conversei com o comandante várias horas. Nicarágua tam-
bém eu conheço, conheço de ir, não de ler, porque trabalharam com algumas das
minhas ideias. Agora, o momento histórico brasileiro não é o da Nicarágua, nem o
tamanho do Brasil, isto aqui é um continente. Eu acho que a gente não pode fazer
a transformação radical dessa sociedade por decreto, o que já deixava de ser, isso
era golpe de Estado. Revolução, mesmo, a gente tem que ir vivendo os momentos
viáveis, isso tem que ver com uma coisa que eu sempre digo, e não faz mal repetir:
em história, se faz o que se pode, não o que se gostaria de fazer.
A questão que se coloca aí é saber quem define o que se pode. A prática define
isso, é levando chapoletada que você delimita o espaço, estabelece o espaço viável.
Por outro lado, se em história se faz o que se pode e não o que se gostaria de fazer,
significa que a melhor maneira de fazer amanhã o que hoje não pôde ser feito é
fazer hoje o que hoje pode ser feito. É fazendo o que posso fazer agora que me pre-
paro, e a história também, para fazer amanhã o que hoje não é possível fazer. Isso
coloca a questão do espaço, do limite, e a questão de limite coloca outra questão em
face dele, que é o medo, a vaidade, a intolerância, o sectarismo, todas essas não
virtudes entram nisso. O que acontece é que, muitas vezes, a gente fica aquém do
limite ou a gente fica além do limite: se a gente ultrapassa o limite, o porrete chega,
se a gente fica aquém do limite, o poder preenche o espaço que você permitiu a ele
fora da briga, e você vai para mais atrás ainda. Não recuar demasiado na luta é
absolutamente fundamental para poder fazer um dia essa sociedade com a qual
você sonha e nós sonhamos.
Como conciliarias teu posicionamento religioso com tua posição antissectária?
Gostaria de uma opinião sobre o fato de que no teu conceito de verdadeira revolução
há espaço para negociação no poder, e se há um momento em que não negociar o
poder é uma atitude ingênua politicamente.
De qualquer maneira, lê o livro Por que democracia?, ele encarna a segunda
questão muito bem. Estou dizendo que ele leia o livro, não importa as críticas que
se façam a ele, precisa ler. Com relação ao primeiro momento, eu gostaria de dizer
a vocês que, por exemplo, em primeiro lugar, eu não me acho muito religioso. Vou
tentar explicar isso, eu me acho mais e agora até peço desculpas, porque o que eu
vou dizer pode parecer muito arrogante de minha parte, e eu não gostaria de dar a
impressão de ser arrogante, que é um troço que eu acho horrível. O que eu queria
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Paulo Freire
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dizer é que eu me sinto muito mais um homem à procura de guardar a fé do que um
homem religioso, meditem depois sobre a diferença sutil entre uma coisa e outra.
Eu vivo cuidando com certo carinho da minha fé, o que eu digo nesse sentido, por
exemplo, eu tenho excelentes conversas com amigos, inclusive cubanos, revolu-
cionários, nicaraguenses, não cristãos. Se você me pergunta: como você concilia
essa fé num transcendente com a tua preocupação fundamentalmente histórica de
transformar o inerente – não é uma contradição? Eu diria: não, não é. A única coisa
que pode receber uma espécie de retificação seria a seguinte: no momento em que
eu creio no Cristo não apenas como gente como eu, eu estou admitindo um a priori
da história. Evidentemente que Marx, se fosse vivo, conversando comigo, talvez
rindo, talvez zangado, me dissesse: mas isso é uma doidice, uma loucura! Eu diria,
então: deixa comigo o direito de ser doido.
Eu tenho ou não tenho o direito de ser contraditório se a minha contradição
não trabalhar contra os interesses das massas populares? Eu acho que tenho. O
que não posso fazer é, em nome da transformação do nosso país, usar minha fé para
sustentar Maluf; usar minha fé para sustentar a burguesia nesse país, nesse poder,
nem em canto nenhum, e isso ninguém nesse país prova que eu tenha feito. Segun-
do a minha compreensão – agora teológica, da relação mundo-transcendência, que
não é uma compreensão antinômica –, em outras palavras, para mim, é impossível
alcançar a meta histórica sem passar pela história, sem atravessar a história. E o
problema é saber como é que eu atravesso a história, em favor de quem e em favor
de quê. Pois eu quero fazer essa travessia, até chegar lá, lutando pela transforma-
ção da sociedade, para implantar um sistema socialista neste país, mas em que
eu tenha o direito de continuar dizendo que acredito na transcendência. Essa é a
minha posição, eu acho que não tem contradição muito grande aí, e, fora disso, acho
que não tem muito mais, a não ser a nível de certas posições extremamente pouco
democráticas de alguns revolucionários.
Mas se tu me perguntas se eu acho que é a consciência, que é a subjetividade
que cria a materialidade e cria a objetividade, eu te digo não, de jeito nenhum. A
objetividade gera a subjetividade, mas acontece que a subjetividade não é puro
reflexo da objetividade, daí a relação entre ambas não ser uma relação mecânica,
mas dialética, contraditória, dinâmica, processual, de tal maneira que a consciên-
cia, ou a subjetividade, enquanto condicionada, se volta reflexivamente sobre o
condicionante e reconhece o seu condicionamento. Para mim, é por isso que há
possibilidade de briga, que há luta pela transformação. Eu não posso, com isso,
exigir que aceitam, por exemplo, uma imposição; eu acho que política tem que ver
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Educação popular no Brasil
ESPAÇO PEDAGÓGICO
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com negociação. Às vezes, o problema é saber o seguinte, eu vou te dar um exemplo
histórico, que não é brasileiro, mas que é histórico recente: Mao Tsé-Tung coman-
dava a sua grande avalanche na China, e os japoneses, o imperialismo japonês,
invadiu a China. Naquele momento, o inimigo principal se transformou no japonês,
e Chiang Kai-Sheck e Mao Tsé-Tung tiraram retrato juntos e juntaram os seus dois
exércitos, fizeram um pacto. Naquele momento, puseram entre parênteses a con-
tradição antagônica entre os dois sem ter modificado a natureza do antagonismo
entre os dois, puseram o antagonismo entre parênteses, derrotaram o inimigo e,
quando os japoneses foram expulsos, tiraram o antagonismo dos parênteses, mete-
ram o porrete um no outro, e Chiang Kai-Sheck se acabou. Política também é isso,
porque isso é história. E não há por que não fazer.
Meus amigos e minhas amigas, não gostaria de sair daqui sem deixar muito
vivo, de um lado, o meu agradecimento por terem me chamado e trazido até aqui; de
outro, sem deixar de, uma vez mais, insistir nas desculpas que eu apresento por ha-
ver diminuído o meu tempo com vocês, mas entre não vir e vir diminuindo, eu preferi
vir diminuindo. Finalmente, gostaria de deixar umas palavras bem jovens, apesar
dos meus 63 anos, bem jovens aos jovens que estão aqui, estudantes, e aos jovens e
às jovens professoras também, a minha palavra de esperança em que a gente, trans-
formando o hoje da gente, a gente cria um amanhã menos ruim do que este de hoje.
A minha esperança em que a emoção de vocês não se acabe, não fique adstrita
aos dias de um encontro maravilhoso como este, mas, pelo contrário, essa emoção
acompanhe vocês na briga necessária de vocês, na briga do estudante por melhores
condições de trabalho enquanto estudante, do professor, da professora, pela reivin-
dicação de seu salário menos injusto, mas a briga também para poder ser ou ter o
direito de ser melhor educador neste país.
Um grande e fraterno abraço a todos e todas.
Nota
1
Esta conferência foi captada em áudio, degravada, preservando a oralidade de Paulo Freire, e publicada
em 1986, no compêndio Palestras e Debates do I Colóquio Nacional de Educação Popular. O evento rea-
lizou-se em Passo Fundo, RS, entre os dias 23 a 26 de outubro de 1984, foi organizado pelo 7º Núcleo do
Centro de Professores do Estado do Rio Grande do Sul. A versão original foi organizada pelos professores
Lourdes Solange Camargo Faria, Nedison Faria e Lourivan Fisch de Figueredo. Esta versão, procurando
maior clareza e objetividade, foi revista e reeditada por Marcelo Ricardo Nolli, mestrando do Programa
de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Passo Fundo, e Eldon Henrique Mühl, professor do
mesmo programa. Agradecemos aos organizadores do evento pela autorização para a publicação da confe-
rência neste dossiê em homenagem aos 50 anos de publicação de Pedagogia do oprimido e ao centenário de
nascimento de Paulo Freire, em 2021.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Carlos Ernesto Noguera-Ramírez
v. 27, n. 3, Passo Fundo, p. 612-627, set./dez. 2020 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
La pedagogía del oprimido: una relectura pedagógica
The pedagogy of the oppressed: a pedagogical rereading
A pedagogia do oprimido: uma releitura pedagógica
Carlos Ernesto Noguera-Ramírez
*
Resumen
Teniendo en cuenta la amplísima literatura sobre la pedagogía del oprimido, el presente texto se propone
realizar una lectura desde una dimensión poco abordada o, por lo menos, aminorada en las lecturas más
frecuentemente disponibles: justamente su dimensión pedagógica. Un intento como el propuesto aquí signica
releer el libro de Freire desde el horizonte conceptual de la pedagogía y ello implica desplazar (no negar) el
carácter eminentemente político otorgado a la pedagogía del oprimido y recuperar sus vínculos estrechos con
el pensamiento y la tradición pedagógica occidental. En particular, la relectura de la obra cumbre de Freire en
clave pedagógica implica un triple trabajo: primero, localizarla dentro de una antigua tradición según la cual la
politeia se entiende, en lo fundamental, como paideia; segundo, resaltar que el proceso de liberación a través
de la educación solo puede realizarse mediante un proceso de concientización que lo coloca en un horizonte
gnoseológico o epistémico: tránsito que el oprimido debe llevar a cabo desde la doxa hacia el logos; tercero,
reconocer que el n de la educación liberadora es la humanización de los hombres (oprimidos y opresores) y, en
esa medida, se trata de una cuestión claramente “antropotécnica.
Palabras-clave: Pedagogía. Antropotécnica. Concientización. Humanización.
Abstract
Taking into account the vast literature on the pedagogy of the oppressed, the present text sets out to carry out
a reading from a dimension that is little addressed or, at least, reduced in the most available readings: precisely
its pedagogical dimension. An attempt like the one proposed here means rereading Freire’s book from the
conceptual horizon of pedagogy and this implies displacing (not denying) the eminently political character
given to the pedagogy of the oppressed and recovering its close links with Western pedagogical thought and
tradition. In particular, the rereading of Freires masterpiece in pedagogical terms involves a triple task: rst,
locating it within an ancient tradition according to the quality of politeia understood, fundamentally, as paideia;
second, highlighting the process of liberation through education can only be achieved through a process of
conscientization that is placed on a gnoseological or epistemic horizon: transit that the oprimido must carry out
from the doxa to the logos; third, to recognize the end of liberating education is the humanization of men and,
to that extent, it is a clearly an”anthropotechnical” issue.
Keywords: Pedagogy. Anthropotechnic. Conscientization. Humanization.
*
Doctor en Educación (UFRGS) y Profesor Titular Universidad Pedagógica Nacional de Colombia. Miembro del grupo
de investigación Historia de las Prácticas Pedagógicas en Colombia y de la Sociedad Colombiana de Pedagogía. OR-
CID: http://orcid.org/0000-0001-9848-0724. E-mail: cnoguera@pedagogica.edu.co
Recebido em 04/08/2020 – Aprovado em 28/09/2020
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i3.12366
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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La pedagogía del oprimido: una relectura pedagógica
v. 27, n. 3, Passo Fundo, p. 612-627, set./dez. 2020 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Resumo
Levando em conta a vasta literatura sobre a pedagogia do oprimido, o presente texto se propõe a realizar uma
leitura desde uma dimensão pouco abordada ou, pelo menos, reduzida nas leituras mais frequentes disponíveis:
justamente sua dimensão pedagógica. Uma tentativa como a proposta aqui signica reler o livro de Freire
desde um horizonte conceitual da pedagogia, e isso implica deslocar (não negar) o caráter eminentemente
político outorgado à pedagogia do oprimido e recuperar seus vínculos estreitos com o pensamento e a tradição
pedagógica ocidental. Em especial, a releitura da obra-prima de Freire em chave pedagógica implica um
trabalho triplo: primeiro, localizá-la dentro de uma tradição antiga segundo a qual se compreende a politeia
fundamentalmente como paideia; segundo, ressaltar que o processo de libertação através da educação só
pode realizar-se mediante um processo de conscientização que o coloca em um horizonte gnosiológico ou
epistêmico: trânsito que o oprimido deve levar a cabo da doxa até o logos; terceiro, reconhecer que a nalidade
da educação libertadora é a humanização dos homens (oprimidos e opressores) e, nessa medida, se trata de uma
questão claramente “antropotécnica.
Palavras-chave: Pedagogia. Antropotécnica. Conscientização. Humanização.
Introducción
La pedagogía del oprimido se ha traducido a más de treinta idiomas y sólo en
Brasilla editorial que realizó la primera impresión ya completó su quincuagésima
edición. Fue publicada inicialmente en lengua inglesa en 1970, en los Estados Uni-
dos, pero sólo se conoció en Brasil hasta 1974 después de su publicación en español,
italiano, alemán, griego, francés, holandés y portugués en Portugal (ARAÚJO,
2017). Desde las “primeras palabras” queda claro el talante de la obra y el tono
general de la escritura freireana: no es el fruto de unos “devaneos intelectuales” ni
sólo el resultado de lecturas, por más importantes que ellas hayan sido, nos aclara
su autor: consiste en una reflexión sobre situaciones concretas, de observaciones
sobre varios años de una práctica educativa claramente comprometida con un pro-
yecto revolucionario de transformación social en cuyo horizonte está “la liberación
de los hombres”.
Se trata de un nuevo propósito pedagógico para el cual fue necesario construir
un nuevo vocabulario. A diferencia de otras obras sustentadas en disciplinas como
la psicología, la biología, la sociología, Freire prefirió utilizar en sus libros, menos
un lenguaje académico que un discurso literario cercano al género epistolar y a la
oralidad (él mismo calificó algunos de sus trabajos como “libros hablados”) en el
que prevalecen ideas de varios pensadores provenientes de diferentes corrientes
filosóficas, principalmente de la fenomenología. Su estilo, no obstante, en nada
resta importancia a su trabajo como lo muestra el hecho de ser reconocido por la
UNESCO como uno de los grandes educadores del siglo XX (GERHARDT, 1993)
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y por algunos investigadores del campo, como el último de los grandes pedagogos
(NARODOWSKI, 1997).
La bibliografía sobre Paulo Freire es amplísima, de tal modo que pretender
decir algo novedoso sobre su trabajo y, en particular, sobre su pedagogía del oprimi-
do, resulta una empresa muy arriesgada
1
. Consciente de ello, asumo este riesgo te-
niendo en mente dos objetivos: primero, uno de carácter personal: revisitar la obra
a partir de la cual se abrió para mi un horizonte de estudio y de trabajo profesional
hace casi cuarenta años; segundo, uno de carácter público: la conmemoración de
los cincuenta años de su primera edición. Con este escrito, me propongo, enton-
ces, examinar algunos conceptos de la pedagogía del oprimido cuya elección está
relacionada con su resonancia en los estudios que he realizado durante la última
década. En ese sentido, es una elección interesada, es decir, no busca ser objetiva
y, por ese motivo, el análisis desarrollado no tiene una pretensión de fidelidad, lo
que no significa un manejo descuidado de los conceptos y su respectivo contexto.
No obstante, es necesario señalar que no hay aquí un intento de esclarecer qué fue
lo quiso decir Freire con tal o cual término, sino de explorar cómo esos conceptos
se pueden articular con el amplio horizonte conceptual de la pedagogía
2
, y en ese
sentido, cuál es su potencia pedagógica, es decir, en qué consiste su carácter “an-
tropotécnico”
3
.
Sobre el carácter pedagógico de la pedagogía del oprimido
Al parecer, la calificación de la pedagogía de Freire como “del oprimido” le otor-
ga a su propuesta un marcado carácter político, de ahí que sea considerada como
una verdadera ruptura con las tradiciones pedagógicas modernas. En la medida en
que coloca la acción educativa en una dimensión netamente política, evidente en
su propio objetivo (la liberación de los oprimidos), la pedagogía del oprimido sería,
entonces, una teoría práctica (qué, cómo y por qué) de la revolución, es decir, de la
transformación radical de la actual sociedad opresora. Consecuentemente con ello,
el educador progresista es considerado un líder revolucionario ysu acción funda-
mentalmente política, pues su papel consistiría en la creación de las condiciones,
conjuntamente con los oprimidos, en las cuales sea posible su concientización y, por
tanto, su liberación y humanización.
Considero que la anterior línea de análisis, compartida por la mayoría de sus
seguidores, ha debilitado la propuesta pedagógica de Freire y, en muchas ocasio-
nes, ha llevado a substituir la acción educativa (liberadora) por un activismo po-
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lítico, y en el peor de los casos, por aquello que el propio Freire rechazaba: por la
“esloganización, por la verticalidad, por los comunicados”, pretendiéndose así “la
liberación de los oprimidos con instrumentos de la domesticación” (FREIRE, 2005,
p. 68). Aunque es evidente la apuesta política que tiene el análisis freireano de la
educación, ello no debe ser un impedimento para percibir que es, en primer lugar
y fundamentalmente, una apuesta pedagógica. Pero ¿qué significa decir que la
pedagogía del oprimido es una apuesta pedagógica antes que política?
En primer lugar, significa reconocer que la obra freireana no es ajena a una
tradición que se remonta a la antigüedad y según la cual existe la politeia es pensa-
da como paideia, tradición que hoy podríamos calificar como una operación de “pe-
dagogización de la política”. El primero en llevar a cabo esa operación fue Platón en
La República, pero podríamos reconocer ese mismo gesto en el Emilio de Rousseau
y, finalmente, en la pedagogía del oprimido donde Freire convierte la revolución
social en un asunto “esencialmente pedagógico”.
En segundo lugar, el libro de Freire constituye más una apuesta pedagógica
que política, en la medida en que allí se entiende que la liberación sólo puede
lograrse a través de una acción pedagógica cuyo sentido es hacer posible el paso
de la conciencia ingenua hacia la conciencia crítica, es decir, únicamente puede
alcanzarse la liberación mediante una acción sistemática y metódica – que exige
un método – a través de la cual el sujeto pueda realizar el tránsito desde la doxa
hacia el logos. Dicho en otras palabras: en tanto la liberación implica un proceso de
concientización, su horizonte es de carácter gnoseológico, es decir, consiste en una
acción realizada en clave epistémica.
En tercer lugar, reconocer el carácter pedagógico (antes que político) de la pro-
puesta freireana significa entender que la educación es una condición fundamental
para la humanización, puesto que la educación, en su sentido antropológico (no
antropocéntrico), consiste en un conjunto de prácticas y técnicas cuyo propósito es
“ser más” (FREIRE, 2005) o, usando otros términos y otro horizonte conceptual, el
de la antropología filosófica, que la educación es la principal antropotécnica moder-
na, pues reconoce que al ejercer una gran “tensión vertical” en cada individuo se
optimiza el estado inmunológico general de la humanidad (SLOTERDIJK, 2012).
A partir de estas tres comprensiones es posible, entonces, emprender la relec-
tura de la pedagogía del oprimido en clave pedagógica. A continuación, se explicará
en mayor detalle las implicaciones de cada uno de los anteriores enunciados en la
perspectiva de mostrar que nuestro propósito no es redundante y sí muy necesario
cuatro décadas después de la primera publicación de la obra.
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La politeia como paideia
Pedagogizar la acción política significa considerar que los medios y los fines
políticos son, en lo fundamental, de carácter educativo. Quien primero realizó esta
operación fue Platón en su un texto que, a pesar de su título (Politeia, generalmen-
te traducido como La República), está dedicado a análisis de la educación como
elemento fundamental de la organización social. Tal vez haya sido W. Jaeger (obra
publicada originalmente en alemán en 1933) quien por primera vez planteó esta
tesis que hoy siguen varios estudiosos. Según el filólogo alemán:
Su República no es una obra de derecho político o administrativo, de legislación o de polí-
tica en el sentido actual […] En última instancia, el estado de Platón versa sobre el alma
del hombre. Lo que nos dice acerca del estado como tal y de su estructura, la llamada
concepción orgánica del estado, en la que muchos ven la verdadera médula de la República
platónica, no tiene más función que presentarnos “la imagen refleja ampliada” del alma y
de su estructura. Y frente al problema del alma Platón no se sitúa tampoco en una actitud
primariamente teórica, sino en una actitud práctica: en la actitud del modelador de almas.
La formación del alma es la palanca por medio de la cual hace que su Sócrates mueva todo
el estado. El sentido del estado, tal como lo revela Platón en su obra fundamental, no es otro
que el podíamos esperar después de los diálogos que le preceden, el Protágoras y el Gorgias.
Es, si nos fijamos en su superior esencia, educación. (JAEGER, 2010, p. 590-591).
En esa misma línea, décadas después E. Havelock (1994, obra publicada ori-
ginalmente en 1963) insiste en que el título del texto platónico no debe llevarnos
a engaño, pues sólo un tercio de la obra está dedicada a las cuestiones del Estado
propiamente dichas. Por el contrario, a lo que apunta, fundamentalmente, ese tex-
to clásico es a “un ataque al sistema educativo griego” (HAVELOCK, 1994, p. 27).
Para Havelock el propósito de Platón es cuestionar el uso que los artistas hicieron
de la poesía y la tragedia, por tanto, de la oralidad y la mimesis, como medios
básicos para la educación del pueblo griego. En contraposición, con su República
ideal Platón señala la importancia de la escritura y de la razón para la formación
de un nuevo ciudadano que ya no esté constituido sobre la base del “embrujo de la
memorización” (oralidad) sino en la psyche y la capacidad de cálculo razonado que
implica dado su soporte en la escritura.
Con Emilio o de la educación Rousseau resaltó, nuevamente, la centralidad de
la educación en la constitución de una nueva sociedad, pues para llegar a ella era
preciso formar un nuevo hombre que, libre de los prejuicios de su tiempo y alejado
de las perversiones de la civilización, asumiese la tarea de construir el nuevo pacto
social en sintonía con las leyes naturales. El título del libro tampoco debe engañar-
nos: no es sólo una novela sobre la educación de Emilio sino, además, un tratado
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político cuyo antecedente es, justamente, la República platónica
4
. Y a pesar de las
consideraciones de algunos filósofos y de investigadores de las ciencias sociales,
habría que recordar las palabras del propio Rousseau sobre su libro:
Jamás hubo publicación alguna que obtuviese tantos elogios particulares, ni tan poca apro-
bación del público. Lo que de ella me dijeron, lo que me escribieron las personas más capa-
ces de juzgarla, me confirmaron en la creencia de que esta era la mejor y más importante
de mis obras (ROUSSEAU, 1999, p. 525).
La crítica más contundente a la civilización de su tiempo, a los hombres de su
época, está en el Emilio, pero también allí está su propuesta de restauración de la
humanidad. La reforma social no se llevará a cabo mediante una transformación
de orden político sino educacional: solo la transformación radical de la educación
podrá llevar a la transformación radical de la sociedad. El nuevo hombre destinado
a instaurar la nueva sociedad no podrá salir de la vieja escuela ni se formará me-
diante una enseñanza rigurosa: es por la educación que desde entonces se vincula
íntimamente con las ideas de naturaleza, libertad e interés del “agente” (infante)
que aprende en un “medio” especialmente adaptado para tal fin. Emilio no es el
príncipe para el que escribió Erasmo, ni el gentleman del que se ocupó Locke en
sus Pensamientos acerca de la educación. Emilio es el nuevo hombre, la nueva
humanidad que nacerá de la educación (NOGUERA, 2012).
La pedagogía del oprimido es la siguiente obra de importancia en la línea que
considera la politeia como paideia, aquella que se traza desde Platón, pasa por
Rousseau, y se actualiza en Freire. El propio pedagogo brasileño señala explícita-
mente que con su propuesta educativa solo pretende “defender el carácter eminen-
temente pedagógico de la revolución” (FREIRE, 2005, p. 71) o, en otros términos,
“defender el proceso revolucionario como una acción cultural [acción educativa]
dialógica que se prolonga en una revolución cultural, conjuntamente con el acceso
al poder” (2005, p. 208).
Entender la politeia como paideia significa no solo reconocer el estrecho vín-
culo entre una y otra, no solo percibir el carácter político de la educación, sino más
allá de esos hechos evidentes, percatarse del papel central que tiene la educación
en el proceso de humanización de todos y cada uno. Reconocer nuestra condición
de “animales políticos” es percatarse que necesitamos de los otros para poder vi-
vir, pero también, es recordar que vivir con los otros no es algo que se encuentre
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programado en nuestros genes, sino algo que debemos conseguir con cierto trabajo
especializado, prolongado y arduo. Somos animales políticos porque necesitamos
construir lazos con los otros: la politeia solo puede ser resultado de la paideia.
La concientización como una cuestión gnoseológica
No puede haber proceso revolucionario sin una “toma de conciencia” del esta-
do de opresión, por esa razón, Freire (2005, p. 71) insiste en que la acción revolu-
cionaria es una acción educativa:
Si los lideres revolucionarios de todos los tiempos afirman la necesidad del convencimiento
de las masas oprimidas para que acepten la lucha por la liberación – lo que por otra parte
es obvio –, reconocen implícitamente el sentido pedagógico de esa lucha. Sin embargo, mu-
chos, quizás por prejuicios naturales y explicables contra la pedagogía, acaban usando, en
su acción, métodos que son empleados en la “educación” que sirve al opresor.
No obstante, parece que los prejuicios contra la pedagogía no son sólo asunto
de los líderes revolucionarios. Aquellos educadores que ven en la pedagogía del
oprimido, principalmente, una apuesta política, en alguna medida aminoran la
acción pedagógica en el proceso liberador y, de esa manera, abren la posibilidad
deusar “la propaganda para convencer…” (p. 71). En este punto, las precisiones
(pedagógicas) de Freire son contundentes; que el proceso revolucionario sea una
acción educativa significa, entonces, dos cosas: 1) que se trata de un asunto gnoseo-
lógico y 2) que implica un método.
En relación con el primer aspecto dice Freire (2005, p. 93):
Por el mismo hecho de constituirse esta práctica educativa en una situación gnoseológica,
el papel del educador problematizador es el de proporcionar, conjuntamente con los educan-
dos, las condiciones para que se dé la superación del conocimiento al nivel de la “doxa” por
el conocimiento verdadero, el que se da al nivel del “logos”.
En otras palabras, en tanto acción educativa, el proceso de liberación implica
un acceso al conocimiento o, más precisamente, un paso de la doxa hacia el logos.
A ese paso o transcurso Freire lo llama “concientización” y le otorga el carácter de
finalidad de toda educación (FREITAS, 2010). Únicamente a través de la concien-
tización se adquiere la “conciencia crítica”, pero esta no es el efecto de la propagan-
da, los eslóganes y los comunicados, por más revolucionarios que se pretendan: la
construcción de la conciencia crítica exige una investigación y lectura del mundo
que se presenta como el universo temático de una época. Dice Freire (2005, p. 125):
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Una unidad epocal se caracteriza por el conjunto de ideas, concepciones, esperanzas, dudas,
valores, desafíos, en interacción dialéctica con sus contrarios, en búsqueda de la plenitud.
La representación concreta de muchas de estas ideas, de estos valores, de estas concepcio-
nes y esperanzas, así como los obstáculos al ser más de los hombres, constituyen los temas
de la época.
La conciencia crítica expresa, entonces, la posibilidad de leer ese “universo te-
mático de la época”, lo que, a su vez, significa que el oprimido está en capacidad de
emerger de su “situación” e insertarse en la realidad que va descubriendo. Emerger
de la situación en que se encuentra implica un distanciamiento, una abstracción
que sólo se puede hacer posible mediante un acto gnoseológico. Como toda acción
educativa, la educación liberadora tiene un contenido programático en correspon-
dencia con el “universo temático de la época”: para la alfabetización, el programa
educativo gira alrededor de las “palabras generadoras”, mientras que, en la post-al-
fabetización, el eje está constituido por los “temas generadores”. La determinación
del contenido programático, es decir, la determinación de las palabras y de los te-
mas generadores, es un trabajo de investigación que se desarrolla en varias etapas
en las que toma parte un equipo interdisciplinario conjuntamente con miembros de
la población que participará en la acción educativa. De esa investigación resulta,
tanto la elaboración de las codificaciones (representación de situaciones existen-
ciales con gran potencial analítico y crítico) a partir de las cuales se desarrollará
el proceso de decodificación con los educandos, cuanto la “reducción” de los temas,
labor de sistematización del trabajo realizado en los “círculos de investigación”, a
cargo de los especialistas participantes en el proceso. Sobre esta última parte de la
investigación, dice Freire (2005, p. 153):
En el proceso de reducción de éste [el tema], el especialista busca sus núcleos fundamenta-
les que, constituyéndose en unidades de aprendizaje y estableciendo una secuencia entre sí,
dan la visión general del tema “reducido”. En la discusión de cada proyecto específico se van
anotando las sugerencias de varios especialistas. Éstas, ora se incorporan a la “reducción”
en elaboración, ora constarán de pequeños ensayos a ser escritos sobre el tema “reduci-
do”. Estos pequeños ensayos, a los que se adjuntan sugerencias bibliográficas, son valiosas
ayudas para la formación de los educadores-educandos que trabajarán en los “círculos de
cultura”.
Vinculado estrechamente con el carácter gnoseológico de la educación libera-
dora se encuentra la necesidad de un método. En otras palabras, alcanzar un grado
de racionalidad, pensar lógicamente, críticamente, requiere de un trabajo metódico
que es la base de la educación liberadora. El pensamiento mágico y la conciencia
ingenua son distorsiones de la realidad que sólo la educación puede superar. La
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conciencia crítica implica racionalidad, lógica, por tanto, una perspectiva capaz de
entender el mundo en términos de causalidad y no simple casualidad. En ese sen-
tido, el pensamiento mítico o la conciencia ingenua son lo opuesto a la conciencia
y el pensamiento crítico: “Si el sentido mágico de la intransitividad implica una
preponderancia de lo ilógico, lo mítico con lo cual se envuelve la conciencia fanática
implica una preponderancia de la irracionalidad” (FREIRE, 1967, p. 61)
5
. Por ese
motivo, dice Freire (1967, p. 90): “Sólo podíamos comprender una educación que
hiciese del hombre un ser cada vez más consciente de su transitividad, que en lo
posible debe ser usada críticamente, o con un acento cada vez mayor de racionali-
dad”
6
. El problema fundamental del sentido mágico del mundo y de la conciencia
ingenua de las masas es que impide la acción transformadora, pues sólo busca
acomodarse a las circunstancias; en palabras de Freire (1997, p. 56), el problema
“Es que, en la medida en que el hombre se comporta con base en mayor dosis de
emocionalidad que de razón, en el sentido en que le da Barbu, su comportamiento
no resulta comprometido sino acomodado”.
De esa manera, la superación del sentido mágico y mítico, la superación de la
comprensión ingenua del mundo, sólo puede hacerse a través de una acción metó-
dica. Por este hecho la pedagogía del oprimido es pedagógica, por este hecho se vin-
cula a la tradición pedagógica inaugurada por Comenio para quien la “salvación”
de la humanidad tenía como condición la “erudición” (el conocimiento de todas las
cosas) y, por tanto, una acción metódica que permitiese a todos los hombres con-
formarse como seres racionales, es decir, pasar de su mera condición animal para
convertirse en verdaderamente humanos. Para Freire, la opresión significa una
condición deshumanizante, hecho que justifica la educación problematizadora cuyo
fin es la humanización. Pero, como hemos visto, la humanización –que no es una
acción espontánea sino metódica – implica la adquisición de una conciencia crítica
lo que significa la capacidad de leer el mundo, de ahí que la alfabetización no es un
proceso mecánico de aprendizaje de la lectura y la escritura sino el desarrollo de la
capacidad para leer y escribir el mundo, esto es, su comprensión y transformación.
El método se constituye en el eje de la pedagogía del oprimido. Recordemos
que el propio Freire en sus “palabras preliminares” nos aclara que su libro no
consiste en devaneos intelectuales, es decir, no es una cuestión teórica, sino una
teoría-práctica. También nos previene sobre la posible confusión de la propagan-
da y esloganización con la educación liberadora: la propaganda y la construcción
de lemas para incitar la acción liberadora de los oprimidos requieren de técnicas
retóricas para conseguir efectividad, pero la educación liberadora necesita de un
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método porque la superación del sentido mágico y mítico del mundo no es un acto
espontáneo ni el resultado de una “toma de conciencia” efecto de una buena propa-
ganda. Como se trata de un proceso de concientización, no puede separarse de un
método. Freire (2005, p. 73), citando a Vieira, afirma al respecto:
En verdad – señala el profesor Álvaro Vieira Pinto –, el método es la forma exterior y ma-
terializada en actos, que asume la propiedad fundamental de la conciencia: la de su inten-
cionalidad. Lo propio de la conciencia es estar con el mundo y este proceso es permanente
e irrecusable. Por lo tanto, la conciencia en su esencia es un “camino para”, algo que no es
ella, que está fuera de ella, que la circunda y que ella aprehende por su capacidad ideativa.
Por definición, continua el profesor brasileño, la conciencia es método, entendido este en su
sentido de máxima generalidad. Tal es la raíz del método, así como tal es la esencia de la
conciencia que sólo existe en tanto facultad abstracta y metódica.
Mientras en la pedagogía del oprimido Freire explica el método para la deter-
minación de los temas generadores, en su obra anterior –La educación como prác-
tica de la libertad– dedica un capítulo a señalar las etapas o fases de su método
de alfabetización que se pueden resumir de la siguiente manera: 1) obtención del
universo del vocabulario de los grupos con los cuales se trabajará; 2) selección del
universo del vocabulario estudiado según su riqueza y dificultades fonéticas y el
tenor pragmático de la palabra; 3) la creación de situaciones existenciales típicas
(y desafiantes) del grupo con el que se va a trabajar; 4) elaboración de fichas que
ayuden a los coordinadores (educadores) en su trabajo; 5) preparación de fichas
con la descomposición de las familias fonéticas que corresponden a los vocablos
generadores (FREIRE, 1997).
¿Será necesario recordar que la alfabetización es el desarrollo de la capacidad
crítica de leer y escribir el mundo? Creo que es necesario recordarlo hoy cuando al-
gunas posiciones–en su crítica a los efectos negativos de la racionalidad del pensa-
miento occidental– rechazan la racionalidad y niegan sus potencialidades a la vez
que celebran un supuesto “pensamiento ancestral”, originario y salvador. Desde
luego, no son posturas académicas sino militantes, pero tienen alguna resonancia
en los programas de formación de profesores, por ello, es preciso hoy leer a Freire
nuevamente y leerlo a la luz del horizonte conceptual de la pedagogía y, por tanto,
no olvidar que se trata de una perspectiva donde el conocimiento lógico, racional,
ocupa lugar central. Vale la pena recordar aquí, nuevamente, el giro platónico de la
doxa hacia el logos que evoca Freire en su pedagogía del oprimido, pues al decir de
Havelock, se trata de la inauguración de una nueva tecnología de la comunicación
(educación):
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Los signos escritos, viniendo en ayuda de la memoria, permitían que el lector se desenten-
diera en buena medida de toda la carga emocional inherente al proceso de identificación
–único capaz de garantizar el recuerdo dentro de los límites del registro acústico–. Con ello
quedaba disponible cierta cantidad de energía psíquica, que ahora podía consagrarse a la
revisión y reorganización de lo escrito; lo cual se percibía ya no sólo como algo escuchado y
sentido, sino como algo susceptible de convertirse en objeto. Se hizo posible, por así decirlo,
volver a mirar, echar un segundo vistazo (1994, p. 196).
En esa misma dirección, Goody (2008), apartándose de la distinción pro-
blemática proveniente de la antropología entre pensamiento primitivo o salvaje
y pensamiento racional, opta por la distinción entre diferentes tecnologías de la
comunicación que tiene, a su vez, implicaciones en las manera de pensar, de ahí
su afirmación de que: “[…] la escritura no es mero registro fonográfico del habla
como Bloomfield (y otros) han asumido; al depender de condiciones sociales a la vez
que tecnológicas, estimula formas especiales de actividad lingüística asociadas a
desarrollos particulares de plantear problemas y de resolverlos; en las que la lista,
la fórmula y la tabla jugaron una parte fecunda (p. 181). Cuando Freire destaca la
importancia que tiene la “codificación” de las situaciones existenciales concretas
de los oprimidos y en su posterior “decodificación” en el proceso de concientización,
no hace otra cosa que subrayar su papel en la construcción de formas críticas de
“lectura” del mundo: “Las codificaciones no son marbetes, son objetos cognoscibles,
desafíos sobre los que debe incidir la reflexión crítica de los sujetos descodificado-
res” (2005, p. 145). Inicialmente las codificaciones no son palabras sino fotografías
o ilustraciones, pero son la primera aproximación a la lectura del mundo. Desde
luego, en la oralidad, en la palabra dicha está ya presente un proceso de humani-
zación del mundo, pero como aclara lúcidamente Fiori (2005, p. 25) en su prólogo a
la pedagogía del oprimido:
Es verdad: ni la cultura iletrada es la negación del hombre, ni la cultura letrada llegó a ser
su plenitud. No hay hombre absolutamente inculto: el hombre se “hominiza” expresando
y diciendo su mundo. Ahí comienza la historia de la cultura. Mas, el primer instante de la
palabra es terriblemente perturbador: hace presente el mundo a la conciencia y, al mismo
tiempo, lo distancia. El enfrentamiento con el mundo es amenaza y riesgo […] En un com-
portamiento ambiguo, mientras ensaya el dominio técnico de ese mundo, intenta volver a
su seno, sumergirse en él, enredándose en la indistinción entre palabra y cosa. La palabra,
primitivamente, es mito.
[…] En esa ambigüedad con que la conciencia hace su mundo, apartándolo de sí, en el
distanciamiento objetivamente que lo hace presente como mundo consciente, la palabra
adquiere la autonomía que la hace disponible para ser recreada en la expresión escrita.
Aunque no haya sido un producto arbitrario del espíritu inventivo del hombre, la cultura le-
trada es un epifenómeno de la cultura que, al actualizar su reflexividad virtual, encuentra
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en la palabra escrita una manera más firme y definida de decirse, esto es, de existenciarse
discursivamente en la “praxis” histórica. Podemos concebir la superación de las letras; lo
que en todo caso quedará es el sentido profundo que la cultura letrada manifiesta: escribir
no es conversar y repetir la palabra dicha, sino decirla con la fuerza reflexiva que su au-
tonomía le da a su fuerza ingénita que la hace instauradora del mundo de la conciencia,
creadora de cultura.
La humanización como justicación de la pedagogía del oprimido
La pedagogía del oprimido es más antropológica que política. Nuevamente
debo insistir en que no se trata de restar importancia a la obvia dimensión política
de la pedagogía freireana, sino resaltar el menos obvio, tal vez sería mejor decir,
el oculto o invisible, carácter antropológico (antropotécnico) de su pedagogía. Fiori
(2005, p. 17) en su presentación del libro de Freire afirma:
Con la palabra el hombre se hace hombre. Al decir su palabra, el hombre asume conscien-
temente su esencial condición humana. El método que le propicia ese aprendizaje abarca
al hombre todo, y sus principios fundan toda la pedagogía, desde la alfabetización hasta los
más altos niveles del quehacer universitario.
La educación reproduce de este modo, en su propio plano, la estructura dinámica y el movi-
miento dialéctico del proceso histórico de producción del hombre. Para el hombre producir-
se es conquistarse, conquistar su forma humana. La pedagogía es antropología.
Para evitar confusiones, podríamos decir que toda pedagogía es antropogogía,
así como toda acción educativa en una acción antropotécnica. La pedagogía (y la
educación) se justifican por el carácter inacabado y abierto del ser humano. A lo
largo de su libro, Freire recurre a la antropología para señalar el carácter cerra-
do de los animales y resaltar la condición inconclusa y abierta de lo humano. El
hombre tiene que hacerse y para ello cuenta con una “vocación de humanización”.
Pero esa vocación no puede confundirse con la condición biológica que implica el
cuidado y socialización de los niños. La vocación de humanización es una tendencia
permanente del ser humano, pues es un impulso de ser más:
Los hombres, diferentes de los otros animales que son sólo inacabados mas no históricos, se
saben inacabados. Tienen consciencia de su inconclusión.
Así se encuentra la raíz de la educación misma, como manifestación exclusivamente huma-
na. Vale decir, en la inconclusión de los hombres y en la consciencia que de ella tienen. De
ahí que sea la educación un quehacer permanente. Permanente en razón de la inconclusión
de los hombres y del devenir de la realidad (FREIRE, 2005, p. 97).
Ahora bien, esa tendencia puede verse obstaculizada (intencionalmente o no) y
dar lugar a un proceso contrario de deshumanización que sería una tendencia a ser
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menos. En ese sentido, la historia de la humanidad podría leerse en clave de proce-
sos diversos de humanización y deshumanización. Los primeros filósofos y sofistas
griegos inventaron la areté como el grado máximo de excelencia a la cual podían
aspirar los hombres, siempre y cuando se sometieran a un proceso técnico y artístico
(filosofía y sofística). Se trata de un ser más que, por primera vez en la historia, se
pensó como posibilidad para todos los “ciudadanos”, pues hasta entonces la areté se
consideraba como una cuestión vinculada a la nobleza de sangre. Pero fue en el siglo
XVII donde la “vocación de humanización” dio su fruto más maduro: por primera
vez en la historia de la humanidad se pensó, no sólo que era posible sino necesario,
“enseñar todo a todos” para la salvación
7
de la humanidad. Comenio encarna una
“voluntad” de humanización que pasa por la erudición (conocimiento de las cosas) y
aspira a la configuración de un ser racional, pero a la vez, virtuoso y piadoso
8
.
Al definir al ser humano como un animal disciplinable, reconoce su posibili-
dad de ser más a través de la disciplina que significa capacidad de aprender y ser
enseñado. Ser disciplinable, entonces, significa una potencia que debe actualizar-
se con la ejercitación; no basta crecer y desarrollarse para adquirir la condición
humana. La idea radical de Comenio es que la gran mayoría de la humanidad ha
vivido en un estado animal, pues no ha conseguido ser más, o en sus términos, no
ha llegado a la erudición, la virtud y la piedad. Podríamos decir que en lugar de
humanización a través de los siglos ha imperado un largo proceso de deshumani-
zación que ha mantenido a los humanos incapaces de alzarse sobre su condición de
animalidad. La didáctica fue pensada como el arte de las artes, es decir, como un
arte magno, pues su propósito es la formación de verdaderos humanos.
Freire considera que el problema de la humanización, pese haber sido el pro-
blema central de la humanidad, “asume hoy el carácter de preocupación ineludi-
ble” (2005, p. 39), pues la realidad histórica de opresión y explotación que impide
a las masas ser más, constituye un proceso de deshumanización. La pedagogía del
oprimido se justifica, entonces, como la posibilidad de conseguir la emancipación,
pero esa emancipación debe leerse, también, en clave pedagógica, lo que significa no
considerar únicamente la opresión en términos políticos y económicos. Pedagógica o
antropológicamente la opresión y la explotación significan la negación de la posibili
-
dad de mundo que se traduce en deshumanización, pues, a diferencia del animal que
vive en un hábitat, el hombre vive en el mundo. En cuanto ser cerrado en sí mismo,
el animal vive inmerso en su hábitat que es simple “soporte” al que se adapta para
satisfacer sus necesidades, su hábitat no es problemático sino tan sólo estimulante:
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La pedagogía del oprimido: una relectura pedagógica
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Su vida no es un correr riesgos, en tanto que no sabe que los corre. Estos, dado que no son
desafíos percibidos reflexivamente sino meramente “notados” por las señales que los apun-
tan, no exigen respuestas que impliquen acciones de decisión. Por esto mismo, el animal
no puede comprometerse. Su condición de ahistórico no le permite asumir la vida. Y, dado
que no la asume, no puede construirla. Si no la construye, tampoco puede transformar su
contorno. No puede, tampoco, saberse destruido en vida, puesto que no consigue prolongar
el soporte donde ellas se da: en un mundo significativo y simbólico, el mundo comprensivo
de la cultura y de la historia. Ésta es la razón por la cual el animal no animaliza su contorno
para animalizarse, ni tampoco se desanimaliza (FREIRE, 2005, p. 120).
La condición de opresión y explotación en que viven los oprimidos es como
la condición del animal en su contorno: está enfrentado a situaciones-límite “que
se presentan a los hombres como si fuesen determinantes históricos, aplastantes,
frente a las cuales no les cabe otra alternativa sino adaptarse a ellas” (p. 126).
Únicamente a través de la educación (liberadora) los oprimidos podrán, ante las
que consideraban situaciones-límite, producir “actos límite”, es decir, acciones “que
se dirigen a la superación y negación de lo otorgado, en lugar de implicar su acep-
tación dócil y pasiva” (p. 122). La educación es, en ese sentido, una lectura y una
escritura del mundo, una construcción de mundo, acto de humanización de su “con-
torno” para convertirlo en mundo.
Pedagogía como “antropogogía”, politeia como paideia: esas fueron las claves
que utilicé para releer la pedagogía del oprimido. Creo no haber distorsionado el
sentido del texto, por el contrario, me parece que tan sólo he tratado con este es-
crito recuperar la pedagogía en la pedagogía del oprimido: ese es mi homenaje a
Paulo Freire.
Notas
1
Entre los innumerables trabajos sobre Paulo Freire hay que destacar el elaborado por el Instituto Paulo
Freire (publicado en portugués en 1996) y titulado “Paulo Freire. Una biobibliografía”, editado por Siglo
XXI Editores en el 2001 en donde se realiza un análisis detallado de sus libros y de las principales obras
escritas sobre Freire.
2
ZULUAGA (1999, p. 50) denominó horizonte conceptual de la pedagogía “El conjunto de objetos pro-
ducidos en el discurso pedagógico, cuando este alcanza un estatuto de saber así delimitado: un conjunto
de objetos a los cuales se refieren sus elaboraciones ya teóricas, ya prácticas, alcancen o no un estatuto
de ‘cientificidad’; las diversas formas de enunciación por parte de los sujetos que entran en relación con
estos de manera directa o indirecta: un conjunto de nociones que también circulan por otros dominios de
saberes, pero que se agrupan o reagrupan a propósito de aquellos objetos y de las formas de enunciarlos;
los procesos de adecuación y apropiación social para su existencia y control institucional y para la selección
de los sujetos reconocidos socialmente como sujetos portadores de ese saber”.
3
A mi modo de ver, este concepto utilizado por el filósofo alemán Peter Sloterdijk en sus obras más recientes,
es de gran importancia para el campo de estudios pedagógicos, en la medida en que, desde una revisión de
la historia de la filosofía y, apoyándose en una perspectiva antropológica, destaca el papel de las prácticas
de constitución o formación de seres humanos, vinculando, de esta manera, filosofía, pedagogía y antropo-
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logía en sus análisis. Sloterdijkusó ese término por primera vez en su polémica conferencia de 1999 titula-
da “Reglas para el parque humano” (2011) para referirse al conjunto de instrumentos y prácticas que los
hombres utilizan para su crianza, domesticación y producción. Una década después (2009), en su libro titu-
lado en español “Has de cambiar tu vida” (publicado en 2012), el filósofo alemán avanza en la elaboración
del concepto antropotécnicas al referirlo a los procedimientos de ejercitación tanto de tipo corporal como
mental con los que los hombres de las diversas culturas “han intentado optimizar su estado inmunológico
frente a los vagos riesgos de la vida y las agudas certezas de la muerte” (SLOTERDIJK, 2012, p. 24). Sobre
la base de esta definición, y a través de sus cerca de 600 páginas, Sloterdijk emprende la construcción de
una “teoría general del ejercicio” apoyándose para ello en la idea nietzscheana del humano como un ser
ejercitante y de la Tierra como el astro ascético.
4
Al respecto escribe Rousseau en su Emilio: “¿Queréis tener una idea acerca de la educación pública? Leed
la República de Platón. No es una obra política, como piensan los que sólo juzgan los libros por sus títulos.
Es el tratado de educación más hermoso que jamás se haya hecho” (ROUSSEAU, 2011, p. 49).
5
Hago aquí una traducción del texto original en portugués, pues la traducción castellana es imprecisa al
punto que señala todo lo contrario de lo que afirma Freire, como se evidencia aquí: “Si el sentido mágico y
la transitividad implican una preponderancia de la lógica, lo místico con lo cual se envuelve la concien-
cia fanática implica una preponderancia de la irracionalidad” (FREIRE, 1997, p. 57. Traducción de Lilién
Ronzoni. Resaltado mío).
6
Nuevamente prefiero traducir el texto directamente de la edición del portugués. Sobre el término raciona-
lidad, Freire aclara en un pie de página que utiliza esa expresión en el sentido que le da K. Popper cuando
afirma: “Lo que llamo verdadero racionalismo es el racionalismo de Sócrates. Es la conciencia de las pro-
pias limitaciones, la modestia intelectual de quienes que saben cuantas veces yerran y cuanto dependen
de los otros para obtener ese conocimiento”. Popper. K. A sociedade democrática e seus inimigos.
7
Vale la pena tener en cuenta que esta palabra viene del latín salvēre o salvāre que significa colocar en buen
estado, intacto, con salud. Significa librar de algún peligro, evitar un impedimento, problema, obstáculo;
vencer una dificultad.
8
“El nombre de erudición comprende el conocimiento de todas las cosas, las artes y las lenguas; el de bue-
nas costumbres [o virtud], no solo la externa urbanidad, sino la ordenada disposición interna y externa
de nuestras pasiones; y con el de Religión se entiende aquella interna veneración por la cual el alma del
hombre se enlaza y une al Ser Supremo” (COMENIO, 1984, p. 9).
Referencias
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FIORI, E. Aprender a decir su palabra. El método de alfabetización del profesor Paulo FREI-
RE. In: FREIRE, P. Pedagogía del oprimido. México: Siglo XXI, 2005. p. 11-27.
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HAVELOCK, E. Prefacio a Platón. Madrid: Visor, 1994.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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ZULUAGA, O. Pedagogía e historia. Bogotá: Anthropos-Siglo del Hombre, 1999.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Margarita R. Sgró, A la memoria del Profesor Hugo A. Russo
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La recepción de pedagogía del oprimido en Argentina: una hipótesis sobre la
inuencia freireana en la militancia juvenil de los años ´70
The reception of pedagogy of the oppressed in Argentina: a hypothesis on the freirean inuence
on youth militancy in the 1970s
A recepção da pedagogia do oprimido na Argentina: uma hipótese sobre a inuência freireana
na militância juvenil dos anos 1970
Margarita R. Sgró
*
A la memoria del Profesor Hugo A. Russo
**
Resumen
El 50 aniversario de la publicación de Pedagogía del Oprimido, inspira un sinfín de reexiones pedagógicas,
políticas, históricas. En Argentina, la presencia teórica de Paulo Freire fue decisiva para completar el terreno
fértil de los movimientos emancipatorios de los años 70. Las juventudes politizadas, desarrollaban tareas que
iban desde el “apoyo escolar y alimentario en villas de emergencia (favelas en Brasil), hasta los movimientos
de guerrilla urbana que habían decidido tomar el camino de la lucha armada. Eran y se percibían herederos de
los Nacionalismos populares latinoamericanos, la Revolución cubana, la Teología de la liberación. En Argentina,
esos movimientos tuvieran una expresión particular, su adscripción mayoritaria al Justicialismo. A comienzos
de los años ’70, Pedagogía del oprimido alentó una práctica concientizadora, preparatoria del terreno para la
“liberación de los pueblos. Pero esa práctica era única y original entre las pedagogías críticas. Su originalidad
residía en dos cuestiones centrales, a) el oprimido era el protagonista de su propia educación por ser portador
de una cultura silenciada, y b) el saber debía producirse mediante un diálogo entre sujetos iguales. En el mar-
co político de la revolución posible, Pedagogía del Oprimido tuvo un protagonismo casi excluyente. El autor, lo
sigue teniendo aun hoy.
Palabras clave: Pedagogía del oprimido. Movimientos juveniles. Liberación o dependencia. Argentina.
*
Es Doctora en Educación por la Universidad Estadual de Campinas, Profesora titular del Departamento de Educación
de la Facultad de Ciencias Humanas de la Universidad Nacional del Centro de la Provincia de Buenos Aires. Área
Filosóco-pedagógica. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6346-5572. E-mail: msgro@speedy.com.ar
**
Vaya este texto como homenaje al Prof. Hugo Antonio Russo, recientemente fallecido. El Prof. Russo fue docente de
la Facultad de Ciencias Humanas en la que me desempeño y orientador de mi tesis de Maestría, sobre Paulo Freire.
Recebido em 13/06/2020 – Aprovado em 28/09/2020
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i3.12367
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Abstract
The 50th anniversary of the publication of “Pedagogy of the Oppressed” inspires endless pedagogical, political
and historical reections. In Argentina, Paulo Freires theoretical presence was critical to complete the fertile
ground for the liberation movement of the 1970’s. The politicized youth performed various tasks that ranged
from school and food support in shanty towns to urban guerrilla movements which had decided to take the
path of armed struggle. They were and saw themselves as heirs of the popular Latin American Nationalisms, The
Cuban Revolution, and Liberation Theology. In Argentina, these movements had a very specic expression: a
predominant aliation to Justicialism”. During the early 70’s “Pedagogy of the Oppressed” fostered a conscien-
tization approach, laying the ground for the liberation of the peoples. This approach was unique and original
among critical pedagogies. Its originality lied in two core issues: a) the oppressed was the central gure of their
own education as bearer of a “silenced culture and b) new knowledge should be achieved through a dialogue
between equal subjects. Within the political framework of the possible revolution, “Pedagogy of the Oppressed”
had an almost exclusive role. The author still has it today.
Keywords: Pedagogy of the oppressed. Youth movements. Liberation or oppression. Argentina.
Resumo
O quinquagésimo aniversário da publicação da Pedagogia do oprimido inspira inndas reexões pedagógicas,
políticas e históricas. Na Argentina, a presença teórica de Paulo Freire foi decisiva para completar o terreno fértil
dos movimentos emancipatórios dos anos 1970. As juventudes politizadas desenvolviam tarefas que iam desde
o “apoio escolar e alimentício” em villas de emergencia (favelas no Brasil) até os movimentos de guerrilha urba-
na que haviam decidido tomar o caminho da luta armada. Eram e se percebiam herdeiros dos Nacionalismos
populares latino-americanos, a Revolução Cubana e a Teologia da libertação. Na Argentina, esses diferentes mo-
vimentos tiveram uma característica particular, seus membros aderiram majoritariamente ao Justicialismo. No
começo dos anos 1970, a pedagogia do oprimido impulsionou uma prática conscientizadora, preparatória do
terreno para a libertação” dos povos. Porém, essa prática era única e original entre as pedagogias críticas. Sua
originalidade estava em duas questões centrais: a) o oprimido era o protagonista de sua própria educação, por
ser portador de uma cultura” silenciada; e b) o saber deveria produzir-se mediante um diálogo entre sujeitos
iguais”. No marco político da revolução possível, Pedagogia do oprimido teve um protagonismo quase excluden-
te. Seu autor continua sendo protagonista ainda hoje.
Palavras-chave: Pedagogia do oprimido. Movimentos juvenis. Liberação ou dependência. Argentina.
Introducción
La obra Pedagogía del Oprimido, publicada en el año 1970, fue y es interpre-
tada de muchas maneras, Paulo Freire es frecuentemente víctima de esas interpre-
taciones de las que, en general, la más extendida expresa que su libro, publicado
en el exilio y con un primer capítulo dedicado a hablar de la opresión de los pobres,
es solo un método de enseñanza, que como tantos otros se esfuerza en optimizar
el aprendizaje de la lecto-escritura, a analfabetos adultos que precisan “aprender”
de un modo diferente a como lo hace un niño. Es una extraña manera de extirpar
la criticidad del proceso de lectura y la politicidad de cualquier práctica pedagó-
gica. Es también una manera de debilitar la crítica social y política para tornar
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instrumental lo que no lo es. Ese conjunto de incomprensiones traspasa a la con-
sideración pedagógica para constituirse en una interpretación política de la que,
frecuentemente, las derechas reniegan.
En la actualidad, podemos encontrar reacciones mucho más violentas y menos
pretendidamente academicistas de rechazo, no solo a la obra del autor, sino a su
enorme influencia transformadora.
Si en general, las derechas optan por este reduccionismo metodológico, las
izquierdas tradicionales no le perdonan la concepción sobre cultura popular y reli-
giosidad que impregna su trayectoria, como tampoco le perdonan su latinoameri-
canismo, ampliado luego, a todos los pueblos del Tercer Mundo. En Argentina, las
izquierdas tradicionales han sido fuertemente antipopulares.
El análisis que haremos en este artículo remite, directa y específicamente a
lo que creemos, es la lectura más aproximada a la obra y a la vida del autor. No
solo la que precedió a Pedagogía del Oprimido, sino también los textos posteriores
que destacan una trayectoria político-pedagógica riquísima, documentada históri-
camente. Porque Pedagogía del oprimido es el producto de una época en la que el
horizonte revolucionario cooptó a la acción política y, en la que el modelo de revo-
lución podía ser más o menos el de la Revolución Cubana contra el imperialismo
norteamericano, pero también podía provenir de otras perspectivas de transforma-
ción social, antiimperialistas que levantaran la bandera de la igualdad y la justicia
social. En este sentido, los Nacionalismos populares de las décadas de los años ´40
y ´50 fueron también representativos de una praxis emancipadora de caracterís-
ticas singulares, en las que la educación del “pueblo” se vio como una necesidad
impostergable.
Un nuevo sujeto nacía a la vida política, las democracias, aunque formales,
se afianzaban a partir de la incorporación masiva de la población a un conjunto de
derechos, entre los principales se contaba a la educación y la salud públicas, pero
también todos los derechos sociales a una vivienda y a un salario dignos, aguinaldo,
vacaciones pagas. Derechos que hasta el momento de la irrupción del peronismo en
Argentina, eran privilegios de los que disfrutaban unos pocos.
En una sociedad muy desigual esos derechos costaron muchas batallas que
debían dar los trabajadores, para conseguirlos primero y luego defenderlos, por eso
la formación política, el valor de la organización y de la sindicalización fueron ejes
que sustentaron el proyecto político del Movimiento Nacional Justicialista.
La consideración de la educación que debía recibir ese nuevo sujeto dividió las
aguas del debate político-pedagógico. ¿Qué es la educación popular? ¿Cómo debe
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ser? ¿Ese nuevo sujeto de derechos, debe ser elevado a la cultura oficial? ¿O debe-
mos reconocer en él una cultura silenciada?
En Argentina, los trabajadores venían de una historia de luchas en las que
no se ahorró sangre, torturas, asesinatos masivos. Pero esas batallas, casi siempre
perdidas por los trabajadores, cristalizaron en un hecho histórico, el 17 de octubre
de 1945, fecha en la que, la mayoría de los historiadores, coinciden en señalar como
la fundación del Peronismo. Desde ese momento y hasta la actualidad, este Movi-
miento ha tenido una influencia decisiva en la política y en la cultura de nuestro
país. El Peronismo fue, en el gobierno o fuera de él, determinante para la historia
contemporánea de Argentina. Perón gobernó desde 1946 hasta 1955 en que fue
derrocado por un golpe de Estado, se exilia en España y después de dieciocho años
retorna en 1973. En el transcurso de esos años las organizaciones de la sociedad
civil, primordialmente los sindicatos en su mayoría peronistas, los pequeños gru-
pos de militantes que actuaban en la clandestinidad, mantuvieron viva la defensa
de los derechos, se afianzó la lucha de los trabajadores combativos, preparando al
mismo tiempo el Retorno de Perón. A ese período se lo conoce como el de la “Resis-
tencia Peronista”, fueron esos militantes los gestores del retorno que finalmente se
concretaría en 1973, en ese año Perón vuelve a ser Presidente y muere el 1 de julio
de 1974. Fueron tiempos de una historia trágica a los que en 1976, sobrevino una
feroz Dictadura.
La hipótesis de este trabajo es que la enorme influencia del pensamiento frei-
reano, en los años 70, se debió en parte, a la coincidencia con el ideario del Peronis-
mo, especialmente encarnado en una militancia juvenil, que leyó su tiempo como el
de la realización de la utopía revolucionaria. Los actores de ese compromiso fueron
los jóvenes universitarios, los trabajadores sindicalizados, muchos de ellos perte-
necientes a grupos de la Iglesia Católica, sobre todo al Movimiento de Sacerdotes
para el Tercer mundo, fundado en la provincia de Córdoba en el mes de mayo de
1968, que compartía fervientemente los principios del Episcopado Latinoamerica-
no, expresados en el Documento de Medellín en el mes de septiembre del mismo
año. Ambos movimientos de Iglesia se referenciaban en la enorme transformación
que significó el Concilio Vaticano II.
Pedagogía del Oprimido, llega en el momento en que la tarea de formación
pedagógica en las “villas de emergencia”, en los barrios obreros, en las organiza-
ciones de base de la Iglesia católica, se tornaba preeminente, “no habrá liberación
que no provenga de los oprimidos”, decía el Padre Carlos Mugica
1
, de los poster-
gados, de los villeros
2
y de los trabajadores, que aún considerados como un sector
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heterogéneo, serán los estandartes de la liberación. Encuadrados en el Peronismo,
buscaban forzar su radicalización hacia un socialismo nacional.
También en el año 1968, en el mes de marzo se funda la Confederación Gene-
ral del Trabajo de los Argentinos, la CGT de los argentinos, liderada por Raimundo
Ongaro, que organizó al sindicalismo combativo de diferentes sectores de izquierda
con mayoría de la izquierda peronista. Las relaciones entre esa confederación sin-
dical y el Movimiento de Sacerdotes para el Tercer mundo, fue muy fluida. En ese
contexto, “La pedagogía del oprimido resulta ser tanto un análisis pormenorizado
de la reproducción de las interrelaciones entre los hombres de una misma sociedad
inmersas en relaciones estructurales de dependencia, cuanto una ‘estrategia comu-
nicativa’ de superación.” (RUSSO; SGRÓ, 2001, p. 70).
El contexto histórico de recepción
Es temprana, en el pensamiento crítico latinoamericano la voluntad de libera-
ción enraizada en los movimientos independentistas de comienzos del siglo XIX. A
ellos estuvo asociada una pedagogía crítica que entendió con claridad la necesidad
de formar a los pueblos originarios, a las mujeres, y a los negros o sus descedientes,
porque ellos serían los actores de la verdadera emancipación. Ejemplo de estas
ideas tempranas fueron Simón Rodriguez, maestro de Simón Bolívar, o José Martí,
el gran poeta y educador cubano, entre otros. Su prédica, a favor de la cual fueron
capaces de tomar las armas, conspirar y hasta morir, se asentaba sobre el derecho a
la autodeterminación de los pueblos, al desenvolvimiento de sus culturas nativas y
la lucha contra la desigualdad. Por ello, fueron lectores de Juan Jacobo Rousseau y
practicaron un liberalismo, cuyo anhelo era poner fin a la esclavitud. Es así que en
esos primeros tiempos, la inclusión de todos, hombres y mujeres, negros y mulatos
en la vida social, era una preocupación de los próceres de la independencia. Planteo
este tema porque en la historiografía revisada del Peronismo se coloca como una
línea histórica, la que va de aquellos próceres de la Primera independencia hasta
los que a principios del siglo XXI se denominaron como corrientes posneoliberales,
o socialismos del siglo XXI, y en Argentina “nacionalismos populares” cuya raíz
primera está en el Peronismo.
La línea que une esas sucesivas batallas puede resumirse en la oposición:
Derechos contra privilegios, esa parece ser una constante en la lucha de los pue-
blos contra diversas formas de dominación. Éstas, pueden presentarse en forma de
Dictaduras sangrientas como las que dominaban el panorama político en 1970, o
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pueden, como ha ocurrido más recientemente, llegar de la mano del voto popular.
Lo que reactualiza dramáticamente la cuestión de la “formación” o de la “educación
del pueblo”. Pero esa es una historia reciente. “Freire es un intelectual represen-
tativo de su época, se nutre y a su vez nutre el pensamiento que se va generando
en las décadas de los ´60 y de los ´70 a partir de un nuevo diagnóstico político,
sociológico, antropológico y filosófico.” (RUSSO; SGRÓ, 2001, p. 53).
La Argentina de los años ’70 era, como otros países latinoamericanos, un esce-
nario propicio para pensar en términos dicotómicos la política. La lectura de que el
conflicto central no era un conflicto Este-Oeste, sino un conflicto entre el Norte y el
Sur, estaba muy bien analizada en una corriente de pensamiento que tuvo también
mucha influencia en Freire y que se denominó Teoría de la Dependencia
3
, cuyo eje
central era que los pueblos pobres debían su pobreza a la lógica de explotación que
aplicaba el imperialismo norteamericano.
Esa percepción también estuvo tempranamente en el Peronismo, el tinte
nacionalista de sus políticas, la construcción de un Estado fuerte y presente, se
conjugaron con la oportunidad que brindó el fin de la Segunda Guerra Mundial
para sustituir importaciones. La nueva nación habría de construirse sobre tres
principios que están, aun a pesar de la globalización, muy presentes en el debate
político de nuestro país, ellas son: Soberanía política, Independencia económica y
Justicia social. Mientras en otros países esos principios fueron estandartes de las
izquierdas no tradicionales, en Argentina quedan en manos del Peronismo, que
se torna el representante de los intereses populares, de los trabajadores, de los
pobres, de los excluidos.
El Partido Socialista, en cambio, adhería a una vieja dicotomía de Civilización
o Barbarie que había expresado la llamada Generación del ´80. Una generación
que dirigió la política y la cultura Argentina en la segunda mitad del siglo XIX
hasta aproximadamente 1930. Una élite modernizadora y europeizante que, aun-
que contó entre sus representantes, algunos matices críticos, acaba constituyendo
una oligarquía terrateniente y parasitaria, que se benefició del reparto de tierras
entre pocas familias. Éstas tierras habían sido quitadas a los indios y los gauchos,
mediante un proyecto de exterminio feroz al que se llamó “Campaña del desierto”,
un “desierto” que estaba habitado, por el que tuvieron que guerrear durante años
con sus primeros ocupantes o sea, con los dueños reales de la tierra.
Civilización o Barbarie, marcó la historia Argentina desde el siglo XIX
4
y se
reavivó cuando irrumpe el Peronismo en 1945. A partir de allí la escisión fue Pero-
nismo-Antiperonismo, en un juego de opuestos en el que cada uno va asumiendo su
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identidad de manera relacional, así lo expresa Alejandro Grimson, en su reciente
libro
5
.
“Peronistas” fue la categoría de identificación que más vertiginosamente crecería a partir
de julio de 1945, asociada de distintos modos a la nacionalidad, lo criollo, los descamisados,
los cabecitas negras, los obreros, los trabajadores, el pueblo. Setenta años después, con
drásticos cambios de significado a lo largo de su historia, el término tiene plena vigencia.
(2019, p. 104).
El antiperonismo, que nació al mismo tiempo que el peronismo, fue y es de
derecha y de izquierda, la derecha le endilgaba el mote de dictadura yproyecto de-
magógico por la adhesión masiva que conseguía de parte de los trabajadores, de las
organizaciones sindicales y por una fenomenal distribución de la renta que llegó a
cada rincón de la nación bajo la consigna ordenadora de generar empleo y devolver
la dignidad al “pueblo”. La izquierda rápidamente lo identificó como fascista, e in-
mediatamente comenzaron a hablar de la Dictadura peronista y de la capacidad de
manipulación, que el liderazgo de Perón tenía sobre las masas populares, a quienes
no se le reconocía ninguna autonomía. La idea repetida hasta el presente es la de
un manso rebaño sin voluntad propia.
Con respecto al peronismo, izquierda y derecha hacen un coro de reclamos
republicanistas. Aunque ambas fuerzas, estuvieron comprometidas en el Golpe de
Estado de 1955, participaron de ese gobierno de facto y de todos los posteriores
y algunos de sus miembros más encumbrados, frecuentemente recurrieron a los
militares como salida “democrática”.
Mientras las élites quedaron representadas por los partidos tradicionales in-
cluido el Radicalismo, los nuevos sectores que demandaban derechos e inclusión
social se identificaban mayoritariamente con el Peronismo. No es este el lugar para
explicar con más detalle la obra que el primer gobierno peronista realizó desde
1945 hasta 1955, tampoco es el lugar para narrar la destrucción a la que fue some-
tida una vez que cae el gobierno.
Sin embargo, la herencia cultural que dejó aquel período explica mucho de la
pregnancia del peronismo hasta nuestros días. “Existieron ‘populismos’ en diver-
sos países latinoamericanos, pero aunque ha habido movimientos que perduraron
varios años ninguno tuvo la persistencia del peronismo. El gobierno de Vargas en
Brasil no generó ‘varguismo’ y algo similar podría decirse de otros países.” (GRIM-
SON, 2019, p. 51). A la distancia, su singularidad resiste las clasificaciones más o
menos tradicionales y por ello hay autores que hablan de cuatro peronismos y otros
de cinco al incluir los gobiernos de Néstor y Cristina Kirchner (HOROWICZ, 2015).
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Habría ahora un sexto, representado en el gobierno actual de Alberto Fernandez,
en esa heterogeneidad signada también por la marca particular de cada tiempo,
las tres ideas centrales, nunca dejan de ser mencionadas, aun cuando en algunos
momentos haya asumido una cara neoliberal, fue en los años ’90 cuando gobernaba
Carlos Menem.
Por lo tanto, la escisión entre peronismo y antiperonismo, presente en la cul-
tura política de Argentina, el fuerte rechazo de sectores de derecha y de izquierda
tradicional, las variadas formas de desvalorizarlo y desvalorizar a sus adherentes
como incultos, bárbaros, malvivientes, marginales se debe, sin dudas, al odio que
generó el enorme proceso de igualación social, intolerable para los dueños de la
argentina. Por eso, el antiperonismo es paralelo al peronismo y esa “grieta” puede
perfectamente plantearse en tiempo presente. La virulenta reacción del antipero-
nismo muestra también el carácter profundamente racista de la cultura política
argentina (GRIMSON, 2019, p. 104 y ss).
Es interesante destacar que la categoría identificatoria de peronista se generó
por los insultos de las clases dominantes, blancas y porteñas que vivían en Buenos
Aires, no en la provincia, sino en la Capital. Ellos creían que los trabajadores no
debían ocupar ni el centro de la ciudad europeizada ni el centro de la vida pública.
Así, el concepto de “descamisados” se usaba para referirse despectivamente a los
trabajadores de fábricas, trabajadores de la construcción, llegados del interior o los
trabajadores de los frigoríficos; “cabecitas negras” para referirse a los argentinos
del interior profundo, “negros”, “grasas”, “aluvión zoológico”, fueron insultos que el
peronismo asumió como propios, para afirmar una nueva identidad, del demérito
al mérito de pertenecer a una clase que en el ideario peronista sería la responsable
de cambiar la historia de Argentina. Pues, si finalmente un mundo más justo era
posible, vendría del “subsuelo de la patria sublevado”, dice un intelectual del pero-
nismo que se llamó Raúl Scalabrini Ortíz
6
, que describe con esas bellas palabras el
17 de octubre de 1945, cuando las masas de trabajadores llegan a Plaza de Mayo
para pedir la liberación del entonces Coronel Perón que estaba preso. Perón fue
liberado y se convierte en Presidente en 1946. A partir de ahí se escribe la historia
contemporánea de nuestro país.
Este breve desarrollo explica por qué en Argentina a diferencia de otros países
latinoamericanos, los “oprimidos” se identificaron con este movimiento complejo y
vital que cada tanto renace con su mejor tradición.
La perspectiva emancipadora, el convencimiento de que los derechos se ganan
y se defienden a veces violentamente, como ha sido frecuente en Argentina, llevó a
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tener una genuina preocupación por la formación del pueblo y de los trabajadores.
Su incorporación y la de los sectores populares a la vida pública, requirió de un
proceso de formación política que emprendieron los sindicatos y grupos politizados
que pretendían, en primer término, la creación de una conciencia social, que no era
estrictamente conciencia de clase, porque el propio Perón decía que este antagonis-
mo debía ser superado por el de una “comunidad organizada”
7
. Es posible pensar
que Freire no estaría muy de acuerdo con Perón habida cuenta de su crítica a los
líderes personalistas, y a la idea desarrollada en la última parte de su texto, en que
una verdadera revolución resultará del diálogo entre el líder y su pueblo, lo dice
refiriéndose a la Revolución cubana. Sin embargo, esa es una historia contrafáctica
que no podemos comprobar.
8
La idea de “Comunidad organizada” es todavía hoy discutida como una de las
nociones fundamentales, constituida por un modo de asociación de la comunidad
que Perón llamó Organizaciones Libres del Pueblo” (OLP) como por ejemplo, clubes
de barrio, asociaciones de profesionales, de trabajadores, fundaciones, cooperati-
vas, organizaciones de productores, mutuales, etc. Este modelo de organización
no dependía del Estado, debía interactuar con el Estado y multiplicarse hacia la
sociedad civil. Aúnada a la idea de que el individuo no puede realizarse y ser feliz
en una comunidad que no se realiza, dice Perón en un extenso discurso histórico,
proferido en 1949, con el que cierra el Primer congreso nacional de Filosofía reali-
zado en la Provincia de Mendoza
9
.
Esa doctrina fue articulándose dificultosamente después de 1955. Durante
el exilio y proscripción de Perón era él mismo el que se encargaba de mandar, a
través emisarios, sobre todo sindicalistas, “cintas” grabadas con su voz, explicando
diversos temas que eran luego discutidos por los trabajadores en los sindicatos o en
la clandestinidad durante la Dictadura que sucedió a su primer gobierno.
Lo que despectivamente la derecha y la izquierda llamaba adoctrinamiento, era
el trabajo de formación política que incluía el debate sobre los planes de gobierno que
se repartían impresos en las fábricas, en los frigoríficos para que los propios trabaja-
dores se conviertan en difusores y responsables de su explicación y sobre todo, prota-
gonizaran la defensa de sus derechos. Esa organización, en que confiaba ciegamente
el Peronismo fue lo que permitió su supervivencia a través de 75 años.
Una pedagogía que se propone como un camino hacia la liberación, que critica
a los opresores como responsables de generar una situación estructural de injusti
-
cia, coloca en el centro de la escena a los pobres y los alienta a luchar por sí mismos,
reforzando el ideario de que la justicia solo pueden buscarla los que sufren desi
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gualdad y desprecio. “¿Quién mejor que los oprimidos se encontrará preparado para
entender el significado terrible de una sociedad opresora?” (FREIRE, 1973, p. 40).
El comienzo de los años 70 fue una época de política de masas, de organiza-
ción popular y debates sobre la necesaria transformación social que convocó a la
militancia política a miles de jóvenes provenientes de las clases bajas y medias
que ya no entendían la participación social solo como resistencia a los poderes
establecidos, sino como una forma de luchar, de muy diversas maneras, por la
emancipación, una de ellas, fundamental, era aportar a un proceso de formación
del pueblo, víctima de las más diversas injusticias. El pueblo pobre pasaba a ser
el protagonista de los desvelos teóricos, ideológicos y políticos de un nuevo tiempo
de liberación. No se podía esperar que los poderosos instalaran la justicia distri-
butiva, había que sacarles la riqueza de la que se habían apropiado. Esto requería
un proceso de enseñanza y aprendizaje que tenía que partir de los “’condenados de
la tierra’, de los oprimidos, de los desarrapados del mundo y de los que con ellos
realmente solidaricen.” (FREIRE, 1973, p. 40).
Paralelamente en los ’70, la lucha entre la derecha y la izquierda peronista se
profundiza, la ruptura del movimiento obrero ocurrida en 1968, por la fundación
de la CGT de los Argentinos, la creación del Movimiento de Sacerdotes para el
Tercer Mundo, su compromiso político partidario, llevan la pelea entre izquierda
y derecha al interior del peronismo, ese conflicto terminó en una violencia interna
en la que el diálogo fue reemplazado por miles de muertos, algunos notables, que
un bando le “tiraba” al otro como símbolo de su fuerza política. Perón, ya anciano
y con condiciones políticas muy diferentes a aquellas de 1945 cuando tomó el poder
por primera vez, no pudo resolver esa lucha interna y podríamos decir que aun
hoy, cuando el peronismo es el principal partido de la coalición gobernante, pervive
sin la estridencia y sin violencia explícita, pero como una rémora que no se ha
discutido profundamente, tal vez, porque como dice Grimson, en el texto citado, ya
no es un problema del peronismo solamente, sino de una ruptura que existe entre
peronismo y antiperonismo en la cultura política argentina y podríamos agregar
también, de los bordes difusos de las ideologías, en una época de retroceso político.
Los 70 pusieron todo en debate, la colonización cultural y la explotación econó-
mica que se asienta sobre la colonización cultural, mientras Freire escribía Peda-
gogía del Oprimido, el chileno Ariel Dorfman escribía, junto a Armand Mattelart,
un precioso texto denominado “Para leer al pato Donald”, en el que analizaban la
ideología oculta tras las difundidas historietas de Disney y develaban la máquina
de dominio cultural, escondida en esa fabulosa industria, llamada Disneylandia.
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No fueron los únicos, en toda América Latina se desarrolló un movimiento denomi-
nado “comunicación popular”, dedicado a develar los mecanismos por los cuales el
Imperio distribuía cultura “enlatada”, prefabricada en serie, con el fin de colonizar
las culturas de los países periféricos o del Tercer mundo.
A esa generación de los años ‘70, dice Grimson (2019, p. 145):
Les tocó en suerte vivir una época extraña. El mundo de la Guerra Fría, escindido entre
el occidente capitalista y el comunismo soviético. El mundo de la Revolución China, de la
liberación de Argelia y de la Revolución Cubana. El mundo de Mayo del 68 y del Cordoba-
zo. El mundo de Allende y el Che Guevara. Un mundo en el que los militantes creían que
su acción podía cambiarlo todo, que lo que ellos hicieran podía incidir de manera decisiva
en los acontecimientos.
Este pequeño raconto de textos que constituyeron la pedagogía emancipadora
de un tiempo, estaría incompleto si no mencionara que en el año 1971, el escritor
uruguayo Eduardo Galeano publica “Las venas abiertas de América Latina”, en
Argelia, unos años antes, Franz Fanon publica “Los condenados de la Tierra” re-
ferido a las luchas por la liberación de Argelia, con prólogo de Jean Paul Sartre.
El teólogo peruano Gustavo Gutierrez, publica el libro fundante de la “teología de
la liberación”, también en 1971. Y así podríamos seguir con otros textos que se
convirtieron en emblemas de un tiempo singular.
En ese contexto político radicalizado con miles de jóvenes volcados a la mili-
tancia social y política se preparaba el fin de la Dictadura del General Lanusse, el
retorno del General Perón y por fin la autorización a elecciones libres, en las que
pudiera presentarse el propio Perón, que además de exiliado estaba proscripto.
En ese proceso, un sector muy importante de la Iglesia católica, la más com-
prometida con la “opción preferencial por los pobres” que predicaba el Documento
de Medellín, había entendido que estar con los pobres y luchar por su liberación
estaba muy lejos de la lógica caritativa o asistencialista que tradicionalmente se
pregonaba, esa perspectiva significó una escisión importante también en la Iglesia
argentina. “Dicen los obispos: ‘Cuando Dios revela su designio divino (…) la justicia
no aparece solo como un don personal (…) sino como un estado del pueblo’.” (P.
Mugica) (VERNAZZA, 1984, p. 77).
El Movimiento de Sacerdotes para el Tercer Mundo, MSTM tuvo un papel
preponderante en la Iglesia argentina y latinoamericana. Cuando en el año 2018
se cumplieron los cincuenta años de su fundación, uno de sus principales mento-
res publicó un libro que reúne los debates de la época y todos los documentos que
emitieron en su corta vida como Movimiento, el Padre Domingo Bresci dice: “(…)
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los integrantes de este Movimiento –hombres de fe- compartían la ‘indignación
evangélica’ ante la injusticia y se propusieron seguir a Cristo Liberador y Servidor,
desde una Iglesia Encarnada, Pobre, Samaritana y Profética.” (2018, p. 10).
Como ya lo hemos expresado en el texto dedicado al pensamiento freireano
(RUSSO; SGRÓ, 2001, p. 34 y ss), esa percepción sobre el oprimido, sobre la li-
beración y la humanización, conjuga la raíz crítico-marxista, con la mirada de la
Teología de la liberación.
Para finalizar, si hay un poco de verdad en la hipótesis que intenté defender,
voy a plantear ahora las cuestiones propiamente pedagógicas que anuncié en la
introducción a este texto.
¿Qué aportó específicamente Pedagogía del Oprimido al debate político peda-
gógico? ¿Porqué caló tan hondo en la militancia de la época? Dijimos en la intro-
ducción de este trabajo que la originalidad de Pedagogía del oprimido, está, por
un lado, en la consideración de la cultura popular como punto de partida de una
educación problematizadora cuyo norte es la liberación, por otro lado, el diálogo
como método, que reconoce al “otro” como un igual.
Freire, como los autores antes mencionados, por participar del debate de su
tiempo decidido a comprometerse con los oprimidos, entendió el peso de la cultura
en la dominación y explotación de los pueblos. Consecuentemente, pensó en el sus-
trato que permitiría enfrentar semejante poder, ese sustrato era el de la cultura
popular, se movió en la delgada línea que entiende que la educación es invariable-
mente una acción con otros, en la que influimos sobre otros, pero esa influencia
estaba destinada a develar la cultura silenciada por siglos de opresión.
(…) el que el acercamiento a las masas populares se haga, no para llevar un mensaje ‘sal-
vador’ en forma de contenido que ha de ser depositado, sino para, dialogando con ellas,
conocer, no solo la objetividad en que se encuentran, sino la conciencia que de esta objetivi-
dad estén teniendo, (…) En verdad lo que debemos hacer es plantear al pueblo, a través de
ciertas contradicciones básicas, su situación existencial, concreta, presente, como problema
que a su vez, lo desafía y haciéndolo le exige una respuesta, no a un nivel intelectual, sino
al nivel de la acción. (FREIRE, 1973, p. 114-115).
Esa acción pedagógica implica por parte del educador estar abierto a la trans-
formación que surja de una nueva interpretación del mundo, de una creación que
solo el “diálogo” entre dos sujetos iguales, puede producir. En este sentido, el deba-
te político es un ámbito propicio para poner en juego saberes surgidos de la expe-
riencia propia, la experiencia de la opresión, del desprecio, del hambre. La “forma-
ción política” asumida con mucha seriedad, por las organizaciones sindicales y los
militantes de base, se ajustaba perfectamente a la noción tan controversial de que
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“nadie educa a nadie, todos nos educamos entre todos”. Porque la cultura popular
es un campo de saberes desvalorizados por la cultura erudita u oficial, sin embargo
contiene saberes extremadamente valiosos, que funcionan además como un tamiz
capaz de filtrar nuevos saberes, nadie, ni el trabajador más rústico es una tabla
rasa, todos poseemos una historia y una cultura vivencial que nos constituye.
La herencia de la pedagogía freireana setentista, permitió en los años ´80 y has-
ta nuestros días, reelaborar una mirada sobre la educación del pueblo, que ya no aspi-
raba a la revolución pero que aun así, tenía la potencia de colocar a todos los hombres
como creadores de cultura y no solo destinatarios de la cultura que otros crean.
En los años 70 al calor de la revolución posible, esa discusión pedagógica se
actualizó y como sucede con frecuencia, se radicalizó. Si de universalizar derechos
se trata, si de generar una sociedad más justa se trata, el nuevo sujeto no puede sim-
plemente recibir la cultura hegemónica y aceptarla, hay que partir de su propia pa-
labra, porque lo que está en juego es el fin de la opresión y ella es, en primer término,
la que deviene de la cultura del silencio producida por tantos siglos de explotación.
Ese debate pedagógico está vigente, por la fortaleza que en Argentina tiene la
escuela pública estatal. Dos modelos, que cada vez son menos opuestos, se dispu-
tan el nombre de Educación popular, el modelo sarmientino hegemónico y un cada
vez más presente modelo freireano en la escuela pública estatal. Pero esa es otra
discusión.
Conclusiones
Pedagogía del Oprimido, llega en medio de ese escenario político convulsiona-
do en el que intelectuales, artistas, cineastas, periodistas también estaban compro-
metidos. Freire completa desde un punto de vista latinoamericano, la crítica que
hacía falta a una educación incapaz de reconocer los saberes populares, la potencia
liberadora de la cultura del pueblo. El texto radicalizaba una crítica que develaba
hasta qué punto la educación podía ser un vehículo de dominación.
Aun cuando a la distancia podemos y debemos criticar algunas ideas de Peda-
gogía del Oprimido, Freire fue en el sentido amplio del término el último pedagogo
latinoamericano, aquel que colocó el carácter político de la educación como eje del
debate y lo hizo a lo largo de toda su vida, ignorarlo, ingenua o deliberadamente,
restringe y debilita la energía de la crítica.
Hace un tiempo, participé como invitada de la sección “Conversando con
educadores” de esta misma Revista. Allí conté como llegó a mí, en 1977, plena
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Dictadura, la noticia de que había un pedagogo, un educador que hablaba de los
Oprimidos, de los pobres, y sobre todo se preocupaba en educar para la Liberación.
Eran tiempos de una masacre planificada, de tortura y desaparición forzada de
personas, sean estudiantes, obreros que reclamaban derechos o simplemente otras
personas que enseñaban en una Villa de emergencia, o que tenían un comedor
popular u otras, al azar, porque el objetivo era hacer sentir que todos estábamos en
riesgo. Fue en esos años terribles, que en una librería que vendía libros y revistas
usadas conseguí un ejemplar de Pedagogía del Oprimido, editado por la editorial
Siglo XXI en el año 1973, para ese año el libro llevaba ocho ediciones.
Yo saludo la iniciativa de esta Revista y de todos los homenajes, muchos en
Argentina, que se hagan por los 50 años de publicación de este libro, es el deber de
sostener, en un tiempo radicalmente opuesto, el espíritu de la crítica política, por-
que renunciar al horizonte revolucionario no es lo mismo que renunciar a formas
de vida más igualitarias y justas. Y creo, que en este punto se encuentra otra de
las grandes virtudes de un pensador como Freire, que aun cuando ya lleva más de
veinte años fallecido nos permite enfrentar el empobrecimiento cultural y la docili-
dad intelectual con la que aceptamos que la realidad no puede cambiarse. Freire es
un espejo en el que es posible leer nuestro tiempo como un retroceso a la barbarie,
como un retorno histórico a la minoría de edad. Pero también su pedagogía inter-
pela nuestra criticidad y nos ayuda a no ceder a tantas tentaciones de frivolidad in-
telectual y mercantilización, estímulos que el neoliberalismo nos pone por delante.
Mantener viva la memoria de un autor, de un texto, como en este caso, es parte de
un acto de Resistencia imprescindible contra la barbarie y la violencia. Pues, aun
para quienes no piensan ganar la batalla, las ideas de igualdad, libertad y justicia
social, siguen siendo el piso de la crítica política y pedagógica en América Latina.
Notas
1
El Padre Carlos Mugica, fue uno de los representantes más importantes del Movimiento de Sacerdotes
para el Tercer Mundo, en un momento en que muchos de ellos, adhieren explícitamente al Peronismo, tra-
bajando en las “villas de emergencia”. Hoy, la “villa de Retiro”, n° 31, lleva su nombre porque fue uno de
los asentamientos donde más trabajó, era el Párroco de la capilla Cristo obrero. Esta historia está contada
por el Padre Jorge Vernazza, amigo personal del sacerdote, en un libro del año 1984, que ese llama, Padre
Mugica, una vida para el pueblo. Mugica fue asesinado, el 11 de mayo de 1974, después de una misa, por
una organización armada llamada Triple A (Alianza Anticomunista Argentina), uno de los grupos de la
Derecha Peronista que comenzaría un baño de sangre indetenible, profundizado luego por el “Terrorismo
de Estado” que implantó la Dictadura de 1976.
2
Se denomina “Villero” al habitante de una Villa de emergencia, también llamada Villa miseria, la palabra
villero tiene un tono despectivo en la cultura argentina, “negro villero” es un calificativo proferido como
ofensa.
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3
Cf. Russo y Sgró (2001, p. 64-72).
4
Cf. Sgró (2017).
5
Grimson (2019).
6
Raúl Scalabrini Ortiz. Tierra sin nada, tierra de profetas, Buenos Aires, Plus Ultra, 1973, p. 55. Citado por
Felipe Pigna e disponible en: https://www.elhistoriador.com.ar/.
7
Sería interesante indagar también las coincidencias entre el pensamiento freireano y el peronismo, por
haber encarado un camino estrecho que los separa del Marxismo, sin renunciar a la transformación social.
8
Cf. Freire (1973).
9
Cf. Primer Congreso Nacional de Filosofía, Mendoza, 1949. Disponible en: http://www.filosofia.org/
mfb/1949a128.htm#00 ó Perón, J. Una comunidad organizada y otros discursos académicos. Buenos Aires:
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Educação, diálogo e prática da liberdade em Paulo Freire: revisitando a
pedagogia do oprimido
Educación, diálogo y práctica de la libertad en Paulo Freire: revisando la pedagogía
de los oprimidos
Education, dialogue and practice of freedom in Paulo Freire: reviewing the pedagogy
of the oppressed
Thiago Ingrassia Pereira
*
Jerônimo Sartori
**
Resumo
O objeto deste estudo é a análise da obra Pedagogia do Oprimido em uma perspectiva crítica, procurando reetir
acerca das limitações e potencialidades da educação e do diálogo na sua relação com a prática da liberdade. O
foco está na compreensão de como a obra contribui para problematizar as críticas e dialogar com a função trans-
formadora da educação, tendo em vista a perspectiva do que se explicita no livro. Examina-se como a proposta
freireana de educação pode pensar e efetivar ações perpassadas pelo diálogo e que resultem na formação de
sujeitos capazes de agir no horizonte da prática da liberdade. A reexão é construída pelo olhar de um quefazer”
crítico-reexivo, pois a formação do sujeito é tratada como algo dinâmico, que se (re)constrói no movimento do
processo pedagógico. O itinerário metodológico do estudo, que é eminentemente bibliográco, toma, especial-
mente, o capítulo 3, A dialogicidade, essência da educação como prática da liberdade, considerando aspectos
facilitadores, os desaos e as incompletudes, tanto dos sujeitos como dos processos formativos. O texto aponta
os fundamentos da pedagogia freireana que embasam o diálogo como princípio que fortalece e (re)dimensiona
a prática da liberdade que se congura nas possibilidades de libertação dos sujeitos.
Palavras-chave: Pedagogia freireana. Educação. Diálogo. Prática da liberdade.
*
Pós-Doutor em Educação (2018) pela Universidade de Lisboa. Mestre (2007) e Doutor (2014) em Educação pela Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Sul. Sociólogo. Professor da área de Fundamentos da Educação e do PPGPE e
PPGICH da UFFS, Campus Erechim. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-5558-7836. E-mail: thiago.ingrassia@gmail.com
**
Pós-Doutorado em Educação na Universidade de Passo Fundo (UPF). Doutor em Educação pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul. Professor do Programa de Pós-Graduação Prossional em Educação (PPGPE) da Universidade Federal
da Fronteira Sul (UFFS), Campus Erechim. Orcid: http://orcid.org/0000-0001-5099-1138. E-mail: jetori55@yahoo.com.br
Recebido em 24/04/2020 – Aprovado em 28/09/2020
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i3.12368
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Resumen
El objetivo de este estudio es el análisis de la obra Pedagogía de los oprimidos en una perspectiva crítica, bus-
cando reexionar sobre las limitaciones y el potencial de la educación y el diálogo en su relación con la práctica
de la libertad. El objetivo es entender cómo el trabajo contribuye a problematizar las críticas y el diálogo con
la función transformadora de la educación, en vista de la perspectiva de lo que se explica en el libro. Examina
cómo la propuesta freireana para la educación puede pensar y llevar a cabo acciones permeadas por el diálogo
y que resultan en la formación de sujetos capaces de actuar dentro del alcance de la práctica de la libertad. La
reexión se construye mirando un qué hacer” crítico-reexivo, ya que la formación del sujeto se trata como algo
dinámico que (re) construye en el movimiento del proceso pedagógico. El itinerario metodológico del estudio,
que es eminentemente bibliográco, toma, en particular, el capítulo 3 “La dialógica, la esencia de la educación
como práctica de la libertad, considerando aspectos facilitadores, desafíos e incompletos, tanto de las asignatu-
ras como de los procesos de capacitación. El texto señala los fundamentos de la pedagogía de Freire que basan
el diálogo como un principio que fortalece y (re) mide la práctica de la libertad congurada en las posibilidades
de liberación de los sujetos.
Palabras clave: Pedagogía freireana. Educación. Dialogo. Practica de libertad.
Abstract
The object of this study is the analysis of the work Pedagogy of the Oppressed in a critical perspective, seeking
to reect on the limitations and potential of education and dialogue in its relationship with the practice of free-
dom. The focus is on understanding how the work contributes to problematize criticism and dialogue with the
transforming function of education, in view of the perspective of what is explained in the book. It examines how
the Freirean proposal for education can think and carry out actions permeated by dialogue and that result in the
formation of subjects capable of acting within the scope of the practice of freedom. The reection is built by loo-
king at a critical-reexive “what to do, since the formation of the subject is treated as something dynamic that (re)
builds in the movement of the pedagogical process. The methodological itinerary of the study, which is eminently
bibliographic, takes, in particular, chapter 3 “Dialogicity, essence of education as a practice of freedom, conside-
ring facilitating aspects, challenges and incompleteness, both of the subjects and of the training processes. The
text points out the fundamentals of Freires pedagogy that base the dialogue as a principle that strengthens and
(re) measures the practice of freedom that is congured in the possibilities of subjects’ liberation.
Keywords: Freirean pedagogy. Education. Dialogue. Freedom practice.
Introdução
A obra Pedagogia do Oprimido, escrita em 1968 (lançada em 1970 em Nova
York) pelo educador brasileiro Paulo Freire, expressa as sínteses atentas que fo-
ram realizadas em seu período de exílio no Chile, tempo este em que auxiliou na
realização de experiências de educação popular naquele país. Ao refletir sobre a
referida obra é indispensável atentar para a sua proposta de criar uma nova pe-
dagogia que tratasse do estreitamento da relação educador(a)-educando(a)-mundo,
considerando a politicidade da educação.
Para Carlos Alberto Torres (2008), Pedagogia do Oprimido de Freire e Edu-
cação e Democracia de John Dewey são os dois livros que marcaram importantes
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desenvolvimentos da filosofia da educação no século XX. Dessa forma, o livro de
Freire possui um caráter revelador de uma proposta que atenda, especialmente, as
camadas populares, para que se constituam como sujeitos e agentes do seu próprio
processo de construção de conhecimento, tendo sucesso editorial em vários países
do mundo. Isso se deve à importância do educador Paulo Freire como mobilizador
da transformação da realidade social, política, econômica, cultural e educacional.
Frente a tais questões faz-se necessário divulgar e manter viva a obra Peda-
gogia do Oprimido, pois se trata de um livro fundante de uma prática pedagógica
situada politicamente e embasada em uma pedagogia de síntese que envolve diver-
sas bases filosóficas (ZITKOSKI, 2007), tendo em vista que a cultura se constitui,
numa sociedade de classes, majoritariamente, pelo viés da trama protagonizada e
tecida pela classe dominante, sempre na perspectiva do atendimento aos interesses
de classe, por meio da subordinação dos(as) mais pobres e menos escolarizados(as).
Ao nos trazer a concepção de educação libertadora, Freire anuncia no horizon-
te a necessidade de compreender a situação de oprimido(a), para que o sujeito se
liberte da dominação da consciência alienada e submissa, com vistas a tornar-se
conscientemente crítico e reflexivo. Para tanto, há o anúncio da imprescindibilida-
de da (re)criação de itinerários formativos/reflexivos que capacitem o sujeito para
desvencilhar-se das amarras da opressão/dominação para a conquista da prática
da liberdade.
Nesse sentido, é interessante considerar os feitos e efeitos da ditadura militar,
que compreende o período de 1964 até 1985, que teve como marco o autoritaris-
mo, o silenciamento, a dominação, a repressão e a tortura (física e psicológica).
Remexer um contexto que por mais de vinte anos produziu submissão, alienação,
acriticidade, bem como que acentuou as desigualdades sociais, consequentemente,
a dependência dos(as) enfraquecidos(as) e marginalizados(as) da classe dominan-
te, que por concentrar riquezas exponencialmente concentrou o poder político – o
domínio sobre os(as) mais fracos(as).
Este estudo ao enfocar a “dialogicidade, essência da educação como prática da
liberdade” (capítulo 3 de Pedagogia do Oprimido), procura refletir sobre as nossas
percepções do quanto, por meio do diálogo, avançamos ou não em direção à prática
da liberdade, no período pós 1985 com a redemocratização do Brasil. Para isso, é
fundamental atentar para o princípio do diálogo como instrumento ou não nos es-
paços formativos; diálogo como mecanismo para a produção de condições objetivas
para produzir ações com vistas à efetiva prática da liberdade.
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Num cenário socioeducacional que se configura e reconfigura seguindo a di-
nâmica das sucessivas mudanças, entende-se que o diálogo é fundamental para
aprimorar a prática pedagógica, com vistas à construção de conhecimento e à am-
pliação da cosmovisão de mundo. Freire considera o diálogo virtuoso pelo potencial
agregador de coletivos, por sua vez não pode ser a pronúncia da realidade pelo
olhar seletivo de “experts”, mas pelo olhar das multifaces que compõem as mas-
sas historicamente alijadas dos processos participativos, das tomadas de decisões.
