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ISSN on-line 2238-0302
volume 28 número 1 jan./abr. 2021
EDUCAÇÃO E SOCIALIZAÇÃO
UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO
Bernadete Maria Dalmolin
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Vice-Reitor de Graduação
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Revista Espaço Pedagógico [online] / Universidade de Passo
Fundo, Faculdade de Educação. – Vol. 16, n. 2 (2009)- . –
Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2009-
Anual: 1994-1998. Semestral: 1999-2016. Quadrimestral:
2017-.
eISSN 2238-0302.
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1. Ciências humanas – Periódico. 2. Educação – Periódico.
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PEDAGÓGICO
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Research Assessment (DORA)
ESPAÇO
PEDAGÓGICO
SUMÁRIO
Editorial .........................................................................................................................................................................6
Ângelo Vitório Cenci
Telmo Marcon
A educação como socialização em Émile Durkheim ...................................................................................................... 13
The education as socialization in Émile Durkheim
La educación como socialización en Émile Durkheim
Raquel Andrade Weiss
Rhuany Andressa Raphaelli Soares
Da sociedade ao indivíduo e de volta à sociedade: socialização e individuação em G. H. Mead ....................................34
From society to the individual, and back to society: socialization and individuation in G. H. Mead
De la sociedad al individuo, y de vuelta a la sociedad: socialización e individuación en G. H. Mead
Cledes Antonio Casagrande
A atualização da skholé e a escola contra a socialização ...............................................................................................55
An update of skholé and school against socialization
La actualización de la skholé y la escuela contra la socialización
Cleriston Petry
Socializando o pesquisador a observar a socialização dos sujeitos: notas sobre pesquisas com as elites ......................83
Socializing the researcher to observe the socialization of the subjects:
notes on research with the elites
Socializar al investigador para observar la socialización de los sujetos:
apuntes sobre la investigación con las élites
Maria da Graça Jacintho Setton
Notas sobre interação e socialização em Simmel: uma reexão sobre educação e intolerância ..................................106
Notes on interaction and socialization in Simmel: a reection on education and intolerance
Notas sobre interacción y socialización en Simmel: una reexión sobre educación e intolerancia
Carlos Alberto Barbosa
Percursos escolares exitosos entre alunos de camadas populares: socialização familiar e trajetórias sociais ..............121
Successful school paths among students from lower class: family socialization and social trajectories
Recorridos escolares exitosos entre estudiantes de estratos populares: socialización familiar y trayectorias sociales
Vanessa Gomes de Castro
Fernando Tavares Júnior
Interação em mídias sociais e socialização: algumas interfaces ..................................................................................144
Interaction in social media and socialization: some interfaces
Interacción en medios sociales digitales y socialización: algunas conexiones
Karina Marcon
Cristiane Koehler
Pedagogia da ameaça: uma análise dos padrões comunicativos de socialização no WhatsApp bolsonarista .............. 166
Pedagogy of threat: an analysis of communicative patterns of socialization in Jair Bolsonaros WhatsApp support groups
Pedagogía de la amenaza: análisis de patrones comunicativos de socialización en grupos de apoyo al presidente Jair Bolsonaro en
WhatsApp
Rodrigo Pelegrini Ratier
Distanciamento físico e ensino remoto: socializações em tempos de pandemia .........................................................192
Physical distance and remote learning: socializations in times of pandemic
Distanciamiento físico y educación remota: socializaciones en tiempos de pandemia
Paula Alexandra Reis Bueno
Roberto Eduardo Bueno
Literatura infantil digital: leitura na tela e novas formas de socialização na escola ....................................................221
Digital childrens literature: screen reading and new forms of socialization at school
Literatura infantil digital: lectura de pantalla y nuevas formas de socialización en la escuela
Rafaela Vilela
Juventudes e participação social: processos de socialização na contemporaneidade .................................................. 237
Youths and social participation: contemporary socialization processes
Juventud y participación social: procesos de socialización contemporáneos
Maurício Perondi
Socialização feminina, protagonismo humano e educação: uma análise a partir de Christine de Pizan .....................258
Female socialization, human protagonism and education: an analysis from Christine de Pizan
Socialización femenina, protagonismo humano y educación: un análisis a partir de Christine de Pizan
Patrícia Ketzer
Ana Paula Scheer
Dispositivo de feminilidade, juventudes e imagens de si como processos educativos e de socialização .....................276
Femininity device, youth and images of the self as educational and socialization processes
Dispositivo de feminidad, juventud e imágenes del yo como procesos educativos y de socialización
Nathalye Nallon Machado
Anderson Ferrari
Experiências narrativas de professoras iniciantes: movimentos de socialização no cotidiano escolar .........................297
Narrative experiences of novice teachers: socialization movements in the daily life of the school
Experiencias narrativas de maestros principiantes: movimientos de socialización en la vida diaria de la escuela
Inês Ferreira de Souza Bragança
Joelson de Sousa Morais
Produzir e compartilhar: a produção de professores da educação básica no YouTube .................................................321
Producing and sharing: the productions of basic education teachers on YouTube
Producir y compartir: la producción de profesores de la educacaión básica en YouTube
Simone Lucena
Gersivalda Mendonça da Mota
Sandra Virginia Correia da Andrade Santos
Família e propaganda – imagem restaurada: um exercício de leitura de imagens .....................................................339
Family and advertising – restaured image: an exercise of image reading
Familia y propaganda – imagen restaurada: un ejercicio de lectura de imágenes
Ireno Antônio Berticelli
Criança, infância e cidadania: diálogos de inspiração em Paulo Freire ........................................................................359
Child, childhood and citizenship: dialogues of inspiration in Paulo Freire
Niño, infancia y ciudadanía: diálogos de inspiración en Paulo Freire
Marta Regina Paulo da Silva
Resolução de algoritmos e de problemas de adição e subtração: uma análise de estratégias utilizadas por
estudantes com diagnóstico ou prognóstico de Discalculia do Desenvolvimento .......................................................380
Resolution of algorithms and addiction and subtraction problems: an analysis of strategies used by students with diagnosis or
prognosis of Developmental Dyscalculia
Resolución de algoritmos y problemas de suma y resta: un análisis de estrategias utilizadas por estudiantes con diagnóstico o
pronóstico de Discalculia del Desarrollo
José Ricardo Barbosa Cardoso
Isabel Cristina Machado de Lara
Dialogue avec les éducateurs .....................................................................................................................................404
Pierre Dardot
Christian Laval
Diálogo com educadores ............................................................................................................................................412
Pierre Dardot
Christian Laval
Socialização em contextos de violência e desconança: reexões sobre a obra República das Milícias
do esquadrão da morte à era Bolsonaro .....................................................................................................................421
Telmo Marcon
Daniela dos Santos
6ESPAÇO PEDAGÓGICO v. 28, n. 1, Passo Fundo, p. 6-12, jan./abr. 2021 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
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ESPAÇO
PEDAGÓGICO
EDITORIAL
O volume 28, número 1, janeiro/abril/2021, da Revista Espaço Pedagógico traz
como tema Educação e socialização. Foram muitas as razões para a sua propo-
sição, assim como muitas possibilidades de delimitação para a sua abordagem.
Todavia, no presente número, o enfoque escolhido foi o de problematizar a tensão
produtiva entre as concepções clássicas e as novas formas de socialização das di-
ferentes gerações nos complexos contextos contemporâneos. As contribuições de
autores clássicos que trataram da socialização continuam relevantes e instigando
discussões importantes a esse respeito na atualidade. Nesse sentido, não há como
tratar de educação e socialização sem levar em conta, direta ou indiretamente, te-
matizações como as propostas por Durkheim, Simmel, Elias e Mead, entre outros.
Tais autores, a partir da virada do século XIX para o XX, inauguraram e, pode-se
assim dizer, fundamentaram alguns dos problemas mais cruciais desse campo de
estudos tão importante não apenas à compreensão dos processos educacionais, mas
também das questões relativas à coesão social em sociedades pós-industriais.
Pode-se dizer também que a virada do século XX para o XXI inaugurou, com
crescentes complexificação, pluralismo e desigualdade social, novos agentes socia-
lizadores e novas modalidades de socialização. As sociedades contemporâneas pas-
sam por profundas transformações que incidem tanto sobre suas instituições quan-
to sobre a cultura como um todo. Tais sociedades são marcadas pela aceleração do
tempo e pelo extremo dinamismo que coloca em pauta a apropriação reflexiva do
conhecimento, as novas morfologias do trabalho, um grande, variado e constante
desenvolvimento de tecnologias, a expansão de sistemas abstratos de confiança
dirigidos pelo conhecimento de especialistas, um profundo redimensionamento da
relação espaço-tempo, as sofisticadas formas de dominação social, a primazia do
capital financeiro, os graves riscos à sustentabilidade do planeta, entre outros.
Outro fator importante é que, ao mesmo tempo em que as novas tecnologias e o
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
v. 28, n. 1, Passo Fundo, p. 6-12, jan./abr. 2021 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
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capitalismo neoliberal aceleram e dinamizam interações que influenciam os pro-
cessos de individualização e socialização, multiplicam-se posturas fundamentalis-
tas de várias naturezas (religiosas, científicas, políticas, militares e de mercado),
que, apoiadas em pressupostos dogmáticos e em formas de barbárie, comprometem
experiências de formação humana de cunho democrático. Tratam-se de caracterís-
ticas que se intensificaram nas últimas décadas, sobretudo no início do século XXI,
como é o caso da sociabilidade digital e das mídias correlatas, que cada vez mais
exercem influências tanto sobre as formas de socialização quanto sobre os agentes
socializadores tradicionais, como a família, a escola e as demais instituições sociais.
O presente número da Revista Espaço Pedagógico tem como escopo, portan-
to, aprofundar formas e feições contemporâneas de socialização, trazendo para o
debate os temas e as teorias clássicas sobre esse campo em diálogo com os novos
processos e agentes socializadores. São muitas as questões que orbitam em torno
desse tema na atualidade: quais são as contribuições que as concepções clássicas
de socialização ainda podem oferecer para lançar novas luzes sobre esse tema?
Como se situam hoje as instâncias tradicionais de socialização (como a família e a
escola) diante das profundas transformações que estão ocorrendo nas sociedades
contemporâneas? Como socializar em contextos de sociedades plurais, complexas
e profundamente desiguais, que multiplicam modalidades de processos educativos
e que tendem a acentuar fenômenos como a atomização dos sujeitos, a imposição
da lógica do mercado e da concorrência sobre todas as esferas da vida social, o
enfraquecimento das instituições e de todas as figuras de autoridade? Quais são os
desafios e as possibilidades para avançar na direção de processos de socialização
orientados por valores democráticos e para uma vida em comum?
Integra o presente número da Revista Espaço pedagógico um conjunto de ar-
tigos desenvolvidos por estudiosos que buscam atualizar o diálogo com os clássicos
sobre o campo, assim como outros tantos que trazem novas facetas e novos desafios
por ele colocados na atualidade. O artigo que abre este número é de autoria de Ra-
quel Andrade Weiss e Rhuany Andressa Raphaelli Soares e intitula-se A educação
como socialização em Émile Durkheim. As autoras buscam fundamentar a concep-
ção de ciência da educação em Durkheim, assim como o diálogo que a educação
estabelece com a moral e seus elementos constitutivos.
Cledes Antônio Casagrande oferece mais uma de suas contribuições sobre a
obra de Mead, desta vez com o trabalho Da sociedade ao indivíduo e de volta à
sociedade: socialização e individuação em G. H. Mead. Segundo Casagrande, o ob-
jetivo é discutir como Mead compreende e descreve os processos de formação dos
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sujeitos sociais e quais as possíveis correlações desses processos com a capacidade
de viver em comunidade, sob a égide da ética e da democracia.
Cleriston Petry enfoca criticamente o tema da socialização escolar mediante o
texto A atualização da Skholé e a escola contra a socialização. O autor entende que
a socialização implica nos processos de introdução na sociedade e na tarefa da esco-
la de introduzir as novas gerações no mundo. Com base nessas definições, analisa
se há ou não incompatibilidade entre socializar nos contextos em que crianças e
jovens são inseridos e se a socialização contribui ou não para a realização da skholé
(tempo livre) em tensão com o “tempo produtivo” da sociedade atual.
Segue-se com o artigo Socializando o pesquisador a observar a socialização
dos sujeitos: notas sobre pesquisas com as elites, elaborado pela professora Maria
da Graça Jacintho Setton, conhecida por várias pesquisas já desenvolvidas sobre
esse tema no Brasil. Como bem observa, o artigo trata de uma primeira explanação
de dados mais gerais da pesquisa que busca compreender as formas de justificação
da dominação e as representações sociais das elites a partir de suas trajetórias
sociais, tendo como perspectiva teórica a sociologia da socialização.
Carlos Alberto Barbosa traz presente outro clássico no seu artigo: Notas sobre
interação e socialização em Simmel: uma reflexão sobre educação e intolerância.
Barbosa recupera ideias de Simmel, que entende a formação como um processo
de socialização, assim como a diferenciação como elemento basilar de toda essa
dinâmica. Conclui versando sobre a importância da diversidade de ideias, da plu-
ralidade e das diferenças nos ambientes de ensino.
Vanessa Gomes de Castro e Fernando Tavares Júnior contribuem com o ar-
tigo: Percursos escolares exitosos entre alunos de camadas populares: socialização
familiar e trajetórias sociais. Os autores analisam como as socializações primária e
secundária interferem positivamente no sucesso de crianças oriundas de camadas
populares. Através da história de vida de três alunos provenientes de camadas po-
pulares, os autores reconstroem suas trajetórias, desde o ingresso no ensino funda-
mental até a conclusão do ensino médio, e concluem que esses alunos se constituem
em exceção frente a um elevado número de outras crianças provenientes do mesmo
contexto que reprovam e evadem da escola.
Karina Marcon e Cristiane Koehler dão sequência ao presente número discu-
tindo as interfaces da Interação entre mídias sociais e socialização. No artigo, as
autoras discutem diferentes possibilidades de interação pela mediação de mídias e
concluem que a interação social em rede somente acontece em tecnologias digitais
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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que disponibilizam recursos tecnológicos nos quais os sujeitos podem estabelecer
conexões sociais.
Rodrigo Pelegrini Ratier desenvolve uma reflexão atual sobre um tema extre-
mamente significativo, que é o uso do WhatsApp de uma forma negativa, no artigo:
Pedagogia da ameaça: uma análise dos padrões comunicativos de socialização no
WhatsApp bolsonarista.
Paula Alexandra Reis Bueno e Roberto Eduardo Bueno debatem, no atual
contexto da pandemia da Covid-19, o tema das socializações, tomando por foco
a questão do distanciamento físico e do ensino remoto no artigo: Distanciamento
físico e ensino remoto: socialização em tempos de pandemia. Através de uma pes-
quisa de campo com entrevistas, incluindo alunos e professores da educação básica,
bem como mestrandos e doutorandos, os autores analisam as implicações do ensino
remoto decorrente da Covid-19 e suas consequências, especialmente em relação à
concentração e à aprendizagem.
Rafaela Vilela discute, no artigo Literatura infantil digital: leitura na tela e
novas formas de socialização na escola, como os recursos tecnológicos influem na
leitura de textos de literatura infantil e como a leitura na tela implica novas for-
mas de socialização na escola. O artigo é resultante de uma pesquisa de doutorado
e discute a leitura contemporânea e as novas formas de socialização na escola em
diálogo com a literatura infantil digital.
Maurício Perondi analisa, no artigo Juventudes e participação social: proces-
sos de socialização na contemporaneidade, uma importante faceta dos processos de
socialização na contemporaneidade, que é a participação da juventude em quatro
espaços institucionais. Com base na pesquisa, conclui que as instituições anali-
sadas contribuem significativamente para a socialização dos jovens, a partir das
relações que estabelecem com outros sujeitos da mesma idade.
Patricia Ketzer e Ana Paula Scheffer analisam as contribuições de Pizan (1364-
1430) no texto Socialização feminina, protagonismo humano e educação: uma análi-
se a partir de Christine de Pizan. Recuperam dessa autora reflexões fundamentais
sobre os processos de socialização e as questões de gênero. Destacam que Pizan
defendia uma educação de qualidade como ferramenta potencial para impulsionar o
protagonismo humano, além de promover a igualdade, e afirmava a necessidade de
se educar meninos e meninas igualmente, no processo de socialização.
Nathalye Nallon Machado e Anderson Ferrari contribuem com o artigo Dis-
positivo de feminilidade, juventudes e imagens de si como processos educativos e
de socialização. O texto é resultado de uma pesquisa realizada com sete mulheres
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jovens e estudantes de escola pública. O estudo tomou por base o grupo focal e ob-
servações do Facebook e do Instagram e concluiu que os dispositivos vão atuando
sobre elas (as mulheres), ao mesmo tempo que apresentam linhas de visibilidade,
de força e de subjetivação.
O artigo Experiências narrativas de professoras iniciantes: movimentos de so-
cialização no cotidiano escolar, de Inês Ferreira de Souza Bragança e Joelson de
Sousa Morais, ocupa-se com o tema da socialização no cotidiano escolar, enfocando
experiências narrativas de professoras em início de carreira. Por meio de narrativas
autobiográficas, analisam as experiências de três pedagogas atuantes no 5º ano do
ensino fundamental. Os autores concluem que as narrativas das professoras inician-
tes apontam, ao mesmo tempo, para aprendizagens importantes na consolidação do
campo profissional e, paradoxalmente, para aspectos de desprofissionalização do
magistério das docentes em sua inserção no cotidiano institucional das escolas.
Na sequência, o artigo de Simone Lucena, Gersivalda Mendonça da Mota e
Sandra Virginia Correia de Andrade Santos, intitulado Produzir e compartilhar: a
produção de professores da educação básica no YouTube, é resultado de uma pesqui-
sa que buscou compreender as possibilidades de utilização do YouTube na educação,
envolvendo uma proposta de criação e cocriação de vídeos, junto aos professores da
educação básica. A conclusão é de que nem todos os professores conseguem se apro-
priar das dinâmicas de criação ou cocriação de vídeos e nem compartilham suas pro-
duções, por dificuldade de imersão na cibercultura, por insegurança ou resistência.
Mais três artigos de fluxo contínuo compõem o presente número da Revista
Espaço Pedagógico. O primeiro é de autoria de Ireno Antônio Berticelli, intitulado
Família e propaganda – imagem restaurada: um exercício de leitura de imagens,
e enfoca o modo como uma propaganda de automóvel voltada à família carrega
sentidos profundos, mas nem sempre explícitos. Conclui que, na propaganda em
questão, é possível identificar um padrão cultural de família através de um mo-
delo de automóvel. O artigo seguinte, de Marta Regina Paulo da Silva, intitula-se
Criança, infância e cidadania: diálogos de inspiração em Paulo Freire e tem como
foco pensar a criança, a infância e a cidadania com base em Freire, autor que con-
cebe a criança como sujeito de direito à palavra e à participação. A autora chega
à conclusão de que a epistemologia freireana nos remete à compreensão de que
educação, cidadania e infância não são apenas conceitos abstratos, mas dimensões
de uma práxis crítica e criativa, que nos possibilita reconhecer as crianças como
cidadãs e construir, com elas, práticas pedagógicas emancipadoras. Por fim, o ar-
tigo de Isabel Cristina Machado de Lara e José Ricardo Barbosa Cardoso trata de
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
v. 28, n. 1, Passo Fundo, p. 6-12, jan./abr. 2021 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
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um tema relevante e complexo para a escola: Resolução de algoritmos e de proble-
mas de adição e subtração: uma análise de estratégias utilizadas por estudantes
com diagnóstico ou prognóstico de discalculia. A pesquisa objetivou analisar as
estratégias utilizadas pelos participantes para resolver problemas convencionais,
comparando-as com as utilizadas para resolver algoritmos. Os autores concluem
que, para a resolução de algoritmos, as únicas estratégias utilizadas são o cálculo
mental e o uso dos dedos e mostram que os estudantes, embora possuam diagnós-
tico ou prognóstico de discalculia operacional, apresentam um número maior de
erros na execução dos algoritmos de subtração. Contudo, o desempenho na resolu-
ção de problemas é satisfatório, apontando que possuem compreensão do conceito
de adição e subtração, portanto, a discalculia ideognóstica não está vinculada ao
treinamento do algoritmo.
Na seção Diálogo com educadores, contamos com as preciosas contribuições de
dois pesquisadores franceses muito conhecidos e muito estudados entre nós: Pierre
Dardot e Christian Laval. Com a mediação de Regiano Bregalda, doutorando do
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Passo Fundo, que
até setembro de 2020 realizou doutorado sanduiche em Paris, foi possível a concre-
tização de um diálogo extremamente produtivo com esses dois pesquisadores. As
questões propostas para o diálogo tratam de um conjunto de temas sobre educação
e mercantilização; socialização; as transformações do neoliberalismo e como seus
pressupostos interferem na socialização e na individualização; a desconstrução do
conceito de meritocracia, do empresário de si mesmo ou do neossujeito; a perspec-
tiva da competitividade e da eficiência nas políticas educacionais; o modelo em-
presarial capitalista adentrando as instituições educativas; o papel da educação
na formação do sujeito democrático; a socialização em sociedades desiguais; novas
formas de sociabilidade mediadas pelas tecnologias digitais; o princípio do comum
para pensar as políticas educacionais emancipadoras. São muitas questões desa-
fiadoras para os educadores nesse contexto. Visando o maior acesso possível a essas
contribuições, a seção conta, nesta edição, com duas versões: francês e português.
Por fim, a resenha Socialização em contextos de violência e desconfiança: re-
flexões sobre a obra República das milícias – do esquadrão da morte à era Bol-
sonaro, elaborada por Telmo Marcon e Daniela dos Santos. A resenha parte da
obra: República das milícias: do esquadrão da morte à era Bolsonaro, do jornalista
Bruno Paes Manso, lançada pela Editora Todavia (SP) em 2020, para refletir sobre
o conceito de socialização em contextos complexos, conflitivos e de desconfianças.
Os autores da resenha tratam de como é possível a socialização em contextos de
12 ESPAÇO PEDAGÓGICO v. 28, n. 1, Passo Fundo, p. 6-12, jan./abr. 2021 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
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violência, disputas e desconfiança. O desafio que fica é de não apenas ler a resenha,
mas de ler toda a obra para melhor entender o papel que as milícias assumem no
contexto da cidade e do estado do Rio de Janeiro e de como as novas relações de
poder daí emergentes comprometem a sociabilidade.
Desejamos que o presente número da revista possa desafiar nossos leitores
na busca por novos aprofundamentos, particularmente da temática do dossiê e das
demais questões problematizadas.
Prof. Dr. Ângelo Vitório Cenci
Prof. Dr. Telmo Marcon
Organizadores
13
A educão como socialização em Émile Durkheim
ESPAÇO PEDAGÓGICO
v. 28, n. 1, Passo Fundo, p. 13-33, jan./abr. 2021 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
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A educação como socialização em Émile Durkheim
The education as socialization in Émile Durkheim
La educación como socialización en Émile Durkheim
Raquel Andrade Weiss*
Rhuany Andressa Raphaelli Soares**
Resumo
O presente artigo tem como objetivo abarcar a centralidade da temática da educação na obra do sociólogo francês
Émile Durkheim. Em um primeiro momento, pretende-se demonstrar de que forma o autor, a partir de sua concep-
ção de ciência da educação, compreendeu o fenômeno educativo como fundamental tanto para a manutenção e a
continuidade do meio social quanto para a formação dos indivíduos como membros de uma sociedade. Para Dur-
kheim, a educação teria como função substancial transmitir o legado sociocultural de um determinado contexto,
tendo como resultado um processo de socialização que possibilitaria a constituição do que ele denomina de ser
social”. Por m, apresentamos de que forma a educação dialoga diretamente com a questão da moralidade e seus
elementos constitutivos e como os escritos durkheimianos sobre o tema se colocam como ponto de partida para
pensar questões e problemáticas atuais sobre os processos educativos, tendo como exemplo o tema da diversidade.
Palavras-chave: educação; Émile Durkheim; socialização.
Abstract
This article aims to present the importance of the education subject in the work of the French Sociologist Émi-
le Durkheim. At rst, it is intended to show in which way the author, based on a science of education, sees the
educational phenomenon as essential for both the maintenance of the social environment and the formation of
individuals as members of society. Therefore, according to Durkheim, the educational process has the role of trans-
mitting the sociocultural legacy of certain contexts, resulting in a socialization role that allows the creation of what
he calls the social being. Finally, it will be demonstrated how education dialogues directly with the issue of morality
and its constitutive elements and how the Durkheimian writings about the subject are a starting point for thinking
about current issues and problems about educational processes of our times, such as the theme of diversity.
Keywords: education; Émile Durkheim; socialization.
* Bacharela em Ciências Sociais, mestra em Sociologia e doutora em Filosoa pela Universidade de São Paulo. Desde
o ano de 2001, dedica-se à pesquisa da obra de Émile Durkheim, tendo escrito diversos artigos sobre o tema. Atual-
mente é professora associada do Departamento de Sociologiae professora permanente do Programa de Pós-Gra-
duação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Junto com Rafael Benthien, coordena o
Centro Brasileiro de Estudos Durkheimianos e dirige a coleção “Biblioteca Durkheimiana, publicada pela EdUSP. Atua
na área de teoria sociológica, sociologia da moral e, mais recentemente, tem pesquisado a relação entre Sociologia e
Psicanálise.Orcid: https://orcid.org/0000-0002-5911-4147. E-mail: rhuany.soares@ufrgs.br
** Licenciada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e mestranda do Programa de
Pós-Graduação em Educação Prossional e Tecnológica do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS). Atua na área
de teoria sociológica e sociologia da educação a partir de estudos durkheimianos e bourdieusianos. Orcid: https://
orcid.org/0000-0002-8416-2036. E-mail: weiss.raquel@gmail.com
Recebido em: 01/08/2020. Aprovado em: 16/12/2020
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i1.11520
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Resumen
Este artículo tiene como objetivo abarcar la centralidad de la temática de la educación en el trabajo del soció-
logo francés Émile Durkheim. Primero, se pretende demostrar cómo el autor, a través de la perspectiva de una
ciencia de la educación, entendió el fenómeno educativo como algo fundamental tanto para el mantenimiento
y la continuidad del entorno social como para la formación de los individuos como miembros de una sociedad.
Por lo tanto, para Durkheim, entendemos que la educación tendría como una función sustancial la transmisión
de todo el legado sociocultural de un contexto dado, dando como resultado un proceso de socialización que
permitiría la constitución de lo que él llama ser social. Finalmente, se demostrará como la educación dialoga
directamente con la temática de la moralidad y sus elementos constitutivos y cómo los escritos durkheimianos
sobre el tema se colocan como un punto de partida para pensar los temas y problemas actuales sobre los proce-
sos educativos, como la temática de la diversidad.
Palabras clave: educación; Émile Durkheim; socialización.
Introdução
Quando mergulhamos no universo dos escritos durkheimianos, percebemos
que o conjunto de sua obra consegue abarcar uma diversidade de proposições sobre
a realidade social, demonstrando que seus estudos não apenas poderiam auxiliar
na compreensão do contexto em que o autor escreveu, mas podem fornecer uma
base analítica para pensar questões do mundo contemporâneo.
Émile Durkheim, de forma geral, é conhecido como fundador e consolidador
da Sociologia enquanto ciência, conferindo a esta seu objeto, seu fundamento e
sua metodologia própria, distanciando-se das abordagens das ciências naturais.
Ainda, além de demonstrar a construção de uma cientificidade das coisas sociais,
Durkheim fortaleceu sua teoria sociológica por meio da aplicação desta em diversos
campos de estudos.
As obras mais conhecidas do autor normalmente se relacionam com os es-
critos que buscavam fornecer uma base para a ciência que estava sendo insti-
tucionalizada, como podemos ver em As regras do método sociológico, ou, então,
por exemplo, com as temáticas que tinham como preocupação “explicar os efeitos
que as transformações modernas ocasionavam nos mecanismos de integração
dos indivíduos na sociedade” (SELL, 2013, p. 87), destacando a obra Da divisão
do trabalho social. No entanto, para além dos seus profundos interesses sobre a
(formação da) ciência da sociedade como um todo – e de ser destacado no campo
acadêmico predominantemente por esta razão –, podemos salientar um estudo
específico, que foi investigado com igual importância, dedicação e originalidade, a
saber, a educação.
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Ao longo da sua trajetória de vida pessoal e profissional, o sociólogo demons-
trou grande preocupação com o fenômeno educativo e fez com que esta temática se
tornasse central nas suas pesquisas.
Durkheim acreditava que, assim como a sociedade, a educação poderia e deveria ser estu-
dada de forma científica. Desta forma, a educação também possuiria uma natureza própria,
desenvolvida pelo seu caráter social, e deveria ser analisada pelos métodos e fundamentos
da sociologia. Foi a partir desta concepção que a criação de uma Sociologia da Educação foi
possível, fazendo com que Durkheim se tornasse o primeiro sociólogo da educação (FATU-
RI, 2014, p. 13).
Assim, quando analisamos a educação investigada pelo autor, devemos com-
preender que esta dialoga diretamente com os fundamentos sociológicos apresen-
tados por ele e, dessa forma, não pode ser dissociada de todo seu arcabouço teóri-
co-metodológico.
Temos, então, que, de forma pioneira, Durkheim institui, pelo viés e olhar da
Sociologia, uma área específica para esta temática – a Sociologia da Educação –,
na qual a questão educacional aparece tanto como conceito sociológico, portanto,
como um construto intelectual, quanto como processo social real, ou seja, ela se
apresenta como um fenômeno de natureza eminentemente social, permitindo que
sua compreensão seja feita desde a sua definição até a sua análise socio-histórica.
Sendo assim, conforme será apresentado, os estudos durkheimianos sobre
educação se mostram fundamentais para entendermos o papel e as influências do
fenômeno educativo no meio social e a forma como este auxilia na consolidação da
sociedade e na construção daquilo que denominamos como ser social.
A Ciência da Educação
A constituição de uma ciência da sociedade e, mais ainda, de uma ciência da
educação a partir de uma perspectiva sociológica, colocou-se como campo possível
nos estudos durkheimianos devido à constituição do objeto da Sociologia, qual seja,
o fato social. Esse conceito foi desenvolvido por Durkheim na obra As regras do
método sociológico, e a forma como ele e suas características foram determinadas
pelo autor são fundamentais para que compreendamos como a própria Sociologia e
seus campos de estudo estabeleceram suas análises teóricas e empíricas, pois, com
isso, “ele elevou o ‘fator social’ ao status de elemento básico e decisivo para explicar
os fenômenos que tinham lugar no ‘reino social’” (RODRIGUES, 2010, p. 29).
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Partindo de sua conceituação básica, os fatos sociais podem ser definidos como
“maneiras de agir, pensar e de sentir exteriores ao indivíduo e dotadas de um poder
coercitivo em virtude do qual se lhe impõem” (DURKHEIM, 2008b, p. 33). A partir
dessa definição, já conseguimos extrair as características fundamentais do conceito
e entender de que maneira ele dialoga com a realidade social.
Uma das primeiras qualidades distintivas do fato social é a sua generalidade,
ou seja, partimos da ideia de que as representações e ações de uma dada realidade
social se estendem e abrangem os indivíduos que nela estão inseridos. Assim, en-
tendemos que o conceito durkheimiano tem como preocupação central a compreen-
são dos fenômenos e sistemas coletivos da sociedade, com aquilo que é comum a
todos ou à grande parte dos seus membros. No entanto, devemos ter a clareza de
que “um pensamento comum a todas as consciências particulares, ou um movimen-
to repetido por todos os indivíduos, não é por isso um fato social” (DURKHEIM,
2008b, p. 35). A qualidade de generalidade terá como fundamento as crenças e as
práticas do grupo tomadas coletivamente.
A segunda característica se refere à exterioridade do fato em relação às cons-
ciências individuais. Isso significa que “o comportamento social não procede do
próprio indivíduo, mas de algo exterior [e anterior] a ele: a sociedade” (SELL, 2013,
p. 83). Sendo assim, quando somos inseridos e começamos a fazer parte do meio
social, toda estrutura material e simbólica já se encontra constituída e consolidada
independente da nossa existência ou das nossas manifestações individuais.
Por fim, a terceira qualidade do fato social é sua ação coercitiva e imperativa,
que abarca a força imposta pela sociedade ao indivíduo. Essa característica dialoga
com a exterioridade, pois as regras, as condutas e os padrões sociais que garantem
a manutenção de uma determinada sociedade já existem anteriormente e se inter-
põem ao sujeito independente da sua vontade. Percebemos isso de forma mais clara
quando não seguimos as normas sociais: é nesses momentos que sentimos mais
nitidamente sua pressão e a sanção – tanto legal quanto social – que decorre de seu
descumprimento. Cabe salientar, ainda, que tal concepção não implica ausência de
liberdade ou de autonomia do sujeito, mas supõe que toda ação transcorre em um
meio social, que impõe resistência às ações que transgridam as expectativas e os
padrões normativos do grupo.
A partir do entendimento do fato social como objeto de estudos da sociologia
e das suas características como marco de separação dos fatos biológicos, físicos e
psíquicos, passamos a compreender de que forma a educação se apresenta também
como um fato social, já que se trata “de um fenômeno produzido pela vida coletiva,
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ou seja, de uma realidade social organizada ao longo dos séculos, caracterizada por
um conjunto de práticas e instituições” (VARES, 2011, p. 31).
Neste momento, antes de entendermos o que seria a educação para Durkheim
e a importância do seu papel social, é importante estabelecer uma diferenciação,
realizada pelo próprio autor, que podemos inferir de seus escritos sobre o fenômeno
educativo. Trata-se da distinção estabelecida entre o que seria a ciência da educa-
ção e o que seria a pedagogia.
Grosso modo, a sociologia da educação é concebida como uma ciência, volta-
da, portanto, à objetiva dos sistemas educativos: trata-se de buscar compreender
de que modo se estruturam e operam os diversos sistemas educacionais em suas
múltiplas dimensões. Está pressuposto que todas as coisas da educação são sus-
cetíveis de observação e de estudo, e Durkheim propõe justamente uma concepção
sociológica (científica) da educação, seja de sua natureza, seja de sua função. Nos
termos de Paul Fauconnet (2013, p. 17), parte da primeira geração de autores que
seguiram mais diretamente os preceitos durkheimianos, esta sociologia da educa-
ção teria como único fim “conhecer e compreender a realidade. [...]. A Educação é
o seu objeto [e] devemos entender não que ela tenda aos mesmos fins que a Edu-
cação, mas, pelo contrário, que ela a supõe, visto que a observa”. A abordagem da
ciência da educação deveria considerar os fatos educativos de forma relacionada
com todas as dimensões da vida social, pois estes não existiriam isoladamente e só
poderiam fazer sentido se fossem considerados como realmente são, ou seja, como
fatos socialmente determinados e organicamente vinculados aos demais aspectos
do sistema social mais amplo.
A pedagogia, na visão durkheimiana, teria preocupação central com aquilo que a
educação deveria ser: seu objetivo não é tanto descrever ou explicar o que é ou o que
tem sido a educação, mas determinar o que ela deve tornar-se. Ao contrário da ciência
da educação, é investida de um caráter normativo, afinal, não tem o papel de nos
dizer o que existe ou o porquê existe, mas de mostrar o que é preciso fazer. Portanto,
a Pedagogia consistiria num conjunto de teorias cujo objetivo imediato seria orientar
a conduta do educador. Seu verdadeiro fim não é a reflexão, mas a ação. Conforme
Durkheim (2008a, p. 18), “a Pedagogia consiste, precisamente, em uma reflexão, a
mais metódica e mais documentada possível, colocada a serviço da prática de ensino”.
De forma resumida, “as teorias científicas têm como única finalidade exprimir
a verdade, as teorias pedagógicas têm como objetivo imediato guiar a conduta. Se
elas não constituem a ação propriamente dita, elas preparam a ação e nesse aspec-
to se aproximam dela” (DURKHEIM, 2008a, p 18).
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Com essas definições, entendemos que, mesmo que os objetivos dessas teorias
se apresentem como diferentes, devem ser considerados como complementares e
não excludentes. A ciência da educação pode e deve servir a finalidades práticas, e
a pedagogia pode e deve utilizar-se dos conhecimentos produzidos pela sociologia,
para que seus ideais possam corresponder à realidade e aos anseios da própria
sociedade. Assim, a distinção entre sociologia e pedagogia, entre realismo e idea-
lismo, não implica uma tensão insolúvel, mas uma relação necessária de comple-
mentaridade. Se à pedagogia caberia pensar as reformas e as práticas de ensino, ao
sociólogo caberia compreender a educação de uma dada sociedade.
Dessa maneira, a demarcação entre essas duas atividades, longe de procurar
opor uma à outra, consistiu justamente na proposição de certa divisão do traba-
lho intelectual com o intuito de articulá-las eficazmente. Vista sob esse ângulo, a
demarcação proposta pelo autor foi fundamental para aproximá-las e não, como
se poderia supor, distanciá-las. Isso porque, conforme observa Durkheim (2008a,
p. 17), “essa distinção é necessária para que não se julgue as teorias pedagógicas
mediantes princípios que não convêm senão às pesquisas propriamente científi-
cas”, assim, conforme prossegue o autor,
[...] a ciência deve preocupar-se em pesquisar com a maior prudência possível; ela não é
forçada a obter algum resultado em um tempo definido. A pedagogia não tem o direito de
ser tão paciente; porque ela responde a necessidades vitais que não podem esperar (DUR-
KHEIM, 2008a, p. 17).
É importante notar que essa preocupação com a demarcação dos diferentes
campos ou disciplinas é tributária da visão de ciência característica da França da-
quele período, assumindo contornos muito mais rígidos do que os vigentes contem-
poraneamente. Em todo caso, não deixa de ser importante extrair dessa concepção
a ideia de que a transformação da educação é orientada por demandas práticas que
não podem submeter-se aos parâmetros temporais do conhecimento científico, con-
quanto não deva prescindir deste. Em outros termos, isso significa que os sujeitos
comprometidos com a transformação e a implementação de princípios e práticas
educacionais não precisam ser os mesmos que se dedicam ao processo de compreen-
são das várias dimensões do sistema educacional existente. Ao mesmo tempo, o
estabelecimento de um modelo educacional seria tanto mais efetivo e pertinente
quanto mais baseado nos conhecimentos produzidos pelas diversas ciências, sobre-
tudo a ciência da educação.
Ao considerar analiticamente a distinção entre o estudo do fenômeno educati-
vo no âmbito da ciência da educação proposta por Durkheim e das teorias pedagó-
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gicas, podemos analisar a visão do autor acerca da definição da educação, do seu
papel social e do seu caráter enquanto fato social.
A natureza e a função do fenômeno educativo
Durkheim formulou a noção de educação tanto por um viés lógico quanto onto-
lógico, ou seja, suas análises englobavam tanto a definição de conceitos dentro deste
campo de estudos quanto juízos acerca da natureza e função da questão educativa.
Muitos estudiosos de diversas correntes ideológicas já haviam apresentado suas
proposições sobre o que seria a educação, trazendo em suas análises característi-
cas idealistas ou individualistas. No entanto, para Durkheim, quando definimos
a educação “é preciso levar em consideração os sistemas educativos que existem
ou que já existiram, compará-los e identificar aspectos em comum” (DURKHEIM,
2013, p. 49). Tal argumento reitera os princípios metodológicos fundamentais de
sua sociologia, que supõem que a definição de um fenômeno permita abarcar todas
as formas socialmente existentes. Trata-se de um procedimento indutivo em que as
caraterísticas gerais e recorrentes, presentes na multiplicidade empírica do fenô-
meno, são mobilizadas com intuito de se chegar a uma definição de um fato social
especifico, no caso, a educação.
A partir de seus estudos teóricos e empíricos sobre a educação, seus processos
e sistemas, um dos primeiros aspectos destacados pelo autor é o caráter social do
fenômeno. A educação, além de conter as características de um fato social, podendo
ser observada, analisada e comparada, apresenta-se como:
[...] algo eminentemente social e não individual, [pois] se constitui e se modifica conforme
às necessidades de uma sociedade e não de indivíduos particulares. Assim, a partir das
necessidades e dos fins que a educação atende, de suas mudanças de acordo com o tempo e
espaço aos quais ela está inserida e da sua própria natureza, podemos constatar o caráter
social que esta possui (FATURI, 2014, p. 36).
Entendemos, com isso, que a concepção de educação não poderia partir de
uma noção ideal ou individual. A questão educacional está diretamente relacio-
nada e terá correspondência com o contexto ao qual ela pertence e atenderá às
necessidades específicas de uma sociedade. Esta noção nos leva a entender uma
primeira característica da natureza do processo educativo: este se apresenta, ao
mesmo tempo, como uno e múltiplo dentro do espaço social.
A educação pode ser entendida, em um primeiro momento, como una a partir
do momento em que percebemos que qualquer tipo de educação, de acordo com seu
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contexto específico, repousa “sobre uma base comum. [Assim], não há povo em que
não exista certo número de ideias, sentimentos e práticas comuns que a educa-
ção deve inculcar em todas as crianças sem distinção” (DURKHEIM, 2013, p. 51).
Desta forma, a sociedade possui um determinado legado sócio-histórico e cultural
que deve ser internalizado nas novas gerações, através de uma educação comum a
todos, fazendo com que o meio social em questão seja preservado.
O caráter múltiplo da educação pode ser compreendido de duas formas. A pri-
meira destaca a heterogeneidade existente em uma sociedade, abarcando as dife-
rentes funções sociais e fazendo com que a diversidade de profissões se constitua
em “um meio sui generis que demanda aptidões e conhecimentos específicos, um
meio no qual predominam certas ideias, usos e maneiras de ver as coisas” (DUR-
KHEIM, 2013, p. 51). Neste sentido, os diferentes tipos de educação corresponde-
riam às diferentes especializações que a sociedade necessitaria para se manter.
A segunda encontra-se amparada nas inúmeras diferenças sociais existentes,
pois, conforme coloca Durkheim (2013, p. 20), “a [educação] da cidade não é igual
à do campo [e] a do burguês não é igual à do operário”. Essa afirmação pode assu-
mir um caráter um tanto polêmico em virtude do modo como é interpretada, pois
muitas vezes é tomada como expressão de uma visão defendida pelo autor, como
se estivesse sugerindo que a educação deve reproduzir as formas de desigualdade
social. Todavia, aqui é preciso lembrar que se trata de uma concepção que busca
compreender como a educação efetivamente opera e de que a educação está a ser-
viço da reprodução do modo de vida social, que implica também os ideais sociais de
cada época. O que a sociologia pode – e deve – fazer, contudo, é diagnosticar incon-
sistências entre o sistema educacional existente, a estrutura social e as aspirações
de uma época. Para adiantar o exemplo com o qual trabalharemos ao final, em
uma sociedade múltipla e complexa como a nossa, estruturada sobre valores cons-
titucionais como o respeito à pessoa humana, caberia à sociologia identificar todos
os aspectos do sistema educacional que estão em desacordo com esses princípios.
Esse seria seu quinhão no processo de transformação social, fornecendo elementos
para que a pedagogia possa propor diretrizes educacionais mais adequadas a es-
ses valores, que contemplem a um só tempo a igualdade de direitos e o respeito à
diversidade dos modos de vida. Ou seja, uma sociedade desigual reproduz-se a si
mesma mediante um sistema educacional desigual; uma sociedade igualitária, por
seu turno, só pode efetivar-se com um sistema educacional igualitário, o que não
significa, porém, um sistema homogeneizante.
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Sendo assim, percebemos que a educação tem a prerrogativa de manter, ao
mesmo tempo, uma homogeneidade e uma heterogeneidade entre os membros da
sociedade – fato que garante a existência da vida coletiva. Isso significa que, “se,
por um lado, existem tantas espécies de educação quanto meios sociais, por outro,
todos os sistemas educativos difundem certos ideais e sentimentos comuns a todos
os grupos sociais” (VARES, 2008, p. 84).
De forma resumida, temos que:
[...] cada sociedade elabora um certo ideal do homem, ou seja, daquilo que ele deve
ser tanto do ponto de vista intelectual quanto físico e moral; que este ideal é, em
certa medida, o mesmo para todos os cidadãos; que a partir de certo ponto ele se
diferencia de acordo com os meios singulares que toda sociedade compreende em
seu seio. É este ideal, único e diverso ao mesmo tempo, que é o polo da educação
(DURKHEIM, 2013, p. 52).
Além desta dupla caracterização sobre o fenômeno educativo à luz da teoria
durkheimiana, uma outra compreensão deve ser levada em consideração e destaca-
da quando buscamos apreender essa temática de forma sociológica. Em diferentes
obras, Durkheim demonstrou que no decorrer da nossa inserção do meio social po-
demos perceber a existência de dois seres que nos compõem, um sendo constituído
pelo ser individual e outro pelo ser social, que apesar de se apresentarem de forma
distinta são, na realidade, indissociáveis.
O ser individual seria caracterizado por todos os estados físicos e mentais que
dizem respeito a nós mesmos, ou seja, que correspondem à nossa natureza – são
as características imanentes aos indivíduos. Sendo assim, este ser demonstra e
refere-se àquilo que é inato, distinguindo-se daquilo que é adquirido. Já o ser social
é definido como “um sistema de ideias, sentimentos e hábitos que exprimem em nós
não a nossa personalidade, mas sim o grupo ou os grupos diferentes dos quais faze-
mos parte” (DURKHEIM, 2013, p. 54). Este ser não nasce com o indivíduo e muito
menos se constitui de forma natural. Ele é fruto da incorporação e internalização
dos elementos sociais, culturais e históricos de uma determinada sociedade.
Quando começamos a fazer parte do meio social toda estrutura cultural, po-
lítica, moral e simbólica já se encontra estabelecida naquele contexto. A forma de
sermos integrados e correspondermos a este espaço dependerá justamente da for-
mação deste ser social dentro de nós. Com isto podemos inferir que acontece uma
via de mão dupla com a criação deste ser. A primeira corresponderia à inserção de
cada indivíduo na sociedade, fazendo com que ele se torne apto a integrar esta, e a
segunda que faria com que o meio social em questão fosse mantido, já que seu lega-
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do seria incorporado nos seus membros, ou seja, “os produtos do trabalho de uma
geração deixam assim de serem perdidos pela geração seguinte” (DURKHEIM,
2013, p. 60), sendo desnecessário um constante recomeço por parte da sociedade. A
partir deste entendimento, podemos destacar a importância e o foco que a questão
educativa tem para Durkheim.
A educação, para o sociólogo, teria como objetivo e fim a constituição do ser
social em cada um de nós. “Com exceção de tendências vagas e incertas que po-
dem ser atribuídas à hereditariedade, ao entrar na vida, a criança traz apenas a
sua natureza de indivíduo” (DURKHEIM, 2013, p. 55), sendo assim, a cada nova
geração o meio social tem como preocupação a transmissão de todos os elementos
estruturais e simbólicos que o compõe. O papel da educação será justamente ga-
rantir essa transmissão, possibilitando a formação de um novo ser, que é diferente
e que irá substituir “o ser egoísta e associal que acaba de nascer por um outro
capaz de levar uma vida moral e social” (DURKHEIM, 2013, p. 55). Temos em um
momento, então, o homem em seu estado de natureza, antes de ser educado, e em
outro aquilo que Durkheim irá considerar como sendo a verdadeira humanidade do
homem, aquela para a qual a educação contribui para realizar, “o indivíduo [como]
resultado de um desenvolvimento social e histórico” (JONES, 2016, p. 86).
Assim, percebemos que a função da educação é a criação do ser social e que
esta ação ocorre de forma contínua na sociedade. Cada nova geração que começa a
fazer parte de um contexto social desconhece as ideias e práticas compartilhadas
neste, “a cada nova geração, a sociedade se encontra em presença de uma tábula
quase rasa sobre a qual ela deve construir novamente” (DURKHEIM, 2013, p. 55).
A educação, neste sentido, será aquela capaz de internalizar no indivíduo todos os
sentimentos, ideias e valores, em resumo, todo o conhecimento acumulado da socie-
dade da qual ele faz parte. Em outras palavras, segundo a definição de Durkheim
(2013, p. 53-54),
[...] a educação é a ação exercida pelas gerações adultas sobre aquelas que ainda não estão
maduras para a vida social. Ela tem como objetivo suscitar e desenvolver na criança um
certo número de estados físicos, intelectuais e morais exigidos tanto pelo conjunto da socie-
dade política quanto pelo meio específico ao qual ela está destinada em particular.
Neste âmbito, a educação, de forma geral, pode ser compreendida como o
meio de socialização dos indivíduos. A construção desta socialização acontece ao
longo das trajetórias de vida de cada um dos membros da sociedade e se molda
na medida em que nos envolvemos com diferentes grupos sociais. A partir disso,
podemos distinguir duas formas de socialização, a primária e a secundária. A pri-
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meira diz respeito ao início da nossa vida enquanto sujeito, ela “ocorre quase que
inteiramente no âmbito da família ou da escola maternal, sucedâneo da família”
(DURKHEIM, 2008a, p. 33) e abrange os primeiros processos educativos aos quais
somos submetidos. Neste momento, que acontece durante a infância, iniciamos a
internalização do mundo social e passamos a perceber suas normas e costumes.
Ainda, é na socialização primária que começamos a ter contato com os primeiros
indivíduos, já socializados, que acabam transmitindo sua realidade e sua visão de
mundo, conduzindo a nossa identificação no espaço social.
A socialização secundária inicia “na escola primária, quando a criança começa
a sair do círculo familiar e [passa] a se inserir no meio que a circunda” (DUR-
KHEIM, 2008a, p. 33). Aqui já entendemos que a criança se encontra em parte so-
cializada, no entanto, este segundo tipo de socialização mantem-se ao longo da vida
e corresponde ao processo de inserção e envolvimento dos indivíduos em diferentes
grupos e esferas sociais, incluindo aqui os diferentes níveis escolares. A partir do
momento em que saímos de um espaço mais restrito e íntimo, como o meio familiar,
e passamos a adentrar espaços sociais mais amplos e diversos, como o trabalho, a
igreja, círculos de ativismo, grupos de amigos, etc., internalizamos e apreendemos
as características e aspectos gerais destes espaços ou de seus membros. Desta for-
ma, a cada relação ou conexão que estabelecemos com um novo grupo passamos a
ser socializado por ele. A socialização secundária, então, acaba sendo mutável ao
longo da vida e depende dos tipos e graus de envolvimento e laços sociais que os
indivíduos se submetem na sua trajetória.
É importante destacar que as formas de socialização e o processo educativo,
na maioria das vezes, ocorre sem que tenhamos total objetividade ou clareza sobre
eles. Isso quer dizer que existe uma educação consciente, que é quando os costu-
mes, as práticas e os valores são transmitidos intencionalmente, com o claro pro-
pósito de ensinar algo às crianças, mas também existe uma educação inconsciente,
que ocorre de maneira não intencional. Este processo de intencionalidade também
pode ser percebido na forma de apreensão e internalização individual, em que,
em determinados momentos, nos colocamos dispostos a introjetar alguns aspectos
sociais, enquanto em outros, isso ocorre de maneira mais naturalizada.
Além disso, devemos pontuar que os processos de socialização também podem
existir de duas maneiras: formal e informal. A educação formal é aquela que tem
lugar nas instituições destinadas a este fim e é marcada por práticas e rituais aos
quais são submetidas todas as crianças de forma intencional. Essas instituições são
socialmente reconhecidas por como instâncias legítimas e responsáveis por formar
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os indivíduos em conformidade com os mais importantes valores de tal sociedade
ou grupo, sendo incumbidos de transmitir seus conhecimentos e princípios.
Em cada sociedade e em cada momento histórico, a educação formal foi sempre
muito diferente. Em algumas tribos, por exemplo, a educação formal pode ter sido
atribuída aos rituais de luta, ou de alguma dança, que todos deveriam aprender
em alguma idade. O próprio rito de passagem, que também é bastante diferenciado
nas várias culturas, consiste num tipo de educação, enquanto se trata sempre de
um teste que deve provar que o indivíduo aprendeu as coisas necessárias, podendo
agora ingressar numa nova etapa da vida social.
No caso da educação formal da sociedade ocidental contemporânea, por exem-
plo, as instituições têm como objetivo ensinar determinados conteúdos e disciplinas
e, por vezes, determinadas formas de tratamento. Entretanto, percebemos que os
responsáveis por esta educação também podem tornar estéreis os ensinamentos
transmitidos de forma consciente, quando não seguem na prática aquilo que ensi-
nam.
A educação informal acontece em espaços não formalizados para este fim, ain-
da que exista uma intencionalidade na transmissão, tais como igrejas, associações
e partidos políticos. No caso da educação informal também percebemos as formas
de socialização quando em uma família, por exemplo, a mãe ensina a seus filhos
como se portar à mesa ou o porquê é importante comer determinados alimentos.
Porém, os pais também ensinam a seus filhos, sem que percebam, como devem an-
dar, como devem falar ou como deve ser o relacionamento entre os indivíduos. Aqui
temos uma educação informal que se dá de forma não intencional ou não conscien-
te, cujos efeitos também são decisivos sobre os sujeitos em processo de formação.
De qualquer forma, aquilo que é fundamental observar é que em todas essas
ocasiões a educação implica sempre um determinado modo transmissão, na medida
em que por meio de ações, palavras e ensinamentos a criança interioriza os valores,
as ideias, os modos de agir, de falar e de pensar característicos da sociedade em que
vive, conformando-se às normas sociais.
De forma muito didática em seus escritos, Durkheim fez questão de esclarecer
que esta visão de educação/socialização não coloca o indivíduo de forma resignada
ou passiva frente aos anseios da sociedade. Diferente dos animais, estimulados a
desenvolverem instintos latentes ou tendências do seu organismo natural, a com-
plexidade da vida humana exige uma ação exterior que não se limite “a reforçar
tendências naturalmente marcantes, [...] ou seja, desenvolver potencialidades
ocultas que só estão esperando para serem reveladas” (DURKHEIM, 2013, p. 55).
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A educação como socialização em Émile Durkheim
ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Devemos entender que foram os próprios indivíduos, ao longo da sua evolu-
ção e do desenvolvimento dos seus conhecimentos, que tiveram a necessidade de
constituir a sociedade enquanto tal e de criar meios para que ela se consolidasse e
se perpetuasse. A educação e todo seu processo, neste sentido, correspondem aos
anseios de um contexto, demonstrando que o indivíduo “só sentiu a sede do saber
quando a sociedade a provocou nele, e a sociedade só a provocou quando ela mesma
sentiu essa necessidade” (DURKHEIM, 2013, p. 57). Com isso, compreendemos e
ressaltamos a complementariedade que existe na relação indivíduo-sociedade, que
longe de se mostrarem como antagônicos, um acaba implicando o outro. Tudo o que
somos enquanto membros da sociedade ou enquanto ser social foi nos dado pelos
processos de socialização. Nossa identificação enquanto sujeito, nossas vontades e
hábitos, nosso desenvolvimento, nossa forma de comunicação, nossos costumes e
nossas visões de mundo foram possibilitadas porque fomos incorporados a um meio
social e internalizamos aquilo que a vida coletiva tem de mais fundamental. Assim,
caso não nos apropriássemos daquilo que a sociedade tem a oferecer, seriamos re-
duzidos a uma condição primitiva, afinal,
[...] o objetivo e o efeito da ação que [a sociedade] exerce sobre [o indivíduo], principalmente
através da educação, não são nem um pouco reprimi-lo, diminuí-lo, desnaturá-lo, mas sim
amplificá-lo e transformá-lo em um ser verdadeiramente humano (DURKHEIM, 2013, p. 60).
Com intuito de compreensão mais aprofundada desta discussão e como forma
de ampliação do entendimento acerca do fenômeno educativo para Durkheim, de-
vemos abarcar outro elemento desenvolvido e investigado pelo autor que dialoga
diretamente com os apontamentos apresentados até o momento, qual seja, a moral.
A educação moral e seus elementos
A questão da moralidade foi tratada por Durkheim de forma muito aprofun-
dada e complexa e coloca-se como discussão central quando tratamos o fenômeno
educativo. Assim como seus estudos sobre a educação, o autor procurou entender
as bases do conceito de moral, desenvolvendo o caráter histórico da moralidade,
sua definição, seu papel social e seus elementos constitutivos, ou seja, Durkheim a
apreendeu também como um fato social.
Neste sentido, partimos da ideia de que a moral não emana das consciências
individuais, mas é colocada como algo cuja origem é exterior ao indivíduo, na medi-
da em que ela existe objetivamente na sociedade. Assim, quando tratamos da mo-
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ral durkheimiana, não tratamos de enunciados imperativos, isto é, não indicamos
aquilo deve ou não deve ser feito, como se fossem em si pronunciamentos morais,
mas a compreendemos a partir de pronunciamentos declarativos, isto é, juízos que
apenas descrevem o que é a moral em uma sociedade em um momento determina-
do. Isso significa que o estudo da realidade moral se apresenta, neste caso, sob um
aspecto puramente objetivo.
A partir da concepção de Durkheim podemos entender a moral como tudo aqui-
lo “que é fonte de solidariedade, tudo o que força o homem a contar com outrem, a
reger seus movimentos com base em outra coisa que não os seus impulsos” (DUR-
KHEIM, 2010, p. 420). Em outras palavras, a moral de uma sociedade se apresenta
como um conjunto de máximas, um conjunto de regras de conduta “investidas de
uma autoridade especial em virtude da qual são obedecidas, pelo fato de que elas
ordenam” (DURKHEIM, 1970, p. 43-44).
De maneira genérica, é possível afirmar que a moral pode ser compreendida
em um sentido mais amplo e em um sentido mais restrito. No sentido mais amplo,
a moral pode ser definida como um conjunto de regras que garantem a existência
de uma sociedade. Isso porque, na medida em que são compartilhadas por seus
membros, tais regras determinam um padrão normativo para a ação e a coesão
social. No sentido mais restrito, a moral é apenas um tipo particular de regra, uma
regra que é ditada pela sociedade e que existe para a sociedade. É um conjunto de
prescrições que definem o que um indivíduo deve ou não deve fazer. Em ambos os
casos, elas consistem “em uma infinidade de regras especiais, precisas e definidas,
que fixam as condutas dos homens nas diversas situações que se apresentam coti-
dianamente” (DURKHEIM, 2008b, p. 40)
Como pode ser notado, a articulação entre as definições de moral, ampla ou
restrita, envolve duas ordens de questões de caráter mais analítico, quais sejam, as
regras e os valores. Usualmente, é comum que se entenda que regras seriam algo
diverso de valores. As regras apareceriam como impositivas e exigiria certo sacrifí-
cio, enquanto os valores seriam atrativos, que, com ânimo e espontaneidade, a eles
nos dedicaríamos. Contudo, no pensamento durkheimiano, regras e valores não se
diferenciariam radicalmente; representariam apenas graus diferentes de adesão e
condicionamento à moral. Essa diferenciação está na base da distinção entre moral
no sentido amplo – considerada como regras e valores – e moral no sentido restrito
– que se refere apenas à dimensão coercitiva da regra. Essa perspectiva é crucial
para a forma com que o autor percebe a vida social.
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Cotidianamente, as regras e os valores podem aparecer para nós como as-
pectos bastante distintos, na medida em que pela categoria “regras” entendemos
imposições alheias a nossa vontade, mas às quais obedecemos para evitar a pena
que decorre de sua não obediência. Em suma, entendemos a regra como uma res-
trição à nossa liberdade. Por outro lado, a categoria “valor” implica tudo aquilo
que prestigiamos, que desejamos e que nos esforçamos para conquistar ou para
manter. Num contexto mais amplo, são os valores compartilhados pelos membros
de uma sociedade que incitam uma ação comum em defesa dessa ou daquela causa,
que nos levam a ter as mesmas crenças, os mesmos gostos, conferindo, assim, uma
identidade própria a cada sociedade. Vistos dessa forma, os valores aparecem como
a expressão de uma escolha, como afirmação da própria liberdade de agir segundo
os próprios valores, não segundo valores que nos são estranhos ou imperativos.
Entretanto, conforme nos revela a teoria durkheimiana, os valores possuem
um caráter tão restritivo e coercitivo quanto as próprias regras, com a diferença
de que as regras nos são impostas de maneira mais explícita e, por vezes, mais
desagradável, enquanto os valores são inculcados de maneira mais sutil, passam a
fazer parte de nossa consciência, condicionando até o modo como vemos e sentimos
a realidade que nos circunda. Isso pode ser observado, por exemplo, nos padrões
sociais em relação ao corpo ou modos de vestimenta. Desta forma, percebemos o
quão difícil é desejar algo além desses padrões, porque nos envolvem em todas as
nossas dimensões, impõe-se a nós por todos os lados. Em resumo, aquilo que parece
ser uma escolha é, na verdade, também uma forma de ausência de liberdade.
Por outro lado, tudo aquilo que consideramos como regra aparece sempre
como imposição, como obrigação e dificilmente esconde o fato de tratar-se de uma
prescrição alheia a nossa vontade, pois reconhece-se sempre a exterioridade de sua
origem. No caso particular da regra moral, a obediência parece ainda mais incômo-
da, na medida em que não se trata de uma ação que se reverte imediatamente a
nosso favor, – como, por exemplo, nos casos das regras de higiene – mas que temos
que obedecer simplesmente porque assim nos dita a regra. Entretanto, é justamen-
te por ter um caráter coercivo mais explícito que a regra permite perceber que se
trata de uma imposição social, cujos mecanismo, finalidades e razões de ser podem
ser compreendidos. Com isso, abre-se a possibilidade de agir de forma consciente,
porque sabemos que se trata de uma regra social. Dessa forma, ao conhecer seus
fundamentos e objetivos, somos capazes de julgar a pertinência desses fundamen-
tos, questionando, inclusive, a validade atual de determinadas regras, contribuin-
do, na medida do possível, para conservá-las ou para renová-las.
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Portanto, a partir dessas considerações, é possível afirmar que os valores
também podem ser considerados como regras, pois também prescrevem aquilo que
devemos desejar, aquilo em que devemos acreditar, aquilo que devemos defender.
Por outro lado, as regras também podem vir a se tornar valores, na medida em
que reconhecemos que suas prescrições têm como finalidade garantir aquilo que
consideramos um valor. Isso ocorre porque tanto a regra quanto o valor possuem
uma mesma origem: a moral.
Como exemplo, podemos defender o fato de que, na sociedade brasileira, ao
menos nos termos de nossa Constituição, a vida humana é considerada como o
mais alto valor. Entretanto, para que esse valor seja respeitado, isto é, para que a
vida de cada indivíduo seja respeitada, essa mesma Constituição define como regra
que é absolutamente proibido matar um ser humano. Por tratar-se de um valor
tão fundamental, o desrespeito a essa regra implica não apenas em uma sanção
social – que é o desprezo pelo indivíduo que infringiu tal regra –, mas também uma
sanção penal, que implica em uma dupla exclusão – uma exclusão moral no âmbito
do convívio social e uma exclusão física, que dura o tempo que, em tese, a Justiça
considera necessário para a reestruturação moral do indivíduo. Ao mesmo tempo,
os muitos questionamentos a esse princípio que testemunhamos no Brasil contem-
porâneo revelam, em primeiro lugar, que esse valor não foi transmitido de forma
eficaz por nosso sistema educacional, revelando um descompasso entre princípios
constitucionais e os valores que circulam nos muitos grupos secundários. A relação
entre educação e moral é tanto mais complexa e tensa quanto mais segmentada e
diversa é a sociedade em questão.
Essa distinção entre regra e valor pode ser reconhecida na discussão que Dur-
kheim realiza acerca dos dois aspectos da moral, quais sejam, o dever e o bem. Se,
por um lado, a moral impõe-se como algo contrário à nossa vontade, por outro, nós,
ao mesmo tempo, estimamos a regra moral. Isso porque sabemos que essas regras
garantem a existência do grupo ao qual pertencemos e, por isso mesmo, é fonte de
nossos valores, sendo investido de um caráter sagrado, isto é, inviolável e acima
das coisas profanas, ordinárias1.
Esses elementos constitutivos da moralidade, aqueles mais gerais e constan-
tes, devem estar presentes em toda e qualquer moral e têm como contrapartida no
sujeito certas disposições subjetivas, que o autor chama de “espírito”, querendo,
com isso indicar o caminho que a educação deveria assumir em seu trabalho for-
mativo. O espírito de disciplina, o espírito de adesão ao grupo e o espírito de au-
tonomia são, portanto, a contrapartida individual da moralidade, cuja construção
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A educação como socialização em Émile Durkheim
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seria papel primordial da educação. É importante ressaltar que os dois primeiros
elementos são comuns à moral como um todo, enquanto o último só é possível quan-
do estamos diante de uma moral racional e laica, isto é, conforme as aspirações da
sociedade de sua época.
O primeiro elemento refere-se ao espírito de disciplina e tem como fundamento:
[...] uma característica comum a todas as ações que comumente chamamos morais, que é o
fato de que estas se dão segundo regras preestabelecidas. Conduzir-se moralmente é agir
em conformidade com uma norma, que determina a conduta a ser seguida antes mesmo que
tomemos partido acerca do que devemos fazer. O domínio da moral é o domínio do dever e
o dever é uma ação prescrita (DURKHEIM, 2008a, p. 39).
Esse elemento tem como características centrais o gosto pela regularidade, a
limitação do desejo, o esforço e o respeito à regra que inibe os impulsos. A regulari-
dade envolve a necessidade de hábitos solidamente constituídos em uma sociedade,
mas não se confunde com eles. O sentimento de regularidade é possível em virtude
da autoridade que emana da moralidade, quando se percebe a ascendência exerci-
da pela força moral. Isso é perceptível quando não seguimos ou quando violamos as
regras morais e, a partir disso, podemos sofrer sanções das mais diversas formas.
No entanto, é importante destacar neste elemento, conforme coloca Durkheim,
que, por mais que pareça, o “dever moral não é uma limitação destrutiva, que reduz
o homem, mas, ao contrário, ajuda-o a viver de acordo com os parâmetros de nor-
malidade” (WEISS, 2009, p. 180). O papel da moralidade pode ser entendido como
uma forma de autocontrole do indivíduo, uma forma de moderar a nossa ação e nos-
sos impulsos e de perceber nossas limitações, possibilitando a vida em sociedade.
No fim, a noção de disciplina acaba se tornando uma condição de satisfação para
quem a internaliza, pois, “quando nossas tendências são libertadas de todo comedi-
mento, quando nada as limitam elas se tornam tirânicas e seu primeiro escravo é o
próprio sujeito que as experimenta” (DURKHEIM, 2008a, p. 58).
O segundo elemento da moral, o espírito de adesão ao grupo, refere-se, de
forma geral, à disposição do indivíduo em aderir à sociedade. Como já colocado, o
sujeito se satisfaz e se constitui enquanto vinculado ao seu meio social, indo além
dos seus fins pessoais ou da sua individualidade. Essa visão é bastante peculiar à
concepção durkheimiana de moral, pois mostra que, ao construir vínculos afetivos
com o grupo, que motivam seu pertencimento, o sujeito também acaba aderindo às
suas regras e normas: a moral deixa de ser somente uma imposição, um dever, e
passa a se tornar um bem, dado que essa inserção no grupo é algo que faz parte da
própria natureza humana e pelo qual o sujeito tende a ter um apreço. De forma bas-
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tante simples, podemos afirmar que o ser humano só pode realizar-se plenamente
quando vive coletivamente e, ao estabelecer nexos de afeto e interdependência com
o grupo, passa a internalizar também a moral do grupo, processo protagonizado
pela educação, mecanismo central para desenvolver nas crianças o gosto pela vida
coletiva e as disposições necessárias para seguir as regras que tornam possível a
existência do grupo. Afinal,
[...] a moralidade existe pelo simples fato de fazemos parte de um agrupamento humano,
qualquer que seja ele. Mas, como o homem só é completo se faz parte de múltiplas socieda-
des, a própria moralidade só é completa na medida em que nos sentimos solidários a essas
diversas sociedades das quais participamos (DURKHEIM, 2008a, p. 90).
O terceiro e último elemento é o espírito de autonomia, que deve ser formado
no indivíduo para que este tome consciência das regras morais às quais se sub-
mete, e para que, conhecendo sua natureza e suas funções, seja capaz de enten-
dê-las e transformá-las, sempre que julgar necessário. A autonomia, então, pode
ser entendida como “a atitude do indivíduo que aceita a regra porque a reconhece
racionalmente estabelecida” (FAUCONNET, 2013, p. 24), é o entendimento de uma
autonomia da vontade racional, de compreender com a razão aquilo que é o bem,
aquilo que é possível. Assim, conforme Durkheim (2008a, p. 121), entramos no
âmbito de uma adesão esclarecida, em que “querer livremente não é querer aquilo
que é absurdo; pelo contrário, é querer aquilo que é racional, é querer agir em con-
formidade com a natureza das coisas”.
A proposta desse terceiro elemento deve ser entendida contra o pano de fundo
do engajamento de Durkheim com a consolidação da Terceira República e a deman-
da de implementação de uma moralidade laica e racional. Esse comprometimento
com as reformas nos sistemas de ensino justifica em grande medida o lugar central
que a educação ocupou em sua obra e, sobretudo, explicam a presença de argumen-
tos de caráter normativo em seus escritos. No seguinte trecho, encontramos uma
definição que sintetiza muito bem como o autor entendia em que deveria consistir
uma educação moral laica, sendo:
[...] uma educação que abdica de qualquer referência aos princípios sobre os quais repou-
sam as religiões reveladas, que se apoia exclusivamente sobre ideias, sentimentos e práti-
cas que se justificam unicamente pela razão, em uma palavra, uma educação puramente
racionalista (DURKHEIM, 2008a, p. 19).
A moral, neste sentido, percebida e entendida como um fenômeno de origem
social, instituída para os indivíduos, também deveria ser apreendida pelo viés da
racionalidade. Entendemos que as regras morais são estabelecidas de acordo com
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as necessidades de cada coletividade, correspondendo àquilo que o meio social de-
manda para que seus membros possam viver em sociedade, garantindo uma forma
de organização que lhe é própria. Em última instância, a sociedade é o fim, a fonte
e a legitimidade da moral e esta se coloca, ao mesmo tempo, como o núcleo da vida
coletiva, que influencia de maneira mais ou menos direta todos as suas dimen-
sões, e à educação cabe o papel de transmitir esses princípios às novas gerações.
A educação é, portanto, o dispositivo central de reprodução social, mas também de
transformação social.
A escola, neste aspecto, seria responsável por desenvolver nos novos membros
de uma sociedade as disposições fundamentais que a compõem, as suas bases mo-
rais e seus fundamentos. O espaço e os processos educacionais têm como finalidade
preparar os indivíduos para viver no seu meio social, estabelecendo neles as dispo-
sições fundamentais para a vida em grupo. Ainda, especificamente na educação e
na moralidade laica, edificada a partir dos anseios e das demandas da sociedade, o
espírito de autonomia se coloca como possível, permitindo que se conheça a nature-
za da moralidade em questão, “para que se possa aderir a ela de forma espontânea
e consciente, ou contribuir para que a moral encontre sua normalidade, caso se re-
conheça que ela está contrariando sua própria razão de ser” (WEISS, 2009, p. 185).
Assim, entendendo que uma base racional pode conferir verdadeira autono-
mia aos indivíduos, percebemos que todo o ensino encerra em si uma finalidade
moral, pois, ao transmitir conhecimento, seja sobre o homem, seja sobre a nature-
za, o ensino contribui para a formação da racionalidade e da autonomia. A partir
da defesa da necessidade de um ensino leigo da moral, os indivíduos poderiam
alcançar gradualmente a consciência e a autonomia necessárias para compreen-
derem e transformarem a moral e as regras de sua sociedade, de acordo com o que
lhes indicar a razão, fazendo com a sua socialização, no decorrer da vida, não esteja
submetida a qualquer tipo de conformidade passiva, desinteressada ou acrítica.
Conclusão: a educação como ação transformadora
A educação se coloca na nossa frente como a forma direta de socialização, como
fenômeno que nos instrui e nos permite viver em sociedade, fazendo com que com-
preendamos a necessidade das regras e limitações impostas e a importância da
nossa vinculação aos grupos sociais existentes. Desta maneira, a educação se apre-
senta como um fenômeno central e essencial, tanto para a sociedade quanto para
os indivíduos, pois cria uma relação de dependência entre estes.
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Para Durkheim, o que somos enquanto sujeitos é constituído a partir da nossa
relação com o outro, ou seja, somos resultado das nossas interações e da interna-
lização que fazemos do meio ao qual estamos inseridos. Nesse sentido, podemos
entender quão difícil é desviarmos da sociedade em que vivemos, pois é dela que
retiramos a base para tudo aquilo que fazemos ou pensamos. Entretanto, como já
levantado anteriormente, isso não significa que estamos em um estado de passivi-
dade e aceitação daquilo que nos é colocado cotidianamente. A partir do momento
em que introjetamos e absorvemos os elementos do meio e estes passam a fazer
parte da nossa consciência individual, diferentes modificações podem ser construí-
das. De forma geral, entendemos que não somos constituídos de forma neutra; pelo
contrário, somos continuamente influenciados pelas práticas e simbolismos que
nos cercam, mas possuímos também, ao longo do nosso desenvolvimento, possibili-
dades de posicionamento – positivos ou negativos – perante o mundo.
O papel central da educação é, de certa maneira, permitir a continuidade e a
manutenção do meio social, transmitindo a cada geração aquilo que já foi construí-
do anteriormente. Mas entendemos também que, tanto por meio da formação de
um pensamento autônomo nos novos sujeitos quanto de uma visão constantemente
consciente do papel atribuído às gerações adultas como responsáveis por transmi-
tir aquilo que a sociedade deseja, o processo educacional amplia seu papel de mero
reprodutor daquilo que já existe e passa a ter um caráter transformador.
Neste sentido, lembrando que a educação e a moral correspondem àquilo que
o contexto específico exige, percebemos que a nossa sociedade é composta e lida
constantemente com diferentes visões de mundo e diferentes pressupostos, neces-
sitando um tipo de vinculação que entenda a valorização da diferença como o ideal
moral que permite a nossa existência atual enquanto coletividade. Sendo assim, da
mesma maneira que Durkheim refletiu sobre a necessidade de mudanças na esfera
educacional na sua época, devemos repensar as nossas formas de socialização e
perguntar que paradigma de sujeito queremos instituir para saber lidar com toda
diversidade que nasce e se consolida naturalmente em cada âmbito das nossas
vidas individuais e coletivas.
Nota
1 Para uma discussão sobre o sentido do sagrado em Durkheim e sua relação com a moral, veja-se o texto de
Rosati e Weiss (2015), em que se apresenta a proposta de uma atualização da sociologia da moral de matriz
durkheimiana.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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34 ESPAÇO PEDAGÓGICO
Este artigo está licenciado com a licença: Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
Cledes Antonio Casagrande
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Da sociedade ao indivíduo e de volta à sociedade:
socialização e individuação em G. H. Mead
From society to the individual, and back to society: socialization and individuation in G. H. Mead
De la sociedad al individuo, y de vuelta a la sociedad: socialización e individuación en G. H. Mead
Cledes Antonio Casagrande*
Resumo
Este ensaio tem por tema central os processos de socialização e de individuação em George Herbert Mead. Trata-
se de um texto teórico e hermenêutico, com ns propedêuticos, ligado ao campo da losoa da educação. O
objetivo consiste em discutir como Mead, em seus escritos, compreende e descreve os processos de formação
dos sujeitos sociais e quais as possíveis correlações desses processos com a capacidade de viver em comunidade,
sob a égide da ética e da democracia. No texto, argumenta-se que o processo de formação do self remete à
socialização individuadora e que a emergência da consciência do “si mesmo somente é possível por meio da
interação e da participação efetiva na vida da comunidade. Por isso, é possível ponderar que a incapacidade
de pensar e agir desde uma perspectiva social representa um décit formativo, de reponsabilidade do próprio
indivíduo e também da sociedade.
Palavras-chave: educação; socialização; individuação; ética; democracia.
Abstract
This essay has as its central theme the processes of socialization and individuation in George Herbert Mead. It is
a theoretical and hermeneutic text, with propaedeutic purposes, linked to the eld of philosophy of education.
The objective is to discuss how Mead, in his writings, understands and describes the processes of formation of
social subjects and what are the possible correlations of these processes with the ability to live in community,
under the aegis of ethics and democracy. In the text, it is argued that the process of forming the self refers
to individuating socialization, and that the emergence of the self is only possible through interaction and the
eective participation in the life of the community. Therefore, it is possible to consider that the inability to think
and act from a social perspective represents a formation’s decit, which is liability the individual himself and also
of the society.
Keywords: education; socialization; individuation; ethics; democracy.
* Doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Docente e pesquisador no Programa
de Pós-Graduação em Educação da Universidade La Salle; Pró-Reitor Acadêmico e Vice-Reitor dessa mesma institui-
ção. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-1499-1661. E-mail: cledescasagrande@gmail.com
Recebido em: 14/07/2020 Aprovado em: 13/01/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i1.11232
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v. 28, n. 1, Passo Fundo, p. 34-54, jan./abr. 2021 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Resumen
Este ensayo tiene como tema central los procesos de socialización e individuación en George Herbert Mead. Es
un texto teórico y hermenéutico, con nes propedéuticos, vinculado al campo de la losofía de la educación. El
objetivo es discutir cómo Mead, en sus escritos, comprende y describe los procesos de formación de los sujetos
sociales y cuáles son las posibles correlaciones de estos procesos con la capacidad de vivir en comunidad,
bajo los principios de la ética y la democracia. En el texto, se argumenta que el proceso de formación del yo se
reere a la socialización individualizada, y que el surgimiento de la conciencia del “yo” solo es posible a través
de la interacción y la participación efectiva en la vida de la comunidad. Por lo tanto, es posible considerar
que la incapacidad para pensar y actuar desde una perspectiva social representa un décit formativo, que es
responsabilidad del individuo y también de la sociedad.
Palabras clave: educación; socialización; individuación; ética; democracia.
Introdução
The man without a generous impulse is abnormal
and abhorrent” (MEAD, 1981, p. 392).1
Mead é um autor clássico e seminal para entender os processos de formação
dos sujeitos sociais, especialmente o conceito de individuação por meio da socia-
lização2. A diminuta difusão de seus escritos no cenário acadêmico brasileiro e a
existência, entre nós, de certa crítica velada ao pragmatismo relegaram-lhe uma
posição de autor secundário, somente recentemente redescoberto e tematizado3.
Entretanto, isso não significa que sua originalidade e sua concepção diferen-
ciada da formação do self, da ética e da democracia tenham menor valor acadêmico.
Habermas (2010, p. 213), por exemplo, ao referir-se à importância deste autor,
afirma: “Na psicologia social de G. H. Mead, vejo esboçada a única tentativa com
perspectiva de êxito para reproduzir no plano conceitual o pleno teor significante
da individuação”. Honneth (2003, p. 125) alinha-se no elogio à teoria intersubjetiva
de Mead com a seguinte assertiva:
Em nenhuma outra teoria, a ideia de que os sujeitos humanos devem sua identidade à
experiência de um reconhecimento intersubjetivo foi desenvolvida de maneira tão conse-
quente sob os pressupostos conceituais naturalistas como na psicologia social de George
Herbert Mead.
Tugendhat (1993), por seu turno, atribui a Mead posição de destaque no que
tange à possibilidade de entender os processos da autoconsciência e da autodeter-
minação dos sujeitos. Entre nós, Dalbosco (2010) foi um dos primeiros a reconhecer
o potencial pedagógico do conceito pragmatista de ser humano advindo desse autor.
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Levando em consideração a relevância teórica e o aumento do interesse do pú-
blico acadêmico em G. H. Mead, este ensaio objetiva abordar, de modo panorâmico,
os processos de individuação por meio da socialização, uma das principais teses
deste autor, bem como as possíveis implicações dessa tese para o campo da educa-
ção. O texto consiste em um exercício teórico-hermenêutico, com foco no campo da
filosofia da educação, e parte das seguintes questões correlatas: Como G. H. Mead
concebe o processo de formação do self? Que reflexões educacionais podem emergir
da compreensão de Mead acerca da individuação por meio da socialização no atual
contexto brasileiro? Quais as possíveis relações entre formação do eu e a vida em
sociedade, na perspectiva apontada por este autor? Expresso de outro modo, inte-
ressa-nos discutir, aqui, como Mead, em seus escritos, compreende e descreve os
processos de formação dos diversos sujeitos sociais e quais as possíveis correlações
desse processo formativo com a capacidade de viver em comunidade, sob a égide da
democracia e da ética4.
A matriz intersubjetiva e simbólica a partir da qual Mead concebe a forma-
ção dos indivíduos em sociedade, ou a individuação por meio da socialização, traz
implicações lógicas para compreendermos o campo da educação e da formação hu-
mana. A principal delas pode ser resumida na seguinte asserção: a incapacidade
de pensar e de agir socialmente, ou desde a perspectiva de uma sociedade mais
ampla, antecipando as condições ideais de uma vida boa em comunidade, com a
consequente superação do egoísmo e do egocentrismo, enseja uma espécie de déficit
formativo e humano, de responsabilidade do próprio indivíduo e também da socie-
dade na qual está inserido5.
Tendo em vista o recorte temático proposto e a necessária reflexão acerca
da assertiva anterior, estruturamos o artigo em três seções. Na primeira, num
movimento que denominamos ‘da sociedade ao indivíduo’, apresentaremos como
Mead descreve os processos de socialização e de individuação, ou os processos de
formação do self. Importa destacar aqui o papel da interação, da linguagem e da
comunicação para a estruturação da noção “si mesmo”. Na sequência, na seção
que denominamos ‘e de volta à sociedade’, explicitaremos o modo como um sujeito
individuado pode contribuir, por meio do agir ético e político, com a reconstrução da
própria sociedade. Finalmente, teceremos algumas considerações sobre a educação
e os processos formativos atuais à luz dos elementos teóricos já explicitados.
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Da sociedade ao indivíduo: uma leitura do processo de formação do self em G. H. Mead
Os escritos de G. H. Mead demarcam um renovado posicionamento teórico em
relação à compreensão dos processos de individuação dos sujeitos, deslocando-os
definitivamente aos campos da intersubjetividade e da comunicação. Diferente da
tradição filosófica vigente em sua época, Mead aponta que a gênese do self é social,
pois o sujeito somente desenvolve uma noção si mesmo na relação com seu entorno,
físico e social, por meio de processos de socialização, com a internalização das es-
truturas simbólicas da linguagem, numa matriz intersubjetiva e simbólica.
A radicalidade da afirmação da gênese social do self pode ser percebida na
seguinte afirmação: “Devemos ser outros se quisermos ser nós mesmos” (MEAD,
1981, p. 292). Essa asserção inclui definitivamente o elemento social na estrutura
do ‘si mesmo’ e enseja o reconhecimento que a socialização antecede a individua-
ção, mas não a elimina, pois indivíduo e sociedade constituem-se e evoluem num
processo de mútua dependência.
O caráter estruturante do self encontra-se no processo de interação simbólica
mediante o qual um organismo reage ao gesto do outro, internalizando a atitude ou
o papel social deste outro, o que pressupõe a interdependência entre os diversos su-
jeitos sociais. A concepção de que o self estrutura-se e se desenvolve a partir de uma
matriz social e simbólica sustenta-se em duas razões fundamentais: a) o reconheci-
mento do caráter social da vida humana, a anterioridade da sociedade em relação
ao indivíduo e a interdependência entre o sujeito e a sociedade; b) a centralidade da
comunicação simbólica enquanto o elemento responsável pela estruturação do self,
e a evolução da comunidade humana, como veremos na sequência.
a) O caráter social da vida humana
Como já apontamos, a obra de Mead pode ser compreendida como uma grande
defesa da tese de que a individuação ocorre, necessariamente, por meio da sociali-
zação. Isso implica dizer que a vida humana, em todas as suas fases, organiza-se
e desenvolve-se a partir da dimensão social, especialmente pela imersão dos in-
divíduos em uma comunidade concreta, e das consequentes aprendizagens neste
contexto. Ou seja, a gênese do self é social porque o ser humano humaniza-se e
individualiza-se por meio de processos de socialização.
Mead destaca o caráter originalmente social da vida humana, divergindo
das tradições filosóficas da sua época e enfatizando que as estruturas da sociedade
antecedem as estruturas subjetivas do indivíduo.
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Desenvolveu-se uma teoria que as sociedades humanas surgiram dos indivíduos, não os in-
divíduos da sociedade. Desta maneira, a teoria do contrato social afirma que os indivíduos
existem primeiramente como indivíduos inteligentes, como pessoas (as selves), e que estes in-
divíduos reúnem-se e formam sociedade. [...]. Contudo, se a posição que eu refiro está correta,
se o indivíduo obtém seu self somente através da comunicação com outros, somente através
da elaboração de processos sociais mediante a comunicação significante, então o self não pode
preceder o organismo social. O último deve existir primeiro (MEAD, 1967, p. 233).
Como vemos na citação anterior, a vida em sociedade antecede e é condição
para a formação do indivíduo, e a comunicação possui um papel central para a
socialização e a individuação.
Em Mind, Self and Society, Mead (1967) recorre à analogia entre as sociedades
humanas e as sociedades animais com a intenção de demonstrar o caráter social da
vida. No ambiente natural, podemos constatar que todas as formas sociais de vida,
inclusive aquelas de animais inferiores, ou não humanos, estão pautadas em rela-
ções sociais. Por isso, “não há organismo vivo, de qualquer espécie, cuja natureza
ou constituição seja tal que possa existir ou manter-se em completo isolamento de
todos os demais organismos vivos” (MEAD, 1967, p. 228).
Animais como a formiga e a abelha, embora manifestem condutas sociais, e
vivam em sociedades organizadas e hierarquizadas, não fundamentam seus com-
portamentos numa estrutura simbólica de interação. Nos animais inferiores não
humanos, ocorre uma diferenciação fisiológica que define as funções de cada um na
conduta social. O que diferencia e caracteriza os seres humanos é a comunicação,
pois “a sociedade humana depende do desenvolvimento da linguagem para sua
forma distintiva de organização” (MEAD, 1967, p. 235). Desse modo, não podemos
considerar que os atos de uma formiga ou de uma abelha sejam atos sociais no
sentido estrito do termo, pois um ato, para ser considerado social, necessita estar
orientado ao outro de modo intencional, pressupondo a interação comunicativa e a
cooperação entre os diversos indivíduos (MEAD, 1981).
Diferente dos outros animais, é por meio da comunicação simbólica que o ser
humano desenvolve a capacidade de adaptar o próprio comportamento ao compor-
tamento do outro.
O self, que é central para toda a chamada experiência mental, aparece somente na conduta
social dos vertebrados humanos. Os indivíduos se convertem em um objeto para si mesmos,
precisamente, porque descobrem-se a si mesmos adotando a atitude dos outros que estão
envolvidos nas suas condutas. [...] Além do mais, a verdade é que o self pode existir somen-
te para o indivíduo se ele assume os papéis sociais dos outros (MEAD, 1981, p. 283-284).
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A experiência de ser um self, um ‘si mesmo’, somente pode ser atingida no
envolvimento e na interação com os outros. Por isso, Biesta (1998, p. 74) constata
que, para Mead, “a intersubjetividade precede a subjetividade sendo constitutiva
dela”. Isso nos leva a entender que a autoconsciência dos diversos sujeitos consiste
numa construção intersubjetiva e simbólica. Intersubjetiva porque o indivíduo se
constitui no recurso à sociedade; e simbólica porque implica construção de sentido
e de significados por meio da linguagem. Tal construção não é isolada no tempo e
no espaço. Ela emerge no quadro determinado das ações e das relações do indivíduo
com os outros e com o meio ambiente em que vive.
Kaminsky (2009, p. 12) entende que a compreensão do processo de subjetiva-
ção presente em Mead inova em relação àquelas até então vigentes, porque sua teo-
ria do sujeito enseja uma ruptura com qualquer tipo de essencialismo e uma aposta
em um “perspectivismo fundado em uma ontologia da pluralidade: si mesmo posto
em diálogo, enlace e tensão autoconsciente pela via do outro generalizado”.
Honneth (2009) reconhece que a interpretação de Mead acerca da subjetivação
via interação social continua válida. Entende que na psicologia social de Mead
estão esboçados os primeiros elementos de uma compreensão que identifica a lin-
guagem, a comunicação e a interação como marcos na aquisição de uma identidade
pessoal.
Para Mead não resta dúvida de que o sujeito individual não pode adquirir uma identidade
consciente a não ser desde uma transposição a uma perspectiva excêntrica, de um outro
representado de maneira simbólica, desde a qual aprende a olhar a si mesmo e ao seu atuar
como participante de interação (HONNETH, 2009, p. 283).
A consciência de si mesmo emerge de um processo de reflexibilidade, de ante-
cipação e de reação à atitude do outro. Esse processo é, inicialmente, gestual, pro-
gredindo, posteriormente, para uma estruturação simbólica mediante a interação
social. De acordo com Biesta (1998, p. 83), “o gesto, tal como Mead o compreende,
consiste na primeira fase no ato social”. A ação ou gesto de um indivíduo é estímulo
para a reação ou resposta do outro.
A contribuição de Mead, consiste, portanto, na afirmação de que a subjetivida-
de e a consciência são produtos da intersubjetividade e da interação social. Há, em
seus escritos, o reconhecimento de que nós somos inscritos numa matriz intersub-
jetiva, numa espécie de rede de relações e de interações a partir da qual emerge a
consciência, a identidade individual e a sociedade.
Importa destacar que sob a perspectiva do princípio evolutivo, o indivíduo e a
sociedade são coparticipes e interdependentes de um mesmo processo.
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As modificações que introduzimos na ordem social na qual nos encontramos envolvidos,
implicam necessariamente que introduzamos modificações em nós mesmos. [...]. Assim,
as relações entre a reconstrução social e a reconstrução do self ou da personalidade são
recíprocas e internas ou orgânicas. [...]. Ou em poucas palavras, a reconstrução social e a
reconstrução do self ou da personalidade são os dois aspectos de um processo somente: o
processo da evolução social humana (MEAD, 1967, p. 309).
O processo evolutivo, que engloba self e sociedade, por meio da individuação
e da socialização, tensionando a formação de um si mesmo e a melhoria constante
da vida da comunidade, é, simultaneamente, ontogenético e filogenético. Ou seja,
pela interação e comunicação entre os diferentes sujeitos que vivem em comuni-
dade formam-se as estruturas da personalidade e, ao mesmo tempo, as estruturas
intersubjetivas de coordenação da sociedade.
A sociedade constitui-se não pela simples soma dos diversos indivíduos que
dela participam ou que a constituem. Ela consiste, sobremaneira, no conjunto das
ações de seus membros, ações intencionadas e organicamente estruturadas. No
pragmatismo de Mead, o que conta é a ação realizada, a vinculação efetiva a um
projeto comum e a implicação concreta de cada um com o todo da comunidade. Ou
seja, o ser humano realiza-se na medida de sua participação efetiva no seio da
comunidade. A participação no todo social é que distingue o grau de socialização e
o nível de individuação de cada sujeito. Quanto mais implicado na sociedade, mais
se socializa, mais se individualiza e mais adquire um self, uma consciência de si
como um ‘si mesmo’, pois estará adquirindo a capacidade de olhar o todo desde
uma perspectiva social e, ao mesmo tempo, evoluirá enquanto um ser individuado,
descentrando as próprias perspectivas.
b) Linguagem, comunicação simbólica e estrutura do self
Mead aponta que o caráter estruturante do self encontra-se na linguagem,
mais precisamente no processo de interação simbólica entre os diversos sujeitos
sociais, por meio da qual um organismo reage ao gesto do outro, internalizando a
atitude ou o papel social deste outro. Nesse sentido, ele afirma:
As sociedades humanas nas quais estamos interessados são sociedades de selves. O indiví-
duo humano é um self somente na medida em que toma a atitude do outro em direção a si
mesmo. Na medida em que essa atitude é a de certo número de outros, e na medida em que
ele pode assumir a atitude organizada de um número de participantes na atividade comum,
ele assume as atitudes do grupo para si mesmo e, ao assumir esta ou estas atitudes, define
o objeto do grupo, aquilo que define e controla a resposta (MEAD, 1981, p. 290).
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Como mencionado, o mecanismo empregado no processo de subjetivação é o da
internalização da atitude do outro. Por isso,
As pessoas somente podem existir em relações definidas com outras pessoas. [...]. O indiví-
duo possui um self somente em relação com os selves dos outros membros do seu grupo so-
cial; e a estrutura de seu self expressa ou reflete a pauta geral de comportamento do grupo
social ao qual pertence, assim como o faz a estrutura do self de todos os demais indivíduos
pertencentes a esse grupo social (MEAD, 1967, p. 164).
Mead (1981, p. 284) apresenta duas ilustrações do processo de desenvolvi-
mento do self: “o primeiro estágio é o do brincar (play) e o segundo o do jogar
(game), que são distintos entre si”. O brincar e o jogar consistem em analogias dos
fatores básicos implicados na gênese do self no decorrer da infância, e demonstram
a estruturação da noção de “outro generalizado”, uma convenção universalizada
da vontade coletiva da comunidade, que necessita ser internalizada por parte do
indivíduo para que ele desenvolva uma noção de “si mesmo”6.
Ao brincar, a criança adota vários papéis, um depois do outro, de pessoas ou
animais, que estão presentes em sua vida, e que possibilita-lhe transcender a bar-
reira do próprio ego, em direção a uma organização de atividades sociais, nas quais
a centralidade em si mesma começa a ser rompida pela emergência de uma noção
de um “outro” e de um “nós”. Nesse sentido, exemplifica Mead (1967, p. 150-151):
A criança brinca de ser uma mãe, um professor, um policial; ou seja, como dizemos, adota
diferentes papéis. [...]. Por exemplo, brinca que está oferecendo algo e o compra; entrega
uma carta e a recebe; dirige-se a si mesmo como um dos pais, como um professor; prende-se
como um policial. Tem uma série de estímulos que provocam nele a classe de reações que
provocam em outros. Toma esse grupo de reações e as organiza em certo todo. Tal é a forma
mais simples de ser outro para o próprio self.
Esse brincar livre, sem regras aparentes, possibilita a organização de uma
estrutura de conversação interior e o início do processo de diferenciação de papéis
sociais.
O jogar (game), por sua vez, refere-se às atividades com regras e pressupõe a
participação de mais de um jogador. Ao participar de um jogo coletivo, a criança
aprende a organizar o próprio comportamento adequando-o ao comportamento dos
outros jogadores, de modo que a atividade seja estratégica e articulada. O jogador
necessita adotar o papel que lhe é peculiar no jogo e, ao mesmo tempo, ser capaz
de modificar ou trocar de papéis no decorrer da atividade, de modo que seja capaz
de antecipar os possíveis movimentos ou ações dos companheiros com fins de obter
êxito ou, mesmo, antecipar as jogadas e os papéis dos adversários, impedindo-os
de vencer. Isso será possível mediante a internalização das expectativas de ação e,
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ao mesmo tempo, da organização dessas expectativas de modo que possa intervir
adequadamente no transcorrer do jogo.
O jogar, em equipe, configura um avanço em relação ao brincar individual,
pois amplia o horizonte da participação, da cooperação social e do descentramento
de si por parte dos envolvidos. Representa, também, uma situação arquetípica do
desenvolvimento da consciência de si, uma vez que articula a assunção de papéis
sociais, a vivência das regras convencionais da sociedade e a necessidade de um
controle pessoal do comportamento, com vistas à consecução de uma atividade que
envolve cooperação e participação com outros membros da comunidade.
No jogo, temos a introdução de um “outro” convencional no processo; não se
trata de um novo indivíduo, mas uma organização de atitudes e de ações suprain-
dividuais que envolvem todos os competidores no mesmo processo. Com a interna-
lização da figura desse “outro”, forma-se, mediante processo de universalização, o
que Mead denomina de “o outro generalizado”.
Pois em um jogo (game) há um procedimento regulado e normas. A criança deve adotar não
somente o papel do outro, como ela faz no brincar, mas deve assumir os vários papéis de
todos os participantes do jogo e governar suas ações de acordo com isso. [...]. E essas reações
organizadas se convertem no que denominamos de “outro generalizado” (generalized other),
que acompanha e controla sua conduta. A presença desse outro generalizado em sua expe-
riência é o que proporciona um self para si (MEAD, 1981, p. 285).
O “outro generalizado” condensa a vontade coletiva expressa em termos de
valores, regras, convenções, leis e costumes vigentes na comunidade. Trata-se da
dimensão social que necessita ser internalizada e que intervém nas atitudes dos
indivíduos distintos. Por isso, para Mead (1967, p. 154), “a atitude do outro gene-
ralizado é a atitude de toda a comunidade”. A adoção do “outro generalizado” por
parte do indivíduo consiste numa precondição ao desenvolvimento do self.
Somente na medida em que ele adotar as atitudes do grupo social organizado, ao qual
pertence, em direção à atividade social organizada e cooperativa, ou direcionada à série de
atividades na qual esse grupo está ocupado, somente nessa medida ele desenvolverá um
self pleno ou possuirá o tipo de self pleno que desenvolveu (MEAD, 1967, p. 155).
A necessidade de participação e de cooperação no grupo social, ou seja, a pre-
mência do processo de socialização ao de individuação consiste, também, no modo
mediante o qual a sociedade exerce controle sobre seus membros. E esse controle
social “dependerá do grau que o indivíduo assumir as atitudes daqueles no grupo
que estão envolvidos com ele em suas atividades sociais” (MEAD, 1981, p. 290). Ou
seja, não basta ao indivíduo estar num espaço geográfico definido; é necessário que
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viva como um membro de um grupo determinado, que se inculture, que assuma os
valores, as crenças e os objetivos próprios da comunidade à qual pertence.
Apesar do acento dado à dimensão social no processo de individuação, Mead
entende que também existe uma estrutura subjetiva própria, não redutível à pres-
são do grupo social. Nesse sentido, ele afirma:
Certamente não somos somente o que é comum a todos: cada uma das pessoas é distinta de
todas as demais; porém é preciso que exista uma estrutura comum como a que esboçamos
a fim de que possamos ser membros de uma comunidade. Não podemos ser nós mesmos a
menos que sejamos também membros numa comunidade de atitudes que controla as atitu-
des de todos (MEAD, 1967, p. 163-164).
Mead reconhece a existência de uma instância reflexiva do sujeito, uma base
subjetiva no self que é irredutível às determinações do grupo social. Expresso de
outro modo, para que o indivíduo humano desenvolva uma consciência de “si mes-
mo”, um self, é premente que, num processo de reflexibilidade, ele coloque a si mes-
mo enquanto objeto. Para detalhar esse processo, Mead recorre a uma bipartição
do self, diferenciando o “eu” (I) do “me/mim” (me) e, ao mesmo tempo, explicitando
a dinâmica dialética que se instala no interior da consciência de “si mesmo”. Nessa
dinâmica, “o ‘eu’ (I) reage ao self, que se originou por meio da adoção das atitudes
dos outros” (MEAD, 1967, p. 174).
Mead entende que o que pode ser elevado à consciência é o “mim” (me). Como
vimos, a consciência de si originou-se da internalização das atitudes dos outros, es-
pecialmente da assunção da perspectiva generalizada do grupo social, ou do “outro
generalizado”. O “eu” (I), entretanto, enquanto dimensão pessoal, não é redutível
ao “outro generalizado” internalizado enquanto “mim”, nem passível de captura
pela consciência.
O ‘eu’ (I) é a reação do organismo às atitudes dos outros; o ‘mim’ (me) consiste na série
organizada de atitudes dos outros que cada um assume. As atitudes dos outros constituem
o ‘mim’ organizado e, logo, um reage frente a elas como um ‘eu’ (MEAD, 1967, p. 175).
O “eu” (I) consiste na dimensão não previsível do self, no elemento que nos
identifica enquanto únicos e singulares, que não é dado diretamente na experiência,
apenas perceptível a posteriori. Ele não pode ser objeto da consciência, pois emerge
da ação do indivíduo em uma situação social determinada. Trata-se da novidade do
momento, do ineditismo da reação ao dado, com uma orientação a um futuro inde-
finido. Ou seja, ele é uma reação que não pode ser prevista, tampouco antecipada.
O “mim” (me) é consciente, visto sua existência imediata para o indivíduo em
sua consciência. O “mim” permite, enquanto consciência de si mesmo, a convivência
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social segundo os padrões sociais estabelecidos, pois possui todas as atitudes gene-
ralizadas dos outros. É a dimensão que mantém a estabilidade das ações e reações
do self, pois está pautada nas convenções do todo social: o “mim” é convencional.
O ‘eu’ (I), pois, nessa relação entre o ‘eu’ (I) e o ‘mim’ (me), é algo que, por assim dizer, respon-
de a uma situação social que se encontra dentro da experiência do indivíduo. É a resposta
que o indivíduo tem às atitudes que outros adotam em direção a ele, quando ele adota uma
atitude em relação a eles. Assim sendo, as atitudes que ele adota em relação a eles estão
presentes em sua própria experiência, porém sua resposta a elas conterá um elemento de
novidade. O ‘eu’ (I) proporciona a sensação de liberdade, de iniciativa (MEAD, 1967, p. 177).
A ação ou reação de alguém a algum acontecimento ou fato não pode ser
prevista. Isso significa que a reação exata, a maneira específica que reagiremos,
diante de uma determinada situação somente pode ser evidenciada depois de sua
consecução. Somente depois do ato concretizado e da sua consequente apreensão
pela memória é que poderemos ter noção exata do realizado. Sendo o “eu” (I) com-
pletamente a posteriori e consequência das ações e reações do self como um todo,
teremos condições de criar uma imagem pessoal somente mediante a conduta so-
cial, ao agirmos e reagirmos em contextos sociais.
No self, perceptível no agir e reagir dos diversos sujeitos, o “eu” e o “mim”
aparecem de formas distintas, mas mutuamente dependentes.
Não existiria um ‘eu’ (I), no sentido em que usamos esse termo, se não houvesse um ‘mim’
(me); não haveria um ‘mim’ sem uma reação na forma do ‘eu’. Os dois, tal como aparecem
em nossa experiência, constituem a personalidade. Somos indivíduos nascidos em certa
nacionalidade, localizados em certo ponto geográfico, com tais relações familiares e tais
relações políticas. Tudo isso representa certa situação que constitui o ‘mim’; porém, isso
envolve, necessariamente, uma ação contínua do organismo em direção ao ‘mim’ dentro do
processo no qual reside (MEAD, 1967, p. 182).
Por meio da contraposição dialética do ‘eu’ e do ‘mim’, Mead procura balan-
cear a relevância das dimensões social e subjetiva no processo de estruturação da
personalidade, entendida enquanto self ou noção de ‘si mesmo’. Com isso também
resguarda a possibilidade da novidade, da criação e recriação de si mesmo e da
comunidade e, ao mesmo tempo, exclui qualquer tendência ao determinismo social,
como veremos na sequência.
E de volta à sociedade: comentários sobre ética, democracia e reconstrução social
A formação do self, na perspectiva apontada por Mead, correlaciona-se à evo-
lução e à reconstrução da vida em comunidade7. Por isso, podemos dizer que existe
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um movimento formativo de mão dupla: da sociedade ao indivíduo, e de volta à so-
ciedade. Ou seja, quanto mais um indivíduo progride no processo de tornar-se um
self, quanto mais adquire capacidade de agir reflexivamente e de descentrar o seu
ponto de vista, de uma perspectiva egoísta para um olhar mais comunitário, tanto
mais estará apto a participar do processo de reconstrução do todo social, no qual
ele é formado e do qual participa ativamente. Aqui entra em cena o tensionamento
entre formação do self em uma comunidade, com o necessário desenvolvimento de
competências científicas e éticas, e a efetiva participação democrática, com a conse-
quente reconstrução da própria sociedade, como veremos na sequência.
O processo de socialização individuadora implica sujeito e sociedade. Por meio
da interação simbólica entre os indivíduos de uma comunidade formam-se, res-
pectivamente, as estruturas da personalidade e, ao mesmo tempo, as estruturas
de coordenação daquela mesma sociedade. A partir dessa constatação, podemos
afirmar que:
O grau de desenvolvimento do self depende, então, da amplitude das atitudes comuns que
permitam uma determinada organização social; porém também a organização plena da
sociedade humana – sua efetiva vigência – depende completamente de sujeitos que possam
orientar suas condutas e fundar suas consciências, suas autoestimas, na função que exer-
cem dentro da ‘sociedade organizada’ (YNCERA, 1994, p. 332).
O ser humano somente pode desenvolver o self num contexto comunitário e de
interação simbólica, ao mesmo tempo em que se dedica às causas da comunidade. Ao
participar ativamente da vida comunitária, mediante efetiva cooperação e envolvi-
mento nas questões que são centrais à organização dela, terá a possibilidade de in-
fluenciar nos seus rumos. Trata-se de um processo de mão dupla: o indivíduo, median-
te a participação e a cooperação na vida social, converte-se em um self e, ao mesmo
tempo, pode contribuir na reconstrução da vida da comunidade. Neste sentido, e para
compreender o que propõe Mead, precisamos considerar a implicação dos conceitos de
‘outro generalizado’ e a bipartição do self em ‘mim’ (me) e ‘eu’ (I), como mencionados
anteriormente. Por isso, retomamos uma citação de Mead (1967, p. 196):
Frente ao ‘mim’ (me) está o ‘eu’ (I). O indivíduo não tem somente direitos, mas também
deveres; ele não é somente um cidadão, um membro da comunidade, mas ele é também
alguém que reage à dita comunidade, e sua reação a ela, como temos visto na conversação
de gestos, modifica-a. O ‘eu’ (I) é a resposta do indivíduo à atitude da comunidade, tal como
dita atitude aparece em sua própria experiência. Sua reação a essa atitude organizada, por
sua vez, modifica a comunidade.
O processo socializatório e a vida em sociedade supõem que possamos agir
desde a perspectiva dos valores, costumes e regras aprendidos e internalizados –
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aquilo que constitui a noção de ‘mim’ (me). Ao mesmo tempo, pressupõe que cada
um tenha a capacidade de agir enquanto um ‘eu’ (I) – dimensão do agir que não
pode ser prevista, visto tratar-se da resposta específica do sujeito em cada situação
particular. Além disso, afirmar-se como um self, agindo enquanto um ser humano
socializado e membro de uma comunidade, denota colocar em prática um rol de
expectativas específicas na resolução de problemas que surgem, especialmente ter
conduta racional, atuando sob os princípios do método científico, da ética e da par-
ticipação democrática.
É necessário esclarecer que não existe, para Mead, uma oposição entre o uso
do método científico, a capacidade de resolução de problemas, o processo de julga-
mento moral e a participação política e democrática (SILVA, 2009). Na base dessa
afirmação repousa a premissa pragmática de que não se pode separar pensamento
e ação. Nesse sentido, Reck (1981, p. 32) afirma: “Como um pragmatista devotado
à tarefa da reconstrução social, Mead, tal qual Dewey, recomendou a aplicação do
método científico aos problemas do homem, os conflitos sociais e os valores morais”.
Mead (1981) reafirma a importância do método científico, da aprendizagem e do
uso do mesmo na resolução de problemas, relacionando-o com o desenvolvimento
da própria inteligência ou razão, visto tratar-se de algo inerente à condição huma-
na e necessário à evolução dos indivíduos e da sociedade.
O que se espera de um indivíduo com níveis superiores de integração e de de-
senvolvimento pessoal é que possua uma conduta racional, “um tipo de conduta au-
torreferida e organizada em conexão com a atitude comum da comunidade global
à qual pertence o sujeito” (YNCERA, 1994, p. 302). Esse tipo de conduta racional
pode ser utilizado para resolver problemas, tanto no campo da ciência, quanto no
campo da ética e da política.
Agir de modo ético significa, para Mead, ter o ideal democrático da vida em
comum como horizonte da ação. Trata-se de um agir que esteja alinhado às neces-
sidades do grupo social e que o auxilie a encontrar as soluções mais adequadas aos
problemas que se apresentam. Por isso, o agir ético pressupõe o uso do método da
ciência para a solução dos problemas, o que principia com a consciência da interde-
pendência social, a análise dos motivos que levam a ações específicas e ao discerni-
mento da validade de cada um dos valores utilizados em cada situação.
A universalidade do agir prático alinha-se ao fato de nós, seres humanos, ser-
mos capazes de assumir a atitude de qualquer outro ser humano. Diferente de
Kant, que alocava a decisão moral na subjetividade, Mead (1967, p. 379) entende
que o ponto de partida não está no indivíduo isolado, mas na sociedade:
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O homem é um ser racional porque é um ser social. [...] A sociabilidade concede a universa-
lidade dos juízos éticos e compõe o fundamento da afirmação popular de que a voz de todos
é a voz universal; ou seja, todos os que podem apreciar racionalmente a situação estão de
acordo. A forma mesma de nosso juízo é, pois, social, de modo que o fim de ambos, conteúdo
e forma, é um fim social.
Mead argumenta em prol da necessidade de que cada ato seja moral. Ou seja,
em todo o processo do julgar ou do agir moral, será necessário levar em conta a
intenção do agente, os impulsos e os valores conflitantes, bem como o fim almejado.
Desse modo, uma ação será considerada moral quando forem esclarecidas as con-
dições mediante as quais essa ação foi efetivada.
A norma ética do pragmatismo meadiano é, pois, um requerimento relativo à necessidade de
que os impulsos de ação se convertam em motivos esclarecidos em função do conhecimento
das condições concretas (intersubjetivas) nas quais as atividades hão de se expressar e das
consequências prováveis de acarretará a atuação nessas condições (YNCERA, 1991, p. 156).
Os motivos das ações se encontram nos impulsos que levam à ação, os quais
orientam os fins atribuídos às condutas. O principal critério para a deliberação mo-
ral consiste em sempre eleger os fins que reforçam os impulsos ou valores sociais.
Ou seja, a orientação ou máxima moral será sempre o caráter social dos conteúdos
em discussão.
Somente na medida em que alguém pode identificar com o bem comum seu próprio motivo e
o fim que realmente persegue, somente nessa medida poderá chegar à meta moral e, assim,
alcançar a felicidade moral. Assim como a natureza humana é essencialmente social em
caráter, do mesmo modo os fins morais devem ser também sociais em sua natureza (MEAD,
1967, p. 385).
Com o reconhecimento de que nossa moralidade se coaduna com nossa natu-
reza social, passamos a entender que os fins justificáveis, sob a perspectiva moral,
ou os fins bons e desejáveis, são aqueles que conduzem à realização do ser humano
enquanto um ser social. Isso ocorre porque “nossa moralidade se conecta à nossa
conduta social. É como seres sociais que somos seres morais” (MEAD, 1967, p.
385). Estabelecer quais os valores adequados, quais as normas justificáveis e quais
os modos de ação aceitáveis implica colocar como prova de aceitabilidade do juízo
moral a consideração de todos os interesses envolvidos. Por isso:
Nos juízos morais temos que elaborar uma hipótese social e ninguém pode fazê-lo simples-
mente desde seu próprio ponto de vista. Temos que olhar desde o ponto de vista de uma
situação social. [...]. Agora, se perguntarmos qual é a melhor hipótese, a única resposta
que podemos oferecer é que deve levar em conta todos os interesses que estão envolvidos
(MEAD, 1967, p. 387).
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Em uma ação moral, o conteúdo que realmente prepondera enquanto impulso
ou motivo deverá ser sempre aquele que reforça a pertença social e os impulsos
comunitários. Ou seja, a orientação será sempre o caráter social dos conteúdos em
discussão. Por isso, atuar tendo como referência ‘todos os interesses envolvidos’
constitui-se no pressuposto a partir do qual os sujeitos devem orientar suas ações e
a avaliação moral de cada situação concreta. Como vemos, ultrapassar os próprios
interesses é condição para que a pessoa evolua na capacidade de julgar e também
de agir de acordo com motivos cada vez mais descentrados ou universais. Nesse
sentido, agir para satisfazer somente os próprios impulsos e guiar-se por atitudes
egoístas soam como características de uma pessoa limitada em seu processo forma-
tivo, alguém sem capacidade de descentramento e incapaz de olhar para além de
si mesma.
O desenvolvimento individual e o progresso social ocorrem pelo combate dos
impulsos e dos interesses individuais frente aos interesses sociais. É neste embate,
de construção e reconstrução de hipóteses com vistas à resolução de problemas,
de justificativas e de novas perspectivas entre indivíduo e sociedade, que se fun-
damenta a possibilidade de ambos evoluírem. A evolução de normas antigas para
novas normas, mais adequadas à vida da comunidade, somente será possível pela
“mediação de um novo tipo de indivíduo: alguém que se concebe a si mesmo como
não se concebiam os indivíduos no passado” (MEAD, 1967, p. 386).
É importante destacar que a reação criativa do ‘eu’ ao estabelecido, o uso da
razão e do método científico e a capacidade de descentramento constituem-se nos
principais fundamentos que possibilitam a reconstrução e o progresso da estrutura
social.
Uma pessoa pode chegar ao ponto de ir contra todo o mundo que a rodeia; ela pode levantar-
-se sozinha contra o mundo. Porém, para fazer isso, ela deve falar com a voz da razão para
si mesma. Tem que abranger as vozes do passado e do futuro. Essa é a única forma na qual
a pessoa pode ter uma voz que seja maior que a voz da comunidade. Geralmente supomos
que essa voz geral da comunidade é idêntica à comunidade mais ampla do passado e do
futuro; supomos que um costume organizado representa o que denominamos moralidade
(MEAD, 1967, p. 168).
Para Mead, na condição de selves, ou indivíduos socializados, todos os sujeitos
sociais têm o dever de auxiliar a comunidade à qual pertencem em seu progresso
no tocante às leis, às regras e aos costumes. Isso será possível por meio da parti-
cipação efetiva na comunidade e pelo interesse nas coisas comuns. E a chave para
isso é a reflexão e o discurso, por meio dos quais será possível, inclusive, antecipar
as condições ideais de uma vida boa para toda a comunidade.
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Portanto, estarão mais aptos a agir sob as premissas de fins universais e a
participar ativamente na construção de uma sociedade melhor aqueles sujeitos que
vivenciaram processo de individuação social e atingiram um maior grau de desen-
volvimento qualitativo do self. Esses terão a capacidade de agir levando em conta
os interesses de todos os envolvidos, contribuindo efetivamente para a evolução da
comunidade.
Considerações acerca das possíveis relações entre socialização, individuação e
educação
A teoria pragmática de Mead acerca da formação do self, especialmente a no-
ção de individuação por meio da socialização, possui potencial para gerar reflexão
e questionar os fundamentos dos processos educacionais atuais e futuros. Neste
sentido, retomaremos duas abordagens que nos parecerem adequadas para a re-
flexão que estamos realizando: o potencial da noção de intersubjetividade radical,
apontado por Biesta (1998, 1999a, 1999b) e por Biesta e Tröhler (2008); e a hipótese
que norteou este texto – a responsabilidade social e individual do déficit formativo
– buscando demonstrar algumas das possíveis conexões e implicações da mesma.
Biesta (1998, 1999a) reconhece na intersubjetividade radical e na interação,
propostas por Mead, uma nova forma de compreensão e de fundamentação dos pro-
cessos formativos, em substituição à tradição da filosofia da consciência. Ou seja,
para Mead a educação necessita ser concebida como um processo social interativo,
com base na ética e na efetiva participação na comunidade.
Para Biesta e Tröhler (2008, p. 08), “o que se torna claro com essa concepção
social de educação é que Mead retorna, repetidas vezes, à situação social, à situa-
ção de cooperação e de coordenação social, como a matriz de toda educação”. Por
dimensão social da educação, ou situação social da educação, necessitamos enten-
der que não se trata de uma referência simples aos dados sociais que interferem na
constituição do self. Ou seja, a comunidade não é simplesmente mais um elemento
interveniente, mas a condição fundamental da emergência do self. Disso decorre
que não basta fazer parte de um grupo social, é necessário ‘ser comunidade’, sofrer
o processo de socialização, encarnar os valores sociais e participar ativamente da
vida da comunidade. Uma vez mais, vemos que o processo formativo não pode ser
reduzido à referência de um sujeito solipsista, fechado em si mesmo, mas pressu-
põe um indivíduo aberto ao encontro com o outro, com o diverso, participante ativo
da vida da comunidade e imerso no todo social.
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Além disso, se a educação é primariamente interação social, convivência e en-
contro, então a ética e a coordenação das ações sociais, ou o modo como os diversos
sujeitos sociais interagem e organizam os modos de agir, passam a ser elementos
incontestes para entender os processos formativos e os elementos constitutivos dos
espaços e tempos educacionais. A imersão em um contexto social e o conviver com
o outro implicam, necessariamente, a capacidade de julgamento moral, descentra-
mento do eu e habilidade de cooperação para a resolução dos problemas que afetam
o grupo social.
A concepção ética presente nos escritos de Mead articula-se e pressupõe formas
concreta de socialização, de participação e de formação progressiva dos sujeitos so-
ciais. Sujeito e sociedade são partes de um e mesmo processo de desenvolvimento,
por isso fica evidente o caráter de interdependência e a necessidade de participação
social de todos os envolvidos. Não se trata, como vimos, de uma participação forma-
lista ou mesmo de um ideal ético vazio. A interdependência e a participação social
são, antes disso, pré-requisitos práticos para o desenvolvimento da identidade e a
melhoria da organização da própria comunidade.
Como apontamos no decorrer do texto, a matriz intersubjetiva e simbólica a
partir da qual Mead concebe a formação dos indivíduos em sociedade traz impli-
cações lógicas para pensarmos o campo da formação humana. Uma delas pode ser
resumida na seguinte asserção: a incapacidade de pensar e de agir socialmente, ou
desde a perspectiva de uma sociedade mais ampla, antecipando as condições ideais
de uma vida boa em comunidade, com a consequente superação do egoísmo e do
egocentrismo, denota uma espécie de déficit formativo e humano, de responsabili-
dade do próprio indivíduo e também da sociedade na qual está inserido.
Como vemos, compreender o processo de formação do self desde a perspecti-
va dos processos de socialização e de individuação leva-nos, necessariamente, a
refletir e a questionar a efetividade dos processos formativos vivenciados pelos
diversos sujeitos sociais, bem como dos pressupostos que fundamentam os mesmos.
O déficit formativo, social e individual, se mostra mais claramente quando anali-
samos o contexto da sociedade brasileira, que parece, no atual momento, perdida
na capacidade de autorregulação e também na proposição de processos formativos
adequados aos novos membros.
O que desejamos enfatizar é que o atual cenário ético, político e educacional
brasileiro leva-nos a questionar o resultado dos processos formativos que temos
implementado em nossas instituições sociais, escolas e universidades. Em outros
termos, todos os sujeitos envolvidos em desvios de recursos públicos, casos de cor-
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rupção, apropriação de bens públicos, proliferação de fakenews e intolerâncias,
somente para citar algumas situações concretas que hoje são notícias nos canais
de comunicação, passaram por escolas ou universidades. Ademais, é premente con-
siderar que esses sujeitos sofreram processos de socialização e de individuação, tal
qual Mead anunciou.
Isso nos leva, logicamente, a questionar se o arcabouço teórico de Mead mos-
tra-se inadequado para analisar a nossa realidade ou, por outro lado, se os proces-
sos de socialização e de individuação não foram efetivos. Obviamente que toda a
construção teórica possui seus limites explicativos, e aqui não queremos fazer uma
defesa inconteste e acrítica do autor que tem orientado esse ensaio. Mas também
podemos considerar que, em alguns casos da nossa sociedade brasileira, o processo
socializatório formativo, escolar ou não, não está sendo efetivo, por déficits sociais,
estruturais, mas também por escolhas dos próprios sujeitos, os quais não conse-
guem agir sob a perspectiva da ética e da ciência.
Vemos, portanto, que a responsabilidade pelos déficits formativos não pode re-
cair somente sobre a sociedade e as instituições formativas. Como elencando ante-
riormente, uma das questões centrais que emerge da teoria ética de Mead consiste
na capacidade que cada sujeito tem de colocar-se no lugar do outro. Desenvolver
a capacidade de assumir a atitude do outro, o papel social do ‘outro generalizado’,
implica, de algum modo, no desenvolvimento da capacidade de articular ações coo-
perativas desde o interior das relações sociais. Mead não concebe o sujeito isolado,
como um self ilhado. Ao contrário disso, concebe-o como um self em constante rela-
ção, individualizado porque socializado.
O pré-requisito da participação e da cooperação dos sujeitos no todo social
pressupõe o desenvolvimento progressivo do self. Para isso, a interação, a comu-
nicação, o aumento da capacidade racional, o descentramento do eu, o agir ético e
a participação democrática são indispensáveis. As instituições educacionais, en-
quanto espaços de aprendizagem e de socialização, podem contribuir significativa-
mente nesse processo, para que os sujeitos desenvolvam competência de viver em
comunidade e progridam para estágios mais avançados de individuação e de socia-
bilidade. Essa contribuição refere-se, primariamente, a considerar que a interação,
o encontro com o outro, as experiências de coordenação das ações e o confronto com
o diferente e o diverso consistem, também, em conteúdos fundamentais à estrutu-
ração dos currículos em todos os níveis de ensino.
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Notas
1 “O homem sem um impulso generoso é anormal e repugnante” (tradução nossa).
2 George Herbert Mead, autor americano do movimento pragmatista, radicado na Universidade de Chicago,
viveu entre os anos de 1863 e 1937.
3 Vale uma referência a algumas obras e autores, em língua portuguesa, que se dedicaram à introdução
de G. H. Mead no meio acadêmico brasileiro: Odair Sass (2004); Filipe Carreira da Silva (2009); Claudio
Almir Dalbosco (2010); Cledes Antonio Casagrande (2014 e 2016). Um exemplo do desconhecimento de G.
H. Mead, no Brasil, é a inexistência de referências ou citações na coletânea “Pragmatismos, pragmáticas
e produção de subjetividade” (ARRUDA; BEZERRA JR.; TEDESCO, 2008), dedicada a analisar, de forma
panorâmica, o que é o pragmatismo.
4 Quando falamos dos escritos de G. H. Mead devemos levar em consideração que nos referimos aos seus
artigos publicados e às transcrições das suas aulas, organizadas e publicadas por seus alunos, visto que
ele não escreveu nenhum livro. A principal obra que temos acesso é Mind, self, and society (MEAD, 1967),
também traduzida ao espanhol (MEAD, 1973). No Brasil, essa obra foi traduzida com o título de Mente,
self e sociedade e atribuída a Charles Morris, o organizador; por isso não iremos referenciá-la aqui. Além
disso, destacam-se as seguintes coletâneas de textos: Selected writings (MEAD, 1981); On social psycho-
logy (MEAD, 1984); The philosophy of the present (MEAD, 2002); Play, school, and society (MEAD, 2006);
The philosophy of education (MEAD, 2008); Escritos políticos y filosóficos (MEAD, 2009).
5 O tema da formação do self a partir da matriz teórica de G. H. Mead já foi por nós abordado anteriormente
(CASAGRANDE, 2014 e 2016). Sobre o mesmo assunto, indicamos também conferir o artigo escrito em
conjunto com a professora Nadja Hermann (CASAGRANDE; HERMANN, 2017). Já as possíveis implica-
ções dos processos educacionais que restringem os processos de socialização, especialmente as experiências
interativas e o contato com o outro, na perspectiva apontada por Mead, foi tema do artigo “Formação e
homeschooling: controvérsias” (CASAGRANDE; HERMANN, 2020).
6 Para auxiliar na compreensão dos textos de Mead, indicamos, entre parêntese, sempre que julgamos ne-
cessário, a versão original dos seguintes termos: brincar (play); jogar (game); eu (I); mim (me). Em relação
à tradução do termo self, decidimos manter a grafia original em inglês por entendermos que a tradução por
‘pessoa’ não corresponde ao significado mais adequado; uma tradução aceitável em português poderia ser
‘si mesmo’.
7 Esse duplo processo podemos denominar, tecnicamente, de uma homologia ontofilogenética. Ou seja, onto-
genia e filogenia são processos correlacionados e mutuamente dependentes. Sobre esse assunto, recomen-
damos o livro de Silva (2009, p. 161-183), no qual ele analisa a psicologia social de Mead e aprofunda os
conceitos de ontogenia e filogenia.
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A atualização da skholé e a escola contra a socialização
An update of skholé and school against socialization
La actualización de la skholé y la escuela contra la socialización
Cleriston Petry*
Resumo
Argumento, no presente artigo, sobre a relação entre socialização e educação, considerando a primeira como
“processos de introdução na sociedade e a segunda como a “introdução das novas gerações no mundo. O pro-
blema que orientou a investigação refere-se à existência ou não de incompatibilidade entre ambos os objetivos,
se é razoável “socializar” considerando a “sociedade” em que crianças e jovens são inseridos e se a “socialização
contribui ou não para a realização da skholé, caracterizada como “tempo livre”, distinto do “tempo produtivo da
sociedade. Nesse sentido, defendi que a skholé só é possível quando a “socialização não é a tarefa central da
escola (porque a “socialização desescolariza a escola) e nem a educação reduzida à “socialização. A atualização
da skholé e de sua institucionalização escolar é fundamental para a introdução das “novas gerações” no “mundo
e, talvez, a única oportunidade que os seres humanos terão, nas condições atuais, de experienciar o “tempo
livre que suspende as injunções da família, da sociedade (economia, trabalho, divertimento, lazer, descanso,
aprendizagem) e da política.
Palavras-chave: educação; socialização; skholé.
Abstract
I argue, in this article, about the relationship between socialization and education, considering the rst as “pro-
cess of introduction into society” and the second as “the introduction of new generations into the world”. The
problem that guided the investigation refers to the existence or not of incompatibility between both objectives,
whether it is reasonable to “socialize considering the “society in which children and young people are inserted
and whether “socialization” contributes or not to the realization of skholé, characterized as “free time” distinct
from society’s “productive time”. In this sense, I argued that skholé is only possible when socialization is not
the central task of the school (because “socialization unschools the school) or neither education reduced to
socialization. The updating of skholé and its school institutionalization is fundamental for the introduction of
“new generations” into the “world” and, perhaps, the only opportunity that human beings will have, under the
current conditions, to experience the “free time that suspends injunctions of the family, society (economy, work,
entertainment, leisure, rest, learning) and politics.
Keywords: education; socialization; skholé.
* Doutor em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Passo Fundo (UPF). Profes-
sor do Departamento de Teoria e Fundamentos da Educação da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e do
Mestrado Prossional em Filosoa (PROF-FILO), núcleo UFMT. Orcid: http://orcid.org/0000-0001-8900-6633. E-mail:
cleripetry@hotmail.com
Recebido em: 29/07/2020 – Aprovado em: 06/01/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i1.11458
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Resumen
Discuto, en este artículo, la relación entre socialización y educación, considerando el primer como “procesos
de introducción en la sociedad” y el segundo como “la introducción de nuevas generaciones en el mundo. El
problema que ha conducido la investigación se reere a la existencia o no de incompatibilidad entre ambos
objetivos, si es razonable “socializar” considerando la “sociedad” en la que se insertan niños y jóvenes y si la
socialización” contribuye o no a la realización de skholé, caracterizada como “tiempo libre” distinto del “tiempo
productivo de la sociedad. En este sentido, sostuve que el skholé solo es posible cuando la “socialización no
es la tarea central de la escuela (porque la “socialización no escolariza la escuela) o la educación se reduce a
socialización”. La actualización del skholé y su institucionalización escolar es fundamental para la introducción
de “nuevas generaciones en el “mundo” y, tal vez, la única oportunidad que los seres humanos tendrán, en las
condiciones actuales, para experimentar el “tiempo libre” que suspende los mandatos de la familia, la sociedad
(economía, trabajo, entretenimiento, ocio, descanso, aprendizaje) y política.
Palabras-clave: educación; socialización; skholé.
Introdução
Só os homens sensatos e ESCLARECIDOS veem as coisas
como são em si e trabalham para mantê-los em seu ser
(RODRÍGUEZ, 2016, p. 99, grifos do autor).
A essência da educação é a natalidade, o fato de que seres nascem
para o mundo (ARENDT, 2007, p. 223, grifos da autora).
Socialização e educação são termos que podem ser compreendidos como com-
plementares, excludentes ou numa relação dialética. Para escrever sobre a socia-
lização e a atualização da skholé, penso tais conceitos a partir, com e para além
de Hannah Arendt. Mesmo que a autora não tenha se dedicado à elucidação do
primeiro, seguirei pistas teóricas que me conduzirão, plausivelmente, às conside-
rações que tecerei. Se pensarmos em socialização como “processos de introdução
na sociedade”, é preciso indagar: O que se entende por “introdução”, isto é, como
ela se realiza? Em qual sociedade os indivíduos serão introduzidos? Socialização é
a finalidade da educação ou uma atividade complementar à educação e, por vezes,
independente da educação?
Faço a opção por Arendt por desejar contribuir ao debate acerca da (não)rela-
ção entre “socialização” e educação. Para tanto, penso que considerar a “socializa-
ção” como “processos de introdução na sociedade” é uma definição geral que tipifi-
ca as diversas definições sociológicas do termo e do “fenômeno” para o qual todos
passamos ou passaremos. As distinções conceituais feitas por Arendt, ademais,
contribuem para esclarecer o sentido da escola, que advém de sua especificidade,
especialmente quando a educação está em crise, a escola sob suspeita e a “educa-
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ção remota” como uma prática para enfrentar (ou não) o problema educacional em
meio à pandemia. Não nascemos membros da sociedade, e a “socialização” exige
“interiorização”, a compreensão dos outros atores sociais, da realidade social e da
vida que os outros já vivem, escrevem Peter L. Berger e Thomas Luckmann (2004,
p. 174). Mas, o que ambos os sociólogos compreendem por sociedade é atribuível
ora ao “mundo” ora à “vida”, segundo a conceituação arendtiana. Por isso, e para
manter a pretensa originalidade do presente artigo, pretendo tratar da relação
entre “socialização”, “educação” e skholé, tomando como ponto de partida um con-
ceito amplo e geral de “socialização” e me localizando no espírito de pensamento de
Hannah Arendt.
“Sociedade” é um conceito apropriado pela Sociologia, na Modernidade, para
dar conta de sua especificidade e objeto de estudo, ou seja, aquilo que compõe a
sociedade ou o que a sociedade é: um organismo vivo (em processo de evolução), a
união de indivíduos a partir de um contrato, o conjunto das relações e ações sociais,
uma realidade de situações partilhadas e nexo de motivações, etc. Evidentemente,
o conceito de “sociedade” é anterior às Ciências Sociais, mas com estas houve uma
abordagem científica do conceito/fenômeno. Com a Modernidade, a sociedade pas-
sou a significar o “auge da administração doméstica, suas atividades, problemas e
planos organizativos” (ARENDT, 2005, p. 61)1. Essa caracterização, destoante da
tradição sociológica, implica considerá-la como uma esfera em que os indivíduos,
famílias e grupos se ocupam com as necessidades vitais, em que houve uma res-
significação para a vida individual e para a cidadania. Para compreender melhor a
sociedade, enquanto conceito, é importante considerar que ela se opõe à política e
ao privado, embora houve uma ressignificação do privado e do político com a emer-
gência da sociedade. O que era privado, os interesses vitais, isto é, as necessidades
relacionadas à sobrevivência, passou a ser público, e o que era público, os assuntos
humanos, a política, deixou de ser relevante. A política, então, se converteu numa
administração pública dos interesses privados, relativos ao acúmulo de capital,
à defesa da “propriedade” privada e aos interesses individuais. O social passa a
constituir a esfera pública e, por conseguinte, ocupar os interesses dos atores edu-
cacionais.
O advento da sociedade acarretou transformações também para a escola, que
se desescolarizou. A sociedade, com a canalização pública do processo vital, a vitó-
ria do animal laborans e a publicização de suas atividades, acarretou na impos-
sibilidade, lógica, da ação e do pensamento, donde a “socialização” significou ade-
quação, conformação, nivelação, normalização e, no limite, solidão sob o império do
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comportamento. Na escola, o currículo também se altera com a transformação da
“linguagem da educação” em “linguagem da aprendizagem”, explicitada, no Brasil,
pela adoção da Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
A sociedade também é caracterizada pelo “tempo produtivo”, tempo dedicado
à “vida”, ao metabolismo vital, à sobrevivência, aos negócios, à askholia. Nesse
sentido, a relação entre “socialização” e “educação” só pode ser de oposição, quando
pelo segundo se compreender que sua essência é a “natalidade”, isto é, o fato de que
seres nascem no “mundo”, não na sociedade, não no trabalho, não na vida, não na
família, e que a tarefa da escola é introduzir as “novas gerações” no “mundo” e não
socializa-las. Para tanto, tal introdução demanda um tempo específico, a skholé,
forma-ideia que inspira e pode constituir as escolas ante processos de desescolari-
zação.
Neste artigo, ensaiei aproximações entre Arendt (1993, 2001, 2005, 2007,
2009, 2012), Rodríguez (2016) e Masschelein e Simons (2013), para repensar a
atualização da skholé na América Latina como resposta às demandas da “socie-
dade” e às injunções da socialização. Fiz isso buscando a plausibilidade dos argu-
mentos, abstendo-me da esperança de um “veredito final”, ciente de que a última
palavra não foi dada e que há outras possibilidades de se pensar a “socialização”,
embora nenhuma escape da “sociedade”.
A investigação que resultou no presente artigo apresenta como “prova” a de-
monstração do relacionamento lógico entre os conceitos e argumentos: “o pesqui-
sador qualitativo toma sobre seus ombros o fardo da plausibilidade” (SENNETT,
2014, p. 72). Sei que entre Arendt e Rodríguez há aspectos de convergência e de
divergência, e que o conceito de “social” para o segundo tem um sentido de público/
político que não há em Arendt, autora que vislumbrou isso que denominou de “as-
censão da sociedade”. Mas o debate não é entre Arendt e Rodríguez, mas entre os
argumentos e os que lerem o artigo. Meu compromisso não é defender autores, mas
pensar com, a partir, para além e contra eles, ou seja, pensar os pensamentos deles
para pensar melhor os meus.
A emergência da sociedade e a educação como socialização
A “canalização pública do processo da vida” (ARENDT, 2005, p. 68) significa
que as preocupações com as necessidades relacionadas à manutenção da vida es-
tabelecem um domínio público próprio, numa forma de mútua dependência, e a
transformação de todos os indivíduos em trabalhadores e do trabalho (labor) em
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uma atividade digna para aparecer em público. Na Modernidade, com o advento da
sociedade, ou seja, com a absorção de todos os indivíduos na sociedade, houve a “vi-
tória do animal laborans”, do indivíduo (pré)ocupado exclusivamente com a “vida”
e a perda de “mundo”, isto é, de tudo o que é construído e constituído pelos homens
por meio do discurso e da ação. Se nos resta laborar, o “mundo” está condenado à
ruína do ciclo vital da natureza, da destruição. Nesse contexto,
[...] o único necessário foi trabalhar, com o fim de assegurar a continuidade da existência
individual e de sua família. O não necessário, o não requerido pelo metabolismo da vida
com a natureza, ou bem era supérfluo ou apenas podia justificar-se como peculiaridade do
humano para diferenciá-lo de qualquer outra vida animal (ARENDT, 2005, p. 338).
Em meados de 1830, Honoré de Balzac (2013, p. 339) teceu críticas à sociedade
francesa, na qual todos os segmentos sociais excediam sua existência para ganhar
o ouro que os fascinava e/ou gozar de poderosos prazeres: “Sem as tabernas, o
governo não seria derrubado todas as terças feiras?”. Com o advento da sociedade,
tudo se torna “tempo produtivo”: a sensação de “não ter tempo”, de um tempo devo-
rado, arrasado, consumido, destruído, dedicado aos negócios, a askholia. Outra in-
dagação de Balzac (2013, p. 345) é reveladora: “onde coloca essa gente o coração?”.
Com a Modernidade e a sociedade, chamamos “privado” uma esfera de intimidade,
e o escritor francês percebe, no século XIX, o ataque e a desconsideração com o
lugar no qual se é autêntico.
Anos antes, na mesma época, Rousseau se rebelou contra a sociedade e não
contra o Estado (ARENDT, 2005, p. 62), e isso repercutiu em seu projeto educa-
tivo: é preciso formar o homem antes do cidadão (ROUSSEAU, 2017, p. 44); uma
“educação natural” que principia pelos sentidos, na qual viver é o ofício a ensinar
ao educando (ROUSSEAU, 2017, p. 46). A opção por uma educação doméstica visa
proteger a criança da sociedade, dos vícios e costumes corrompidos, mas não das
condições sob as quais ela poderia ter de viver. Ademais, a educação aconteceria
no campo, pois “as cidades são o abismo da espécie humana” (ROUSSEAU, 2017,
p. 67), um ambiente de corrupção em que se deseja o que não se pode2, se busca o
gozo acima de tudo, acarretando a infelicidade diante da realidade: vide o exemplo
da riqueza como fim, um fim quimérico porque ela exige mais riqueza, num acúmu-
lo ininterrupto, na “ilimitada apropriação” defendida por Locke em Dois tratados
sobre o governo (2005).
É essa perpetuação do “metabolismo vital”, o ciclo da vida e do capital, que é
tornado público com o advento da sociedade na Modernidade, em detrimento do
que é público (político) e privado. A alternativa de Balzac e Rousseau, a proteção da
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intimidade, não é suficiente para ocupar o espaço essencial da esfera privada, nem
pode ser um substituto à esfera pública/política. Não é e não pode ser um substi-
tuto porque a intimidade e o que lhe é reservado não possui a realidade e a tangi-
bilidade possível de uma esfera entre, especificamente a pública. Por outro lado, o
ideal educativo de Rousseau, como também o de Locke (2019), não é um “antídoto
razoável” à destruição do mundo e ao sentimento de solidão, próprio da sociedade,
na medida em que se trata de um projeto individualista, típico da Modernidade. É
possível que o educando de Locke e de Rousseau conclua a etapa formativa como
um indivíduo virtuoso e disso não advém que será um cidadão, mas alguém equi-
pado com um conjunto adequado de conhecimentos, habilidades e disposições, “sem
formular perguntas sobre suas relações com os outros e sobre o contexto social e
político em que aprendem e agem” (BIESTA, 2013, p. 158). Assim, uma crítica ao
conceito de socialização deve ser, também, uma crítica à Modernidade, ao projeto
educativo do Iluminismo e à concepção de tempo que lhe é própria.
A organização política da Sociedade é (foi) o Estado Nação e tem (e teve) a
burocracia enquanto forma de governo. A burocracia é o governo de ninguém, a
mais social forma de governo, escreve Arendt (2005). O “governo de ninguém” não
é um não-governo, mas pode resultar numa de suas versões mais cruéis e tirânicas
(ARENDT, 2005, p. 63). O governo do escritório, da administração, impessoalizado,
atento às estatísticas, à frieza dos números e aos regulamentos, racional, portan-
to, governa uma sociedade de indivíduos atomizados e conformados. Para Arendt
(2005, p. 63), há um conformismo inerente a toda sociedade e exigências tipica-
mente niveladoras do social, em que a sociedade “sempre exige que seus membros
atuem como se fossem de uma enorme família com uma só opinião e interesse”. A
sociedade exclui a possibilidade da ação e a substitui por comportamentos, que se
distinguem da primeira pela previsibilidade, expectativa e conformação às normas
sociais. Há a tendência à “normalização”, isto é, ao enquadramento dos indivíduos
e suas singularidades num “coletivo”, inviabilizando e excluindo o surgimento do
novo, do inédito, do inesperado, do revolucionário. Neste contexto, a educação como
socialização se torna um agente conformador, nivelador, adaptador das crianças e
jovens à sociedade, seu modelo de organização e experiência de tempo. A “igualiza-
ção”, fenômeno social, tornou a distinção e a diferença assuntos privados, relativos
à intimidade e não à ação, isto é, a atuação na esfera pública por meio de palavras
e ações.
Nesse sentido, o império do conformismo é a sociedade, espaço/tempo do sur-
gimento da Sociologia, da Economia e da Estatística. Para Arendt, a Economia só
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pode adquirir um caráter científico quando os homens se constituem seres sociais,
sob o critério judicativo da normalidade e da anormalidade. A estatística, como
técnica de tratamento matemático da realidade, pressupõe que os acontecimentos
são raros na vida das pessoas e todos são convertidos em números que demonstram
tendências aptas a serem usadas por governos ou gestores3.
A Economia, ademais, foi cooptada pela “racionalidade neoliberal”, uma racio-
nalidade “totalitária” no sentido de que abrange todos os aspectos da vida e visa
a formação de um sujeito adaptado a sua lógica (DARDOT; LAVAL, 2016). Além
disso, os economistas neoclássicos não têm um apego aos fatos e pouco importa que
as “soluções” e “estratégias” apresentadas deem errado em todos os lugares (ou não
conquistem o que publicamente declaram ser a intenção). A economia neoclássica,
escreve Joaquín Estefanía (2017, p. 83), “é responsável não apenas por não haver
antecipado a Grande Recessão, mas por ser intrinsecamente errônea e nociva, ao
haver contribuído a multiplicar as calamidades que intentava prever”4. No Bra-
sil, a pandemia expôs a nu o fracasso do neoliberalismo, a humilhação pessoal
da ideologia do indivíduo como empresário de si, ao mesmo tempo em que, num
movimento contrário, a crueza da vida se tornou assunto público e expôs a luta
pela sobrevivência, a fragilidade dos nossos corpos e a idiotice de nossa existência.
Se “o modo mais cômodo de conhecer uma cidade é averiguar como se traba-
lha nela, como se ama e como se morre” (CAMUS, 2003, p. 9), talvez tenhamos de
concordar com o jovem Marx (2006), que, no ensaio Sobre o suicídio, escreve não se
tratar de uma sociedade, mas de um deserto habitado por bestas selvagens, exceto
que a sociedade não seja deserto, mas algo distinto.
A pandemia da Covid-19 evidencia a hipótese das ciências do comportamento,
que “reduzem os homens, em todas as suas atividades, ao nível de um animal, de
conduta condicionada” (ARENDT, 2005, p. 67). Entre A Peste e a Pandemia, fomos
jogados no lar ou na humilhação do subemprego, do desemprego, da mortalidade
como condição fundamental e não da natalidade. Em Camus (2003, p. 10), é a mor-
talidade que, ao aparecer como espetáculo pelas ruas de Orán, desnuda uma exis-
tência sem sentido, em que “nada é mais natural hoje em dia que ver as pessoas
trabalhar de manhã à noite e em seguida escolher, entre o café, o jogo e a conversa,
o modo de perder o tempo que nos resta por viver”. Todos morremos, uma de nossas
condições fundamentais, mas a peste tornou-a pública e, junto com ela, o absurdo
de dedicar-se à vida, isto é, à manutenção da vida biológica, ao labor, trabalho,
consumo, divertimento, descanso, num ciclo ininterrupto até a morte. Essa é uma
das oportunidades da crise sanitária (por vezes, modo de governar): reconsiderar,
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repensar o que estamos fazendo. O “tempo livre” em Orán é um tempo matado,
tempo de sobra entre o sono e o trabalho. Um tempo, portanto, não mais livre, mas
ocupado, funcional ao labor, “tempo produtivo”, tempo da sociedade.
O “tempo produtivo” é, também, cíclico, como o “metabolismo vital”. Todos
precisamos do labor, pois temos necessidades, somos seres vulneráveis, e essa con-
dição de necessitados compartilhamos com outras formas de vida animal, o que
não se considerava dignamente humano, na experiência greco-romana. “Ainda que
estejam feitas pelo homem, vem e vão, são produzidas e consumidas, em consonân-
cia com o sempre repetido movimento cíclico da natureza” (ARENDT, 2005, p. 118).
Deste modo, não são especificamente humanas. E dedicar-se toda a existência ao
labor, consumo, descanso, lazer, sono e trabalho não era considerada uma forma
de vida apta à excelência (areté), a deixar uma marca e converter a existência
individual em algo mais permanente que a própria vida. Por outro lado, o tempo
é “produtivo” quando o homem “fabrica”, faz ou produz objetos visando sua utili-
dade ou quando o critério de julgamento para o “mundo” e a “vida” é a utilidade.
Nesse aspecto, o tempo não é mais cíclico, mas a passagem de um passado-presen-
te-futuro com a preponderância do futuro, donde a utilidade se realizará em seu
próprio ciclo sem sentido. Deste modo, a mentalidade do fabricante moderno é a
instrumentalidade e a utilidade, ambos que localizam os indivíduos num “tempo
produtivo” porque o importante não é a atividade, o aqui, o isso, mas o produto
final, o futuro e como ele será utilizado, vendido, tornado instrumento.
Trabalho (labor) e fabricação (work) são distintos, pois o primeiro é uma ativi-
dade que corresponde ao processo biológico do corpo humano e ao “metabolismo vi-
tal”, ligado às necessidades da vida. A fabricação, por outro lado, diz respeito ao não
natural da existência do homem, à artificialidade do mundo de coisas (ARENDT,
2005). Com a fabricação, se constrói um mundo humano, mundo comum, mundo
da arquitetura, das artes, da literatura, das ciências. Mas os instrumentos e as
obras da fabricação não estão impedidos de serem usados para a produção de bens
de consumo ou para atividades dedicadas ao tempo de lazer. A fabricação produz
objetos culturais que podem durar e, por isso, constituir um mundo comum, tes-
temunha do passado ao futuro, o que durará mais que a própria vida. Porém, com
o último estágio de desenvolvimento da sociedade, a sociedade de massas, não se
sente necessidade de cultura, mas de diversão “e os produtos oferecidos pela in-
dústria de diversões são com efeito consumidos pela sociedade exatamente como
quaisquer outros bens de consumo” (ARENDT, 2007, p. 257). Imersos num “tempo
produtivo”, de sempre estar atarefado, com negócios a resolver, o homem moderno
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não se dedica aos assuntos humanos nem ao pensamento. Balzac (2013, p. 346)
argumenta que:
[...] obrigados a falar sem cessar, trocam todos o pensamento pela palavra, o sentimento
pela frase, e suas almas transformam-se em laringe. Gastam-se e se desmoralizam. [...].
Deslizam sobre as coisas da vida e vivem cada instante impelidos pelos negócios da grande
cidade.
É a sensação de não ter tempo, de estar sempre atrasado que atinge o ápice
com a sociedade e a vitória do animal laborans, aquele que dedica toda sua existên-
cia a sobreviver e a alimentar o ciclo vital. A educação como socialização se conver-
te num espaço/tempo de treinamento de aprendizes aptos a exercer uma função na
sociedade. Do mesmo modo, a sociedade é considerada a partir de suas funções, e a
estima dos indivíduos se deriva do lugar e do papel que exercem.
A escola e os indivíduos devem ter uma função, um lugar a ocupar na socie-
dade para definir suas identidades. Ao mesmo tempo, essa sociedade que exige
funções que localizam o indivíduo em seu seio apenas lhe dá frágeis garantias de
autoestima e consciência de si, porque os indivíduos não aparecem na modalida-
de do discurso e da ação, mas como trabalhadores, consumidores, acumuladores,
acionistas, empreendedores. Numa crise sanitária, quando muitos são obrigados
a ficar em casa, a trabalhar menos ou de outros modos, a crise se torna existen-
cial: afinal, quem sou eu? Pergunta que não pode ser respondida na escuridão da
vida privada, muito menos numa atividade de introspecção. Se na introspecção
me deparo com o pensar, com o pensar sobre meus pensamentos; se o pensar é um
diálogo silencioso comigo mesmo, ao pensar não sou só um, mas dois. Portanto,
aquele que busca saber quem é pensando se deparará com a dualidade instaurada
pelo pensar. “Até o próprio Sócrates, tão apaixonado pela praça pública, tem de vol-
tar para casa, onde estará só, para encontrar o outro indivíduo” (ARENDT, 2009,
p. 212). Diferentemente de Sócrates, a maioria dos brasileiros voltou para casa e
se deparou com a sobrevivência, com os assuntos domésticos, com a privatividade
do lar. Publicamente, por outro lado, restava o espetáculo da pandemia que envol-
veu tudo: “já não havia destinos individuais, mas uma história coletiva que era a
peste e sentimentos compartilhados por todo mundo” (CAMUS, 2003, p. 149). Ter-
reno fértil para governos autoritários. Diferente do “social” e da “sociedade” está
a esfera privada. Privado significou estar desprovido de algo, das mais elevadas e
humanas capacidades, argumenta Arendt (2005). Esse traço privativo do privado
implicava estar privado de “coisas essenciais a uma verdadeira vida humana: estar
privado da realidade que provém de ser visto e ouvido pelos demais e estar priva-
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do da <<objetiva>> relação com os outros” (ARENDT, 2005, p. 78), que acontece
quando há um espaço-entre que une e separa os indivíduos, um mundo comum.
A realidade se constitui pelos múltiplos pontos de vista nos quais os indivíduos
ocupam o espaço com sua cultura, sua história, costumes, etc. Estar no mundo, na
esfera pública, é ter a oportunidade de corrigir os sentidos pessoais com o “senso
comum”, o bom senso, no qual compartilhamos o mundo ao mesmo tempo em que
ele se “objetiva” para nós.
A educação como socialização, ao adaptar os indivíduos à sociedade ou intro-
duzi-los na sociedade não lhes garante a possibilidade de acessar o mundo comum
e de se distinguir e atingir a excelência num espaço no qual compartilhamos o
que é comum, nem de revisar nossos pontos de vista que podem ser equivocados,
dado que “ponto de vista” não é a “verdade”, e sozinho um indivíduo não constitui
a realidade e, socialmente, é incapaz de levar uma vida excelente e singularizar-
-se. Na sociedade, ou na solidão da intimidade, carente de laços profundos com
os outros, as teorias conspiratórias e alucinações fomentam a extrema-direita e
saídas autoritárias para a carência de laços que unem os indivíduos. A alucinação
é “uma distorção efetiva da capacidade de pensar fundada na necessidade de sa-
turar a realidade com desejos que não suportam frustração, bem como no impacto
corrosivo dos mecanismos psíquicos ligados ao ódio sobre o próprio pensamento”
(AB’SABER, 2018, p. 129).
Socializado, talvez o homem seja incapaz de realizar algo mais permanente
que a própria vida. Por isso, o homem privado e o homem socializado não apare-
cem, é como se não existissem (ARENDT, 2005, p. 78). O homem privado do mundo
e do espaço público realiza coisas que carecem de significado e “consequência para
os outros, o que lhe importa não importa aos demais” (ARENDT, 2005, p. 78). Daí
que a solidão seja uma experiência cada vez mais comum na “sociedade” e, espe-
cialmente, na “sociedade de massas” de indivíduos atomizados, jogados em suas
vidas privadas, ocupados com seus negócios e a sobrevivência, condição importante
para a ascensão de movimentos fascistas e totalitários, afinal, quando se está só
o coletivo se apresenta como um simulacro do calor familiar, em que o indivíduo
importa porque faz parte, sabe o que é nessa vida sem sentido.
Por outro lado, Arendt (2005) apresenta traços não privativos do privado que
os constitui como partes importantes se preservado o comum e o público, isto é,
sem o privado, o comum careceria de sentido. Do mesmo modo, a necessidade é
fundamental para a existência da liberdade. A eliminação da necessidade não acar-
reta a liberdade, como evidencia a busca pela riqueza e por poderosas diversões. O
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privado é o único lugar seguro e oculto do mundo. É nele onde as crianças podem
se desenvolver sem a luz pública, sem os julgamentos da aparência, e para cons-
tituírem-se a si mesmas antes de enfrentar a esfera pública, dos acontecimentos
e da publicidade. Para Arendt (2005, p. 86), “uma vida que transcorre em público,
na presença dos outros, se faz superficial”. Na pandemia e, consequentemente, na
crise sanitária, as pessoas sem um espaço privado de proteção estão condenadas
a viver publicamente, a expor-se ao contágio, sem qualquer proteção. Estão sob os
olhares de todos, mas são invisíveis, porque não importam, não são respeitadas5.
O espaço público, antes do advento da sociedade, era uma esfera de igualdade
e de distinção, que se alcança ao agir em conjunto com outros seres humanos iguais
e livres. Só no espaço público os homens podem mostrar quem são, e na esfera
privada e social de suas vidas apenas são um que, isto é, exercem funções, atuam
não como singulares, mas pertencentes a uma classe profissional, ao papel relati-
vo à sobrevivência e à atenuação das necessidades. Nascemos únicos, mas nossa
unicidade aparece na esfera pública que é o espaço da aparência, a qual constitui a
realidade. Para Arendt (2005, p. 71), tudo o que aparece em público pode ser visto
e ouvido e tem a mais ampla publicidade possível. Com o auge do social, o que se
torna público são os interesses privados; e os indivíduos se tornam trabalhadores
e/ou produtores. São os outros, numa esfera pública da ação e do discurso, que ga-
rantem a realidade do mundo e de nós mesmos. Sem a publicidade, é como se não
existíssemos como singulares.
Público também significa o próprio mundo enquanto comum a todos e dife-
renciado do lugar que ocupamos privadamente nele. Se socialização significa os
processos de introdução na sociedade, a educação como socialização acarreta numa
perda de mundo e da aparência necessária para que cada um apareça como único,
com sua dignidade própria.
Num contexto socializado, a pandemia conta seus mortos estatisticamente e,
por conseguinte, é carente de realidade quem morre. Sabemos apenas o que morre:
corpos, espécimes humanos. É muito mais fácil matar (e deixar morrer!) quando
não há indivíduos singulares, mas números6. Um amontoado anônimo. Escreve Ca-
mus (2003, p. 39): “mas, o que são cem milhões de mortos? Quando se fez a guerra
ninguém sabe o que é um morto. E ademais, um homem morto apenas tem peso
quando se viu um morto; cem milhões de cadáveres jogados através da história,
não são mais que fumaça na imaginação”.
Com a pandemia e as aulas on-line, as crianças tiveram de ficar em casa e
foram privadas do acesso ao mundo ou, simplesmente, à sociedade. Evidentemente
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que o acessam pela internet, mas essa ferramenta não é um espaço-entre, trata-se
de uma tecnologia que media a relação dos seres humanos entre si e com o mundo.
As redes sociais, especificamente, não são espaços públicos, e os indivíduos que lá
“aparecem” controlam as personas bem como o ambiente de interação (como o am-
biente é controlado pelos interesses comerciais dos donos das plataformas). Portan-
to, a internet não é pública porque é dominada por empresas privadas que utilizam
nossos dados para lucrar e criar algoritmos, gerar tendências, comportamentos
e turbinar vendas; não é espaço público porque o mundo virtual não é o mundo
real. Ter fotos do Mont-Saint-Michel não me torna proprietário, muito menos me
confere a possibilidade de realizar uma experiência estética profunda semelhante
ao estrangeiro que o visita, nem o espaço se torna comum. A internet nos deu um
simulacro do “público”, e as redes sociais são somente sociais: a publicização de
interesses privados e personagens que não se revelam, é o aparecer (quando não
a mentira) do que são. Os alunos, presos em casa para sobreviver, são privados da
escola e do que é específico da skholé, pois em casa se comportam conforme funções,
têm o passado e o futuro de expectativas nas costas e estão numa esfera com sua
linguagem e lógica própria.
Quando a socialização é mais importante que a educação, a escola é domada
pela sociedade, pelas expectativas sociais, pelas demandas do trabalho, do consu-
mo, do lazer e da economia, isto é, a escola passa a ser uma função da “vida”, da so-
brevivência da espécie e da manutenção do ciclo vital. “Domar a escola implica go-
vernar seu caráter democrático, público e renovador. Isso envolve a reapropriação e
reprivatização do tempo público, do espaço público e do ‘bem comum’ possibilitados
por ela” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2013, p. 106). Não por acaso, Bolsonaro vem
atacando a educação pública desde que assumiu o poder, nomeando ministros que
degradam as instituições públicas, reiteram o corte dos investimentos e aniquilam
a educação nos termos apresentados.
A escola, sob a égide da socialização, é vista como um meio para resolver pro-
blemas sociais, e numa sociedade de trabalhadores sua função é a de criar condições
para formar o empreendedor, o indivíduo empresário de si mesmo, e o faz, entre
outros meios, utilizando a “linguagem da aprendizagem”. Para Gert Biesta (2013),
a linguagem constitui a realidade e as relações que os indivíduos estabelecem en-
tre si e com o mundo. Há, nos últimos anos, a alteração de uma “linguagem da
educação” para uma “linguagem da aprendizagem”, em que ensinar “foi redefinido
como apoiar ou facilitar a aprendizagem, assim como a educação é frequentemente
descrita como propiciadora de oportunidades ou experiências de aprendizagem”
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(BIESTA, 2013, p. 32). No Brasil, a linguagem da aprendizagem, do “aprender a
aprender”, é a lógica que estrutura a BNCC, discutida no governo Dilma e apro-
vada no governo Temer. É interessante que esse documento, que unifica a base de
conhecimentos para todo o território do Estado brasileiro, não utilize nenhuma vez
a palavra “educação”: tudo se transforma em aprendizagem. Outro dado importan-
te é que “democracia” também é omitido. Ademais, há a lógica do desempenho, da
performance e não mais do acesso ao mundo, às verdades.
A BNCC possui uma concepção reduzida de conteúdo: habilidades e competên-
cias visam garantir a permanência e a aprendizagem dos estudantes respondendo
às suas aspirações (BRASIL, 2018, p. 461). A “linguagem da aprendizagem”, con-
forme Biesta (2013), é muito mais individualista, embora esteja dentro da ideia de
“socialização” como “processos de introdução na sociedade”. Neste viés, a sociedade
em que os jovens serão inseridos é uma sociedade do “tempo produtivo”, da solidão
e, mais recentemente, da “racionalidade neoliberal” que tende a ocupar todos os es-
paços da existência (público, privado, política, economia, lazer, educação, consumo,
esportes), mas não o “tempo livre”, porque é capaz de destruí-lo, não colonizá-lo.
O afastamento da BNCC do “mundo” é explicitado quando o documento disserta
sobre as aprendizagens necessárias:
[...] em lugar de pretender que os jovens apenas aprendam o que já sabemos, o
mundo deve lhes ser apresentado como campo aberto para a investigação e inter-
venção quanto a seus aspectos sociais, produtivos, ambientais e culturais (BRA-
SIL, 2018, p. 463).
A “apresentação” do “mundo” é uma boa intenção que se anula pelo modo como
ele é apresentado: algo a ser aprendido por meio de habilidades e competências
adquiridas no percurso escolar. A primeira consequência dessa “educação como
socialização” é o abandono das crianças e jovens aos seus próprios recursos e a
substituição do aprendizado (educacional) pelo fazer (habilidades e competências).