Nesta perspectiva, adensa-se a esta reflexão a crítica à educação que não trata da
vida, que não considera o sujeito como único/singular, que habita e vive em uma
sociedade plural.
A partir de pesquisa bibliográfica com foco na exegese da obra freireana, o tex-
to ora apresentado desdobra-se em três tópicos, didaticamente separados em suas
abordagens, mas inter-relacionados com o propósito de dar coesão e coerências às
ideias sistematizadas. No primeiro tópico “Contextualização da obra Pedagogia do
Oprimido”, dá-se realce ao tempo histórico e ao modo de elaboração da obra, bem
como sobre a forma como a mesma se propagou pelo mundo. No segundo tópico “A
educação em relação com a dialogicidade”, busca-se a partir do conceito de educa-
ção abordar o diálogo como forma de reconhecer os sujeitos como comunicadores
e interlocutores de diferentes saberes. Já no terceiro tópico “O diálogo em relação
com a prática da liberdade”, aponta-se a prática dialógica como mobilizadora e pro-
motora da consciência crítica, da autonomia e da emancipação, o que pode resultar
em um agir livre e politizado. Por fim, nas considerações finais procura-se destacar
a relevância da obra Pedagogia do Oprimido, especialmente, do recorte realizado
tratando do diálogo como agregador e mobilizador dos sujeitos rumo à prática da
liberdade.
Contextualização da obra Pedagogia do Oprimido
Ao iniciar esse tópico do estudo, destacamos que o livro em análise foi escrito
na modalidade de ensaio, dividido em quatro capítulos: a) Pedagogia do Oprimido:
justificativa; b) Educação Bancária: instrumento de opressão; c) Dialogicidade: es-
sência da educação como prática da liberdade; d) A teoria da ação antidialógica. A
obra foi lançada inicialmente em 1970 em Nova York, sendo publicada em Portugal
em 1972 e no Brasil, devido a sua proibição, somente em 1974.
O próprio autor considera que “todos os livros têm sempre uma longa história,
e eu vivi aproximadamente um ano falando da pedagogia do oprimido” (FREIRE,
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2014, p. 335). Em seu reencontro com o livro 25 anos depois, escreve em sua Peda-
gogia da Esperança: “foi vivendo a intensidade da experiência da sociedade chilena
[...] que me fazia re-pensar sempre a experiência brasileira [...] escrevi a Pedagogia
do oprimido entre 1967 e 1968” (FREIRE, 2008, p. 53). Inicialmente, os três pri-
meiros capítulos eram a totalidade da obra, sendo que o quarto capítulo fora escrito
por Freire depois de seis meses sem contato com o manuscrito.
Pedagogia do Oprimido revela um dos traços potentes da produção freireana:
a práxis (relação teoria e prática). Isso se deve ao contexto em que esse livro, como
de resto a quase totalidade da bibliografia do autor, foi produzido. Em Freire, não
há uma teoria engendrada em bases especulativas abstratas e depois testada em
situações concretas do cotidiano: ao contrário, o que percebemos são textos que
brotam de experiências de in(ter)venção do autor, sendo seus escritos sínteses teó-
rico-práticas de práticas politicamente situadas.
Dessa forma, o início do célebre prefácio de Ernani Maria Fiori é representativo
do lugar de produção autoral de Paulo Freire. Para Fiori (2005, p. 7): “Paulo Freire
é um pensador comprometido com a vida: não pensa ideias, pensa a existência”.
Por isso, sua obra vai ser uma construção que parte dos desafios das sociedades
desiguais e se compromete, para além da reflexão rigorosa, com a transformação
de cenários injustos. Portanto, podemos considerar que é a consciência da prática
que gera sua teoria, pois:
[...] a Pedagogia do Oprimido é filosofia, sociologia, educação e, sobretudo, um tratado de
epistemologia. É um livro nascido da luta empreendida por seu autor para dar aos indivíduos
de todas as classes sociais o direito de serem sujeitos de seu próprio processo de conhecimento
e para despertar, nesses indivíduos, o interesse, a agudeza e a coragem necessários a fim de
participarem do processo de transformação de suas sociedades (BARBOSA, 2017, p. 25).
O livro em tela é parte de uma extensa obra dedicada à construção de funda-
mentos pedagógicos que se desdobram da assunção de um projeto societário. A sua
escrita no Chile é parte de um contexto mais amplo em termos políticos que situa o
texto historicamente. Freire estava exilado pelo governo autoritário inaugurado no
Brasil em 1964. Seu “crime” foi a proposta efetiva de alfabetização de adultos(as)
como parte de um projeto de conscientização mais amplo.
Ao entender que as pessoas adultas já leem o mundo, Freire provoca a alfabeti-
zação como um processo cognoscente que deve partir dessa leitura inicial da realida-
de e superá-la com a leitura da palavra, não dicotomizando ou criando hierarquias
entre esses dois momentos. Assim, a leitura da palavra potencializa a leitura de
mundo, esta originária da experiência cotidiana e aquela do processo pedagógico.
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Nesse sentido, a concepção educacional de Freire parte de um entendimento
antropológico de que as pessoas são seres inacabados exatamente pela sua condição
de seres culturais. Ao diferenciar cultura e natureza, o autor provoca uma teoria
crítica da construção educativa, uma vez que tudo que é cultural é socialmente pro-
duzido e pode ser problematizado. Assim, se a natureza é um dado, a sociedade é
uma construção. Percebemos que, em Educação como prática da liberdade (escrito
em 1965), Freire (2007) esboça essa dimensão a partir do aporte da fenomenologia
e articula aquilo que seria conhecido por seu método.
Dessa forma, antes de Pedagogia do Oprimido encontramos textos que sinteti-
zam as influências das primeiras experiências formativas de Freire e do ambiente
do nacional-desenvolvimentismo e da chamada democracia populista em voga no
Brasil. Duas obras – Educação e atualidade brasileira (2003) e Educação como
prática da liberdade (2007) – escritas no final dos anos 1950 e início dos anos 1960
marcam aquilo que Scocuglia (2001) denomina “primeiro Paulo Freire”, ou seja, um
período de produção do autor marcado pela ideia de desenvolvimento nacional em
termos da democracia burguesa/liberal e pela busca da conscientização.
Os três primeiros capítulos fundantes de Pedagogia do Oprimido serão um
aprofundamento das discussões metodológicas presentes em Educação como prá-
tica da liberdade, sinalizando para uma obra em constante movimento de reelabo-
ração e reconstrução. O quarto capítulo já marca uma percepção teórica assentada
nos conflitos sociais e na necessidade de tomada de consciência para a ação trans-
formadora. Isso justifica uma pedagogia do oprimido, não para oprimidos e opri-
midas. Em Pedagogia do Oprimido encontramos “[...] um processo educativo para
a ‘revolução da realidade opressora’, para a eliminação da ‘consciência do opressor
introjetada no oprimido’, via ação político-dialógica” (SCOCUGLIA, 2001, p. 67).
Nessa linha, a influência de leituras marxianas e marxistas é visível na pro-
dução freireana a partir dessa obra. Isso não significa uma aceitação literal das
teses marxistas, mas a configuração estrutural da essência política da educação
enquanto prática histórica e em movimento, perpassada pela segmentação de
classe social. Entre tantos conceitos-chave, podemos encontrar em Pedagogia do
Oprimido três categorias estratégicas, indo ao encontro do discutido por Antunes,
Gadotti e Padilha (2018) ao examinarem categorias que marcam o livro e a pro-
dução do autor a partir de então. Os conceitos “diálogo”, “liberdade” e “oprimido”
sugerem características presentes no livro, constantes nas obras anteriores e que
serão reconstruídas e aprofundadas nos textos subsequentes.
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Nesse artigo, trabalharemos com dois conceitos – diálogo e liberdade – buscan-
do perceber suas implicações na pedagogia freireana e seus limites e possibilidades
no contexto educacional e político brasileiro. De certa forma, a noção de oprimido(a)
é transversal ao argumento desenvolvido, tendo em vista a opção radical (ROMÃO,
2008) do autor em favor das classes populares e subalternas. Partindo dessas ba-
ses, o trabalho de Paulo Freire vai ser paradigmático para a construção do movi-
mento de educação popular, ainda que, passando por Freire, esse movimento não
se esgote nele. Nesse sentido,
[...] há unanimidade entre os historiadores da educação popular de que ela se forma no
movimento da sociedade. Se temos nomes que servem de referência é porque pessoas se
dispuseram e tiveram a habilidade de captar a pedagogia que se realizava nesse movimen-
to. No entanto, enquanto processo, ela é maior que cada um desses nomes e continua sendo
recriada nesse movimento da sociedade (STRECK, 2010, p. 300).
A publicação de Pedagogia do Oprimido oferta sínteses teóricas de alta rele-
vância para o trabalho de base junto a movimentos populares do campo e da cida-
de. A problematização teórica realizada por Freire sinaliza para a unidade entre
ação e reflexão, constituindo elemento-chave para a transformação da realidade. O
diálogo seria a expressão tanto do compromisso ético (respeito pelos diferentes sa-
beres), como da perspectiva libertadora, na qual o “dizer a sua palavra” é fundante
do sujeito histórico.
Dessa forma, a formação humana e a luta política constituem espaços peda-
gógicos que potencializam pessoas e coletivos à conscientização acerca do mundo
que é produzido historicamente (SCHNORR, 2001). Por isso, a defesa do autor das
relações dialéticas entre teoria e prática e o trabalho ao nível da práxis transforma-
dora. Assim, nem o ativismo (ação em detrimento da teoria) e nem o “verbalismo”
(teoria em detrimento da ação) produziriam o ambiente transformador.
A transformação social seria um imperativo diante da desigualdade social.
Freire observava essas contradições materiais e simbólicas tanto nos anos 1960
como nos anos 1990, quando, seguindo suas práticas e reflexões, produz um con-
junto de textos que mostram o movimento de sua obra. Para ele,
[...] minha terra é a coexistência dramática de tempos díspares, confundindo-se no mesmo
espaço geográfico – atraso, miséria, pobreza, fome, tradicionalismo, consciência mágica, au-
toritarismo, democracia, modernidade e pós-modernidade. O professor que na universidade
discute a educação e a pós-modernidade é o mesmo que convive com a dura realidade de
dezenas de milhões de homens e de mulheres que morrem de fome (FREIRE, 2006, p. 26).
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A atualidade do pensamento pedagógico de Paulo Freire passa por sua capaci-
dade de produção teórica articulada com a prática, produzindo uma característica
muito presente em sua obra: a escrita autobiográfica e situada, ou seja, que parte
de contextos e experiências concretas vivenciadas pelo autor. Assim, o texto de
Freire parte de suas memórias e de sua apreensão da realidade que o cerca. Ao rea-
firmar e problematizar a Pedagogia do Oprimido nos anos 1990, Freire é preciso ao
afirmar sua metodologia de trabalho:
[...] depois de certo tempo de viver a experiência, sobretudo na medida em que se amiudou,
comecei a procurar situá-la no quadro em que se dava. Que elementos cercavam ou faziam
parte do momento mesmo em que me sentia mal. Quando o mal-estar era pressentido, eu
procurava rever e relembrar o que ocorrera no dia anterior. Reescutar o que dissera e a
quem dissera, o que ouvira e de quem ouvira. Em última análise, comecei a tomar meu
mal-estar como objeto de minha curiosidade. “Tomava distância” dele para apreender sua
razão de ser (FREIRE, 2008, p. 29-30).
Essa forma de produção é entendida, dentro de certas tradições acadêmicas,
como “menos rigorosa”, como apenas ensaios gerais sobre educação. Mas, Freire,
ao seu tempo, antecipava-se a tendências de escrita que configuram o denominado
“paradigma emergente”, nos termos de Boaventura de Sousa Santos. Nessa linha,
ao problematizar elementos constitutivos da ciência moderna, Santos (2009) ad-
voga por novas formas de conhecimento que sejam compreensivas, nas quais o
caráter autobiográfico e autorreferenciável da ciência é legítimo.
Freire, ao ser um crítico severo ao neoliberalismo – sua ética de mercado e sua
lógica naturalizadora – e de fatalismos de qualquer natureza, é um ator entendido
dentro de certa “pós-modernidade progressista ou radical” (MOTA NETO, 2015, p.
9) presente na agenda de debates nos anos 1990. Esse traço engajado de sua pro-
dução, sua não aceitação em dissociar razão e emoção e sua escrita plural, o consti-
tuem em foco de adesões e resistências no meio acadêmico e na sociedade em geral.
Em três décadas de reflexões sistemáticas sobre política, cultura e educação,
Freire nos oferta uma filosofia da educação com implicações nas mais diferentes
áreas do conhecimento. Essa característica interdisciplinar de sua obra tem na
Pedagogia do Oprimido um marco fundamental. Freire é um autor que explicita
posições e consegue se manter aberto a um diálogo profícuo com as mais diver-
sas tradições de pensamento, produzindo sínteses que desacomodam “puristas”
acadêmicos(as) e sectários(as) políticos(as), ao mesmo tempo que seduz pessoas
comprometidas com o espírito democrático. No seu livro de maior reconhecimento
é possível percebermos que:
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[...] sem desconsiderar o fato de seu solo fértil, no qual suas ideias e ideais vicejaram, ter
sido cultivado especialmente pela semeadura do materialismo histórico-dialético de inspi-
ração hegeliana (ex.: Lukács), ele também se nutriu do grande manancial cultural da her-
menêutica filosófica (ex.: Buber), do existencialismo (ex.: Sartre), da Escola de Frankfurt
(ex.: Fromm) e do pensamento pós-colonial (ex.: Fanon); sem contar o pensamento teológico
progressista (ex.: Chenu), o pensamento social brasileiro (ex.: Álvaro Vieira Pinto) e tantas
outras correntes libertadoras (SOUZA; MENDONÇA, 2019, p. 3).
Essa intensa interlocução de Freire segue constante em sua obra depois de
Pedagogia do Oprimido, mostrando sua abertura as mais distintas perspectivas
teóricas. Ao examinarmos essa arqueologia bibliográfica (PITANO; STRECK; MO-
RETTI, 2019) do autor, conseguimos entender a complexidade de seu pensamento
e as inúmeras possibilidades que abriu no campo da teoria educacional. Freire é
um autor conectivo, relacional e plural, que permite aproximações e diálogos com
diversos(as) autores(as), o que amplia redes e novas interpretações.
Pedagogia do Oprimido é um livro que alcançou enorme circulação interna-
cional. É uma das obras mais citadas na área de ciências humanas
1
e tem mui-
tas traduções em vários idiomas. Mesmo partindo de temas da realidade concreta
da América Latina e voltado à transformação social por meio da conscientização
dos(as) oprimidos(as), o livro tem boa recepção em países centrais do capitalismo.
Um dos elementos que podem explicar esse alcance, além da pluralidade de
debates teóricos, é a capacidade do autor de propor uma pedagogia utópica, basea-
da na conscientização, no humanismo e na valorização dos saberes da experiência.
Isso torna Freire um pedagogo brasileiro e mundial e a sua obra um “patrimônio
essencial para a pedagogia hoje” (NÓVOA, 1998, p. 183).
Porém, sabemos que o autor, que teve uma vida intensa e uma obra em movi-
mento permanente, não está imune às contradições de recepção de sua obra, espe-
cialmente no atual contexto brasileiro. Conceito central da Pedagogia do Oprimido
e de sua obra como um todo, o diálogo é um elemento central que segue pertinente
a análises rigorosas da área da educação. É por meio desse conceito que seguiremos
explorando o livro fundante da pedagogia freireana em suas potencialidades e em
seus limites.
A educação em relação com a dialogicidade
A trajetória de Paulo Freire se enraíza com maior vigor no Brasil no início da
década de 1960 e no mundo pós-1964, quando foi para o exílio no Chile (depois de
rápida passagem pela Bolívia), com o advento da ditadura militar. Desde sempre
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existiu/existe encantamento pela pedagogia de Freire; por outro lado há tentativas
de negação de suas teorias. Por sua vez, os(as) educadores(as) freireanos(as) histo-
ricamente têm militado em favor da implementação de uma educação libertadora;
já os(as) que negam a pedagogia freireana colocam-se alinhados(as) com as práticas
“tradicionais”, “conservadoras” na linha da chamada educação “bancária”, na qual,
sendo uma das marcas da opressão, o ato de “depositar” informações/conhecimen-
tos pelo(a) professor(as) nos(as) estudantes é a tônica. Assim, cabe destacar, neste
início de seção, que o legado de Freire traz consigo a motivação e a possibilidade de
as classes populares tornarem-se sujeitos e agentes da transformação da realidade
social, produzindo novas possibilidades educativas e sociais de forma ampla.
Ao referir-se à educação como prática da liberdade, Freire faz críticas contun-
dentes à classe dominante que, ao negar a palavra aos diferentes sujeitos, busca
mantê-los submissos e oprimidos. Negar a palavra – o diálogo – é um bom pretexto
para manter os oprimidos alienados e sob a manipulação, o que não gera ações que
favorecem a liberdade. O diálogo constitui-se em instrumento para que os sujeitos
em condição de subalternidade possam enfrentar e superar as situações que os
oprimem, buscando restaurar o seu lugar de sujeito no e com o mundo. Para Freire
(1987, p. 20), o diálogo deve ser “[...] essencialmente tarefa de sujeitos e que não
possa verificar-se na relação de dominação”. O autor segue indicando o amor como
antídoto à dominação, haja vista que “[...] amor é compromisso com os homens.
Onde quer que estejam estes oprimidos, o ato de amor está em comprometer-se com
sua causa. A causa de sua libertação” (1987, p. 20).
Trazer a amorosidade e o diálogo para o campo da educação, como sugere
Freire, é um exercício que necessita ser realizado para refletir sobre quanto os
processos de escolarização no Brasil, ainda, conservam formas de regulação moral
e política. Ao refletir criticamente acerca das práticas educativas antidialógicas,
faz-se necessário entender o poder dessas práticas como reprodutoras de injustiças
sociais e do fortalecimento de ações pedagógicas conservadores e mecânicas. As-
sim, o diálogo enquanto oposição ao antidiálogo torna-se exigência radical para que
os homens e as mulheres sejam interlocutores(as), utilizando os mais variados es-
paços de comunicação. Desse modo, “obstaculizar a comunicação é transformá-los
[os homens e mulheres] em quase ‘coisas’ e isto é tarefa e o objetivo dos opressores,
não dos revolucionários” (FREIRE, 1987, p. 125).
Enlaçado a isso, cabe questionar de que forma na escola se estabelecem os
canais de diálogo/comunicação entre os vários segmentos da comunidade escolar?
O diálogo apontado por Freire, como recurso indispensável para estreitar as rela-
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ções entre sujeitos, corrobora a ideia de que a educação é um processo relacional.
Em Giroux (1997, p. 125), estudioso da pedagogia freireana, encontra-se que a
prática pedagógica deve facilitar que professores(as) e estudantes “[...] assumam o
papel crítico e reflexivo de intelectuais transformadores”. No campo educacional é
fundamental frisar que o diálogo funciona como mecanismo para produzir visões
crítico-reflexivas sobre a realidade social – sobre o mundo.
As práticas e as diferentes modalidades pedagógicas, histórica e socialmen-
te inseridas no discurso e na corporificação teórica e ideológica dos(as) professo-
res(as), conforme Freire (1987), precisam valorizar a “palavra” daqueles(as) que
sempre lhes foi imposta a condição de “ignorantes” pela elite. O espaço de fala
– da voz e da vez -, especialmente, pós-1985, ano que marca a redemocratização
no Brasil, tem permeado problematizações e debates em algumas instituições que
oferecem cursos de formação de docentes e que primam pela reflexão e produção
de conhecimentos teórico-metodológicos. Isso, sem dúvida, em várias instituições
formadoras acontece/aconteceu, mas qual a razão de termos avançado tão pouco no
processo de conscientização e de construção de práticas participativas, dialógicas
e democráticas?
Certamente, as variáveis que se entrecruzam nos contextos formativos escola-
res e não escolares estão eivadas por contradições do ponto de vista das concepções
teóricas, especialmente sobre o que se entende por educação
2
, ensino e aprendiza-
gem (PAVIANI, 1986). No período de 50 anos da Pedagogia do Oprimido, é preciso
considerar os diferentes modos de como se configurou e reconfigurou o tecido social
e a própria cultura escolar. Esses aspectos podem nos ajudar a compreender sobre
o quão pouco conseguimos avançar na perspectiva de uma educação emancipadora
e libertadora.
A despeito disso, entende-se que a formação docente por si só não é suficien-
te para as transformações da educação e, consequentemente, da sociedade, tendo
em vista que a cultura escolar entranhada no modo de ser professor(a) também
obstaculiza avanços na direção de práticas educativas para enfrentar e superar a
concepção “bancária” de educação, que por ser antidialógica reproduz a consciência
ingênua e acrítica.
Sabemos que há resistências que perpassam o cotidiano escolar, principalmen-
te a forma como gestores(as) e educadores(as) concebem a docência, muitas vezes,
castradora de boas ideias e de boas práticas daqueles professores que tiveram uma
formação crítico-reflexiva, com potencial para realizar intervenções significativas
para a mudança do cenário educacional. Entende-se que o enfrentamento do modus
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operandi da docência passa também pelo enfrentamento das concepções conserva-
doras a respeito da escola, sendo que não pode haver construção de conhecimento se
os(as) estudantes não forem chamados(as) para desenvolver o “ato de conhecer”, mas
apenas para memorizar os conteúdos narrados pelo(a) professor(a) (FREIRE, 1987).
Ao retornar do exílio, com a Lei da Anistia, Freire se desafia a refletir junto
com os educadores e as educadoras do Brasil aspectos que se relacionam com a
prática pedagógica, tendo em conta o movimento gnosiológico dos sujeitos, bem
como as diferentes alternativas para dinamizar os atos cognoscentes com vistas a
tornar os objetos (conteúdos) cognoscíveis. Entre as multifaces que se entrecruzam
na prática docente está:
[...] a do mau hábito de pensar um pensar estático, não dinâmico, não dialético, em que a
gente separa quase milagrosamente (porque, na verdade, não se pode separar), mas em
que a gente dicotomiza, por exemplo, a prática pedagógica, a prática educativa, a ação
educativa, da preparação da ação da mesma, em que a gente separa a preparação da ação,
da avaliação, em que a gente separa os métodos dos conteúdos e os métodos e os conteúdos
dos objetivos (FREIRE, 1984, p. 91).
No momento em que se retoma a reflexão sobre a prática pedagógica, tendo
como ponto essencial a educação escolar, é interessante considerar que esta se de-
senvolve, em algumas instituições, consciente ou inconscientemente embasa em
concepções, ora de “educação bancária” ora de “educação problematizadora”. Ao ter
ciência de tais modelos de fazer “educações” na escola, é que Freire toma o mote da
educação problematizadora, investindo tempo e, sobretudo, buscando difundir sua
pedagogia em favor do desenvolvimento dos sujeitos como atores construtores do
seu próprio conhecimento.
Ao ter presente que o potencial do diálogo que se estabelece entre o binômio
educador(a)-educando(a), Freire (1987, p. 68) sugere que “[...] o educador já não é o
que apenas educa, mas que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando
que, ao ser educado, também educa”. É desta assertiva que se pode inferir que o ca
-
ráter individualista do(a) educador(a) que apenas ensina está superado, haja vista
que a dialogicidade é reveladora de diferentes saberes que estão latentes na expe
-
riência dos(as) educandos(as0 e, que tais saberes no diálogo com os saberes dos(as)
educadores(as) resultam em novos saberes para ambos (educador(a)-educando(a)).
Desse modo, a reflexão crítica sobre a realidade e sobre as experiências coti-
dianas dos(as) estudantes não ocorre no silêncio, supostamente estruturado como
disciplinador das relações em sala de aula. Ao contrário, sugere a pré-disposição
ao diálogo para inquirir e questionar as estruturas de dominação existentes, mas
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que buscam representar um falso quadro de harmonia entre as classes. Harmonia
que, conforme Giroux (1997), não é mais do que uma retórica para dizer aos(às)
subordinados(as) que sofrem as injustiças que devem “aceitar” a desigualdade de
classes como algo dado e natural.
Neste recorte em que se aponta a educação em relação com a dialogicidade,
de acordo com Freire (1987), pode-se dizer que a prática educativa requer do(a)
professor(a) a adoção da problematização como possibilidade de os(as) estudan-
tes superarem a ideia de conhecimento como doxa, substituindo-o pela ideia de
conhecimento que se constrói através do logos. Assim, o conhecimento produzido
na perspectiva do logos, procura por meio da emersão dos fenômenos, produzir
alternativas de inserção crítico-social dos sujeitos na realidade em busca de sua
transformação. Esse cenário é indutor de uma pedagogia que, baseada no diálogo,
é um exercício crítico de liberdade.
O diálogo em relação com a prática da liberdade
O diálogo em relação com a prática da liberdade requer que se retome a abor-
dagem do diálogo como princípio pedagógico, o qual encerra possibilidades inte-
rativas e integrativas. Enlaçado a isso, temos a educação problematizadora como
possibilidade de libertação fundamentada na crítica, que é produzida por meio da
reflexão-ação-reflexão e da criatividade dos(as) humanos(as) “[...] que não podem
autenticar-se fora da busca e da transformação criadora” (FREIRE,1987, p. 72).
A relativa consideração à obra Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire, que em
tempos de quase interdição ao pensamento crítico procura menosprezar e desqua
-
lificar a pedagogia freireana; o discurso concordante com a teoria de Freire passa,
então, neste momento histórico, a enfrentar a violência simbólica, que é contra uma
proposta visivelmente a favor da “educação como prática da liberdade”. Nessa pers
-
pectiva, torna-se relevante rever a alusão de Freire (1979, p. 12, grifos do autor)
sobre o diálogo como âncora facilitadora à prática pedagógica problematizadora:
[...] há limites para o diálogo. Porque numa sociedade de classes não há diálogo, há apenas
um pseudodiálogo, utopia romântica quando parte do oprimido e ardil astuto quando parte
do opressor. Numa sociedade dividida em classes antagônicas não há condições para uma
pedagogia dialogal. O diálogo pode estabelecer-se talvez no interior da escola, da sala de
aula, em pequenos grupos, mas nunca na sociedade global. Dentro de uma visão macro-
-educacional, onde a ação pedagógica não se limita à escola, a organização da sociedade
é também tarefa do educador. E, para isso, seu método, sua estratégia, é muito mais a
desobediência, o conflito e a suspeita do que o diálogo.
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O excerto reforça que os escritos de Freire, ainda, são hodiernos. Contudo, em
tempos de obscurantismo o(a) docente compromissado(a) com a interlocução com
seus(suas) estudantes e com a produção da consciência crítica, necessita, perma-
nentemente, refletir e (re)situar no tempo e na história a sua atuação pedagógica.
Assim, se nos momentos compreendidos entre 1985-2015 (três décadas), por ser
um tempo de maior abertura política e democrática, era um tanto difícil atuar na
perspectiva crítico-reflexiva, nos dias atuais pode ser considerado dificílimo (não
impossível), devido ao recrudescimento do ideário autoritário e centralizador, tanto
no Brasil como em outros países do mundo.
Passadas três décadas é de se perguntar se produzimos consciência crítica ou
se simplesmente nos iludimos em ter produzido entre as massas conscientização
e politização? Era, pois, de se esperar que neste período, por meio dos espaços for-
mativos escolares e não escolares, tivéssemos forjado a formação de seres humanos
potencialmente compromissados(as) com o mundo, com a história e com a huma-
nização das massas oprimidas. Para a produção de massa crítica e de cidadãos e
cidadãs conscientes, compreende-se que não há mais como ignorar dos processos
educativos a sociedade de classes e suas profundas desigualdades, a precarização
das condições de produção da subsistência, as questões de raça, etnia, gênero; as-
pectos estes que explicitam suas marcas diretamente em sala de aula, por fazerem
parte da história e da experiência de vida dos(as) educandos(as) e docentes.
Ao debater sobre as mazelas da realidade social e dos sujeitos nela inseridos,
serão referenciadas denúncias sobre a vida e sobre a desumanização, todavia, con-
forme Freire (2001) isso não basta, ou seja, a denúncia ao ser acolhida pela cons-
ciência requer atitudes no formato de anúncios e possíveis ações. O caráter utópico
da educação com vistas a concretizar a prática da liberdade parte da premissa de
que a denúncia sobre a realidade representa o ponto de partida para o anúncio de
ações transformadoras (FREIRE, 2001).
Desse modo, a ação transformadora
[...] utópica e esperançosa porque, pretendendo estar a serviço da libertação das classes
oprimidas, se faz e se refaz na prática social, no concreto, e implica a dialetização da de-
núncia e do anúncio, que têm na práxis revolucionária permanente, o seu momento máximo
(FREIRE, 2001, p. 70).
Talvez seja oportuno pensar criticamente sobre os avanços dos conhecimentos
na área das ciências humanas, principalmente, aqueles alinhados com a pedagogia
freireana, mas que efetivamente pouco interferiu na prática docente – na organi-
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zação e desenvolvimento de ações pedagógicas capazes de tornar a educação liber-
tadora e emancipadora.
Em termos de escolarização não se pode esperar que o futuro seja melhor se
a ação pedagógica continuar sendo mera repetição de conteúdos sem vínculo com
a realidade micro e macrossocial. Nesse sentido, “quanto mais a problematização
avança e os sujeitos descodificadores se adentram na ‘intimidade’ do objeto proble
-
matizado, tanto mais se vão tornando capazes de desvela-lo” (FREIRE, 2001, p. 77).
Para debater a realidade social em sala de aula é fundamental que o profes-
sor adote estratégias para tornar o ambiente e a relação entre docente-discente e
discente-discente crítica, mas respeitosa. A razão disso é que ao tratar de temáticas
polissêmicas podem aparecer entre os envolvidos (estudantes) resistências, pelas
dificuldades de reconhecer e decodificar as tramas que tecem a história e a reali-
dade social. É essencial, desse modo, conduzir o processo pedagógico no horizonte
freireano em que a educação é um ato político. Então, aquele(a) que argumenta o
contrário,
[...] afirmando que o educador não pode “fazer política”, estão defendendo uma certa polí-
tica, a política da despolitização. Pelo contrário, se a educação, notadamente a brasileira,
sempre ignorou a política, a política nunca ignorou a educação. Não estamos politizando
a educação. Ela sempre foi política. Ela sempre esteve a serviço das classes dominantes
(FREIRE, 1997, p. 14).
Em relação à citação é preciso ter o entendimento que se a educação é um ato
político, por sua vez, a escola é um espaço em que se faz política. É fundamental
destacar que a escola é uma construção social, portanto, uma construção políti-
ca e intencional, por isso, está sempre em disputa, o que é salutar para que os
espaços formativos sejam democráticos e emancipadores. Enfatiza-se, dessa ma-
neira, que a prática pedagógica para fundamentar a prática da liberdade, requer
enfrentamentos e decisões, não descuidando da articulação dos objetivos, conteú-
dos, procedimentos metodológicos e avaliação. A despeito disso, corrobora Giroux
(1997) quando indica que a experiência do estudante necessita ser privilegiada não
apenas para compartilhar atributos, mas para refletir e produzir conhecimentos e
consciência crítica. Dessa forma,
[...] [a] visão acrítica dos estudantes, particularmente daqueles pertencentes a grupos su-
bordinados, está refletida na recusa do discurso da relevância em examinar criticamente
a maneira pela qual o mesmo fornece e legitima formas de experiência que incorporam a
lógica de dominação (GIROUX, 1997, p. 129).
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O debate sobre a real situação e condição de pertencimento de classe social,
deve servir para que os sujeitos reconheçam em que lugar social estão situados,
bem como as razões que os situaram neste lugar. A partir desta compreensão, ao
contrário de acomodarem-se às condições a que socialmente estão submetidos, por
meio do conhecimento e da consciência de classe, devem organizar-se e lutar, iden-
tificando no movimento em que os homens e mulheres permanentemente encon-
tram-se inscritos(as), “[...] como seres que se sabem inconclusos; movimento que é
histórico e que tem o seu ponto de partida, o seu sujeito, o seu objetivo” (FREIRE,
1987, p. 73). Nessa perspectiva, é interessante em uma análise, partir da condição
desumanizante, a busca da construção de uma realidade em que os homens e as
mulheres se empoderem para “ser mais” – compromisso histórico e utópico da ação
para a liberdade.
De acordo com Freire (2001, p. 96), “a consciência crítica não se constitui atra-
vés de um trabalho intelectualista, mas na práxis – ação e reflexão”. Como já des-
tacado, Freire (1987) compreende a práxis como atividade humana e social, que se
ocupa do poder que o ser humano tem para produzir a unidade: teoria-prática; ho-
mem/mulher-mundo; sujeito-objeto; objetividade-subjetividade. O espaço escolar,
dessa maneira, não poderia negar às classes dominadas momentos para denúncias,
nem tampouco deixar de auxiliar na construção de possibilidades que fortaleçam
anúncios teórico-práticos com vistas à transformação da realidade. Isso encontra
eco no fato de que a ação que se constitui em favor da libertação se constrói em
oposição aos interesses das classes dominantes (FREIRE, 2001).
A educação que se realiza com o propósito de que tanto educadores(as) como
educandos(as) se tornem sujeitos de seu processo, faz-se “[...] aprofundando a to-
mada de consciência da situação, os homens se ‘apropriam’ dela como realidade
histórica, por isto mesmo, capaz de ser transformada por eles” (FREIRE, 1987,
p. 74). Essencial à produção da consciência crítica é articular os conhecimentos
curriculares com as problemáticas que se colocam como condição natural à manu-
tenção do status quo da classe dominante.
A prática da liberdade, a partir do diálogo estabelecido em sala de aula e na es-
cola, se expressa: na competência e no argumento fundamentado teoricamente; na
compreensão do tecido social que se configura com base na matriz do capitalismo;
na capacidade de organização das classes subordinadas para saírem da condição
de passividade e silenciamento, assumindo a condição de sujeito empoderado pela
palavra – pelo conhecimento como ferramenta do poder.
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Nesse sentido, é apropriado destacar que, na perspectiva freireana, liberdade
não significa licenciosidade, sendo que a liberdade necessita da autoridade (GHIG-
GI, 2001). Portanto, ao defender uma educação dialógica, não autoritária e situada
politicamente em um projeto solidário e inclusivo de sociedade, a leitura rigorosa
da obra de Freire a afasta de posturas doutrinadoras de qualquer natureza. Pelo
contrário, a teoria e prática do autor o situam como um humanista preocupado com
a radicalidade democrática.
Em Pedagogia do Oprimido encontramos uma posição política que se desdobra
em uma proposta pedagógica. O diálogo ocupa lugar central na filosofia da educa-
ção freireana exatamente por ser um mecanismo da prática da liberdade. Ao dizer
a sua palavra, homens e mulheres potencializam sua condição humana e, assim,
podem construir a consciência crítica que aprofunda sua leitura de mundo.
Contudo, o que explicaria a continuidade de práticas pedagógicas autoritárias
na escola do século XXI? Quais os limites do diálogo em nossa sociedade marca-
damente desigual? Quais as variáveis que ajudam a explicar o atual quadro da
ofensiva conservadora no Brasil? Qual o partido daqueles(as) que defendem uma
“escola sem partido”? Entendemos que essas e outras questões nos desafiam na
apreensão crítica do cenário atual, em que a Pedagogia do Oprimido segue atual
em suas bases teóricas e compromissos políticos. Assim, uma pergunta-chave desse
contexto é: “como é possível que, mundo afora, as edições de seus livros sejam lidas
por milhões e aqui se pretenda expurgá-lo da educação brasileira?” (KOHAN, 2019,
p. 22). O enfrentamento dessa questão é um exercício crítico do quadro político
nacional e das históricas disputas de poder e projetos de país.
Considerações nais
O desafio de dialogar com a obra de Freire, especialmente com a Pedagogia
do Oprimido no momento contemporâneo pelo qual passa o Brasil, redobra nosso
compromisso em levar adiante o legado freireano, que postula por uma educação
libertadora e que, ao ser mediada pelo diálogo, se configure como prática da liber-
dade. Para tanto, atenta-se para a necessidade de (re)situar conceitos e práticas,
com vistas à reconstrução de cenários que reavivem ações colaborativas e partici-
pativas. Assim, o diálogo como uma das possibilidades para problematizar a vida
e a realidade é imprescindível para a construção de conhecimentos, que ocorrem
na relação docente-discente, não pela mera narrativa de conteúdos pelo(a) profes-
sor(a).
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Se o diálogo tem potencialidades para discutir, debater, problematizar, inda-
gar, inferir, contra-argumentar, cabe pensar sobre aspectos que não permitiram
avançar em ações que efetivamente produzissem as condições para o exercício da
prática da liberdade, em um tempo histórico (1985-2015), em que se vislumbrava a
viabilidade de construções democráticas. Se não avançamos o quanto poderíamos
de 1985 até 2015, cabe refletir por que, em um espaço relativamente curto (2016-
2020), houve um acentuado recrudescimento na tomada de decisões em espaços
coletivos e participativos.
Nesse sentido, percebe-se um processo acelerado de tentativa de castração
da criatividade, da curiosidade, da inventividade. Entende-se, pois, que, se tanto
educadores(as) como educandos(as) estão encharcados(as) desta realidade “per-
versa”, que visa silenciar mentes, corpos e a voz, é mister eleger conhecimentos
curriculares que favoreçam a compreensão da realidade, para enfrentar as práticas
enviesadas e com caráter dogmático e autoritário nas escolas.
O tempo “perdido” em termos dos possíveis avanços que poderiam ter ocorrido
de 1985 a 2015 necessita ser visualizado com cautela, na perspectiva do movimento
histórico em suas contradições. Houve, a partir do início da década de 1970 – perío-
do do auge da ditadura militar –, uma significativa expansão da educação básica
na rede pública do ensino brasileiro, que demandou a formação de professores(as).
Cabe, então, debruçar-se sobre com que proposta e com que formato de curso fo-
ram “formados(as)” os(as) professores(as) que seguiram o exercício da docência na
transição do período da ditadura militar ao período pós-1985, denominado de “re-
democratização do Brasil”.
É essencial, também, pensar como à época se apresentava o perfil dos forma-
dores para os cursos de graduação aligeirados e desdobrados entre licenciatura de
curta duração (LC) e licenciatura plena (LP), nos termos da Lei nº 5.692/1971. Com
isso, não se pretende tecer considerações superficiais e ingênuas, culpabilizando
somente os(as) docentes pelos supostos “não avanços” da proposta de educação
libertadora, apontada por Freire na obra Pedagogia do Oprimido, com vistas à
emancipação do sujeito e à sua preparação para o exercício consciente da cidadania.
Pode-se dizer que há um conjunto de variáveis que concorrem para o entendimento
ou não de que a escola pode conquistar sua autonomia, construindo seu projeto
político-pedagógico de forma coletiva, envolvendo toda a comunidade escolar.
Envolver a comunidade escolar em processos coletivos para debater, tomar de-
cisões e encaminhar ações no campo pedagógico não é tarefa fácil, pois as escolas, de
maneira antidialógica, foram pensadas pelo sistema por mais de duas décadas (di-
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tadura militar). Na perspectiva freireana, quem não pensa é pensado, ou seja, os ór-
gãos centrais dos sistemas planejavam e as escolas executavam, não havia proposta
pedagógica própria e tampouco regimento escolar próprio, era responsabilidade da
mantenedora (estado ou município) enviar às unidades escolares para o “cumpra-se”.
Os aspectos aludidos também corroboraram para a limitação da expansão e
evolução da pedagogia freireana nas escolas, talvez uma das causas esteja na di-
ficuldade dos atores educacionais não se sentirem pré-dispostos, compromissados,
capacitados para assumir o protagonismo de pensar a escola como um lugar essen-
cial para a existência humana, para construir ações com vistas a libertar o sujeito
das amarras do pensar estático, acrítico e ingênuo.
Toda a ação humana se realiza balizada por uma concepção política e ideoló-
gica, sempre entremeada por contradições, tensionamentos, conflitos, incertezas,
que devem passar pelo crivo reflexivo da “pergunta em favor de que e contra que,
em favor de quem e contra quem eu conheço, nós conhecemos, não há mais como
admitir uma educação neutra a serviço da humanidade, como abstração” (FREIRE,
1984, p. 97, grifos do autor). Sem dúvida, ao assumir que a educação não é neutra,
é essencial compreender que tanto a educação bancária como a problematizadora
estão eivadas de poder, respectivamente, alienador e libertador.
Isso aponta para a necessidade de entender a educação como ato político, que
precisa ser assumida como prática política e social. O fato de não assumir a prática
docente como uma prática consciente e politizada, também representa um dos moti-
vos em avançar na dialogicidade e na ascensão da prática da liberdade. Mesmo en-
frentando alguns obstáculos de ordem epistemológica e teórico-conceitual, é premen-
te que os(as) militantes progressistas do campo educacional permaneçam firmes na
defesa de uma educação autêntica, “mediatizada pelo mundo” (FREIRE, 1987, p. 84).
Para o(a) educador(a) humanista, a saída do “contexto colonial” não se dará
pela imposição de um dado conhecimento, mas pode ser produzido pelas “visões im-
pregnadas de anseios, de dúvidas, de esperanças ou desesperanças que implicitam
temas significativos à base dos quais se constituirá o conteúdo programático da
educação” (FREIRE, 1987, p. 84). De modo geral, demanda-se ainda muito esforço
da categoria docente para entender a magnitude em assumir a posição de ator/
sujeito protagonista, não apenas como coadjuvante, mas como orgânico no processo
da configuração do diagnóstico da realidade, envolvendo-se efetivamente também
na elaboração, execução e avaliação do projeto educativo e curricular da escola.
O alcance da autonomia político-pedagógica não se constitui em uma tarefa
fácil, pois a complexidade da realidade não pode ser ignorada; precisa ser confron-
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tada para que a ideia de mudança social perpasse o planejamento dos processos
formativos, afirmando-se nos objetivos educacionais que estruturam as práticas
escolares (GIROUX, 1997). A escola, desse modo, não pode operar na perspectiva
de que “o silêncio estruturado que subjaz o seu único ‘nossa’ sugere não haver
disposição para indiciar ou questionar as estruturas de dominação existentes, en-
quanto apela para uma harmonia artificial” (GIROUX, 1997, p. 133).
O discurso da harmonia que não coloca em debate e questionamento as injus-
tiças experimentadas pelas classes subalternas, historicamente alijadas de uma
vida digna e de condições para produzir a própria subsistência, carece de situar
os homens que “não somente vivem, mas existem, e sua existência é histórica”
(FREIRE, 1987, p. 89). No enlaçamento com a pedagogia freireana, se os homens
e as mulheres tiverem a consciência de que sua relação com o mundo é situada,
datada e, especialmente, produzida pelo viés da matriz capitalista, poderão atuar
em função de finalidades propositivas e criadoras de condições objetivas para a
intervenção e a transformação social.
Assim, para desvencilhar-se da relação opressor-oprimido, o diálogo é essencial
para que ocorra a conscientização popular, pois não haverá “uma radical denuncia
das estruturas de dominação sem o anuncio de uma nova realidade a ser criada em
função dos interesses das classes sociais hoje dominadas” (FREIRE, 2001, p. 97).
Sobre isso, ainda, discorre Freire (1987, p. 88) ao destacar que os “homens como os
únicos seres, entre os ‘inconclusos’, capazes de ter, não apenas sua própria ativida-
de, mas a si mesmos, como objeto de sua consciência, o que os distingue do animal,
incapaz de separar-se de sua atividade”.
Tendo ciência, talvez, do pouco que se avançou na educação brasileira sob a
orientação da pedagogia de Paulo Freire, destacam-se alguns exemplos realizados
em gestões municipais desenvolvidas de forma democrática e participativa, como,
por exemplo, em São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre. Então, ainda há muito
por fazer, mas não estamos em um território de “terra arrasada”, talvez em certo
“estado de sítio”, pelas tentativas abruptas de silenciamento daqueles(as) que voci-
feram a defesa da educação pública, da educação crítica e de qualidade social para
todos e todas, indistintamente de classe social, raça, etnia e gênero. Tem-se clareza
da limitação desta reflexão, por isso ela está aberta às devidas críticas daqueles(as)
estudiosos(as) das obras de Freire, especialmente da Pedagogia do Oprimido; as
críticas servirão de âncora para prosseguir no aprofundamento da reflexão acerca
dos estudos freireanos.
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Por fim, como recorte deste texto, reforça-se a imprescindibilidade de enfa-
tizar a práxis como possibilidade metodológica para agir e refletir criticamente,
produzindo novos conhecimentos e novas visões sobre o processo ensino-aprendi-
zagem. Assim, entende-se que a reflexão crítica acerca da relação teoria-prática se
sustenta pela ação dialógica em vista da prática da liberdade.
Nota
1 Segundo pesquisa realizada no Google Scholar, pelo professor da London School of Economics, Elliott
Gren. Maiores informações em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2016/06/04/Paulo-Freire-%C3%A-
9-o-terceiro-pensador-mais-citado-em-trabalhos-pelo-mundo. Acesso em: 12 mar. 2020.
2
Dentre suas diferentes conceituações, entendemos a educação em sua tarefa de oferecer “condições de
opção ou possibilidade de fazer valer sua experiência de pessoas livres e responsáveis” (PAVIANI, 1986, p.
10). Portanto, a educação representa uma ação em favor da vida que favorece a invenção e reinvenção da
sociedade.
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Pedagogia do Oprimido – 50 anos – mais Freire, nunca menos
50 Years of Pedagogy of the Oppressed – for more Freire, never less
Pedagogía del oprimido – 50 años – más Freire, nunca menos
Valdo Hermes Barcelos
*
Maria Aparecida Azzolin
**
Resumo
A proposta de um dossiê tendo como temática a obra fundamental de Paulo Freire (1921-1997), intitulada Pe-
dagogia do Oprimido, não só se faz oportuna como necessária. Passados 50 anos da publicação dessa obra, um
marco na produção freireana, vivemos no Brasil, atualmente, um período de estranhos ressurgimentos. Ressurgi-
mentos de discursos e de práticas autoritárias, de incentivo à intolerância, ao ódio, de manifestações populistas
e, em muitos casos, de orientação fascistizantes. Nossa intenção com este texto é fazer uma reexão de caráter
teórico-epistemológica sobre o legado freireano, em geral, e, em particular, sobre a atualidade da Pedagogia do
Oprimido (1970). Em contraponto aos brados obscurantistas que chegam a propor a expulsão das proposições
freireanas da educação brasileira, propomos vida longa à Pedagogia do Oprimido, entre educadores(as) desse tão
maltratado país, onde a “Malvadeza” das elites reacionárias – como dizia Freire – insiste em produzir injustiças.
Com este texto, não queremos muito, queremos um pouco, de diálogo, mais tolerância, um pouco de esperança,
um pouco de alegria no fazer docente e generosidade entre as pessoas. Como na última frase do Pedagogia do
Oprimido, um pouco de “fé nos homens e na criação de um mundo em que seja menos difícil amar”.
Palavras-chave: Pedagogia do Oprimido. Paulo Freire. Legado de esperança.
*
PhD em Antropofagia Cultural Brasileira. Pesquisador produtividade 1 do CNPq. Membro da Academia Internacional
de Artes, Letras e Ciências - ALPAS - 21 - Cadeira Paulo Freire. Membro da Academia Santa Mariense de Letras - ASL
- Cadeira Cyro Martins. Membro da Casa do Poeta de Santa Maria - CAPOSM. Consultor MEC/UNESCO - MEC/MMA -
CYTED - INPA - MCT. Membro Anistia Internacional Brasil (1972). Professor titular na Universidade Federal de Santa
Maria. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7768-1543. E-mail: vbarcelos@terra.com.br
**
Doutora em Educação pelo PPGEDU da Universidade Federal de Santa Maria. Mestra em Educação pela Unipampa.
Atua na área de docência no Colégio Estadual Cristóvão Pereira (Santiago, RS). Orcid: https://orcid.org/0000-0002-
4495-6827. E-mail: cidaazzolin@gmail.com
Recebido em 14/03/2020 – Aprovado em 05/10/2020
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i3.12371
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Abstract
The proposal of a dossier that has as its theme the fundamental work of Paulo Freire (1921-1997), titled Pedagogy
of the Oppressed, makes itself not only opportune but necessary. 50 years after the publication of this work, a
landmark in Freire’s production, we live currently in Brazil a time of strange resurgences. Resurgences of authori-
tarian speeches and practices, stimulation of intolerance, of hate, populist demonstrations and, in various cases,
with a fascist orientation. The intention with this text is to reect on the theoretical-epistemological character
of Freires legacy in general, and in particular on the topicality of Pedagogy of the Oppressed (1970). Contrasting
with the obscure clamors that even propose the expulsion of Freires propositions from the Brazilian education,
we propose a long life to Pedagogy of the Oppressed, between educators of such a mistreated country, where the
“Meanness” of the reactionary elites – as Freire used to say – insists on producing injustices. With this text, we
don’t want much, but to produce a small amount of dialogue, more tolerance, a little bit of hope and joy among
the teacher practice, and generosity between people. As it is stated on the last phrase of Pedagogy of the Oppres-
sed, a little bit of “Faith in men and in the creation of a world in which loving is less dicult”.
Keywords: Pedagogy of the Oppressed. Paulo Freire. Legacy of hope.
Resumen
La propuesta de un dosier con la temática de la obra fundamental de Paulo Freire (1921-1997), intitulada Pe-
dagogia do Oprimido, no solo se hace oportuna como necesaria. Tras 50 años de la publicación de esta obra,
un marco en la producción freireana, vivimos en Brasil, actualmente, un período de raros resurgimientos. Re-
surgimientos de discursos y de prácticas autoritarias, de incentivo a la intolerancia, al odio, de manifestaciones
populistas y, en muchos casos, de orientación facista. Nuestra intención con este texto es hacer una reexión
de carácter teórico-epistemológico sobre el legado freireano en general y, en particular, reexionar sobre la ac-
tualidad de la Pedagogia do Oprimido (1970). En contrapunto a las manifestaciones oscurantistas que llegan a
proponer la expulsión de las proposiciones freireanas de la educación brasileña, proponemos larga vida a la
Pedagogia do Oprimido entre educadores(as) de tan maltratado país, donde la maldad de las élites reaccionarias,
como hablaría Freire, insiste en producir injusticias. Con este texto, no queremos mucho, queremos solamente
un poco más de diálogo, de tolerancia, de esperanza, de alegría en nuestro quehacer docente y generosidad
entre las personas. Queremos, como presenta la última frase de Pedagogia do Oprimido, un poco de “Fe en los
hombres y en la creación de un mundo que sea menos difícil de amar.
Palabras clave: Pedagogía del Oprimido. Paulo Freire. Legado de esperanza.
Introdução
Só existe saber na invenção, na reinvenção, na busca
inquieta, impaciente, permanente, que os homens
fazem no mundo, com o mundo e com os outros. Busca
esperançosa também (FREIRE, 2016, p. 105).
A proposta de um dossiê tendo como temática a obra fundamental de Paulo
Reglus Neves Freire (1921-1997), intitulada Pedagogia do Oprimido, não só se faz
oportuna como extremamente necessária. Passados 50 anos da publicação dessa
seminal obra que foi um marco na produção freireana, vivemos atualmente no
Brasil, um período de estranhos e perigosos ressurgimentos. Ressurgimentos de
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discursos e de práticas autoritárias, de incentivo a intolerância, de apologia ao
ódio entre as pessoas e grupos sociais, de manifestações populistas e, porque não
dizer, em muitos casos de orientação fascistizantes. Paulo Freire foi um dos gran-
des e pioneiros exemplos de educador brasileiro que nunca deixou de dialogar com
o mundo sem, contudo, descuidar de valorizar os saberes e os fazeres das gentes de
sua terra de origem: o Brasil.
Paulo Freire levou para todos os lugares por onde viajou aquilo que de melhor
tinha para dizer e fazer: sua imensa paixão pelas gentes do Brasil, em especial,
pelos marginalizados, pelos pertencentes às periferias excluídas pelas elites eco-
nômicas, intelectuais e acadêmicas. Não podemos esquecer que, com as devidas
exceções, as elites brasileiras se mostraram – e ainda se mostram – uma das mais
arrogantes e insensíveis do planeta. Como gostava de frisar Freire: “malvadas”.
Nossa intenção com esse texto é fazer uma reflexão sobre o legado freireano em ge-
ral, e, em particular, sobre a atualidade e a pertinência da Pedagogia do Oprimido
(1970). Para tanto, daremos ênfase, nesse texto, a aspectos que marcaram a obra
Pedagogia do Oprimido, tais como: sonho e realidade; o inédito viável; a esperança
e o esperançar e a possibilidade de transformação da realidade vivida.
Por outro lado, em contraponto aos brados obscurantistas que chegam a pro-
por a “expulsão” das ideias e das proposições filosóficas e pedagógicas freireanas
da educação brasileira, propomos uma vida longa ao Pedagogia do Oprimido, entre
educadores e educadoras desse tão maltratado país, onde a “Malvadeza” das elites
reacionárias – como dizia Freire – insiste em produzir injustiças. Incluímo-nos
entre aqueles e aquelas que, frente a tantas “malvadezas” que se cometem com a
educação brasileira, continuam acreditando na potência emancipatória do legado
freireano, e precisamos bradar em alto e bom som: mais Freire, nunca menos!
Foram muitas e fundamentais para a educação no mundo e no Brasil às men-
sagens deixadas pelo educador brasileiro e cidadão do mundo, Paulo Freire. Con-
tudo, algo sempre caracterizava essas mensagens: uma imensa preocupação social
com as gentes do Brasil e uma grande dose de esperança em um mundo melhor
para homens e mulheres. Queremos ressaltar, já de início, que Esperança para
Paulo Freire tinha que ver com o verbo esperançar. No livro Pedagogia da Espe-
rança – um reencontro com a Pedagogia do Oprimido (1992), Freire desabafa ao
dizer que este é um livro que escreve com amor, mas também com raiva. Justifica
isso dizendo que é essa raiva e esse amor que fazem nascer a esperança. Freire deu
uma importância muito grande para a proposição do inédito viável
1
em sua obra.
Não por acaso, retoma essa proposição, cunhada no Pedagogia do Oprimido, em
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Pedagogia da Esperança – um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Faz essa
retomada como forma de demonstrar a atualidade de Pedagogia do Oprimido-
cadas depois. Atualidade, essa, que entendemos ainda muito presente, cinquenta
anos depois.
Para Freire qualquer educador(a) para merecer essa denominação – educa-
dor(a) –, não pode abrir mão da busca permanente, e, essa busca tem a ver com a
capacidade de ter esperança. Esperança não como uma espera passiva, como uma
espera vã. Esperança do verbo esperançar que tem que ver com ir atrás daquilo que
se quer, daquilo que se acredita. Assim vista, esperançar é uma ação. Diferente de
espera, que tem que ver com passividade. Com ficar esperando que as coisas acon-
teçam. Nesse sentido, a esperança é vista como a possibilidade humana radical de
educar-se pelo inacabamento. Esse inacabamento do humano é um inacabamento
muito especial. Freire não se cansava de frisar que todo ser vivo é inacabado. Con-
tudo, para ele, a diferença, reside no fato de que homens e mulheres sabem que são
inacabados, enquanto um beija-flor ou um leão não têm essa compreensão – talvez
porque dela não precise. Como ensinava Freire (2003b, p. 30): “Eu sou inacabado,
a árvore também é, porém eu sei que sou mais inacabado por que sei que o sou”.
Freire vê o educador como um eterno buscador. Nesse sentido, esperança e busca
caminham juntas no ato de educar para a liberdade, para a democracia, para a
solidariedade e para a cooperação. Enfim, educar para a construção de um mundo
melhor. Melhor na perspectiva de mais justo e ecologicamente viável para todas as
pessoas.
Uma das maneiras com a qual Paulo Freire manifestava sua esperança era
acreditando, era apostando, na capacidade das gentes de sua terra. Das gentes do
Brasil. Esperança para Freire era um grito. Porém, não era um grito de raiva. Era
um grito generoso, era um grito manso
2
. O próprio Freire gostava de se intitular
um “sujeito manso”.
Paulo Freire nasceu na cidade do Recife no dia 19 de setembro do ano de 1921.
Filho de Joaquim Temístocles Freire que era capitão da Polícia Militar do Estado
de Pernambuco e de Edeltrudes Neves Freire, que para os familiares era chama-
da de Tudinha. Freire teve uma irmã, Stela, professora primária e dois irmãos:
Temístocles e Armando, aos quais Freire sempre foi muito grato. Os irmãos em
função das condições econômicas precárias da família, não concluíram seus estu-
dos básicos para começar muito cedo a trabalhar. Contudo, não mediram esforços
no sentido de proporcionarem a Freire a possibilidade de estudar e formar-se na
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Universidade. Freire foi casado duas vezes. Primeiro com Elza Freire (1944-1986),
com quem teve cinco filhos. A segunda esposa foi Ana Maria Araújo Freire (Nita).
Freire formou-se em Direito pela Universidade do Recife no ano de 1943. Contudo,
abandonou a carreira logo após a primeira causa que defendeu. Percebeu, muito
cedo, que a profissão de advogado não lhe traria felicidade em função da distância
entre a Justiça e o Direito. Começou a carreira de professor ensinando Língua Por-
tuguesa no ensino Médio. Paulo Freire foi convidado no ano de 1946 para ocupar o
cargo de diretor do Departamento de Educação e Cultura do Serviço Social no Es-
tado de Pernambuco. Foi a partir de então que Paulo Freire dedicou-se, com grande
afinco, ao trabalho com a alfabetização de jovens e adultos. Voltou sua atenção,
particularmente, ao trabalho com os mais pobres. Costumava dizer que, a época,
jamais poderia imaginar a repercussão dessa decisão em sua vida.
Essa atitude tomada o levou à construção de uma proposta revolucionária de
alfabetização de adultos pobres, em grande parte camponeses do interior do nordes
-
te brasileiro. Com sua proposta ou “método” de alfabetização foi capaz de alfabeti-
zar 300 adultos cortadores(as) de cana-de-açúcar num curto período de 45 dias. O
educador Paulo Freire acabou tornando-se uma referência e uma inspiração para
muitas gerações de professores(as), no Brasil, na América Latina e no continente
africano. Seu trabalho foi reconhecido nos cinco continentes. Recebeu o título de
Doutor Honoris Causa nas maiores e mais prestigiadas universidades do mundo.
Foram nada mais nada menos que 27 títulos de Doutor Honoris Causa. Paulo Frei
-
re ganhou ainda prêmios como: Educação para a Paz (das Nações Unidas, 1986) e
Educador dos Continentes (da Organização dos Estados Americanos, 1992).
Foi esse envolvimento com a alfabetização de jovens e adultos pobres, inevi-
tavelmente, o levou a despertar desconfiança num primeiro momento e muito ódio
em seguida. Sua proposta política de educação ia totalmente contra o que queriam
e defendiam às propostas das elites e dos governos da época. Tal contexto o levou
a todo tipo de tentativa de difamação. Até de “traidor da pátria” foi chamado por
muitos integrantes da elite rica do país. Teve importante militância política, fazen-
do parte da primeira diretoria executiva da Fundação Wilson Pinheiro. Foi Secre-
tário de Educação (1989-1991) da Prefeitura da cidade de São Paulo na Gestão da
prefeita Luiza Erundina. Com o golpe militar de 1964, Paulo Freire foi preso por 70
dias em um quartel do Exército em Recife. Durante esta prisão aconteceram fatos
pitorescos e que Freire gostava de narrar em suas conferências como forma de não
ficar amargurado em excesso com as adversidades pelas quais passou. Freire era
um sujeito bem-humorado e que gostava de uma longa e calma conversa.
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Paulo Freire morreu como viveu. Cheio de amorosidade, com sua gente e de
indignação com as injustiças e “malvadezas” dos poderosos e dos tiranos. Semeou
bonitezas por onde passou. Freire fez legítima a máxima do poeta mexicano Octá-
vio Paz (1914-1998) quando esse afirmava que se “Morrestes de forma diferente
daquela que viveu, é sinal de que não foi tua a vida que vivestes”. Era a madrugada
do dia 2 de maio de 1997, às cinco e meia da manhã, quando sua passagem foi
registrada no leito hospitalar em que estava internado. No próximo item aborda-
remos a dimensão do sonhar e da transformação da realidade na obra Pedagogia
do Oprimido.
Sonhos e realidades: caminhos a trilhar
Para o “educador-bancário, na sua anti-dialogicidade, a
pergunta, obviamente, não é a propósito do conteúdo do
diálogo, que para ele não existe, mas a respeito do programa
sobre o qual dissertará a seus alunos (FREIRE, 2016, p. 142).
Paulo Freire, por mais que alertasse para a necessidade de todo(a) educador(a)
atentar para as condições de realidade em que vivem as pessoas, nunca abriu mão
da necessidade de homens e mulheres manterem seus sonhos e esperanças. Freire
fazia questão de iniciar suas propostas a partir da realidade vivida. Era dessa
realidade que partia para pensar suas proposições e suas ações na direção da cons-
trução de uma educação para a autonomia, para uma educação como prática de
liberdade, enfim para a construção de uma sociedade mais justa e generosa. Cos-
tumava dizer que: “A realidade não é assim, está assim” (FREIRE, 2003b, p. 71).
No prefácio para a sexagésima edição comemorativa do livro Pedagogia do
Oprimido, publicada pela Editora Paz e Terra (2016), o professor e pesquisador
da obra freireana Celso de Rui Beisiegel, assim encerra seu texto: “A qualidade, a
riqueza e a generosidade das propostas e ideais que permeiam toda a sua obra en-
contram-se forte e claramente marcadas em Pedagogia do Oprimido” (BEISIEGEL,
2016, p. 31). Freire chegou ao livro Pedagogia do Oprimido fazendo um caminho de
reflexões que ficaram registradas em importantes textos, palestras proferidas em
vários países, bem como em livros. Se os escritos de Freire, que antecederam a pu-
blicação do livro Pedagogia do Oprimido, foram fundamentais para a concretização
dessa obra, pode-se dizer, também, que esse livro se esparramou, encharcou toda a
produção freireana posterior a ela.
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O livro Pedagogia do Oprimido foi como que um aprofundamento e um aden-
samento dos escritos de Freire até então. Com Pedagogia do Oprimido Paulo Frei-
re apresenta de forma incisiva, e mesmo radical, suas análises sobre as injustiças
sociais numa sociedade organizada na perspectiva de opressores(as) e de oprimi-
dos(as). O caráter fortemente político da obra freireana ganha, com Pedagogia do
Oprimido, um impulso que não mais pode ser freado. Talvez essa tenha sido uma
das motivações para tantos ataques que Freire e sua obra receberam ao longo do
tempo de parte das elites reacionárias e dos defensores de uma educação elitista,
de orientação bancária e discriminatória. Ressalte-se que esses ataques têm recru-
descido nos últimos tempos.
Se existe algo que pode ser considerado um consenso sobre a obra de Paulo
Freire, tanto antes como após a publicação de Pedagogia do Oprimido, é a presença
da sua preocupação com a realidade vivida dos homens e das mulheres na socieda-
de brasileira. Particularmente com os grandes contingentes de abandonados a pró-
pria sorte pelas elites intelectuais e políticas do Brasil. Pensar a obra de Freire sem
os brasileiros e brasileiras reais é algo definitivamente impossível. Não por acaso
no livro Educação como Prática da Liberdade (Chile, 1965), livro que antecedeu o
Pedagogia do Oprimido, Paulo Freire faz um Esclarecimento introdutório em que
escreve: “Não há educação fora das sociedades humanas e não há homem no vazio”
(1965, p.35). Freire oferece esse livro – Educação como Prática da Liberdade – a
todos e a todas as pessoas que no Brasil continuavam resistindo ao autoritarismo
da época, bem como àqueles e àquelas que, como ele, tiveram de exilar-se em outros
países. Sem esquecer-se de mencionar os que estavam sendo presos e torturados
nos porões da ditadura militar que se instalou no Brasil Pós-1964.
Essa permanente preocupação de Paulo Freire com a realidade vivida pela
sociedade brasileira ele fazia questão de ressaltar quando se referia aos seus con-
terrâneos os chamando de “minha gente”. A expressão “gente”, frequentemente
utilizada por Freire, tinha uma conotação muito particular, tanto do ponto de vis-
ta sociológico, antropológico quanto pedagógico. Uma demonstração dessa impor-
tância, temos registrada quando Freire afirma, textualmente, que como educado-
res(as), não podemos nunca nos esquecer de que, em educação, lidamos com gente
e não com coisas. Não se cansava de repetir que não podemos nunca esquecer que
em educação, lidamos com pessoas de carne e osso e não com objetos, e, justo em
função disso que “Não posso, por mais que, inclusive, me de prazer entregar-me à
reflexão teórica e crítica em torno da própria prática docente e discente, recusar
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minha atenção dedicada e amorosa à problemática mais pessoal deste ou daquele
aluno ou aluna (FREIRE, 1997, p. 32).
Essa forma de ver e de admirar as gentes do Brasil foi sempre levada e de-
monstrada por Freire nos diferentes lugares onde trabalhou e viveu. Não escondia
sua imensa paixão pelas gentes do Brasil, em especial, pelos marginalizados, pelos
pertencentes às periferias excluídas pelas elites econômicas, intelectuais e acadê-
micas. Não podemos esquecer que as elites brasileiras se mostraram – e ainda se
mostram – uma das mais arrogantes e perversas do planeta. Para Freire, uma das
formas de evitar cair nas armadilhas da arrogância e da prepotência, tão ao gosto
de uma elite que vivia de costas para o Brasil real, era não esquecer, nunca, que
o trabalho do educador numa sociedade tão injusta como a nossa, é um trabalho
com gente. Gente que está sempre se fazendo e refazendo, gente que está sempre
buscando algo mais, algo para se melhorar como gente, como pessoas no e com o
mundo, nas suas palavras:
Mudando, crescendo, reorientando-se, melhorando, mas, porque gente, capaz de negar os
valores, de distorcer-se, de recusar, de transgredir... Lido, por isso mesmo, independente-
mente do discurso ideológico negador dos sonhos e das utopias, com os sonhos, as esperan-
ças tímidas, às vezes, mas às vezes, fortes dos educandos. Se não posso, de um lado, esti-
mular os sonhos impossíveis, não devo, de outro, negar a quem sonha o direito de sonhar
(FREIRE, 1997, p. 144).
Essa vinculação tão estreita, tão encarnada nas pessoas reais e em suas vicis-
situdes cotidianas certamente teve importante papel no fato de seu livro Pedagogia
do Oprimido – como de resto sua obra – tenham sido tão debatidos em vários con-
tinentes. Um clássico, na melhor acepção que se possa dar a essa palavra. Freire
e sua obra continuam atuais. No livro La voz del Maestro, acerca de vivir, enseñar
y transformar el mundo
3
, publicado na Argentina pela editora Siglo Veintiuno
(2018), reafirma a necessidade de buscarmos compreender o mundo que se vive,
o tempo que se vive para, assim, nos mantermos nele inseridos e não alienados.
Freire se autodefinia como uma pessoa que nunca desistia de refletir sobre as con-
dições reais da vida real de sua gente. Nas suas palavras: “Soy um hombre de hoy”
(FREIRE, 2018, p. 17).
Pedagogia do Oprimido teve a influência das publicações anteriores de Freire,
mas, também, de sua passagem pelo Serviço Social da Indústria (SESI), do Estado
de Pernambuco. Freire assumiu a recém-criada Divisão de Educação e Cultura.
Nas palavras do próprio Freire (1992a, p. 19): “Campo de experiência, de estudo,
de reflexão, de prática, se constituiu como um momento indispensável à gestação
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da Pedagogia do Oprimido”. Freire resume a construção da Pedagogia do Oprimido
ao escrever que “A Pedagogia do Oprimido não poderia ter sido gestada em mim
só por causa de minha passagem pelo SESI, mas a minha passagem pelo SESI
foi fundamental” (1992a, p. 18). De outra forma, Freire também coloca como de
grande influência na construção de Pedagogia do Oprimido a sua tese intitulada
Educação e atualidade brasileira (1959), apresentada na Universidade Federal do
Recife. Essa tese, por seu turno, deu origem ao decisivo Educação como prática da
liberdade, e esse se desdobra, em muito, em anunciar o que viria a ser a Pedagogia
do Oprimido.
Vale lembrar que a primeira publicação de Pedagogia do Oprimido não foi na
língua portuguesa e sim em inglês, no ano de 1970. Talvez esse fato tenha tido,
também, grande importância para a ampla aceitação que o livro teve já à época.
Publicado inicialmente em língua inglesa, em Nova York, logo foi traduzido para o
espanhol, italiano, o alemão, o sueco e o holandês (BEISIEGEL, 2016). Só em 1974
saiu à primeira edição brasileira pela editora Paz e Terra.
Com Pedagogia do Oprimido, Freire fez o exercício fundamental para qual-
quer intelectual que mereça realmente essa denominação: partiu da busca do en-
tendimento profundo da realidade vivida para construir a realidade sonhada. Esse
exercício, pensamos que ele sintetizou, magistralmente, na expressão: a realidade
não é assim, está assim.
No segundo capítulo do livro Pedagogia do Oprimido Freire dedica uma den-
sa reflexão sobre o que ele denomina de uma concepção “Bancária” da educação.
Essa concepção de educação, segundo Freire, está marcada por relações que ele
denomina de relações narradoras e dissertadoras (FREIRE, 2016, p. 103). Esse
tipo de relação se dá entre dois personagens, a saber: o sujeito, que corresponde ao
narrador e os objetos que correspondem aos educandos(as) que, como objetos, sua
condição é de meros ouvintes ou coadjuvantes. É evidente nesse tipo de relação o
interesse de manter o educando(a) na passividade. Seu papel é de mero expectador
e sua participação se resume a aceitação, assimilação e reprodução dos conteúdos
“depositados” pelo narrador/dissertador, no caso em questão o educador. O processo
educativo como que se resume a um ato mecânico de narrar e narrar sobre uma
dada realidade apresentada pelo educador ao educando. Realidade, essa, que não
lhe pertence ou que da mesma o educando nada, ou muito pouco, teria a dizer.
Vamos ao que sobre essa relação escreve Freire para quem nessa perspectiva edu-
cacional o que acontece é:
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[...] falar da realidade como algo parado, estático, compartimentado e bem-comportado,
quando não falar ou dissertar sobre algo completamente alheio à experiência existencial
dos educandos, vem sendo, realmente, a suprema inquietação desta educação. A sua irre-
freada ânsia. Nela, o educador aparece como seu indiscutível agente, como seu real sujeito,
cuja tarefa indeclinável é “encher” os educandos dos conteúdos de sua narração (FREIRE,
2016, p. 104).
Com tal método o que se tem é um completo desprezo pelo educando(a) e sua
experiência vivida. Nega-se a esse(a) educando(a) sua própria condição de sujeito.
A aprendizagem se resume a receber e assimilar, como seus, desde os conheci-
mentos via os conteúdos apresentados, quanto os valores culturais do narrador/
dissertador. Assim que, os conteúdos que os educandos devem assimilar podem
ser totalmente estranhos ao mundo vivido, ou seja, desconectados, estranhos a sua
realidade. Com isso a palavra veiculada nessa dissertação é uma palavra vazia,
oca. Para Freire o desfecho dessa prática é que a palavra, que deveria ser trans-
formadora da realidade, se resume a mera sonoridade a ser assimilada pelo(a)
educando(a). Fecha-se, assim, um círculo quase perfeito para uma relação de obje-
tificação entre educador(a) e educando(a), pois: “Na visão bancária da educação, o
‘saber’ é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber” (FREI-
RE, 2016, p. 105).
Ao negar ao educando(a) o direito de ter reconhecida sua capacidade, como
sujeito humano, de entendimento do mundo em que vive comete-se um verdadeiro
crime contra sua humanidade. O crime de desejar mantê-lo no mundo da aliena-
ção. Nessa prática educativa o educador que consegue realizar seu objetivo será
reconhecido como educador eficiente e sua prática educativa tida como eficaz. Já
aos educandos(as) cabe o papel de aceitar docilmente seu lugar de mero objeto de
uma educação “bancária”. Com isso realiza-se o objetivo da educação “Bancária”:
“Como um ato de depositar, em que os(as) educandos(as) são os depositários e o
educador, o depositador” (FREIRE, 2016, p. 105). O saber que daí decorre deixa de
ser o que Freire denomina de “saber da experiência feito”, para se tornar em um
saber de experiência narrada ou transmitida. A consciência crítica, tão importante
num processo de educação libertadora, defendido por Freire no Pedagogia do Opri-
mido fica relegado ao total desprezo.
A educação como uma janela para a inserção dos sujeitos no mundo, a partir
do entendimento da realidade vivida, se transforma, simplesmente, em mais um
mecanismo de dominação e de alienação. A condição de sujeitos de suas vidas lhes
é tomada. O papel de transformação pela educação fica completamente anulado
nessa perspectiva de educação “Bancária”. Essa preocupação freireana, e essa com-
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preensão política da necessidade de romper com o modelo de educação no qual
educandos(as) são meros objetos da educação alienante, já se faz presente no livro
Educação como prática da liberdade (1965), quando o autor alerta para a necessi-
dade de uma educação para as amplas camadas da população brasileira excluídas
do processo de participação na vida política e das riquezas produzidas no país. Ri-
quezas, essas, decorrentes da exploração da força de trabalho em condições as mais
precárias. Na primeira parte de Educação como Prática da Liberdade – intitulada
Esclarecimentos –, escrita em Santiago do Chile (1965), Freire chama a atenção
para a necessidade de uma educação que rompa com a perspectiva de educação
“Para o homem-objeto” e se encaminhe para uma educação para o “homem-sujeito”
(1965, p. 37).
É esse homem e essa mulher, sujeitos de sua história, que são o sentido e
objetivo de uma educação como prática da liberdade e da autonomia propostas por
Freire. Paulo Freire não se cansava de alertar para o fato de que uma educação
que mereça realmente essa denominação, não pode esquecer-se que a realidade dos
educandos e educandas não pode ser pensada sem sonhos, pois até se pode pensar
vida humana sem sonhos, jamais existência humana e histórica sem a boniteza de
sonhar um mundo mais justo e fraterno. De outra forma, o papel do educador(a)
não é nunca: “Falar ao povo sobre nossa visão do mundo, ou tentar impô-la a ele,
mas dialogar com ele sobre a sua e a nossa” (FREIRE, 2016, p. 146). Como edu-
cadores(as) há que estarmos cientes de que a visão de mundo, o entendimento da
realidade dos educandos e educandas, nada mais é que as suas visões de mundo e
que refletem, assim, “Sua situação no mundo, em que se constitui. A ação educativa
e política não pode prescindir do conhecimento crítico dessa situação, sob pena de
se fazer “bancária” ou de pregar no deserto” (FREIRE, 2016, p. 147). Como se pode
perceber, é marcante na obra de Freire em geral, e na Pedagogia do Oprimido em
particular, essa permanente preocupação com o diálogo entre educadores(as) e edu-
candos(as). Diálogo esse que, só será possível se realizar a partir da busca sincera e
generosa de aproximação de educadores(as) e de educandos(as), tendo, como ponto
de partida a realidade dos segmentos populares. Para Freire, ou reconhecemos a
necessidade de mergulhar junto com educandos(as) em sua realidade ou estaremos
nos restringindo a simples portadores(as) de boas vontades e de discursos ocos.
Não por acaso o educador Ernani Maria Fiori (1914-1985) inicia o Prefácio
de Pedagogia do Oprimido afirmando: “PAULO FREIRE É UM PENSADOR com-
prometido com a vida: não pensa ideias, pensa a existência” (FIORI, 2016, p. 34).
Um pensador que, ao mesmo tempo em que vive o tempo presente, não descuida
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de atualizar o que já foi. Em Pedagogia do Oprimido Freire falou a partir de 1968,
mas continua contemporâneo naquilo que é sua maior substância: a busca de uma
educação libertadora de homens e de mulheres no tempo em que vivem suas exis-
tências. Assim visto, faz jus ao que escreveu Freire ao se referir ao seu Pedagogia
do Oprimido, como um livro que não diz do que foi, mas, sim, um livro que está
sendo. Nessa perspectiva, trataremos a seguir da proposição freireana da aposta
na busca de construção daquilo que ainda não foi realizado.
Sonhando realidades – o inédito viável
Nosso papel não é falar ao povo sobre a nossa visão do mundo...
impô-la a ele, mas dialogar com ele sobre a sua e a nossa.
Temos de estar convencidos de que a sua visão de mundo,
que se manifesta nas várias formas de sua ação, reflete a sua
situação no mundo em que se constitui (FREIRE, 2016, p. 49).
Fica explícita na citação acima a preocupação, sempre presente em Paulo
Freire, da necessidade de todo(a) educador(a) nunca menosprezar a condição vivi-
da pelos(as) educandos(as) sob pena de continuar repetindo a tão arrogante e pre-
potente prática educativa das elites de falar em nome do outro, de falar pelo outro.
No capítulo 4 do livro Pedagogia do Oprimido, ao tratar da Teoria da Ação Antidia-
lógica, Paulo Freire afirma textualmente que: “Não há realidade histórica – mais
outra obviedade – que não seja humana” (FREIRE, 2016, p. 203). As razões para
isso seriam óbvias, pois: “Não há história sem homens, como não há uma história
para os homens, mas uma história de homens que feita por eles, também se faz”
(FREIRE, 2016, p. 204). Fica explícita, nessa formulação que, para Freire, homens
e mulheres não são objetos da história ou objetos a serem pesquisados, estudados
pelas elites. Freire é enfático sobre essa condição ao afirmar que: “O mundo não é
um laboratório de anatomia nem os homens são cadáveres que devam ser estuda-
dos passivamente” (2016, p. 208). Entendo essa formulação freireana como uma
forma de colocar homens e mulheres não na periferia, mas, sim, no centro do fazer
da história. Assim tomado o papel de homens e mulheres, na realidade em que
vivem, podemos afirmar que homens e mulheres além de fazerem parte da história
podem assumir seus destinos e fazerem, assim, a história mesma. Diferentemente
dos outros animais, homens e mulheres são, para Freire, seres do quefazer. Em
função disso que seu quefazer é ação e reflexão. Nas suas palavras: “É práxis. É
transformação do mundo. E, na razão mesma em que o quefazer é práxis, todo fa-
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zer do quefazer tem de ter uma teoria que necessariamente o ilumine. O quefazer é
teoria e prática. É reflexão e ação” (FREIRE, 2016, p. 196). Com isso, para Freire, o
quefazer não se reduz ao mero discurso sobre ou em nome de alguém. Ao contrário,
é algo concreto para além do ativismo ou do mero verbalismo.
Ao refletir sobre a relação entre lideranças e oprimidos Freire não se cansa
de chamar a atenção para o perigo da manipulação dos oprimidos pelos líderes.
Freire não aceita que a liderança tome os liderados como incapazes de fazerem e/
ou executarem sua história. É a partir da assunção de seu papel de “fazedores e
fazedoras” da história que homens e mulheres passam da condição de “homem-ob-
jeto” para “homem-sujeito” apontados por Freire no Pedagogia do Oprimido. Esse
papel de donos de sua história é tão fundamental na obra freireana em geral, e,
particularmente, na Pedagogia do Oprimido, que o educador faz questão de aler-
tar, inclusive, para o risco de mesmo defensores de movimentos revolucionários
tomarem os setores oprimidos como seus objetos de ação política. Sobre isso, em
Pedagogia do Oprimido Freire é radical e alerta que: “O humanista científico revo-
lucionário não pode, em nome da revolução, ter nos oprimidos objetos passivos de
sua análise, da qual decorrem prescrições que eles devam seguir” (FREIRE, 2016,
p. 208). A maneira de evitar esse equívoco histórico e político é a liderança revolu-
cionária, científico e humanista evitar repetir à prática das elites dominadoras de
levar às últimas consequências a ideia de ignorância das massas populares. Seto-
res progressistas não podem, jamais, “Crer nesse mito. Não tem sequer o direito de
duvidar, por um momento, de que isto é um mito” (FREIRE, 2016, p. 209).
Freire dedica uma longa reflexão sobre essa possibilidade em Pedagogia do
Oprimido, certamente por temer a manipulação de suas “gentes” por parte de opor-
tunistas e manipulares que acreditam que os fins justificam os meios de ação. Va-
mos a mais uma manifestação de Freire sobre essa questão fundamental. Para ele,
Nenhuma liderança pode admitir que só ela sabe e que só ela pode saber – o que seria des-
crer das massas populares. Ainda quando seja legítimo reconhecer-se em um nível de saber
revolucionário, em função de sua mesma consciência revolucionária, diferente do nível de
conhecimento ingênuo das massas, não pode sobrepor-se a este, com o seu saber (FREIRE,
2016, p. 210).
Essa preocupação de Freire é mais um exemplo de sua lucidez política e de sua
capacidade de análise, já a época, dos desfechos de embates no continente latino-
-americano, e mesmo no mundo, entre setores progressistas e setores reacionários
autoritários. Freire traduz essa sua visão sobre o processo de libertação quando
afirma textualmente que “Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho:
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os homens se libertam em comunhão” (FREIRE, 2016, p. 95). A realização da li-
bertação de homens e de mulheres que se encontram em condição de subjugação
não pode ser vista como uma libertação que vem de outro, que vem de fora. Para
Freire, essa libertação precisa ser entendida como uma libertação de pessoas, pois
não podemos nos esquecer, nunca, que em educação estamos lidando com gente.
Nas suas palavras: “Estamos lidando com homens e não com coisas. Por isso, se
não é autolibertação – ninguém se liberta sozinho –, também não é libertação de
uns feita por outros. Não se pode realizar com os homens pela “metade”. E, quando
o tentamos, realizamos a sua deformação” (FREIRE, 2016, p. 97).
A maneira mais direta de evitar-se que essa libertação seja mais um proces-
so de “enganação” e não de verdadeira libertação é, para Freire, o caminho do
diálogo. A opção pela busca de sua libertação deve ser uma opção consciente feita
pelos oprimidos e não uma dádiva trazida por um “iluminado”. Nessa perspectiva
epistemológica a libertação proposta por Freire não é uma “Doação que lhes faça a
liderança revolucionária, mas resultado de sua conscientização” (2016, p. 99). Essa
compreensão até pode ser vista como mais uma obviedade, contudo nem sempre
é percebida por algumas lideranças que até se denominam de revolucionárias. As
comunidades populares precisam perceber por sua própria reflexão – e aí sim fazer
sua opção consciente – a possibilidade de sua inserção na realidade vivida e, a
partir dessa constatação perceber que essa realidade pode, sim, ser por elas trans-
formada na direção de uma sociedade mais justa e generosa.
Com isso, seria dado o primeiro passo na direção da passagem da realidade
vivida para a realidade sonhada. Como na epígrafe, que coloquei no início desse
item, mais que a pretensão de “ensinar” ao outro – coisas que às vezes ele já sabe e
não sabemos que ele sabe – há que se estar junto a ele nas horas da “precisão”. Esse
estar junto é a materialização da solidariedade e generosidade com aqueles(as)
que, via de regra, são esquecidos(as) pelas elites políticas e econômicas detentoras
das estruturas de poder. Como na fala do pequeno agricultor: “Nós já sabe derrubar
o pau. O que nós quer saber é se você vai tá com nós na hora do tombo do pau”
(FREIRE, 2003b, p. 35). Esse estar junto na realidade vivida leva educando(a) e
educador(a) a serem parceiros numa tarefa cooperativa. Nesse processo de estar
junto, e cooperar, se encontram dois sujeitos e não um sujeito e um objeto. Em tal
tipo de processo acontece aquilo que Freire busca demonstrar em toda sua obra, e
em especial no Pedagogia do Oprimido: sujeitos “cointencionados à realidade, se
encontram numa tarefa em que ambos são sujeitos no ato, não só de desvelá-la e,
assim, criticamente conhecê-la, mas, também, no de recriar este conhecimento”
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(FREIRE, 2016, p. 101). Ao comungarem essa ação homens e mulheres “Alcançam,
na reflexão e na ação em comum, este saber da realidade, se descobrem como seus
refazedores permanentes” (FREIRE 2016, p. 102). Acrescentaria apenas: fazedo-
res(as) e refazedores(as) de sonhos e realizadores(as) de utopias. Artífices de seus
inéditos viáveis, transformando a realidade que está assim, em uma realidade ou-
tra: uma realidade antes ousada ser sonhada. A seguir apresentaremos um convite
à reflexão sobre a resistência e a esperança na construção de um mundo mais justo
e solidário.
Um grito manso e de esperança
Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os
homens se libertam em comunhão (FREIRE, 2016, p. 95).
Em obra publicada na Argentina intitulada El Grito Manso (2003b) e que
resultou de uma reunião de suas aulas e conferência proferida por ocasião do re-
cebimento de mais um título de Doutor Honoris Causa, Freire manifesta, mais
uma vez, sua esperança nas mudanças que homens e mulheres podem promover
na sociedade em que vivem. Para ele, sempre foi incompreensível que tanta gente,
inclusive alguns colegas seus de universidade, aceitassem certas injustiças sociais
como fatalidades. Nas suas palavras: “Não existe nada que esteja determinado no
mundo da cultura...não há fatalismo na conduta humana... há que lutar” (FREIRE,
2003a, p. 78).
Pode-se perceber que essa esperança inabalável de Freire na potência das gen-
tes do Brasil, tão presente em Pedagogia do Oprimido, percorreu toda sua obra,
bem como sua vida. Paulo Freire dá início ao seu livro Pedagogia da Esperan-
ça – um reencontro com a Pedagogia do Oprimido (1992b), descrevendo a forma
assombrada com a qual algumas pessoas se manifestavam em relação ao título
do referido livro. Eram alguns colegas seus de universidade e até parceiros de en-
gajamento na busca de uma educação libertadora. Conta que um colega seu de
universidade assim manifestou sua surpresa: “Mas como, Paulo, uma Pedagogia
da Esperança no bojo de uma tal sem-vergonhice como a que nos asfixia hoje, no
Brasil”? (FREIRE, 1992, p. 09).
Paulo Freire, além de esperançoso, foi sempre um encantado com a educação
e com a força da mesma como alternativa de libertação das grandes camadas po-
pulares brasileiras. E esse encantamento se manifestava mesmo nas horas mais
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difíceis. Diga-se, que é nessas horas – difíceis – em que tudo parece desmoronar, em
que as alternativas desapareceram, que a desesperança toma conta, em que muitos
desistem e caem no ceticismo, que as pessoas raras têm seu papel histórico e polí-
tico mais importante. Freire foi uma dessas pessoas raras. Freire representou, da
melhor maneira possível, à condição de um intelectual na sociedade em que viveu.
Intelectual no sentido mais poderoso e generoso dessa expressão: aquele que busca
entender o mundo e o tempo em que vive. Fazia isso não por diletantismo, mas,
sim, pela vontade de transformá-lo.
Freire não se importava nem mesmo quando uns tantos faziam pouco ou o ta-
xavam de ingênuo ao propor sonhos, ao defender utopias. Talvez, algo que ajudava
a deixar seus críticos ainda mais desconcertados era a forma como Freire apresen-
tava suas alternativas. O fazia com muita firmeza, porém, com uma ternura, uma
boniteza que desarmava mesmo as mentes mais empedernidas, pelo menos em
sua frente. Freire deixou marcas por onde passou. E não foram marcas quaisquer.
Foram marcas profundas deixadas com doçura e com mansidão. Ele próprio mais
de uma vez expressou que se considerava uma pessoa, um sujeito manso.
Freire nos deixou várias construções epistemológicas muito fortes. Uma delas
foi à do inédito viável. Em Pedagogia da Esperança (duas décadas após o Pedago-
gia do Oprimido) Freire evoca a necessidade de retomar-se a ideia do inédito viável
já proposta em Pedagogia do Oprimido. Freire quis mostrar que aquilo que parece
ser uma impossibilidade numa dada situação ou condição, pode ser mudada. Si-
tuações que se apresentam como imutáveis nem sempre o são. Haja vista o que
já referenciamos anteriormente nesse texto, quando Freire sentencia: a realidade
não é assim, está assim! Essa frase é como um chamamento à resistência no mo-
mento atual em que vivemos. É como uma convocação a participação, um desafio
a continuar esperançando, por mais fortes que sejam os ataques e tentativas de
desqualificação que Freire e seu legado estejam sofrendo. Esperança do verbo es-
perançar justamente para reafirmar a necessidade do pensar crítico, da ação, da
não aceitação das situações, simplesmente, como se apresentam. Para Freire a
existência humana se faz e refaz na esperança e no sonho. Freire não se cansava de
reafirmar que sua esperança não era suficiente, mas, sim, necessária. Não acredi-
tava que a esperança por si só, fosse capaz de transformar a realidade. Por isso se
faz necessário partir para a ação, para a busca daquilo que se acredita e que acha
justo. A esperança sozinha não nos faz avançar, contudo, sem ela, nossa vontade de
realizar os sonhos corre o sério risco de fraquejar. Nas suas palavras,
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Pedagogia do Oprimido – 50 anos – mais Freire, nunca menos
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Minha esperança é necessária mas não é suficiente. Ela, só, não ganha a luta, mas sem ela
a luta fraqueja e titubeia. Precisamos da esperança crítica, como o peixe precisa da água
despoluída... Pensar que a esperança sozinha transforma o mundo e atuar movido por tal
ingenuidade é um modo excelente de tombar na desesperança, no pessimismo, no fatalis-
mo... É por isso que não há esperança na pura espera, nem tampouco se alcança o que se
espera na espera pura, que vira, assim, espera vã (FREIRE, 1992, p. 11).
O verbo esperançar é a materialização na prática da busca incessante da rea-
lização dos sonhos, sem os quais, segundo Freire, não há existência humana. A
potência das proposições freireanas e a pertinência da leitura atualizada de Pe-
dagogia do Oprimido se mostra, mais do que nunca, uma necessidade histórica.
Até porque, talvez em poucos outros momentos da história de nosso país tenhamos
vivido uma época em que a necessidade de transformação, de necessidade de tanta
criação e invenção tenha sido tão urgente como nos tempos atuais. Mais uma vez
a atualidade de Pedagogia do Oprimido soa como um clamor, quando Freire escre-
veu: “Só existe saber na invenção, na reinvenção e na busca inquieta, impaciente,
permanentemente, que os homens fazem no mundo, com o mundo e com os outros.
Busca esperançosa também”. (FREIRE, 2016, p. 105). Freire deposita suas espe-
ranças no(a) educando(a) mais que em qualquer outra possibilidade. Esperança
nesses educandos e educandas sujeitos de sua história, contudo, isso só acontece
quando os(as) educandos(as) se fazem realmente: “Educando quando e na medida
em que conhece, ou vai conhecendo os conteúdos, os objetos cognoscíveis, e não na
medida em que o educador vai depositando nele a descrição dos objetos, ou dos
conteúdos” (FREIRE, 1992, p. 47).
É com esse modo de abraçar a esperança a que se refere Freire que ela não é
uma esperança van, mas, sim, um compromisso com a história vivida pelas gentes
do Brasil. Essa esperança se alicerça, se enraíza na crença freireana de que homens
e mulheres são seres “inconclusos” e, como tal, seres em permanente transformação
de si e das suas realidades. Em função dessa condição, Freire toma os seres humanos
como seres que “estão sendo”, seres do inacabamento. Como alerta Freire, a história
é uma construção inacabada, e tendo a história como uma construção radicalmente
humana, a realidade também é uma construção permanente, portanto, inacabada.
Nas palavras de Freire: “Cuando hoy día los ‘pragmáticos’ del neoliberalismo dicen:
‘Paulo Freire Fue’, yo les digo – sin enojo pero con absoluta convicción –: no, Paulo
Freire no fue, Paulo Freire sigue siendo” (FREIRE, 2003a, p. 79)
Com essa perspectiva de pensar e fazer a educação ela é algo que está o tempo
todo num processo de construção, está a cada momento se refazendo. Nas palavras
de Freire, a educação como: “Um quefazer permanente. Permanentemente, na ra-
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zão da inconclusão dos homens e do devenir da realidade... Dessa maneira a edu-
cação se refaz constantemente na práxis. Para ser tem que estar sendo” (FREIRE,
2016, p. 127).
Aqui se faz materializada uma das diferenças fundamentais entre uma educa-
ção “Bancária” e uma educação libertadora. Enquanto a primeira se constrói pela
acomodação, pela mesmice, pela insistente repetição dos conteúdos, a segunda va-
loriza o sonho, os desejos, não teme – ao contrário – promove ativamente a reflexão,
a ação, a problematização das dificuldades, a rebeldia contra as injustiças, aposta
na superação das barreiras interpostas por uma dada realidade. A superação des-
sas dificuldades e barreiras é o primeiro passo para a ampliação dos limites impos-
tos e para a realização do inédito viável proposto, sabiamente, por Paulo Freire.
Não é raro, ao nos encontrar no ambiente de trabalho com colegas professo-
res(as), tanto da Educação Básica quanto das universidades, ainda percebemos,
tristemente, como ainda se fazem presentes opções pedagógicas e metodologias em
que a opção – às vezes consciente, outras inconsciente – de práticas educativas de
uma educação bancária. Meio século passado da primeira publicação do Pedagogia
do Oprimido, pode-se ainda perceber como suas proposições educativas se fazem
ausentes em muitas situações reais, de nossas escolas reais, de nossos educandos
e educandas reais.
Contudo, o próprio Paulo Freire nos dá sinalizações de caminhos possíveis.
Um desses caminhos é o caminho da esperança, do sonho, do acreditar na educação
como uma chave que poderá abrir portas para a inclusão, para a cidadania, parti-
cularmente para os grandes contingentes de brasileiros e de brasileiras que ainda
lhes tem negado o acesso a uma educação que promova a liberdade, a democracia e
o respeito aos direitos humanos de todas as pessoas. Como alertava Freire, a edu-
cação sozinha não transforma o mundo, o que ela pode é transformar as pessoas.
Pessoas, essas, sim, serão capazes de transformar o mundo.
Nos tempos difíceis da conjuntura política brasileira que estamos vivendo, de
surgimento de uma onda neoconservadora em todas as dimensões da sociedade, em
que uns tantos propõem a expulsão de Freire e de seu legado das escolas e mesmo
das universidades, há que aprofundarmos e atualizarmos a leitura e a compreen-
são do legado freireano. Ou seja: aos que propõe “escolas sem partido” e expulsão de
Freire
4
, devemos responder com mais Freire e com mais democracia. Se tivéssemos
conseguido fazer as proposições freireanas mais presentes, mais encarnadas em
nossa educação, certamente que certos ressurgimentos obscurantistas não teriam
tanta facilidade de se instalar em nossa sociedade. Ao contrário de certos discursos
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autoritários e brados obscurantistas vemos uma longa vida para o Pedagogia do
Oprimido, entre educadores(as) desse tão maltratado país, onde a “Malvadeza” das
elites reacionárias – como dizia Freire – insiste em produzir injustiças. Com esse
sincero texto, que ora oferecemos aos possíveis leitores e leitoras, não queremos
muito, porém, queremos um pouco. Um pouco de diálogo, um pouco menos de into-
lerância entre homens e mulheres, um pouco de esperança, um pouco de alegria no
fazer docente, um pouco mais de generosidade entre as pessoas.
Queremos dar uma pausa nessa reflexão e nesse texto com a última frase
com a qual Freire finaliza seu Pedagogia do Oprimido, que entendemos da maior
atualidade e necessidade, quando ele aposta na, “Fé nos homens e na criação de um
mundo em que seja menos difícil amar” (FREIRE, 2016, p. 284).
Notas
1
Freire, ao apresentar essa proposição do “inédito viável em Pedagogia do Oprimido, coloca que homens
e mulheres se defrontam em sua existência com obstáculos e dificuldades. A essas dificuldades Freire
denomina de “situações-limites”. Segundo o educador, a ação frente a essas situações limites podem ser de
aceitação, mas, também, de enfrentamento. As pessoas que optam pela segunda alternativa, são aquelas
que vão em busca da realização de seus sonhos, da viabilização de suas utopias. É essa busca que poderá
alcançar o que Freire denominou em Pedagogia do Oprimido de “inédito-viável”.
2
Paulo Freire - El grito manso é o título de uma obra publicada pela editora Siglo Veinteuno, Buenos Aires,
2003. A obra resulta de aulas ministradas por Paulo Freire por ocasião do recebimento do título de Doutor
Honoris Causa pela Universidad de San Luis, Argentina, no ano de 1996.
3
Originalmente publicado com o título de Conversação Libertária com Edson Passetti. São Paulo, 1998.
Editora Imaginário.
4
Denominação de um movimento surgido no ano de 2004, por iniciativa do Procurador do Estado de São
Paulo Miguel Nagib. O Projeto tinha como intenção combater o que denominava, o então Procurador, de
instrumentalização do ensino para fins político ideológicos e partidários. Mais recentemente, com a eleição
a presidente do Brasil do Senhor Jair Messias Bolsonaro (2018), esse movimento retorna no contexto de
um discurso que prega a retirada das ideias e proposições freireanas do contexto da educação brasileira.
Referências
BEISIEGEL, Celso de R. Prefácio. In: FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 60. ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2016.
FIORI, E. M. Prefácio. In: FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 60. ed. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 2016.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016.
FREIRE, Paulo. Política e Educação. São Paulo: Cortez, 2003a.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à pratica docente. Rio de Janei-
ro: Paz e Terra, 1997.
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FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança – um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1992a.
FREIRE, Paulo. El grito manso. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2003b.
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992b.
FREIRE, Paulo. La voz del maestro. Acerca de vivir, enseñar y transformar el mundo. Conver-
saciones con Edson Passetti. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2018.