Arendt (2007, p. 232) argumenta que reformas semelhantes nos Estados Unidos
tiveram a intenção não de ensinar conhecimentos, mas de inculcar habilidades,
transformando as instituições escolares em instituições vocacionais, tornando-se
incapazes de fazer com que a criança adquirisse os pré-requisitos normais de um
currículo padrão. Em segundo lugar, essa educação marca o encontro da economia
com a escola, a confusão da linguagem econômica e educativa que transforma as
“políticas educativas” em políticas de adaptação ao mundo do trabalho, acarretan-
do a perda de autonomia da escola e a estigmatização da educação pública (LAVAL,
2004, p. 66).
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A defesa da escola, numa sociedade do trabalho e do desemprego, se funda-
menta numa reforma educacional que visa oferecer uma mão de obra adaptada e
concebe os alunos não mais que futuros trabalhadores, responsáveis por si mes-
mos, pela sua aprendizagem e pelo constante reinvestimento de suas capacidades
e habilidades. O que acontece com a escola quando a socialização é o critério va-
lorativo e o princípio avaliativo é que há um “processo de aclimatação a valores e
comportamentos esperados de todos os ‘colaboradores’ da empresa” (LAVAL, 2004,
p. 79). A “educação como socialização” não desconecta os jovens do tempo ocupado
da família, da economia, do trabalho, em suma, da sociedade, da “vida”. Nesse sen-
tido, contra a socialização, é preciso pensar a educação e a possibilidade do “tempo
livre” como alternativas ao modelo escolar desescolarizado.
A desaparição da skholé e a revitalização dos muros da escola
Entendo que para pensar a escola e as atividades que a compõem é preciso
considerar e refletir sobre a origem da palavra e da experiência dela derivada,
skholé. Segundo Kostas Kalimtzis (2017), skholé foi um conceito fundamental para
a Filosofia Ocidental, especialmente em Platão e Aristóteles, para os quais signi-
ficava tempo livre para homens livres, isto é, o tempo do filosofar. Arendt (2005,
p. 40) compreende a skholé antecipada pela liberdade da necessidade e da coação
dos demais, além de um cesse de atividade política e liberdade de preocupações e
cuidados. Nesse sentido, a skholé pode ser o espaço/tempo de atividades que não
estejam ligadas às necessidades da “vida”, à utilidade da produção e à política,
aos assuntos daqueles que também estão liberados das necessidades e vivem um
tempo especial de liberdade e igualdade com outros cidadãos.
Kalimtzis (2017), por outro lado, argumenta que no período Bizantino o concei-
to se metamorfoseou, passou por um processo de perda da valoração positiva e, por
conseguinte, desapareceu do grego moderno, embora o verbete skholé, apresentado
pelo autor, deixa claro a sua transformação no sentido de “institucionalização”, isto
é, no grego moderno, skholé passa a significar as instituições de aprendizagem e
pesquisa. No caso brasileiro, a escola é a instituição que compreende toda a forma-
ção básica dos cidadãos. A “institucionalização” da skholé exige uma diferenciação
entre a escola “real”, a que se realiza na prática dos atores, e a forma/ideia, que mo-
biliza o pensamento e estabelece parâmetros para o que poderia ser o escolar. Como
educadores e pesquisadores, “devemos questionar se essa escola que encontramos é
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realmente uma escola, se o que encontramos na instituição escolar responde ao que
é uma escola” (KOHAN, 2015, p. 132).
Apesar da metamorfose da skholé, há elementos nas tradições subsequentes
que podem inspirar uma atualização e ressignificação do conceito para constituir-
mos uma nova experiência. Em Filón (apud KALIMTZIS, 2017, p. 5-6), filósofo
greco-judaico, skholé é uma atividade apropriada ao sabath; atividade moral dedi-
cada a Deus, “retirada da turbulência dos assuntos públicos e terrenos”; um modo
de habitar, por meio da contemplação (theôrein); dedicar-se à Filosofia, no sentido
da avaliação e melhora moral. Dessas definições, skholé é uma atividade moral,
religiosa, um retirar-se dos negócios da askholia para contemplar – embora a con-
templação não seja uma atividade, tal como a compreendemos segundo Arendt
(2005). O que se destaca é a “retirada” temporária, a saída dos negócios, daquilo
que ocupa o tempo corrente e as relações habituais. Uma parada e, no sentido
moral, um “pare e pense”.
Para os Padres da Igreja, especialmente São Basílio, skholé significa quietude,
a recomendação, obviamente centrada na vita contemplativa, de deter o que se está
fazendo, deixar de fazer o que está ocupando-o, parar de se ocupar com o que é apa-
rente, e a retirada moral em Deus (KALIMTZIS, 2017, p. 9). Novamente, a ideia de
deter o ordinário, o corriqueiro, os negócios e ocupações relativas à sobrevivência, à
riqueza, ao não fundamental para uma vida digna compõe a experiência da skholé.
Com Gregório de Nisa, sempre a partir dos estudos de Kalimtzis (2017, p. 12-14), a
skholé desaparece com seu conteúdo normativo que, de algum modo, derivava das
experiências gregas e dá lugar à plegaria, especialmente no Oriente Bizantino. Tal
conceito implica a atividade da oração na qual nos mantemos em comunidade com
Deus, um dever para os cristãos. A askholia passou a significar os assuntos huma-
nos, daqueles que se esquecem de Deus, que se ocupam com o corpo. Se há escola,
nesses termos, ela tem de servir ao ideal da plegaria, não da skholé que ganha um
sentido ambíguo e negativo.
O desaparecimento da significação originária de skholé conduziu a transfor-
mações de seu significado e a institucionalização do conceito, ou seu formalismo,
isto é, mera forma conceitual para abarcar uma série de processos relacionados à
educação e à formação das “novas gerações” entre muros. A escola Moderna, após
revoluções democráticas, massificou o acesso à educação escolar, ao mesmo tempo
em que conformou os indivíduos ao seu estatuto, especialmente o de compreen-
der “o tempo como progresso, ou seja, a superação do passado [...] O mecanismo
da superação implica uma relação necessária entre novidade e negação” (LÓPEZ,
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2014, p. 84). A Modernidade é autoconsciente de sua condição de ruptura com a
tradição e a contemporaneidade. Os eventos e acontecimentos, a partir do século
XX, radicalizaram essa ruptura: rompe-se com o passado, que é considerado sinal
de atraso. A busca constante por novos conhecimentos e capacitações, consequência
da ressignificação do passado, repercute na formação e na educação.
Trata-se, segundo Sennett (2006, p. 47), da formação de uma “individualidade
idealizada: um indivíduo constantemente adquirindo novas capacitações, alterando
sua ‘base de conhecimento’”. A BNCC repercute essa tendência numa crítica ideo-
lógica ao “excesso de componentes curriculares”, à exigência de as aprendizagens
responderem aspirações individuais presentes e futuras (2018, p. 461), às “rápidas
transformações decorrentes do desenvolvimento tecnológico” num contexto “cada
vez mais complexo, dinâmico, fluido” e de incertezas (2018, p. 462) que exigem
dos estudantes a abertura criativa ao novo. Neste contexto, os conteúdos, isto é, o
passado, deixa de ser fonte de inspiração e guia. O “novo” é a negação do passado e
a afirmação de algo distinto, o tempo como progresso.
A simples transposição da skholé grega à escola moderna só é possível com a
suspensão do ideário inerente a ambas. A escola moderna incorpora o “outro” como
uma de suas funções civilizatórias e a skholé grega excluiu o outro, o bárbaro, o
estrangeiro, que, quando incorporado, o é no sistema relegado aos serviços, não ao
tempo livre ou a política, lugar dos excelentes. A escola moderna está relacionada
ao processo civilizatório e de “humanização” que “só é possível por meio da inven-
ção de uma in-humanidade alheia, que dá à máquina ‘antropológica’ seu caráter
dinâmico e produtivo” (LÓPEZ, 2014, p. 89, grifos do autor). Assim, a atualização
da skholé tem de lidar com um duplo desafio: a exclusão grega e a assimilação mo-
derna. Para tanto, a skholé precisa ser um tempo de suspensão.
Em primeiro lugar, a skholé é o tempo de suspender os modos habituais de
nos relacionarmos com o tempo, com a linguagem e com os outros. Assim, na escola
escolar se suspende a noção e a ideologia do progresso que assimila os “estranhos”
ao mesmo tempo em que a ruptura com a tradição desemboca numa “linguagem da
aprendizagem”. “Humanizar” se converte num “socializar”, conforme argumentei
no tópico anterior. O outro, agora, aparece em sua radicalidade porque a suspen-
são do “progresso”, e da lógica colonial inerente, implica a acolhida do outro como
singular e a ideia de que um “nós” não antecede nem é proeminente ao quem de
cada indivíduo que aparece por meio do discurso e da ação. Sendo assim, não há
um quem antes da ação e nem isoladamente. Precisamos dos outros para termos
realidade e os outros de nós.
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A suspensão, portanto, implica que “a escola dá às pessoas a chance (tempora-
riamente, por um curto espaço de tempo) de deixar o seu passado e os antecedentes
familiares para trás e se tornarem um aluno como qualquer outro” (MASSCHE-
LEIN; SIMONS, 2013, p. 31). Tornar-se “aluno” não quer dizer ser anulado em
sua singularidade, mas significa que é possível iniciar, começar outra vez, inserir-
-se no mundo como um novo ser humano e reconhecer-se como novo em relação a
si mesmo e aos demais. Para atingir esse objetivo, a escola precisa suspender os
requisitos, as funções, as expectativas sociais, econômicas, políticas e familiares.
“A suspensão, tal como entendemos aqui, significa (temporariamente) tornar algo
inoperante, ou, em outras palavras, tirá-lo da produção, liberando-o, retirando-o de
seu contexto normal” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2013, p. 32-33).
Essa suspensão é uma espécie de “perdão” que a skholé fornece como possibi-
lidade àqueles machucados, marcados pelos papéis, funções, julgamentos e expec-
tativas sociais, familiares, econômicas e políticas. Mas o perdão, embora dirigido
aos “novos”, não pressupõe culpa ou responsabilidade. No fundo, se perdoa porque
sem o perdão não há como começar outra vez; se perdoa porque os adultos são os
representantes do mundo e responsáveis pelo desenvolvimento das crianças e sua
introdução na existência adulta. Infelizmente, poucos estão dispostos, sabem ou se
interessam por isso. Daí, a skholé se instaura como um pedido de perdão para que o
novo possa surgir e os atores continuem suas histórias. Portanto, o perdão também
é uma suspensão.
Sem ser perdoados, liberados das consequências do que fizemos, nossa capacidade para
atuar ficaria, por dizer assim, confinada a um só ato do qual nunca poderíamos recobrar-
-nos; seríamos para sempre vítimas de suas consequências, semelhantes ao aprendiz de
bruxo que carecia da fórmula mágica para romper o feitiço (ARENDT, 2005, p. 256-257).
Evidentemente que o “perdão” que advogo não é no sentido do penitente e/ou
culpado/responsável, mas daqueles que não podem ser responsabilizados porque
estão em processo de formação e educação. Cada professor instaura a skholé em
sua aula. Não há skholé a priori na escola. Ela precisa ser escolarizada. O per-
dão, como suspensão, permite que a aula comece. As dores, frustrações, juízos e
avaliações são suspensas, colocadas de lado, os alunos são separados do contexto.
A suspensão que rompe com “a solidão e a vergonha do aluno que não compreen-
de, perdido num mundo em que todos os demais compreendem” (PENNAC, 2008,
p. 34); a suspensão dos juízos sobre a valia de si e as previsões acerca do futuro,
“crianças que não chegarão a nada” (PENNAC, 2008, p. 49); e a possibilidade de
começar outra vez, prática do perdão:
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[...] o que entra na sala de aula é uma cebola: umas capas de pesadelo, de medo, de inquie-
tude, de rancor, de cólera, de desejos insatisfeitos, de furiosas renúncias acumuladas sobre
um fundo de vergonhoso passado, de presente ameaçador, de futuro condenado. Olhe-os,
aqui chegam, com o corpo a meio fazer e sua família na mochila. Na realidade, a aula só
começa quando deixam o fardo no chão e a cebola foi descascada. É difícil explicar, mas
frequentemente só basta um olhar, uma palavra amável, uma frase de adulto confiado,
claro e estável, para dissolver esses pesares, aliviar os espíritos, instalá-los no presente
(PENNAC, 2008, p. 58).
O perdão é um autoperdão daqueles que não têm culpa E, orientados pelo
professor, o adulto, podem começar outra vez, aqui, agora, nisso. A skholé, que
suspende a sociedade e os mecanismos da socialização, acontece no “tempo pre-
sente”, liberando os alunos da carga do passado e das injunções do futuro. Aqui
podem começar outra vez, dedicados nisso, independente do que foram ou do que
a sociedade, a família, o trabalho, a economia ou a política espera. Um tempo
especial de aprendizagem (PENNAC, 2008, p. 59), desvinculado do papel social,
das funções. Tempo do respeito, isto é, tempo em que todos são considerados como
importantes, são vistos e ouvidos, aparecem e respondem ao mundo. Não são pa-
cientes da educação, mas atuantes. E a atuação não é apropriação, mas respos-
ta. “Enquanto a aprendizagem como aquisição consiste em obter mais e mais, a
aprendizagem como resposta consiste em mostrar quem você é e em que posição
está”, argumenta Biesta (2013, p. 47). Evidencia-se a diferença da escolarização
como skholé da escolarização como socialização possibilitada, em nosso contexto,
por uma “linguagem da aprendizagem”.
A atualização da skholé também implica a suspensão das hierarquias e desi-
gualdades sociais: “ela se dirige a todos por igual; nela o mundo pode ser renovado
pelas novas gerações”, argumenta Kohan (2017, p. 593). De algum modo, havia
comentado sobre essa especificidade quando escrevi sobre a suspensão das tentati-
vas de domar a escola pela sociedade e pela família (e, hoje, a economia e a política
criam hierarquias sociais tão verticais quanto as do Ancien Régime). Essa suspen-
são rompe com o discurso (e a prática) de que a escola reproduz as desigualdades
sociais. A escola escolar, a escola fundada na skholé, é a instituição mais apro-
priada para romper com a desigualdade social de fato, e não apenas de direito. Ao
localizar as crianças, adolescentes e jovens no “tempo presente”, a escola os liberta
do peso das dinâmicas sociais sob o princípio e o fato da igualdade, isto é, do “todos
são capazes de”. A igualdade, na Modernidade, “necessita estar prometida, mas
jamais realizada, pois o dispositivo extrai sua força do desejo de igualdade, e não
da igualdade efetiva” (LÓPES, 2014, p. 90). Por isso, a skholé é revolucionária e
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perigosa, é a materialização de uma crença utópica (KOHAN, 2017, p. 592), e a es-
cola pública, espaço privilegiado para a skholé. A escola, segundo sua forma-ideia,
é um espaço em que é possível “perder tempo”, “perder-se no tempo”, distinto dos
espaços externos em que as pessoas são funções, exercem papéis e não têm tempo
a perder, pois estão dedicadas aos negócios, à produção, ao consumo, ao trabalho, à
askholia. O tempo da skholé é tempo de estudo, de dedicação a si mesmo, de culti-
var-se (KOHAN, 2015, p. 134).
É inevitável, portanto, mencionar a experiência de Simón Rodriguez, educador
e filósofo latino-americano que empreendeu uma educação popular no continente
para contribuir com a formação de uma nascente República. Rodríguez sabia que a
ruptura com o passado colonial e monárquico da Espanha se fazia, também, com a
formação, e a escola poderia ser o princípio de um projeto para uma nova América
– sem, com isso, entender que a educação deva assumir a responsabilidade utópica.
Para Durán e Kohan (2016, p. 17),
[...] a igualdade na escola é declarada como princípio, e não como um objetivo a ser alcan-
çado. Em seu interior, a igualdade se afirma e é praticada sem condições. A afirmação de
uma realidade igualitária cancela, dentro da escola, a desigualdade que impera na cidade.
Por isso, a educação não pode se resumir a socialização, a introduzir os jovens
na sociedade. Como introduzi-los numa sociedade desigual, fundada na lógica da
sobrevivência, da publicização do labor, da existência encaixada inteiramente no
“tempo produtivo”? Tal educação não é educação, mas uma condenação sumária
das crianças e jovens, na medida em que não permite que elas apareçam como
seres singulares. Neste sentido, igualdade não é “igualização”, pois a igualdade,
como princípio e ponto de partida, permite a todos aparecerem como singulares,
e não a anulação das singularidades por uma “igualdade” que reduz as crianças e
jovens a exemplares de uma espécie. Argumentam Masschelein e Simons (2013,
p. 71) que “a escola e o professor que visam manter as mentes dos alunos no início
da aula partem do pressuposto de que todos têm igual capacidade”, o que não sig-
nifica acessar o mundo do mesmo modo nem responder às demandas, questões e
insinuações do mundo e dos outros igualmente. O professor e a escola introduzem
as “novas gerações” no mundo, o tornam público, colocando “todos numa posição
inicial igual e fornece a todos a oportunidade de começar” (MASSCHELEIN; SI-
MONS, 2013, p. 71), ou seja, de agir. Na educação como socialização não há ação,
mas comportamento. A igualdade, se houver, é um fim, não o princípio da ação
pedagógica. Ir à escola não é natural às crianças. Trata-se de uma convenção, uma
criação humana para garantir a continuidade do mundo e a formação. Como ar-
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gumentei anteriormente, a escola é um fenômeno do mundo, não da vida, no qual
a skholé garante a especificidade de uma instituição sob ataque e tentativas de
domínio. E a escola precisa da “suspensão” porque, como a escola de Rodríguez,
a skholé também inverte ou cancela os valores da sociedade, suspende a ordem
social e oferece uma nova prática pedagógica e um novo modo de existir. Por isso, a
escola precisa de seus muros, muros de concreto e muros simbólicos: “a separação
do mundo é a condição de possibilidade do escolar” (KOHAN, 2017, p. 593).
A igualdade na escola, princípio e prática, assume seu aspecto público: se to-
dos são capazes, todos têm acesso ao que é (ou deve ser) público, o comum. Em
Rodríguez, o Estado tem interesse na formação de todos os cidadãos porque não
é possível excluir alguém se todos os ofícios e atividades implicam conhecimento.
Mesmo para a “vida”, tal ideia é fundamental, pois “que progresso farão os homens
sem instrução?” (RODRÍGUEZ, 2016, p. 40). Por outro lado, uma educação repu-
blicana é fundamental numa República, donde uma instrução técnica (ou para a
técnica) é incompleta. A escola republicana, sob o axioma da igualdade, conta com
um adulto competente, versado na sua “matéria”, apto a oportunizar a todos a
experiência de “ser capaz de”. Na escola escolar, ou seja, na skholé não é qualquer
professor, material, livro, avaliação, estrutura ou relação que serve. O desafio, em
nosso continente, não é socializar, nem imitar ou adaptar as diretrizes dos organis-
mos internacionais para produzir trabalhadores mais competitivos. Contudo, en-
tre Arendt e Rodríguez há uma controvérsia. Para o venezuelano, segundo Kohan
(2015, p. 89), a verdadeira educação acontece entre iguais, pois entre desiguais
há antipatia, submissão. O professor, então, deve considerar os estudantes como
iguais. Sem dúvida, são iguais enquanto “seres capazes de”, ambos são estudantes
(KOHAN, 2015, p. 87) e um se inspira no outro e o mobiliza para o desejo de saber.
Contudo, para Arendt, a autoridade do professor, que implica desigualdade e hie-
rarquia, é constitutiva da relação pedagógica, entre adultos e crianças, pois os pro-
fessores são os representantes do “mundo” frente às crianças, e são responsáveis
pelo “mundo” e pelo desenvolvimento das crianças. Sem as especificações da igual-
dade entre professor e alunos que apresentei acima, igualdade formal, a igualda-
de de fato entre professores e alunos rompe com relações tipicamente geracionais
e acarreta o “banimento” das crianças do mundo e uma desresponsabilização do
adulto. Portanto, às afirmações de Rodriguez, é fundamental acrescer as condições
de Arendt, que complementam e preservam as distinções que cuidam, conduzem e
introduzem as crianças no mundo, essência da escola (ARENDT, 2007).
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A skholé latino-americana deve ser inventada, a partir de experimentos e ex-
periências de educadores em suas aulas, onde acontece a ação, em que os seres hu-
manos aparecem como singulares. Para Rodríguez (2017, p. 54-55, grifos do autor),
[...] a América está chamada (se os que a governam entendem) a ser modelo de boa socieda-
de, sem mais trabalho a adaptar. Tudo está feito (na Europa especialmente). Peguem o que
é bom – deixem o que é mau – imitem com juízo – e o que lhes faltar INVENTEM.
Para inventar uma skholé latino-americana, é preciso esquecer o que enten-
demos por escola “para passar a considerá-la a partir de sua etimologia grega,
skholé, como uma forma particular de tempo, um ‘tempo livre’ sem destino, sem
objetivo ou fim” (OLARIETA, 2014, p. 51). Do mesmo modo, a experiência grega e
as metamorfoses do conceito não nos servem, não atendem as exigências de nosso
contexto. É preciso atualizar a skholé conforme venho argumentando, salvando o
mundo das ruínas da laborização da existência e, num contexto em que tudo é pas-
sível de apropriação, profanar o sagrado, isto é, o que era privado de acesso público
(AGAMBEN, 2007), liberar para o “livre uso”, sem as injunções das funcionalida-
des previstas socialmente, laboralmente, economicamente, tecnicamente, profis-
sionalmente. Tal “profanação” quer dizer uma ressignificação que ocorre quando
algo é desligado de seu uso habitual e fica acessível para todos (MASSCHELEIN;
SIMONS, 2013, p. 39). As crianças e jovens, ao profanar, mediados e orientados
pelo professor – o representante do mundo –, têm a possibilidade de experimentar
a si mesmas como “nova geração”, e ao mundo como algo distinto de si mesmo, que
confronta, desafia e exige respostas.
Mas uma skholé latino-americana não quer dizer que deva ser uma escola
fundada em experiências indígenas ou negras, mas uma escola para todos e todas,
uma escola para os despossuídos de terra, de cultura, de linguagem, de pensamen-
to, de vida, de mundo (KOHAN, 2015, p. 55). É importante que cada um possa ser o
que é e aparecer como quem é, ou seja, que sejam índios, negros, com suas línguas
e culturas valorizadas e tornadas “comum”, ao mesmo tempo em que a cultura
europeia, estadunidense, asiática e que constituem nossa herança tenham espaço
e tempo. Não se trata de pensar uma skholé americanizada, mas para a América
Latina. O que Rodríguez quer para a América quer para todos, “e a inventiva que
pede para a América se justifica porque o que ela necessita não existe noutro lugar”
(KOHAN, 2015, p. 76).
Nesse sentido, a skholé é o tempo da “experiência” que só é possível no tempo
presente e no tempo livre. Na educação em que é preciso estudar para fazer pro-
vas, preparar-se ao vestibular, formar-se para o trabalho ou para a localização na
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sociedade, não há tempo para realizar experiências com o mundo e com os outros.
O “mundo”, liberado de seus “usos”, aparece na escola como “matérias”, por isso a
escola “profana”. Um livro de Camus sai das mãos científicas de um pesquisador
universitário dos departamentos de Filosofia e Literatura e passa a ser manuseado
livremente pelos alunos, orientados pelos professores a realizar experiências com o
texto, confrontados com a leitura e, assim, consigo mesmos. “Ler um texto”, escreve
Larrosa (2017, p. 128) “é, fundamentalmente, escutar a interpelação que nos dirige
e fazer-se responsável por ela”. Portanto, cabe ao professor fazer boas perguntas,
mobilizar os alunos ao texto, introduzi-los no texto e, assim, numa parte do mundo.
Ao mesmo tempo, cabe ouvi-los, pô-los em relação, na construção do “senso comum”.
“Senso comum” e “mundo” estão articulados. A tarefa da educação, já anun-
ciada, é a de introduzir as “novas gerações” no “mundo”, realizando a transição do
domínio familiar à esfera pública, espaço do comum. “O fundamento do Sistema
Republicano está na opinião do povo, e esta não se forma sem instruí-lo”, escreve
Simón Rodríguez (2016, p. 55). A escola republicana desprivatiza os conhecimen-
tos, torna-os públicos, de acesso geral. Por isso, defender a escola pública e gratuita
é condição necessária para a existência da República e da continuidade do mundo.
Rodríguez (2016, p. 117) defende que “os conhecimentos são PROPRIEDADE PÚ-
BLICA”, donde num regime de apropriação de tudo por todos, que é o capitalismo
neoliberal, a escola exerce uma tarefa fundamental em relação à defesa do “mun-
do” e do “comum”. Do mesmo modo, a República se fundamenta na opinião dos
cidadãos, e isso não significa um “império da opinião”, da absolutização da “liber-
dade de opinião”. “A liberdade de opinião é uma farsa, a não ser que a informação
fatual seja garantida e que os próprios fatos não sejam questionados” (ARENDT,
2007, p. 295). Por isso, a educação exige o ensino que se volta ao passado, e todo
conhecimento se refere ao que passou. Por isso, a BNCC e a “linguagem da aprendi-
zagem” põem em risco o “mundo” e a existência do sistema republicano. “O homem
não é verdadeiramente desprezível senão por sua ignorância” (RODRÍGUEZ, 2016,
p. 53). Do mesmo modo, é a partir dos eventos e acontecimentos que mobilizamos
o pensamento. Mas, para pensar, é preciso sair temporariamente do “mundo”, da
“sociedade”, dos afazeres cotidianos.
É na escola que dedicamos a atenção ao “mundo”, convertido em “matéria.
Estar atento quer dizer dedicar-se a isso, aqui e agora durante um período. Essa
dedicação, na escola, é o estudo que exige o conhecimento e o pensamento. O co-
nhecimento possibilita a inserção no “mundo”, no que é essencial para saber locali-
zar-se nele. O pensamento, por seu turno, busca o significado daquilo que acontece,
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rompe com clichês, frases feitas, estereótipos, pré-juízos e pré-conceitos que têm a
função de nos proteger da realidade, de evitar a realização de experiências. E se,
para pensar, é preciso sair temporariamente do “mundo”, e a escola não é o mundo
(ARENDT, 2007), é também a escola, quando fundada na skholé, um espaço/tempo
do pensar que interrompe toda a ação, todas as atividades habituais (ARENDT,
1993, p. 149). Nesse contexto, a escola desnaturaliza o que a socialização tende a
naturalizar na forma de comportamentos. Se o pensamento interrompe o cotidiano,
a skholé estabelece uma ruptura temporal e espacial: tempo e espaço para pensar.
E nesse aspecto, a atualização da skholé para a escola recupera sentidos perdi-
dos da skholé na Antiguidade para atualizá-los na formação e educação de crianças
e jovens. Na educação como socialização não há espaço e tempo para o pensar,
porque “o pensar representa perigo igual para todos os credos, e não dá origem, por
si mesmo, a nenhum novo credo” (ARENDT, 1993, p. 159).
A socialização, como processos de introdução na sociedade, se fundamenta em
intencionalidades (dos agentes concernidos), mas não em reflexão, em “pare e pen-
se”, em “suspensão”: isso inviabilizaria o processo de socialização. Por outro lado,
isso não significa que a socialização seja autoritária, totalitária. Seu problema é
introduzir na sociedade e não no “mundo”. A escola pode dedicar-se a ambos, desde
que não esqueça que a maior parte do tempo e de seu espaço deve ser de skholé,
do “tempo livre”, não do “tempo produtivo”. Porém, se a escola suspende o “tempo
produtivo” e o tempo da sociedade é “produtivo”, então não há condições, lógicas,
para a socialização na escola, e dela, da socialização, cabe ocupar-se outra esfera.
Considerações nais
O que cabe ao educador no século XXI, em meio a crises econômicas, políticas,
sociais e sanitárias, é reivindicar e atuar “fazendo escola”, o que não significa cons-
truir uma instituição, dedicar-se à arquitetura ou engenharia, mas “que dê à escola
algo assim como sua condição, seu caráter mais próprio, algo que não está dado,
mas que é instaurado na vida escolar, na educação feita vida” (KOHAN, 2015, p.
25). Nos termos que argumentei aqui, trata-se de “fazer” skholé, ou melhor, realizar
skholé, tornar real mesmo que isso signifique tornar inoperante, temporariamente,
a socialização, a “introdução na sociedade”, para introduzir as “novas gerações” no
mundo, naquilo que é mais duradouro que a “vida” e que dota de sentido a existên-
cia. Mas não a existência em seu passado, presente e futuro. Apenas no aqui, no
isso, no agora. Não se trata de um projeto no qual as crianças, jovens e adolescentes
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são instrumentos de um objetivo adulto, mas de realizar o “tempo livre”, no “tempo
presente” que transforma a escola em skholé, na qual todos, que “são capazes de”,
podem desenvolver-se como indivíduos e cidadãos, isentos de qualquer obrigação
para com a sociedade (o trabalho, a economia, o consumo), a família ou a política
(MASSCHELEIN; SIMONS, 2013, p. 97).
Por isso, a skholé rompe com a instrumentalidade inerente às avaliações do
homo faber e com projetos que domam a escola a partir de fora. Inspiração latino-a-
mericana, Simón Rodríguez serviu como um dos fundamentos para pensar a igual-
dade que se realiza na relação pedagógica, pois o filósofo e educador venezuelano “é
um iniciador, um inspirador, um apostador. O que interessa está no que acontece,
no que provoca, não em um produto final” (KOHAN, 2015, p. 50). Isso caracteriza
as experiências de Rodríguez e nos serve de modelo para (re)pensar a escola e a
educação para além da “socialização”, dos processos de “introdução na sociedade”.
A escola, como argumentei, é um fenômeno do mundo, introduz as “novas gerações”
no mundo, e tal introdução acontece com a ação e o discurso, no qual o mundo,
transformado em “matérias” na escola, é objeto que indaga, confronta e exige res-
postas, posicionamentos, aparições. Por isso, “introduzir no mundo” é uma prática
destituída de seu caráter instrumental: não é “fazer a introdução”, mas “realizar”,
tornar real, possível, e isso acontece quando os professores apresentam o mundo às
crianças e dizem: “isso é o nosso mundo” (ARENDT, 2007, p. 239).
Para pensar a skholé, é preciso desabituar-se, assumir a perspectiva do estran-
geiro, do estranho, do outsider, para compreender distintamente e desnaturalizar
relações e práticas que não permitem a crianças, adolescentes e jovens aparecerem
como singulares ou tornarem-se o quem são (KOHAN, 2015, p. 34). Por isso, a
“socialização”, como “introdução na sociedade” não pode fazer parte da escola - ao
menos, não como a atividade principal -, porque, como argumentei, ela desescolari-
za a escola, inviabiliza a skholé.
Esses argumentos não conduzem, necessariamente, à exclusão da sociali-
zação, pois todos necessitamos, também, comportar-nos, atuar conforme regras,
estatutos, ordenamentos e leis, mas isso não deve ser um empecilho à ação, ao
pensamento, à imaginação e à inovação, tomando como condição as necessidades
pelas quais nos unimos em sociedade e a liberdade em associações. Para Rodríguez
(2016, p. 137),
[...] os homens não estão em sociedade para se dizer que possuem necessidades nem para se
aconselhar que busquem remediá-los... nem para se incentivar a terem paciência; mas para
se consultar sobre os meios de satisfazer seus desejos, porque não satisfazê-los é padecer.
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Nessa definição, o filósofo opta pelo plural, os homens e não o homem ou a
humanidade. Neste sentido, a sociedade se compreende como associação, que exige
dos homens a compreensão sobre como se entender entre si e criar instituições,
práticas e condutas eficazes para a satisfação das necessidades e dos desejos. Em-
bora eles não se refiram ao “mundo”, no sentido arendtiano, não se pode descartar
essa esfera como importante, porque não há como voltar atrás, para os indivíduos.
Importante, mas não fundamental para que uma vida individual exista como sin-
gularidade. A escola institucional transita, assim, da askholia para a skholé.
Assim, a escola também forma para a “vida”. Inspirado em Simón Rodríguez,
Kohan (2015, p. 80) argumenta que “é preciso formar todas as meninas e todos os
meninos desta terra para o mundo, para o trabalho, para a vida”, o que não signi-
fica desescolarizar a escola, a askholia usurpando a skholé: uma escola utilitária,
instrumental e técnica. Cabe à escola escolar criar condições para a realização das
experiências, do aprendizado pela experiência e da experiência como aprendizado.
Aprender a ler e escrever não é o bastante (RODRÍGUEZ, 2016, p. 93), é importan-
te uma educação dos sentidos e pelos sentidos – ideia que o filósofo venezuelano
compartilha com Rousseau (2017, p. 53): “preparai-as, portanto, para as ameaças
que um dia terão de suportar. Endurecei seu corpo às intempéries das estações,
dos climas, dos elementos: à fome, à sede, ao cansaço”. Pois é importante aprender
a viver para poder cuidar do mundo, ser introduzido no mundo e não sucumbir à
vida, à sobrevivência. Tudo isso faz parte da escola, embora nem tudo a faça esco-
lar. “Ensinar pela metade não é ensinar” (RODRÍGUEZ, 2016, p. 101).
A educação na América integra conhecimento, pensamento, ação e a vida.
São espaços (os escolares) em que é possível aparecer como singular e, a partir de
Arendt (2005), isso não acontece sem os outros que garantem a realidade do indiví-
duo e de si mesmos em relação, no espaço entre, o “mundo” ou a “matéria” “profana-
da”, “desprivatizada” pela escola. Eis a escola republicana: a que introduz todos no
mundo, torna público e comum. Uma educação política que não é instrumento da
política: “a educação é para todos ou para ninguém” (KOHAN, 2015, p. 85). Logo,
ela não é um fenômeno da vida, mas do mundo.
Notas
1 Todas as traduções são de nossa autoria.
2 Nesse aspecto, em termos educacionais, Rousseau (2017, p. 99) comenta: “sabeis qual o meio mais seguro
de tornar vosso filho miserável? É acostumá-lo a conseguir tudo, pois, com seus desejos crescendo conti-
nuamente pela facilidade de satisfazê-los, cedo ou tarde a impotência vos forçará a recusá-los contra a
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vossa vontade, e tal recusa inabitual causará maior tormento a vosso folho que a própria privação do que
ele quer”.
3 O fato de o Ministério da Economia, no Brasil de Bolsonaro, exercer preponderância, “superministério”,
só é possível com o advento da sociedade, na qual a economia (oikonomía) se tornou um assunto público,
quando, originariamente, dizia respeito a oikos, aos assuntos domésticos, relacionados às necessidades.
Quando a Economia administra a educação, negligenciando a tarefa específica que toda educação tem na
civilização, há a preponderância da socialização sobre a educação, da adaptação e do conformismo sobre a
ação, a introdução no mundo e a singularização.
4 Na continuidade do argumento, escreve Estefanía (2017, p. 85): “por que, apesar de tantos bem intencio-
nados economistas neoclássicos, quase todas suas recomendações e receitas favorecem aos ricos, mais que
aos pobres, aos capitalistas mais que aos assalariados, aos privilegiados antes que os despossuídos”.
5 Segundo Sennett (2012, p. 17), “a falta de respeito, ainda que menos agressiva que um insulto direto, pode
adotar uma forma igualmente que fere. Com a falta de respeito não se insulta a outra pessoa, mas tam-
pouco se oferece reconhecimento; simplesmente não se a vê como um ser humano integral cuja existência
importa”. Contudo, o desrespeito se converte em humilhação quando vê ao outro como fracassado, pregui-
çoso, parasita da sociedade. É o caso da Primeira Dama do Estado de São Paulo quando falou que morar
na rua é um atrativo e que os moradores de rua gostam de ficar lá. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/
sao-paulo/noticia/2020/07/03/bia-doria-diz-que-nao-se-deve-doar-marmitas-para-moradores-de-rua-por-
que-eles-gostam-de-ficar-nas-ruas-e-um-atrativo.ghtml.
6 Num artigo dos anos 1950, sobre as técnicas da ciência social e o estudo dos campos de concentração,
Arendt argumenta sobre os campos de concentração como laboratórios de uma experiência de domina-
ção total que visa eliminar a espontaneidade e transformar o homem num ser totalmente condicionando
mediante a destruição da pessoa jurídica, da pessoa moral e da própria individualidade (ARENDT, 2001,
p. 157).
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Socializando o pesquisador a observar a socialização dos sujeitos:
notas sobre pesquisas com as elites
Socializing the researcher to observe the socialization of the subjects:
notes on research with the elites
Socializar al investigador para observar la socialización de los sujetos:
apuntes sobre la investigación con las élites
Maria da Graça Jacintho Setton*
Ce point devrait là aussi faire objet d’une réflexion collective
interrogeant la capacité d’une profession à produire un
point de vue sur le fonctionnement des élites qui ne soit
tributaire ni d’une revanche de classe, ni d’une forme
d’admiration, ni même enfin d’un tropisme scolastique1.
Resumo
O objetivo deste artigo é apresentar informações preliminares acerca da pesquisa intitulada Pensamento e prá-
ticas culturais da elite paulistana2. A intenção é problematizar e circunstanciar questões de ordem metodológica
e teórica observadas no decorrer do trabalho de investigação. Mais especicamente, serão expostas as dicul-
dades e as estratégias utilizadas para contornar as difíceis relações com um grupo social seleto – as elites da
sociedade paulistana. Articuladas a esta questão, serão analisadas algumas impressões das frações estudadas,
suas idiossincrasias a partir do pertencimento neste grupo e setores da economia que representam. Trata-se de
uma primeira explanação de dados mais gerais da pesquisa, que busca compreender as formas de justicação
da dominação e as representações sociais das elites a partir de suas trajetórias sociais, tendo como perspectiva
teórica a sociologia da socialização.
Palavras-chave: socialização; elites; desigualdade social; camadas sociais.
* Graduada e mestra em Ciências Sociais pela PUC-SP e doutora em Sociologia pela USP. Professora Titular em Socio-
logia da Educação na Faculdade de Educação da USP. Livre-Docente em Sociologia da Educação na Faculdade de
Educação da USP. Entre 2010 e 2013, coordenou o GT 14 - Sociologia da Educação da Anped. Coordena o GPS - Gru-
po Práticas de Socialização Contemporâneas, desde 2003. Tem pós-doutorado pela USP (1997) e pela EHESS – Paris
(2000) e na Unicamp (2012-2013). Em 2008, atuou como professora convidada no Groupe de Recherche sur la Sociali-
sation, na Université Lumière 2, em Lyon, França, e na Universidade de Coimbra, Portugal. Em 2012, participou de um
estágio de pesquisa na Université Paris-Descartes, Sorbonne, em Sciences Humaines et Sociales. Orcid: http://orcid.
org/0000-0001-7306-9293. E-mail: gracaset@usp.br
Recebidoem: 30/07/2020 – Aprovado em: 13/01/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i1.12972
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Abstract
The purpose of this article is to present preliminary information about the research entitled Thought and Cul-
tural Practices of Elite Paulistana. The intention is to problematize issues of methodological and theoretical
order observed during the research work. More specically, the diculties and strategies used to overcome
the dicult relationships with a select social group - the elites of São Paulo society. Linked to this issue, some
impressions of the fractions studied will be analyzed, their idiosyncrasies based on belonging to this group and
the sectors of the economy they represent. It is a rst explanation of more general data from the research that
seeks to understand the forms of justication of domination and the social representations of elites from their
social trajectories with the sociology of socialization as a theoretical perspective.
Keywords: socialization; elites; social inequality; social strata.
Resumen
El propósito de este artículo es presentar información preliminar sobre la investigación titulada Pensamiento
y prácticas culturales de la élite Paulistana. La intención es problematizar cuestiones coyunturales de orden
metodológico y teórico observadas durante el trabajo de investigación. Más especícamente, se expondrán las
dicultades y estrategias utilizadas para sortear las difíciles relaciones con un grupo social selecto, las élites de
la sociedad paulista. Vinculado a este tema, se analizarán algunas impresiones de las fracciones estudiadas, sus
idiosincrasias en función de la pertenencia a este grupo y los sectores de la economía que representan. Es una
primera explicación de datos de investigación más generales que busca comprender las formas de justicación
de la dominación y las representaciones sociales de las élites desde sus trayectorias sociales con la sociología de
la socialización como perspectiva teórica.
Palabras clave: socialización; élites; desigualdad social; capas sociales.
Introdução
A epígrafe alerta a pesquisadora e a todos que estudam empiricamente as fra-
ções privilegiadas. Trata-se de um desafio constante em investigações que refletem
as concepções de mundo das elites e suas representações políticas em sociedades
tão desiguais.
Desde o início, antes mesmo de formalizar a proposta da pesquisa em tela, de-
senvolveu-se um anseio de que, devido a algumas relações, tinha-se o compromisso
de desvelar os modos de justificação da dominação das elites, suas interpretações
sobre as desigualdades sociais e responsabilidades em relação a este estado social.
Convivendo e circulando em um grupo em que muitos agentes se destacavam por
um protagonismo em suas áreas de atuação, estava convencida de que um ou dois
contatos fariam com que se chegasse a estes sujeitos tão pouco acessíveis a uma
boa parcela de pesquisadores das ciências sociais.
A intenção era obter mais informações sobre este grupo raramente estudado até
então. Em aulas e palestras nas universidades, eram sempre frequentes a impressão
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de que, ao apresentar a obra de Pierre Bourdieu, tinha acumulado mais conhecimen-
tos sobre as camadas médias e populares do que sobre as elites brasileiras. Tal per-
cepção sucessivamente esteve presente pois fazendo uso de uma sociologia relacional,
ou seja, partindo de uma leitura em que se compreende as relações de aproximação
e ou de distanciamento entre os grupos através do jogo simbólico das distinções so-
ciais, apresentou-se forçoso a imposição de um novo objeto de pesquisa (BOURDIEU,
[1979]2007). Como se reproduzem os grupos de elite? Como estes setores privilegia-
dos reproduzem e justificam a dominação? Quais as estratégias de dominação que
fazem uso? Qual a leitura que fazem sobre a desigualdade social em nosso país?3
Ainda que o escopo da investigação em questão seja maior, neste artigo só irão
ser discutidos três aspectos: o tipo de pertencimento a frações das elites, os setores
da economia a que estão relacionados e suas justificativas acerca da desigualda-
de social no Brasil a partir da teoria da socialização.4 Concordando com Berthelot
(1983), as teorias da socialização compreendem um conjunto de investigações que
possuem foco nas instituições, nos valores, na história e na vida dos indivíduos.
Uma perspectiva capaz de associar, simultaneamente, quatro elementos essenciais
para a análise de qualquer fenômeno social. Dessa maneira, tais teorias, ainda que
não perceptível a todos, possui potencial analítico singular, na medida em que serve
para interpretar aspectos da reprodução social, a origem social dos grupos e suas
representações em várias dimensões socioculturais (SETTON; BOZZETTO, 2020).
Dando encaminhamento a esta ordem de questões, propus uma investigação
sobre nove setores representativos das elites. Embora tenha como pressuposto de
que as elites se compõem de muitas frações (KHAN, 2012), inicialmente investi-
gou-se os seguintes domínios: a) políticos/ex-ministros/assessores; b) celebridades
intelectuais; c) empresários da agricultura/pecuária; d) empresários do comércio;
e) empresários industriais; f) empresários das finanças; g) profissionais liberais; h)
empresários da comunicação; i) altos executivos.5
Durante praticamente dois anos, teceu-se uma rede de relações, solicitações
e agradecimentos de porte razoável. Para chegar aos 48 sujeitos entrevistados foi
necessário falar com mais de uma centena de pessoas. A ideia inicial de que um
entrevistado poderia apresentar a mais um não se realizou. Sempre muito cuida-
dosos, raras as vezes um ou outro se dispôs a indicar um possível contato. Nem
sempre havia clima para fazer esta solicitação. De contínuo muito ocupados, com
tempo contado no relógio, sempre se privilegiou a condução do encontro a fim de
dar conta de tudo que estava contemplado no roteiro da investigação. Vale destacar
que houve exceções. Nas últimas entrevistas, no final de 2019, já tentando fechar
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o quadro de sujeitos participantes, um grupo de mulheres contatadas auxiliou na
relação com outras empresárias.
Na maioria das vezes, conseguia-se o telefone celular do possível entrevista-
do/a e fazia o contato pelo WhatsApp. Em outras ocasiões, contatava-se secretárias
e por último o recurso do e-mail. As respostas nunca foram imediatas. De dois a cin-
co dias para obter algum tipo de resposta. Alguns deles ainda se espera retorno. De
maneira cuidadosa iam sendo feitas cobranças ou lembretes de comprometimentos
já anunciados. A intenção em realizar as entrevistas em um semestre, tornou-se
absolutamente imprópria. Imaginou-se também que a etapa da pesquisa de entre-
vistas iria finalizar-se em novembro de 2018. Contudo, em função das dificuldades
encontradas no decorrer dos agendamentos alguns sujeitos só foram abordados no
decorrer do ano de 2019. Como foi verificado, o acesso a este grupo é um processo
moroso, exige paciência e determinação (GENÉ, 2014; LAURENS, 2007; PINÇON;
PINÇON-CHARLOT, 1989, 2007). Tudo leva a crer que o período e o clima tenso
das eleições para cargos do executivo e legislativo de 2018 dificultou os encontros.
Isso porque alguns setores estavam bastante envolvidos com a discussão da pauta
dos candidatos como os políticos e os profissionais da comunicação.
Os setores em que os contatos foram mais fáceis foram as celebridades inte-
lectuais, os profissionais das finanças e sobretudo as mulheres empresárias. Altos
executivos foi um setor que a própria leitura teórica impôs dado que a bibliografia
aborda tais personalidades como uma das responsáveis pela manutenção de uma
ordem social e econômica. Eles também foram bem acessíveis. Mesmo não sendo
proprietários de grandes empresas, eram e são com frequência detentores de muita
influência em seus âmbitos de trabalho.
É notável a coincidência de localização dos escritórios ou residências dos en-
trevistados. Um ou outro se destacou por sair do circuito Vila Nova Conceição,
Itaim-Bibi e Jardins, bairros nobres e de ricas construções imobiliárias da cidade.
Vale ressaltar uma curiosidade – a denominação dos prédios em que muitos pos-
suíam escritórios. Central Park, Tower Pinheiros, Metropolitan, entre outros, são
exemplos de nomes dos imóveis numa conexão explícita com negócios no exterior.
O tempo necessário para o trajeto e a realização de cada encontro não era menor
do que quatro horas. Um deslocamento de ida e volta de aproximadamente uma hora
e meia e mais o próprio tempo da entrevista, no mínimo 50 minutos e no máximo
duas horas, comprometiam toda uma manhã ou mesmo uma tarde inteira. Poucas
entrevistas se realizaram na residência dos sujeitos, apenas 10 de um total de 48.
Tudo leva a crer que, na tentativa de agilizar a solicitação, grande parte dos conta-
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tados agendava o encontro para os momentos livres em seus escritórios. A espera no
lado de fora na recepção ou em salas de reunião ou mesmo a expectativa de atraso
da pesquisadora sempre faziam emergir certa tensão a cada encontro. A procura de
estacionamentos em ruas movimentadas e a consulta de que não havia sido esqueci-
do nenhum item para a realização do encontro mobilizavam uma atenção constante.
O maior tempo de espera foi de três horas, mas isto não se deu de forma constante.
A grande maioria respeitou os horários. De duração de aproximadamente uma hora,
as entrevistas variaram de 3 horas a 40 minutos. Uma parcela reduzida tinha curio-
sidade sobre o destino das informações. Um dado de pesquisa parece importante ser
declarado. Nunca chegar atrasada. Nas ocasiões em que os encontros se davam na
residência do entrevistado, procurou-se ser o mais pontual possível. Nas entrevistas
em sede das empresas, a chegada com alguns minutos de antecedência sempre foi
importante, dado que a apresentação de credenciais e a passagem por muitos me-
diadores (porteiros, secretárias, espera de elevadores) exigiam uma folga de tempo.
O roteiro de entrevista foi se modificando ao longo da pesquisa. Algumas ques-
tões foram deslocadas da ordem inicial e outras foram suprimidas devido a uma
confusão de entendimento feita pelos entrevistados, o que alongava as explicações.6
Na verdade, não fizeram falta, pois, no transcorrer dos encontros, as respostas
eram dadas de maneira espontânea.
Definida inicialmente a partir de um corte setorial, a investigação tinha como
preocupação realizar um corte geracional (32 a 40; 41 a 50; 51 a 65; mais de 66
anos) e um corte de gênero.7 No entanto, uma certa margem de flexibilidade foi
necessária. Isto é, foi difícil encontrar sujeitos do sexo masculino ou feminino com
sucesso profissional com menos de 40 anos. Grande parte deles começam a se des-
tacar no meio empresarial a partir de 50 anos ou mais. É possível afirmar ainda
que o sexo feminino se mostrou mais evidente em alguns setores, como finanças,
comunicação, profissionais liberais e altos executivos, do que em outros, como in-
dústria, comércio e política. Pelo menos, em cada um dos setores investigados, pro-
curou-se um sujeito que se destacasse dos demais devido a uma herança invejável
e ou mesmo uma trajetória de sucesso que o alçou a um posto cobiçado de muita
influência e poder. Foram entrevistados 25 homens e 23 mulheres.
Primeiras impressões
Ter as elites como objeto e ou sujeito de pesquisa é um assunto absorvente.
Como não se deixar levar pela proximidade entre o entrevistador e o entrevistado,
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como objetivar o objeto impondo um estranhamento necessário e cientificamente se-
guro? Incorporar uma vigilância epistemológica é estar em constante autoavaliação
na procura de uma permanente autocrítica ao se deparar com sujeitos de pesquisa
que convivem, são coniventes e eventualmente se importam com as desigualdades
sociais brutais do Brasil. Fenômeno multidimensional, a desigualdade não se es-
gota nas diferenças de renda, mas nas diferenças de oportunidade, escolaridade,
moradia e saúde, que por certo encerram uma subjetividade eivada de dificuldades
e marcada por um futuro desqualificado de difícil retorno (THERBORN, 2001).
Como diria Bourdieu, em seu conhecido jogo de palavras, entende-se objeti-
vação participante como uma objetivação do sujeito da objetivação, objetivação do
próprio pesquisador analisando ele mesmo, aquele que deve observar observando a
observar o observador no seu trabalho de observação ou de transcrição das obser-
vações no e por um retorno sobre sua experiência de campo.8
O fato de ser apresentada como professora titular da Universidade de São Pau-
lo abriu muitas portas e uma certa proximidade entre pesquisadora e pesquisado já
se estabelecia facilitando o desenrolar da conversa. Em tom despretensioso e infor-
mal as entrevistas foram conduzidas com tranquilidade. No final de cada uma delas
observou-se certa descontração entre os sujeitos já que as questões não versavam
sobre dados financeiros e sim sociais e culturais. Cada encontro e cada entrevista
foram comemorados com entusiasmo. Tendo feito uma breve pesquisa sobre cada
investigado, acabou-se por construir certa convivência com eles mesmo antes dos
encontros. Na tentativa de criar um ambiente de empatia, logo no início, estabele-
cia-se certa informalidade chamando-os pelos nomes, sem nenhum título de senhor,
senhora, doutor ou doutora. Poucas foram as ocasiões em que isso não ocorreu.
Por fim, ao apresentar a pesquisa, nunca foi usada a palavra elite. Sempre
se apresentaram as razões do contato como um estudo de natureza acadêmica, no
campo da sociologia da educação, sobre a trajetória social e profissional de indiví-
duos que possuíam uma posição de destaque em sua área de formação. A preocupa-
ção era de que a palavra elite poderia despertar certa conotação negativa podendo,
em certos casos, embaraçar os sujeitos entrevistados.
Como apresentar os participantes
A amostra não representativa de 48 participantes foi constituída de persona-
lidades de nove setores econômicos. É possível afirmar que entre eles revelou-se
um corpo expressivo de individualidades notáveis que compõem o leque variado e
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diversificado das frações da elite paulistana. No campo dos 1) profissionais liberais
contamos com a presença de três homens e uma mulher, sócios-proprietários de
escritórios de advocacia de expressão nacional e internacional. No âmbito dos 2)
alto-executivos tivemos a participação de dois homens, um deles homossexual e
duas mulheres vinculados a multinacionais de duas indústrias farmacêuticas, uma
instituição financeira norte-americana, uma empresa multinacional de consultoria
de gestão e pesquisa de executivos e uma instituição patronal do setor industrial.
Na esfera do 3) comércio e serviços, fizemos contato com três mulheres e dois
homens, proprietários de empresas de grande porte, entre elas distribuidoras de
doces, remédios/ cosméticos, material de papelaria e editora de livros. Por outro
lado, tivemos a participação de uma proprietária/produtora de bens de luxo, uma
das herdeiras de um complexo fabril gigantesco. No domínio da 4) indústria, con-
tou-se com três proprietários e um ex-proprietário de empresas de médio e gran-
de porte do setor têxtil, siderúrgico, automobilístico e de bebidas. Três homens
e quatro mulheres. No setor das 5) finanças, a participação de duas mulheres e
dois homens representaram a seção de empresas brasileiras de gestão de recursos
familiares patrimoniais. Entre os homens destacam-se um ex-banqueiro e um dos
maiores colecionadores de arte no Brasil.
No campo das 6) comunicações, tivemos a presença de oito representantes.
Duas proprietárias de empreendimentos publicitários responsáveis por contas de
grandes empresas nacionais e internacionais. Ainda no campo da difusão cultural
quatro homens e uma mulher na função de cronistas, articulistas e editores dos
maiores veículos jornalísticos do Brasil. Dois deles responsáveis pela introdução de
inovações neste setor nos anos 1980 e 2000 sendo ambos proprietários de editoras e
ou revistas. Por último, salienta-se a presença de uma das herdeiras do maior com-
plexo editorial do país. No âmbito da 7) política, observa-se uma maior diversifica-
ção. Dois deputados federais, dois ex-ministros de Estado, um ex-senador da Repú-
blica, que passou experiências como deputado e vereador, e a única mulher, uma
das herdeiras de uma das maiores fortunas do Brasil. No setor das 8) celebridades,
buscamos uma variedade de personalidades na área da cultura e comportamento.
Aqui se apresentam três mulheres de atividades bem distintas. Uma voltada para
a área de bem-estar comportamental e a outra atuando no mundo das belas artes
como colecionadora e patrona de museus e a última a maior ícone de tendências e
moda no país. Entre os homens, destaca-se um colunista, intelectual, que escreve
crônicas sobre o Brasil contemporâneo.
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Por último, no 9) agronegócio, destacam-se homens e mulheres proprietários
de grandes extensões de terra e gado, ganhadores de prêmios no mundo da pecuá-
ria e herdeiros que garantiram um enorme sucesso econômico em investimentos no
cultivo da cana. Aqui se destacam dois homens, duas mulheres e uma homossexual.
O pertencimento às elites
No que se refere às formas de pertencimento às elites foi possível classificar
as frações estudadas em quatro grupos. O primeiro deles se refere ao grupo mais
antigo, onde os pesquisados estão há três gerações nesta posição. Ou seja, seus pais
e avós já pertenciam às frações das elites. São herdeiros/as do mercado financeiro,
da indústria, do comércio ou vieram das frações de políticos como governadores e
secretários de Estado.
Os indivíduos que se destacam por estarem há duas gerações na elite her-
daram um ambiente familiar escolarizado e estão no segundo grupo. Hoje dedi-
cando-se à indústria, ao comércio, ao agronegócio são na maioria imigrantes em
uma segunda ou terceira geração que herdaram de seus pais e avós uma expertise
técnica, não universitária, que se fez relevante em uma época de crescimento eco-
nômico no Brasil dos anos 1930 a 1940. Na grande parte das vezes trazendo em
suas bagagens apenas a boa vontade, seus familiares contaram com o auxílio da
família para consolidar os empreendimentos.
O terceiro agrupamento se sobressai por ter uma representação expressiva,
caracterizado por uma herança de capital cultural distintivo no período dos anos
1950 e 1960 e, anterior a ele, bem como uma alta escolarização no Brasil e no exte-
rior. São indivíduos provenientes de famílias intelectualizadas. Isto é, tinham avós
ou pais possuidores de nível superior quando este nível de escolarização ainda era
privilégio de muito poucos no Brasil. Imigrantes, conhecedores de idiomas (alemão,
italiano, espanhol, árabe e francês) e de formação em áreas variadas do conheci-
mento passaram a fazer parte da convivência de frações economicamente mais
abastadas o que os colocou em uma situação relacional privilegiada. Este grupo
que se notabiliza no campo cultural, hoje são intelectuais, jornalistas, colecionado-
res de arte, consultores das finanças, ainda que assegurem para si um confortável
estilo de vida.
Por fim, o quarto grupo chama atenção também pela expressão numérica. Os
sujeitos pesquisados aqui se destacam em função do tipo de conhecimento e ou
capital cultural que acumularam por eles mesmos. Poderíamos denominá-los de
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altamente escolarizados provenientes de frações do comércio, profissionais liberais
numa segunda geração de imigrantes, cujos pais e avós ainda não possuíam nível
universitário, ou se o tinham, não foi suficiente para alcançar os grupos de elite.
Conhecedores de idiomas como o francês e o alemão usufruíram de um capital
internacionalizado já logo cedo se identificando com as novidades empresariais
mundializadas. Ainda no campo da distinção relativa a uma escolarização nota-se
a presença de sujeitos que se fizeram individualmente por estarem up-to-date com
as tecnologias e souberam se relacionar com grupos dominantes a fim de se aloca-
rem em cargos de poder ou mesmo na condução de empresas em que uma expertise
se fazia necessária no campo empresarial nos anos de 1990.
Para os interesses desta discussão, vale destacar que a classificação de tipo de
pertencimento às elites retoma em vários aspectos as teorias da socialização. Indi-
víduos há mais tempo nos ambientes privilegiados tecem subjetividades, relações
e disposições de habitus diferenciadas de outras frações das elites (BOURDIEU,
[1979]2007). Em artigo anterior, foi possível observar quatro elementos que são
recorrentes em processos socializadores destes grupos; espaço, tempo, laços e inter-
nacionalização (SETTON, 2020). Nos grupos mais antigos, verifica-se a presença
marcante dos dois primeiros aspectos – espaço e tempo – o que lhes garantiu certa
segurança de status, uma subjetividade marcada pela superioridade, um senti-
mento de comparação aos outros que lhes confere uma diferenciação real. Ou seja,
são aqueles indivíduos que estão longe das necessidades da sobrevivência, que têm
as vidas marcadas por planos de escolarização longeva e oportunidades de emprego
garantidas por herança ou um capital de relações. Todas situações balizadas por
condições de socialização estabelecidas a priori.
Por outro lado, as frações intelectualizadas e escolarizadas revelam processos
de socialização condicionadas por laços, interações sociais, afinidades no matri-
mônio e oportunidades de trabalho permeadas por uma história social internacio-
nalizada. São imigrantes, conhecedores de expertises e tecnologias ainda novas
no Brasil na ocasião da chegada de suas famílias em solo nacional. Experiências
socializadoras precedidas de muito esforço, uma ambiência cultural propícia em
que se valoriza um capital cultural profissional, técnico e informatizado. Por certo,
todos os elementos acima mencionados fazem parte de uma configuração social
complexa em que a interdependência de todos eles tecem trajetórias diferenciadas
ainda que cada um dos elementos possa ter um destaque (ELIAS, 1999).
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As desigualdades sociais no Brasil
Seguindo certa inspiração sobre o tema em tela, as leituras de artigos, como
os escritos em 1997 por Elisa Reis, em 2000 por Celi Scalon e em 2015 por Graziela
Moraes Silva e Matias López, motivaram a incorporação de questões relativas ao
entendimento das elites sobre os problemas de natureza social no Brasil. Segundo
estes estudiosos, ainda que um grupo de pesquisadores tenha se debruçado sobre
aspectos da desigualdade na sua dimensão econômica, poucos ainda se dedicaram
a se aprofundar nas representações das elites sobre a dinâmica das diferenças
e ou distinções entre as camadas sociais e seus efeitos culturais. É interessante
notar o espaçamento de tempo entre as publicações acima. Com amostras bastante
diferenciadas entre si é notável, contudo, a convergência dos procedimentos e res-
postas.
O artigo de Reis (2000) que trabalha com base em uma pesquisa nacional e
internacional, consulta um conjunto de sujeitos pertencentes às elites.9 Políticos,
burocratas, líderes sindicais e líderes empresariais foram submetidos a um survey
e depois a entrevistas em profundidade. Para os interesses desta discussão, con-
cluiu-se que para estas frações os principais problemas brasileiros são de natureza
social, entre eles o baixo nível educacional da população, a pobreza e a desigualda-
de. Para dar oportunidade de maior conhecimento sobre este público, perguntou-se
quais as estratégias para sanar estas mazelas. Segundo os pesquisados deveriam
ser prioritárias melhores políticas públicas no campo da educação. Para eles esta
responsabilidade estaria nas mãos dos governantes pois seria um caminho para
garantir oportunidades de mobilidade social.
O artigo de Scalon, de 2007, portanto sete anos depois do de Reis, também se
baseando em um survey internacional,10 ocupa-se de observar as semelhanças e di-
ferenças de opiniões sobre a desigualdade entre as elites e o povo. Aqui a pesquisa
considerou elites como os 10% mais ricos do país. A intenção dos pesquisadores era
preencher a lacuna de informações sobre aspectos subjetivos das desigualdades,
valores e percepções vinculados à ideia de igualdade e justiça no Brasil e no mundo.
De forma sintética, entre as várias conclusões apontadas na investigação, a que
mais interessa é que tanto as elites como o povo julgam que os encargos sociais
devem estar nas mãos dos governos. Poucos foram aqueles pesquisados que cha-
maram para si a responsabilidade de superar as desigualdades. Perguntados sobre
os maiores problemas nacionais, as elites chamaram atenção para a corrupção e o
povo mostrou preocupação com o desemprego e a pobreza.
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Em 2015, oito anos após a publicação de Scalon, Silva e López, publicam um
artigo na mesma direção interessados em identificar as diferentes categorias - eco-
nômicas, culturais, políticas e morais - utilizadas pelas elites para se distinguirem
ou se aproximarem do povo brasileiro, em especial dos pobres. Baseou-se em um
survey com 238 sujeitos, entre parlamentares, burocratas e empresários. A noção
de elite utilizada na pesquisa apoia-se na seleção dos principais postos e cargos de
lideranças em instituições poderosas. Vale destacar que os dados da investigação
concluíram que a pobreza é um mal gerado pelas estruturas sociais e não conse-
quência de uma ação individual. Para os interesses desta discussão destaca-se que
a má conduta do Estado ou uma ausência de vontade política são os comentários
mais genéricos como explicações para as desigualdades.
Seria preciso afirmar, em um ensaio aproximativo, que os resultados de nossa
consulta se assemelham aos já coletados nas investigações acima mencionadas.
Uma das seções de nosso questionário perguntava: quais as principais razões para
as desigualdades sociais no país?; quais os principais objetivos a serem alcança-
dos?; quais políticas prioritárias ao combate à desigualdade?; cite explicações sobre
o fracasso das políticas sociais. Mais a frente perguntou-se quais os desafios das
camadas populares, camadas médias e camadas de elite no Brasil. Embora encon-
tremos respostas distintas na população pesquisada por nós, tal como um caleidos-
cópio em função do setor da economia a que pertencem ou o tipo de pertencimento
às elites, é um consenso a demanda por mais Educação. Seja como o principal
problema nacional seja como desafio de todas as camadas sociais, a Educação surge
como a grande conquista a ser alcançada.
Embora sem pretensão representativa reitera-se que existe uma tomada de
posição nas elites de hoje, tal como verificado nas pesquisas anteriores, de que o
maior problema da iniquidade social brasileira se assenta nas diferenças de Educa-
ção, na má gestão do Estado e na corrupção. Contudo, tudo leva a crer que existiria
um equívoco nas respostas de todas as pesquisas acima, inclusive nesta inves-
tigação. Ou seja, há um consenso de que os problemas de nossas desigualdades
se encontram em uma herança histórica de ausência de políticas prioritárias no
combate às injustiças entre elas as políticas educacionais de caráter mais popular
(REIS, 2000; SCALON, 2007). Tanto as elites como as camadas populares atribuem
a um outro a competência para ações de justiça econômica, tributária, enfim, social
(SILVA; LÓPEZ, 2015). Além disso, em nossa pesquisa, é geral a opinião de que
se deve diminuir o tamanho do Estado, mas aumentar os gastos sociais. Garantir
o crescimento econômico é também uma orientação. Mas como? O clientelismo, a
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baixa governabilidade e as desigualdades educacionais, em sendo estruturais se
apresentariam, portanto, como obstáculos. Mas como reagir a eles?
Os sentidos da educação enquanto socialização
Todavia, nesta seção, valeria ressaltar que os sentidos apresentados sobre a
educação são de variado espectro nos sujeitos de nossa investigação. Para alguns, a
Educação se refere a um conjunto de elementos de ordem estrutural e instrucional,
como escolas bem equipadas, sistemas de ensino definidos em planos nacionais, mo-
tivação de professores, alunos em condições de aproveitar os conteúdos através de
ações de ordem comunitária e de políticas públicas. Para outros, Educação significa
um ethos moral, emocional e ético, um pensamento prospectivo, uma ambiência
familiar que promoveria ações e orientações para a disciplina no trabalho. Embora
estes aspectos possam ser convergentes e complementares, eles não são iguais.
O primeiro entendimento envolve a Educação como uma política pública, como
um processo de longo prazo promovido por ações planejadas tendo em seu bojo a
intenção de fundar bases individuais e sociais sólidas de cultura. Um espaço de
construção de habitus escolares, que segundo a visão bourdieusiana, teria intersec-
ções com oportunidades econômicas republicanas e democráticas, enfim históricas
e culturais. Mais do que isso. Criar-se-ia subjetividades que auxiliaria a vencer
um mal-estar relativo a uma inferioridade tantas vezes recorrente nos cotidianos
escolares, uma autoestima fundada na crença de que superariam as dificuldades.
A segunda percepção sobre a ação educativa não tem um escopo tão aprofun-
dado. Desvelando certo pensamento classista, a educação segundo frações das eli-
tes teria a dificuldade de se fazer valer em função de idiossincrasias das camadas
populares. Ou seja, a necessidade relativa à sobrevivência impediria um envolvi-
mento familiar com um planejamento pedagógico. A inexistência do ajuste de um
habitus para o trabalho, a disciplina, a ausência de um pensamento prospectivo
seriam os entraves para uma população que sempre lutou pela sobrevivência, pelo
aqui e o agora. Percebe-se certo conformismo nas interpretações o que impediria
soluções fáceis na área. Políticas afirmativas ou políticas distributivas apenas re-
forçariam um tipo de conduta paternalista, uma cidadania concedida nas palavras
de Sales (1994). Para muitos a situação de pobreza se perpetuará caso não se ofe-
reça oportunidades de emprego e aumento da riqueza através da produção em-
presarial. Mas o equívoco aqui retorna. Como garantir o crescimento de riqueza e
empregabilidade se não garantirmos as oportunidades educacionais, com políticas
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públicas planejadas, a nível municipal, estadual e federal para os grupos popula-
res? Sabe-se que as leis para investimentos em educação pública tramitaram anos
no Congresso Nacional, entre os anos 1960 a 2020. Sem nos alongar, hoje vê-se um
debate acerca do FUNDEB11, que correu o risco de ser eliminado no governo do
Presidente Jair Bolsonaro.
Contudo, é preciso ressaltar que os tipos de educação lembrados pelas elites
não consideram o caráter temporal e relacional dos processos educativos (BOUR-
DIEU, [1979]2007; LAHIRE, 2015). Educar e ou socializar implica em um conjunto
de condições favoráveis que de maneira homeopática e inconsciente permitem que
indivíduos incorporem disposições culturais estruturadas nas mentes. Mas para
serem estruturantes nas formas de ser agir e pensar é necessário que haja uma
correspondência entre as estruturas mentais e as estruturas sociais e objetivas.
Isto é, é necessário criar condições de socialização para que resultados satisfatórios
sejam garantidos. Aspectos institucionais (instrucionais e estruturais) como aque-
les aqui lembrados e aspectos individuais (emocionais e individuais) devem estar
dispostos em sintonia a fim de que os esforços de ambos os lados se retroalimentem
e garantam disposições para o agir. Essa não parece ser uma realidade brasileira.
Ademais, a noção de socialização é um operador analítico que dá conta da
produção, difusão e reprodução dos grupos e sujeitos, permitindo observar a gênese
das formas de compreender o mundo, os habitus individuais e grupais. A noção de
socialização também aborda as relações indissociáveis entre indivíduo e estrutura
social, aproximando-se dos processos de individualização e construção identitária.
Informando sobre a constituição da estrutura social, a noção permite, ainda, desve-
lar os mecanismos de resistência e disputa entre interesses sociais, suas dinâmicas
internas e/ou possíveis transformações. Desta feita, trata-se do entendimento da
noção de socialização em uma perspectiva dialógica e multidimensional (SETTON;
BOZZETO, 2020).
Uma intuição
No decorrer das análises intuições ou hipóteses de pesquisa foram se cons-
truindo ao longo das entrevistas. Ou seja, haveria uma diferença relevante nas
respostas dos sujeitos a partir do tipo de pertencimento às elites? Teríamos dife-
rentes opiniões segundo o setor econômico a que pertencem? Começaremos pelas
diferenças de respostas entre os sujeitos a partir do tipo de pertencimento às elites.
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Sobre as elites
Observou-se que os pesquisados que pertencem às frações de elite há três gera-
ções possuem uma forma específica de ver seu próprio grupo. Para eles, elite significa
um agrupamento seleto pois se destaca pela ética, pelo exemplo, pela possibilidade
de doar-se devido a um conhecimento notável. Desenvolvem argumentos que lem-
bram a teoria das elites ou do elitismo, entre seus maiores teóricos Vilfredo Pareto
(1848-1923)12. Uma forma singular de legitimar uma posição social a partir de uma
subjetividade derivada da superioridade de seu destino e ação emanada de condições
de socialização favoráveis. Eles, sim, esta elite, deveria trabalhar para uma nação,
dedicando-se e participando da condução política e econômica de todo o país.
Por outro lado, as frações das elites que pertencem a ela há duas gerações, de-
claram certa positividade da posição do grupo, contudo não tão intensa como a que
se acaba de comentar. São mais críticos pois creem que ela deveria ter o dever de
conduzir a política, construir um projeto de nação, administrar a res-pública com
sabedoria. Para ambas frações, as elites governamentais atuais e a dos últimos
anos de nossa história, aqui incluindo os governos do PT, são corruptas. Elas não
são elites. São despreparadas e incapazes de levar o país para uma modernidade
sociocultural que se anuncia nos negócios do século XXI. Elas deveriam sair da
bolha na qual se encontram e precisariam se preocupar com a organização dos
interesses de todas as classes. Para estas frações o Brasil não está sendo induzido
a participar dos desafios de uma sociedade global. Verifica-se aqui uma cobrança
a nível de uma melhor organização e planejamento da parte dos governantes. Por
ora, segundo eles, temos apenas um desgoverno, a falta de espaço e ambiência para
uma governabilidade benéfica para o futuro de todos os brasileiros. Cumpre ressal-
tar que alguns deles, na maioria mulheres, se ocupam de atividades filantrópicas,
de grande vulto, todas voltadas para a área social da educação e arte. Vale lembrar
ainda que a positividade das elites desta fração é marcada por trajetórias de vida
em que imperativos da gestão são mais salientes. Ou seja, sentem-se responsá-
veis pela vinda de tecnologias para o país. Possuem experiências socializadoras
adquiridas em viagens, estudos, em seus espaços de trabalho o que lhes garante,
por certo, um sentimento de distinção em relação aos outros menos privilegiados
(BOURDIEU, [1979]2007).
As frações intelectuais são as mais críticas entre os grupos. São aquelas que
repercutem, quase na totalidade, que as elites são inconsequentes e inconscientes
ao optar pela prática da corrupção e do clientelismo. Seriam eles, os governan-
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tes, responsáveis pela situação de desigualdade social no Brasil. Não se mobili-
zando, não se sentindo afetados pela pobreza e separação abissal entre as classes
fecham-se em seus interesses, sentindo-se alheios à situação econômica e cultural
dos mais vulneráveis. Não possuiriam consciência de um coletivo ou motivações
solidárias com os mais fracos. Uma minoria neste grupo, e novamente aqui as
mulheres se destacam, ocupa-se de atividades filantrópicas de expressão variada
e, novamente, no campo da educação e das artes. Tudo leva a crer, que as experiên-
cias de socialização deste grupo lhes garantiram um ambiente reflexivo. Leituras
diversas, escolas de ponta, relações de amizade e de matrimônio permitiram o de-
senvolvimento de disposições de cultura capazes de ampliar horizontes e de um
pensamento crítico menos endógeno.
Os sujeitos que participam do quarto grupo, ou seja, aqueles que alçaram pos-
tos de comando e poder em função de sua escolarização cobram dos governos, a
elite, uma vontade política mais expressiva, uma atuação igualmente eficiente dos
serviços públicos e ao mesmo tempo com gastos sociais de maior monta. Para eles
as elites são compostas pelos governantes corruptos, clientelistas e são expoentes
exemplares do jeitinho brasileiro. Executam e planejam mal as políticas públicas
prioritárias básicas como educação e saúde. É interessante notar que este grupo é
marcado por difíceis condições de socialização tanto nos espaços familiares como
escolares. Nem sempre estudando nas melhores escolas, tiveram que se esforçar e
tecer relações interessadas para conquistarem posições de destaque, sendo aqueles
que mais se privaram de privilégios de nascença.
Sobre as camadas populares
Sobre a percepção das elites acerca das camadas populares observa-se ainda
variações. Entre os sujeitos há mais tempo nas elites, há três e há duas gerações,
verifica-se um olhar positivo, contudo marcado por um entendimento condescen-
dente. Ou seja, os setores populares são, segundo eles, trabalhadores, bem-inten-
cionados, mas mal preparados. Parece que enxergam os menos privilegiados mar-
cados por uma ordem fatalista, um círculo vicioso de mal preparo na educação, nos
dois sentidos acima elencados. Ou seja, o aspecto instrucional e emocional. Vulne-
ráveis por não terem acesso ao que a sociedade capitalista pode oferecer em termos
de políticas públicas, precisariam se organizar, ter oportunidades de expressão de
suas demandas para poderem disputar o poder com as elites. Aqui a solução se
encontra na mão das próprias camadas populares. Elas deveriam saber aproveitar
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as oportunidades. Se a solução não vem dos setores governistas ou da própria elite,
as camadas populares contariam apenas com elas mesmas.
As frações intelectualizadas e mais escolarizadas, o terceiro e quarto agru-
pamento, respectivamente, partilham de opiniões semelhantes acerca das cama-
das populares. Isto é, destaca-se o medo de políticas públicas populistas pois o
comodismo poderia ser maléfico. Políticas afirmativas como Bolsa Família e cotas,
por exemplo, seriam ações fronteiriças para a acomodação do povo pois a elas se
somariam um despreparo moral para o trabalho. O esforço pessoal, a dedicação aos
estudos, a abdicação de prazeres, a abdicação de outras tarefas como a maternida-
de, a renúncia aos cuidados consigo mesmo deveriam vir em primeiro plano. Não
adiantaria ter estudos, conhecimento e ou diploma. Para fazer a diferença seria ne-
cessário dar o melhor de si. Observa-se aqui uma leitura individualista, meritocrá-
tica e moralista do sucesso de cada um abstraindo-se completamente de um quadro
estrutural marcado por desigualdades históricas. Um contrassenso de pensamento
que leva novamente a um certo fatalismo (SETTON; MARTUCCELLI, 2015).
Contudo, eles mesmos creem que seria preciso maior eficiência dos serviços
públicos e maiores gastos no social. São adeptos também de uma maior distribuição
de renda como se olhassem as desigualdades econômicas como os maiores gargalos
de oportunidades democráticas de saúde e educação. São os que mais recriminam
a corrupção e o clientelismo em crítica aos governantes como dito.
Sobre as camadas médias
No que se refere às camadas médias, os dois primeiros agrupamentos (há três
e duas gerações nas elites) desenvolvem uma leitura de boa vizinhança. Em outras
palavras, foi comum a interpretação de que as camadas médias estão espremidas
entre os dois agrupamentos sociais acima e abaixo delas. Teriam sofrido com as
últimas políticas econômicas, perdendo estabilidade e confiança em um futuro me-
lhor e, portanto, são as camadas mais sofridas. Perderam espaço de mobilidade,
necessitam de uma educação mais especializada, gastam com educação e saúde
e possuem pouco espaço de manobra para melhorarem. Estes dois agrupamentos
nada dizem respeito sobre uma maior organização política por parte das camadas
médias. Contudo, elas deveriam também desenvolver maior civilidade, modos em
espaços públicos bem como deveriam estar mais ambientadas com a produção eco-
nômica moderna, novas tecnologias, conhecimento de línguas e cursos no exterior.
Pesquisas na área sociologia da educação vem demonstrando exatamente estas
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estratégias de conquistas e segurança por parte das camadas médias com mais
investimentos em MBA fora e dentro do Brasil ou mesmo mais investimentos em
escolas prestigiadas e bilíngues (BRANDÃO; PAES DE CARVALHO, 2011; AL-
MEIDA; NOGUEIRA, 2003; NOGUEIRA, 2014).
Para os setores intelectualizados e aqueles que precisaram de uma longa es-
colarização, para poderem dividir posições com frações da elite poder-se-ia fazer
algumas aproximações. Segundo os pesquisados as camadas médias são algozes
de si mesmas. Construindo castelos de consumo exagerado, gastos acima de suas
possibilidades, vivem reféns de um estilo de vida que não pertence realmente a
elas. Sonhando se assemelhar às camadas mais abastadas, creem poder desfrutar
das benesses do capitalismo de consumo. Não possuem a cultura da poupança.
Defrontando-se com saúde e educação de má qualidade seus maiores desafios se-
riam sobreviver, obter empregabilidade e maior acesso a cultura. Neste sentido, as
elites não depositam o fiel da balança de um projeto social nos ombros das camadas
médias. Elas deveriam estar mais atentas a si mesmas e às dificuldades de um país
que aceleradamente desponta entre os mais desiguais no mundo.
Em síntese, existiria uma pequena convergência de opiniões sobre os desafios
das camadas de elite, camadas médias e populares nas frações das elites. O tipo
de pertencimento aos grupos privilegiados parece ter sido responsável por esta va-
riação. Mais tempo subjetivados com o modus vivendi das camadas mais elevadas
poucos são aqueles que são críticos a si mesmos (SETTON; MARTUCCELI, 2015).
Todavia, os setores mais intelectualizados e altamente escolarizados parecem se
desgarrar desta subjetividade, sendo capazes de cobrar das elites maior envolvi-
mento nas políticas de mudanças das prioridades sociais.
Veremos agora se estes sujeitos pesquisados também diferem segundo o setor
econômico a que pertencem.
Uma segunda intuição
A classificação dos sujeitos pelo setor de atividade a que pertencem derivou
de uma intuição não original. Segundo a bibliografia das teorias da socialização
(BOURDIEU, [1979]2007; ELIAS, 1999), a posição social e a formação necessária
para o desempenho de atividades em domínios econômicos distintos levam a toma-
das de posição diferenciadas. Nesse sentido, buscou-se observar essas diferenças
acerca das questões sobre desigualdade e desafios das camadas sociais.
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Vale iniciar a explanação considerando que os sujeitos que compõe os vários
setores não são coincidentes com o tipo de pertencimento às elites. Isto é, a compo-
sição destes grupos é bastante heterogênea13.
Lembramos que é unânime entre os investigados, de todos os setores, uma
crítica ao governo. As entrevistas começaram a ser realizadas em 2018, ano em que
o debate sobre corrupção e as eleições presidencial, governamentais e do legislativo
ativaram um debate acirrado e violento entre as partes envolvidas. Nas questões
relativas às razões da desigualdade social no Brasil e as dificuldades de superá-las,
todos, sem exceção, culpam a corrupção, a má governabilidade, a baixa eficiên-
cia dos serviços públicos, a transformação das prioridades sociais em carreirismos
e clientelismo. Desigualdade para todos os setores tem o sentido de baixo nível
educacional e deficientes serviços de saúde. É uma constante, mas não de forma
generalizada, a cobrança por uma postura mais ativa das elites. Elas poderiam
conduzir melhor o processo político com cobranças no ordenamento administrativo.
Muitos advogam a diminuição do Estado, mas ao mesmo tempo querem aumentar
os gastos sociais. Como visto acima, observa-se uma inconsistência nas respostas.
Cobram de si mesmos, as elites, uma atuação mais direta, mas parecem não obede-
cer suas premissas. Lembram que o mal planejamento e execução, o clientelismo e
a corrupção são as causas do fracasso das políticas sociais, mas pouco fazem para
mudar. Relatam pouco envolvimento ainda que digam que as elites precisariam
estar mais implicadas. Apenas um sujeito demonstrou ativa atuação na promoção
de um novo partido político. Como foi dito, uma gama variada de ONGs de gran-
de vulto na área da educação e das artes e outros poucos trabalhos filantrópicos
de pequena monta fazem parte das atividades de alguns. Tudo leva a crer que
estamos diante de um círculo vicioso que engessa uma mudança vinda por parte
deles, pela classe política ou pelas camadas populares, já que a filantropia, ainda
que humanitária, não resolve as questões estruturais da desigualdade. Cada grupo
preso a interesses relativos à sua reprodução mergulhados em um sentimento de
distanciamento cultural.
Antes de dar encaminhamento às questões expostas acima, valeria comentar
que existiria uma recorrência nos dados relativos à filantropia. Observou-se que o
setor do agronegócio apresentou o maior número de sujeitos envolvidos com esta
atividade. De 5 representantes, 3 dedicam-se quase exclusivamente a esta prática,
todas elas de grande monta e um dedica-se esporadicamente a ações do tipo. Por
outro lado, os setores que menos se envolvem com a atividade da filantropia são
os dos altos executivos, profissionais liberais e celebridades intelectuais. No setor
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da indústria tem-se a presença de 2 sujeitos envolvidos em ações beneficentes de
grande vulto e entre os políticos tem-se um representante de organizações do ter-
ceiro setor, internacionalmente reconhecida, pelo envolvimento de sua diretoria;
no setor das finanças, 2 deles se envolvem em formação de políticos e artistas, com
dedicação de dinheiro e tempo. Em síntese, de todos os sujeitos entrevistados 9 de-
les se dedicam quase exclusivamente a atividades de filantropia e 9 consagram seu
tempo esporadicamente, assim que solicitados, para este fim. Por último, se classi-
ficarmos os indivíduos por tipo de pertencimento às elites, com fins caritativos na
esfera da educação e arte, verifica-se certa pulverização. Quatro deles estão entre
os que alçaram postos de destaque pela escolarização, 3 estão há três gerações e 2
vieram de famílias intelectualizadas.
Sem dúvida, a segunda intuição de pesquisa não se realizou de forma sufi-
ciente. Tudo levava a crer que haveria distinções acentuadas nas respostas dos
diferentes setores. Todavia, isto não se confirmou inteiramente. O que se observou
foi uma certa generalidade nas respostas que podem indicar dificuldades no tipo
de questões postas. Como não corroborar os problemas da desigualdade? Como jus-
tificar as desigualdades educacionais e de saúde? Por ser um assunto consensual
presente nas mídias, cotidianamente, seria esperado um posicionamento crítico
acerca deles. Entretanto, o que desperta atenção é a cobrança às políticas governa-
mentais, seu modus operandi, e a exigência por uma maior atitude do grupo a que
pertencem. É possível afirmar que a amostra utilizada não refletiria parte do em-
presariado que apoiou o governo conservador e neoliberal que ganhou as eleições
em 2018? Uma outra hipótese, os entrevistados teriam feito cobranças retóricas e
críticas às elites pois estariam diante de uma entrevistadora socióloga e professora
da USP?
Em busca de uma conclusão
O objetivo deste artigo foi apresentar informações preliminares acerca da pes-
quisa intitulada Pensamento e práticas culturais da elite paulistana. A intenção
foi problematizar e circunstanciar questões de ordem metodológica e teórica obser-
vadas no decorrer do trabalho de investigação. Para desenvolver o argumento foi
necessário dialogar com iniciativas de estudos acerca das elites. Se de um lado, o
campo da educação já se dedicou aos processos de suas escolarizações, por outro,
pouco se sabe sobre suas representações acerca da realidade social brasileira.
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O presente estudo colabora para uma agenda de pesquisa em que se tem como
foco a oportunidade de conhecimento sobre este grupo de difícil acesso. Julga-se
que a maior contribuição científica e social da discussão seja a produção de infor-
mações acerca das frações das elites, suas formas de socializar homens e mulheres,
em quatro gerações, suas práticas de cultura e representações sociais, bem como
apreender as formas como interpretam a atual realidade nacional. Este artigo deu
ênfase a apenas às representações sobre desigualdade e a visão sobre os desafios
das camadas sociais14.
Esta discussão se insere ainda no escopo de preocupações sobre socialização
ao se propor desvelar as formas de ser, agir e pensar dos grupos dominantes que
possuem o poder de conduzir políticas de equidade social. Segundo o relatório da
OXFAM Brasil/DATAFOLHA (2019), desde 2014, tem crescido o número de pobres
no Brasil. 86% da população acredita que o progresso do país está condicionado
à redução de desigualdades entre ricos e pobres. 84% julgam que é obrigação dos
governos diminuir a diferença entre os muitos ricos e muitos pobres e, a melhor
forma para sanar este prejuízo seria a aumentar a tributação.
Do material apresentado neste artigo, concluiu-se, pois, que as experiências
socializadoras das elites marcaram posicionamentos diferenciados. Um achado de
relevo pois deriva de condicionamentos vividos em espaços e tempos de instâncias
da socialização distintos. Todavia, cumpre ressaltar que tudo leva a crer que exis-
tiria uma falta de entendimento acerca da Educação enquanto Socialização no
grupo investigado. Ou seja, uma Educação em um sentido mais largo. Trata-se da
incompreensão dos processos educativos e ou socializadores relativos a um povo
que demanda tempo, esforço, dedicação e sobretudo dinheiro, impedindo ações
mais incisivas e prospectivas. Ações benemerentes resultam em produtos locali-
zados. Talvez uma resposta inicial para as inconsistências das falas dos entrevis-
tados se encontre aqui. Ou seja, cobram viciosamente a conduta governamental
e a deles mesmos, mas pouco compreendem a temporalidade longeva de esforços
socializadores e educativos necessários. Por fim, tendo como base a obra de Pierre
Bourdieu, o artigo se insere em uma vertente das teorias do poder e da dominação
simbólica, largamente estudadas pelo autor. Aqui evidenciou-se um sentimento de
superioridade destas frações, uma percepção distintiva entre eles e os outros o que
as impedem de compreender os processos vividos como estruturais e históricos. Por
certo, a teoria sobre habitus e práticas de cultura permite a identificação da gênese
desses processos desiguais, ou seja, os processos socializadores que os forjaram.
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Por fim, verificou-se que o tecido social brasileiro vivencia climas de consen-
sos, insatisfações e distanciamento entre os grupos, mas não consegue ultrapassar
uma zona em que se saia da inércia e avance em práticas socializadoras de cultura
mais contundentes e duradouras. Ou seja, praticas institucionais, instrucionais,
morais e emocionais em um todo educativo mais complexo. Em outras palavras, as
representações das frações das elites acerca da desigualdade social descortinaram
um ambiente que se repete desde os primeiros estudos sobre o assunto. Talvez a
inércia dos procedimentos em busca de uma solução derive de uma incompreensão
da natureza cultural, temporal e histórica dos processos educativos e ou socializa-
dores. Mais estudos na área podem vir a colaborar. Ainda é tempo.
Notas
1 “Este ponto de vista deveria ser também objeto de uma reflexão coletiva ao interrogar a capacidade que
um profissional tem ao produzir um ponto de vista sobre o funcionamento das elites que não seja tributá-
rio nem de uma revanche de classe, nem de uma forma de admiração, nem mesmo enfim de um tropismo
escolástico” (LAURENS, 2007).
2 Trata-se de uma pesquisa realizada desde 2017, no GPS – Práticas de Socialização, grupo de Pesquisa da
Faculdade de Educação da USP, sob minha coordenação.
3 Este artigo é o terceiro de uma série de outros que estão sendo escritos e já foram publicados acerca da
pesquisa em tela. Já foram publicados Setton e Bozzeto (2020) e Setton (2020).
4 Algumas hipóteses desta investigação a) nossas elites, de forma genérica, são voltadas para o próprio
interesse. Ou seja, trabalham com a lógica gerencial/empresarial e a compreensão política que mobiliza
suas ações não chega a tocar as questões sobre desigualdade social e/ou direitos sociais equânimes. Con-
tudo, todas essas frações pensariam igual? Ambas as gerações, homens e mulheres, pensariam de forma
semelhante (SCALON, 2007)? b) nossas elites se pensam diferentes e superiores dos outros segmentos
sociais. Vivendo em espaços circunscritos ao grupo de pares, longe das exigências materiais, se subjetivam
e constroem uma percepção de si e de grupo como superiores. O entendimento é que seriam merecedores
do que conquistaram. Esforço, dedicação em termos individuais parecem aspectos que legitimam esta
superioridade (SETTON; MARTUCCELLI, 2015); c) as elites não julgam as trajetórias sociais em termos
estruturais. A dimensão societária, a dimensão da concentração de renda e oportunidades como responsá-
veis pela perpetuação das desigualdades sociais parecem não ter eco em seus entendimentos e atitudes; d)
as distintas frações da elite possuem trajetórias diferentes, não possuem as mesmas práticas de cultura,
embora possuam os mesmos valores e estratégias de manutenção da dominação. Em função do tipo de
disposição cultural acumulada em espaços de socialização profissional diversos seria esperado tal desse-
melhança; e) nossas elites estão voltadas para o exterior. O mundo europeu e sobretudo norte-americano
seriam os modelos a seguir. Uma certa limitação do pensamento em que não se vê a condição histórica
das mazelas do Brasil e a necessidade de um esforço conjunto para a sua superação. Tal perspectiva seria
generalizada? Todas as frações teriam esta mesma compreensão? Tal complexo de vira-lata impediria uma
crença maior nas nossas instituições sociais (SOUZA, 2015)?
5 Entende-se elite como aqueles que ocupam o topo de organizações e movimentos poderosos, podendo in-
fluenciar a vida política, econômica, social e cultural. Mais detalhes sobre a discussão ver Setton (2020).
6 Por exemplo, a qual grupo social se sentiam pertencer.
7 Um artigo está sendo escrito sobre as questões geracionais e de gênero.
8 Par objectivation participante j´entends objectivation du sujet de objectivation, objectivation du sujet ana-
lysant bref du chercheur lui-même celle qui consiste à observer observant à observer observateur dans son
travail observation ou de transcription de ses observations dans et par un retour sur expérience du terrain
(BOURDIEU, 2003).
104 ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Maria da Graça Jacintho Setton
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9 Pesquisa realizada no Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro, intitulada Elites estratégicas
e consolidação democrática, no período de 1993 a 1995.
10 Pesquisa que fez parte de investigações do Internacional Social Survey (ISSP), programa de colaboração
internacional acerca de estudos na área da Ciências Sociais, a partir de análises comparativas, em 2000.
11 Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério é um
conjunto de fundos contábeis formado por recursos dos três níveis da administração pública do Brasil para
promover o financiamento da educação básica pública. A maior inovação do FUNDEF consiste na mudan-
ça da estrutura de financiamento do Ensino Fundamental no País (1ª a 8ª séries do antigo 1º grau), ao
subvincular a esse nível de ensino uma parcela dos recursos constitucionalmente destinados à Educação.
A Constituição de 1988 vincula 25% das receitas dos Estados e Municípios à Educação. Com a Emenda
Constitucional nº 14/96, 60% desses recursos (o que representa 15% da arrecadação global de Estados e
Municípios) ficam reservados ao Ensino Fundamental. Além disso, introduz novos critérios de distribuição
e utilização de 15% dos principais impostos de Estados e Municípios, promovendo a sua partilha de recur-
sos entre o Governo Estadual e seus municípios, de acordo com o número de alunos atendidos em cada rede
de ensino. Disponível em: http://mecsrv04.mec.gov.br/sef/fundef/funf.shtm.
12 Trata-se de uma categoria mobilizada para a observação de todos os grupos dispostos na sociedade. A
premissa dessa ideia é que, em qualquer ramo da atividade humana, alguns homens são melhores do
que outros e alcançam maior destaque no desempenho de seus ofícios. O que define as elites, assim, é um
princípio de eficiência, e não um critério moral (PARETO, 1989).
13 Por exemplo, no setor do agronegócio, com 5 sujeitos, 2 deles alçaram postos no grupo das elites pela es-
colarização, quase todos herdeiros de propriedades em função de laços matrimoniais ou filiais. Entre os
altos executivos, todos dependeram de uma escolarização qualificada em expertises que se destacam no
mundo dos negócios internacionais. No grupo das celebridades intelectuais, tem-se 3 sujeitos que fizeram
carreira pela escolarização em instituições estrangeiras, 1 deles herdeiro de um lar já intelectualizado e
o último pertencente há três gerações nas elites. Entre os pesquisados no setor do comércio, todos vieram
de lares de imigrantes libaneses, espanhóis e alemães. Ressalta-se que 2 sujeitos estão há duas gerações
nas elites e um há três gerações. Dois dependeram da escolarização e 1 veio de meios intelectualizados. No
setor de comunicação, 4 são de famílias estrangeiras, sendo que todos vieram de lares já intelectualizados.
Ainda neste setor, um sujeito pertence às elites há três gerações e um único pela escolarização. No grupo
das finanças, 2 herdeiros de um capital cultural distintivo, 2 pela escolarização e um há três gerações nas
elites. Na indústria, 4 são imigrantes, espanhóis, italianos e da Europa Oriental. Dois estão nas elites há
três gerações, 3 pela escolarização e um pertencente ao grupo de famílias intelectualizadas. Entre os polí-
ticos, 4 estão nas elites há três gerações e 2 pela escolarização. Por último, entre os profissionais liberais,
3 alçaram posições de destaque pela escolarização e 1 pelo capital cultural intelectualizado de sua família.
14 Este artigo é o segundo de uma série de outros que estão sendo escritos acerca da pesquisa em tela. O
primeiro deles é Setton (2020).
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105
ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Socializando o pesquisador a observar a socialização dos sujeitos: notas sobre pesquisas com as elites
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Notas sobre interação e socialização em Simmel:
uma reexão sobre educação e intolerância
Notes on interaction and socialization in Simmel: a reection on education and intolerance
Notas sobre interacción y socialización en Simmel: una reexión sobre educación e intolerancia
Carlos Alberto Barbosa*
Resumo
Nos últimos anos de sua vida, Georg Simmel lecionou na Universidade de Estrasburgo, onde também foi res-
ponsável por ministrar palestras sobre pedagogia aos futuros licenciados, as Palestras sobre pedagogia escolar
(Lectures on Schulpädagogik). Apesar de o tema da pedagogia não gurar entre seus interesses teóricos, que
estavam mais orientados às interações e às formas de socialização, o que se depreende das discussões no entor-
no das palestras de Simmel é a relação que elas guardam com os processos de interação e socialização. Para ele,
a formação (Bildung) não pode prescindir desses dois processos, sob pena de não se realizar na sua plenitude.
Por sua vez, o processo de interação pressupõe a diferenciação entre os indivíduos de um mesmo círculo. As
diferenças são o combustível que torna possível as interações e, consequentemente, a socialização e a formação
(Bildung). Ao entender formação como um processo de socialização, e a diferenciação como elemento basilar de
toda essa dinâmica, este artigo discute a necessidade de manutenção da diversidade de ideias e das diferenças
nos ambientes de ensino, especialmente em um momento no qual a intolerância à diversidade e à pluralidade
de ideias invade os mais variados espaços, inclusive os espaços de ensino e reexão.
Palavras-chave: socialização; educação; interação; Georg Simmel.
Abstract
Throughout the last years of his life, Georg Simmel taught at the University of Strasbourg, where he was also
responsible for giving lectures on pedagogy to future graduates, the Lectures on Schulpädagogik. Although the
theme of pedagogy is not among their theoretical interests, which were more oriented towards interactions and
forms of socialization, what emerges from the discussions surrounding Simmel’s lectures is the relationship they
have with the processes of interaction and socialization. For him, education (Bildung) cannot do without these
two processes, under penalty of not being fully realized. In turn, the interaction process presupposes the dier-
entiation between individuals in the same circle. Dierences are the fuel that makes interactions possible, and
therefore socialization and the education (Bildung). When understanding training as a socialization process, and
dierentiation as a basic element of all this dynamic, this article discusses the need to maintain the diversity of
ideas and dierences in teaching environments, especially at a time when the practice of intolerance to diversity
and plurality of ideas invades a diversity of environments, including those dedicated to teaching and reection.
Keywords: socialization; education; interaction; Georg Simmel.
* Pós-doutorando da Faculdade de Educação da USP, com pesquisa sobre socialização em Georg Simmel. Doutor em De-
sign pela Universidade Anhembi Morumbi. Mestre em Filosoa pela PUC-SP. Pesquisador do Grupo de Pesquisa GPS -
Práticas de Socialização Contemporâneas. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-8477-4673. E-mail: carlosalberto.barbosa@
gmail.com
Recebido em: 30/07/2020 – Aprovado em: 15/04/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i1.11489
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Resumen
En los últimos años de su vida, Georg Simmel enseñó en la Universidad de Estrasburgo, donde también fue
responsable de dar conferencias sobre pedagogía a futuros graduados (Lectures on Schulpädagogik). Aunque
el tema de la pedagogía no se encuentra entre sus intereses teóricos, que estaban más orientados hacia las
interacciones y formas de socialización, lo que surge de las discusiones que rodean las conferencias de Simmel
es la relación que tienen con los procesos de interacción y socialización. Para él, la fromación (Bildung) no puede
prescindir de estos dos procesos, bajo pena de no realizarse plenamente. A su vez, el proceso de interacción
presupone la diferenciación entre individuos en el mismo círculo. Las diferencias son el combustible que hace
posibles las interacciones y, por lo tanto, la socialización y la formación (Bildung). Al entender la capacitación
como un proceso de socialización y la diferenciación como un elemento básico de toda esta dinámica, este
artículo analiza la necesidad de mantener la diversidad de ideas y las diferencias en los entornos de enseñanza,
especialmente en un momento en que la intolerancia a la diversidad y la pluralidad de ideas invade espacios más
variados, incluyendo espacios de enseñanza y reexión.
Palabras clave: socialización; educación; interacción; Georg Simmel.
Introdução
A realidade empírica, porém, continua ali, incontornável, e deixa estupefatos os
que não souberam mudar a tempo de ideias. Quanto aos outros, tão próximos
da farsa e da hipocrisia, empregam-se, com constância, a deturpar o sentido
do acontecimento para fazê-lo entrar, pela força, no prêt-à-porter de uma
verdade dogmática elaborada pela circunstância (MAFFESOLI, 2011, p. 15).
Em tempos de pandemia, para além do coronavírus, invisível e que não res-
peita fronteiras, um outro vírus nefasto está em circulação, e não é de hoje. Este
outro vírus, a exemplo do coronavírus, também é pandêmico, cruza fronteiras e se
estabelece em diferentes regiões do planeta. Trata-se do vírus da intolerância, que
não admite as diferenças e olha o não idêntico a si mesmo como suspeito e inimigo a
ser vencido. O mundo ideal do vírus da intolerância é uma sociedade sem oposição
de ideias, sem debates e sem diversidade de pensamentos e opiniões. No Brasil,
entre tantas vítimas do vírus da intolerância, a educação passou a ser dos seus
alvos preferidos nos últimos tempos.
A despeito dos preceitos constitucionais de “[...] igualdade de condições para
acesso e permanência na escola” e do “[...] pluralismo de ideias e de concepções
pedagógicas [...]” (BRASIL, 1988, não paginado), o que se tem testemunhado são
tentativas de barrar o pensamento diverso nos ambientes de ensino, sob os mais
variados pretextos. Ora se observa um discurso incentivando o ensino domiciliar,
o chamado homeschooling, que pode levar à exclusão de crianças de uma expe-
riência de convívio com as diferenças e com a diversidade de pensamentos, ora são
evidenciadas tentativas que visam dificultar o acesso à universidade e a cursos de
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pós-graduação de minorias e populações em condições econômicas menos favoreci-
das. Não cabe a este artigo uma discussão sobre as motivações que levaram a tais
tentativas de ataque ao ensino, tentativas que têm sido barradas pelos poderes
Legislativo e Judiciário. O risco de especular sobre tais motivações poderia fazer
com que a questão de fundo sobre uma educação para a autonomia venha a se
perder. Igualmente não é propósito desse artigo proceder uma discussão acerca
das minúcias jurídicas e dos aspectos constitucionais ou inconstitucionais que ro-
deiam esses ataques. Ao contrário, vale lembrar as palavras de Max Weber (1979,
p. 252) sobre a necessidade de “[...] precaver-nos contra a crença de que os princí-
pios ‘democráticos’ de justiça são idênticos à ‘adjudicação racional’”, e fazer valer
tais princípios a partir de uma discussão sobre o mal que a intolerância causa no
processo de formação. O que este artigo propõe é uma reflexão sobre a importância
da diferença e da diversidade na educação, e seu argumento central está pautado
no reconhecimento dessa importância.
Para auxiliar nessa reflexão, o artigo parte de alguns comentadores que abor-
dam a temática da educação nos textos de Simmel, os quais tomam as relações
entre diferenciação e interação, bem como suas implicações nos processos de indi-
vidualização e socialização. A diferenciação é entendida como pressuposto dos pro-
cessos de interação e socialização, o que permite centrar o olhar sobre os espaços de
educação e formação como espaços de interação, desde que esses espaços sejam pro-
vocados pelo estranhamento das diferenciações, sejam eles os espaços tradicionais
de salas de aula ou os espaços onde ocorrem diferentes interações e socializações,
como, por exemplo, os ambientes de difusão cultural.
No final do século XIX e início do século XX, Simmel questionou o conheci-
mento consolidado na forma de um pensamento totalizante, apontando para os
problemas advindos de uma teoria ensimesmada, alheia à realidade circundante.
Nesse sentido, o pensamento simmeliano pode ser um ponto de apoio importante
na discussão de temas caros ao presente, tais como os já citados conceitos de inte-
ração e socialização, participantes na construção da individualidade, da subjetivi-
dade e da sociedade. Sociedade que, nas palavras de Simmel (2006, p. 18), “[...] não
é, sobretudo, uma substância, algo que seja concreto para si mesmo”.
As preocupações teóricas levadas a cabo por Simmel ao refletir sobre os fun-
damentos e condições de sociabilidade (Gesselingkeit) de uma sociedade (Gesells-
chaft) que só podem existir em meio aos processos de interação (Wechselwirkung)
e socialização (Vergesellschaftung)1, estabelecem estreita relação com processos de
formação (Bildung)2, os quais não podem prescindir das diferenciações entre indi-
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víduos que participam de um mesmo círculo. Dessa forma, entende-se que qual-
quer movimento na direção de fazer perseverar a intolerância à diversidade de
ideias acaba por tornar-se uma tentativa de apequenar os processos de socialização
e, consequentemente, da própria formação.
Sala de aula e espaço de interação
Em 2019, o Simmel Studies3 dedicou um dossiê à discussão do papel de Georg
Simmel como educador. Naquele dossiê, intitulado Simmel as Educator, o ponto de
partida dos artigos foram as Palestras sobre pedagogia escolar (Lectures on Schul-
pädagogik), originadas de uma série de anotações de aulas feitas por de Simmel,
que foram recolhidas, organizadas e publicadas postumamente pelo seu assistente
(AMAT; D’ANDREA, 2019). Embora as aulas de Simmel tenham sido um enorme
sucesso entre os alunos, em especial no período em que ele lecionou em Berlim4,
os temas ligados à pedagogia não foram parte central dos seus interesses teóricos
(D’ANDREA, 2019; GONON, 2019; MÜLLER, 2019; VERNIK, 2019). A realização
das Palestras sobre pedagogia escolar não foi de sua livre escolha, mas fruto de
uma tarefa compulsória de ministrar aulas sobre procedimentos pedagógicos e di-
dática para alunos da Universidade de Estrasburgo, onde ele lecionou filosofia por
um curto período, em seus últimos anos de vida (GONON, 2019).
O fato de a pedagogia não ser um dos destaques entre os muitos interesses
de Simmel, não foi o único motivo pelo qual o tema não ocupou parte significativa
do seu tempo e da sua produção intelectual. Além dos diversos outros interesses
teóricos que atraíram sua atenção, existiam também questões ligadas à organiza-
ção das disciplinas acadêmicas do seu tempo, que fizeram com que as discussões
sobre educação não ocupassem lugar de destaque no cenário teórico simmeliano.
Na Alemanha do início do século XX, a própria pedagogia não havia se firmado
ainda como disciplina autônoma, o que só ocorreu em meados daquele século. O
período também coincide com o momento em que ganharam força na Alemanha
as discussões sobre a construção da sociologia como disciplina (GONON, 2019).
Simmel estava especialmente dedicado a essa segunda causa, tendo sido ele um
dos organizadores dos encontros da Sociedade Alemão para a Sociologia (Deutsche
Gegesellschft für Soziologie) (GONON, 2019).
Se, por um lado, o tema da pedagogia não foi central na sua produção, de ou-
tro, os textos do dossiê demonstram como suas palestras sobre educação guardam
relação com outras questões teóricas, essas sim mais ao seu gosto, tais como ques-
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tões ligadas à interação e à socialização. Simmel entendia que a própria aula cons-
tituía “[...] um tipo de relação, uma troca de efeito recíproco (Wechselwirkung) entre
o professor e sua audiência”5 (VERNIK, 2019, p. 67, tradução nossa). Um exemplo
da intensidade dessa troca de efeito recíproco em suas aulas pode ser percebido no
depoimento de Emil Ludwig, quando lamenta a saída de Simmel da Universidade
de Berlim, em 1914, para assumir a cátedra em Estrasburgo:
Nós não poderemos mais ouvi-lo em Berlim, nós não o veremos mais: e isto é triste
porque [...] só se pode compreendê-lo inteiramente, não quando se o lê, mas só
quando se o ouve, se o vê [...] ele pensa de modo visível [...] ouvir significa então al-
guma coisa como: construir em conjunto. Na verdade não se ouve: antes se pensa,
se pensa em conjunto (LUDWIG apud WAIZBORT, 2013, p. 573).
Essa relação recíproca, ou interação (Wechselwirkung), tem papel importante
no pensamento simmeliano, especialmente no que diz respeito ao entendimento
das dinâmicas que envolvem diferenciação e os processos de socialização6. Como
lembra o próprio Vernik (2019, p. 67, tradução nossa), o conceito de interação é
central na “[...] sociologia relacional de Simmel [...] bem como no seu pensamento
global, incluindo seu propósito pedagógico”. Segundo Häußling (2018, p. 588 apud
VERNIK, 2019, p. 67, tradução nossa), interação:
Significa que um ator social (um indivíduo, um grupo, ou uma configuração social) está
fazendo, percebendo, ou esperando, tem impacto no que outro ator social está fazendo, per-
cebendo ou esperando. Toda interação (Wechselwirkung), apesar do seu conteúdo livremen-
te selecionado, deve selecionar formas determinadas de socialização (Vergesellschaftung),
a fim de se articular “socialmente”. A Wechselwirkung não seleciona as formas arbitra-
riamente, mas a partir de uma estrutura geral dinâmica, a qual Simmel conceitua como
socialização.
O dinamismo dessa estrutura apontado por Häußling é chave no conceito sim-
meliano de interação e de socialização. O dinamismo faz referência ao movimento
que ocorre em toda a estrutura, em um fluxo incessante, no qual:
[...] os indivíduos estão ligados uns aos outros pela influência mútua que exercem entre si
e pela determinação recíproca que exercem uns sobre os outros. A sociedade é também algo
funcional, algo que os indivíduos fazem e sofrem ao mesmo tempo, e que, de acordo
com esse caráter fundamental, não se deveria falar de sociedade [Gesellschaft], mas de
sociação [Vergesellschaftung]. Sociedade é, assim, somente um nome para um círculo de
indivíduos que estão, de uma maneira determinada, ligados uns aos outros por efeito das
relações mútuas, e que por isso podem ser caracterizados como uma unidade – da mesma
maneira que se considera uma unidade um sistema de massas corporais que, em seu com-
portamento, se determinam plenamente por meio de suas influências recíprocas (SIMMEL,
2006, pp. 17-18, grifo nosso).
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Notas sobre interação e socialização em Simmel: uma reexão sobre educação e intolerância
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A ideia de sociedade para Simmel é uma abstração conceitual que torna ma-
nifesta uma unidade que só se realiza na instabilidade das relações mútuas, como
um corpo que põe em movimento uma bicicleta. O conjunto ciclista e bicicleta só
se equilibra a partir da dinâmica das diferentes partes do corpo humano sobre
um outro corpo externo a ele que é a bicicleta. É a dinâmica das diferentes partes
do corpo humano que dá movimento à bicicleta, e a torna efetivamente funcional.
Nesse sentido, a ideia de sociedade é como uma fotografia que tenta retratar em
um instantâneo o intenso movimento que o antecede, como a imagem captada de
um ciclista sobre sua bicicleta, que congela as diferentes partes do corpo do ciclista
em movimentos coordenados, e a própria dinâmica do conjunto para forjar uma
unidade que ocorre somente na mudança e instabilidade entre as partes do corpo
do ciclista, e do conjunto envolvendo essa totalidade móvel que contém o ciclista e
a bicicleta. Escavar e revelar o movimento que está na origem desse instantâneo é
parte do interesse de Simmel, que discute como são possíveis a individualidade e
a própria sociedade (MÜLLER; CAVALLI; FERRARA, 2018). Simmel realiza esse
instantâneo a partir de observações da vida cotidiana expostas em textos em um
estilo ensaístico (WAIZBORT, 2013; VANDENBERGHE, 2018), provocador, e que
busca nas experiências do mundo os indícios de generalizações das formas de so-
cialização. O cotidiano é fonte de matéria-prima para Simmel, que “[...] não pôde
ignorar a multiplicação dos microgrupos que, apesar de apenas nascentes, vinham
sendo difundidos nas metrópoles modernas” (MAFFESOLI, 2014, p. 245). A força
de sua microssociologia está presente na maneira aguçada como ele retira da vida
comum e dos acontecimentos prosaicos e inesperados os elementos para reflexão
teórica, como, por exemplo, a moldura de um quadro (SIMMEL, 2016). Simmel
(2006, p. 18) faz dessas peculiares observações de campo os eventos reveladores
de uma sociedade, a qual, conforme já citado, “[...]os indivíduos fazem e sofrem ao
mesmo tempo[...]”.
Essa “estrutura geral dinâmica” que caracteriza a socialização, bem como a
condição peculiar do indivíduo diante de uma sociedade que ele “faz e sofre ao
mesmo tempo”, revelam que a interação ocorre sempre sob um sistema instável, ou
melhor, que ela é parte de uma dinâmica que visa o aspecto unitário de um sistema
que é, por força da própria interação que o constitui, instável. Um sistema que se
vê às voltas com indivíduos constantemente trocando de posições, intercambian-
do ideias e valores (D’ANDREA, 2019). A visão de Simmel sobre a dinâmica que
envolve o processo de socialização e formação da sociedade implica em uma pers-
pectiva crítica de uma modernidade identificada com a possibilidade de apreensão
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da totalidade. Uma Modernidade Iluminista7, que não se dá conta do fato “[...] de
que todo esse processo que leva a um equilíbrio estático, onde tudo permanece
mais ou menos o mesmo, é pelo menos ingênua, pois deixa de levar em conta o
dinamismo essencial da realidade [...]” (D’ANDREA, 2019, p. 56, tradução nossa).
Para o pensamento simmeliano, crítico da estabilidade que essa visão ingênua que
a Modernidade Iluminista pretende cravar,
Em vez de uma abordagem estática, deve-se imaginar um relacionamento dinâmico em que
todos os elementos deem sentido uns aos outros, sem que seja necessária a existência do
todo, que muda e permanece o mesmo, em uma espécie de dança em espiral que pode até
ser pensada como a imagem da vida (D’ANDREA, 2019, p. 57, tradução nossa).
No limite, a ingenuidade da ideia da possibilidade de uma apreensão do todo
acaba por desconsiderar as partes, uma vez que essa apreensão tende a imobilizar
as interações movidas pelas diferenciações entre indivíduos, e os próprios fenôme-
nos observados, que passam de móveis e instáveis para a condição de estáticos.
Na Modernidade Iluminista, o instante fotográfico que congela a realidade passa
a ser, ele mesmo, o objeto de interesse, deixando em segundo plano o processo que
ele pretendia revelar.
Ao final, a tentativa de apreensão do todo acaba por neutralizar a própria
individualidade e a subjetividade, quando, ao contrário disso, a interação deveria
“[...] ser interpretada não apenas como a fonte de uma rede relacional fundamen-
tal, mas como um movimento criativo através do qual a substância subjetiva surge
e se desenvolve” (D’ANDREA, 2019, p. 57, tradução nossa).
Diferenciação e socialização
Parece ser claro até aqui, e nunca é demais repetir, que a dinâmica observada
no processo de socialização decorre da interação do indivíduo com um outro não
semelhante a ele. São as diferenciações entre os membros de um mesmo círculo so-
cial que impulsionam de maneira decisiva as interações, e sustentam os processos
de individualização. Para que a bicicleta ande, as partes do corpo do ciclista devem
guardar as diferenças entre si, revelando as distintas funcionalidades de cada uma
delas, assim como o ciclista, na sua totalidade de diferenças, deve se identificar
como um corpo que se distingue da bicicleta. Assim, para Simmel (2006, p. 45-46),
as diferenciações são elementos fundamentais na dinâmica social:
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Seja como fato ou como tendência, a semelhança com os outros não tem menos importância
que a diferença com relação aos demais; semelhança e diferença são, de múltiplas manei-
ras, os grandes princípios de todo desenvolvimento interno e externo. Desse modo, a his-
tória da cultura da humanidade deve ser apreendida pura e simplesmente como a história
da luta e das tentativas de conciliação entre esses dois princípios. Bastaria dizer que, para
a ação no âmbito das relações do indivíduo, a diferença perante outros indivíduos é muito
mais importante que a semelhança entre eles. A diferenciação perante outros seres é o que
incentiva e determina em grande parte a nossa atividade.
Para Vernik (2017), ao colocar a diferenciação como dinâmica presente em
um círculo de indivíduos, Simmel também traz à tona a condição que permite a
individualização e a existência de uma relação direta entre o número de círculos
aos quais o indivíduo pertence e as oportunidades de individualização. Partindo
desta observação, pode-se entender que o processo de formação da individualidade
demanda dois níveis distintos de diferenciação. O primeiro deles é interno a um
círculo de indivíduos, e diz respeito às diferenças entre os indivíduos dentro desse
mesmo círculo. O segundo nível de diferenciação diz respeito à mobilidade entre os
diferentes círculos frequentados por um indivíduo. Quanto maior o número de cír-
culos frequentados por ele, maior as chances de individualização, ou ainda, a indi-
vidualização pode ocorrer em maior grau de dessemelhança em relação aos demais
indivíduos. Por fim, há de se considerar que o trânsito entre diferentes círculos é
facilitado quando cada um dos círculos é composto por integrantes de outros tantos
círculos, que fornecem condições específicas de interação entre os distintos círculos
por onde esses indivíduos transitam, levando novos integrantes para alimentar as
diferenciações em cada um deles. Dito de outra forma, quanto maior o número de
círculos frequentados pelo indivíduo, e mais frequente for o seu trânsito entre os
diferentes círculos marcados por dessemelhanças, em tese, maior serão as chances
de promoção de interações a partir de movimentos de aproximação e separação
entre indivíduos e círculos distintos, e maiores as possibilidades de individualiza-
ção. Este trânsito e interação entre indivíduos que guardam diferenciações entre
si, auxiliam na formação de um cenário que propicia a construção da identidade
por semelhança e diferenciação. Tal circunstância oferece parâmetros para que o
indivíduo seja submetido em menor escala ao crivo de aprovação, ou rejeição, de
determinado círculo específico, tendo em vista a diversidade de visão de mundo que
o indivíduo tem acesso ao transitar entre diferentes círculos.
Portanto, desligar-se dos círculos ou evitar que as diferenciações ocorram no
interior de cada círculo não parecem ser bons caminhos para a individualização
e a autonomia. Ao contrário, o pertencimento a um ou mais círculos nos quais o
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convívio entre semelhantes e dessemelhantes é uma realidade, e o trânsito entre
diversos círculos, nos quais as dessemelhanças estejam presentes, é o que garante
minimamente os processos de interação, individualização e da elaboração de uma
subjetividade, levando a uma aproximação da experiência da autonomia, mesmo
que instável e transitória.
Diferenciação e formação (Bildung)
Todo movimento do espírito que caminha na direção oposta do reconhecimen-
to das diferenciações e de suas provocações, acaba por percorrer um caminho de
apequenamento dos processos de individualização. A individualização não deve
confundir-se com o pensamento ensimesmado e o isolamento. Simmel, ao consi-
derar a sala de aula como espaço de interação (VERNIK, 2019), entende que na-
quele microcosmo transitam partes de diferentes círculos, envolvendo indivíduos
que se relacionam pelas diferenças e semelhanças, e é a partir dessas diferenças
e semelhanças que os processos de individualização ocorrem. A mobilidade entre
diferentes círculos promove um maior número de interações e produz diversidade
de processos de socialização, que são condições para a individualização e, conse-
quentemente, para a ampliação da possibilidade de autonomia do indivíduo. O
espaço da sala de aula, ao expor o indivíduo às diferenças e ao trânsito entre cír-
culos, abriga essa diversidade e promove socializações. Não se trata unicamente
de aceitar as diferenças e o multiculturalismo de forma normatizada, mas como
uma perspectiva epistemológica. Trata-se de abraçar a mudança que transforma a
consciência, como aponta Bell Hooks (2017).
Esse espaço que promove o encontro das diferenças e da interação, é também
o espaço que instiga a Bildung, como formação mais plena e livre, desde que, se-
gundo Simmel, se observe a dupla finalidade da sala de aula, como a abordagem
de conteúdos funcionais e o fortalecimento e elevação moral do aluno (GOLDMAN,
2013). A questão da moral enunciada por Goldman marca o desdobramento da
ordem do subjetivo que passa a constituir uma realidade objetiva ao agir sobre o
mundo em um movimento ético-estético (SIMMEL, 2004 apud MÜLLER, 2019), e
se confronta com a subjetividade dos outros indivíduos.
Berger e Luckmann (1985) apontam a realidade social como uma dialética
marcada por três momentos: exteriorização, objetivação e interiorização. A exte-
riorização corresponde ao plano estético que comunica a subjetividade de um indi-
víduo. Ao depositar essa exterioridade no mundo, na forma de um objeto (concreto
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ou abstrato), ganha espaço o processo de objetivação, como processo portador da
subjetividade exteriorizada, que pode ser tomada como fenômeno por outros indi-
víduos. Por fim, a interiorização ocorre quando o indivíduo faz o caminho contrário,
e recolhe do mundo os objetos carregados de sentidos, fruto das subjetivações de
outrem.
Embora os autores marquem que não existe uma sequência linear e cronoló-
gica nesse processo, visto que os três momentos estão contidos na realidade social
observável, didaticamente eles apontam que:
O ponto inicial deste processo é a interiorização, a saber a apreensão ou interpretação
imediata de um acontecimento objetivo como dotado de sentido, isto é, como manifestação
de processos subjetivos de outrem, que desta maneira torna-se subjetivamente significativo
para mim (BERGER; LUCKMANN, 1985, p. 174).
A estrutura traçada por Berger e Luckmann (1985) apresenta nuances de uma
síntese que, se não se realizou na sua plenitude, ao menos aponta para a sociedade
como síntese de uma dialética clássica, segundo os caminhos weberianos. Nesse
ponto, a perspectiva de Simmel sobre a dinâmica de uma dialética do social guarda
certa distância. Para ele, a instabilidade do sistema é a regra, “[...] que se resume
da melhor maneira através do (meta)conceito do dualismo, da dualidade em inte-
ração ou da dialética sem síntese” (VANDENBERGHE, 2018, p. 53). Um sistema
instável no qual “É a ação recíproca entre os indivíduos, e não a ação individual
ou a totalidade social que é a unidade elementar da sociologia simmeliana” (VAN-
DENBERGHE, 2018, p. 100), e “O que interessa à Simmel é o jogo das interações
como substrato vivo do social, como cadinho da sociedade” (VANDENBERGHE,
2018, p. 94). Essa dialética sem síntese vai ao encontro da experiência vital da qual
fala Paulo Freire (2020, p. 50), ao afirmar que: “Onde há vida, há inacabamento”, e
“[...] o inacabamento de que nos tornamos conscientes nos fez éticos” (2020, p. 58).
De qualquer maneira, o didatismo do esquema de Berger e Luckmann apon-
tam, mais uma vez, para a importância do reconhecimento do outro como diferente,
como condição para que o próprio mundo concreto adquira sentido, ou múltiplos
sentidos. Desde o plano estético de uma subjetividade que encarna no mundo na
forma de objetos a serem tomados por outros indivíduos como fenômenos ricos de
sentidos, o que é revelado nesse jogo dialético é, por um lado, uma ideia de socie-
dade como uma estabilidade fugidia, e, por outro lado, o indivíduo que se assoma
do mundo, tomando fenomenologicamente os objetos como a encarnação de signi-
ficados a serem desvelados, ao mesmo tempo em que ele, indivíduo, realiza sua
individualidade.
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Da mesma forma, Simmel observou que “A Bildung, no sentido clássico ale-
mão, é alcançada se as coisas não são apenas conhecidas em si mesmas [...]” (MÜL-
LER, 2019, p. 34), mas uma formação que visa o espírito, e se desdobra novamente
na realidade concreta circundante, dando seguimento a uma relação conflituosa
entre sociedade e indivíduo, conflito que “[...] prossegue no próprio indivíduo como
luta entre partes de sua essência” (SIMMEL, 2006, p. 84). Ou ainda, a Bildung é:
[...] o fortalecimento, o refinamento, a amplitude de oscilação do espírito, sua elevação éti-
co-estética, o direcionamento da alma ao encontro do espiritual e do valioso. Bildung é a
síntese desses dois objetivos. Porque Bildung não é o mero conteúdo cognoscível, nem o
mero ser como a constituição de uma alma sem conteúdo (SIMMEL, 2004, p. 356 apud
MÜLLER, 2019, p. 34-35).
Mas essa amplitude de oscilação do espírito se vê ameaçada, conforme aponta
Simmel (2013, p. 110), em A crise da cultura, quando: “As vivências atuais pare-
cem intervir com significado mais tangível em outro desenvolvimento da cultura,
a elevação de meros meios a fins em si”. A consequência dessa troca de meio pelo
fim é a interrupção do processo dialético, quando a objetivação deixa de significar a
subjetividade que lhe deu origem, ou deixa de ser decodificada ou significada pela
subjetividade de outrem que a recolhe no fenômeno. O objeto então se cristaliza
como coisa no mundo, e deixa de ser um “conteúdo cognoscível” para ser tomado
por uma “alma sem conteúdo”.
O espaço da sala de aula, como espaço de interação, conforme apontou Simmel
(VERNIK, 2019), é um antídoto para este mal que interrompe a “amplitude de os-
cilação do espírito” presente na Bildung. Bildung entendida não como formação no
sentido estritamente técnico, ou de treinamento, o que foi alvo de críticas por parte
de Simmel (NORDENBO, 2002; D’ANDREA, 2019), mas Bildung como formação
mais ampla, como um “refinamento” do espírito, conforme apontado por Simmel, o
que pode ser observado também na mudança de percepção dos espaços destinados
aos processos de socialização e de formação.
A Bildung, como formação mais ampla, foi acompanhada também por uma
mudança sobre o entendimento dos espaços exclusivos dedicados ao ensino formal,
reconhecendo-se que “[...] as ações educativas não se realizam apenas nos espa-
ços institucionais tradicionais” (SETTON, 2005, p. 346), mas nos círculos onde o
consumo da vida objetivada possa se converter em processos de subjetivação, tal
como é oportunizado nos encontros de diferentes experiências e do choque da vida
interna subjetiva com a realidade externa, em uma variada gama de espaços de
socialização. A sala de aula pode ser um desses espaços nos quais os choques e as
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interações se realizam, e onde as diferenciações estão presentes e os processos de
socialização ocorrem, da mesma maneira como também ocorrem nos espaços cultu-
rais (SETTON, 2005; SETTON; OLIVEIRA, 2017). Todos esses cenários oferecem
as condições de sociabilidade que favorecem a produção da cultura “[...] na medida
em que há a aproximação de dois elementos: a alma subjetiva e o produto espiri-
tual objetivo; sendo que nenhum deles a contém por si” (SIMMEL, 2014, p. 81). A
preocupação de Simmel (2013, p. 87), segundo a qual “[...] os homens somente num
grau menor estão em condições de extrair, a partir da consumação dos objetos, uma
consumação da vida subjetiva”, pode ser aplacada, ao menos em parte, quando
o conjunto de diferentes círculos e o trânsito dos indivíduos entre esses círculos
ocorre, dando oportunidade e estímulo para que a conversão do objeto consumido
torne-se consumação de vida subjetiva, e a síntese provisória entre o “conteúdo
cognoscível” e a alma aconteça. O impedimento do acesso às diferenças nos espa-
ços onde as interações ocorrem, sejam salas de aula, espaços de lazer ou equipa-
mentos culturais, é danoso tanto para aquele que é impedido de frequentar esses
ambientes, quanto aos que lá já se encontram isolados e privados de provocações,
estímulos e interações que a diversidade pode promover. Tanto aqueles cujo acesso
às diferenciações é obstruído, quanto os que permanecem isolados em bolhas cultu-
rais, os quais enfrentarão dificuldades em extrair “da consumação de objetos, uma
consumação da vida subjetiva”.
Hoje, mais do que nunca, a recuperação da Bildung implica em dar voz à dico-
tomia indivíduo e sociedade, vida interna e externa (D’ANDREA, 2019). Ao discor-
rer sobre as implicações entre educação e cultura em Simmel, Goldman (2013, p.
28) lembra que: “Os conflitos mais delicados da vida moderna advêm da resistência
oferecida pelo indivíduo de ser nivelado, e da aspiração do homem em preservar
sua peculiaridade e autonomia diante da sociedade”, reeditando “o conflito entre a
sociedade e o indivíduo [...]” (SIMMEL, 2006, p. 84). Mas esse conflito não se resolve
cedendo ao nivelamento ou abandonando a aspiração à peculiaridade e à autono-
mia. Ao contrário, o fundamental é entender que a manutenção, quer da sociedade,
quer do indivíduo peculiar e autônomo, depende da clareza quanto ao fato de que
“A contraposição entre o todo [...] e a parte [...] não se resolve a princípio: não se
constrói uma casa a partir das casas, e sim a partir de pedras formadas; nenhuma
árvore cresce a partir de árvores, e sim a partir de células diferentes” (SIMMEL,
2006, p. 84). Para que o indivíduo note que sua peculiaridade e autonomia depen-
dem das subjetivações e, portanto, dos dessemelhantes a ele, é imprescindível que
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a cultura se apresente sempre no plural, promovendo o reconhecimento das dife-
renças para que elas sejam objeto de “consumação da vida subjetiva”.
Conclusão
A partir da importância dos processos de interação e socialização para a for-
mação (Bildung), e tendo em vista a diferenciação como elemento fundamental
para tais processos, é possível afirmar que qualquer tentativa de barrar as dife-
renças nos ambientes de debates e discussão de ideias incorrerão no solapamento
dos processos de interação e socialização, e, consequentemente, na formação (Bil-
dung). Passar ao largo do reconhecimento e da tolerância das diferenças, sejam
quais forem as justificativas para tal, acabam por promover uma formação sem a
amplitude necessária para a constituição de forças mobilizadoras que garantam a
autonomia do sujeito, o que um objetivo da educação.
O que a intolerância às diferenças e a aversão à diversidade de pensamentos
promovem, por certo, é a dificuldade dos processos de interação e, consequente-
mente, das possibilidades do indivíduo se relacionar com as diferentes subjetivi-
dades, que são matéria-prima necessária para a exteriorização, objetivação e inte-
riorização, gerando novos processos de subjetivação, que mais uma vez se lançará
ao mundo. A interrupção do processo vivo que dá origem ao social a partir de uma
intensa dinâmica de interações, não mata apenas as ideias, mas também a própria
essência da formação e da vida social. Para ir além do plano jurídico-constitucional
que garante o acesso à escola e o pluralismo de ideias, uma sociedade saudável
deve manter o convívio entre as diferenças, que é tão vital para a sociedade quanto
o ato de pedalar é vital para manter a bicicleta em equilíbrio dinâmico.
Notas
1 Os termos em alemão Wechselwirkung, Vergesellschaftung, Gesellschaft e Geselligkeit são vertidos neste
texto por interação, socialização, sociedade e sociabilidade, respectivamente. Apesar de reconhecer a va-
lidade das discussões sobre a melhor forma de verter esses termos para o português, em especial as va-
riantes de Vergesellschaftung, optou-se por socialização para este último, mantendo a palavra sociação nos
casos das citações literais de obras em português que privilegiam essa forma de escrita. A anotação desses
termos no idioma alemão só será mantida quando a citação literal do texto utilizado optar por manter o
termo no original em alemão. Este é o caso de alguns dos textos do periódico Simmel Studies, presentes em
citações neste artigo.
2 Sobre a Bildung, ver artigo de Sven Erik Nordenbo, Bildung and the Thinking of Bildung, citado neste
artigo e indicado nas referências, no qual o autor traça um histórico do termo, desde o sentido de uma
educação técnica e funcionalista, criticada por Simmel, até a recuperação do seu uso como formação para
além dos conteúdos utilitários. Nordenbo também recupera a etimologia da palavra, verificando seu sen-
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tido inaugural que remete à imagem, conforme pode ser observado no uso do termo na introdução de Über
sociale Differenzierung, de Georg Simmel. Ainda, a respeito do conceito de Bildung (e Halbbildung), ver
dossiê específico da Revista Espaço Pedagógico, v. 24, n. 3, 2017.
3 Publicação da Georg Simmel Gesellschaft, disponível na plataforma Érudit desde 2017. O dossiê Simmel
as Educator está disponível em: https://www.erudit.org/en/journals/sst/2019-v23-n1-sst04800/.
4 Para o sucesso e popularidade das aulas de Simmel, consultar a obra de Waizbort (2013, p. 571 ss.), em
especial o capítulo “A cátedra, os gestos e a memória dos que viram e ouviram”, onde são reproduzidos
depoimentos de época sobre a impressão que Simmel causava aos seus alunos em sala de aula.
5 O termo em alemão entre parêntesis está presente na citação original. Conforme indicado em nota ante-
rior, quando não se tratar de citação literal, o termo Wechselwirkung será vertido como “interação”.
6 A questão da sociabilidade (Geselligkeit), embora importante na obra de Simmel, especialmente no tocante
à autonomização dos conteúdos, conforme Questões fundamentais da sociologia (SIMMEL, 2006, p. 59 e
ss.), não será discutida à miúde neste texto. Porém, vale apontar ser este também um tema merecedor de
atenção, especialmente se for considerado que seus desdobramentos implicam na reflexão crítica sobre o
campo da educação e da formação (Bildung), e das relações de poder envolvidos nesse processo.
7 O termo Modernidade Iluminista é utilizado por D’Andrea a partir de obra citada de Louis Dumont (1991
apud D’ANDREA, 2019).
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* Doutora e mestra em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal
de Juiz de Fora (PPGCSO/UFJF). Orcid: http://orcid.org/0000-0002-8281-4491. E-mail: vadecastro@hotmail.com
** Professor Associado do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal
de Juiz de Fora (UFJF). Bolsista de Produtividade CNPq. Orcid: http://orcid.org/0000-0001-7892-4017. E-mail: ftavares@
caed.uf.br
Recebido em: 22/07/2020 – Aprovado em: 15/04/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i1.11366
Percursos escolares exitosos entre alunos de camadas populares:
socialização familiar e trajetórias sociais
Successful school paths among students from lower class:
family socialization and social trajectories
Recorridos escolares exitosos entre estudiantes de estratos populares:
socialización familiar y trayectorias sociales
Vanessa Gomes de Castro*
Fernando Tavares Júnior**
Resumo
Investigam-se processos de socialização primária e secundária associados a percursos escolares exitosos entre
alunos provenientes de camadas populares. Analisam-se casos bem-sucedidos entre a geração escolar que in-
gressou no primeiro ano do ensino fundamental em 2006, em uma escola municipal no interior de Minas Gerais,
sendo a primeira coorte submetida às leis de ampliação da duração do ensino fundamental para nove anos,
com ingresso aos 6 anos de idade. Para aprofundar a análise, foram pesquisadas as histórias de vida de três alu-
nos aprovados continuamente até a conclusão do ensino médio em 2017, representando exceções em meio a
uma geração majoritariamente afetada por reprovações e evasões ao longo de seus percursos. Observou-se que
processos de socialização primária (familiar) e secundária (extrafamiliar) podem se apresentar como elementos
favoráveis, que se mostram associados a percursos escolares exitosos, corroborando a relevância de atitudes
especícas dos adultos sobre as trajetórias sociais das gerações mais novas.
Palavras-chave: educação; socialização; percursos escolares; trajetórias sociais; sucesso escolar.
Abstract
This paper investigates primary and secondary socialization processes associated with successful school paths
among students from lower classes. Successful cases are analyzed among the generation that entered the rst
year of basic school in 2006 in a municipal school in Minas Gerais, the rst group submitted to the laws that
extended basic school from 8 to 9 years, entering at the age of 6. To deepen the analysis, the life stories of three
students continuously approved until the graduation from high school in 2017 was researched, representing
exceptions in the middle of a generation mostly aected by reprobation and evasion throughout their path. It
was noted that the processes of primary (family) and secondary socialization (school and “neighborhood”) may
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be favorable elements associated with successful school paths, stressing the relevance of adults specic actions
over the trajectories of younger generations.
Keywords: education; socialization; school trajectories; school success.
Resumen
Son investigados procesos de socialización primaria y secundária asociados a trayectorias escolar exitosas entre
estudiantes provenientes de estratos populares. Son analisados casos exitosos entre la generación que entró al
primer año de la educación basica em 2006, em una escuela del interior de Minas Gerais, el primer grupo sujeto
a las leyes de extensión de la educación basica para nueve años, com ingreso a los 6. Para profundizar el análisis,
fueron investigados las historias de vida de tres estudiantes continuamente aprobados hasta la conclusión de
sus estudios en 2017, representando excepciones a uns generación mayoritariamente marcada por evasión y
reprobación al largo de sus trayectorias. Se observó que los procesos de socialización primaria (família) y secun-
daria (escuela y “barrio”) pueden presentarse como elementos favorables, que se mustran asociados a trayecto-
rias escolares exitosas, corroborando la relevancia de actitudes especicas de los adultos sobre las trayectorias
sociales de generaciones más nuevas.
Palabras-llave: educación; socialización; recorridos escolares; trayectorias sociales; éxito escolar.
Introdução
O debate relativo à equalização de oportunidades educacionais tem recebi-
do atenção de pesquisas inspiradas na Teoria do Capital Humano e em diversas
abordagens da Sociologia da Educação desde a década de 1960, fomentando amplo
debate em torno dos efeitos potenciais da expansão educacional. Nesse sentido, a
Sociologia da Educação tem evidenciado que as oportunidades educacionais são
bens sociais escassos, distribuídos desigualmente na sociedade, entre as classes
sociais, os grupos e os indivíduos, conforme apontado por Bourdieu e Passeron
(1970), Jencks et al. (1972), Boudon (1973, 1977), Hirsch (1976), Bourdieu (1979)
e outros.
No Brasil, uma sociedade com passado colonial e escravocrata, os processos
de “modernização” se iniciaram de fato apenas nos anos 1930, momento em que a
educação gratuita, obrigatória e laica entrou na agenda de políticas públicas na-
cionais, vindo a se efetivar como um direito social somente na segunda metade do
século XX, quase um século depois de vários países industrializados. Na Constitui-
ção Federal de 1988 e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996,
o direito à educação gratuita e de qualidade foi ratificado, sinalizando o processo
de democratização das oportunidades educacionais e redesenhando a estrutura e
funcionamento dos sistemas de ensino. Não obstante, o processo de Reforma Edu-
cacional continuou em marcha, com a aprovação de uma série de mudanças nos
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anos seguintes. Diversas políticas públicas e legislações educacionais, sobretudo
nos últimos anos do século XX e início do século XXI, aprofundaram as tendências
de reforma educacional, no sentido de democratizar ainda mais o acesso, ampliar a
permanência e retomar os esforços para elevar a qualidade do ensino como expres-
sões do direito à educação e equalização das oportunidades educacionais e sociais.
No entanto, apesar das medidas oficiais, constata-se que muito ainda precisa ser
feito em termos de qualidade e equidade, tendo em vista, principalmente, os grupos
em contexto social e econômico desfavorecido.
Nesse sentido, as principais iniciativas voltam-se para a promoção da aprendi-
zagem e a elevação da aprovação. Com a democratização do acesso, tanto os indica-
dores de proficiência (desempenho), quanto os relativos à aprovação (rendimento),
passaram a ser evidenciados e questionados. Desde o final dos anos 1980, diver-
sas pesquisas, como aquelas desenvolvidas por Fletcher e Ribeiro (1987), Ribeiro
(1991), Klein e Ribeiro (1995), apontam o grave problema da repetência massiva ao
longo da educação básica, enquanto mecanismo que reforça a distribuição desigual
da educação na sociedade, sendo um dos principais problemas do sistema de ensino
do país.
Diante disso, o presente trabalho tem como objetivo investigar trajetórias
educacionais e processos de socialização adjacentes entre alunos provenientes das
camadas populares, os quais participaram da primeira coorte de estudantes sub-
metida às leis que anteciparam a idade de ingresso no ensino fundamental para
6 anos de idade e ampliaram essa etapa da educação básica de 8 para 9 anos, res-
pectivamente Leis nº 11.114/2005 e nº 11.274/2006, no escopo das Reformas Educa-
cionais supracitadas. Esses alunos ingressaram no 1º ano do ensino fundamental
em 2006 e deveriam concluir o 3º ano do ensino médio em 2017. Realizaram-se
assim, três estudos de caso com alunos que foram aprovados em todas as etapas,
concluindo a escolarização básica na idade adequada, constando como exceções à
sua coorte, cuja maioria sofreu retenções, interrupções, evasões e reprovações ao
longo de suas trajetórias educacionais.
É importante frisar que um dos focos principais das Leis nº 11.114/2005 e nº
11.274/2006 é a inclusão social, cujos maiores beneficiados são as crianças oriundas
das classes populares, ou seja, aquelas que se encontram em contexto social e eco-
nômico desfavorável. De modo geral, essas legislações educacionais implantadas
no Brasil a partir de 2006 constituem um esforço legítimo para ampliar as opor-
tunidades a mais crianças, a partir do direito de frequentar mais cedo uma escola
pública, gratuita e de qualidade (BRASIL, 2005; BRASIL, 2006; SAVELI, 2008).
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De outro lado, é conhecido que os problemas do ensino fundamental se refle-
tem no ensino médio. Nesse sentido, o ensino médio já passou por sucessivas refor-
mas, muitas das quais não lograram tanto êxito, em grande parte em função dos
desafios herdados dos níveis anteriores. Para alunos oriundos de segmentos sociais
médios e altos, cursar o ensino médio com caráter propedêutico tornou-se natural,
visto que o diploma superior faz parte de sua estrutura de capitais culturais e
simbólicos, tanto em função do caráter reprodutivo (BOURDIEU, 1979), quanto do
consumo defensivo (HIRSCH, 1976). Para esses jovens, há uma motivação intrín-
seca às recompensas e à própria trajetória de seu grupo social de referência, bem
como um amplo aparato de apoio (familiar, escolar, etc.) à sua trajetória educacio-
nal (CASTRO; TAVARES JR., 2016).
A questão central recai, portanto, sobre os jovens oriundos de camadas sociais
mais pobres, para os quais o ensino médio não faz parte de seu capital cultural e
sua experiência familiar. Não há grandes expectativas nem investimentos especí-
ficos relativos à continuidade aos estudos. Para esses jovens, a realização dos obje-
tivos modernos e democráticos da educação é limitada pelos empecilhos impostos
por suas origens sociais, aliados às desigualdades de oportunidades. Isso se reflete
no rendimento nesta etapa. Embora o número de alunos matriculados no ensino
médio tenha aumentado significativamente nos últimos anos, menos de 60% dos
jovens conseguem terminar essa etapa, sobretudo no tempo e idade adequados,
sem reprovação ou evasão (CASTRO; TAVARES JR., 2016).
Frente a esse quadro, torna-se importante compreender os sentidos que os
jovens das camadas populares atribuem à sua escolarização, considerando tanto
a classe social e o background familiar, quanto as experiências, singularidades,
temporalidades e biografias, no contexto da socialização familiar e interação social.
Dayrell e Jesus (2016), ao investigarem processos de exclusão escolar entre jovens
adolescentes de 15 a 17 anos, cursando o ensino médio no Brasil, através de grupos
focais e entrevistas, defendem que, para compreender as trajetórias escolares e
os múltiplos fatores que vêm gerando a exclusão dos jovens é fundamental situá-
-los como sujeitos socioculturais. Isso implica compreendê-los enquanto indivíduos
que possuem uma historicidade, visões de mundo, escalas de valores, sentimentos,
emoções, desejos, projetos, lógicas de comportamentos e hábitos que lhes são pró-
prios, apesar da macroestrutura apontar, a princípio, um leque mais ou menos
definido de opções em relação a um destino social, bem como as experiências que
cada um dos jovens adolescentes terá acesso (DAYRELL; JESUS, 2016).
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Diante dos múltiplos fatores que incidem sobre a produção social de trajetó-
rias escolares, as pesquisas em Sociologia da Educação, desde os anos 1960, têm
apontado as correlações entre origem social e a realização educacional. Dentre al-
guns estudos que alcançaram maior notoriedade internacional está a Reprodução,
de Bourdieu e Passeron (1970) e a Distinção, de Bourdieu (1979), que apontam
as diferenças culturais como decisivas para reprodução das estruturas de capitais
– incluindo escolares. Além das análises baseadas na escolha racional, que relacio-
nam as desigualdades educacionais à posição social e aos campos decisórios, inspi-
radas nos trabalhos de Boudon (1973, 1977). Contemporaneamente, acrescentam-
-se os trabalhos dedicados às diferenças na socialização e interação familiar, bem
como as pesquisas de Lahire (1997) e Lareau (2007). Evidenciando-se, também, as
pesquisas sobre as representações e atitudes de professores, gestores escolares e
famílias acerca das probabilidades de sucesso ou fracasso escolar dos indivíduos,
sistematizadas por meta-análises como as de Hattie (2009, 2012), entre outras.
Visando contribuir com os conhecimentos científicos sobre a produção social
da educação e suas desigualdades, esse trabalho investiga processos de socializa-
ção adjacentes a trajetórias escolares exitosas, isto é, cujos sujeitos concluíram a
educação básica sem defasagem, apesar dos contextos sociais desfavoráveis. Posto
isso, importa destacar que o objetivo do presente trabalho é tomar os conceitos de
socialização e interação social para compreender processos associados às trajetó-
rias escolares bem-sucedidas entre indivíduos das camadas populares. Todavia, os
processos de socialização e interação social vão muito além das práticas evidencia-
das por essa pesquisa.
Processos de socialização e trajetórias escolares
Os processos de socialização e interação social têm sido amplamente eviden-
ciados pela Sociologia, desde o seu surgimento ao final do século XIX até os dias
de hoje. Durkheim (1987), considerado um dos fundadores desta ciência moderna,
se preocupou, dentre outras questões, com os processos de socialização primária
e secundária das novas gerações. Nesse sentido, a educação escolar, no âmbito da
socialização secundária ou extrafamiliar, teria como função o preparo sistemático
das crianças e dos jovens, visando a sua integração ao grupo, a coesão social, a
divisão do trabalho, a solidariedade e o bom funcionamento da sociedade. Weber
(1992), por sua vez, voltou-se ao estudo da ação social, representada pela interação
recíproca entre duas ou mais pessoas, em que o sentido está relacionado ao com-
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portamento do outro, tendo como base os significados socialmente compartilhados
(racionalidades, valores, emoções e tradições). Na ação social, a educação é um
instrumento de poder, estando relacionada à classe social e ao status.
Simmel (2006), outro importante autor da Sociologia, percebe a sociedade como
resultante das múltiplas formas de interação, orientadas por padrões culturais e
valores sociais dominantes. A interação entre sujeitos é considerada uma forma de
sociação, constituída pelas motivações, interesses e objetivos dos indivíduos. Para
Elias (1994), a sociedade está baseada em redes de interdependência entre os indi-
víduos, com complexas configurações. Desde a mais tenra idade, os indivíduos são
socializados nessas redes, por exemplo, através das formas de educação. Goffman
(2011) também contribuiu com a compreensão da interação social, em que os ato-
res, situados no tempo e espaço, se encontram face a face em situações sociais, se
relacionando, se comunicando, agindo conforme as regras apreendidas através dos
processos de socialização. Na Psicologia Social, Mead (1972) evidenciou a relação
entre o indivíduo e a sociedade, a interação social e a constituição do self, através
de processos comunicativos embasados em identidades, aprendizagens familiares,
religiosas, educacionais e outros processos de socialização.
Na Sociologia da Educação, as investigações sobre os processos de socialização
e interação social, principalmente relacionados às práticas e às estratégias fami-
liares por trás das trajetórias escolares dos indivíduos, recebem histórica atenção.
As investigações sobre as desigualdades perante o ensino deixaram de se caracteri-
zar, exclusivamente, por abordagens macrossociológicas, e passaram a aprofundar
processos microssociológicos inerentes à família e à vida escolar. São pesquisadas
desde as estratégias educacionais das famílias e dos indivíduos para alcançar o
sucesso escolar da prole, até a fenomenologia e a etnometodologia envolvendo o
cotidiano da família, da escola e da sala de aula (FORQUIN, 1995; NOGUEIRA;
FORTES, 2004).
Nessa direção, Lareau (2007) investigou nos Estados Unidos, nos anos 1990,
através de etnografia, como a interação familiar poderia oferecer aos membros do
grupo recursos materiais e simbólicos voltados à sua formação escolar. Observou
um grupo de famílias de classe média, negras e brancas, identificando, entre es-
sas, estratégias mais visíveis de racionalização da formação escolar dos filhos, por
exemplo, através de atividades extraescolares, o uso adequado da linguagem, pouco
envolvimento com a família estendida. Já entre as famílias da classe trabalhado-
ra, negras e brancas, no que tange a interação com os filhos e sua formação escolar,
a autora identificou a seguinte estratégia: com amor, comida, apoio, segurança os
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filhos terão trajetórias escolares e sociais bem-sucedidas. Nesses casos, existiam
poucas atividades organizadas, bastante ênfase nos talentos especiais dos filhos e
ligações mais ricas e profundas com suas famílias estendidas. Lareau (2007) con-
clui que os pais que compartilham a mesma classe social, também compartilham
maneiras semelhantes de lidar com a trajetória escolar dos filhos, independe da
cor, observando, assim, semelhanças nos processos de socialização.
Lahire (1997) investigou na França, nos anos 1990, através de estudos de
caso, o sucesso escolar “improvável” nos meios populares, buscando analisar pro-
cessos de socialização familiar por trás dos jovens que tiveram o percurso escolar
longínquo, rumo a cursos universitários prestigiados, indo além do esperado, dado
seu baixo background familiar e social. Lahire (1997) identificou e descreveu as
configurações familiares, a cultura da escrita, as condições econômicas, as formas
de autoridade familiar e de investimento pedagógico. Concluiu que somente a exis-
tência objetiva de capital cultural no seio de uma família não diz nada sobre as re-
lações sociais, a frequência das relações sociais e as maneiras através das quais se
transmite (ou não) o capital cultural. A experiência de vida dos indivíduos não po-
deria ser deduzida do seu pertencimento a uma única coletividade ou classe social,
tornando-se necessário considerar os processos de socialização e interação social.
No Brasil, Nogueira (1998, 2005, 2006, 2010) tem investigado a lógica que
regula as estratégias das famílias no que tange à escolarização dos filhos, sejam
as famílias das camadas populares ou mesmo as estratégias das elites. Segundo
Nogueira (2005), as estratégias das famílias buscam manter ou melhorar a po-
sição social do grupo familiar. Estariam relacionadas ao senso prático, sendo as
prováveis respostas dadas pelos indivíduos e grupos segundo as suas disposições e
predisposições adquiridas em seu meio social de origem. Portanto, relaciona-se ao
habitus de classe, à posse de capitais materiais e simbólicos, sob a égide do clássico
argumento bourdiesiano.
Nesse sentido, Viana (1998) analisou ao longo dos anos 1990 o sucesso escolar
“inesperado” ou “estatisticamente improvável” nas camadas populares. O principal
indicador de sucesso utilizado foi o acesso ao curso superior. Buscou compreender o
que tornou possível uma escolarização prolongada de indivíduos cuja probabilida-
de de chegar à universidade é estatisticamente reduzida. Investigou universitários
oriundos de famílias com dificuldades econômicas e baixo nível de escolaridade.
Concluiu que famílias populares participam da construção do sucesso escolar dos
filhos, de modo diferenciado, ainda que nem sempre voltado explícita e objetiva-
mente para tal fim, ressaltando as diferenciações nos processos de socialização.
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Zago (2000) também examinou aspectos da socialização familiar, sobretudo o
envolvimento dos pais, especialmente das mães, nas trajetórias escolares dos filhos,
nos meios populares. Sua pesquisa foi realizada entre os anos de 1991 e 1993. Em
suas conclusões, aponta que a mobilização das famílias para que os filhos tenham
uma trajetória escolar bem-sucedida não é o único determinante dos seus destinos
escolares, embora possa desempenhar um papel importante e mesmo fundamental
na carreira escolar do filho. A mobilização das famílias não é condição suficiente
para garantir sua permanência na escola e reduzir as desigualdades escolares.
Outros autores, como Portes (2001), Piotto (2008) e Lacerda (2014), também
investigaram processos de socialização e mobilização familiar nos meios populares,
em direção à trajetória educacional dos filhos, chegando a resultados congruentes.
Além desses, destacam-se trabalhos recentes, como aqueles que constam nos livros
organizados por Romanelli, Nogueira e Zago (2013) e Piotto (2014), que demons-
tram as variações dos padrões atitudinais de pais e filhos conforme a classe social,
o nível de instrução, o tipo de família, a divisão de papéis educativos entre pai e
mãe, as relações sociais e afetivas no cotidiano da família, dentre outros aspectos
em direção à realização escolar.
No presente trabalho, os processos de “socialização” representam as relações
construídas face a face no contexto doméstico e extradoméstico. “Trajetórias escola-
res” se referem aos percursos dos indivíduos através do sistema de ensino, tanto du-
rante o interstício de escolaridade compulsória, isto é, entre o 1º e o 9º ano do ensino
fundamental, bem como o 1º ao 3º ano do ensino médio. Considera-se bem-sucedida
a trajetória ininterrupta, sem reprovação ou evasão escolar, que não gera defasa-
gem idade-série e eleva as probabilidades de continuidade dos estudos. O perfil
investigado volta-se para alunos que percorreram a educação básica em escolas pú-
blicas de redes municipais e estaduais. As “camadas populares” são representadas
por grupos sociais cujas circunstâncias gerais de inserção social apresentam limites
ao acesso a melhores condições de escolarização/socialização, como origem familiar
com baixo nível socioeconômico e baixa escolaridade. A literatura sociológica nos en-
sina que a origem socioeconômica do aluno pode facilitar ou dificultar sua trajetória
escolar. Fatores como as características individuais, o background familiar, a socia-
lização, a interação social, a estrutura de oportunidades educacionais e a legislação,
interferem nos destinos escolares dos indivíduos e grupos, assim como na produção
e reprodução social das desigualdades perante o ensino.
Exposto esse quadro teórico e conceitual, o presente trabalho teve por objetivo
investigar os processos de socialização associados a trajetórias escolares de alu-
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nos, oriundos de famílias das camadas populares, que obtiveram sucesso escolar
na educação básica. Essas trajetórias participaram da primeira coorte de alunos
matriculados em uma determinada escola pública da rede municipal, totalmente
submetida às leis que instituíram a matrícula obrigatória no 1º ano do ensino fun-
damental aos 06 anos de idade e a ampliação desta etapa para 09 anos. Logo, esses
alunos ingressaram no 1º ano do ensino fundamental em 2006 e deveriam concluir
essa etapa em 2014, ingressando no 1° ano do ensino médio em 2015, concluindo
este nível da educação básica em 2017. Realizaram-se estudos de caso com três
alunos que não foram reprovados ou evadidos ao longo do percurso, concluindo a
escolarização básica na idade adequada, com sucesso.
O local e os sujeitos da pesquisa
O início das trajetórias escolares, isto é, seu ingresso no 1º ano do ensino fun-
damental, foi pesquisado em uma escola pública da rede municipal de uma cidade
de porte médio no interior de Minas Gerais. Tal escola possui similitudes com boa
parte das escolas urbanas das periferias brasileiras. Seu Índice de Desenvolvimen-
to da Educação Básica (Ideb) variou entre 4.4 (menor índice) e 6.0 (maior índice),
entre 2005 e 2015, nos anos iniciais do ensino fundamental; e entre 3.3 (menor
índice) e 5.2 (maior índice), entre 2005 e 2015, nos anos finais do ensino funda-
mental. Segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira (Inep), em 2015, a escola contava com, aproximadamente, 506 matrículas,
25 turmas, 11 salas de aula, 46 professores, 03 turnos de funcionamento, atuando
nas modalidades pré-escola (poucas turmas), anos iniciais e finais do ensino funda-
mental e educação de jovens e adultos (noturno).
A escolha desta escola se deu por suas características típicas, tendo sido se-
lecionada para integrar a amostra do Projeto “Determinantes do Sucesso Educa-
cional no Brasil”, que teve o apoio do Observatório da Educação: parceria entre a
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), o Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e a Secreta-
ria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi). Esta
escola apresenta potencialidades e desafios similares à boa parte das escolas de
ensino fundamental de porte médio no Brasil, situada em um bairro popular, onde
é possível observar as trajetórias escolares típicas das camadas populares.
A primeira fase da pesquisa investigou trajetórias escolares de todos os alunos
ingressantes no primeiro ano em 2006, submetidos às leis que instituíram a matrí-
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cula obrigatória no 1º ano do ensino fundamental aos 6 anos de idade e a amplia-
ção desta etapa para 9 anos. Buscou-se examinar se tais mudanças contribuíram
com a regularidade da maioria das trajetórias percorridas em uma determinada
escola pública, entre 2006 e 2014. Acompanharam-se os alunos através de diários
de classe e atas de resultado final, monitorando a cada ano os alunos aprovados,
reprovados, evadidos e transferidos, entre o 1º e o 9º ano do ensino fundamental.
Assim, a partir dos resultados desse primeiro estudo longitudinal/documental,
constatou-se que, no contexto investigado, dos 53 alunos matriculados no 1º ano do
ensino fundamental em 2006, apenas 20 conseguiram concluir o 9º ano em 2014
com sucesso, ou seja, percorreram esta etapa no tempo e idade adequados, sem
reprovação ou evasão. Por outro lado, identificou-se que, em 2014, quando todos os
alunos monitorados deveriam concluir o 9º ano ensino fundamental, a reprovação
escolar havia atingindo, pelo menos, 21 trajetórias ao longo desta etapa, sendo o
ponto mais nevrálgico dos percursos escolares no contexto observado, impedindo
praticamente metade dos alunos de concluir o ensino fundamental no tempo e ida-
de adequados.
Diante dos poucos casos de sucesso, dada a massiva reprovação, bem como
os múltiplos fatores que concorrem para a reprodução de desigualdades educacio-
nais, o presente trabalho buscou identificar fatores relacionados à socialização e à
interação social por trás de algumas trajetórias escolares relativamente bem-su-
cedidas. Nesse sentido, uma vez identificados os alunos que foram aprovados em
todos os anos do ensino fundamental, do 1º ao 9º, de 2006 a 2014, rastrearam-se
seus status educacionais em 2017, quando deveriam estar concluindo o 3º ano do
ensino médio, realizando-se estudos de caso com alguns desses alunos sobre seus
processos de socialização: objeto do presente trabalho.
Metodologia
Através de estudos de caso e histórias de vida, buscou-se examinar detalha-
damente a construção de trajetórias escolares de alunos oriundos das camadas
populares, no âmbito dos processos de socialização primária e secundária. Para
tanto, realizaram-se entrevistas com os alunos cujas trajetórias foram bem suce-
dias até o final da educação básica, atentando-se para a manifestação de fatores
considerados pela literatura cientifica como determinantes dos destinos escolares,
isto é: fatores individuais, como sexo e cor; fatores familiares, os quais remetem à
posição social da família e à posse de capital econômico, cultural e social, como a
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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escolaridade de avós, pais e irmãos, à ocupação dos avós e dos pais, ao incentivo
familiar aos estudos, bem como ao acesso a oportunidades sociais, além de fatores
relacionados aos processos de socialização, como a participação em grupos extrafa-
miliares, o ingresso no mundo do trabalho, etc.
As trajetórias foram investigadas longitudinalmente. Monitoraram-se todos
os alunos da coorte selecionada a cada ano, verificando aqueles que foram apro-
vados, reprovados, evadidos e transferidos, com base em diários de classe e atas
de resultado final. Em 2017, rastrearam-se, dentre os alunos que concluíram com
sucesso o ensino fundamental em 2014, aqueles que chegaram com êxito ao 3º ano
do ensino médio em 2017. Selecionaram-se 03 casos exemplares que foram entre-
vistados espontaneamente acerca de suas trajetórias escolares, dos atores e insti-
tuições envolvidos, as relações sociais, além de eventos marcantes em suas vidas.
Primeiro caso: Gisele1
Gisele ingressou no 1º ano do ensino fundamental em 2006, aos 7 anos de
idade. Percorreu os nove anos do ensino fundamental sem ser reprovada ou evadir
da escola. Gisele é do sexo feminino e se autodeclara negra. Em 2017, cursava o
3º ano do ensino médio em uma escola pública da rede estadual de ensino e não
trabalhava fora de casa. Aos 18 anos, era solteira e sem filhos. Morava com o pai e
o irmão caçula.