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*
Graduada em Filosoa pela UFPA e doutora em Educação pela PUC-SP. Professora titular da Universidade do Estado
do Pará e docente do Programa de Pós-Graduação em Educação, sendo a atual coordenadora. É vice-presidente
Norte da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped). Coordena o Núcleo de Educação
Popular Paulo Freire da UEPA e a Cátedra Paulo Freire da Amazônia. É editora da Revista Cocar e bolsista produtividade
do CNPq, Nível 2. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-3458-584X. E-mail: nildeapoluceno@uol.com.br
Recebido em 25/10/2019 – Aprovado em 09/04/2020
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i3.12375
A pedagogia do oprimido de Paulo Freire e o ensino de losoa com crianças
The pedagogy of oppressed by Paulo Freire and the teaching of philosophy with children
La pedagogía do oprimido de Paulo Freire y la enseñanza de losofía con niños
Ivanilde Apoluceno de Oliveira
*
Resumo
Neste artigo tecemos reexões sobre o ensino de losoa com crianças em escola pública, tendo por base a
pedagogia do oprimido de Paulo Freire, buscando vericar como os/as educadores/as promovem a formação do
pensar lógico, crítico e a criatividade da criança. Este ensino é realizado em escola pública da cidade de Belém,
por educadores/as populares de um Núcleo de Educação Popular vinculado a uma universidade pública do es-
tado do Pará, como atividade de extensão. O ensino de losoa com crianças é trabalhado pelos/as educadores/
as na perspectiva de iniciação losóca, procurando-se desenvolver as suas raízes racionais, afetivas, éticas e
estéticas, visando à formação do pensar, do agir e do imaginar/criar da criança vista na sua integralidade. Neste
ensino, trabalha-se com a história da losoa, por meio de livros infantis, alguns produzidos por educadores/as
do próprio núcleo, buscando desenvolver as faculdades das crianças no ato de losofar, como o questionar e o
problematizar a realidade, conceituar, pensar, argumentar com coerência lógica, agir com base em valores éticos
e criar, estimulando a capacidade de imaginação das crianças e a aquisição de valores estéticos. Porém, neste
estudo, o foco é para a formação do pensar lógico, crítico e criativo das crianças. Neste estudo, foi realizada pes-
quisa bibliográca com levantamento documental, na qual foram efetivadas leituras sobre o ensino de losoa,
a educação de Paulo Freire, entre outras, bem como o levantamento de relatórios de atividades de extensão do
referido Núcleo de Educação Popular, dos livros infantis produzidos pelo próprio núcleo e outros utilizados nas
atividades, e como foram aplicados no ensino de losoa com crianças na escola. Entre os resultados, destaca-se
que as crianças nas atividades realizadas analisam os conteúdos, conceituam, argumentam e expressam sua
visão de mundo, desenvolvendo no ensino de losoa a capacidade do pensar crítico, lógico e criativo.
Palavras-chave: Ensino de losoa. Crianças. Pedagogia do oprimido. Paulo Freire.
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Abstract
We weave reections on the teaching of philosophy with children in public school in this article, based on the
Pedagogy of the Oppressed by Paulo Freire, seeking to verify how the educators promote the formation of the
child’s logical, critical thinking and creativity. This teaching is carried out in public school in the city of Belém,
by popular educators from a popular education nucleus linked to a public university of the State of Pará, as an
extension activity. It was carried out bibliographic research with documentary survey in this study, in which
readings on the teaching of philosophy were eective, the education of Paulo Freire, among others, as well as
the survey of reports of extension activities of the aforementioned Popular Education Nucleus, childrens books
produced by the nucleus and others used in activities and how they were applied in teaching philosophy with
children at school. Among the results, it is highlighted that the children in the activities performed analyse the
contents, conceptualize, argue and express their worldview, developing the capacity for critical, logical and crea-
tive thinking in the teaching of philosophy.
Keywords: Teaching of philosophy. Children. Pedagogy of the oppressed. Paulo Freire.
Resumen
En este artículo reexionamos sobre la enseñanza de la losofía con niños en una escuela pública, basada en la
Pedagogía del Oprimido de Paulo Freire, buscando vericar cómo los educadores promueven la formación del
pensamiento lógico, crítico y creativo del niño. Esta enseñanza se realiza en una escuela pública en la ciudad
de Belém, por educadores populares de un Centro de Educación Popular vinculado a una Universidad pública
del Estado de Pará, como una actividad de extensión. La enseñanza de la losofía con los niños es trabajada por
educadores desde la perspectiva de la iniciación losóca, buscando desarrollar sus raíces racionales, afectivas,
éticas y estéticas, con el objetivo de formar el pensamiento, la actuación y la imaginación/creación del niño
visto en su totalidad. En esta enseñanza trabajamos con la historia de la losofía, a través de libros infantiles,
algunos producidos por educadores del Núcleo mismo, buscando desarrollar las facultades de los niños en el
acto de losofar, como cuestionar y problematizar la realidad, conceptualizar, pensar, argumentan con coheren-
cia lógica, actúan en base a valores éticos y crean, estimulando la imaginación de los niños y la adquisición de
valores estéticos. Sin embargo, en este estudio, el enfoque está en la formación del pensamiento lógico, crítico y
creativo de los niños. En este estudio, se realizó una investigación bibliográca con encuesta documental, en la
que se realizaron lecturas sobre la enseñanza de la losofía, la educación de Paulo Freire, entre otros, así como la
encuesta de informes de actividades de extensión del referido Centro de Educación Popular, de libros infantiles
producidos por el Núcleo y otros utilizados en las actividades, y cómo se aplicaron en la enseñanza de losofía
con niños en la escuela. Entre los resultados, se destaca que los niños en las actividades realizadas analizan los
contenidos, conceptualizan, discuten y expresan su cosmovisión, desarrollando en la enseñanza de la losofía la
capacidad de pensamiento crítico, lógico y creativo.
Palabras clave: Enseñanza de losofía. Niños. Pedagogía del Oprimido. Paulo Freire.
Introdução
Neste artigo tecemos reflexões sobre o ensino de filosofia com crianças em
escola pública, tendo por base a pedagogia do oprimido de Paulo Freire.
Uma das principais referências da educação de Paulo Freire é o livro Pedago-
gia do Oprimido, escrito de 1967 a 1968 e publicado nos Estados Unidos em 1970,
e no Brasil em 1975 (CASALI, 2009). Nessa obra, Paulo Freire apresenta uma
pedagogia do oprimido, cuja característica é o engajamento ético-político com os
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oprimidos, ou seja, todos que sofrem opressão social tanto por questão de classe
quanto por outros fatores: etnia, idade, sexo, etc.
A opressão é conceituada por Freire (1983, p. 47, grifo nosso) como “um ato
proibitivo do ser mais dos [seres humanos]”, compreendendo que, no processo de
opressão, o ser humano é negado em sua vocação ontológica para ser mais, consti-
tuindo-se em uma ação de desumanização.
O livro Pedagogia do Oprimido é estruturante do seu pensamento educacional
por apresentar a crítica à concepção tradicional de educação, que denomina de
bancária, por ser impositiva de conteúdos, competitiva, meritocrática, alienante e
excludente, e anunciar as diretrizes e categorias fundantes da sua pedagogia, que
se configura em dialógica, crítica e libertadora.
Como o próprio Freire (1983, p. 17) afirma, a pedagogia do oprimido faz “da
opressão e de suas causas objeto de reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu
engajamento necessário na luta por sua libertação”. Destaca, ainda, que a pedago-
gia do oprimido tem raízes na luta por sua libertação. “E tem que ver, nos próprios
oprimidos, que se saibam ou comecem criticamente, a saber-se oprimidos, um dos
seus sujeitos”. Por isso, precisa ser crítica, humanizadora e libertadora.
Assim, com base no livro Pedagogia do Oprimido, a pedagogia de Paulo Freire
é vista como libertadora, humanista, dialógica e do oprimido. É nesse sentido que
será tratada neste artigo, como uma pedagogia do oprimido.
O objetivo deste artigo é verificar como educadores/as promovem a formação
do pensar lógico, crítico e criativo da criança no ensino de filosofia. Esse ensino é
realizado em escola pública da cidade de Belém, por educadores/as populares de
um Núcleo de Educação Popular vinculado a uma universidade pública do estado
do Pará, como atividade de extensão.
O ensino de filosofia com crianças é trabalhado pelos/as educadores/as na pers-
pectiva de iniciação filosófica, procurando-se desenvolver as suas raízes racionais,
afetivas, éticas e estéticas, visando à formação do pensar, do agir e do imaginar/
criar da criança vista na sua integralidade.
Freire (2001b, p. 18) compreende o ser humano na sua inteireza de ser, razão-
-corpo, cognitivo-afetividade, quando afirma: “sou uma inteireza e não uma dicoto-
mia [...]. Conheço com meu corpo todo, sentimentos, paixão. Razão também”.
Neste ensino, trabalha-se com a história da filosofia, por meio de livros infan-
tis, alguns produzidos por educadores/as do próprio núcleo, buscando, também,
desenvolver as faculdades das crianças no ato de filosofar, como o questionar e o
problematizar a realidade, conceituar, pensar, argumentar com coerência lógica,
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agir com base em valores éticos e criar, estimulando a capacidade de imaginação
das crianças e a aquisição de valores estéticos. Assim, neste estudo, o foco é para a
formação do pensar lógico, crítico e criativo das crianças.
Essas ações educativas têm por base as seguintes categorias da pedagogia do
oprimido de Paulo Freire: o diálogo, o ato de perguntar, o estímulo à curiosidade, à
criatividade e à autonomia dos sujeitos educacionais, assim como o ato de proble-
matizar a realidade social.
Neste estudo, tanto a pesquisa bibliográfica quanto o levantamento documen-
tal foram realizados, tendo sido efetivadas leituras sobre o ensino de filosofia, a
educação de Paulo Freire, entre outras, bem como o levantamento de relatórios de
atividades de extensão do referido Núcleo de Educação Popular, de livros infantis
produzidos pelo próprio núcleo e outros utilizados nas atividades, e como foram
aplicados no ensino de filosofia com crianças nas escolas.
Desta forma, este artigo está direcionado para as atividades educacionais
realizadas no ensino de filosofia com crianças, incluindo o uso de livros infantis,
visando investigar: como é promovida a formação do pensar lógico, crítico e criativo
da criança?
É importante ressaltar que o Núcleo de Educação Popular já elaborou dois
livros infantis para o ensino de filosofia com crianças, por meio de um trabalho
coletivo dos educadores, tendo como pondo de partida a realidade da Amazônia
Paraense, instigando nas crianças o interesse pela filosofia.
A produção de livros filosóficos para crianças surgiu no núcleo pela necessi-
dade de se trabalhar a história da filosofia e apresentar os filósofos e seus temas
de reflexões filosóficas. Como os livros que abordam questões filosóficas não são
facilmente encontrados no âmbito da literatura infantil, os/as educadores/as resol-
veram produzir os livros infantis.
Inicialmente, apresentamos o porquê de as crianças filosofarem, em seguida,
a pedagogia do oprimido de Paulo Freire e o ensino freireano de filosofia com crian-
ças, por meio da descrição e análise de duas estratégias metodológicas realizadas
pelos/as educadores/as na formação do pensar lógico, crítico e criativo da criança: o
círculo cultural dialógico e de problematização e o uso de livros infantis filosóficos.
O porquê de as crianças losofarem
A filosofia é entendida como a busca em conhecer e solucionar as problemáti-
cas existenciais e socioculturais do ser humano. A filosofia se apresenta:
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[...] como uma “maneira de pensar” que tem “um conteúdo próprio: os aspectos fundamen-
tais da realidade e da existência humana” [...] é um projeto, e não uma obra acabada; é uma
“busca perene de ampliação do saber” e procura apropriar-se da realidade para ir além
da explicação, da descrição dessa realidade, num movimento histórico de constituição das
significações e do próprio mundo humano (LORIERI; RIOS, 2004, p. 24-25).
A filosofia se configura como uma atividade humana, porque todo o ser hu-
mano filosofa em sua relação com o mundo, levantando problemas e encarando os
desafios vivenciados no cotidiano social e que provocam questionamentos e estimu-
lam a busca de conhecer os fatos e de solucioná-los.
O ser humano, então, diante dos problemas que a realidade social apresenta,
assume uma atitude filosófica. De modo que:
Filosofar [...] se impõe não como puro encanto, mas como espanto diante do mundo, diante
das coisas, da História que precisa ser compreendida ao ser vivida no jogo em que, ao fazê-
-la, somos por ela feitos e refeitos (FREIRE, 2000, p. 102).
Na visão de Gramsci (1991, p. 11), “todos os homens são filósofos”, pois ex-
pressam na linguagem, no senso comum, na cultura popular, etc., uma filosofia
construída de forma ocasional e espontânea. Filosofia compreendida como uma
visão de mundo produto de questionamentos e reflexões sobre ações, sentimentos
e ideias, extraída da vivência cotidiana e gerada pela curiosidade. Dessa forma, a
filosofia se apresenta como ato de filosofar, ou seja, como uma atitude filosófica do
ser humano perante o mundo e como teoria ou pensamento filosófico, isto é, atitude
de investigação filosófica do ser humano perante o mundo.
Freire (1983), em Pedagogia do Oprimido, ressalta a capacidade do ser hu-
mano de se colocar a si mesmo como problema, mediante a consciência de sua
incompletude e de sua compreensão de que é um ser que não sabe tudo, por isso se
constitui em um “ser de busca” do conhecimento.
Mais uma vez os homens [e as mulheres], desafiados pela dramaticidade da hora atual,
se propõem a si mesmos, como problema. Descobrem que pouco sabem de si, de seu “posto
no cosmos”, e se inquietam por saber mais. Estará, aliás, no reconhecimento do seu pouco
saber de si uma das razões desta procura. Ao instalar-se na quase, senão trágica descoberta
do seu pouco saber de si, se fazem problema a eles mesmos. Indagam. Respondem, e suas
respostas os levam a novas perguntas (FREIRE, 1983, p. 29).
O ato de perguntar, na visão de Freire (1983), está situado no âmbito da pro-
blematização do ser humano sobre si mesmo. A pergunta está relacionada à curio-
sidade do ser humano, cuja radicalidade é a consciência de sua inconclusão, no seu
permanente processo social e histórico de busca.
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A curiosidade como inquietação indagadora, como inclinação ao desvelamento de algo, como
pergunta verbalizada ou não, como procura de esclarecimento, como sinal de atenção que
sugere alerta faz parte integrante do fenômeno vital. Não haverá criticidade sem a curiosi-
dade que nos põe pacientemente impacientes diante do mundo que não fizemos, acrescen-
tando algo a ele que fazemos (FREIRE, 2007, p. 32).
O perguntar, então, faz parte do processo de existir humano, sendo necessário
à prática educacional, considerando que “uma educação de perguntas é a única
educação criativa e apta a estimular a capacidade humana de assombrar-se, de
responder ao seu assombro e resolver seus verdadeiros problemas essenciais, exis-
tenciais. E o próprio conhecimento” (FREIRE; FAUNDEZ, 1985, p. 52).
É nesta perspectiva que compreendemos que a criança pode filosofar. As crian-
ças, tais como os adultos, são curiosas, estão em processo de conhecimento e fazem
perguntas sobre a vida, a natureza e os acontecimentos socioculturais. Perguntam
para conhecer as coisas, sendo capazes de encontrar respostas às suas próprias
perguntas e inquietações (DEWEY, 1959 apud PAGNI; BROCANELLI, 2007).
O ensino de filosofia, na perspectiva de uma pedagogia da pergunta, consiste
em estimular a curiosidade e o ato de perguntar das crianças na ação educativa.
Lipman, Sharp e Oscanyan (2001) afirmam que as crianças podem filosofar,
porque se deslumbram e são curiosas perante a realidade. Ao perguntar o porquê
das coisas, expressam o seu espírito inquiridor e levantam temas filosóficos. Os au-
tores consideram, ainda, que a filosofia é favorável ao desenvolvimento das crian-
ças, ao possibilitar-lhes realizar juízos logicamente corretos, estimular atitudes
éticas e o pensamento reflexivo.
Entretanto, na perspectiva da pedagogia do oprimido, compreendemos, como
Freire (1993, p. 79), que: “ninguém nasce feito. Vamos nos fazendo aos poucos, na
prática social de que tomamos parte”, e a formação da criança é integral. Nesse
sentido, a filosofia não pode ser apenas dirigida à razão, ela deve ter raízes também
na afetividade e na estética.
Uma educação que englobe a estética é aquela que coloca o indivíduo “em conta-
to com os sentidos que circulam em sua cultura, para que, assimilando-os, ele possa
nela viver [...]. Significa permitir que ele conheça as múltiplas significações e as
compreenda a partir de suas vivências” (DUARTE, 1988 apud MARIN, 2007, p. 114).
Assim, formar ética e esteticamente crianças pressupõe o desenvolvimento de
atividades pedagógicas criativas e críticas, entre as quais as artísticas.
Jamais pude pensar a prática educativa [...] intocada pela questão dos valores, portanto,
da ética, pela questão dos sonhos e da utopia, quer dizer, das opções políticas, pela questão
do conhecimento e da boniteza, isto é, da gnosiologia e da estética (FREIRE, 2000, p. 89).
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É na perspectiva de uma educação crítica e criativa que se compreende ser o
ensino de filosofia com crianças, que se apresenta como processo de iniciação filo-
sófica. A criança tem acesso ao contato com o pensamento de alguns filósofos, por
meio da literatura infantil, sendo trabalhadas pedagogicamente com elas questões
filosóficas: o conhecimento, a ética, a estética, a lógica, entre outras. Neste estudo,
o foco é para questões da lógica, da criticidade e da criatividade.
A pedagogia do oprimido de Paulo Freire como pressuposto do ensino de losoa
com crianças
O ensino de filosofia com crianças, realizado desde 2007, em escola pública de
Belém, está centrado nas seguintes diretrizes da pedagogia do oprimido de Paulo
Freire (2007):
a) ensinar não é transferir conhecimento, e sim “criar as possibilidades
para a sua própria produção ou a sua construção” (2007, p. 47);
b) ensinar exige criticidade, com vistas a superar a visão ingênua de mun-
do; promover a passagem da curiosidade ingênua para a curiosidade episte-
mológica;
c) ensinar exige ética e estética, Freire considera que a formação crítica
deve ser feita vinculada a uma rigorosa “formação ética ao lado sempre da
estética. Decência e boniteza de mãos dadas” (2007, p. 32);
d) ensinar exige curiosidade, importa para Freire que “professores e alu-
nos se assumam epistemologicamente curiosos” (2007, p. 86);
e) ensinar exige respeito aos saberes dos educandos, promovendo a “re-
lação desses saberes com o ensino dos conteúdos” (2007, p. 30);
f) ensinar exige respeito à autonomia do ser humano, que requer do
docente uma prática coerente com essa exigência;
g) ensinar exige disponibilidade para o diálogo e saber escutar, que
implica no sujeito se abrir ao mundo e aos outros, inaugurando com seu ges-
to a relação dialógica, que perpassa pela escuta do outro e se confirma como
inquietação, curiosidade, inconclusão em constante movimento na história;
h) ensinar exige alegria e esperança, como clima do espaço pedagógico, com
vistas ao processo de humanização e de transformação social (2007, p. 72);
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i) ensinar exige querer bem aos educandos, porque “a afetividade não
está excluída da cognoscibilidade”; o querer bem significa “a disponibilidade
à alegria de viver”, uma ação de amorosidade indispensável no ato educati-
vo (2007, p. 141).
Nesse sentido, o ensino de filosofia com crianças articula a criticidade com a
ética e a estética, é alegre, estimula a curiosidade e a problematização da realida-
de, promove a amorosidade, a autonomia dos sujeitos e a esperança de um mundo
melhor.
As principais categorias freireanas utilizadas são: a pergunta, o diálogo, a
amorosidade, a problematização e a autonomia.
O ato de perguntar, em Freire e Faundez (1985), faz parte da existência hu-
mana, cujo ponto de partida do questionar é a curiosidade, configurando-se o ato de
perguntar a origem do conhecimento. Assim, na prática pedagógica é imprescindí-
vel o estímulo à curiosidade e à criatividade por meio da pergunta.
Para Freire (1980, p. 83), o que fundamentalmente importa à educação:
[...] é a problematização do mundo do trabalho, das obras, dos produtos, das ideias, das con-
vicções, das aspirações, dos mitos, da arte, da ciência, enfim, o mundo da cultura e da história,
que resultado das relações homem-mundo, condiciona os próprios homens, seus criadores.
É o mundo humano que é objeto de problematização dos homens e mulheres
na ação educativa, mundo no qual o próprio ser humano está inserido e também
dialeticamente problematizado.
O diálogo e a problematização em Paulo Freire apresentam uma dimensão
política. O diálogo possibilita às pessoas de segmentos sociais excluídos “dizerem
sua palavra”, expressando sua forma de ver o mundo e de se ver como pessoa e
cidadã, além de problematizarem de forma crítica a realidade social. A cidadania,
para Freire (2001a, p. 130-131), “passa pela participação popular, pela voz [...]. A
voz é um direito de perguntar, criticar, de sugerir”. E a problematização permite
aos excluídos socialmente efetuar uma análise crítica sobre a realidade, que se
apresenta como problema, visando modificá-la.
Na pedagogia do oprimido de Paulo Freire, a problematização se processa por
meio do diálogo, no qual os sujeitos cognoscentes se comunicam.
Na dialogicidade, na problematização, educador-educando e educando-educador vão ambos
desenvolvendo uma postura crítica da qual resulta a percepção de que este conjunto de sa-
ber se encontra em interação. Saber que reflete o mundo e os homens, no mundo e com ele,
explicando o mundo, mas sobretudo, tendo de justificar-se na sua transformação (FREIRE,
1983, p. 55).
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A amorosidade está vinculada ao diálogo, conceituado por Freire (1980, p. 43)
como “encontro amoroso dos homens [e mulheres] que, mediatizados pelo mundo,
o pronunciam, isto é, o transformam, e transformando-o, o humanizam para a hu-
manização de todos”.
Na pedagogia do oprimido, a amorosidade envolve a intercomunicação e o res-
peito entre os sujeitos. O amor é definido por Freire (1981, p. 29) como uma “inter-
comunicação íntima de duas consciências que se respeitam”.
Além do diálogo e da amorosidade, a autonomia é fundamental na pedagogia
de Paulo Freire. Ter autonomia significa ser sujeito na construção de sua história,
cultura e educação. Para Freire, a autonomia envolve escolhas e decisões. Dessa
forma, a autonomia “vai se constituindo na experiência de várias, inúmeras deci-
sões, que vão sendo tomadas [pelos indivíduos]” (2007, p. 107).
O ensino de filosofia com crianças visa que a criança seja capaz de: problema-
tizar a realidade social em que vive; ter autonomia em sua forma de pensar; poten-
cializar o seu pensar crítico, reflexivo e criativo; viabilizar a compreensão entre a
produção histórica e filosófica expressa nos livros infantis e a atitude cotidiana de
filosofar.
Assim, além de desenvolver o ato de filosofar, o uso de livros infantis via-
biliza o contato com o pensamento de filósofos, para que as crianças conheçam um
pouco da história da filosofia e se informem sobre algumas questões filosóficas,
relacionando-as com o seu contexto sociocultural.
O ensino de losoa com crianças: a formação do pensar lógico, crítico e criativo
O círculo cultural dialógico e de problematização
O círculo cultural dialógico e de problematização proposto como estratégia
metodológica no ensino de filosofia com crianças tem por base os círculos de cultura
de Paulo Freire, nos quais:
[...] dialogicamente se ensinava e se aprendia. Em que se conhecia em lugar de se fazer
transferência de conhecimento. Em que se produzia conhecimento em lugar de justaposição
ou da superposição de conhecimento feitas pelo educador a ou sobre o educando. Em que se
construíam novas hipóteses de leitura do mundo (FREIRE, 2003, p. 161).
Nesse círculo, são realizadas conversas dialógicas com as crianças, tendo
por base um tema gerador, por meio das quais as crianças são incentivadas a per-
guntar, a levantar problemas e a refletir sobre eles, sem repressões.
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Desta forma, do diálogo sobre o tema, expresso por situações existenciais e
sociais, emergem questões para reflexão no círculo, sendo utilizadas diversas es-
tratégias educacionais, entre as quais o uso de livros infantis, slides, teatro, etc.
Levantamento de perguntas existenciais
No círculo cultural, as crianças levantam questões filosóficas existenciais,
como o porquê da morte, buscando conhecer e esclarecer os fatos.
Criança: — Por que a gente morre?
(RELATÓRIO NEP, 2007a, p. 03).
Criança: — Por que Deus fez a gente?
(AMADOR, 2007, p. 95).
Pensar com coerência lógica e argumentação
As crianças expressam um pensar com coerência lógica, apresentando concor-
dância e contra argumentação.
Educador: — Então quer dizer que o isolamento é quando o ser humano mora sozinho?
Crianças: — Não.
Criança: — Não. Tem gente que mora com a família que é isolada.
Criança: — É mesmo.
(AMADOR, 2007, p. 71).
Educador: — Existe um número certo de membros para compor uma família?
Crianças: — Não.
Criança: — Existe.
Criança: — Desconcordo.
(AMADOR, 2007, p. 79).
Educador: — Então o que é carinho?
Criança: — É o amor.
Criança: — Eu não acho.
Criança: — Eu acho!
Educador: — Você poderia explicar porque não acha que o carinho é amor?
Criança: — Porque o amor é uma coisa que namora e vai casar.
(AMADOR, 2007, p. 74).
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Conceituar as coisas
No círculo cultural, as crianças também conceituam as coisas, usando situa-
ções concretas da realidade social.
Educador: — E os filhos e as filhas possuem papel na família? [...]
Criança: — É ajudar os pais a trabalhar [...]
Criança: — A prima quando ela chega.
Criança: — Para cinhar.
Educador: — O que é cinhar?
Criança: — É cinhar o mato com ancinho.
Criança: — Limpar o terreiro.
(AMADOR, 2007, p. 75).
Formação do senso crítico
As crianças, no círculo cultural, apresentam senso crítico:
Educador: — Por que a poluição nos igarapés está acontecendo?
Criança: — Porque jogam lixo.
Criança: — As pessoas jogam lixo nos igarapés.
Criança: — Elas acham que é bom jogar lixo nos igarapés. [...]
Criança: — Quando jogam lixo no rio, é porque não sabe pensar.
Criança: — É porque não tem noção.
Criança: — Ela está acabando com a natureza.
(AMADOR, 2007, p. 103-104).
Educador: — Por que o ser humano bate no outro?
Criança: — Porque ele sente raiva e coloca para fora.
Educador: — Quando o homem bate na mulher, ele é chamado de covarde. E quando a
mulher bate no homem?
Criança: — É para se proteger dele [...]
Criança: — Tem a Lei Maria da Penha.
Criança: — Ela se protegeu.
Criança: — Eu não vou deixar o meu marido me bater!
Educador: — Será que ele também perdeu a cabeça e não pensou?
Crianças: — Foi.
Educador: — E quando nós pensamos?
Criança: — Ah! É diferente.
(RELATÓRIO NEP, 2007a, p. 03).
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Educador: — O que é certo?
Educando 5: — O certo é pensar. Antes de fazer, tem que pensar.
Educador: — Os animais, porque não pensam, fazem o errado?
Educandos: — É.
Educanda 2: — Por exemplo o macaco faz tudo errado porque ele não pensa.
Educanda 1: — Errado é uma coisa que a gente não pensa antes de fazer.
Educador: — Quando a gente pensa antes, e não sai do jeito que a gente queria depois?
Educando 4: — A gente tenta de novo.
Educanda 2: — A gente faz de novo.
Educando 4: — Até dar certo.
(RELATÓRIO NEP, 2007b, p. 4).
A utilização de livros para desenvolvimento de habilidades lógicas e criativas
Alguns círculos de cultura foram iniciados com diálogos incentivados pela
apresentação de um livro.
Os livros infantis filosóficos são utilizados por meio de diferentes estratégias
metodológicas, envolvendo leituras coletivas e em pequenos grupos e o círculo cul-
tural para levantamento de questões sobre o livro, buscando identificar o nível de
compreensão do conteúdo do livro em estudo.
Livro Zoom
O livro apresentado às crianças foi o Zoom, que não possui textos, somente
imagens, com o uso de slides projetados na tela. Nessa apresentação, com o intuito
de incentivar a curiosidade e a relação lógica entre o todo e a parte, o tema em
debate foi a curiosidade.
Educadora: — E o que é curiosidade?
Criança 1: — É uma pergunta sem resposta.
Criança 2: — É você olhar e sentir vontade de ir ver.
Criança 3: — É você querer fazer.
Criança 4: — É você não pensar em só olhar, é ir ver de perto, pegar, tocar.
Criança 5: — É abrir um pacote somente para ver o que é.
Criança 6: — É não deixar passar sem ver o que é.
Criança 7: — É uma atração para saber o que é.
Criança 8: — É você se sentir atraído pelo diferente.
Criança 9: — É a vontade de ver o que é.
Criança 10: — É tudo isso...
(RELATÓRIO NEP, 2010, p. 04).
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Livro sobre Descartes
O livro René Descartes (HASSEN, 2009) conta a história de um menino, cha-
mado Renê, que, além de brincar, pensava. Ele, num dado dia, pensou sobre o
sonho e a realidade e desconfiou do que via ao seu redor. O que era ilusão? O que
era verdade? Pensou e concluiu, mesmo que pensasse errado, quem pensa precisa
existir. Por isso, afirmou: “Penso, logo existo”.
O livro foi apresentado em forma de slides, por meio de leitura coletiva realiza-
da pelo educador e pelas crianças. Após a leitura, foi constituído o círculo cultural,
no qual as crianças debateram sobre a ilusão, o que existe e a verdade, tendo por
base o que leram no livro.
Criança 2: — A ilusão é quando a gente vê uma coisa que não é verdade, que nem a lama
que o menino viu (Descartes).
Criança 1: — É uma menina por causa do cabelo.
Criança 2: — Não é. O nome é de menino: René.
Criança 1: — Ah! é.
Educador: — O trote do cavaleiro era de verdade?
Crianças: — Não. Era ilusão.
Criança 2: — Tudo que ele (Descartes) pensava era ilusão.
Educador: — A ilusão é pensamento?
Crianças: — É.
Criança 2: — Aí quem pensa é porque existe.
Educador: — Por mais que pense errado?
Criança 2: — Não importa, pensou, existiu.
Educador: — A gente passa a existir quando pensa?
Criança 2: — É. Acho que passa, sem pensar a gente nunca ia existir.
(RELATÓRIO NEP, 2007b, p. 03).
Educador: — O que é verdade?
Crianças: — É aquilo que acontece.
Educador: — O que é mentira?
Criança 1: — Mentir é uma coisa assim. Quando a gente faz uma coisa pra nossa mãe, aí
depois a nossa mãe descobre, aí diz que é mentira.
Educador: — Então mentira é o que a nossa mãe diz que é mentira?
Crianças: — Não.
Criança 1: — Mentira é algo que a gente inventa para nossa mãe.
(RELATÓRIO NEP, 2007b, p. 03).
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Leitura e análise do livro Conversa com Sócrates
A sinopse do livro Conversa com Sócrates é a seguinte: o professor em sala fa-
lou um pouco sobre Sócrates e os meninos ficaram curiosos em conhecer mais sobre
o filósofo. Ao adormecerem embaixo de uma árvore, sonharam que estavam em
uma terra distante e se encontravam com Sócrates, que os denominou de Menino
do Porquê e Menina da Pergunta. Na conversa dialógica com os meninos, Sócrates
apresenta o que é a filosofia, o conhecimento e a maiêutica.
Para leitura desse livro, foi utilizada a estratégia metodológica da leitura co-
letiva. Após a leitura, foi analisado um trecho do livro no qual Sócrates pergunta
às crianças se todas as árvores são iguais. Os/as educadores/as, então, fizeram
a pergunta: “Todas as árvores são iguais?”. Mediante esta pergunta, as crianças
desenharam, na lousa e no caderno, as diferentes árvores que conheciam e que já
tinham visto em algum lugar (Figura 1).
Figura 1 – Atividade As árvores são todas iguais?”
Fonte: Relatório NEP (2015, p. 10).
No desenvolvimento da atividade, foi estabelecido o seguinte diálogo entre as
crianças e a educadora:
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Criança 1: — Professora, as árvores são seres vivos?
Educadora: — Sim, as árvores são seres vivos.
Criança 1: — Nós também somos seres vivos?
Educadora: — Sim, nós humanos também somos seres vivos.
Criança 2: — Ah!, então, se as árvores são seres vivos e nós também somos, quer dizer que
se as árvores não são todas iguais então nós também não somos, né?
Criança 1: — Era isso que eu ia perguntar!!!
(RELATÓRIO NEP, 2015, p. 10).
Jogo losóco
A atividade do “jogo filosófico” consistiu em apresentar um jogo sem regras
para as crianças. Ele correria da forma que as crianças achassem mais adequada.
Sem regras, as crianças jogariam de forma aleatória. Logo, elas perceberam que
todo jogo precisa de regras para que cumpra sua funcionalidade. Os/as educadores/
as, então, solicitaram que as crianças criassem ou seguissem as regras já estabe-
lecidas para cada jogo e, depois, jogassem. No final da atividade, cada grupo de
crianças criou um jogo com as suas respectivas regras (Figuras 2 e 3).
Figura 2 – Criação de regras dos jogos Figura 3 – Jogos utilizados em sala
Fonte: Relatório NEP (2016, p. 11). Fonte: Relatório NEP (2016, p. 11).
As crianças criaram regras e dinâmicas dos jogos, o que exigiu capacidades de
pensar, comparar, classificar, quantificar e refletir criticamente sobre como viabili-
zar a execução de um jogo.
Assim, as atividades realizadas indicaram que as crianças desenvolveram as
capacidades de pensar, questionar e refletir criticamente sobre fatos vivenciados
em seu cotidiano social.
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Considerações nais
No ensino de filosofia com crianças e adolescentes, tendo por base a pedagogia
do oprimido de Paulo Freire, fica evidente que a criança em sua iniciação filosófica
desenvolve capacidades lógicas fundamentais para a formação pessoal e educacio-
nal. O fomento ao pensar lógico, crítico e criativo é realizado na prática educativa
por meio de uma diversidade de estratégias, incluindo produções literárias, leitu-
ras de livros infantis, desenhos, entre outras.
No círculo dialógico, as crianças trazem para debate questões relacionadas ao
seu cotidiano social, que perpassam o seu fazer como crianças, o brincar, o estudar,
os problemas familiares e de cunho social. Assim, analisam os conteúdos, criam
desenhos, conceituam, argumentam e expressam sua visão de mundo. Com isso, as
crianças desenvolvem a capacidade do pensar lógico e crítico, bem como sua criati-
vidade no ensino de filosofia, articulado ao seu contexto sociocultural.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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RELATÓRIO DO NÚCLEO DE EDUCAÇÃO POPULAR PAULO FREIRE. Belém-PA: NEP-
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RELATÓRIO DO NÚCLEO DE EDUCAÇÃO POPULAR PAULO FREIRE: Belém-PA: NEP-
-UEPA, 2015.
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*
Pós-doutor em Educação pela Uninove, SP. Doutor e mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná. Pro-
fessor Titular do Programa de Pós-Graduação em Educação e do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde
na Unochapecó, SC. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-6293-8382. E-mail: educador.ivo@unochapeco.edu.br
**
É Historiador e Mestre em Serviço Social pela PUC-SP. Editor Chefe da Editora Diálogo Freireano. Assessor e Mentor
de Organizações Não Governamentais. Estudioso de Paulo Freire e da Educação Popular, bem como da Economia
Solidária, Cooperativismo e Negócios Sociais. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5292-3235. E-mail: ivanio.dialogar@
gmail.com
Recebido em 04/06/2020 – Aprovado em 28/09/2020
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i3.12376
Didática freiriana: um reencontro com a pedagogia do oprimido
Freirean didactics: reliving the pedagogy of the oppressed
Didáctica freiriana: un re-encuentro con la pedagogía del oprimido
Ivo Dickmann
*
Ivanio Dickmann
**
Resumo
Este artigo é resultado de nossa práxis com a Didática Freiriana e quer ser um avanço na reexão sobre o proces-
so de reinvenção do Método Paulo Freire. Para tanto, temos como base teórico-prática três matizes: a Teologia da
Libertação, a Educação Libertadora e a Filosoa da Libertação, por considerar essas três fontes como referências
da produção de uma epistemologia latino-americana que se encontra na base da práxis de Paulo Freire na pro-
dução da Pedagogia do Oprimido. Do ponto de vista metodológico, vamos descrever três maneiras de utilizar a
didática freiriana em diversos espaços e situações pedagógicas, seja na escola, na universidade ou em espaços
não formais e informais, são eles: estratégia pedagógica, percurso educativo e caixa de ferramentas”. Embora
criada há pouco tempo, a didática freiriana vem se demonstrando com potencial de reinvenção do Método
Paulo Freire, tendo como base teórica as contribuições da Pedagogia do Oprimido.
Palavras-chave: Didática freiriana. Método Paulo Freire. Pedagogia do Oprimido. Reinvenção.
Abstract
This article is the result of our practice with Freirian Didactics and wants to be an advance in the reection on
the process of reinventing the Paulo Freire Method. For that, we have as theoretical and practical basis three
nuances: Liberation Theology, Liberating Education and the Philosophy of Liberation, considering these three
sources as a reference for the production of a Latin American epistemology that is at the base of Freires praxis
in the production of Pedagogy of the Oppressed. From a methodological point of view, we will describe three
ways of using Freirian Didactics in dierent pedagogical spaces and situations, whether at school, university or
in non-formal and informal spaces, they are: pedagogical strategy, educational path and toolbox”. Although
created a short time ago, Freirian Didactics have shown themselves to have the potential to reinvent the Paulo
Freire Method, based on the theoretical contributions of Pedagogy of the Oppressed.
Keywords: Freirian Didactics. Paulo Freire Method. Pedagogy of the oppressed. Reinvention.
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Resumen
Este artículo es el resultado de nuestra práctica con la Didáctica Freiriana y quiere ser un avance en la reexión
sobre el proceso de la reinvención del Método Paulo Freire. Para eso, tenemos como base teórica y práctica tres
matices: Teología de la Liberación, Educación Liberadora y Filosofía de la Liberación, considerando estas tres
fuentes como referencia para la producción de una epistemología latinoamericana que es la base de la praxis
de Paulo Freire en la producción de Pedagogía de los Oprimidos. Desde un punto de vista metodológico, des-
cribiremos tres formas de usar la didáctica freiriana en diferentes espacios y momentos pedagógicos, sea en la
escuela, la universidad o en espacios no formales e informales, son: estrategia pedagógica, trayectoria educativa
y caja de herramientas. Aunque se creó recientemente, la didáctica freiriana ha demostrado tener el potencial
de reinventar el Método Paulo Freire, basado en las contribuciones teóricas de la Pedagogía de los Oprimidos.
Palabras clave: Didáctica freiriana. Método Paulo Freire. Pedagogía de los oprimidos. Reinvención.
Pedagogia das primeiras palavras
Este texto trata da Didática Freiriana como uma reinvenção do Método Paulo
Freire, que dialoga com as bases teórico-práticas da Pedagogia do Oprimido, ser-
vindo de reflexão e orientação para educadores e educadoras, seja na escola ou na
universidade ou em espaços não formais e informais, para se servirem do legado de
Paulo Freire para redimensionar sua práxis pedagógica.
Nesse sentido, busca-se apresentar, ao longo do artigo, a Didática Freiriana
como um potencial pedagógico para educadores e educadoras, que a utilizarão de
forma instrumental, embora inacabada, em construção na prática, como uma for-
ma de aproximar a sua ação educativa com a perspectiva crítica de Freire.
Este texto está embasado teoricamente nas obras de Paulo Freire, essencial-
mente na Pedagogia do Oprimido, em seu terceiro capítulo, no qual o autor apre-
senta o seu método (que já está muito mais ligado a uma epistemologia da educa-
ção), de que resultou a produção de uma Didática própria, embasada no nosso au-
tor de referência. Depois de produzida uma primeira versão da Didática Freiriana
(DICKMANN; DICKMANN, 2018), executaram-se diversas oficinas presenciais e
on-line, e, a partir daí, redimensionamos e localizamos limites e potencialidades
que se apresentarão ao longo deste texto, num processo de releitura e de constru-
ção contínua dessa prática freiriana.
Daí surge uma pergunta fundamental: como utilizar a Didática Freiriana
para redimensionar a práxis de educadores/as que se dizem freirianos/as? Como
fazer isso? Este é o objetivo que este texto vai tentar responder ao longo dos tópicos
a seguir, apresentando três possibilidades de uso da didática freiriana, a saber,
como estratégia pedagógica, como percurso educativo e como uma “caixa de ferra-
mentas”.
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Tendo isso como base, a seguir, apresenta-se um referencial teórico consisten-
te que dará fundamentação para essa prática de forma congruente com o legado
freiriano, além de mostrar as três formas de uso prático da Didática Freiriana.
Pedagogia da reexão
Nossa reflexão surge da nossa prática e da nossa capacidade de reflexão da-
quilo que fizemos, nossa práxis, quer dizer, da nossa experiência de vida, que é
marcada pela participação em diversos espaços pedagógicos, que vão desde a esco-
la formal até a Educação Popular, como mostraremos em seguida. Ela é fruto da
nossa vivência e de como fomos aprendendo e ensinando e, ao mesmo tempo, fomos
sistematizando essas experiências, e elas foram se tornando nosso modo de ensinar
e aprender, ou seja, nosso jeito de educar.
Nessa direção, temos três matrizes teóricas que permeiam nossa práxis de
educadores, a saber: a) Teologia da Libertação; b) Filosofia da Libertação; e c) Edu-
cação Libertadora. É a partir do estudo, da reflexão e da produção, tendo como base
a amálgama dessas teorias, que construímos uma reinvenção do Método Paulo
Freire, que chamamos de Didática Freiriana.
Para ilustrar melhor como essas três teorias contribuíram para a formulação
da Didática Freiriana, a seguir, faremos uma breve reflexão sobre como cada uma
delas chegou até nós e como nos impactou, de tal modo que nos condicionam a agir
tendo-as como referências.
Teologia da Libertação
A Teologia da Libertação nos foi apresentada na juventude, na experiência
junto à Congregação dos Oblatos de São Francisco de Sales. Era meados da década
de 1990, e a leitura dos textos de Leonardo Boff (1980, 1994), Leonardo Boff e Clo-
dovis Boff (1986), Francisco Catão (1989) e Gustavo Gutiérrez (1985) foi mostrando
para nós que haviam opressores e oprimidos, e que essa divisão de classe social não
era desejo divino e, de várias maneiras, estávamos envolvidos nesse contexto.
Ao mesmo tempo, íamos aprendendo a teoria e conhecendo os práticos: Dom
Helder Câmara (CONDINI, 2014), Dom Pedro Casaldáliga (TAVARES, 2019), Dom
Oscar Romero (BINGEMER, 2012), Dom José Gomes (LOVERA et al., 2013), Irmão
Antônio Cechin (2010), só para citar alguns do Brasil e de outros países da América
Latina. As leituras orientadas pelos padres formadores no seminário eram acom-
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panhadas de pastoral nos finais de semana. Teoria e prática se dialetizavam, ao
mesmo tempo em que éramos introduzidos à leitura orante da Palavra de Deus,
éramos enviados para as comunidades do interior de Jaboticaba, no Rio Grande do
Sul, para viver a missão do Evangelho Vivo: estar entre os oprimidos, ficar no meio
do povo, vivenciar as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs).
Outra prática comum nesse tempo, tão marcante quanto a pastoral (seja da li-
turgia como da juventude), era a participação em Romarias da Terra, mobilizações
dos movimentos sociais e populares, encontros diocesanos da Pastoral da Juventu-
de, celebração da vida e da luta. Tudo fruto de um planejamento no início do ano
e um retiro de revisão de vida ao final do ano. Essa estrutura foi propícia para de-
senvolvermos uma profunda consciência de classe, aprofundando nossa leitura de
mundo, permitindo contribuir na tessitura de outras formas de vida e de relações
mais humanas – numa profunda opção preferencial pelos pobres.
Dessa matriz teórica, emerge o método Ver - Julgar - Agir, que orienta uma
prática pedagógico-pastoral, permitindo enxergar aspectos educativos nas práticas
religiosas, especialmente dentro dessa concepção crítica de Teologia. Havia já uma
aproximação dessas teorias e práticas com o que vinha acontecendo em toda a
América Latina, que reverberava permanentemente em outras dimensões da vida,
como na pedagogia, na filosofia, na sociologia e nas teorias da dependência.
Do ponto de vista prático, vê-se uma unidade crítica – de práticas e teorias
– que emergiu nos anos 1960-1970 e que tem como uma das múltiplas facetas a
Teologia da Libertação, não como uma construção isolada, mas como parte desse
movimento latino-americano. Paulo Freire influenciou e foi influenciado por essas
práticas, leu as obras de seus criadores, contribuiu com as reflexões nas CEBs, no
exílio e no seu retorno ao Brasil nos anos de 1980, inclusive muitas obras demons
-
tram essa aproximação teológica (CORDAZZO; DICKMANN, 2019; LEOPANDO,
2017; MARTINS, 2011; STRECK, 1991; CAVALCANTI, 1975). Pode-se afirmar, sem
sombras de dúvidas, que a produção freiriana dessa época é parte desse arcabou
-
ço teórico-crítico e tem no livro Pedagogia do Oprimido a síntese pedagógica mais
importante, figurando juntamente com as obras de Gustavo Gutiérrez na Teologia
e Enrique Dussel na Filosofia, como os três grandes pilares teóricos desse tempo.
Dessa matriz teológica, fica marcada na Didática Freiriana a fé nas pessoas,
na acolhida do ser do outro como ação pastoral e na possibilidade da libertação em
comunhão como meta pedagógica. Acolhida é a alteridade colocada em prática,
é a efetivação da opção preferencial pelos pobres, é a aceitação da fraqueza e da
angústia do outro como sua própria, é a incorporação da diferença como abertura
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ao outro, seu saber e sua ignorância, sua ciência e seu senso comum – superando
qualquer forma de discriminação –, é a postura pedagógica da pergunta epistemo-
lógica que se abre para a construção do conhecimento contextualizado.
Filosoa da Libertação
A Filosofia da Libertação, ou Filosofia Latino-americana, nos foi apresentada
no Instituto Superior de Filosofia Berthier (Ifibe), em meados dos anos 2000. Ao
nos depararmos com as reflexões profundas de Enrique Dussel sobre a realidade
latino-americana, imediatamente, percebemos a identidade dela com a perspectiva
teológica que nos dava suporte para a ação pastoral. Iniciamos uma leitura desse
pensador e de outros que, como ele, iam desenhando a possibilidade de se produzir
Filosofia desde o “sul do mundo”, libertando-se das produções preconceituosas da
filosofia idealista europeia.
Dussel (1980), com sua ampla produção filosófica, construiu um arcabouço
filosófico consistente, desde um método para a Filosofia da Libertação (DUSSEL,
1986), até as bases epistemológicas que vão demonstrar a ideologia da exclusão
sustentada pelas teorias clássicas com acento numa razão universal e universa-
lizante (DUSSEL, 1995). Nesse processo, mostrou ser possível produzir conheci-
mento filosófico a partir da América Latina, diferente do que se pensava antes,
que só a Europa e a América do Norte filosofavam – o que de imediato já é uma
irracionalidade.
Uma das centralidades do pensamento de Dussel, pode-se afirmar entre mui-
tas elaborações, é o sentido de um filosofar autêntico, tomando por base a realidade
latino-americana, pensar a partir do contexto oprimido, a necessidade da superação
da alienação e a construção da libertação (BOUFLEUER, 1991). Essa possibilidade
tem muita identidade com a pedagogia freiriana, que parte do oprimido, seu con-
texto, sua situação-limite, em vista de construir um inédito viável (FREIRE, 2011).
A Filosofia da Libertação e a ética construída por Dussel (2000) se aproximam
da Pedagogia Libertadora de Freire (2011), ao serem produzidas de forma inter-
subjetiva e pensadas como um processo coletivo dos sujeitos históricos, em vista da
conscientização de todos, tendo o diálogo como método e ferramenta para a cons-
trução de relações humanas e pedagógicas profundamente éticas. Provavelmente,
a descoberta filosófico-pedagógica em comum de Dussel e Freire é que o ser huma-
no oprimido não consegue pensar e aprender, sem que se eduquem a si mesmo e aos
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outros em comunhão em vista da sua libertação – sendo que isso se constitui como
um objetivo universal da razão.
Essa matriz filosófica contribui para uma Didática Freiriana reflexiva, que
parte da pergunta sobre o contexto concreto dos oprimidos latino-americanos, acei-
tando-os como sujeitos protagonistas da sua libertação. Aceita a realidade como
processo que se faz na disputa política, histórica, pedagógica, econômica, ambien-
tal, cultural e de classe, entre tantas outras dimensões que compõem a totalidade
do real. A Filosofia da Libertação de Dussel nos mostra a importância da sistema-
tização da experiência, da práxis, em que os temas geradores emergem da reali-
dade oprimida para serem problematizados e superados. A filosofia é essencial à
pedagogia, contribuindo para uma prática reflexiva crítica, em que Freire e Dussel
convergem para a criação de uma nova forma de pensar e fazer a pedagogia – Edu-
cação Popular – na América Latina com potencial universal.
Educação Libertadora
A educação freiriana, ou Educação Libertadora, está sustentada em alguns
pilares ou princípios. Alguns autores já elaboraram essa síntese, mas vamos reto-
má-la para demonstrar como está construída a possibilidade de uma educação que
tem como foco a libertação dos oprimidos na construção do conhecimento inter-re-
lacional entre educador e educandos.
Embora não seja fácil definir um padrão na produção de Paulo Freire, haja
vista a sua matriz ampliada de pensadores e teorias, é possível localizá-lo dentro
das perspectivas críticas de educação, estando entre as bases mais profundas que
fundamentam as visões pedagógicas emancipatórias e, ainda, é importante ressal-
tar a relação permanente entre teoria e prática de Freire, como intelectual compro-
metido e profundamente vinculado à ação transformadora, em vista da mudança
dos lugares de vivência (SANTOS, 2017; DICKMANN; DICKMANN, 2020).
Na prática, três pontos são centrais nesse panorama da pedagogia da liberta-
ção, centralmente presentes na Pedagogia do Oprimido: a) o diálogo como método;
b) a educação como ato político; c) o contexto como ponto de partida gnosiológico. É
útil à nossa reflexão ver cada um deles, sabendo que estes se articulam com outros
que aparecerão ao longo deste ensaio.
O diálogo é o ponto de partida da relação entre educadores e educandos, tor-
nando-se o modo como o educador constrói conhecimento com os seus educandos,
por isso, afirmamos o diálogo como método. Além disso, o diálogo foca na pergunta,
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sem iniciar um trabalho educativo já com as respostas prontas sobre um tema ou
conceito. O diálogo implica na não violência, na postura amorosa entre os sujeitos,
no respeito mútuo, na diversidade e na diferença, na tolerância, enfim, o diálogo
é abertura ao outro, e a educação torna-se diálogo de saberes. Nesse sentido, o
diálogo muda as relações de poder no processo pedagógico, sendo agora construí-
do na horizontalidade, na confiança no outro e na intercomunicação, partindo do
princípio que todos sabem algo, não há saber mais ou saber menos, mas saberes
diferentes, como uma exigência existencial dos seres humanos (FREIRE, 2011;
SANTOS, 2017).
Um segundo princípio é a politicidade do ato educativo, afirmando que não
há neutralidade nas práticas pedagógicas. Se educar é um ato de mudança – das
pessoas e dos contextos nos quais elas estão inseridas –, então, a educação é po-
lítica, não porque queria Freire, mas porque ela implica numa rede de relações
sociais e, portanto, interligadas ao todo da realidade. Há uma ligação política na
relação entre quem ensina e quem aprende, assim como há relação política entre
as pessoas nas demais esferas da vida pública. A negação da politicidade da edu-
cação já é um ato político-ideológico, em torno de uma visão de mundo – distinta
desta, obviamente. Por isso, afirma-se a educação como fator de transformação da
sociedade, como ato de mudar as pessoas e o mundo. Por ser política, a Educação
Libertadora gera participação, é democrática, ao contrário da educação bancária,
que é autoritária e gera apatia e silêncio submisso.
Por último, é preciso falar da educação a partir do contexto, ou de como cons-
truir conhecimento a partir da realidade dos educadores e educandos. O lugar dos
sujeitos como ponto de partida gnosiológico permite encharcar de sentido o proces-
so de produção do conhecimento, visto que uma das descobertas freirianas é que
quanto mais próximo do contexto estiver o conteúdo, melhor o educando aprende
(GADOTTI, 2001; FREIRE, 2011). O que importa neste princípio, em específico, é
que, ao conhecer a realidade do seu entorno de vida, os educandos podem projetar
ações transformadoras, já que a produção do conhecimento é uma ação em vista da
práxis e da mudança, não simplesmente para acumular saberes, mas para apro-
fundar a leitura do mundo (que precede a leitura da palavra) na perspectiva do
engajamento desses sujeitos no seu mundo mais imediato.
Esses princípios contribuem para a construção de uma Didática Freiriana,
que crê no ser humano, no diálogo rigorosamente amoroso, com foco nas perguntas
problematizadoras, em que educadores e educandos assumem papel de respeito
mútuo, mas também de agentes políticos nas relações e nos processos. As contribui-
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ções da Educação Libertadora latino-americana convergem para uma pedagogia da
investigação do contexto concreto e imediato dos sujeitos, pensando e construindo
a mudanças das realidades opressoras e desumanizantes, tomando o contexto e as
falas dos sujeitos como palavras e temas geradores, em vista de uma práxis trans-
formadora, que posteriormente será sistematizada e publicizada, para ser avaliada
pelos protagonistas do processo.
Diante dessa construção teórica, podemos avançar para apresentar as bases
práticas da Didática Freiriana como reinvenção do Método Paulo Freire e suas
partes intrínsecas, como ela está articulada internamente e o que julgamos mais
inovador nesse ensaio é como os educadores – na escola, na universidade, na Edu-
cação Popular – podem usar a Didática Freiriana em seus trabalhos pedagógicos.
Pedagogia da reinvenção
A Didática Freiriana como a pensamos está organizada em dez pedagogias e
também em quatro momentos, que vamos apresentar a seguir. Esta organização é
analítica, ou seja, serve para estudarmos a didática freiriana e compreendê-la. No
cotidiano dos espaços pedagógicos pode sofrer, e normalmente sofre, mudanças de
percurso, de execução e até pode ser afetada, recriada pela criatividade do educa-
dor ou educadora que ajustará a didática freiriana a sua especificidade. Tudo isso
sem perder a essência que compartilhamos.
O primeiro momento chamamos de Momento Propedêutico e é composto
pelas pedagogias da acolhida e pela pedagogia da pergunta. Neste momento, o/a
educador/a faz sua aproximação com a sua turma e a acolhe com alguma dinâmica
de grupo, um jogo coletivo para descontrair e “quebrar o gelo”. Mas também recebe
seus educandos e educandas por inteiro, demonstra que está de braços abertos
para construir um espaço pedagógico plural, múltiplo. Consolida a ideia de que
diversidade cabe e é bem-vinda neste ambiente unificador.
Como dissemos, duas pedagogias compõem este momento. A primeira é a pe-
dagogia da acolhida, entendida aqui como momento da humanização. A acolhida
é a dialetização das duas grandes dimensões humanas: a afetividade e a racionali-
dade. Acolher é respeitar o conhecimento dos outros – popular, acadêmico-científi-
co, místico-religioso –, é proporcionar o diálogo de saberes. Se recepciona a pessoa,
também as suas ideias. A segunda pedagogia que compõem o momento introdutó-
rio é a pedagogia da pergunta, que é o diálogo feito práxis, é curiosidade que se
externaliza na palavra, como assinala Guerrero (2010, p. 53): “Todo conhecimen-
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to começa pela pergunta”. A pergunta desperta a curiosidade e a criatividade do
educando. A pedagogia da pergunta é a antítese da pedagogia tradicional que se
sustenta na estratégia da resposta pronta, antidialógica e opressora.
O segundo momento da didática freiriana é o Momento Investigativo. Ele é
composto pela pedagogia do tema gerador, pedagogia da contextualização e pedago-
gia da reflexão. É hora de começar a identificar e analisar o mundo dos educandos
e educandas (que é o mundo do educador/a também), para iniciar o desenho do
conteúdo programático. Este deve emergir e estar conectado com a realidade da
turma. Esse contexto concreto é a base sobre a qual se construirão os próximos
passos do processo pedagógico. Só faz sentido refletir, se refletirmos sobre o mundo
no qual estamos inseridos, e não simplesmente elucubrar sobre abstrações que não
poderemos intervir e transformar.
Vamos ver as pedagogias que conformam este momento pedagógico. Começa-
mos pela pedagogia do tema gerador, que é uma das originalidades da peda-
gogia freiriana, ele é resultado da reflexão crítica em torno das situações-limites,
da codificação do universo vocabular e das temáticas significativas dos grupos que
vamos trabalhar. A pedagogia do tema gerador é o momento da continuidade da
reflexão do que emerge da pedagogia da pergunta. Na pedagogia da contextua-
lização, entendemos que o conhecimento se constrói a partir do contexto concreto.
Esse momento de contextualização é preparatório para pensar as ações de mudan-
ça, é o tempo de aprofundar a leitura de mundo, contextualizando o saber que é
produzido no diálogo libertador. Adiante, encontramos a pedagogia da reflexão.
Refletir é pensar de forma crítica sobre alguma realidade ou algum objeto, é um ato
de autonomia intelectual, exige do sujeito a responsabilidade epistemológica para
captar da melhor forma possível a totalidade de aspectos que se manifestam no
real. A reflexão é a antecipação da ação transformadora, ato coletivo e emancipa-
dor, que projeta a possibilidade da concretude da mudança das pessoas e do mundo.
Chegamos ao terceiro momento da didática freiriana, o Momento Proposi-
tivo. Ele é composto por mais três pedagogias, a pedagogia da investigação temá-
tica, pedagogia da práxis e a pedagogia da sistematização. É chegada a hora de
modelar a operatividade de nossa intervenção pedagógica. Temos já os elementos
necessários para a práxis educativa, construídos nos momentos anteriores. Esta
práxis deve se dedicar aos problemas encontrados no diálogo entre educador/a e
educandos/as, em vista de soluções que sustentem uma transformação estrutural.
Agir e refletir, refletir o agir. Sistematizar a prática para poder fazer ainda melhor,
este é o momento.
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A pedagogia da investigação temática, que é uma das que compõem este
momento pedagógico, dedica-se a nos levar à ação transformadora sobre a reali-
dade refletida. É aqui que há um aprofundamento da leitura de mundo para com-
preender melhor o mundo para agir e mudar. Precisamos avançar depois do diálogo
e da construção do conhecimento enquanto ato pedagógico libertador, para a orga-
nização da práxis coletiva. A pedagogia da práxis implica na ação-reflexão-ação
como processo de descoberta coletiva do mundo, do pronunciamento do mundo que
queremos, da concretização dos atos-limites transformadores, da superação das
situações-limites e da projeção dos inéditos viáveis. A pedagogia da sistemati-
zação exige que o processo seja sistematizado, que o diálogo em torno do objeto do
conhecimento possa ser acessado por todos e todas, precisa ser publicizado, publi-
cado, escrito. Precisa retomar o pretexto de origem da discussão em proximidade
com o debate do contexto concreto que se faz texto através do diálogo intersubjetivo,
numa “reconstrução ordenada da experiência” (JARA, 2006, p. 22).
Finalmente, no quarto momento da didática freiriana, temos o Momento de
Fechamento. Composto pelas pedagogias do diálogo e da gratidão, é o momento
que encaminha o encerramento do ciclo pedagógico. Fechar um ciclo é sinal de que
seus objetivos foram concluídos, conquistados e que podemos nos despedir, mais
completos, mais plenos, renovados e animados em nossa mística coletiva. Neste
momento da didática freiriana, temos a presença de pessoas mais maduras, que se
dispuseram a um percurso formativo comum desafiador. Por isso, é um tempo de
abertura a novas possibilidades diante de aprendizagens construídas no coletivo.
Duas pedagogias se apresentam aos envolvidos neste momento. Primeiro, a
pedagogia do diálogo. Nota-se que o conhecimento acontece na interação comu-
nicativa entre os sujeitos, mediatizados no mundo e com o mundo, e possui uma
condição dupla para se efetivar: “[...] uma, cognoscitiva, a apreensão da realida-
de; outra, comunicativa, o diálogo em torno do significado e sentido da realidade
apreendida e ressignificada [...]” (BRUTSCHER, 2005, p. 88). Precisamos dialogar
com os outros sobre os nossos saberes para legitimar e aprofundar nossa compreen-
são da realidade. Depois, temos a pedagogia da gratidão. Ela nos recorda que
não produzimos nada sozinhos, que somos seres de relação, intersubjetivos, inter-
dependentes. Nesse sentido, precisamos ser gratos, dizer obrigado a quem caminha
junto, lado a lado, mão na mão. Isso atrai mais gente, é parte da pedagogia do
encantamento e da alteridade, torna-se pedagogia da gratidão.
No Quadro 1, temos uma síntese dos quatro momentos que acabamos de ver.
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Quadro 1 – Quatro momentos da didática freiriana
Momento Propedêutico Momento Investigativo Momento Propositivo
Momento de
Fechamento
Pedagogia da Acolhida
Pedagogia do Tema
Gerador
Pedagogia da Investigação
Temática
Pedagogia do Diálogo
Pedagogia da Pergunta
Pedagogia da
Contextualização
Pedagogia da Práxis
Pedagogia da
Gratidão
Pedagogia da Reflexão Pedagogia da Sistematização
Fonte: elaboração dos autores.
Entre cada um desses momentos da didática freiriana, propomos aos educa-
dores e educadoras uma Pausa Pedagógica, que é um breve momento no qual você
deve parar, pensar e anotar as aprendizagens que o momento proporcionou. Assim,
não se perde as primeiras impressões ao longo do processo. Ela está encaixada sem-
pre entre os momentos. No meio do processo é um bom momento para se fazer esses
registros e não perder o “fio da meada”. Pensamos que, dessa forma, o processo se
mantém mais presente e não se dilui na caminhada. Essa pausa é especialmente
útil em processos mais longos, pois é natural que não decoremos tudo na nossa ca-
beça, como se fôssemos gravadores. Como já afirmado por Dickmann (2019, p. 76):
O resgate do passo a passo, do conteúdo, das dinâmicas de grupo, dos diálogos, do método
usado é útil para não perdermos o acúmulo da caminhada. Uma pausa pedagógica poten-
cializa o que vai ser ensinado a seguir, pois os educandos e o educador refrescam as suas
memórias e prosseguem com a compreensão dos temas mais nítidos.
Não se avança sem ter a certeza de que todos estamos aprendendo ao avançar.
Nesse sentido, a pausa pedagógica ajuda a rememorar o passo a passo realizado
até cada parada e reforça o que será ensinado na sequência do processo. Desde que
acrescentamos a pausa pedagógica em nossos processos, notamos uma força maior
nos encontros. Nossos novos saberes vão se ajustando na prática e na reflexão, no
uso desses conhecimentos. A pausa pedagógica garante que consigamos acumular
mais saberes. Experimente!
***
Como processo em construção, vislumbramos o uso da didática freiriana em,
pelo menos, três formas em nosso quefazer pedagógico. Não determinamos qual é
a melhor maneira de usá-la, pois nós não conhecemos tão profundamente sua rea-
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lidade a ponto de dar esta orientação. Contudo, acreditamos que os três caminhos
poderão nos levar ao mesmo ponto com o passar do tempo.
As três formas são: 1) como uma estratégia pedagógica, iluminando todas as
suas ações e intervenções pedagógicas; 2) como um percurso educativo, a ser utili-
zado de forma sequenciada, da primeira pedagogia até a última; 3) como uma caixa
de ferramentas, numa visão mais livre, podendo utilizar as pedagogias conforme
a necessidade pedagógica assinalar. Veja qual pode ser a sua postura pedagógica
perante a didática freiriana.
Estratégia Pedagógica: quando nos referimos à estratégia, queremos dizer
que você recorrerá à didática freiriana como uma diretriz para suas atividades
pedagógicas. Sempre que você estiver em dúvida do que fazer, sempre que tiver
que modelar alguma intervenção, você lembrará dos princípios presentes nas dez
pedagogias que compõem a didática freiriana.
Esta perspectiva coloca a didática freiriana no campo estratégico, como seu
próprio nome diz, ou seja, ela iluminará sua ação como uma diretriz centralizado-
ra, não deixando você se perder. Será seu farol, conduzindo você de forma segura no
seu quefazer educativo. Dessa forma, você não desliza de uma intervenção crítica e
criticizante e terá a seu favor a pedagogia freiriana como suporte.
Fazer da didática freiriana nossa estratégia pedagógica é ter clareza de que
tipo de intervenção educativa estamos dispostos a concretizar. Um modo de educar
transformador, em que a realidade se impõe ao espaço educativo como ponto de
partida e de chegada numa visão dialética do mundo, em que tensionamos para
transformar e somos tensionados por esta realidade com vistas a sua manutenção.
Percurso Educativo: pode-se, também, usar os quatro momentos e as dez
pedagogias como um caminho gradual para preparar as ações educativas. Iniciar a
jornada com a pedagogia da acolhida e finalizar com a pedagogia da gratidão. Esta
visão de percurso é muito útil enquanto estamos aprendendo e dominando as dez
pedagogias, num processo de aproximação da didática freiriana.
Imagine-se preparando uma intervenção pedagógica. Planeje-a em seus qua-
tro momentos, passo a passo. Como podemos introduzir para acolher a turma e
estimular os primeiros diálogos? Como vamos iniciar a fase investigativa e extrair
as informações que precisamos? Como podemos modelar, com a participação dos
educandos/as, as ações concretas? E, por fim, como dialogar e agradecer no fecha-
mento de sua jornada.
Repare que, desta maneira, vamos passando cada uma das pedagogias cons-
tituintes da didática freiriana. Ao vivenciá-las, aprendemos a dominar seu sentido
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e sua função no percurso formativo. Depois de algumas execuções, podemos nos
sentir mais seguros para usar a imaginação e a criatividade para ousar e construir
nosso próprio percurso. Somente devemos tomar cuidado para não deixar faltar
algum elemento que a turma precise para compreender o tema estudado. A criati-
vidade deve ser usada com responsabilidade, mas, por certo, que deve ser usada.
Caixa de Ferramentas: neste cenário, podemos ter duas dinâmicas. Na pri-
meira, podemos já estar utilizando algumas das dez pedagogias no nosso quefazer
pedagógico de forma intuitiva, e, então, vamos acrescentando as demais com o
decorrer do tempo até acumular todas e ter certeza de que cada uma delas se fez
presente no processo educativo; na segunda, podemos ver as dez pedagogias de for-
ma – mais ou menos – isolada e utilizar aquela que for mais útil em determinada
ocasião. Numa abertura de turma nova, por exemplo, pode intensificar a pedagogia
da acolhida, enquanto que numa turma que já está mais tempo junto pode aprofun-
dar os diálogos com a pedagogia da reflexão e da investigação temática.
Temos presente que educadores/as, ao tomarem contato com a proposta da
didática freiriana, poderão estar no meio de um processo com alguma turma, e,
para nós, não faz sentido parar tudo e recomeçar do zero com a didática freiriana.
Portanto, a visão de uma “caixa de ferramentas” pode ser útil no sentido de enri-
quecer a intervenção pedagógica a partir de onde já nos encontramos.
Cabe também trazer uma característica da caixa de ferramentas. Ela depen-
de da ação humana para realizar seu potencial. Vejamos, podemos ter a nossa
disposição a didática freiriana com suas dez pedagogias, seus quatro momentos
pedagógicos, mas, se não agirmos de forma a dar concretude a essas possibilidades,
nada acontecerá. Tenhamos isso sempre no nosso horizonte, a didática freiriana
prescinde do nosso compromisso de fazer, de nossa tarefa educativa consciente.
Pedagogia da (in)conclusão
O objetivo principal deste texto era fazer uma retomada da nossa práxis his-
tórico-pedagógica e, com isso, elucidar as bases teórico-práticas da Didática Frei-
riana, tendo em vista que ainda é um processo em construção, estando aberto à
contribuição de outros educadores para dar a ela mais consistência. Como demons-
tramos, ela está embasada em três matrizes teóricas muito claras: a Teologia da Li-
bertação, a Filosofia da Libertação e a Educação Libertadora. Todas com raízes nos
movimentos críticos da América Latina, com início nos anos 1960-1970, dos quais
nós construímos uma amálgama densa para a reinvenção da práxis freiriana.
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Nesse caminho, é pertinente ao final do trabalho apresentarmos algumas con-
siderações indicativas de como utilizar a Didática Freiriana na prática cotidiana,
como forma propositiva de ilustrar aos/às educadores/as – lembrando sempre que
essa prática não pode estar descolada da teoria crítica apresentada no referencial
que a embasa:
a) fazer oficinas pedagógicas utilizando a Didática Freiriana como um per-
curso metodológico – uma espécie de começo, meio e fim – do encontro, per-
mitindo saber exatamente o que fazer em cada momento;
b) realizar cursos on-line sobre Paulo Freire e seu Método, tendo a Didática
Freiriana como pano de fundo dos encontros, podendo constituir-se como
uma série de eventos ao vivo, transmitidos pelas plataformas digitais;
c) promover sistematizações de experiências pedagógicas por meio de ar-
tigos científicos, trabalhos de conclusão de curso, dissertações e teses, tendo
a metodologia de Freire e a Didática Freiriana como aporte epistêmico-me-
todológico;
d) motivar os educadores populares a resgatar seu papel de protagonistas e
lideranças revolucionárias, reanimando sua práxis e reencantando sua ação
educativa a partir da Didática Freiriana.
Independentemente das diversidades de formas de fazer ou dos usos que se
darão para a Didática Freiriana, o presente texto tem a intenção de dar fundamen-
tos a uma prática baseada na Pedagogia do Oprimido de Freire e que se amplia nos
aspectos filosóficos e teológicos dos criadores dessa didática em específico.
Espera-se que os leitores venham a aderir à Didática Freiriana, ampliando
as experiências com ela, diversificando seus usos, possibilitando novas reflexões,
inserindo e extraindo “pedagogias”, a fim de aprimorá-la, contribuindo para a rein-
venção do Método de Paulo Freire e a disseminação de seu legado, mais de 20 anos
depois de sua morte e 50 anos depois da Pedagogia do Oprimido.
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As contribuições da pedagogia do oprimido para a educação preventiva integral
1
Las contribuciones de la pedagogía de la educación preventiva integral oprimida
Contributions from the pedagogy of the oppressed to integral preventive education
Araci Asinelli-Luz
*
Michelle Popenga Geraim Monteiro
**
Tatiane Delurdes de Lima-Berton
***
Resumo
O presente artigo tem como objetivo enfatizar as contribuições da obra Pedagogia do Oprimido (1979, 1987) para
a prática da Educação Preventiva Integral na infância e adolescência. Este artigo é uma pesquisa de cunho qua-
litativo e teórico, tendo como metodologia o estudo bibliográco. No contexto social e educacional, em defesa
de uma educação humanizadora, problematizadora com base na conscientização, colaboração e participação,
Paulo Freire motiva discussões sobre a educação transformadora, ligando-a a possibilidades de ação e diálogo,
que constrói e reconstrói o sujeito, pois, ao expressar-se por meio da palavra, o indivíduo cria/recria o mundo.
É nesse processo que acontece a emancipação de forma coletiva, pois a educação está intrinsecamente ligada
à transformação social. Por isso, acredita-se que pensar por esta ótica aumenta a chance concreta de uma reali-
dade educativa melhor para crianças e adolescentes, especialmente aquelas que se encontram em situações de
vulnerabilidade e/ou risco social, implicando em uma ordem ética com justiça social, em favor da minimização
das violências (física, psicológica, moral, estrutural...) no âmbito escolar por meio de ações preventivas que va-
lorizem a humanização.
Palavras-chave: Humanização. Paulo Freire. Prevenção. Transformação social.
*
Doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo, mestrado em Educação pela Universidade Federal do Para-
ná. Professora associada 4 junto ao Departamento de Teoria e Prática de Ensino, Setor de Educação da Universidade
Federal do Paraná. Atua na formação inicial e continuada de professores. Membro do PRONEA e da Comissão Nacio-
nal do PNLD pela SBPC e ex-secretária regional da SBPC no Paraná. E-mail: michellepgmonteiro@gmail.com; Orcid:
https://orcid.org/0000-0001-5880-054
**
Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Paraná, mestre em Educação pela Universidade Federal do
Paraná. Atuou como professora colaboradora na Universidade Estadual do Paraná, campus Curitiba I, Escola de Mú-
sica e Belas Artes do Paraná, cursos de Licenciatura em Música e Artes Visuais e na Prefeitura Municipal de Curitiba.
E-mail: mizinhadobru@yahoo.com.br; Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3058-8987
***
Doutoranda em Educação na Universidade Federal do Paraná; Mestre em Educação pela Universidade Federal do
Paraná. Atuou na Prefeitura Municipal de Campo Largo como Educadora Social com crianças, adolescentes, jovens,
adultos e idosos no Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos. E-mail: tati8lima@gmail.com; Orcid: https://
orcid.org/0000-0001-6653-2593
Recebido em 28/02/2020 – Aprovado em 05/10/2020
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i3.12377
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Resumen
Este artículo pretende enfatizar las contribuciones de Pedagogia do Oprimido (1979, 1987) a la Educación Pre-
ventiva Integral en la infancia y la adolescencia. Este artículo es una investigación cualitativa y teórica, que utiliza
el estudio bibliográco como metodología. En el contexto social y educativo, en defensa de problematizar la
educación basada en la conciencia, la colaboración y la participación, Paulo Freire motiva las discusiones sobre
la educación transformadora, vinculándola a las posibilidades de acción y diálogo, que construye y reconstruye
el tema, porque al expresar a través de la palabra, el individuo crea / recrea el mundo. Es en este proceso que la
emancipación se lleva a cabo colectivamente, ya que la educación está intrínsecamente vinculada a la transfor-
mación social. Por lo tanto, se cree que pensar desde esta perspectiva aumenta las posibilidades concretas de
una mejor realidad educativa, lo que implica un orden ético con justicia social, a favor de minimizar la violencia
en el entorno escolar a través de acciones preventivas que valoren la humanización.
Palabras clave: Humanización. Paulo Freire. Prevención. Transformación social.
Abstract
This article aims to emphasize the contributions of Pedagogia do Oprimido (1979, 1987) to Integral Preventive
Education in childhood and adolescence. This article is a qualitative and theoretical research, using bibliogra-
phic study as methodology. In the social and educational context, in defense of na problematizing education
based on awareness, collaboration and participation, Paulo Freire motivates discussions about transformative
education, linking it to possibilities of action and dialogue, which builds and reconstructs the subject, because
by expressing himself if through the word, the individual creates / recreates the world. It is in this process that
emancipation takes place collectively, as education is intrinsically linked to social transformation. Therefore, it
is believed that thinking from this perspective increases the concrete chance of a better educational reality,
implying an ethical order with social justice, in favor of minimizing violence in the school environment through
preventive actions that value humanization.
Keywords: Humanization. Paulo Freire. Prevention. Social transformation.
Introdução
O ser humano, em sua existência, busca pela evolução. Porém, há manifes-
tações de vulnerabilidade que podem provocar dificuldades e/ou riscos para seu
desenvolvimento. Considera-se que, por ser vulnerável, há influências internas e
externas advindas de deficiências de múltiplas naturezas, aflições, dificuldades
sem defesa. Há fatores que influenciam o contexto em que está inserido, como,
por exemplo, a globalização: um sistema socioeconômico que não possui oposições,
oportunizando que não sejam construídas referências de apoio às classes menos fa-
vorecidas. Nessa perspectiva, a vulnerabilidade se manifesta de muitas maneiras,
em diversas fontes que condicionam a existência (ROMERO, 2009).
Na esfera biológica, o ser humano está sujeito a todos os tipos de doenças, em
que, com o aumento da longevidade, os problemas sociais se agravam – há preva-
lência de doenças em idades mais avançadas e em classes de menor escolaridade.
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O aumento descontrolado da população humana, falta do desenvolvimento de auto-
consciência dos sujeitos devido a escassa escolarização das classes populares; ten-
dência de deixar o atendimento médico da população no viés da privatização; oferta
de serviços públicos deficientes/inexistentes; grande concentração da população
nas cidades, aumentando a fonte de conflitos. Em relação às esferas psicológica e
social, existem perturbações associadas à depressão, ansiedade, estresse e de refle-
xo do sistema orgânico, a primazia de interesses materiais dominantes no sistema
social acarretam em sujeitos consumidores e produtores de “coisas”; há a produção
massiva; descuido do ambiente físico; estímulo à aquisição de bens de consumo e
divertimentos alienantes, luta pela sobrevivência, direitos humanos violados, bem
como a exposição a diversos tipos de violência (ROMERO, 2009).
Tratando-se do desenvolvimento humano e das influências que sofre direta
e indiretamente, as crianças e adolescentes se tornam ainda mais vulneráveis. A
questão da violência, que está disseminada na sociedade contemporânea, talvez
seja hoje um dos principais problemas que deve ser superado pelas por meio das
mais diversas políticas públicas seus programas e ações. Dentre tantas violências
que assombram a realidade e impedem a garantia dos direitos fundamentais de
crianças e adolescentes, há, por exemplo, as de natureza psicológica, cujas carac-
terísticas envolvem as condutas que afetam o âmbito psicológico, causando abalo
emocional e diminuição da autoestima, devido promoção de constrangimentos, hu-
milhações, manipulações e ameaças. A de natureza moral envolve casos de calúnia,
injúria e difamação, enquanto a violência de natureza física atinge a integridade ou
saúde corporal. Ainda, a violência de natureza sexual envolve as agressões e abu-
sos que obrigam a criança/adolescente a manter ou a participar de relação sexual.
Além dessas violências, há também as discriminatórias, estrutural, de negligência,
abandono, bullying, cyberbullying, dentre outras (MONTEIRO; LIMA-BERTON;
ASINELLI-LUZ, 2019).
Tratando-se de vulnerabilidades, a infância e a adolescência são marcadas
por momentos de fragilidades e dependência humana, o que as torna socialmente e
emocionalmente fragilizadas. Nesse sentido, considerando os desdobramentos que
envolvem as vulnerabilidades e desigualdades presentes, diversas são as violên-
cias que implicam na infância e na adolescência, destacando as inúmeras violações
de direitos por que passam, a considerar as violências intrafamiliares, sociais, es-
truturais, entre pares e tantas outras (LIMA-BERTON; MONTEIRO; ASINEL-
LI-LUZ, 2019). Porém, em relação à escola, pesquisadores (LOPES NETO, 2011;
MONTEIRO, 2017b; TOGNETTA, 2013; SALMIVALLI, 1999, 2010, 2014) têm se
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preocupado com o aumento das violências e a dimensionalidade que elas atingem
entre os estudantes.
Não se trata de um assunto novo, nem tampouco de fácil compreensão e in-
tervenção, principalmente em se tratando de crianças e adolescentes. Os males
que as violências acarretam devem ser contestados em qualquer situação, pois o
fato de dependerem dos adultos e serem frágeis e vulneráveis justifica mais, e não
menos, investimentos em medidas de prevenção e proteção, sendo assim, nenhuma
violência contra crianças é justificável e toda ela pode ser evitada. Para Pinheiro
(2010, p. 15), a exposição à violência “pode gerar inabilidades sociais que podem
perdurar por toda a vida e também problemas emocionais e cognitivos, obesidade e
comportamentos de risco em relação à saúde [...]”.
Refletir sobre o desenvolvimento humano na infância e na adolescência e, em
especial aquelas em situação de vulnerabilidade e/ou risco social, demanda da dis-
cussão e da prática de uma educação emancipatória e de constante provocação da
consciência crítica social, uma vez que as crianças e adolescentes precisam tor-
nar-se agentes de transformação, não apenas do contexto em que estão inseridas,
mas, principalmente, das próprias vidas. Na busca por referenciais que auxiliem e
inspirem na promoção do desenvolvimento e dos direitos humanos, há as grandes
contribuições do educador brasileiro Paulo Freire. Dentre tantas obras instigado-
ras, Pedagogia do Oprimido (1987) foi escolhida como base para o presente estudo,
porque é aquela que se identifica com o chamamento à lucidez para a produção de
uma cultura de liberdade e transformação social, tendo a educação como problema-
tizadora e, como suporte, a leitura do mundo e o desenvolvimento de uma eman-
cipação e uma consciência crítica social. Em meio a um contexto caracterizado por
desigualdades e opressões que foram marcados pelas condições históricas sociais e
humanas, é uma obra que mobiliza sentimentos e ações em prol da cidadania por
via da Educação. Neste estudo, têm-se a criança na condição de oprimida, que em
meio a tantos opressores (que podem estar na família, na escola, na comunidade ou
em outros espaços de interação), busca-se o seu desenvolvimento pleno e a garantia
dos direitos fundamentais.
Por meio da leitura dessa obra, pode-se fazer uma reflexão acerca das desigual-
dades e violências, físicas, sociais e estruturais, ocasionadas no âmbito da infância
e adolescência, em todas as camadas sociais brasileiras e que são manifestadas por
meio de situações cotidianas que são vivenciadas, em especial, aquelas crianças e
adolescentes que são desprovidas socialmente, que se encontram em um contexto
de vulnerabilidade, risco social. Assim, há um consenso por um movimento que
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busca a valorização da justiça social, pois estas lutam por melhorias na qualidade
de vida e na distribuição de oportunidades para equalizar a população e pelas dis-
cussões preventivas, fortalecendo o desenvolvimento humano no que diz respeito a
mudanças de atitudes e condutas em prol da valorização do ser humano. Em se tra-
tando de vulnerabilidades, a infância e a adolescência são marcadas por momentos
de fragilidades e dependência humana, o que as torna social e emocionalmente
fragilizadas. Nesse sentido, considerando os desdobramentos que envolvem as vul-
nerabilidades e desigualdades presentes, diversas são as violências que implicam
na infância e na adolescência, destacando as inúmeras violações de direitos por que
passam, a considerar as violências intrafamiliares, sociais, estruturais, entre pares
e tantas outras (LIMA-BERTON; MONTEIRO; ASINELLI-LUZ, 2019). Porém, em
relação à escola, pesquisadores (LOPES NETO, 2011; MONTEIRO, 2017b; TOG-
NETTA, 2013; SALMIVALLI, 1999, 2010, 2014) têm se preocupado com o aumento
das violências e a dimensionalidade que as mesmas atingem entre os estudantes.
Depois da família, a escola é o segundo ambiente de maior convivência entre
pares e de manifestações de experiências coletivas, de formação de identidades e de
aprendizado cognitivo e social. Por isso, o ambiente escolar deve proporcionar aos
estudantes nele inseridos, o desenvolvimento humano necessário. A escola, enquan
-
to instituição social, promotora da socialização, reflete os conflitos e as diferenças
que surgem por meio dos tipos e das possibilidades de relacionamentos existentes
e repercute as transformações que acontecem no mundo, lidando com diferentes
implicações. O preparo dos estudantes para superarem as adversidades que apare
-
cem neste percurso por meio de ações preventivas é fundamental, em especial na
formulação de soluções para a resolução de conflitos (DESSEN; POLONIA, 2007).
Diante disso, acredita-se que a chave para a efetivação de ações preventivas
eficazes é a educação transformadora, com o foco na busca da construção do sujei-
to. Sendo assim, essas considerações conduzem o presente artigo para a seguinte
questão norteadora: de que forma a Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire pode
contribuir com a prática de uma Educação Preventiva Integral na infância e ado-
lescência? Pensa-se na perspectiva da Pedagogia Social, de modo a construir diálo-
go e transformação social por meio da Educação – essa, humana e humanizadora.
E para o presente artigo, assume-se a dimensão humanizadora de prevenção,
indicando-a como processo de conhecimento, crescimento e desenvolvimento do ser
humano como um todo. Evidenciam-se, neste estudo, a criança e o adolescente, com
as suas condições biopsicossociais, em universos históricos, políticos, econômicos
e sociais, refletindo principalmente sobre as que estão em situações de vulnerabi-
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lidade e/ou risco social. Pensa-se na perspectiva da Pedagogia Social, com objeti-
vo geral de salientar as contribuições da Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire
para a prática de uma Educação Preventiva Integral na infância e adolescência.
Desse modo, tem-se como objetivos específicos: reforçar a importância dos estudos
de Paulo Freire para a promoção da educação problematizadora/transformadora;
evidenciar a Educação Preventiva Integral para o desenvolvimento humano na
infância e adolescência; relacionar a Pedagogia do Oprimido à prática da Educação
Preventiva Integral; reconhecer a importância da prevenção e do diálogo no proces-
so educativo da criança e do adolescente.
Portanto, o artigo compõe-se de um estudo que abrange a educação trans-
formadora, problematizadora, humanizadora de Paulo Freire, capaz de inspirar
educadores e educandos a construírem juntos uma relação horizontal, a fim da
promoção da educação preventiva integral e que, consequentemente, auxilie na
minimização das violências sofridas na infância e adolescência. Trata-se de um es-
tudo qualitativo e teórico, na perspectiva freiriana. Nesse âmbito, a relevância do
estudo na área educacional justifica-se em razão da produção de conhecimento no
campo teórico-metodológico para a comunidade escolar e científica, como forma de
reflexão sobre as relações sociais, além de tornar-se um meio de suscitar discussões
entre sociedade acadêmica e demais agentes inseridos no campo da educação. Ade-
mais, reforça a importância da garantia e preservação dos direitos fundamentais
das crianças e adolescentes, na prevenção de violências e, na atuação de retirá-las
da condição de oprimidas, na busca de oportunizar o seu desenvolvimento pleno.
A pedagogia do oprimido no contexto da educação preventiva integral: infância e
adolescência
O conhecimento nas áreas da infância e adolescência tem ganhado destaque
e notoriedade nos últimos tempos e trazem diversas possibilidades de atuação em
relação à proteção e aos direitos fundamentais desses sujeitos. Por serem conside-
rados indivíduos vulneráveis, as crianças e adolescentes estão mais suscetíveis às
violências, em uma condição de oprimidas. E essas fragilidades podem relacionar-se
à submissão em relação ao adulto, em que este pode comportar-se como opressor,
da subestimação das potencialidades na infância e na adolescência, bem como da
não importância dessas fases para a construção da identidade e da sociabilidade na
condição de seres humanos. Essas fragilidades envolvendo crianças e adolescentes
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se aproximam do pensamento de Paulo Freire (1987, p. 16), ao destacar o processo
de desumanização envolvendo o opressor, a opressão, as violências, as injustiças
sociais que distorcem a real humanização: “a desumanização, que não se verifica
apenas nos que têm sua humanidade roubada, mas também, ainda que de forma
diferente, nos que a roubam, é distorção da vocação do ser mais”. Nesse âmbito,
é necessário realizar reflexões sobre as violências sociais e estruturais, sobre as
desigualdades que são geradas por fatores históricos, sociais e econômicos, assim
como dos caminhos a se promover a prevenção e, consequentemente, a justiça e a
igualdade (MONTEIRO; LIMA-BERTON; ASINELLI-LUZ, 2018).
Santomé (1998, p. 131-135) expressa:
As culturas ou as vozes dos grupos sociais minoritários e/ou marginalizados, que não dis-
põem de estruturas importantes de poder costumam ser silenciadas, ou mesmo estereoti-
padas e deformadas para anular suas possibilidades de reação. Entre essas culturas ausen-
tes podemos destacar as culturas infantis e juvenis. [...]. Uma instituição escolar que não
conseguir vincular essa cultura juvenil que os jovens vivem tão apaixonadamente em seu
ambiente, em sua família, com seus amigos e amigas, etc., com as disciplinas mais acadê-
micas do currículo, está deixando de cumprir um objetivo assumido por todo mundo, que é o
de ligar as instituições escolares ao ambiente, como única maneira de ajudar os estudantes
a melhorar a compreensão de suas realidades e a comprometer-se com sua transformação.
As reflexões sobre os aspectos sociais, econômicos e educacionais presentes na
sociedade, trazem a discussão de dois aspectos importantes que Paulo Freire em
sua obra Pedagogia do Oprimido aborda: de um lado a educação bancária, que se
mostra por meio da opressão da classe dominante em detrimento a humanização; e
do outro, a educação libertadora, que enfatiza a transformação do sujeito, por meio
da reflexão crítica social (MONTEIRO; LIMA-BERTON; ASINELLI-LUZ, 2018).
Por isso, a violência presente no ambiente escolar, local no qual acontece grande
parte das interações e socializações entre pares, também ganha relevância nas
pesquisas, pois é considerado um problema social que tem gerado preocupações em
diversos setores sociais devido a sua gravidade e disseminação.
A educação bancária transforma o processo educativo em um simples depósito
de informações e considera o estudante como passivo e inerte. Em contrapartida,
a educação libertadora visa ao exercício da ação educativa como liberdade, consti-
tuindo-se de reflexões críticas, éticas e solidárias, em que os sujeitos do processo
educacional trabalham em respeito e diálogo. Nesse processo, a medida que o su-
jeito reconhece a sua capacidade de leitura do mundo e de adaptação às demandas
sociais, há possíveis transformações. Por isso, há a necessidade da construção da
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liberdade ao lado da generosidade, para a assimilação da democracia em detrimen-
to da obediência e do medo (MONTEIRO; LIMA-BERTON; ASINELLI-LUZ, 2018).
O processo de superação da opressão e da violação dos direitos humanos deve nascer dos
oprimidos, sendo esse um parto doloroso, pelo qual o oprimido que quiser se libertar terá de
passar, em vista de não ser mais nem oprimido, nem opressor, mas um sujeito “livre”. Para
isso acontecer, os oprimidos precisam se dar conta de sua realidade para, então, lutarem
pela transformação da opressão, da violação (MAGRI, 2012, p. 51).
Como fator fundamental para antecipar demandas dos escolares, a prevenção
se faz necessária, no sentido de evitar que o problema seja instaurado. Preven-
ção se relaciona com acolhimento do sujeito em sua história, em seu contexto, em
suas necessidades, permitindo que seja seu próprio protagonista, atuando diante
dos desafios, a fim de enfrentá-los. A perspectiva da Educação Preventiva Integral
reforça o diálogo como mediador nas interações sociais, desenvolvendo a empatia
e reforçando o processo educativo para a liberdade e respeito ao ser humano (ASI-
NELLI-LUZ, 2014).
Como um eixo central para a promoção das relações e construções de visões
de mundo, é necessário atentar-se à efetivação da prática docente como caráter
filosófico que resgata o sujeito oprimido, que vivencia as imposições do sistema e
só consegue se libertar à medida que pensa sobre a ação. Para isso, destaca-se a
autonomia na prática do educador, para que ele consiga um exercício de docência
por meio do estabelecimento de relações mais próximas do educando, não seguindo
apenas um currículo, mas percebendo a diversidade de seus educandos, organizan-
do-se sempre na renovação da sua própria prática (refazendo-se de suas vivências).
Destaca-se que o (a) educador (a), em seu exercício, requer uma profunda com-
preensão sobre a reflexão da ação, possibilitando que se perceba no contexto, na
realidade que vive e que deve transformar, bem como da sua relação direta com o
educando (FREIRE, 1996; CARRARO; CURY, 2015).
O conceito de tensão dialética aplica-se na sequência de ações que acontecem no processo de
aprendizagem – aprender, apreender, reaprender, incorporar, avançar – e é nesse processo
que ocorrerá a construção do real, que exige uma ressignificação constante do papel desem-
penhado pelo professor que, antes de ensinar, aprende (CARRARO; CURY, 2015, p. 93).
Em relação ao ser humano, leitura crítica e mediação, o docente aprende a
aprender, tornando o saber como algo acessível, que transforma, que promove for-
mação, que transcende e que modifica o outro. A sua prática torna-se um processo
de conhecimento em nível sistemático, implicando sabedoria à medida que se ensi-
na e aprende. Logo, o educador e o educando são sujeitos em constante formação.
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Para isso, Paulo Freire (1987) evidencia como ponto de partida para a compreensão
da complexidade do ser humano o diálogo, em um processo democrático e crítico.
Nesse contexto, o diálogo é a ferramenta de aproximação e essência do indivíduo,
pois é ele que constrói vínculos, desenvolve sentidos, oportuniza novas aprendiza-
gens, forma cidadãos e promove a transformação social.
Não há diálogo, porém, se não há um profundo amor ao mundo e aos homens. Não é possível
a pronúncia do mundo, que é um ato de criação e recriação, se não há amor que o funda.
Sendo fundamento do diálogo, o amor é, também, diálogo. Daí que seja essencialmente ta-
refa de sujeitos e que não possa verificar-se na relação de dominação (FREIRE, 1987, p. 45).
Assim, destaca-se o diálogo como um mecanismo de oportunidade de intera-
ção, como uma das formas de práticas de prevenção das violências. Sendo assim,
pode-se destaca a Cultura da Paz como um dos modelos de enfrentamento das
violências, uma vez que ela enfatiza a promoção do diálogo como forma de resolu-
ção de conflitos. Assim, na discussão sobre as violências, a Cultura da Paz aparece
como fundamento e metodologia, sendo alicerce e base para as iniciativas de pre-
venção do fenômeno, se enquadrando em um modelo de educação preventiva inte-
gral, já que esta prioriza a humanização e a valorização do ser humano. Portanto,
a ênfase na sistematização nas relações de paz no interior das escolas, bem como
o aprofundamento nesta temática, é fundamental para melhorar e aprimorar os
programas e projetos de minimização e de prevenção. Partindo desses pressupostos
de prevenção, pode-se dizer que a construção da paz está relacionada ao proces-
so de práticas de convivências não violentas, dando ênfase aos valores pessoais e
sociais, estabelecidos nos pressupostos do diálogo, do respeito e da diversidade. A
partir do pensamento de Paulo Freire, demonstra-se uma postura de generosidade
e compreensão diante das diferenças sociais e culturais, tolerância e respeito à lei-
tura de mundo do outro (SALLES FILHO, 2008; MONTEIRO, 2017b; MONTEIRO;
LIMA-BERTON; ASINELLI-LUZ; 2018).
Nesse sentido, a Educação Preventiva Integral busca a promoção da formação
humana a médio e longo prazo, pois prioriza a mudança de atitudes e condutas,
uma vez que uma intervenção momentânea pode apenas alterar por um curto es-
paço de tempo a percepção do problema (ASINELLI-LUZ, 2000). A prevenção exige
planejamento a partir dos conhecimentos históricos e culturais do meio social de
que se está inserido, bem como pressupor as necessidades reais do ser humano,
valorizando a vida e priorizando as instâncias imediatas de necessidades básicas
humanas (ASINELLI-LUZ, 2000). Quem inicia o processo de avanço das violências
vividas na escola não são as crianças ou adolescentes que se envolvem, mas todo
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aquele que detém o poder de atuação e decisão neste meio e/ou sua morosidade,
impedindo que a cultura da prevenção, do chegar antes, insere-se na escola como
um instrumento de desenvolvimento da cidadania (ASINELLI-LUZ, 2000).
Não haveria oprimidos, se não houvesse uma relação de violência que os conforma como
violentados, numa situação objetiva de opressão. Inauguram a violência os que oprimem,
os que exploram, os que não se reconhecem nos outros; não os oprimidos, os explorados, os
que não são reconhecidos pelos que os oprimem como outro. Inauguram o desamor, não os
desamados, mas os que não amam, porque apenas se amam. Os que inauguram o terror
não são os débeis, que a ele são submetidos, mas os violentos que, com seu poder, criam
a situação concreta em que se geram os “demitidos da vida”, os esfarrapados do mundo.
Quem inaugura a tirania não são os tiranizados, mas os tiranos. Quem inaugura o ódio não
são os odiados, mas os que primeiro odiaram. Quem inaugura a negação dos homens não
são os que tiveram a sua humanidade negada, mas os que a negaram, negando também a
sua. Quem inaugura a força não são os que se tornaram fracos sob a robustez dos fortes,
mas os fortes que os debilitaram (FREIRE, 1979, p. 45).
Nesse sentido, vale ressaltar a importância da prevenção humanizadora na
escola, auxiliando no processo de reversão da alienação dos jovens e, em contra-
partida, promover o desenvolvimento de uma consciência crítica sobre as proble-
máticas do mundo e as que o circundam. Assim, “a prevenção pode, então, ser
entendida como uma forma de fortalecimento das relações inter e intrapessoais
(professor-aluno, aluno-aluno e cada um consigo mesmo) no âmbito da sala de aula
e da escola, a partir de um clima adequado de crescimento e valorização da vida”
(ASINELLI-LUZ, 2000, p. 57).
Enfrentar desigualdades, riscos e vulnerabilidades sociais exige conhecimen-
tos e estudos voltados à compreensão de fatores econômicos, socioculturais, psicoló-
gicos, políticos e de contextualização comunitária, a fim de elaborar e desenvolver
metodologias de ação coletiva para a superação de problemáticas. Paulo Freire
(1996) apresenta que essas relações estabelecidas pelos sujeitos permitirão a cons-
trução coletiva dos conhecimentos, havendo mudanças significativas para o exercí-
cio da criticidade, da dialogicidade e do potencial transformador.
Em conexão com a importância do diálogo e da aproximação do sujeito com
suas realidades, a Educação Preventiva Integral busca a construção individual,
social, com incentivo à troca de experiências, às interações. Como o foco é o sujeito,
suas relações, sua história de vida, retira-se a centralidade nos problemas e exal-
tam-se as potencialidades, o modo de compreensão e leitura de mundo, a consciên-
cia das ações e da condição de vida, bem como o planejamento e a construção de
projetos de vida, de protagonismos da própria trajetória. Por haver intencionalida-
de, estimula-se o desenvolvimento humano por meio de suas condições biológicas,
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físicas, sociais, políticas, culturais e essenciais, a fim de prepará-lo para o enfren-
tamento e a superação de possíveis entraves em sua trajetória (ASINELLI-LUZ,
2014; LIMA, 2017a; ALMEIDA; ARONE, 2017). Ao encontro do caráter dialógico,
transformador, crítico e político de Freire (1987), reforça-se que a educação precisa
provocar o senso crítico, as interações sociais, a reflexão, a autonomia, sendo que,
“ao contrário da bancária, a educação problematizadora responde a essência do
ser da consciência, que é sua intencionalidade, nega os comunicados e existência à
comunicação, baseada no diálogo” (1987, p. 77).