Nascida em Juiz de Fora, sua família era composta por pai, mãe e cinco ir-
mãos, com idades de 11, 19, 20, 23 e 25 anos. Se autodeclaravam católicos. Todos
nasceram em Juiz de Fora. Gisele teve contato somente com os avós paternos, que
eram analfabetos – seu avô trabalhava na roça e sua avó era dona de casa. Seu
pai estudou até a 4ª série do ensino fundamental e trabalhava como autônomo na
profissão de pedreiro. Sua mãe também estudou somente até a 4ª série do ensino
fundamental e trabalhava como doméstica, porém estava desempregada. Seu ir-
mão de 11 anos de idade estava cursando o 6º ano do ensino fundamental em 2017.
Sua irmã de 19 anos parou de estudar no 1º ano do ensino médio. Sua irmã de 20
anos parou de estudar na antiga 6ª série do ensino fundamental. Sua irmã de 23
anos parou de estudar no 1º ano do ensino médio. Seu irmão de 25 anos também
parou de estudar na antiga 6ª série do ensino fundamental.
Gisele ingressou no primeiro período da educação infantil aos 4 anos de idade,
na escola pública municipal próxima de sua residência. Aos 5 anos seguiu para o
segundo período da educação infantil e aos 6 anos concluiu o terceiro período. Aos
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7 anos de idade, ingressou no 1º ano do ensino fundamental nessa mesma escola,
em que permaneceu estudando até o 9º ano do ensino fundamental, concluído aos
15 anos de idade (um ano a mais em relação à idade ideal – 14 anos –, visto que
ela ingressou no ensino fundamental de 9 anos aos 7 anos de idade, isto é, acima
da idade ideal recomendada pelas reformas educacionais – 6 anos). Gisele nunca
foi reprovada ou evadiu da escola ao longo dessa etapa, cursando o ensino regular
diurno. Ao longo de sua escolarização, sua família chegou a receber Bolsa Família
por um determinado tempo.
Ao concluir o ensino fundamental, Gisele ingressou no ensino médio em uma
escola pública da rede estadual, situada em um bairro um pouco mais distante de
sua residência. Ela e sua família consideravam essa escola de maior qualidade
em relação à escola localizada no bairro em que moravam. Acreditavam que essa
escola mais prestigiada aumentaria as chances de aprovação em processos seleti-
vos para a universidade. Além disso, os amigos de seus pais também enviariam os
filhos para essa escola pública considerada melhor. Assim, Gisele cursou o ensino
médio pela manhã, no ensino regular. Estava matriculada no 3º ano do ensino
médio em 2017, aos 18 anos de idade recém-completos.
Ao longo do ensino médio Gisele prestou o Programa de Ingresso Seletivo Mis-
to (PISM) da Universidade Federal, módulo I e II. Ao final do ano de 2017 preten-
dia realizar o módulo III. Acreditava que teria nota suficiente para ingressar no
curso de Pedagogia na Universidade Federal. Também pretendia tentar o Exame
Nacional do Ensino Médio (Enem), caso não conseguisse obter nota pelo PISM para
os cursos de Pedagogia ou Psicologia. Ela é inscrita no grupo de cotas raciais e para
estudantes de escolas públicas. Estuda em casa, por conta própria, de acordo com
as tarefas diárias. Mora com o pai e o irmão mais novo, pois seus pais se divorcia-
ram e os irmãos mais velhos são casados residindo em outros lugares. Assim, ela é
encarregada das tarefas domésticas de sua casa.
A primeira atividade remunerada de Gisele foi como babá. Começou a exercer
essa atividade aos 14 anos de idade, quando ainda estava terminando o ensino fun-
damental. Ela conta que, na época, uma amiga de sua mãe pediu para ela cuidar de
seus filhos de modo remunerado. Ela aceitou, permanecendo nessa atividade até os
17 anos de idade, quando estava no final do 2º ano do ensino médio. Aos 18 anos, no
3º ano do ensino médio, dedicava-se principalmente aos estudos.
Em relação a cursos profissionalizantes, Gisele disse que chegou a ingressar
em um curso de informática, porém não concluiu, pois a família não teve condições
de arcar com o curso até o final. Ela também chegou a fazer cursinho em uma ins-
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tituição privada, para prestar processos seletivos militares, no entanto, não chegou
a realizar as provas. Segundo Gisele, inicialmente o pai arcava com o cursinho e,
posteriormente, ela arrumou uma atividade remunerada para ajudar a arcar. Con-
tudo, havia muitas taxas (como inscrições e etc.) não previstas no orçamento e, por
isso, ela não realizou os exames.
Para Gisele, o maior incentivador de sua trajetória escolar era o seu pai. Caso
não passasse nos processos seletivos para a universidade pública ao final de 2017,
o pai tinha se oferecido para arcar com uma faculdade particular para ela não ficar
um ano sem estudar. O pai não queria que a filha “perdesse um ano tentando no-
vamente”. Segundo Gisele, a mãe sempre participou de sua vida escolar, era quem
ia às reuniões da escola, porém, o pai era quem ajudava com os deveres de casa.
De acordo com ela, “meu pai diz que a gente tem que estudar para ser alguém na
vida”. Conta que o pai mantém o pulso firme com ela e o irmão mais novo, porque
os outros irmãos já se afastaram da escola. Seu pai diz que: “não conseguiu estudar,
mas quer que os filhos consigam”. Ela diz que o pai sempre arcou com tudo dentro
de suas possibilidades, como o transporte para a escola, eventos extraescolares etc.
Além do pai, Gisele contou que a mãe de seu namorado também incentivava
muito seus estudos, dizendo que: “ela tinha que ser uma mulher independente”.
Segundo Gisele, a escola era uma de suas principais fontes de informação sobre as
possibilidades de continuar os estudos. Ressaltou que os diretores e coordenado-
res conversavam com os alunos, indicavam processos seletivos, explicavam como
conseguir isenção para a inscrição etc. Em relação aos planos para o futuro, disse
que pretende concluir uma faculdade, conseguir um bom emprego, estabilizar-se e
depois construir uma família.
Segundo caso: Marina
Marina, o segundo caso, ingressou no 1º ano do ensino fundamental em 2006,
aos 7 anos de idade. Percorreu o ensino fundamental sem ser reprovada ou evadir
da escola. Marina é do sexo feminino e se autodeclara parda. Em 2017 estava cur-
sando o 3º ano do ensino médio e dedicava-se somente aos estudos. Aos 18 anos, era
solteira e sem filhos. Morava com os pais.
Nascida na cidade de Juiz de Fora/MG, sua família nuclear era composta por
pai, mãe e a filha única. Se autodeclaravam evangélicos. Seus avós maternos e pa-
ternos nasceram em outra cidade do estado de Minas Gerais. Seus avós maternos
eram analfabetos – sua avó materna era lavadeira e seu avô materno carpinteiro e
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pedreiro. Seus avós paternos estudaram até a 2ª série do ensino fundamental – sua
avó paterna era dona de casa e seu avô trabalhava com gado. Sua mãe estudou até
a 8ª série do ensino fundamental e trabalhava como costureira autônoma. Seu pai
estudou até a 4ª série do ensino fundamental e trabalhava como frentista e vigia
noturno.
Marina ingressou no primeiro período da educação infantil aos 3 anos de ida-
de, em uma escola particular de tempo integral, situada no bairro vizinho ao que
morava. Aos 4 anos seguiu para o segundo período e aos 5 anos de idade concluiu a
educação infantil. No entanto, quando os pais de Marina foram matricular a filha
no 1º ano do ensino fundamental, na escola pública municipal do bairro, uma vez
que ela havia ingressado na educação infantil abaixo da idade recomendada, ela
teve a sua matrícula indeferida, devido à coorte etária (idade mínima de 6 anos
completos). Diante disso, a escola propôs que ela cursasse novamente o segundo
período da educação infantil, até chegar à idade “adequada”, e assim ela o fez.
Aos 7 anos de idade, Marina ingressou no 1º ano do ensino fundamental. Nes-
se momento, ela já havia cursado o segundo período da educação infantil por duas
vezes e já tinha aprendido a ler e a escrever, e, até mesmo, esboçar letra cursiva,
destacando-se dos colegas de turma. Segundo ela, seus pais foram chamados à
escola diversas vezes, devido à filha ser adiantada em relação à turma. Marina
cursou o ensino fundamental diurno e regular, sem ser reprovada ou evadir da
escola, concluindo essa etapa em 2014.
Ao concluir o ensino fundamental, ela e sua família optaram por uma escola
pública estadual, em suas palavras, “de maior qualidade”, para cursar o ensino
médio, uma vez que consideravam a escola pública estadual do bairro ruim. Contou
que ela e os pais pesquisaram várias escolas, até mesmo particulares. Todavia,
sua família descartou a escola particular, principalmente devido às possibilidades
proporcionadas pelas políticas de cotas no ensino superior para estudantes de es-
colas públicas. Segundo ela, sua mãe sempre acreditou nos “nossos direitos”. “A
educação pública é um direito, temos que lutar”.
Assim, ela foi matriculada no ensino médio na escola pública estadual consi-
derada de maior prestígio. Ao ingressar no 1º ano do ensino médio, aos 15 anos de
idade, inicialmente, Marina teve problemas de adaptação à nova escola. Disse que
tinha medo, era tímida e demorou a se integrar à turma e fazer novas amizades.
Posteriormente, adaptou-se. Aos 18 anos de idade, cursava o 3º ano do ensino médio,
nunca foi reprovada ou evadiu da escola, cursando o ensino regular diurno. Seus pais
arcavam com o transporte, visto que a escola não era tão próxima de sua residência.
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Ao longo do ensino médio, Marina prestou o Programa de Ingresso Seletivo
Misto (PISM) da Universidade Federal. Já prestou o módulo I e II, e, em 2017,
prestaria o módulo III. Ela se inscreveu no grupo de cotas raciais e para estudantes
de escolas públicas. No 2º ano do ensino médio ingressou em um cursinho prepara-
tório para o PISM, o qual frequentava duas vezes por semana, em uma instituição
particular. Sua mãe era quem arcava com os custos. Marina acreditava que suas
notas eram adequadas e que conseguiria ingressar na universidade pública, no
curso de Odontologia.
Em relação a cursos diversos, disse que fez informática, quando tinha entre
9 e 10 anos de idade. Também disse que já cursou Inglês, por dois anos, durante o
ensino médio – ambos os cursos em instituições privadas, financiados pelos pais.
Além desses, Marina fez cursinho para prestar o exame do Instituto Federal de
Educação Ciência e Tecnologia do Sudeste, para o curso de Técnico de Metalurgia,
porém, alegou que não era bem o que ela queria, pois visava ter tempo para estudar
e ingressar na universidade. Assim, ela até obteve nota, mas não quis ingressar no
curso técnico, pois, se assim fosse, ela não teria tempo para estudar para o PISM.
Segundo Marina, os pais são os maiores incentivadores de sua trajetória esco-
lar. Além deles, ela diz ter uma amiga um pouco mais velha (que então cursava a fa-
culdade de enfermagem na Universidade Federal), considerada uma das principais
pessoas que incentiva e informava sobre as oportunidades, como o PISM e o Enem.
Essa amiga é quem falava sobre a importância de fazer uma faculdade. Marina diz
que é muito grata a essa amiga e que, se não fosse por ela, talvez nem estivesse na
escola. Foi essa amiga quem a levou para conhecer o campus universitário.
Além da família e da amiga, Marina diz que sempre contou com o apoio de al-
guns professores, principalmente aqueles com quem tinha mais afinidades. Conta
que teve graves problemas familiares ao final do ensino fundamental e início do
ensino médio, como a depressão da mãe, problemas de saúde e violência na família,
e, com isso, alguns professores específicos, dos quais ela se lembra dos respectivos
nomes com carinho, foram fundamentais em ajudar a passar por esse momento
difícil. Ela conta que também chegou a ter problemas na escola com outros profes-
sores, que não sabiam ou entendiam a situação pela qual ela passava.
Marina nunca exerceu atividades remuneradas, exceto algumas vezes em que
vendeu pulseiras na escola durante o ensino fundamental, ou, recentemente, quan-
do vendeu cupcake com sua madrinha em uma feira. Segundo ela, os pais nunca a
deixaram trabalhar. Ela conta que fez a carteira de trabalho, arrumou emprego,
mas os pais embargaram, pedindo para a filha única se dedicar somente aos estu-
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dos. Em relação aos planos para o futuro, diz que pretende concluir a faculdade e
montar seu consultório odontológico.
Terceiro caso: Pedro
O terceiro caso ingressou no 1º ano do ensino fundamental em 2006, aos 6 anos
de idade, percorrendo o ensino fundamental sem ser reprovado ou evadir da escola.
Pedro é do sexo masculino e se autodeclara negro. Em 2017, aos 17 anos de idade,
estava cursando o 3º ano do ensino médio e trabalhava como auxiliar de transporte
escolar. Era solteiro e sem filhos. Morava com o pai, a mãe e os irmãos.
Nascido em Juiz de Fora, sua família nuclear era composta por pai, mãe, um
irmão de 14 anos e uma irmã de 24 anos de idade. Sua família se autodeclarava
católica. Seus avós paternos nasceram em Juiz de Fora. Sua avó paterna estudou
até o ensino médio e trabalhou como cozinheira e faxineira. Seu avô paterno era
trabalhador rural e Pedro não sabe sua escolaridade. Sua avó materna nasceu no
estado da Bahia, era analfabeta e dona de casa. Pedro não teve contato com o seu
avô materno. Seu pai nasceu em Juiz de Fora, estudou até o 2º ano do ensino médio
e trabalhava como técnico de purificadores. Sua mãe nasceu no estado da Bahia,
estudou até a 7ª série do ensino fundamental e trabalhava como copeira, porém
estava afastada devido a problemas de saúde. Pedro possui um irmão de 14 anos,
que, em 2017, estava cursando o 8º ano do ensino fundamental, e uma irmã de 24
anos, formada em direito, cursado em uma faculdade particular.
Aos 3 anos de idade, Pedro ingressou em uma creche pública no bairro vizinho.
Aos 4 anos de idade, ingressou no primeiro período da educação infantil, na escola
pública municipal do bairro. Aos 6 anos de idade, ingressou no 1º ano do ensino
fundamental nessa mesma escola. Cursou essa etapa no ensino regular diurno,
sem ser reprovado ou evadir da escola, concluindo em 2014, aos 14 anos de ida-
de. Ao concluir o ensino fundamental na escola pública municipal próxima de sua
residência, Pedro e sua família prefiram uma escola pública estadual situada em
outro bairro, com o ensino considerado “mais forte”, para ele cursar o ensino médio,
pois a escola do bairro era considerada muito precária. Contudo, também alegou
que sua irmã estudou na escola do bairro e foi para a faculdade. Além disso, diz ter
escolhido a “escola melhor”, porque seus amigos iriam estudar lá. Durante certo
período de sua escolarização, seus pais receberam Bolsa Família.
Aos 15 anos de idade Pedro ingressou no 1º ano ensino médio e, aos 17 anos,
estava cursando o 3ª ano. Nunca foi reprovado ou evadiu da escola, estudando no
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ensino regular diurno. Pedro diz que sempre foi um aluno “bagunceiro”, que gosta-
va de conversar com os colegas durante as aulas, mas que sempre foi compromis-
sado com a escola e não gostava de tirar notas vermelhas. Segundo ele, “deve ser
horrível repetir um ano inteiro”. Ao longo do ensino médio, prestou o PISM I e II e,
em 2017, prestaria o módulo III. Porém, alega que suas notas não são seriam su-
ficientes para o curso que optou de Engenharia de Produção. Além disso, também
pretendia prestar o Exame Nacional do Ensino Médio. Pedro é inscrito no grupo de
cotas raciais e para estudantes de escolas públicas. Segundo ele, caso não consiga
ingressar pelo PISM, continuará tentando ingressar na universidade pública pelo
Enem e, talvez, fará cursinho preparatório.
Pedro começou a exercer atividade remunerada durante o 2º ano do ensino
médio. Alegou que começou a trabalhar não porque precisava ajudar em casa, mas
para ter o próprio dinheiro. Seu pai incentivava o trabalho. Sua primeira atividade
remunerada, na qual permanecia atuando, era de auxiliar de transporte escolar,
exercida em meio turno, depois da escola. Durante o ensino médio, fez um curso
profissionalizante de elétrica automotiva, em uma instituição particular. O pai foi
quem ofereceu a oportunidade e arcou financeiramente com o curso. Pedro preten-
dia procurar um emprego na área no próximo ano, quando completasse 18 anos de
idade. Em relação a outros cursos, conta que, durante a infância e adolescência, fez
escolinha de futebol e aulas de Muay Thai, ambas em instituições privadas. O pai
sempre financiou suas atividades.
Segundo Pedro, o pai é o maior incentivador de sua trajetória escolar. Segun-
do ele, seu pai sempre diz: “se não estudar, vai levar uma coça”. A mãe também
incentivava a sua trajetória escolar. A mãe era quem ia às reuniões escolares, pois
o emprego do pai era menos flexível em termos de horário. Pedro conta que seu pai
diz: “você precisa estudar para não ficar igual a mim, trabalhando muito em um
trabalho cansativo. Tem que estudar para ter um futuro melhor”. Os pais o incen-
tivavam a cursar uma faculdade e buscavam se informar sobre as oportunidades,
por exemplo, sobre o PISM e o Enem. De acordo com Pedro, “Deus e a batalha dos
pais no dia a dia são seus principais motivadores”.
Em 2018, Pedro pretendia se alistar no serviço militar, uma vez que completa-
ria 18 anos. Ele quer servir, pois o seu pai já serviu e diz que: “é bom para aprender
a ter mais disciplina”. Pedro também vislumbrava a carreira militar e, ao final de
2017, prestaria o exame da ESA (Escola de Sargentos das Armas). Ele estudava
em casa por conta própria, depois do trabalho, porém contou que chegava em casa
cansado e queria fazer outras coisas, por exemplo, navegar na internet. Caso não
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passasse, no ano seguinte tentaria novamente. Em suas palavras o plano é “traba-
lhar, porque não tem outro jeito, e continuar tentando o Enem”.
Discussão sobre os casos e seus processos de socialização e interação social
Os casos analisados representam trajetórias escolares de jovens nascidos em
famílias de camadas populares. No entanto, apesar de semelhanças econômicas,
sociais e culturais entre as famílias, essas desenvolvem diferentes maneiras de
enfrentar as adversidades sociais relacionadas à origem. Em função de experiên-
cias próprias, as famílias desenvolveram estratégias originais de motivar e super-
visionar a trajetória escolar dos filhos, guardando traços comuns de um ethos que
valoriza a educação, a disciplina e as perspectivas de realização em longo prazo,
principalmente quando os filhos se mostram propensos. Em todos os processos de
socialização familiar, foi possível perceber indícios de que os pais transmitem, den-
tro de suas limitações, a importância da educação para o futuro dos filhos para,
pelo menos, conseguirem “um bom emprego” e “ser alguém na vida”. Todos os casos
entrevistados mencionaram a importância que a família atribui à educação, mes-
mo sem possuir altos níveis de escolaridade.
Diante do reconhecimento da importância da educação, pode-se dizer que as
famílias avaliam os benefícios futuros (longo prazo) da educação, buscando inves-
tir, dentro de suas possibilidades, também em cursos profissionalizantes, prepara-
tórios para processos seletivos, e atividades de outras naturezas, tais como espor-
tes, almejando melhorar a formação e inserção social dos filhos, somando-se a isso
o almejado diploma de nível superior. De um modo ou de outro, os investimentos
familiares em cursos profissionalizantes e de outras naturezas proporcionam am-
bientes diferenciados de socialização, que agregaram valores, motivações, expecta-
tivas, hábitos, atitudes e habilidades aos filhos. O núcleo familiar, principalmente
os pais, em todos os casos são apontados como os maiores incentivadores e finan-
ciadores da trajetória escolar dos sujeitos da pesquisa. Processos de socialização
extrafamiliar e a interação social com amigos, vizinhos, namorados e outras pes-
soas, que incentivam a educação, também ajudaram a direcionar suas trajetórias.
Destaca-se também a forma como é gerido o ingresso no mundo do trabalho.
Dentre os três casos examinados, dois já haviam exercido atividade remunerada
extrafamiliar, exceto aquele que era filho único, cujos pais não permitiam o tra-
balho extradoméstico. Os demais começaram a exercer atividades remuneradas
fora de casa durante o ensino fundamental e o ensino médio, mas sem que com-
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prometesse nem prejudicasse os estudos. O exercício de atividades remuneradas
é justificado pela necessidade de ter o próprio dinheiro, ter um poder de consumo
que a família não tem condições de proporcionar, dada a sua situação econômica e
social. O ingresso no mundo do trabalho foi relativamente precoce, mas em tempo
parcial e sem comprometer a escola, que continuou sendo prioritária. Aparece como
alternativa para preencher o tempo livre, como atividade que agrega disciplina,
socialização com pessoas mais maduras e o uso das habilidades e competências
aprendidas na escola. “No tipo ideal”, nessa idade os jovens deveriam se dedicar
somente aos estudos; mas, nesses casos, foi algo complementar e mutuamente re-
forçado. Nota-se também que aconteceu informalmente, isto é, a atividade é de-
sempenhada junto a um parente ou conhecido, por contrato somente verbal, com
baixa remuneração, mas relevante por razões simbólicas.
Quanto à estrutura de oportunidades educacionais e sociais, destaca-se que as
políticas públicas de expansão e democratização do ensino superior aparecem em
evidência em todos os casos examinados, que usufruíram da ampliação do acesso em
função de cotas sociais e raciais. Dentre as políticas sociais, também se destaca a
Bolsa Família. Em todos os casos, essas políticas se revelaram importantes para as
famílias, para a continuidade educacional e um possível acesso à educação superior.
Evidencia-se que jovens das camadas populares têm aspirações educacionais ele-
vadas. Porém, são historicamente escassas as oportunidades. Quando surgem, elas
se tornam objeto de intenso desejo e projetos de vida de vários estratos populares.
Dentre as desigualdades que caracterizam a estrutura da sociedade brasilei-
ra, quando se inclui o recorte racial, seus contornos se tornam mais severos. Diante
disso, no que tange ao acesso à educação superior, os debates públicos sobre as
ações afirmativas têm sido polêmicos, gerando extensa produção acadêmica, tanto
sobre os princípios das ações afirmativas, como sobre os processos de implantação
das políticas de cotas nas instituições de ensino superior e os resultados dessa
medida. As cotas nas universidades públicas se justificam a partir da extrema desi-
gualdade racial existente no país, principalmente no que se refere ao acesso ao en-
sino superior, dadas, dentre outras coisas, a herança escravocrata, a manutenção
dos privilégios de classe, o investimento tardio na educação pública, bem como o
desigual acesso à estrutura de oportunidades, que caracteriza a sociedade brasilei-
ra. Assim, nos últimos anos, tem-se discutido de forma mais efetiva a implantação
de políticas sociais que visam a minimizar um quadro considerado inaceitável para
um país como o Brasil (LIMA, 2010, 2012).
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Por fim, observou-se que, por trás de trajetórias escolares bem sucedidas entre
alunos das camadas populares, além dos processos de socialização e interação fa-
miliar mais conhecidos, descritos e analisados, somam-se outros processos sociais
(GRANOVETTER, 1983), como oportunidades franqueadas por novas políticas pú-
blicas, além das experiências singulares como a forma de inserção no mercado de
trabalho, relacionamentos afetivos motivadores e a interação social positiva com
parentes, amigos, vizinhos e outros que incentivam a educação. Todos eles parti-
cipam, de maneiras mais sutis ou mais proeminentes, do processo de construção
dessas trajetórias escolares de sucesso.
Considerações nais
Este trabalho investigou processos de socialização associados a trajetórias es-
colares de sucesso, entre alunos provenientes das camadas populares. Foi privile-
giada a geração escolar 2006, que deveria concluir o 3º ano do ensino médio em 2017.
Realizaram-se estudos de caso com três alunos selecionados desta coorte que foram
aprovados continuamente do ensino fundamental ao ensino médio, representando
exceções. Observou-se que processos de socialização favoráveis concorreram para o
êxito dessas trajetórias. Foi possível identificar que, na socialização primária, ape-
sar da baixa escolaridade e condições socioeconômicas da família, sobressaem-se
os incentivos verbais, projeções de expectativas e diálogos relacionados à educação
dos filhos, bem como a explícita crença na importância da escola para o futuro
dos mesmos. A memorização/interiorização desses valores fica evidente nas falas
dos entrevistados. Nesse sentido, a interação familiar através do acompanhamento
da vida escolar dos filhos se mostra crucial. Acrescentam-se os financiamentos de
atividades educacionais extras, dentro das possibilidades de cada família, através
de cursos diversos, contribuindo com o desenvolvimento de habilidades técnicas e
pessoais, colaborando para uma inserção social mais promissora.
Nota-se também que, nos processos de socialização, as famílias e os indivíduos
cultivam semelhanças e singularidades em suas maneiras de conduzir os processos
educativos, com aspirações próprias e motivações ímpares. Destaca-se que as opor-
tunidades proporcionadas pelo núcleo familiar (materiais e simbólicas) são extre-
mamente importantes e grandes diferenciais nas trajetórias. Somam-se a elas as
oportunidades educacionais viabilizadas por meio de políticas públicas, fundamen-
tais para garantir o acesso educacional para aqueles que estão em condições des-
vantajosas. Assim, conclui-se que, apesar do background social dizer muito sobre
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os processos de construção de trajetórias escolares, também se tornou necessário
considerar os processos de socialização primária e secundária como capazes de re-
verter ciclos reprodutores negativos e transmitir valores positivos relacionados à
educação e aos seus benefícios.
Nota
1 Todos os nomes são fictícios para preservar a identidade dos entrevistados, o anonimato dos envolvidos, a
confidencialidade dos dados privados e o uso estritamente ético e acadêmico das informações.
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* Mestre em Educação pela UPF; doutora em Educação pela UFRGS. Professora Associada da Universidade do Estado
de Santa Catarina (Udesc); docente do Mestrado Prossional em Educação Inclusiva em Rede – Profei/Udesc. Orcid:
https://orcid.org/0000-0002-3842-5296. E-mail: karina.marcon@udesc.br
** Mestrado em Ciência da Computação (UFSC). Doutorado e pós-doutorado em Informática na Educação (PGIE/
UFRGS). Professora Adjunta I da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Docente do Instituto de Educação, da
área de Tecnologias Educacionais. Orcid: http://orcid.org/0000-0003-3685-0579. E-mail: cristiane.koehler@ufmt.br
Recebido em: 30/07/2020 – Aprovado em: 16/12/2020
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i1.12973
Interação em mídias sociais e socialização: algumas interfaces
Interaction in social media and socialization: some interfaces
Interacción en medios sociales digitales y socialización: algunas conexiones
Karina Marcon*
Cristiane Koehler**
Resumo
Este artigo apresenta uma discussão sobre as tecnologias digitais de rede e as mídias sociais como dispositivos
para um convívio sociointelectual entre os sujeitos em interação. Discutem-se os paradigmas comunicacionais
de massa e de rede no contexto das mídias sociais, suas potencialidades para os processos comunicacionais, a
abertura dos polos de emissão de mensagens e a possibilidade de o sujeito participar de forma mais efetiva nos
processos comunicativos. Analisa-se a coexistência desses dois paradigmas comunicacionais em um contexto
de convergência midiática, no qual as relações sociais acontecem com diferentes formatos de mídias, potencia-
lizando a interação social entre os sujeitos acerca dos conteúdos midiáticos decorrentes dessas inter-relações.
Apresenta-se, ainda, o conceito de interação social em rede e sua atuação na natureza das relações entre os su-
jeitos envolvidos no sistema comunicacional, buscando exprimir como o processo comunicacional se constitui
em um contexto de rede. A interação social em rede somente acontece em tecnologias digitais que disponibili-
zam recursos tecnológicos nos quais os sujeitos possam estabelecer conexões sociais.
Palavras-chave: mídias sociais; redes sociais; interação social; interação em rede.
Abstract
This article presents a discussion on digital network technologies and social media as devices for a social-in-
tellectual conviviality between subjects in interaction. Mass and network communication paradigms are dis-
cussed in the context of social media, their potential for communicational processes, the opening of message
emission poles and the possibility for the subject to participate more eectively in communicative processes.
The coexistence of these two communicational paradigms is analyzed in a context of media convergence, in
which social relations happen with dierent media formats, enhancing the social interaction between subjects
about the media content resulting from these interrelations. It also presents the concept of social interaction in
a network and its role in the nature of the relationships between the subjects involved in the communicational
system, seeking to express how the communicational process is constituted in a network context. Social network
interaction only occurs in digital technologies that provide technological resources in which the subjects can
establish social connections.
Keywords: social media; social networks; social interaction; network interaction.
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Interação em mídias sociais e socialização: algumas interfaces
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Resumen
Este texto se presenta una discusión sobre las tecnologías digitales de red y los medios sociales como disposi-
tivos de convivencia socio-intelectual entre los sujetos en interacción. Se argumenta acerca de los paradigmas
comunicacionales de masa y de red en el contexto de los medios sociales, sus potencialidades para los procesos
comunicacionales, la apertura de los polos de emisión de mensajes y la posibilidad del sujeto participar de forma
constante en los procesos comunicativos. Se analiza la coexistencia de estos dos paradigmas comunicacionales
en un contexto de convergencia mediática, en el que las relaciones sociales ocurren con diferentes formatos de
medios, potenciando la interacción social entre los sujetos sobre los contenidos mediáticos de estas interrelacio-
nes. Se presenta, aún, el concepto de interacción social en red y su actuación en la naturaleza de las relaciones
entre sujetos concernidos en el sistema comunicacional, buscando argumentar como el proceso comunicacio-
nal se constituye en un contexto de red. La interacción social en red sólo ocurre en tecnologías digitales que
cuentan con recursos tecnológicos en los cuales los sujetos puedan establecer conexiones sociales.
Palabras-clave: medios sociales digitales; redes sociales; interacción social; interacción en red.
Introdução
O avanço tecnológico impulsionou uma transformação midiática, ocasionando
novas formas de pensar e fazer comunicação. Em virtude da convergência entre
as telecomunicações e os computadores houve uma ressignificação dos processos
comunicativos, que deixam de ser unidirecionais e analógicos, reconfigurados por
ações e sistemas que anulam a distância e o tempo, redimensionando a capacidade
comunicacional e tornando o homem capaz de participar de processos comunicati-
vos até então impensáveis (MARCON, 2008).
A partir do reconhecimento desse contexto social, Jenkins (2009, p. 29) nos
coloca a pensar sobre a cultura da convergência, “[...] onde as velhas e as novas mí-
dias colidem, onde mídia corporativa e mídia alternativa se cruzam, onde o poder
do produtor de mídia e o poder do consumidor interagem de maneiras imprevisí-
veis”. Diferente do que acontecia com os meios de comunicação de massa, chama-
dos por Jenkins (2009) de velhas mídias, percebemos que existe uma descentrali-
zação do poder midiático, antes concentrado nos produtores. Agora, produtores e
consumidores articulam-se entre si, e não se faz mais mídia sem que o papel ativo
do consumidor seja considerado.
O argumento de Jenkins (2009) é que a convergência não pode ser compreen-
dida somente como um processo tecnológico que unifica múltiplas funções dentro
dos mesmos aparelhos. “Em vez disso, a convergência representa uma transfor-
mação cultural, à medida que consumidores são incentivados a procurar novas
informações e fazer conexões em meio a conteúdos de mídia dispersos” (JENKINS,
2009, p. 29-30). Em outras palavras, diz respeito principalmente à relação dos se-
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res humanos com os diferentes formatos de mídias e às interações entre os sujeitos
acerca dos conteúdos midiáticos decorrentes dessas inter-relações.
Jenkins (2009) entende que a convergência não advém por meio de apare-
lhos, por mais sofisticados que sejam. A convergência acontece dentro do cérebro
do consumidor individual e em suas interações sociais com outros. Considerando a
expressão inteligência coletiva cunhada por Pierre Lévy, o autor propõe que o con-
sumo se tornou um processo coletivo: “nenhum de nós pode saber tudo; cada um de
nós sabe alguma coisa; e podemos juntar as peças, se associarmos nossos recursos e
unirmos nossas habilidades. A inteligência coletiva pode ser vista como uma fonte
alternativa de poder midiático” (JENKINS, 2009, p. 30).
Na concepção de Jenkins (2009), o pensamento convergente implica direta-
mente no remodelamento da própria cultura. Lemos (2003) já argumentava que o
avanço tecnológico provocou um atravessamento das tecnologias na cultura con-
temporânea, caracterizando e impulsionando o desenvolvimento da cibercultura,
ou seja, a cultura contemporânea marcada pela presença das tecnologias digitais
de rede.
Essa nova dinâmica instituída pelas mídias digitais é totalmente diversa dos
meios de comunicação analógicos. Kirkwood (2006) atenta que os sujeitos dispen-
sam muito tempo criando conteúdos para sites e comunidades das quais fazem
parte, mantém blogs, fazem filmes, disponibilizam links, escrevem resenhas, com-
partilham informações, formam comunidades. Ainda, a autora ressalta que eles
fazem isso por vontade própria, unicamente através da sua motivação, para ates-
tar, confirmar, estabelecer uma presença online e para desenvolver redes sociais
e pertencer e participar de comunidades significativas. Podemos considerar isso
como um movimento intensificado principalmente a partir da virtualização do co-
nhecimento e da convergência midiática.
É a partir deste contexto que propomos neste trabalho a discussão sobre o
potencial das mídias sociais para a socialização dos sujeitos, considerando que es-
ses espaços de circulação social materializam a diversificação e alternância entre
os papéis de emissão e recepção nos processos comunicativos. Para isso, em um
primeiro momento estabelecemos diferenças entre dois paradigmas comunicacio-
nais que coexistem, o paradigma das mídias de massa e o paradigma das redes.
Na sequência, buscamos contextualizar as diferenças entre mídias sociais e redes
sociais, para então trazer à discussão a interação social nos sites de redes sociais,
bem como as relações que se estabelecem entre as mídias sociais e a socialização
nesse contexto sociotécnico digital.
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Paradigma comunicacional das mídias de massa e paradigma comunicacional
das redes
Por muito tempo, em relação à mídia, o ser humano esteve imerso em uma
cultura de passividade e reprodução, uma vez que os processos tecnológicos e mi-
diáticos existentes impossibilitavam uma participação mais efetiva do sujeito nos
processos comunicativos. Por possuir um modelo comunicacional unidirecional, de
um para todos, os processos de comunicação de massa são previamente estabele-
cidos dentro de uma estrutura comunicacional emissor-meio-mensagem-receptor,
paradigma de transmissão de mensagens que busca atingir o maior número possí-
vel de pessoas.
Os meios de comunicação de massa (MCM) suportam processos de comunica-
ção nos quais não há trocas nem interação entre os usuários e emissores das men-
sagens, e, uma vez que possuem grande alcance na audiência, procuram perpetuar
a condição de consumidores aos sujeitos, seja de bens privados ou de concepções
(CANCLINI, 2001). A comunicação midiática incita, entre produtos e serviços, esti-
los de vida, culturas e ideais. É nesse sentido que Canclini (1998, p.05) afirma que
“[...] o rádio e a televisão se tornaram veículos de massa, desde meados do século, e
homogeneizaram o desenvolvimento cultural, imprimiram seu estilo comunicativo
a muitas interações sociais e se converteram no cenário decisivo para a constitui-
ção da vida pública”.
Para Stuart Hall (2003), a mensagem pode ter várias leituras e entendimen-
tos porque, muito além da mensagem e seu real significado, existe um complexo
eixo de percepções emocionais, ideológicas ou comportamentais, que se encontram
entre a mensagem e seu receptor. Por mais que se saiba que a recepção de mensa-
gens não é, em sua totalidade, passiva – uma vez que cada ser humano é singular
e as interpreta de forma diferenciada (HALL, 2003) – é importante salientar que
diante dos meios de comunicação de massa o indivíduo não possui interatividade,
ou possui interatividade limitada. Nas mídias de massa, o feedback – canal de
retorno – é restrito e não estimula a participação.
Apesar dos ruídos que podem existir entre o receptor e a mensagem destinada
a ele, a mensagem pode modificar comportamentos e influenciar as pessoas. A todo
instante os sujeitos são bombardeados por publicidade e propaganda nos meios de
comunicação de massa e na internet, ofertando status, sensação de pertencimento,
ideais, realização de sonhos e, desta forma, ampliando as portas para o consumo.
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Neste mesmo contexto, se por um lado os meios de comunicação de massa
instituem um contexto de verticalidade e massificação, por outro as tecnologias de
rede possuem potencial para uma ressignificação dessa lógica e dessa postura. Tal
mudança é possível a partir do momento em que essas informações deixam de ser
centralizadas, passando a ser de domínio de participação pública.
A internet, segundo Castells (2005), tem uma lógica reticular, e deve ser con-
siderada uma revolução e não uma evolução dos suportes comunicacionais. Neste
sentido, há a possibilidade do rompimento de um paradigma, que antes era ver-
tical, passando para uma lógica reticular, em que se potencializam a autoria, a
colaboração, a reflexão conjunta e crítica sobre as mensagens e a construção de
caminhos de sistematização e contraposição das informações.
Surge, portanto, a necessidade de inclusão do cidadão nessa dinâmica das tec-
nologias de rede, mas numa perspectiva de rompimento com a lógica globalizada
e mercantilista dos meios de comunicação de massa. Com as tecnologias de rede o
cidadão tem o potencial de participar, compartilhar, interagir, pois, dessa lógica de
redes, emerge um processo diferenciado daquele apresentado até o momento, que
potencializa espaços comunicativos até então inexistentes.
Ampliam-se as fontes de informação e rompe-se gradativamente com o poder
antes exercido somente pelos meios de comunicação de massa. Castells (1999, p.
298-299) expõe que “[...] a explosão das telecomunicações e o desenvolvimento dos
sistemas de transmissão a cabo viabilizaram o surgimento de um poder de trans-
missão e difusão de informações sem precedentes [...]”.
Essas são características de uma sociedade que possui sua vivência ajustada
pelas tecnologias digitais e que foi denominada por Castells como “sociedade em
rede”. O autor considera que a sociedade em rede é aquela “cuja estrutura social foi
construída em torno de redes de informação a partir da tecnologia de informação
microeletrônica estruturada na internet” (CASTELLS, 2005, p. 87). Nessa socie-
dade em rede, redimensionam-se todos os aspectos políticos, econômicos, sociais e
culturais, uma vez que os mesmos são ressignificados pelas tecnologias digitais. A
coletividade participa de um processo no qual as tecnologias são integrantes do seu
desenvolvimento, pois caracterizam uma situação de “conectividade generalizada”
(LEMOS, 2003) que atinge todos os setores, criando uma cultura de rede apresen-
tada em diferentes manifestações.
Na linha de raciocínio traçada até aqui, surge, então, uma relação da socieda-
de com as tecnologias de rede, a chamada cibercultura, caracterizada como “a cul-
tura contemporânea marcada pelas tecnologias digitais” (LEMOS, 2003). Poten-
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cialmente, permite o rompimento da verticalidade imposta durante muito tempo
pelas mídias de comunicação de massa, possibilitando ao indivíduo a interação com
processos comunicacionais que superam os meios convencionais de comunicação,
pois potencializam a abertura dos polos de emissão de mensagem.
Aquele que, antes, era espectador, passa a interagir com os meios. As mesmas
tecnologias que potencializam a dinâmica da globalização suportam essa nova con-
figuração social denominada cibercultura. A cibercultura nasce com as tecnologias
de rede, sendo fruto de um trabalho cooperativo em âmbito planetário. Nela há um
livre e fácil acesso à informação, um processo que está em constante renovação.
Diante disso, aponta-se para a relação das tecnologias digitais de rede com os di-
versos saberes, ou, como Lévy (2003, p. 28) menciona, com a inteligência coletiva,
entendida como “uma inteligência distribuída por toda parte, incessantemente va-
lorizada, coordenada em tempo real, que resulta em uma mobilização efetiva das
competências”. O autor complementa que esta é uma inteligência distribuída em
toda a parte porque ninguém sabe de tudo, todos sabem de alguma coisa e todo o
saber está na humanidade. Na coordenação das inteligências em tempo real, os
acontecimentos, as decisões, as ações e as pessoas estariam situados nos mapas
dinâmicos de um contexto comum, e transformariam, continuamente, o universo
virtual em que adquirem sentido (LÉVY, 2003, p. 29).
Na dimensão da cibercultura, como aponta Lévy (2003, p. 30), “deixar de reco-
nhecer o outro em sua inteligência é recusar-lhe sua verdadeira identidade social
[...]”. Frente a isso, é necessário salientar que essas potencialidades reticulares
portadas pelas tecnologias de rede – nas quais há diferentes formas de troca de
informações, de dados, de arquivos – possibilitam descentralizar o poder comunica-
cional que antes existia com os meios de massa e apontam caminhos para que essas
inteligências individuais compartilhadas, constituam, efetivamente, a inteligência
coletiva, pois não há detentores do conhecimento uma vez que ele se torna univer-
sal. Lemos (2004, p. 13) evidencia essa característica ao afirmar que:
A cibercultura, esse conjunto de processos tecnológicos, midiáticos e sociais emergentes
a partir da década de 70 do século passado com a convergência das telecomunicações, da
informática e da sociabilidade contracultural da época (Breton, 1990; Castells, 1996), tem
enriquecido a diversidade cultural mundial e proporcionado a emergência de culturas lo-
cais em meio ao global supostamente homogeneizante. Uma das principais características
dessa cibercultura planetária é o compartilhamento de arquivos, música, fotos, filmes, etc.,
construindo processos coletivos.
Nesse âmbito, a cibercultura propõe uma emergência das culturas locais em
âmbito global. São esferas menores da sociedade que, agora, podem compartilhar
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informações e fazerem-se ver no tempo e no espaço mundial. O potencial da ciber-
cultura possui uma reversão da lógica global centralizadora, pois os limites geográ-
ficos deixam de ser limitantes e condicionantes.
Essa desterritorialização proporcionada pela cibercultura possibilita dife-
rentes trocas sociais, que são caracterizadas por diversos formatos de ambientes:
fóruns, sites, blogs, sites de relacionamento, jogos eletrônicos, mídias sociais, siste-
mas de comunicação instantânea, entre outros. Independentemente de etnia, na-
cionalidade, cultura, sexo, idade, classe econômica ou qualquer outra característica
que possa vir a tornar o ser humano excludente ou excluído, a cibercultura torna
global o que antes era somente local. Os processos de territorializações, de acordo
com Lemos (2007, p. 03), demonstram que:
A compressão do espaço-tempo institui o “tempo real” e a possibilidade de acesso a infor-
mações em todos os espaços do globo. O desencaixe nos permite vivenciar processos globais
não enraizados na nossa tradição cultural. As mídias eletrônicas criam assim processos
desterritorializantes em níveis político, econômico, social, cultural e subjetivo.
Essas mídias que desterritorializam possibilitam também a criação de novos
territórios, em um processo de reterritorialização. Se “toda territorialização é uma
significação do território (político, econômico, simbólico, subjetivo) e toda desterri-
torialização, re-significação, formas de combate à inscrição da vida em um ‘terroir’,
linhas de fuga” (LEMOS, 2007, p. 04), a reterritorialização é a possibilidade que
o sujeito tem, no ciberespaço, de encontrar algo que o remeta ao seu próprio ter-
ritório – através de blog, e-mail, sistema de posicionamento global (GPS) – enfim,
qualquer situação na qual tenha referências e localização próprias.
O ciberespaço tem sua essência em uma lógica participativa e colaborativa
de comunicação, que se dá através do contato, de trocas e de socialização. São mi-
lhares de pessoas que se constituem em nós da rede de comunicação, que têm a
possibilidade de disponibilizar e produzir informações. Como revela Lévy (1999, p.
111), “[...] essa universalidade desprovida de significado central, esse sistema da
desordem, essa transparência labiríntica, chamo-a de ‘universal sem totalidade’.
Constitui a essência paradoxal da cibercultura”.
Esse novo espaço não está vinculado ao tempo e ao local, pois é instituído a
partir da anulação das distâncias, que institui o tempo real. Para fazer parte do
ciberespaço basta estar conectado à rede, uma vez que independe dos limites geo-
gráficos e temporais, desvinculando a necessidade da presença física para o estabe-
lecimento de processos comunicacionais. Esse ambiente criado com a cibercultura
potencializa a dinâmica cultural, como aponta Lemos (2004, p. 11):
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[...] a cibercultura potencializa aquilo que é próprio de toda dinâmica cultural, a saber o
compartilhamento, a distribuição, a cooperação, a apropriação dos bens simbólicos. Não
existe propriedade privada no campo da cultura já que esta se constitui por intercruzamen-
tos e mútuas influências.
Com a liberação dos polos de emissão, uma das leis da cibercultura, segundo
Lemos, o ser humano e as práticas comunicacionais potencializam-se a produzir
nessas trocas sociais. Tais mudanças imbricam-se nas concepções vigentes sobre
as estruturas e o funcionamento da subjetividade humana, sendo “[...] usuários
interagentes de redes abertas e sem centro, nas quais ‘os sujeitos se tornam cada
vez mais instáveis, múltiplos e difusos’” (RÜDIGER, 2002, p. 100). É uma ação
que pode ser considerada democrática frente ao decurso da globalização, que até
então se presencia, tratando-se, talvez, de uma das facetas mais interessantes do
processo. Como aborda Lemos (2004, p. 13):
A riqueza de qualquer sociedade sempre está ligada à complexidade de sua cultura, isto é,
à força do seu poder criativo e empreendedor. A comunicação, neste sentido, é a forma pela
qual uma sociedade põe em marcha e intercambia o conjunto de seus empreendimentos,
sejam eles artísticos, sociais, políticos, científicos ou técnicos. Uma cultura complexa é uma
cultura plural, aberta, circulando livremente pelo corpo social. A criatividade está na ori-
ginalidade da circulação de diversas formas culturais, incluindo aí sua riqueza artística e
intelectual, seu habitus social, sua criatividade simbólica, imaginária, científica e técnica.
Essas capacidades comunicativas que se expandem na cibercultura são resul-
tados de processos que englobam múltiplas influências, daí o destaque reservado
ao potencial da cibercultura em processos comunicativos, pois, efetivamente, há
um amplo enriquecimento cultural e uma intensa troca de conhecimentos. Lemos
(2007, p. 14-15) expõe claramente a ideia comunicacional da internet:
[...] menos do que uma nova mídia como os mass media (jornais, rádio, tv...), devemos pensar
o ciberespaço como um ambiente midiático, como uma incubadora midiática onde formas
comunicativas surgem a cada dia (chat, icq, fóruns, e-mail, blogs, web, etc.). A partir deste
ponto de vista, podemos afirmar que o ciberespaço é, ao mesmo tempo, forma e conteúdo
cultural, modulador de novas identidades e formas culturais.
Esse novo espaço de comunicação e interação surgido com a internet – e aqui
denominado ciberespaço – ao lado dessas diferentes formas comunicacionais, po-
tencializa o surgimento de processos interativos de tempo real, na qual a troca e a
fusão de informações demonstram a diversidade e o potencial comunicacional que
a rede possui. Esse processo de troca também é analisado por Lemos. Para o autor,
como meio,
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[...] a internet problematiza a forma midiática massiva de divulgação cultural. Ela é o
foco de irradiação de informação, conhecimento e troca de mensagens entre pessoas ao
redor do mundo, abrindo o pólo da emissão. Com a cibercultura trata-se efetivamente da
emergência de uma liberação do pólo da emissão (a emissão no ciberespaço não é controlada
centralmente; todos podem emitir), e é essa liberação que, em nossa hipótese, vai marcar a
cultura de rede contemporânea em suas mais diversas manifestações [...] (LEMOS, 2004,
p. 15, grifo do autor).
Na internet não existe um controle sobre as informações, não há uma centra-
lização, e tal situação é clara nesses espaços de interatividade. Todos são recepto-
res e emissores, não havendo limites pré-estabelecidos para isso, o que demarca a
cultura contemporânea, a cultura de rede, na qual o formato tradicional de comu-
nicação – emissor-meio-mensagem-receptor – desestabiliza-se. As mídias sociais
materializam, nesse contexto, essa diversificação e alternância entre os papéis de
emissão e recepção nos processos comunicativos, discussão que aprofundaremos a
seguir.
Mídias sociais e redes sociais
Desde que o surgimento da Web 2.0, temos acesso a uma infinidade de possi-
bilidades comunicativas que até então não tínhamos conhecimento. Lemos (2010)
já dizia que a Web 2.0 proporciona que os sujeitos deixem de ser apenas passivos
diante de uma notícia, e passem a ser ativos, comentando, compartilhando, inte-
ragindo e publicando as suas ideias. Essa possibilidade de comunicação advinda
dos recursos da Web 2.0 altera, significativamente, as interações sociais entre as
pessoas simplesmente pelo fato de que deixamos apenas de consumir informações,
passamos a produzi-las e a compartilhá-las.
Segundo Recuero (2009), os sites de redes sociais, também chamados de “redes
sociais na internet”, “websites de redes sociais”, ou mais comumente, chamados de
“mídias sociais”, são sites disponíveis na Web 2.0 que possibilitam a criação de um
perfil, com login e senha pessoal, em que os usuários podem encontrar pessoas e
adicioná-las como uma conexão a sua rede social. Estes sites permitem a visualiza-
ção do que as pessoas compartilham e a relação que as pessoas têm entre si, isto é,
“quem é amigo de quem”. Os usuários destes sites de redes sociais compartilham
mensagens e todas as pessoas com as quais este usuário tem uma relação social no
site poderão visualizar os seus compartilhamentos.
Recuero (2009, p. 102) explica que “os sites de redes sociais são os espaços
utilizados para a expressão das redes sociais na internet”, porque é a partir destes
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sites que conseguimos visualizar a representação gráfica da nossa própria rede
social. Boyd e Ellison (2007) afirmam que os sites de redes sociais são serviços ba-
seados na Web que permitem aos indivíduos construir um perfil ou página pessoal
que podem ser públicos ou privados. No entanto, os sites de redes sociais, também
permitem articular uma lista de outros usuários com quem partilham uma mesma
conexão e visualizar a rede social de outros usuários e a sua própria rede social.
Isto é, a partir do momento em que criamos um perfil em um site de rede social,
disponibilizamos a nossa própria rede social a qualquer outro usuário do site, bem
como, podemos visualizar a rede social dos usuários com os quais mantemos algu-
ma relação social. Qualquer usuário do site pode visualizar o nosso perfil, quem
são os nossos amigos, os amigos que temos em comum e os amigos dos nossos ami-
gos. Alguns sites oferecem opções de configurações de privacidade em que podemos
limitar esta visualização, no entanto, o padrão é que estas informações estejam
disponíveis para todos os usuários do site.
Os sites de redes sociais permitem que os usuários articulem as suas redes
sociais e as tornem visíveis a todos os usuários. Isso pode resultar em conexões en-
tre indivíduos que de outra forma não seriam feitas. Muitas vezes, os usuários de
um site de rede social não têm necessariamente o objetivo de fazer novas conexões,
mas de manter a comunicação com pessoas que já fazem parte da sua rede social.
O perfil de um usuário em um site de rede social é uma página exclusiva daquele
usuário, na qual, depois de criar o seu perfil, o usuário é convidado a informar
alguns dados pessoais, como nome, idade, localização e interesses, e uma descrição
pessoal. A maioria dos sites, também, incentiva os usuários a enviar uma foto de
perfil. Por padrão, os perfis de um usuário são rastreados pelos motores de busca,
do Google, por exemplo, tornando-os visíveis para qualquer pessoa, independente-
mente de quem pesquisa ter, ou não, um perfil no site, o perfil do usuário pesquisa-
do aparece nas buscas do Google.
O site Linkedin disponibiliza informações adicionais aos usuários que pagam
um valor mensal para ter acesso a informações que não são visíveis aos usuários
não pagantes. O site Facebook, por exemplo, permite a visualização de todas as
informações dos usuários com os quais temos uma relação de “amizade”. No entan-
to, é possível configurar algumas opções de privacidade, em que escolhemos quais
informações pessoais podem ser públicas, ou não.
Depois de aderir a um site de rede social, os usuários são solicitados a identifi-
car parentes, amigos e conhecidos que também têm perfil no site e são incentivados
a convidá-los a criar uma relação social no site. Esta relação social é identificada de
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diversas formas nos sites, como por exemplo, “amigos”, “contatos”, “fãs”, “seguido-
res”. A maioria dos sites exige a confirmação do outro usuário referente ao convite
para estabelecer a relação social. Neste caso, a relação social é bidirecional, isto
quer dizer que se um usuário aceitou o convite de outro usuário, os dois usuários
passam a manter uma relação social entre si, tanto de um quanto do outro. Em ou-
tros sites a confirmação não é solicitada e esta relação, mesmo que estabelecida, é
uma relação social unidirecional, isto é, apenas um usuário tem relação social com
o outro. A exibição pública das relações sociais entre os usuários e os recursos que
permitem o envio de mensagens privadas, são características importantes deste
tipo de site (BOYD; ELLISON, 2007).
Sabemos que há uma variedade de sites de redes sociais, com diferentes recur-
sos tecnológicos que atendem a objetivos diferentes, como por exemplo, o YouTube,
Facebook, Twitter, Linkedin, Instagram, Pinterest, Tumblr, Snapchat, Periscope,
entre outros. Estes sites possuem finalidades comuns, mas há sites com finalidades
diferentes, como por exemplo, o Linkedin trata de ser uma rede exclusiva para
manter contatos profissionais por meio da divulgação de vagas de trabalho, e o
Twitter é um site que tem como objetivo a comunicação de mensagens curtas e que
direcionam a leitura para outros sites. A cada instante, um novo site é disponibili-
zado na internet como mais um espaço virtual para a expressão de opiniões, ideias,
compartilhamento de notícias e disseminação de informações.
Boyd e Ellison (2007) afirmam que a maioria destes sites são utilizados para
manter as relações sociais existentes, mas que alguns sites ajudam pessoas que
não se conhecem a se conectarem com base em interesses comuns. Os sites tam-
bém diferem entre si na medida em que disponibilizam recursos de informação e
comunicação diferenciados, tais como a possibilidade de conectividade a partir de
dispositivos móveis e o compartilhamento de fotos, vídeos e áudios de tamanhos
variados.
Os sites de rede social apresentam características e possibilidades de inte-
rações sociais que são comuns entre eles, no entanto, também há características
que os diferem uns dos outros. Por exemplo, há sites em que a informação a ser
compartilhada é, exclusivamente, uma imagem, como no caso do Instagram que
prioriza o compartilhamento de fotografias, mas que possibilita o compartilhamen-
to de vídeos com poucos segundos chamados de stories. Outros sites possibilitam o
compartilhamento de informações a partir de diversos suportes tecnológicos, como
imagens, vídeos, textos, parágrafos, e até arquivos, como o Facebook. Considera-
mos um suporte tecnológico1, todo recurso midiático que possibilita a visualização
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de uma informação, seja ela uma imagem, um texto, um vídeo ou um áudio e cada
site possui especificidades quanto às possibilidades de compartilhamentos e tipos
de interações possíveis.
Musso (apud SANTAELLA; LEMOS, 2010, p. 7) já afirmava que “a noção de
rede é onipresente e onipotente em todas as disciplinas”, isto é, o conceito de rede
está presente nas mais variadas áreas do conhecimento e é imprescindível com-
preender o conceito de rede para saber o que se passa nos sites de redes sociais, as
suas dinâmicas, como as informações se disseminam na internet, e como as ideias
e atitudes dos amigos, dos amigos, dos nossos amigos, nos influenciam (CHRISTA-
KIS; FOWLER, 2010).
Nesse momento é importante sabermos que mídias sociais não é o mesmo que
redes sociais e por isso é importante conhecermos o conceito de redes sociais. Para
Wasserman e Faust (1994, p. 20), “uma rede social consiste de um conjunto finito
de atores e as relações definidas entre eles” e que estas conexões podem ser de três
tipos: relação social, interação social e laço social. Conceituam rede social como
toda estrutura social que envolve indivíduos que partilham dos mesmos interesses
e afirmam que as redes sociais são representadas graficamente por sociogramas2,
que são grafos com nós indicando atores e arestas representando as conexões entre
estes atores e são recursos utilizados para determinar a sociometria3 de um espaço
social.
Dos três tipos de conexão social em uma rede social, discutiremos a seguir
o tipo de conexão denominado de interação social que representa a comunicação
social entre os sujeitos em uma mídia social.
Interação social
A comunicação que ocorre nos sites de redes sociais é denominada de interação
social. Essa interação social ocorre entre os sujeitos de forma síncrona e/ou assín-
crona, isto é, em tempo real (online), e/ou em outro tempo (offline). Segundo Primo
(2003, p. 97), a interação é “uma série complexa de mensagens trocadas entre os
sujeitos”, e o autor ainda define dois tipos de interação: mútua e reativa.
A interação mútua é a comunicação entre duas pessoas criada pela ação de ambas. Onde
uma comunica-se com a outra e as duas comunicam-se entre si (são as ações entre duas
pessoas). Trata-se, da inter + ação criada pela ação de ambas. Isto é, a cada encontro, as
ações de uma definem (ou redefinem) a relação entre elas (PRIMO, 2003, p. 97).
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O autor afirma que a diferença entre a interação mútua e a interação reativa é
que a primeira constitui uma relação recíproca de trocas entre os atores envolvidos
no processo de comunicação. E, a segunda, as relações não se constituem. Neste
caso, é constatada uma comunicação unidirecional, em que somente um dos atores
age e os outros atores apenas recebem a mensagem sem interferir na comunicação,
nem na mensagem. O autor compreende que a interação é a “ação entre” e que a
comunicação é “ação compartilhada”. Em uma interação mútua, os atores trans-
formam-se mutuamente durante o processo, e a relação que emerge entre eles vai
sendo recriada a cada troca. O autor ainda afirma que nesse tipo de interação é
possível se prever o que vai acontecer porque todo o encaminhamento da relação é
negociado durante a interação. Ao interagirem, um modifica o outro. Na interação
reativa, as interações são limitadas pelo fato de que apenas um ator comunica-se
com o outro. A comunicação não tem duplo sentido, e o autor adota as palavras
“relação” e “relacionamento”, como sinônimas.
O conceito de interação possui várias definições, nas mais diversas áreas do
conhecimento e na perspectiva de diversos autores. A interação social neste tra-
balho é estudada à luz dos autores Watzlawick, Beavin e Jackson (2000), Cooley
(1975), Parsons e Shill (1975), Reid (1991), Silva (2010) e Primo (2003).
Watzlawick, Beavin e Jackson (2000) explicam que a interação representa um
processo sempre comunicacional. A interação é, portanto, aquela ação que tem um
reflexo comunicativo entre o indivíduo e seus pares, como reflexo social. Os autores
entendem que a interação atua diretamente sobre a definição da natureza das rela-
ções entre aqueles envolvidos no sistema interacional. A interação, pois, tem sem-
pre um caráter social perene e diretamente relacionado ao processo comunicativo.
Para Parsons e Shill (1975), as interações são parte das percepções do uni-
verso em que os atores estão inseridos influenciadas por elas e pelas motivações
particulares desses atores. Segundo Silva (2010), o conceito de interação foi trans-
mutado, na área da informática, para o termo “interatividade”. O autor faz uma
discussão sobre o uso indiscriminado do conceito de interação como argumento de
venda e aponta que:
[...] nos debates acadêmicos em que o conceito de interatividade é colocado em questão,
encontro frequentemente, pelo menos duas críticas. Uma considerando-o como argumento
de venda próprio da nova era tecnológica marcada pela indústria informática. Outra enfati-
zando que o termo interatividade não diz nada além do que já diz o termo interação (SILVA,
2010, p. 110).
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De acordo com Reid (1991), a interação social, no âmbito do ciberespaço, pode
dar-se de forma síncrona ou assíncrona, isto é, se a comunicação é em tempo real ou
não, respectivamente. Dependendo dos recursos disponíveis, são possíveis as duas
formas de comunicação na internet como, por exemplo, o envio de mensagens de
forma síncrona (em tempo real) para amigos que estão online naquele determinado
instante; e mensagens assíncronas que serão lidas quando o usuário estiver online.
Para Cooley (1975), a comunicação compreende o mecanismo último das in-
terações sociais. Estudar a interação social compreende, desse modo, estudar a
comunicação entre os atores. Estudar as relações entre suas trocas de mensagens
e o sentido das mesmas, estudar como as trocas sociais dependem, essencialmente,
das trocas comunicativas.
Segundo Koehler (2016), a comunicação que acontece em um site de rede so-
cial foi denominada como interação social em rede e nas redes que será discutida
na próxima seção.
Interação social nos sites de redes sociais
A comunicação entre usuários de sites de redes sociais é uma comunicação que
acontece em um ambiente de rede social na internet, e que denominamos de inte-
ração social em rede e nas redes. Esta comunicação é assim denominada porque
entendemos que a comunicação mediada pelo computador, que se utiliza de sites de
redes sociais, possibilita o tipo de conexão social denominada de interação social.
No entanto, não é qualquer interação social que se constitui em um site de rede
social. Esta interação social é uma interação que acontece a partir de uma rede de
relações sociais, e por isso, a denominação de interação social em rede e nas redes
(KOEHLER, 2016).
Estas interações sociais em rede constituem-se em uma comunicação coletiva,
pública e permanente, isto é, coletiva porque acontece em um ambiente de rede;
pública porque é visualizada por todas as conexões sociais do usuário; e perma-
nente porque permite a recuperação de parte da comunicação ao longo do tempo.
São interações sociais diferentes daquelas que acontecem comumente na internet,
justamente porque emergem de um site de rede social que é coletivo, público e com-
partilhado por dezenas, centenas ou milhares de outros usuários. São interações
sociais que se utilizam das conexões estabelecidas entre os usuários no site de rede
social para se espalhar entre outros usuários.
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A interação social em rede e nas redes emerge da união de várias redes sociais4
das quais os usuários fazem parte. São capazes de levar milhares de pessoas a as-
sistirem um vídeo no YouTube, de influenciarem eleições presidenciais, de refletir
tendências, de levar centenas de pessoas a comprarem um determinado produto e
de se organizarem publicamente para ajudar pessoas vítimas de alguma tragédia.
A partir destas interações sociais que acontecem em rede e nas redes, movimentos
sociais são organizados, estruturados, disseminados e conduzidos em todo mun-
do. São, fundamentalmente, interações amplificadas, emergentes e complexas que
surgem da interconexão entre os usuários que fazem parte de um mesmo site de
rede social. E é esse tipo de interação social que emerge nos sites de redes sociais
que apresentamos neste trabalho.
A disseminação de diversos tipos de sites de redes sociais resultou em novas
formas de comunicação e interação entre as pessoas. Recuero, Bastos e Zago (2015)
afirmam que “os sites de redes sociais permitiram às pessoas publicar e ampliar
suas redes, criando novas conexões e novas formas de circulação de informação”.
No entanto, sabemos que foi muito mais do que isso, estes sites de redes sociais
proporcionam uma comunicação coletiva, em tempo real (síncrona) ou não (assín-
crona), pública e capaz de atingir um número expressivo de pessoas.
As interações sociais em rede e nas redes diferenciam-se dos demais tipos de
interação social no espaço digital porque são constituídas dentro de um ambiente
que organiza e que representa as redes sociais reais. São interações capazes de “cir-
cular” pelas conexões sociais dos usuários, espalhando-se para outros grupos so-
ciais, e para outros espaços dentro do site de rede social. São interações que fazem
as informações circularem entre as diversas redes sociais dos usuários, emitindo
e recebendo novidades, mas que não necessariamente são informações comparti-
lhadas entre usuários conectados entre si. Isto é, são interações que disseminam
informações de outros usuários que não são suas conexões diretas, são os amigos,
dos amigos, dos seus amigos (CHRISTAKIS; FOWLER, 2010). Sendo assim, são
interações sociais que surgem entre alguns usuários e que vão sendo disseminadas
na rede pelas conexões sociais que estes usuários possuem.
A interação social em rede e nas redes surge nos sites de redes sociais jus-
tamente porque estes sites possuem os recursos e funcionalidades que permitem
a comunicação em rede. São comunicações que não estão restritas a um ou dois
usuários, ou a pequenos grupos de usuários, mas são comunicações que extrapo-
lam os limites destes, e ampliam o seu alcance a outras redes sociais. Por isso,
as interações sociais em rede são potencializadas pelos sites de redes sociais que
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facilitam a comunicação não apenas de usuários que são da mesma rede social, mas
também, de usuários que fazem parte de outras redes sociais. Qualquer usuário
de um site de rede social tem muito mais possibilidades de estar em contato com
pessoas de redes sociais desconhecidas, do que se este usuário não tivesse um perfil
no Facebook, por exemplo. Estes sites potencializam as redes sociais já existentes
e facilitam o acesso a novas redes sociais.
A interação social em rede e nas redes é possibilitada pelos recursos e fun-
cionalidades que o site de rede social dispõe. Por exemplo, o Facebook oferece os
recursos de “curtir”, “comentar”, “curtir comentário”, “visualizar”, “cutucar”, “com-
partilhar” e “chat” como tipos de interação social em rede. São recursos que o Face-
book oferece aos usuários para comunicarem-se na rede. Quando um usuário usar
um destes recursos, todas as suas conexões, receberão nas suas “linhas do tempo”
a informação de que aquele usuário curtiu, comentou, compartilhou, etc. alguma
informação.
A interação social em rede também torna público as relações sociais construí-
das entre os usuários apresentando “quem é amigo de quem” e “quem são os ami-
gos em comum”, como é possível visualizar no Facebook. Outra característica da
interação social em rede é a possibilidade de fazer com que uma informação seja
“espalhada” entre diversas redes sociais com apenas um clique.
Compreendemos que a interação social em rede se constitui a partir da metá-
fora da rede, ou seja, “as redes são metáforas estruturais para os grupos humanos,
onde se procura compreender as suas inter-relações” (RECUERO, 2014, p. 127-
128). Neste sentido, “os sites de redes sociais são metáforas para esses grupos na
mediação do computador” (RECUERO, 2009, p. 56). Em outras palavras, Recuero
(2014, p. 128) diz que “as redes sociais ficam explícitas no site de rede social a par-
tir das interações sociais que emergem entre os usuários”, e que “as conexões são
os elementos mais complexos das redes sociais porque são as conexões que unem os
usuários em grupos sociais” (RECUERO, 2014, p. 128-129). Compreendemos a in-
teração social em rede como a comunicação síncrona e/ou assíncrona entre tríades,
que é a comunicação no mínimo entre três atores.
A Figura 1 mostra a composição de uma tríade representada em um grafo
direcionado. É importante salientar que a Teoria dos Grafos, de Leonard Euler,
oferece o embasamento teórico e matemático para a compreensão das redes sociais
e das suas propriedades.
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Figura 1 – Grafo que representa uma tríade
Fonte: Koehler (2016, p. 83).
Compreendemos a interação social em rede e nas redes como sendo as diver-
sas formas que os usuários têm para se comunicarem em um site de rede social. A
seção seguinte apresenta uma discussão sobre como as mídias sociais colaboram
para com convívio sociocultural entre os sujeitos em interação.
Sociedade em rede, redes sociais e socialização
De acordo com Capra (2002, p. 93), o padrão em rede – network pattern – é
um dos padrões de organização mais básicos de todos os sistemas vivos. Conforme
o autor, em todos os níveis de vida – desde as redes metabólicas das células até as
teias alimentares dos ecossistemas –, os componentes e os processos dos sistemas
vivos se interligam em forma de rede. Diante disso, foi feita uma aplicação da
compreensão sistêmica da vida – em específico em relação à compreensão das redes
– ao domínio social.
Com isso, a sociedade passou a ser analisada sob esse viés das redes prin-
cipalmente a partir dos estudos do sociólogo Castells (2005). Capra (2002, p. 94)
explica que as redes sociais são, antes de mais nada, “[...] redes de comunicação que
envolvem a linguagem simbólica, os limites culturais, as relações de poder e assim
por diante”. É uma situação que envolve todos os setores da sociedade, pois tudo
acaba sendo interligado através das teias da rede.
Capra (2002, p. 96) explicita essa forma de organização mencionando que “[...]
para interpretar alguma coisa, nós a situamos dentro de um determinado contexto
de conceitos, valores, crenças ou circunstâncias”. O autor ainda continua: “para
compreender o significado de alguma coisa, temos de relacioná-la com outras coisas
161
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no ambiente, no seu passado ou no seu futuro. Nada tem sentido em si mesmo”.
Portanto, todas as experiências, os fatos, as situações vivenciadas são automa-
ticamente relacionadas a outras que interligam toda a conjuntura da sociedade
contemporânea, em um processo que é cíclico e nada constante, pois como o próprio
autor menciona, a rede social é “um padrão não linear de organização” (CAPRA,
2002, p. 93).
Assim, por entender que “a tecnologia é uma das características que definem
a natureza humana: sua história se estende por todo o decorrer da evolução do ser
humano” (CAPRA, 2002, p. 97), é preciso reconhecer que elas sempre possuíram
e – mais do que nunca – possuem estreitas relações com a sociedade. Desde os
primeiros utensílios criados para auxiliar o homem em seu cotidiano até os cabos
de fibra ótica da atualidade, tudo é tecnologia, o que acabou por criar uma situação
de extrema relação entre o homem e ela (MARCON, 2008).
Portanto, frente a essa “nova compreensão da vida [...]” (CAPRA, 2002, p. 97),
acredita-se que as tecnologias de rede acabam potencializando essa estrutura so-
cial, pois através delas a rede – em âmbito mundial – acontece, pois inexistem as
barreiras do tempo e do espaço, já mencionadas anteriormente neste estudo. As
TDR criam cada vez mais possibilidades e alternativas para que todos os pontos
do mundo se conectem através da rede, instituindo, assim, essa sociedade em rede.
Diante disso, Castells (2005, p. 276) menciona que:
[...] mais que ver a emergência de uma nova sociedade, totalmente on line, o que vemos
é a apropriação da Internet por redes sociais, por formas de organização do trabalho, por
tarefas, ao mesmo tempo que muitos laços fracos, que seria demasiadamente complicados
de manter off line, podem ser mantidos on line.
A internet potencializa as redes sociais, contribuindo para o estreitamento e
fortalecimento das próprias relações sociais. Nesse sentido, na contemporaneida-
de, Castells (2005, p. 256) considera que “[...] a internet é – e será ainda mais – o
meio de comunicação e de relação essencial sobre o qual se baseia uma nova forma
de sociedade que já vivemos”, aquela que o autor chama de sociedade em rede.
Para Castells (2005, p. 287), internet é sociedade porque expressa os processos
sociais, os interesses sociais, os valores sociais, as instituições sociais. O próprio
autor se questiona sobre qual é, então, a especificidade da Internet se ela é socieda-
de? Para o autor, a especificidade é que ela constitui a base material e tecnológica
da sociedade em rede. A internet é a infraestrutura tecnológica e o meio organizati-
vo que permite o desenvolvimento de uma série de novas formas de relações sociais
e socialização. Essas relações sociais não têm sua origem na Internet, sendo frutos
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de uma série de mudanças históricas, elas jamais poderiam se desenvolver sem a
rede mundial de computadores.
Considerações
Em tempos de pandemia da Covid-19, com o isolamento físico e a restrição de
utilização dos espaços públicos, o uso das mídias sociais como meios de socialização
entre os sujeitos tem sido observado no cotidiano de muitas pessoas. As mídias
sociais organizam as relações sociais no mundo digital e potencializam as intera-
ções sociais entre as pessoas que estão conectadas, permitindo que as pessoas se
conectem de qualquer lugar, em qualquer tempo e espaço.
As mídias sociais possibilitam um convívio sociointelectual entre os sujeitos.
Diversas atividades humanas foram ressignificadas nesse contexto de pandemia, e
dentre elas destacamos a ampliação da transmissão de lives via streaming com fins
profissionais, acadêmicos e culturais em diversos sites de redes sociais e abertas ao
grande público, além de discussões em grupos específicos de sites de redes sociais.
A cultura digital, as tecnologias digitais de rede e os sites de redes sociais
estão cada vez mais inseridos nos nossos contextos, sejam eles, familiares, sociais,
acadêmicos ou profissionais. A cultura digital é um campo vasto e potente, pois
pode estar articulada com qualquer outro campo além das tecnologias, como por
exemplo a arte, a educação, a filosofia, a sociologia, etc. Maximiza todos os campos
dos saberes dispostos, tanto dentro, quanto fora do espaço escolar justamente por
encontrar-se em um lugar que não pode fechar-se para o seu entorno, que o está
desafiando os novos jeitos de aprender.
Vivemos e convivemos em uma sociedade desenvolvida sob a influência do pa-
radigma comunicacional de massa, analógico, hierárquico e linear, em que a trans-
missão das mensagens era apenas de um lado da comunicação, sendo que o outro
lado apenas consumia as informações emitidas. No paradigma comunicacional das
redes, os sujeitos não só conseguem interagir entre si, como também, produzem
conteúdo na internet. A popularização dos sites de redes sociais imprime ao sujeito
o potencial de participação e interação social com seus pares, em uma perspectiva
de coautoria e inteligência coletiva, e cada vez mais potencializa a socialização dos
sujeitos em um mundo digital que acontece em rede e na rede.
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Notas
1 Entende-se por suporte tecnológico o recurso utilizado para compartilhar uma postagem, como por exem-
plo: link para um site; link para um vídeo do YouTube; texto; arquivo; imagem; áudio (podcast), entre
outros.
2 Sociograma é uma técnica de análise de dados que concentra a atenção sobre a forma como os laços sociais
são estabelecidos dentro de qualquer grupo. Disponível em: http://es.wikipedia.org/wiki/Sociograma. Aces-
so em: 28 jul. 2020.
3 Sociometria do latim socius + metrum, é uma ferramenta analítica para estudo de interações entre grupos.
A sociometria pode ser entendida também como o estudo dos vínculos existentes entre indivíduos, enquan-
to formadores sociais. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Sociometria. Acesso em: 28 jul. 2020.
4 É importante ressaltar que quando usamos os termos “redes sociais” ou “rede social”, estamos nos refe-
rindo ao seu sentido estrito, que é o círculo de pessoas do qual fazemos parte. Não usamos o termo “rede
social” como sinônimo de “site de rede social” porque esse é a mídia de rede social e não é a rede social,
propriamente dita.
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Pedagogia da ameaça: uma análise dos padrões comunicativos de socialização no
WhatsApp bolsonarista
Pedagogy of threat: an analysis of communicative patterns of socialization in Jair Bolsonaros
WhatsApp support groups
Pedagogía de la amenaza: análisis de patrones comunicativos de socialización en grupos de
apoyo al presidente Jair Bolsonaro en WhatsApp
Rodrigo Pelegrini Ratier*
Resumo
O objetivo deste trabalho é analisar aspectos da socialização nos grupos públicos bolsonaristas no aplicativo
WhatsApp. O foco são os padrões comunicativos recorrentes nesse espaço. Utilizando como material de análise
mensagens textuais e visuais, animações, memes e vídeos veiculados em comunidades virtuais de apoio ao pre-
sidente Jair Bolsonaro, indica-se a existência de uma “pedagogia da ameaça, com uxo comunicativo centraliza-
do, ausência de debates e nenhum espaço para o contraditório. A análise de conteúdo aponta intensa circulação
de mensagens apoiadas em três padrões comunicativos fundamentais: 1- binômio amigo-inimigo, 2- apelo à
emoção e 3- estratégias de desinformação. Defende-se que a plataforma virtual em tela se congura como uma
mídia ideológica na acepção proposta por Thompson (1995), a de sentido a serviço do poder. Ao emular um
estado de ameaça constante, o WhatsApp bolsonarista ambiciona reunir, alertar e convocar a militância para a
defesa do presidente diante de perigos e intimidações.
Palavras-chave: WhatsApp; socialização; nova direita; bolsonarismo.
Abstract
The aim of this work is to analyze aspects of socialization in WhatsApp public groups that support Brazilian
president Jair Bolsonaro. The focus is on the recurrent communicative patterns in this space. Considering textual
and visual messages, animations, memes and videos published in pro-Bolsonaro digital communities, we point
to the existence of a “pedagogy of threat”, with centralized communicative ow, absence of debates and no
space for contradictory opinions. The content analysis indicates intense circulation of messages based on three
main communicative strategies: 2- friend-enemy binomial; 2- appeal to emotion; 3- misinformation strategies.
It is argued that the virtual platform on screen is congured as an ideological medium in the sense proposed by
* Doutor em educação pela Universidade de São Paulo. Pesquisador do Grupo de Pesquisa Práticas de Socialização
Contemporâneas (GPS-FEUSP) com participação no Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior, fomentado pela
Capes, na Université Lumière Lyon 2. Professor assistente do curso de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero (FCL).
Jornalista e professor universitário na Faculdade Cásper Líbero. Colunista na plataforma ECOA | UOL (https://www.
uol.com.br/ecoa/colunas/rodrigo-ratier/). Coordenador do blog coletivo Entendendo Bolsonaro (entendendobolso-
naro.blogosfera.uol.com.br). Fundador e gestor do curso online contra fake news Vaza, Falsiane (www.vazafalsiane.
com). Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9733-7563. E-mail: rratier@gmail.com
Recebido em: 30/07/2020 – Aprovado em: 09/06/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i1.11465
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Thompson (1995), that of meaning in the service of power. By emulating a state of constant threat, the Bolsonar-
ist WhatsApp aims to gather, alert and summon militancy to defend the president in the face of dangers and
intimidation.
Keywords: WhatsApp; socialization; alt-right; Jair Bolsonaro.
Resumen
El objetivo de este trabajo es analizar aspectos de la socialización en grupos públicos de apoyo al presidente
brasileño Jair Bolsonaro en WhatsApp. La atención se centra en los patrones comunicativos recurrentes en este
espacio. Utilizando como material de análisis mensajes textuales y visuales, animaciones, memes y videos difun-
didos en comunidades virtuales, se indica la existencia de una “pedagogía de la amenaza, con un ujo comuni-
cativo centralizado, ausencia de debates y sin espacios para opiniones opuestas. El análisis de contenido mues-
tra una intensa circulación de mensajes sustentada en tres patrones comunicativos fundamentales: 1- binomio
amigo-enemigo, 2- apelación a la emoción y 3- estrategias de desinformación. Se argumenta que la plataforma
virtual se congura como un medio ideológico en el signifcado propuesto por Thompson (1995), el de sentido al
servicio del poder. Al emular un estado de amenaza constante, los grupos de apoyo de Bolsonaro tienen la inten-
ción de reunir, alertar y convocar a la militancia para defender al presidente ante los peligros y las intimidaciones.
Palabras clave: WhatsApp; socialización; nueva derecha; Jair Bolsonaro.
Introdução
O presente estudo, de caráter exploratório, dá continuidade à pesquisa desen-
volvida desde 2018 sobre o WhatsApp bolsonarista por este autor. Insere-se no con-
texto de socialização plural (LAHIRE, 2002, 2004, 2012) e considera a importância
da mídia na circulação de valores, padrões e formas de comportamento (SETTON,
2004, 2012). Como as demais instâncias de socialização da contemporaneidade – fa-
mília, escola, igreja, trabalho etc. –, apresenta referenciais identitários, articulados
pelo indivíduo, por vezes tensa e conflituosamente, em diferentes combinatórias.
Resultam em disposições de habitus híbridos, não necessariamente homogêneas ou
coerentes, acionadas conforme os contextos de ação (SETTON, 2002, 2005, 2009).
Do ponto de vista da socialização contemporânea, as mídias são espaços edu-
cativos, na medida em que disseminam informações e valores que auxiliam a estru-
turação de modos de ser, agir e pensar nos indivíduos. Educação, aqui, não designa
forçosamente processo virtuoso ou restrito à escolarização formal. Considera-se o
entendimento ampliado proposto por Libâneo (1998) para reconhecer que as mí-
dias possuem uma função pedagógica e, muitas vezes, ideológica (SETTON, 2012).
Educação é o conjunto das ações, processos, influências, estruturas, que intervêm no desen-
volvimento humano de indivíduos e grupos na sua relação ativa com o meio natural e social,
num determinado contexto de relações de grupos e classes sociais (LIBNEO, 1998, p. 22).
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Discutir a natureza pedagógica de uma mídia, o WhatsApp, faz parte do escopo
amplo deste estudo. O aplicativo se insere no contexto de ascensão das redes sociais,
que levou a extensas transformações na produção e adaptações nos comportamen-
tos de consumo tanto de indivíduos quanto de instituições sociais. Em uma pers-
pectiva mais “integrada”, McNair (2009) aponta que o desenvolvimento tecnológico
potencializou as condições para uma democracia participativa sem precedentes. Em
uma visão menos edulcorada, Jenkins (2006) enfatiza que a audiência passa a ser
ativa, barulhenta, migratória, menos leal e socialmente conectada, redesenhando
as regras por meio das quais a própria vida cívica opera. Num polo “apocalíptico”,
Han (2018), define a mídia digital como uma mídia de afetos, de uma cultura de
falta de respeito e de indiscrição, fracamente ocupado pelo poder e pela autoridade.
Reflexões que, desde um ponto de vista sociológico, apontam para o aprofundamen-
to de um universo de autoridades múltiplas (LAHIRE, 2012), em que os sistemas de
saberes peritos se encontram em crise e convocam, cada vez mais, a reflexividade
individual nos processos de socialização (GIDDENS, 1991, 1997).
Em trabalho anterior (RATIER, 2020b), procuramos demonstrar as configu-
rações fundamentais da rede de grupos públicos bolsonaristas no WhatsApp. A to-
pologia das redes indica conjuntos de grupos fortemente interconectados, tanto por
meio de convites para participação em outras comunidades quanto pela similitude
dos conteúdos disseminados. Surgiram também indícios de centralização na produ-
ção de informação e de mecanismos de controle das heresias, com o banimento, pela
ação dos administradores de grupos, dos indivíduos que apresentassem opiniões
contrárias à defesa do presidente. Em outro lugar (RATIER, 2020a), aprofundamos
a análise desses achados, confirmando a existência de uma “elite falante” – peque-
no grupo de usuários que domina a produção de mensagens –, a predominância de
postagens encaminhadas ou copiadas e a baixa qualidade da informação circulan-
te, com predomínio de perfis em redes sociais ou sites hiperpartidários simpáticos
ao presidente.
No presente estudo, a intenção é identificar, classificar e analisar as formas
simbólicas predominantes e os padrões comunicativos prevalentes nos grupos
bolsonaristas. Considerando a pedagogia como uma teoria prática da educação
(DURKHEIM, 1965), buscam-se observáveis da materialização do ato educativo
no aplicativo em tela. Para tanto, apoiamo-nos na hipótese de Cesarino (2019a) de
que as funções comunicativas no ecossistema bolsonarista poderiam ser reduzidas
a poucas estratégias elementares que visariam, de um lado, a reforçar a conexão
entre o “líder” e o “povo” e, de outro, a estabelecer uma fronteira amigo-inimi-
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Pedagogia da ameaça: uma análise dos padrões comunicativos de socialização no WhatsApp bolsonarista
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go, atribuindo aos adversários políticos afetos negativos – medo, repulsa, pânico.
Defende-se que a reiteração de tais estratégias conforma o que denominamos de
“pedagogia da ameaça”, ambicionando reunir, alertar e convocar a militância para
a defesa do presidente diante de perigos e intimidações.
O artigo se encontra dividido em seis seções. Esta introdução e uma conclusão;
a fundamentação teórica, em que discute-se a natureza do WhatsApp, apresenta-se
o fenômeno da “nova direita” brasileira em geral e do bolsonarismo em particular,
culminando com sua atuação digital e a instrumentalização do WhatsApp para fins
políticos; a metodologia de pesquisa; a apresentação dos resultados; a discussão
dos achados, em que se sublinham os três padrões comunicativos mais recorrentes
no conteúdo disseminado nos grupos analisados: 1- apelo à emoção; 2- binômio
amigo-inimigo; 3- estratégias de desinformação. A análise recupera a influência da
psicologia de massas em regimes autoritários (ADORNO, 2020; REICH, 1988) e a
contribuição das teorias políticas de Laclau (2013) e Schmitt (2009), para amparar
a hipótese de uma mídia ideológica na definição proposta por Thompson (1995), a
de sentido a serviço do poder.
Fundamentação teórica
Mais bem-sucedido aplicativo de troca de mensagens no mundo, o WhatsApp
se disseminou pelo mundo seguindo a popularização dos smartphones e as veloci-
dades crescentes de conexão à internet. Lançado em 2009, foi arrematado em 2014
pelo Facebook por 19 bilhões de dólares. É uma das redes sociais que mais crescem
no mundo. Segundo dados da companhia proprietária, atingiu 2 bilhões de usuá-
rios, atrás apenas do próprio Facebook, que possui 2,5 bilhões de contas ativas. No
Brasil, são cerca de 130 milhões de usuários.
Formalmente, o aplicativo rejeita ser classificado como rede social. A definição
oficial é de um serviço de mensagens instantâneas, desenvolvido para interações
um a um (WHATSAPP, 2019). Para afastar o qualificativo, a empresa afirma que
90% das mensagens são trocadas entre dois usuários. Os outros 10% são dissemi-
nados em grupos, funcionalidade criada em 2011 para proporcionar comunicação
coletiva. Podem abrigar até 256 contatos telefônicos e assumir três tipos diferen-
tes: lista de transmissão, de caráter unidirecional, em que apenas os administra-
dores podem publicar; grupos fechados, com contatos inseridos manualmente pelos
administradores; e grupos públicos, quando o administrador publica o endereço
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de acesso ao grupo em páginas da internet ou o envia para contatos convidados.
Qualquer pessoa que possua o link pode acessar um grupo dessa natureza.
A bibliografia afirma que a introdução da comunicação coletiva alterou a natu-
reza bilateral do aplicativo (GARIMELLA; TYSON, 2018; SEUFERT et al., 2016).
Farooq (2018) indica a facilidade de criar e compartilhar conteúdo e a mobilidade
do WhatsApp como aspectos favoráveis para atingir grandes audiências. Já Viei-
ra et al. (2019) identificam semelhanças entre a disseminação de mensagens pelo
aplicativo e mídias tradicionais, como rádio e TV.
Há registros do uso de grupos de WhatsApp para a comunicação e propaganda
política em diversas partes do mundo (FAROOQ, 2018). No Brasil, o aplicativo
vem sendo utilizado mais amplamente pelo espectro político denominado de cam-
po antipetista (RIBEIRO; ORTELLADO, 2018), nova direita (DUDA DA SILVA,
2018) ou extrema-direita (MIGUEL, 2018). Miguel (2018) enxerga a um só tempo
elementos de aglutinação (libertarianismo econômico, fundamentalismo cristão
e anticomunismo) e heterogeneidade, afirmando se tratar da confluência de gru-
pos diversos em união pragmática contra um inimigo em comum – ou inimigos, a
“ideologia de gênero” e o “avanço do comunismo”, segundo Kalil (2018), ou ONGs
e movimentos sociais, partidos de esquerda e movimentos identitários, conforme
Ribeiro e Ortellado (2018).
Visões otimistas do aplicativo como lugar de discussão democrática, hori-
zontal e plural têm sido problematizadas pela bibliografia. Christie (2019) aponta
inclinação à polarização política, à autorradicalização e à distribuição de infor-
mações falsas. Por prisma semelhante, Litzendorf Netto e Peruyera (2018) enxer-
gam esse tipo de estratégia como ferramentas de propaganda política na internet.
Resende et al. (2019) nomeiam como “guerra de informação” a disseminação de
desinformação durante a campanha presidencial de 2018. Na ocorrência mais agu-
da, a jornalista Patrícia Campos Mello noticiou enviou massivo de propaganda con-
trária ao candidato Fernando Haddad (PT). A ação, supostamente financiada por
empresários simpáticos ao bolsonarismo, pode ter impactado centenas de milhões
de usuários e vedada pelos termos de uso do aplicativo e pela legislação eleitoral
(CAMPOS MELLO, 2018). Cerca de um ano depois, o WhatsApp reconheceu o uso
impróprio do aplicativo (CAMPOS MELLO, 2019).
A ação não se confunde com os grupos públicos bolsonaristas. Construídos e
mantidos por apoiadores desde antes das eleições, tornaram-se canais importantes
de comunicação do então candidato e atual presidente, sendo parte de um ecos-
sistema digital que Piaia e Alves (2019) classificam como “rede de comunicação
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subterrânea”. Em 2019, diversos estudos indicaram que tal rede seguia ativa (NE-
MER, 2019) e mesmo em crescimento (RATIER, 2020b).
Em termos topográficos, a aparente planitude da rede de grupos supostamen-
te horizontais e autônomos contrasta com a centralização dos fluxos comunicati-
vos. Nossas pesquisas anteriores (RATIER, 2020a, 2020b) dão conta de que apenas
uma pequena parcela dos integrantes é responsável pela grande maioria das men-
sagens. Estas, por sua vez, reproduzem argumentos vocalizados pelas figuras mais
visíveis do bolsonarismo – parlamentares da base, membros do governo, jornalis-
tas, blogueiros e youtubers alinhados e o próprio clã. Durante as eleições, a campa-
nha de Bolsonaro vendeu a ideia de uma militância digital orgânica, apoiando vo-
luntariamente o então candidato. A tese se fragilizou com a revelação da existência
de um suposto “gabinete do ódio” (ARBEX; URIBE, 2019). Trata-se de estrutura,
cuja existência sempre foi negada pelo governo (WAJNGARTEN, 2020), liderada
pelo vereador licenciado Carlos Bolsonaro, o “filho 02” do presidente.
Composto por um trio de assessores especiais da presidência e instalado no
terceiro andar do Palácio do Planalto, o gabinete do ódio seria responsável pelas
principais linhas narrativas de defesa do governo e de ataque aos adversários. For-
neceria tanto insumos prontos para a replicação nas redes quanto inspiração para
as produções da militância de carne e osso, ávida por ser compartilhada por parla-
mentares ou quem sabe pelo próprio presidente. Evidencias concretas da atuação
do grupo surgiram em julho de 2020, quando o Facebook removeu uma rede com
73 contas, ligadas ao gabinete presidencial, a filhos de Bolsonaro e a deputados
bolsonaristas. Facebook e Instagram localizaram páginas de anônimas de ataques
a adversários políticos ligadas a Tércio Arnaud Tomaz, assessor especial da presi-
dência e suposto integrante do gabinete do ódio (SOPRANA; ONOFRE; CAMPOS
MELLO, 2020).
Em depoimento à CPMI das fake news, a deputada federal Joice Hasselmann,
ex-aliada e atual desafeta do bolsonarismo, corroborou a tese de um ecossistema de
comunicação digital em uma estrutura piramidal. No topo estariam a família Bol-
sonaro e assessores próximos, incluindo o gabinete do ódio. Uma vez definidos os
alvos, começariam as publicações em massa nos perfis de políticos (família Bolso-
naro, deputados e ministros bolsonaristas) e influenciadores (o filósofo autodidata
Olavo de Carvalho e discípulos). Em seguida começaria o “movimento de manada”:
replicação e mimetização dos conteúdos por sites hiperpartidários, perfis anônimos
e movimentos de extrema direita. Em redes como o Twitter, perfis robôs ajudariam
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com o crescimento artificial das pautas, por meio do impulsionamento de hashtags,
por exemplo.
Os grupos públicos bolsonaristas no WhatsApp se situariam no nível inicial
do movimento de manada, replicando conteúdos produzidos centralmente e, ampa-
rados pela criptografia da rede, publicando peças de teor mais agressivo que nas
redes sociais abertas. De lá, a informação atinge a base da pirâmide via viraliza-
ção, percolando em grupos particulares (de família, amigos, trabalho) e atingindo,
potencialmente, uma vasta camada da população.
Metodologia
As características específicas da plataforma WhatsApp acarretam complexi-
dades metodológicas e éticas para a pesquisa. A criptografia confere ao aplicativo
um caráter opaco ao controle social. No caso dos grupos bolsonaristas, um compli-
cador adicional é a recorrência de estratégias de expulsão de supostos opositores.
Não raro circulam listas de “infiltrados” com a recomendação de que os administra-
dores promovam varreduras constantes nos contatos para exclui-los.
Optou-se, assim, pela pesquisa encoberta, definida pela resolução 510/2016 do
Conselho Nacional de Saúde (CNS). Trata-se de modalidade em que o pesquisador
se junta aos grupos sem divulgar identidade ou objetivo da pesquisa. Não há publi-
cação e distribuição dos termos da pesquisa e de seus procedimentos, o que impede
que os integrantes optem pela participação livre e esclarecida. Segundo Chagas,
Modesto e Magalhães (2019), a ausência do direito de não ser pesquisado é a prin-
cipal controvérsia ética. Apesar disso, citando Padilha et al., os autores afirmam
que o método “não deve ser rejeitado, visto que a coleta de dados por outras formas
é inviável” (CHAGAS; MODESTO; MAGALHÃES, 2019, p. 2). Entende-se que é o
caso aqui, inclusive em virtude de possíveis hostilidades ao pesquisador. Ressalte-
-se, porém que 1- o levantamento se deu apenas em grupos públicos, cujos links de
acesso podem ser encontrados outros grupos semelhantes e em páginas de apoio a
Bolsonaro na internet e 2- as precauções relativas à privacidade incluíram o não
armazenamento de informações pessoais dos pesquisados, à exceção dos números
telefônicos, cujo fornecimento a outros integrantes dos grupos não fere as políticas
de uso do WhatsApp. –, preservaram-se todos os demais dados privados dos sujei-
tos pesquisados.
Em termos práticos, os dados foram coletados por meio de smartphone es-
pecífico associado aos grupos. A amostra não probabilística por conveniência foi
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extraída de um universo de 30 grupos públicos de WhatsApp monitorados pelo
pesquisador desde 2018. Para a seleção da amostra, foram excluídos grupos com
nomes não relacionados ao bolsonarismo (Senta a Púa, Stellacruz etc.), ligados à
direita em geral (direita Brasil etc.), regionais (direita Goiás, Paulista etc.), veícu-
los informativos, mesmo que alinhados ao bolsonarismo, grupos ex-bolsonaristas
(apoio a lava-jato, nacionalismo) e de pautas setoriais (limpeza no Judiciário). Fo-
ram mantidos 18 grupos cujos nomes expressassem, presentemente, apoio explí-
cito ao presidente Bolsonaro, fosse com seu nome, apelidos (mito etc.), slogans por
ele usados (pátria amada, Brasil; Brasil Acima de Tudo etc.), pautas caras a seu
mandato, seu projeto de partido (Aliança pelo Brasil etc.) ou figuras satélite do
bolsonarismo (Michelle Bolsonaro).
Após o ingresso nos grupos, ajustou-se a metodologia de Garimella e Tyson
(2018), que consiste no monitoramento manual de dados, a importação da amostra
para planilhas de análise e a caracterização dos atributos essenciais da comunica-
ção. Passou-se à contagem das mensagens enviadas nos grupos selecionados, entre
os dias 6 e 8 de julho de 2020, perfazendo um período de coleta de 48 horas. Obte-
ve-se um total de 3.211 mensagens, média de 178 por grupo (n. máx. = 504, n. mín.
= 8). Em comparação com outros dois momentos de coleta (RATIER, 2020a, 2020b),
observa-se diminuição na atividade dos grupos: em junho de 2019, foram em média
236 mensagens trocadas diariamente. Em fevereiro de 2020, 140 mensagens, e em
julho de 2020, 89.
O intervalo coincide com a progressiva deterioração das condições de governa-
bilidade de Jair Bolsonaro. O front da comunicação foi atingido com revelações da
CPMI das fake news e pelo inquérito do Supremo Tribunal Federal sobre o mesmo
tema. Em junho de 2020, youtubers bolsonaristas teriam apagado 3.463 vídeos de
seus perfis (ALVES, 2020). A retirada sucede operações de busca e apreensão e a
prisão de um blogueiro aliado. Também ocorreu no período a prisão de Fabrício
Queiroz, amigo pessoal do presidente há três décadas, ex-assessor parlamentar do
então deputado estadual Flávio Bolsonaro, acusado de ligações com milícias e de
liderar um esquema de “rachadinhas” na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.
A detenção de Queiroz levou à diminuição de manifestações públicas de Jair Bolso-
naro e de um abrandamento de tom em seu perfil no Twitter.
O período selecionado para a amostra, por sua vez, registrou no noticiário
relativo a Bolsonaro a soltura do blogueiro simpatizante Oswaldo Eustáquio Filho
e de dois apoiadores que fizeram atos contra o ministro do STF, Alexandre de Mo-
raes. Na economia, queda na arrecadação federal pelo 5º mês consecutivo. No meio
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ambiente, um pedido de combate ao desmatamento de 36 grandes companhias ao
vice-presidente Hamilton Mourão, presidente do Conselho Nacional da Amazônia
Legal. As notícias sobre a pandemia de covid-19 davam conta de um aumento nos
óbitos em casa e em vias públicas, fato atribuído a falhas no enfrentamento ao coro-
navírus. O próprio presidente, após minimizar a doença, acabou testando positivo
no dia 8 de julho, iniciando no próprio momento do anúncio apologia ao medica-
mento hidroxicloroquina, sem eficiência comprovada cientificamente no tratamen-
to dos sintomas.
Tabuladas as interações entre os grupos, destacou-se o grupo cujo número de
mensagens mais se aproximasse da média (179 interações). As conversas foram
enviadas para tabulação pela opção “exportar conversas sem mídia” do aplicativo,
resultando em um arquivo de texto convertido para o software Excel. As peças so-
noras, visuais ou audiovisuais foram examinadas posteriormente uma a uma pelo
pesquisador para os procedimentos de categorização do conteúdo.
Apresentação dos resultados
No período da coleta de dados, o grupo contava com 201 integrantes, excluindo
o pesquisador. Foi criado em 05 de dezembro de 2018 por um número telefônico
registrado nos Estados Unidos, embora a descrição do grupo informe que o “criador
e administrador” é um homem supostamente de João Pessoa, Paraíba. O grupo
conta com 6 administradores. No período de análise, dois integrantes abandona-
ram o grupo, sendo excluídas as duas sinalizações de saída do total de mensagens
(n=177).
Quanto aos participantes, verificaram-se tendências expressas, em estudo
anterior (RATIER, 2020b), de que: 1- a grande maioria dos usuários não interage
no grupo; 2- os fluxos comunicativos estão concentrados em uma “elite falante”
de integrantes. Ao longo das 48 horas analisadas, apenas 23% dos integrantes
(n=47) postaram algum conteúdo. A atividade de postagem, por sua vez, tam-
bém se encontra desigualmente distribuída. Apenas 4% dos usuários (n=9) são
responsáveis por 50% das mensagens enviadas, sendo que 17% do conteúdo
é produzido ou compartilhado por apenas dois números de telefone. Ressalte-se,
ainda, que a “elite administrativa” pouco postou: apenas 3 das 179 mensagens
(1,6% do total) partiram de 2 dos 6 celulares cadastrados como responsáveis pelo
grupo (Tabela 1).
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Tabela 1 – Usuários e mensagens enviadas
Número de usuários % do total de usuários Número de mensagens % do total de mensagens
154 77% 0 0%
47 23% 177 100%
9 4% 90 50%
2 1% 31 17%
Fonte: elaboração própria.
Também há congruência com Ratier (2020b) quanto à natureza das mensa-
gens: 90% delas (n=158) foram produzidas por terceiros, sendo 41% encami-
nhadas (n=72) e 49% copiadas1 (n=86). Apenas 7% das mensagens podem ser
consideradas como autorais (n=12), sendo basicamente emojis (n=2) e textos de
resposta (n=10). Muito curtos (média de 53 caracteres por resposta, 20% do limite
das postagens no microblog Twitter), apresentavam tom de concordância a alguma
postagem anterior. Não foi possível identificar a natureza de 4% das mensagens.
Em termos de mídia, predomínio dos recursos audiovisuais: 55% (n=97),
sendo 32% vídeos (n=56), 20% imagens (n=35) e 3% áudios (n=6). Postagens com
links externos são 28% (n=50), textos, 13% (n=23) e emojis, 4% (n=7). Ao todo, 59%
das postagens são nativas do WhatsApp (n=106), o que significa alta acessibi-
lidade para planos de internet móvel populares que possibilitam navegação ilimi-
tada no aplicativo, mas não em recursos fora dele. Links externos (41%, n=71),
por sua vez, apontam sobretudo para sites hiperpartidários, de apoio ex-
plícito a Bolsonaro. Eles são 58% do universo de links externos (n=41), enquanto
a mídia profissional representa apenas 7% (n=5). O restante dos links aponta para
redes sociais como o YouTube (24%, n=17), Facebook (7%, n=5) e Twitter (3%, n=2).
Novamente, as ordens de grandeza são semelhantes às encontradas em estudo
anterior.
A análise de conteúdo se deu na mesma amostra entre os dias 10 e 14 de ju-
nho. Das 177 mensagens originais, foram consideradas 174 cujos links e mídias se
encontravam ativos no momento da análise.
Pode-se identificar o gênero discursivo em 163 postagens. Seguindo Chapar-
ro (1998), operou-se a distinção basal dos gêneros jornalísticos, a separação entre
informação e opinião – reconhecendo-se, para tanto, o aspecto proeminente em
cada uma das postagens. Houve predominância do gênero opinativo em 60%
das postagens (n=98), sempre favoráveis a Bolsonaro. O gênero informativo es-
teve presente em 32% postagens (n=52), o publicitário em 5% (n=8) e outros em
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3% (n=5), porcentagens semelhantes, uma vez mais, a estudo anterior (RATIER,
2020a).
Entre os opinativos, destacam-se os vídeos de dois tipos. Os que remetem a
links do YouTube são mais longos, entre 13 minutos e 2 horas de duração, e costu-
mam recorrer à estrutura opinativa clássica: um comentarista em plano americano,
falando diante de um cenário caseiro ou em chroma key (fundo virtual), abordando
algum assunto polêmico ou realizando um “giro de notícias” opinativo. Já os vídeos
nativos para WhatsApp são mais curtos (máximo de 8 minutos) e priorizam edições
de trechos maiores – discursos de políticos, testemunhos de populares, excertos de
programas de TV ou vídeos em redes sociais. Tendem a ser discursivamente mais
agressivos, confirmando a vocação da plataforma para peças mais radicais.
As postagens informativas são sobretudo links de veículos informativos hi-
perpartidários, com pauta de defesa do presidente Bolsonaro (Goiás 365, Tudo OK
Notícias, Duna Press etc.). As reportagens não trazem apuração própria e são, em
geral, de fonte única e oficial: reaproveitamento de falas do presidente em posta-
gens na internet, releases de ministérios do governo, do site gov.br ou da estatal
Agência Brasil, cópias de veículos como O Antagonista, CNN e Jerusalem Post. A
maioria dos textos não é assinada. As postagens classificadas como publicitárias,
por sua vez, são vídeos com ações do governo na pavimentação de estradas e entre-
ga de equipamentos às polícias, seguindo a estrutura padrão de narração em off,
lettering (inserções de texto no vídeo) e imagens de cobertura.
Padrões de conteúdo, tema e estratégias discursivas
Em sua pesquisa online em grupos públicos de WhatsApp durante o período
eleitoral em 2018, Cesarino (2019a) apresenta funções metalinguísticas básicas
que, segundo a autora, “cobrem praticamente todo o conteúdo coletado” nas redes
bolsonaristas: 1- fronteira antagonística amigo-inimigo; 2- equivalência líder-po-
vo; 3- mobilização permanente através de ameaça e crise; 4- deslegitimação de
instituições para a produção de um canal midiático exclusivo2. Considerou-se que
seriam boas balizas para a classificação do conteúdo e a indicação de eventuais
padrões de recorrência.
Com efeito, 79% das postagens (n=138) apresentava uma ou mais das
quatro funções básicas apresentadas pela autora. Desse total, 28% (n=49)
apresentaram duas funções e 6% (n=11), três funções (Gráfico 1):
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Gráfico 1 – padrões de estruturação de conteúdo (respostas múltiplas)
79%
63%
25%
20%
11%
6%
Presença de alguma estratégia
amigo-inimigo
equ iv an cia líd er-p ovo
ameaça iminente
deslegitimação de instituões
ambiência conservadora
Fonte: elaboração própria.
Entre as estratégias analisadas, destaca-se a fronteira antagonística amigo-i-
nimigo, com 63% (n=109). Em seguida a equivalência líder-povo, com 25% (n=43),
mobilização permanente através de ameaça e crise 20% (n=35) e deslegitimação
de instituições para a produção de um canal midiático exclusivo, com 11% (n=19).
Identificou-se, ainda, um quinto padrão de produção de conteúdo que denominamos
ambiência conservadora, com 6% (n=10). São sobretudo postagens de cunho reli-
gioso (leituras de evangelho e sua exegese, músicas evangélicas etc.), que sugerem
aspecto relevante a compor identidade conservadora e ligada a valores tradicionais
ambicionada por Bolsonaro.
Quanto aos temas, predominância das postagens que orbitam em torno de
temas da atualidade (covid-19, 31%, n=54, em geral com críticas à oposição e elo-
gios ao governo) e do líder (Bolsonaro, 25%, n=44). A seguir é possível identificar
um bloco de “neoinimigos” (20%, n=34), representados pelos outros poderes (STF,
congresso) e demais níveis de governo (governadores, prefeitos) e mesmo o “fogo
amigo” no executivo (ministros e militares que não estariam apoiando Bolsonaro o
suficiente). Os “velhos inimigos” (PT e Lula, esquerda, Venezuela e Maduro) perfa-
zem 11% (n=19). Outros antagonismos (Globo, meio ambiente, China), 8% (n=13),
e as menções de cunho religioso, 5% (n=8) (Gráfico 2).
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Gráfico 2 – Temas das postagens (respostas múltiplas)
31%
25%
20%
11%
5%
3%
3%
2%
covid-19
Bolsonaro
"neoinimigos" (STF, congresso)
"vel hos i nimigos" (PT, esquerda…)
religião
China
meio ambiente
G lo bo
Fonte: elaboração própria.
Buscou-se, ainda, mapear as principais estratégias discursivas, relacionadas
à forma das postagens. Pode-se apontar três vetores principais. Um primeiro, vol-
tado à descontextualização (45%, n=78), reúne técnicas como edição enviesada, edi-
torialização, falsa equivalência, inversão de acusação, indeterminação de agentes,
caricaturização e metáforas. Um segundo, que poderíamos chamar de formas alter-
nativas de veridição (44%, n=76), abarca, conforme Cesarino (2021), estratégias de
questionamento ao paradigma jornalístico da objetividade: informações falsas, teo-
rias da conspiração e experiências imediatas – notadamente, vídeos testemunhais.
Um terceiro, o do apelo à emoção (42%, n=73), compreende vitimização, chamado à
ação da militância, hipérboles e desumanização. Ressalte-se o uso dos três recursos
em nível muito superior a outras estratégias discursivas mais clássicas como a
linguagem de notícia (21%, n=36, em geral de fonte copiada da grande mídia ou de
fonte oficial do governo), humor (3%, n=6), propaganda (3%, n=5) e argumentação
(2%, n=4) (Gráfico 3):
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Gráfico 3 – Padrões de estratégias discursivas (respostas múltiplas)
45%
44%
42%
21%
3%
3%
2%
descontextualização
formas alternativas de veridição
apelo à emoção
no tíci a
hu mor
propaganda
arguentação
Fonte: elaboração própria.
Discussão dos resultados
Defende-se que a materialização de uma “pedagogia da ameaça” nos grupos
bolsonaristas se alicerça em um conjunto de padrões de comunicação, sobressain-
do-se três: 1- binômio amigo-inimigo, 2- apelo à emoção e 3- estratégias de desin-
formação.
O gênero preferencial do WhatsApp bolsonarista é o opinativo – explicito ou
disfarçado pelo formato de “giro de notícias”, ainda que o conteúdo seja evidente-
mente editorializado. Sua roupagem usual são os vídeos em que um comentarista,
posicionado diante de um cenário caseiro ou fundo do tipo chroma key (são fre-
quentes montagens virtuais com estantes de livros), exprime pontos de vista sobre
um ou mais assuntos. O polemismo é a marca, com uso extensivo do ad hominem
para identificar adversários e defender o presidente. O youtuber bolsonarista Mau-
ro Fagundes chama Sergio Moro, ex-aliado e atual desafeto dos bolsonaristas, de
“afeminadozinho”, “abaitolado” que “botou os mamilos de fora” e que, na realidade,
seria um “agente do PCC”. Os vídeos nativos do aplicativo tendem a ser mais cur-
tos e mais virulentos. Em um deles, homem não identificado, com maquiagem de
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palhaço e camisa do exército, critica com palavrões, linguagem bélica e expressões
ameaçadoras os generais que, supostamente, não defendem Bolsonaro. “Ninguém
tem obrigação de ficar babando o ovo [dos generais]. Tem mais é que sacanear para
eles caírem na real”.
O binarismo amigo-inimigo aparece com frequência nos memes que circu-
lam pelo grupo. Em seu estudo sobre o WhatsApp bolsonarista, Cesarino (2019a,
2019b) recorre à definição “técnica” de Laclau (2013) para sublinhar os dois traços
fundantes do populismo: a equivalência entre líder e povo e a demarcação evidente
de aliados e inimigos. Esses últimos, mais que adversários, são grupos que, ao se
oporem ao líder, põem em risco a própria existência social (uma vez que o líder é o
povo), devendo por isso ser eliminados. A referência incontornável é a obra política
de Carl Schmitt (2009), cientista político iliberal para quem a “essência” do político
é a organização coletiva de um grupo contra inimigos internos e externos. A guerra,
manifestação extrema da inimizade, é o pressuposto existente como possibilidade
sempre real. Estratégias discursivas desumanizadoras são peça chave na constru-
ção da imagem do inimigo político, pois ele:
É precisamente o outro, o desconhecido e, para sua essência, basta que ele seja, em um
sentido especialmente intenso, existencialmente algo diferente e desconhecido, de modo
que, em caso extremo, sejam possível conflitos com ele, os quais não podem ser decididos
nem através de uma normalização geral empreendida antecipadamente, nem através da
sentença de um terceiro “não envolvido” e, destarte, “imparcial” (SCHMITT, 2009, p. 28).
Concorda-se com Cesarino (2019a, 2019b) que a equivalência líder-povo e a
antítese amigo-inimigo são características evidentes na memética bolsonarista. Se
a lista de inimigos abarca hoje virtualmente toda a institucionalidade, a triparti-
ção de poderes e os sistemas de freios e contrapesos constituintes da democracia
moderna, a esquerda segue sendo o alvo tradicional.
Nos dois exemplos a seguir, texto e arte sugerem, por meio de uma cadeia
de associação, a correspondência entre esquerda e malfeitos. O apelo à emoção
é evidente na primeira imagem, com a equiparação de Lula a autores de crimes
violentos de forte impacto na opinião pública. Descontextualizado, o texto traz a
sugestão de que todos teriam sido contemplados com a impunidade judicial (Figu-
ra 1). No segundo, o significante “PT” é alargado – à moda do significado elástico
de “comunismo”, que conforme Adorno (2020) perde sua concretude e adquire um
caráter místico e abstrato –, de modo a abarcar a centro-direita do ex-presidente
Michel Temer (MDB) e do deputado federal Aécio Neves (PSDB). Passa, na práti-
ca, a significar todo o sistema político (a “velha política”) e seus defensores. Num
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entorno ameaçador, a complexidade da escolha se reduz à opção entre bem e mal
(Figura 2). O tuíte de Allan dos Santos (Figura 3) estende o malefício aos demais
poderes da institucionalidade democrática (STF, Congresso). A ameaça iminente
justifica um chamado enfático à ação. O senso de urgência é evidenciado pelo uso
de letras maiúsculas nas expressões “precisa”, “efetivo” e “mais do nunca”:
Figura 1 – Cadeia de associações
Fonte: grupos de WhatsApp pró-Bolsonaro.
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Figura 2 – Oposição amigo-inimigo
Fonte: grupos de WhatsApp pró-Bolsonaro.
Figura 3 – Plasticidade da categoria “inimigo
Fonte: grupos de WhatsApp pró-Bolsonaro.
A equivalência líder-povo, por sua vez, procura equiparar uma espécie de su-
jeito coletivo da nação ao caudilho ressaltando aspectos do culto à personalidade de
Bolsonaro (simplicidade, conservadorismo, disciplina, religiosidade). Construída
pela síntese entre imagem e título telegráfico, o meme não assinado sugere humil-
dade e fé. O apelo à emoção e o reforço ao binarismo amigo-inimigo se ampliam no
texto encaminhado que acompanha o meme: “ajoelhado em frente ao Santíssimo
Sacramento, buscando forças para combater os comunistas e outros inimigos da
Igreja e do Brasil. Que Jesus e Maria o abençoe [sic], grande presidente!” (Figura
4). Valores vagos e carregados de emoção – homem de família, patriota, honesto
e antiabortista – são evocados no meme ilustrado em verde amarelo e com a ban-
deira do Brasil, opções recorrentes na estética bolsonarista. Mesmo que o nome do
presidente não esteja explicitamente evocado, a associação pelo contexto é evidente
(Figura 5). A gramática simples baseada em oposições do tipo certo-errado (amare-
lo versus vermelho, bandeira do Brasil versus bandeira vermelha, semblante ale-
gre versus cara fechada, torcida pela cloroquina versus torcida pelo coronavírus) é
a base para a charge sobre a epidemia da covid-19 (Figura 6):
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Figura 4 – Equivalência líder-povo
Fonte: grupos de WhatsApp pró-Bolsonaro.
Figura 5 – Valores emocionais vagos
Fonte: grupos de WhatsApp pró-Bolsonaro.
Figura 6 – Gramática da oposição simples
Fonte: grupos de WhatsApp pró-Bolsonaro.
O enquadramento emocional e a manipulação do medo são evidenciados por
Serelle e Soares (2019), Chagas, Modesto e Magalhães (2019) como estratégias ba-
sais na comunicação digital da chamada nova direita. Não soa descabido falar em
reavivamento de técnicas de psicologia de massa do fascismo (REICH, 1988) ou do
radicalismo de direita (ADORNO, 2020). Citando Hitler, Reich (1988, p. 48) afirma
que o próprio ditador nazista acentua a tática de, nos comícios diante das massas,
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abrir mão da argumentação, manejando de forma efetiva as emoções e apontando
apenas o “grandioso objetivo final”. Em Mein Kampf, o ditador nazista afirma que
que os pensamentos e ações do povo “são determinados muito mais pela emoção e
sentimento do que pelo raciocínio” e guiados por uma espécie de binarismo ava-
liativo: “não há muitas nuanças; há sempre um positivo e um negativo; amor ou
ódio, certo ou errado, verdade ou mentira, e nunca situações intermediárias ou
parciais” (REICH, 1988, p. 61). Adorno também vê um esquema do tipo estímulo-
-resposta na latência do fascismo na Alemanha do final dos anos 1960. Afirma que
todas as manifestações ideológicas do radicalismo de direita estão marcadas pela
necessidade de convocar o que chama de “personalidade autoritária” – estímulo
de ressentimentos, medos, chamados à ordem e à disciplina –, estratégia capaz de
“levar as audiências ao ponto de ebulição” (ADORNO, 2020, não paginado). Para
Adorno, o estado de agitação permanente é tudo o que o fascismo poderia oferecer:
o radicalismo de direita seria marcado por ausência de propostas e desejo de catás-
trofe, flertando de forma muito profunda com a psicose.
Por fim, uma parcela do binarismo amigo-inimigo é construída com base em
informações fraudadas, falsas, distorcidas ou descontextualizadas – para Adorno
(2020), esse último recurso é a principal técnica por meio da qual a verdade se põe a
serviço da falsidade. O texto que acompanha a imagem em branco e preto, suposta
ganhadora do Prêmio Pulitzer, fala em um proprietário de terra, abençoado por
um padre, morto por fuzilamento porque “se recusou a trabalhar para o regime
de Fidel Castro”. A ameaça “comunista” representada por Cuba e Venezuela – e,
mais recentemente, Argentina, que “quis pagar o preço para ver o resultado de
um governo esquerdista ligado ao Foro de São Paulo de novo”, como diz uma das
mensagens do período –, é frequente, costumeiramente inserida numa cadeia de
equivalência com violência, ditadura, censura, pobreza e ineficiência estatal. No
exemplo em tela, serviço de checagem de fatos indica que se trata de uma fake
news com versões em português de Portugal e em espanhol. A fotografia de Andrew
Lopez é efetivamente vencedora do Pulitzer, mas retrata um cabo do exército do
regime ditatorial de Fulgencio Batista, derrubado pela Revolução Cubana (Figura
7). Foi executado após ser considerado culpado por um tribunal militar por crime
de guerra (MORAES, 2019). Não há registro de que a ordem tenha partido de Er-
nesto “Che” Guevara. Outra postagem do período desmentida (MATSUKI, 2020) é
“URGENTE! TRIBUNAL CONSTITUCIONAL MILITAR!”, que fala na iminência
da assinatura presidencial para um decreto que cria “um novo tribunal ACIMA
DO STF, para processar e julgar TODOS os bandidos e criminosos que estão nos
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Poderes da República”. A postagem também termina com uma exortação à militân-
cia digital: “Gostou da notícia!? Então compartilhe ao máximo! E vamos subir com
urgência a hashtag: #TribunalConstitucionalMilitarJá!!!”.
Figura 7 – Desinformação
Fonte: grupos de WhatsApp pró-Bolsonaro.
Concordando com Pinheiro e Brito (2014) e conferindo à desinformação um
sentido amplo – informação de baixo valor cultural ou utilidade para a participa-
ção no processo político e a tomada de decisões cotidianas –, tem-se que grande
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parte do conteúdo do WhatsApp bolsonarista pode ser encaixado nessa categoria.
Incluem-se aí diferentes estratégias de descontextualização (informações falsas,
edições enviesadas, produções ofensivas etc.) e o que se pode chamar de formas
alternativas de veridição. Segundo Cesarino (2020, no prelo), tratam-se de episte-
mologias populares que tendem a funcionar como estratégias de legitimação de um
determinado relato.
Tal contexto se torna possível diante da crise do sistema de peritos (univer-
sidade, jornalismo, ciência) e de um ecossistema midiático altamente poluído.
Cesarino (2020, no prelo) define a pós-verdade como uma situação de desordem
informacional, enquanto Romero-Rodriguez, De-Casas e Pedreira (2018) criam
o neologismo infoxicação – junção de informação e intoxicação – para designar o
consumo indiscriminado de informação de baixa qualidade. Para os autores, não
se trata de conjuntura episódica, mas de “situação estrutural” das mídias na con-
temporaneidade:
Nace así la era de la “infoxicación” em la que se le da a la audiencia el contenido que esta
desea – generalmente de infoentretenimiento – con el fin de asegurar cuotas de publi-
cidad, a la vez que los propios receptores son incapaces de realizar un correcto filtrado
de las informaciones, aceptando como ciertas aquellas que incluso son contrarias a otras
que ya han aceptado como verdadeiras. Parece entonces que hemos llegado a comprender
que la desinformación es uma situación estructural del ecosistema mediático y que las
audiencias, paradójicamente, emergen como víctimas propiciatorias de este fenómeno3
(ROMERO-RODRIGUEZ; DE-CASAS; PEDREIRA, 2018, p. 74-75).
Destacam-se as teorias da conspiração. Em vídeo nativo do aplicativo, comen-
tarista sugere que a China, a quem o governador João Doria estaria “entregando
São Paulo”, criou um “vírus muito letal para o resto do mundo” com um “braço
comunista” – a Organização Mundial da Saúde (OMS). Em outro vídeo nativo,
narrador não identificado compara a Covid-19 à dominação nazista. Afirma que
o “sonho encantado dos comunistas” do Brasil era implantar o regime. “Para isso,
precisa antes empobrecer a população para que ela venha comer aos pés dos gover-
nantes”. Ambas a produções contêm forte apelo à emoção. O vídeo sobre a China
tem música de suspense e tela inicial de alerta; o do nazismo, montagens e imagens
fortes do holocausto.
As experiências imediatas também se encaixam nessa categoria. Em áudio
atribuído a Alexandre Garcia, o jornalista ex-TV Globo e neoconvertido ao bolso-
narismo lamenta a “politização da hidroxicloroquina”: “Eu, como marido de mé-
dica, recebo informação dos médicos. Em Brasília no mínimo 130 médicos estão
aplicando a hidroxicloroquina. Ouço todos os dias depoimento de gente que teve
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uma gripezinha graças à hidroxicloroquina [...]. As pessoas não estão mais indo
na conversa de gente que vive de semear o pânico”. O lettering que acompanha o
áudio testemunhal (“O louco estava certo”, “a mídia te manipulou e você acredi-
tou”) aposta na deslegitimação da mídia, estratégia que vai em par com as formas
alternativas de veridição.
Conclusões
No deberíamos subestimar estos movimentos por su ínfimo nível intelectual
ni por su falta de teorización. Sería uma enorme falta de visión política pensar
que por eso no van a tener éxito. Lo característico de estos movimentos es más
bien um extraordinária perfección de los médios, y concretamente em primer
lugar los médios propagandísticos em el sentido más amplio, combinada em
semejante perfección de las técnicas y los médios, mientras que se escamotea
de passo el fin que realmente se persigue para la sociedade em general4
(ADORNO, 2020, não paginado).
Mesmo instigado pela curiosidade que anima a pesquisa, acompanhar um
grupo público de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro é uma atividade penosa.
Minha experiência pessoal é de repulsa: o smartphone exclusivo em que monitoro
os grupos fica desligado exceto em momentos de ida a campo, sempre psicologi-
camente penosos. É de se imaginar o que uma instância de socialização opaca ao
controle social, de baixa confiabilidade informativa, centrada no emissor, com pe-
dagogia e gramática reforçadoras de um imaginário de ameaça permanente, possa
acarretar às formas de ser, agir e pensar de uma relevante camada da população. A
experiência no WhatsApp bolsonarista e a vivência de sua pedagogia da ameaça re-
convocam termos e estratégias que pareciam superados tanto no campo da sociali-
zação quanto no da comunicação. É possível falar, por exemplo, em manipulação ou
socialização ideologizada, no sentido de ideologia proposto por Thompson (1995):
mensagens que reforçam estruturas de dominação, hierarquias e relações de po-
der. Ainda que sejam necessários estudos de recepção para que se entenda com
maior clareza os significados que as audiências constroem a partir da mediação do
ecossistema midiático bolsonarista, o sucesso eleitoral e a resiliência de sua base
de apoio, a despeito de uma administração claudicante, são indícios da eficácia da
produção de conteúdos.
É de se pensar sobretudo na manipulação fundamental operada pelo bolsona-
rismo. Com a estratégia de construção de um canal midiático exclusivo, simula-se
um ambiente informativo, de troca de ideias e, por que não, de democracia direta,
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uma vez que existe a ilusão do contato direto, via tecnologia, do militante com o
líder (CESARINO, 2019b). Entretanto, o que existe concretamente, mais do que as
já conhecidas “bolhas semânticas” geradas pela algoritmização das redes sociais,
é a instrumentalização de uma mídia pela propaganda – agravante: seu caráter
tóxico. O binarismo amigo-inimigo cria indivíduos e grupos a serem eliminados.
Campanhas difamatórias, apelo a emoções como ressentimento, ódio e medo, ali-
mentadas por desinformação e culto à personalidade, distraem das discussões es-
senciais e têm o potencial inflamatório da polarização. A ausência do contraditório
e do controle social sobre o conteúdo veiculado favorece uma socialização da radica-
lização, disseminando modos de ser, agir e pensar que atuam no sentido contrário
da construção de consensos e questionam a própria existência da esfera pública
enquanto arena do debate racional de ideias.
Notas
1 Consideram-se como copiados links, vídeos e imagens claramente não produzidos pelos integrantes que
postaram o conteúdo e textos cuja presença foi notada em outros grupos monitorados pelo pesquisador.
2 Julgou-se que uma quinta função metalinguística apresentada por Cesarino (2019b), o “espelhamento do
inimigo e inversão de acusações”, dizia respeito mais à forma que ao conteúdo das mensagens. A opção foi
incluir a estratégia na análise das estratégias discursivas.
3 Tradução do autor: “nasce assim a era da infoxicação, na qual a audiência recebe o conteúdo que deseja
– geralmente de infoentretenimento – a fim de garantir cotas de publicidade, ao mesmo tempo em que
os próprios destinatários são incapazes de realizar uma filtragem correta de informação, aceitando como
certas aquelas que são até contrárias a outras que já aceitaram como verdadeiras. Parece então que che-
gamos a compreender que a desinformação é uma situação estrutural do ecossistema midiático e que as
audiências, paradoxalmente, emergem como vítimas propiciatórias desse fenômeno”.
4 Tradução do autor: “Não devemos subestimar esses movimentos devido a seu ínfimo nível intelectual ou à
falta de teorização. Seria uma enorme falta de visão política pensar que é por isso que eles não terão suces-
so. A característica desses movimentos é antes uma extraordinária perfeição da mídia, e especificamente
em primeiro lugar a mídia propagandística no sentido mais amplo, combinada em tal perfeição de técnicas
e mídia, enquanto se escamoteia o fim que realmente é perseguido pela sociedade em geral”.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Pedagogia da ameaça: uma análise dos padrões comunicativos de socialização no WhatsApp bolsonarista
v. 28, n. 1, Passo Fundo, p. 166-191, jan./abr. 2021 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
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Distanciamento físico e ensino remoto: socializações em tempos de pandemia
Physical distance and remote learning: socializations in times of pandemic
Distanciamiento físico y educación remota: socializaciones en tiempos de pandemia
Paula Alexandra Reis Bueno*
Roberto Eduardo Bueno**
Resumo
Objetivou-se capturar e analisar marcas de socializações advindas do ensino remoto, durante o fechamento das
instituições de educação formal, em virtude da pandemia da Covid-19. Primeiramente, desenvolveu-se uma
análise documental, a partir de ensaios de organizações não governamentais (ONGs), pareceres de Conselhos
de Educação, relatórios de pesquisas e documentos complementares. Visando vericar variações intrapessoais,
realizaram-se entrevistas com 57 sujeitos, entre estudantes e professores da educação básica e mestrandos e
doutorandos de um programa de pós-graduação. Encontrou-se um panorama dividido em posicionamentos e
valores; o fortalecimento de instâncias socializadoras em universos virtuais; novas maneiras, formas e técnicas
de se ensinar e aprender; e disposições para uma educação mesclada entre o ensino presencial e o ensino remo-
to, com construções de novas formas de se ensinar, estudar, aprender e se relacionar entre humanos. Menções
sobre processos adaptativos, diculdade de concentração e diculdade de aprender sem o acompanhamento
presencial de um professor guraram entre os relatos mais recorrentes. Espera-se contribuir para o campo da so-
ciologia e da educação, no sentido de apoiar os estudos que vericam as contínuas construções e reconstruções
das formas de se agir e pensar.
Palavras-chave: socialização; educação; tecnologias de informação e comunicação; ensino a distância; Covid-19.
Abstract
The objective of this study was to capture and analyze socialization marks from remote education, during the
closing of formal education institutions, due to the Covid-19 pandemic. First, a documentary analysis was deve-
loped, based on essays by non-governmental organizations (NGOs), opinions from Education Councils, research
reports and complementary documents. In an attempt to verify intrapersonal variations, interviews were carried
out with 57 subjects, including students and teachers of Basic Education, and masters and doctoral students of
the same university program. It was found a panorama divided into positions and values; and strengthening
socializing instances in virtual universes; also new ways, forms and techniques of teaching and learning; and
dispositions for an education blended between face-to-face and remote education, with constructions of new
* Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP) e mestre em Educação
pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Atua como professora da educação básica vinculada à SEED/PR. Atuou
como professora de pós-graduação do IBPEX e CENSUPEG. Pesquisadora vinculada à USP e à UFPR. Orcid: http://
orcid.org/0000-0002-4595-513X. E-mail: paula.reis.musica@gmail.com
** Pós-doutorado, doutor, mestre e especialista em Saúde Coletiva pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PU-
CPR). Professor do Bacharelado em Saúde Coletiva e dos Programas de Pós-graduação em Políticas Públicas, Ensino
das Ciências Ambientais e Desenvolvimento Territorial Sustentável da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Pesqui-
sador vinculado à USP e à UFPR. Orcid: http://orcid.org/0000-0001-5546-8397. E-mail: roberto.edu.bueno@gmail.com
Recebido: 30/07/2020 – Aprovado: 15/04/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i1.11480
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Distanciamento físico e ensino remoto: socializações em tempos de pandemia
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ways of teaching, studying, learning and relating among humans. Mentions about adaptive processes, diculty
concentrating and diculty learning without the presence of a teacher in person, were among the most recur-
rent reports. It is expected to contribute to the eld of sociology and education, in order to support studies that
verify the continuous constructions and reconstructions of the ways of acting and thinking.
Keywords: socialization; education; information and communication technologies; distance learning; Covid-19.
Resumen
El objetivo fue capturar y analizar las marcas de socialización de la educación remota, durante el cierre de las
instituciones de educación formal, debido a la pandemia Covid-19. En primer lugar, se desarrolló un análisis
documental, basado en ensayos de organizaciones no gubernamentales (ONG), opiniones de Consejos de Edu-
cación, informes de investigación y documentos complementarios. Con el n de vericar variaciones intraperso-
nales, se realizaron entrevistas a 57 sujetos, entre estudiantes y docentes de Educación Básica, y estudiantes de
maestría y doctorado de un Programa de Posgrado. Se encontró un panorama dividido en posiciones y valores;
fortalecer instancias de socialización en universos virtuales; nuevas formas, formas y técnicas de enseñanza y
aprendizaje; y disposiciones para una educación combinada entre la educación presencial y a distancia, con la
construcción de nuevas formas de enseñar, estudiar, aprender y relacionarse entre los humanos. Las menciones
sobre procesos adaptativos, dicultad para concentrarse y dicultad para aprender sin la supervisión presencial
de un docente, se encuentran entre los informes más recurrentes. Se espera contribuir al campo de la sociología
y la educación, para sustentar estudios que veriquen las continuas construcciones y reconstrucciones de las
formas de actuar y pensar.
Palabras clave: socialización; educación; tecnologías de la información y la comunicación; la educación a distan-
cia; Covid-19.
O ser humano nasce em contextos sociais próprios, que os apresentam formas
de agir e pensar. Socializa-se em suas relações com o mundo, com os outros e con-
sigo mesmo. Constrói-se ao longo de sua existência, a partir de suas experiências e
escolhas. Esse texto busca refletir sobre esse processo de socialização, em tempos
de distanciamento físico, em virtude da pandemia da Covid-19. Como se dão as
relações intrapessoais, com instituições e demais sujeitos em momentos de mudan-
ças nas relações sociais advindas de um distanciamento físico? Em especial, como
se dá a relação ensino e aprendizagem na perspectiva da educação formal?
O conceito de socialização vem sendo utilizado por diversos estudiosos do cam-
po da sociologia, assim como do campo da educação. Setton e Bozzetto (2020), com
o apoio de Berthelot (1983), afirmam que a análise dos processos de socialização
demanda o olhar para as instituições, assim como para a história e experiências de
vida dos indivíduos, seus valores pessoais e grupais, e o contexto socio-histórico em
que estão imersos. Desta maneira, tal conceito abrange um potencial de interpreta-
ção das representações e reproduções sociais em diversas dimensões socioculturais,
permitindo a observação de como se constituem as compreensões e visões de mundo.
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Em Durkheim (1978), a ideia de socialização se concretizava com a integração
social, num processo de adaptação ao meio e condições sociais impostas ao indiví-
duo por estruturas sociais como família, escola, igreja, entre outras. Entretanto, a
compreensão contemporânea do conceito propõe pensar uma ação dialética e inter-
dependente entre estas estruturas sociais e as estruturas mentais de cada sujeito.
As relações com instituições sociais contribuem para a compreensão e repro-
dução do mundo vivido, para a incorporação de disposições de habitus pelos in-
divíduos, como diria Bourdieu (2001). Mas, na contemporaneidade, os indivíduos
estão submetidos a uma pluralidade de instâncias socializadoras (LAHIRE, 2006),
podendo estar simultaneamente e sucessivamente em diversos mundos sociais não
homogêneos e, por vezes, contraditórios (SETTON, 2016).
Desta forma, os sujeitos se encontram expostos às disposições de habitus não
homogêneas e consequentemente há diferentes orientações para suas práticas, com
construções de caráter pessoal, maneiras próprias de ser e estar no mundo, promo-
vidas por uma dinâmica de híbridas combinações e escolhas, que Setton (2012) irá
denominar de “disposições híbridas de habitus”.
A partir dessa perspectiva do conceito de socialização, torna-se possível a aná-
lise de processos de individuação e construções de identidades, individuais e de
grupos, por meio de relações indissociáveis entre indivíduos e estruturas sociais; de
mecanismos de resistência e disputa, de permanências e rupturas, ou seja, trata-se
de um entendimento dialógico e multidimensional do conceito, quando o indivíduo
encontra-se com autonomia de escolhas, reflexividade e participação na construção
de si (SETTON; BOZZETTO, 2020).
Outra característica dessa abordagem contemporânea do conceito de socializa-
ção é o entendimento que a identidade não é fixa, o habitus não é estático, mas cli-
vado, construído ao longo da vida (BOURDIEU; CHARTIER, 2012; DUBAR, 2005;
BERGER; LUCKMANN, 2014). Para Dubar (2005), existem sucessivas socializa-
ções numa existência humana, permitindo diversas construções, desconstruções e
reconstruções de identidades ligadas às muitas esferas de atividade e às mudanças
sociais. Bourdieu esclarece seu entendimento de que “o habitus não é um destino...
trata-se de um sistema aberto de disposições que está submetido constantemente
a experiência e, desse modo, transformado por essas experiências” (BOURDIEU;
CHARTIER, 2012, p. 62).
O conceito de socialização abrange, também, algumas especificidades, como o
papel do pertencimento, da linguagem e do reconhecimento nesse processo. Para
Berger e Luckmann (2014), se a socialização consiste na compreensão do mundo,
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ela acontece por meio da linguagem, ou seja, o desenvolvimento da linguagem per-
mite que os indivíduos objetivem seu mundo exterior, uma vez que a linguagem
propicia o adentrar num universo simbólico e cultural. Os autores escrevem a par-
tir dos estudos de Mead (1968), que, por sua vez, apresenta como a última etapa do
processo de socialização, o indivíduo ser reconhecido pelo seu grupo. Dubar (2005)
realiza a leitura de Berger e Luckmann enfatizando que a socialização apresenta
uma dupla dimensão: de construir a si mesmo e obter um reconhecimento recí-
proco, ou seja, ser reconhecido por quem se reconhece. Com a leitura dos textos
de Hegel, Dubar encontra o entendimento de que o reconhecimento recíproco é o
ápice da socialização, e a linguagem evidencia esse reconhecimento (HEGEL apud
DUBAR, 2005).
Bourdieu (2013) empreende esforços e desvela mecanismos ocultos para o re-
conhecimento em um campo específico de seu espaço social, no caso, a academia.
Os achados do sociólogo parecem ainda válidos para o referido campo social, mes-
mo na realidade brasileira; ou seja, a estrutura do espaço dos poderes, numa aca-
demia, envolve notoriedade intelectual, poder científico, acúmulo de posições que
permitem controlar outras, notoriedade da instituição de pertença, entre outras
classificações. Ainda, para além do espaço do Ensino Superior, elementos dessa es-
trutura do espaço de poder, também podem ser encontrados em outras instituições,
como nas escolas de Educação Básica, por exemplo.
No entanto, outro espaço se impõe na sociedade contemporânea, no qual o
reconhecimento parece ser advindo de views e likes. Refere-se ao espaço virtual,
que em 2020 ganhou ainda mais força, devido à necessidade de um distanciamento
social, que se nomeará neste estudo de distanciamento físico, ocorrido por conta de
uma pandemia viral que assolou a vida e as experiências. Optou-se pela nomeação
“distanciamento físico”, pois no universo da internet, as relações sociais se inten-
sificaram, ocorrendo muitas lives (transmissões ao vivo), cursos e vídeos diversos
postados em mídias sociais e outros meios digitais.
Diante desse contexto se questiona se os espaços de poderes do mundo virtual
imitam o do mundo material, ou se transformam nessa realidade paralela? Em que
medida esses dois mundos se intersectam e se influenciam nesta segunda década
do século XXI? Como isso se reflete nas socializações e consequentemente nas for-
mas de se agir e pensar? Como se dão as relações intrapessoais, com instituições e
sujeitos em momentos de distanciamento físico? Em especial, como se dá a relação
ensino e aprendizagem na perspectiva da educação formal?
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Esses inquietantes e amplos questionamentos emergiram quando dois profes-
sores pesquisadores mudaram suas rotinas de trabalho de salas físicas e olhos nos
olhos, para salas virtuais e olhos na tela. Refletindo sobre as questões abordadas,
voltaram-se aos documentos de instâncias que interviram na dinâmica das aulas
remotas.
Os Conselhos de Educação orientaram para o andamento da educação formal
durante o período de distanciamento físico. Muitas de suas orientações foram con-
templadas nas resoluções das Secretarias de Educação. Esses conselhos, por sua
vez, são representados por indivíduos da sociedade civil, mas, também, recebem
pressão política das ONGs; sendo que nem sempre essas instituições apresentaram
posicionamentos convergentes. Duas ONGs se manifestaram de forma bastante
expressiva quanto ao ensino remoto, e alcançaram maior visibilidade.
Desta forma, visando promover a reflexão, buscou-se uma análise em docu-
mentos publicados por essas ONGs; pelos Conselhos de Educação; relatórios de
pesquisa sobre o tema; e documentos oficiais de uma Secretaria de Educação, de
uma Universidade Federal e de um Sindicato. As escolhas desses últimos docu-
mentos complementares se deram em virtude do recorte do estudo, que se efetivou
a partir dos estabelecimentos de trabalho dos pesquisadores, e na perspectiva de
uma segunda abordagem, realizada a partir da análise de falas de indivíduos en-
volvidos no ensino remoto durante a pandemia da Covid-19.
Desta forma, posteriormente, voltou-se para professores e estudantes de duas
realidades institucionais distintas, no Estado do Paraná, região sul do Brasil, para
uma investigação empírica dos efeitos do ensino remoto em suas socializações.
Desenvolvimento metodológico
A primeira etapa do estudo contou com uma análise documental, a partir de
documentos publicados, conforme apresentados no Quadro 1:
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Quadro 1 – Relação dos documentos analisados
Tipo e origem Título
Ensaios de ONGs:
Campanha Nacional pelo Direito à Edu-
cação (CNDE)
Todos pela Educação
8 motivos para não substituir a educação presencial pela educa-
ção a distância (EaD) durante a pandemia
Nota técnica: Ensino a distância na educação básica frente à pan-
demia da Covid-19
Pareceres de Conselhos de Educação:
Conselho Nacional de Educação (CNE)
Conselho Estadual de Educação do Pa-
raná (CEE)
PARECER CNE/CP Nº: 11/2020 - Orientações Educacionais para
a Realização de Aulas e Atividades Pedagógicas Presenciais e
Não Presenciais no contexto da Pandemia.
Deliberação CEE/CP Nº: 01/2020, de 31 de março de 2020. Insti-
tuição de regime especial para o desenvolvimento das atividades
escolares no âmbito do Sistema Estadual de Ensino do Paraná
em decorrência da legislação específica sobre a pandemia cau-
sada pelo Novo Coronavírus – Covid-19 e outras providências.
Relatórios de Pesquisas:
Universidade Federal do Paraná (UFPR)
Fundação Carlos Chagas (FCC)
O que pensam crianças e familiares das aulas remotas: notas pre-
liminares da pesquisa
Educação escolar em tempos de pandemia
Documentos Complementares:
Universidade Federal do Paraná (UFPR)
Secretaria da Educação e do Esporte do
Estado do Paraná (SEED/PR)
Sindicato dos Trabalhadores em Educa-
ção Pública do Paraná (APP Sindicato)
RESOLUÇÃO Nº 59/2020-CEPE - Regulamenta, em caráter ex-
cepcional, período especial para o desenvolvimento de atividades
de ensino nos cursos de educação superior, profissional e tecno-
lógica da UFPR, no contexto das medidas de enfrentamento da
pandemia de Covid-19 no país.
Institucional: Educação desenvolve EaD com foco no protagonis-
mo dos professores
Manifesto por uma educação humanizadora e em defesa da vida:
Contra as políticas educacionais de produção de exclusão e desi-
gualdades em tempo de pandemia de Covid-19
Fonte: elaboração dos autores, 2020.
Para a referida análise utilizou-se o software Atlas.ti 8. Primeiramente, após
a leitura dos textos, buscou-se capturar grupos de temas emergentes. Nesse sen-
tido, na primeira etapa, foi possível agrupar códigos temáticos, organizados em
quatro grupos distintos, os quais: Grupo 1: Aspectos gerais do texto: a) Objetivos;
b) Abrangência; Grupo 2: Resultados apresentados: c) Atividades desenvolvidas; d)
Dificuldades; e) Êxitos; f) Porcentagem de participação ou acesso; Grupo 3: Acha-
dos: g) Dados de pesquisa; h) Posicionamentos e discursos de indivíduos e grupos; i)
Desigualdades; Grupo 4: Características: j) Observações, aspectos e dimensões das
decisões; k) Possibilidades e direcionamentos; e l) Dimensão política.
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Após esse estudo nos documentos, percebeu-se a necessidade de se voltar para
os indivíduos, e compreender melhor os efeitos desse ensino remoto, no contexto
específico em análise, ou seja, como os sujeitos percebiam mudanças, rupturas ou
permanências, nas formas de se ensinar, de estudar e aprender, relacionadas às
socializações vinculadas à educação formal, diante do referido momento socio-his-
tórico.
Nesse sentido, devido à prática docente dos pesquisadores, optou-se pela uti-
lização dos mediadores tecnológicos para acesso aos indivíduos em interação, ou
seja, por um lado, foram convidados 277 estudantes e 28 professores da Educação
Básica, vinculados a Escola Estadual Prof. Abigail dos Santos Correa, situada em
Matinhos, no litoral Paranaense; e 18 mestrandos e doutorandos, matriculados
na disciplina “Análise de Políticas Públicas”, do Programa de Pós-Graduação em
Políticas Públicas da Universidade Federal do Paraná (UFPR), com sede em Curi-
tiba, capital do Estado do Paraná. Na somatória dos três grupos, 57 indivíduos
responderam ao inquérito. As respostas foram submetidas ao mesmo tratamento
analítico que os documentos, ou seja, se agrupou por blocos temáticos.1
Ademais, voltou-se novamente aos textos, e as falas dos entrevistados, na
perspectiva de verificar a possibilidade de fazer uso das quatro categorias ana-
líticas apresentadas por Lahire (2015), e retomadas em Setton e Bozzetto (2020)
e, observando também, as categorias Berthelot (1983), também elencadas pelas
autoras.
Para Berthelot (1983), conforme mencionado anteriormente, uma análise so-
ciológica precisa considerar as instituições; as experiências de vida dos agentes;
seus valores pessoais e grupais; e o contexto socio-histórico, ou seja, a história em
que estão imersos. Assim, instituições, agentes, valores e história constituem as
quatro categorias analíticas sugeridas por Berthelot.
Para Lahire (2015), a análise sociológica deveria considerar as categorias:
quadros (universo, instâncias, instituições); modalidades (maneiras e formas de
agir); efeitos (disposições de agir, sentir e pensar); e tempo (momento de um per-
curso individual). Desta forma, as quatro categorias sugeridas pelo autor são: qua-
dros, modalidades, efeitos e tempo.
Considerando o referencial teórico, denominou-se a primeira categoria ana-
lítica, no presente estudo, de “panorama”, na perspectiva de retomar a categoria
tempo” do Lahire e “história” de Berthelot; ou seja, os documentos e falas foram
novamente analisados no sentido de perceber o panorama da educação formal du-
rante a pandemia da Covid-19, buscando entender o momento dos percursos dos
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indivíduos, e as características das ações socializadoras, quanto ao seu tempo de
duração, grau de intensidade e ritmo.
Na segunda categoria analítica, em analogia às “modalidades” do Lahire e aos
agentes” do Berthelot, buscou-se perceber os “posicionamentos” dos indivíduos e
grupos diante da educação remota disponibilizada, considerando as experiências
de vida, anteriores e durante o ensino e aprendizagem em questão, assim como os
modos e formas de agir.
Na terceira categoria analítica, baseou-se em “instituições” do Berthelot e
quadros” do Lahire, na perspectiva de verificar a potência das estruturas nos pro-
cessos socializadores durante o ensino remoto. Essa categoria foi nomeada de “vo-
zes”, na busca de desvendar exercícios de poder advindos das instâncias, e verificar
como as ações tomadas impactaram os percursos individuais no contexto histórico
vivenciado.
Na última categoria analítica, voltou-se para os “valores” do Berthelor e os
efeitos” do Lahire, na perspectiva de capturar disposições de habitus incorporadas
e em mutações, ou seja, em rupturas e construções. Essa categoria ficou nomeada
como “implicações”, a fim de capturar e descrever os resultados das socializações
investigadas.
Desta forma, efetivou-se a análise dos textos a partir dos quatro grupos de
categorias, alinhando-as em rede de códigos nas quatro novas categorias centrais
da presente análise, combinando-as com a análise das falas, também alinhadas às
referidas categorias. Assim, intencionou-se verificar como os documentos respon-
diam e apresentavam o panorama da educação formal na pandemia da Covid-19,
como ressoavam as vozes das instituições, os posicionamentos dos indivíduos e gru-
pos, seus valores e ações, no intuito de perceber indícios de processos socializado-
res, com implicações nas disposições de habitus.
O panorama da educação formal diante da pandemia da Covid-19 no Brasil
Em dezembro de 2019, a China é surpreendida por um surto de infecção por
SARS-CoV-2, pertencente à família de vírus denominada coronavírus. Rapidamen-
te a infecção vai se espalhando pelo planeta e em 11 de março de 2020, a Organi-
zação Mundial da Saúde declarou o surto de uma pandemia, tendo atribuído como
nome oficial Covid-19 (OPAS/OMS BRASIL, 2020).
No Brasil, o primeiro caso de contágio pelo novo coronavírus foi confirmado
em 25 de fevereiro de 2020, no Estado de São Paulo, em um indivíduo que havia
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retornado de uma viagem à Itália. Em 10 de março de 2020 é confirmado o primeiro
caso no Estado do Paraná. Sendo que em 05 de março o Ministério da Saúde já
havia confirmado transmissão local em São Paulo. Desde então, o Brasil foi desen-
volvendo um panorama crítico de contágio, chegando à marca de 13.373.174 casos
confirmados acumulados em 09 de abril de 2021, com 348.718 óbitos acumulados
(BRASIL, 2021).
A pandemia da Covid-19 impactou a educação formal e seus sistemas educa-
cionais em todo o mundo, fechando portas de estabelecimentos físicos e ampliando
o contato via meios virtuais. Dados encontrados nos documentos analisados, afir-
mam que entre março e junho de 2020, 56,3 milhões de estudantes, entre Educação
Básica e Ensino Superior, estiveram fora das salas de aula no Brasil (BRASIL,
2020b).
O histórico apresentado pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), via Mi-
nistério da Educação (MEC), na “Proposta de parecer sobre reorganização dos ca-
lendários escolares e realização de atividades pedagógicas não presenciais durante
o período de pandemia da Covid-19”, consta da seguinte ordem de fatos:
No dia 17 de março de 2020, por meio da Portaria nº343, o Ministério da Educação (MEC) se
manifestou sobre a substituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais, enquan-
to durar a situação de pandemia da COVID-19 (...) Em 18 de março de 2020, o Conselho
Nacional de Educação (CNE) veio a público elucidar aos sistemas e às redes de ensino,
de todos os níveis, etapas e modalidades, considerando a necessidade de reorganizar as
atividades acadêmicas (...) Conselhos Estaduais de Educação de diversos estados e vários
Conselhos Municipais de Educação emitiram resoluções e/ou pareceres orientativos para
as instituições de ensino pertencentes aos seus respectivos sistemas sobre a reorganização
do calendário escolar e uso de atividades não presenciais. Em 20 de março de 2020, o Con-
gresso Nacional aprovou o Decreto Legislativo nº 6 que reconhece, para os fins do artigo 65
da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de calamidade
pública... (BRASIL, 2020a, não paginado).
A análise documental realizada verificou um panorama com divergências de
opiniões quanto à manutenção dos calendários escolares e acadêmicos. O ponto
unificador foi a concordância com a necessidade do distanciamento físico e fecha-
mento de escolas e universidades.
Considerando a realidade dos outros países e as orientações da Organização
Mundial de Saúde e seus cientistas vinculados, os textos reconheceram a impor-
tância de medidas de distanciamento físico, focadas em atrasar o contágio, para
mitigar os efeitos na sociedade e sistemas de saúde. Desta forma, o fechamento das
instituições de ensino se tornou eminente, no sentido de representar um ponto im-
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portante para o então chamado “achatamento da curva epidemiológica” (WORLD
HEALTH ORGANIZATION, 2020), a fim de prevenir o colapso nos serviços de
saúde e dar tempo hábil para o surgimento e aplicação de vacinas e tratamentos.
Os aspetos gerais dos textos objetivaram, por um lado, orientar e normatizar
o ensino remoto, assim como o retorno às aulas presenciais, quando autorizado
pelas autoridades de saúde. Por outro lado, alguns textos objetivaram argumentar
sobre os motivos de não se utilizar do ensino remoto, especialmente sem um amplo
diálogo com a comunidade escolar, e por meios virtuais, devido, especialmente, às
desigualdades sociais e de acesso.
Dos nove textos analisados, sete apresentaram ampla abrangência de parti-
cipação para sua produção escrita e na produção de dados. E, todos se posicionam
como direcionados a um público que engloba: a comunidade escolar e famílias, pro-
fissionais da educação e proteção da criança e adolescente, assim como ao poder
público em esferas federativas.
As atividades desenvolvidas compuseram: a) aulas ao vivo e gravadas por pro-
fessores, e transmitidas em meios digitais (YouTube, Google Classroom e mídias
sociais) e TV aberta; b) comunicação via rádio; c) interações com estudantes em
plataformas digitais, chats, mensagens e reuniões (Meets), compreendendo desde
orientações genéricas, até tutorias; d) produção e disponibilização de materiais di-
gitais via Web e materiais impressos produzidos por professores e entregues pelas
escolas.
As principais dificuldades se relacionaram ao acesso a esses meios digitais,
ou por falta de equipamentos; falta de um bom acesso à internet; da capacidade de
utilização dos recursos disponíveis; da logística da casa e das condições da família.
Também, foram observadas dificuldades relacionadas à disciplina e à organização
do tempo e espaço de estudo, no sentido de ter um local adequado e a necessidade
de atendimento dos responsáveis às demandas dos estudantes.
Apareceram nos documentos descritos, êxitos na ampliação da relação famí-
lia-escola, e do vínculo do estudante com a sua família. Quanto à porcentagem de
participação nas aulas remotas, o texto do CNE estimou que 74% dos estudantes
brasileiros participaram de alguma atividade não presencial, numa variação de
94% de participação dos estudantes da região sul para 52% de participação dos
estudantes na região norte do país (BRASIL, 2020b).
Todos os textos apresentaram desigualdades relacionadas ao capital econômi-
co, que refletiram em desigualdade de acesso, de disponibilidade de equipamen-
tos, de ambientes adequados para o estudo. Também, de capital cultural: um dos
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textos apresentou, como dado de pesquisa, a influência direta da escolaridade dos
responsáveis no sucesso do estudante, no formato de aulas remotas. Diante desta
realidade, por um lado, grupos defenderam em seus documentos um posiciona-
mento contrário ao recurso do ensino remoto durante a crise da pandemia. Um
grupo se posicionou contra a educação remota no formato proposto pelo governo
do seu Estado, e outro por qualquer modalidade de EaD para a Educação Básica;
em ambos os casos, os principais argumentos se relacionaram a exclusão, coação,
descumprimento do princípio de gestão democrática e precarização.
Do lado dos que defenderam a educação remota, um dos textos afirmou que
o panorama não permitia comparar “aulas a distância” com “aulas presenciais”,
pois a questão fundamental é “aulas a distância” e “não realização de aulas”, e
nesse sentido, apresentaram dados de países que interromperam o funcionamento
de escolas por longos períodos (por situações de guerra, desastres naturais, entre
outros motivos) argumentando que a “escolha do poder público em nada fazer, sob
o argumento de que não é possível “chegar a todos”, tende a exacerbar as desigual-
dades resultantes da situação de emergência” (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2020).
Contudo, todos os textos afirmaram que o formato de educação remota, su-
gerido para o período, não substituiria as aulas presenciais, sendo que, por um
lado, a situação foi entendida como um ato antidemocrático, e por outro, como uma
medida para amenizar danos. Todos os textos elencaram, no entanto, o temor da
possibilidade de evasões e reprovações em grandes proporções.
Os textos apresentaram posicionamentos políticos em defesa da necessidade
de maiores investimentos em educação, e de mudanças em suas concepções, sa-
lientando, por um lado, a necessidade de maior inclusão das classes sociais menos
favorecidas de forma equitativa e democrática, dando poder de voz aos sujeitos, e
por outro lado, da compreensão da importância dos aspectos socioemocionais da
educação, do estreitamento de vínculos, e da qualidade do ensino formal.
A análise dos textos permitiu vislumbrar mudanças significativas na educa-
ção formal, e nas disposições de agir de seus sujeitos, advindas da pandemia da
Covid-19. Descrições da necessidade de adequação ou reescrita de ementas e cur-
rículos, da necessidade de abordagens metodológicas diferenciadas e da possibili-
dade de maior hibridação do ensino presencial e remoto, com utilização de meios
digitais, figuraram nos documentos.
A leitura dos textos motivou para compreender um pouco mais como os indiví-
duos sentiram esse momento de seu percurso individual e como perceberam o grau
de intensidade e ritmo das ações. Para observar o panorama na dimensão dos su-
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jeitos, realizaram-se inquéritos individualizados, conforme apresentados na sessão
anterior. A observação à escala dos indivíduos confirmou um panorama polarizado,
contendo favoráveis e contrários ao ensino remoto na educação formal, no entanto,
com a compreensão de que o universo digital se tornou uma ferramenta ainda mais
expressiva ao ensino regular.
Os comentários sobre as atividades desenvolvidas e as dificuldades asseme-
lharam-se às expostas nos textos. Porém, nas falas se apresentou, com maior in-
tensidade, a dimensão do afeto. Na fala de estudantes, assim como de professores
da Educação Básica, foram frequentes os relatos de que a experiência, da educação
formal na pandemia, preveria uma maior aproximação nas relações interpessoais
no retorno as aulas presenciais, devido ao estabelecimento da percepção da impor-
tância do contato e das trocas. Para os doutorando e mestrando, as falas também
mencionam trocas entre pares, fundamentais para o processo de aprofundamento
nos estudos e para as reflexões; e nesse sentido, o referido grupo de respondentes,
mencionou a importância da aproximação via plataformas digitais, que permiti-
ram, mesmo com limitações, a troca de ideias e sentidos de leituras e estudos. O
tema é retomado na apresentação dos resultados da categoria implicações.
Portanto, o panorama da educação formal no período da pandemia da Co-
vid-19, apresentou-se como desafiador, como um momento de crise, com ideias
divergentes e percursos individuais intensos, de grandes transformações sendo
impostas em curtos períodos de tempo.
Vozes socializadoras
Nesta categoria analítica, buscou-se descrever e analisar o conjunto das ins-
tâncias socializadoras relacionadas à educação formal no contexto da pandemia da
Covid-19. Suas diversas vozes, ou seja, a potência das estruturas no universo do
ensino/aprendizagem.
Entende-se que as instâncias socializadoras da educação formal, por exce-
lência, são as instituições de ensino, ou seja, escolas, colégios, universidades, etc.
Que atuam por meio dos sujeitos da educação: professores, estudantes, diretores,
pedagogos, agentes. No entanto, essas instituições de ensino estiveram submetidas
à influência e ao poder de outras instâncias, como as secretarias de educação, por
exemplo, que normatizaram o processo de ensino. Ainda, essas secretarias toma-
ram decisões forjadas por outras instâncias, como os Conselhos de Educação, a
pressão política das ONGs e movimentos da sociedade civil.
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Desta forma, para se compreender os quadros e instituições, que exerceram
poder socializador, nessa dinâmica da educação formal durante o primeiro período
da pandemia de Covid-19 no Brasil, fez-se necessário ouvir as diversas vozes que
reverberaram no ensino remoto.
Uma parte dos discursos desses grupos já foram apresentados na categoria
supracitada, quando se mencionou o panorama fragmentado e crítico da educa-
ção formal. Nesse momento, busca-se, no entanto, esclarecer a composição dessas
instituições, complementar o discurso e apresentar um olhar para outra voz que
ressoou nesse contexto.
Na análise documental, sete textos foram escritos com ampla abrangência de
participação para sua produção. Dentre eles, encontram-se dois escritos por Con-
selhos de Educação; dois textos de uma universidade federal, com envolvimento de
diversos professores/pesquisadores, e 158 famílias entrevistadas em um deles; um
texto escrito por uma fundação de direito privado sem fins lucrativos, e com uma
das áreas de atuação a Pesquisa Educacional, tendo 14.285 docentes respondentes
da pesquisa; e dois textos escritos por ONGs formadas por indivíduos de diversos
segmentos.
O primeiro texto, apresentado no Quadro 1, é de origem da ONG “Campanha
Nacional pelo Direito à Educação (Campanha)”, que, em sua plataforma digital,
afirma ser composta de um conjunto de organizações da sociedade civil, que partici-
param Cúpula Mundial de Educação em Dakar (Senegal), no ano 2000, e tem como
objetivo somar diferentes forças políticas, visando mobilização social, “pressão polí-
tica e comunicação social, em favor da defesa e promoção dos direitos educacionais”
(CAMPANHA..., 2020). A ONG declara que é fundadora da Campanha Global pela
Educação (CGE), pela Campanha Latino-Americana pelo Direito à Educação (Cla-
de) e Rede Lusófona pelo Direito à Educação (ReLus).
O segundo texto, apresentado no Quadro 1, é de origem da ONG “Todos pela
Educação”, a qual se considera “suprapartidária e independente”, afirma não re-
ceber recursos públicos e ter como missão contribuir para melhorar a Educação
Básica no Brasil. A ONG considera sua articulação ampla e plural, pois afirma
compreender centenas de grupos e entidades, incluindo comunidades escolares,
movimentos sociais, sindicatos, ONGs nacionais e internacionais, grupos univer-
sitários, estudantis e outros cidadãos da sociedade civil. É mantida e apoiada por
empresas privadas, e realiza pesquisas e atuações em diversas frentes, como na
elaboração do atual PNE, por exemplo (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2020).