A educação não se direciona apenas à ampliação do conhecimento, mas promo-
ve à emancipação, a autonomia, a provocação de uma intencionalidade que poderá
beneficiar o plano individual e coletivo. Sua notoriedade e impacto extrapolam os
muros escolares e desenvolvem o senso crítico, político e cidadão, além de esferas
profissionais, culturais, esportivas, de saúde e lazer (TRILLA; GHANEM, 2008).
Por então se envolver na amplitude do ser e de suas características próprias e de
projeção de vida, a escola deve destacar o trabalho com as problemáticas trans-
versais e, neste caso, pode-se incluir as violências de forma geral, abordando as
temáticas com a busca de informações em fontes variadas, sistematizando o co-
nhecimento e organizando projetos que sejam contextualizados à realidade vivida.
Para o educador-educando, dialógico, problematizador, o conteúdo programático da educa-
ção não é uma doação ou uma imposição – um conjunto de informes a ser depositado nos
educandos, mas a devolução organizada, sistematizada e acrescentada ao povo, daqueles
elementos que este lhe entregou de forma inestruturada (FREIRE, 1979, p. 98).
A criança, o adolescente, o ser humano em si se constitui de processos, tempos
e contextos que precisam ser observados na grande concepção do que é o desen-
volvimento humano (BRONFENBRENNER, 2011), por isso, torna-se fundamental
que o processo da educação seja voltado para esses sujeitos e suas realidades. O
educador, na sua posição horizontal junto ao educando, precisa estimular o diálogo,
a intencionalidade, a reflexão, a consciência das ações e das relações para evitar
situações de vulnerabilidade e/ou riscos sociais e que possam prejudicar seu desen-
volvimento.
O ponto de partida da educação libertadora se caracteriza exatamente com essa dimensão
da relação do homem com a realidade em que vive pelo fato de que o processo educacional
deve ser a partir da realidade dos educandos, e não a partir das ideias do professor. O mun-
do agora não é algo sobre o que meramente se fala com falsas palavras, que se tem noções
de partes, mas é agora o mundo mediador dos sujeitos no processo educacional (MAGRI,
2012, p. 52).
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A abordagem realizada entre o educador e educando, com olhar problematiza-
dor, traz à tona a escuta e o diálogo. Essa dinâmica exige do corpo escolar uma mu-
dança no olhar, uma forma de repensar a educação a partir das demandas sociais
que surgem. O diálogo torna-se um fator fundamental para todo o processo. Na
busca pela justiça social, pela sua compreensão dentro dos contextos da socieda-
de, se faz necessário refletir sobre as demandas e potencialidades de cada sujeito.
Compreender valores, culturas, realidades fazem com que o sujeito compreenda os
processos de construção da sociedade, da cidadania e da democracia (MONTEIRO;
LIMA-BERTON; ASINELLI-LUZ, 2019).
O diálogo é a essência da emancipação humana, é sempre uma relação de iguais midia-
tizados pelo mundo. Mas, se dizer a palavra verdadeira, que é trabalho, que é práxis, é
transformar o mundo, dizer a palavra não é privilégio de alguns homens, mas direito de
todos os homens. Precisamente por isto, ninguém pode dizer a palavra verdadeira sozinho,
ou dizê-la para os outros, num ato de prescrição, com o qual rouba a palavra aos demais
(FREIRE, 1987, p. 78).
Dialogar requer esforço, atenção e dedicação dos envolvidos. É um canal de
exploração de percepções, pensamentos e novas perspectivas. Diálogo é também
prevenção, é uma atitude responsável e humanizadora: ele auxilia na compreen-
são de quem é o ser humano, de como se desenvolve, atribuindo dessa maneira,
conhecimento sobre seus comportamentos (LIMA, 2017a). O educador, presente
conscientemente no âmbito escolar precisa auxiliar o educando na superação das
problemáticas relacionadas às vulnerabilidades e riscos sociais. Não apenas focan-
do no profissional, mas principalmente no sujeito: é preciso observar o educando
como a solução, ao invés de ser o problema.
À medida que o ser humano reconhece a sua capacidade de adaptar-se às
demandas que surgem na sociedade e pensa para melhorar suas operações, ocorre
então a possibilidade de transformação. A educação, por sua vez, reforça o pensa-
mento sobre a maneira de assimilar a constituição da realidade, da cidadania, da
democracia, pois, se o autoritarismo não abre espaço, não há como se desenvolver a
liberdade. Assim, só haverá possibilidades à medida que a liberdade for construída
ao lado da autoridade e da ética ao invés da obediência e do medo. Freire (2000)
reforça a tarefa primordial de zelo e afetividade ao praticar a liberdade com autori-
dade e sem autoritarismo, educando e se educando (aceitação respeitosa) à medida
que interagem na perspectiva democrática e ética.
É preciso trabalhar em uma visão ampliada do ser. E trabalhar na perspec-
tiva da Educação Preventiva Integral reforça que a prevenção se trata do “chegar
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antes”, conhecer o sujeito e atuar antecipadamente ao problema. É estimular o
desenvolvimento pleno e suas relações sociais para que seja possível suprir suas
demandas e prevenir fenômenos que prejudiquem sua evolução. Na condição de
seres humanos, precisa-se reconhecer a existência. Freire (1987, 2000) destaca que
desde a infância a criança precisará aprender que a autonomia se autenticará no
respeito à autonomia dos outros. Para isso, os pais não devem aplicar-se à tirania
da liberdade, na qual pensam e permitem que seus filhos sejam livres sem limites.
Provocar a leitura crítica potencializa o fazer pedagógico, envolvendo a organização
de classes populares para a reinvenção da sociedade. É lutar por uma problemática
com a legitimidade de um sonho ético, político e de superação de uma realidade
injusta. Surge então, a necessidade do trabalho do educador progressista, capaz de,
humildemente, auxiliar nos desafios, a fim de possibilitar a criticidade mediante
a realidade política, histórica e social da presença no mundo. Por fim, atuando
em prol uma Educação Preventiva Integral, Paulo Freire, educador humanizado e
humanizador, instiga a reflexão de apostar e tornar possível o empoderamento do
sujeito e de seus grupos, permitindo a intervenção no mundo para transformá-lo e
não apenas para mantê-lo da maneira como está.
Considerações nais
A educação, como oportunidade de vivências e interações entre pares, esta-
belece conexão horizontal com seus agentes. Educadores e estudantes estão em
um processo intenso de ensino e aprendizagem, de interação e humanização, de
inesgotáveis possibilidades. A Educação é o caminho para a transformação do su-
jeito, para a interação social e a busca da humanização e, juntamente com ela, a
Educação Preventiva Integral, possibilita auxiliar o sujeito para a superação das
suas necessidades. Nesse sentido, pode-se afirmar a educação transformadora a
partir da realidade do sujeito como ponte para ações impactantes e efetivas em
meio àqueles que estão imersos em situações de desigualdades e vulnerabilidades
sociais, uma vez que a transformação acontece a partir da práxis.
Crianças e adolescentes, em suas condições reais, estabelecem relações com o
meio em que vive e, junto a eles, influenciam e são influenciados. Há a importância
de conhecer o processo e o contexto do sujeito para auxiliá-lo em sua construção
autônoma, bem como provocar políticas públicas de caráter protetiva, pautadas na
proximidade com a realidade: privilegiar fatores de proteção ao invés de reforçar os
fatores de risco na infância e adolescência. Faz-se necessário refletir e analisar al-
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gumas fragilidades existenciais, vividos pelos sujeitos na sociedade contemporânea
(nos colocando em conflito devido a fragilidade humana). O enfoque nos diversos
fenômenos sociais da vida urbana que caracterizam a vida diária cria um sistema
doente, de riscos e vulnerabilidades sociais. Por isso, a importância de observar a
sua própria condição vulnerável, não apenas do ponto de vista do outro, mas, prin-
cipalmente, da própria consciência na condição de um sujeito crítico, autônomo e
problematizado. Para isso, a educação, na condição de um processo transformador,
torna-se o caminho para a construção humana.
A Pedagogia do Oprimido, em sua visão libertadora, humanizadora e proble-
matizadora dos conflitos que geram opressores e oprimidos, poderia ser assumida
como um dos textos básicos para se entender e praticar a prevenção de forma efetiva
e eficaz. Compreender a infância e a adolescência como processo de desenvolvimen
-
to humano, que tem sua prática no contexto da contemporaneidade, provocando o
estudo de temas significativos e que evidenciem o diálogo como meio para as refle
-
xões coletivas, problematizando e evidenciando a palavra como caminho ético para
se cultivar a cultura das gerações pela paz. A paz se constrói por meio de atitudes
diárias, de valores humanos e sociais inseridos no cotidiano escolar. Ela se faz ne
-
cessária para o desenvolvimento de um ambiente sadio e harmonioso. A paz é ação.
Ressalta-se a importância do estabelecimento de mecanismos nas escolas que
priorizem a Educação Preventiva Integral como parte do trabalho pedagógico, in-
tegrados aos diversos temas e disciplinas que formam o currículo, enriquecendo
assim, a formação e o desenvolvimento humano, dando lugar a valores sociais e
interacionais, proporcionando a cooperação, o respeito à diferença e o diálogo. Nes-
se sentido, entende-se que a educação é o caminho para a humanização e para a
prevenção e o diálogo é um dos instrumentos que podemos utilizar como prática
pedagógica inicial para levar os estudantes à dialogicidade. A educação preventi-
va integral é um processo educativo que envolve ações de construção de conceitos
éticos e cidadãos, juntamente com os conteúdos programáticos da escola. Nesse
sentido, sem dúvida, a noção de empatia é primordial para a formação de compor-
tamentos generosos e solidários.
Ademais, pensar sobre o desenvolvimento humano, sobre infância, adoles-
cência, vai muito além das barreiras acadêmicas, uma vez que, refletindo a/na
condição de educadores, deve-se a consciência, o diálogo, em que se faz necessá-
rio aprofundar o conhecimento no ser e em suas relações/histórias de vida, para
então auxiliar no caminho de Educação Preventiva Integral. Para isso, podem-se
elaborar práticas relacionadas à construção da autonomia, da identidade e do in-
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centivo à interação social, para que gradativamente a qualidade de vida melhore.
Salientam-se as contribuições do grande educador Paulo Freire, que, com as pro-
vocações sobre a reflexão e prática da educação humanizadora, problematizadora,
de transformação social, oportuniza a construção de novos conhecimentos e o apro-
fundamento do olhar a respeito do ser, humano e de suas relações, bem como do
panorama de pesquisas envolvendo prevenção e o sujeito em sua totalidade. Com
esse trabalho de observar e discutir sobre o ser, a escola e os espaços de interação
proporcionam a formação de agentes multiplicadores, de uma postura voltada para
a Educação Preventiva Integral.
Nota
1
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Su-
perior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001”.
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As contribuições da pedagogia do oprimido para a educação preventiva integral
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Necrolia: repercussão ética, política e educacional – estudo em
Paulo Freire e Erich Fromm
Necrophily: repercussion ehtic, politic and educational – study in Paulo Freire and Erich Fromm
Necrolia: repercusión ética, política y educativa: estudio en Paulo Freire y Erich Fromm
Paulo César Carbonari
*
Resumo
O artigo faz uma reexão sobre a necrolia para compreender em parte o que tem sido o modo de agir de políti-
cos e cidadãos/as no contexto da pandemia de Covid-19. Busca em Paulo Freire, na Pedagogia do Oprimido, e na
sua fonte, Erich Fromm, O Coração do Homem, subsídios para esta compreensão. Ensaia aspectos da repercussão
ética, política e educacional e indica algumas aprendizagens necessárias para o enfrentamento da necrolia. A
tese básica é a de que a necrolia alimenta práticas que são destrutivas da vida e que se exacerbam em momen-
tos de grave crise, como o da pandemia.
Palavras-chave: Necrolia. Política. Ética. Educação. Freire. Fromm.
Abstract
The article reects on necrophilia to understand in part what has been the behavior of politicians and citizens in
the context of the Covid-19 pandemic. In Paulo Freire, in the Pedagogy of the Oppressed, and in his source, Erich
Fromm, The heart of man, he seeks subsidies for this understanding. Rehearses aspects of the ethical, political
and educational repercussions and indicates some learnings necessary to face necrophilia. The basic thesis is
that necrophilia feeds practices that are destructive of life and that are exacerbated in moments of serious crisis,
such as the pandemic.
Keywords: Necrophily. Politics. Ethics. Education. Freire. Fromm.
Resumen
El artículo ofrece una reexión sobre la necrolia para comprender en parte cuál ha sido la forma de actuar de
políticos y ciudadanos en el contexto de la pandemia Covid-19. Hace una busca en Paulo Freire, en la Pedagogía
del Oprimido, y en su fuente, Erich Fromm, El Corazón del Hombre, ofrece subsidios para esta comprensión.
Ensaya aspectos de las repercusiones éticas, políticas y educativas e indica algunos aprendizajes necesarios para
afrontar la necrolia. La tesis básica es que la necrolia alimenta prácticas destructivas de la vida y que se agudi-
zan en momentos de crisis grave, como lo que ocurre con la pandemia.
Palabras clave: Necrolia. Política. Ética. Educación. Freire. Fromm.
*
Doutor em losoa (Unisinos), mestre em Filosoa pela Universidade Federal de Goiás, professor de losoa no IFIBE
(até 2019), militante de direitos humanos (CDNPH/MNDH), coordenador do Grupo de Estudo e Pesquisa em Educa-
ção em Direitos Humanos (GEPEDH). Orcid: http://orcid.org/0000-0002-5163-8456. E-mail: carbonari@ibe.edu.br
Recebido em 12/10/2019 – Aprovado em 09/04/2020
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i3.12378
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Considerações iniciais
Paulo Freire é uma referência para a educação não só porque produziu muitas
reflexões sobre ela, mas também e particularmente, porque as reflexões que pro-
duziu são profundamente engajadas em processos e práticas. Esta condição dá à
sua obra uma situacionalidade que, porém, não fica apenas nela, já que se mostra
permanente, constituindo-se, por isso, já num clássico.
Pedagogia do Oprimido, uma de suas obras mais conhecidas, é, seguramente,
um referencial para a educação, mas não só. Ela também é um referencial para a
filosofia, para a antropologia, para a política. Poder-se-ia ousar dizer que é um refe-
rencial para diversos campos do saber, para a sabedoria. Isso não significa que não
esteja sob o escrutínio da análise crítica e nem mesmo que nossa relação com ela
seja reverencial. Seria incoerente com a própria proposta da obra agir assim. Ela é
uma referência para a crítica, para a práxis; um alimento para o que ali mesmo se
chama de “inédito viável”. E este, ou será aberto, histórico e em construção ou não
será. Por isso é que todos/as que se empenham em conhecer, estudar e discutir esta
obra, antes de tudo, se propõe a não ficar nela.
É neste sentido que nos aproximamos dela. Não o fazemos como olhar do pes-
quisador especializado e nem com o olhar do estudioso minucioso. O fazemos com
o compromisso do agente social e do aprendente. Nossa expectativa é não mais do
que considerar elementos que possam nos ajudar a compreender e a agir.
O fazemos num momento histórico de grave comprometimento das certezas
nas quais o cientificismo positivista tenta imergir a humanidade nos últimos anos.
Estamos vivendo a mais profunda vulnerabilidade ao novo coronavírus
1
e que tem
produzido em poucos meses uma das mais dramáticas condições de crise da his-
tória da humanidade. A Covid-19 se alastra pelo mundo matando aos milhares e,
enquanto é escrito este artigo, já passaram muitas dezenas dos milhares de mortos
no Brasil e no mundo.
Este contexto nos motiva a buscar no texto de Freire subsídios para compreen-
der a presença forte de ações que se orientam pela “promoção da morte” e não a
valorização da vida. Elas se expressam das mais diversas formas. Estão presen-
tes em práticas populares, mas também na expressão e na prática de autoridades
como as do presidente da república que, por repetidas vezes, minimiza a situação
e até incentiva à contaminação como forma de enfrentamento da situação. Estes
elementos nos levam a buscar na Pedagogia do Oprimido o sentido da “necrofilia”.
Buscaremos em complementação também em sua fonte para este tema, a obra O
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Coração do Homem, de Erich Fromm. É sobre ele que desenvolveremos esta refle-
xão.
O faremos em três partes: na primeira reconstruiremos o tema na Pedagogia
do Oprimido e na referência usada por Paulo Freire; na segunda exporemos o signi-
ficado em Erich Fromm, base de Freira; na terceira, nos ocuparemos de relacionar
esta questão e sua repercussão ética, política e na educação como aprendizagens
decorrentes. Esperamos, dessa forma, contribuir com as reflexões sobre a obra de
Paulo Freire e, com base nela, também contribuir com a travessia que todos/as
estamos fazendo no contexto da pandemia.
Necrolia: signicado em Paulo Freire
A ideia de necrofilia aparece pela primeira vez em Pedagogia do Oprimido
(1975), de Paulo Freire, no primeiro capítulo no contexto da análise da opressão e,
particularmente, da violência que a caracteriza, mas retorna em vários momentos
da obra. A expressão, ou derivados dela, aparece em todos os capítulos da obra.
2
Isso é uma demonstração da sua importância como recurso analítico. Vamos reto-
mar sua presença em cada momento e fazer sua apresentação, sem esquecer que
o próprio Freire se refere por várias vezes àquela que é sua fonte, a obra de Erich
Fromm.
No primeiro capítulo, que é dedicada aos elementos balizadores da concepção
de fundo a ser desenvolvida na obra, o tema da necrofilia aparece como elemento
caracterizador da prática violenta da opressão e que se traduz em uma prática
própria dela, o desenvolvimento de uma “consciência fortemente possessiva”. Para
Freire (1975, p. 48-49), “fora da posse direta, concreta, material, do mundo e dos
homens (e das mulheres),
3
os opressores não se podem entender a si mesmos. Não
podem ser”, e, em consequência, “tendem a transformar tudo o que os cerca em
objetos de seu domínio”. Essa consciência é também chamada de “consciência ne-
crófila”.
Este processo transforma os/as oprimidos/as em “coisa”: “em algo que é como se
fosse inanimado”. Tomando por base Erich Fromm, diz que esta tendência própria
dos opressores de “inanimar tudo e todos” se identifica com a “tendência sadista”,
que é entendida como uma das características da consciência opressora e de sua
“visão necrófila do mundo”. Freire cita Fromm para explicar o que ela significa: “o
fim do sadismo é converter um homem em coisa, algo animado em algo inanimado,
já que mediante o controle completo e absoluto o viver perde uma qualidade essen-
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cial da vida: a liberdade” (FROMM apud FREIRE, 1975, p. 50, tradução nossa). A
coisificação leva à destruição da liberdade, é raiz da opressão. Este é o principal
fator da necrofilia. Freire (1975, p. 50) arrematará dizendo “Por isto é que o seu
amor é um amor às avessas – um amor à morte e não à vida”. A dominação faz
“deter a ânsia de busca, a inquietação, o poder de criar, que caracterizam a vida, os
opressores matam a vida” (1975, p. 50).
A prática necrófila do opressor também se manifesta na “educação bancária”,
aquela criticada por Paulo Freire. A “educação bancária” é aquela na qual a “edu-
cação é o ato de depositar, de transferir, de transmitir valores e conhecimentos”,
ela reflete a “sociedade opressora, sendo dimensão da ‘cultura do silêncio’” (1975,
p. 67). Freire faz um elenco de características da educação bancária, cuja última
característica é que “o educador, finalmente, é o sujeito do processo; os educandos,
meros objetos”, arrematando que, “Se o educador é que sabe, se os educandos são
os que nada sabem, cabe àquele dar, entregar, levar, transmitir o seu saber aos
segundos” (1975, p. 67). Por isso é que: “No momento mesmo em que se funda num
conceito mecânico, estático, especializado da consciência e em que transforma por
isto mesmo, os educandos em recipientes, em quase coisas, não pode esconder sua
marca necrófila” (1975, p. 76).
Os oprimidos são “seres duplos”, “‘hospedeiros’ do opressor” (1975, p. 32), so-
frem uma “dualidade”: “são eles [oprimidos] e ao mesmo tempo são o outro intro-
jetado neles, como consciência opressora” – “este é o trágico dilema dos oprimidos”
(1975, p. 36). Os oprimidos se fazem “sombra” do opressor e reproduzem as práticas
do opressor (1975, p. 52), podendo até vir a ser “sub-opressor” (1975, p. 33). Isso
faz dos oprimidos pessoas com “atitude fatalista”, que se expressa na submissão ao
destino, à sina, ao fardo, que são “potências irreversíveis” – vontade divina, sofri-
mento natural. Mais do que isso, são levados a se submeterem a uma “aderência
ao opressor” (1975, p. 33), uma “irresistível atração pelo opressor” (1975, p. 53), de
modo a admirá-lo, a imitá-lo, a segui-lo (1975, p. 33 e 53), e, pelo reverso, a promo-
ver a “autodesvalia”, o que significa o desacreditar de si mesmos e da capacidade de
por si mesmos sair da situação de opressão em que se encontram e de superaram
a conivência (1975, p. 55) com ela e a dependência (1975, p. 56) dela. Esta situação
caracteriza um estado geral de “imersão” na realidade opressora (1975, p. 33), fa-
tor de inautenticidade do oprimido. Há como que um “depender” no sentido de os
oprimidos serem “dependentes emocionais” do opressor. Sendo que é “este caráter
de dependência emocional e total dos oprimidos que os pode levar a manifestações
que Fromm chama de necrófilas. De destruição da vida. Da sua ou da do outro,
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oprimido também” (1975, p. 56). Isso explica as repetições miméticas de práticas
opressoras pelos oprimidos.
Para Freire (1975, p. 56), é somente quando os oprimidos “descobrem, ni-
tidamente, o opressor, e se engajam na luta organizada por sua libertação, que
começam a crer em si mesmos, superando, assim, sua ‘conivência’ com o regime
opressor”. Ele alerta que esta descoberta da condição de oprimido é mais do que
puramente intelectual, é ação, mas não mero ativismo, e sim espera-se que “esteja
associada a sério empenho de reflexão, para que seja práxis” (1975, p. 56).
No contexto da investigação do “tema gerador” reaparece a questão. Identifica
uma dupla perspectiva: por um lado, está o processo no qual investigador e povo
são sujeitos do processo de investigação do tema gerador; pelo reverso, podem ha-
ver investigadores que não trabalham nesta perspectiva. O problema é quando em
nome da “objetividade científica” breca processos transformadores: o investigador
“transforma o orgânico em inorgânico, o que está sendo no que é, o vivo no morto,
teme a mudança. Teme a transformação” (1975, p. 118). Desse modo, não vai cons-
truir um processo de formação na qual os agentes são todos/as sujeitos do proces-
so. Isto porque, “ao temer a mudança e ao tentar aprisionara vida, ao reduzi-la a
esquemas rígidos, ao fazer do povo objeto passivo de sua ação investigadora, ao
ver na mudança o anúncio da morte, mata a vida e não pode esconder sua marca
necrófila” (1975, p. 118).
No capítulo final de Pedagogia do Oprimido, o tema retorna por várias vezes
no contexto da ação cultural dialógica e antidialógica. Aparece na crítica que faz à
liderança que não colabora com os processos de superação da opressão. A liderança
opressora é aquela que colabora com os processos necrófilos de opressão, o que
pode ocorrer também como parte da atuação das lideranças populares dentro de
um processo de transformação. Isso aparece quando, em nome da “necessidade”
de organizar o povo, essas lideranças negam processos de “intercomunicação” e de
“intersubjetividade”, de “diálogo”. Fazer isso, para Freire, é temer o povo, não crer
nele e fazer com que toda a transformação revolucionária perca sua razão de ser.
Toda vez que age assim, sem a coragem do “encontro humilde, amoroso e corajoso”,
de solidariedade, entre a liderança e o povo, a liderança se enrijece no desencontro
que transforma os outros em “puros objetos”. Segundo Freire (1975, p. 151): “E, ao
assim procedermos, nos tornamos necrófilos, em lugar de biófilos. Matamos avida,
em lugar de alimentarmos a vida. Em lugar de buscá-la, corremos dela. Matar a
vida, freá-la, com a redução dos homens apuras coisas, aliená-los, mistificá-los, vio-
lentá-los são o próprio dos opressores”. Pelo reverso, a “liderança revolucionária”,
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não pode ser nem “falsamente generosa” e nem mesmo “dirigista”: “Se as elites
opressoras se fecundam, necrofilamente, no esmagamento dos oprimidos, a lide-
rança revolucionária somente na comunhão com eles pode fecundar-se” (1975, p.
155). A liderança revolucionária necessariamente terá que ser humanista.
Na análise que faz da ação cultural antidialógica encontra a conquista como
prática dessa ação. Para Freire, a conquista implica a relação entre um sujeito
(que conquista) e um objeto (conquistado). O conquistador “imprime sua forma
ao conquistado que, introjetando-o, se faz um ser ambíguo. Um “hospedeiro” do
outro”. A ação conquistadora “ao ‘reificar’ os homens (e as mulheres), é necrófila”
(1975, p. 162).
A outra prática antidialógica é a de dividir para manter a opressão. Freire
nota que “a divisão das massas oprimidas é necessária à manutenção do status quo,
portanto à preservação do poder dos dominadores, urge que os oprimidos não per-
cebam claramente este jogo”. Os opressores fazem um jogo de inversão da situação
para poder dividir: “os necrófilos se nomeiam a si mesmos biófilos e aos biófilos,
de necrófilos”. O exemplo disso é o que é feito com Tiradentes, até hoje chamado
de inconfidente e ao movimento do qual participou de inconfidência (1975, p. 171).
A outra característica da ação cultural antidialógica é a manipulação, na qual
não analisa diretamente o aspecto da necrofilia. Mas a análise vai retornar na
outra característica, que é a “invasão cultural”. Ela desrespeita as potencialidades
e impõe aos invadidos, “sua visão de mundo, enquanto lhes freiam a criatividade,
ao inibirem sua expansão”, sendo, por isso, alienante (1975, p. 178). Para Freire, o
“o problema da necrofilia e da biofilia” inclui analisar ”as condições objetivas que
geram uma e outra, quer nos lares, nas relações pais-filhos, no clima desamoroso e
opressor, como amoroso e livre, quer no contexto sociocultural” (1975, p. 181).
Necrolia: signicado em Erich Fromm
No Livro O Coração do Homem (1965), Erich Fromm retrata diferentes formas
de violência. Ele aborda tendências de violência que vão contra a vida, que podem
ser denominadas a “essência do verdadeiro mal”, o “coração do mal” (1965, p. 39): a
necrofilia, o narcisismo e a fixação simbiótica pela mãe. Nos ocuparemos da necro-
filia por ser a referência de Paulo Freire.
No terceiro capítulo da obra analisa o “amor à morte e o amor à vida”. Começa
recuperando a declaração do filósofo Miguel Unamuno, feita em 1936, depois do
discurso do general Millán Astray, cujo lema era “viva a morte”. O discurso foi feito
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na Universidade de Salamanca, onde o filósofo era reitor, no começo da guerra civil
espanhola. O No final da intervenção do general, disse Unamuno (apud FROMM,
1965, p. 40-41): “acabo de ouvir o necrófilo e insensato grito ‘viva a morte’”.
Para Fromm (1965, p. 41), a distinção “mais fundamental” entre os seres hu-
manos, tento no campo psicológico
4
quanto moral, é a que separa “os que amam
a morte e os que amam a vida”, os “necrófilos e os biófilos”. Ressalva ele que não
necessariamente uma pessoa é totalmente uma coisa ou outra, estando presentes
ambas como tendências e, em muitas, precisa-se identificar qual delas é a mais for-
te (chama aquelas consagradas totalmente à morte de “insanas”). Lembra que, ain-
da que o “amor à morte” possa designar uma perversão sexual ou o desejo mórbido
de estar na presença de um cadáver, ela se encontra “sem mescla sexual alguma”
(1965, p. 41): é o caso da aplicação feita por Unamuno.
O texto de Erich Fromm se dedica a fazer uma “descrição da pessoa necrófila”
(1965, p. 41) – exemplos, segundo ele: Hitler, Eichmann e Stalin. A primeira carac-
terística é que a pessoa com orientação necrófila “é atraída e fascinada por tudo o
que não é vivo, tudo o que é morto” (1965, p. 42). A segunda característica é que
os necrófilos “moram no passado, nunca no futuro” (que odeia e teme, orientando-
-se ao passado, no qual fixa seu “desejo de certeza e segurança”), sendo que suas
emoções são sentimentais e alimentam a lembrança de emoções tidas no passado
ou que acredita tê-las tido (1965, p. 42). Outra característica é que “são frios, dis-
tantes, devotos da ‘lei e da ordem’” [nisso consiste a justiça], com valores que “são
exatamente o inverso dos [valores] que ligamos à vida normal” (1965, p. 42). Outra
característica é a atitude favorável em relação à força, como uma capacidade ou
desejo de matar, já que o necrófilo “ama a força”, sendo que sua maior façanha não
seria gerar vida, mas destruí-la (1965, p. 42-43). A necrofilia é um “modo de vida”,
mais do que uma ação transitória. Em geral o necrófilo se faz passar por construtor,
salvador, protetor, bom pai, um líder que eleva a nação. Sendo assim, por um bom
tempo haverá complacência com ele. As outras características são que o indivíduo
necrófilo “ama tudo o que não cresce, tudo o que é mecânico”, tem o “desejo de
transformar o orgânico em inorgânico”, ao modo de que “todas as pessoas vivas
fossem coisas” (“sentimentos e pensamento vivos são transformados em coisas”)
das quais quer se apropriar, reforça a “memória em vez de experiência”, o “ter,
em vez de ser”, “gosta de controle”. Contudo, “teme profundamente a vida”, visto
que a vida é “desordenada e incontrolável” (1965, p. 44). Fromm também diz que o
necrófilo se deixa atrair “pela escuridão e pela noite”, tudo o que o aparta da vida
e se dirige contra ela. Há como que um “fascinado pela destruição” (1965, p. 42).
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A orientação oposta à necrófila é chamada por Fromm de “biófila”: sua essên-
cia “é o amor à vida” (1965, p. 48). Ela também não é uma característica única,
mas representa uma orientação de um modo de ser que se manifesta nos processos
corporais, nas emoções, nos pensamentos, nos gestos de uma pessoa. Segundo ele,
“a substância viva tem a tendência para integrar-se e unir-se; tende a fundir-se
com entidades diferentes e opostas, e a crescer de forma estrutural” (1965, p. 49). A
pessoa biófila “é atraída pelo processo da vida e do crescimento em todas as esferas
[...]. Ama a aventura de viver mais do que a certeza”; “desfruta a vida e todas as
suas manifestações” (1965, p. 50). A perspectiva da vida aponta no sentido de que
“a vida é desenvolvimento estruturado”, mas que “por sua natureza não está sujei-
ta a um controle ou previsão rigorosos”. A vida não é abstração, é vida individual”
(1965, p. 62).
Erich Fromm fala de uma “ética biófila” – e pelo reverso uma não ética necró-
fila –, cujo princípio é de que “tudo o que serve à vida” é bom (o contrário, o que
serve à morte, é mau) (1965, p. 51). O que “acentua a vida, crescimento e desabro-
char” é bom. Segundo ele, a consciência biófila é movida “por sua atração pela vida
e alegria, o esforço moral consiste em fortalecer o aspecto amante da vida em si
mesmo” (1965, p. 51). Por esta razão o biófilo não vive o remorso e a culpa. Fromm
vê na Ética de Spinoza um “exemplo extraordinário de moral biófila” e filosofia de
base humanista. A finalidade do humano é “ser atraído por tudo o que estiver vivo
e afastar-se de tudo o que estiver morto ou for mecânico” (1965, p. 51).
Erich Fromm faz uma análise das condições para a posição orientada à biofilia
(1965, p. 55), discutindo, inclusive, em que medida ela entra em disputa com a dis-
posição necrófila – faz um debate com Freud. Discute até que ponto são dimensões
conflitantes, já que as entende como “a contradição mais fundamental existente no
homem” (1965, p. 54). Não se resume a uma questão biológica e nem a uma luta
na qual a vitória é por uma delas. A meta fundamental é preservar a vida, sendo
o seu contrário, uma distorção, uma psicopatologia. O “instinto de vida constitui
a potencialidade primaria do homem”, que precisa de “condições adequadas” para
se afirmar (o instinto de morte é uma “potencialidade secundária”) (1965, p. 55).
Fromm elenca como condições específicas para o desenvolvimento da biofilia (desde
a infância): o carinho, o contato afetuoso com outros durante a infância, a liberdade
e a ausência de ameaças, o ensino (pelo exemplo e por admoestações) dos princípios
que conduzem à harmonia e a força interior, o guia pela “arte de viver”, a influência
estimulante de outros e de resposta a ela e um modo de vida que seja verdadeira-
mente interessante (1965, p. 56). O oposto fomentaria o desenvolvimento da necro-
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filia: o crescer entre pessoas que amam a morte, a falta de estímulo, a frieza, as
condições que tornam a vida rotineira e carente de interesse e a ordem mecânica ao
invés de uma ordem determinada por relações diretas e humanas entre as pessoas.
As condições sociais para o desenvolvimento da biofilia também são tratadas.
Entre elas estão as que coincidem com as condições que fomentam as tendências, já
apontadas acima, como as que promovem o desenvolvimento do indivíduo. Acres-
centa a importância de situações de abundância contra a escassez, tanto econômica
quanto psicológica. Outra é a abolição da injustiça, que entende como a situação na
qual uma classe social explora a outra e lhe impõe condições que lhe impeçam de
acessa uma vida digna, impedindo a uma classe social de participar da experiência
básica do viver. Finalmente também trabalha a liberdade como condição para o de-
senvolvimento da biofilia no sentido de “liberdade para” criar e construir, admirar
e aventurar-se, o que requer um indivíduo ativo e responsável. Em resumo, diz que
“o amor à vida se desenvolverá mais numa sociedade onde houver: segurança, no
sentido das condições materiais básicas para uma vida digna não estarem ameaça-
das; justiça, no sentido de ninguém poder ser um fim para os objetivos de outrem;
e liberdade, no sentido de cada homem ter a possibilidade de ser um membro ativo
e responsável na sociedade” (1965, p. 57).
O autor se pergunta pela relação entre as “condições sociais” para o desen-
volvimento da necrofilia e o espírito da “sociedade industrial contemporânea” e,
inclusive com a “guerra nuclear” (1965, p. 60). Nas sociedades contemporâneas
há centros gigantescos nos quais os humanos são tratados “como objetos, em suas
propriedades comuns, nas regras estatísticas do comportamento coletivo, não nos
indivíduos vivos [...] os homens são administrados como se fossem coisas [...] são
transformados em coisas e obedecem às leis das coisas” (1965, p. 62). Em con-
trapartida Fromm responde: “mas o homem não se destina a ser uma coisa; ele
é destruído se se converte numa coisa” (1965, p. 62). A manipulação dos gostos
em vista do consumo ao máximo e em direções previsíveis, a uniformização do
caráter e a seleção dos medíocres são expressões do “burocraticamente organizado
e centralizado” (1965, p. 63). Este faz surgir o homem da organização, o homem
autômato, o homo consumens, o homo mechanicus, um homem artefato. Fromm diz
que “o homo mechanicus ainda gosta de sexo e de bebida, mas todos estes prazeres
são procurados dentro de um quadro de referência do mecânico e não-vivo” (1965,
p. 63-64). Ele espera um “botão” que, se apertado, traga “felicidade, amor, prazer”.
A intelectualização, a quantificação, a abstração, a burocratização e a “coisificação”
– características próprias da sociedade industrial moderna – “quando aplicadas
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a pessoas ao invés de a coisas, não são os princípios da vida, porém da mecânica”
(1965, p. 64). Para Fromm, as características da orientação necrófila “existem em
todas as sociedades industriais modernas, independentemente de suas respectivas
estruturas políticas” (1965, p. 65) – inclusive há muito em comum entre o capitalis-
mo estatal soviético e o capitalismo de sociedade anônimas.
Repercussão na Política e na Educação
A necrofilia repercute na política pela sua conversão em ação necropolítica
5
.
Há vários exemplos vindos das autoridades maiores do país.
6
O processo de ação
política está em pandemia, parece indicar para a desorientação, mas talvez não
seja o caso. O que parece mesmo haver é um projeto político novo, uma estratégia
de gestão do público, uma governamentalidade que sugere desorientação, mas que
tem posições muito consistentes e que se repetem na lógica e na ação.
O falso dilema economia versus saúde, ou emprego versus vida tem se colocado
como uma questão forte e que leva até a alguns a defenderem que entre morrer
da Covid-19 e morrer de fome em razão do agravamento da situação econômica é
uma escolha que se põe terrível. Trata-se de um falso dilema entre “a morte física
provável ou a morte econômica certa”, ou o contrário como sugerem professores da
Universidade de São Paulo (USP).
7
Há uma dificuldade crescente de as versões mais liberalizantes, tão hegemô-
nicas nas últimas décadas de neoliberalismo galopante no mundo. Segundo Márcio
Pochmann (2020, p. 135), no contexto da pandemia, aparecem três tendências para
o capitalismo: “a primeira tendência relacionada ao movimento de monopolização
da propriedade do capital a operar cada vez mais concentrada em não mais de 500
grandes corporações transnacionais”; a segunda: “[...] a monopolização avançada
do capitalismo permitiu descentralizar a estrutura de produção e distribuição de
bens e serviços em distintos fragmentos territoriais, cuja dinâmica de enclave eco-
nômico questiona a autonomia do sistema interestatal que emergiu do segundo
após guerra mundial no século passado” (2020, p. 136); e ele ilustra: “Somente 11
do conjunto de 200 países existentes nos dias de hoje no mundo possuem orçamento
governamental superior ao faturamento das grandes corporações transnacionais”
(2020, p. 136); “[...] a terceira tendência que consagra o capitalismo atual decor-
re do estágio avançado de consolidação generalizada do trabalho precário” (2020,
p. 136-137).
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Difícil de acreditar que este processo tenha forças para gerar mudanças es-
truturantes e transformações profundas. Enrique Dussel
8
diz que: “teríamos que
aplicar o freio e não o acelerador necrófilo que leva em direção ao abismo”. Num
desenho bem radical e propositivo, defende que a interpelação da natureza: “ou me
respeitas ou te aniquilo!”: “manifesta-se como um signo do fim da modernidade e
como anúncio de uma nova Idade do Mundo, posterior a esta soberba civilização
moderna que que tornou suicida”. Diz acreditar que “estamos vivendo pela primei-
ra vez na história do cosmos, da humanidade, sinais de esgotamento da moderni-
dade coo última etapa do antropoceno e que permite vislumbrar uma nova Idade
do Mundo, a transmodernidade”. Para ele, neste novo momento “deve-se antes de
tudo afirmar a Vida sobre o capital, sobre o colonialismo, sobre o patriarcalismo e
sobre muitas outras limitações que destrói as condições universais da reprodução
da Vida na Terra. Isto deveria ser conquistado pacientemente no longo prazo no
século XXI que só estamos começando”. Outro importante filósofo se pronunciou
numa linha muito parecida, Bruno Latour
9
defendeu que:
É aqui que devemos agir. Se a oportunidade serve para eles, serve também para nós. Se
tudo pára, tudo pode ser recolocado em questão, infletido, selecionado, triado, interrompido
de vez ou, pelo contrário, acelerado. Agora é que é a hora de fazer o balanço de fim de ano.
À exigência do bom senso – “Retomemos a produção o mais rápido possível” – temos de
responder com um grito: “De jeito nenhum!”. A última coisa a fazer seria voltar a fazer tudo
o que fizemos antes
10
.
Será que vige o império do homo oeconomicus
11
neoliberal? Será ele suplanta-
do ou seguirão os mais pobres precisando fazer cálculos terríveis entre satisfazer
ao mínimo as necessidades elementares dado o imenso acumulado de precarizações
e vulnerabilizações ou cumprir exigências sanitárias elementares para as quais
sequer há disponibilidade de recursos (falta água e sabão!)?
A repercussão na educação implica em pensar até que ponto as práticas ne-
crófilas seguem reforçando ações bancárias e processos opressores na educação.
Inclusive, pensar em que medida a necrofilia redunda na formação da possibilida-
de de uma posição alternativa e biófila. Boaventura de Sousa Santos (2020), em A
cruel pedagogia do vírus, fala em lições a serem enfrentadas e que são as seguintes:
“Lição 1. O tempo político e mediático condiciona o modo como a sociedade con-
temporânea se apercebe dos riscos que corre”; “Lição 2. As pandemias não matam
tão indiscriminadamente quanto se julga”; “Lição 3. Enquanto modelo social, o
capitalismo não tem futuro”; “Lição 4. A extrema-direita e a direita hiper-neolibe-
ral ficam definitivamente (espera-se) descreditadas”; “Lição 5. O colonialismo e o
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patriarcado estão vivos e reforçam-se nos momentos de crise aguda”; “Lição 6. O
regresso do Estado e da comunidade”.
No fundo a questão recoloca desafios muito importantes para a educação.
12
O principal deles é a necessidade de “aprender a dignidade da vida”. Trata-se de
compreender que a vida não tem valor, é valor. A vida não pode ser relativizada ou
condicionada a qualquer outro valor. Nela há uma dignidade própria e não suplan-
tável, que não pode ser ultrapassada, como condição material
13
. A vida é a condição
para todas as demais condicionalidades específicas. A fragilidade da vida que torna
a todos os corpos vulneráveis à contaminação do novo coronavírus, sua finitude e
sua construção como parte de um amplo processo vital do conjunto do cosmos e
particularmente da Mãe Terra, não a colocam em secundidade, pelo contrário, a
inserem nesta ampla teia vital. A vida é também finalidade omnidimensional de
todas as decisões e de todas as ações, não podendo ser posta como mais uma das
finalidades disponíveis
14
, exatamente por sua indisponibilidade. A vida, e suas ne-
cessidades, não é um fim para a qual se podem calcular meios eficazes. Ela é condi-
ção de todo fim e a possibilidade de ter fins específicos. E isto é tão objetivo quanto
qualquer fim especifico. Assim, a vida também não é um direito, ela é a condição de
todo Direito e de todos os direitos, em sentido profundo, todos os direitos específicos
só fazem sentido para a vida. Todo dinheiro, todo trabalho, toda economia, só fazem
sentido se forem para alimentar a vida. Somente em dinâmicas necrófilas é que se
poderia esperar outras possibilidades de compreensão.
Outro é o desafio de “aprender o luto e a enlutar-se”. A morte tem sido bas-
tante banalizada nas modernas sociedades do progresso, da correria, do resultado,
afinal, ela representa o oposto de tudo isso. A morte, que sempre foi tida como mo-
mento fundamental da vida, alimentou crenças, religiosidades, filosofias e várias
construções de sentido. Mas, parece que já não sensibiliza tanto. Há humanos para
os quais já não faz sentido o luto, como nos lembra Judith Butler
15
. Ela também nos
lembra neste contexto da pandemia que estamos diante de um desafio importante:
“aprender a enlutar-se pelas mortes em massa significa marcar a perda de alguém
cujo nome você não sabe, cuja língua você talvez não fale, que vive a uma distância
intransponível de onde você mora”. Há, um “luto público” a ser experimentado e
vivido. Mas, a lógica do cálculo e a enxurrada de números que chegam pelos bole-
tins epidemiológicos parecem reduzir as vidas e as mortes a insumos de cálculo,
possibilidade estatística, impedem o efetivo reconhecimento de cada singularidade
que se perde numa vida que se vai, numa morte que se conta. Há um luto comuni-
tário a ser vivido, ainda que não possa ser feito como reverência pública (dadas as
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condições do enterro neste contexto). O subregistro das mortes (de certa forma au-
torizado pelo poder público
16
) e a dispensa de exame em Institutos Médicos Legais
(IMLs) para o caso de corpos aprisionados
17
poderão gerar a possibilidade de “de-
saparecidos da Covid”. Junto com isto as medidas de restrição ou o cancelamento
de velórios públicos reforça uma dificuldade ainda maior de lidar com o luto no
contexto da pandemia. A aprendizagem demandada de um “luto Covid” é pela ex-
igência de seguimento dos vivos e de como estes conviverão com as memórias dos
mortos e como a sociedade conviverá e significará todos/as e cada uma das mortes,
para além de números. As lágrimas pelos estranhos que morreram são pelos con-
hecidos que seguem vivos. Não aprender a valorizar a perda comum pode levar a
sequer valorizar eventuais perdas pessoais ou, dito de outro modo, concentrar-se
unicamente nas eventuais perdas pessoais parece pouco diante da exigência de
enlutar-se com cada morte.
Finalmente, o “aprender nova ética
18
. A questão de fundo que se coloca é a
possibilidade de uma racionalidade ética na qual caibam as mais diversas e todas
as formas de conhecimento, de ciência, de vida. Esta racionalidade ética haverá de
emergir da necessidade de superação da racionalidade vitimária que é exatamente
esta racionalidade que admite a morte como parte “naturalizada” (ainda que não
seja “natural”) e que trabalha com o “cálculo do suportável”.
19
Não há suportá-
vel possível quando se trata da vida, do sujeito necessitado (que é o humano, um
humano natural, um humano-natureza). Submeter a ética ao cálculo meio-fim é
exatamente eliminá-la do contexto da ciência e autorizar a “ciência dos fatos”
20
a
seguir acreditando que está trabalhando sem valores, quando, na verdade, está
orientada por valores absolutos como a eficiência e a competição, além de outros.
21
Problematizar estas questões é abrir-se para possibilidades outras de ciência com
ética. Enfim, a possibilidade de uma racionalidade ética se coloca como questão
fundamental também neste momento, não como um “post factum” ou “post festum”,
mas como processo presente e constitutivo da travessia em curso, como aprendiza-
gem necessária para fazer frente à necrofilia persistente.
Considerações nais
Estamos numa contingência que, “elimina a contingência”,
22
exatamente por-
que na contingência da Covid-19 diversas coisas estão colocadas umas ao lado das
outras, todas adjacentes entre si, contíguas entre si, que isso não se confunde com
alguma continuidade entre elas.
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A contingência da pandemia, no fundo, se tornou uma necessidade (por isso
nada contingente) – e até o que esperamos vir a ser no futuro está marcado por esta
condicionalidade – mesmo que na pandemia nada há de necessário e tudo seja tão
incerto e contingente. É exatamente a contingência que já não se faz contingente.
Aqui está talvez o principal desafio que é o de “fazer sobrar” alguma contingência
quando tudo parece ser contingente. E isso o que poderá permitir reinventar, inclu-
sive tudo por inteiro e não sucumbir à necrofilia.
Nossas respostas imunológicas não podem ficar fechadas à certeza na incer-
teza que não deixa brechas para a imaginação. Só ela, junto com o desejo do im-
possível, do infinito, do “inédito viável”, tem força ética, política e pedagógica para
produzir o novo, ainda que num contexto completamente adverso.
Notas
1
O novo coronavírus (SARS-CoV-2) apareceu no final de 2019 em Wuham, China, e rapidamente se es-
palhou pelo mundo, de modo que a Covid-19 foi declarada uma pandemia pela Organização Mundial da
Saúde (OMS) em 11 de março de 2020. As informações sobre o tema são muitas e estão disponíveis parti-
cularmente nos canais da OMS, a Organização Pan-americana de Saúde (OPAS) e do Ministério da Saúde
do Brasil. Ver de modo especial em: www.who.int/; www.paho.org; e https://saude.gov.br/.
2
Uma busca pela expressão e seus derivados indica sua presença nas seguintes páginas: 48, 49, 50 e 56 (do
Capítulo I); 74, 75 e 76 (do Capítulo II); 118, 119 e 133 (do Capítulo III): 150, 151, 155, 156, 162, 171 e 181
(do Capítulo IV).
3
Acrescentamos atendendo ao pedido de Paulo Freire em Pedagogia da Esperança (1993).
4
Fromm lembra que, ainda que tenha sido pouco trabalhado pela Psicanálise, a necrofilia se remete ao
“instinto de morte”, tanatológico, como trabalhado por Sigmund Freud.
5
Seguindo a posição de Achile Mbembe, expressa em vários de seus escritos (2016), particularmente no
mais recente deles, “Direito Universal à respiração” (2020).
6
Tratamos deste assunto num artigo publicado em 25/03/2020 no site do Movimento Nacional de Direitos
Humanos (MNDH). Disponível em: https://mndhbrasil.org/necropolitica-e-necrofilia-em-estado-pura-pen-
samentos-indignados-e-para-mobilizar-a-indignacao/.
7
Artigo “Coronavírus reforça urgência da união de forças democráticas contra Bolsonaro”, assinado pelos
professores André Singer, Christian Dunker, Cicero Araújo, Laura Carvalho, Felipe Loureiro, Leda Pau-
lani, Ruy Braga e Vladimir Safatle, publicado no caderno Ilustríssima, do jornal Folha de São Paulo, em
24/04/2020. Disponível em: www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/04/coronavirus-reforca-urgencia-da-
-uniao-de-forcas-democraticas-contra-bolsonaro.shtml.
8
Artigo de Enrique Dussel, “Cuando la naturaleza jaquea la orgullosa modernidad”, publicado no Blog
Nuestramerica. Mar. 2020. Disponível em: http://nuestramerica.cl/ojs/index.php/blognuestramerica/ arti-
cle/view/111/146. Acesso em: 03 abr. 2020. Tradução nossa.
9
Artigo de Bruno Latour, “Imaginando gestos que barrem o retorno ao consumismo e à produção insusten-
tável pré-pandemia”. ClimaInfo, 3 de abril de 2020. Disponível em: https://climainfo.org.br/2020/04/02/
barrar-producao-insustentavel-e-onsumismo/. Acesso em: 03 abr. 2020.
10
Tratamos da questão no artigo “Momento para parar”, publicado pela Comissão de Direitos Humanos de
Passo Fundo. Disponível em: https://cdhpf.org.br/artigos/momento-para-parar-breves-reflexoes-anti-pro-
gresso/.
11
Ver artigo de Castor M. M. Bartolomé Ruiz, “Pandemia e as falácias do homo economicus”, IHU On Line,
de 19/04/2020. Disponível em: www.ihu.unisinos.br/78-noticias/598157-pandemia-e-as-falacias-do-homo-
-economicus.
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12
Trabalhamos estas questões no texto que publicamos em 20 de maio de 2020 com o título “Educação em
Tempos da Pandemia de Covid-19” [ainda em construção quando da elaboração deste].
13
Fundamental retomar a posição da Ética da Libertação formulada por Enrique Dussel, formulada já há
algumas décadas, mas que neste momento ganha uma força e atualidade incontestáveis. Ver: Ética da
Libertação na idade da globalização e da exclusão (DUSSEL, 2000).
14
Ver a crítica de Franz Hinkelammert (2003) à racionalidade positivista. Também é importante revisitar a
crítica a esta mesma racionalidade em Horkheimer (2002).
15
Entrevista: “O luto é um ato político em meio à pandemia e suas disparidades”. Publicada originalmente
em ‘Truthout’. No Brasil, publicado por Carta Maior, em 04/05/2020, com tradução de César Locatelli. Dis-
ponível em: www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Pelo-Mundo/Judith-Butler-O-luto-e-um-ato-politico-em-
-meio-a-pandemia-e-suas-disparidades/6/47390. Na entrevista, retoma questões que já estão em outras
obras, como em Quadros de guerra (BUTLER, 2016).
16
A Portaria Conjunta 1/2020 (ver www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/03/SEI-CNJ-0857532-Portaria.
pdf-2.pdf), entre o CNJ e o MS, autoriza estabelecimentos de saúde – na hipótese de ausência de familia-
res ou pessoas conhecidas do falecido ou em razão de exigência de saúde pública – a encaminhar sepulta-
mento ou cremação sem prévia lavratura do registro civil de óbito.
17
Ver: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/03/24/covid-19-iml-rj-corta-autopsia-de-
-presos -e-a-oab-investiga-subnotificacao.htm.
18
Esta parte também já foi publicada no artigo “Ética e Ciência: elementos para subsidiar reflexões”.
19
Trabalhamos as características da racionalidade vitimaria e da racionalidade ética em nossa tese “A po-
tencialidade da vítima para ser sujeito ético: construção de uma proposta de ética a partir da condição da
vítima”. Ver: www.repositorio.jesuita.org.br/handle/UNISINOS/4517.
20
E os limites graves da posição weberiana a respeito do tema (WEBER, 1991).
21
Sugere-se visitar a metáfora dos jovens que cerram o galho de árvore sobre o qual estão sentados apresen-
tada por Hinkelammert (2003).
22
Como diz o filósofo italiano, Emanuele Alloa, em artigo publicado em Anrtinomie. Disponível em https://
antinomie.it/index.php/2020/04/21/il-coronavirus-una-contingenza-che-elimina-la-contingenza/.
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Necrolia: repercussão ética, política e educacional – estudo em Paulo Freire e Erich Fromm
v. 27, n. 3, Passo Fundo, p. 734-749, set./dez. 2020 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
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Andarilhando: movimentos que se entrelaçam em Marie-Christine Josso e Paulo Freire
Walking: movements that intertwine in Marie-Christine Josso and Paulo Freire
Caminar: movimientos que se entrelazan en Marie-Christine Josso y Paulo Freire
Celso Ilgo Henz
*
Patrícia Signor
**
Ivani Soares
***
Resumo
A escrita dialógica deste artigo pretende andarilhar dialogando com Marie-Christine Josso e Paulo Freire, movi-
mentando vivências, saberes e conhecimentos acerca desses dois importantes educadores e seus legados: Josso
com as Rodas de Conversa e Freire com os Círculos de Cultura. Ambos compartilham e revisitam Histórias de Vida
e Formação e têm o diálogo como condição primeira para que todos possam dizer a sua palavra e (re)encontrar-
-se com os outros e consigo mesmos, descobrindo-se como seres socio-históricos que estão permanentemente
ensinando e aprendendo, auto(trans)formando-se pela dialética mediação do mundo. Pelos estudos de Freire
(2013, 2015, 2016, entre outros) e Josso (2009, 2010), percebe-se a missão ontológica como sendo uma busca
inacabada e permanente pela libertação e pela auto(trans)formação, para o Ser Mais. E, ainda que condicionados
pela historicidade, mulheres e homens conscientizam-se de sua inteireza e (re)existenciam criticamente su
as
experiências no e com o mundo.
Palavras-chave:
Rodas de Conversa. Círculos de Cultura. Diálogo. Educação.
*
Doutor em Educação (UFRGS, 2003), com pós-doutorado pela Universidad de Sevilla, Espanha. Professor Associado
2 da UFSM. Professor da LP1: Formação, Saberes e Desenvolvimento Prossional do PPGE/UFSM. Coordenador do
Grupo de Estudos “DIALOGUS: Educação, Formação e Humanização com Paulo Freire. Orcid: https://orcid.org/0000-
0002-0571-5684. E-mail: celsoufsm@gmail.com
**
Doutoranda em Educação: Formação, Saberes e Desenvolvimento Prossional, da UFSM. Mestre em Educação. Co-
laboradora do Grupo de Estudo e Pesquisas DIALOGUS: Educação, Formação e Humanização com Paulo Freire. Atua
como coordenadora e docente do curso de Pedagogia do Centro de Ensino Superior Riograndense (CESURG) de
Sarandi e como coordenadora pedagógica dos anos nais da Escola Municipal de Ensino Fundamental Santos Anjos
de Nova Boa Vista, RS. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-8725-4115. E-mail: psignor89@gmail.com
***
Mestra em Políticas Públicas e Gestão Educacional, da UFSM. Colaboradora do Grupo de Estudo e Pesquisas Dialo-
gus: Educação, Formação e Humanização com Paulo Freire. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1248-9689. E-mail:
ivanirodhen@gmail.com
Recebido em 12/03/2020 – Aprovado em 05/10/2020
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i3.12379
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Abstract
The dialogical writing of this article intends to walk in dialogue with Marie-Christine Josso and Paulo Freire,
moving experiences, knowledge and knowledge about these two important educators and their legacies. Jos-
so with the Conversation Wheels and Freire with the Culture Circles, in which they share and revisit Life and
Formation Stories, and where dialogue is the rst condition for everyone to “say their word” and (re) meet with
others and with themselves, discovering themselves as socio-historical beings who are permanently teaching
and learning, self ( trans) forming with each other, through the dialectical mediation of the world. . Through the
studies of Freire (2013, 2015, 2016, among others) and Josso (2009, 2010) the ontological mission is perceived as
an unnished and permanent search for liberation and self (trans) formation, for the Being More and, although
conditioned by historicity, women and men are aware of their wholeness and (re) critically exist their experien-
ces in and wi
th the world.
Keywords:
Circles of Conversation. Culture Circles. Dialogue. Education.
Resúmen
La escritura dialógica de este artículo tiene la intención de caminar en diálogo con Marie-Christine Josso y Paulo
Freire, moviendo experiencias y conocimiento sobre estos dos importantes educadores y sus legados: Josso con
las Ruedas de Conversación y Freire con los Círculos de Cultura. Ambos comparten y revisitan historias de vida y
formación, tienen el diálogo como primera condición para que todos puedan decir su palabra y (re) encontrarse
con otros y consigo mismos, descubriéndose a sí mismos como seres sociohistóricos que están permanente-
mente enseñando y aprendiendo, autotransformando a través de la mediación dialéctica del mundo. A partir
de los estudios de Freire (2013, 2015, 2016, y otros) y Josso (2009, 2010), la misión ontológica se percibe como
una búsqueda inconclusa y permanente de liberación y auto-formación, para Ser Más. Y, aunque condicionado
por la historicidad, las mujeres y los hombres se dan cuenta de su integridad y volven a criticar sus experiencias
en y con el mundo
.
Palavras-clave:
Rodas de Conversa. Círculos de Cultura. Diálogo. Educación.
Primeiros passos
Josso e Freire trazem a condição do inacabamento humano na centralidade de
todas as práxis pelas quais seres humanos vão se educando e se formando na sua
genteidade de homens e mulheres, tanto individual como coletivamente. Em Josso
1
(2010b, p. 39): “À escala de uma vida, o processo de formação dá-se a conhecer por
meio dos desafios e apostas nascidos da dialética entre a condição individual e a
condição coletiva”. E, em Freire (2016c, p. 98), a medida que educandos se proble-
matizam “como seres no mundo e com o mundo” não só compreendem o “desafio
na própria ação de captá-lo” como sentem-se mais desafiados e comprometidos a
responderem ao desafio. E, por captarem o desafio como “um problema em suas
conexões com outros, num plano de totalidade e não como algo petrificado, a com-
preensão resultante tende a tornar-se crescentemente crítica, por isto, cada vez
mais desalienada”.
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Assim começamos a cirandar em diálogos reconstrutivos com Josso e Freire,
colocando-nos em um caminhar para si, dando-nos a conhecer e sentindo-nos enco-
rajados a buscarmos novas possibilidades. Nas (inter)relações com os outros e com
o mundo, somos constantemente desafiados, provocados a responder com nosso
sentir-pensar-agir com eles, em cuja dialética vamos nos auto(trans)formando pela
mesma processualidade com que nos tornamos coautores da auto(trans)formação
dos outros e da transformação do mundo. Nessas nossas andanças, por vezes es-
tamos sozinhos, noutras temos o privilégio de andarilhar
2
com outros seres, em
interação dialógica. A vantagem dessa última forma é que, dando-nos as mãos e
compartilhando o caminho, ele se torna mais prazeroso, mais instigante e mais
interessante. E é assim que, a partir dos estudos e das leituras que vimos fazendo,
nos autodesafiamos para entrelaçar palavras na utopia concreta da possibilidade
de ajudar a transformar o mundo em que vivemos pela construção dialética de
nossa própria auto(trans)formação.
Nesta escrita dialógica, vamos andarilhar cirandando e dialogando com Ma-
rie-Christine Josso e Paulo Freire, movimentando-nos entre nossas vivências,
nossos saberes e nossos conhecimentos. A ciranda nos parece uma figura bem ade-
quada para os movimentos de entrelaçamentos, já que temos o círculo como uma
representação importante nos dois educadores/escritores: Josso com as Rodas de
Conversa e Freire com os Círculos de Cultura, nos quais compartilham e revisitam
Histórias de Vida e Formação, e nos quais o diálogo é a condição primeira para que
todos possam “dizer a sua palavra” e (re)encontrarem-se com os outros e consigo
mesmos, descobrindo-se como seres socio-históricos que estão permanentemente
ensinando e aprendendo, auto(trans)formando-se uns com os outros, pela dialética
mediação do mundo.
Ambos, Josso e Freire, entrelaçam seus estudos com o profundo respeito e a
profunda confiança que nutrem pelo ser humano e seus processos auto(trans)for-
mativos. Josso ouviu mais de duzentos relatos de experiências de vida-formação de
pessoas em seus contextos formativos. Freire educou(-se) levando em conta o uni-
verso existencial dos aprendentes, em várias partes do mundo. Olhar as pessoas
para além delas mesmas e ver em cada uma o potencial que elas próprias desco-
nhecem, compreendendo-as em suas genteidades, parece ser uma das especialida-
des desses dois educadores. Ter um olhar aguçado e uma escuta sensível para com
as pessoas em seus contextos existenciais, ouvir mais do que dizem suas palavras,
entrar no universo em que vivem e constituem-se é, em Josso e Freire, premissa
para o entendimento da capacidade reflexiva-constitutiva dos seres humanos.
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O lugar a partir de onde emergem os possíveis entrelaçamentos entre as pro-
positivas educativo-auto(trans)formadoras é uma andarilhagem cooperativa e dia-
lógico-reflexiva que vimos compartilhando com professores da educação básica e
do ensino superior, estudantes de graduação e pós-graduação, que integramos o
Grupo Dialogus: educação, auto(trans)formação e humanização com Paulo Freire
(UFSM), registrado junto ao CNPq desde 2011, e que desenvolve o Projeto de Pes-
quisa Educação e Cidadania: diálogos auto(trans)formativos com professoras e pro-
fessores e o Projeto de Extensão Hora do Conto: meninas e meninos lendo a palavra
e auto(trans)formando realidades
3
. Nos ensaios que aqui intentamos sistematizar,
faz-se presente a polissemia das muitas palavras ou narrativas de mulheres e ho-
mens que entendemos estar nos constituindo em nossas genteidades por meio dos
processos de pesquisa-auto(trans)formação com os Círculos Dialógicos Investigati-
vo-formativos e com as contações de histórias com crianças e adolescentes. Assim,
a nossa autoria, no presente texto, reconhece a coautoria pela escuta sensível, pelo
dizer a sua palavra, pela reflexão crítica e pelo registro (re)criativo propiciados nos
encontros sistemáticos e nas pesquisas de mestrado e doutorado que têm em Josso
e Freire importantes companheiros epistemológico-políticos.
Na construção desta narrativa, nossa autoria reconhece, ainda, os saberes
adquiridos a partir da convivência com sujeitos da Educação de Jovens e Adultos
(EJA) face ao desafio da alfabetização e da formação com professores que traba-
lham com essa modalidade; os Círculos de Cultura e as Rodas de Conversa como
propostas de educação libertadora e de auto(trans)formação, evidenciando o pro-
cesso de formação, de conhecimento e de aprendizagem, presentes nas Histórias de
Vida e Formação de Josso e comuns nos Círculos de Cultura de Freire. E, porque
Josso acredita nas narrativas de vida como uma maneira de ressignificar a pró-
pria vida e Freire defende o direito de os homens e de as mulheres dizerem a sua
palavra, contarem a sua história, trataremos o diálogo como centralidade desses
processos de aprender a dizer a sua palavra, vendo uns aos outros no que não se
mostram, e ouvindo seus não ditos pela escuta sensível e pelo olhar atento que as
rodas de conversa e os círculos de cultura intencionam e propiciam.
Vamos ainda entrelaçar o assunto da conscientização e da tomada de cons-
ciência como processos intra e interpessoais que levam à descoberta dos condicio-
namentos e inacabamentos, premissas essas incapazes de impedir o Ser Mais
4
no
mundo em devir no qual a educação e a vida humana são um quefazer permanente.
Por fim, os temas da libertação e da auto(trans)formação, na descoberta de si como
seres condicionados, mas, com possibilidades de Ser Mais e encontrarem o seu lu-
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gar no Cosmo, virá nos desafiar, trazendo histórias de aprendentes e suas relações
com o saber.
A guisa de informações iniciais, referimos que, de acordo com Josso (2010b,
p.61), o cerne para a compreensão da obra “Experiências de Vida e Formação”,
sobre a qual nos debruçamos conversando com o referencial freireano, numa pers-
pectiva de “pesquisa das alavancas de transformação em ligação que colocam o
sujeito como ator do seu advir” é “uma perspectiva global de todas as dimensões de
nosso ser no mundo”. A autora nos alerta que o processo proposto pelas Histórias
de Vida e Formação “é uma metodologia de pesquisa e de formação orientada por
um projeto de conhecimento coletivo e individual, associado a um projeto de for-
mação existencialmente individualizado” (2010b, p. 113). Assim, essa perspectiva
cósmica de nosso ser no mundo se educa na descoberta de que “o mundo, agora, já
não é algo sobre que se fala com falsas palavras, mas o mediatizador dos sujeitos
da educação, a incidência da ação transformadora dos homens, de que resulte a sua
humanização” (FREIRE, 2016c, p. 105). Percebemos, no estudo das narrativas de
vida, de Josso, a proximidade com a afirmação de Freire quando nos diz que “exis-
tir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo” (FREIRE, 2016c, p. 108).
Desafiados pelos diferentes espaços-tempos históricos, cabe a mulheres e homens
problematizarem a própria existência humana; destarte, “descobrem que pouco sa-
bem de si, de seu ‘posto no cosmos’ e se inquietam por saber mais. Estará, aliás, no
reconhecimento do seu pouco saber de si uma das razões dessa procura” (FREIRE,
2016c, p. 39). Em movimentos convergentes, colocam-se as palavras de Josso: “as
Histórias de Vida em Formação contam, sob a forma de uma peregrinação ‘vital’,
a busca de um saber-viver que se desenvolve em torno de quatro eixos principais
5
(JOSSO, 2010b, p. 115).
Os adultos aprendentes como razão de ser das suas propostas: alfabetização e
formação com professores
Situando as propostas de Josso e de Freire, remetemo-nos aos momentos his-
tóricos, aos desafios das práxis educativas com jovens e adultos e às necessidades
de um trabalho auto(trans)formativo com os professores dessa modalidade. Freire
desenvolveu a sua proposta de educação dialógico-libertadora como processo de
conscientização junto aos trabalhadores rurais do sertão nordestino, em Angicos/
RN, na década de 60. Conhecedora do trabalho e das publicações de Freire, nos
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anos 80, Marie Christine Josso e “outros pesquisadores-formadores do movimento
das histórias de vida em formação”, iniciaram “muitas pessoas nessa abordagem
com o suporte das histórias de vida, em seminários universitários ou na forma-
ção continuada de profissionais da educação, do campo social e da saúde, fora do
contexto universitário” (JOSSO, 2010b, p. 30). Ambos os educadores acreditavam/
acreditam na utopia possível de auto(trans)formar gente pela alfabetização.
No Brasil, Angicos foi a primeira experiência divulgada e influenciadora de
outras na história da educação e “introduziu o conceito de que, na relação de pro-
fessor e aluno, é fundamental uma situação dialógica de aprendizagem” na qual a
fala e o conhecimento de ambos “são enriquecedoras para a construção do saber”
(FERNANDES; TERRA, 1994, p. 8). Em Genebra, a questão da formação do sujeito
e do sujeito em formação é abordada através de experiências centradas na capaci-
dade de cada um viver como sujeito de suas formações. É um projeto que intenta
contribuir “para a constituição de um sujeito que trabalha para a consciência de
si e do seu meio, bem como para a qualidade de sua presença no mundo” (JOSSO,
2010a, p. 27).
A questão do dialogismo nos Círculos de Cultura revolucionou “as perspecti-
vas da educação” e desencadeou “revoluções subsequentes na imaginação dos edu-
cadores” (FERNANDES; TERRA, 1994, p. 8), concretizada pela escuta e pela pos-
sibilidade de dizer a sua palavra àqueles que estão imersos no universo popular.
Trazia uma proposta de educação nova e em grande escala, tomando como ponto de
partida a experiência dos aprendentes, ávidos por atividades que os auxiliassem
nos processos de ensino-aprendizagem, dialetizando alfabetização e conscientiza-
ção. Essa postura dos aprendentes também é explicada por Josso quando nos diz
que, em um contexto educativo, “os aprendentes adultos só concebem o reconheci-
mento dos saberes adquiridos sob a forma que lhes é conhecida, as equivalências,
e desejam que a tarefa seja logo definida para que possam terminá-la de uma vez
por todas” (JOSSO, 2010b, p. 268).
O grande mentor intelectual do programa de alfabetização de adultos, no Bra-
sil, foi Paulo Freire, que, depois, por ocasião do Golpe de 64, exilado, andou como
um peregrino das 40 horas “saído dos grotões das caatingas nordestinas, com sua
pedagogia do oprimido” alimentando “uma conjuntura histórica mundial, inscrita,
hoje, numa bibliografia de cerca de 5 mil referências, expandida para o mundo
pelos habitantes de Angicos de 1963, personagens vivos de uma realidade possí-
vel de libertação do homem pela educação” (FERNANDES; TERRA, 1994, p. 11).
Mas, não basta falar de aprendizagens, é preciso falar da contrapartida, ou seja,
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das desaprendizagens; afinal, “qual formador, hoje em dia, duvidaria de que o ato
de aprendizagem é acompanhado de desaprendizagens?” (JOSSO, 2010b, p. 270),
principalmente em um contexto de educação de adultos, no qual os aprendentes
já chegam repletos de saberes construídos empiricamente ao longo de toda uma
vida. Josso preconiza que uma consciência aguda das questões, dos problemas e
mesmo dos impasses que são as manchetes do dia a dia será solicitada a ser con-
textualizada e ressignificada para possibilitar manter um emprego; desenvolver
competências para imaginar soluções “para a solidariedade social ameaçada, para
os conflitos que se exacerbam, para a miséria que cada vez mais atinge os homens,
qualquer que seja a região do globo” (JOSSO, 2010b, p. 274). Para ela, nesse senti-
do, o aprender é “descobrir novos meios de pensar e fazer diferente” transformando
o ato de aprender em ato de fazer pesquisa, desenvolvendo “a capacidade de aten-
ção e de presença consciente” e tornando “o horizonte temporal da formação dos
adultos”, mais do que em um aqui e agora, mas também em um “hoje que orienta
o amanhã”.
No projeto de alfabetização de adultos encampado por Paulo Freire, homens e
mulheres pobres aprendiam a ler e a escrever partindo da própria realidade, pelo
diálogo crítico-reflexivo sobre suas vidas. O conceito antropológico de cultura era
apresentado, distinguindo, com palavras e exemplos simples, do cotidiano, o que
se pode entender por objeto de natureza e objeto de cultura, fazendo nascer, desde
logo, a consciência da valorização desses dois mundos, por todos vividos; “a partir
daí, o analfabeto começaria a operação de mudança de suas atitudes anteriores”
(FERNANDES; TERRA, 1994, p. 171), fazendo com que os participantes se sentis-
sem “fazedores desse mundo de cultura”, o que desencadearia a conscientização e
o engajamento no processo de auto(trans)formação. Em Josso, a intenção de pes-
quisa volta-se para “a formação como problemática de um indivíduo com uma in-
tencionalidade tornando-se a relação entre individual e coletivo uma problemática
que permeia a relação pedagógica constitutiva de sua dinâmica” (JOSSO, 2010a,
p. 31). Trata-se do que é aprender do ponto de vista do aprendente, da formação
intelectual como sendo a tomada de consciência de um conjunto de pontos de vista
possíveis sobre si mesmo e seu meio.
Em Angicos, a alfabetização andava de mãos dadas com a politização e situa-
ções sociológicas eram apresentadas para diálogo com os aprendentes, de forma
que o estudo de palavras geradoras possibilitava a reflexão política. Assim, contor-
nando as dificuldades iniciais para “escrever nos trilhos”, entre “palavras mortas”
(que não existiam) e “palavras pensamento” (quando existiam) as “horas” (aulas)
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se seguiam (FERNANDES; TERRA, 1994, p. 179) na construção e (re)construção
da linguagem até a 40ª hora, no final da qual Freire falou que aqueles homens e
aquelas mulheres estavam preparados para deixar de ser massa de manobra e
estavam em condições de decidir em quem votar. Os agora alfabetizados, como a
Sra. Francisca Andrade, lavadeira, afirmavam coisas como “Eu não sou mais mas-
sa, faço parte do povo, posso batalhar por meus direitos” (FERNANDES; TERRA,
1994, p. 194). Josso (2010a, p. 39) reconhece a socialização em dois momentos: o
primeiro centrado no indivíduo que aprende a tornar-se membro da sociedade, e o
segundo que permite incorporar um indivíduo já socializado em novos setores do
mundo objetivo da sociedade, introduzindo a ideia de uma formação continuada
acompanhando o curso da vida.
Josso (2009, p. 2) ainda nos diz que é na imaginação de formas de aprendiza-
gem que o desafio de situações educativas se encontra, transformando “a vivência
proposta em experiência analisada”; e que “os professores devem cultivar o seu
imaginário e a sua capacidade de imaginação, para se tornarem ‘bons educadores’,
ajustados, por um lado, à formação pessoal (existencial) dos alunos e, por outro,
aos recursos que eles precisam na sociedade em que vivem”. Esse foi o exercício
que fizeram os educadores, no Brasil (em sua maioria estudantes universitários),
formados na pedagogia freireana, ou seja, foram relacionando seus saberes aos
saberes do universo vivencial dos aprendentes e enfrentando, a medida que se
apresentavam, os desafios da aprendizagem de forma que o trabalho de alfabetiza-
ção de adultos, partindo de Angicos, espalhou-se Brasil afora.
Em seu livro “Caminhar para si”, ao falar da formação como projeto, Josso
utiliza Freire para ilustrar, dizendo que este “desenvolve um conceito de formação
inseparável do de liberdade, fundado sobre um conceito de humano como ‘ser de
busca’” (JOSSO, 2010a, p. 62). Ainda segundo a leitura de Josso, a concepção da
proposta de alfabetização de Freire é uma “pesquisa participante, cujo objetivo é a
descoberta de temas geradores que servirão de mediação à formação do educador
e dos aprendentes” (JOSSO, 2010a, p. 62). Quanto ao seu próprio trabalho, Josso
destaca que a originalidade da metodologia de pesquisa-formação em histórias de
vida diz respeito, em primeiro lugar, à constante preocupação com que os autores
de narrativas consigam produzir conhecimentos que tenham sentido para eles, que
se inscrevam num projeto de conhecimento que os institua como sujeitos, afinal,
“de que serve uma teoria se ela não permite ter poder sobre uma realidade” (JOS-
SO, 2010a, p. 30).
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Freire partia do universo dos aprendentes para significar a aprendizagem.
Josso, em sua escrita, interroga-se sobre “os processos de formação psicológica,
psicossociológica, econômica, política e cultural” que contam de forma singular as
histórias de vida, procurando “ouvir do lugar desses processos e de sua articulação
na dinâmica dessas vidas” (JOSSO, 2010b, p. 35). Freire chamou atenção para os
sujeitos de saberes de experiência feitos e Josso trabalha na “compreensão dos
processos de formação, de conhecimento e de aprendizagem do ponto de vista dos
adultos aprendentes a partir de suas experiências formadoras”, o que chama de
“experiências como vivências particulares” (JOSSO, 2010b, p. 47).
Nessa linha convergente seguiram/seguem os dois estudiosos, espalhando sa-
beres por tempos e caminhos distintos, mas com pontos em comum, como poderá
ser percebido ao longo do próximo tópico, no qual abordaremos, mais a fundo, a
dinâmica dos Círculos de Cultura, de Freire, e das Rodas de Conversa, de Josso.
Círculos de Cultura e Rodas de Conversa como propostas de educação libertadora
e autoformação
Os Círculos de Cultura criados por Paulo Freire consideram as situações de
vida de alfabetizandos e o seu universo existencial como desafios e possibilidades
do interesse em alfabetizar-se. “No Círculo de Cultura
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, o diálogo deixa de ser uma
simples metodologia ou uma técnica de ação grupal e passa a ser a própria diretriz
de uma experiência didática centrada no suposto de que aprender é aprender a
‘dizer a sua palavra’” (BRANDÃO, 2017, p. 69). Nessa forma de ensinar-aprender
não há um professor que tudo sabe e sim uma horizontalidade de saberes entre
ensinante e aprendente em que ora o professor aprende ao ensinar, ora o estudante
ensina ao aprender, ainda que continue sendo, o professor, responsável por toda a
diretividade do processo. Segundo Brandão (2017, p. 69), a proposta de Freire era
de uma “educação libertadora” pelo diálogo e pela vivência da aprendizagem como
processo (com)partilhado de saberes nos quais “surgem e se difundem práticas de
ensinar-e-aprender fundadas na horizontalidade das interações pedagógicas”, em
oposição a uma “educação bancária”.
Josso entende que o processo de formação e o processo de conhecimento são
articulados pelo conceito de experiência em um espiral retroativo que permite com-
preender a utilização de ambos no trabalho biográfico. “Com efeito, nessa retroa-
ção, cada processo pode, alternadamente, tornar-se o referencial do outro e trazer
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complementos e precisões à narrativa, favorecendo, assim, uma compreensão mais
aprofundada da dinâmica da existencialidade” (JOSSO, 2010b, p. 100-101).
No Círculo de Cultura, os participantes têm um núcleo de origem comum, eles
se conhecem e conhecem os contextos existenciais em que vivem; já têm, portanto,
uma ambiência de pertencimento formada, de forma que o trabalho pode fluir mais
espontaneamente do que entre grupos de origens ou locais diferentes. Não obs-
tante, a sua leitura de mundo pode ser ingênua e quase mágica, diante do que, se
faz necessário ir problematizando para outros possíveis olhares ressignificadores
por meio do diálogo crítico-reflexivo. No círculo, ninguém é mais ou melhor do que
ninguém e os alfabetizandos aprendentes se percebem seres de saberes de expe-
riências feitos, merecedores de ter sua dignidade reconhecida e compreendida como
condição sine qua non para o sucesso do processo de ensino-aprendizagem e para o
resgate da autoestima.
Josso fala das narrativas de vida em uma roda de conversa, elucidando o que
queremos dizer sobre a importância dos aprendentes conhecerem-se uns aos outros
e aos seus contextos de existencialidade. A autora enfatiza que falar das experiên-
cias pessoais é como contar a si mesmo a própria história, atribuindo valor ao vivi-
do “na continuidade temporal do nosso ser psicossomático” (JOSSO, 2010b, p.47).
Em Freire, encontramos a importância de mulheres e homens perceberem suas
igualdades como condição mesma para o diálogo, com o qual a autossuficiência é
incompatível, pois que, os seres humanos aos quais falta humildade não podem
aproximar-se do povo nem serem seus companheiros de pronúncia do mundo. “Se
alguém não é capaz de sentir-se e saber-se tão homem quanto os outros, é que lhe
falta ainda muito que caminhar, para chegar ao lugar de encontro com eles” (FREI-
RE, 2016c, p. 112).
Para que seja possível um trabalho no qual todos os participantes sejam res-
peitados em seu processo de aprendizagem, é indispensável que os programas de
formação de professores que vão atuar com adultos repensem o papel desses profis-
sionais. Nos Círculos de Cultura, professores deixam de ter a função principal de
transmitir conhecimentos e passam a ser coordenadores/facilitadores do processo
de criação de possibilidades de aprendizagens, levando aprendentes a verem coisas
que antes não eram capazes de perceber e a desenvolverem-se em sua autonomia;
também Josso (2010b, p. 142) orienta sobre a importância da figura do “animador
7
na roda de conversa de narrativas de vida, dizendo que a confiança e a liberdade
de expressão existente entre os animadores, “parece ter tido um efeito de entrosa-
mento positivo”.
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É importante perceber que, apesar de todas as dificuldades, as pessoas adul-
tas sobreviveram e formaram sua existencialidade sem serem alfabetizadas. En-
tão, para que queiram o ‘algo mais’ que a alfabetização pode lhes proporcionar
precisam estar convencidas de que esse esforço lhes possibilitará emanciparem-se,
libertando-se dos condicionamentos e reconhecendo-se como capazes de autonomia
para serem mais. Daí que, alfabetizar é ajudar a aprender a dizer a sua palavra
como empoderamento para tomar nas próprias mãos a constituição da história e
do mundo em que homens e mulheres sintam-se em condições de lutar por sua
dignidade humana. A decodificação da realidade existencial de alfabetizandos é
que possibilitará a melhor escolha das palavras ou expressões (palavras-gerado-
ras) que serão utilizadas para alcançar a compreensão dos signos que tenham mais
significação naquele universo de vivências e na compreensão da própria vida.
Estamos falando aqui também do que Josso refere como sendo a “recordação-
-referência” que servirá como experiência formadora, usando o que for aprendido
dali para a frente como uma referência para outras situações parecidas que vierem
a acontecer. “São as experiências que podemos utilizar como ilustração numa histó-
ria para descrever uma transformação, um estado de coisas, um complexo afetivo,
uma ideia, como também uma situação, um acontecimento, uma atividade ou um
encontro” (JOSSO, 2010b, p. 37).
Nos Círculos de Cultura, alfabetizandos são agentes ativos no processo de es-
colha das palavras que lhe são significativas; não recebem esse material pronto,
sua aprendizagem parte da pesquisa que encampam e as palavras escolhidas são
cenas vivas, que podem ser observadas, discutidas, retratadas e, inclusive, escritas
e lidas. No trabalho biográfico, são também os atores/autores das histórias de vida
e formação agentes ativos que se complementam, a exemplo de uma espiral retroa-
tiva que se retroalimenta em três etapas ou níveis que evidenciam o processo de
formação, de conhecimento e de aprendizagem, e que “quando trabalhados pelas
pessoas em formação na sucessão cronológica das etapas referidas, podem também
ser vividos, ao mesmo tempo, em cada fase, em circuitos abertos e retroativos”
(JOSSO, 2010b, p. 87), o que permitiria aprofundar, progressivamente o momento
da apropriação do questionamento.
Josso fala da partilha oral das narrativas de vida a partir “do ator ao au-
tor-contador”, dizendo que elas podem ser dinamizadas em pequenos grupos, em
duplas ou com o grupo todo, a depender do que a pessoa facilitadora/animadora
pretenda. Diz, ainda, que essa narração será orientada pela reconstituição do que
as pessoas entendam que a experiência que narram signifique, quer se trate de
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situações, acontecimentos, encontros ou atividades e que essa narrativa será usada
para “explicar e compreender o que, hoje, elas se tornaram no que diz respeito às
suas competências, aos seus recursos, às suas intenções, aos seus valores, às suas
escolhas de vida, aos seus projetos, às suas ideias sobre elas próprias e sobre o seu
meio humano e natural.” (JOSSO, 2010b, p. 177-178), o que vai se constituindo em
reflexividade.
Isso é uma espécie de diálogo problematizador em que os participantes po-
derão interagir para sanar dúvidas, esclarecer algum fato ou apenas aprofundar
a sua compreensão sobre a narrativa do outro que pode também ser similar à sua
própria narrativa. Ainda sobre esse aspecto, Freire conversa com Josso, pois afir-
ma que na “prática problematizadora, dialógica por excelência”, o conteúdo “se
organiza e se constitui na visão do mundo dos educandos, em que se encontram
seus ‘temas geradores’” (FREIRE, 2016c, p. 142). Essa processualidade dialógica
pela escuta sensível e pelo olhar atento ao outro, é muito importante para cada
participante “[...] para que se possa sentir, ao mesmo tempo tão semelhante e tão
diferente. É nesse momento que é iniciada a procura daquilo que gera a singulari-
dade na generalidade” (JOSSO, 2010b, p. 179).
Percebendo-se iguais, apesar das diferenças, terão condições de refletir sobre
sua igualdade com os outros homens e as outras mulheres que formam a socieda-
de/mundo em que vivem. Isso tem relação direta com o conceito freireano de que
“os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 2016c,
p. 96). Depois de falar e de ouvir, virá a fase de registro da sua história, ou seja,
autor-contador, em diálogo com ator-ouvinte, passará a ser autor-escritor (elabo-
rando o registro (re)criativo de sua fala). “Trata-se, então, de contar a sua história
numa escrita que exija um relacionar das experiências contadas na narrativa oral
ou acrescentadas graças às ressonâncias provocadas pela audição de uma ou de
várias outras narrativas” (JOSSO, 2010b, p. 179).
Para executar essa tarefa, a pessoa ator-autor-leitor-escritor terá de tomar
distanciamento da sua própria história e perceber como fazer a ligação entre um
e outro acontecimento para que a narrativa tenha significado. O professor Ernani
Maria Fiori, no prefácio da obra Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire, destaca
esse distanciamento necessário da narrativa oral para o registro escrito dizendo
que “nessa ambiguidade com que a consciência faz o seu mundo, afastando-o de
si, no distanciamento objetivante que o presentifica como mundo consciente, a pa-
lavra adquire a autonomia que a torna disponível para ser recriada na expressão
escrita” (FREIRE, 2016c, p. 27). Na busca de significação, outras lembranças são
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desencadeadas no próprio ator/autor e nos que o ouvem de forma que todos podem
ressignificarem-se e às situações vividas. Sobre isso, Josso nos ensina que essa
dimensão reflexiva vai exigir a construção de uma narrativa que evidencie, in-
terna e externamente, “os aspectos formadores das experiências de vida e os fios
condutores da sua dinâmica” impondo “um novo esforço de distanciamento face a
si mesmo” (JOSSO, 2010b, p. 179).
Através das histórias de vida, revividas pelo distanciamento das recordações-
-lembranças e suas ressignificações, as pessoas são levadas à reflexão sobre o que
motivou um ou outro acontecimento, tecendo fios invisíveis que farão as ligações
entre os fatos narrados e tornarão compreensíveis as situações existenciais que
formam seu percurso, revelando a forma de sentir/pensar/agir de cada um. A au-
tora destaca ainda o sentido das lições que podemos aprender a partir das nossas
experiências, dizendo que o trabalho sobre as narrativas de vida será como uma
passagem da tomada de consciência da formação do sujeito “para a emergência de
um sujeito da formação por meio da mediação de uma reflexão crítica sobre a forma
de pensar o seu itinerário experimental existencial” (JOSSO, 2010b, p. 184).
Em Josso (2007, p. 2-3), “a existencialidade é abordada por meio de uma tra-
ma totalmente original – porque singular – no seio de uma humanidade partilha-
da”. Por isso, frequentemente, nas pesquisas com histórias de formação, a autora
emprega “a expressão de nossa existência singular-plural”. De acordo com Josso,
essa perspectiva resulta de uma prática metodológica e de uma epistemologia “que
dá acesso ao significado da existencialidade no singular plural em movimento”.
Essa dinâmica fundamental que orienta todos os percursos “nasce da confrontação
entre os interesses e as lógicas individuais por um lado e, por outro, das lógicas e
das pressões coletivas”, de forma a serem reveladas as potencialidades das pes-
soas e suas possibilidades frente às pressões dos diferentes contextos formativos,
apresentando-se o percurso de vida como “uma longa transação ao longo da qual a
pessoa age sobre seu meio ambiente”, ajustando-se a ele “momentaneamente ou de
maneira duradoura”. Freire (2015a, p. 278) reconhece a necessidade “da unidade
na diversidade” como uma prática pedagógica indispensável à luta contra a domi-
nação, dizendo que a luta por uma democracia menos injusta é uma obra de arte
que nos chama e nos espera.
Em Josso, a construção da identidade é a ponta do iceberg da existencialidade
no sentido do saber-fazer, saber-pensar e saber-ser em relação com o outro; abor-
dando o “conhecimento de si mesmo pelo viés das transformações do ser” dentro de
uma existencialidade e de uma trajetória que “põe em cena um ser-sujeito às voltas
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com as pessoas, com os contextos e com ele-mesmo, numa tensão permanente entre
os modelos possíveis de identificação com o outro (conformização) e as aspirações à
diferenciação (singularização)” (JOSSO, 2007, p. 420).
Em Freire, encontramos o conceito de domesticação para referir-se a essa con-
formização do ser que, desconhecendo outra realidade existencial, permanece apri-
sionado pelo contexto de nascimento. O autor ressalta o “poder invisível da domes-
ticação alienante que alcança a eficiência extraordinária no que venho chamando
‘burocratização da mente’”, e que seria um estado de conformismo e de “acomoda-
ção diante de situações consideradas fatalisticamente como imutáveis”, a posição
de quem “encara os fatos como algo consumado” e “vê a vida como determinismo e
não como possibilidade” (FREIRE, 2015b, p. 111-112). Na sequência, Freire afirma
ter sempre recusado os fatalismos. “Prefiro a rebeldia que me confirma como gente
e que jamais deixou de provar que o ser humano é maior do que os mecanismos que
o minimizam” (FREIRE, 2015b, p. 112-113).
Voltando a Josso e à metodologia de seus trabalhos biográficos realizados nas
pesquisas com as histórias de vida e formação, complementamos dizendo que esses
trabalhos iniciam com a construção da própria história, feita pelos participantes,
individualmente. O trabalho de narração será permeado por vivências grupais,
de forma que os participantes, ao mesmo tempo em que investem neles mesmos,
possam interagir com o grupo. Esse é o momento a que Josso chama “pesquisa-for-
mação” e no qual cada participante poderá situar seu percurso de vida “como um
momento de questionamento retroativo e prospectivo sobre seu(s) projeto(s) de vida
e sua(s) demanda(s) de formação atual. Apresentado o tema da “reflexão biográfica,
os participantes são convidados a expor ao grupo o interesse que tal reflexão tem
para eles, a fim de começarem a formular um projeto de conhecimento” (JOSSO,
2007, p. 421). Então, haverá a escuta dos narradores, agrupados em grupos de
três ou quatro, a depender do número total de participantes. Nos pequenos gru-
pos, cada um poderá “apresentar as experiências de seu percurso de vida que ele
considera formadoras e fundadoras” e dizer no que assim o foram; os participantes
podem interromper e fazer questionamentos ou pedir esclarecimentos sobre o que
não entenderam. De acordo com os participantes, “a apresentação e a escuta de
histórias introduz uma dialética de identificação e de diferenciação que alimenta o
questionamento sobre seu próprio percurso”.
“A história de vida como revisitação dos elos que nos habitam: desatar nosso
passado para nos atarmos com ele abrindo possibilidades”; tal qual “nós de espia”,
que “reúnem duas cordas, entrelaçando-as com perfeita simetria” de forma que
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“não fica muito apertado, mesmo quando está molhado”, evoca relações relativa-
mente equilibradas (JOSSO, 2006, p. 376). A autora anuncia que “em um mundo
tão sofredor de laços impossíveis, rompidos, recusados, traídos, maltratados, entre
os seres e os povos” ela só pode “enunciar uma esperança e uma convicção” de que
“os procedimentos histórias de vida se multipliquem, a fim de que todos aqueles
e aquelas que os utilizam e os vivenciam possam encontrar, por meio dessa forma
particular, um novo laço social, um caminho de humanidade partilhada” (JOSSO,
2006, p. 373-383). Na sequência, propõe que nos desliguemos do que nos fecha so-
bre nós mesmos para (re)ligarmo-nos ao melhor de nós e dos outros, fazendo novas
ligações que nos possibilitem relatar outras histórias de vida.
Concepções de diálogo, a dimensão do reconhecimento de si e do outro e as
constituições do processo de formação
Numa perspectiva próxima ao que propõe Josso, o diálogo tem em Freire uma
dimensão profunda e libertadora, sendo mesmo uma exigência existencial. O con-
ceito encontra no educador a amorosidade e o cuidado em, muito além de defini-
-lo, vivê-lo e refleti-lo intensamente. E o diálogo, em Freire, faz-se numa relação
horizontal, na confiança de um no outro, funda-se no amor, na humildade e na
fé nos homens, pois “seria uma contradição se, amoroso, humilde e cheio de fé,
o diálogo não provocasse este clima de confiança entre seus sujeitos” (FREIRE,
2016c, p. 109-113).
A vida do educador pernambucano foi eticamente calcada nos princípios da
relação dialógica consigo, com os outros e com o mundo. Para ele, o diálogo é fenô-
meno humano que se materializa pela palavra. Contudo, a palavra é mais do que
apenas um meio para que ele se faça. A palavra impõe-nos elementos constituti-
vos em duas dimensões: a ação e a reflexão, solidárias em uma interação radical.
Freire afirma que “não há palavra verdadeira que não seja práxis. Daí que dizer a
palavra verdadeira seja transformar o mundo” (FREIRE, 2016c, p. 107).
Retornando a Josso, também é possível perceber a importância do diálogo, já
que, para a autora, é no diálogo com os outros que procuramos uma cointerpreta-
ção da nossa experiência. “É nesse movimento dialético que nos formamos como
humanos, quer dizer: no polo da (auto)interpretação” (JOSSO, 2010b, p. 54). Ou
seja, quanto dialogamos temos a oportunidade de distanciarmo-nos de nós mesmos
e refletirmos sobre nossa experiência existencial, materializando nosso mundo na
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percepção do mundo do outro. Também para Freire não há palavra verdadeira
dita sozinha, ou para alguém; a palavra é dita com o outro, e sua pronúncia não
se esgota. A verdadeira palavra é o próprio diálogo. “O diálogo é este encontro dos
homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto
na relação eu-tu” (FREIRE, 2016c, p. 109).
Em Freire, a educação está intimamente relacionada ao diálogo, “na medida
em que não é (a educação) a transferência de saber, mas um encontro de sujeitos
interlocutores que buscam a significação dos significados” (FREIRE, 1983, p. 46).
Em uma práxis educadora dialógica, como vivenciou o educador, “o diálogo e a
problematização não adormecem ninguém. Conscientizam” (FREIRE, 1983, p. 36).
O diálogo propõe a autorreflexão, que chega a um profundo estado de tomada de
consciência, retirando o homem e a mulher de uma condição de espectadores, fi-
gurantes, mas inseridos em uma historicidade, da qual participam com autoria e
consciência.
Na obra Educação como prática da liberdade, Freire abordou o discernimen-
to da temporalidade que leva o homem e a mulher a terem consciência da sua
historicidade, sendo capazes de discernirem e transcenderem. “O homem existe
no tempo. Está dentro. Está fora. Herda. Incorpora. Modifica. Porque não está
preso a um tempo reduzido a um hoje permanente que o esmaga, emerge dele.
Banha-se nele. Temporaliza-se” (FREIRE, 2014, p. 57). Essa temporalidade é que
situa o diálogo como uma prática necessária e fundada durante os processos de
formação com educadores. Afinal, é pela palavra e pelas experiências que educa-
dores conseguem relacionar-se e exteriorizarem as aprendizagens e as vivências
de suas práxis. Uma escola que não considera a temporalidade de seus sujeitos –
educandos e educadores – e que não lhes permite a palavra enquanto instrumento
para o diálogo, ignora a existência social de integração em um contexto específico
e apenas reproduz conhecimentos, sem levar em conta a significação deles na vida
de seus participantes.
Quando o sujeito da escola consegue compreender sua participação no proces-
so de pensar o currículo, realizar práticas, discutir questões pertinentes ao contex-
to e utilizar o conhecimento como instrumento de compreensão de sua realidade, a
concepção crítica fica evidente, uma vez que esse sujeito é capaz de refletir acerca
de suas vivências e a sua relação com o conhecimento amplia-se. A busca por uma
educação mais democrática, participativa, crítica e reflexiva, requer a construção
de espaços de diálogo e de partilha dentro da escola, entre estudantes e educado-
res. Sobre esse processo de reflexão, Freire explica a mente intransitiva, a transi-
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tiva ingênua até chegar na transitiva crítica, a qual leva a uma educação dialogal
e ativa, que “voltada para a responsabilidade social e política, se caracteriza pela
profundidade na interpretação dos problemas” (FREIRE, 2014, p. 84). É nessa po-
sição transitivamente crítica que se encontra a matriz verdadeira da democracia,
cujo maior desafio na educação libertadora é o diálogo crítico-reflexivo e problema-
tizador com educandos e com a comunidade.
Pensar o diálogo como elemento fundamental na formação com professores é
reconhecê-los como autores de seu processo de formação, pela ótica de que as expe-
riências vividas na e com a escola, com educandos e com a comunidade pertencem
ao processo de constituição do profissional e do currículo escolar. Josso (2010b),
ao abordar como ocorrem os processos de conhecimento, relaciona a capacidade
de transformar as vivências em experiências que gerem significações, partindo de
contextos específicos e relevantes para a vida.
Além de buscar a definição de diálogo em Freire e Josso, faz-se necessário ter
claro o que o diálogo não é. Não há diálogo na ignorância do outro como alguém em
igual condição para dizer a sua palavra. Não existe diálogo que segrega ou super-
valoriza um posicionamento sobre outro. Não há diálogo quando um dos sujeitos
se fecha às contribuições do outro ou um teme ser superado pelo outro. O diálogo
não acontece no “todo-poderosismo do professor ou da professora” nem a relação
dialógica anula a possibilidade do ato de ensinar, “pelo contrário, ela funda este
ato, que se completa e se sela no outro, o de aprender, e ambos só se tornam ver-
dadeiramente possíveis quando o pensamento crítico, inquieto, do educador ou da
educadora não freia a capacidade de pensar do educando” (FREIRE, 2016b, p. 163).
A dimensão intensa do diálogo são nossas próprias ações. Freire afirmava
que a postura progressista da educação é quando nos mostramos abertos ao outro,
de modo que nossas palavras sejam nossas ações. Essa coerência pedagógica, que
é um esforço constante, não é atingida facilmente e deve residir, segundo Freire
(2015b), em tentar diminuir a distância entre o que dizemos e o que fazemos. Isso
tem uma aproximação com aquele discurso comum de que “alguém” deve dizer o
que o educador precisa fazer de sua prática. Ambos, Josso e Freire concordam que,
ao dizer a sua palavra, mulheres e homens contam sua história: Freire defendia
o direito de “dizerem a sua palavra” e Josso acredita nas narrativas de vida como
uma maneira de ressignificar a própria vida. Dois educadores, em dois lados do
mundo, vivendo em espaços-tempo de encontro e desencontro, entrelaçados pela
mesma crença nos seres humanos e na sua capacidade infinita de superar-se, de
auto(trans)formar-se, de ser mais pela vida e pela experiência conscientizada.
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Conscientização e tomada de consciência: processos intra e interpessoais e a
descoberta dos condicionamentos e inacabamentos
A tomada de consciência de si exige um desenvolvimento de todas as nossas “an-
tenas de relação com o mundo” através do exercício de “nossas competências genéricas
transversais”; exige ser “sujeito-ator capaz de desenvolver sua capacidade em estar
presente a si em todas as circunstâncias” (JOSSO, 2010b, p. 63), compreender nossos
processos internos (intrapessoais) e as influências que as relações com os outros (in
-
terpessoais) exercem sobre nós. “Para iniciar a marcha para o desconhecido é preciso
poder, querer e saber colocar-se como sujeito mais ou menos ativo de sua vida, na sua
vida” (JOSSO, 2010b, p. 63). Para isso, as experiências vividas precisam resultar em
conhecimento. Mais do que viver, é preciso experienciar. Josso diferencia os termos
vivência e experiência, sendo aquela o conjunto de implicações e interações diárias e
essa a atividade específica que analisa as vivências para extrair delas conhecimento.
Para a autora, as experiências são capazes de se tornarem formadoras dos sujeitos e
relevantes nos processos de aquisição de conhecimento a partir do momento em que
as significações elaboradas são assimiladas a conjuntos comportamentais ou simbó
-
licos “Por estar o sujeito informado sobre si mesmo, sobre sua dinâmica, é possível,
daí por diante, começar a acreditar-se capaz de distanciamento e, por isso, de uma
autonomização em relação a determinações que pesam sobre ele ou que ele integrou
identificando-se com elas (JOSSO, 2010b, p. 266-267). Freire nos falou que só o ser
humano é capaz de distanciar-se do mundo, objetivando-o ou admirando-o para, de
-
pois, atuar conscientemente sobre a realidade objetivada e que nisso está a unidade
indissolúvel entre sua ação e sua reflexão sobre o mundo (FREIRE, 2016a, p. 56).
Para Josso, a tomada de consciência não é um momento decisivo ou uma radi
-
calidade de um momento, e sim um “acumulado de compreensões” que podem levar
a mudanças. Não segue ordem de discurso, uma vez que é uma análise consciencial
da realidade interior ou exterior. “A tomada de consciência é o indicador da presença
ativa do sujeito, ferramenta mental de sua autonomização” (JOSSO, 2010a, p. 267); é
como se as atenções fossem focadas para um fragmento da realidade e a compreensão
dela pudesse desencadear alguma modificação no nível de atenção das ações. Segun
-
do a autora, esses momentos de consciência são parte do processo de compreensão do
sujeito quanto a si mesmo, o outro e o mundo, intimamente ligados aos conhecimen
-
tos. Quando as experiências se situam em um campo profissional, como a docência, a
presença de um grupo e de uma instituição é dispositivo para reconhecer informações
e realizar registros que influenciarão na produção de experiências, é reconhecer-se
realizando projetos e operando escolhas que constituirão as experiências.
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Pensar a formação com professores põe em jogo conhecimentos existenciais,
parte do processo de tomada de consciência e de estar consciente. Para Josso, “tor-
nar-se sujeito nesse processo significa, pois, estar consciente de um ‘si dinâmico’,
imanente e transcendente ao ser psicossomático e à totalidade de seus registros”
(JOSSO, 2010a, p. 273). O ambiente escolar é, por si só, dinâmico e se auto(trans)
forma com seus sujeitos que nunca são os mesmos; porém, tocados ou não pelos
conhecimentos, são capazes de vivenciar experiências que podem produzir signifi-
cações. Segundo a autora, o sujeito está em transformação, já que reconsidera va-
lorizações e que é remetido à sua subjetividade frente às subjetividades dos grupos
aos quais pertence, mas se mobiliza e age por si, sobre si mesmo. Por isso, para ela,
a tomada de consciência é ao mesmo tempo ponto de partida e de chegada para o
processo de conhecimento. Uma dinâmica, um vaivém que entrelaça o interior e
os impactos informacionais exteriores que provocam uma série de adaptações em
uma interioridade movimentada por sua relação com o outro e com o mundo.
Freire deu à palavra conscientização
[...] um conteúdo político-pedagógico tão particular a ponto de nos permitir afirmar que
ela “renasceu”, tornando-o “pai” desse vocábulo. Para Paulo Freire, conscientização é o
desenvolvimento crítico da tomada de consciência. [...] A conscientização é a tomada de
consciência que se aprofunda (FREIRE, 2016a, p. 15).
Para o educador, as consciências intra e interpessoais não se dissociam; antes,
andam juntas. No prefácio do livro Pedagogia do Oprimido, Ernani Maria Fiori nos
diz que: “A consciência do mundo e a consciência de si crescem juntas e em razão
direta; uma é a luz interior da outra, uma comprometida com a outra” (FREIRE,
2016c, p. 20). E ambas pressupõem a consciência do inacabamento, pois que, caso
se acreditassem acabados, não teriam os homens e as mulheres mais como e por-
que evoluir, não poderiam aprender uns com os outros. É somente porque se sabem
inconclusos que podem auto(trans)formarem seu pensar/sentir/agir, podem evoluir,
adquirir novos conhecimentos e experienciar novas vivências. No saberem-se ina-
cabados os homens e as mulheres:
[...] encontram as raízes da educação mesma, como manifestação exclusivamente humana.
Isto é, na inconclusão dos homens e na consciência que dela têm. Daí que seja a educação
um quefazer permanente. [...]. Desta maneira, a educação se re-faz constantemente na prá-
xis. Para ser tem que estar sendo. Sua ‘duração’ – no sentido bergsoniano do termo – como
processo, está no jogo dos contrários permanência-mudança. Enquanto a concepção ‘bancá-
ria’ dá ênfase à permanência, a concepção problematizadora reforça a mudança (FREIRE,
2016c, p. 102, grifo do autor).
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E toda mudança é um processo de conhecimento. Para mudar é preciso conhe-
cer, dar-se conta, conscientizar-se de querer algo diferente do que se tem/vive/sente.
O processo de conscientização é definido por Josso como um elemento do processo de
conhecimento no qual é possível avaliar a importância do sujeito nesses processos e
sua capacidade de estar consciente daquilo que faz consigo mesmo. É pela ruptura
que o sujeito se transforma e evolui psicossomaticamente. Josso (2010a, p. 301) de
-
fende que a conscientização é “arriscar-se a entrar em um funcionamento psíquico,
para compreender o que nele acontece em relação a uma transformação consciencial”.
Sem oferecer essa oportunidade aos educadores, a conscientização pode não
encontrar espaço para acontecer. A metodologia do diálogo na formação com edu-
cadores possui um caráter provisório, em constante modificação, uma vez que en-
volve sujeitos em um ambiente tão dinâmico e inconstante, cheio de vidas e de
experiências a cada narrativa. Daí que os momentos de diálogo necessitam ser
constantes, contextualizados e de intenso respeito e interação com os sujeitos que
compõem a escola. Para Josso (2010b, p. 41), somente por serem “objetivações co-
letivamente construídas a partir das tomadas de consciência do que constitui as
nossas potencialidades humanas” é que as disciplinas “que constituem as ciências
do humano podem servir de referenciais para a autointerpretação”.
Sendo a consciência uma “presença atenta a si próprio, aos outros e ao seu
ambiente” e estando “ligada aos graus de sensibilidade de cada pessoa no que se
refere aos seus sentidos” (JOSSO, 2010b, p. 50, nota 1) podemos inferir que o olhar
atento e a escuta sensível para consigo mesmo e para com os outros são elementos
indispensáveis na tomada de consciência dos condicionamentos e dos inacabamen-
tos, fundamentais no processo de auto(trans)formação. Em Freire vimos que o pon-
to de partida do movimento de caminhar para frente e construir o futuro está nos
seres humanos mesmos, e estes só podem mover-se pela apropriação da tomada de
consciência da realidade histórica na qual vivem, e só se justifica “na medida em
que se dirige ao ser mais, à humanização dos homens” (FREIRE, 2016c, p. 104).
Libertação e (auto)formação: descobrir-se condicionados e a vocação ontológica
de Ser Mais, encontrando o seu lugar no Cosmos
Por vezes, não nos damos conta de que vivemos em um estado de violência
que fere nossa ontológica e histórica vocação de ser mais. “Basta, porém, que ho-
mens estejam sendo proibidos de ser mais para que a situação objetiva em que tal
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proibição se verifica seja, em si mesma, uma violência” (FREIRE, 2016c, p. 58).
Acostumados com o desamor e o silenciamento opressor, não aprendemos o amor
e o “dizer a sua palavra”. Nesse estágio, nosso “ser de atenção consciente”, aquele
que “está no coração de nosso ser no mundo e de nossa capacidade de existir, conec-
tado com nós mesmos e com nosso ambiente humano e natural” (JOSSO, 2010b,
p. 75), encontra-se desconectado, adormecido. Nossa desconexão e inconsciência
por não conhecermos outra realidade, no entanto, não faz com que a situação seja
menos real. Com o passar do tempo, ao longo de nossa existência, fragmentos de
lucidez irão manifestar-se, “colocando em cena um sujeito que embora ainda não se
reconheça sempre como tal, age sobre situações, reage a outras, ou, ainda, deixa-se
levar pelas circunstâncias” (JOSSO, 2010, p. 91); as realidades, por mais condi-
cionantes que sejam, não estão determinadas a serem imutáveis, e nossa vocação
enquanto seres humanos é ousar sempre em inéditos viáveis na busca pelo Ser
Mais gente: nossa vocação ontológica.
Passamos agora a falar um pouco sobre o sentir/pensar/agir do ser huma-
no Paulo Freire. Para começar, pegamos emprestadas as palavras de seu amigo
pessoal, estudioso e companheiro de jornada, Moacir Gadotti (GADOTTI, 2007,
p. 23), quando afirma que Freire: “Era uma pessoa bondosa, generosa, solidária.
Ele queria bem às pessoas, falava bem delas, era sempre ético, positivo e respeitoso
para com todos e todas. Todos os títulos dos seus livros são positivos, esperançosos,
mesmo quando escritos com indignação”; e prossegue, “ele escrevia para as pessoas
que amava, por isso, tudo o que escrevia deveria pertencer àqueles para os quais
ele o havia feito: os oprimidos. Por isso não se incomodava em ver alguns de seus
escritos reproduzidos sem consulta prévia” (GADOTTI, 2007, p. 23).
Complementamos as palavras de Gadotti com o que disse o autor do mais fa-
moso prefácio das obras de Freire, Ernani Maria Fiori, que também acompanhou
a jornada de luta do educador pela educação e pela libertação com os oprimidos.
Ao apresentar uma das obras mais traduzidas do mundo, a Pedagogia do Oprimi
-
do, Fiori caracteriza Freire como um educador comprometido com a vida, que não
produz ideias, e sim pensa existências. Afirma que seu esforço se concentra em
pensar a práxis
8
humana na busca de sua interioridade, totalizando-a como uma
busca pela libertação. Fiori traduz a luta de Freire como uma luta em favor dos
oprimidos, na busca constante da vocação ontológica do ser mais; e declara, ainda,
que Freire não ensina a repetir palavras, não se restringe a desenvolver a capa
-
cidade de pensá-las segundo as exigências lógicas do discurso abstrato; simples-
mente, coloca o alfabetizando em condições de poder (re)existenciar criticamente
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as palavras de seu mundo, para, na oportunidade devida, poder e saber “dizer a
sua palavra”.
A práxis educativa de Freire (re)dimensiona o ser humano em sua aprendiza-
gem, em seus princípios e em sua alfabetização, (re)dinamizando o processo históri-
co de sua existência: “[...] desafiados pela dramaticidade da hora atual, se propõem
a si mesmos como problema, descobrem que pouco sabem de si, de seu ‘posto no
cosmos’, e se inquietam por saber mais” (FREIRE, 2016c, p. 39). Aí reside um dos
grandes desafios da proposta político-epistemológica-antropológica de Freire a nós:
a desacomodação e a constante busca pelo novo, pelo mais de nós mesmos e pelo
desafio da superação da situação de condicionamento dada a nós pela realidade.
Josso corrobora esse pensamento quando nos diz que a “consciência de ser sujeito
de sua história, permite dimensionar o desafio de qualquer formação” (JOSSO,
2010b, p. 72).
Por esse processo de superação da situação de condicionamento dada a nós
pela realidade, Fiori afirma que a pedagogia é também antropologia. No instante
em que se enxergam condicionados, mulheres e homens também se descobrem na
possibilidade de uma vida e um mundo diferentes, e a misteriosa e contraditória
consciência passa a presentificar-se, a representar-se e a compor-se no e com o
mundo, pelo diálogo conscientizador com os outros. No livro Educação como Prática
da Liberdade (FREIRE, 2014), obra anterior à Pedagogia do Oprimido, Freire já
discute a necessidade de homens e mulheres não se adaptarem à realidade, mas
buscarem intervir e transformá-la. E, na Pedagogia do Oprimido, Freire estabele-
ce a relação de poder entre os seres humanos: a de oprimido e a de opressor. Ele
preocupa-se em destacar o processo de desumanização, como não viabilidade onto-
lógica, mas como realidade histórica. E, partindo dessa lamentável realidade, na
condição de inconclusão, buscar outra viabilidade: a humanização. Quando homens
e mulheres têm sua humanização negada na injustiça, na exploração, na opressão,
na violência, o desafio é a luta pela liberdade, pela justiça e pela recuperação da
humanidade. “[...] se admitíssemos que a desumanização é a vocação histórica dos
homens, nada mais teríamos que fazer, a não ser adotar uma atitude cínica ou de
total desespero” (FREIRE, 2016c, p. 40).
Na obra “À sombra desta mangueira” (FREIRE, 2013a), o educador afirma
que é a história que nos limita, nos condiciona e nos impulsiona a produzir co-
nhecimentos na construção do vir a ser de cada sujeito e que nada que possamos
engendrar se dará fora do tempo, da história; a morte da história é também a morte
de homens e mulheres que fazem e refazem a história. Por isso se diz que há supe-
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ração de uma fase por outra, e há continuidade da história, na transformação do
mundo, assim como estão em constante mobilidade as mulheres e os homens que
nele e com ele se (re)constroem.
E isso podemos relacionar com o conceito de singular-plural, de Josso, no mo-
mento em que designa “uma problemática que acompanha o percurso da vida vi-
venciada numa tensão permanente entre as transformações impostas pelo coletivo
e a evolução dos sonhos, desejos e aspirações individuais” (JOSSO, 2010b, p. 72).
Por isso as mulheres e os homens contam sua história, falam de suas vidas e falam
das outras formas de vida. Também Freire insistia que é na comunicação e na
intercomunicação que desenvolvemos nossa compreensão do mundo.
Atuar, refletir, avaliar, programar, investigar, transformar são especificidades dos seres
humanos no e com o mundo. A vida vai virando existência e o suporte mundo quando a
consciência de mim, emergindo, já se acha em relação dialética com o mundo (FREIRE,
2013a, p. 33-34).
“Se a vocação ontológica do homem é a de ser sujeito e não objeto, só poderá
desenvolvê-la na medida em que, refletindo sobre suas condições espaço-temporais,
introduz-se nelas, de maneira crítica” (FREIRE, 2014, p. 82), o que faz da educação
também uma forma de intervenção no mundo. Freire apresentava homens e mu-
lheres como seres de relações. “Este ser ‘temporalizado e situado’, ontologicamente
inacabado - sujeito por vocação, objeto por distorção -, descobre que não só está na
realidade, mas também que está com ela. Realidade que é objetiva, independente
dele, possível de ser reconhecida e com a qual se relaciona” (FREIRE, 2014, p. 82).
Eis, então, o desafio de os homens e as mulheres manterem sempre uma atitu-
de crítica, a qual os levará a aprender o que necessitam para integrarem-se a sua
época e superá-la à medida que percebem novas ansiedades emergentes e possibi-
lidades para serem mais; a transição entre épocas exige um indispensável compor-
tamento crítico, com o qual possam se defender dos fatalismos e irracionalidades
de cada momento histórico. Por isso, os homens e as mulheres não podem apenas
“estar na realidade, mas de estar com ela” (FREIRE, 2014, p. 91), uma vez que é
diante do mundo, na relação sujeito-objeto que nasce o conhecimento. Na obra Po-
lítica e Educação, Freire afirma que “ninguém nasce feito. Vamos nos fazendo aos
poucos, na prática social de que nos tornamos parte” (FREIRE, 2001, p. 40). Por
isso, em seu programa de alfabetização, mais do que abordar um método de ensinar
a ler e a escrever a palavra, ele buscou conscientizar cidadãos para sua atuação no
e com o mundo. Freire não enxergava a educação como um processo de adaptação
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do indivíduo à sociedade, ele acreditava que para ser mais o homem devia transfor-
mar a realidade (FREIRE, 2014, p. 38).
Corroborando com a visão ontológica do homem, em sua busca por Ser Mais,
encontramos em Josso o termo ‘busca’ para essa procura de um ‘algo mais’; o termo
é aqui empregado, no entanto, com vários significados que se aproximam da pers-
pectiva freireana como
[...] a procura de uma nova arte de viver em ligação, captando a vida em seu movimento; a
procura de uma existencialidade encarnada; a aspiração a um sentimento de existência em
transformação pela mediação da invenção de um “si evolutivo”, o desejo de uma identidade
em constante vir-a-ser (JOSSO, 2010b, p. 65).
A autora ressalta que, graças às transformações conscientes, essas signifi-
cações habitam os processos de exploração das nossas potencialidades enquanto
seres no mundo. Josso refere, ainda, que as histórias de vida em formação eviden-
ciam uma espécie de peregrinação vital na busca de um saber viver a que os auto-
res afirmam emprenharem-se, por caminhos variados, ao longo da vida: “a busca
de felicidade, a busca de si e de nós, a busca de conhecimento ou busca do ‘real’ e a
busca de sentido” (JOSSO, 2010b, p. 116).
Assim, percebemos nossa missão ontológica como sendo uma busca inacabada
e permanente pela libertação e pela auto(trans)formação, para o Ser Mais; e, ainda
que condicionados pela historicidade, conscientizamo-nos de nossa inteireza e do
nosso direito de assumir um lugar no Cosmos; nos (re)existencializamos critica-
mente para poder e saber dizer nossa palavra, na misteriosa e contraditória cons-
ciência da possibilidade de nos compormos frente a nossa existência e experiência
no e com o mundo.
Notas
1
Marie-Christine Josso é socióloga e antropóloga, doutora em Ciências da Educação da Universidade de
Genebra, especialista nas problemáticas da Educação de Adultos e na Formação Profissional Continuada
para Acompanhamento, Ensino e Assistência Social e à Saúde (Revista @ambienteeducação, dez. 2009).
2
Brandão escreve sobre o verbete “andarilhagem” no Dicionário Paulo Freire (2017a, p. 41): “Somos huma-
nos porque aprendemos a andar [...] a pendular entre um ‘estar aqui’ e um contínuo ‘partir’, ‘ir para’”. E
conta que Paulo Freire teria recebido o nome de “Andarilho da utopia”. Seremos um pouco assim, andari-
lhos da utopia, neste artigo.
3
Projeto que utiliza a metodologia de contação de histórias a crianças, adolescentes e adultos. Uma práxis
lúdica, imaginativa, (re)criativa e crítica, para a auto(trans)formação e o resgate da autoestima, acredi-
tando em um outro viável possível. As contações são feitas em forma de Círculos Dialógicos Investigativo-
-auto(trans)formativos (proposta epistemológico-política de pesquisa que vem sendo desenvolvida pelo
Grupo Dialogus, sob a coordenação do Prof. Celso Ilgo Henz), como forma de oportunizar todos a “dizerem
a sua palavra”, fazendo a sua leitura de mundo, baseadas no contexto socio-histórico, nas vivências, nos
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diferentes processos de escolarização, sempre a partir do lugar, das circunstâncias e das vozes que os con-
textualizam.
4
“A categoria ‘ser mais’ encontra-se situada na obra de Freire como um conceito chave para sua concepção
de ser humano. Como tal, articula-se com outros conceitos definidores da visão antropológica, sócio-política
e histórica de Freire, tais como, ‘inédito viável’, ‘inacabamento’ e ‘possibilidade histórica’”. (ZITKOSKI,
2017, p. 369).
5
Os quatro eixos principais a que Josso se refere são: a busca de felicidade, a busca de si e de nós, a busca
de conhecimento e a busca de sentido (JOSSO, 2010b, p. 116).
6
“O trabalho em equipe, o diálogo como criação de consensos entre iguais e diferentes e o círculo de cultura
são criações de Paulo Freire, dos movimentos de cultura popular” (BRANDÃO, 2017b, p. 69).
7
Ver Nota 1 (JOSSO, 2010b, p. 142). Experiência de vida e formação.
8
A ideia do conceito de práxis está presente na obra de Freire para ilustrar a união do processo de ação –
reflexão – ação sobre a prática pedagógica humana.
Referências
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ZITKOSKI, Jaime José (org.). Dicionário Paulo Freire. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2017a.
p. 44-45.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Círculo de Cultura. In: STRECK, Danilo Redin; REDIN, Eucli-
des; ZITKOSKI, Jaime José (org.). Dicionário Paulo Freire. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica,
2017b. p. 80-82.
FERNANDES, Calazans; TERRA, Antonia. 40 Horas de Esperança, o Método Paulo Freire:
política e pedagogia na experiência de Angicos. São Paulo: Ática, 1994.
FREIRE, Paulo. À sombra desta mangueira. 11. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013a.
FREIRE, Paulo. Política e educação: ensaios. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2001.
FREIRE, Paulo. Conscientização. Tradução de Tiago José Risi Leme. São Paulo: Cortez, 2016a.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. 23. ed.
Rio de Janeiro; São Paulo: Paz e Terra, 2016b.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 62. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2016c.
FREIRE, Paulo. Cartas a Cristina: reflexões sobre minha vida e minha prática. 2. ed. São Pau-
lo; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015a.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 52. ed. São
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FREIRE, Paulo. Educação e Mudança. 36. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2014.
FREIRE, Paulo. Extensão ou Comunicação? 8. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.
GADOTTI, Moacir. Paulo Freire e a educação popular. Revista Trimestral de Debate da FASE,
Rio de Janeiro, ano 31, n. 113, p. 21-27, jul./set. 2007. Disponível em: https://fase.org.br/wp-con-
tent/uploads/2007/09/proposta-113-final.pdf. Acesso em: 08 abr. 2018.
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Andarilhando: movimentos que se entrelaçam em Marie-Christine Josso e Paulo Freire
v. 27, n. 3, Passo Fundo, p. 750-775, set./dez. 2020 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
JOSSO, Marie-Christine. A transformação de si a partir da narração de histórias de vida. Edu-
cação, Porto Alegre, ano 2000, n. 3 (63), p. 413-438, set./dez. 2007.
JOSSO, Marie-Christine. As figuras de ligação nos relatos de formação: ligações formadoras,
deformadoras e transformadoras. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 32, n. 2, p. 373-383, maio/
ago. 2006.
JOSSO, Marie-Christine. Caminhar para si. Tr.adução Albino Pozzer. Porto Alegre: EdiPU-
CRS, 2010a.
JOSSO, Marie-Christine. Experiências de Vida e Formação. Trad. José Cláudio e Júlia Ferrei-
ra. 2. ed. rev. e ampl. Natal: EDUFRN; São Paulo: Paulus, 2010b.
JOSSO, Marie-Christine. O caminhar para si: uma perspectiva de formação de adultos e de
professores. Revista @mbienteeducação, São Paulo, v. 2, n. 2, p. 136-139, ago./dez. 2009.
ZITKOSKI, Jaime José. Ser Mais. In: STRECK, Danilo Redin; REDIN, Euclides; ZITKOSKI,
Jaime José (org.). Dicionário Paulo Freire. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. p. 426-428.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Maria Regina Johann, Paulo Evaldo Fensterseifer
v. 27, n. 3, Passo Fundo, p. 776-791, set./dez. 2020 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Educação republicana e democrática: potencialidades e desaos para a
formação inicial docente
Republican and democratic education: potentialities and challenges for initial teacher education
Educación republicana y democrática: potencialidades y desafíos para la formación
inicial del docente
Maria Regina Johann
*
Paulo Evaldo Fensterseifer
**
Resumo
O artigo trata de aspectos da formação inicial (FI) que visam assegurar princípios republicanos e democráticos
evidenciados nas leis e diretrizes da sociedade brasileira. Objetiva-se reetir acerca das noções que os professo-
res da escola básica têm acerca da laicidade e, por consequência, intenciona-se dar visibilidade a esta perspec-
tiva formativa como uma possibilidade de assegurar princípios republicanos e democráticos. Referencia-se em
autores que tratam da Escola Republicana (ER); na Constituição nacional de 1988; na Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional, Lei nº 9.394/1996; e nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica; com
inspiração em uma tarefa desenvolvida no interior da disciplina de Educação Brasileira. Nela, os acadêmicos
entrevistam professores de escolas públicas, de diferentes áreas de conhecimento, acerca do entendimento de
ER, e as possíveis implicações deste entendimento para as aulas e para o conjunto das atividades desenvolvidas
nas escolas em que atuam. A partir deste diálogo, o tema adentra as aulas da referida disciplina e é tematizado
à luz dos princípios da ER. Como resultado, constatam-se: o desconhecimento do tema pela grande maioria dos
professores, especialmente aqueles com mais tempo de atuação no Magistério e a (quase) ausência do tema
em cursos de formação continuada. De nosso horizonte de compreensão, argumentaremos a favor da presença
do referido tema nos cursos de FI, a partir do entendimento de que a especicidade da educação escolar, em
sociedades democráticas, necessita pautar-se pelos princípios da ER.
Palavras-chave: Formação de professores. Laicidade. Competência republicana.
*
Doutora e mestre em Educação nas Ciências pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul
(Unijuí). Professora efetiva da Unijuí. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-2788-5967. E-mail: maria.johann@unijui.edu.br
**
Doutor em Educação pela UNICAMP. Professor do Departamento de Humanidades e Educação da Universidade Re-
gional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – Unijuí. Professor do Programa de Pós Graduação em Educação
nas Ciências – Mestrado e Doutorado. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4914-5281. E-mail: fenster@unijui.edu.br
Recebido em 30/12/2020 – Aprovado em 05/10/2020
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i3.12380
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Educação republicana e democrática: potencialidades e desaos para a formação inicial docente
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Abstract
This study thematizes aspects of the initial education (IE) that aim to assure republican and democratic principles
evidenced in laws and directives of Brazilian society. It aims to reect on the notions that basic school teachers
have about secularism and, consequently, it is intended to give visibility to this formative perspective as a possi-
bility to ensure republican and democratic principles. It has as its references authors who study the Republican
School (RS); in the National Constitution of 1988; in the Law of Guidelines and Bases of National Education, Law
nº. 9.394/1996; in the National Curriculum Guidelines for Basic Education. It is inspired by a task developed in
the discipline of Brazilian Education. In it, academics interview public school teachers from dierent disciplines
about their understanding of RS and their possible implications in their classes and in the activities developed in
their schools. From this dialogue, the theme in included in the classes of that discipline and is thematized in the
light of the principles of RS. As results, we found: a lack of knowledge of the theme by the majority of teachers,
especially those with longer working time, and an (almost) absence of the theme in continuing education cou-
rses. From our perception, we argue in favor of the presence of this theme in IE courses, understanding that the
specicity of school education in democratic societies needs to be guided by the principles of RE.
Keywords: Teacher education. Secularity. Republican competence.
Resumen
El artículo aborda aspectos de la formación inicial (FI) que miran asegurar principios republicanos y democráti-
cos evidenciados en las leyes y directrices de la sociedad brasileña. El objetivo es reexionar sobre las nociones
que los docentes de la escuela básica tienen sobre la laicidad y, en consecuencia, la intención es dar visibilidad
a esta perspectiva formativa como una posibilidad para asegurar principios republicanos y democráticos. Se
basan en autores que tratan de la Escuela Republicana (ER); en la Constitución Nacional de 1988; en la Ley de
Directrices y Bases de la Educación Nacional, Ley nº 9.394/1996; en las Directrices Curriculares Nacionales para
la Educación Básica. Nos inspiró una tarea desarrollada dentro de la disciplina de Educación Brasileña. En ella,
los académicos entrevistan profesores de escuelas públicas, de diferentes áreas del conocimiento, a respecto
del entendimiento de ER, y las posibles implicaciones de este entendimiento para las clases y para el conjunto
de las actividades desarrolladas en las escuelas en que actúan. A partir de este diálogo, el tema adentra en las
clases de la referida disciplina y es tematizado a la luz de los principios da ER. Como resultado encontramos: la
falta de conocimiento del tema por la grande mayoría de los maestros, especialmente aquellos con más tiempo
de actuación en la enseñanza y a (casi) ausencia del tema en los cursos de educación continuada. De nuestro
horizonte de comprensión argumentaremos en favor de la presencia del referido tema en los cursos de FI desde
el entendimiento de que la especicidad de la educación escolar, en sociedades democráticas, debe guiarse por
los principios da ER.
Palabras clave: Formación de profesores. Secularidad. Competencia republicana.
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Situando a questão a partir da formação inicial: a disciplina de Educação
Brasileira no horizonte de um currículo comum de formação de professores
“Democracia sem educação e educação sem liberdade
são antinomias em teoria, que desfecham, na prática,
em fracassos inevitáveis” (Anísio Teixeira).
O presente trabalho trata de aspectos da formação inicial no horizonte da
Escola Republicana e Democrática (ERD) e tem como principal objetivo entender
quais as noções que os professores da escola básica têm acerca da laicidade e, por
consequência, intenciona-se dar visibilidade a esta perspectiva formativa como
uma possibilidade de assegurar princípios republicanos e democráticos, eviden-
ciados nas leis e diretrizes da sociedade brasileira. Entre elas destacamos a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei nº 9.394/1996, e as Diretri-
zes Curriculares Nacionais da Educação Básica (DCNEBs/2016). Tais documentos
evidenciam a gratuidade, a liberdade, a democracia, a alteridade, a diversidade,
a inclusão e a laicidade como aspectos fundamentais, constitutivos da sociedade
brasileira.
Os princípios supracitados são tematizados e refletidos a partir da noção de
educação republicana e democrática em uma disciplina denominada de Educação
Brasileira, que é comum a todos os cursos de formação de professores da Unijuí,
RS.
1
Nos currículos da referida instituição há um Núcleo Comum de Formação de
Educadores (NCFP) que articula 11 disciplinas comuns, realizadas entre os cursos
de Pedagogia, Educação Física, Matemática, Letras Português e Inglês, Ciências
Biológicas e História. Esta organização curricular ocorreu pela visão de que deter-
minados temas e conteúdos são relativos à docência, independentemente da área
de atuação do professor, mas também por outras motivações, entre elas o fato de
que os professores da educação básica constituem uma comunidade de saberes,
que todos os professores respondem por um projeto pedagógico escolar e, ainda, as
Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) e a Base Nacional Comum Curricular
(BNCC) orientam para uma perspectiva integradora ou interdisciplinar de cons-
trução curricular. Diante de tais aspectos, entende-se que é preciso integrar os
diferentes cursos para que, posteriormente, na escola, os professores tenham uma
visão geral e comum da educação e, por conseguinte, melhores condições de plane-
jar e propor projetos inter-relacionados, uma vez que conhecem minimamente as-
pectos básicos das diretrizes da educação e das diferentes áreas de conhecimento.
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É neste contexto curricular que se situa a disciplina de Educação Brasileira
(EB), e a partir dela é que se tratam os temas caros à formação de professores na
expectativa de que os mesmos tenham noção do valor de determinadas conquistas
sociais, resultado de lutas e movimentos em prol de direitos básicos e universais.
A democracia e a laicidade são expressões dessas lutas, e constituem-se em dimen-
sões políticas que asseguram a expressão da pluralidade humana. Preservá-las e
atualizá-las começa pela sua ressignificação na formação inicial, concretizando-se
no currículo laico da escola pública e realizando-se no mundo político, por meio da
ação em prol de um mundo comum.
Como nasce a pesquisa: diálogos entre acadêmicos e professores
A disciplina de Educação Brasileira é ofertada no primeiro semestre dos cur-
sos de formação de educadores da Universidade Regional do Noroeste do Estado
do Rio Grande do Sul (Unijuí) e compõe a versão curricular 2014 dos cursos de
formação de professores. Portanto, o período que abarca este estudo contempla os
anos de 2014 a 2019, em ofertas de cursos presenciais e em modalidade a distância.
O programa da disciplina Educação Brasileira apresenta, entre outros refe-
renciais teóricos, as obras de Teixeira (1978), Brayner (2008, 2015, 2016), Benevi-
des (1996, 2016, 2019), Fensterseifer (2013) e Masschelein e Simons (2015), auto-
res que sustentam a problematização do tema da escola republicana e democrática,
tensionados a aspectos da Lei nº 9.394/1996 e também das DCNEBs/2016. A partir
destes referenciais busca-se dar uma noção geral do fundamento básico – republi-
cano e democrático – da sociedade brasileira, que tem na laicidade a garantia da
pluralidade e da democracia.
A tematização de tais pressupostos ganha maior relevância a partir de uma
atividade conduzida na disciplina de EB, organizada a partir de uma consulta feita
por meio dos acadêmicos aos professores de escolas públicas, em diferentes áreas
de conhecimento. Os acadêmicos conversam com os professores acerca do entendi-
mento de ERD e verificam, também, as possíveis implicações deste princípio em
suas aulas, bem como no conjunto das atividades desenvolvidas nas escolas em
que atuam. A partir deste diálogo, a questão adentra as aulas e é tematizada entre
alunos e professor, não para negar o que fazem ou como fazem os professores, mas
para se refletir o tema à luz da história da educação, do contexto atual e da especi-
ficidade da educação escolar.
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A mediação do professor fomenta a reflexão a partir de questões que suscitam
a compreensão do viés republicano e democrático da educação brasileira e, que, por
conseguinte, demandam uma postura pedagógica correspondente; significa afir-
mar que o professor atua a partir de uma normatização que torna a sua autonomia
relativa. Neste horizonte, observa-se, inclusive, que certos temas ganham visibi-
lidade de acordo com os dilemas específicos de um determinado contexto social.
Nesse caso, exemplificamos a questão da liberdade de expressão, o lugar da opinião
no processo de ensino e aprendizagem, questões que envolvem religião, gênero,
políticas públicas de inclusão social, entre outros. Nesta disciplina tematiza-se,
reflexivamente, portanto, sobre a educação brasileira e enfatiza-se a noção da ERD
por entendermos que a compreensão deste fundamento político potencializa a per-
cepção de que todos os que se ocupam da educação e da instrução pública o fazem
no interior de um Estado laico, e isso diz respeito ao modo como as instituições e os
sujeitos veem-se e agem a partir das tarefas que lhe competem no âmbito público.
Destaca-se, ainda, que a disciplina de Educação Brasileira está na sexta edi-
ção e é ofertada em dois campi. Diante de tal percurso, alavancou-se materiais
importantes e depoimentos bastante contundentes dos professores, o que nos per-
mite, inicialmente, três constatações: a primeira delas diz respeito ao desconhe-
cimento do tema da ERD por uma parcela significativa de professores da nossa
região, especialmente aqueles com mais de dez anos de atuação docente; a segunda
é a (quase) ausência do tema em cursos de formação continuada; e a terceira cons-
tatação é a de que o tema da laicidade não é relacionado à ERD a partir dos estudos
dos documentos oficiais, norteadores da educação básica, como a LDB, as DCNs e,
mais recentemente, a BNCC.
A partir destas constatações básicas, pergunta-se sobre as razões desta invisi-
bilidade conceitual, uma vez que a dimensão da laicidade é um aspecto constitutivo
de sociedades republicanas e está na base da escola republicana. De outra parte,
parece compreensível que os dilemas e os problemas enfrentados por muitos pro-
fessores e alunos (tanto da escola básica quanto do Ensino Superior) acerca de te-
mas sociais (já elencados), complexificam-se, muitas vezes, pela precária noção de
laicidade na educação e, por conseguinte, pela ausência qualificada deste debate,
especialmente nos cursos de FI e formação continuada. Destarte, argumenta-se a
favor do estudo da ERD nos cursos de formação inicial, posto que a mesma é uma
prerrogativa assegurada pela Constituição Brasileira de 1988. Compreender seu
sentido histórico e social têm desdobramentos para a formação docente, uma vez
que o professor da escola pública brasileira responde pela condução e reconvalida-
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ção de um projeto pedagógico nacional em uma sociedade republicana e democrá-
tica, ou seja, de viés laico.
Para sustentar este entendimento, o item que segue apresenta os fundamen-
tos da ERD e, a partir disso, busca-se construir razões para sustentar a presença
do tema na formação inicial dos licenciandos.
Republicanismo e democracia: fundamentos da escola brasileira
Por ERD entendemos aquela que se ocupa em conduzir um projeto de educação
e instrução pública
3
pautado na promoção da cidadania de todos e que se vale de
uma tradição de conhecimentos e valores deliberados democraticamente; um pro-
jeto que tenha passado pelo crivo da sociedade, uma vez que essa orientação visa
a um mundo comum. Esta noção de ERD toma como inspiração as ideias de Flávio
Brayner (2016), para quem a educação republicana e democrática é aquela que cor-
responde à possibilidade de cada indivíduo tornar-se alguém. Por conseguinte, cabe
à escola a condução deste processo formativo que deve, paulatinamente, conduzir
o infante na construção de conhecimentos e valores que permitam, futuramente,
adentrar no espaço público das deliberações e ações políticas.
Para tal propósito, Brayner (2016, p. 5) destaca algumas competências repu-
blicanas que constituiriam este horizonte de formação, “[...] que só fazem sentido
em relação ao Outro”, e tem na escola seu tempo/espaço ideal, mas não exclusivo:
a competência argumentativa, propositiva, decisória e autointerrogativa. Para ele,
a competência argumentativa tem a ver com a aquisição de códigos linguísticos, o
direito à palavra como linguagem de autoridade e um certo poder de impor a recep-
ção, contudo “[...] precisa ser o resultado da possibilidade, sempre aberta e renova-
da, do encontro entre alteridades” (BRAYNER, 2016, p. 6). O autor menciona que
esta competência se articula com outras duas, que são a competência proposicional
e a competência decisória e, neste sentido, argumenta que a capacidade de propor
é coetânea à capacidade de argumentar, uma vez que:
[...] toda argumentação é também proposição: sugere-se a um Outro um ponto de vista, um
acordo a partir de bases negociadas, os termos em que se dará o próprio fundo comum da
discussão, etc. Propor significa, acima de tudo, reconhecer que todo argumento individual
– um ponto de vista – é necessariamente frágil, e que só na situação em que ele recebe
adesões e vem a se constituir num fundo comum de interesses – um “mundo” –, é que ele
conhece sua fortaleza (BRAYNER, 2016, p. 7-8).
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O argumento e a proposição fazem-se encaldados por uma motivação da or-
dem da ação e, geralmente, requerem do sujeito também a capacidade de decidir e
se autointerrogar. Brayner (2016) define a competência decisória como sendo “[...]
aquela que nos permite escolher entre alternativas, desde que estas tenham sido
validadas na sua substância e nas suas consequências sociais ou individuais” (p. 8)
e, assim, a competência autointerrogativa colocaria o sujeito diante da possibilida-
de de um pensamento autoavaliativo, levando-o a mobilizar valores, princípios e
fundamentos. Para Brayner (2016), a competência autointerrogativa é:
[...] sinônima da capacidade de autoinstituição do social (Castoriadis): uma sociedade que
sabe que criou suas próprias instituições e a elas se submete com consciência, ou as aban-
dona no momento em que elas não mais convêm, através do exercício da crítica e da re-sig-
nificação (BRAYNER, 2016, p. 9).
É importante destacar o entendimento de Brayner (2016) acerca da efetivida-
de da aquisição de tais competências, pois, para ele, a aquisição das mesmas não
garante a instalação e/ou preservação da democracia social e política. Infere-se,
então, que educar no horizonte da ERD é, antes de mais nada, uma aposta no in-
divíduo e na sua capacidade deliberativa em perspectiva de um mundo comum, ou
seja, aquele que diz respeito a todos. Nas palavras de Arendt (2001, p. 65),
O mundo comum é aquilo que adentramos ao nascer e que deixamos para trás quando mor-
remos. Transcende a duração de nossa vida, tanto no passado quanto no futuro: preexistia
à nossa chegada e sobreviverá à nossa breve permanência. É isto o que temos em comum,
não só com aqueles que vivem conosco, mas também com aqueles que aqui estiveram antes
e aqueles que virão depois de nós.
Em perspectiva semelhante, recorre-se às ideias de Benevides (2019), que
menciona ser a educação para a democracia uma aposta na conquista de um mun-
do comum. Para esta autora, tal perspectiva permite a formação do cidadão para
viver os grandes valores democráticos que englobam as liberdades civis, os direitos
sociais e os de solidariedade dita “planetária”. Para Benevides (1996, p. 226), a
educação para a democracia comporta duas dimensões:
[...] a formação para os valores republicanos e democráticos e a formação para a tomada de
decisões políticas em todos os níveis, pois numa sociedade verdadeiramente democrática
ninguém nasce governante ou governado, mas pode vir a ser, alternativamente – e mais de
uma vez no curso da vida – um ou outro.
Tanto Benevides (2016) quanto Brayner (2016) apostam em uma educação
para saber discutir e escolher.
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Nesse panorama, qual seria a tarefa ou função da escola? O que pode ela pro-
por a favor de uma formação para a democracia? Para Brayner (2016, p. 5), a escola
“[...] é este lugar social precisamente designado e pensado para estabelecer relações
(entre o passado e o futuro, entre as gerações, entre os mortos e os vivos) e fornecer
aos sujeitos que a frequentam, mínimas condições de se tornarem ‘visíveis’”.
Segundo Fensterseifer (2013), a escola tem uma função pública, uma vez que
ela responde por uma expectativa social, de caráter político, considerando que o ca-
ráter de “artificialidade” do mundo humano somente se mantém pela intencionali-
dade a que instituições como a escola se propõe. A escola nasce das necessidades da
sociedade moderna em suprir demandas do universo político e do mundo do traba-
lho, mais particularmente do âmbito científico e filosófico, que, a rigor, as famílias
não dariam conta de transmitir de modo qualificado. O autor evidencia que a escola
tem um triplo sentido: a) produção e renovação da cultura; b) estabelecimento e re-
forço das solidariedades; c) formação de identidades. Destaca Fensterseifer (2013,
p. 131) que “a escola não deve ser confundida com roda de amigos (embora possibi-
lita a convivência e a socialização), púlpito de igreja, palanque eleitoral, sindicato,
sociedade beneficente ou instituição de caridade e extensão da família”.
Diante de tais aspectos, é plausível afirmar que à escola compete algo diferen-
ciado, relativo à sua especificidade. Esta constatação, um tanto óbvia, necessita
ser colocada no centro dos debates quando a questão é a formação de professores e
educação pública, pois a questão acerca da especificidade da educação escolar nos
faz repensar certas posturas quase naturalizadas no ensino, entre elas a ênfase na
opinião, no gosto pessoal, na crença individual e, por vezes, na deliberada autono-
mia do professor diante aos documentos oficiais (Constituição, LDB, DCN).
4
Fensterseifer (2013) assevera que a educação pressupõe normatividade, de-
vendo reconhecer o caráter propositivo deste telos para formação do sujeito, o que
não a isenta da constante justificação; ao contrário, a exige, diferenciando-se, as-
sim, de perspectivas educacionais autoritárias fundadas em uma racionalidade
instrumental. Neste sentido, a escola pública é normatizada pelas leis da repúbli-
ca, pelas diretrizes, pelas deliberações das instituições oficiais de educação, bem
como pelos acordos que nascem do debate público que envolve as comunidades
científicas, os professores e o público em geral. Outras questões, contudo, também
se colocam para esta instituição, que diz respeito àquilo que a humanidade já pro-
duziu e que deixa como herança aos recém-chegados ao mundo humano. Neste
sentido, destacamos os valores universais que são revalidados no interior de cada
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instituição escolar, e igualmente por meio de cada professor, ao modo como os as-
sume e os transmite.
Se isso tem razoabilidade, então, cabe-nos considerar os acordos coletivos (ob-
jetificados em leis) como ponto de partida e levá-los em conta no momento em
que elaboramos os projetos escolares, os planos de ensino e/ou de trabalho e, mais
especificamente, em relação aos aspectos relativos à condução das aulas. Por con-
seguinte, assume-se o entendimento de que a escola cumpre uma função que é
acordada socialmente, e, por isso, estaria ela subsumida aos acordos e às leis da
República.
Diante de tais ponderações reitera-se as competências mencionadas por Bray-
ner (2016), relacionando-as a este desafio de cada cidadão em assumir as pautas
que se apresentam a cada contexto e se colocar na perspectiva de contribuir na
construção, validação e reconvalidação de uma sociedade mais justa, plural e de-
mocrática. Pois: “Uma reflexão sobre os fins da educação é uma reflexão sobre o
destino do homem, sobre o lugar que ele ocupa na natureza, sobre as relações entre
os seres humanos” (DELVAL apud SAVATER, 2000, p. 55).
A laicidade: um desao a ser enfrentado com responsabilidade e espírito
republicano
Iniciamos a questão destacando um aspecto fundamental: o laicismo é incom-
patível com o fanatismo/sectarismo; é o espaço da pluralidade, do debate, da ex-
pressão das vozes. Para Maamari (2014, p. 89), a laicidade é explicada como sendo
“[...] o regime em que nenhum indivíduo possa ser discriminado em razão das suas
orientações de vida, pois estaria assegurada a liberdade de consciência diante de
um Estado que pertença a todos (povo) e não somente a uma parte da população”.
Este princípio é um desafio histórico das sociedades modernas e ganha visibi-
lidade a partir das Revoluções Americana (1776) e Francesa (1789), na medida em
que foi articulado às conquistas sociais, as quais mobilizaram as pessoas a ergue-
rem bandeiras em prol da igualdade entre os cidadãos e das liberdades individuais.
Entre estas liberdades individuais situa-se a liberdade de crença, pressupondo
um ensino laico que não se opõe a existência de diversas religiões, ao contrário, as
preserva ao não as hierarquizar. Em caso de eleger uma em detrimento das outras,
estas preteridas correriam o risco de extinção, negando assim a pluralidade de
opções. Segundo Maamari (2009, p. 69): “O poder público não pode julgar a verdade
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de uma religião, portanto institucionalizá-la seria uma tirania sobre as opiniões,
constituindo um ato totalmente contrário à política e à moral”.
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Laicidade é então a garantia da pluralidade, das liberdades sociais e indivi-
duais, pautadas, sim, pelo espírito das repúblicas democráticas. Isso significa, que
a laicidade acolhe a diferença e acena para a alteridade, pois permite ver o outro
como Outro. Neste sentido, Coutel, em sua obra Condorcet, instituir el ciudadano
(2004), considera que sem o princípio do laicismo, fica inviabilizada a instituição
cívica da cidadania, dado ser ele o móvel de uma racionalidade política que aspira
a universalidade (COUTEL, 2004).
Diante de tais argumentos, evidencia-se que a laicidade, como um dos princí-
pios da escola republicana, estaria equivocada se associada ao estabelecimento do
ensino da moral à religião, pois a moral ultrapassa dimensões religiosas para se
vincular a um debate ético pautado por princípios universais. Nessa perspectiva,
Brutti (2014, p. 407) evidencia que
O espírito público (laicismo) não equivale a uma opinião entre tantas outras. Ele constitui
a própria garantia de que todas as opiniões possam ser manifestadas e discutidas na esfera
pública, exceto se buscarem (re)estabelecer despotismos ou cultivar fanatismo políticos e
religiosos.
Cabe reforçar que em sociedades democráticas e republicanas o telos da edu-
cação não deve se sobrepor ao telos que a própria sociedade, no exercício da cida-
dania, se dá.
A escola no horizonte da educação republicana e democrática: a questão da
instrução e da formação para a cidadania
Os ensinamentos possibilitados no âmbito da escola são fundamentais para a
manutenção das tradições do mundo humano, mas, também, para a sua descons-
trução e posterior ressignificação. Para este processo, conta-se, especialmente, com
um professor sabedor das leis e dos princípios básicos da sociedade. Sendo assim, os
temas que a escola aborda são tanto aqueles legitimados pela comunidade científi-
ca quanto os emergentes em contextos sociais específicos. Muitos deles novos para
todos nós ou, pelo menos, possuidores de uma nova roupagem. Por isso, exigem
de cada professor o desafio de atualização e compreensão de seus sentidos sociais,
para que a mediação de tais abordagens possa se dar de modo qualificado e laico.
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Benevides (2019) considera ótimo que estes princípios sejam contemplados
pela legislação, mas, em não estando, deveriam, mesmo assim, ser reconhecidos. A
autora interroga-se e responde:
Por que são universais e devem ser reconhecidos, se não existe nenhuma legislação supe-
rior que assim o obrigue? Essa é a grande questão da Idade Moderna. Porque é uma grande
conquista da humanidade ter chegado a algumas conclusões a respeito da dignidade e da
universalidade da pessoa humana, e do conjunto de direitos associados à pessoa humana.
É uma conquista universal que se exemplifica no fato de que hoje, pelo menos nos países
filiados à tradição ocidental, não se aceita mais a prática da escravidão. A escravidão não
apenas é proibida na legislação como ela repugna a consciência moral da humanidade.
Não se aceita mais o trabalho infantil. Não se aceitam mais castigos cruéis e degradantes
(BENEVIDES, 2019, p. 5).
É neste sentido que este texto trata da questão da ERD com ênfase para a
formação inicial dos professores, uma vez que o estudo produzido no interior da
disciplina de Educação Brasileira evidencia que há uma preponderância de visões
subjetivas por parte do professor quando certos temas aparecem nas aulas, como
religião, política (partidária), questões de gênero e sexualidade, aborto, família e
formação de valores.
O estudo indica, inclusive, que são significativos a prática de orações (predo-
mínio do viés cristão) nas aulas, os cultos em eventos festivos, as canções com men-
sagens moralistas, entre outros aspectos, o que nos leva a relacionar tais posturas
com a ausência do debate acerca do caráter laico da escola pública.
Conforme Brutti (2014, p. 117), a educação republicana “não anula as dife-
renças individuais e a diversidade de talentos e profissões, senão que previne do
risco que essas diferenças se traduzam em hierarquia social não acordada entre os
cidadãos”.
Maamari (2009) defende que a moral a ser desenvolvida pela instrução é uma
moral racional que resulte, de fato, na autonomia do indivíduo; o ensino da moral
visa a uma consciência independente, isto é, fazer uso do seu entendimento sem a
tutoria de outrem. Argumenta a autora:
A escola institui a República e por isso deve ser por ela mantida de modo a protegê-la
contra as tentações demagógicas e sofísticas e em defesa da verdade e da liberdade que lhe
deram origem. Para que isto se torne possível é necessário que se mantenha a escola com
autonomia. Ela deve estar livre dos imperativos econômicos conjunturais; deve impedir que
qualquer tipo de dogma esteja presente nas aulas; por fim, deve afastar a ameaça de que
interesses particulares de alguns substituam o desenvolvimento das crenças de modo livre
e autônomo pelos cidadãos (MAAMARI, 2009, p. 80).
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Desse ponto de vista, evidencia-se a aposta na educação do sujeito ao assumir-
-se que a escola, como instituição laica, apresenta os temas e possibilita seu debate,
numa convicção de que o sujeito pode construir seus pontos de vista na medida
em que acessa informações plurais, mediadas por um professor capacitado a um
debate em que as divergências aflorem e sejam tensionadas às perspectivas uni-
versalizantes. Também podemos observar, em Benevides (2016, p. 29-30), a aposta
na educação autônoma dos sujeitos:
A política e o exercício do poder são necessários e indispensáveis. Mas trazem, em si, a pos-
sibilidade do abuso, da manipulação, e as consequências costumam ser catastróficas. Tenho
enorme admiração por todos aqueles que se envolvem diretamente com tarefas políticas e
o exercício do poder, tendo como principal compromisso a prática dos valores republicanos
e democráticos – ou seja, a prioridade ao bem comum, acima dos interesses particulares e
privados, o respeito à igualdade de todos em dignidade, a garantia a todos de acesso aos
bens e serviços sociais, à cidadania ativa, enfim.
Benevides (2019, p. 3) deixa uma provocação para pensarmos o assunto na
medida em que reafirma a escola como este locus privilegiado de formação:
Onde deve ser desenvolvida a educação do cidadão? A escola é o locus privilegiado, embora
sofra, atualmente, a concorrência de outras instituições – como os meios de comunicação
de massa. A escola continua sendo a única instituição cuja função oficial e exclusiva é a
educação. É evidente que existem outros espaços para a educação do cidadão, dos partidos
aos sindicatos, às associações profissionais, aos movimentos sociais, aos institutos legais
de democracia direta. Mas a escola não deve substituir a militância, pois forma cidadãos
ativos e livres, e não, como alertava Fernando de Azevedo, homens de partido, de facções
virtualmente intolerantes.
Nesta direção, tomamos a ideia de Masschelein e Simons (2015), que fazem
uma defesa da escola em seu aspecto de escolé, ou seja, recuperam a noção grega
de escola com um tempo livre, um lugar privilegiado no qual as crianças e os jo-
vens estariam livres da família, da religião, do trabalho e da política. Para estes
autores, “a escola cria igualdade precisamente na medida em que constrói o tempo
livre, isto é, na medida em que consegue, temporariamente, suspender ou adiar o
passado e o futuro, criando, assim, uma brecha no tempo linear” (MASSCHELEIN;
SIMONS, 2015, p. 36).
Nossa expectativa é de que a escola possa constituir-se em um tempo/espaço
de vivências em direção à alteridade. Que a mesma possibilite ao sujeito pensar
as questões de seu tempo, mediadas por professores sensíveis, que permitam ra-
dicalizar o princípio expresso nas DCNs de conduzir os alunos a uma formação
ética, estética e inclusiva, radicalizando o todos com o propósito da perfectibilidade,
que deve caracterizar uma sociedade republicana e democrática, uma vez que: “O
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homem é um ser livre para deliberar, votar e escolher a lei que decide obedecer.
A cidadania resultaria na escolha livre e esclarecida pela instrução” (MAAMARI,
2009, p. 74). Por fim, reafirmamos a provocação deixada por Brayner (2016, p. 6):
A fragilidade de minha posição talvez resida no fato de esperar que a educação escolar
possa proporcionar a cada um esta competência cidadã que, na verdade, não é um privilégio
mas uma necessidade do debate público ampliado. Mas se a escola não puder fazê-lo, como
continuar a falar de uma educação para a cidadania?
Mesmo sabendo que o exercício cidadão não prescinde da educação escolar,
é impossível ignorar que a instrução, sustentada em conhecimentos de natureza
científica, filosófica, artística, somada aos aspectos educacionais da convivência
ética, pautada por valores democráticos e republicanos, tenha se tornado funda-
mental para uma cidadania plena em sociedades complexas como as em que vive-
mos.
Para seguir pensando na escola republicana...
Reconhecer a escola como uma instituição “artificial”, que se ocupa da edu-
cação, da instrução e da formação, passou a ocupar um lugar de destaque na ma-
nutenção dos valores democráticos e republicanos, porém somos convocados a nos
manifestar acerca da sua fragilização no tempo presente, que compromete também
os frágeis preceitos das sociedades fundadas nestes valores.
O esforço educativo da escola republicana e democrática realiza-se, inclusive,
ao evidenciar seus limites e fragilidades, tal como é o próprio humano, e nisso
cumpre papel importante, pois nos previne das tentações autoritárias que prome-
tem resolver “de vez” nossos problemas, ignorando que na processualidade do “a
cada vez” é que se manifesta a razoabilidade da condição humana nas sociedades
autônomas.
A escola, assim desejamos, deve manter-se como um lugar plural, acolhedor
das diferenças e, por isso mesmo, fundamental para a convivência entre os sujei-
tos. Entendemos que ela realiza este papel quando tematiza a constituição destas
diferenças, não as absolutizando, mas tencionando-as de um ponto de vista capaz
de viabilizar um mundo comum, em que as diferenças revelem a pluralidade, sem
hierarquizá-las.
Na medida em que possibilita ser-com-o-outro, a escola já cumpre um papel
fundamental, uma vez que cria situações em que é preciso seguir normas de convi-
vência, exigindo a construção de acordos, permitindo a isonomia e potencializando
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a autonomia, argumentos que consideramos relevantes para nos opormos às saídas
individualizadas, como a educação domiciliar (homeschooling), ou aquelas pauta-
das exclusivamente pela virtualidade das relações.
A formação inicial e continuada requer a consideração das leis, normas e di-
retrizes, pois tais normatizações não devem ser vistas como “opressivas”, afinal,
em sociedades democráticas, elas expressam a objetivação do consenso possível
entre os atores políticos. Por outro lado, o reconhecimento desta legitimidade não
deveria significar uma posição acrítica diante delas, mas de constante avaliação,
com vistas ao seu aperfeiçoamento, necessitando ressignificações à luz dos desafios
contemporâneos.
A universidade precisa ocupar-se de tais estudos e tematizações, contribuir
para a leitura crítica dos marcos legais e, ao mesmo tempo em que reconhece a
normatividade instituída, deve lembrar o caráter instituinte do exercício cidadão,
o qual tem na formação inicial um momento privilegiado com a constituição da
docência, em particular da escola pública, mas de maneira mais ampla, com os
preceitos republicanos de toda educação.
Mesmo sem garantias de desdobramentos positivos ao intento aqui exposto,
reitera-se a importância deste debate na formação inicial docente por acreditar-se
na sua pertinência, mas, também, pela urgência do tema em uma sociedade que
tem balizado seus valores quase que exclusivamente pela religião e pela “família”,
duas instituições que, por mais importantes que sejam, não são instituições demo-
cráticas. Enfim, releva saber que as liberdades que gozamos são tão frágeis quanto
as instituições que as garantem; assim, cabe sempre lembrar às novas gerações,
em particular àquelas que se ocuparão da educação, que a responsabilidade sobre
elas é uma tarefa de todos; aprendizagem não vem no “pacote genético”, portanto
precisa ser desenvolvida.
Notas
1
Disciplina que compõe o currículo comum dos cursos de formação de professores da Unijuí, uma instituição
comunitária que tem uma tradição de mais de 70 anos voltada à formação superior de professores, com
abrangência nacional.
2
Destacamos dois componentes curriculares deste currículo comum: Prática de Ensino Interárea: Ensino
Fundamental e Prática de Ensino Interárea: Ensino Médio. Tais disciplinas proporcionam aulas pelo viés
da interdisciplinaridade, nas quais os alunos constituem grupos de diferentes áreas de conhecimento e
desenvolvem projetos para o Ensino Fundamental e Médio, integrando conteúdos e conhecimentos a partir
da metodologia de Situação de Estudos (Gipec/Unijuí).
3
A noção de instrução pública é herdeira dos debates travados por ocasião da instituição da ER na França
pós-revolucionária, em particular nos textos de Condorcet (2008).
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Excessos de subjetivismo que parecem ignorar que em uma República as instituições, e aqueles que nelas
atuam, devam se pautar pelas leis, tendo, portanto, uma autonomia reativa.
5
O que também vale para as posições políticas, ideológicas, compatíveis com a pluralidade democrática,
originando a ideia de poder como “lugar vazio” (não é encarnado por nenhuma posição), e a distinção entre
Estado e governos.
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Cultura popular no planejamento e na prática de professores dos anos iniciais do
ensino fundamental
Popular culture for planning and practice of teachers during the early years of elementary education
Cultura popular en la planicación y la práctica de profesores de los primeros años de la
educación fundamental
Edinaldo Medeiros Carmo
*
Rosa Belém Farias
**
Marco Antonio Leandro Barzano
***
Resumo
Este artigo traz o resultado de uma pesquisa realizada durante um curso de mestrado no Programa de Pós-gra-
duação em Educação da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. A investigação partiu de inquietações re-
lacionadas à abordagem da cultura popular no currículo da escola, especicamente, nos anos iniciais do Ensino
Fundamental. Trata-se de uma pesquisa de natureza qualitativa, cujo objetivo foi compreender como a cultura
popular é abordada nos documentos curriculares. Além disso, utilizou-se a entrevista semiestruturada com qua-
tro professoras que relataram suas práticas pedagógicas. Os resultados demonstraram que as professoras, no
desenvolvimento do currículo, utilizam astúcias e modos sutis para abordar a cultura popular em suas aulas,
desencadeando um processo de criação e invenção na prática. As narrativas das professoras demonstram, ainda,
que, ao planejarem suas aulas, introduzem dispositivos didáticos que permitem gerar discussões sobre a cultura
popular e implantam ações como: visitas a pontos da cidade que são referências, entrevistas com representantes
da cultura local, etc., para que a temática não que nas margens do currículo desenvolvido na escola.
Palavras-chave: Cultura. Currículo. Escola.
*
Doutor em Educação pela Universidade Federal Fluminense. Professor do Departamento de Ciências Naturais - Uni-
versidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1594-8983. E-mail: medeirosed@uesb.
edu.br
**
Mestre em Educação pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Professora da Rede Municipal de Ensino de
Carinhanha, Bahia. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3824-2032. E-mail: belemcnn@hotmail.com
***
Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas. Professor do Departamento de Educação - Universi-
dade Estadual de Feira de Santana. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3273-9216. E-mail: marco.barzano@gmail.com
Recebido em 08/04/2020 – Aprovado em 30/09/2020
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i3.12383
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Abstract
This article shows results of a research derived from a master’s course in the Postgraduate Program in Education
of the State University of Southwest Bahia. The investigation was originated from concerns linked to the popular
cultures approach in the school curriculum and especially in the early years of Elementary School. It is a quali-
tative research aimed to understand how popular culture is approached in the curriculum documents. In addic-
tion, a semi-structured interview with four teachers reporting their pedagogical practices was used. The results
showed that teachers use clever and subtle ways in the development of the curriculum to approach popular
culture in their classes, triggering a process of creation and invention in practice. The teachers narratives also
demonstrate that they introduce didactic devices in the planning of their classes, allowing to generate discus-
sions regarding popular culture and implementing actions such as visits to points of the city that are references,
interviews with representatives of the local culture and others avoiding to let this topic to stay on the margins of
the curriculum developed at the school.
Keywords: Culture. Curriculum. School.
Resumen
Este artículo muestra el resultado de una investigación realizada durante un curso de maestría en el Programa
de Posgrado en Educación de la Universidad Estatal del Suroeste de Bahía. La investigación se originó en las
preocupaciones con los maestros y profesores relacionadas con el enfoque de la cultura popular en el currículo
escolar y especícamente en los primeros años de educación fundamental. Es una investigación cualitativa, con
el objetivo de comprender el abordaje de la cultura popular en los documentos curriculares, utilizando además
entrevistas semiestructuradas con cuatro docentes que informaron sobre sus prácticas pedagógicas. Los resulta-
dos muestran que los maestros y profesores utilizan formas astutas y sutiles en el desarrollo del plan de estudios
para acercarse a la cultura popular en sus clases, desencadenando un proceso de creación e invención en la prác-
tica. Las narrativas docentes demuestran también que, al planicar sus clases, introducen dispositivos didácticos
que les permiten generar discusiones sobre cultura popular e implementar acciones tales como: visitas a puntos
de la ciudad que son referencias, entrevistas con representantes de la cultura local y otros, con el n de que este
tema no quede al margen del plan de estudios desarrollado en la escuela.
Palabras clave: Cultura. Plan de estudios. Escuela.
Introdução
Este texto traz dados de uma investigação realizada durante o curso de mes-
trado no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual do
Sudoeste da Bahia, que partiu de inquietações relacionadas à abordagem da cul-
tura popular no currículo da escola, especificamente nos anos iniciais do Ensino
Fundamental. Desse modo, tinha-se a inquietação de investigar como a cultura
popular é abordada nos documentos curriculares e nas narrativas
1
dos professo-
res. Nessa perspectiva, os diálogos sobre a prática pedagógica e o currículo têm se
tornado bastante complexos, demonstrando assim, que a educação é um campo em
disputas. Neste estudo, buscamos compreender como professores, frente ao sentido
que lhes atribui, materializam o currículo em sala de aula.
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Desse modo, falar de educação é, sem dúvida, conectar-se aos múltiplos diá-
logos, é pensar em diversidade, mas, para tanto, é preciso eleger alguns aspectos
importantes de discussão e um deles é o currículo. Ainda, pensar a diversidade é
também envolver a prática pedagógica nesse conjunto de ações que a apresenta
como o diferencial, pois, no processo da escolarização, a prática pedagógica confi-
gura-se como uma ação potente que possibilita a abordagem da diversidade e da
diferença. Em função dos novos enfoques educacionais, estudos têm mostrado que
a construção do conhecimento perpassa por diversas engrenagens, contudo, mesmo
não sendo o único, o currículo é um dos elementos mais investigados.
Partindo desse pressuposto, Goodson (2013) afirma que o currículo não pode
ser o único instrumento de pesquisa no processo de escolarização, pois, a prática
pedagógica também se constitui objeto muito importante nesse cenário produtivo.
Portanto, essa prática, no contexto educacional, torna-se o aspecto essencial no
processo de ensino, porque, é através dela que o conteúdo ganha forma. Nas colabo-
rações de Schwille (1982, apud SACRISTÁN, 2000, p. 175), o docente tem partici-
pação importante nesse processo, pois, o professor, “[...] em última instância, decide
os aspectos a serem desenvolvidos na classe, especificando quanto tempo dedicará
a uma determinada matéria, que tópicos vai ensinar, a quem os ensina, quando e
quanto tempo conceder-lhes-á e com que qualidade serão aprendidos”.
Assim, a prática pedagógica e o professor como mediador dela, são essenciais
no processo da escolarização. Afinal, é o professor que, nas observações diárias, co-
nhece e reconhece as potencialidades e fragilidades dos alunos. Portanto, conhece
as vivências e as experiências deles. Nesse aspecto, o professor tem grande respon-
sabilidade, pois, conforme destaca Santos (2000, p. 57), “[...] as experiências dos
alunos, seus conhecimentos e sua inserção cultural, são aspectos a serem conside-
rados nas práticas pedagógicas”.
Embora o conceito de currículo seja multifacetado, há um consenso quanto
ao seu valor e importância no cenário educacional. Para Moreira e Candau (2007,
p. 19),
Currículo é, em outras palavras, o coração da escola, o espaço central em que todos atua-
mos, o que nos torna, nos diferentes níveis do processo educacional, responsáveis por sua
elaboração. O papel do educador no processo curricular é, assim, fundamental. Ele é um
dos grandes artífices, queira ou não, da construção dos currículos construídos que sistema-
tizam nas escolas e nas salas de aula.
Assim, de acordo com Moreira e Silva (2013), o currículo é lugar que, ativamen-
te, mediante tensões, produz e reproduz culturas. Currículo refere-se, nessa pers-
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pectiva, à criação, recriação, contestação e transgressão. Portanto, as mudanças no
cotidiano escolar partem das ações pedagógicas, dos Projetos Políticos Pedagógicos
escolares e devem posicionar-se frente ao ensino mais dialógico, na perspectiva re-
flexiva do currículo. Assim, Sacristán (2000) defende que o currículo é o espaço de
construção e que a função dos professores não é somente executá-lo, pois eles têm
um papel fundamental na produção dos seus significados. Com efeito, percebe-se
que na ação docente as informações são articuladas a possíveis mudanças. Desse
ponto de vista, acrescenta-se que a vida na escola se dá a partir da inter-relação
professor-aluno, potencializando o exercício docente.
Nessa perspectiva, as interações que ocorrem no espaço escolar são permea-
das por diferentes culturas. E, dando centralidade a dimensão empreendida nes-
ta pesquisa, a cultura popular representa nos currículos escolares a resistência
frente a gama de influências culturais advindas da globalização que reforçam a
subalternização das culturas locais, tornando-se, ou querendo torná-las, culturas
das margens. Assim, conforme adverte Chauí (2014, p. 27), “[...] não tentaremos
abordar a cultura popular como uma outra cultura, ao lado (ou no fundo) da cultura
dominante, mas como algo que se efetua por dentro dessa mesma cultura, ainda
que para resistir a ela”.
Por conseguinte, pensar em resistência é apontar os diferentes mecanismos de
existência da cultura popular, passando pela luta política e pedagógica. Portanto, é
reconhecer a essência e a importância da cultura para a vida humana. Desse modo,
ressaltamos sua importância para que ela possa ser entendida como um vasto cam-
po de conhecimentos, porque nela estão embutidas marcas que envolvem práticas
diversas, nas quais se ensina e se aprende.
A cultura popular configura-se, desse modo, como um espetáculo que, na maio-
ria das vezes, ocorre nas ruas como tantas manifestações que constituem a cultura
popular brasileira. Para além disso, Gullar (1983, p. 23) destaca outro sentido, ao
afirmar que “[...] a cultura popular é um movimento para a libertação do homem
e só tem sentido na medida em que promover o homem não só como receptor, mas
principalmente como criador das expressões culturais”. Contudo, cabe considerar
que nessas manifestações ocorre a cumplicidade entre as pessoas, criando vínculos
de ações afetivas, o que também é educativo, pois, por meio da ludicidade, acessam
as memórias e as afirmações de identidades.
Nesse sentido, a cultura popular é um movimento que atrai a presença sig-
nificativa de pessoas, isso quer dizer que, mesmo com as mudanças ocorridas na
sociedade, como as linguagens virtuais, os meios de comunicação, entre outros me-
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canismos tecnológicos, a cultura popular permanece e ainda resiste às influências
desse momento histórico (FÁVERO, 1983). Contudo, a cultura popular permeia
conversas e narrativas, talvez não no mesmo ritmo e vigor de outrora, principal-
mente entre os mais jovens. Por isso, insiste-se que a escola pode contribuir para
o fortalecimento da cultura popular que, pelas ações de professores, militantes e
defensores, insiste em não permanecer nas margens.
Diante disso, pela natureza qualitativa que a abordagem dessa pesquisa re-
quer, buscou-se compreender como a cultura popular é abordada nos documentos
curriculares e nas narrativas dos professores ao relatarem suas práticas pedagó-
gicas. Para Minayo (2013, p. 57), esse tipo de estudo aplica-se ao “[...] estudo de
história, das relações, das representações, das crenças, das percepções e das opi-
niões, produções das interpretações que humanos fazem a respeito de como vivem,
constroem seus artefatos e a si mesmos, sentem e pensam”. Essa natureza de in-
vestigação pressupõe que não há como trabalhar com variáveis como tentativa de
provar ou comprovar algo, e, nesse caso, compreender as narrativas dos professores
parte do pressuposto de que não se pretende comprovar, pelo contrário, busca-se
compreender nos resultados subjetivos, e, nessa direção, a pesquisa qualitativa
comporta todos os parâmetros que corroboram para essa perspectiva.
O estudo foi realizado no município de Carinhanha, situado no oeste baiano,
e teve como participantes quatro professores, selecionados mediante os seguintes
critérios: a) professores com vínculo efetivo; b) professores que lecionam com tur-
mas do 4º e do 5º ano do Ensino Fundamental; c) professores de duas escolas mu-
nicipais, sendo uma na zona urbana e a outra na rural. As fontes de produção de
dados consistiram em documentos curriculares (Projeto Político Pedagógico, planos
de ensino, projetos didáticos etc.), além de entrevista semiestruturada, realizada
com as quatro professoras que participaram do estudo.
Os dados obtidos por meio da análise dos documentos curriculares, produzidos
pelas professoras na escola, assim como, os oriundos das entrevistas, foram ava-
liados mediante Análise de Conteúdo. De acordo com Bardin (2011), a Análise de
Conteúdo é um aparato de instrumentos ressignificáveis, capaz de se reinventar
mesmo diante do tempo e das transformações sociais, políticas e culturais. Para
Olabuenaga e Ispizúa (1989 apud MORAES, 1999), a Análise de Conteúdo é uma
técnica de leitura interpretativa de toda classe de documentos, que, analisados
adequadamente, abrem as portas ao conhecimento de aspectos e particularidades
dos dados da vida social do outro, que, na maioria das vezes, são inacessíveis. Des-
se modo, essa técnica, na perspectiva qualitativa, parte de uma série de pressu-
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postos, os quais, no exame de um texto, servem de suporte para captar seu sentido
simbólico. No entanto, esse sentido nem sempre é manifesto e o seu significado não
é único, o que indica que este poderá ser compreendido em função de diferentes
perspectivas.
Planejamento e suas interfaces com a cultura popular: do planejado ao
vivenciado
Os diálogos sobre a prática pedagógica e o currículo têm se mostrado bastante
complexos. Desse modo, em meio aos acirramentos nos contextos social, político e
educacional, o professor torna-se um dos principias protagonistas no que diz res-
peito à sua compreensão sobre o currículo e à materialização deste em sua prática.
Partindo desse pressuposto, focaliza-se, na análise apresentada, o papel do profes-
sor, frente ao sentido que se lhes atribui, ao materializam o currículo em sala de
aula.
As narrativas das professoras foram semelhantes quanto ao trabalho com a
cultura popular. Para todas as entrevistadas, desenvolver atividades relaciona-
das à cultura popular tem sido muito desafiador. Foram relatos que caracterizam
dificuldades, seja pela falta de direcionamento dessa temática no currículo, pois
este pouco orienta o trabalho docente, seja por questões relacionadas à formação,
e, não menos importante, às cobranças insistentes por resultados e à centralidade
aos conteúdos. Frente aos relatos das professoras, abordar a cultura popular em
sala de aula exige iniciativa e resistência. Tal justificativa dá-se pelas restrições do
próprio currículo. Refutar, renunciar alguns dos muitos imperativos prescritivos,
exige muita ousadia na prática pedagógica. Portanto, relutar com as muitas orde-
nações curriculares exige do professor atitude e, ao mesmo tempo, leva-o a correr
riscos.
Assim, ao questionar as professoras sobre a materialização do currículo por
meio do planejamento e as mudanças que ocorrem nessa transposição, a professora
Júlia destaca:
São várias mudanças, desde nosso olhar ao exposto, até articularmos tudo aquilo em um
plano e, por fim, transformar em aula. Confesso que são muitas interpretações. Mas, às vezes,
estas mudanças nos custam muito caro, porque nem sempre as mudanças são bem-vindas
na escola. Somos orientados a cumprir fielmente a cartela dos conteúdos, e muitos dos guias
não trazem a cultura popular.
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Ao analisarmos essa narrativa, cabe considerar que, sem dúvidas, romper
com regras estabelecidas ou, até mesmo, criar outros procedimentos, os quais são
elencados como mais adequados e decisivos, tira o professor, em muitos casos, da
sua zona de conforto. Conforme observa Freire (2002), é na inquietação, na incom-
pletude, que nos tornamos criteriosos e exigentes. A atitude da professora mostra
seu compromisso com o aluno, demonstra também que a interpretação e reinter-
pretação do currículo são fomentadas por outras produções do conhecimento que
são extremamente importantes para a formação dos discentes; nesse sentido, em
muito dos casos: “O currículo recai em atividades escolares, o que não significa que
essas práticas sejam somente expressão das intenções e conteúdos do currículo”
(SACRISTÁN, 2000, p. 201).
É imperativo, nesse sentido, observar cuidadosamente as sutilezas dos esque-
mas utilizados para difundir as ideologias dominantes transmitidas pelo currículo.
Essa transmissão ocorre por vários veículos, desde a ausência de esquemas repre-
sentativos, até o livro didático, material comumente utilizado pelos professores e
alunos das escolas. E, nesses materiais didáticos está embutida uma linguagem
que, cotidianamente, vai materializando a ideologia e os interesses de grupos
sociais dominantes, com base apenas num fundamento social, político e cultural
(MOREIRA; SILVA, 2013).
Porém, algo também chama a atenção, quando a professora Julia expõe a vi-
gilância que é direcionada ao professor e à sua prática para abordar os conteúdos
prescritos no currículo. Mas, ainda na explicação da professora Júlia, entendemos
porque é tão difícil para os professores buscarem outros percursos pedagógicos.
Há uma política arraigada do copiar e colar. Digo isto porque falam de autonomia, mas nós
sabemos que a escola é um sistema, e este, por sua vez, é orientado por outros meios. Então,
nos últimos anos, a cobrança pelos conteúdos, resultados de avaliações [externas] ficam em
primeiro lugar. E, para chegar a estes resultados, há toda uma orientação. Então, nós, de certa
forma, somos monitorados. Se trabalhamos de outra forma, assumimos riscos. E é isto o que
acontece, nos arriscamos sempre (Professora Júlia).
Analisando a narrativa da professora Julia depreende-se que há uma gama
de exigências aos professores, sejam elas isoladas ou não, pelas quais o professor
está sempre acarretado e também sob o controle interno e externo a escola. As pon-
derações de Sacristán sobre as competências do professor na hora de interpretar o
currículo podem elucidar a narrativa de Júlia. Para Sacristán (2000, p. 204):
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O comportamento profissional destes [os professores] está muito mediatizado pela pres-
são em ter de atuar, constantemente, sendo exigidos pelas urgências de um ambiente que
requer que um grupo numeroso de alunos se mantenha ocupado, dando cumprimento às
exigências do currículo, às normas sociais da escola, etc.
Oportunamente, as reflexões de Sacristán (2000) denunciam com muita clare-
za as dificuldades vividas pelos professores, quanto à ideia de mobilizar o debate
sobre a cultura popular, em um campo marcado pelo controle técnico, legitimadas
pelas deliberações oficiais. Portanto, é preciso levar em conta o empenho, mas,
também, por onde as atitudes astuciosas dos professores percorrem para materia-
lizar ou reconfigurar as prescrições curriculares.
Diante disso, a professora Olívia explica de que forma são feitas essas reconfi-
gurações a partir do currículo. Enfaticamente, ao falar do Projeto Político Pedagó-
gico, a professora demonstra sua insatisfação ao relatar que as entrelinhas ocupam
um lugar incerto sobre a cultura popular. Grosso modo, ela tenta reordenar, reler o
currículo articulando o contexto da escola e da comunidade, mesmo que esse esteja
“vago” quanto aos repertórios dos saberes locais. Isso mostra que a professora,
mesmo sentindo falta de uma maior explanação da temática no currículo, busca
outros meios e possiblidades de inserção.
Entretanto, vale lembrar que no universo escolar, especificamente na sala de
aula, o professor tem seu posicionamento quanto aos conteúdos abordados no cur-
rículo, os quais são identificados e rotulados como satisfatórios para a aprendiza-
gem dos educandos. Contudo, cabe considerar que, assim, o currículo é produto de
relações e disputas, nas quais estão contidos valores e posicionamentos de muitos,
e o professor, por sua vez, também vem de um território no qual estão empregados
valores e condutas que ele, na condição de intelectual, constrói e adquire durante
sua trajetória social (APPLE, 2003).
Nesse sentido, podemos deduzir que esse profissional, ao interagir com o co-
tidiano da sala de aula, confabula situações, as quais o colocam diante de decisões
em que ele precisa optar, ou não, por abordar determinados conteúdos prescritos
no currículo. “Por isso, muitas das decisões que o professor tem de tomar aparecem
como instantâneas e intuitivas, mecanismos reflexos, e, por isso mesmo, é difícil,
se não impossível, buscar padrões para racionalizar a prática educativa enquanto
esta se realiza” (SACRISTÁN, 2000, p. 205).
Contudo, apesar dos embaraços, os professores conspiram, vão silenciosa-
mente reinterpretando, e os bloqueios vistos no currículo são confrontados com os
saberes adquiridos ao longo da docência. Por isso, as contribuições da experiência
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profissional nesses momentos fazem a grande diferença em sala de aula. O relato
da professora Olívia ratifica o que vem sendo discutindo. A professora reitera e
avalia que:
[...] as ações [voltadas à cultura popular], [...] no projeto, falam de comunidade e a escola
e vice-versa, [no entanto], vejo um tanto vago. Mas, pelas minhas experiências, organizo
um planejamento no qual costumo desenvolver estratégias de conhecer pontos, algumas
referências culturais da cidade. Vou à casa do Careta. Neste local, tem alguns registros
importantes que precisam ser explorados e podem contribuir com a proposta sinalizada no
Projeto Político Pedagógico. Também utilizo entrevistas com as pessoas da comunidade, dos
movimentos sociais, dos grupos artísticos, pois eles são produtos vivos e grandes produtores
[da cultura popular] (Professora Olívia).
Ao fazer referência à imprecisão do currículo, quanto à abordagem da cultura
popular, Olívia também aponta os modos como, apropriando-se de sua experiência,
modifica e implementa o planejamento curricular. Então, ao sinalizar os proble-
mas no Projeto Político Pedagógico, procura intercalar outras fontes interativas
para realizar atividades com os alunos. Desse modo, a professora demonstra certa
destreza para desenvolver as atividades propostas. Possivelmente, a maturidade
da profissão permite operacionalizar um leque de possiblidades que conduzem a
professora a fomentar, sempre que oportuno, outros trabalhos sobre a cultura po-
pular. E essa familiaridade marca seu modo de desenvolver o currículo, o que Frei-
re (2002) denominou eixos temáticos para trabalhar com as vivências das classes
populares. A professora Olívia ainda destaca:
Em meu plano de curso, trabalho por unidades, através das datas comemorativas. Eu sigo um
tema, por exemplo, agora mesmo trabalharemos com o aniversário da cidade, aí aproveito o
que pode ser implementado e ampliado sobre a cultura popular. As datas comemorativas são
os pontos de partida (Professora Olívia).
O fragmento reporta e potencializa o valor da experiência profissional. Por
meio dos saberes da experiência (TARDIF, 2002) o professor consegue produzir,
orientar e desenvolver outras atividades. Nesse contexto, a inferência que fazemos
é que a experiência adquirida possibilita ao professor refletir acerca dos efeitos
sobre o processo do ensino e aprendizagem, e, a depender da sua atuação, podem
potencializar a sua ação e a aprendizagem dos alunos, reconhecendo e valorizando
os seus saberes e das suas comunidades.
Assim, segundo Olívia, a partir da sua autocrítica, as atividades fomentadas
por ela não correspondem ao potencial cultural que o município possui. Para ela,
a cultura popular deve ter um destaque perante a cultura da escola. Mas, contra-
riando o desejo da professora, a escola ressalta por meio das práticas sutis a visi-
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bilidade da política do mercado, a qual é representada pela cultura de massa que,
como argumenta a professora, acaba secundarizando a cultura popular. De acordo
com Forquin (1993), é injustificável na realidade atual desconsiderar a diversidade
de identidades existentes na escola. A professora acrescenta:
[...] competir com este mercado, eu digo que é um dos grandes gargalos para nós, professo-
res. Buscar neste momento, no qual é evidente uma produção momentânea das coisas, onde
o que agora é, mais tarde já não é mais, representa um desafio e tanto. Mas, é também a
partir das nossas reflexões, do nosso tato pedagógico, que iremos selecionar ou, ao menos,
tentar inserir contextos de práticas sociais que possam contribuir com o processo da formação
humana de cada um dos nossos alunos (Professora Olívia).
Ao analisar essa narrativa percebemos uma possiblidade de diálogo com o pen-
samento de Certeau (2014). Ao perceber que o currículo está distante da realidade
sociocultural dos seus alunos, a professora, como diria o autor, utiliza “táticas”, no
intuito de encontrar outras itinerâncias. Nesse sentido, conforme assevera Certeau
(2014, p. 38), “O cotidiano se inventa com mil maneiras de caça não autorizada”.
Por meio do depoimento das professoras, é possível destacar que elas são as
principais interessadas na inclusão da cultura popular no currículo da escola. Em-
bora estejam presentes inúmeras situações contrárias, nos relatos de suas prá-
ticas pedagógicas demonstram o comprometimento com os saberes locais. Logo,
pela maneira como tratam a cultura popular, a forma como reconhecem e tentam
estabelecer interface entre o conhecimento popular e os conteúdos programáticos, é
possível perceber um pequeno hiato, um rompimento com a sequência hierárquica
do ensino, contudo, suas práticas vêm sugestionando os saberes “híbridos” (BHA-
BHA, 1998).
Desse modo, as bricolagens
2
(CERTEAU, 2014) das professoras denunciam
também que o currículo não explicita possibilidades de abordar os elementos cul-
turais, sobretudo aqueles relacionados à cultura popular. Isso, de sobremaneira,
sobrecarrega o professor, pois ele tem que buscar modos “de caça não autorizada”,
como afirma Certeau (2014), para reconfigurar o currículo, buscando lacunas e
oportunidades que o permita transgredir. A professora Olívia, por exemplo, reforça
que, nessa luta, em que estão em jogo algumas prioridades, os professores acabam
quase solitários.
O Projeto Político Pedagógico não é um documento de muita clareza. Quero dizer com isto que
não há explanação sobre a cultura popular. E, por isso, é que, enquanto professora, vou com
as minhas ideias encaixando algumas coisas que acho interessante falar. Às vezes, penso até
que, se não estou errada em fazer isto, mas vou remando contra a maré.
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Ao expressar “vou com as minhas ideias encaixando algumas coisas que acho
interessante falar”, a professora, certamente, numa ação calculada, vai imprimindo
suas marcas em um território “vigiado”. Apesar do cuidado de não burlar as temi-
das imposições, a professora, em suas táticas sutis (CERTEAU, 2014), reelabora as
prescrições. As produções realizadas pela professora assentam-se no que Certeau
assinala como piratarias ou clandestinidade. “As ideias encaixadas” no currículo
podem ser interpretadas de duas maneiras: a primeira é a de que currículo, por
ocasião, é um produto de imposições, e a segunda é a de que, é a partir dessas
imposições que os professores, astuciosamente, vão reinventando o cotidiano, em
que o prescrito, no campo das práticas, os professores, astuciosamente, subvertem
e reescrevem outras histórias.
No entanto, mesmo com intenções produtivas, os professores sentem-se culpa-
dos por algumas transgressões curriculares. Ainda que, pedagógica e didaticamen-
te, as atividades não apareçam soltas, o poder que o currículo e a cultura escolar
têm de cercear as suas práticas, deixa-os constrangidos.
Parece que o currículo tenta preparar os alunos apenas para o mercado de trabalho, instru-
mentalizá-los, esta é a palavra. E nós professores é que vamos, dentro das possiblidades,
construindo este diálogo mais reflexivo sobre todos estes desafios que envolvem a sociedade
(Professora Olívia).
Nesse sentido, a escola admite as interferências do mercado na manipulação
da informação no incentivo ao consumo e ao imediatismo. Estes são pontos fortes
de discussões em que, de um lado, temos uma cultura do consumo, da alienação,
e, de outro, busca-se, talvez, repensar as ações enquanto sujeitos de direitos e de-
veres. Apresentar situações de ensino fundamentadas nos contextos socioculturais
dos alunos, também é uma forma de resistência às imposições que chegam à escola.
Assim, Moreira e Silva (2013) denunciam que o currículo oficial ainda oferece
“perigo” quanto às reproduções das forças dominantes, e, nesse sentido, os autores
pontuam que a grande tarefa dos professores é, justamente, analisar esses itens
com vistas a uma política que permita o combate às forças que norteiam o currícu-
lo, dificultando outras visões de mundo. Para os autores, essa vigilância ajudará os
professores a visualizar panoramicamente o currículo, tornando-o campo cultural
de construção e produção de sentido, terreno da luta pela transformação das rela-
ções de poder.
Entre os vários pontos que demandam o currículo, algo é primordial ao profes-
sor: ser vigilante e reflexivo acerca dos contextos educacionais, sociais e políticos,
nos quais os alunos estão imersos. Desse modo, é importante ter presente o dis-
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cernimento para selecionar contribuições que, associadas ao processo de ensino e
aprendizagem, melhor ofereçam aos alunos a oportunidade de conviver e pertencer
a suas culturas. Diante dessas considerações, a professora Sizaltina acrescenta
que:
Em muitas datas, não dá para encaixar a cultura popular, mas, em muitos outros conteúdos,
aparecem oportunidades. Aí, às vezes, eu trabalho falando da cultura popular que nem eu
mesma percebo. Preferencialmente, são os conteúdos, mas, se tiver uma oportunidade, como
já disse, faço algumas atividades.
Cabe considerar, mediante relato da professora, que é pertinente avaliar como
os professores utilizam o lugar que ocupam para resistir, transgredir e, enfim, pro-
mover os desdobramentos em relação à materialização do currículo. Assim, muitos
professores criticam as imposições curriculares que chegam até eles, destacando a
inadequação à realidade dos educandos, o que leva alguns a resistirem a essas for-
mas padronizadas do conhecimento. Dessa forma, as astúcias (CERTEAU, 2014)
utilizadas pelos professores passam a ser as grandes aliadas na hora de operacio-
nalizar o currículo. Os modos pelos quais os professores enfrentam as imposições
curriculares são diversos; suas ações são observadas desde a não execução até a
criação de táticas (CERTEAU, 2014) produzidas para abordar o conteúdo.
Discutir esses pressupostos que estão ligados direta ou indiretamente à práti-
ca pedagógica é avançar e reconhecer que o professor, no processo da escolarização,
é mais do que um mero receptor e executor dos programas escolares. Ele, se, por
um lado, operacionaliza as prescrições, por outro, resiste a elas, modifica-as para
atender a situações reais de ensino e às necessidades formativas de seus alunos.
A professora Olívia, ao descrever sua prática, destacou o modo como articula os
conteúdos curriculares com os elementos da cultura popular.
[...] se eu estiver trabalhando com língua portuguesa – produção textual – gosto muito de inse-
rir o cordel, parlendas, cantiga de roda, trava-língua, e isto tem dado muito resultado. Quando
trabalho com história, procuro abordar os costumes da comunidade, por exemplo. Quando
trabalhei o texto “bonecas”, relatamos sobre as produções, como era feita na região, como
se brincava, [problematizando], quem não tinha acesso às bonecas produzidas na indústria,
brincava com quais tipos de bonecas? Vou inserindo questionamentos que direcionam para as
práticas da cultura popular. Também trabalhamos as questões raciais, e o fio condutor é a cul-
tura popular. Eu mexo muito com a cultura desses meninos, acho importante falar sobre isto.
Acho muito importante falar sobre as preciosidades que revelam muito sobre nossa história.
O depoimento da professora Olívia, de certo modo, demonstra que, perante
as imposições curriculares, ela tem articulado, astuciosamente (CERTEAU, 2014),
os conteúdos disciplinares das séries em que leciona com os elementos da cultura
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popular local, incorporando, inclusive, um olhar crítico no que se refere ao acesso a
bens materiais, questões raciais, valorizando a cultura enquanto identidade. Des-
tarte, Forquin (1993, p. 9), ao analisar os conteúdos a serem ensinados na escola,
destaca que
[...] toda crítica envolvendo a verdadeira natureza dos conteúdos ensinados, sua pertinên-
cia, sua consistência, sua utilidade, seu interesse, seu valor educativo ou cultural, constitui
para os professores um motivo privilegiado de inquieta reação ou dolorosa consciência.
Nesse sentido, regido pelas escolhas que realiza no processo educativo, o pro-
fessor é um mediador fundamental, no entanto, lhe cabe também ter parâmetros
e critérios para suas escolhas e decisões. Forquin (1993) busca esse ponto de con-
fronto entre os conteúdos a serem ensinados e o processo educativo. Assim, o autor
considera importante a problematização e a reflexão sobre as questões culturais
e as escolhas educativas. Ao relatar sobre as adversidades que atravessam o tra-
balho docente, a professora Raimunda destaca o quanto, algumas vezes, é tomada
pelo desânimo, por insistir com a abordagem da cultura no currículo escolar.
Tem horas que, sinceramente, penso em desistir. Falo assim: se o currículo tem dificuldade de
viabilizar este compromisso, por que eu, que já tenho tanto trabalho, vou insistir em algo que
muitos não estão nem aí? Mas volto atrás e, às vezes, conversando com minhas colegas que
me dão força para não deixar de lado. É assim mesmo, a gente fala as coisas no calor, mas é
porque também não tem muito incentivo.
Considerando o esforço das professoras, mais uma vez, reconhece-se e ressal-
ta-se que elas, por meio da atividade docente, são persistentes, mesmo quando o
território é regido por regras educativas que conspiram contra sua atuação; e, nesse
caso, Certeau (2014) argumenta que os sujeitos podem, em determinado momento,
ter a chance de problematizar, barulhar a ordem dominante, dar golpes, e, onde a
situação parecia inabalável e homogênea, as criatividades das práticas cotidianas,
revertem situações dominadoras, em situações favoráveis. Em consonância com
esse argumento, Sacristán (2000) avalia a atuação do professor frente às decisões
políticas e pedagógicas e defende que esses profissionais, por meio de sua prática,
reinterpretam tanto o currículo quanto as situações que os colocam em desafios.
[...] na hora de materializar este currículo são postos os desafios. Primeiro que o ponto forte
são os conteúdos, e aí vêm as datas. Se eu fosse pegar ao pé da letra o que diz o currículo
sobre a cultura popular, vou ser sincera, não trabalharia. Mas eu puxo algo daqui, puxo algo
dali e surge muita coisa. Mas, alerto que, na prática, estou devendo, porque, no geral, são
atividades ainda muito pontuais (Professora Raimunda).
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Narrativas como essa permitem considerar que os professores caminham na
produção de novas epistemologias, embora, em muitos casos, não tenham consciên-
cia disso. Subvertem o currículo, imprimindo elementos pedagógicos para inserção
de temáticas que julgam pertinentes serem abordadas com seus alunos. Numa
primeira instância, as professoras reconhecem o que está previamente estabelecido
no Projeto Político Pedagógico, no entanto, asseguram que no plano de curso, ao
planejarem, articulam e incorporam os elementos da cultura popular apontados
pontualmente nos documentos curriculares.
Eu acho que a maior discussão realmente acontece em sala de aula por meio do que eu sina-
lizo no plano de curso a partir de rodas de conversas, leituras, questionamentos e produções.
Isto depende muito dos conteúdos expostos no PPP, porque seguimos as orientações. Mas o
plano de aula é que apresenta esta temática. Nosso instrumento seguro para esta parte mais
efetiva realmente é o plano de aula (Professora Olívia).
Fundamentadas no Projeto Político Pedagógico, as professoras, de modo as-
tucioso, criam táticas (CERTEAU, 2014) para articular o prescrito e o emergente
(cultura popular), traçando novas configurações curriculares. Ciente desses feitos
é que as professoras, a despeito das imposições curriculares, ainda se sentem ins-
piradas para implementar sua prática e, consequentemente, melhorar o ensino.
Portanto, fica claro que o ato de educar e suas implicações não se prendem ao
exercício mecânico, muito menos, a uma atividade que se reduz ao treinamento.
Porque, assim como Candau (2016, p. 807) assevera:
Não acreditamos na padronização, em currículos únicos e engessados e perspectivas que
reduzem o direito à educação a resultados uniformes. Acreditamos no potencial dos educa-
dores para construir propostas educativas coletivas e plurais. É tempo de inovar, atrever-se a
realizar experiências pedagógicas a partir de paradigmas educacionais “outros”, mobilizar as
comunidades educativas na construção de projetos político-pedagógicos relevantes para cada
contexto. Nesse horizonte, a perspectiva intercultural pode oferecer contribuições especial-
mente relevantes.
Os relatos apontam que as professoras não concorrem com o Projeto Político
Pedagógico, pelo contrário, dentro de um espaço vigiado, criam táticas (CERTEAU,
2014) nos interstícios, nas frestas do planejamento para abordar a cultura popular
em suas aulas. A professora Sizaltina ressalta:
[...] muitas vezes nos valemos das nossas insistências, do nosso plano de aula. [...] nesse
sentido, o professor todos os dias faz enfrentamentos com ele mesmo por desafiar os limites
da sua prática, e isto envolve uma série de fatores, desde a mediação entre o Projeto Político
Pedagógico e o plano de sala de aula, até intermediar a recepção dos alunos quanto ao que
é ensinado e também do seu desejo.
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Mediante as narrativas que compuseram esta análise, vale ressaltar os “mo-
dos de fazer” (CARMO, 2013) produzidos pelas professoras para imprimir no currí-
culo os aspectos da cultura que as aproximavam da realidade sociocultural de seus
alunos. De certo modo, elas reconhecem que a prática pedagógica é o fio condutor
entre as prescrições curriculares e as suas intenções pedagógicas na sala de aula. É
nessa prática que arquitetam, constroem e executam as diversas atividades, a fim
de associar a cultura popular com os conteúdos propostos no currículo.
Considerações nais
A intenção deste trabalho consistiu em compreender como a cultura popular
é abordada nos documentos curriculares e nas narrativas de professores ao fala-
rem sobre sua prática pedagógica. Assim, foi possível observar que as professoras
no desenvolvimento do currículo utilizam astúcias e modos sutis para abordar a
cultura popular em suas aulas, desencadeando um processo de criação e invenção
na prática. Desse modo, investigar como elas produzem essas inventividades para
driblar as prescrições que chegam à escola, é ouvir as vozes silenciadas no currículo
praticado. Afinal, os documentos curriculares investigados, sobretudo, os Projetos
Políticos Pedagógicos das escolas, demonstram que a cultura popular tem sido se-
cundarizada.
Entretanto, as narrativas das professoras que participaram do estudo demons-
tram também que ao planejarem suas aulas, introduzem dispositivos didáticos que
permitem gerar discussões sobre a cultura popular e implantam ações como, visitas
a pontos da cidade que são referências, entrevistas com representantes da cultura
local etc., para que a temática não fique nas margens do currículo desenvolvido na
escola. Desse modo, construir epistemologias a partir da escuta desses profissio-
nais quanto à materialização do currículo, permite conhecer aspectos do currículo
que a análise documental, tão somente, não permitiria.
Assim, as nuances que envolvem a cultura popular, os documentos exami-
nados e a prática pedagógica configuram-se um território de disputas. Embora a
cultura popular esteja marginalizada nos documentos oficiais, há iniciativas no
interior das salas de aulas, as quais, por forças das precisões, muitas vezes, são
silenciadas, exigindo que as professoras rompam com seus próprios medos, inse-
guranças e constrangimentos para fugirem da retórica de que os conteúdos pro-
gramáticos devem ser cumpridos. Desse modo, as inventividades das professoras
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constituem demarcações que, cotidianamente, revelam seus esforços para que a
cultura popular ocupe lugar no currículo.