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O texto do CNE afirma ter sido escrito com a participação de entidades na-
cionais como a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime),
o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), a União Nacional dos
Conselhos Municipais de Educação (UNCME), a FNCEM, o Fórum das Entidades
Educacionais (FNE), além da interlocução com especialistas e entidades da socie-
dade civil.
O texto do CEE não especifica as instituições representadas, apenas menciona
que foram 18 instituições, e ao final do documento há uma “declaração de voto
contrário à deliberação” em questão, emitida pela APP Sindicato, revelando uma
das instituições participantes.
Os dois textos que não esclareceram a dimensão da participação, de indivíduos
e/ou grupos, para a produção da escrita, se compuseram de: um texto que apresen-
ta a proposta e forma de efetivação das aulas remotas, da Secretaria de Educação e
Esporte do Estado do Paraná e; um texto que se opõe a proposta de aulas remotas
em ambientes virtuais de aprendizagem, escrito pelo Sindicato dos Trabalhadores
em Educação Pública do Paraná (APP Sindicato).
Desta forma, é possível aferir que os discursos, presentes nos textos, emergem
de importantes instituições vinculadas a educação, órgãos públicos, universidades,
pesquisadores, estabelecimentos de educação, sociedade civil e movimentos sociais.
Todos os textos apresentaram importantes pontos de reflexão, com resultados
de pesquisas, sensos e análises sociais, mas com defesa de posicionamentos situa-
dos, ou seja, formas distintas de se pensar a educação transpareceram na leitura
do material. Por um lado, o pensamento da qualidade na educação por meio do
alcance de parâmetros internacionalmente balizados, com desenvolvimento de au-
tonomia e tecnologia no processo de ensino. Por outro lado, o discurso da educação
como prática humanizadora, includente, comunicativa e reflexiva, que preza pelo
respeito à diversidade, à equidade e à participação social.
Acreditou-se, portanto, que o indivíduo, na sua construção pessoal, pode ade-
rir, mais facilmente, aos discursos vinculados às suas instituições de pertença, ao
pensamento hegemônico em suas teias de relações, o que não excluiu a possibilida-
de de práticas reflexivas e rupturas.
No entanto, observou-se nos documentos e falas, que os indivíduos, diante do
panorama já apresentado, acabaram expostos a mais uma instância socializadora
em sua educação formal: o universo virtual, que invadiu o tempo do ensino e da
aprendizagem. Pois, se por um lado, de um momento para outro, todos estavam
diante de plataformas digitais de ensino e aprendizagem, para seu processo formal
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de educação. Por outro lado, esse momento da educação formal era atravessado por
mensagens de WhatsApp, vídeos de YouTube, figurinhas e “memes” diversos que
foram formatando formas de se agir e pensar durante o processo.
As mídias há muito tempo vêm socializando os indivíduos, essa já era uma
preocupação dos estudiosos da Escola de Frankfurt. Setton (2012, p. 146) acreditou
que o estudante brasileiro se socializa “com base na interdependência entre sis-
temas de referências híbridos, forjados pelas instâncias tradicionais da educação,
e também em sistema difuso de conhecimento e informações veiculados pelas mí-
dias”. Em suas pesquisas, a autora (2012, p. 151) identificou que os estudantes se
utilizavam das mídias tanto como mediadores de um saber difuso e pré-científico,
quanto como sistematizadores de conhecimentos escolares. Concordando com as
observações da autora, salienta-se que os celulares já estavam tão presentes, mes-
mo no cotidiano das escolas, que se fez necessário a criação de uma lei proibindo
seu uso durante as aulas, a Lei n.º 2.246-A/2007 (BRASIL, 2009).
No entanto, era comum o uso dos meios digitais, pelos jovens, de uma maneira
lúdica, espontânea e intuitiva. Eles selecionavam os conteúdos do seu interesse, in-
teragiam e trocavam fotos, vídeos e mensagens. Com o advento das aulas remotas
foi como se a escola invadisse as telas. Aulas expositivas, carregadas de conteúdos,
com longas durações, precisaram ser acessadas, seguidas de atividades para serem
resolvidas nesse ambiente virtual. Muitas horas de exposição às telas, com pouca
interação com colegas e professores. Essa foi uma realidade na Educação Bási-
ca do Estado do Paraná, no primeiro semestre de 2020, conforme os relatos das
entrevistas e dados de pesquisa dos documentos. E isso aconteceu, mesmo com a
presença de alertas, em todos os textos analisados, da necessidade de adequação da
linguagem para esses meios. Mas, como não se pode “jogar o bebê junto com a água
do banho”, a utilização de algumas ferramentas, como o Google Classroom e as
plataformas de Meet, por exemplo, serviu para a alfabetização em uma linguagem
que há muito se impõe à educação, a linguagem do mundo virtual.
Sintetizando, a referida categoria temática evidenciou que as instituições de
ensino formal, enquanto instâncias socializadoras, receberam influências de ou-
tras instâncias, vinculadas ao poder público e à sociedade civil organizada, que im-
pactaram em suas formas de socialização, formatando novas práticas e percepções
acerca do ensino e da aprendizagem.
Corroborando com estudos anteriores, como o de Setton (2012), foi aferido
o impacto das Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação nas formas de
se ensinar e aprender. E ampliando o olhar para além da dimensão da educação
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formal, visualizando abrangentemente as maneiras como os indivíduos se rela-
cionaram com o universo virtual, e como essas relações têm formatado formas de
agir, sentir e pensar, se considerou os meios digitais como importantes instâncias
socializadoras da contemporaneidade.
Posicionamentos de indivíduos e grupos
Nessa dimensão analítica, buscou-se capturar os modos de agir e as expe-
riências dos indivíduos e grupos, numa busca de estudar a maneira pela qual se
organizou e se desenvolveu os processos socializadores.
O posicionamento da ONG “Campanha” foi contrário ao ensino remoto, pois
percebeu um despreparo, em termos estruturais e formativos, dos estabelecimentos
e sujeitos da educação, para essa forma de ensino e aprendizagem. Também, con-
siderou os excluídos digitais que, conforme seu documento, configuravam mais da
metade da população brasileira. A “Campanha” entendeu que não pode ser exigido,
dos estudantes da Educação Básica, a autonomia, capacidade de concentração e
autodisciplina que essa forma de ensino requer. Ainda, que o ensino remoto comple-
xificaria a gestão das redes, com diversos calendários, ações de formação e avaliação
das unidades. Para a ONG, até o Ensino Superior poderia apresentar estudantes
abandonando os cursos frente às dificuldades encontradas com o ensino remoto.
E, finalizou sua argumentação, alertando para os oportunismos das empresas de
tecnologias e de comunicação, para o risco de apropriação de dados, e privatizações.
A ONG “Todos pela Educação” acreditou que, devido ao panorama imposto
pela pandemia, o ensino remoto se constituiria como uma alternativa, podendo
contribuir e devendo ser implantado. Admitiu, no entanto, que seus efeitos eram
limitados, e por isso a importância de sua normatização e seu planejamento de
retorno. Compreendeu a necessidade do entendimento das diferenças de disposição
de recursos tecnológicos e desigualdade entre os sujeitos, estando ciente de que os
indivíduos com melhores desempenhos acadêmicos tendem a se beneficiar mais
das soluções tecnológicas. E alertou para a diferenciação entre ensino remoto e
aula online, incentivando a diversidade de experiências de aprendizagem signi-
ficativas, na crença de que essas experiências podem apoiar a criação de rotinas
positivas, com certa estabilidade frente ao momento de mudanças. Por fim, a ONG
salientou o papel do professor como central no processo de ensino remoto.
Os pareceres dos CNE e CEE orientaram e normatizaram a educação e as ati-
vidades não presenciais, prezando pela liberdade de ensinar, aprender, pesquisar,
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e divulgar o pensamento, a arte e o saber; a valorização dos profissionais da educa-
ção; igualdade de condições de acesso e permanência; e a garantia de um padrão de
qualidade no ensino. Para isso, apresentou diversas orientações de ordem prática
e bastante específicas. Com a observação da realidade vivenciada pelos demais
países, e de pesquisas que já foram publicadas, os pareceres alertaram para con-
dições de crise na educação, sendo necessários investimentos de todos os setores,
tanto na dimensão estrutural e financeira, quanto: nas adaptações de calendários
e currículos; na clareza e no enfrentamento à possibilidade de evasão, com abertu-
ra a processos de ensino e aprendizagem socioemocionais; fortalecimento da ges-
tão democrática, comunicativa e participativa; e a busca dos melhores patamares
possíveis de aprendizado, orientado a necessidade de retomadas e adequações no
currículo para o ano de 2021.
A Resolução nº 59-2020-CEPE da UFPR regulamentou o período especial para
o desenvolvimento de atividades de ensino em seus cursos de educação superior,
profissional e tecnológica, no contexto da pandemia da Covid-19 no Brasil. Com
característica democrática, o documento descentralizou as decisões, ao regula-
mentar a oferta do período especial para o 1º semestre letivo de 2020. No artigo
4º, autorizou os colegiados dos cursos a decidirem e procederem com a oferta de
novas turmas de disciplinas e unidades curriculares; ficando também a critério
das coordenações de curso solicitar apoio à Superintendência de Inclusão, Políticas
Afirmativas e Diversidade para o acompanhamento de estudantes surdos/surdas e
com deficiências, de modo a assegurar a plena inclusão nas disciplinas ou unidades
curriculares ofertadas de forma remota. Nas disposições gerais, estabeleceu no ar-
tigo 28 que a oferta de disciplinas e unidades curriculares no período especial era
de caráter totalmente voluntário para as unidades administravas e ao corpo do-
cente da UFPR, reafirmando o princípio de que o direito à vida se sobrepõe a todos
os demais. Finalizou, no artigo 31, afirmando que caberia à administração central
e às unidades conexas (pró-reitorias e órgãos suplementares) da UFPR manterem
ações com vistas à inclusão e ao letramento digital, assim como à expansão do
uso de tecnologias digitais nas atividades de ensino-aprendizagem, para o ensino
remoto emergencial nos cursos de educação superior, profissional e tecnológica da
UFPR (UFPR, 2020).
Todavia, o texto institucional da SEED/PR apresentou à comunidade uma
proposta pronta, na qual viabilizou a compreensão das ações pontuais, visando
à oferta de educação durante o período da pandemia da Covid-19. O governo es-
tadual incluiu aulas em canais abertos de TV, no YouTube e outros aplicativos; a
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oferta de pacotes gratuitos de dados de internet para aqueles que acessaram via
um aplicativo chamado Aula Paraná, desenvolvido especialmente para esse perío-
do; e utilização da plataforma Google Classroom, para a disposição de atividades
e interação entre estudantes, e destes com os professores. No texto, os professores
da rede são denominados de “protagonistas” da proposta do governo, uma vez que
coube a eles a gravação das aulas, assim como de elaboração de atividades e formas
de interação com os estudantes.
Em contraposição à proposta da SEED/PR, a APP Sindicato criticou a orien-
tação política da referida secretaria que estaria visando a “obtenção de resultados
educacionais quantitativos”, medidos através de avaliações externas aos estabele-
cimentos de ensino, com “intensificação do processo de controle e coação sobre os(as)
profissionais da educação”. Denunciou que novas orientações eram encaminhadas
rotineiramente, causando instabilidade, e “agindo como instrumentos de tutela,
controle, vigilância e punição sobre o trabalho pedagógico”, isso estaria esgotando
a autonomia dos sujeitos e comunidades escolares em definirem seus processos de
ensino e aprendizagem. O documento declarou que em nenhum momento houve
um diálogo com a comunidade escolar sobre os encaminhamentos para a efetivação
do ensino remoto (APP SINDICATO, 2020).
Os dois relatórios de pesquisa apresentaram as maneiras, formas e técnicas
utilizadas nas abordagens investigadas de ensino remoto. A pesquisa realizada
pela FCC teve abordagem em todas as 27 Unidades da Federação, com participa-
ção de 14.285 docentes da Educação Básica, especialmente de escolas públicas e
urbanas. Os sujeitos de pesquisa declararam que a rotina de trabalho envolveu:
a) escrever e responder e-mail, WhatsApp e SMS; b) planejar e preparar aulas
com novas ferramentas; c) ministrar aulas com novos recursos; d) assistir e parti-
cipar de cursos, lives e reuniões; e) apoio às famílias de estudantes. As estratégias
educacionais envolveram trabalho com as mídias sociais, tanto para comunicação,
quanto para a elaboração e envio de trabalhos. Ademais, o texto mencionou: a) a
utilização de materiais disponibilizados pelas secretarias de educação, em forma-
tos digitais ou impressos para serem retirados na escola; b) aulas online ao vivo ou
gravadas; e c) comunicações via rádio.
O relatório da pesquisa realizada pela UFPR, reuniu relatos de 150 famílias
residentes no Litoral do Paraná e na Região Metropolitana de Curitiba, com conta-
to via WhatsApp, e-mail, telefonemas e interações de campo. Somando-se a essas,
encontram-se “relatos de trabalhadores sociais de instituições e serviços de prote-
ção, cujos dados indiretos referem-se a oito famílias em condição de acompanha-
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mento socioassistencial” (THOMASSIM; HOFFMANN-HOROCHOVSKI, 2020, p.
1). O estudo apontou diferenças entre as percepções do ensino remoto em relação
aos estudantes das escolas públicas e privadas, sendo que os estudantes das esco-
las privadas, além de terem maiores condições estruturais de acesso, sentiram-se
menos sobrecarregados de atividades, o texto afirmou que foram recorrentes as
reclamações dos pacotes de videoaulas das escolas públicas estaduais, que man-
tiveram os sujeitos em maior tempo de exposição às telas. O estudo explicou que
a rede estadual do Paraná seguiu a lógica de cinco videoaulas de 50 minutos ao
dia, e mais as atividades a serem desenvolvidas nas plataformas digitais. As famí-
lias relataram a dificuldade de os estudantes manterem a concentração em toda a
aula, pois, com celulares em mãos, eles tendiam a se distraírem com jogos, vídeos
e mensagens de colegas. Outros dados apresentados pela pesquisa salientam a
necessidade de organização do tempo e dinâmica familiar, além da reorganização
de espaços, divisão de aparelhos, fez-se importante o apoio dos familiares aos es-
tudantes. O estudo apresentou, como considerações finais, a fragilidade do modelo
de ensino remoto, em que foram submetidos os sujeitos de pesquisa, no sentido de
garantir experiências educacionais significativas, relevantes e democráticas.
De maneira semelhante, nas falas dos entrevistados para o presente estudo,
os estudantes mencionaram a dificuldade de adaptação à rotina de aulas remotas,
o tempo diante das telas, a quantidade de atividades, a facilidade de dispersão
devido ao contexto espacial da casa e também do universo virtual, com notificações
e chamadas competindo com as explicações dos professores. Ademais, a dificuldade
apresentada com maior recorrência nas falas dos entrevistados, foi a de aprender
sem o acompanhamento presencial dos professores:
Maria (EB)2 - Bom, nós conseguimos aprender nas aulas online, mas na minha opinião as
aulas presenciais são melhores, porque os professores podem ver a dificuldade de cada um e
ajudar, e eu acho que na sala de aula a gente consegue aprender melhor.
João (EB) - Porque estamos acostumados com o jeito dos professores explicarem, e é mais
difícil entender o que os professores das aulas online falam.
Pedro (EB) - Eu acho que esse tipo de ensinamento mudou a maneira de aprendermos, pois
somente assistimos, não tem como tirarmos dúvidas e nem conversarmos com colegas.
De fato, os professores relataram que estiveram presentes nas mídias duran-
tes as aulas, e em interação pelo WhatsApp e demais aplicativos, como o Google
Classroom. No entanto, existiu uma necessidade de apropriação da forma de se
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estabelecer um relacionamento entre professores e estudantes nesse meio digital,
como elaborar as questões, como enviá-las, sendo que a aula gravada não tem in-
terrupção para o estudante processar tais reflexões, e como o tempo de gravação é
muito expandido, o estudante se focou em finalizar as atividades e concluir o pro-
cedimento de cada aula que foi bastante exaustivo. Desta forma, as atividades de-
senvolvidas e dificuldades apresentadas, nesse grupo analítico, corroboraram para
a compreensão da necessidade do desenvolvimento de uma linguagem específica
para o ensino remoto, tanto para facilitar as relações entre os sujeitos da educação,
como na elaboração técnicas de atividades concatenadas com o formato de ensino e
aprendizagem nestes ambientes não presenciais.
Desta forma, os posicionamentos de indivíduos e grupos, por um lado, foram
de argumentações favoráveis ou contrárias ao ensino remoto durante o distancia-
mento físico imposto pela pandemia; também de orientação, regulamentação e mo-
nitoramento de ações.
Por outro lado, a ação prática de ensinar e aprender num outro formato, que
envolveu disciplina, autonomia, independência, controle emocional e arranjo nos
espaços físicos domésticos e nas rotinas diárias, o que exigiu alterações nos rela-
cionamentos intrafamiliares, e mudanças de percepções do papel e importância
docente.
As implicações do ensino remoto na pandemia da Covid-19
Nessa categoria analítica, se buscou os efeitos do ensino remoto nas formas de
agir e pensar dos agentes, ou seja, em suas socializações; nas palavras de Lahire
(2015, p. 1395), em suas disposições a acreditar, sentir, julgar, representar, agir.
Nos documentos analisados, são apresentados dados, de pesquisas realizadas,
no exterior e também no Brasil, que demonstraram algumas implicações da pan-
demia da Covid-19 e do ensino remoto, nos agentes e sistemas de educação formal.
Para os objetivos desta análise, elencaram-se apenas alguns, relacionados às reali-
dades brasileira e paranaense.
Na pesquisa da FCC, as(os) docentes perceberam um processo de aprendi-
zagem acontecendo, pela produção e execução das atividades, que atingiu cerca
de 50% dos estudantes. Os respondentes, em maioria, afirmaram que o ensino
remoto promoveu o aumento tanto da relação escola-família, quanto do vínculo do
estudante com sua família. Também, um fortalecimento do vínculo dos profissio-
nais de um mesmo estabelecimento de ensino, uma vez que precisaram se apoiar
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mutuamente e contar com o apoio dos gestores. A jornada de trabalho foi ampliada
para os profissionais investigados e, em alguns casos, o salário foi reduzido. Os
investigados acreditaram que, os prenúncios de possíveis mudanças na educação
formal, estariam no ensino online ocorrendo juntamente com o presencial. Ao de-
senvolverem uma maneira de ensinar mediados pelo universo digital, os profes-
sores incorporaram disposições didáticas, que podem (ou não) ser duradouras. O
texto expõe conforme apresentado a seguir:
De fato, a situação imposta pela pandemia exigiu, de um lado, repensar os conteúdos e
atividades avaliativas, considerando a diversidade de situações e condições de vida em que
se encontram os estudantes dos diversos níveis de ensino. Não se trata, apenas, de transpor
práticas que antes eram feitas presencialmente para contextos virtuais (FCC, 2020, p. 3).
Nas falas dos docentes da Educação Básica, respondentes do presente estudo,
esse achado também aparece como um efeito socializador:
Joana (P) - Acredito que esse período vem trazer uma nova era no campo educacional. Foram
muitas descobertas sobre novas formas de ensino e aprendizagem. Nunca mais vou lecionar
da mesma forma. Inclusive esse período me incentivou a continuar lecionando.
Marília (P) - Penso que vai mudar muito a prática de todos. Mesmo antes de tudo isso, nós
já usávamos muitas mídias na educação, mas nunca de forma tão intensa. Muita coisa foi
imposta e nós nos adaptamos. Aperfeiçoamo-nos e até incrementamos muitas coisas. Quanto
tudo voltar ao novo normal eu acredito que muito do que estamos usando agora irá continuar.
Eduardo (P) - Afeta pelo fato de que aprendi muita coisa com essa ferramenta. Sei que poderei
usar isso depois, mesmo dando aulas presenciais. Acho que dá para fazer muita coisa boa
se bem utilizada. Prefiro a aula presencial, mas como estamos nesse momento horroroso
acho que foi bom, até me surpreendi (...) o fato é saber aproveitar a oportunidade! Quem faz
o mínimo com a ferramenta faz o mesmo nas aulas presenciais, eu vou aprendendo e dando
o melhor de mim!
José (P) - Então, eu penso que vai afetar sim! Não tem como voltar a ser como era antes,
então penso que teremos que nos adaptar e que tudo isso será positivo para professores e
estudante; os estudantes sendo mais autônomos e livres para buscar novos conhecimentos, a
questão da responsabilidade e nós estaremos nos reinventando, aprendendo e fazendo parte
desse universo todo!
São muitos os relatos como esses, que enfatizaram a continuidade da utiliza-
ção dos meios digitais para o ensino, mesmo depois do retorno às aulas presenciais.
Relatos que confirmaram a efetivação de novas formas de agir e pensar na própria
prática docente.
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De maneira bem menos expressiva, encontraram-se falas de docentes, que
apresentaram a possibilidade dessas disposições serem transitórias, e de não se
constituírem uma socialização permanente no ensino formal e nas práticas didáti-
co pedagógicas:
Marta (P) - Confesso que não gosto da forma como está afetando minha atividade docente (...)
acredito que descobrimos uma ferramenta, mas valorizo muito mais o que obtemos no contato
direto com os estudantes (...) não vislumbro seu uso fora dessa realidade.
Tiago (P) - Diante da precariedade de acesso de nossos alunos, não acredito que possa utilizar
na volta às aulas.
E duas falas docentes, deixaram uma dúvida sobre a potência dessa disposição
para o uso das tecnologias, surgidas a partir da realidade do ensino remoto:
Janete (P) - Agora, se irá afetar positiva ou negativamente não sei responder. É evidente que
se fosse uma questão de democracia, onde todos tivessem o acesso, seria muito positiva a
inclusão de uma plataforma de ensino remoto, como uma complementação da carga horária
e para estudo do que foi visto na escola. Porém, não como uma substituição como está ocor-
rendo.
Cristina (P) - Isso vai refletir na nossa vida e práticas! Não sei de que forma, mas certamen-
te deixará marcas! Certamente continuaremos a utilizar a ferramenta, mas também estamos
traumatizadas com ela.
Lahire (2015) alertou que, as pesquisas já realizadas, atestaram que não é in-
teressante negligenciar o poder de reorientação ou modificação das disposições de
habitus incorporadas anteriormente a um evento, assim como, não é interessante
negligenciar a capacidade da produção de novas disposições mentais, que transfor-
mam maneiras de se agir e pensar.
Nas falas dos estudantes da educação básica, assim como de alguns profes-
sores, emergiu a dimensão do afeto nos processos de ensino e de aprendizagem.
Muitos estudantes afirmaram ter outra percepção da figura do docente, entenden-
do seu papel e a falta que faz os atendimentos individualizados e personalizados,
efetivados no cotidiano da sala de aula, para o aprendizado dos conteúdos escolares
e das características dos relacionamentos humanos. De maneira simples, os estu-
dantes e professores elencaram o lugar do afeto nas construções de identidades.
A seguir, três exemplos de falas de discentes e um exemplo de fala de docente,
respectivamente:
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Brenda (EB) - Nada substitui um professor em sala de aula, o convívio com os colegas e a
rotina escolar.
Bruno (EB) - No ensino à distância você não tem um professor para você perguntar (...) e nem
para ficar brigado por causa da postura dele.
Caio (EB) - De forma alguma substitui as aulas presenciais, porque a escola é essencial como
espaço de socialização e de aprendizado e a presença do professor nem se fala, no dia a dia
ele percebe o aluno que conseguiu aprender, aquele que tem dificuldades e o que fazer para
poder ajudar.
Tiago (P) - Com toda certeza, após a pandemia, não seremos os mesmos, nem nossas aulas
serão! Vai afetar justamente o afeto, o amor será maior ainda, o afeto, acolhimento!
Essa dimensão do afeto tem sido trabalhada pela teoria da socialização, na
perspectiva de sua importância para os aspectos socializadores. (SIMMEL, 2001;
BERGER; LUCKMANN, 2014; DUBAR, 2005; SETTON, 2013; BUENO; BUENO,
2019). No presente estudo, as falas promoveram a retomada dessa teoria para en-
fatizar como as emoções participam da incorporação de disposições para determi-
nadas aprendizagens. Simmel (2001, p. 162) se referiu ao afeto como um “agluti-
nante social”, que composto nas experiências, apresenta função formativa da vida
psíquica. Simmel (2001, p. 149), inspirado em Platão, entendeu o amor como uma
força necessária ao percurso para o conhecimento, e o pontuou como um potencia-
lizador de ideias.
Voltando-se às respostas das entrevistas de mestrandos e doutorandos, eles
confirmaram o entendimento de que o modelo remoto exige processos de estudo
e aprendizagem mais autônoma, assim como dificulta a interação, especialmente
entre pares, tornando o estudo e aprendizado mais solitário, com menos intera-
ções e, portanto, com menos trocas de ideias promotoras de insights. Porém, os
entrevistados consideraram o ensino remoto uma importante alternativa, para a
pós-graduação.
Rodrigo (PG) - A forma de aprender se torna mais autônoma. Na falta de contato com os
demais colegas e professores, nos aprofundamos solitariamente no programa das discipli-
nas. Talvez o prejuízo maior seja a perda do dinamismo e da diversidade de ideias e informa-
ções que normalmente surgem durante as aulas presenciais. Contudo, há de se considerar
que esse prejuízo foi bastante reduzido devido às estratégias e sensibilidade dos professores,
que se esforçaram bastante para tornar o ambiente o mais produtivo e acessível para todos.
Em relação ao distanciamento interpessoal que esse momento impôs a todos, embora tenha
prejudicado as interações e o intercâmbio de ideias entre colegas, também foi amenizado
com grupos de WhatsApp onde todos puderam interagir. Claro, cada qual do seu modo, mas
sempre de forma respeitosa, democrática e construtivamente.
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Foi elencado como um ponto positivo a questão de não se perder
tempo com deslocamentos.
Teresa (PG) - Há aspectos positivos: como o aproveitamento do tempo que seria perdido
em deslocamentos e maior flexibilidade para a execução das atividades, considerando quem
trabalha e estuda. Se eu estivesse na rotina habitual, certamente estaria muito estressada
tentando conciliar tudo.
Salienta-se um ponto já tratado, mas evidenciando que em todas as modalida-
des de entrevistados, foi mencionada a dificuldade de manter a concentração nas
aulas virtuais, principalmente no formato expositivo, ou seja, para aulas em pla-
taformas digitais faz-se necessário pensar em abordagens dinâmicas e interativas.
E, essa dificuldade não é mencionada apenas por jovens estudantes, mas também
ficou marcada nos documentos analisados, e na fala de uma doutoranda e de um
professor da Educação Básica, que se expressaram conforme pontuado a seguir:
Melissa (PG) - Senti uma perda da qualidade de retenção do conteúdo, já que cada aula
concentra muitos seminários e é muito difícil prestar atenção com concentração em frente ao
computador por várias horas e com as demandas de trabalho interrompendo há todo momento
(...) a interação é reduzida, com mais dificuldade de elaboração de perguntas, apesar de todo
esforço por parte dos professores. Eu preferiria poder ouvir mais explanações dos professores
aliadas as nossas leituras prévias.
Maurício (P) - Acredito que esse modelo de aula será uma mera lembrança quando as aulas
retornarem fisicamente, o formato ficou ruim, muito difícil um estudante se concentrar por tanto
tempo.
Jairo (EB) - Acho ruim. Não gosto e não consigo prestar atenção! Queria que voltassem as
aulas presenciais.
A última fala a ser mencionada reforça como a organização do tempo e do
espaço interfere no aprendizado, quando se estuda em casa. Também, demonstra
o surgimento de novas disposições de habitus relacionados à educação formal e à
construção da identidade, quando o respondente afirma que no início não gostava
de trabalhar em casa, mas agora gosta:
Henrique (PG) – Apresentei baixa produtividade nos primeiros 35 dias de trabalho remoto.
Após esse período, já acostumado com a nova rotina em casa e com novo espaço físico, usa-
do especialmente para esse fim, tudo ficou mais fácil. Trabalhar no quarto era muito complica-
do, as rotinas se misturam e a qualidade de vida decai muito. Horários bagunçados, não sentia
prazer nem em estar no quarto para dormir, pois inconscientemente sabia que ao acordar ali
mesmo já teria uma enxurrada de afazeres. Mas após a mudança de ambiente tudo mudou, e
confesso, agora estou gostando do home office.
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Esperanças e perspectivas: considerações nais
Desde a etapa de coletas de informações e análises do presente estudo, que
aconteceram no primeiro semestre de 2020, o panorama da educação formal e da
pandemia da Covid-19 passou por transformações, as quais nem sempre foram
positivas. Até o início de abril de 2021, apesar de algumas iniciativas e aberturas
temporárias, de modo geral, as escolas mantiveram-se fechadas; no entanto, mais
adaptadas ao modelo remoto. A UFPR encontrava-se em organização para a reto-
mada oficial do calendário acadêmico, mais uma vez com aulas remotas.
A vacinação teve início no país em fevereiro de 2021, porém com implementa-
ção lenta das aplicações. Todavia, essa ação mobilizou esperanças e perspectivas
de um retorno à “normalidade” dos contatos físicos e da vida em sociedade. Mas
permaneceu o questionamento do que seria essa normalidade, quando se mencio-
navam um “novo normal” numa sociedade marcada pelo advento dramático e per-
turbador de uma pandemia.
Corroborando com estudos anteriores, a presente pesquisa demonstrou que o
panorama histórico e temporal das sociedades, interfere nas formas de socializa-
ção. A pandemia da Covid-19 gerou novas práticas e percepções acerca do ensino e
aprendizado. Como essas práticas impactaram as disposições de habitus, aferiu-se
um indicativo para maior envolvimento com o universo tecnológico e digital, desen-
volvendo uma linguagem própria, o idioma das redes. Essa linguagem, de aparên-
cia globalizada, exige maiores estudos dos pesquisadores a fim de se compreender
suas limitações e abrangências. Salienta-se a importância de constantes reflexões
e críticas aos produtos culturais e como eles podem implicar em disposições de
habitus em construções e transformações.
No panorama da educação formal, as mídias digitais se colocaram de forma
proeminente, com seus softwares e universos da Web. No Brasil, e mais especi-
ficamente, no Estado do Paraná, há muito se fala das inclusões das Tecnologias
Digitais de Informação e Comunicação na educação formal. Apesar das diversas
ações implantadas nos últimos anos, como a instalação de TVs Pendrives nas sa-
las de aulas, disponibilização de tablets para professores, criação de laboratórios
de informática em alguns estabelecimentos de ensino, Registro de Classe On-line,
entre outras ações nas instituições e realidades escolares... todas essas ações pouco
alteraram as práticas pedagógicas e formas de se ensinar e aprender.
O advento da pandemia da Covid-19, contudo, trouxe uma mudança signifi-
cativa nesse contexto, com o relacionamento entre os sujeitos da educação, quase
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exclusivo ou exclusivamente, pelas plataformas digitais. Professores e estudantes
precisaram se adaptar à nova realidade de atividades remotas e às formas expres-
sivas de utilização de tecnologias voltadas ao ensino e à aprendizagem. Podendo
(ou não) se constituírem em efeitos duradouros, pois se referem às socializações
ocorridas em curto espaço temporal. Os estudos de Lahire e Bourdieu detalham
sobre os processos de disposições de habitus acontecendo ao longo de trajetórias de
vida. No entanto, considerando como as mídias têm impactado as formas de ser,
agir e pensar nas últimas décadas, acredita-se que novas disposições para o ensino
e o aprendizado estão sendo consolidadas.
Verificou-se pela análise dos documentos, a possibilidade de ampliação de de-
sigualdades sociais no Brasil advindas da situação imposta pela pandemia da Co-
vid-19, assim como ocorreu em outros países. Analisar a situação do ensino remoto,
nesse contexto, possibilitou verificar, para além de desigualdades relacionadas às
realidades materiais, outras, em analogia a estas, no universo virtual; ou seja, os
indivíduos com aprendizagens defasadas também apresentaram maiores dificulda-
des nos meios digitais, tanto para o acesso, como para o uso das ferramentas. Isso
evidenciou espaços de poderes e desigualdades no universo virtual, semelhantes
ao do universo material. Levantamentos futuros poderão confirmar ou refutar as
hipóteses de aumento das desigualdades. Relembra-se, no entanto, da necessida-
de de grande esforço coletivo, no sentido de evitar a evasão e elevadas taxas de
reprovação, no ano letivo de 2020; assim como a necessidade de adequações aos
currículos e programas para os próximos anos letivos.
Ademais, com a presente análise qualitativa, em documentos e falas de en-
trevistados, foi possível perceber uma sociedade dividida em crenças e posições
políticas, que por vezes atrapalharam a construção de uma nova forma de ação
social, e elaboração de políticas públicas. Em momentos de crise, faz-se ainda mais
necessária a união de forças em prol de objetivos comuns, e nesse sentido o presen-
te estudo demonstrou que o Brasil, com seus agentes, ainda tem muito a construir
e amadurecer, ponderando lados e alinhando discurso, no sentido de práticas pre-
cisas, efetivas e solidárias.
O presente estudo pode contribuir na compreensão de como as disposições de
habitus são híbridas, construídas a partir das experiências vividas, envolvendo
afeto, e no contato com as estruturas materiais e também mentais de cada sujeito.
Foi possível aferir novas formas de agir e pensar, relacionadas às maneiras de se
ensinar e aprender os conteúdos formais da educação, assim como novas formas
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de se pensar a relação professor e estudante, e entre pares, numa perspectiva de
mudanças, rupturas e construções de novas ações e comportamentos.
Os diversos contextos socializadores convidam, novamente, a repensar a edu-
cação para além dos muros escolares, numa perspectiva de uma educação promo-
tora de experiências abrangentes e significativas, conectadas ao tempo presente, e
colaborativa para o desenvolvimento científico e ético, que associem necessidades
individuais e coletivas, com respeito e solidariedade.
Notas
1 Os sujeitos foram contatados via Google Classroom, e-mail e WhatsApp. Para os estudantes da
Educação Básica perguntou-se: Você acredita que a utilização do Google Classroom e WhatsApp,
durante este período de ensino remoto, mudou a forma de vocês estudarem e aprenderem? Será que
isso irá trazer alguma consequência no jeito de vocês estudarem e aprenderem depois que as aulas
voltarem a ser presenciais? Para os professores da Educação Básica perguntou-se: Vocês acreditam
que a utilização do Google Classroom, durante este período de Ensino Remoto, impactará de alguma
forma sua prática docente? Em caso afirmativo, de que forma? E para os estudantes da Pós-gradua-
ção se perguntou: As práticas de aulas remotas impactaram, de alguma maneira, a sua forma de
estudar e de aprender? Em caso afirmativo, como?
2 Nomes Fictícios visando preservar a identidade dos respondentes. Quanto às siglas: (EB) se refere
a estudantes da Educação Básica; (P) se refere a professores da Educação Básica; e (PG) se refere a
estudantes da Pós-Graduação.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Literatura infantil digital: leitura na tela e novas formas de socialização na escola
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Literatura infantil digital: leitura na tela e novas formas de socialização na escola
Digital childrens literature: screen reading and new forms of socialization at school
Literatura infantil digital: lectura de pantalla y nuevas formas de socialización en la escuela
Rafaela Vilela*
Resumo
O artigo apresenta resultados de uma pesquisa de doutorado e discute a leitura contemporânea e as novas for-
mas de socialização na escola em diálogo com a literatura infantil digital. Como a literatura infantil se apresenta
na tela? Que características, recursos e funcionalidades a denem? Como as crianças leem esse dispositivo no
espaço coletivo da escola? Como a leitura na tela impacta os processos de socialização na escola? Para respon-
der as questões, foram realizadas ações propositivas a partir da leitura de nove aplicativos literários em uma
escola pública federal de educação infantil com um grupo de crianças de 5 e 6 anos. O texto está organizado em
três partes: na primeira traz considerações sobre literatura infantil digital, em seguida, apresenta instantes que
abordam a leitura colaborativa de aplicativos literários e o compartilhamento de saberes produzidos por uma
comunidade de leitores, por m, nas considerações nais, discute a experiência de ler e de dialogar sobre o lido.
Palavras-chave: literatura infantil digital; educação infantil; comunidade de leitores.
Abstract
This article presents the results of a doctoral research and discusses contemporary reading and new forms of
socialization at school in dialogue with digital childrens literature. How the childhood literature presents on
the screen? What characteristics, resources and functionalities dene them? What has been produced in digital
childrens literature in Brazil? How children reed these devices in the collective space of the school? How does
reading on the screen impact socialization processes at school? To answer these questions, proposal actions
involving digital childrens literature in a group of children with 5 and 6 years old in a public federal childhood
school. This text is organized in three parts: the rst brings considerations about digital childrens literature, then
presents moments that address the collaborative reading of apps and the sharing of knowledge produced by a
community of readers, nally, in the nal considerations, discusses the experience of reading and talking about
what is read.
Keywords: digital childrens literature; kindergarten; community of readers.
* Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora do Colégio de Aplicação da Universi-
dade Federal do Rio de Janeiro. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-2761-6385. E-mail: rafalouise@gmail.com
Recebido em: 30/07/2020 – Aprovado em: 15/04/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i1.11488
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Resumen
Este artículo presenta los resultados de una investigación doctoral y analiza la lectura contemporánea y las nue-
vas formas de socialización en la escuela en diálogo con la literatura infantil digital. ¿Cómo aparece en la pantalla
la literatura infantil? ¿Qué características, características y funcionalidad la denen? ¿Cómo leen los niños este
dispositivo en el espacio colectivo de la escuela? ¿Cómo afecta la lectura en pantalla a los procesos de socializa-
ción en la escuela? Para responder a estas preguntas, se tomaron medidas proposicionales basadas en la lectura
de nueve aplicaciones literarias en una escuela pública federal de Educación de la Primera Infancia con un grupo
de niños de 5 y 6 años. El texto está organizado en tres partes: la primera trae consideraciones sobre la literatura
infantil digital, luego presenta momentos que abordan la lectura colaborativa de aplicaciones literarias y el inter-
cambio de conocimiento producido por una comunidad de lectores, nalmente, en las consideraciones nales,
analiza la experiencia de leer y hablar sobre lo que se lee.
Palabras clave: literatura infantil digital; educación infantil; comunidad de lectores.
Introdução
O presente artigo apresenta resultados de uma pesquisa de doutorado (VILE-
LA, 2019) e discute a leitura contemporânea e as novas formas de socialização na
escola em diálogo com a literatura infantil digital. Enquanto expressão contempo-
rânea de arte para ser lida exclusivamente em meio digital, a literatura infantil
digital convida o leitor a provar uma obra que articula texto, imagem, movimento,
som e interatividade. Como a literatura infantil se apresenta na tela? Que caracte-
rísticas, recursos e funcionalidades a definem? Como as crianças leem esse dispo-
sitivo no espaço coletivo da escola? Como a leitura na tela impacta os processos de
socialização na escola?
Uma discussão contemporânea, do “tempo de agora” (BENJAMIN, 2012), que
compreende que a revolução digital não se traduz apenas como um processo téc-
nico e sim como uma alteração nos modos dos sujeitos produzirem e consumirem
informações, pois como anuncia Martín-Barbero (2006, p. 54), “a tecnologia remete,
hoje, não a alguns aparelhos, mas, sim, a novos modos de percepção e de lingua-
gem, a novas sensibilidades e escritas”.
A pesquisa empírica foi realizada entre os meses de julho e outubro de 2018
em uma escola pública federal de educação infantil de uma grande capital com um
grupo de crianças de 5 e 6 anos. Pautada na premissa de que a literatura infantil
digital é um campo novo de conhecimento e, por isso, uma tecnologia ainda pouco
presente nas escolas, foram realizadas ações propositivas a partir da leitura de
nove aplicativos literários: “Crianceiras”, “Pequenos grandes contos de verdade”,
“Monstros do Cinema”, “Quanto bumbum!”, “Sua história maluquinha”, “Mini Zoo”,
“Mãos mágicas”, “Chomp” e “Via Láctea”.
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A proposta de olhar para os artefatos feitos para as crianças, em diálogo com
elas, constituiu-se como um importante princípio teórico-metodológico. Um princí-
pio que compreende as crianças enquanto sujeitos constituídos na e pela lingua-
gem e que, portanto, têm muito o que dizer, possibilitando uma reflexão potente
sobre o nosso tempo e a nossa cultura.
Bakhtin (2011, p. 395) afirma que “o objeto das ciências humanas é o ser
expressivo e falante”. Diferentemente das ciências exatas em que o pesquisador
contempla uma coisa e emite uma explicação sobre ela, nas ciências humanas a
pesquisa se constitui como um processo dialógico e alteritário que envolve dois
sujeitos, duas consciências. Um movimento que, como afirma Pereira (2012, p. 62),
“pressupõe uma ativa relação entre os sujeitos que se põem em diálogo, o tema
sobre o qual eles dialogam e o contexto no qual esse diálogo se dá”.
Nesse sentido, assumimos a pesquisa intervenção como lugar de ação e refle-
xão. Um “agir com” que permite ao pesquisador e ao pesquisado se constituírem
nesse processo pois, enquanto sujeitos da linguagem, ambos encontram nessa re-
lação alteritária os fundamentos de um investigar compartilhado que envolve os
movimentos de “encontrar, compartilhar e transformar” (MACEDO et al., 2012).
As ações propositivas foram registradas a partir de uma metodologia dialó-
gica, denominada captura de instantes (VILELA, 2019), na qual as percepções
infantis foram apreendidas a partir do cruzamento de três pontos de observação:
registros elaborados por mim, coordenadora da pesquisa; registros realizados por
uma pesquisadora-assistente e filmagens. A articulação desses três planos propi-
ciou a captura de diferentes texturas do instante vivido.
Os encontros com as crianças apontaram que quase todas possuíam tablet. A
intimidade em manusear o dispositivo durante as ações propositivas apenas confir-
mou o acesso que elas têm a esses aparelhos fora da escola. As crianças conheciam
os movimentos de ligar e desligar e passavam com agilidade as telas em busca dos
ícones dos aplicativos, clicando nos escolhidos sem qualquer dificuldade. A pre-
ferência por jogos e vídeos, o desejo de assistir a vídeos de youtubers famosos e o
movimento tímido de pesquisa na rede, até mesmo por não estarem alfabetizadas
e não terem autonomia de leitura, indicam a importância de pensarmos a relação
das crianças com a cultura digital.
Observamos que o encontro com a literatura infantil digital proporcionou ao
grupo um respiro dentro da lógica digital contemporânea. A pesquisa apontou que,
independentemente do suporte, o encontro com a literatura permite a suspensão
do tempo cronológico. As crianças, ao deslocarem-se por distintos tempos e espaços,
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experimentam a dimensão expressiva da linguagem. Um mergulho que envolveu
os movimentos de imitar-repetir-criar, provocando novos encontros consigo, com o
outro e com o mundo, em um trânsito intermitente entre realidade e fantasia. Re-
flexões que potencializam as discussões sobre a leitura contemporânea e as novas
formas de socialização na escola.
O artigo está organizado em três partes: na primeira traz considerações sobre
literatura infantil digital, em seguida, apresenta instantes que abordam a leitura
colaborativa de aplicativos literários e o compartilhamento de saberes produzido
por uma comunidade de leitores, por fim, nas considerações finais, discute a expe-
riência de ler e de dialogar sobre o lido.
Quando o digital é literatura? Limiares na tela
Por considerar a literatura infantil digital como uma nova forma de expressão
da cultura contemporânea, Ramada Prieto (2017, 2018) defende a ficção digital
como um ecossistema, entendendo que esta nova forma de fazer literatura, apesar
de compartilhar aspetos fundamentais com as esferas que compõem o universo
de ficção infantil e juvenil, demonstra especificidades. Para isso, o pesquisador
catalão destaca quatro linhas de expressão que ajudam a definir e a caracterizar a
identidade da literatura infantil e juvenil digital: i) a mudança da materialidade,
ii) a presença da multimodalidade, iii) a participação como uma nova relação entre
autor e leitor e iv) a ruptura da linearidade textual.
A primeira linha de expressão aborda a materialidade da obra. Diferentemen-
te do livro impresso, a literatura infantil digital apresenta-se ao leitor por meio de
um ecossistema, transformando a natureza do objeto e o contexto de comunicação
literária (RAMADA PRIETO, 2018, p. 19). Isto representa uma mudança tanto
na produção quanto na recepção da obra. Compreendemos, nessa vertente, que a
literatura infantil digital inaugura uma nova cadeia de produção. De acordo com
os pesquisadores Menegazzi, Sylla e Padovani (2018, p. 46), como as obras digitais
apresentam uma grande variedade de recursos tecnológicos e multimídias, a pro-
dução editorial exige que “o grupo tradicional de profissionais do mundo editorial
– autores, editores, tradutores, ilustradores e designers gráficos –, [seja] somado a
compositores, locutores, programadores de jogos”. Essa nova lógica desloca a ideia
de um único autor para uma proposta centrada na concepção de inteligência cole-
tiva (LEVY, 1999), estimulando a participação coletiva e a sinergia dos saberes.
Princípios que aproximam pessoas em torno de interesses comuns, com o intuito
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de construírem conhecimentos cada vez mais colaborativos. Nesse caso, ao alterar
o modo como são produzidas as ficções literárias, altera-se diretamente a recepção,
posto que novas referências e percepções sobre a literatura infantil digital e sobre
a comunicação literária podem ser criadas na relação entre leitor e obra.
A multimodalidade, segunda linha de expressão apontada por Ramada Prieto
(2017, 2018), configura-se como uma importante característica das obras literárias
digitais, sendo compreendida como um elemento definidor desta produção estética
(HAYLES, 2008). A comunicação literária digital abrange a apropriação de diferen-
tes substâncias expressivas, envolvendo a convergência entre as linguagens. Nesse
sentido, o discurso literário é construído a partir de diferentes camadas de sentidos
e envolvem o som – em todas as suas vertentes, a imagem – estática e em movi-
mento, o texto oral, o texto escrito, o cinema e a linguagem dos jogos eletrônicos.
Ao olharmos para a produção literária infantil, observamos que a multimodalidade
surge antes mesmo da literatura infantil digital se consolidar como gênero. É o
livro ilustrado que inaugura a relação entre imagem e palavra, entendendo ambas
como matéria-prima literária, apresentando ao leitor uma produção multimodal
(NIKOLAJEVA; SCOTT, 2011).
A terceira linha de expressão destacada é a participação do leitor na obra,
a transformação da relação entre autor e leitor dentro do texto literário. Assim,
embora a interatividade possa ser tida como elemento central da literatura infantil
digital, para o pesquisador, ela pode representar um mero adorno tecnológico. Um
recurso que embora permita a interação através de cliques, pode não permitir a
entrada do leitor na obra de fato. Para Ramada Prieto (2017, 2018), o conceito de
participação relaciona-se a uma ação que é intencional e que abarca os recursos
de interatividade. Por não se configurar como texto linear, as ficções literárias são
tecidas a cada leitura a partir da participação do leitor. Essa exploração aberta re-
sulta em experiências ficcionais distintas, permitindo, em alguns casos, a cocriação
literária. Um movimento em que a participação do leitor deixa marcas dentro do
universo ficcional proposto.
Por fim, a ruptura da linearidade textual é defendida como uma questão que
modifica a estrutura dos textos digitais e que instaura novos modos de ler. A na-
tureza hipertextual do texto digital altera o modo como a informação é organizada
nas obras digitais e rompe com a perspectiva de uma história que tem princípio,
meio e fim. Pautada numa lógica não sequencial e programada, que envolve a con-
vergência de linguagens, a literatura infantil digital prevê a liberdade de nave-
gação do leitor. O caminho adotado não é o mesmo para cada ato de leitura, como
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na tradição impressa. Há, nesse sentido, uma multiplicação quase exponencial de
possíveis arquiteturas estruturais que organizam os textos literários, gerando no-
vas formas de ler e de se relacionar com as ficções.
Considerando as linhas de expressão propostas pelo pesquisador catalão, de-
fendo neste artigo a literatura infantil digital como um espaço tempo limiar onde
a literatura, o cinema, a música e os jogos eletrônicos se encontram. A limiaridade
presente nas ficções digitais é o que instaura a possibilidade de os leitores transita-
rem entre os diferentes territórios semióticos e de, nesse ir e vir, construírem suas
experiências de leitura.
O termo limiar vem do latim limes, que originou a palavra limite em portu-
guês, sendo usado também para designar as fronteiras do Império Romano. Para
Walter Benjamin (2006, não paginado), entretanto, “o limiar deve distinguir-se cla-
ramente da fronteira. Limiar é uma zona e na palavra estão contidos os sentidos
de mudança, passagem, flutuação”. A fronteira, nessa vertente, pode ser compreen-
dida como um traço de união e separação entre dois pontos: ao cruzar a fronteira,
atravessamos uma linha, chegamos a um outro lugar. O limiar, enquanto zona,
pressupõe um transitar com idas e vindas. Uma forma de olhar para o mundo que
considera o desvio como método.
É com essa premissa, a da limiaridade, que Walter Benjamin configura seus
escritos. Fragmentos tecidos em um ir e vir permanente, repletos de desvios. O
filósofo discute história, linguagem, arte e política a partir da lógica do pensamento
imagético, alegórico, capaz de retirar os objetos dos seus contextos habituais para
neles encontrar novas significações, oferecendo uma nova mirada do mundo. Nes-
se sentido, arrisca-se a usar um método que “não separa o pensamento da forma
do pensamento, e, sobretudo, que escolhe como objeto e lugar privilegiado desse
pensamento, não o espaço interior e já delimitado dos saberes, mas precisamente
o limiar, a fronteira, o lugar-entre” (BARRENTO, 2012, p. 42, grifos do autor). Um
movimento não linear que considera o saber como um espaço tempo que se renova
na e pela palavra, posto que a linguagem é lugar de vida e de pensamento.
A obra de Walter Benjamin, nessa indissociação entre forma e conteúdo, rea-
firma que o pensamento não é algo acabado. É nesse sentido que Barrento (2012,
p. 43) considera que os textos do filósofo compõem “uma cartografia de limiares:
a partir de uma aglomeração aparentemente caótica de textos, fragmentos, car-
tas, experiências, relações, sem limites nem sistema aparente (BARRENTO, 2012,
p. 43). Uma estrutura descontínua, tal como observamos na literatura infantil di-
gital, que provoca o leitor a experimentar a imersão e a montagem como modos
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de transitar entre os diferentes conceitos e criar sentidos próprios. Movimentos
que envolvem a busca de semelhanças entre os fragmentos apreendidos e que ga-
nham sentido no olhar do outro. Acabamentos éticos e estéticos sempre provisórios,
temporários, pois apesar de cada objeto carregar em si mesmo a sua história e o
seu valor, é no e pelo contexto da relação com os demais objetos que esse valor se
potencializa e se revigora (PEREIRA, 2012, p. 34).
Nesse viés, compreendo que a ficção digital surge na tela substituindo as
fronteiras encontradas no impresso, definidas através de margens e enquadres,
por um trânsito nos limiares da linguagem. Ao propor olhar a literatura infantil
digital como limiar, defendo-a como um espaço tempo de encontro com diferentes
linguagens. Experiências de leitura tecidas em um ir e vir permanente, que poten-
cializam a produção de sentidos ampliando o caráter estético, lúdico e alteritário
que institui a literatura.
Leitura digital em rede: colaboração e compartilhamento de saberes na escola
Para Roger Chartier (1998), o encontro entre um grupo de pessoas que se reú-
ne com frequência para ler e compartilhar experiências de leitura é o que institui
uma comunidade de leitores. Um espaço tempo para que os sujeitos estabeleçam
relações com o universo literário, compartilhando e comentando leituras. Essa prá-
tica coletiva potencializa a construção e a negociação de sentidos. “Essa partilha
– de leituras, ideias e sentimentos – favorece a construção de uma comunidade
com referências e cumplicidades mútuas, onde as ressonâncias individuais da lite-
ratura extrapolam os sujeitos e formam elos de coletividade” (CORSINO; VILELA;
TRAVASSOS, 2014, p. 109). Um aprender tecido no encontro dialógico e alteritário
que tem a ficção como elo.
Antônia, Bento, Bruno, Carolina, Giovana, Maitê, Marcela, Pedro, Vanessa
e Vitória. Dez crianças, dez diferentes modos de ver e entender o mundo. A pes-
quisa proporcionou que nós formássemos uma comunidade de leitores. As oficinas
literárias constituíram-se como um espaço tempo para ler e discutir sobre a vida,
a partir da literatura infantil digital. Uma proposta de fruição e de crítica, pois a
experiência de ler e de dialogar sobre o lido são indissociáveis.
Peter Hunt (2010), nessa linha, indica que lançar perguntas sobre a obra,
explorando as impressões e os sentimentos das crianças, é uma estratégia forma-
tiva importante. Considerando essa perspectiva, construímos uma metodologia de
pesquisa que envolveu experimentar junto com as crianças o efeito de ler literatura
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na tela. Essa dinâmica, de compartilhar leituras, de se afetar com as crianças, pro-
vocou em todos uma postura crítica. Ao mesmo tempo que eu trazia questões que
versavam sobre a forma e o conteúdo das ficções, os leitores também compartilha-
vam dúvidas e perguntas que incitavam conversas muito interessantes. Uma cola-
boração e um compartilhamento de saberes horizontal que abarcou desde aspectos
mais técnicos da leitura – como a descoberta de um recurso interativo, por exemplo
– até a construção de conceitos e a partilha de experiências pessoais – aspectos que
serão explorados nas análises a seguir.
Ao longo das oficinas, lemos e conversamos sobre nove aplicativos literários.
A leitura na tela provocou o encontro das crianças com uma literatura que tem a
multimodalidade e a não linearidade como marcas constitutivas. Gestos e expe-
riências de leitura que surgiram a partir do entrelaçamento entre texto, imagem,
movimento e som. O tablet, considerado um dispositivo móvel individual, tornou-se
suporte para uma leitura compartilhada. Um desvio metodológico que funcionou.
Ao alternar momentos de interação entre as duplas/trios e entre todo o grupo, con-
figuramos uma dinâmica que favoreceu a leitura e a discussão coletiva. Encontros
que permitiram apreciar obras, experimentar jogos, criar histórias, fazer grava-
ções de voz, cantar, dançar, tirar fotos, narrar e conversar.
A leitura foi mobilizadora de conversas sobre a vida, sobre o que nos atravessa.
Uma prova de que a leitura na tela não é sempre dispersiva. Ler literatura infantil
digital na escola é um modo de suspender o tempo da produtividade e de se deixar
assombrar pelo ficcional, de transitar entre os limiares da obra. Nessa perspectiva,
ressaltamos a potência do ato de ler junto, de compartilhar leituras, em especial
com as crianças, independentemente do suporte. Os encontros possibilitaram que
os sentidos construídos fossem socializados e se tornassem coletivos, compostos,
potencializando a criação e a imaginação de todos os envolvidos. Os instantes abai-
xo dialogam com essas questões. Vejamos.
O que é um monstro?
Pesquisadora: Eu posso fazer uma pergunta? O que é um monstro?
Vitória: É um negócio muito assustador que eu não gosto.
Pedro: Vive no terror!
Giovana: É um monstro bem esquisito que assombra os humanos, principalmente as crianças.
Bento: No escuro, na noite. Por isso que eu fico na cama dos meus pais.
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Pedro: E também, sabe, os monstros vivem no filme de terror.
Bento: Às vezes, eles fogem quando veem uma espada.
Pesquisadora: Eles sentem medo de espada?
Bento: É, porque corta eles.
Vitória: Mas tem monstro que come mosquito para proteger a gente.
Bento: Quem?
Vitória: Morcego marrom.
Pesquisadora: Morcego é monstro?
Antônia: O morcego marrom não, porque ele não suga a gente.
Pedro: Morcego é vampiro!!!!!
Bento: É. Quando ele faz assim com a capa – diz fazendo o gesto de cobrir o rosto. E ele tem
os dentes afiados.
Pedro: Vampiro não gosta de alho e ele morre com a luz.
Bento: Eu vi nos Minions que quando aparece a vela e o sal, o vampiro morre e vira terra.
Antônia: Não. Vira poeira.
Bento: Terra-poeira.
Antônia: Não. É outra coisa. Sabe aqueles queimadinhos?
Pesquisadora: Cinzas?
Antônia: Não é um queimadinho que aparece no desenho animado, tipo uma chama. Aí, vira
vários farelinhos.
Pesquisadora: Farelinhos de fumaça?
Antônia: Isso! Na verdade são farelinhos do fogo.
Pedro: Eu posso falar uma coisa? Vampiro gosta de sangue.
Bento: Quando o vampiro suga o sangue do humano, o humano morre. Ele morre.
Vitória: Mas o humano não vira vampiro?
Bento: Às vezes ele morre e às vezes vira vampiro. No desenho do Scooby-Doo ele vira
vampiro.
(...)
Pesquisadora: E aí? Qual monstro vocês acharam mais assustador?
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Vitória: Nenhum!!!
Pesquisadora: Nenhum? Ué, mas vocês falaram no começo do nosso encontro que monstros
são sempre assustadores!
Vitória: Mas aqui estava tudo desenhado, então não deu medo. Se fosse foto de verdade ia
assustar.
Pedro: Eu achei eles engraçados.
Pedro: Eu e Antônia gostamos muito do Drácula.
Bento: Eu também gostei.
Antônia: Ele não foi assustador, foi bem tranquilo (Oficina 5 – 22/08/2018).
Criado por Daniel Kondo e Augusto Massi, o aplicativo Monstros do Cinema
faz referência ao livro homônimo também publicado pela Sesi-SP Editora. Foi um
dos finalistas na categoria Infantil Digital do Prêmio Jabuti, em 2017. Disponibi-
lizado apenas para o sistema operacional iOS, o aplicativo pode ser baixado gra-
tuitamente. Na produção, os monstros do cinema foram fatiados em três pedaços:
cabeça, tronco e membros. Após embaralhar as partes, o leitor é convidado a montar
o seu próprio monstrengo. Os autores buscaram conceber uma obra que reunisse ao
mesmo tempo o livro brinquedo e o livro conteúdo. O primeiro pela proposta lúdica
de criar o seu próprio monstro e o segundo pela pesquisa fílmica que originou uma
interessante linha do tempo, a partir da descoberta da origem de cada um dos
monstros.
O instante “O que é um monstro?” envolveu dois momentos de discussão: uma
roda antes da leitura do aplicativo e outra no fim da oficina literária. A questão,
levantada por mim, mobilizou o grupo em vários sentidos. Pedro, Vitória, Giovana,
Antônia, Maitê e Bento tinham um mesmo pensamento: a de que monstros são
sempre assustadores. Entretanto, é possível ver as crianças, em suas hipóteses,
transitarem entre o real e o ficcional ao longo de toda a discussão. Para o grupo, há
“monstros que vivem no filme de terror”, como anunciou Pedro e os que vivem “no
escuro, na noite” e que fazem o menino Bento querer ir para cama dos pais.
Em diálogo com esta questão, Vigotski (2009) assinala que a criação é uma
ação fundamental do homem e que toda e qualquer criação se origina da complexa
relação entre imaginação e realidade. Nesse viés, o autor destaca quatro pontos:
i) a imaginação se constrói sempre a partir da realidade; ii) a experiência pode vir
da fantasia, pois ela permite ao sujeito imaginar o que ainda não viu, o que não vi-
venciou em sua experiência pessoal; iii) a imaginação vincula-se reciprocamente à
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emoção, assim, os sentimentos influem na imaginação, e esta, nos sentimentos; iv)
a imaginação pode representar algo inteiramente novo, e esta imagem, convertida
em objeto, influir na realidade.
A possibilidade de encontro com o outro por meio da linguagem literária per-
mite a construção de imagens e cenas mentais, ampliando a relação do homem com
o mundo. Nesse circuito, há ainda a emoção, que se manifesta nesse trânsito entre
realidade e ficção. A lei da dupla expressão dos sentimentos, proposta pelo autor,
parte do pressuposto de que o nosso estado emocional influencia de forma direta
a nossa experiência. Assim, as emoções são expressas na linguagem, na nossa or-
ganização de ideias, e também no corpo, através de reações de ordem física. Esse
tom afetivo, emocional, ao alterar a imaginação, altera também a nossa relação
com a realidade. É isso que faz com as emoções experimentadas no encontro com a
ficção tornem-se reais. A ficção influencia os “nossos sentimentos e, a despeito de
essa construção por si não corresponder à realidade, todo sentimento que provoca é
verdadeiro, realmente vivenciado pela pessoa, e dela se apossa” (VIGOTSKI, 2009,
p. 28). Assim, o medo do monstro, provocado pelas ilustrações ou pela leitura de
um texto, torna-se completamente real, como foi apontado no instante por Bento.
As conexões das crianças mostraram-se também interdiscursivas. Vemos de
forma explícita a relação com outras linguagens e referências. Seus pressupostos
sobre monstros trazem discursos do filme dos Minions e do desenho do Scooby-Doo.
Pedro, Bento e Antônia anunciam seus saberes sobre vampiros e misturam reali-
dade e fantasia em suas enunciações, associando a imagem do morcego como ani-
mal predador que “come mosquito para proteger a gente” e também como vampiro.
Dizem com gestos e palavras o que sabem sobre esse monstro: experimentam seu
movimento de sumir e aparecer com a capa, relacionam os “dentes afiados” à ação
de sugar o sangue humano, anunciam que ele “não gosta de alho e ele morre com
a luz” e que, quando morre, “vira terra” / “vira poeira” / “vira terra-poeira”. Uma
negociação de sentidos construída de forma dialógica, pautada na reação de uma
palavra a outra palavra (BAKTHIN, 2011). Uma brincadeira com a linguagem, que
faz com que Antônia busque explicar o seu pensamento na imagem vista na tela,
num desenho animado, chegando a conclusão de que os vampiros, quando extermi-
nados, transformam-se em “farelinhos do fogo”.
A leitura do aplicativo e a socialização discursiva, entretanto, desconstruíram
a ideia inicial de que todos os monstros são assustadores. A ilustração, o traço
cômico apresentado na tela, divertiu as crianças. Como apontou Vitória, “estava
tudo desenhado, então não deu medo”. Observamos assim que a imagem é capaz
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de apresentar várias camadas de leitura. Enquanto signo, as imagens possuem
códigos e sintaxes próprias, expandindo os processos ficcionais. Em consonância
com essas considerações, Corsino (2011, p. 155) aponta que as ilustrações são como
prismas: “Ao mesmo tempo em que são figurativas e fazem ver personagens e ele-
mentos-chaves presentes no texto verbal, também trazem algo abstrato, difuso,
sem fronteiras muito delimitadas, evocando o que não foi enunciado”. A produção
de “Monstros de Cinema” provocou nas crianças um olhar sensível que abarcou
forma e conteúdo, inspirando discussões sobre a arte e a vida.
O próximo instante apresenta a discussão coletiva sobre os sentimentos expe-
rimentados na tela pela personagem Quadradinha de Papel, do aplicativo “Mãos
mágicas” e pelas crianças na vida real.
Criado por Teresa Yamashita, o aplicativo Mãos Mágicas faz referência ao
livro homônimo também publicado pela Sesi-SP Editora, em 2013. Disponível para
o sistema operacional iOS, o aplicativo literário foi um dos vencedores da catego-
ria Infantil Digital do Prêmio Jabuti, em 2016, ficando em segundo lugar. A obra
narra a história dos irmãos Quadradinha e Fininho de Papel. Após ver o vento
carregar Fininho para muito longe, Quadradinha dobra-se toda, entristecida. Mas,
o encontro com um sapo a faz descobrir o origami. Dobrando e desdobrando, ela se
transforma em outros animais. Vira borboleta, urso panda, gato, girafa, macaco,
pássaro. Quadradinha viaja ao redor do mundo para encontrar seu irmão. Após
chegar a uma casa amarela, encontra Fininho. Na casa da menina Sadako, os dois
descobrem que ela também conhece a arte do origami. Juntos, enfim, eles voam em
busca de novas aventuras.
Sobre susto, tristeza e irritação
Maitê: Sabe, eu gostei quando a Quadradinha e o Fininho se encontraram.
Pedro: Eu não gostei muito.
Maitê: Não? Nem quando a Quadradinha cresceu e ficou assustada lá na casa amarela.
Como Pedro não responde, lanço um dos trechos comentados por Maitê como questão para
o grupo.
Pesquisadora: Pessoal! A Maitê gostou da parte que a Quadradinha de papel ficou assustada.
Alguém aqui já ficou assim?
Antônia: Eu fico quando eu acordo de madrugada, porque eu sempre ouço um barulhinho.
eu vou direto para o quarto da minha mãe e eu deito lá e durmo.
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Giovana: Eu também às vezes fico assim de noite. Porque está escuro, sabe?
Bento: Eu não. Mas, às vezes, eu fico triste.
Maitê: Igual a Quadradinha!
Pesquisadora: Verdade! A Quadradinha ficou triste também, toda dobradinha.
Maitê: Eu já fiquei triste quando o meu pai me deixou de castigo.
Pesquisadora: Eu já fiquei também. Tem vezes que a gente fica triste, mesmo.
Pedro: Quem brigou com você?
Pesquisadora: Às vezes não acontece briga, mas mesmo assim você fica triste.
Vitória: Eu já fiquei um tiquinho de nada, quando minha amiga não quis ficar comigo.
Pedro: Eu fiquei quando a minha mãe e o meu pai se separaram.
Antônia: Eu fico muito, mas muito irritada quando eu falto a escola.
Pesquisadora: E tem diferença entre ficar irritada e ficar triste?
Antônia: Irritada é quando a pessoa fica muito brava. É um outro jeito de dizer que está brava.
Giovana: Mas é diferente de ficar triste.
Vitória: A gente pode se sentir triste e irritado, ué!
Antônia: É! Mas não é igual. É outra sensação (Oficina 12 – 02/10/2018).
No instante “Sobre susto, tristeza e irritação”, apesar de Maitê iniciar o diá-
logo explicitando para o grupo seu trecho favorito da ficção digital, a reverberação
aconteceu a partir da minha intervenção. Diante do silêncio do grupo frente à ques-
tão trazida pela menina, busquei em sua enunciação uma questão para pensarmos
juntos: “A Maitê gostou da parte que a Quadradinha de papel ficou assustada.
Alguém aqui já ficou assim?”. A proposta mobilizou as crianças a dialogarem sobre
a obra a partir de suas experiências pessoais.
Antônia falou sobre o susto de ouvir barulhinhos quando acorda de madru-
gada. Giovana também partilha do sentimento, mas relaciona-o ao escuro. Bento
traz à tona outro sentimento: a tristeza. As crianças continuam a conversa, com-
partilhando momentos da vida em que se sentiram assim, “igual a Quadradinha”
retratada no aplicativo.
Castigo, briga, solidão, separação. Temas que perpassam a vida e que atingem
crianças e adultos sem distinção. A compreensão de que as crianças são afetadas
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pelo campo social tanto quanto nós adultos e que, por isso, necessitam de espaços e
tempos para dizer sobre seus medos e angústias, infelizmente, não é um consenso.
O entendimento de que o tom amargo presente na literatura pode ser uma potente
via de experimentação dos sentimentos contraditórios que perpassam a relação
com o outro e com o mundo precisa ganhar força na sociedade contemporânea.
Por fim, há ainda uma discussão sobre irritação. Um diálogo que fez surgir entre
as crianças uma percepção coletiva de que, às vezes, os sentimentos se misturam
dentro da gente.
Os instantes “O que é um monstro?” e “Sobre susto, tristeza e irritação” apre-
sentaram o compartilhamento de saberes entre uma comunidade de leitores. As
crianças, a partir da leitura dos aplicativos, construíram e negociaram sentidos e
socializaram experiências pessoais, demonstrando que as conversas sobre o que
lemos são fundamentais na formação leitora.
Considerações nais
Em grande parte das vezes, observamos que a experiência da leitura termina
junto com a história. A pesquisa apontou que as conversas sobre a obra são tão
importantes quanto o ato de ler. Nesse sentido, é importante reservar tempos e
espaços para o diálogo, pois lançar perguntas sobre a obra, explorar as impressões
e os sentimentos das crianças, amplia o processo formativo do leitor (HUNT, 2010).
Entretanto, é importante salientar que uma boa pergunta não apresenta res-
postas fechadas, prontas, como os usuais sim/não, gostei/não gostei. Considerando
essa perspectiva, é importante pensar em questões que reflitam sobre a forma e
o conteúdo das ficções, questões que nos afetem enquanto adultos, que nos provo-
quem a ouvir as crianças e também a dizer nossas impressões, incitando um espaço
interlocutivo interessante para todos.
Os instantes capturados apontam que a literatura infantil digital provoca um
trânsito entre o real e o ficcional. Um ir e vir sem fronteiras definidas que permitiu
conversarmos sobre obra e vida. Consideramos que essa dimensão expressiva e
socializadora a partir da leitura na tela foi possível pela metodologia dialógica pro-
posta na pesquisa. A perspectiva de ler e de discutir as obras, de encontrar espaço
e tempo para conversar, de escutar o que as crianças trazem e de nos deixar afetar
por isso, lançando novas questões, potencializou a leitura e a socialização na escola.
Considerado por muitos como uma experiência individual, o encontro com o di-
gital na escola através da leitura de aplicativos, reafirmou que a literatura, mesmo
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na tela, é capaz de criar um espaço tempo para o encontro, o diálogo, a brincadeira.
As oficinas constituíram-se como experiências significativas, ampliando os proces-
sos de imaginação e de criação das crianças.
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Juventudes e participação social: processos de socialização na
contemporaneidade
Youths and social participation: contemporary socialization processes
Juventud y participación social: procesos de socialización contemporáneos
Maurício Perondi*
Resumo
O presente artigo trata da socialização de jovens a partir da sua participação em quatro coletivos: Instituto Gaú-
cho de Estudos Ambientais (Ingá), Cursinho Pré-Vestibular Zumbi dos Palmares, Instituto Cultural Afro Sul/Odo-
modê e Campanha Nacional Contra a Violência e o Extermínio de Jovens, das Pastorais da Juventude do Brasil.
Busca compreender os sentidos que a participação nesses grupos tem para a vida dos jovens envolvidos. Seus
referenciais são autores que discutem a socialização das juventudes contemporâneas, a partir dos conceitos
de participação social e de culturas juvenis, tais como Carles Feixa, José Machado Pais, Alberto Melucci, Regina
Novaes e Luis A. Groppo. A metodologia empreendida na investigação teve cunho qualitativo a partir das nar-
rativas juvenis. Os resultados evidenciaram que os grupos contribuem signicativamente para a socialização
dos jovens, a partir das relações que estabelecem com outros sujeitos de mesma idade. A principal categoria
produzida a partir dos dados analisados foi chamada de sociabilidade e tratou dos temas da coletividade, da
convivência, da amizade e dos grupos como uma segunda família”.
Palavras-chave: juventudes; socialização; narrativas juvenis; participação social; culturas juvenis.
Abstract
This article deals with the socialization of young people based on their participation in four collectives: Gaucho
Institute of Environmental Studies – Inga, Zumbi dos Palmares Preparatory Couse, Afro Sul/Idomode Cultural
Institute, and National Campaign against Youth Violence and Extermination, of Youth Pastoral of Brazil. It aims to
understand the meanings the participation in these groups has in the young people’s lives involved. Its referen-
ces are authors who discuss the socialization of contemporary youth from the concepts of social participation
and youth cultures, such as Carles Feixa, Jose Machado Pais, Alberto Melucci, Regina Novaes, and Luis A. Groppo.
The methodology used in the investigation was qualitative, based on youth narratives. The results showed that
the groups contribute signicantly to the socialization of young people, based on the relationships they esta-
blish with other subjects who are the same age. The main category produced from the analyzed data was called
sociability and considered the themes of collectivity, coexistence, friendship, and groups as a “second family”.
Keywords: youths; socialization; youth narratives; social participation; youth cultures.
* Doutor em Educação. Professor na Faculdade de Educação da UFRGS, Porto Alegre. Orcid: http://orcid.org/0000-0002-
0551-468X. E-mail: mauricioperondirs@gmail.com
Recebido em: 30/07/2020 – Aprovado em: 21/05/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i1.11500
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Resumen
Este artículo aborda la socialización de los jóvenes en función de su participación en cuatro grupos: Instituto
Gaúcho de Estudios Ambientales – Ingá, Curso Pré-Vestibular Zumbi dos Palmares, Instituto Cultural Afro Sul/
Odomodê y Campaña Nacional contra la Violencia y lo Exterminio de Jóvenes, de las Pastorales de Juventud de
Brasil. El objetivo de la investigación fue comprender cuáles son los signicados que la participación en estos
grupos representa para la vida de los jóvenes involucrados. Toma como referencia a autores que discuten la
socialización de la juventud contemporánea, a partir de los conceptos de participación social y culturas juve-
niles, como Carles Feixa, José Machado País, Alberto Melucci, Regina Novaes, Luis A. Groppo, entre otros. La
metodología utilizada en la investigación tuvo una naturaleza cualitativa, basada en narrativas juveniles. Los
resultados mostraron que los grupos contribuyen signicativamente a la socialización de los jóvenes, en función
de las relaciones que establecen con otros sujetos de la misma edad. La categoría principal producida a partir de
los datos analizados se denominó sociabilidad y trató los temas de colectividad, convivencia, amistad y grupos
como una segunda familia.
Palabras clave: jóvenes; socialización; narrativas juveniles; participación social; culturas juveniles.
Introdução
No limiar do século XXI, há um permanente questionamento acerca dos novos
processos socializadores diante de um mundo globalizado, com diferentes configu-
rações relacionais, impactos do mundo tecnológico e constantes mudanças sociais,
que parecem se tornar cada vez mais velozes. Neste cenário, as instâncias tradi-
cionais de socialização, como a família, a escola, o mundo do trabalho, passam a
se questionar e a serem questionadas sobre o seu papel na formação das novas
gerações, sobretudo das juventudes.
Para Groppo (2017), aconteceu um processo histórico de modificação nas per-
cepções sobre as questões geracionais voltadas aos jovens. Na primeira parte do
século XX, predominaram as teorias da sociologia estrutural-funcionalista da ju-
ventude, em que os grupos juvenis teriam uma função de socialização secundária,
posterior à família e à escola. De acordo com o autor, na segunda metade do século
XX, a ênfase voltou-se para as teorias críticas que desenvolveram, a partir de Fo-
racchi (1972) e Mannheim (1982), a ideia de que “a juventude tem uma relação
experimental com os valores e a realidade social. Deste modo, busca-se explicar os
movimentos radicais e contraculturais dos anos 1960” (GROPPO, 2017, p. 17). Já
no final do século XX e início do século XXI, surgem as chamadas teorias pós-crí-
ticas, caracterizadas por duas situações: a) “o reconhecimento do papel mais ativo
dos sujeitos e grupos na constituição das juventudes” (GROPPO, 2017, p. 17); b)
“processos de flexibilização e desinstitucionalização da vida social como a privati-
zação e a descronologização do curso da vida, de modo que relativizam e até negam
o caráter transitório da condição juvenil” (GROPPO, 2017, p. 18).
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A partir das mudanças de concepções das configurações juvenis nos processos
de socialização ao longo do tempo, neste artigo são adotados dois pressupostos: o
primeiro trata da participação social dos jovens na atualidade, problematizando a
importância que os coletivos juvenis representam para este segmento social; o se-
gundo discorre sobre as culturas juvenis (FEIXA, 2006) como forma de romper com
a perspectiva unidirecional geracional de socialização dos jovens. Posteriormente,
são apresentados os delineamentos metodológicos e resultados de uma pesquisa
com narrativas juvenis sobre participação social em quatro coletivos, relacionados
a quatro áreas que, segundo Novaes e Vital (2005), representam grande interes-
se para as juventudes contemporâneas. Os resultados mostram a configuração da
importância que os grupos têm para os jovens participantes, bem como para os
processos de socialização que deles decorrem.
Juventudes e participação social
Problematizar a participação social da juventude implica pensar o futuro de-
mocrático das sociedades latino-americanas. De acordo com Novaes e Vital (2005),
os jovens são herdeiros dos símbolos, valores e códigos de funcionamento que a
sociedade produz. Em grande parte, eles é que definirão os padrões de reprodução
ou de mudanças das sociedades e de suas instituições. Na visão das autoras, “com-
preender a juventude de hoje é compreender o mundo de hoje” (NOVAES; VITAL,
2005, p. 109). Tal ideia aponta para a relação histórico-cultural da juventude, ou
seja, ela está intimamente ligada ao período histórico e ao contexto cultural em que
está inserida.
Para Krauskopf (2005, p. 151), “a construção da juventude na América Lati-
na e no Caribe ocorre em meio a transições históricas e políticas, a contextos de
desigualdades econômicas e a um forte influxo da globalização”. A partir dessa
afirmação, é preciso considerar que as percepções sobre os jovens não podem ser
homogêneas, o que implica analisar os fenômenos que marcam as identidades dos
jovens a partir de suas diferentes desigualdades. A realidade das tecnologias di-
gitais é outro fator que integra o panorama das mudanças culturais, acentuando
diferenças e contribuindo para o surgimento de novos códigos, condições e expe-
riências para os processos de construção identitária dos jovens.
Compreender o momento presente tornou-se uma tarefa complexa e exigen-
te, também para entender as mudanças ocorridas nos processos de socialização.
Fischer e Sposito (2001, p. 15), inspirados por Melucci, apontam que, “diante das
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dificuldades de compreensão dos fenômenos que caracterizam a sociedade atual,
recorremos apenas a definições alusivas, designando-a como complexa, globaliza-
da, planetária, pós-industrial, de modernidade lenta ou pós-moderna”. Destacam
que este esforço em nomear o momento vivido busca perceber os processos de muta-
ção social inconclusos, dos quais nos falta um distanciamento histórico que permita
explicá-los em sua totalidade. Mesmo com esta dificuldade de definição, Melucci
(apud FISCHER; SPOSITO, 2001, p. 15, grifo nosso) aponta para três traços bási-
cos que caracterizam a sociedade contemporânea:
Diferenciação: traduzida pela multiplicação dos âmbitos da vida e forma de estruturas
específicas para responder a tarefas que anteriormente eram desenvolvidas por estruturas
mais simples e homogêneas; variabilidade: percebida pelo conjunto de alterações na di-
mensão temporal em função da intensidade e do ritmo contínuo da mudança; excedente
cultural: que exprime o fato de que as possibilidades simbolicamente disponíveis à ação
dos indivíduos são muito mais amplas do que sua própria capacidade de ação.
A diferenciação exprime a multiplicidade de âmbitos e instituições que per-
meiam a vida das pessoas atualmente. Percebe-se uma ampliação de estruturas
e instituições, tais como novas associações, novos espaços de lazer, o surgimen-
to de espaços públicos, a rua como área de encontro e criação e o crescimento de
grupos informais. Anteriormente, a vida cotidiana era constituída por estruturas
mais simples e homogêneas, tais como a família, a escola, a igreja, e o mundo do
trabalho, que se destacavam como os principais, quando não os únicos, espaços
responsáveis pela socialização dos jovens. Hodiernamente, essas mesmas institui-
ções não se apresentam de forma homogênea, sendo que cada uma exprime novas
configurações, formatos, valores e opções. Tais mudanças repercutem na vida dos
sujeitos e nos modos como se situam diante delas.
A variabilidade compreende os modos como os processos temporais são viven-
ciados, principalmente em relação à intensidade e ao ritmo contínuo das mudanças.