Nesse sentido, por trás da aparente calmaria das escolas, há um território de
contestação e criação, muitas vezes silenciado pelos discursos retóricos da cultura
de massa que reforçam a hegemonia e secundarizam a diferença. Assim, torna-se
imprescindível o desenvolvimento de pesquisas que adentrem o interior das esco-
las para falar com ela, ouvindo os relatos dos professores, alunos, gestores e fun-
cionários, pois, somente eles poderão revelar as nuances do currículo desenvolvido
que não aparecem nos documentos.
Notas
1
Cabe considerar que o conceito de narrativa que adotamos nesse texto não se filia à perspectiva que a
utiliza como dispositivo de produção de dados, mas, num entendimento lato sensu.
2
Certeau (2014) utilizou a noção de bricolagem para denominar o algo novo resultante da união de vários
elementos culturais.
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Edinaldo Medeiros Carmo, Rosa Belém Farias, Marco Antonio Leandro Barzano
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*
Graduada em Pedagogia pela universidade Federal do Maranhão; especialista em magistério superior pelo Centro
Universitário do Maranhão; Mestre em Economia pela universidade Federal e de Pernambuco; Doutora em Linguísti-
ca e Língua Portuguesa pela Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho - Unesp - Araraquara. Professora
no programa de pós-graduação em Educação do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-gran-
dense. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-4949-0023
**
Graduada em Direito pela Universidade Católica de Pelotas (UCPel); Licenciada em Formação Docente para a Educa-
ção Básica - Letras pela Faculdade Educacional da Lapa; Especialista em Direito Civil e Processual Civil pela Faculdade
Anhanguera Pelotas; Mestre em Educação e Tecnologia pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-
-rio-grandense (IFSul); Doutoranda em Educação e Tecnologia no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
Sul-rio-grandense (IFSul). Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1128-3857
***
Graduado em Matemática pela Universidade Federal de Pelotas; Mestre em Ciências Sociais Aplicadas pela Universi-
dade Federal do Rio Grande do Norte; Doutor em Educação para a Ciência pela Universidade Estadual Paulista Julio
de Mesquita Filho - Unesp - Bauru. Professor no programa de pós-graduação em Educação do Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-3294-3711
Recebido em 25/02/2020 – Aprovado em 05/10/2020
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i3.12384
ões armativas: uma análise do acesso e da permanência dos alunos
cotistas do IFSul
Positive actions: an analysis of admission and permanence of IFSul balancing students
Políticas de acción armativa: un análisis de la admisión y de la permanência de los estudiantes
titulares de cuotas del IFSul
Márcia Helena Sauaia Guimarães Rostas
*
Maria Cecília Isaacsson
**
Rafael Montoito
***
Resumo
O presente trabalho é resultado de uma dissertação que analisou o ingresso por cotas nos cursos técnicos de
nível médio da forma integrada do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense (IFSul),
campus Pelotas, e o quadro geral dos alunos cotistas no que tange às políticas de ações armativas de perma-
nência e ao êxito escolar. Para tal, utilizamos como metodologia o estudo de caso e a análise de categorias refe-
rentes ao recebimento ou não de benefícios oferecidos pela instituição, com abordagem qualitativa (estudo dos
referenciais teóricos acerca da temática) e quantitativa (análise dos dados sistêmicos). Quanto à coleta de dados,
usamos pesquisa bibliográca, extração de dados sistêmicos e aplicação de questionário ao universo de alunos
que ingressaram em 2014/1. Ao nal, concluímos que as cotas podem promover uma “pseudo mobilidade social
e que o aluno que ingressa por este sistema não vincula a isso sua permanência ou êxito escolar.
Palavras-chave: Educação. Êxito escolar. Ingresso por Cotas. Permanência. Políticas Armativas.
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Abstract
This study originated in a dissertation that analyzed racial balancing through the high school technical program
integrated modality admission at Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense (IFSul),
Pelotas Campus, and the racial balancing student general Picture regarding positive action policies of atten-
dance and academic achievement. For such, case study methodology and the analysis of categories referring to
the receipt or not of benets oered by the institution were used with both qualitative (theoretical references
studies on the subject) and quantitative (systemic data analysis) approaches. As for data collection, bibliogra-
phic research and systemic data extraction were used, as well as a questionnaire was applied to the universe of
students who joined the institution in 2014/1. At the end, it was concluded that racial balancing can promote a
&quot;pseudo&quot; social mobility, and that joining the institution through this system does not necessarily
guarantee attendance or academic achievement.
Keywords: Education. Academic Achievement. Racial Balancing Admission. Attendance. Positive Policies.
Resumen
El presente trabajo es el resultado de una tesis de maestría en la que se analizó la admisión por cuotas en los cur-
sos técnicos de la forma integrada a la enseñanza media del Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
Sul-rio-grandense (IFSul), campus Pelotas, y el panorama general de los estudiantes titulares de cuotas con res-
pecto a las políticas de acción armativa de permanencia y éxito escolar. Para ello, utilizamos como metodología
el estudio de caso y el análisis de categorías relacionadas con la recepción o no de los benecios ofrecidos por
la institución, con enfoque cualitativo (estudio de referencias teóricas sobre el tema) y cuantitativo (análisis de
datos sistémicos). A respeto de la recopilación de datos, utilizamos la investigación bibliográca, la extracción de
datos sistémicos y la aplicación de un cuestionario al universo de estudiantes que ingresaron en 2014/1. Al nal,
concluimos que las cuotas pueden promover una “pseudo movilidad social y que el estudiante que ingresa a
través de este sistema no vincula su permanencia o éxito en la escuela a eso.
Palabras clave: Educación. Éxito escolar. Admisión por Cuotas. Permanencia. Políticas Armativas.
Introdução
As políticas sociais adotadas no Brasil objetivam assegurar a todos os cidadãos
o acesso à melhoria de qualidade de vida, o que inclui aí diversos aspectos como
saúde, segurança, seguridade social e educação. Tais políticas vêm promovendo,
desta forma, a inclusão dos cidadãos de todas as esferas sociais e, em especial, os
menos favorecidos que, independente do motivo, não foram inseridos no contexto
em decorrência de algum “artifício” de exclusão social.
Nessa linha, a reserva de vagas para acesso à educação pública, discutida na
pesquisa cujos resultados aqui trazemos, bem como a implantação de políticas de
permanência na escola, serviram de parâmetro para a análise das políticas afirma-
tivas adotadas pelo governo, por meio das instituições públicas de educação, com
intuito de garantir a educação, prevista constitucionalmente. Os relatos e análises
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que comentaremos a seguir, sobre esta temática, tiveram como cenário o campus
Pelotas do Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense (IFSul).
Nosso escopo principal era verificar o alcance de algumas políticas educacio-
nais, tendo em vista que o simples ingresso na instituição pública de ensino não
garante o efetivo acesso e permanência do cidadão na escola, como mostra o ele-
vado índice de evasão escolar. A partir dessa observação, questionamo-nos sobre a
importância da implementação do programa de assistência estudantil e se, para os
alunos que o recebem, é este um diferencial que os auxilia a permanecer na insti-
tuição e concluir o curso de sua opção.
O Departamento de Gestão de Assistência Estudantil (DEGAE) do IFSul
possui dados
1
que nos remetem ao pensamento de que as políticas públicas estão
obtendo resultados: 80% dos alunos beneficiários dos auxílios estudantis consegui-
ram superar os desafios encontrados na trajetória educacional. No entanto, sem
desconsiderar a importância e relevância dos auxílios prestados pela AE (Assis-
tência Estudantil), ressaltamos que não é necessário que o aluno tenha ingressado
por meio da política de reserva de vagas para dela ter direito, embora acreditemos
que dificilmente o aluno que ingresse pela reserva de vagas não se utilize desses
auxílios.
Considerando que a última pesquisa sobre os impactos dos auxílios estudantis
realizada no IFSul, pelo DEGAE, se deu em 2015, os dados coletados nessa pesqui-
sa por meio de dados sistêmicos e questionário podem servir de subsídios para nova
pesquisa referente aos auxílios e análise dos impactos institucionais dos auxílios
nas questões de permanência e êxito no IFSul.
As questões que levantamos dirigem, então, um olhar mais específico ao grupo
de alunos que ingressou na instituição por uma reserva de vagas. A reserva de
determinada porcentagem das vagas, especificamente para o ingresso ao ensino
no IFSul, campus Pelotas, garantiu o acesso, permanência e a formação do sujeito/
cidadão que se enquadra nas condições previstas em lei específica? Até onde essa
política afirmativa de reserva de vagas, para ingresso na instituição de ensino,
assegurou a igualdade de direitos prevista constitucionalmente, além de gerar um
índice positivo de permanência e êxito escolar?
Em um país com tamanhas e notórias desigualdades sociais, a política educa-
cional tem buscado medidas compensatórias aos eleitos, por ela, como mais frágeis
em detrimento de outros que, a seus olhos, não preenchem os requisitos necessá-
rios. Nossa discussão parte do momento em que os alunos ganham acesso à escola
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para tentar desvendar se há, e quais, relações entre a reserva de vagas e os índices
de permanência, evasão e êxito dos alunos do IFSul, campus Pelotas.
ões armativas, acesso e permanência escolares: um olhar sobre esses
conceitos
A ideia da pesquisa nasceu a partir de uma inquietação acerca da efetividade e
do alcance da política pública de reserva de vagas para o ingresso no ensino público
(Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012, regulamentada pelo Decreto nº 7.824, de
11 de outubro de 2012), em especial nos cursos técnicos de ensino médio na forma
integrada do IFSul.
Passamos a nos questionar se a utilização de cotas para acesso ao ensino téc-
nico de nível médio contribuiu, de alguma forma, além das ações afirmativas pro-
movidas pela instituição, para a permanência e para o êxito do aluno. E, ainda, de
forma suplementar e não menos importante, se há algum reflexo nos índices de
evasão.
Há inúmeras discussões na sociedade, algumas favoráveis e outras não, refe-
rentes ao ingresso por cotas nas instituições de ensino públicas. Dada a essa dico-
tomia que transparece nos discursos da sociedade, percebemos que pesquisar essa
política de ingresso por cotas e suas peculiaridades constituía-se uma temática de
grande relevância que, de alguma forma, merecia uma reflexão mais apurada.
Optamos por realizar a pesquisa no nível médio técnico
2
tendo em vista que
a lei que regulamenta o acesso ao ensino por cotas é do ano de 2012 e, portanto,
em função do pouco tempo decorrido, ainda não teríamos, no ensino superior, alu-
nos egressos para a pesquisa. Desta forma, não seria possível verificar índice de
êxito escolar
3
desses alunos ou, até mesmo, questões referentes à permanência
4
de maneira mais aprofundada. Levamos, para tanto, em consideração as formas
de ensino técnico de nível médio ofertadas no IFSul (Integrado, Concomitante e
Subsequente), observando que o sujeito que ingressa em um curso técnico de nível
médio na forma integrada é proveniente diretamente do ensino fundamental, o que
o faz frequentar tão logo o ensino médio e um curso técnico à sua escolha. Dessa
forma, ele está mais ligado à instituição que os alunos das formas Concomitante
e Subsequente, motivo que justifica a escolha deste grupo de alunos para serem
o sujeito da nossa investigação. Além disso, dentre o grupo de alunos do ensino
técnico de nível médio de forma integrada, interessava-nos olhar aquele que optou
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por utilizar uma forma diferenciada de acesso à escola, o ingresso por cotas, neces-
sitando ou não de ações de permanência para continuar e concluir o estudo de nível
médio/técnico.
Na dissertação Ações Afirmativas em foco: uma análise do acesso e da perma-
nência de alunos cotistas do IFSul – Campus Pelotas, a partir da qual foi feito esse
recorte, existe um estudo mais aprofundado, em um capítulo nominado “Estado da
Questão”, no qual foi feito um levantamento dos trabalhos até então publicados
sobre a temática.
Em um primeiro momento, determinamos os tipos de trabalhos que seriam
mapeados nos bancos de dados, delimitando em artigos, dissertações e teses. Os
repositórios utilizados foram: a Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (Capes), o Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia
- IBICT a partir do Banco Digital de Teses e Dissertações (BDTD) e a Scientific
Electronic Library Online (SciELO), por se constituírem, entre outras, em fontes
com credibilidade e aquiescência na comunidade acadêmica. Utilizamos as pala-
vras-chave conforme Quadro 1, no período dos anos de 2005 a 2016
5
:
Quadro 1 – Resultado da busca em repositórios
Palavras-chave: Cotas;
permanência; políticas
afirmativas; educação.
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
2016
Total
Artigos científicos X 2 X 3 X X X 4 1 2 1 X 13
Dissertações 1 X 1 X 1 1 2 X 1 2 2 1 12
Teses X X 1 1 1 1 X X X X X X 04
Total geral 1 2 2 4 2 2 2 4 2 4 3 1 29
Fonte: elaboração dos autores.
Selecionamos, então, alguns trabalhos para uma leitura mais detalhada sobre
o tema. Utilizamos como critérios de seleção a semelhança com o tema abordado.
Assim, os trabalhos que trataram sobre as políticas afirmativas de acesso, e, prin-
cipalmente de políticas de permanência dos estudantes nas instituições de ensino,
se tornaram o foco desta etapa. Os parâmetros de escolha dos trabalhos incidiram
na convergência de abordagem aspirada para esta pesquisa, tendo sido agrupados,
de acordo com o Quadro 2, a seguir:
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Quadro 2 – Resultado final das pesquisas para análise
Anos
Tipos
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
2016
Total
Artigos científicos X 1 X 1 X X X 1 1 1 0 X 5
Dissertações 0 X 1 X 1 0 0 X 0 0 1 1 4
Teses X X 0 0 1 0 X X X X X X 1
Total geral 0 1 1 1 2 0 0 1 1 1 1 1 10
Fonte: elaboração dos autores.
A busca e o breve relato das 10 publicações (entre artigos, dissertações e tese)
foram feitos com o intuito de, além de servir de base a esta pesquisa (no campo
metodológico e teórico), situar nós e o leitor na perspectiva e relevância do objeto
que nos propomos investigar.
Ainda existe muita discussão no que se refere às ações afirmativas no campo
da permanência dos alunos cotistas. A maioria delas demonstrou haver restrições
às ações de permanência, sendo vinculadas apenas à assistência estudantil e/ou
bolsas de auxílio. Nesse passo, são poucas ou subjetivas as questões que tratam de
ações afirmativas inovadoras.
Os trabalhos relacionados no Estado da Questão da dissertação deram conta
de trazer à tona a importância dada, pelas instituições, em primeiro garantir o
acesso para, apenas posteriormente, refletir sobre as questões de permanência.
Ademais, demonstraram a relevância de considerar as dificuldades, dilemas, supe-
rações dos alunos que ingressaram pelas cotas.
Trouxeram, também, a importância de verificação das razões de necessidade
de ações para a redução de distâncias sociais, ressaltando as cotas não como meca-
nismo de disparidade, e sim como meio de justiça social.
Quando fazemos a vinculação dos conceitos sobre ações afirmativas, questões
alusivas ao acesso e permanência, com os trabalhos analisados na Dissertação, po-
demos perceber, inicialmente, que a temática de cotas no ensino médio, em cursos
técnicos da forma integrada, não é alvo de muitos estudos. Em verdade, o que mais
vemos são as cotas para acesso e permanência no ensino superior, mas em nada se
opõe a fazermos uma comparação aos cursos de ensino médio.
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A legislação que trata sobre cotas obriga as instituições de ensino a fazerem
uso dessa sistemática. Parece-nos que a preocupação com a educação segue por
parte do governo, tanto que houve ampliação das cotas, agora para incluir as pes-
soas com deficiência, conforme alteração feita pela Portaria Normativa nº 9, de
05/05/2017 do MEC. No entanto, essa preocupação com a inclusão e a universaliza-
ção do ensino esbarra em algumas medidas tomadas pelo governo.
Trazendo à baila o fato de o Brasil passar constantemente por mudanças
bruscas no que diz respeito à Educação, observamos a aprovação da Proposta de
Emenda Constitucional (PEC) 241/2016, mais conhecida no âmbito da educação
como “PEC da morte”, já que congela gastos com investimentos na educação da po-
pulação Brasileira. Aprovada, passou a ser chamada como Emenda Constitucional
nº 95/2016, e trata especificamente da instituição de um novo regime fiscal, a partir
do qual os gastos com saúde, educação, etc. passam a ter um teto.
Considerando que esse regime fiscal tem o prazo de 20 anos de vigência, sendo
esse o tempo considerado necessário para que a dívida pública fique estagnada ou,
como no próprio texto diz, “permaneça em um patamar seguro”, com a devida vê-
nia, ao limitar os gastos com a educação (que acreditamos já serem insuficientes),
a situação precária das escolas pode ser afetada.
Inferimos, no que diz respeito ao acesso dos estudantes, que poderemos ter
um “caos” quando, por conta dessa falta de investimento, o número de vagas ofer-
tadas for reduzido e, por consequência disso, o ingresso a alunos cotistas passe a
ser limitado.
A própria intenção da criação da cota, no sentido de universalizar o acesso à
educação, fica prejudicada na medida em que não há interesse que a população
que mais precisa tenha acesso à educação pública quando não se tem investimento
nessa área.
Concordamos com Charlot (2005, p. 131), que o modo de articulação entre a
escola e a sociedade se tornou um meio de garantir uma boa carreira profissional:
[...] a possibilidade de encontrar um “bom emprego” (interessante, bem pago, bem situado
na hierarquia social) depende do nível de êxito na escola. Por consequência, esse êxito é
um ponto de passagem obrigatório para se ter uma vida “normal” e, ainda mais, para se
beneficiar de uma ascensão social. Em outras palavras, é sua vida futura que os jovens
jogam na escola”.
Arriscamos dizer que um sistema educacional, como o do Brasil, que funciona
de forma gradual e progressiva, que passa por inúmeras e constantes dificuldades
e barreiras impostas pela falta de investimento do Estado, principalmente com as
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limitações orçamentárias em decorrência da EC 95/2016, não se sustenta. Como
um país, sem incentivo financeiro, fiscal e orçamentário à educação pode propor
um ensino integral sem sequer suprir as deficiências básicas das escolas? Inferimos
que as políticas de ações afirmativas podem vir a sofrer cortes prejudicando uma
educação pública, de qualidade, tornando ineficaz a universalização da educação,
deixando aos jovens pouco espaço para uma formação continuada e de qualidade,
que não seja pura e simplesmente para torná-lo uma mão de obra barata com um
“sucesso” inverídico.
A própria ideia da cota, no sentido de universalizar o acesso à educação, fica
prejudicada na medida em que não há interesse que a população que mais precisa
tenha acesso à educação pública quando não se tem investimento nessa área.
Não obstante, temos que a questão da permanência como uma política afirma-
tiva é um processo em construção, sendo necessário realizar um estudo específico
em um universo determinado. Nesse sentido, nossa pesquisa buscou levantar da-
dos e discutir a questão do acesso e, principalmente, da permanência dos alunos
cotistas no IFSul, para que, ao final, possamos refletir sobre ações que previnam a
evasão e/ou retenção. Para esta análise, usamos por parâmetro os alunos ingres-
santes no IFSul campus Pelotas, na forma integrada, com matrícula referente ao
período letivo 2014/1.
Para entender esse cenário sobre como vem acontecendo o acesso aos cursos
técnicos da forma integrada do IFSul campus Pelotas, via reserva de vagas (cotas),
bem como para aprofundar uma reflexão acerca das relações entre as políticas de
ações afirmativas e permanência desses alunos, julgamos necessário, neste mo-
mento, trazer à tona alguns conceitos e problematizações.
Sobre ações armativas e políticas públicas
Para Gomes (2002, p. 128-129), as ações afirmativas definem-se como:
[...] políticas públicas (e privadas), voltadas à concretização do princípio constitucional da
igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de
idade, de origem nacional e de compleição física. [...] a igualdade deixa de ser simplesmente
um princípio jurídico a ser respeitado por todos e passa a ser um objetivo constitucional a
ser alcançado pelo Estado e pela sociedade.
Sob a ótica do autor, as ações afirmativas podem ser de caráter compulsório,
facultativo ou voluntário, e são concebidas com vistas a combater diversos tipos
de discriminação (racial, de gênero, por deficiência física e de origem nacional) e a
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corrigir ou mitigar os efeitos presentes da discriminação herdada do passado, com
o objetivo principal de concretizar do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens
fundamentais como a educação e o emprego. Gomes (2003) ainda afirma que é
preciso conscientizar a sociedade e a classe política para que trabalhem no intuito
de minimizar as desigualdades, levando em consideração que “a marginalização
socioeconômica a que são relegadas as minorias, especialmente as raciais, resulta
de um único fenômeno: a discriminação” (GOMES, 2005, p. 52).
Conceitos parecidos trazem Piovesan e Fonseca. Para o primeiro, as ações
afirmativas são medidas especiais e temporárias que, “buscando remediar um pas-
sado discriminatório, objetivam acelerar o processo de igualdade, com o alcance
da igualdade substantiva por parte de grupos socialmente vulneráveis, como as
minorias étnicas e raciais, entre outros grupos” (PIOVESAN, 2005, p. 41); já para o
outro, elas são “destinadas a atender grupos sociais que se encontrem em condições
de desvantagem ou vulnerabilidade social em decorrência de fatores históricos,
culturais e econômicos” (FONSECA, 2009, p. 11).
É importante discorrermos sobre o conceito de políticas públicas também, já
que as ações afirmativas nada mais são do que um tipo de política pública adotada
pelo Estado. Nesse espaço, tomamos por definição de política pública a trazida por
Amabile (2012, p. 390), que estabelece como sendo:
[...] decisões que envolvem questões de ordem pública com abrangência ampla e que visam
à satisfação do interesse de uma coletividade. Podem também ser compreendidas como
estratégias de atuação pública, estruturadas por meio de um processo decisório composto
de variáveis complexas que impactam na realidade.
Com base nesses conceitos, podemos afirmar que as ações afirmativas se cons-
tituem em um instrumento de correção por meio de condutas e normas propostas
pelo “Estado”, no sentido de recuperar direitos fundamentais de pessoas que se
encontram em desvantagem e/ou desigualdade social por decorrência de algum
tipo de discriminação (econômica, racial, política, etc.). Desta forma, toda ação afir-
mativa – que em nossa pesquisa é a reserva de vagas para ingressar na institui-
ção – objetiva garantir a igualdade e a isonomia entre as pessoas. Comentaremos
adiante, mais detalhadamente, se estes objetivos foram alcançados para um grupo
diferenciado de estudantes, foco do nosso trabalho.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Sobre o acesso à educação na legislação brasileira
Para começarmos a falar do acesso à educação a partir de políticas afirmati-
vas, é necessário fazermos a distinção entre os termos acesso e ingresso, visto que a
legislação e a literatura que trata das políticas inclusivas utiliza-se ora de um ter-
mo, ora de outro. O ingresso do aluno se concretiza com a matrícula na instituição
após o processo seletivo. Já o acesso, uma designação que consideramos mais am-
pla, abrange tanto o ingresso na instituição quanto a participação deste indivíduo
nas ações promovidas pela e na escola. Seria, nesta perspectiva, o sentir-se incluído
no ambiente educacional, como parte do processo de formação. Em outras palavras,
além do simples ingresso por algum tipo de cota, o acesso é o reconhecimento deste
indivíduo como integrante daquele lugar.
Com relação ao acesso à educação, consta na Constituição Federal (CF) de
1988, lei maior do país, que ela é um direito e garantia fundamental do cidadão. O
artigo 6° descreve que são direitos sociais “a educação, a saúde, a alimentação, o
trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a pro-
teção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta
Constituição” (BRASIL, 1988, não paginado).
Com base nesse direito, garantido pela CF, é que se sustenta toda a legislação
que rege o acesso à educação, sendo dever do Estado, como declarado no artigo
208, garantir a educação básica obrigatória e gratuita assegurando, inclusive, sua
oferta gratuita “para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria; [...] O
acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo” (BRASIL, 1988,
não paginado).
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) – Lei nº 9.394/1996
6
– estabelece as diretrizes e bases da educação no Brasil e, portanto, disciplina a
educação escolar, a partir de então. Dentre os seus princípios aponta, no artigo 3º
inciso I, a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola. A garan-
tia de acesso e permanência passou a ser regida por dispositivos legais e, assim,
objetiva a universalização da educação.
O termo universalização da educação nos remete à ideia de tornar a educação
mais acessível às classes populares, ao alcance do povo, da maioria da população,
não se confundindo com o conceito de Educação Popular, o que poderia indicar uma
educação de menor qualidade. Fernandes e Luft (2005) tratam o termo “universa-
lizar” como um sinônimo de “generalizar, espalhar-se, difundir-se”. Partindo desta
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terminologia podemos acrescer, de forma complementar, a ideia de universalismo,
defendida por Ivo (2013, p. 528), que o caracteriza como:
[...] [um] paradigma [...] segundo o qual se considera que todos os cidadãos, sem distinção
de classe ou posição no mercado, têm direito a serviços sociais que respondam aos princí-
pios democráticos de igualdade de direitos e de status e que garantam os mesmos benefícios
sociais e os mesmos padrões de qualidade a todos e cada um dos cidadãos no âmbito dos
sistemas de bem-estar.
Desta forma o dispositivo legal subsidia o princípio de popularizar a educação
possibilitando o alcance a um número maior de pessoas. A LDB, por conseguinte,
garante o ingresso por meio da criação de formas de acesso alternativas, com a in-
tenção de garantir o ensino a todos, de democratizar a educação propriamente dita.
Porém, na prática, reconhecemos a dificuldade no atendimento à totalidade das
pessoas em idade escolar. A lei, em seu art. 5º, estabelece que o acesso à educação
básica obrigatória é direito público subjetivo.
Por se tratar de uma instituição federal de ensino, o acesso a todos os cursos
ofertados pelo IFSul ocorre por meio de processo seletivo. Estes se dão, de forma
distinta, pelo nível de ensino: processo seletivo próprio, para ingresso nas formas
integrada, concomitante e subsequente ao ensino médio e pós-graduação; e Exame
Nacional do Ensino Médio (Enem) ou Sistema de Seleção Unificada (SiSU), para
ingresso nos cursos superiores. Realizado duas vezes ao ano, uma no inverno e
outra no verão, o processo seletivo próprio é gratuito a todos os candidatos. A dis-
ponibilidade das vagas é apontada pelo plano de vagas disponibilizado por cada
campus.
O ingresso dos candidatos pode se dar pelo Acesso Universal (AU) ou, ainda,
pela Reserva de Vagas para Egressos de Escolas Públicas (RVEEP), sendo que, em
todos os cursos ofertados na instituição, 50% das vagas são destinadas à RVEEP,
atendendo o IFSul à implementação de políticas de ações afirmativas.
O candidato que deseja ingressar via reserva de vagas/cotas deverá se decla-
rar integrante de um dos quatro grupos descritos no edital nº 191/2013 do IFSul,
baseado na Portaria Normativa nº 18/2012, que consideram a renda bruta fami-
liar, sua etnia e onde realizaram seus estudos do ensino fundamental. Na nossa
pesquisa, colhemos os dados dos alunos que se encaixavam no grupo L4, ou seja,
os candidatos autodeclarados pretos, pardos ou indígenas que, independente da
renda, tenham cursado integralmente o ensino fundamental em escola pública
7
(IFSUL, 2013).
820
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O amparo legal dessa forma de ingresso (reserva de vagas) fundamenta-se,
além dos direitos e garantias constitucionais, na Lei nº 12.711, de 29 de agosto
de 2012. Pauta-se, ainda, na portaria normativa nº 18 de 2012, do Ministério da
Educação (MEC), que dispõe sobre a implementação dessa reserva de vagas em
instituições federais de ensino, bem como no Decreto nº 7.824, de 11 de outubro de
2012, que a regulamenta.
Sobre a permanência escolar
A legislação estabelece, em seu artigo 206, inciso I, que não basta garantir o
acesso para que o aluno alcance a efetiva educação, mas é necessário que lhe seja
oportunizada a permanência na escola (BRASIL, 1988), assim, poderá vir a ter
êxito no ensino. Para entendermos melhor essa questão trazemos, primeiramente,
o conceito de “permanência” que, segundo o do dicionário on-line Michaelis é o “ato
de permanecer; o estado ou a qualidade de permanente; constância, perseverança”.
Entendemos, portanto, como conceito básico de permanência escolar o ato do aluno
perseverar, continuar e não desistir de seus estudos. Compreendemos, ainda, a
“permanência e êxito” escolar, como o ato de ingressar, acessar e permanecer na es-
cola até concluir, com êxito, o curso no qual o aluno ingressou, ressaltando o caráter
temporal do prazo estipulado para integralização do seu estudo.
Logo, não há como seguir discorrendo sobre permanência sem entendermos,
também, o conceito de evasão, já que os alunos que não permanecem estudando
são considerados evadidos. O mesmo dicionário on-line define evasão como sendo
a “ação ou processo de evadir, de deliberadamente fugir” e isso, por conseguinte,
conduz à compreensão de que a evasão é um processo de desistência, por parte do
aluno, da escola.
De acordo o artigo 74 da Organização Didática da Educação Básica, Profissio-
nal e Superior de Graduação do IFSul (OD)
8
, é considerado evadido o estudante que
estiver em um destes dois grupos: ou ele apresenta índice de frequência inferior
a 50% do total da carga horária do período e nota zero (ou conceito equivalente
em todas as disciplinas na última etapa de avaliação, caso a avaliação não se dê
numericamente), ou ele não efetua a renovação de matrícula nos prazos definidos
no calendário acadêmico. Em qualquer um destes casos, o estudante evadido perde
o direito à sua vaga.
Assim, com intuito de cumprir disposições legais, o ministério da Educação criou
o Programa de Acolhimento, Permanência e Êxito (PAPE), instituído pela portaria
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interministerial nº 04, de 06 de maio de 2016. Neste programa são expressos direitos
e garantias constitucionais, como o dever do Estado com a educação em todas as
etapas da educação básica, as formas de colaboração para assegurar a universaliza
-
ção do ensino obrigatório, o cumprimento das metas do Plano Nacional de Educação
(PNE), a importância de ações integradas entre educação, assistência social e saúde,
e a intersetorialidade na execução de programas como o Saúde na Escola, o Bolsa
Família e o Benefício de Prestação Continuada na Escola, dentre outros.
O PAPE tem por finalidade “desenvolver ações [...] que promovam a busca
e o retorno às escolas das crianças, adolescentes e jovens que, em idade escolar,
não foram matriculadas nas redes públicas”, e prevê o desenvolvimento de ações
integradas “como forma de reduzir a evasão escolar e ampliar as possibilidades de
conclusão com êxito da educação básica” (MEC, 2016).
Ao buscarmos as ações de permanência que já existem no campus, nos depa-
ramos, primeiramente, com a previsão, no regimento interno do campus Pelotas,
da responsabilidade de “fomentar e promover, em conjunto com os demais profis-
sionais da educação, ações para permanência e êxito do estudante” da Coordenado-
ria de Assistência Estudantil (COAE). Esta coordenadoria obedece ao disposto no
regimento interno do campus.
Ao aprofundarmos um pouco mais a busca sobre a autoria da responsabilidade
de ações que promovam a permanência dos estudantes, encontramos, no Regimen-
to Geral
9
do IFSul, o Departamento de Políticas Educacionais como o responsável
pela proposição de estratégias e projetos institucionais para permanência e êxi-
to dos estudantes; a Pró-Reitoria de Extensão e Cultura como a responsável pela
contribuição para o acesso e permanência e êxito de pessoas com deficiência e de
grupos sociais que são alvo de políticas públicas afirmativas; e o Departamento de
Educação Inclusiva que tem como uma de suas atribuições divulgar os objetivos
das ações inclusivas, motivando o acesso, a permanência e o êxito de pessoas que
se encontram em situação de vulnerabilidade social. Verificamos, ainda, que a Polí-
tica de Assistência Estudantil (PAE)
10
vem sendo implantada desde 2010 no IFSul.
Este documento nos traz um conjunto de princípios e diretrizes que norteiam a
implementação de ações que tem como objetivo promover o acesso, a permanência
e o êxito dos alunos sob a ótica da equidade entre outras.
Identificamos, também, a Câmara de Assistência Estudantil
12
como um órgão
consultivo e propositivo com o objetivo de cooperar para a integração dos campi do
IFSul. Este órgão busca o aperfeiçoamento e desenvolvimento dos temas relaciona-
dos à Assistência Estudantil.
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Ainda, embora sua publicação (2017) tenha sido posterior à esta pesquisa,
trazemos, para conhecimento do leitor, o Plano Estratégico Institucional de Per-
manência e Êxito dos Estudantes do IFSul
12
, que possui como objetivo geral pro-
mover, por meio de ações sistêmicas e locais articuladas, a permanência e o êxito
dos estudantes do IFSul. Dentre seus objetivos específicos estão os de fomentar a
problematização da qualidade e efetividade das diversas ofertas educativas dos
variados campi do IFSul, com vistas ao controle e à gradual redução dos fatores de
evasão e retenção do Instituto; construir diagnóstico quali-quantitativo acerca dos
fenômenos “evasão” e “retenção” no âmbito dos diferentes campi e cursos do IF-
Sul; planejar e implementar estratégias de redução e controle das interveniências
individuais, institucionais e socioculturais que impactam os índices de evasão e
retenção nos diversos cursos e campi do IFSul; e deflagrar ações sistêmicas e locais
para a promoção da permanência e êxito dos estudantes, tendo em vista os fatores
convergentes detectados nos variados cenários de evasão e retenção diagnosticados
nos campi do IFSul.
Além desses supracitados, verificamos a implementação de programas assis-
tenciais para a permanência neste ambiente, como é o caso do Plano Nacional de
Assistência Estudantil (PNAES), previsto no Decreto nº 7.234/2010, o qual objeti-
va melhorar as condições de permanência e êxito dos estudantes em situação de
vulnerabilidade social a partir da alocação de recursos financeiros para atender as
demandas da Assistência Estudantil.
O campus Pelotas, espaço no qual foi desenvolvida a pesquisa, atualmente
conta, no que tange a ações que visam o acesso e a permanência dos estudantes,
com políticas adotadas pela Coordenadoria Assistência Estudantil (COAE), a qual
oferece benefícios aos alunos, tais como transporte urbano, transporte intermuni-
cipal, alimentação (almoço e/ou jantar), auxílio moradia e auxílio material escolar.
A estes benefícios, que são oferecidos por meio de Editais, publicados com periodici-
dade semestral, soma-se a oferta da COAE, estendida a todos os alunos do campus,
de acompanhamento psicológico. Segundo consta na descrição do serviço de psico-
logia
13
, este é um instrumento importante que “visa promover ações nas áreas de
saúde; desenvolver atividades de orientação profissional; e fomentar e promover,
em conjunto com os demais profissionais da educação, ações para a permanência e
êxito dos estudantes” e seus ecos perpassam ações vinculadas ao ensino (incluídas
aí questões ligadas à aprendizagem), à pesquisa e à extensão.
Dentro deste ambiente da COAE há, ainda, o Núcleo de Apoio às Pessoas com
Necessidades Específicas (NAPNE), responsável pela preparação da instituição
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no acolhimento de pessoas cegas, surdas-mudas, deficientes físicos, dentre outros.
Sendo assim, é um núcleo que trabalha com políticas inclusivas para garantir o
acesso, a permanência e o êxito do estudante.
Outras ações relevantes do campus que repercutem na permanência discen-
te, no combate à evasão e na retenção são os editais para processos seletivos de
alunos para bolsas de monitorias para Cursos Técnicos de Nível Médio e a oferta
de atendimento médico e odontológico (o que também se estende aos servidores).
Embora esta segunda não esteja vinculada diretamente à COAE, estando este se-
tor ligado diretamente ao Gabinete do Diretor Geral do campus, ela não pode ficar
de fora daquilo que chamamos de benefícios, já que a consideramos um auxílio aos
alunos que, se por vezes não têm condições de arcar com os custos desses serviços
essenciais à saúde e ao seu bem-estar, têm acesso a eles na escola. Reconhecendo
que tais serviços são imprescindíveis para o bom andamento acadêmico dos alunos,
analisamos sua importância no questionário aplicado.
Descrição da pesquisa: da coleta de dados à interpretação dos resultados
Nosso intento de pesquisa versou sobre a forma como vem ocorrendo o acesso
aos cursos da forma integrada do IFSul campus Pelotas, por meio de reserva de
vagas (cotas) e quais são as políticas de ações afirmativas de permanência desses
alunos. Ainda, de qual forma são propostas e como o estudante se utiliza dessas
ações e se tem alguma contribuição na sua elaboração. No tocante ao índice de
evasão, nos disponibilizamos a verificar se é alto entre os cotistas e quais motivos
ensejaram a evasão.
Para situar o leitor, trazemos um pequeno histórico da instituição pesquisada:
o Instituto Federal de Ensino, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense faz parte de
uma Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica, proveniente do antigo
CEFET-RS, e instituído pela Lei nº 11.892, de 29 de dezembro de 2008. Atualmen-
te, o IFSul é composto por 14 campi, conforme Figura 1, a seguir, e pela Reitoria,
que se localiza também em Pelotas (RS), juntamente com os campi Pelotas e Pelo-
tas-Visconde da Graça.
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Figura 1 – Distribuição dos campi do IFSul
Fonte: Instituto Federal Sul-rio-grandense
14
.
O espaço de nossa pesquisa ficou, então, delimitado ao campus Pelotas, situa-
do na cidade de Pelotas (RS), pela proximidade e consequente facilidade na coleta
de informações, sendo que utilizamos também como balizador a forma integrada
de nível médio, restringindo o período ao primeiro processo seletivo em que foi
disponibilizada a reserva de vagas no IFSul.
Ainda, para a percepção do leitor de como ocorreu a aplicação do sistema de
cotas no IFSul, ressaltamos que o debate sobre a questão iniciou em 2012, quando
a Lei que rege o tema passou a vigorar. Logo, em 2013, quando lançado o Edital
para ingresso via processo seletivo no IFSul para o ano letivo de 2014, a instituição
aderiu à proposta legislativa fazendo, com isso, valer o dispositivo legal.
Estando definida a investigação, optamos pela pesquisa qualitativa com
nuances quantitativas no que se refere aos percentuais a serem levantados. Sobre
a pesquisa qualitativa, Denzin e Lincoln elucidam que “é uma atividade situada
que localiza o observador no mundo” e nos permite compreender as questões en-
volvidas no universo da pesquisa com maior profundidade (DENZIN; LINCOLN,
2006, p. 17).
As nuances quantitativas a que nos referimos anteriormente se deram com a
coleta de dados no sistema Q-acadêmico
15
a partir dos quais, tabulados percentual-
mente, pudemos verificar o desempenho no acesso e no rendimento escolar obtido
pelos alunos.
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A pesquisa desenvolveu-se sob os preceitos de um Estudo de Caso, que é um
“método de olhar a realidade social” (GOODE; HATT, 1968, p. 421), que realiza
uma investigação empírica acerca de um fenômeno contemporâneo, tomado em
profundidade e em seu contexto de mundo real (YIN, 2015), o que nos permitiu
entender algumas questões abarcadas no contexto social dos alunos que acessam
e permanecem, com ou sem êxito escolar, além de verificar as causas da evasão
escolar.
Ressaltamos que a análise dos dados e do questionário foi feita através da
construção de categorias referentes ao recebimento ou não de benefícios oferecidos
pela instituição. Em um primeiro momento, tivemos contato com documentos esco-
lares dos alunos e suas respostas aos questionários para, após isso, refletir sobre o
material e apresentar uma interpretação dos resultados obtidos.
Da coleta de dados e das categorias
Com base no sistema Q-Seleção, também utilizado pelo IFSul, o processo sele-
tivo de candidatos para o período letivo de 2014/01 teve, de modo geral, 3.457 alu-
nos inscritos em cursos técnicos integrados para o campus Pelotas sendo que, desse
total, confirmaram a sua inscrição para participar da seleção 2.495 candidatos.
Dos confirmados, apenas 45 candidatos se inscreveram para concorrer pela cota
L4, e apenas 20 alunos se matricularam como cotistas L4 após o processo seletivo
de ingresso.
Após a coleta de dados no sistema Q-Acadêmico, identificamos o universo de
20 alunos que correspondiam ao nosso interesse de pesquisa. Com as informações
extraídas do sistema, em um primeiro momento, pudemos listar os seus dados
pessoais (e-mail e telefone) e, por meio de comunicação via e-mail, propusemos a
aplicação de um questionário elaborado com dados necessários para a investigação.
Após duas semanas, não obtivemos nenhuma resposta dos alunos que ingressaram
por cotas no ano de 2014/1. Tal situação ensejou que fôssemos em busca desses
alunos de forma mais incisiva e diferenciada, já que suas respostas eram funda-
mentais para as análises e conclusões desta pesquisa.
Desta forma, como estratégia inicial de alcance, buscamos, junto ao Departa-
mento de Ensino da escola, os dados dos 13 alunos que permaneciam matriculados
(07, dos 20 ingressantes, haviam evadido). Depois de localizar as turmas nas quais
teriam aulas, fomos pessoalmente ter uma conversa com eles sobre a importância
da pesquisa e da sua participação e lhes explicamos que os resultados seriam apre-
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sentados à escola como forma de instrumentar mecanismos de melhoria tanto para
o acesso quanto para a permanência dos alunos cotistas. Mesmo assim, apenas 09
alunos nos enviaram, posteriormente, suas respostas.
Em relação aos 07 evadidos, tentamos um novo contato via e-mail. Não obti-
vemos nenhum retorno e, assim, inovamos na forma de abordagem, chamando-os
a responder o nosso instrumento de pesquisa de maneira mais informal, via redes
sociais como Facebook e WhatsApp, mas apenas 01 aluno nos deu retorno.
Nossa amostra, que ao final reduziu-se a um total de 10 alunos (09 regulares
e 01 evadido), representava 50% do universo de ingressantes pela cota L4 sendo,
portanto, um número significativo para subsidiar a pesquisa, pois Marconi e Laka-
tos (2005) alertam que, normalmente, os questionários enviados têm uma taxa de
devolução de, em média, 25%.
Esses 10 alunos pesquisados foram separados, segundo suas respostas, em
dois grupos, “A” e “B”. O grupo “A” foi formado por alunos que, devidamente ma-
triculados, utilizavam ou já tinham utilizado qualquer benefício/auxílio da Assis-
tência Estudantil (AE); no grupo “B” ficaram os alunos que nunca tinham utilizado
nenhum benefício/auxílio da AE. Ficaram no grupo “A” 03 alunos (todos regulares)
e, no “B”, 07 alunos (06 regulares e 01 evadido).
Na sequência, em relação ao grupo “A”, foi aplicado um questionário cujo in-
tuito era verificar as condições de acesso e o perfil destes alunos (renda familiar e
declaração de etnia, bem como o alcance da política de cotas). Concomitantemente,
em relação ao grupo “B”, foi aplicado o mesmo instrumento, haja vista a peculiari-
dade de ingresso por cota e não utilização de benefícios da Assistência Estudantil,
o que por si só caracteriza uma situação excepcional.
A partir disso, alinhavamos as intenções de coletas de dados com categorias
construídas, utilizando-se da Análise de Conteúdo, com a intenção de mapear a
relação entre o ingresso por cotas com a permanência e o êxito dos alunos.
A fim de preservar a identidade e os dados pessoais destes 10 alunos, utiliza-
mos a nomenclatura A1, A2 e A3 para os que se encontram no grupo “A” e B1, B2,
B3, B4, B5, B6 e B7 para os do grupo “B”.
Cotas para acesso ao ensino técnico de nível médio e sua incidência na permanência e no
êxito do aluno
Nos dados coletados a partir do instrumento aplicado, 60% da amostra da
pesquisa se autodeclarou pardos e, 40%, pretos. Nenhum indígena foi identifica-
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do quando observamos os dados do sistema ou via respostas do questionário. No
Quadro 3, a seguir, mostramos excertos das respostas que os alunos deram, ao
justificarem a razão por que se autodeclararam pardos ou pretos.
Quadro 3 – Respostas do questionário
Informante Autodeclaração Motivo
B7 Preto “Pela cor da minha pele.”
B4 Pardo -
B2 Preto
“Me considero negro dado às minhas características e também afirmo que
sou por motivos de preconceito que já sofri.”
A2 Pardo “Porque sou uma mistura de cores.”
B3 Pardo “Pois possuo avós pretos, brancos e indígenas.”
B5 Preto
“Meus pais, avós, todos somos dessa etinia [sic], com vários descenden-
te(sic).”
B6 Pardo “Por ter pele mais clara.”
B1 Pardo “Por motivos familiares.”
A3 Pardo “Pois venho de família paterna negra e materna branca.”
A1 Preto “Devido a características físicas, consciência e descendência.”
Fonte: elaboração dos autores.
Ao questionarmos o motivo pelo qual os informantes se inscreveram para a
cota L4, colocamos, junto à pergunta, as condições de acesso pela cota (proveniente
de escola pública, preto/pardo/indígena, independentemente de renda) e percebe-
mos que diversos motivos ensejaram essa participação como cotista. Alguns parti-
cipantes, como “A2”, “B5”, “B6” e “B1” se restringiram a responder que tinham esse
direito, enquanto outros informantes se aprofundaram um pouco mais.
Ao responder a esta questão, nos parece importante ressaltar algumas infor-
mações, como, por exemplo, a de “B7”, que justificou ter utilizado a cota “pelo mo-
tivo de não sentir segurança na efetividade da educação que recebi (pública) e por
julgar válido usar cotas”. Já “B2” declarou por que acha as cotas válidas: “tendo em
vista que além de disputarmos vagas com estudantes que vem de escolas particula-
res onde o nível de ensino é superior também existe o fato de que historicamente o
negro, pardo e o indígena foram tratados como raças inferiores e isso é refletido até
hoje tendo como exemplo a minha turma onde apenas 3 alunos incluindo eu mesmo
são negros”.
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Podemos perceber que para estes informantes a utilização da cota teve um
cunho de mobilidade social.
Ao perguntarmos para os componentes da amostra se acreditavam que sua
permanência na escola ocorreu por causa da utilização da cota (Questão 09), 20%
respondeu que não, 50% que sua permanência é consequência de seus próprios
esforços e não em virtude da utilização da cota. Outros 20%, ao contrário, afirma-
ram que sim, que sua permanência na escola se deu em virtude de ter ingressado
pela cota L4 e 10% que sua permanência se deve à contribuição dos benefícios da
assistência estudantil. A maioria julga que sua permanência no IFSul se deve ao
próprio esforço, o que, por sua vez, nos conduz a acreditar que os alunos superam
as dificuldades, independente da forma de acesso, em busca do êxito estudantil.
Nesse ponto, a cota se configura apenas como uma oportunidade.
Sobre o êxito escolar, 50% dos respondentes afirmam que seu êxito escolar não
é decorrente da utilização da cota de ingresso, mas sim de seus próprios esforços.
Logo, verificamos, através das respostas, que a busca pela superação das dificulda-
des tem contribuído para o êxito escolar já que 40% respondeu de forma afirmativa,
justificando de formas diferentes.
Contudo, percebemos que, embora a maioria tenha ratificado que seu êxito é
decorrente dos seus próprios esforços, grande parte dos informantes (40%) atribuiu
a sua conquista ao fato de ter ingressado pela cota L4, seja pela possibilidade de
oportunidades – “[...] porque a concorrência era grande [...]”, declarou B5 –, seja por
compensar um ensino fundamental (público) deficitário – e “se não tivesse utilizado
cotas, [...] não teria adentrado no instituto devido a [...]antiga escola (pública) ter
o ensino muito fraco”, falou B6 –, seja pela concorrência ou por uma fase de vida
difícil – “porque quando entrei passava por uma fase delicada”, contou-nos A4. Em
nenhum momento os alunos que ingressaram por uma cota que é racial atribuíram
a este fato qualquer circunstância vinculada diretamente a racismo ou qualquer
preconceito explícito ou ainda à reparação social.
A outra pergunta do questionário, que inqueria se a utilização do(s) benefí-
cio(s) da AE contribuía(m) para a permanência na escola, os do grupo “A” (consti-
tuído pelos alunos que utilizam ou já utilizaram algum benefício) responderam que
os benefícios ajudam bastante” (A1) e que “pelo fato de ter uma renda baixa e não
pode conter os gastos com o instituto, tem sido de grande ajuda os benefícios e tem
influenciado na minha permanência no Campus” (A2).
Estas duas respostas que comentamos são extratos que têm paralelos nas
demais declarações, ou seja, todos os integrantes do grupo “A” consideram que
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a utilização dos benefícios da AE contribuiu para a sua permanência na escola.
Desta maneira, é possível inferir que, pelo baixo poder aquisitivo que possuem
e pela percepção do benefício, esses alunos conseguiram permanecer na escola.
De forma contrária, a totalidade do grupo “B”, por não utilizar benefícios da AE,
responderam “não” ao questionamento. Assim, podemos notar a disparidade de
necessidade entre os grupos e também a relevância da prestação desses benefícios
àqueles que possuem menor poder aquisitivo. Disto depreende-se a conjectura de
que, se não fossem esses benefícios, o índice de evasão dos alunos do grupo “A”
poderia aumentar.
A partir disso, pudemos concluir que a incidência da utilização de cotas na
permanência e êxito do aluno merece ser subdividida em duas etapas. Na primei-
ra, no tocante à permanência, observamos que os participantes da pesquisa (dos
grupos “A” e “B”), em sua maioria, atribuem a permanência aos próprios esforços
despendidos nas dificuldades durante a trajetória estudantil. Já em relação à utili-
zação dos benefícios da AE, que a totalidade de alunos do grupo “A” considera como
sendo importante para a permanência na escola, e pudemos inferir que foi quase
fundamental para que continuassem estudando, evitando assim a evasão.
Considerações nais
Em que pese a pesquisa ter sido realizada referente ao ingresso para ao ano
letivo de 2014, a relevância e atualidade da temática é pertinente, já que buscou
verificar como se deu a política de cotas em seu primeiro momento na instituição,
ou seja, tão logo se deu a vigência da lei regulamentadora. Além de elucidar aquele
momento que a instituição vivia, o estudo vem como forma de subsídio para outros
que desejem analisar a temática por completo, realizando uma retrospectiva da
implementação das cotas até a atualidade, bem como as questões de permanência
adotadas.
O baixo número de candidatos que optou por concorrer por esta forma de in-
gresso nos indicou, em um primeiro olhar, a pouca divulgação dessa forma de in-
gresso. No entanto, destacamos que o IFSul foi um dos precursores no oferecimento
de ingresso via cotas, já que a legislação do ano de 2012 permitia que as institui-
ções de ensino se valessem do prazo de 04 anos para implementação e o IFSul, tão
logo na abertura do processo seletivo seguinte ao da vigência da lei, já adotou esta
prática, enquanto outros aguardaram o implemento do prazo para então oferecer o
ingresso por meio das cotas.
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As ações afirmativas são consideradas um instrumento de correção pelo “Es-
tado” no sentido de recobrar direitos fundamentais de pessoas que se encontram
em desvantagem e/ou desigualdade social, e, por isso, concluímos que objetivam
garantir a igualdade e a isonomia entre as pessoas. No caso do IFSul, campus
Pelotas, com base na análise das ações promovidas pela escola e com aporte nas
respostas da amostra referente ao questionário aplicado, concluímos que as cotas,
como meio de acesso, podem promover uma “pseudo” mobilidade social. Isso porque
alguns informantes se veem com a necessidade de tratamento diferenciado para
conseguir ter acesso a uma educação de melhor qualidade. Assim, a utilização da
cota não vem como estrutura que aponte disparidade social
16
, e sim como um ele-
mento essencial à promoção de um “direito constitucional”.
No tocante à permanência, verificamos que, no campus Pelotas do IFSul, na
época da pesquisa, as ações afirmativas se restringem às adotadas pela assistência
estudantil e também, com base nas informações coletadas da amostra, à assistên-
cia médica, psicológica e odontológica, que constituem medidas que promovem a
manutenção dos alunos no espaço escolar. Não nos deparamos com contribuição,
durante a pesquisa, dos alunos na criação, elaboração ou melhoramento dessas
ações, o que poderia ser uma temática a ser levantada pelo campus na medida em
que traz para perto aqueles que necessitam de alguma ajuda para permanecer
estudando. No entanto, observamos que em 2017 foi divulgado o Plano Estratégico
Institucional de Permanência e Êxito dos Estudantes do IFSul, o qual auxilia nas
medidas que evitam a evasão e fracasso escolar.
Assim, a cota de acesso, pura e estritamente como ação afirmativa, não é fa-
tor vinculante à permanência desse indivíduo. Em que pese toda a amostra ter
ingressado pela cota L4, a maioria entende que sua permanência é decorrente de
seu esforço como estudante, sendo esse meio apenas uma oportunidade de acesso,
mas não de permanência na escola ou que enseje tratamento diferenciado para a
sua manutenção.
Neste caso, a permanência segue atrelada a fatores como serviços de saúde
prestados pela instituição e aos benefícios da assistência estudantil que, por sua
vez, está intimamente ligada ao baixo poder aquisitivo dos sujeitos que os utilizam.
Logo, esses indivíduos não se enxergam como ocupantes da posição social que ne-
cessita da cota para permanência, e sim, apenas para o acesso.
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Notas
1
Informação obtida através do sítio do IFSul. Disponível em: http://portal2.ifsul.edu.br/index.php?option=-
com_content&view=article&id=1387%3Aassistencia-estudanil-e-tema-de-capacitacao-&catid=9%3Ainsti-
tuto-federal-sul-rio-grandense&Itemid=1. Acesso em: 28 nov. 2016.
2
O Instituto Federal Sul-Rio-Grandense, por ser uma instituição da Rede Federal de Educação Técnica e
Tecnológica, dispõe de uma educação híbrida, ofertando ensino de nível médio Técnico, Superior e de Pós-
-Graduação stricto e lato sensu.
3
Entendido, nesta pesquisa, como conclusão de etapas: por disciplina, por semestre e por curso.
4
Entendido, nesta pesquisa, como apenas não evadido ou concluinte. Seria o ato de o aluno perseverar,
continuar, não desistir de seus estudos, obtendo êxito ou não.
5
Optamos pela busca em um período longo, de 2005 a 2016, tendo em vista que, ao realizarmos busca em
períodos mais breves e próximos a 2016, encontramos poucos trabalhos e, como consideramos a temática
da pesquisa importante, vimos, por bem, aumentarmos o período para que conseguíssemos mais trabalhos
que pudessem subsidiar nossa pesquisa.
6
A Lei nº 9.394/1996 surge para estabelecer as diretrizes e bases da educação nacional. Estabelece que a
educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana,
no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade
civil e nas manifestações culturais. A lei em questão disciplina a educação escolar, que se desenvolve, pre-
dominantemente, por meio do ensino, em instituições próprias (BRASIL, 1996).
7
Art.14, II, Portaria Normativa nº 18/2012.
8
A da Organização Didática da Educação Básica, Profissional e Superior de Graduação do IFSul está dispo-
nível em: http://www.ifsul.edu.br/regulamento-da-atividade-docente/item/113-organizacao-didatica. Aces-
so em: 19 set. 2016.
9
O regimento interno e o regimento geral do IFSul estão disponíveis em: http://www.ifsul.edu.br/regimen-
to-geral. Acesso em: 02 ago. 2016.
10
A Política de Assistência Estudantil do IFSul está disponível em: http://www.ifsul.edu.br/assistencia-estu-
dantil-ifsul/documentos-assistencia/item/101-assistencia-estudantil. Acesso em: 17 set. 2016.
11
O Regimento da Câmara de Assistência Estudantil está disponível em: http://www.ifsul.edu.br/assisten-
cia-estudantil-ifsul/documentos-assistencia/item/101-assistencia-estudantil. Acesso em: 22 set. 2016.
12
O Plano Estratégico Institucional de Permanência e Êxito dos Estudantes do IFSul foi publicado em 2017,
e está disponível em: http://www.ifsul.edu.br/component/k2/item/download/14547_39ae8a4a058847c5a9d-
3d8f377cf4181. Acesso em: 01 out. 2020.
13
Disponível em: http://pelotas.ifsul.edu.br/ensino/servico-de-psicologia. Acesso em: 15 maio 2017.
14
Disponível em: http://www.ifsul.edu.br/mapa. Acesso em: 08 abr. 2017.
15
O sistema Q-Acadêmico, de propriedade da Qualidata, conforme http://www2.qualidata.com.br/q_acade-
mico.htm, é uma ferramenta de gestão acadêmica que possibilita, em um universo de informações e base
de dados, que sejam produzidos de relatórios e estatísticas. Além disso, fornece diversos dados relevantes
para a Instituição com o cadastro dos alunos e informações acadêmicas destes. Acesso em: 16 maio 2017.
16
Entendida nessa pesquisa como desigualdade social e/ou econômica, podendo ser decorrente de má distri-
buição de recursos, escassez de investimentos em políticas sociais, falta de educação básica de boa quali-
dade, etc.
Referências
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Diego Bruno Velasco*, Ana Angelita Costa Neves da Rocha
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A metáfora, o Enem e a democracia
The metaphor, Enem and democracy
Metáfora, Enem y democracia
Diego Bruno Velasco
*
Ana Angelita Costa Neves da Rocha
**
Resumo
O presente trabalho buscou problematizar os sentidos de democracia” nas edições do Exame Nacional do Ensi-
no Médio (Enem). O objetivo deste trabalho se insere no atual contexto educacional e político do país, em que
as garantias dos direitos civis estão ameaçadas e em que consideramos necessário, na posição de docentes da
Educação Básica e do Ensino Superior, discutir as disputas pela signicação/validação da categoria democracia
dentro de uma política curricular nacional avaliativa de acesso aos cursos de graduação. A fundamentação teó-
rica se construiu no intenso debate entre a teoria do discurso e a teoria política, a partir de Ernesto Laclau e seus
interlocutores. O procedimento metodológico de análise dos itens do Enem observou a estrutura e a proposta
de gabarito da questão, indicando como as signicações de democracia possibilitaram ou não produções de
subjetividades ativas. Em linhas gerais, nossas reexões foram construídas a partir dos discursos produzidos
sobre a categoria democracia dentro das questões referentes ao tema da Ditadura Civil-Militar (1964-1985) nas
edições de 2009 até 2017. A hipótese inicial deste trabalho observou que a democracia é uma potente metá-
fora para conjugar conteúdos voltados para formação cidadã, ainda pouco explorada pelo exame. Em termos
de conclusão, destacamos que o conceito de democracia” cou mais restrito a uma concepção tradicional de
direito ao voto, mobilizando poucos outros sentidos. Ao mesmo tempo, constatamos que o Enem reforçou a
produção de discursos que tenderam a antagonizar o período da Ditadura Civil-Militar com o período da história
política do país que se inicia em 1985, apresentando poucos eixos conectivos entre tais momentos históricos.
Palavras-chave: Democracia. Enem. Metáfora. Ditadura Militar.
*
Mestrado e doutorado em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atua como professor de História no
Colégio de Aplicação da UFRJ. Concentra os estudos nas áreas do Currículo e Ensino de História da Educação Básica,
analisando livros didáticos, propostas curriculares, provas, entrevistas com prossionais do magistério, dentre outros.
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1531-1595. E-mail: profdivelasco97@gmail.com
**
Mestrado e doutorado em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; pós-doutorado em Geograa pela
Universidade Federal Fluminense; Professora (Adjunto IV) do Departamento de Didática da Faculdade de Educação na
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-8142-0119. E-mail: geo.ana.angelita@gmail.
com
Recebido em 28/03/2020 – Aprovado em 05/10/2020
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i3.12385
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A metáfora, o Enem e a democracia
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Abstract
The present work seeks to problematize the meanings of democracy in the editions of the National High School
Exam (Enem). The objective of this work is inserted in the current educational and political context of the cou-
ntry, in which the guarantees of civil rights are threatened and in which we consider it necessary, in the posi-
tion of teachers of Basic Education and Higher Education, to discuss the disputes for the meaning / validation
of democracy” category within a national curriculum policy evaluating access to undergraduate courses. The
theoretical foundation was built on the intense debate between the theory of discourse and political theory,
from Ernesto Laclau and his interlocutors. The methodological procedure for the analysis of the items of the
Enem observed the structure and the proposal for feedback on the question, indicating how the meanings of
democracy” enabled or not enabled the production of active subjectivities. In general, our reections were
built from the speeches produced on the category democracy within the issues related to the theme of the
Civil-Military Dictatorship (1964-1985) in the 2009 to 2017 editions. The initial hypothesis of this work observed
that the Democracy is a powerful metaphor for combining content aimed at citizenship formation, still little ex-
plored by the exam. In terms of conclusion, we highlight that the concept of democracy” was more restricted to
a traditional conception of the right to vote, mobilizing few other senses. At the same time, we found that Enem
reinforced the production of speeches that tended to antagonize the period of the Civil-Military Dictatorship
with the period of the countrys political history that began in 1985, presenting few connective axes between
such historical moments.
Keywords: Democracy. Enem. Metaphor. Military Dictatorship.
Resumen
El presente trabajo busca problematizar los signicados de democracia en las ediciones del Examen Nacional
de Bachillerato (Enem). El objetivo de este trabajo se inserta en el contexto educativo y político actual del país,
en el que se ven amenazadas las garantías de los derechos civiles y en el que consideramos necesario, como
docentes de Educación Básica y Superior, discutir las disputas por el signicado/validación de la categoría de
democracia” dentro de una política curricular nacional que evalúa el acceso a los cursos de pregrado. El funda-
mento teórico se construye sobre el intenso debate entre la teoría del discurso y la teoría política, de Ernesto
Laclau y sus interlocutores. El procedimiento metodológico para el análisis de los ítems del Enem observó la es-
tructura y la propuesta de retroalimentación de las preguntas de este examen, indicando cómo los signicados
de democracia posibilitaron o no la producción de subjetividades activas. En general, nuestras reexiones se
construyeron a partir de los discursos producidos sobre la categoría democracia dentro de los temas relacio-
nados con el tema de la Dictadura Cívico-Militar (1964-1985) en las ediciones de 2009 a 2017. La hipótesis inicial
de este trabajo observó que la democracia es una poderosa metáfora para combinar contenidos destinados a la
educación ciudadana, aún poco explorada por el examen. A modo de conclusión, destacamos que el concepto
de democracia estaba más restringido a una concepción tradicional del derecho al voto, movilizando pocos
otros sentidos. Al mismo tiempo, encontramos que el Enem reforzó la producción de discursos que tendieron a
antagonizar el período de la Dictadura Civil-Militar con el período de la historia política del país que comenzó en
1985, presentando pocos ejes conectivos entre tales momentos históricos.
Palabras clave: democracia. Enem. Metáfora. Dictadura militar.
Introdução
As linhas abaixo resultam do exercício de compreensão da teoria do discurso
e suas contribuições para investigar como os sentidos de democracia são validados
em um Exame aplicado anualmente para milhares de jovens brasileiros egressos
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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v. 27, n. 3, Passo Fundo, p. 834-857, set./dez. 2020 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
da Educação Básica. De fato, cabe narrar as nossas aproximações com certas dis-
cussões em torno do discurso e suas repercussões para o desenvolvimento do pre-
sente estudo
, considerando a atual contingência política que ameaça a experiência
democrática no país. Logo, com as vias de expressão democráticas interrompidas, é
conveniente enfrentar como materiais pedagógicos, nos últimos anos, significaram
as garantias dos direitos civis. O recorte do presente estudo é problematizar os
sentidos de democracia no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), analisando
os itens produzidos entre as edições de 2009 a 2017.
A argumentação é desenvolvida em três seções. Na primeira, intitulada “Da
metáfora da Democracia ao Exame da metáfora”, desenvolvemos uma discussão
teórica com autores como Laclau e Mouffe destacando, em termos gerais, as poten-
cialidades de trabalharmos em diálogo com as teorizações do discurso e, de modo
mais específico, enfatizando a pertinência de analisarmos a temática da Democra-
cia sob o prisma da categoria “metáfora”.
Na segunda seção, denominada “Os sentidos de Democracia em disputa nos
itens do Enem: Análise Empírica a partir do diálogo com a temática da Ditadura
Militar”, mobilizamos discussões pertinentes para a área do Ensino das Ciências
Humanas como os debates em torno dos usos públicos da História, do chamado
“dever de memória” e do ensino de temas históricos sensíveis, justificando nosso re-
corte em analisar os itens voltados para o período histórico da chamada “Ditadura
Militar” (1964-1985) para refletir sobre os significados de Democracia em disputa.
Por fim, na terceira seção, nomeada “As ‘verdades’ em disputa sobre a Ditadura
Militar e Democracia nos itens do Enem (2009-2017), nossa proposta é desenvolver
uma análise empírica dos itens selecionados, apresentando os sentidos de Democracia
e Ditadura hegemonizados bem como destacando as relações entre as dimensões tem
-
porais do presente e do passado que aparecem em nosso campo discursivo de análise.
Em termos de procedimentos metodológicos para análise dos itens, destacamos
que esta investigação foi desenvolvida mediante uma análise discursiva dos itens a
partir da postura epistêmica a qual se filia este artigo, a teorização pós-fundacional
do discurso. Como este referencial não se encontra preso a uma estratégia meto-
dológica específica, adotamos o procedimento de analisar os discursos produzidos
sobre os itens referentes à Ditadura Militar durante as edições de 2009 até 2017.
Como compreendemos o Enem como um espaço curricular que opera com senti-
dos de “verdades históricas” e “não-verdades históricas” por ser um exame no formato
de múltipla escolha e que, por esse motivo, admite apenas uma alternativa conside
-
rada certa, a análise discursiva se deu a partir da reflexão em torno das formas que
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apareceu a ideia de “democracia” nas respostas consideradas corretas (nomeadas pelo
INEP de gabarito) e naquelas consideradas incorretas (denominadas de distratores).
É neste caminho que destacamos que a presente investigação consistirá em
apresentar os discursos majoritariamente mobilizados para a temática seleciona-
da, procurando avaliar as memórias que constantemente são legitimadas e fixadas,
as memórias que se negligenciam e marginalizam as narrativas que são validadas
porque operam no domínio do verdadeiro.
O pressuposto deste artigo envolve o Enem como política curricular que valida
sentidos de democracia na conclusão da Educação Básica. No desenvolvimento das
reflexões a partir dos itens do Enem, não por acaso, trabalhamos com a hipótese de
que o “dever de memória” é uma operação política, que coordena uma equivalência
de disputas sobre os silenciamentos de certos sentidos de democracia, no momento
de formação das gerações futuras.
Em função da importância do discurso, não como mero objeto, ou reflexo da
linguagem, ao discurso, mas como teoria política, convém discutir os regimes de
validação dos saberes a serem ensinados e aprendidos como Democracia, o que
impacta numa aprendizagem do campo da significação da cidadania e da justiça
social, categorias essas que nos são incontornáveis para a pensar a sociedade bra-
sileira nestas primeiras décadas do século XXI.
Da metáfora da Democracia ao Exame da metáfora
Neste texto, cabe questionar, sobretudo, se o Enem repercute a distribuição
desigual do poder, quando se trata dos conteúdos que envolvem a experiência po-
lítica. Sem dúvida, esta suspeita é tributária do acúmulo de discussões do campo
do currículo, pois, desde meados dos anos 1990, tal campo vem sendo influenciado
pelos debates sobre cultura e poder e pelo emprego da categoria discurso.
Em resumo, a triangulação cultura-poder-discurso esteve na esteira da con-
testação dos modelos explicativos que poderiam ser classificados como essencialis-
tas. A interpretação dos saberes escolares depende de perspectivas que recusam a
neutralidade da seleção curricular e que sejam a favor de compreendê-la como pro-
cesso simbólico profundamente complexo e instável, perspectiva que, por sua vez,
favoreceu (como ainda favorece) a adoção do discurso como categoria privilegiada.
De modo que, apostamos numa inflexão para a composição teórica que associasse a
potência do debate da linguagem com a questão perene no campo do currículo e da
didática – isto é, o conhecimento escolar.
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Dessa forma, a discussão de discurso verticaliza seu potencial nas ciências polí-
ticas, com o fim de problematizar o “verdadeiro”: os regimes que disputam o signifi-
cado de Democracia no Enem. Diante desse argumento, é possível problematizar se
tal assertiva seria uma resposta teórica-metodológica para interpretar o político nos
sistemas de validação de saberes (GABRIEL; COSTA, 2010; GABRIEL, 2011, 2017).
No desenho teórico que considera o discurso como constituinte do social, como
ontológico do político (LACLAU; MOUFFE, 2005), abre-se uma pista teórica fecunda
para uma compreensão de que em textos educacionais, como o Enem, há uma von-
tade de verdade sobre modelo explicativo que impacta na forma como significamos a
“Democracia”. Para nossa argumentação, nos parece oportuno o pressuposto de que o
discurso é uma categoria ontológica. Por esta razão, assumimos aqui a diferenciação
entre teoria do discurso e análise do discurso, formulada por Howarth (2005, p. 10):
Como primeiro uso, o discurso é uma categoria ontológica que especifica o entrelaçamento
de palavras e ações nas práticas; a contingência de toda identidade, a primazia da po-
lítica, e etc. Enquanto o segundo uso do discurso pode ser entendido como um conjunto
de representações simbólicas e práticas incorporadas em uma série de textos, discursos e
seqüências de significados.
Ao projetar a diferenciação entre teoria do discurso e análise do discurso, Ho-
warth (2005) apresenta não somente a categoria discurso, mas oferece ao leitor que
tal distinção está fincada no plano epistemológico. Em suma, o autor reconhece que
se trata de distintos terrenos reflexivos para orientar a compreensão da luta por
significação. Seguindo essa ordem de ideias, suspeitamos de que há disputas em
torno do significar a Democracia no Enem, e, por conseguinte, asseveramos que a
teoria do (D)iscurso permite explorar o “controle” em textos curriculares, como a
própria manifestação do político e não somente seu reflexo.
Como mencionados acima, os diálogos com os pensamentos de Laclau e Mouf-
fe sobre a experiência democrática estão presentes em artigos e investigações do
campo do currículo, como uma estratégia de sinalizar uma leitura mais complexa
das relações de poder, especialmente, nas discussões que se preocupam com as po-
líticas de currículo e com as relações políticas na validação do conhecimento escolar
(GABRIEL, 2017).
Aqui, nos referenciamos nas expressões “operação metonímica” e “totalização
metafórica”, desenvolvidas por Laclau no texto intitulado “Política de la retórica”
(2000), pois ensaiaremos aqui um exercício de análise do Enem, buscando subli-
nhar as operações metonímicas que garantem identificações políticas em torno do
significado de Democracia.
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Esse exercício, a nosso ver, pode mobilizar interpretações sobre os movimen-
tos paradoxais constituintes de políticas de avaliação, como a do Enem. Em resu-
mo, tendo por base que a operação metonímica é uma operação do particular que
se solidariza com outros particulares na ambição de uma significação universal,
poderíamos experimentar reflexões sobre os processos de consolidação do Enem,
incorporando a ideia da contradição como estruturante da “totalização metafórica”.
Como o Enem é uma prova múltipla escolha, onde cada item é composto por
cinco alternativas, entendemos que cada questão mobiliza fluxos de sentidos de
verdade. Em outras palavras, cada assertiva é plausível e aspira “um valor de
verdade”, aspira “uma totalização metafórica”. Nesse caso, o que está estabelecido
provisoriamente na posição de “verdadeiro” corresponde àquela alternativa consi-
derada certa, ou seja, o gabarito segundo a terminologia do Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) enquanto o que se fixa /
entende como “não verdadeiro” equivale às respostas consideradas “falsas” ou “er-
radas” (também conhecidas como distratores, segundo terminologia adotada pelo
Inep para este exame).
Em uma política curricular, como o Enem, o considerado “certo” só pode se
constituir/afirmar discursivamente a partir da sua cadeia antagônica, que, no caso,
é o conjunto de afirmativas incorretas produzidas em cada um de seus itens. Assim
sendo, as disputas por significações hegemônicas mobilizam processos epistêmicos
de fechamentos/totalizações discursivas, que segundo a terminologia laclauniana,
são processos contingentes, visto que cada verdade histórica se constitui de acordo
com as demandas de seu tempo presente não podendo ser estabelecida fora dos
jogos políticos de fixação de sentidos. Por Tempo Presente, consideramos a relação,
instituída dentro de cada sociedade em seu presente vivido, entre campo de expe-
riência (passado) e horizonte de expectativa (futuro) estabelecida por autores como
Koselleck (2006).
Nessa perspectiva, dialogamos novamente Howarth (2005, p. 13), quando afir-
ma que:
Como contra abordagens mais tradicionais das ciências sociais, como o positivismo, o realis-
mo, e certas concepções do materialismo, os teóricos do discurso consideram a existência de
retórica como um aspecto constitutivo da realidade social, e sua análise teórica e empírica
como uma parte essencial para entender e explicar os fenômenos sociais.
A afirmação supracitada sugere que a abordagem dos teóricos do discurso não
se limita ao terreno explicativo da análise do texto, como referência retórica, mas
também a compõe substantivamente com a finalidade da interpretação do fenôme-
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no social. Para tanto, o autor se dedica a sublinhar a estreita relação entre retórica
e análise política, procurando repercutir a metáfora.
Sob a perspectiva da teoria do discurso, não seria injustificado o emprego da
retórica para a compreensão do fenômeno político, o que evidencia a potencialidade
de incorporar a interpretação da metáfora como sistematização política, conside-
rando a exploração textual. Ainda em “Hegemonia e Estratégia Socialista”, Laclau
e Mouffe (2005, p. 150) afirmaram que sua (proposta da) concepção da democracia
radical depende da centralidade do discurso somado à recusa da dicotomia “pensa-
mento/realidade”, voltado principalmente para expansão de categorias para “dar
conta das relações sociais”.
Para Laclau (2009, p. 86), o jogo metonímico, ou operação metonímica, é condi-
ção de possibilidade de produzir um corte antagônico, a fronteira interna que per-
mite “o povo”. Com essa argumentação, ele define a hegemonia como totalização
metafórica, isto é, as operações metonímicas (entre as unidades políticas chamadas
de demanda) vão na direção de uma significação universal, chamada por ele, naquele
texto, de “totalização metafórica”. Ou seja, antes de ser tendência à totalização me
-
tafórica, a hegemonia começa por ser “sempre metonímica” (LACLAU, 2000, p. 74).
O desafio da metáfora é ser uma operação política, que apaga a fronteira da
significação ou da fixação de sentidos. De forma que sua compreensão, partindo
do terreno da teoria laclauniana, depende do entendimento da lógica hegemôni-
ca, como ponto máximo da própria metaforização. O desafio da metáfora também
está na análise da superfície textual (no material empírico, eleito neste exercício,
como os itens do Enem). O desafio da metáfora consiste, antes de mais nada, em
compreendê-la como quadro animado por Laclau para dar inteligibilidade ao movi-
mento da luta hegemônica.
Por essa razão, avaliamos que é oportuno nos dedicarmos a explorar o enten-
dimento e o papel da metáfora nos escritos de Laclau. No ensaio Articulação e os
limites da metáfora (2010), a hegemonia é significada como a própria passagem da
metonímia para a metáfora, de um ponto de partida “contínuo” para a sua conso-
lidação (ou sedimentação) como analogia. Ou seja, hegemonia pode ser lida com a
equivalência convertida em universal.
Howarth (2008, p. 321) interpreta a proposta de prática hegemônica laclau-
niana a partir do deslocamento do conjunto de reivindicações de um “lugar social a
outro”, movimento que é iniciado por uma relação de contiguidade em que se aspira à
substituição (metaforização). Com a expressão “aspiração”, Howarth define o projeto
hegemônico, sendo a “estabilização do sistema de sentidos”, o ideal de toda metáfora.
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A criação da solidariedade entre demandas (como operação metonímica) dese-
ja envolver o sentido (novo) de totalidade. Nossa suspeita é que há narrativas (on-
tológicas, como desenvolveremos a frente) que se comportam como tal totalidade
metafórica, ao produzir o sentido de democracia, a partir de um “dever de memória”
(KALLÁS, 2017). Ao mesmo tempo, tais metáforas podem interditar sentidos ou-
tros de democracia que operam no jogo político para formação de gerações futuras.
Não por acaso, temos a aposta que o “dever de memória” é uma operação polí-
tica, que coordena uma equivalência de disputa sobre os silenciamentos. Em outras
palavras, nossa suspeita propõe a problematização do chamado “dever de memó-
ria” como prática hegemônica. Com base nesta argumentação, sublinhamos que a
definição de Democracia pode ser percebida como operação metonímica que, por
vezes, comporta-se como totalidade metafórica.
Na seção a seguir, nos inspiramos nesta interlocução para identificar como
os conteúdos do Enem “flutuam” para sistematizar operações que antagonizam
a Democracia. Considerando as contingências das políticas educacionais, em que
grupos neoconservadores buscam um revisionismo curricular dos conteúdos das
ciências humanas, é oportuno exercitar uma chave de interpretação que tencione
a relação entre temáticas do conhecimento escolar para validar a democracia como
conteúdo do Enem.
Os sentidos de Democracia em disputa nos itens do Enem: uma reexão sobre a
temática da Ditadura Militar em diálogo com a questão do ensino dos temas sensíveis
Em diálogo com a teoria do discurso, reiteramos que o presente artigo parte
do pressuposto de que os processos de hegemonização de sentidos no Enem mobili-
zam, selecionam e dialogam com os conteúdos escolares. Do mesmo modo, trata-se
de uma política curricular que autoriza e, principalmente, hegemoniza certos sa-
beres, certas memórias, determinadas verdades históricas por meio da fixação de
alguns discursos em detrimento de outros.
Os sentidos de “verdade” mobilizados na prova do Enem, ao mesmo tempo em
que articulam determinadas demandas para formar discursos hegemônicos ou uni-
versais, operam também na pauta dos antagonismos, uma vez que o significante
“verdade” para se hegemonizar necessita de um “outro”, antagônico, aquele situado
fora de sua cadeia de equivalência, também denominado de “exterior constitutivo”:
a “não verdade histórica”.
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Assim sendo, as disputas por significações hegemônicas mobilizam processos
epistêmicos de totalizações metafóricas, que são processos contingentes, visto que
cada verdade histórica se constitui de acordo com as demandas de seu tempo pre-
sente. Imbuídos destas reflexões, nossa proposta é produzir uma investigação das
complexas relações entre o conhecimento escolar e as noções de “verdade histórica”,
tendo como principal foco de investigação as disputas discursivas em torno das
significações de Democracia no Enem.
Ancorados no referencial teórico aqui privilegiado, entendemos que o processo
de produção das narrativas envolve disputas e combates nos diferentes contextos
discursivos – história acadêmica e escolar – em que são produzidas. Por conse-
guinte, as narrativas que se tornam hegemônicas no currículo da Educação Básica
assumem tal posição, pois são resultantes dos jogos políticos que deslocam e reafir-
mam fronteiras em meio ao campo de significação onde estão inscritas.
É neste sentido que advogamos em prol do conceito de “narrativas ontológicas”
(GONZÁLEZ, 2013) para pensar as narrativas validadas na esfera do Enem, visto
que identificamos um processo de confrontos hegemônicos no interior do conheci-
mento histórico escolar em torno do que deve ser considerado verdadeiro e impor-
tante para um estudante do Ensino Médio saber e quais tantas outras narrativas
devem ser silenciadas e/ou negligenciadas.
A dimensão ontológica quando transportada para o campo do Currículo remete
à potencialidade de pensar no caráter conflitivo dos discursos acerca dos passados
nacionais que devem ou merecem ser visitados pelos alunos. Afinal, Laville (1999)
já chamou a atenção ao destacar que a área do ensino de História é um espaço
marcado pelas “guerras das narrativas”.
Seguindo esta linha, concebemos que da mesma forma que a produção de
narrativas não é uma mera operação de sequenciar os fatos cronologicamente, o
processo de construção dos itens do Enem é uma operação política: de inclusão/
exclusão das diferentes narrativas produzidas sobre qualquer temática histórica.
O caminho que escolhemos para analisar os sentidos de Democracia em disputa e
fixados no espaço discursivo do Enem foi através da análise dos itens referentes à
temática da Ditadura Militar.
Tal escolha se deve por considerarmos tal conteúdo escolar potente para afir-
mar/silenciar significados para o conceito de Democracia, visto que as aproxima-
ções e distanciamentos entre os contextos políticos de 1964 a 1985 e 1985 a 2017
são pontos importantes para refletirmos sobre os rumos do nosso atual sistema
democrático.
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A discussão em torno das verdades que se lutam e se confrontam para vali-
dar ganha um ingrediente novo, se pensarmos em nosso contexto contemporâneo
marcado pela eclosão de variadas memórias em distintos espaços. É, pois, nesse
contexto que assistimos o crescimento dos diferentes usos públicos do conhecimen-
to histórico.
Segundo Kallás (2017, p. 143), a expressão “uso público da História” consiste na
veiculação de uma interpretação histórica para um público mais amplo não se resu-
mindo ao público acadêmico, passando por um processo de reconstrução e adaptação
historiográfica, de modo a ser lida por mais pessoas: “que se encontra na origem de
uma percepção social de profundo desamparo quanto às perspectivas de futuro”.
Destaca-se, portanto, que a dimensão dos usos públicos da História acarreta
a produção de conflitos de memória, de silenciamentos ou de esclarecimentos refe-
rentes a temas pouco debatidos, ao mesmo tempo em que propicia o aparecimento
de revisionismos históricos e de transformações na área do Ensino de História.
Escolhemos, portanto, o tema da Ditadura Militar para pensar os sentidos
de Democracia mobilizados no Enem, pois é um assunto que apresenta uma forte
presença nas diferentes instâncias da sociedade brasileira. Isto significa afirmar
que tal passado sofre contínuas revisitações acadêmicas e reelaborações em suas
narrativas e, por este motivo, interessam-nos analisá-lo em sua versão escolar.
Os impactos gerados pelo crescimento de narrativas que versam sobre o pe-
ríodo da Ditadura se articulam às discussões voltadas ao “dever de memória”. Se-
gundo autores como Heymann (2006) e Camargo (2016), este termo aparece no
contexto da rememoração, na década de 1970 na Europa, do genocídio sofrido pelos
judeus durante a Segunda Guerra mundial. Todavia, foi apenas na década de 1990
que este conceito se tornou relevante no meio acadêmico e político francês.
A expressão “dever de memória” representa “a ideia de que memórias de sofri-
mento e opressão geram obrigações, por parte do Estado e da sociedade, em relação
às comunidades portadoras dessas memórias” (HEYMANN, 2006, p. 4). Ou seja,
deste conceito deriva a ideia de que as memórias de dor e sofrimento geram obriga-
ções por parte do Estado e da sociedade para com as vítimas ou grupos de vítimas
no sentido de reconhecer as injustiças/violências históricas cometidas.
Reconhecemos que as discussões sobre as disputas de reconhecimento de me-
mórias em diálogo com aquelas voltadas aos diversos usos públicos da História ins-
tigam o surgimento de tantas outras memórias e demandas que acabam exercendo
influências nos processos de validação dos conteúdos e conhecimentos escolares.
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Há de se destacar ainda que o termo “dever de memória” envolve a crença de
que um reconhecimento é devido àqueles que sofreram e que “cada grupo social, em
outro tempo vítima, e hoje herdeiro da dor, pode reivindicar a celebração de seus
mártires e heróis” (HEYMANN, 2006, p. 7). Como o presente texto caminha em
diálogo com as perspectivas do discurso, importa sublinhar que os passados pelos
quais se reivindicam lembranças, memórias e até mesmo, um espaço maior nas
narrativas produzidas nos currículos não são compreendidos aqui como elementos
essencializados e tampouco unívocos.
Concordamos que as demandas por não fazerem esquecer as práticas de tor-
turas adotadas pelos governos militares durante as décadas de 1960, 1970 e 1980
unificaram diferentes movimentos e grupos, mas, ao mesmo tempo, defendemos que
o conteúdo daquilo que se narra, o sofrimento de quem se fala, a resistência de quem
se clama, são alvos de disputas hegemônicas e contingentes. Até mesmo os status e
as hierarquias atribuídas a determinados sofrimentos são frutos de conflitos sobre
o que deve ou não adentrar nas diferentes narrativas produzidas, visto que “nem
todas as interpretações sobre o passado têm o mesmo valor” (MOTTA, 2013, p. 66).
Concebemos, portanto, que a expressão “dever de memória” – marca ontologi-
camente o surgimento de lutas por fixações de novas e/ou reatualizadas narrativas
históricas no interior das diferentes sociedades e, de modo mais intenso, no Currí-
culo das chamadas Ciências Humanas. Dessa forma, os processos de formação das
totalidades metafóricas acabam passando por jogos de linguagens que culminam
na desconstrução e reconstrução das narrativas em virtude da eclosão de diferen-
tes vozes e demandas em voga.
As discussões produzidas em torno da Ditadura nos aproximam também com
as reflexões voltadas aos “temas/passados sensíveis ou controversos”, que se en-
contram nas discussões referentes ao Currículo de História e de Geografia. Alberti
(2014) salienta que os temas do ensino de questões sensíveis ou controversas englo-
bam assuntos diversos como a religião na Irlanda do Norte, o holocausto, o racismo
e a escravidão, dentre outros e abrangem a “ideia de que injustiças foram cometi-
das no passado contra pessoas ou grupos, podendo levar a disparidades entre o que
é ensinado nas aulas de história e o que é transmitido nas histórias familiares ou
comunitárias” (ALBERTI, 2014, p.2).
Trata-se de um novo terreno de produção e disputas em torno de memórias
que acabam impactando naquilo que se ensina na instituição escolar. Para Alberti,
o ensino de questões sensíveis e controversas não tem como objetivo chocar os es-
tudantes, mas sim fomentar reflexões sobre eixos temáticos que versem na ênfase
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na diversidade de experiências, problematizando as homogeneizações que tradicio-
nalmente são atribuídas a determinados grupos sociais quando se estuda alguns
períodos históricos específicos.
Falaize (2014) destaca que há, pelo menos, vinte anos a questão do ensino
de temas sensíveis da História aparece nos debates escolares, públicos e políticos
produzidos na França. Em decorrência disso, “as atividades de sala de aula estão
sujeitas à interrogação de uma sociedade inteiramente convidada a examinar o
interior da escola de seus conteúdos de ensino da história, a fim de ver nele oculta-
mentos, omissões ou amnésias nacionais” (FALAIZE, 2014, p. 227-228).
No entendimento deste autor, o impacto das discussões sobre os passados sen-
síveis ou controversos marcou uma ruptura com a forma tradicional de narrar a
História francesa (pautada nos sentimentos cívicos e patrióticos e na valorização
de “heróis nacionais” e “fatos), dessacralizando e questionando as narrativas pro-
duzidas. Em seu parecer:
Se olhássemos rapidamente para esta atualidade memorial em plena renovação (BO-
NAFOUX, DE COCK, FALAIZE, 2007), seríamos tentados a ver nela uma verdadeira revo-
lução, ou pelo menos uma ruptura com o passado da disciplina histórica e do seu lugar na
escola francesa. (...) é o romance nacional que parece fragilizado, questionado e reavaliado
sob uma nova luz. Não há volta às aulas, ou uma atualização memorial ou legislativa, sem
que os conteúdos de história abordados na escola, ou mesmo a maneira de contar a história
da França, sejam questionados, interrogados e ordenados a dar conta dos traumas do pas-
sado nacional (FALAIZE, 2014, p. 228).
O trecho citado faz uma articulação interessante entre a discussão do dever
de memória e do ensino de temas sensíveis, mostrando que esta relação gera novas
formas de se questionar os passados narrados, através dos conteúdos escolhidos e
das tramas construídas, no interior das instituições escolares.
Isso nos permite pensar que o estudo das discussões em torno das relações
entre verdade – memória – currículo – conteúdo pode se posicionar na ordem da
contingência sem abrir mão de costuras ou suturas, ainda que provisórias, em tor-
no de um sentido de Democracia.
As “verdades” em disputa sobre a Ditadura Militar e Democracia nos itens do
Enem (2009-2017)
Groppo (2015) assinala que as questões de memórias relativas ao período
das ditaduras ocupam um lugar importante nas sociedades da América Latina,
podendo ser consideradas uma importante demanda social por verdade, justiça e
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reparação. Napolitano (2015), outrossim, assegura que os processos de transição
emergentes após o término das ditaduras são acompanhados de operações de “re-
construção da memória”, que tem por objetivo principal a superação dos traumas e
das fissuras produzidos nas sociedades afetadas por tais tipos de governos.
Em seu entendimento, autênticas “guerras de memória” (NAPOLITANO, 2015,
p. 98) são cultivadas na busca pela afirmação das verdades históricas. Cerqueira e
Motta (2015), por sua vez, sinalizam que as batalhas de memórias, principalmente
no caso de processos traumáticos, decorrem quando diversos grupos disputam o
controle das representações do passado em busca de garantir o reconhecimento de
suas demandas, sofrimentos e experiências no presente.
Cruz (2015, p. 385) aponta para as disputas pelas memórias hegemônicas,
argumentando que “os sentidos que se constroem sobre o passado não se articulam
em torno da ausência de objetivos políticos, mas, muito pelo contrário, o que se
rememora, silencia ou esquece é em função dos objetivos e projetos do presente”.
Seguindo este caminho, entendemos que o espaço discursivo do Enem mobili-
za múltiplas demandas de memória e disputas em torno das verdades históricas e,
por esse motivo, concordamos com Alice Pereira (2015, p. 349) quando sustenta que
“relembrar o passado é instaurá-lo num terreno de disputas entre determinadas
versões” marcado pela dialética entre lembrança e esquecimento, considerados não
como elementos antagônicos, mas sim como complementares um ao outro.
A partir de uma análise sistematizada sobre os itens referentes ao governo da
Ditadura Militar, percebemos que o Enem, de um lado, reforça a ideia do Estado
como limitador das liberdades e direitos e, por outro lado, valida as narrativas de
resistência e engajamento popular contra o governo que se estabeleceu a partir do
golpe de 1964. Constatamos, pois, uma hegemonização das narrativas de “causa
e consequência”, pois, de um lado, sublinha os discursos sobre o que o Estado fez
para controlar e dominar a sociedade e, por outro lado, destaca as narrativas em
torno do que ela (sociedade civil) fez para resistir ao autoritarismo em vigência.
Percebemos um diálogo pouco desenvolvido entre estas instâncias – Estado e socie-
dade civil –, uma vez que os discursos se posicionam como se entre a dominação e
a resistência não houvesse nenhuma outra alternativa.
Observamos, por conseguinte, o silenciamento das novas dimensões historio-
gráficas sobre as relações entre a sociedade com aquele governo ditatorial. É como
que ao afirmar o caráter democrático da sociedade brasileira, o Enem preconiza o
seu distanciamento em relação ao governo militar, esquecendo os entrelaçamentos,
vínculos e heranças persistentes em nosso país atualmente.
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Nos próximos parágrafos, discutiremos as estratégias discursivas encontra-
das hegemonicamente nos itens do Enem. Paul Ricoeur (2010) sugere, em suas
reflexões sobre as articulações entre o tempo e a narrativa histórica, que existem
três possibilidades ou modalidades de visitar o passado: sob o signo do Mesmo, sob
o signo do Outro e sob o signo do Análogo.
Segundo este autor, a primeira forma de visitá-lo implica na adoção de estratégias
que estimulam eliminar as distâncias temporais. Nesse viés, trata-se de compreender
a história como uma “reefetuação do passado” (RICOEUR, 2010, p. 240), pressupondo
de toda maneira “uma persistência do passado no presente” e fundindo “as duas tem
-
poralidades no presente do historiador” (GABRIEL; COSTA, 2011, p. 136).
A modalidade do “passado sob o signo do Outro”, por sua vez, coloca a História
na direção do afastamento entre as dimensões do passado e do presente, protagoni-
zando sentidos de “distância temporal” (RICOEUR, 2010, p. 248), em que:
Voltamos assim ao enigma da distância temporal, enigma sobredeterminado pelo afasta-
mento axiológico que nos tornou estrangeiros aos costumes dos tempos passados, a ponto
de a alteridade do passado com relação ao presente prevalecer sobre a sobrevivência do
passado no presente (RICOEUR, 2010, p. 252).
Em linhas gerais, a segunda modalidade parte de um pressuposto inverso ao
identificado na primeira (GABRIEL; COSTA, 2011). Já a modalidade do “passado
sob o signo do análogo” associa as esferas do “mesmo e do outro” (RICOEUR, 2010,
p. 255). A perspectiva do Análogo, por conseguinte, “conserva em si a força da reefe-
tuação e da colocação a distância” (RICOEUR, 2010, p. 264-265) e opera na tensão
entre continuidade e mudança, familiaridade e estranhamento, “possibilitando a
produção de identidades em meio a disputas da memória a partir das demandas do
presente” (COSTA, 2012, p. 85).
Comparando as diferentes modalidades para pensar essas articulações tempo-
rais dentro dos itens referentes à Ditadura Militar, o discurso hegemônico tende a
colocar este passado como “exterior constitutivo” do nosso período contemporâneo.
Em linhas gerais, a lógica do passado “sob o signo do outro” é reforçada na maior
parte das narrativas analisadas.
Os itens relacionados principalmente à década de 1980 sugerem o predomínio
de narrativas que opõem, de um lado, a sociedade como um todo e, de outro, o Estado
autoritário e repressor. É desta forma que apresentaremos alguns itens relacionados
ao movimento das “Diretas Já” e das lutas sindicais ao final do governo militar para
enfatizar a dimensão de afastamento temporal entre esses períodos cronológicos.
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A análise dos itens nos possibilita afirmar que o Enem opera em uma lógica
que tende a isolar o Estado Ditatorial brasileiro da sociedade brasileira, identi-
ficando e ratificando o papel opositor exercido por esta nos chamados “anos de
chumbo”. A demanda pelo direito ao voto aparece como elemento articulador das
lutas pela restituição do regime democrático de governo.
Dentro do bloco de questões associados à temática aqui privilegiada, alguns
itens hegemonizam as mobilizações em eventos como as “Diretas Já” como sinôni-
mo da luta pela democracia. Ou seja, o discurso em prol do direito ao voto direto
para o Executivo aparece como totalização metafórica em prol da democracia. Cabe
destacar que, em sintonia com o que é defendido por Laclau, o universal é aquele
discurso particular que se hegemoniza, efetuando uma operação metafórica. Veja-
mos como isso aparece em alguns itens:
Item 40- Edição 2010B
Disponível em: http://pimentacomli-
mao.files.wordpress.com. Acesso em:
14 abr. 2010 (adaptado).
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A charge remete ao contexto do movimento que ficou conhecido como Diretas
Já, ocorrido entre os anos de 1983 e 1984. O elemento histórico evidenciado na
imagem é:
a) a insistência dos grupos políticos de esquerda em realizar atos políticos ile-
gais e com poucas chances de serem vitoriosos.
b) a mobilização em torno da luta pela democracia frente ao regime
militar, cada vez mais desacreditado.
c) o diálogo dos movimentos sociais e dos partidos políticos, então existentes,
com os setores do governo interessados em negociar a abertura.
d) a insatisfação popular diante da atuação dos partidos políticos de oposição
ao regime militar criados no início dos anos 80.
e) a capacidade do regime militar em impedir que as manifestações políticas
acontecessem (ENEM, 2010).
Item 41- Edição 2010B
A gente não sabemos escolher presidente A gente não sabemos tomar conta da
gente A gente não sabemos nem escovar os dentes Tem gringo pensando que
nóis é indigente Inútil A gente somos inútil MOREIRA, R. Inútil, 1983 (frag-
mento).
O fragmento integra a letra de uma canção gravada em momento de intensa
mobilização política. A canção foi censurada por estar associada
A) ao rock nacional, que sofreu limitações desde o início da ditadura militar
B) a uma crítica ao regime ditatorial que, mesmo em sua fase final,
impedia a escolha popular do presidente.
C) à falta de conteúdo relevante, pois o Estado buscava, naquele contexto, a
conscientização da sociedade por meio da música.
D) à dominação cultural dos Estados Unidos da América sobre a sociedade bra-
sileira, que o regime militar pretendia esconder.
E) à alusão à baixa escolaridade e à falta de consciência política do povo brasi-
leiro (ENEM, 2010).
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Item 10- Edição 2015B
O diálogo que aparece na charge é:
“E o senhor não cansou esperando a hora de votar pra presidente”?
“Não! Me distraí ouvindo as notícias: O assassinato do Kennedy, a guerra do
Vietnã, o surgimento dos Beatles, a chegada do homem na lua, a invenção do
transístor e do microcomputador, os conflitos do Oriente Médio, o surgimento
da AIDS, a guerra das Malvinas, a Perestroika na Rússia, o fim do Muro de
Berlim...”
O diálogo entre os personagens da charge evidencia, no Brasil, a(s)
A) reinserção do país na economia globalizada.
B) transformações políticas na vigência do Estado Novo.
C) alterações em áreas estratégicas para o desenvolvimento do país.
D) suspensão das eleições legislativas durante o período da Ditadura Militar.
E) volta da democracia após um período sem eleições diretas para o
Executivo Federal (ENEM, 2015).
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Os itens de História do Enem priorizam a marca da Democracia como estando
intimamente associada às concepções de cidadania e de direito ao voto, reestabe-
lecendo uma articulação bastante clássica no campo do Ensino de História. Logo,
as memórias sobre o período em questão imbricam-se com as múltiplas formas de
mobilização da população no final do período militar em busca do direito ao voto
para presidente.
No item 40/2010B, o movimento das “Diretas Já” é abordado pelo viés da luta
pelo voto como representando as variadas demandas pela democracia, reafirmando
a ideia de uma “sociedade brasileira” contra a Ditadura e em prol de votação di-
reta. Consideramos que esta imagem é também emblemática daquilo que o Enem
pretende significar e fixar como memória a respeito daquele período: a confirma-
ção e fixação de um sentido de sociedade brasileira resistente (esta dimensão da
resistência aparece aqui como mobilização pela luta ao direito de votar) ao governo
da Ditadura Militar, hegemonizando, por conseguinte, os significados desse signi-
ficante em disputa pelas diferentes matrizes historiográficas.
Já no item 41/2010B, percebe-se novamente a importância concedida às letras
de música como formas de enfrentamento e crítica social / política ao governo dos
militares, enfatizando o papel que as produções culturais tiveram naquele período
em termos de enfrentamento e resistência. A terceira questão selecionada, item
10/2015B, a seu modo, elenca a quantidade de eventos ocorridos no mundo enquan-
to perdurava a ditadura militar com o intuito de criticar o período extenso em que
a sociedade ficou sem acesso ao direito de votar para o cargo de presidente.
A análise dos itens permite-nos constatar que o Enem ao realizar uma tota-
lização metafórica propõe-se a diferenciar o período da Ditadura e o seu momento
posterior, a partir de 1985. Tal operação discursiva produz o sentido de democracia
equivalente ao o direito de votar para o cargo de Presidente da República, o que
tende a reforçar uma visão simplista e com risco de reforçar uma dicotomização,
visto que opera pouco com a possibilidade de produzir interpretações que protago-
nizem, por exemplo, certos aspectos de continuidades entre estes períodos.
Os itens acima, em suma, dialogam com as perspectivas que destacam as lutas
e as conquistas pelo direito ao voto compreendendo-as como narrativas incontor-
náveis tanto para visualizar a participação da sociedade civil na resistência àquele
governo como para demarcar a Ditadura como um período “estranho”, “distante”
das nossas práticas democráticas atuais. Reforça-se, então, a narrativa da “Dita-
dura como um passado que não se vive mais nos tempos atuais”, como estando nos
sentidos de “verdadeiro” dentro do espaço curricular do Enem.
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Nessa percepção, o “povo brasileiro” ou a “sociedade brasileira” resignificados
como combativo, resistente e perseguidor de seus direitos políticos, civis e sociais
é o que emerge no jogo da memória que se quer fixar na narrativa nacional. Com-
preendemos, a partir desses vestígios discursivos, que a memória e o regime de
verdade que se pretendem legitimar no Enem são os de uma sociedade distanciada
do regime político autoritário instaurado no ano de 1964, que se opunha à violên-
cia, à repressão e ao terror de Estado. Dito de outra forma, entendemos que essa
narrativa se universaliza – é uma totalização metafórica – na ordem discursiva
enfocada no presente estudo.
Nessa mesma linha de argumentação, outras formas de resistência ao governo
ditatorial aparecem em itens cujas narrativas destacam as greves operárias reali-
zadas no final da década de 1970. Vejamos o exemplo a seguir:
Item 2- Edição 2016 B
1) Para além de objetos específicos, muitos movimentos sociais interferem no
contexto sociopolítico e ultrapassam dimensões imediatas, como foi o caso das
mobilizações operárias, ocorridas em 1979 na cidade de São Paulo. Nesse sen-
tido, ao mesmo tempo em que lutavam por seus direitos, essas mobilizações
contribuíram com o(a)
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A) elaboração de novas políticas que garantiram a estabilidade econômica do
país.
B) instalação de empresas multinacionais no Brasil.
C) legalização dos sindicatos no Brasil.
D) surgimento das políticas governamentais assistencialistas.
E) processo de redemocratização do Brasil (ENEM, 2016).
A temática da atuação dos movimentos sindicais (principalmente na região do
ABCD paulista) nos anos finais do governo da Ditadura é uma temática recorrente
no que se refere à participação popular no combate e no enfrentamento aos milita-
res. As narrativas sobre as “Diretas Já” e sobre estas greves, como já destacamos
anteriormente, ocupam um papel protagonista nas narrativas que visam legitimar
a sociedade brasileira como resistente, principalmente, durante a década de 1980.
O gabarito desse item define que tais mobilizações contribuíram para o pro-
cesso de redemocratização do Brasil. Portanto, a narrativa mobilizada interliga-se
com o discurso que entende as conquistas políticas e sociais por meio também da
mobilização dos trabalhadores, conectando a ideia de cidadania com a questão da
redemocratização política ao mostrar que este movimento de 1979 ultrapassou “di-
mensões imediatas” tendo interferido no contexto mais amplo do Brasil.
O item dialoga com a versão escolar da Ditadura quando se pensa no final
deste governo. Geralmente, fatos como as greves e o movimento das “Diretas Já”
recebem um espaço destacado nos manuais didáticos. Reiteramos que no Enem,
quando se pensa nas “narrativas de resistência”, a discussão acaba protagonizando
principalmente este período final, destacando os acontecimentos das greves e das
manifestações entrelaçadas à demanda do movimento das “Diretas Já”.
Encerramos a presente seção apresentando pontos de contato entre as análi-
ses empíricas com as conclusões de Helenice Rocha sobre a produção referente à
temática da Ditadura Militar em livros didáticos. Segundo Helenice Rocha (2017),
as narrativas sobre a ditadura nos livros didáticos foram se transformando ao lon-
go da década de 1980. Em geral, enfatiza que os capítulos que versam sobre este
assunto tendem a seguir um roteiro que abarca os seguintes temas: a crise do go-
verno João Goulart que teria provocado o golpe de Estado, os diferentes momentos
do período ditatorial, destacando a atuação dos presidentes da República naquele
período e a posse de Tancredo Neves em 1985, eleito de forma indireta após o mo-
vimento popular das “Diretas Já” (ROCHA, 2017, p. 250-251).
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A autora acrescenta que a resistência é tratada nas esferas da produção cul-
tural e da luta armada. Todavia, o que chama atenção em sua produção é o mesmo
que encontramos nos itens do Enem: os silenciamentos sobre os consentimentos
sociais em relação à implementação e à manutenção do governo militar no período
de sua existência, uma vez que nas palavras de Helenice Rocha (2017, p. 257):
O conjunto de narrativas trata do período que se inicia com o golpe de Estado como agen-
ciado principalmente pelas Forças Armadas brasileiras. Poucas coleções mencionam expli-
citamente a participação da sociedade civil durante a ditadura, atribuindo a determinados
representantes da elite uma aliança com os militares para o Golpe.
As reflexões que desenvolvemos no presente artigo nos permite constatar que
o Enem, ao operar com uma totalização metafórica, hegemoniza discursos que re-
forçam os sentidos de Democracia como sendo o governo em que as pessoas têm o
direito de votar para eleger seu presidente, apresentando um afastamento entre os
eixos temporais de 1964-1985 e de 1985-2017.
Em nosso entendimento, tal esvaziamento de articulações entre tais períodos
acaba contribuindo para esvaziar a potencialidade do ensino dos temas históricos
sensíveis, visto que reforça a produção de memórias tradicionais sobre o tema e,
ao mesmo tempo, silencia a emergência de outras narrativas no espaço discursivo
do conhecimento escolar validado na esfera da, até o presente momento, principal
política curricular nacional de avaliação da Educação Básica e de ingresso ao En-
sino Superior.
Considerações nais
Formas sedimentadas de “objetividade” constituem o campo do que chamamos de “o social”.
O momento do antagonismo, onde se faz plenamente visível o caráter indecidível das alter-
nativas e sua resolução através de relações de poder é o que constitui o campo “do político”
(LACLAU, 2005, p. 51).
Inspirados, na citação acima, a própria metaforização da Democracia no Enem
guarda a natureza da validação dos saberes, isto é, guarda uma pretensão de ob-
jetividade. O plano geral do nosso problema é a validade do saber passível de ser
ensinado, ou os mais válidos, convertidos em item em escala nacional, na fase final
da escolarização obrigatória no Brasil. Logo, a discussão da totalização metafórica
como operação hegemônica, reflexão contundente de Laclau, participa diretamente
no nosso entendimento como legitimidade dos saberes escolares. Neste artigo, a
seleção curricular é a configuração do item. Em outras palavras, o saber válido
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e exigido na prova é, não outra coisa, que as pegadas visíveis de uma totalização
metafórica.
Todavia, é importante fazermos um alerta para evitar a produção de generali-
zações. Em suma, as discussões referentes aos usos públicos da História levam-nos
a destacar a importância política e social deste tema e articulá-lo com a discussão
das narrativas ontológicas. Portanto, justificamos, então, nossa análise dos itens
referentes à ditadura militar no Enem por acreditar que acarreta inúmeras discus-
sões e produções que, de alguma forma, “marcam os estudantes” e o currículo de
História em escala nacional.
Nossa suspeita é de que na metaforização do governo ditatorial no Enem, os
setores de esquerda permanecem nas narrativas de resistência, porém os conser-
vadores acabam não sendo mais mencionados, pois o foco recai na figura dos pre-
sidentes militares, que sintetizam a atuação conservadora no período. Já ao se re-
portar ao período final da Ditadura, os itens do Enem analisados percebem toda a
sociedade como coesa nas manifestações, como ocorre nas narrativas relacionadas
ao movimento das “Diretas Já”, atribuindo à “sociedade brasileira como um todo a
responsabilidade pelo enfraquecimento da ditadura” (ROCHA, 2017, p. 262).
Com efeito, no Enem, a objetividade da Ditadura é definida hegemonicamente
como aquele período “outro”, “distante” que não apresenta relações com a forma
como nossa sociedade se constitui nos dias atuais. Trata-se de um “exterior cons-
titutivo” para aquilo que o exame pretende afirmar como Democracia, como se o
período contemporâneo não guardasse nenhum legado daquele momento.
Observando que na atual conjuntura política, há vetores e grupos organizados
num revisionismo exaltador do passado da Ditadura Militar, cabe-nos, enquan-
to educadores, investigarmos os usos públicos da História e suas metáforas. Vale
sublinhar as incertezas presentes nas futuras edições do Enem, haja vista que a
atual gestão federal se posiciona favoravelmente à censura prévia dos itens, em
especial, aqueles que abordam temáticas consideradas desafiadoras à moral da
família cristã.
Selecionar os itens de Ciências Humanas do Enem (produzidos entre as edi-
ções de 2009 a 2017 e que versavam sobre a chamada Ditadura Militar) e anali-
sá-los com o objetivo de investigar os fluxos de cientificidade e verdade hegemo-
nizados em sua produção a partir das contribuições das teorizações do Currículo
e do Discurso foi o caminho, portanto, que trilhamos para analisar os sentidos de
Democracia em disputa no espaço curricular do Enem.
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Libras no curso de pedagogia: análise de fatores que interferem no processo
de ensino-aprendizagem
Libras in the pedagogy course: analysis of factors that interfer in the teaching-learning process
Libras en el curso de pedagogía: análisis de factores que intereren en el proceso de
enseñanza-aprendizaje
Célia Regina Vitaliano
*
Josiane Junia Facundo
**
Resumo
Este texto é parte de um estudo mais amplo, que buscou avaliar o processo de implementação da disciplina
de Língua Brasileira de Sinais (Libras) na grade curricular do curso de Pedagogia da Universidade Estadual de
Londrina (UEL). O objetivo do presente artigo é apresentar as análises dos fatores que envolveram o processo de
ensino-aprendizagem e que contribuíram ou dicultaram o desenvolvimento dessa disciplina. Os dados foram
coletados por meio de uma entrevista semiestruturada com a docente da disciplina de Libras e da aplicação de
um questionário junto a 90 estudantes de Pedagogia, após cursarem a referida disciplina. A análise dos dados se
pautou, em especial, no Decreto nº 5.626/2005, que regulamenta a Lei nº 10.436/2002 – lei de reconhecimento
da Libras. Os resultados evidenciaram que as maiores diculdades em relação ao ensino da Libras foram: a carga
horária da disciplina; a quantidade de alunos por turma; o excesso de atividades paralelas à disciplina; e dicul-
dades especícas como coordenação motora e memorização. Quanto aos aspectos positivos, destacam-se o
apoio didático e os recursos visuais que auxiliam nas aulas e facilitam a compreensão dos estudantes. Avaliamos
que as análises apresentadas contribuem para identicação das condições que facilitam e dicultam o desen-
volvimento da disciplina de Libras.
Palavras-chave: Disciplina de Libras. Pedagogia. Ensino-aprendizagem. Decreto nº 5.626/2005.
*
Doutora em Educação, professora Doutora Assistente da Universidade Estadual de Londrina. Docente do Programa de
Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Londrina/PR. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-8757-4204.
E-mail: reginavitaliano@gmail.com
**
Mestre em Educação, docente do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Tocantins. Doutoranda no Pro-
grama de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Londrina/PR. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-9102-
8281. E-mail: josiane.almeida@yahoo.com.br
Recebido em 20/03/2020 – Aprovado em 10/10/2020
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i3.12388
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
Este artigo está licenciado com a licença: Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
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Abstract
This text is an excerpt from a larger study, that sought to evaluate the Libras major implementation process in
the Pedagogy Course curriculum in Londrina State University- UEL. The purpose of these paper is presenting the
factors analysis that involved the teaching-learning processes and contributed to or hindered the major pro-
gress. Data were collected through a semistructured interview with the professor and questionnaire to 90 Peda-
gogy students, after they attended that major. The data analysis was based, in particular, on Decree 5.626/2005,
which regulates Law 10.436 of 2002 – Libras Recognition Law. Results showed that the greatest diculties in
relation to the Libras teaching were timeload; amount of students per class, parallel activities excessive to the
major one, and specic diculties such as motor coordination and memorization. As for the positive aspects,
we highlight the didactic support and the visual resources that aid in the classes and facilitate the students
understanding. We evaluated that analyzes presented could contribute to identify conditions that make Libras
progress easy or dicult it.
Keywords: Libras Major. Pedagogy. Teaching-learning. Decree 5.626/2005.
Resumen
Este texto es parte de un estudio más amplio, que buscó evaluar el proceso de implementación de la asignatura
de Libras en el plan de estudios del curso de Pedagogía de la Universidad Estatal de Londrina-UEL. El objetivo de
este artículo es presentar el análisis de los factores que involucraron el proceso de enseñanza-aprendizaje y que
contribuyeron o dicultaron el desarrollo de esta disciplina en el referido curso. Los datos fueron recolectados a
través de una entrevista semiestructurada con el docente de la asignatura Libras y la aplicación de un cuestiona-
rio a 90 estudiantes de Pedagogía, luego de cursar dicha asignatura. El análisis de los datos se basó, en particular,
en el Decreto 5.626/2005, que regula la Ley 10.436 de 2002 – ley de reconocimiento de Libras. Los resultados
mostraron que las mayores dicultades en relación a la enseñanza de Libras fueron: la carga de cursos; el número
de alumnos por clase, el exceso de actividades paralelas a la asignatura y dicultades especícas como la coordi-
nación motora y la memorización. En cuanto a los aspectos positivos, se destaca el apoyo didáctico y los recursos
visuales que ayudan en las clases y facilitan la comprensión de los alumnos. Creemos que los análisis presenta-
dos contribuyen a la identicación de condiciones que facilitan y dicultan el desarrollo de la asignatura Libras.
Palabras clave: Asignatura de Libras. Pedagogía. Enseñanza-aprendizaje. Decreto 5.626/2005.
Introdução
A Língua Brasileira de Sinais (Libras), embora seja a língua da comunidade
de surdos no Brasil desde a existência dessa comunidade, só foi reconhecida como
meio legal de comunicação e expressão muito recentemente, por meio da Lei nº
10.436, de 24 de abril de 2002. Esse reconhecimento se deve à luta da comunidade
de surdos, que, através de lideranças surdas, organizou várias mobilizações pelo
país desde a década de 90. Um ganho ainda maior, contudo, se reflete no Decreto
nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005, o qual veio regulamentar a referida lei. Esse
decreto ressalta a oferta de ensino bilíngue para surdos e estabelece algumas dire-
trizes para alcançar tal objetivo.
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Uma das principais medidas previstas no decreto vem ao encontro da forma-
ção de professores para atuar junto aos alunos surdos, que diz respeito à inclusão
da disciplina de Libras como obrigatória nos currículos das licenciaturas, no curso
de Fonoaudiologia e no curso de Pedagogia (BRASIL, 2005). No parágrafo único,
do artigo 9º, do capítulo III, o decreto traz a seguinte determinação: “O processo de
inclusão da Libras como disciplina curricular deve iniciar-se nos cursos de Educa-
ção Especial, Fonoaudiologia, Pedagogia e Letras, ampliando-se progressivamente
para as demais licenciaturas” (BRASIL, 2005, não paginado).
Essa medida exigiu a reorganização dos referidos cursos quanto à adequação
de sua matriz curricular, bem como da abertura de processos seletivos e concursos
públicos para a contratação de docentes para ministrarem a disciplina de Libras.
Depreendemos que a análise de situações de ensino-aprendizagem de Libras é
fundamental para que, por meio do conhecimento dos aspectos favoráveis e desfa-
voráveis ao processo, se encontre as estratégias que facilitem o trabalho do profes-
sor e resulte na aprendizagem efetiva dos graduandos.
Considerando que o Curso de Pedagogia deveria ser um dos primeiros a in-
cluir a disciplina em sua matriz curricular, e ainda o fato de ter sido o primeiro
curso a atender essa determinação na Universidade Estadual de Londrina (UEL),
foi escolhido como campo de estudo para nossas análises.
No que se refere a Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental, o
decreto determina que, as instituições federais, responsáveis pela educação básica,
para garantir a inclusão de alunos surdos, devem organizar “escolas e classes de
educação bilíngue”, que abriguem tanto alunos surdos como alunos ouvintes, dis-
pondo de professores bilíngues. Para os anos finais do ensino fundamental, para
o ensino médio ou profissionalizante, o decreto prevê “escolas bilíngues ou escolas
comuns da rede regular de ensino, abertas a alunos surdos e ouvintes” nas quais os
docentes das diferentes áreas tenham conhecimento da “singularidade linguística
dos alunos surdos”, além da presença de tradutores e intérpretes de Libras para
acompanhar esses alunos nesse espaço (Art. 22).
A motivação para o estudo surgiu da necessidade de acompanhar as primeiras
turmas da disciplina de Libras, e, principalmente, por se tratar de uma professora
surda; o que tornava a situação duplamente inédita nessa universidade.
Assim, nossa pesquisa se configurou como um Estudo de Caso, em que foram
analisadas quatro turmas do curso de Pedagogia por meio de questionário, aplica-
do aos estudantes e entrevista semiestruturada junto à professora de Libras.
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O problema que deu origem a essa pesquisa foi: quais fatores contribuem para
o ensino-aprendizagem da disciplina de Libras; e quais interferem nesse processo?
Tais indagações culminaram no seguinte objetivo geral: identificar fatores que
interferem no processo de ensino-aprendizagem da disciplina de Libras no curso
de Pedagogia.
No referencial teórico, a seguir, buscamos analisar o processo do desenvolvi-
mento da Libras até sua inserção nos currículos de formação de professores, por
meio do decreto 5626/05. Na sequência, trazemos as análises do desenvolvimento
da disciplina de Libras, bem como a discussão dessas, ancorada em bases teóricas
referentes aos fatores favoráveis e desfavoráveis ao processo de ensino-aprendiza-
gem da Libras.
A instituição da Libras
Nas referências históricas acerca das línguas de sinais no mundo não encon-
tramos citações que precisem o surgimento dessa modalidade linguística, sendo
consenso o fato de que as línguas de sinais sempre existiram e coexistiram com as
línguas orais. No entanto, os estudos dessas línguas são recentes e têm crescido
significativamente nas últimas décadas.
De acordo com Quadros (2004), os estudos sobre Língua de Sinais no Brasil
se deram a partir do trabalho de Gladis Knak Rehfeldt, “Linguistics bases for the
description of Brazilian Sign language”, publicado no livro “The sign language of
Brazil”, editado por Harry W. Hoemann, em 1981.
Contudo, a publicação do documento mais importante encontrado até hoje so-
bre a Libras, segundo Ramos (2003), é de 1873, o Iconographia dos Signaes dos
Surdos-Mudos, de Flausino José da Gama, um aluno surdo do Instituto Nacional
de Surdos-Mudos (INSM).
O material reproduzido por Flausino da Gama é um livro de língua de sinais
com ilustrações de sinais separados por categorias (animais, objetos, etc.). Ramos
(2003) observa que, de acordo com o que está impresso no prefácio do livro, a inspi-
ração para o trabalho veio de um livro publicado na França e que se encontrava à
disposição dos alunos na Biblioteca do instituto (atual INES).
Em 1968, a publicação de um artigo de Kakumusu, J. Urubu Sign Language
evidenciou que haveria pelo menos outra língua de sinais no Brasil, utilizada pelos
índios Urubus- Kaapor. A partir desse dado, linguistas brasileiros, como Ferreira
Brito, passaram a se interessar pelos estudos da Libras. A partir de 1982, essa
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linguista começou a documentar os sinais da Língua de Sinais Kaapor Brasileira
-LSKB, como a denominou, diferenciando-a da Língua de Sinais dos Centros Urba-
nos Brasileiros -LSCB (SOFIATO, 2005).
A denominação Libras se deu a partir do II Congresso Latino Americano de Bi-
linguismo para Surdos, realizado em 1993, em substituição à denominação LSCB,
posto que LSCB era o termo utilizado apenas em pesquisas linguísticas e Libras
era o termo utilizado pela comunidade surda. Antes disso, era comum o termo
“linguagem de sinais”, “linguagem dos surdos-mudos”, entre outros.
As línguas de sinais, hoje, são consideradas pela linguística, não mais como
um problema do surdo ou uma patologia da linguagem, mas como línguas naturais
ou como um sistema linguístico legítimo.
Quadros e Karnopp (2004, p. 46) mencionam que embora a denominação Li-
bras seja utilizada para se referir à língua de sinais utilizada no Brasil, existe
também a sigla LSB (Língua de Sinais Brasileira), “utilizada internacionalmente,
seguindo os padrões de identificação para as línguas de sinais”. No Brasil, o pro-
cesso de reconhecimento legal da Libras iniciou-se a partir da década de 1990, com
algumas iniciativas estaduais que antecederam a lei federal.
O primeiro estado brasileiro, cuja legislação incluiu a Língua de Sinais utili-
zada pela comunidade surda, foi Minas Gerais, a partir da Lei nº 10.379, de 10 de
janeiro de 1991, a qual reconhece, oficialmente, no estado de Minas Gerais, como
meio de comunicação objetiva e de uso corrente, a linguagem gestual codificada na
Libras.
Todavia, a Libras só foi reconhecida oficialmente no país onze anos mais tarde,
pela Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, sendo regulamentada somente três anos
depois pelo Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005.
O reconhecimento da Libras resultou de iniciativas das comunidades de sur-
dos espalhadas pelos diversos Estados brasileiros. Além do mais, o processo de
legitimação dessa língua se deve a outros fatores, tais como: o avanço dos estudos
linguísticos sobre línguas de sinais no mundo; as contribuições dos estudos surdos
que permitem perceber as pessoas surdas como pertencentes a grupos linguístico-
culturais; e às políticas de inclusão educacional a partir da década de 90.
A Libras como disciplina curricular obrigatória
Com a regulamentação da Libras, por meio do Decreto 5.626, de 22 de dezem-
bro, de 2005 surgem medidas significativas para à educação de surdos no Brasil.
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Entre tantas questões contempladas no decreto, encontra-se a instituição da Li-
bras como disciplina curricular nos cursos de formação de professores.
O capítulo segundo desse Decreto traz as seguintes determinações:
Art. 3º A Libras deve ser inserida como disciplina curricular obrigatória nos cursos de for-
mação de professores para o exercício do magistério, em nível médio e superior, e nos cursos
de Fonoaudiologia, de instituições de ensino, públicas e privadas, do sistema federal de
ensino e dos sistemas de ensino dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
§ 1º Todos os cursos de licenciatura, nas diferentes áreas do conhecimento, o curso normal
de nível médio, o curso normal superior, o curso de Pedagogia e o curso de Educação Espe-
cial são considerados cursos de formação de professores e profissionais da educação para o
exercício do magistério.
§ 2º A Libras constituir-se-á em disciplina curricular optativa nos demais cursos de edu-
cação superior e na educação profissional, a partir de um ano da publicação deste Decreto
(BRASIL, 2005, não paginado).
Essa medida mexeu, substancialmente, na estrutura dos cursos de Pedago-
gia e demais licenciaturas nas universidades públicas e privadas. Instalou-se um
novo cenário, visto que até esse momento a Libras era desconhecida pela grande
maioria dos professores. A perspectiva de alguns educadores da área se mostra
bem positiva, em relação à implantação de tal medida. Como se pode observar nas
considerações de Strobel (2008, p. 102):
São raros os professores habilitados para trabalhar com os alunos surdos em sala de aula.
Na maioria dos cursos de Pedagogia nas universidades não tinham estas especializações
para esta área- somente agora salvo pelo decreto n. 5626, de 22 de dezembro de 2005 que dá
obrigatoriedade das aberturas de cursos de Libras nestes cursos, as coisas podem melhorar.
O fato de a disciplina de Libras ser obrigatória nos cursos de formação de
professores pode ter dado a entender que o professor regente deverá ministrar suas
aulas em Libras, o que seria tecnicamente impossível (BOTELHO, 2007). Além do
mais apropriar-se efetivamente da Língua de Sinais, assim como de qualquer outra
língua, requer muito mais que um semestre de curso.
Os aspectos linguísticos da Libras são, de fato, importantes, tal como enfati-
zados por Quadros e Campello (2010, p. 37) que ao referir-se a disciplina de Libras
nos cursos de Letras e Pedagogia de uma Universidade, consideram que a pro-
posta da disciplina nesses cursos tem como objetivo proporcionar conhecimentos
básicos de Libras, além de contemplar as especificidades referentes a cada área
de conhecimento no que diz respeito aos sinais. As autoras ainda ressaltam que
“a comunicação básica em Libras e os conhecimentos construídos a partir do curso
possibilitarão uma relação entre professor e os alunos surdos no contexto da edu-
cação regular”.
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Por desconhecimento das características da Língua de Sinais e da lógica nos
“equívocos” de produções escritas de alunos surdos, alguns professores acabam
acreditando que a dificuldade de domínio na língua padrão seja de ordem cog-
nitiva (BOTELHO, 2007, p. 20). Daí a importância de compreender a estrutura
da língua de sinais e especificidades do aluno surdo: para realizar uma avaliação
mais coerente do processo de aprendizagem desses alunos, bem como a intervenção
adequada, que considere a sua singularidade.
Essa singularidade está expressa no Decreto nº 5.626/2005, que, em um dos
perfis de formação, traduz o que se espera do professor que irá atuar junto a outros
profissionais, com o aluno surdo, no que se refere ao “professor regente de classe
com conhecimento acerca da singularidade linguística manifestada pelos alunos
surdos” (CAPÍTULO IV, art. 14º).
Essa condição do aluno surdo justifica a inserção da disciplina de Libras na
formação de professores e deveria nortear os planejamentos da disciplina, princi-
palmente a seleção de conteúdos que serão ministrados, cuidando desse modo para
que a disciplina não se equipare a um curso básico de Libras, mas que vá além do
ensino dessa língua (que é indubitavelmente essencial para a formação de profes-
sores), contemplando aspectos cognitivos e pedagógicos fundamentais ao trabalho
docente. No que se refere ao atendimento ao aluno surdo, Damázio (2007, p. 14)
ressalta que:
Mais do que a utilização de uma língua, os alunos surdos precisam de ambientes educacio-
nais estimuladores, que desafiem o pensamento, explorem suas capacidades, em todos os
sentidos. Se somente o uso de uma língua bastasse para aprender, as pessoas ouvintes não
teriam problemas de aproveitamento escolar, já que entram na escola com uma língua oral
desenvolvida.
Nesse sentido, asseveramos que os aspectos pedagógicos para a educação de
surdos merecem destaque na disciplina de Libras, com conteúdos e estratégias que
vão ao encontro do desenvolvimento cognitivo do aluno surdo.
Além desses, há outros fatores importantes a serem considerados, como os
propostos por Dias, Silva e Braun (2009, p. 107) sobre a “necessidade de maior
colaboração entre professores e especialistas (quando houver) que participam do
cotidiano escolar, para a organização de atividades que apresentem ações e propos-
tas eficazes às necessidades de todos os alunos”.
Consideramos, portanto, que investir na formação de professores, tanto inicial
como continuada é a melhor forma de sanar as deficiências relacionadas à educação
de alunos surdos, seja na escola bilíngue ou em classes comuns, visto que, quase
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todos os fatores que interferem para que o processo de inclusão seja efetivo estão
ligados a atitudes e práticas cotidianas em sala de aula, seja referente à didática do
professor, às relações sociais deste para com os alunos ou as relações que ele pode
mediar entre esses.
Conquanto, algumas questões precisam ser levantadas e discutidas para que
o processo de implementação da Libras nos cursos de Pedagogia tenha maior êxito,
entre as quais podemos elencar o modo pelo qual se tem dado o ensino da disci-
plina de Libras na formação dos estudantes; quais conteúdos são abrangidos; as
dificuldades encontradas no processo de ensino aprendizagem; os fatores que têm
favorecido tal processo, entre outros. Esses últimos são o foco de nosso estudo,
apresentado nesse texto.
A seguir, detalhamos os procedimentos utilizados para a coleta e análise dos
dados, que levaram aos fatores favoráveis e desfavoráveis ao andamento da disci-
plina, enfatizados no estudo.
Método
O estudo apresentado aqui se caracteriza de natureza qualitativa, configu-
rando-se como é “um conjunto de diferentes técnicas interpretativas, que visam a
descrever e a decodificar os componentes de um sistema complexo de significados”
(NEVES, 1996, p. 1). Trata-se de um estudo de caso, em que foram analisadas 4
turmas do curso de Pedagogia da Universidade Estadual de Londrina.
Os participantes foram os estudantes das quatro turmas do 4º ano do curso de
Pedagogia, totalizando cento e dezenove, e a professora de Libras que ministrava a
disciplina em todas as turmas do referido curso.
A disciplina teve duração de um semestre com carga horaria de 60 horas; es-
tava alocada no último semestre do curso de Pedagogia e dividia espaço com as dis-
ciplinas de Estágio Supervisionado, Trabalho de Conclusão de Curso entre outras.
A coleta de dados foi realizada por meio da técnica de entrevista semiestrutu-
rada junto à professora ministrante da disciplina de Libras e da aplicação de um
questionário, junto aos graduandos de Pedagogia, que encontravam- se em fase
de finalização do curso, sendo este aplicado após os graduandos participarem da
disciplina de Libras, disposta na grade curricular no último semestre do curso.
Ao todo foram aplicados 90 questionários, visto que nem todos os alunos es-
tavam presentes no momento da aplicação. Os questionários foram entregues no
início da primeira aula, bem como o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido,
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e recolhidos no final da última aula. Ainda assim, o total de questionários respon-
didos foi 40, devolvidos em branco 17 e não devolvidos 33.
A professora entrevistada era surda, por isso a entrevista se deu em Libras,
sendo filmada e posteriormente traduzida para a língua portuguesa, a fim de faci-
litar as análises.
Resultados e Discussão
Os dados a seguir apresentam as principais dificuldades encontradas no pro-
cesso de ensino- aprendizagem da Libras, bem como aponta alguns fatores que
favoreceram esse processo.
Fatores agravantes e facilitadores no ensino-aprendizagem da Libras
A composição de disciplinas de línguas estrangeiras no currículo de cursos
do Ensino Superior não é novidade, sabe-se que, principalmente a língua inglesa
marca presença em boa parte dos cursos, embora, esse não seja o caso dos cursos
de formação de professores.
No entanto, ao chegar no ensino superior, a maioria dos alunos já possui co-
nhecimentos prévios, ao menos o básico da língua estrangeira cursada no ensino
médio. O êxito de alguns alunos em detrimento de outros se dá pelo maior ou me-
nor contato com o idioma.
Essa realidade não acontece com a Libras, visto que muitos alunos que cur-
sam a disciplina no Ensino Superior nunca tiveram contato anteriormente com a
língua. Isso pode justificar algumas dificuldades encontradas durante o processo
de ensino-aprendizagem, levando em conta o fato de que essa língua possui uma
estrutura sintática diferente da língua portuguesa, além da modalidade gestual-vi-
sual que não é comum às pessoas ouvintes.
Buscamos identificar, assim, por meio do questionário, se os alunos do curso
de Pedagogia já possuíam algum conhecimento acerca dessa língua, de que modo
adquiriram os conhecimentos e quais os conhecimentos que possuíam.
Do total de alunos que participaram da pesquisa, 30% afirmaram possuir co-
nhecimentos prévios sobre a Libras, sendo que destes, 33,3% relataram ter ad-
quirido esses conhecimentos por meio do contato com pessoas surdas, enquanto
16,6% adquiriram por outros meios como livros e realização de cursos, como se pode
observar pelos relatos:
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Tenho um primo de 18 anos que é surdo. Sempre tive muito contato com eles (A4).
Tenho uma conhecida que é surda (A20).
Convivência com alguns surdos (A37).
Dos alunos participantes, 50% especificaram os tipos de conhecimento que
possuíam em relação à Libras, sendo que 33,3% dos alunos se referiram a conhe-
cimentos práticos da língua, 33,3% aos conhecimentos teóricos e 33,3% tanto co-
nhecimentos práticos quanto teóricos. Os outros 50%, embora tenham afirmado
possuir conhecimentos a respeito da Libras antes de cursarem a disciplina, não
especificaram o que conheciam.
Entre os conhecimentos que os alunos afirmaram ter adquirido antes do curso,
temos:
Apenas o alfabeto manual e alguns pontos sobre a educação dos surdos e a conquista da
oficialização da Libras como 1ª língua desses sujeitos (A12).
Apenas que a Libras é uma língua de sinais usada para a comunicação de surdos/mudos
(A32).
Apenas as letras do meu nome no alfabeto manual (A18).
Alguns sinais (A39).
Os conhecimentos prévios apresentados pelos participantes, como pudemos
observar, eram mínimos, sendo que poucos afirmaram ter adquirido por meio do
contato com pessoas surdas, membros da família, conhecidos e outros. Esses co-
nhecimentos se restringiam ao alfabeto manual, em alguns casos apenas algumas
letras do alfabeto (A18) e em outros, apenas sinais isolados. Somente um aluno
afirmou ter feito um curso de Libras, o qual afirma:
Por não praticar guardei poucas coisas (A20).
Em relação às dificuldades que vivenciaram no decorrer da disciplina de Li-
bras, 52,5% dos alunos participantes responderam que não tiveram dificuldades,
45% afirmaram ter alguma dificuldade e 2,5% não se manifestaram.
Entre as dificuldades citadas identificamos dificuldades em função da com-
plexidade dos conteúdos, dificuldades relacionadas à coordenação motora ou me-
morização; dificuldade de aprendizagem devido à carga horária da disciplina; e
dificuldades de comunicação com a professora surda. Esta última justificada pela
falta de intérpretes.
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O Gráfico 1, a seguir, retrata as principais dificuldades encontradas pelos
alunos, em percentual.
Gráfico 1 – Dificuldades encontradas pelos estudantes na disciplina de Libras
complexidade dos conteúdos
cordenação motora ou
memorização
carga horária insuficiente
comunicação com a professora
surda
40%
33%
17%
10%
Fonte: elaboração dos autores.
Elencamos entre as respostas dos alunos participantes as que melhor justifi-
cam a dificuldade citada:
Falta de coordenação motora. Dificuldade em memorizar os sinais (Aluno 1).
A linguagem de sinais é bastante complexa (Aluno 2).
Porque requer um estudo mais profundo em relação a Libras, tivemos no último ano da facul-
dade e isso deixou a desejar muito conteúdo para todas (Aluno 3).
A questão da carga horária tem sido bastante questionada, tanto por alunos
como professores. Sabemos que a aquisição de uma língua requer muito mais tem-
po do que um semestre. A esse respeito Martins (2008, p. 195) salienta que não se
pode tornar “superficial o ensino da língua de sinais, tomando uma única disciplina
semestral, como manual de inclusão dos surdos na escola e na sociedade”.
Entendemos, contudo, que a disciplina de Libras não se restringe ao ensino da
Libras, tendo em vista o contexto educacional em que esses pedagogos irão atuar, é
imprescindível a abordagem de conteúdos relacionados à educação de alunos sur-
dos. Não podemos negar que o tempo da disciplina é insuficiente para adquirir
fluência em Libras, porém, a formação de intérpretes de Libras exige um curso em
nível de graduação próprio. Além disso, há questões que permeiam a educação de
surdos, que não podem ser ignoradas na formação de professores e pedagogos.
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A pesquisa de Pereira (2008), acerca da implementação da disciplina de Li-
bras no Ensino Superior, demonstra, a partir do relato de coordenadores de alguns
cursos de pedagogia, que a única disciplina que aborda a temática da educação de
surdos nos referidos cursos é a Libras. Desse modo, é inegável o papel da discipli-
na de formar professores regentes que conheçam a surdez e suas especificidades,
que envolvem questões linguísticas, culturais, cognitivas e pedagógicas, além de
conhecimentos básicos da língua, considerando a importância de “professores com
formação adequada para o trabalho pedagógico, o qual possui como condição bási-
ca, a comunicação” (TAVARES; CARVALHO, 2010, p. 8).
Vale ressaltar que, alguns alunos, mesmo tendo afirmado não encontrar di-
ficuldades na disciplina, acabaram apontando-as na justificativa, como podemos
observar nos relatos a seguir:
Não. Mas os colegas sim, pois a apostila utilizada não dava conta de me apoiar nos conteúdos
ministrados em sala (Aluno 4). [grifo nosso]
Não. Dificuldade não, porém é muita coisa para aprender em apenas 1 semestre (que foi o
tempo que tivemos) (Aluno 5).
O aluno 4, embora tenha negado dificuldades na disciplina, deixa explícito que
não conseguia acompanhar o conteúdo, mesmo tendo a apostila como apoio.
A maioria dos alunos que respondeu não apresentar dificuldades na disciplina,
também não apresentou justificativa de sua resposta, tendo em vista que a questão
não exigia justificativa, no caso do participante assumir que não teve dificuldades
em realizar a disciplina.
Quadros e Campello (2010) ressaltam que a proposta da disciplina de Libras
no Curso de Pedagogia é de oferecer conhecimentos básicos dessa Língua. Depreen-
demos que o nível de aquisição da língua de sinais esperado e trabalhado na dis-
ciplina de Libras do curso analisado, tenha sido o básico, tendo em vista o tempo
da disciplina e os conteúdos teóricos abordados. Este, provavelmente tenha sido o
motivo pelo qual 52,5% dos participantes relataram não encontrar dificuldades,
pois a aprendizagem de qualquer língua é complexa. Pensar que a língua de sinais
seria diferente é banalizá-la. Além do mais não se pode ignorar que boa parcela dos
alunos, mesmo em relação aos conhecimentos básicos da língua de sinais, admitiu
encontrar dificuldades.
Reily (2008) comenta sobre o mito de que “é fácil aprender a língua de sinais”,
pois, assim como não é fácil para o surdo aprender a língua portuguesa, o inverso
também ocorre.
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Em relação à aprendizagem da Língua de Sinais, além das questões estrutu-
rais ou gramaticais, comuns à aprendizagem de outras línguas, são necessárias ha-
bilidades motoras e expressivas, o que dificulta ainda mais a aprendizagem dessa
língua. Além disso, a memorização dos sinais é também destacada como uma das
principais dificuldades. Por isso, o ensino de Libras, tanto como primeira língua
(L1) quanto como segunda língua (L2), parece fundamental o uso de recursos vi-
suais, visto que se trata de uma língua visual. Como considera Damázio (2007, p.
38), “a qualidade dos recursos visuais é primordial para facilitar a compreensão do
conteúdo curricular em Libras”.
O uso da apostila também parece indispensável quando se trata do ensino de
Libras, pois, como mostram as pesquisas de Gesser (2006), existe uma necessidade
de registrar os sinais por parte dos alunos ouvintes, que sentem dificuldade de
memorizá-los depois, se não houver um registro. A ausência do registro os deixa
inseguros e o professor, por outro lado, se sente incomodado por não ter a sua aten-
ção. A autora comenta que:
A maioria dos alunos é unânime quanto à necessidade de escrever durante as aulas de
LIBRAS. Embora reconheçam que o ato da escrita pode incomodar o professor – já que
mostra uma desatenção por parte delas –, além de estar em jogo a questão de ele precisar
do contato visual para ratificar e ser ratificado na interação[...] (GESSER, 2006, p. 146).
Outro apontamento feito por Gesser (2006) é que em alguns momentos das
aulas de Libras (do curso pesquisado por essa autora), o professor surdo pede aos
alunos que parem de escrever e olhem para ele. Os alunos atendem ao pedido na-
quele momento, mas em seguida um grupo de alunas volta a fazer anotações.
Podemos constatar que existe de fato a necessidade do registro dos sinais,
tendo em vista que entre as dificuldades apontadas pelos participantes de nossa
pesquisa está a de memorizar esses sinais, especialmente pela metodologia que a
professora utiliza ao introduzir a prática de Libras, ou seja, de sinais por grupo
semântico, como relatou ao citar os conteúdos trabalhados. Para evitar a tensão
que envolve a necessidade do registro por parte dos alunos e a condição de atenção
que a modalidade de língua exige para sua aprendizagem, o uso da apostila parece
ser um recurso considerável.
Apontamos como um dos aspectos positivos a utilização desses recursos didá-
tico-visuais durante as aulas de Libras, enfatizado pela professora, nos seguintes
termos:
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Eu tenho todo o tipo de apoio didático, recursos de multimídias como projetores e laptops
que auxiliam nas aulas e são ótimos. Se não tivesse esses recursos à disposição seria muito
difícil. Mas, normalmente tenho tudo isso disponível para as aulas. Bem como impressões de
materiais, xerox, sempre que deixo na pasta, são providenciadas as cópias. (PL).
A professora de Libras citou vários recursos que considera importantes para
o bom andamento das aulas e que a Universidade dispõe de muitos para o uso em
suas aulas. Percebemos que estes recursos são previstos desde a organização de
suas aulas, quando descreve que:
Primeiro, organizo a parte teórica, os slides com muitos recursos visuais, depois explico o
conteúdo e atividades em Libras. Algumas propostas estão nas apostilas que entrego para
eles. Depois eles praticam em grupos, a partir de textos ou figuras (PL).
Embora tenha à disposição tantos recursos, a professora colocou a necessidade
de um intérprete em sala de aula, visto que sente falta desse apoio durante as suas
aulas “para atender as dúvidas dos alunos que às vezes têm receio de perguntar
alguma coisa”.
A utilização da língua oral, normalmente é requerida nas aulas mais teóricas.
Neste momento é que seria necessária a presença do intérprete. Como destacamos
anteriormente, as questões teóricas que envolveriam os aspectos pedagógicos da
educação de Surdos são indispensáveis e não podem ficar de fora do programa da
disciplina de Libras. Tais aspectos foram encontrados no programa da disciplina de
Libras da universidade pesquisada.
No que se refere ao apoio de um intérprete nessas aulas teóricas, quando o
professor é Surdo, acreditamos que auxiliaria muita na interação dos alunos com
esse docente. Pela fala da professora surda, entrevistada, parece que a dificuldade
maior está na insegurança dos alunos diante da necessidade de tirar dúvidas acer-
ca dos conteúdos durante as aulas, como coloca:
[...] então sinto falta desse profissional para que os alunos possam se abrir mais, fazer pergun-
tas, de modo que haja uma troca e uma maior interação (PL).
A professora de Libras, por sua vez não mencionou dificuldade em comunicar-
-se com os alunos, ou passar o conteúdo. Acreditamos que essa dificuldade, no es-
tudo de caso em questão, não se apresentou, pelo fato de a professora ser oralizada
e possuir bom domínio da Língua Portuguesa em suas modalidades oral e escrita,
além dos diversos recursos citados.
Sobre o uso da Língua Portuguesa pela professora nas aulas, comentou:
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Eu uso mais a oralidade para me comunicar. No início falo mais com eles. Depois que eles já
sabem um pouco de Libras aproveito para utilizar os sinais que eles já conhecem como cum-
primentar, “oi, tudo bem? ”E eles tentam entender, então começo a introduzir mais a Libras no
diálogo com os alunos” (PL).
Outro aspecto positivo a destacar, se refere a presença de professores sur-
dos como docentes da disciplina de Libras. Houve expectativa por parte de alguns
alunos ao saber que teriam uma professora surda, entre as quais elencamos as
seguintes considerações:
Na verdade, houve muitas descobertas, a começar pelo fato de encontrar com a professora
surda. É surpreendente descobrir outras formas de comunicação, principalmente a Libras que
favorece tanto a educação dos surdos (A18).
Minha professora é surda e a experiência foi riquíssima, visto que além do conteúdo tivemos
contato com os pontos de vista, dificuldades e superações dela (A12).
Nota-se, que os alunos participantes atribuem ao professor surdo a importân-
cia para a experiência de vida, como representante da própria língua e cultura, tal
como argumenta Wilcox e Wilcox (2005, p. 31) ao dizer que a melhor maneira de
os alunos conhecerem a cultura Surda, e também a própria língua de sinais, é com
um professor que seja Surdo, o que Rebouças (2009, p. 97) chama de “legitimidade
natural” do professor surdo.
Além dessa “legitimidade natural” do professor surdo, acreditamos que o con-
tato dos alunos com esse profissional, o conhecimento de suas experiências como
surdo, bem como das dificuldades que esse profissional enfrenta, seja pela falta de
acessibilidade ou pelo preconceito, possibilita maior sensibilização dos alunos, o
que refletirá certamente em sua prática profissional com alunos ou colegas surdos.
Gesser (2009) salienta que a maioria dos cursos universitários que preparam
os profissionais para atuar com alunos surdos tendem a dar um enfoque clínico,
utilizando-se da narrativa da deficiência, promovendo concepções geralmente
simplificadas, construídas a partir de traços negativos como, por exemplo, a falta
de língua(gem). Sendo assim, conhecer o surdo como um profissional, docente do
ensino superior, contribui para afastar concepções estigmatizadas em relação às
pessoas surdas.
Vale ressaltar que o fato de considerarmos o contato com a professora surda
como um fator favorável no ensino da Libras não desmerece o trabalho de profissio-
nais ouvintes fluentes em Libras e conhecedores da cultura surda.
Vimos, portanto, vários fatores a serem considerados no ensino da Libras, que
podem contribuir com a formação de professores mais capacitados para atuarem
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junto a alunos surdos que vão além do domínio da língua ou conhecimento da cul-
tura surda. No que se refere aos fatores favoráveis e os que interferiram no desen-
volvimento da disciplina de Libras em nosso estudo de caso, trazemos, a seguir
essas e outras conclusões em nossas considerações finais.
Considerações nais
Entre as principais dificuldades encontradas no decorrer da disciplina, desta-
caram-se: a carga horária ; a quantidade de alunos por turma no período noturno
e a consequente dispersão dos alunos; a falta de um intérprete como apoio durante
as aulas; o excesso de atividades paralelas pelos alunos; a ausência de referências
práticas, que seria proporcionada pelas visitas e/ou estágios em Instituições de En-
sino ou outras; e dificuldades relacionadas à aprendizagem da Libras pelos alunos
devido a habilidades específicas.
No que diz respeito à insatisfação dos alunos e da professora sobre a carga
horária da disciplina, sugerimos que nas turmas posteriores, se colocasse, inicial-
mente, o objetivo da disciplina aos graduandos para que não criem expectativas
com relação ao domínio da língua, mas que haja incentivo por parte de docentes
da disciplina para que os alunos busquem uma formação continuada, tal como
procedeu a professora de Libras, indicando meios para que os alunos aprofundem
os conhecimentos na área.
Quanto à quantidade de alunos por turma há que se reorganizar junto à coor-
denação do referido curso o modo de atendimento aos alunos, dividindo a turma,
se possível para que haja melhor aproveitamento desses alunos, principalmente
em relação à prática da língua de sinais. Desse modo, outras dificuldades também
poderiam ser sanadas, como a necessidade de intérpretes durante as aulas, tendo
em vista que a comunicação fica prejudicada quando se tem muitos alunos em
sala, especialmente em se tratando da Libras que é de natureza visual. Nesse caso
há restrição à visualização da língua de sinais e as orientações apresentadas pela
professora, bem como as oportunidades de interação professor aluno.
Entre os aspectos mais positivos destaca-se a própria didática da professora
surda, que utiliza recursos auxiliares, visuais, facilitando o entendimento do con-
teúdo e possibilitando maior interação entre docente e estudantes; e o contato com
a professora surda que favoreceu o conhecimento da cultura surda e experiências
de vida comuns entre pessoas surdas, sensibilizando assim os estudantes para o
trabalho com alunos surdos.
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Esperamos que tais resultados possam contribuir para elucidar aspectos im-
portantes a serem pensados na organização do ensino-aprendizagem de Libras
como segunda língua no ensino superior, a fim de que se alcance maior êxito no
processo.
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Maria Celeste Reis Fernandes de Souza, Miria Núbia Simões Lourenço
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Relação com o saber e território: experiências de estudantes em tempo integral
Relation to knowledge and territory: experiences of full-time students
Relación con el saber y territorio: experiencias de estudiantes en tiempo integral
Maria Celeste Reis Fernandes de Souza
*
Miria Núbia Simões Lourenço
**
Resumo
O artigo analisa as relações que estudantes do Ensino Fundamental (EF) estabelecem com os saberes na Escola
em Tempo Integral em uma experiência de saída da escola em direção a outros espaços da cidade. O aporte teó-
rico e metodológico inclui os estudos de Bernard Charlot, em diálogo com autores da Geograa e autores que
discutem a Educação Integral. Os sujeitos são estudantes dos dois últimos anos do EF, e os dados foram gerados
por meio do balanço de saber e entrevistas. A análise, inspirada em Charlot (2009), concentrou-se nas aprendi-
zagens evocadas pelos sujeitos e o movimento no território. Os resultados indicam a importância da experiência
para os sujeitos, entretanto, apontam-se como fragilidades a diculdade de apropriação efetiva dos territórios e
a força da forma escolar que impregna a experiência analisada. Colocar em diálogo o sujeito transitando entre
o espaço da escola e da cidade, no movimento desencadeado pela ETI, ou por outras experiências em tempo
integral que tomam a cidade como fonte de aprendizado, instiga a reetir sobre a necessidade de apreender
esses espaços como territórios que podem contribuir na construção da educação integral, e não apenas da
escolarização em tempo integral.
Palavras-chave: Relação com o saber. Tempo integral. Território.
*
Doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pós-doutoramento em educação na Universidade
Federal de Sergipe. Docente no Programa de Pós-Graduação em Gestão Integrada do Território da Universidade Vale
do Rio Doce (Univale), Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6955-5854. E-mail: celeste.br@gmail.com
**
Mestre em Gestão Integrada do Território pela Univale. Pesquisadora no Núcleo Interdisciplinar de Educação, Saúde e
Direito (NIESD/Univale). Professora da rede municipal de ensino de Governador Valadares, Brasil. Orcid: https://orcid.
org/0000-0003-0916-7547. E-mail: mirianubia@yahoo.com.br
Recebido em 03/10/2020 – Aprovado em 26/02/2020
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i3.12389
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Abstract
The research aims to analyze the relations which the students of Elementary Education establish with the know-
ledges in the Full-time School (ETI) that, since the year of 2015, has included other spaces of the city in its school
activities. The theoretical and methodological framework are the studies of Bernard Charlot, in dialogue with au-
thors in the eld of Territorial Studies and authors who discuss the Integral Education / Full Time. The subjects are
students of the last two years of Elementary Education, and the balance of knowledge and interviews were used
for the data collection. The analysis, inspired by Charlot (2009), focused on the learnings evoked by the subjects.
The results point out that the relation to knowledge is marked by the school learnings and there is no eective
appropriation, by the students, of the spaces of the city. Putting in dialogue the subject moving between school
and city space, in the movement triggered by the ETI, or other full-time experiences that take the city as a source
of learning, instigates to reect on the need to apprehend these spaces as territories which can contribute to the
construction of integral education, and not only of full-time schooling.
Keywords: Relation to knowledge. Full-Time. Territory.
Resumen
El artículo analiza las relaciones que estudiantes de la Enseñanza Fundamental (EF) establecen con los saberes
en la Escuela en Tiempo Integral en una experiencia de salida de la escuela en dirección a otros espacios de la
ciudad. El aporte teórico y metodológico son los estudios de Bernard Charlot, en diálogo con autores de Geo-
grafía y autores que discuten la Educación Integral. Los sujetos son estudiantes de los últimos años del EF, y los
datos fueron generados por medio del balance del saber y de entrevistas. El análisis, inspirado en Charlot (2009),
se concentró en aprendizajes evocados por los sujetos y el movimiento en el territorio. Los resultados indican la
importancia de la experiencia para los sujetos, sin embargo, se apunta como fragilidades la dicultad de apro-
piación efectiva de los territorios y la fuerza de la forma escolar que impregna la experiencia analizada. Colocar
en diálogo el sujeto transitando entre el espacio de la escuela y de la ciudad, en el movimiento desencadenando
por ETI, o por otras experiencias en tiempo integral que toman la ciudad como fuente de aprendizaje, instiga a
reexionar sobre la necesidad de apreender ese espacio como territorios que pueden contribuir en la construc-
ción de la educación integral, y no apenas de la escolarización en tiempo integral.
Palabras-llave: Relación con el saber. Tiempo integral. Territorio.
Introdução
O Plano Nacional de Educação, que traça diretrizes para o decênio 2015 –
2024, apresenta, em sua meta 06, intencionalidades para a ampliação da jornada
escolar diária: “oferecer educação em tempo integral em, no mínimo, 50% (cinquen-
ta por cento) das escolas públicas, de forma a atender, pelo menos, 25% (vinte e
cinco por cento) dos (as) alunos (as) da educação básica” (BRASIL, 2014, p.8). Para
assegurar a eficácia dessa meta, foram propostas como estratégias a ampliação e
reestruturação de escolas; garantia de atendimento às escolas do campo, comuni-
dades indígenas e crianças com necessidades especiais; articulação da escola com a
cidade, seu entorno e patrimônio (BRASIL, 2014).
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Essa intencionalidade concatena-se ao movimento de ampliação da jornada
escolar desencadeado, de modo mais contundente, na última década, pelo Pro-
grama Mais Educação (PME) instituído pela Portaria Interministerial nº 17/2007
(BRASIL, 2007) para fomentar propostas de ampliação da jornada diária escolar no
país
1
, e, cujos resultados foram a garantia efetiva de mais tempo diário na escola,
para crianças e adolescentes Brasil afora, tanto do ponto de vista da ampliação das
matrículas quanto da preocupação com a qualidade desse tempo. Estabeleceu-se,
assim, uma correlação entre tempo integral e educação integral na perspectiva da
integralidade da formação do estudante, do acesso a outras experiências incorpora-
das ao currículo escolar – artísticas, estéticas, culturais, cidadãs, de vivências em
outros territórios para além do escolar (CAVALIERE, 2009; PARO, 2009; MOLL,
2012a, 2012b; MAURÍCIO, 2019).
Em 2016, o PME foi reeditado por meio da Portaria nº 1.144, de 10 de outubro
de 2016 – “Novo Mais Educação” – PNME (BRASIL, 2016), diferindo das proposi-
ções iniciais feitas até o ano de 2015, ao estabelecer como objetivo a melhoria da
aprendizagem em língua portuguesa e matemática, não explicitar as opções de se
tornar política indutora de ampliação da jornada escolar, e na própria concepção
de formação proposta que não investe na integralidade da formação humana: pos-
sibilidade de experimentar outras aprendizagens como constitutivas do currículo;
perda da interlocução com outros territórios que possibilitariam proximidades com
a coletividade e vivência cultural diversificada.
É nesse cenário de preocupações que se coloca em jogo os ganhos advindos da
proposição de se aliar o tempo de escola à integralidade da formação dos estudan-
tes, bem como quando se acompanha a redução das matrículas em tempo integral
no País (BRASIL, 2019), na contramão do desafio proposto no Plano Nacional de
Educação, que escolhemos como objeto de discussão neste artigo, uma experiência
de ampliação da jornada escolar que aposta no direito a mais tempo de escola, ao
mesmo tempo que prestamos atenção ao modo de aproximação com o entorno, via
Escola de Tempo Integral (ETI).
O texto busca refletir sobre os saberes que circulam no movimento de apro-
ximação com o território e a apropriação desses saberes pelos estudantes. As con-
siderações a respeito desses saberes sustentam-se nas contribuições de Bernard
Charlot, relativas às relações epistêmicas, identitárias e sociais engendradas na
relação com o saber, o que nos conduziu a uma reflexão sobre o lugar – a uma apro-
ximação, portanto, com estudos sobre território e territorialidades.
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Aportes teóricos e metodológicos
Ao analisar as experiências de ampliação da jornada escolar, via PME, Cava-
liere (2009, p. 52) sintetiza duas vertentes de organização do tempo escolar:
[...] uma que tende a investir em mudanças no interior das unidades escolares, de forma
que possam oferecer condições compatíveis com a presença de alunos e professores em tur-
no integral, e outra que tende a articular instituições e projetos da sociedade que ofereçam
atividades aos alunos no turno alternativo às aulas, não necessariamente no espaço escolar,
mas, preferencialmente, fora dele.
Pode se conferir em diferentes publicações que analisam a ampliação da jor-
nada escolar vivenciada no Brasil, pós-edição do PME (BRASIL, 2010; MOLL,
2012a; 2014; MAURÍCIO, 2014; LEITE; CARVALHO, 2016; COELHO; MAURÍ-
CIO, 2016), que independente da vertente em torno da qual se organiza o tempo
de escola, busca-se romper com uma escola conteudista e incorporar ao cotidiano
escolar outros saberes que ampliem o acesso do estudante a atividades que envol-
vam o corpo, a arte e promovam acesso à cultura, de forma mais ampla – a primeira
vertente, convocando esses saberes a entrarem na escola; a segunda provocando
colóquios com o entorno (a rua, o bairro, a cidade). Uma escola, portanto, inserida
dentro de um contexto, e não fechada em si mesma, e que deseje ser sinônimo de
cultura, como construção da história humana (PARO, 2009).
A ETI, implantada em 2010, em um município de médio porte da região leste
de Minas Gerais, universalizou o atendimento a 51 escolas da rede municipal de
educação e a todos os(as) alunos(as), organizando-se até o ano de 2014 na primeira
vertente – estudantes e docentes permaneciam durante 8 horas no espaço da escola
e o currículo abarcava, além das aprendizagens das tradicionais disciplinas esco-
lares, aprendizagens artísticas, culturais, patrimoniais, via PME (UFMG, 2012;
SOUZA; CHARLOT, 2016).
A partir do ano de 2015 começam a comparecer na ETI indicativos da segun-
da vertente de organização do tempo escolar por meio de Projetos Institucionais
implantados pela Secretaria Municipal de Educação (SMED), que buscavam propi-
ciar aos estudantes aprendizagens para além dos muros escolares. Esse movimen-
to nos interessou, especialmente, pela sua potencialidade em explorar melhor os
territórios de entorno e suas potencialidades educativas.
Balizados nos autores sobre território/territorialidade (RAFFESTIN, 1993;
SAQUET, 2010; SANTOS, 2011; SACK, 2013) compreendemos que os territórios
vão além dos espaços, dos ambientes nos quais os sujeitos venham a se encontrar.
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Embora não prescindam de uma delimitação espacial, os territórios se fazem na
ação humana em práticas sociais e culturais, e por isso se tornam potencialmen-
te educativos, por neles circularem saberes, práticas, memórias, modos de vida e
relações de alteridade, nas quais podem se apreender modos de ser e viver, justos,
éticos e cidadãos.
É a compreensão sobre a integralidade da formação humana posta na propo-
sição de educação integral/tempo integral, sobre os outros territórios para além
do escolar e das aprendizagens que devem ser, pois, lidas em uma concepção mais
ampliada, que assumimos neste estudo, como proposição teórica e metodológica, as
contribuições de Bernard Charlot sobre a relação com o saber.
No livro Da relação com o saber: elementos para uma teoria, Bernard Charlot
(2000) questiona o porquê de algumas crianças obterem êxito escolar apesar de
estarem inseridas em “categorias sociais populares” (CHARLOT, 2000, p. 9). Esse
questionamento é desencadeador das problematizações feitas pelo autor sobre a
correlação que se estabelece entre “fracasso escolar” e classe social e desencadea-
dora da proposição teórica da “relação com o saber”, retomada por ele em outros
escritos (CHARLOT, 2001, 2005, 2009). Essa proposição tem se mostrado fértil
para a compreensão de diversas realidades educacionais, tanto no cenário brasi-
leiro, como em outros países, conforme se pode conferir, por exemplo, nos estudos
disponibilizados na Rede de Pesquisa sobre Relação com o saber (REPERES).
2
Em seus estudos o autor argumenta sobre as perspectivas antropológica, so-
ciológica e singular, nas quais se apoia a proposição teórica da relação com o saber
e afirma que nas pesquisas realizadas sob essa ótica deve-se “buscar compreender
como o sujeito apreende o mundo e, com isso, como se constrói e transforma a
si próprio: um sujeito indissociavelmente humano, social e singular” (CHARLOT,
2005, p. 41).
Essa compreensão tridimensional do sujeito provoca-nos a colocar sob nova
perspectiva o sujeito e as relações que estabelece com o aprender, que ultrapassa
assim, a apropriação cognitiva de um determinado objeto de conhecimento. O autor
afirma a impossibilidade da existência do sujeito sem que esse estabeleça relação
com o saber, e ao mesmo a impossibilidade do saber que não estabeleça uma cor-
relação com o sujeito e o mundo no qual esse sujeito se insere (CHARLOT, 2000,
2001, 2005, 2009).
Para o autor:
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A relação com o saber é o conjunto (organizado) das relações que um sujeito mantém com
tudo quanto estiver relacionado com o ‘aprender’ e o saber; ou, sob uma forma mais ‘intuiti-
va’: a relação com o saber é o conjunto das relações que um sujeito mantém com um objeto,
‘um conteúdo de pensamento’, uma atividade, uma relação interpessoal, um lugar, uma
pessoa, uma situação, uma ocasião, uma obrigação, etc. (CHARLOT, 2000, p. 80-81, aspas
do autor).
Na definição acima a palavra relação destaca-se como o cerne do discurso:
relação com o aprender e o saber; relações com um objeto, conteúdo de pensamento,
atividade, lugar, etc., mas em todas as acepções apresentadas pode-se flagrar o su-
jeito e os aspectos antropológicos, sociológicos e singulares, implicados na relação
entre sujeito e saber, posto que:
Nascer é penetrar na condição humana. Entrar em uma história, a história singular de um
sujeito inscrita na história maior da espécie humana. Entrar em um conjunto de relações
e interações com outros homens. Entrar em um mundo onde ocupa um lugar (inclusive,
social) e onde será necessário exercer uma atividade (CHARLOT, 2000, p. 53).
O autor argumenta que para tornar-se parte da espécie humana, o sujeito só
pode fazê-lo a partir da apropriação do mundo. Por sujeito de saber, entende-se,
pois, aquele que busca apropriar-se da sua condição de “filho do homem” (CHAR-
LOT, 2000), que necessita fazer a sua entrada, conforme explicita Charlot (2000,
p. 53), “em um mundo humano produzido pela espécie ao longo de sua história e
que existe antes da criança, sob a forma de estruturas, ferramentas, relações, pa-
lavras, conceitos, obras”. Desse modo, aprender significa tomar posse dos saberes
que já existem, pois, ao nascer, o ser humano já encontrou uma história produzida
pelos seus antecessores, distribuída em diversos espaços, dentre eles os de vida do
sujeito.
Considerando que há muitas formas de apropriar-se do mundo, uma vez que
muito há para aprender, Charlot esclarece que nesse processo o sujeito não só ad-
quire saberes enquanto conteúdo intelectual enfatizando que aprender é mais am-
plo que saber em dois sentidos:
[...] primeiro como acabo de ressaltar, existem maneiras de aprender que não consistem em
apropriar-se de um saber, entendido como conteúdo de pensamento; segundo, ao mesmo
tempo em que se procura adquirir esse tipo de saber, mantêm-se, também, outras relações
com o mundo (CHARLOT, 2000, p. 59).
Para o autor, o saber é específico e o aprender mais amplo. Por sua vez, ele
esclarece que o termo saber pode ser ampliado a ponto de “englobar tudo que é
aprendido” (CHARLOT, 2000, p. 74), mas defende que não é relevante ampliar
ou restringir o termo saber, pois o uso desse termo, ou do termo aprender, é mera
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convenção. O autor destaca que prefere usar o termo “relação com o saber” que,
inclusive, como ele afirma, já foi apropriado pelas ciências humanas, fazendo parte
do seu vocabulário (CHARLOT, 2000).
Em outras palavras, se o saber pode ser a apropriação de um conteúdo, em
sentido estrito, a aprendizagem vai além, englobando todas as possibilidades de
conhecimento em todas as relações que se tem. Relação com o saber é, pois,
[...] relação com o mundo, com o outro, e com ele mesmo, de um sujeito confrontado com a neces-
sidade de aprender. [...] conjunto de relações que um sujeito mantém com um objeto, um ‘con-
teúdo de pensamento’, uma atividade, uma relação interpessoal, [...] relação com a linguagem,
relação com o tempo, relação com a ação no mundo e sobre o mundo. [...] a relação com tudo
que estiver relacionado com ‘o aprender’ e o saber (CHARLOT, 2000, p. 80-82, aspas do autor).
O autor destaca em seus estudos quatro figuras do aprender que ele denomina
de objetos, atividades, dispositivos e formas que passam por diferentes processos
para que o aprender aconteça. O aprender, segundo o autor, envolve relações epis-
têmicas, identitárias e sociais com o saber. Por sua vez, as relações epistêmicas
desdobram-se em três. Aprender pode ser: apropriar-se de um objeto virtual (o
saber); dominar uma atividade; e aprender a ser (CHARLOT, 2000, 2001, 2009).
No que se refere ao primeiro desdobramento, aprender é apropriar-se de um
saber que está contido em pessoas, livros, lugares. No segundo desdobramento,
aprender é ter domínio sobre algo, como usar uma máquina, ou praticar uma ati-
vidade física. E, finalmente, aprender uma relação que consiste no relacionar-se
consigo e com o outro de maneira reflexiva para ser capaz de fazer as aproximações
e afastamentos necessários nas relações sociais (CHARLOT, 2000, 2001, 2009).
Considerando que o sujeito está sempre em uma perspectiva de aprender, toda
relação com o saber é uma relação epistêmica. No entanto, por ser de cunho pessoal,
subjetiva, é também identitária. Há um porquê de aprender e então as relações se
estabelecem, ou não. Charlot (2000, p. 37) indaga: “Quais são as relações de saber
que o indivíduo tem com os mais diversos saberes, porque as tem, com quem, onde,
ou ao contrário porque não as tem”?
Assim sendo, as relações epistêmicas e identitárias coexistem em todas as apren-
dizagens, requerendo tempos-espaços para se estabelecerem, e nesse quando e onde
encontram-se outras pessoas (amigos, familiares, professores...). Essas relações acon
-
tecem nas trocas sociais, em um lugar, e tem-se, assim, a tríade indissolúvel da re-
lação com o saber proposta por Charlot – relações epistêmicas, identitárias e sociais.
Charlot (2000, p. 74) afirma que do ponto de vista metodológico é preciso estar
atento para o fato de que a análise da relação com o saber deve ser compreendida
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enquanto “relação social [e] não deve ser feita independentemente da análise das
dimensões epistêmica e identitária, mas, sim, através delas”.
É a imbricação dessa tríade que nos provoca nesta análise a refletir sobre os
lugares de vida dos sujeitos, como parte dos seus processos de aprender, e, por isso,
mobilizamos discussões sobre “território”, palavra incorporada ao debate educacio-
nal sobre a educação integral/tempo integral, ao se convocar a escola a um maior
diálogo com o entorno.
A questão de uma maior articulação da escola com o lugar nas experiências de
tempo integral comparece, de modo mais efetivo, no cenário educacional brasileiro,
pós-edição do PME. Inspirado no debate das cidades educadoras, o PME provocava
a escola a redimensionar tempos e espaços e buscar novas “relações entre cidade,
comunidade, escola e os diferentes agentes educativos, de modo que a própria cida-
de se constitua como espaço de formação humana” (MOLL, 2012b, p. 133). É nesse
contexto de debates que podemos identificar, em diferentes publicações divulgadas
pelo Ministério da Educação (MEC) sobre Educação Integral/Tempo Integral, a ar-
ticulação escola/território (BRASIL, 2009a, 2009b, 2009c, 2009d, 2011). Partimos
da compreensão, neste texto, de que território:
[...] não é apenas o conjunto dos sistemas naturais e de sistemas de coisas superpostas; o
território tem que ser entendido como o território usado, não o território em si. O território
usado é o chão mais a identidade. A identidade é o sentimento de pertencer àquilo que nos
pertence. O território é o fundamento do trabalho; o lugar da residência, das trocas mate-
riais e espirituais e do exercício da vida (SANTOS, 2011, p.14, grifos do autor).
A conversão de um lugar em território se faz via territorialidade, a qual não
pode ser reduzida, segundo Sack (2013, p. 70) a um “controle da área”, mas é uma
tentativa, por indivíduo ou grupo, de afetar, influenciar, ou controlar pessoas, fenô-
menos e relações, ao delimitar e assegurar seu controle sobre certa área geográfica
(SACK, 2013, p.70, grifos do autor). Saquet (2010), ao discutir diferentes aborda-
gens sobre território, reflete sobre a identidade e sua influência no desenvolvimen-
to do território e esclarece que “identidade se refere à vida em sociedade, a um cam-
po simbólico e envolve a reciprocidade. Na geografia significa, simultaneamente,
espacialidade e/ou territorialidade” (SAQUET, 2010, p.147, grifos do autor).
Assim, procuramos imprimir nossas marcas a um quarto, por exemplo, a quem
controlamos o acesso, à nossa casa, aos espaços os quais ocupamos, que se conver-
tem em território (ou não) pelo uso que deles fazemos e pelo modo como deles nos
apropriamos. É nesse sentido, pois, que consideramos que a relação com o saber, ao
ter como amálgama aspectos epistêmicos, identitários e sociais encontra-se imersa
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na territorialidade – no modo como os sujeitos se apropriam dos lugares nos quais
aprendem (a escola, a rua, o bairro, a cidade).
São esses os aportes teóricos que subsidiam a discussão deste texto no qual
buscamos refletir sobre as experiências dos estudantes da ETI no movimento de
saída dos muros da escola.
A escola campo de pesquisa, atendia, no momento da pesquisa
3
, a 749 alu-
nos(as) em tempo integral (7h às 15h): 164 na Educação Infantil e 585 no Ensino
Fundamental. Localizada em um bairro periférico tem como público crianças e ado-
lescentes de cerca de 08 bairros da cidade, além de estudantes do campo. Dentre
esses bairros cinco são considerados como de maior vulnerabilidade social. A con-
fluência territorial da escola e a diversidade de estudantes que a acessam vindos de
diferentes bairros foi definidora para a sua escolha como campo de pesquisa. Par-
timos do princípio de que essa escola possibilitaria uma amostra mais significativa
das diferenças de percepção dos participantes deste estudo sobre a apreensão do
território na experiência propiciada pelo movimento de saída da escola, via Projeto
Institucional, e sobre os seus territórios de vivência.
Os estudantes, participantes do estudo, frequentavam os dois últimos anos do
Ensino Fundamental, Ciclo da Adolescência (CA)
4
– 2º CA – duas turmas e uma
turma de 3º CA, perfazendo um total de 65 estudantes, com idade entre 13 e 16
anos. A escolha desses sujeitos foi intencional pela possibilidade de mais tempo de
vivência como estudantes na ETI,
Os dados foram gerados por meio de “balanços de saber” e entrevistas. Para
este estudo, foi feita a adaptação do balanço de saber, instrumento proposto por
Bernard Charlot (2009), que consiste em um texto aberto, no qual o sujeito é con-
vidado a refletir e narrar suas aprendizagens: “Desde que nasci, aprendi muitas
coisas, em minha casa, no bairro, na escola e noutros sítios... O quê? Com quem?
Em tudo isto, o que é que é mais importante para mim? E agora, de que é que estou
à espera?” (CHARLOT, 2009, p. 18). Neste estudo o convite à produção do balanço
de saber pelos estudantes foi feito a partir do seguinte enunciado
5
:
Você foi convidado a dar uma entrevista para o jornal da cidade. Nesta entrevista a jornalista
quer saber sobre a sua experiência nas atividades organizadas pela escola nas quais você
pode sair e conhecer outros lugares. De qual atividade você se recorda? O que você aprendeu
nessas atividades? Com quem aprendeu? No fim da entrevista, como a jornalista é muito
curiosa, ela quer saber também o que você aprende em outros espaços (em sua casa, na rua,
no bairro, na cidade) e com quem aprende. E aí, vai responder o que para ela? Capriche, é um
grande jornal, com centenas de milhares de leitores.
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O balanço de saber, elaborado neste estudo por 61 estudantes, permitiu às
pesquisadoras, apoiando-se em Charlot (2009), traçar um quadro geral das expe-
riências do grupo, mas para compreender os significados e sentidos individuais
atribuídos pelos sujeitos a essa experiência – a “significatividade” (CHARLOT,
2009), acompanhamos o autor e realizamos entrevistas semiestruturadas, nas
quais os estudantes foram convidados a relatarem suas experiências nas visitas
que realizaram nos espaços da cidade, via projetos institucionais. Foram seleciona-
dos para as entrevistas 10 estudantes dentre os que haviam elaborado os balanços
de saber, observando a paridade de sexo, e contemplando a diversidade dos bairros
nos quais esses estudantes moravam, 05 bairros, com atenção para os bairros con-
siderados mais vulneráveis.
Charlot convoca os pesquisadores a praticarem uma leitura em positivo para
dar conta das diferentes lógicas, das relações de sentido, e dos processos implicados
na relação com o saber. Desse modo, ao se adotar a perspectiva teórica e analítica
da relação com o saber, busca-se evitar o olhar da falta (CHARLOT, 2009) sobre
os sujeitos e a ETI. A intenção é compreender os processos vivenciados pelos estu-
dantes no movimento de saída da escola, e apreender nesses processos os diálogos
propiciados entre escola e cidade.
Andanças pela cidade – aprendizagens e processos
O movimento empreendido pela ETI, que propicia a saída dos estudantes dos
muros da escola, se organizou em torno de Projetos Institucionais enviados pela
SMED para todas as 54 escolas
6
(40 da zona urbana e 14 da zona rural).
O projeto denominado “Passeio na História de Governador Valadares”, objeto
de discussão neste texto, foi destinado a estudantes do 3º CPA ao 3º CA de todas as
escolas da rede municipal localizadas na zona urbana e na zona rural (GOVERNA-
DOR VALADARES, 2015). A Secretaria responsabilizava o professor de história
para o acompanhamento das turmas, mas outros professores também poderiam
participar do projeto, conforme organização da escola.
Esse Projeto contemplava diferentes espaços da cidade: Prédio Histórico, como
a Açucareira, Assentamento de Trabalhadores sem Terra, monumentos históricos
localizados no centro da cidade e em um bairro periférico, Câmara Municipal, Cate-
dral de Santo Antônio, Cemitério Santo Antônio, Centro Cultural Nelson Mandela,
Ilha dos Araújos (bairro da cidade), Mercado Municipal, Museu da Cidade, Parque
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Municipal, Praça da Estação, Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAAE), Sexto
Batalhão da Polícia Militar, Templo da primeira Igreja Presbiteriana.
Os lugares a serem visitados estão, por vezes, abertos a entrada das pessoas
(como o Parque, as praças); outros dependem de combinação prévia para visita,
como a Câmera dos Vereadores; alguns têm guias (a exemplo do museu e do par-
que); outros não (como as igrejas, as praças, o Prédio Histórico da Açucareira); em
alguns, o projeto estabelecia obrigatoriedade de visita, como o museu; outros, era
facultativa; alguns lugares localizam-se na região central da cidade (como o SAAE
e as igrejas); outros em bairros distantes (Parque Municipal, Assentamento).
A análise do material empírico propicia identificar diferentes aprendizagens
nesse movimento de saída da escola, assim como os processos que as envolvem e
nos quais se pode ler as tensões entre o ““olhar sobre a cidade”, a “forma escolar”.
Acompanhando Charlot (2009, p. 20) buscamos tratar os balanços, inicialmen-
te, como “um texto [...], onde se procura encontrar regularidades que permitam
identificar processos”. Interessa no exercício metodológico empreendido pelo autor
as aprendizagens evocadas pelos sujeitos nos balanços de saber, os lugares dessas
aprendizagens, os “agentes” (com quem os sujeitos dizem terem aprendido). Nos
textos dos balanços do saber analisados o autor busca também referências a apren-
dizagens subdivididas por ele em: Aprendizagens Intelectuais e Escolares (discipli-
na escolar, regras, uso de determinado conhecimento); Aprendizagens Relacionais
e Afetivas (relações interpessoais); Aprendizagens de Desenvolvimento Pessoal
(conquistas pessoais, maneiras de ser); Aprendizagens Profissionais (relativas à
profissão); Aprendizagens Genéricas (aprendi muito) (CHARLOT, 2009).
Ao aplicar a proposta analítica utilizada pelo autor na leitura dos balanços
de saber elaborados pelos estudantes, foi possível identificar o comparecimento de
dois tipos de aprendizagens: relacionais e afetivas (em menor número); intelectuais
e escolares que se destacaram no conjunto dos textos analisados.
Os movimentos de saída permitem um maior envolvimento dos(as) estudantes
em aprendizagens relacionais e afetivas (relações interpessoais e comportamen-
tos afetivo-emocionais) evidenciando atitudes que possibilitam estreitar os laços
com colegas e professores, como se destaca nos balanços de saber em enunciações
como os fragmentos a seguir retirados dos textos: “conversei com colegas”, “ouvir”,
“trocar ideias”, “no parque me diverti com os meus amigos”, “conversei mais com a
professora”, “estar mais próximo dos colegas”.
Em diferentes estudos sobre a relação dos jovens com a escola, sobressaem as
aprendizagens relacionais e afetivas (CHARLOT, 2001, 2009), e nas circunstâncias
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deste estudo, nas quais os estudantes se veem, temporariamente, fora dos muros
da escola, com suas regras e cerceamentos temporais e corporais, eles relembram
essas aprendizagens propiciadas pela aproximação com o outro. O que nos parece
uma novidade é a evocação de aprendizagens intelectuais e escolares sobrepondo-
-se à evocação das atividades relacionais e afetivas. Assim o que marca a experiên-
cia dos(as) estudantes nesse movimento se saída, quando se encontram, inclusive
fora dos muros da escola, com seus horários delimitados e formas de organização
que nem sempre permitem o ir e vir livres, são as referências que eles fazem a
aprendizagens intelectuais e escolares.
Ao analisar as aprendizagens intelectuais e escolares, Charlot (2009, p. 27,
aspas do autor) as subdivide em:
[...] aprendizagens escolares básicas como ler, escrever, contar; expressões genéricas e tau-
tológicas do tipo ‘aprendi muitas coisas’, ‘aprendi o saber’; referências a disciplinas escola-
res através do simples enunciado dessas disciplinas (aprendi Matemática, Francês [...], a
evocação de um conteúdo de saber (aprendi o corpo humano, as fracções [...] ou a indicação
de uma capacidade (aprendi a exprimir-me em Francês [...]; aprendizagens metodológicas,
no sentido estrito (rever, organizar-me) ou amplo (estudar, instruir-me); aprendizagens
normativas (aprender bem, levantar a mão [...]; atividades como pensar, compreender, re-
fletir, imaginar.
Nos textos dos balanços de saber, ao refletirem sobre o que aprenderam, os
estudantes não evocam disciplinas escolares, o que era de se esperar posto que a
especificidade da atividade (saída da escola) favorece a não evocação das discipli-
nas. Encontramos nos textos referências a aprendizagens sobre o cuidado e sobre
preservação ambiental como podemos conferir nos fragmentos a seguir: “aprendi a
cuidar do ambiente”; “a importância da preservação ambiental”, “aprendi sobre o
meio ambiente”. As referências a essas aprendizagens não detalhadas nos textos,
são evocadas de modo mais geral e é interessante observar que eles se lembram de
“conteúdo de saber” que se relacionam a conhecimentos específicos sobre história,
propiciado pelo objeto do Projeto:
No museu, vi como eram os instrumentos de trabalho de antigamente (Vitor)
7
.
Vi [no museu] correntes para acorrentar os escravos, que eram comercializados e vendidos
(Thales).
[Aprendi] que os índios eram enterrados em urnas (Carla).
CARDO significa Companhia Açucareira do Rio Doce (Luísa).
A Açucareira é um patrimônio tombado (Pedro).
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Nessa evocação do “conteúdo de saber” os estudantes relatam que aprenderam
com as pessoas que os receberam, nos locais visitados, especialmente no “museu”,
e no “centro cultural”:
Durante o passeio tinham as pessoas que explicavam as coisas, nos ensinavam sobre a im-
portância daquilo na nossa cidade, aprendi muito com eles sobre a nossa cidade (Tiago).
Sempre tinha alguém explicando a importância daquele local para Valadares, então aprende-
mos com várias pessoas diferentes e com diferentes explicações (Lucas).
Além dos lugares que “guardam a história da cidade” (Estudante, sexo fem.)
como o museu e o centro cultural, outro local ao qual os estudantes fazem referência
é o Assentamento. Neste local, os estudantes foram recebidos por uma moradora
assentada que vivenciou o passado de luta dos “sem terra” e que conta a história da
ocupação da fazenda. Dessa história eles evocam como conteúdo de saber, a “luta
pela terra” (Laila), “trabalhadores que vivem da terra” (Lilia), “ter terra para viver
e trabalhar” (João).
Esse conjunto de saberes colocados à disposição dos estudantes e que foram
apreendidos pela incursão na história da cidade por meio de objetos, monumentos,
dos espaços que guardam a histórias, dentre elas a luta para se adquirir um pedaço
de terra para viver e trabalhar, são importantes para a entrada deles na história
humana, como argumenta Charlot, nesse caso na história de grupos humanos es-
pecíficos, por meio de “objetos-saberes [...] aos quais um saber está incorporado”
(CHARLOT, 2000, p. 66), como os livros, os monumentos, as obras de arte, o Assen-
tamento, que mais do que um lugar, é território de memórias.
A partir desse conjunto de saberes, refletimos sobre os territórios e as territo-
rialidades.
Saquet (2010) apresenta a relação território/territorialidade evidenciando que
as identidades constitutivas da territorialidade são “inerentes à vida de um certo
grupo social em um determinado lugar” (SAQUET, 2010, p. 147) e implicam em re
-
lações sociais, culturais e de pertencimento a um território (rua, bairro, cidade, cam-
po). Nesse sentido, ao considerar os lugares visitados pelos estudantes, poder-se-ia
perguntar: Esses lugares contam o quê para os estudantes? É possível uma identifi
-
cação deles com os lugares? Que conexões se estabelecem entre a história apreendida
por eles, com a sua própria história, como pertencentes desse território “a cidade”?
Eles aprenderam que os lugares são históricos, são importantes para a histó-
ria da cidade, se sensibilizaram com a vida dos escravos, dos índios, dos costumes
dos antepassados:
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Que é histórico os lugares, que é importante para a história da cidade (Júlio).
O tanto que os escravos sofriam (Júlia).
Aprendi sobre a urna de enterrar os índios (Carlos).
A gente viu secador de antigamente, como os presos, mostraram as ferraduras que os presos
ficavam, colocavam nos braços e nas pernas, as televisões, rádios, máquinas de supermerca-
do, notas de dinheiro, várias coisas (Rodrigo).
Vimos as carroças, os sapatos que eram de ferro, tanto de homem quanto[de] mulher. Os
ferros de passar roupa, de colocar brasa, muito legal a excursão (Kely).
No conjunto dos textos dos balanços, via de regra, os estudantes fazem refe-
rência à “História da cidade”. Em um dos balanços, um estudante diferencia-se dos
demais e reconhece como pertencente à cidade:
Fui à biblioteca municipal e aprendi que ler faz bem para a mente. Fui aos pontos turísticos
e aprendi um pouco mais sobre a minha cidade. Fui ao museu, à Açucareira e ao parque
municipal (Paula).
Esse conjunto de evocações dos estudantes sobre a história da cidade e a refe-
rência feita por um dos estudantes sobre a “minha cidade” nos instigam a pensar
sobre os territórios de pertencimento, e sobre como se pode provocar a partir da
experiência de saída da escola “o encontro entre o lugar-presente e o lugar-passado
na experiência dos jovens” (FRONZA; RIBEIRO, 2014, p. 307). É, pois, reconhecer
o sentido antropológico, sociológico e subjetivo implicado na relação com o saber
a partir da proposição de que essa “história diz respeito a” (idem), cada um como
sujeito, a uma vida coletiva, a um território de pertencimento.
Como dito anteriormente, os balanços de saber nos permitem traçar um qua-
dro geral das aprendizagens evocadas pelos sujeitos, mas aspectos das singula-
ridades, de como cada um viveu a experiência que nos propusemos a analisar só
podem ser apreendidos por meio de entrevistas (CHARLOT, 2009). Por isso fizemos
também a escuta dos (as) estudantes procurando apreender as aprendizagens e os
processos implicados nessas aprendizagens, especialmente os que se referenciam
ao território e as territorialidades.
Assim de modo geral as lembranças dos (as) estudantes sobre as saídas da
escola remetem ao objetos-saberes: “vi a cadeira do primeiro dentista”; “os ferros
de passar”; “como os escravos eram amarrados com correntes”; “as ferramentas
que eram colocadas neles”; “as câmeras fotográficas de antigamente”; “os quadros
dos caras mais importantes daqui”; “como eram as ferramentas dos médicos anti-
gamente”.
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O estabelecimento de relações entre passado e presente são aprendizagens
correlacionadas ao campo da História, e o conhecimento elaborado na disciplina
História “precisa ser compreendido como o produto da ação de diversos grupos e
não de um indivíduo ou grupo isolado” (PINA; PEREIRA, 2020). A evocação de
aprendizagens que mostram uma atenção a objetos, ferramentas, pessoas do pas-
sado, e a expressão “antigamente”, nos fazem refletir sobre os resultados do estudo
realizado por Pina e Pereira (2020). Em seu estudo com crianças do 5º ano as auto-
ras também encontram referências ao passado, e o uso recorrente da palavra “anti-
gamente”. Na análise que empreendem sobre esses resultados as autoras refletem
sobre a necessidade de se construir com as crianças a conexão passado/presente
com vistas a desconstrução de uma História linear e factual, e depreende-se do
texto a relevância da História Local.
A reflexão sobre a História Local se coloca também como relevante neste es-
tudo. No conjunto do material empírico analisado se relata a história da cidade
(dos povos antigos, dos homens importantes, de como foi construída, e são feitas
três referências ao Assentamento e a luta pela terra), mas, parece-nos, na análise
desse material, que se coloca como pouco evidente os sentimentos de pertença a
um território formado por memórias e lutas. O sentimento de pertença se coloca
além das aprendizagens sobre os “artefatos”, no esquecimento de uma cidade que
se constrói por meio de narrativas cotidianas dos sujeitos que participaram da
formação desse território: indígenas, tropeiros, migrantes, madeireiros, doceiras,
dentre outros, com marcadores sociais de gênero, geracionais, de classe, religiosos,
raciais e étnicos (SIMAN, 2008; GENOVEZ; TEIXEIRA; BRAGA, 2019).
Dois dos estudantes apresentaram nas entrevistas respostas que sugerem iden-
tificação com a cidade e o encontro com a sua própria história. Para Davi, foi a opor-
tunidade de “saber mais da história da minha cidade” (grifo nosso), o que remete a
uma relação de identificação com a cidade. Paulo se reconhece na história contada no
museu sobre os negros: “aprendi a história dos negros e que tenho que me valorizar
mais” (grifo nosso), se incluindo, portanto, nessa história, como jovem negro.
Ao se refletir sobre o que nos apresentaram os estudantes a respeito da expe-
riência de saída da escola, via Projeto, vale questionar se não seria legítima a inclu-
são no itinerário proposto os bairros nos quais os estudantes vivem, e que circun-
dam a escola, favorecendo o trânsito pela sua comunidade, recuperando aspectos
da sua história e a memória construída pelos grupos que o formaram. Desse modo,
poderia se aliar conhecimentos historicamente constituídos e cultura local, possi
-
bilitando aos estudantes “acessar e contribuir com toda a atividade humana que
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aquela cultura construiu” (COELHO; MAURÍCIO, 2016, p. 1109), em um movimen-
to de reconhecimento da tríade entre as relações epistêmicas, identitárias e sociais.
“Vi o mapa da nossa cidade”. Esse excerto discursivo extraído da entrevista de
Ana, nos faz perguntar sobre qual cidade é vista? Qual cidade é apreendida pelos
(as) estudantes no movimento de saída da escola?
Ana, morada de um dos bairros periféricos, não tem o hábito de circular muito
pela cidade e foi pela primeira vez ao museu e ao Assentamento, como aluna da
ETI, neste projeto. Essa experiência se reveste de significado para Ana que relata
as conversas com a família sobre o que viu e pareceu-nos impressionada com o
mapa da cidade. Por exemplo, no bairro em que Ana mora localiza-se o “Bioquê
do Prefeito”, atribuição alegórica dada pela população à caixa d’água construída
para resolver os problemas enfrentados pela falta de água na região e que, embora
tenha sido um local selecionado para visitas no Projeto, não constou efetivamente
do itinerário dos passeios feitos por esses(as) estudantes.
Na literatura sobre Educação Integral/tempo Integral, há uma preocupação
de que a abertura da escola para os espaços da cidade não se converta em passeios
(BRASIL, 2009d; MOLL, 2012a; MOLL, 2014; LEITE; CARVALHO, 2016). Evocan-
do Milton Santos, essas publicações apontam para a importância de se reconhecer
o espaço como território usado – “o chão mais a identidade” (BRASIL, 2009d, p. 60)
e propõem um redimensionamento das relações entre escola e cidade:
A cidade não pode continuar sendo apenas o espaço no qual a escola se situa. A cidade, à
luz do que aprendemos com Milton Santos, precisa ser compreendida como território vivo,
permanentemente concebido e reconcebido material e simbolicamente pelos sujeitos que a
habitam (MOLL, 2014, p. 32).
Na geografia dessa cidade, “desenhada no mapa”, não é possível apreender
a territorialidade que conforme argumenta Raffestin (1993, p. 158, aspas do au-
tor) “reflete a multidimensionalidade do ‘vivido’ territorial pelos membros de uma
coletividade”. Além disso, vale lembrar, como argumenta o autor, que as territo-
rialidades também são marcadas por relações de poder: “quer se trate de relações
existenciais/e ou produtivistas, todas são relações de poder, visto que há interação
entre os atores que procuram modificar tanto as relações com a natureza como as
relações sociais” (RAFFESTIN, 1993, p. 159).
Embora os(as) estudantes tenham ido ao Assentamento e ouvido a narrativa
da assentada sobre a história de luta desse grupo, pode se refletir de modo geral
que na cidade que se apresenta para apreciação dos estudantes, há uma analítica
do poder que traça sua cartografia representando-a de modo racional, na qual se
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tornam invisíveis as tensões e contradições próprias dos atores no território. Tal
cartografia se presta a “impor uma ordem ao cotidiano da cidade” (CARRANO,
2003, p. 22).
Desse modo, ignoram-se as relações de poder, os movimentos de resistências,
as contradições, a ambivalência, o cotidiano das pessoas que transitam, por exem-
plo, pelo mercado municipal (em nenhum momento visitado), assim como a priori-
dade concedida, na escolha dos lugares a serem visitados, ao centro da cidade em
detrimento da periferia, local de vida dos(as) estudantes.
Nesse caso, pode-se refletir sobre a relação assimétrica que se estabelece entre
centro e periferia:
O usual desconhecimento das práticas sociais cotidianas desenvolvidas pelos moradores
que constituem aqueles espaços não impede, entretanto, a construção de uma série de juí-
zos a seu respeito – juízos elaborados, em geral, por representantes oficiais ou não, das
vozes dominantes da cidade (SILVA, 2011, p. 201).
Além disso, sobre a periferia lança-se um olhar da falta, da negação, sendo a
mesma reconhecida pelas ausências (do que não tem, e do que não é) (SILVA, 2011),
portanto, destituída do seu potencial para educar.
O próprio título do projeto que propicia a saída dos estudantes da escola, a
narrativa sobre os lugares a serem visitados, a escolha de um espaço em detrimen-
to do outro, e a impossibilidade de tempo para a exploração desses espaços, com
suas minúcias, circulação de pessoas, objetos, relações, práticas, estabelecimento
de relações dos(as) estudantes com os mesmos, conforma os passeios a incursões
turísticas no universo da cidade, negligenciando-se o território como lugar de vida
e relações.
A saída dos(as) estudantes da escola para a realização da atividade é precedi-
da pelas recomendações da escola, como de modo geral se faz a grupos de estudan-
tes quando se deslocam da escola para outros espaços, conforme explicam Jane e
Maria, durante a entrevista quando foi perguntado sobre como eram organizadas
as saídas para o “Passeio”.
Jane: Explicaram que a gente ia ao parque, museu e praça da estação. Falaram o que ia ser,
que tinha gente recebendo, pra gente se comportar.
Maria: Eles [os professores] falam as regras: o que pode e não pode fazer. Sempre tem alguém
que quer se aparecer. Ah! eu fui lá e toquei nisso, pode acabar estragando. Nós vamos pra
esse lugar, pode fazer isso, não pode fazer isso. Se for tirar foto tem que perguntar se pode,
ou não. Tem que falar tudo direitinho, andar direitinho.
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Se as recomendações feitas podem ser tomadas como cuidado da escola, elas
também se sobrepõem na memória dos (as) estudantes, sobre outras conversas
escolares que pudessem remeter aos propósitos e intenções desta atividade no con-
texto de integralidade da formação dos estudantes e das experiências estéticas,
culturais, cidadãs que os aguardava.
Mas, é a afirmativa de Paula, que chama a atenção quando relata o que faz
quando retorna à escola: “Chegamos, lanchamos e subimos para ter uma aula nor-
mal” (Paula).
Cabe refletir que a escola guarda historicamente uma forma escolar (JOIG-
NEAUX, 2011) expressa na arquitetura, no disciplinamento dos corpos, no conteú-
do legitimado a ser ensinado, na relação pedagógica, nos modos de transmissão do
conhecimento, na regulação espacial e temporal, que a configura.
A arquitetura da escola preserva a forma escolar, e é para esta arquitetura
que a estudante retorna para “a aula normal”. Sair em andanças pela cidade é não
ter uma aula normal, é ter uma aula diferente: “A escola sempre nos proporciona
muitos passeios e são muito bons, pois fazemos uma aula diferente, é usado um
método de ensino diferente, divertimos aprendendo” (Alan).
O modo de organização do conhecimento escolar também se preserva no terri-
tório escolar, e, desse modo, as saídas dos estudantes para outros espaços não mo-
dificaram o cotidiano da mesma em se tratando das conexões entre os itinerários e
os saberes dos estudantes, e os saberes da escola.
Nos relatos dos (as) estudantes sobre como se discute na escola a experiência
vivida nos “Passeios”, sobre o que viram e aprenderam, nove estudantes disseram
fazer “relatórios”, “redação”, “texto”, em que mencionavam os lugares visitados e as
aprendizagens neles adquiridas.
Pesquisadora: E quando voltaram, houve algum comentário, os professores pediram algum
trabalho?
Jane: Pediram uma redação pra gente falar tudo que a gente aprendeu. Tudo mesmo. Aí todo
mundo da minha sala fez uma redação falando sobre o parque e o museu.
Se a escrita de modo geral pode ser um exercício reflexivo, recurso valioso in-
clusive, como geradora da reflexão histórica (FRONZA; RIBEIRO, 2014), os relatos
dos estudantes não nos apresentam essa possibilidade ou diálogos que a propicias-
sem, e o que se reafirma é o exercício escolar da “redação”.
Nesse sentido, essa experiência nos remete a preponderância da escrita sobre
a oralidade nas práticas escolares e apresenta também outra marca da forma es-
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colar: a relação pedagógica definida por meio de regras impessoais (JOIGNEAUX,
2011).
Todos são convocados a registrarem por escrito a saída da escola, via projeto,
e não temos evidências nos textos e nas entrevistas sobre diálogos entre as apren-
dizagens advindas dessa experiência e a reflexão sobre os estudantes se inserirem
como atores no território. Pelos relatos dos(as) estudantes, as saídas da escola se
convertem em “passeios”, portanto, de certo modo, ignorados como válidos para
aprendizagens pela escola. Por essa pouca validação perde-se uma oportunidade de
uma maior articulação entre os saberes apreendidos no território e a reflexão sobre
eles que possibilitem a apropriação, reelaboração do vivido, aprofundamento dos
conhecimentos, avaliação dos contextos e das situações, em um exercício epistêmi-
co que é de responsabilidade da escola (CHARLOT, 2001, 2009), e no qual não se
pode esquecer das relações epistêmicas, identitárias e sociais, nas quais a relação
com o saber encontra-se inscrita.
Outra marca da forma escolar que apreendemos nos relatos dos estudantes é o
tempo escolar: um tempo específico, repartição em horários, percursos previsíveis,
e como argumenta Joigneaux (2011, p. 430), “há um tempo para cada coisa, porque
tudo deve se fazer em uma certa ordem, previamente definida”. Mesmo a escola
dispondo de 8 horas para a realização das atividades diárias, os passeios são cro-
nometrados. Na ETI, o tempo escolar é cronometrado em módulos de 50 minutos e
o tempo também se mostra, por vezes, nos passeios, recortado na forma modular:
Um dos passeios foi a nossa ida ao Museu da Cidade que durou cerca de 50 minutos, em todo
tempo um funcionário do museu que nos acompanhou, falou sobre a história da nossa cidade
e depois fomos andando em “quartos” onde havia móveis e objetos que pertenciam a antigos
moradores da nossa cidade que doaram esses móveis para o museu colocar em exposição
(Bete).
O relato da estudante mostra a força do tempo escolar se interpondo na vi-
vência de outro território educativo. Talvez seja a força desse tempo que faça com
que a visita se assemelhe à forma escolar (transmissão) e às andanças nos quartos
(parecidos, no modo de condução da visita, à sala de aula).
Imaginemos o mercado como território educativo e as possibilidades de apro-
priação dos estudantes desse espaço: cheiros, cores, arquitetura, diversidade,
tradições, barracas, lojas, vendedores ambulantes, pechinchas, compras, vendas,
compradores, pessoas que circulam livremente, etc. Imaginemos o tempo contado
da visita e a riqueza de vivência do território que se perde com esse tempo.
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A respeito da apropriação de outros espaços pelas escolas para a ampliação
da jornada escolar, considerados por seu potencial educador, Canário (2004) alerta
para a dissociação entre escola e vida. Um dos problemas, segundo o autor, é o “dis-
tanciamento em relação à forma escolar que se traduz pela persistência da ‘ilusão
pedagógica’ que consiste em dissociar as situações de aprendizagem escolar das si-
tuações sociais em que elas se inscrevem” (CANÁRIO, 2004, p. 56, aspas do autor).
Ao lançar um olhar sociológico sobre a escola e discorrer sobre “a territoria-
lização da ação educativa” (CANÁRIO, 2005, p. 158), o autor tece críticas à orga-
nização escolar que toma por base o espaço escolar numa relação entre professor/
aluno, e não em uma relação com o social. Conforme o autor argumenta, o espaço
escolar, do modo como está posto na contemporaneidade, não é um “espaço so-
cial”. Para que a escola se converta nesse espaço, o autor sustenta a necessidade
de ultrapassar uma visão redutora de territórios circunscritos às suas dimensões
escolares, procedendo-se à construção de territórios educativos onde se construam
modalidades de interação entre o escolar e o não escolar.
Esse divórcio, entre o que acontece no movimento de saída dos (as) estudantes
da escola e o que acontece na escola, reduz a potencialidade educativa da expe-
riência vivida por eles. Grava-se o nome dos espaços (fui ao Centro Cultural, à
Açucareira, ao Assentamento), a serventia dos aparelhos (a cadeira, a urna), a
importância das pessoas “históricas” e até das “coisas” antigas, lembra-se da luta
pela terra, mas não foi possível apreender no material analisado (a exceção das
evocações feitas por Davi e Paulo) outras referências a processos de territoriali-
zação nesses lugares – no modo como os sujeitos os constituíram historicamente,
ou foram dele alijados como os índios, os negros, os trabalhadores na luta pela
terra, – ou no modo como os estudantes neles se inserem na imbricação território/
territorialidade.
Conclusão
Colocar em diálogo o sujeito transitando entre o espaço da escola e da cidade,
no movimento desencadeado pela ETI, ou por outras experiências em tempo inte-
gral que tomam a cidade como fonte de aprendizado, nos instiga a refletir sobre a
intencionalidade das políticas de ampliação da jornada escolar, em uma perspecti-
va de educação integral/tempo integral que considere como territórios educativos
os diferentes espaços que circundam a escola. A literatura sobre a educação inte-
gral tem apontado para a importância de envolver a comunidade nas atividades da
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escola e a escola nas atividades da comunidade, em um processo de ressignificação
do entorno da escola o que possibilita apreender a rua, o bairro, a cidade como
territórios que podem contribuir na construção da educação integral, e não apenas
da escolarização em tempo integral.
É na defesa desse diálogo entre a escola e a cidade que refletimos sobre a expe-
riência de saída da escola que nos propusemos a analisar, ao tomarmos como objeto
as relações com o saber que os (as) estudantes, participantes do estudo estabelecem
nessa experiência em direção a outros espaços da cidade.
Uma primeira conclusão é a de que a experiência foi significativa para os
estudantes pelo comparecimento de aprendizagens relacionais e afetivas; intelec-
tuais e escolares, com preponderância dessas últimas. Assim, mesmo que essas
aprendizagens não tenham sido objeto de maiores reflexões e desencadeadora de
outras aprendizagens nos muros da escola, o movimento de saída desses muros
possibilitou aos sujeitos aprendizagens sobre pessoas, lugares e objetos-saberes,
importantes, como parte da sua entrada na história humana.
Como moradores de bairros periféricos, em uma cidade de médio porte, esses
sujeitos têm poucas oportunidades de circulação nos espaços da cidade, especial-
mente os selecionados para a atividade, especialmente o museu, o centro cultural
e o Assentamento. A experiência de saída da escola em direção a esses espaços,
tomados como território de memórias, de histórias e lutas, foi uma experiência
significativa nas lembranças dos estudantes.
Cabe refletir sobre a percepção dos(as) estudantes de que na experiência se
vivia uma “aula diferente” e ao voltar para a escola se retornava “para uma aula
normal”. As palavras “diferente” e “normal” são provocadoras de reflexões sobre a
força da forma escolar que apreendemos na organização do tempo escolar, que se
sobrepõem inclusive na destinação do tempo, em módulos de 50 minutos, para o
estar em alguns dos espaços, como relatado pelos estudantes; e sobre o que se faz
no retorno a escola – um exercício escrito; reduzindo-se as potencialidades da ex-
periência vivida, os vínculos territoriais e perdendo-se a oportunidade de reflexão
dos estudantes sobre o vivido e que poderia ser provocador de aprendizagens de
cunho epistêmico, inscritas na tríade proposta por Bernard Charlot, entre relações
epistêmicas, identitárias e sociais.
As contribuições dos autores que tematizam o território possibilitam refletir
que é possível aos estudantes apropriarem-se da cidade em uma dimensão simbó-
lica, bastando para tal que se identifiquem com ela, sintam-na sua, estabelecendo
com ela uma relação de pertencimento. Nesse sentido, o que chama a atenção neste
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estudo foram as lacunas nas lembranças dos estudantes no que diz respeito ao
bairro. Durante as entrevistas, ao buscar aprofundar sobre a experiência de saí-
da da escola e o que poderiam aprender se visitassem o bairro onde moram, esse
é pouco evocado, sobressaindo como lugares frequentados, e nos quais é possível
aprender, as igrejas e uma quadra de futebol. Não basta ter nascido ou morar em
um determinado lugar para dele se apropriar, é preciso que haja vínculos, união,
atividade conjunta, luta, encontros, e que nele, de algum modo, os sujeitos impri-
mam suas marcas.
Em um cenário de retração de matrículas em tempo integral, nas opções do
PNME de opção pela melhoria da aprendizagem em alfabetização e matemática,
em detrimento e desarticulada da integralidade da formação humana inerente a
educação integral, a ausência de referência a territórios educativos, o temor a pau-
ta cidadã a que assistimos nesse cenário, reafirmamos a importância da proposição
da ETI feita em 2010, pelo seu caráter universal, e as possibilidades, ainda que
tímidas de uma aproximação com a cidade. No reconhecimento da importância da
educação integral/tempo integral optamos por concluir com Paulo Freire: “A Cida-
de somos nós e nós somos a Cidade” (FREIRE, 2007, p. 25), inspirador da política
indutora do Programa Mais Educação e que possibilitou o germinar de experiên-
cias de educação integral pautadas em aprendizagens éticas e cidadãs.
Notas
1
Programa reeditado por meio da Portaria nº 1.144, de 10 de outubro de 2016 – “Novo Mais Educação”
(BRASIL, 2016) e difere das proposições iniciais feitas até o ano de 2015, mas continua a apontar para a
articulação escola/comunidade e mantém em seu sítio eletrônico as publicações sobre o PME. Disponível
em: http://portal.mec.gov.br/programa-mais-educacao/publicacoes. Acesso em: 18 mar. 2020.
2
A rede se propõe a divulgar estudos sobre relação com o saber, bem como promover a comunicação entre os
pesquisadores que se debruçam sobre “ relação com o saber”. A rede é organizada por Bernard Charlot, Ve-
leida Anahi da Silva Charlot e Elissandra Silva Santos. Informações disponíveis em: https://redereperes.
wixsite.com/reperes. Acesso em: 05 mar. 2020.
3
Estudo aprovado por Comitê de Ética em Pesquisa. Apoio: Universidade Vale do Rio Doce – Univale.
4
A ETI organiza-se por ciclos de desenvolvimento humano: Ciclo da Infância (CI) 06 aos 08 anos; Ciclo da
Pré-adolescência (CPA) de 09 a 11 anos e o Ciclo da Adolescência (CA) de 12 a 14 anos (GOVERNADOR
VALADARES, 2009).
5
A adaptação do enunciado foi feita a partir de Souza e Charlot (2016), que também tomam como objeto de
discussão a ETI de Governador Valadares.
6
“Projeto Conhecendo o IFMG”, que visa propiciar a estudantes do 9º ano o contato com o Instituto Federal
de Educação; “Projeto de Incentivo à Leitura - Um passeio no universo literário”, que tem como local o
Centro Cultural no qual se localiza a biblioteca pública e “Passeio na História de Governador Valadares”.
7
Nome fictício visando preservar a identidade dos participantes.
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Tem gente caminhando pra lá e para cá”: caminhar com as crianças – a pesquisa em contexto campesino
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“Tem gente caminhando pra lá e para cá”: caminhar com as crianças –
a pesquisa em contexto campesino
There are back walking back and forth”: walking with children –
the research in campesino context
“Hay gente caminando para allá y para acá”: caminar con los niños –
investigación en contexto campesino
Jeruza da Rosa da Rocha
*
Marta Nörnberg
**
Resumo
Este artigo discute o caminhar com crianças em contexto campesino como possibilidade metodológica para
a pesquisa com crianças. A partir de alguns pressupostos da abordagem etnográca, as caminhadas com as
crianças são descritas como uma ferramenta metodológica capaz de oferecer elementos para interagir com elas
em suas dinâmicas sociais. A ação de caminhar com as crianças permite desenvolver uma postura atenta às
brechas e às pistas oferecidas por elas sobre a (re)interpretação que fazem da cultura comunitária e da cultura
das famílias, em especial, das práticas da pesca e da lida no campo. Os processos interpretativos realizados pelas
crianças, em suas relações intergeracionais e intrageracionais, são abordados com base nos conceitos de repro-
dução interpretativa e cultura de pares. O estudo sustenta metodologias que valorizam a agência das crianças
como intérpretes de suas culturas comunitárias e familiares, e como participantes ativas no desenvolvimento
e na organização dos processos investigativos. Mostra como o caminhar com as crianças favorece uma maior
aproximação às culturas infantis e oferece condições para a escuta sensível de suas vozes.
Palavras-chave: Metodologia de pesquisa. Pesquisa com crianças. Crianças do campo. Cultura de pares. Cami-
nhar com crianças.
*
Doutora em Educação pela Universidade Federal de Pelotas. Atua no Núcleo Educamemória pela Universidade de
Rio Grande (Furg), como pesquisadora colaboradora com estudos envolvendo as infâncias campesinas dos povos
e comunidades tradicionais da Serra dos Tapes, RS. Colaboradora do grupo CIC: Crianças, Infâncias, Culturas. Orcid:
https://orcid.org/0000-0003-4635-5942. E-mail: luaia.je@gmail.com
**
Professora da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Edu-
cação, Departamento de Ensino. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-9865-7056. E-mail: martanornberg0@gmail.com
Recebido em 10/04/2019 – Aprovado em 15/10/2020
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i3.12390
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Abstract
This article discusses the walking with children in campesino context as a methodological possibility for the
research with children. Based on some ethnographic approach suppositions, the walks with the children are
described as a methodological tool able to oer elements to interact with them in their social dynamics. The
action of walking with the children enables developing a careful attitude concerning the gaps and clues oered
by them about the (re)interpretation they make of the community culture and the culture of the families, espe-
cially the practice of shing and the rural work. The interpretative processes carried out by the children, in their
intergenerational relationships and within generations, are approached based on the concepts of interpretative
reproduction and the culture of peers. The study supports methodologies which value the acting of the children
as interpreters of their community and family cultures, and as active participants in the development and in the
organization of the investigative processes. It illustrates how the walking with children favored a greater approa-
ch to childrens cultures and oered conditions for sensitive listening to their voices.
Keywords: Research methodology. Research with children. Children in the eld. Culture of peers. Walking with
children.
Resumen
Este artículo discute el caminar con niños en contexto campesino como posibilidad metodológica para la in-
vestigación con niños. A partir de algunos presupuestos del abordaje etnográco, las caminadas con los niños
son descritas como una herramienta metodológica capaz de ofrecer elementos para integrar con ellas en sus
dinámicas sociales. La acción de caminar con los niños permite desarrollar una postura atenta a las roturas y las
pistas ofrecidas por ellas a cerca de la (re) interpretación que hacen de la cultura comunitaria y de la cultura de las
familias, en especial, de las prácticas de la pesca y de la lida del campo. Los procesos interpretativos producidos
por los niños, en sus relaciones, intergeracionales y intrageracionales, son abordados con base en los conceptos
de reproducción interpretativa y cultura de pares. El estudio sostiene metodologías que valoran la acción de los
niños como intérpretes de sus culturas comunitarias y familiares, y como participantes activas en el desarrollo
en la organización de los procesos investigativos. Muestra como el caminar con niños favorece un acercamiento
a las culturas de los niños y ofrece condiciones para escuchar sus voces con sensibilidad.
Palabras claves: Metodología de investigación. Investigación con los niños. Niños del campo. Cultura de pares.
Caminar com niños.
Introdução
A construção de metodologias de pesquisa que reconheçam as crianças em sua
agência, como sujeitos de direitos e participantes dos processos culturais está na
agenda do trabalho de investigação educacional. Organizar e desenvolver práticas
participativas de interlocução entre adultos e crianças é tarefa necessária para
ampliar as relações intergeracionais e as possibilidades de escuta aos processos
intrageracionais estabelecidos pelas crianças em suas dinâmicas sociais e comu-
nicativas.
A discussão proposta para este artigo apresenta as caminhadas com crianças
que vivem em contexto campesino como ferramenta metodológica. Caminhar no
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campo é atividade cotidiana do grupo de crianças da Capilha, região do Taim, no
município de Rio Grande, RS, local onde foi desenvolvida a pesquisa. As caminha-
das permitiram a aproximação da pesquisadora com as crianças, além de reco-
nhecer e atentar a outras formas de se movimentarem no cotidiano comunitário e
compreender as ressignificações e interpretações da cultura local.
No caso do estudo realizado, o caminhar com as crianças favoreceu a criação
de condições para observar como elas interagem entre si e com os adultos, em seu
cotidiano comunitário, além de oferecer pistas para pensar sobre a interpretação
que fazem sobre a pesca e a lida no campo, atividades típicas da localidade. Além
disso, ofereceu insumos para pensar sobre o lugar e a atuação do investigador edu-
cacional, especialmente aquelas que referem as modificações de postura, os cuida-
dos éticos a serem estabelecidos e a disponibilidade de reposicionar-se no contexto
das práticas culturais vividas pelas crianças como interlocutor capaz de escutar o
que e como elas contam suas vivências.
As caminhadas surgiram como movimento próprio das crianças de aproxima-
ção à pesquisadora que, em certo momento do seu trabalho de pesquisa na escola,
ao final de um dia de aula, foi convidada para com elas caminhar pela comuni-
dade. Assim, com base na experiência da pesquisa realizada, o caminhar com as
crianças é apresentado como ferramenta metodológica adequada para a interação
entre crianças e pesquisadores, pois cria oportunidades para conversar sobre a sua
realidade comunitária e familiar. Além disso, desmistifica o papel do pesquisador
como gestor central do processo investigativo, pois, enquanto ação proposta pelas
crianças, a caminhada é um convite para aproximar-se de suas realidades infantis,
experimentando outras formas de observar e conduzir a pesquisa com crianças,
especialmente em contexto campesino.
Os processos interpretativos realizados pelas crianças são discutidos com base
nos conceitos de “reprodução interpretativa”, de “relações inter e intrageracionais”
e de “cultura de pares” (CORSARO, 2009, 2011; SARMENTO, 2005, 2013). Essa
base conceitual situa-se no âmbito dos estudos da infância e tem como premissa
básica legitimar as crianças como atores sociais ativos e de cultura, potentes em
processos de agenciamento nas relações sociais que estabelecem na comunidade
pertencente.
As situações ocorridas ou narradas durante as caminhadas são problemati-
zadas e ampliadas com base nos conceitos referidos, especialmente para pensar
sobre os vínculos estabelecidos entre sujeitos e, destes, com a sua comunidade e
o lugar espacial em que vivem na interlocução que realizam com a pesquisadora.
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Ademais, auxiliam a pensar sobre aspectos relativos à vida na região dos campos
neutrais, lugar que carrega simbologias afinadas com um determinado modo de
estar no tempo e no espaço geográfico e cultural de um banhado, ambiente típico do
Taim, região na qual vivem as crianças participantes da pesquisa. Simbologias que
remontam, nas palavras do músico e escritor Vitor Ramil (2011), a um imaginário
contemporâneo que abriga ideais de liberdade, diversidade humana e linguística,
criatividade, fantasia e realidade.
O conjunto dessas posições teóricas amplia as referências no âmbito da in-
vestigação participativa com crianças, pois oferece material para problematizar e
desmistificar noções como as de incapacidade de percepção e de expressão de reali-
dades concretas e simbólicas, por vezes ainda atribuídas às crianças. São arranjos
conceituais que colocam em evidência a potência das crianças para falar de seus
sentimentos, necessidades, interesses e percepções sobre a realidade sociocultural
em que estão inseridas. Nesse sentido, as crianças são atores sociais participativos
e excelentes comunicadoras da vida no campo, em sua dimensão real e simbólica.
Subsídios dos estudos e da pesquisa com crianças
Os estudos da infância, ou Childhood Studies, como área de conhecimento e
campo de pesquisa, vem se consolidando no cenário investigativo, especialmen-
te propondo a reconceitualização do termo socialização por meio de uma reflexão
articulada sobre aspectos históricos, socioeconômicos e demográficos da infância
(CORSARO, 2011). São trabalhos que oferecem perspectivas interpretativas para
observar e entender as relações geracionais entre crianças e adultos, e o papel que
desempenham na sociedade, reconhecendo a sua participação constitutiva para o
estabelecimento de um estatuto social da infância.
Desde a Convenção Internacional dos Direitos das Crianças (1989) e do Esta-
tuto da Criança e do Adolescente (1990), a participação das crianças vem ganhando
expressividade no âmbito dos estudos acadêmicos e das dinâmicas sociais contem-
porâneas. No artigo 12ª, da Convenção, as crianças são reconhecidas como atores
sociais de direitos. A liberdade de expressão e a garantia de escuta aos assuntos
que as afetam são sinalizadores de sua participação social e de sua condição de
cidadãs. Reconhecer as crianças como competentes em suas ações e interpretações
proporciona condições para problematização e descentralização da visão moderna,
a qual entende a criança como “um sujeito unificado, reificado e essencializado – no
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centro do mundo – que pode ser considerado e tratado à parte dos relacionamentos
e do contexto” (DALHBERG; MOSS; PENCE, 2003, p. 63).
No contexto das práticas investigativas e educacionais, é necessário despir-se
de conceitos (pré)estabelecidos que norteiam concepções adultocêntricas em rela-
ção às crianças que, geralmente, são vistas como sujeitos passivos da cultura que
as cercam. A aproximação às teorias sociológicas da infância oferece ao investiga-
dor subsídios para observar e compreender a potencialidade da ação coletiva das
crianças no processo de produção cultural, seja a que compartilham entre si e com
os adultos, em diferentes contextos sociais, ou a que ocorre entre elas, em diversos
espaços, como o da comunidade e o da escola em que vivem e atuam. Ainda, esses
aportes teóricos oferecem condições e possibilidades para “teorizar o social a partir
de um ponto de vista das crianças” (KOSMINSKY, 2010, p. 128).
O conjunto de aspectos aportados pelos estudos da infância ajuda a pensar nas
crianças do presente e nas implicações decorrentes da diversidade cultural, social
e demográfica que permeiam seus cotidianos. No Brasil, já encontramos uma rele-
vante produção científica atenta a grupos historicamente colocados em lugar de su-
bordinação pelas lógicas classistas, racistas e sexistas, como o das mulheres e das
crianças. São estudos marcados por características interpretativas e construcio-
nistas que se interessam pelas especificidades e pela diversidade constitutiva das
produções culturais das crianças, lidas como dimensões potentes para os processos
de reconhecimento dos seus modos de socialização e de produção das relações entre
os grupos geracionais.
No âmbito da produção científica nacional, destaca-se o pioneiro estudo de
Florestan Fernandes (2004) que, na década de 1940, apresentou os processos de
socialização vivenciados por um grupo de crianças em situações de brincadeiras de
um bairro paulistano. Suas observações e análises demonstraram elementos fun-
damentais às culturas e grupos infantis, contempladas em ações de brincadeiras
das crianças aliadas às regras e valores do mundo adulto. Outra estudiosa, Eloisa
Rocha (1997), em suas pesquisas, arquiteta o conceito de pedagogia da infância,
apresentando os princípios da escuta e das diferenças como constitutivas das rela-
ções participativas entre crianças e adultos no contexto escolar. Anete Abramowicz
(2011), mais recentemente, sinaliza a inventividade como termo potente a ser co-
locado no centro das pesquisas que se debruçam sobre a infância. Para a autora,
a inventividade permite buscar e produzir movimentos inversos e oportunos para
pensar para além de visões adultocêntricas e colonialistas, pois aposta na capaci-
dade e no olhar das crianças sobre a diversidade que as cerca em seus cotidianos.
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Nesse sentido, as posições de Abramowicz reivindicam do pesquisador uma aten-
ção para as condições de existência das crianças brasileiras, observando questões
étnicas e de gênero que perpassam suas dinâmicas demográficas.
O reposicionamento das crianças nos últimos vinte anos tem contribuído para
consolidar um movimento investigativo com e não para ou sobre as crianças, isto
é, “o processo de pesquisa reflete uma preocupação direta em capturar as vozes
infantis, suas perspectivas, seus interesses e direitos como cidadãos” (CORSARO,
2011, p. 57). Esse entendimento sustenta os movimentos participativos das crian-
ças como base para a aproximação às suas realidades e como modo para acompa-
nhar as investidas que elas empreendem para reinterpretar o contexto cultural e
social a que pertencem.
Assim, com base na Sociologia da Infância de Corsaro (2011), destacamos
“reprodução interpretativa”, “cultura de pares” e “teia global” como alicerces con-
ceituais que ajudam a problematizar as práticas culturais a partir da interação,
da criação e da apropriação interpretativa que as crianças fazem, com seus pares
e com os adultos, exibindo os sentidos por elas produzidos. No contexto desta dis-
cussão, estes conceitos são entendidos como pontos de referência para pensar o
potencial interpretativo e (re)produtivo das crianças e a sua presença em processos
investigativos que se preocupam com a diversidade cultural e social que permeia
e contribui para a construção de suas infâncias em situações da vida no campo,
em que determinadas atividades econômicas estão presentes, bem como valores e
condutas típicas do local.
O termo “reprodução interpretativa” transcende a socialização como movi-
mento passivo e linear, oriundo de perspectivas tradicionais, as quais concebem a
criança como “alguém apartada da sociedade, que deve ser moldada e guiada por
forças externas a fim de se tornar um membro totalmente funcional” (CORSARO,
2011, p. 19). A noção de reprodução interpretativa refere os processos conjuntos e
coletivos das crianças, distanciando-se do termo socialização, de vertente indivi-
dualista, que visa à internalização de conhecimentos e a formação e preparação
para o mundo adulto.
A “reprodução interpretativa” abrange perspectivas inovadoras em relação ao
processo de socialização: incorpora a participação ativa das crianças na sociedade;
sustenta que elas não internalizam passivamente as informações e conhecimentos do
mundo adulto; afirma que elas ressignificam, selecionam e apropriam-se dos saberes,
produzindo suas próprias culturas de forma inventiva, inovadora e criativa como ma
-
neira de lidar com suas necessidades e preocupações (CORSARO, 2011). Em síntese,
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[...] encara a integração das crianças em suas culturas como reprodutiva, em vez de linear.
De acordo com essa visão reprodutiva, as crianças não se limitam a imitar ou internalizar
o mundo em torno delas. Elas se esforçam para interpretar ou dar sentido a sua cultura e a
participarem dela. Na tentativa de atribuir sentido ao mundo adulto, as crianças passam a
produzir coletivamente seus próprios mundo e culturas de pares (CORSARO, 2011, p. 36).
Para ampliar o entendimento sobre os processos de socialização e compreender
as crianças em sua capacidade de agência recorremos a Sarmento (2005), que ex-
plica as culturas da infância como resultantes da convergência desigual de fatores
que se localizam em duas instâncias: na primeira estão as relações sociais global-
mente consideradas e, na segunda, as relações inter e intrageracionais. Segundo
Sarmento (2005, p. 373), a “convergência ocorre na acção concreta de cada criança,
nas condições sociais (estruturais e simbólicas) que produzem a possibilidade da
sua constituição como sujeito e actor social. Este processo é criativo tanto quanto
reprodutivo”.
O poder de agência das crianças, deste modo, carrega e articula dimensões
provenientes da criação e da reprodução que elas fazem de aspectos estruturais e
simbólicos que envolvem suas práticas de socialização e interlocução vividas em
seus cotidianos. E é nesse processo que as crianças se colocam como atores sociais
e produtores de cultura, devido a sua competência e capacidade “de formularem
interpretações da sociedade, dos outros e de si próprios, da natureza, dos pensa-
mentos e dos sentimentos, de o fazerem de modo distinto e de o usarem para lidar
com tudo o que as rodeia” (SARMENTO, 2005, p. 373).
Nessa perspectiva, a noção de “reprodução interpretativa” pode ser ampliada
a partir da ideia de “teia global”, a qual ilustra “características produtivas e repro-
dutivas”, pois representa “um modelo que inclui a reprodução interpretativa como
uma espiral em que as crianças produzem e participam de uma série de culturas de
pares incorporadas” (CORSARO, 2011, p. 37). As crianças participam e interagem
em diversos domínios culturais e sociais em constante transformação. Assim, a teia
ou a espiral é tanto produtiva quanto reprodutiva, pois a variação dos domínios e
a diversidade dos grupos de pares garantem experiências tecidas coletivamente
“sobre os grupos de conhecimentos culturais e instituições aos quais as crianças
se integram e que ajudam a constituir” (CORSARO, 2011, p. 39). Nesse sentido, a
“teia global” demonstra o conjunto de culturas das quais as crianças participam,
reinterpretando informações e conhecimentos de forma criativa e inventiva a par-
tir de suas necessidades de compreender o mundo.
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Chega-se, assim, à discussão sobre “cultura de pares”, que diz respeito à apro-
priação das crianças “criativamente de informações do mundo adulto para produzir
suas próprias culturas” (CORSARO, 2011, p. 53). Não se trata de uma apropriação
estática e individual a fim de orientar o comportamento das crianças, mas sim de
uma produção que é criativa, pois amplia as “informações do mundo adulto a fim
de responder às preocupações de seu mundo” (idem), contribuindo constantemente
para a reprodução e a extensão cultural dos adultos.
A atenção neste artigo volta-se para o reconhecimento das crianças em seus
movimentos interpretativos sobre as dinâmicas dos grupos geracionais de sua
comunidade e com a pesquisadora, com quem elas compartilham criativamente,
em exercícios de (re)produção cultural, aspectos de sua participação nas rotinas
culturais próprias do contexto campesino em que vivem. Ou melhor, o esforço está
em mostrar como seus anúncios interpretativos são potentes para construir uma
aproximação com seus cotidianos socioculturais e assim entender os significados
que atribuem à sua cultura local. Nessa direção, as caminhadas são entendidas
como estratégia que oferece melhores condições para o diálogo entre crianças e a
pesquisadora, sobretudo a comunicação das interpretações que realizam sobre as
práticas culturais do cotidiano campesino.
Na sequência, a caminhada com as crianças é apresentada como metodolo-
gia de pesquisa. Para isso, elementos da abordagem etnográfica da pesquisa com
crianças são tomados para explicitar o movimento investigativo desenvolvido.
Também aspectos decorrentes das interações ocorridas ao longo das caminhadas
são analisados e problematizados com base nos aportes conceituais referidos.
As caminhadas com crianças: o que revelam para a pesquisa?
A pesquisa com crianças é atividade desafiante ao pesquisador. Para desenvol-
ver processos investigativos que colocam como centro as crianças e os seus pontos
de vista, é preciso aprender a “examinar, analisar e explicar os mundos que as
crianças conhecem porque vivem aí dentro; e ligar as vidas das crianças à organi-
zação cotidiana habitual das relações sociais” (KOSMINSKY, 2010, p. 128). Nesse
sentido, investir na criação de metodologias que deem visibilidade à “riqueza das
vidas das crianças nos inúmeros contextos em que elas se movem” (GRAUE; WAL-
SH, 2003, p. 22) é tarefa do investigador educacional. Assim, a preocupação com as
vozes das crianças, as suas perspectivas e seus interesses faz parte da agenda de
trabalho de quem procura uma maior aproximação às suas realidades e uma com-
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preensão mais atenta à (re)produção interpretativa que elas fazem das práticas
culturais.
Nesta seção o foco recai sobre as caminhadas com as crianças, discutindo-a
como possibilidade metodológica na pesquisa. Para argumentar em favor desta
ferramenta, elementos da etnografia são tomados para justificar as posições assu-
midas e os encaminhamentos realizados.
Um primeiro princípio posto pela etnografia demanda ao pesquisador sua par-
ticipação ativa no cotidiano investigado para assim abrir caminhos para comparti-
lhar das práticas culturais dos atores e acercar-se das interpretações que realizam.
É dessa forma que se torna possível uma maior aproximação com os sujeitos e a
elaboração de uma compreensão mais razoável e fiel sobre os significados construí-
dos em um determinado contexto sociocultural.
A etnografia se caracteriza como metodologia que prioriza a descrição densa
dos fatos e a inserção prolongada do pesquisador no contexto a ser investigado, o
que exige o exercício sistemático do registro em diário de campo. Fazer um diá-
rio permite registrar o não-dito, as representações simbólicas, o que foi dito fora
da entrevista (MELLO, 2005, p. 60). O registro em diário configura-se como uma
alternativa potente porque permite, justamente, sistematizar o que resulta da in-
teração entre pesquisador e crianças.
A etnografia com crianças requer do investigador a prática da flexibilização
e da renegociação durante o desenvolvimento do processo investigativo. Pede
pelo exercício constante de considerar as crianças em suas capacidades de agir
como interlocutores centrais, capazes de sinalizar pistas sobre possíveis modos
de observar o campo empírico, pois possuem as melhores condições de comunicar
sobre os contextos em que vivem. Além disso, desloca a figura do pesquisador
do lugar central do processo metodológico de pesquisa. Essa posição demanda,
no entanto, que o investigador educacional reconheça a criança potente para
“ensinar e comunicar sobre suas experiências de vida compartilhada e suas lutas
para obter algum controle sobre os poderosos adultos e suas regras” (CORSARO,
2011, p. 62).
No decorrer da pesquisa, essa capacidade de atenção aos modos das crianças
estabelecerem a sua comunicação com o pesquisador sobre sua vida na comunidade
da Capilha foi desenvolvida e aprimorada. E, em decorrência desse exercício, é que
as caminhadas com as crianças foram assumidas e entendidas como uma ferra-
menta metodológica capaz de permitir uma maior inserção em contexto e, assim,
compreender aspectos do cotidiano real e simbólico por elas interpretados.
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Enquanto proposta metodológica, as caminhadas criaram condições para a
observação atenta, pois a pesquisadora, ao ser deslocada do seu lugar de figura
central do processo, foi inserida, pelas crianças, como uma participante do grupo e
assim foi aprendendo a olhar para as práticas da comunidade, guiada pelas mãos
das crianças. Sobre essa dinâmica, Corsaro explica que o pesquisador se acerca
melhor das práticas do grupo e, desse modo, “toma a compreensão dos sentidos e da
organização social como tema de pesquisa a partir de uma perspectiva de dentro,
aprendendo a se tornar um membro do grupo, documentando e refletindo sobre o
processo” (2009, p. 85).
Mas, como começaram as caminhadas com as crianças?
As aulas daquele dia tinham encerrado; a pesquisadora, sentada na soleira
da porta da biblioteca da escola, realizava anotações em seu diário decorrentes
das observações feitas naquela manhã em sala de aula. Seu interesse de pesquisa
repousava sobre as formas de participação das crianças nas práticas educativas
desenvolvidas em uma turma multiseriada. Um grupo de crianças aproxima-se
e um convite é feito: “Vamos, nós já almoçamos. Vamos com nós até lá embaixo?”.
Sem hesitar, coloca-se em pé e segue com as crianças. Ao sair da escola, pergunta:
“O que é lá embaixo?”. “Ué, é lá embaixo. Olha, tem que subir e depois descer. É lá
embaixo que a gente mora”. Naquele momento, percebe que a referência “lá embai-
xo” indicava características do relevo local.
Ao longo da caminhada, as crianças contam sobre como vivem na comunida-
de da Capilha. Falam de suas brincadeiras. Narram empolgadas sobre histórias
com personagens assustadores (lobisomem, noiva sangrenta). Relatam sobre as
atividades de pesca e de lida no campo realizadas por suas famílias. Apresentam
pessoas e oferecem descrições detalhadas sobre as tarefas que realizam diaria-
mente na comunidade. Mostram a si próprias como pertencentes e envolvidas
com práticas típicas dos adultos, como a conversa no balcão do pequeno armazém
da localidade.
As caminhadas com as crianças permitiram a construção de outro olhar no de-
senvolvimento da pesquisa. As situações observadas em sala de aula evidenciavam
o comportamento silencioso das crianças, que se manifestavam apenas quando soli-
citadas pela professora ou quando precisavam manusear materiais entre elas. Em
contrapartida, durante as caminhadas pelo pequeno vilarejo, eram espontâneas e
tenazes em suas investidas; perspicazes na exposição sobre as situações vividas na
escola e na comunidade. Durante o percurso de uma caminhada, argumentavam e
interagiam entre si e com a pesquisadora, apresentando um repertório enriquecido
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de informações e conhecimentos sobre suas atividades cotidianas e também dos
adultos.
Com as caminhadas, foi possível ampliar a relação de pertencimento à
comunidade da Capilha, seja das crianças, como da própria pesquisadora. O
pertencimento ultrapassa o reducionismo biológico porque trata de distinguir
a natureza humana na dimensão da vida, mostrando que a noção de perten
-
cimento exige “inscrever a lógica da vida nas condições específicas do modo de
organização cultural da sociedade humana” (SÁ, 2005, p. 251). O sentimento
de pertencer ultrapassa nascer e viver num determinado lugar porque envolve
o gostar das histórias que são contadas sobre o local, a cultura, o dia a dia.
Envolve um sentimento de afetividade e de amor pelas coisas e pelos sujeitos
da comunidade. Produz, portanto, a compreensão de que os laços extrapolam as
dimensões biológicas, pois em razão da cultura, capital genético de segundo grau
(MORIN, 2001), outras bases se organizam por meio da linguagem e da comu
-
nicação, ampliando as formas de pertencimento, o que inclui dimensões reais e
simbólicas, humanas e ambientais.
No decorrer das caminhadas, as crianças relataram sobre os saberes da cul-
tura local e explicaram quais atividades seus familiares mais desenvolviam, entre
elas, a pesca e a lida no campo, principais formas de subsistência de suas famílias.
As falas das crianças traziam a descrição das tarefas e das posições que ocupavam
em situações que envolviam as atividades de trabalho, demonstrando aspectos de
sua participação junto aos adultos. Nesses momentos, as produções interpretativas
sobre a cultura do lugar foram sendo explicitadas. Expressões como: “eu pesco com
o meu pai, agora ele tá matando pouco peixe, o peixe tá mais pro fundo” e “meu pai
pesca, eu vou com ele, mas agora ele tá trabalhando de peão” oferecem elementos
para demarcar sua participação nas atividades laborais. São falas ilustrativas da
leitura que elas fazem da situação econômica em que vivem os moradores e as
famílias do local, em referência à condição do tempo cíclico que orienta a sobrevi-
vência e o trabalho na região.
Os relatos das crianças sobre a cultura da pesca e da vida campesina, sobre-
tudo de situações que elas estabeleciam com os adultos são potentes para pensar
nas relações geracionais. Em certa ocasião, uma pergunta é feita à pesquisadora:
“Tu já comeu bolinho de bochechinha”? Após a resposta indicar desconhecimento, a
explicação: “Tu não sabes?! Ué... é um bolinho feito da bochecha do peixe”. Interpe-
lações desta natureza mostram conhecimentos sobre pratos típicos, ao mesmo tem-
po indicam o estranhamento à pesquisadora e sua capacidade de ressignificação,
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isto é, a interpretação criativa construída pelas crianças em relação às informações
que capturam do mundo adulto. É um processo que ultrapassa a imitação, mas a
apropriação de informações de forma inventiva, produzindo seus próprios conheci-
mentos. O relato traz elementos da cultura produzida pelas crianças, a qual, imer-
sa na espiral cultural, definida pelas atividades e saberes da pesca artesanal e da
vida campesina, evidenciam a mobilização de seus saberes como grupo geracional
pertencente à sociedade, neste caso, à Capilha.
O caminhar com as crianças tornou possível capturar nuances de suas relações
com outros adultos da localidade, o que mostrava os conhecimentos delas sobre as
práticas sociais cotidianas. Em certo percurso, uma das crianças, que andava de
bicicleta, toma distância do grupo que está a pé. Minutos depois, sua bicicleta é
avistada em frente a um pequeno comércio. O grupo interrompe a caminhada e
fica à espera do colega que, instantes depois, vem eufórico ao encontro dos colegas
dizendo: “Por isso que é bom o cara ser respeitador e conhecer todo mundo. Fui na
venda saber quanto custava um chiclete e o J. estava lá. Me disse que eu podia
pegar quantos chicletes eu quisesse, mas eu não quis. Aí ele falou: pega, pega,
isso é coisa de brother. Então peguei um só”. A fala revela valores que as crianças
percebem como brechas, as quais possibilitam suas inserções no grupo dos adultos.
Situações como esta mostram aspectos das relações intergeracionais, explicitando
a reinterpretação que as crianças fazem quanto aos valores e modos de organização
social dos adultos dessa comunidade, em que respeito e conhecimento de todos que
ali moram são importantes e são por elas entendidas como estratégias de inclusão,
que, então, são recompensadas por seu comportamento.
Entender a cultura das crianças significa reconhecer que elas não produzem
de forma isolada as relações que estabelecem com o local e as pessoas que ali vi-
vem. São produções culturais resultantes das interações e das interpretações de in-
formações decorrentes do contato com os adultos, o que as ajudam a construir uma
nova leitura do contexto em que vivem. A fala ilustra que elas sabem e reconhecem
que o respeito é um modo de estar incluso no grupo dos adultos e de ser aceito como
igual, um brother, no caso da comunidade em que vivem.
Em outro momento de caminhada duas crianças se distanciam do grupo e
mais à frente agacham-se à margem de um pequeno açude para observar duas
tartarugas. Quando o grupo todo se aproxima, uma das crianças que observava
os animais conta sobre uma situação vivida com os amigos, no mato, próximo ao
açude. “Nesse mato dizem que tem bicho estranho, com asa e cor de tigre. Eu e
meus amigos viemos aqui e não achamos nada. Reviramos todo mato”. Em poucos
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instantes, uma exclamação é feita, em tom meditativo: “É... aqui na Capilha tá
aparecendo coisas estranhas! Tem gente caminhando, pra lá e pra cá... Aqui era
calmo. Agora tá mudando. No verão é que fica pior, vem gente de fora, de carro,
acampar com música alta e ficam passando toda hora aqui. Até fazem das árvores
de banheiro”.
Diante de práticas distintas dos costumes e hábitos locais, as crianças es-
tranham pessoas desconhecidas em seu modo agirem, descrevendo seus com-
portamentos como contrários ao jeito de viver na Capilha. “Aqui todo mundo se
conhece, é bem calmo, só quando vem gente da cidade para descansar que eles
ligam o som alto”. Elas não estão passivas aos acontecimentos ao seu redor, bem
como às informações e conhecimentos que permeiam suas vidas; seus pontos de
vista revelam aspectos atentos à imposição cultural, como ouvir música alta, de
-
monstrando sentimentos de desvalorização e desrespeito aos seus modos de ser e
estar na Capilha.
O contexto é produto e produtor das vivências das crianças, “é o elo da união
entre as categorias analíticas dos acontecimentos macro-sociais e micro-sociais”,
pois refere um “espaço e um tempo cultural e historicamente situado” (GRAUE;
WALSH, 2003, p. 25). O contexto se apresenta como elemento revelador do que
constitui o movimento e a dinâmica do cotidiano da Capilha. Nesse sentido, as
caminhadas se apresentaram como uma ferramenta capaz de acercar-se das inte-
rações sociais e culturais entre as crianças, a comunidade e seus visitantes.
Desse processo algumas aprendizagens para os processos de investigação com
crianças podem ser destacadas. Entre elas está a relevância do pesquisador estar
atento, de ser um observador sensível ao que se configura ao seu redor. É necessá-
rio ser sensível às pistas que o contexto e as crianças oferecem nos momentos de
interações ou até mesmo nos momentos de silêncio. Ao realizar as caminhadas, foi
possível entender com maior amplitude que os dados “não andam por aí a espera de
serem recolhidos” (GRAUE; WALSH, 2003, p. 94), mas decorrem da sensibilidade
do pesquisador de percebê-los, especialmente quando se está imerso no campo de
investigação e se está disposto à participação, às interações e às relações que são
tecidas com os colaboradores da pesquisa.
As caminhadas abriram brechas para que as crianças demonstrassem sua
criatividade e capacidade de falar e refletir sobre as dinâmicas e práticas do coti-
diano na Capilha. Assim, com as caminhadas o ato de investigar pode ser “[...] con-
cebido como uma série de contextos encaixados uns nos outros, incluindo as pers-
pectivas do pesquisador sobre a investigação, a teoria, e, neste caso, as crianças; o
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papel negociado com/pelos participantes; e as relações que se estabelecem ao longo
do tempo” (GRAUE; WALSH, 2003, p. 94). Com base nesse conjunto de elementos
articulados é possível compreender as relações produzidas entre crianças e adultos
sobre as práticas culturais em sua comunidade.
Durante as caminhadas também foi possível experimentar a construção do
respeito e da ética na pesquisa. Um fato ocorrido em um dos momentos de ob-
servação na escola, próximo ao término da aula, elucida o respeito e a ética como
aspectos necessários à investigação com crianças. Um pequeno grupo de crianças
se aproxima e uma fala é dirigida à pesquisadora: “Hoje tá chovendo. Então tu não
vais com nós porque estamos de bicicleta!”. Acompanhar as crianças durante um
dia de chuva atrapalharia seu percurso de retorno até suas casas, pois não permi-
tiria que voltassem com maior rapidez e agilidade.
Diante dos aspectos assinalados, a pesquisa com crianças requer o exercício
contínuo de respeitar o espaço e o tempo das crianças e com elas negociar acordos
e atividades relativas aos encaminhamentos metodológicos. Fazer pesquisa com
crianças significa que, enquanto pesquisadores, necessitamos aprender a com-
preender e a respeitar suas demandas e necessidades. O caminhar com as crianças,
como prática de pesquisa, proporcionou condições para descortinar os mundos in-
fantis vivenciados em contexto campesino e pesqueiro. Ainda, ajudou a compreen-
der as reinterpretações que as crianças realizam sobre a cultura local e o mundo
adulto. Como proposta metodológica, as caminhadas permitiram que a geração de
dados acontecesse em conjunto com as crianças e, inclusive, contemplasse suas
demandas ou seguisse suas sugestões, o que redimensionou o próprio lugar da
pesquisadora como gestora central da pesquisa. Desse modo, as caminhadas, como
ferramenta de observação e de interação com o universo infantil, ampliam os atos
investigativos na medida em que incorporam e inserem as percepções e os signi-
ficados (re)produzidos pelas crianças sobre o seu pertencimento ao local em que
vivem, em suas múltiplas dimensões: social, econômica, cultural.
Algumas pistas para seguir caminhando
A expressão “Tem gente caminhando pra lá e pra cá” ilustra diferentes pontos
de vista e interpretações possíveis para pensar pesquisas que envolvem a partici-
pação das crianças. Caminhar pra lá e pra cá com as crianças permite reconhecer
e acercar-se de suas formas de mobilidade e interpretação sobre os eventos cotidia-
nos. Para caminhar com as crianças é preciso estar disposto a lançar mão de ações
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que valorizam a sua participação. É necessário querer ouvi-las e respeitá-las em
seus tempos de comunicação e de silêncio; sobretudo, é preciso aprender a reconhe-
cer que há outras lógicas por elas mobilizadas para explicar as formas de estar no
mundo e de viver em suas comunidades.
“Caminhar pra lá e pra cá” na pesquisa com crianças também requer des-
pir-se de verdades a serem alcançadas e encerradas conceitualmente para assim
compreender o que significam atividades como “capturar peixe” e pertencer a um
determinado grupo, isto é, ser um “brother”, sentidos que estão intimamente rela-
cionados com o lugar em que se atua como agente cultural.
Os sentidos sobre “há gente caminhando pra lá e pra cá”, tomando a referência
feita aos visitantes e às pessoas desconhecidas à comunidade, conforme relatado
pelas crianças, mostram o estranhamento e o enfrentamento entre grupos que se
relacionam em determinadas situações, os quais com base em suas diferenças e
pertenças culturais atribuem significados e modos de agir distintos, por vezes, di-
vergentes. O posicionamento das crianças, quando questionam tal situação, leva-
-nos a compreender o seu protagonismo social ao realizarem a leitura do mundo e
de seus contextos.
As caminhadas também permitiram observar o protagonismo das crianças por
meio de suas falas e conhecimentos sobre as atividades laborais de suas famílias,
mostrando-se participativas e sabedoras da cultura a que pertencem. Nesse sen-
tido, as caminhadas possibilitaram experimentar o que na abordagem etnográfica
é fundamental, isto é, as significações produzidas pelas crianças “no seu espaço, o
espaço numa comunidade alargada” (GRAUE; WALSH, 2003, p. 31).
Os aspectos reunidos apontam as caminhadas como uma ferramenta metodo-
lógica que permitiu pensar na “reprodução interpretativa” que as crianças reali-
zam de forma inventiva e criativa, constitutiva de suas próprias teias de culturas
e saberes. Teia produzida pelas crianças por meio da participação em locais e do-
mínios institucionais, com seus pares e com os adultos. As relações produzidas por
grupos geracionais possibilitam o trânsito de culturas, de saberes e de experiências
salientes às culturas infantis, e a sua comunicação e entrecruzamentos são consti-
tutivos das culturas infantis.
A aposta em práticas metodológicas que valorizem abordagens epistêmicas
inscritas em campos interdisciplinares, capazes de amparar a realização e a con-
solidação de pesquisas com crianças, e não sobre ou para, é tarefa necessária aos
investigadores do campo educacional. Para isso, é preciso buscar e construir novas
ferramentas metodológicas que priorizem as crianças como agentes dos estudos e
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processos investigativos. Nesse sentido, as caminhadas, além de favorecerem uma
maior aproximação às culturas infantis, também ofereceram condições para a es-
cuta sensível às suas vozes, na diversidade que as compõem, em suas condições de
existência e de (re)produção cultural a partir do cotidiano campesino e pesqueiro
em que vivenciam suas experiências infantis.
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v. 27, n. 3, Passo Fundo, p. 918-932, set./dez. 2020 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Diálogo com educadores
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Carlos Rodrigues Brandão
O dossiê da Revista Espaço Pedagógico (REP) “Pedagogia do oprimido – 50
anos” tem tudo a ver com Freire e Brandão. São personagens que se encontram,
dialogam, militam, educam, por uma educação capaz de reconhecer o potencial ine-
rente às práticas populares, tão desprezadas pelos grupos dominantes. Os depoi-
mentos de Brandão vêm carregados de emoção, sentimentos, força transformadora
e anseios por libertação dos oprimidos. Quem é, então, Carlos Rodrigues Brandao?
Ele é licenciado em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro (1965); mestre em antropologia pela Universidade de Brasília (1974);
doutor em ciências sociais pela Universidade de São Paulo (1980); livre docente em
antropologia do simbolismo pela Universidade Estadual de Campinas. Realizou
pós-doutorado na Universidade de Perugia (Itália) e na Universidade de Santiago
de Compostela (Espanha). Atualmente é professor colaborador no Programa de
Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Estadual de Campinas (Uni-
camp), professor colaborador do POSGEO da Universidade Federal de Uberlândia
(UFU) e professor visitante da Universidade Estadual de Goiás. Desenvolveu pes-
quisas em antropologia, com ênfase em antropologia camponesa, antropologia da
religião, cultura popular, etnia e educação, com foco na educação popular. Doutor
honoris causa pela Universidad Nacional de Lujan (Argentina), professor emérito
da Universidade Federal de Uberlândia e da Universidade Estadual de Campinas.
Ele produziu e publicou dezenas de livros, capítulos de livros e artigos em pe-
riódicos. Suas principais publicações são as seguintes: O que é educação; Pesquisa
participante; Repensando a pesquisa participante; O que é método Paulo Freire;
Educação popular; Os deuses do povo: um estudo sobre a religião popular; A educa
-
ção popular na escola cidadã; O que é folclore?; A pergunta a várias mãos; Identi-
dade e etnia: construção da pessoa e resistência cultural; A cultura na rua; Plantar,
colher, comer: um estudo sobre o campesinato goiano; O educador: vida e morte;
O Divino, o Santo e a Senhora; Reflexões sobre como fazer trabalho de campo; Em
campo aberto: escritos sobre a educação e a cultura popular; Sacerdotes de viola; Os
caipiras de São Paulo; Memória do sagrado: estudos de religião e ritual; Comunida
-
Recebido em 04/02/2020 – Aprovado em 04/02/2020
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i3.12391
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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des aprendentes; O trabalho de saber: cultura camponesa e escola rural; Lutar com
a palavra: escritos sobre o trabalho do educador; Ser católico: dimensões brasileiras
– um estudo sobre a atribuição de identidade através da religião; Cultura rebelde
escritos sobre a educação popular ontem e agora; Memória Sertão: cenários, cenas,
pessoas e gestos nos sertões de João Guimarães Rosa e de Manuelzão; Fronteira da
: alguns sistemas de sentido, crenças e religiões no Brasil de hoje; Aqui é onde eu
moro, aqui nós vivemos; Saber e ensinar: três estudos de educação popular; Peões,
pretos e congos; O ardil da ordem: caminhos e armadilhas da educação popular; De
Angicos a Ausentes: 40 anos de educação popular; A crise das instituições tradicio
-
nais produtoras de sentido; Diário de campo; Cavalhadas de Pirenópolis: um estudo
sobre representações de cristãos e mouros em Goiás; Pensar a prática: escritos de
viagem e estudos sobre a educação; Da educação fundamental ao fundamental na
educação; A participação da pesquisa no trabalho popular; A comunidade tradicio
-
nal; De tão longe eu venho vindo: símbolos, gestos e rituais do catolicismo popular
em Goiás; Os Guarani: índios do Sul-religião, resistência e adaptação; A educação
popular na área da saúde; As flores de abril: movimentos sociais e educação am
-
biental; O festim dos bruxos: estudos sobre a religião no Brasil; Círculo de cultura;
A questão política de educação popular; O difícil espelho: limites e possibilidades
de uma experiência de cultura e educação; Crença e identidade: campo religioso e
mudança cultural; Ética e antropologia; Aprender o amor: sobre um afeto que se
aprende a viver; Paulo Freire, o menino que lia o mundo: uma história de pessoas,
de letras e de palavras; Vocação de criar: anotações sobre a cultura e as culturas po
-
pulares; Paulo Freire: educar para transformar; “No rancho fundo”: espaços e tem-
pos no mundo rural; Campesinato goiano; Territórios do cotidiano: uma introdução
a novos olhares e experiências; Os caminhos cruzados: formas de pensar e realizar
a educação na América Latina; A educação como ato político partidário; As faces da
memória; Caminhos da Educação Integral no Brasil: direito a outros tempos e espa
-
ços; Participatory research and participation in research: a look between times and
spaces from Latin America; Comunidade tradicional: conviver, criar, resistir; Sobre
a tradicionalidade rural que há em nós; O lugar da vida – comunidade e comuni
-
dade tradicional; Colcha de retalhos: estudos sobre a família no Brasil; Soletrar a
letra P: povo, popular, partido e política a educação de vocação popular e o poder de
estado; Estructuras sociales de reproducción del saber popular; O voo da arara-azul:
escritos sobre a vida a cultura e a educação ambiental.
Como se pode ver, Brandão é um autor que pesquisa e publica trabalhos em
sintonia profunda com a vasta produção de Paulo Freire. Além disso, foi um in-
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terlocutor e amigo pessoal de Freire. Com ele, desenvolveu inúmeros projetos e
investigações sobre a cultura popular e a educação libertadora. Tudo isso justifica
a sua indicação para participar deste diálogo com educadores. Além de estar muito
presente com sua produção intelectual, Brandão esteve várias vezes trabalhando
na Universidade de Passo Fundo, particularmente na Faculdade de Educação e no
Programa de Pós-Graduação em Educação.
REP – Contextualize seus vínculos pessoais e profissionais com Paulo
Freire.
Fui colega de universidade, na Unicamp, de duas pessoas notáveis de cuja
amizade aprendi muito. E mais sobre a vida do que sobre teorias. Uma delas foi
Rubem Alves, com quem convivi por mais de quarenta anos. O outro, Paulo Freire,
com quem convivi desde o seu retorno ao Brasil até sua morte. A primeira viagem
dele para uma conferência pública, após o seu retorno, foi em Goiânia, em 1989, e
fomos e voltamos juntos.
Convivi com Paulo Freire na Unicamp e fora dela, entre encontros, congressos
e eventos semelhantes. Viajamos juntos, inclusive para fora do Brasil. Publiquei
alguns artigos de Paulo em livros como: O educador: vida e morte, A questão polí-
tica da educação popular e Pesquisa participante.
Desde a minha convivência com os dois – eles como docentes da Faculdade
de Educação, eu como antropólogo e docente do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas –, prefiro sempre dizer, a quem busca contrapor um ao outro, que Rubem
Alves é o “educador do gesto poético”, enquanto Paulo Freire é o “educador do ato
político”. Como eu procuro viver e aplicar a poesia também na pedagogia, dialoguei
com felicidade com um e com o outro. Em uma ocasião fomos nós três na TV Cultu-
ra de São Paulo, e diante das câmaras dialogamos, sem ninguém nos interromper,
durante três horas. Foi um momento memorável. A fita de vídeo em que nosso
encontro foi gravado perdeu-se e nunca mais foi encontrada. Procurem!
E penso que no momento os educadores que mais fazem interagirem os dois
são Marcos Arruda e Miguel Arroyo.
REP – Como você avalia o contexto e o momento da elaboração da
obra de Freire? Que nexos existiam entre a pedagogia de Freire e os mo-
vimentos de educação popular da época?
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Há alguns fatos importantes, e alguns deles de algum modo andam meio es-
quecidos hoje em dia. Primeiro: Paulo e sua primeira equipe, no Nordeste, elabo-
raram não um “método de alfabetização”, mas todo um “Sistema Paulo Freire de
Educação”, que antecipava em 1960 uma “Universidade Popular”. Ver os escritos
de Paulo Freire, Jarbas Maciel, Jomard Muniz de Brito e Aurenice Cardoso, no
indispensável livro coordenado por Osmar Fávero: Cultura Popular e educação
popular – memória dos anos sessenta. Segundo: eles trabalharam no Serviço de
Extensão Comunitária da então Universidade do Recife durante um tempo ime-
diatamente anterior ao golpe militar (1960/março 1964) envolvidos com a educação
através de algo que nos unia e fazia convergir pessoas e grupos de diversas voca-
ções: a “cultura popular”.
Paulo e sua equipe coordenam um Primeiro Encontro Brasileiro de Movimen-
tos de Cultura Popular no Recife, em 1962. O próprio Movimento de Educação de
Base (CNBB/MEC) em que trabalhei identificava-se como um dos MCPs. Tercei-
ro: em embrião ainda, todas as iniciativas emancipadoras reunidas nos MCPs e
realizadas através dos Centros Populares de Cultura foram desarticuladas pelos
militares. Inclusive a grande Campanha Nacional de Alfabetização que seria coor-
denada pelo Paulo. Quarto: Paulo não empregava a expressão “educação popular”.
Mas escrevia: “Cultura Popular”, desde Pedagogia do Oprimido. Um fato essencial
e esquecido é que, tomando como fundamento as ideias geradoras de Paulo Freire,
tendo em Pedagogia do Oprimido um livro fundador, todo o movimento, primeiro
brasileiro e depois plenamente latino-americano, ao redor da educação popular “ex-
plode” e expande-se em toda a América Latina justamente no período em que Paulo
está no exílio e escreve mais sobre e para a África do que para a América Latina.
Toda uma geração de mulheres e de homens intensamente vinculados à educação
popular partem do primeiro legado de Paulo Freire, e são mobilizados, encontram-
-se, escrevem, militam e, enfim, recriam a educação popular, inclusive nos países
do Cone Sul sob ditadura: Brasil, Argentina, Chile e Uruguai. Quinto: ao longo de
todo aquele difícil e muito fecundo período, sobretudo nos sessenta-setenta, é ilusó-
rio imaginar a educação popular freireana “explodindo” sozinha. Tendo surgido no
bojo dos MCPs do Brasil dos anos sessenta (“a década que não acabou”), e seguindo
ativa e insurgentemente crescente nos anos oitenta, somente se pode compreender
em sua integridade “o que aconteceu com a educação popular”, quando ela é coloca-
da em uma sequência interativa de iniciativas e de movimentos sociais populares,
e de assessoria direta a eles.
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A educação popular desdobra-se na investigação ação-participativa, e mobiliza-
-se junto com os sindicatos rurais e, depois, de trabalhadores de fábricas. Ela desen-
volve-se junto com uma fecunda releitura marxista latino-americana; com o teatro
do oprimido; com a música, com a poesia e com outras artes de protesto; ela antece
-
de a teologia da libertação e a política da libertação, assim como outras semelhantes
propostas de ação, frentes e agremiações emancipadoras e descolonizadoras.
Para se ter uma ideia de tudo, quero recordar aqui um pequeno e significativo
fato. Quando o ainda incipiente Partido dos Trabalhadores nos anos 80 é criado, foi
solicitado a uma equipe que elaborasse um documento sobre a educação. A equipe res
-
ponsável foi coordenada por Moacir Gadotti e incluiu Paulo Freire, Demerval Saviani
(que não se reconhecia como um “educador popular freireano e iria criar a sua pedago
-
gia histórico-crítica) e Carlos Brandão. Busquem um dos números dos velhos dos Ca-
dernos do Trabalhador, do PT. Sexto: diferente de Frei Betto, de Betinho, de tantas e
tantos outros, que nos apresentávamos então como “militantes cristãos”, Paulo Freire
nunca se assinou “cristão” ou “marxista”. Há entrevistas dele em que ele comenta
isto. Somente se pode entender o advento de tudo o que listei acima, quando se pensa
que desde o começo dos anos sessenta nunca houve uma filosofia, uma ideologia ou
um projeto político único, tomado e seguido como diretriz da educação popular e de
tudo o que houve junto com ela e depois do advento dela. Tanto ela quanto tudo o mais
surge de uma interação (mas não uma integração) entre pessoas e agremiações que
chamarei aqui de “humanistas laicas” (Paulo Freire); de “humanistas cristão” (Frei
Betto, eu, Leonardo Boff, Rubem Alves, eu); e de marxistas (entre várias tendências).
REP – Você foi um dos principais divulgadores da obra de Freire na
América Latina. Conte um pouco desta sua aventura pedagógica com a
Pedagogia do Oprimido.
Penso que existem outros fatos pouco conhecidos e muito pouco lembrados so-
bre Paulo e o Pedagogia do Oprimido. Paulo Freire escreveu e concluiu o Pedagogia
do Oprimido no exílio, entre a Bolívia, o Chile e os EUA. Escreveu todo o livro a
mão, e em momento algum, repito, escreveu nele a expressão “educação popular”.
Ele falava de pedagogias (“do oprimido”, “da esperança”, “da autonomia”, etc.). E
falava de educações, que ele opunha à “bancária”: “educação libertadora”, “emanci-
padora”, “problematizadora”, “conscientizadora”, etc.
De acordo com uma exaustiva pesquisa sobre a educação popular na América
Latina, realizada por Oscar Jara para a sua tese doutoral defendida na Universi-
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dade de Costa Rica, a primeira vez em que em termos mais atuais (anos sessenta-
-setenta) esta expressão aparece escrita com todas as letras em um livro, será em
um livro meu, escrito entre o final dos sessenta e começos dos setenta. Foi quando
em nome do movimento: Igreja e Sociedade na América Latina, eu saí viajan-
do por países do continente, a partir de julho de 1969, difundindo ideias freireanas
e o “Método de Alfabetização Paulo Freire”.
O livro que escrevi saiu inicialmente em Espanhol, e, somente dez anos mais tar-
de, em Português. Saiu pela Editora Siglo XXI, da Argentina. Por razões de minha se-
gurança, em tempos de ditadura no Brasil, saiu com o nome de um teólogo uruguaio,
Júlio Barreiro, já falecido. Ele se chama: Educación popular y proceso de concientiza
-
ción. Há algum tempo atrás estava na 16ª edição, publicado agora na Espanha.
Relembro que Paulo escreveu o seu livro fundador de tudo o que veio a aconte-
cer depois, a mão. Ele o enviou por correio a Jaques Chonchol, no Chile, com uma
humilde carta. Recentemente o Instituto Paulo Freire e outras agremiações
publicaram a versão fac-símile do manuscrito. Está em segunda edição e fora de
comércio, por decisão da família.
Na versão original há um esquema de Paulo. O único que ele desenhou. E
um dos seus lados esquematiza e representa a “teoria da ação revolucionária”. Os
esquemas desenhados por ele nunca saíram nas edições impressas.
Lembro que desde outros países nos chegavam cópias mimeografadas do Pe-
dagogia do Oprimido. Elas eram lidas às escondidas por nós, e se tornaram a base
de tudo o que veio a acontecer e começou a ser difundido entre nós, antes de serem
reunidas em um livro.
Penso que tudo o que veio a ser criado e partilhado depois, em todo o Conti-
nente, não teria existido sem as ideias germinais do Pedagogia do Oprimido e do
desdobramento das ideias de Paulo, a partir de seus outros escritos, inclusive.
Vale a pena recordar que antes de sair como livro, o Pedagogia do Oprimido
saiu em grande parte desdobrado em artigos, na revista latino-americana Cristia-
nismo y Sociedad, do ISAL. Procurem, é um documento histórico.
REP – Que concepções pedagógicas você considera centrais na Peda-
gogia do Oprimido?
Um dos pontos de convergência entre Paulo Freire e nós, militantes cristãos
da Ação Católica, que antecede o movimento ecumênico militante (ISAL na Améri-
ca Latina e o Centro Ecumênico de Documentação e Informação – CEDI, e outros,
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no Brasil), assim como a teologia da libertação, é que nós partíamos de uma muito
próxima “concepção dialógica” da comunicação humana, do processo da história, da
ação política e da atuação pedagógica.
Os companheiros marxistas partiam de uma “concepção dialética”, entre di-
ferentes versões, de acordo com cada tendência (Tanto Althusser, quanto Antô-
nio Gramsci e Mao Tse-Tung eram muito lidos e citados, inclusive por militantes
cristãos). A própria ideia de “dialética”, que nos vem da Grécia, e que depois do
marxismo foi assumida, pensada e proposta por Paulo Freire, em direção a um
distante horizonte de algum modo comum com o marxismo, inclusive a partir de
uma proximidade no que tocava classes sociais e seus enfrentamentos no processo
da história. No entanto, política e pedagogicamente ele buscava chegar a este hori-
zonte por caminhos diferentes.
Creio que sem descer a profundidades pedagógicas, podemos pensar que mais
próximo a educadores e militantes cristãos-freireanos do que dos marxistas, suas
ideias poderiam resumir-se assim:
Cada pessoa é uma fonte original e única de uma forma própria de saber, e
qualquer que seja a qualidade deste saber ele possui um valor em-si, por represen-
tar uma experiência individual e irrepetível de uma vida e de sua partilha na vida
social. Este é o fundamento humanista e mesmo ontológico do diálogo.
Assim também cada cultura representa um modo de vida e uma forma origi-
nal e autêntica de ser, de viver, de sentir e de pensar, de uma ou de várias comuni-
dades sociais. Cada cultura só se explica desde o seu interior para fora, e os seus
componentes “vividos-e-pensados” devem ser o fundamento de qualquer programa
de educação ou de transformação social.
Ninguém educa ninguém, mas também ninguém se educa sozinho, embora
pessoas possam aprender e se instruir em algo por conta própria. As pessoas, como
seres humanos, educam-se umas as outras e mutuamente se ensinam-e-aprendem,
através de um diálogo mediatizado por mundos de vivência e de cultura entre seres
humanos, grupos e comunidades diferentes, mas nunca desiguais.
Assim, não existem educadores individuais ou coletivos (como “o Partido”). Do
mesmo modo como não é possível pensar ciências da natureza e da história pré-es-
tabelecidas e pedagogicamente passíveis de serem ortodoxamente tomadas como
ponto de partida exclusivo de qualquer docência.
Alfabetizar-se, educar-se (e nunca: “ser alfabetizado” ou “ser educado”) significa
algo mais do que apenas aprender a ler palavras e desenvolver certas habilidades ins
-
trumentais. Significa aprender a ler, crítica e criativamente, “o seu próprio mundo”.
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Significa aprender, a partir de um processo dialógico em que importa mais o
próprio acontecer partilhado e participativo do processo, do que os conteúdos com
que se trabalha, a tomar consciência de si-mesmo (quem de fato e de verdade sou
eu? Qual o valor de ser-quem-sou?); tomar consciência do outro (quem são os outros
com quem convivo e partilho a vida? Em que situações e posições nós nos relacio-
namos? E o que isto significa?); e tomar consciência do mundo: o que é o mundo em
que vivo? Como ele foi e segue sendo socialmente construído para haver-se tornado
assim como é agora? O que nós podemos e devemos fazer para transformá-lo.
REP – A pedagogia da obra Pedagogia do Oprimido é um método de
ensino ou uma concepção de educação?
Vejamos bem. Há pedagogias que partem da educação. E há pedagogias que
chegam à educação. As primeiras formulam esta pergunta fundadora que parte
desde a educação: “o que ensinar e como ensinar para que as pessoas aprendam
bem o que precisam aprender a saber para viverem (produtivamente, segundo a
versão mais “empreendedoras”) as suas vidas?”.
As segundas formulam uma sequência de perguntas encadeadas que deságuam
na educação: “que ser humano e para que vida e destino formá-lo”; “Se este ser é
essencial e existencialmente um ‘ser social’, para que sociedade e para a construção
humana de que sociedades formá-lo?”; “Se a vida em sociedade que ele vive e com
-
parte com os outros é uma vida significativa e significada através de uma cultura,
ou uma pluralidade de culturas, como formar homens para que através de suas
culturas eles criem, consolidem e transformem os mundos sociais em que vivem?”;
“consequentemente, qual pedagogia (ou quais pedagogias (pluriculturalmente) de
-
vem ser praticadas para realizar qual ou quais modalidades de educação?”.
Hoje, mais do que ontem, vivemos um tempo em que algumas “pedagogias di-
retas” pretendem erigir-se como um sistema de educação. E o fazem pelo caminho
mais perverso. Não por outro motivo profeticamente Paulo Freire as denominou
“educação bancária” em Pedagogia do Oprimido. Elas submetem tanto o ser hu-
mano em sua essência e em sua existência, quanto a comunidade social em que ele
vive a sua vida e o seu destino, a algo a cada dia mais imposto como uma realidade
social e, mais ainda, como a própria instância fundadora, ordenadora e gestora da
vida social.
Lembrei linhas acima que já em 1960, nos escritos da “equipe nordestina” de
Paulo Freire, o que foi proposto não era um “método de alfabetização”, mas todo
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um “sistema de educação”, com várias fazes ou etapas, chegando uma delas a uma
Universidade Popular.
Paulo, como alguém que partilha uma educação humanista associada a va-
riantes de uma pedagogia crítica, vai além de um “método” ou mesmo de uma
“concepção” de educação. Ele parte de uma concepção da pessoa humana como
criadora, construtora e transformadora do mundo social em que vive. E como um
ser situado não em uma história em que ele vive, mas desde uma história que cabe
a ele coletivamente construir.
Se me fosse pedido para resumir todo o pensamento fundador de Paulo Freire
em algumas poucas palavras, como breves sentenças de menos de uma linha cada,
eu escreveria isto:
Que ao ser humano seja dado:
Viver a sua vida
Criar o seu destino
Aprender o seu saber
Partilhar o que aprende
Pensar o que sabe
Dizer a sua palavra
Ousar transformar-se
Unir-se aos seus outros
Transformar o seu mundo
Escrever a sua história
REP – Você compara Pedagogia do Oprimido à Paideia Grega. Qual o
paralelo que existe entre estas duas obras?
No que eu considero o mais notável livro sobre a educação, Paideia – a forma-
ção do homem grego, de Werner Jaeger, há uma passagem misteriosamente pre-
sente na edição em Português e em Espanhol, e ausente na edição original em Ale-
mão. Nela Jaeger considera Platão o “primeiro educador popular”. E ele usa esta
expressão: “educação popular”. Duas palavras que, juntas, ao longo dos séculos e
de diferentes nações antecederam a “educação popular” dos anos sessenta-setenta.
A relação mais próxima entre os gregos clássicos e Paulo Freire, e nós, é que
é na Grécia anterior mesmo a Sócrates, por uma primeira vez a educação deixa de
ser uma pedagogia inamovível e reiteradora do consagrado, através de um ensino
pré-estabelecido e vivido mais como catequese do que como questionamento e diá-
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logo, e se transforma em “Paideia”. Em uma questão aberta. Em um território de
diálogos e debates. A educação tem a ver com a “formação da pessoa para a vida
social”, logo as perguntam essenciais não partem dela. Chegam a ela.
Então como Paulo Freire e nós nos anos sessenta, antes de pensar pedagogi-
camente “uma educação”, era necessário questionar antes e criticamente: formar
que pessoas, para ser quem, para o que, e em que mundo social? Razão pela qual
as educações que Paulo antepõe à “bancária”, não podem deixar de ser: “problema-
tizaras”, “questionadoras”, “conscientizadoras”.
REP – Um dos termos centrais da concepção de educação de Freire é
diálogo. Como você avalia a importância do diálogo na educação e qual o
desafio da educação dialógica no atual contexto da expansão da cultura
midiática?
“Diálogo” é uma palavra ao mesmo tempo substantiva e perigosa. Ela serve
tanto a Bolsonaro quanto a Lula. Serve ao pior poder e serve a quem busca liber-
tar-se dele. Serve à TV Globo e ao MST.
Em pedagogias tradicionais o diálogo quase sempre é apenas uma metodolo-
gia. Entre nós o diálogo é a porta de entrada da educação e também a de saída. Não
usamos didaticamente o diálogo para ensinar; ensinamos para que pessoas apren-
dam a se tornar dialógicas. Aprendam a dialogar com elas-mesmas (sem precisar
“fazer psicanálise”), com os seus outros e com o seu mundo.
Entrevejo com preocupação o momento atual dos usos da eletrônica na vida
cotidiana e na educação. E trago aqui um exemplo banal para tornar isto mais
visível. No passado, uma simples carta minha para Paulo Freire, para comunicar
a saída de um livro coordenado por mim com um artigo dele, deveria conter no
mínimo uma página e meia. E deveria conter sempre algo mais do que “uma no-
tícia”. Tenho cartas de pessoas amigas e de educadoras e de educadores, que são
pequenos artigos reflexivos sobre algum tema. Durante um ano e meio de namoro
com minha mulher cheguei a escrever muitas cartas. E algumas cartas com doze
a mais páginas. Páginas que mesclavam palavras de amor com reflexões sobre o
sentido de nossa vida no mundo.
E hoje? O que escrevemos? O que andamos escrevendo e com qual densidade
de memórias, de depoimentos, de pensamentos próprios, de longas confidências,
de “filosofias de vida” nós nos escrevemos hoje em dia? Durante quatro anos pes-
quisamos e escrevemos teses de doutorado com mais de 200 páginas, sabendo que
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bem poucas pessoas lerão o fruto de nosso trabalho (mestrei e doutorei cerca de 80
pessoas, desde 1980!).
Muito bem! E as minhas mensagens às pessoas de minha vida? O que escrevo
a elas? Com qual densidade de sentimentos, de palavras, de confidências nós nos
comunicamos? Quem, dentre as pessoas que estarão agora lendo isto, receberam
em sua vida pelo menos uma carta de amor de pelo menos uma página.
Paulo Freire, eu e tantas pessoas de nossos círculos convivemos tempos em
que algumas palavras que hoje parecem estranhas, como “ideias fora do lugar, ou
“palavras de outros tempos”, “velharias”, eram para nós palavras e semeaduras de
ideias para conversas até em uma mesa de bar. Palavras como: “compromisso com
a realidade”; “engajamento político”; “vida interior”; “visão de mundo”; “filosofia de
vida”; “ideal histórico”; “consciência histórica”. E por aí vai.
Afinal, nós, as pessoas do século XXI, estamos fazendo o quê? Pensando o
quê? Dizendo umas para as outras o quê? Amando o quê? Como? Com quais afetos?
Em nome de que devaneios, sonhos, propósitos? Através de que mensagens? Quem
ainda larga a “telinha” e ao longo de dias e dias se debruça sobre o Grande Sertão,
Veredas? Quem ainda não ouve, não digo Beethoven, mas Edu Lobo?
E mesmo Paulo Freire. Quem ainda lê “Paulo Freire por inteiro”? Em tempos
passados nós nos debruçávamos horas e horas sobre os seus livros. Longas e refle-
tidas leituras pessoais. Depois, debates e diálogos intermináveis. Hoje eu recebo
pela internet um Paulo Freire dissolvido em repetidas citações pequeninas, quase
sempre das mesmas passagens de algum livro seu. Para onde estamos indo nessa
pressa dispersiva toda? Para que lugar? Para que vida? Para que mundo?
REP – Em seus escritos e suas falas, três instâncias da ação humana
aparecem sempre entrelaçadas na educação: cultura popular, memória e mi
-
litância. Qual a influência da Pedagogia do Oprimido nesta sua concepção?
Creio já haver respondido antes. Aprendemos a pensar a educação como uma
dimensão da cultura destinada a transformar pessoas que transformem seus mun-
dos sociais de vida e de destino. Não apenas Pedagogia do Oprimido, mas tudo o
que se criou ao seu redor e depois de sua escrita e sua divulgação.
Ademais, trabalhei no Movimento de Educação de Base, o mais criativo e in-
teligente movimento de educação que conheci e conheço. Lá alfabetizávamos com
método e com arte, com palavras e com música. Uma de nossas cartilhas era toda
escrita em “Cordel do Nordeste”. Seu nome: “Mutirão”.
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Carlos Rodrigues Brandão
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Lembro que eu suas origens o trabalho pedagógico emancipador era vivido nas
salas de aulas, ao redor de um círculo, nas reuniões à sombra de uma árvore, num
teatro, em um palco com “música de protesto”. Militávamos cantando. Educávamos
poetando.
REP – Como você avalia as posições do governo Bolsonaro sobre Pau-
lo Freire e o que cabe aos educadores diante das críticas que são feitas ao
patrono da educação brasileira?
Tenho me preocupado pouco com o que o “governo Bolsonaro” (ou o desgoverno
daqueles que exercem de fato o poder no Brasil, tendo em Bolsonaro um pálido e pa
-
tético emissário oficial do governo). Uma razão é que eu sou antropólogo e justamente
agora estou, na beira dos 80 anos, deixando mais fora do foco a educação, e voltando
mais para o foco da cultura. Assim, como um velho peregrino que no fim da vida
retorna à casa de onde saiu, estou voltando da educação popular, a que me obriguei
por vocação política de presença e de militância, e estou me voltando para a cultura
popular, que é minha origem (inclusive no que toca à educação) e a minha vocação.
Outra, porque estou menos preocupado com “o que eles estão fazendo com a gen-
te” e mais ocupado com “o que a gente deve fazer com o que estão fazendo com a gente”.
Atravessei todos os anos da “ditadura militar”, parte como estudante e parte
como professor, mas, ao longo dela toda, como um pesquisador de culturas populares
(negros e camponeses) e um militante da educação popular, desde janeiro de 1964, vivi
e vivemos momentos muito difíceis, e para algumas e alguns de nós, terríveis mesmo.
Hoje recordo que tanto aqui no Brasil, como no Chile, na Argentina e no Uru-
guai sob ditaduras, nunca fomos tão criativos. Nunca lutamos tanto, nunca enfren-
tamos tanto, nunca fomos tão insurgentes e aguerridos, nunca cantamos, teatrali-
zamos, filmamos e poetamos tanto. Nunca resistimos, inventamos e criamos tanto.
É hora de voltar a isto! Menos crítica teórica boa para encontros acadêmicos,
e mais ação concreta junto ao povo e nas ruas. Menos mera resistência eletrônica e
mais respostas criativas por escrito ou nos círculos insurgentes.
As críticas a Paulo e a tudo o que gira ao redor de suas teorias e profecias de-
veriam ser previstas. Terrível seria se ele não fosse tão criticado por este governo,
e tão tentativamente (sem sucesso real algum) desconsiderado e posto à margem.
Acho que uma das maiores homenagens que um governo culturalmente re-
trógrado e imbecilizado, religiosamente fideísta, regido por princípios de crença e
prática do século XVII e politicamente servil ao extremo ao capitalismo em seu 4º
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Diálogo com educadores
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tempo de predomínio e hegemonia, está justamente no que estão buscando fazer
com a sua memória, ao invés de ignorar Paulo Freire ou, pior ainda, considerá-lo
até mesmo um aliado.
Vocês que me entrevistam sobre Paulo Freire são uma parcela da prova de que
quanto mais acusações a Paulo e tentativa de apagamento de seu nome aqui no
Brasil, tanto mais a sua presença é insurgente e assertivamente ativada em todo
o mundo. E não tanto a pessoa de Paulo, pois não se trata de defender um “mártir
injustiçado”, mas o seu inatacável legado. Não a pessoa de um alguém que morreu
e se foi, mas a memória do que ele criou. E, penso, trata-se de não tanto manter
“vivo e aceso o seu pensamento”, mas de sobretudo recriar, reinventar, superar
desde o seu legado e em seu nome.
REP – Quais são suas críticas acerca dos limites e das potencialidades
atuais da Pedagogia do Oprimido?
Conta Moacir Gadotti que quando ele e um grupo de educadores amigos re-
solveram criar o Instituto Paulo Freire, foram em grupo propor a ideia a ele. Paulo
teria ouvido, pensado e respondido: “Vejam, se for para me repetir, não vale a pena;
mas se for para me superar, então criem”. Foi criado.
Pedagogia do Oprimido foi escrito no final dos anos sessenta. Estamos no ano
2020. Paulo sempre foi um “homem conectivo”, como Moacir Gadotti sempre gostou
de lembrar. Nunca, em momento algum, ele criou algo que não fosse “em equipe”, e
a partir de ouvir os outros e acolher ideias pessoais ou coletivas, ditas ou escritas.
Isolar Paulo Freire como um pensador e um educador único e absolutamente
original é justamente conspirar contra a sua pessoa e as suas ideias. Desde os seus
primeiros escritos, ele esteve sempre situado dentro de uma equipe que pensava
e criava junco com ele. A partir da SEC da Universidade do Recife. Depois, no seu
exílio, quando ele criou com outros e outras exiladas o IDAC, e viveu a sua ação
intensamente desde esta equipe de pensamento e trabalho. Depois, as suas turmas
de alunos e equipes (bem mais na PUC de São Paulo do que na Unicamp). Final-
mente, até o fim de sua vida, nas equipes do Instituto Paulo Freire.
Penso que existe tanta ousadia e criatividade ao “redor de Paulo”, desde o co-
meço de tudo até sempre, do que “apenas em Paulo Freire”. Não existiria a educação
popular e todo o seu desdobramento sem Paulo Freire. Não existiria apenas com ele.
E seu apelo deverá continuar ecoando entre nós. Só seremos fieis a Paulo
Freire e a seu legado, se ao longo do tempo e no curso da história ousarmos dialogar
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com ele, ousando ir até para além dele. Era isto o que ele pedia a nós. É bem isto o
que ele espera de nós!
Deixo vocês com uma antiga e querida imagem. Um grande encontro de apoio
à Revolução Sandinista na Nicarágua. Terá sido em 1980 ou 1981. Nela está Paulo
Freire como ele sempre gostava de estar. Cercado de pessoas com quem dividia a
vida e os trabalhos como educador. Na foto somos todas e todos educadoras e edu-
cadores populares de diversos países da América Latina. Sentado, o que resolveu
abaixar a cabeça, sou eu.
Carlos Rodrigues Brandão, verão de 2020
Nota
1
O diálogo com Carlos Rodrigues Bandão contou com a colaboração do professor doutor Eldon Henrique
Mühl, professor da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universida-
de de Passo Fundo. Em nome da Revista Espaço Pedagógico (REP), o reconhecimento e o agradecimento
por esta importante contribuição.
ESPAÇO
PEDAGÓGICO
RESENHA
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Márcio Luís Marangon, Volnei Fortuna
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Paulo Freire mais do que nunca: uma biograa losóca
Márcio Luís Marangon
*
Volnei Fortuna
**
A presente resenha trata de uma apresentação do livro Paulo Freire mais do
que nunca: uma biografia filosófica, publicado no ano de 2019, pela Editora Ves-
tígio, do Grupo Autêntica, de Belo Horizonte. Nele, o autor Walter Kohan dialoga
sobre o que seria uma educação com características freireanas, compreendendo
inclusive o horizonte político da tarefa de educar, mas, principalmente, compreen-
dendo a educação baseada em cinco princípios basilares da vida e da educação
pensada por Freire – a vida, a igualdade, o amor, a errância e a infância.
O primeiro princípio é a vida. Com esse princípio, Kohan demonstra como
Freire dialoga sobre a conexão entre a dimensão da educação política e a dimensão
da educação filosófica, ambas articuladas à vida. Nesse contexto, pensa a educação
como forma de vida emancipada e transformadora, tocando-a e afetando-a politica-
mente, o que aumenta a intensidade do ato de viver a vida e seu sentido.
Para Kohan, Freire é um autor que foi se construindo no decorrer de sua vida
e que, nessa construção, foi mudando a forma de pensar – o que fica explícito na
especificidade de cada tempo e obra. Essa mudança, porém, faz com que a tentativa
de compreensão de sua caminhada e de suas influências filosóficas seja longa e
complexa. Freire incorpora pensamentos que vão desde a corrente filosófica mar-
xista revolucionária, passando por: teologia da libertação, existencialismo, fenome-
nologia, pedagogia crítica, escolanovista, personalista, até – nos últimos anos de
sua vida – a racionalidade neoliberal. A partir dessas leituras e produções, deixa
clara sua antipatia ao sistema neoliberal e sua simpatia pelo “pós-modernismo
progressista”.
*
Graduado em Filosoa e Pedagogia. Pós-Graduado em Gestão Educacional. Mestre e Doutor em Educação pela Uni-
versidade de Passo Fundo. Atualmente é professor e Coordenador Pedagógico na Rede Notre Dame. Orcid: http://
orcid.org/0000-0003-3020-4429. E-mail: mlmarangon@yahoo.com.br
**
Mestre em Educação e doutorando em Educação na Universidade de Passo Fundo. Atua no Colégio Salvatoriano
Bom Conselho, Passo Fundo, como Coordenador Pedagógico Pastoral, desenvolvendo processos formativos e pro-
jetos pedagógico-pastorais com educadores e estudantes. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3047-2300. E-mail:
fortunavolnei@gmail.com
Recebido em 04/05/2020 – Aprovado em 28/09/2020
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v27i3.12392
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A partir das análises de suas obras, fica clara também a conscientização intrin-
secamente associada à tradição fenomenológica, que carrega o propósito de abrir o
horizonte dos sujeitos diante da opressão e de suas posições na sociedade, para que
posteriormente façam um movimento de transformação. Para tanto, Freire traz a
indissociabilidade filosófica entre teoria e prática, reflexão e ação, pensamento e
vida, afirmando, em seu marxismo, a contemplação dos problemas da educação na
transformação da prática educativa: a educação não é a alavanca da transforma-
ção da sociedade, mas tem de se ter presente que, sem ela, a transformação não
acontece.
Por outro olhar, ao perceber que Foucault reflete sobre a “metafísica da alma”,
tendo a filosofia como forma ou sabedoria da vida e denominando-a de “estética da
existência”, sabe-se que o autor destaca a filosofia como problematização da vida,
como conhecimento, sistema de pensamento, atividade intelectual. Em Foucault,
uma vida filosófica é uma vida educadora: o que torna herói o sujeito da filosofia é
seu exemplo, que se dá pela sua vida. A vida “só pode ser vivida se inspira outras
vidas”.
Segundo Kohan, Freire acredita na tradição de vida educadora, política, ética
e heroica, disposta por Foucault através de Sócrates e os filósofos cínicos. Por isso,
parte do pressuposto do inacabamento, que abre um leque de possibilidades para
despertar no sujeito a passagem do estar-sendo para o ser-mais. Assim, a filosofia
de Freire consiste em fazer da vida um pensamento que luta contra as forças de
dominação existentes na sociedade, de modo que a leitura de suas obras abra ca-
minhos para a percepção da vida, bem como, para pensar a possibilidade de outra
escola e de outra educação.
O segundo princípio é a igualdade. De acordo com Kohan, Freire enfatiza a
igualdade como conceito que pressupõe a inexistência de superioridade e inferiori-
dade. A educação política subentende que todas as vidas valem igualmente, tanto
na individualidade quanto na coletividade. O conceito de igualdade, apresentado
por Freire em Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa,
por exemplo, afirma-se na ideia de que ninguém é superior a ninguém.
Concatenado à ideia de igualdade, a escuta, a amorosidade, o gosto pela vida,
pelo novo e a humildade são virtudes que demonstram a aceitação e o respeito à
diversidade. Destaca-se a humildade como virtude essencial aos sujeitos, perpas-
sando a ética, a política e a epistemologia, sendo assim, uma virtude pedagógica.
Já a igualdade, enquanto princípio ontológico, conecta-se à emancipação social dos
sujeitos. É um tema político, associado à dimensão econômica, social, cultural e
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educativa. Isso porque, na relação de desigualdade, a superioridade e a inferiori-
dade entre sujeitos quebram a possibilidade de diálogo e construção individual e
coletiva.
Seguindo essa lógica, é a inexistência de superiores e de inferiores que indica
a inexistência da desigualdade, ou seja, na igualdade existem somente sujeitos
iguais. Para Freire, essa lógica sugere algo que pode parecer dúbio: que os sujeitos
respeitem as diferenças, ao mesmo tempo em que compreendam o “outro” como
igual.
Essa mesma relação social é percebida também na dimensão educativa. Ha-
vendo vida superior e inferior na relação educador-educando, aufere-se obediência e
relação vertical, sem diálogo e nem escuta, constituindo uma educação tradicional.
Por isso, a educação libertadora não pode ser considerada uma questão de método,
mas um estabelecimento de relações epistemológicas e sociais diferentes, exigindo
compromisso para a abertura de horizontes educacionais que caminhem insisten-
temente para a emancipação. A hierarquia decorrente da educação tradicional é
incompatível com a igualdade desenvolvida pela educação problematizadora. No
entanto, é determinante que o educador ensine exercendo a liberdade, para que o
educando aprenda com ela. O educando livre não aceita educador autoritário, por-
que confia na própria capacidade intelectual para aprender. Entende que é igual
por ser diferente, e que pode, deve respeitar e ser respeitado nessa diferença.
Em meio a todo este processo, compreende-se que a emancipação que Frei-
re problematiza em seus escritos vai além da intelectual e cognitiva: ela precisa
atender também à complexidade social, econômica e política, à qual a educação
está intimamente associada. Emancipar, para o educador, significa proporcionar
aos sujeitos o dito da própria palavra. O educador emancipador, libertador, demo-
crático tem a responsabilidade de empoderar o educando à práxis, ao exercício da
autonomia.
Nota-se, então, que a igualdade – em Freire – é essencial e transversal para
uma política da relação pedagógica. O conhecimento entre educador e educando
não pode ser compreendido como hierarquizado pela posição em que cada sujeito
ocupa. Entre os sujeitos, existem valores epistemológicos diferentes, mas isso não
quer dizer que um tem legitimidade e outro não. Não existe desigualdade de co-
nhecimento, mas saberes diferentes que se complementam entre si e com o mundo.
Por isso, a escola não pode ser considerada pública quando desiguala os iguais ou
quando alguns estudantes podem mais que outros na relação pedagógica.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Paulo Freire mais do que nunca: uma biograa losóca
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A dialética freireana tem significância quando o ensino e a aprendizagem
ocorrem na medida em que todos são ouvidos e atendidos de igual para igual. Ao
ensinar, o educador aprende e, ao aprender, o educando ensina. A diferença é a
que alimenta a relação pedagógica assentada na igualdade, por isso, não deve ser
percebida como desigualdade. Esses aspectos tornam a relação pedagógica enri-
quecedora, contribuindo para transformação da vida e da sociedade.
O terceiro princípio é o amor, ou o entendimento de que educar é um ato
amoroso e de que o amor é também um ato político, de viver a vida para expandi-la
e nunca para reduzi-la. Para indicar o que é o amor, em Freire, o autor retoma
a vida de Sócrates, um mestre do amor. Segundo Kohan, Freire recria o enigma
(ou mistério) do Eros pedagógico apontado por Sócrates. Na obra Pedagogia do
Oprimido, por exemplo, o amor é um pilar, uma condição da verdade, por isso, ao
estabelecer essa forma de amor, demonstra que é diálogo enquanto expressão de
coragem e compromisso com os outros seres; é, também, um ato de compromisso
com a libertação dos oprimidos, pois buscar a libertação é entender que não é pos-
sível o amor quando há opressão e não liberdade. Assim, essa ideia do amor torna
o capitalismo inaceitável, principalmente porque, para Freire, o capitalismo torna
impossível amar de verdade.
A amorosidade é tão importante na pedagogia de Freire a ponto de ser mencio-
nada como uma condição essencial – e possível – para ser educador: se não houver
como amar, não há como educar, ensinar e aprender – eis o saber principal da edu-
cação. Quando se ama educar, se sabe encontrar, no tempo Chrónos, a suspensão do
tempo de escola como instituição, para habitar o tempo Skholé, espaço para tempo
livre. Por isso, o amor torna o tempo da escola tempo Kairós, o tempo da oportuni-
dade, o momento preciso em que a educação pode acontecer.
Nesse contexto, a amorosidade filosófica do educador não deve ser ingênua,
mas política, situada. É feita na luta, na resistência, no canto pelo direito de can-
tar, de amar e ser amado, de ensinar e de ser ensinado, de aprender e de ser apren-
dido. Exige luta, compromisso, ousadia. O amor precisa estar em defesa do direito
de amar e ensinar, na busca por um mundo mais amoroso. Precisa estar na defesa
do tempo Kairós, da Skholé.
Em sua forma de expressar seu amor pela educação freireana, Kohan pensa
na luta cotidiana do educador, nas péssimas condições de trabalho e salário, no des-
caso do poder público para com a educação pública, na repressão constante que os
educadores sofrem. Assim, sua forma de educar é amar questionando, dialogando,
pensando, aprendendo.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Diante disso, lembra Kohan, quando se fala em “expurgar a ideologia de Paulo
Freire”, fala-se em tentar expurgar uma ideologia do amor. Do amor à resistência
daquilo que nega uma educação para todos, àquilo que mascara e afasta a cons-
ciência dos problemas da educação na atualidade. Em sua última entrevista, lem-
bra Kohan, Freire afirma que gostaria de ser recordado como alguém que, “antes
de mais nada, amou profundamente tudo o que estava a seu redor”. Amou a vida
como expressão primeira e última de sentido para uma presença amorosa no mun-
do, fazendo sempre o que queria fazer com uma única condição: que a tentativa
fosse amorosa.
O quarto princípio é a errância. Na pedagogia de Freire, um educador é al-
guém que se desloca, fisicamente e cognitivamente, e assim o faz para mostrar que
o mundo é aberto e pode sempre ser de outra maneira. Não é algo que pode ser
antecipado, mas precisa ser construído.
Para Kohan, Freire é um mestre errante nos dois sentidos do verbo errar: pri-
meiro, porque anda por mais de cem cidades dos cinco continentes, percorrendo os
cantos mais inóspitos, desolados, desatendidos do mundo; segundo, no sentido de
que, como ser humano, erra bastante, equivoca-se, e não tem vergonha disso, pois
este é um princípio pedagógico: errar faz parte da aventura de conhecer e conhecer-
-se, de se rever e se aperfeiçoar. A boniteza do ato pedagógico de Freire também se
dá, portanto, pela sua condição de humano errante. Ele não se abate com os erros,
sabe que fazem parte da autoconstrução. Por isso, faz desses erros percebidos um
motivo para errar no outro sentido do verbo: abre-se para vagar, para se deslocar,
para viajar para dentro e para fora de si, mexendo-se, recriando-se.
Para Kohan, nessas circunstâncias, o erro (como errância) se mostra um prin-
cípio pedagógico em Freire, pois o principal inimigo político é o fatalismo, a con-
vicção de que “as coisas não podem ser de outra maneira”. Visto por esse ângulo, o
entendimento da errância abre o porvir, a possibilidade de fazer diferente e melhor.
Abre a ideia de que, como humanos, somos um projeto da mesma forma como temos
projetos para o mundo. E da mesma forma que os projetos do mundo, o nosso pro-
jeto é construído de acertos e erros.
Sendo assim, a educação precisa estar ancorada na compreensão crítica e dia-
lógica de que os seres humanos são um projeto em constante transformação, por
isso, só tem sentido se de fato se crê que o futuro está aberto. Quem não entende
que é humano, erra, e educa seres errantes, é melhor que se dedique a outra coisa
que não a de educar.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Isso significa que a educação só faz sentido quando o sonho político nasce du-
rante ou depois da prática educativa, sendo uma política educacional que confronta
o status quo, visto que este impede a errância e a evolução. Claro que o educador
dialógico não tem direito de impor aos outros sua posição. O educador libertador,
no entanto, precisa entregar-se à errância do perguntar, vivendo a pergunta e a
investigação que ela pode iniciar, colocando que o mundo pode ser de muitas outras
maneiras.
O quinto princípio é a infância. Infância não como um aspecto a ser educado,
mas como algo que educa. Assim, a infância em Freire não é algo a se formar, mas
algo para o qual devemos estar atentos: escutá-la, cuidá-la, mantê-la viva, vivê-la.
Embora a prática educativa para Freire seja qualquer prática, com qualquer idade,
em qualquer contexto, uma educação política é uma educação na infância, con-
siderando: sensibilidade, curiosidade, inquietude, presença – características que
extrapolam a educação tradicional, que vê na infância uma etapa cronológica para
instaurar verdades prontas.
Para Kohan, uma forma de compreender essa concepção de infância em Frei-
re é compreendendo a necessidade de ele indagar a própria infância. Retornar à
infância cronológica é importante para se entender melhor suas marcas contras-
tantes. Uma das marcas das obras de Freire é que ele vai se infantilizando – no
que se refere à preservação das potências da infância –, cultivando uma intimidade
potente com uma infância não cronológica. O linguajar infantil aparece assim como
uma força expressiva, uma forma conjuntiva e conectiva de viver a infância crono-
lógica. Talvez mais do que isso: uma condição para que o ser humano continue a
viver, transformando o que parece dado como definitivo.
“Menino conjunção” e “menino conectivo” são dois conceitos que significam
uma força generativa, que coloca junto e faz somar sua história intelectual com sua
história de infância. Enfatiza como foi alfabetizado na infância para refletir sobre
as duas temporalidades que caminham lado a lado na educação: Chrónos e Kairós.
As ciências da vida estabelecem um Kairós para a escolarização e, dentro dela,
a alfabetização. No entanto, a dureza das condições de vida permite que apenas
uma minoria tenha esse tempo Kairós respeitado. E é justamente esse problema
que Freire quer atacar. São os escolares não cronologicamente infantis que Paulo
Freire está especialmente interessado em alfabetizar, pois, para um educador po-
pular, o Kairós deve ser sempre o agora, porque é uma oportunidade.
Seguindo essa segunda forma de se relacionar com a infância, a educação po-
deria se ocupar de cultivá-la e atendê-la para que ela continue sempre viva, sendo
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Márcio Luís Marangon, Volnei Fortuna
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o que é, em todas as idades. Com isso, a educação mais revolucionária é também
uma educação menina, alegre, curiosa, perguntadora, ou seja, uma educação que
respeite uma condição de vida educacional sensível ao autoquestionamento, ao en-
gajamento em um ato pedagógico, ao mesmo tempo, inquieto e criativo, enfim, uma
educação que veja, como Freire, a infância como uma força reinventora de mundo.
Por isso, a educação precisa ser uma educação menina, pois há muita infância
no mundo, esperando ser ativada e revivida por meninas e meninos conjunções e
meninos e meninas conectivos de todas as idades.
Como epílogo, Kohan se questiona: Freire pode ainda ajudar a pensar o que
nos interessa pensar hoje, a viver a vida educacional e filosófica que nos interessa
viver no presente? Sua resposta é sim. O sentido da educação freiriana é propiciar
uma vida educadora mais inquieta e autoquestionadora sobre os sentidos de edu-
car. Por isso, ela é inspiradora, não definidora de realidades. Viver Freire hoje é
se reinventar e reinventar aquilo que Freire deixou de legado. Ele mesmo, Freire,
queria isso. E isso põe por terra tudo aquilo que usam para acusar que o pensamen-
to de Freire esvazia a ação dos educadores. Em verdade, o pensamento de Freire
questiona, inspira e potencializa. Nunca pensado como fim. Sempre como meio.
Referência
KOHAN, Walter. Paulo Freire mais do que nunca: uma biografia filosófica. Belo Horizonte: Ves-
tígio, 2019.