O tempo é vivenciado de uma maneira diferenciada, até então não experimentada,
onde tudo é acelerado e volátil. Diz-se que em outros tempos a mudança de uma
geração para outra acontecia a cada vinte anos, ao passo que, atualmente, diz-se
que tal diferença diminuiu para aproximadamente seis anos.
O excedente cultural diz respeito às inúmeras possibilidades simbolicamente
disponíveis a que os indivíduos não têm capacidade de absorção. Isto é, não é pos-
sível acompanhar e usufruir tudo o que é produzido, seja em termos cognitivos ou
culturais, seja em termos materiais.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Estes traços exercem grande influência sobre a vida dos jovens em suas re-
lações cotidianas. Eles estabelecem novos parâmetros para pensar o conceito de
juventude, visto que a diferenciação, a variabilidade e o excedente cultural têm
reflexos distintos na vida de jovens que, embora tenham a mesma faixa etária,
vivenciam realidades e situações distintas.
Almeida (2009, p. 121), inspirado em Melucci, destaca que:
Para melhor entender as tendências emergentes da cultura e da ação juvenil temos que
considerá-las mediante a combinação de uma perspectiva macrossociológica entrelaçada às
experiências individuais na vida diária, pois a juventude, em decorrência de suas condições
culturais e biológicas, é o conjunto social mais diretamente exposto aos dilemas da constru-
ção histórica do tempo e da realidade social na contemporaneidade, o grupo que os torna
visíveis para a sociedade como um todo.
Tal afirmação aponta para a necessária vinculação dos jovens com a sociedade
em que estão inseridos. Por sua condição, eles tornam visíveis problemas e contra-
dições que são produzidos no interior desta mesma sociedade. Por esse motivo, a
juventude também é apontada como “espelho retrovisor da sociedade” (NOVAES;
VITAL, 2005). Ou seja, ela vive e expressa aquilo que lhe cerca no seu cotidiano.
Esta sociedade, que está refletida na expressão dos jovens, é chamada de so-
ciedade complexa (MELUCCI, 2001). Sua perspectiva é a de que, principalmente a
partir dos anos 1980, a sociedade passa por uma profunda transformação em seus
diversos aspectos, inclusive nas formas de participação dos movimentos sociais e
na atuação dos indivíduos que buscam mudanças. Para Melucci (2001, p. 10-11):
Não nos encontramos diante da dissolução dos atores coletivos ou do desaparecimento dos
conflitos, mas de uma mudança profunda de sua forma. [...]. Estamos, certamente, diante
do desaparecimento da ação e dos sujeitos que coincidem com a nossa ideia tradicional de
movimento. [...]. A ideia de que só a mudança das estruturas pode produzir transformações,
sem envolver os nossos modos de construir, individual e coletivamente, a mesma experiên-
cia humana, pertence às ilusões do passado.
A reflexão denota que os conflitos sociais e as atuações, tanto individuais como
coletivas, continuam presentes na sociedade contemporânea, mas a sua forma se
alterou consideravelmente. É preciso superar a ideia tradicional que se tem de par-
ticipação. Se, historicamente, a concepção dominante era de que as transformações
sociais passam pela necessária mudança das estruturas, nas sociedades complexas
tal concepção é abandonada. Não há uma dissolução ou uma ausência de conflitos
sociais, dada a sua escassa visibilidade. Outrossim, o que há é um esgotamento das
modalidades de lutas e atores envolvidos.
Ainda segundo Melucci (2001, p. 95):
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Os movimentos juvenis, feministas, ecológicos, étnico-nacionais, pacifistas não têm somen-
te colocado em cena atores conflituais, formas de ação e problemas estranhos à tradição de
lutas do capitalismo industrial; eles têm colocado também, no primeiro plano, a inadequa-
ção das formas tradicionais de representação política para acolher de maneira eficaz as
questões emergentes.
O apontamento do autor destaca que os novos movimentos da sociedade con-
temporânea deixam para trás as formas tradicionais de representação política e
de atuação diante das demandas de ação coletiva. Isso se deve também ao fato de
que os movimentos não são unidades coletivas homogêneas, mas são compostos
por unidades diversificadas e autônomas, que dedicam à sua solidariedade interna
uma parte importante dos seus recursos.
Com a ampliação das possibilidades para a socialização das novas gerações,
sobretudo através do advento da internet, do crescente crescimento de uso das re-
des sociais e de outras possibilidades socializadoras, tornou-se comum o questiona-
mento cético sobre o interesse dos jovens em participarem de coletivos e processos
grupais. Contudo, de acordo com pesquisa realizada pela Secretaria Nacional de
Juventude (2013), os jovens continuam muito interessados em participar de coleti-
vos organizados, como é possível perceber no Gráfico 1.
Gráfico 1 – Histórico e desejo de participação em associações, entidades e grupos
Fonte: adaptado por Adriene Maciel Cabral, a partir de Secretaria Nacional de Juventude (2013).
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De acordo com a pesquisa, se somados os jovens que participam de alguma
organização (20%), com os que já participaram (26%) junto dos que nunca parti-
ciparam, mas gostariam (39%), resulta um total de 85% de jovens envolvidos. É
possível perceber ainda que apenas 15% dos jovens entrevistados afirmaram que
nunca participaram nem têm interesse em participar. Esses dados demonstram
a importância que os grupos, coletivos, entidades, associações, etc., têm para as
juventudes.
Nos resultados da pesquisa doutoral apresentados neste artigo (PERONDI,
2013), pode-se ver como a participação juvenil em coletivos sociais estabelece sen-
tidos para a sua socialização, para a construção de sua identidade e para a organi-
zação de seus projetos de vida. Na sequência, discute-se como os jovens, por meio
da convivência com outros sujeitos da sua idade, produzem processos próprios, que
se diferenciam dos processos dos adultos e que são as culturas juvenis.
A importância das culturas juvenis nos processos de socialização
Para Feixa (2006), existem duas formas principais de situar os jovens social-
mente. A primeira corresponde a uma construção sociocultural do que é o juvenil a
partir das instituições hegemônicas (família, escola, trabalho, instituições religiosas,
partidos políticos, associações intermediárias, exército, indústria cultural, meios de
comunicação de massa, órgãos de vigilância e controle social). De modo geral, estas
instituições têm definido os jovens como sujeitos passivos, que devem preparar-se e
qualificar-se para acessar, no futuro, a esfera adulta. Esta projeção de lugar no futuro
invisibiliza os jovens no presente (FEIXA, 2006). As instituições seriam as principais –
senão as únicas – responsáveis pela socialização das novas gerações. A segunda forma
de situar os jovens é a da construção juvenil da cultura, que corresponde aos territó-
rios de sociabilidade juvenil, criados pelos próprios jovens nos interstícios dos espaços
institucionais, como a escola, a indústria do entretenimento, o bairro e, sobretudo, em
seus tempos livres (rua, cinema, música, festas, internet, lugares de diversão, etc.). O
diferencial desta segunda maneira é que os jovens, via interação com seus pares, par-
ticipam dos processos de criação e de circulação cultural e social como agentes ativos.
De acordo com Urteaga (2011), essa segunda maneira de compreender os jo-
vens corresponde à noção das culturas juvenis, que teve grande impulso com os es-
tudos do antropólogo catalão Carles Feixa, convertendo-se numa importante chave
interpretativa da heterogeneidade cultural dos jovens e de sua participação na
construção de novos espaços sociais que interagem com as culturas hegemônicas
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e com as próprias culturas geracionais. Segundo Urteaga (2011, p. 19, grifo da
autora, tradução nossa):
Culturas juvenis foi uma noção vital para reintroduzir o sujeito jovem como ator e poder
fazer ouvir as vozes dos segmentos juvenis marginalizados da investigação social. Feixa,
Reguillo, Pere Islas, Valenzuela, Marcial, Urteaga (quem lhes escreve) e muitos outros
investigadores enfatizamos a importância de ler as representações e práticas juvenis como
metáforas da mudança social, rompendo com as interpretações lineares e “fazendo falar” o
conjunto de elementos com os quais os jovens interagem – desde diferentes âmbitos e loca-
lizando-se em múltiplas dimensões como classe, gênero, geração, etnia, território, espaço
urbano-rural – e com os quais constroem novas formas e concepções de política, de relações
sociais e afetivas, de cultura, etc..
Tal apontamento enfatiza o uso de noção das culturas juvenis na compreensão
das abordagens recentes sobre os jovens, em que são situados de uma maneira di-
ferenciada, com maior visibilidade e a partir do pressuposto de que produzem uma
cultura diferente de outras (hegemônica e parental).
Ao conceber os jovens como produtores de uma cultura própria, considera-se
que são sujeitos ativos, dotados de capacidade de ação. Suas ações podem ganhar
espaço nos mais diversos âmbitos, inclusive em coletivos de atuação social, como
é o caso dos grupos abordados neste estudo (PERONDI, 2013). Para o aprofunda-
mento temático das culturas juvenis, têm-se como referência as formulações de
Feixa (2006), autor com reconhecida produção na área.
A maneira plural como os jovens vivem suas vidas depende de diversos fa-
tores, como as condições sociais, as relações que estabelecem e as oportunidades
que lhes são oferecidas. Por mais que existam diferentes juventudes, os jovens não
vivem este momento de forma isolada, mas através de aproximações com seus coe-
tâneos, que buscam respostas semelhantes às suas, ocasionando o surgimento das
culturas juvenis. Para Feixa (2006, p. 105, tradução nossa), estas culturas podem
ser compreendidas em sentido amplo e em sentido restrito:
Em um sentido amplo, as culturas juvenis referem-se à forma como as experiências sociais
dos jovens se expressam coletivamente por meio da construção de estilos de vida distintos,
localizados principalmente no tempo livre, ou em espaços intersticiais da vida institucio-
nal. Num sentido mais restrito, definem o surgimento de “micro-sociedades juvenis”, com
expressivos graus de autonomia em relação às “instituições adultas”, dotadas de espaços
e tempos específicos, e que se configuram historicamente nos países ocidentais a partir
da Segunda Guerra Mundial, coincidindo com grandes processos de mudança social nos
campos econômico, educacional, trabalhista e ideológico.
O sentido amplo, apontado pelo autor, remete às experiências sociais que os
jovens expressam coletivamente a partir da construção de estilos de vida e ma-
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neiras de conviver, que acontecem especialmente no tempo livre e nos espaços in-
tersticiais das instituições em que participam. O estrito refere-se ao surgimento
de microssociedades juvenis, que se caracterizam por certo grau de autonomia em
relação às instituições adultas. Essas microssociedades se expressam através de
diferentes agrupamentos juvenis com seus processos de identização, singulariza-
ção e relações entre seus membros. Apesar de serem constituídas por participantes
com diferentes experiências, apresentam elementos afins, que são capazes de mo-
bilizar a participação dos jovens em uma determinada microssociedade.
Segundo Feixa (2006), a noção de culturas juvenis remete ao conceito de cul-
turas subalternas, o que, na tradição gramsciana da antropologia italiana, corres-
ponde aos setores dominados, que se caracterizam por sua precária integração com
a cultura hegemônica. A falta de integração ou integração parcial nas estruturas
produtivas e reprodutivas é uma das características essenciais das juventudes.
Geralmente, os jovens, inclusive os que provêm das classes dominantes, têm pouco
controle sobre a maior parte dos principais aspectos de sua vida e estão submetidos
à tutela de instituições adultas. Ainda, conforme o autor, o que diferencia a con-
dição juvenil de outras condições sociais subalternas, como dos camponeses, das
mulheres e das minorias étnicas, é que se trata de uma condição transitória, visto
que, posteriormente, os jovens passam a ser adultos. Esse caráter transitório tem
sido utilizado em muitas ocasiões para menosprezar ou desqualificar os discursos
culturais dos jovens. Apesar disso, e com condições desiguais de poder e recursos,
determinados grupos juvenis têm sido capazes de manter níveis de autoafirmação
consideráveis (LUTTE, 1984; JULIANO, 1985 apud FEIXA, 2006).
Na perspectiva proposta por Feixa (2006, p. 106 et seq.), a articulação social
das culturas juvenis pode ser abordada a partir de três cenários:
a) Culturas hegemônicas: representam a distribuição do poder cultural no
âmbito da sociedade mais ampla. A relação dos jovens com a cultura domi-
nante é mediada por diversas instâncias nas quais este poder se transmite
e negocia, tais como a escola, o mundo do trabalho, o exército e os meios
de comunicação. Constituem-se como as principais instâncias responsáveis
pela socialização e educação das novas gerações. Diante dessas culturas, os
jovens estabelecem relações contraditórias de integração e conflito, que se
modificam com o passar do tempo.
b) Culturas parentais: podem ser consideradas como as grandes redes cultu-
rais, definidas fundamentalmente por identidades étnicas e de classe, a partir
das quais se desenvolvem as culturas juvenis, constituindo subconjuntos. Re-
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ferem-se às normas de conduta e aos valores vigentes no meio social de origem
dos jovens. Não se limitam a uma relação direta entre pais e filhos, mas a
um conjunto mais amplo de interações cotidianas entre membros de gerações
diferentes, dentro da própria família, dos vizinhos, da escola local, das redes
de amizade, das associações, etc. Diante desta socialização primária, os jovens
interiorizam elementos culturais básicos (uso da língua, papéis sexuais, for-
mas de sociabilidade, comportamento não verbal, critérios estéticos, etc.) que,
posteriormente, utilizam na elaboração de estilos de vida próprios.
c) Culturas geracionais: referem-se à experiência específica que os jovens
adquirem nos interstícios dos espaços institucionais (amigos da escola, da
igreja, do trabalho), dos espaços parentais (relações familiares ampliadas,
vizinhança) e, sobretudo, dos espaços de ócio (a rua, as festas, as redes so-
ciais, os locais de diversão). Nesses espaços, eles se encontram com outros
jovens e começam a se identificar com determinados comportamentos e va-
lores, diferentes daqueles vigentes no mundo adulto. De modo especial, nes-
sas culturas os processos de socialização se ampliam, pois as relações são
estabelecidas prioritariamente com outros jovens que têm a mesma idade e
não com os adultos que estão nestes espaços.
Além dos três cenários descritos, o autor destaca outros fatores na estrutu-
ração das culturas juvenis, tais como a geração, o gênero, a classe, a etnicidade, o
território e o estilo (bricolagem, homologia, linguagem, música, estética, produções
culturais, atividades focais). Feixa (2006) traduz a sua perspectiva conceitual a
partir de uma imagem gráfica que utiliza como uma metáfora, em que as culturas
juvenis podem ser representadas. Trata-se do relógio de areia (ampulheta) que
mede o tempo (Figura 1).
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Figura 1 – Metáfora do Relógio de Areia
Fonte: adaptado por Adriene Maciel Cabral, a partir de Feixa (2006, p. 126).
Segundo o autor, no plano superior estão situadas as culturas hegemônicas e
as culturas parentais, com seus respectivos espaços de expressão (escola, trabalho,
meios de comunicação, família, vizinhança). No plano inferior, encontram-se as
culturas e microculturas juvenis, com seus espaços próprios (tempo livre, grupos
de amigos). Os materiais da base (a areia inicial) constituem as condições sociais
de geração, gênero, classe, etnia e território. Na parte central, o estilo filtra estes
materiais mediante técnicas de homologia e bricolagem. As imagens culturais re-
sultantes (a areia filtrada) se traduzem em linguagem, estética, música, produções
culturais e atividades focais. Essa metáfora ilustra tanto o caráter histórico das
culturas juvenis como a sua dimensão biográfica. Por outro lado, também evidencia
que as relações não são unidirecionais, pois, quando a areia acaba de descer, pode-
-se virar a ampulheta, de modo que as culturas e microculturas juvenis mostram
também sua influência na cultura hegemônica e nas culturas parentais.
A influência das culturas juvenis nos contextos das culturas hegemônicas e pa-
rentais pode ser percebida claramente nos coletivos examinados neste artigo. Mesmo
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que sejam grupos não exclusivamente juvenis, os sujeitos jovens participantes da pes-
quisa manifestam que, há nesses coletivos, espaços de autoria e de desenvolvimen-
to de liderança, pois chegam a ocupar determinadas posições de direção. Ao mesmo
tempo que enfatizam uma diferenciação diante de participantes de outras gerações ou
mesmo diante da própria instituição, também destacam um profundo sentido de per-
tencimento e identificação com o grupo e com suas causas, enfatizando a importância
das relações intergeracionais estabelecidas em seu âmbito.
Pensando nos processos de socialização, pode-se conceber que os jovens, através das
culturas juvenis, contribuem uns com os outros em suas dinâmicas pessoais de cresci-
mento e de constituição de si. Tal fenômeno amplia a visão clássica de que a socialização
só acontece mediante a ação das instituições ou das gerações adultas, visto que, nesse
caso, os próprios jovens são sujeitos desse processo. Isso não significa que as instituições
e o mundo adulto não têm mais um papel importante, mas que suas constituições foram
reconfiguradas e, em muitos casos, não detêm mais a hegemonia socializadora.
Metodologia da pesquisa
A pesquisa que originou este trabalho é oriunda de um curso de Doutorado em
Educação (PERONDI, 2013) e contou com a participação de jovens integrantes de
coletivos sociais, da região metropolitana de Porto Alegre. Trata-se de um estudo
qualitativo, que desenvolveu análise compreensiva na busca da percepção sobre o
que os jovens narram a partir de suas experiências de participação social.
Para o desenvolvimento da investigação, tomou-se como referência a afirma-
ção de Novaes e Vital (2005), de que, neste início de século XXI, existem quatro
áreas – chamadas pelas autoras de consignas – que motivam expressivamente a
participação de jovens: a ecológica, a educacional, a dos grupos com vulnerabilida-
des específicas e a da paz e direitos humanos. Para cada uma das áreas, escolheu-
-se um coletivo que contasse com a participação de jovens em sua organicidade.
Os quatro coletivos escolhidos foram:
a) Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (Ingá). Organização não go-
vernamental começada em 1999 por iniciativa de um grupo de pesquisa-
dores e ambientalistas, em sua maioria biólogos. Desenvolve atividades de
formação ambiental, participa de conselhos representativos das questões
ambientais, participa de feiras ecológicas e de atividades de biodiversidade.
Os jovens participantes são estudantes, filhos de agricultores do interior do
estado, militantes da causa ecológica, entre outros.
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b) Cursinho Pré-Vestibular Zumbi dos Palmares. Teve início em 1995
junto a uma associação comunitária da Vila Cruzeiro, de Porto Alegre. Ins-
pirou-se na iniciativa do frei David Raimundo dos Santos, que criou cur-
sinhos pré-vestibulares com perspectiva pedagógico-popular, no início da
década de 1990, na Baixada Fluminense, Rio de Janeiro. Seu objetivo é de
preparar jovens das classes populares para ingressar no ensino superior.
c) Instituto Cultural Afro Sul/Odomodê. Foi criado em 1999 partir da pro-
posição de um trabalho social que valorizasse a cultura negra, procurando
superar a vinculação estritamente ao carnaval. O nome foi escolhido pelo
seu significado na língua yorubá: Odomode = jovem, novo, garoto. Entre as
atividades realizadas, destacam-se a dança, a música, a moda e a gastro-
nomia, todas elas retratando a cultura afro-gaúcha. Os participantes são
adolescentes, jovens de rua e jovens de comunidades carentes que têm a
oportunidade de aprender e de praticar a cultura afro-brasileira com o tra-
balho social desenvolvido pelo grupo.
d) Campanha Nacional Contra a Violência e o Extermínio de Jovens.
Campanha das Pastorais da Juventude do Brasil, vinculadas à Igreja Ca-
tólica, é uma ação coordenada principalmente por jovens, articulada com
diversas organizações, para levar a toda sociedade o debate sobre as diver-
sas formas de violência contra a juventude, especialmente o extermínio de
milhares de jovens em curso no Brasil.
Adotou-se a metodologia das narrativas juvenis como proposta principal de
investigação através da qual foram produzidos relatos de jovens dos quatro coleti-
vos acerca dos sentidos de sua participação e como eles repercutem em suas vidas.
O objetivo central da investigação foi compreender, a partir dos próprios jovens,
como eles significam suas participações nestes espaços e como repercutem em suas
vidas. As perguntas que permearam o estudo foram: Que sentidos os jovens nar-
ram a partir das diferentes experiências de participação social? O que pensam que
mudou em suas vidas ao participarem desses grupos? Suas vidas seriam diferentes
se não participassem destes coletivos?
De acordo com Melucci (2005, p. 29):
Na vida cotidiana, os indivíduos constroem ativamente o sentido da própria ação, que não é
mais somente indicado pelas estruturas sociais e submetido aos vínculos da ordem consti-
tuída. O sentido é sempre mais produzido através de relações e esta dimensão construtiva
e relacional acresce na ação o componente de significado na pesquisa.
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O autor aponta que no mundo contemporâneo os indivíduos constroem ativa-
mente os sentidos de suas ações a partir dos diversos âmbitos da vida cotidiana,
não se limitando aos indicativos das estruturas sociais e da ordem estabelecida.
Cabe, portanto, às pesquisas de cunho qualitativo investigar os sentidos que os
sujeitos constroem a partir das relações que estabelecem nos espaços que ocupam.
Essa foi a perspectiva adotada neste estudo, em que se buscou compreender, a par-
tir das próprias narrativas dos jovens, os sentidos que eles atribuem à sua partici-
pação nos grupos, independentemente dos objetivos e características particulares.
Na sequência, são apresentados alguns dos principais dados resultantes da in-
vestigação realizada com 20 jovens dos coletivos sociais, destacando-se os aspectos
que contribuem para pensar no processo de socialização dos jovens contemporâ-
neos. Os dados foram produzidos através da execução de cinco fases: a) definição de
quatro coletivos participantes; b) formação de uma equipe de jovens que contribuí-
ram para a pesquisa; c) realização de um curso com os jovens participantes, intitu-
lado “Juventude, participação social e narrativas juvenis”; d) coleta das narrativas
dos jovens sobre suas experiências de participação; e) discussão dos resultados da
pesquisa.
Dada a limitação espacial, neste artigo não é possível apresentar toda a ampli-
tude dos resultados alcançados. Em vista disso, optou-se por destacar os principais
aspectos relacionados aos processos de socialização dos jovens a partir dos grupos
em que eles participavam.
Participação coletiva e a contribuição nos processos de socialização juvenil
De acordo com a realização da análise dos dados, uma das categorias construí-
das e selecionadas foi a da sociabilidade. Por meio dela, os participantes expressa-
ram situações e significados das relações que estabelecem nos grupos. A partir da
definição dessa categoria, foram desenvolvidos os seguintes temas: a coletividade,
a convivência, a amizade e a segunda família, os quais são aprofundados na se-
quência. Segundo Urteaga (2011, p. 38, grifo da autora), a “sociabilidade funciona
como uma argamassa afetiva dos grupos, dos movimentos, dos coletivos, das identi-
dades e das culturas juvenis”. Esta argamassa possibilita a coesão do grupo e a sua
possibilidade de união em torno dos objetivos buscados pelo coletivo.
O primeiro tema analisado foi a coletividade. A partir dele, uma das jovens
participantes da pesquisa afirma:
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O sentido de estar aqui é justamente isso, é tu estar com pessoas que tu sabe que tem os
ideais semelhantes. Por exemplo, em algumas empresas que eu já trabalhei eu não encon-
tro isso. Eu não quero comparar o InGá com uma empresa, mas sim com os grupos em que
a gente participa. Mesmo no dia a dia, com os teus vizinhos ou com alguns amigos que tu
acaba fazendo, mesmo eles, às vezes não tem os mesmos objetivos que tu tem na vida, de
construir uma sociedade mais justa, com respeito ao meio ambiente e tudo isso... A gente
não encontra esses objetivos em qualquer pessoa por aí. Então essa que é a moral de eu es-
tar aqui também né, por saber que eu posso contar com estas pessoas pra, sei lá, viabilizar
este mundo melhor que a gente gostaria que existisse. (Paloma, InGá).
A sua narrativa constitui um exemplo emblemático para compreender a di-
mensão da coletividade para os jovens. A jovem destaca que teve contato com vá-
rios grupos, mas em nenhum deles conseguiu encontrar ideais semelhantes e um
espírito coletivo como no InGá. Outra expressão marcante em seu relato é a contar
com pessoas com as quais pode viabilizar um mundo melhor que gostaria que exis-
tisse. Esta situação de compartilhar objetivos comuns vem ao encontro do que Pais
(2003, p. 119) afirma: “A coesão interna dos grupos estabiliza-se a partir de traços
de identificação conjuntamente compartilhados; no entanto, esses traços funcio-
nam também como suporte de formação e reconhecimento de identidades grupais
entre si diferenciadas”.
O apontamento do autor sugere que, a partir de objetivos conjuntamente
compartilhados, os grupos tendem a estabelecer uma coesão interna, que funciona
como suporte aos sujeitos e aos próprios coletivos. Esta perspectiva parece ser a
que a jovem Paloma encontrou no InGá e não em outros espaços onde atuou ou que
conheceu, ao afirmar que não se encontra isso em qualquer grupo.
Ao falar do tema, outro jovem assim se expressou:
É muito importante o trabalho do grupo, sabe. Eu vejo que dá sentido para a minha ação.
Meu trabalho é um trabalho coletivo, ou seja, não é o meu trabalho, é o trabalho do grupo. E
o jeito que a gente tem trabalhado é cada um dar um pouquinho; então a ideia é fortalecer,
vamos somar, vamos multiplicar. (Vinícius, InGá).
Segundo Vinícius, o trabalho do grupo é de grande valia. Ele enfatiza que o seu
trabalho não é individual, mas coletivo e que, no grupo, cada um procura contribuir
com sua parte para fortalecer o conjunto. Esta é a dimensão destacada por Pais
(2003, p. 121, grifo do autor) ao escrever que:
A individualidade de cada um dos elementos é assegurada: no entanto, a participação no
grupo envolve uma negociação e aceitação tácita relativamente aos hábitos do grupo, pres-
suposto necessário à manutenção da coesão do grupo: as relações de compromisso com o
grupo tendem a subsumir divergências individuais.
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Assim, na relação grupal a identidade é preservada. Contudo, pode ocorrer
uma negociação em que o sujeito aceita as regras do grupo, tendendo a eliminar as
divergências pessoais e fortalecendo a coesão grupal. Tal dinâmica pode ilustrar o
relato do jovem Vinícius, quando afirma que “cada um dá um pouquinho”, visando
fortalecer o grupo.
O segundo tema de análise chamou-se “convivência”. Ao falar dele, um dos
jovens apontou:
Ela [Equipe de Coordenação da Campanha] é uma equipe de muito trabalho, que exige uma
dedicação semanal, não diária, mas de dedicação pra estar dando conta de e-mails, dando
conta de atualizações, estar ligando, estar conversando. Então a Equipe da Campanha pra
mim se torna pelo contato que eu tenho com algumas pessoas, ela se torna primeiro um
espaço de trabalho, mas como nós somos jovens, além de trabalhar nós também temos que
conviver e a equipe acaba se tornando um espaço de convivência. A equipe em si é uma
equipe de muito trabalho, é uma equipe que trabalha muito, que encaminha muita coisa,
que me faz trabalhar e me coloca pra trabalhar em conjunto também, aí a gente vai se
encontrando, vai fazendo a vida, não só de trabalho. (Roger, Campanha contra a Violência
e o Extermínio de Jovens).
O relato pormenorizado de Roger ressalta que, além do intenso trabalho de-
senvolvido na coordenação da citada campanha no Rio Grande do Sul, da qual
ele é integrante, que os membros da equipe são jovens e necessitam de espaço de
convivência. Estes momentos se tornam imprescindíveis para eles, pois uma das
características das culturas juvenis é que estas “se expressam coletivamente me-
diante a construção de estilos de vida distintos, localizados fundamentalmente no
tempo livre e nos espaços intersticiais da vida institucional” (FEIXA, 2006, p. 105,
tradução nossa). Deste modo, o jovem destaca que os momentos de convívio foram
demarcadores na sua experiência de participação na equipe da campanha.
Outro jovem descreve, nos seguintes termos, a sua experiência:
A partir do momento que a gente levou o InGá para dentro do Casarão do Arvoredo, para
aquela comunidade ali, isso trouxe outra identidade para o InGá, criou outros vínculos,
outras relações. O InGá passou a ter mais coerência no seu trabalho; é a leitura que eu
faço, é como eu enxergo a coisa; a gente conseguiu buscar junto mais coerência no trabalho,
ou seja, algumas pessoas do InGá, é claro que não são todas que tem um convívio direto ali
com a comunidade. Algumas pessoas do InGá passaram a ter toda uma outra descoberta
assim da alimentação diretamente relacionada à agroecologia. Tudo isso vai transformando
a pessoa, vai transformando o discurso da pessoa, formando a prática da pessoa. Então isso
aí tudo tem a ver com o meu papel dentro do InGá; o meu papel é trazer esta visão mais
cotidiana, da prática do dia-a-dia, da coerência daquilo que a gente fala com aquilo que a
gente faz. Esse aí é o desafio pra mim. (Miguel, InGá).
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Em seu relato, o jovem Miguel destaca a importância da mudança do InGá
para o Casarão do Arvoredo, sede do grupo e vários jovens também residem. Ele
acrescenta que a convivência e as práticas geradas naquele espaço constituíram
uma nova forma de relação entre os membros e para as posturas individuais dos
sujeitos, numa dialética constante entre discurso e prática. Sua narrativa pode ser
relacionada com o que Ricoeur (2007, p. 58) escreve:
Assim, as “coisas” lembradas são intrinsecamente associadas a lugares. E não é por acaso
que dizemos, sobre uma coisa que aconteceu, que ela teve lugar. É de fato nesse nível pri-
mordial que se constitui o fenômeno dos “lugares de memória”, antes que eles se tornem
uma referência para o conhecimento histórico.
O pensador francês examina os lugares de memória, pois as experiências re-
cordadas sempre são associadas a determinados lugares. Neste contexto, Miguel
lembra das situações e dos momentos de convivência no Casarão do Arvoredo como
um aspecto marcante na sua trajetória e de outros membros do seu grupo.
O terceiro tema analisado é a amizade, a qual é referida pela maioria dos par-
ticipantes da pesquisa, evidenciando a sua centralidade nas experiências grupais
juvenis. Ao falar do tema, uma das jovens afirma:
Uma experiência marcante na parte pessoal são as amizades, porque não tem o que pague,
não tem coisa melhor, tu poder confiar em alguém e ter confiança recíproca. Também tem a
parte de estar sempre recebendo informações de alguma maneira, acho que é isso que contri-
bui no meu cotidiano, a minha aprendizagem e a amizade: aprendizade [risos]. (Érica, InGá).
Ao criar o neologismo “aprendizade”, Érica aponta para a dimensão funda-
mental que a amizade representa na relação entre os jovens. De acordo com Or-
tega (2002), a amizade não significa apenas igualdade e concordância de ideias e
gostos, mas que ela representa um exercício do político por meio do qual os jovens
experimentam maneiras de sociabilidade e comunidade, ampliando as formas tra-
dicionais de relacionamento. No caso do coletivo Ingá, um indicativo é de que as
relações de amizade construídas em seu interior possibilitam o crescimento pessoal
dos seus membros através dos aprendizados desenvolvidos entre eles.
Os dois relatos a seguir também focalizam a dimensão da amizade:
O que me motiva a permanecer no grupo é que, pra mim, dançar é como uma válvula de
escape. É uma forma que eu tenho de me aliviar, aliviar minhas tensões, meu stress, de me
relacionar com pessoas que eu gosto, de estar perto das minhas amigas, que são as meninas
do grupo. (Letícia, Grupo Afro Sul/Odomodê)
O que me motiva a continuar é que aqui dentro tem muita parceria, muita amizade, então isso
não me dá motivos pra sair do grupo. (Fabrício, InGá).
254 ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Maurício Perondi
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Os jovens Letícia e Fabrício enfatizam a importância da amizade nas relações
pessoais com o grupo. Destacam que este é um aspecto agregador em sua trajetó-
ria. A amizade é uma palavra que possui uma longa história no âmbito das relações
humanas, tendo iniciado ainda com a philía dos filósofos gregos e atravessa toda a
cultura ocidental posterior1. A amizade também pode ser associada às “necessida-
des afetivas, comunicativas e de solidariedade” (MELUCCI, 2001, p. 98) sentidas
pelos sujeitos e que encontram correspondências nas relações que os jovens estabe-
lecem com seus pares, como relatam os entrevistados.
O último tema componente da discussão sobre a sociabilidade foi designado
como “segunda família”. Nele, os jovens expressam uma forte relação com seus
coletivos, chegando a chamá-los de uma nova ou segunda família. Os jovens assim
se expressam a respeito do tema:
O Zumbi é como se fosse a minha segunda casa. Acho que eu não seria, talvez, essa pessoa
que eu sou hoje, se eu não tivesse esse relacionamento com alguns, com o pessoal do Zumbi.
É superimportante estar aqui. Embora eu não participe muito diretamente, me sinto vinculado,
me sinto “da família”. (Igor, Cursinho Pré-Vestibular Zumbi dos Palmares).
O amor no grupo isso é o mais significativo. Acho que justamente o que a gente tem buscado
construir no InGá são relações humanas significativas. É mais importante que a gente esteja
bem, unido e fortalecido, não só em termos de trabalho, mas também pessoalmente né. É uma
grande família. Eu vejo assim, tranquilamente eu vejo assim. Eu quero que seja assim, mas
às vezes, já foi dito que não seria interessante e tal, mas é o caminho que as coisas seguiram.
Então eu me sinto acolhido, me sinto fortalecido, me sinto apoiado. É muito importante pra
mim. (Vinícius, InGá).
Os depoimentos destacam os fortes laços estabelecidos pelos jovens no interior
dos coletivos de que participam, chegando a considerá-los uma segunda casa ou
uma grande família. Apontam o amor, a acolhida e a vinculação com os demais
como um aspecto tão intenso que se assemelha às relações parentais. Tal proximi-
dade sugere que suas trajetórias são fortemente afetadas pelas relações estabele-
cidas no grupo.
Ao abordar as relações juvenis em grupos com os quais desenvolveu investiga-
ções, Pais (2003, p. 39) afirma:
Para os jovens, as práticas de interação e de afetividade assumem um papel muito impor-
tante na construção de seus novos “modos de estar juntos”, em suas formas de agregar-se
ou organizar-se e na constituição de suas identidades individuais e coletivas.
De acordo com o autor, os jovens constroem novos modos de estar juntos a
partir das interações e de afetividades que experimentam nos grupos. Essa ideia
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Juventudes e participação social: processos de socialização na contemporaneidade
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pode ser associada àquilo que os jovens da pesquisa referem como “segunda casa”
ou “grande família”, que se tornam elementos definidores das experiências juvenis
nos respectivos coletivos.
Considerações nais
O presente artigo aborda as experiências de participação social de integrantes
de quatro coletivos que contam com a participação de jovens. Entre outros ele-
mentos desenvolvidos, mostrou-se relevante o aspecto da sociabilidade entre os
participantes dos grupos. Ficou evidente a importância que os coletivos continuam
exercendo na constituição das identidades e nas relações que os jovens estabelecem
nesses espaços.
Diante dos questionamentos presentes na sociedade contemporânea acerca
dos desafios e das possibilidades de uma socialização não verticalizada, orientada
para valores democráticos e para uma vida em comum, os jovens afirmam que a co-
letividade continua sendo fundamental para o seu desenvolvimento. Eles desejam
e constroem relações em que as modificações acerca dos processos de socialização
passam necessariamente por uma compreensão dos jovens como sujeitos sociais.
Por meio das culturas juvenis que produzem, os jovens contemporâneos se
colocam como sujeitos ativos dos processos sociais, ou seja, além de serem influen-
ciados pelas gerações hegemônicas e parentais, criam elementos culturais e identi-
tários próprios. Essa construção passa sobretudo por dois aspectos fundamentais:
o tempo livre e a relação com outros jovens de mesma faixa etária (FEIXA, 2006).
Portanto, falas de adultos e posições institucionais de que os jovens “ficam muito
tempo sem fazer nada” ou “perdem muito tempo navegando na internet” descon-
sideram que são nos espaços intersticiais de suas agendas extremamente cheias
e organizadas que os jovens produzem suas próprias culturas e novas formas de
socialização.
As instituições sociais não deixaram de ter um papel fundamental na sociali-
zação e na formação dos jovens. No entanto, os tempos e os modos sociais de fazê-lo
se modificaram ou, em muitos casos, ainda precisarão se modificar. Talvez essa
compreensão contribua para aprofundar outras formas de socialização e reduza
conflitos intergeracionais que parecem impossíveis de serem transpostos.
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Nota
1 Para retratar as diferentes concepções de amizade, durante mais de vinte e quatro séculos, Francis-
co Ortega (2002) publicou Genealogia da amizade, último de uma série de três livros dedicados ao
tema da amizade. Os demais títulos são: Amizade e estética da existência em Foucault (1999) e Para
uma política da amizade: Arendt, Derrida e Foucault (2000).
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Juventudes e participação social: processos de socialização na contemporaneidade
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Socialização feminina, protagonismo humano e educação:
uma análise a partir de Christine de Pizan
Female socialization, human protagonism and education: an analysis from Christine de Pizan
Socialización femenina, protagonismo humano y educación: un análisis a partir de Christine de Pizan
Patrícia Ketzer*
Ana Paula Scheer**
Resumo
Christine de Pizan (1364-1430) defendeu uma educação de qualidade como ferramenta potencial para impul-
sionar o protagonismo humano, além de promover a igualdade. Armava a necessidade de se educar meninos
e meninas igualmente, no processo de socialização, de modo a possibilitar o desenvolvimento intelectual das
mulheres. Com o objetivo de investigar quais os principais pontos defendidos por Christine de Pizan em prol de
uma educação igualitária, realizou-se uma pesquisa bibliográca, buscando discorrer sobre a importância da
educação igualitária no protagonismo humano. O artigo em questão foi estruturado em duas etapas: em um
primeiro momento, discorre-se sobre quem foi Christine de Pizan e em que contexto ela estava inserida. Em um
segundo momento, objetiva-se analisar a contribuição de Pizan para a Educação, bem como compreender a vi-
são da autora acerca da temática, relacionando-a com o contexto educacional atual. Como considerações nais,
destaca-se a educação como cerne estruturante no protagonismo humano, em conjunto com o seu potencial
libertador.
Palavras-chave: Christine de Pizan; educação; socialização feminina; protagonismo; igualdade.
Abstract
Christine de Pizan (1364-1430) has advocated for education as a potential tool for the advancement of human
protagonism and equality. According to Pizan, during the socialization process, there is a necessity to equintau-
ally educate girls and boys to enhance womens intellectual capabilities. In order to investigate which are the
main points defended by Christine de Pizan in favor of an egalitarian education, a bibliographic research was
carried out, seeking to discuss the importance of egalitarian education in human protagonism. This article was
* Graduação e mestrado em Filosoa pela Universidade Federal de Santa Maria e doutorado em Filosoa pela Pon-
tifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Atualmente é professora da Universidade de Passo Fundo. Tem
experiência na área de Filosoa, com ênfase em Epistemologia, atuando principalmente nos seguintes temas: injusti-
ças epistêmicas, epistemologia feminista, questões de gênero. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9742-0076. E-mail:
patriciaketzer@gmail.com
** Graduada em Arquitetura e Urbanismo e em losoa pela Universidade de Passo Fundo; mestre em Engenharia Civil
e Ambiental pela Universidade de Passo Fundo. Tem experiência na área de Arquitetura e Urbanismo, atuando princi-
palmente nos seguintes temas: sustentabilidade, arquitetura, meio ambiente, mobilidade sustentável e infraestrutu-
ra. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-5146-7853. E-mail: 119642@upf.br
Recebido: 27/07/2020 – Aprovado: 21/05/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i1.11405
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structured in two stages: rst, Christine de Pizan was presented in its social and historical context; afterward,
Pizans contribution to education was explained, analyzed and, nally, paralleled with todays educational prac-
tice. The nal considerations highlighted is that education constitutes an indispensable foundation for human
protagonism and human autonomy.
Keywords: Christine de Pizan; education; female socialization; protagonism; equality.
Resumen
Christine de Pizan (1364-1430) defendió la educación de calidad como una herramienta potencial para impulsar
el protagonismo humano, además de promover la igualdad. Armó la necesidad de educar a los niños y niñas
por igual, en el proceso de socialización, para permitir el desarrollo intelectual de las mujeres. Con el n de in-
dagar los principales puntos defendidos por Christine de Pizan a favor de una educación igualitaria, se realizó
una investigación bibliográca, buscando discutir la importancia de la educación igualitaria en el protagonismo
humano. El artículo en cuestión se estructuró en dos etapas: al principio, se discute quién era Christine de Pizan
y en qué contexto se insertó. En un segundo paso, el objetivo es analizar la contribución de Pizan a la educación,
así como comprender la posición de la autora sobre el tema, relacionándolo con el contexto educativo actual.
Como consideraciones nales, se destaca la educación como un núcleo estructurante en el protagonismo hu-
mano, junto con su potencial liberador.
Palabras clave: Christine de Pizan; educación; socialización femenina; protagonismo; igualdad.
Introdução
Educação de qualidade é um dos 17 objetivos do desenvolvimento sustentável
promovidos pela Organização das Nações Unidas (ONU) em prol de um mundo
mais justo e fraterno. Mais especificamente, o objetivo número 4 preconiza “asse-
gurar a educação inclusiva e equitativa de qualidade, e promover oportunidades
de aprendizagem ao longo da vida para todos” (ONU, 2015, não paginado). Para
tanto, uma série de metas são estabelecidas dentre elas: eliminar as disparidades
de gênero e garantir a igualdade de acesso a todos os níveis de educação. Em pleno
século XXI, apesar dos enormes desafios para a efetivação desse objetivo, deve-se
destacar o reconhecimento e a busca por educação de qualidade em prol do prota-
gonismo humano e da igualdade, panorama que nem sempre se apresentou de tal
perspectiva.
Christine de Pizan, uma mulher escritora do período Medieval, projetou para
além de seu tempo uma visão igualitária principalmente no âmbito da questão de
gênero e da educação. Discorre a respeito de inúmeros temas que mexem com o
imaginário humano, ajustando a realidade para um cenário ideal e, a partir disso,
fazendo refletir e repensar os dogmas sociais impostos no período.
A luta iniciada por Christine de Pizan, na defesa de educação igualitária para
ambos os sexos, não finda em nossa sociedade contemporânea. Teóricas feministas
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têm reforçado a necessidade tanto de um processo de socialização quanto de uma
educação que contemple igualmente meninos e meninas, desenvolvendo as poten-
cialidades de ambos. Ao invés disso, o que se constata ainda hoje é uma educação
que reforça os ideais da sociedade heteropatriarcal capitalista de supremacia bran-
ca em que vivemos.
Deste modo, este artigo se propõe a investigar quais os principais pontos de-
fendidos por Christine de Pizan em prol de uma educação igualitária, além de
discorrer sobre a sua importância no protagonismo humano. Para cumprir tal ob-
jetivo, o artigo foi estruturado em duas etapas, a saber: em um primeiro momento,
visa-se compreender a respeito da biografia da autora e o contexto de sua existên-
cia, que possibilitou o desenvolvimento de sua obra. Em um segundo momento,
busca-se identificar sua contribuição para a educação, explicitando as dificuldades
contemporâneas de sua efetivação, que se dão em função de preconceitos e visões
distorcidas acerca do gênero. Para, por fim, oferecer uma alternativa, baseada na
noção de educação como prática da liberdade, que promove verdadeiramente o pro-
tagonismo humano.
Para além do seu tempo: Christine de Pizan
Em geral, a capacidade intelectual feminina foi menosprezada, sendo as mu-
lheres escamoteadas da História da Filosofia e, em função disso, há informações
desencontradas e confusas acerca dessa filósofa de tamanha monta do período
Medieval. Além disso, conceitos epistemológicos foram construídos a partir de es-
tereótipos de masculinidade, como o conceito de razão e de objetividade (LLOYD,
G., 1984; LLOYD, E. 1995; ROONEY, 1991), o que as excluiu da produção do saber
científico e filosófico.
Esses conceitos servem a uma dupla função: epistemológica e política (LON-
GINO, 2012, p. 511), pois influenciam diretamente todo o ideal de cientificidade,
que é pautado em cima de ambos. Conceitos centrais que pautaram as discussões
sobre o conhecimento e a ciência foram construídos com base em estereótipos de
gênero. Apesar disso, Christine de Pizan e sua obra chegaram até nós, mesmo com
as tentativas de apagamento. Por meio do presente trabalho, também se possibilita
o resgate de sua biografia, de sua história e de seu pensamento.
Escritora do período Medieval, Christine de Pizan obteve destaque pelo seu
grau de protagonismo e posicionamento crítico no que tange o campo da concepção
feminina, suas atribuições e, principalmente, ao discorrer a respeito da influência
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Socialização feminina, protagonismo humano e educação: uma análise a partir de Christine de Pizan
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que a educação possuía na condição social da mulher. Nasceu em Veneza em 1364,
filha de Thomas de Pizan; sobre sua mãe não há relatos (LEITE, 2008). Calado
(2006, p. 03) e Karawejczyk (2017, p. 190) atribuem a função do pai como astrólogo,
Leite (2008, p. 12) descreve a profissão de Thomas como Professor da Universidade
de Bolonha, ao passo que Cardoso (2017, p. 135) o caracteriza como astrólogo e
médico.
Em 1368, sua família passa a residir em Paris a convite da corte do Rei Char-
les V, que solicita os serviços de Thomas de Pizan. Tal mudança favoreceu a edu-
cação de Christine, que se situava em uma esfera promissora, possuindo também
acesso à biblioteca real. Ao completar quinze anos (1379), seu pai escolhe Etienne
Castel, futuro secretário do rei, para ser marido de Pizan (LEITE, 2018).
Segundo Leite (2008) a década de oitenta foi um período conturbando para a
França em função do falecimento do rei, ao passo que para Christine, representou
a perda de seu pai em 1386, e de seu marido três anos depois. Pizan assume a
responsabilidade sobre seus três filhos, além de auxiliar nos cuidados de sua mãe.
“Nesse momento de desespero, ela encontra refúgio nos estudos para suas aflições”
(LEITE, 2008, p. 12).
O conhecimento e as informações passaram a circular com maior frequência
no período em que Christine viveu, atribuindo às mulheres mais espaço e poder.
Ao contrário do imaginário popular, durante os primeiros séculos da Idade Média,
as mulheres gozavam de alguns direitos, garantidos pela lei e pelos costumes. Po-
diam exercer praticamente todas as profissões, tinham direito de propriedade e de
sucessão. Havia, inclusive, mulheres que atuavam politicamente, participando de
assembleias, com direito ao voto (ALVES; PITANGUY, 2017).
Devido a constantes guerras, longas viagens e recolhimento aos monastérios
por parte dos homens, as mulheres tornaram-se a maioria da população adulta,
assumindo os negócios da família. Deste modo, fazia-se necessário que entendes-
sem de contabilidade e legislação, para realizarem as transações comerciais e se
defenderem em juízo. Um olhar histórico nos possibilita a constatação de que a
participação da mulher na esfera pública esteve, frequentemente, ligada ao afasta-
mento do homem por motivo de guerras (ALVES; PITANGUY, 2017).
Nas primeiras décadas da Idade Média se têm registros de mulheres exercen-
do tarefas ditas masculinas, como a serralheria e a carpintaria, ainda que se con-
centrassem majoritariamente em profissões femininas como tecelagem, costura e
bordados. Participavam do comércio, juntamente com os seus maridos e, após a sua
morte assumiam os negócios. Entretanto, a indústria doméstica, ligada às mulhe-
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res, costumava ser a principal fonte de renda ou uma complementação necessária
para o orçamento familiar. Podendo exercer o direito de sucessão, não era incomum
uma herdeira gerir sua própria renda, mesmo casada (ALVES; PITANGUY, 2017).
A despeito desse contexto relativamente favorável, a ascensão do trabalho fe-
minino provou a oposição dos trabalhadores homens, pois a competição rebaixava o
nível salarial geral. Em função disso, surgiram restrições à participação da mulher
no mercado de trabalho, como em Londres, no ano de 1344, quando a organização
de alfaiates proibiu seus membros de empregarem mulheres que não fossem suas
esposas ou filhas (ALVES; PITANGUY, 2017).
Apesar da participação da mulher na vida social e econômica da Idade Média,
a concepção que foi disseminada era a de uma mulher frágil e apática, entretida
em seus bordados, à espera do cavalheiro. Segundo Alves e Pitanguy (2017), essa
imagem exclui a grande massa de mulheres da representação simbólica, além de
refletir uma visão distorcida do que seria seu cotidiano nesse período. Trata-se de
uma defasagem entre a posição concreta da mulher em sua vida diária e a repre-
sentação simbólica que se tinha dela.
É nesse contexto que Christine de Pizan, após perder o marido e o pai, decide
se tornar escritora. Em um primeiro momento, começa a escrever poesias parti-
cipando de concursos. A boa recepção de seus textos lhe indicara o caminho para
seguir na profissão. Segundo Leite (2018), uma boa parcela de seu público se inte-
ressava em saber a respeito do conteúdo abordado por uma mulher, ao passo que
a outra parcela lia por admiração à escritora e aos seus temas. Christine escreveu
em torno de quinze obras.
Segundo Karawejczyk (2017, p. 197), Christine inovou ao concentrar sua aten-
ção em mulheres de diversos níveis sociais “mulheres que viviam ao lado de reis,
de nobres, de mercadores, artesãos e trabalhadores, que trabalhavam dentro e fora
das paredes domésticas, podendo ser cultas ou iletradas, humildes ou poderosas,
ricas ou pobres”. Entre os inúmeros temas: mitologia, tratados de moral, educação,
política e ética, um deles se destaca até hoje por sua originalidade: a questão do fe-
minino (LEITE, 2018). Pizan defendia que a desigualdade entre homens e mulhe-
res é derivada do processo de socialização, alegando que se as mulheres tivessem
acesso à educação teriam papéis tão importantes e úteis para a sociedade quanto
os homens (LEITE, 2018).
É dentro desse cenário que Pizan apresenta percepções contrárias a visão e os
costumes recorrentes na época e faz da educação sua aliada. Torna-se a primeira
mulher a ser indicada à poeta oficial da corte. Muitas a consideram uma das pri-
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Socialização feminina, protagonismo humano e educação: uma análise a partir de Christine de Pizan
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meiras feministas, visto que possuía um discurso conscientemente articulado em
defesa dos direitos da mulher.
Entrou em polêmicas com escritores de renome da época, defendendo a igual-
dade entre os sexos. Um deles foi Jean de Meung, que escreveu a segunda parte de
o Romance da Rosa. Pizan o critica por seu tom misógino, dando origem a primeira
disputa escrita da literatura francesa.
A autora afirmou a urgência em fornecer às meninas uma educação idêntica
à dos meninos, defendendo que se fosse costume as mandar à escola e as ensinar
ciências, elas aprenderiam da mesma forma que os meninos e compreenderiam as
sutilezas das artes e ciências (ALVES; PITANGUY, 2017). Em 1422, Pizan vive os
últimos momentos de sua vida no mosteiro de Poissy, onde vem a falecer em 1430
com 66 anos (CARDOSO, 2017).
O processo de socialização feminino e o protagonismo humano por meio da
educação
No século XII, os teóricos começam a olhar para a educação analisando o com-
portamento das crianças e das mulheres que passam a ser analisadas como incons-
tantes, o que faz com que seu comportamento necessite ser regulado. É a partir do
Concílio de Latrão, de 1179, que todas as igrejas passam a ser obrigadas a manter
uma escola, que ensine aritmética, geometria, gramática, música e teologia. Tam-
bém se podia contar com a boa vontade dos Senhores Feudais, caso tivessem o
interesse de fundar uma escola, ou com a união de um grupo de habitantes que
resolvesse se associar e pagar um professor para ensinar aos seus filhos.
Era por volta dos sete ou oito anos que as crianças começavam a frequentar a
escola, os estudos seguiam-se por dez anos, até adentrarem a universidade. O aces-
so a livros era raro, o que contribuiu para que predominasse a cultura da oralidade.
O professor lia e comentava os autores clássicos para os alunos, os quais debatiam
com o mestre. Esse método estimulou a memorização e o debate em todos os níveis
de ensino (LEITE, 2008).
Entre sete e oito anos as crianças ainda podiam brincar juntas, ainda que
sempre sob vigilância. Posteriormente, a educação de meninos e meninas passava
a diferir, destacando-se as diferenças nos processos de socialização entre os gêne-
ros. Havia também, certamente, uma diferença significativa entre a educação dos
nobres e camponeses. Aos cinco anos, os nobres já sabiam montar, praticavam jogos
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voltados para formação do cavaleiro, e tinham aprendizados específicos, na escola
ou em casa com um preceptor. A esse preceptor era destinada a tarefa de socializar
o jovem, ensinando-o a falar adequadamente, a ter boas maneiras, ser um bom an-
fitrião, e conhecer diferentes livros. Leite (2008) destaca o fato de se tratar de uma
educação utilitária, pois tinha uso específico na vida do pequeno nobre.
Enquanto isso, os filhos de camponeses não frequentavam a escola, cabendo
aos pais os ensinar sua profissão, enquanto a mãe lhes ensinava os elementos da
fé cristã. “A mãe era responsável pela formação moral e social. Os contos épicos e
histórias diversas conduziam o jovem à resignação, à honra e à coragem” (LEITE,
2008, p. 174). Outro espaço de aprendizagem possível eram os conventos. Havia
conventos para meninos e outros para meninas, mas também haviam espaços mis-
tos nos primeiros anos de ensino.
Em relação à educação das meninas, a maioria dos teóricos defendia que de-
veria voltar-se para o conhecimento prático. A camponesa deveria desenvolver a
capacidade de cuidar do lar, enquanto a burguesa e a nobre deveriam ter uma cul-
tura um pouco mais aprimorada, que lhes possibilitasse comandar os empregados
e empregadas. Também deviam saber ler e escrever de acordo com suas responsa-
bilidades sociais. Em comum, havia a necessidade de que soubessem costurar, fiar,
tecer e bordar. A educação de toda menina deveria ser orientada, principalmente,
para o casamento, o cuidado da casa, dos maridos e dos filhos (LEITE, 2008).
Vincent de Beauvais, no século XIII, destina um capítulo de seu livro de vinte
e um capítulos às mulheres. Nesse capítulo, destaca sua preocupação com a casti-
dade feminina, e defende que as mulheres deviam aprender a ler para acessar os
preceitos morais e assim evitar maus pensamentos. Note-se que a educação femi-
nina era voltada para a formação de um caráter dócil, que servia para controlar
seu maior bem: a virgindade. Caberia aos pais dar os ensinamentos necessários
para que a mulher “cumprisse” com os deveres sexuais adequadamente depois do
casamento. Leite (2008, p. 177) destaca ainda que:
Quanto à vida de casada, indica que a mulher devia suportar os defeitos do marido, evitar
o ciúme, não usar ornamentos, pintura etc. Pode-se perceber que a formação feminina não
objetivava a exaltação do espírito intelectual da mulher, e sim sua adequação aos moldes
estipulados pelos homens.
É nesse contexto que Christine de Pizan se torna uma escritora que questiona
o lugar social atribuído à mulher. Uma das obras de relevância de Pizan é La cité
de dames, escrita em 1405, e traduzida no Brasil por Luciana Eleonora de Freitas
Calado, em 2006, como A Cidade das Damas. Nessa obra, a autora idealiza uma
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cidade de mulheres, na qual desenvolve histórias da vida feminina que, por meio
de seu progresso intelectual, conseguiram ocupar espaços na esfera pública. Pizan
buscou explicitar as capacidades intelectuais das mulheres, sem deixar de consi-
derar que a condição à qual estavam submetidas as afastava do conhecimento.
Defendeu abertamente que os assuntos que dizem respeito à vida social também
deveriam ser debatidos pelas mulheres.
Em A Cidade das Damas, Pizan faz uso de alegorias para revelar a
estratégia narrativa de luta das mulheres medievais contra os ataques
misóginos que sofriam. As Damas alegóricas Razão, Retidão e Justiça são
apresentadas de modo a desarticular o discurso misógino. As Damas assu-
mem o posicionamento em prol da condição feminina dando voz às mulheres
e valorizando o feminino. Assim, possibilitando a conscientização das mu-
lheres enquanto agentes de seu próprio destino. A verdade era uma pers-
pectiva masculina, possível somente aos homens, visto que acessada pelo
poder da escrita, desse modo reforçava a misoginia e impunha às mulheres
os ditames sociais da fragilidade de sua condição (SILVA, 2016).
O diálogo narrado entre as três Damas e a narradora-personagem ocorre con-
juntamente com a construção da Cidade, que simboliza um espaço de proteção
a elas. A defesa do feminino, em Pizan, reivindica a igualdade entre os sexos na
busca de direitos e oportunidades iguais para todos. Pizan defende o direito à edu-
cação, ao conhecimento, à vida pública. “Em suma, o direito de ser mulher; favo-
recendo-as no que diz respeito à formação humanística e à participação ativa na
sociedade” (SILVA, 2016, p. 36).
Segundo Leite (2018), pode-se destacar como ideias principais do livro III da
Cidade das Damas, que: 1) a diferença entre homens e mulheres é de origem social
porque as mulheres não têm acesso à educação; 2) deve-se mudar a ideia de que só
o homem é o detentor da palavra; 3) provam-se a dignidade e a utilidade da mulher
para a sociedade.
Já Calado (2006) considera que, para Pizan, a educação vai além do saber
adquirido designado à própria formação e ao aprimoramento e se integra ao social,
tendo um papel de condutora e intermediária do saber. Em sua obra Cidade das
Damas, o enfoque central se constitui na “busca das relações de gênero ao longo
dos tempos, por meio do resgate da memória feminina, esquecida pela história”
(CALADO, 2006, p. 83), redefinindo alguns mitos constituintes de uma imagem
deformadora do feminino, como por exemplo, o mito da origem, do pecado original
(CALADO, 2006).
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Ainda, em Cidade das Damas, Pizan incita seus leitores e leitoras a “resolver
suas questões, baseando, não apenas pelas leituras dos livros, mas também pela
leitura de mundo, ou seja, por sua própria experiência, seu saber empírico, obtendo
seus próprios julgamentos” (CALADO, 2006, p. 92). Além disso, a autora enfatiza
que Pizan, por meio da alegoria criada na Cidade das Damas, ensina a não acredi-
tar em um saber absoluto de parte das grandes autoridades, uma vez que a falha e
o erro fazem parte do humano.
Percebes que mesmo os maiores filósofos, aqueles que tu invocas contra teu próprio sexo,
não conseguiram distinguir o certo do errado, e se contradizem e se criticam uns aos outros
sem cessar, como tu mesma viste em Metafísica de Aristóteles, no qual ele critica e refuta
igualmente as opiniões de Platão e de outros filósofos citando-os. E presta atenção ainda
que Santo Agostinho e outros doutores da Igreja fizeram o mesmo em certas passagens de
Aristóteles, considerando o Príncipe dos filósofos, e a quem devemo-lo as mais altas doutri-
nas da filosofia natural e moral (PIZAN apud CALADO, 2006, p. 92).
O protagonismo da educação é enfatizado em conjunto com diferentes olhares
diante do papel feminino: “se fosse costume enviar as mocinhas à escola e ensiná-
-las metodicamente as ciências, como é feito para os rapazes, elas aprenderiam e
compreenderiam as dificuldades de todas as artes e de todas as ciências tão bem
quanto eles” (PIZAN apud KARAWEJCZYK, 2017, p. 195). Cristine de Pizan tam-
bém evidencia uma nova visão do feminino, reivindicando uma mudança de olhar
sobre a mulher para além da posição de sedutora. Segundo Leite (2018, p. 118),
[...] essa divisão singular proposta por Christine propõe uma nova forma de ver a
mulher não mais sob o critério religioso da castidade, mas como um ser humano
com um papel a ser cumprido e respeitado na sociedade tanto na esfera privada
como na pública. A mulher deixa de ser vista somente a partir de sua função bio-
lógica para assumir uma atividade social.
A defesa dessa concepção igualitária perpassa séculos de lutas e ainda perma-
nece, em pleno século XXI, no qual o preconceito e a desigualdade ainda são temas
recorrentes que necessitam da educação como antídoto. Tal é a necessidade de al-
cançarmos igualdade de gênero que a ONU estipulou como o objetivo cinco, dos de-
zessete objetivos do desenvolvimento sustentável. Segundo a ONU (2015), é preciso:
5. Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas. 5.1 Acabar
com todas as formas de discriminação contra todas as mulheres e meninas em toda parte;
5.2 Eliminar todas as formas de violência contra todas as mulheres e meninas nas esferas
públicas e privadas, incluindo o tráfico e exploração sexual e de outros tipos; 5.3 Elimi-
nar todas as práticas nocivas, como os casamentos prematuros, forçados e de crianças e
mutilações genitais femininas; 5.4 Reconhecer e valorizar o trabalho de assistência e do-
méstico não remunerado, por meio da disponibilização de serviços públicos, infraestrutura
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e políticas de proteção social, bem como a promoção da responsabilidade compartilhada
dentro do lar e da família, conforme os contextos nacionais; 5.5 Garantir a participação
plena e efetiva das mulheres e a igualdade de oportunidades para a liderança em todos os
níveis de tomada de decisão na vida política, econômica e pública; 5.6 Assegurar o aces-
so universal à saúde sexual e reprodutiva e os direitos reprodutivos, como acordado em
conformidade com o Programa de Ação da Conferência Internacional sobre População e
Desenvolvimento e com a Plataforma de Ação de Pequim e os documentos resultantes de
suas conferências de revisão; 5.a Realizar reformas para dar às mulheres direitos iguais
aos recursos econômicos, bem como o acesso a propriedade e controle sobre a terra e outras
formas de propriedade, serviços financeiros, herança e os recursos naturais, de acordo com
as leis nacionais 5.b Aumentar o uso de tecnologias de base, em particular as tecnologias
de informação e comunicação, para promover o empoderamento das mulheres; 5.c Adotar e
fortalecer políticas sólidas e legislação aplicável para a promoção da igualdade de gênero e
o empoderamento de todas as mulheres e meninas em todos os níveis.
Nota-se que a luta iniciada, talvez ainda antes de Pizan, não chegou ao fim. As
teóricas feministas do século XXI seguem afirmando a necessidade destacada por
Christine de Pizan, no século XIV e XV, de se oportunizar espaços de socialização e
educação igualitários para meninas e meninos. Em 1949, quando escreve a primei-
ra edição de seu mais famoso livro, O Segundo Sexo, Simone de Beauvoir (2009, p.
267) afirma que “ninguém nasce mulher: torna-se mulher”. Para Beauvoir, existe
um “fazer-se mulher”, a partir de normas e valores socioculturais que são ensinados
e reiterados nos gestos, comportamentos e preferências. Ela completa “nenhum des-
tino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no
seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário
entre o macho e o castrado que qualificam o feminino” (BEAUVOIR, 2009, p. 267).
O ser mulher, ou ainda, os papéis que cabem a mulher, são determinados so-
cialmente e culturalmente, não sendo algo adquirido pelo biológico, como defendem
abordagens mais tradicionais da psicologia, religião, medicina e filosofia. Existem
inúmeras dimensões que põem em xeque a visão reducionista de que ser mulher ou
homem depende estritamente do sexo biológico.
Louro (2008, p. 18) afirma que “não é o momento do nascimento e da nomeação
de um corpo como macho ou fêmea que faz deste um sujeito masculino ou feminino”,
mas a construção do gênero ocorre ao longo de toda vida. Uma argumentação desta
ordem exige se colocar contra a naturalização do feminino e do masculino, constituin-
do-se como desafio perante uma tradição cultural fortemente fixista e estereotipada.
Vianna e Finco (2009, p. 268) em sua pesquisa referente às relações de gênero
e poder presentes nos processos de socialização de crianças pequenas, na educação
infantil, questionam:
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Refletir sobre os fundamentos dessas afirmações no âmbito da educação e, mais especifi-
camente, da educação infantil exige o questionamento de suas origens e do peso do caráter
biológico na construção das diferenças. Isso pressupõe, por exemplo, indagar a respeito da
interferência e do papel da cultura nos processos de socialização e de formação de meninas
e meninos desde suas primeiras experiências de vida na instituição escolar.
Mas, de onde vem as orientações e ensinamentos de como devem se comportar
os gêneros masculino e feminino? São os especialistas de diversas áreas que dizem
o que deve ser vestido, comido, conquistado, como se apresentar para conseguir
emprego, como ser aceito socialmente. As diferentes agências de socialização, re-
presentadas pela família, pela mídia, pela igreja, determinam nosso ser e estar
no mundo. A ciência também tem forte papel nesse processo. Contudo, apesar da
aceitação sistemática dessas normas e papéis de gênero, “é indispensável observar
que, hoje, multiplicaram-se os modos de compreender, de dar sentido e de viver os
gêneros” (LOURO, 2008, p. 18).
Não é novidade que os grupos que lutam por igualdade de gênero sofrem inú-
meras repressões, são vítimas de ataques constantes de setores conservadores e
vítimas de violência física, justamente por defenderem e buscarem espaço social e
direitos iguais para todos e todas. Os movimentos sociais organizados compreen-
deram que era necessário “ocupar os espaços culturais como a mídia, o cinema,
a televisão, os jornais, os currículos das escolas e universidades” (LOURO, 2008,
p. 20) para alterar essa situação, pois a voz predominante nesses espaços sempre
foi majoritariamente do homem branco heterossexual. E, por isso, passaram a ser
verdades incontestáveis que a mulher era hierarquicamente o segundo sexo, inca-
paz de raciocínio lógico e de objetividade.
Resta-nos questionar: como ocorre, ainda hoje, a construção e legitimação des-
se discurso que inferioriza mulheres? A atribuição de diferentes papéis e status
sociais aos gêneros, contribui para a consolidação desse discurso. Normalmente, ao
aguardar o nascimento de um bebê, prepara-se um ambiente de acordo com o sexo.
Geralmente, o azul é para os meninos e o rosa para as meninas. Os brinquedos
oferecidos também são diferentes, sendo que aos meninos se entregam carrinhos,
super-heróis, armas, jogos de montar, e às meninas, bonecas, panelinhas, fogõezi-
nhos, fantasias de princesas e maquiagens. Deseja-se que desde cedo as crianças re-
produzam os papéis sociais dos adultos. Muitos dos brinquedos dados às crianças já
induzem a uma determinada profissão, que deverá ser exercida conforme o gênero.
Outro exemplo, é com relação a determinadas atitudes e comportamentos
proibidos às meninas ou aos meninos. Com frequência se diz às meninas que certas
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atitudes que tiveram não são adequadas para uma menina: feche as pernas; sente
direito. Aos meninos, afirma-se que homens não choram, transmitindo a noção de
que devem reprimir seus sentimentos. E, se porventura, apresentarem algum com-
portamento tido como de mulher pela sociedade, são estereotipados e vítimas de
deboches e outras agressões.
Tendemos a pensar que essas são coisas naturais. Justificamos que há poucas
mulheres nas engenharias porque as mulheres são mais propensas à inteligência
linguística, e que mais mulheres ocupam cargos ligados ao cuidado, como a enfer-
magem, a pedagogia, a psicologia, etc., em função de diferenças genéticas. Mas,
como afirma Singer (2002, p. 43-45):
Os indícios de uma base biológica das diferenças de aptidão visual-espacial são um pouco
mais complicados, mas consistem, em grande parte, em estudos genéticos que sugerem
ser essa aptidão influenciada por um gene recessivo ligado ao sexo. Como resultado disso,
estima-se que aproximadamente cinquenta por cento dos homens tenham uma vantagem
genética em situações que exigem aptidão visual-espacial, mas essa mesma vantagem só é
compartilhada por vinte e cinco por cento das mulheres. Os argumentos favoráveis e con-
trários a um fator biológico subjacente a maior capacidade verbal das mulheres e ao melhor
raciocínio matemático dos homens são ainda frágeis demais para que se possa sugerir uma
conclusão que os corrobore ou invalide. [...]. As diferenças de forças e fraquezas intelectuais
dos sexos não podem explicar mais do que uma ínfima proporção da diferença de posições
que homens e mulheres ocupam na nossa sociedade. Poderia explicar, por exemplo, por
que existem mais homens que mulheres em profissões como a arquitetura e a engenharia,
profissões que podem exigir aptidão visual-espacial; mas, mesmo nestas profissões, a mag-
nitude das diferenças em termos numéricos não pode ser explicada pela teoria genética de
aptidão visual-espacial. Esta teoria sugere que metade das mulheres são tão favorecidas
geneticamente nesta área quanto os homens, o que explicaria a menor contagem média
das mulheres nos testes de aptidão visual-espacial, mas não seria capaz de explicar o fato
de que não há simplesmente duas vezes mais homens do que mulheres na arquitetura e
engenharia – na verdade, há dez vezes mais, e em muitos países, esse número é ainda
maior. Além do mais, se a aptidão visual-espacial superior explica o predomínio masculino
na arquitetura e na engenharia, por que não se verifica uma vantagem feminina correspon-
dente em profissões que exigem elevada capacidade de verbalização? [...]. Assim, mesmo se
aceitarmos as explicações biológicas para a determinação dessas aptidões, podemos argu-
mentar que as mulheres não têm as mesmas oportunidades que os homens para exercer em
mais alto grau as aptidões que possuem.
As diferenças entre homens e mulheres são melhor explicadas por diferenças
socioculturais, já que ao nascermos, imediatamente, se atribuem papéis a serem
desempenhados para cada sexo.
Nascemos com um sexo biológico, e isso sim depende da biologia, mas assim
que os pais descobrem que estão esperando um bebê, eles já começam a estabelecer
papéis para essas crianças desempenharem em sociedade. Esses papéis são aquilo
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que define uma identidade masculina e outra feminina e são socialmente construí-
dos, a isso denominamos gênero. Gênero são os comportamentos, as obrigações e o
caráter que se exige que homens e mulheres possuam (GARCIA, 2015), cada qual
com as características devidas, por terem nascido com determinado sexo. Gênero é
diferente de sexo, visto que sexo são as diferenças entre os corpos, o órgão genital,
o sistema reprodutor e os cromossomos, enquanto gênero são as normas e condu-
tas determinadas para cada sexo. O que se espera de cada gênero é algo que pode
variar dependendo da cultura, os papéis atribuídos a homens e mulheres não são
universais.
Margareth Mead (2000) demonstrou isso em seus estudos de antropologia, ao
observar a tribo Arapesh, notou que homem e mulher realizavam funções diferen-
tes, mas ambos eram dóceis, não havendo distinções em relação ao comportamento.
A maternidade não era uma obrigação feminina, mas uma relação compartilhada.
Já na tribo Mundugomor, tanto o comportamento masculino quanto o feminino
eram agressivos. Como eram as mulheres que cultivavam o fumo, em geral, elas
não queriam engravidar para não ter que dividir sua posição de poder. Por outro
lado, os homens desejavam ter filhas mulheres, porque assim teriam mais posses,
pelo cultivo do fumo e ainda poderiam trocá-las por novas esposas.
Na tribo Tchambuli, os comportamentos femininos e masculinos eram dis-
tintos. A mulher detinha o poder, escolhia seu parceiro e controlava o lucro nas
relações de comércio. Ainda que os homens fossem vistos como chefes da família,
quem impunha as regras eram as esposas. Os homens eram responsáveis pelas
atividades artísticas, atividades cerimoniais e ornamentos. Pode-se notar que o
sexo biológico não determina os papéis ocupados na sociedade, uma vez que eles
variam em diferentes culturas. O que impõe formas de comportamento é o gênero.
Considerando tais questões, relativas a distinção sexo/gênero, biológico/socio-
cultural, qual o papel dos espaços de educação formal para promoção da igualdade
de gênero? A discriminação de gênero ocorre nos mais variados espaços, desde as
construções familiares, religiosas, sociais, políticas e até mesmo em espaços esco-
lares. Cabe à escola oportunizar espaços que promovam a busca por igualdade de
gênero. Torna-se importante analisar o comportamento das professoras, professo-
res e gestores escolares e promover cursos de formação continuada que os possibili-
tem desconstruir preconceitos. Faz-se necessário realizar cursos de formação, bem
como analisar de maneira crítica as práticas pedagógicas que vêm sendo aplicadas,
e pensa-las de modo a promover a igualdade de gênero.
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Socialização feminina, protagonismo humano e educação: uma análise a partir de Christine de Pizan
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A construção desta igualdade exige que se evitem processos de discriminação
no âmbito escolar. Apesar das polêmicas relacionadas aos estudos de gênero nas
escolas, para promoção da igualdade, torna-se imprescindível que ações sejam pra-
ticadas desde os primeiros anos da vida escolar. A atuação do corpo técnico docente
é fundamental para que a escola não se torne uma reprodutora de preconceitos e
discriminações, e sim um espaço de construção de igualdades. Deste modo, vale
analisar as posturas de meninos e meninas no ambiente escolar e as ações de pro-
fessoras e professores voltadas para a discussão de gênero. O debate de gênero,
quando bem conduzido, pode auxiliar os estudantes em seu processo de construção
de identidade.
Bell Hooks (2017) sugere que a superação do sexismo1 na prática pedagógica
só é possível na medida que se adotam pedagogias anticolonialistas, críticas e fe-
ministas. É nessa interação complexa de múltiplas perspectivas que será possível
transpor fronteiras e questionar os sistemas de dominação da supremacia branca
capitalista e patriarcal em sala de aula. Defendemos que a partir de uma educação
como prática da liberdade, proposta por Bell Hooks, juntamente com as reflexões
apresentadas por Christine de Pizan, será possível superar as inequidades de gêne-
ro e promover uma educação que paute verdadeiramente o protagonismo humano.
Bell Hooks (2017) defende uma pedagogia engajada, e uma educação como
prática da liberdade, que só é possível quando as professoras veem os estudantes
como seres humanos integrais. A educação como prática da liberdade compreende
a ligação entre as ideias aprendidas em contextos de educação formal e as ideias
apreendidas pela prática da vida, e permite a partilha de conhecimentos. A educa-
ção como prática da liberdade representa a “ligação entre o que eles [os estudantes]
estão aprendendo e sua experiência global da vida” (HOOKS, 2017, p. 33). Assim
como Pizan (Cf. CALADO, 2006, p. 92), Bell Hooks considera a experiência, a leitu-
ra de mundo, como dimensão fundamental da aprendizagem.
Em uma sala de aula comprometida com a educação como prática da liberdade
será mais necessário explicar a filosofia, a estratégia e a intenção do curso do que
em uma sala da aula tradicional. Em muitos momentos, os estudantes podem se
sentir incomodados, e não entender o valor de certo ponto de vista. O retorno de
uma pedagogia engajada e de uma educação para igualdade de gênero não será
imediato. A professora precisará abrir mão da necessidade de um reconhecimento
imediato e compreender que cada estudante passa por um processo, e o reconheci-
mento de um aprendizado transformador pode vir muito tempo depois. Bell Hooks
(2017, p. 60-61) nos ensina a praticar a compaixão:
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Não esqueço o dia em que um aluno entrou na aula e me disse: ‘Nós fazemos seu curso.
Aprendemos a olhar o mundo de um ponto de vista crítico, que leva em conta a raça, o sexo
e a classe social. E não conseguimos mais curtir a vida.’ Olhando para o resto da turma,
vi alunos de todas as raças, etnias e preferências sexuais balançando a cabeça em sinal
de assentimento. E vi pela primeira vez que pode haver, e geralmente há, uma certa dor
envolvida no abandono das velhas formas de pensar e saber e no aprendizado de outras
formas. Respeito essa dor. E agora, quando ensino, trato de reconhece-la, ou seja, ensino a
mudança de paradigmas e falo sobre o desconforto que ela pode causar.
Descontruir-se, repensar-se, desestabilizar os próprios privilégios é doloroso. Re-
ver os lugares sociais impostos a si e aos outros, abandonar preconceitos, reconhecê-los
nos outros, questioná-los, são processos complexos. Os novos modos de conhecer, pro-
postos por uma educação como prática da liberdade, criam novos modos de ser, tanto
para professoras quanto para estudantes. Esses novos modos de conhecer e de ser se
voltam para a igualdade de gênero e para o protagonismo de todas/os envolvidos.
Questionarmos nossas ideias e questionarmos nossos hábitos, aliando teoria e
prática, como nos exige essa proposta não é fácil, não é simples, não é rápido, mas é
o único modo de transformar a realidade, tornando-a mais justa para todos e todas
e possibilitando uma educação para o protagonismo.
Conclusão
O trabalho em questão se propôs a investigar os principais pontos defendidos
por Christine de Pizan em prol de uma educação igualitária, além de analisar sua
importância para o protagonismo humano. Dividido em duas etapas, no primeiro
momento discorreu sobre a biografia de Pizan e o contexto em que a autora estava in-
serida. Pode-se observar que, distintamente da visão popular da Idade Média, como
a idade das trevas, o ambiente no qual Pizan se situava demonstra uma abertura
para o papel protagonista da mulher, comprovado pelas atribuições que Christine foi
adquirindo no decorrer dos fatos históricos, com destaque ao seu papel de escritora.
A importância de uma educação de qualidade, bem como o incentivo à leitura,
pode ser percebida na formação de Christine, que possuía acesso à biblioteca real,
um ambiente fértil na busca do saber. Tal questão contribuiu para um pensamento
além de seu tempo, que lhe possibilitou desenvolver uma percepção da mulher
como ser dotado dos mesmos direitos que o homem.
Em um segundo momento, o foco do trabalho voltou-se para compreensão de
como Christine dialogava com a educação. Diante do exposto, pode-se evidenciar
que os principais pontos defendidos no estudo apresentado foram a educação igua-
litária e o potencial protagonista da mulher quando detentora do conhecimento.
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Esses tópicos se fundamentaram na forma como ela utilizou a literatura, tra-
balhando com problemáticas reais e cenários ideais. Pizan via na educação a pos-
sibilidade de promover a igualdade entre os gêneros, bem como de inverter o papel
passivo da mulher, tornando-a protagonista.
Pizan demonstrou que muito além de questões biológicas, a definição da po-
sição humana inserida em uma sociedade é fundamentada pela educação. Além
disso, importantes questões em prol do desenvolvimento humano e equilíbrio no
contexto social foram apresentadas, como por exemplo, a ênfase em reconhecer
a inexistência de um saber absoluto. Tal percepção tem potencial de impulsionar
o pensamento distinto das verdades concretas impostas na época (e inclusive nos
dias atuais), além de flexibilizar os dogmas vistos como imutáveis.
No contexto atual, percebemos que a luta iniciada por Pizan, considerada por
muitas como a primeira feminista por reivindicar educação igualitária para meninos
e meninas e questionar produções literárias misóginas, mantém-se ativa. As teóri-
cas feministas, em pleno século XXI, ainda discutem os reflexos de um processo de
socialização que limita o desenvolvimento das meninas, enquanto estimula o dos me-
ninos. Por mais que tenhamos evoluído em alguns pontos, ainda há forte resistência
frente ao debate de gênero nas escolas e à defesa de uma educação igualitária.
Teóricas como Bell Hooks (2017) têm se dedicado a pensar uma prática peda-
gógica que dê conta de produzir uma educação libertadora, que possibilite o pro-
tagonismo de todas/os as/os estudantes. Essa autora considera que a leitura de
mundo e as experiências dos estudantes devem ser consideradas no processo de
aprendizagem, do mesmo modo que Pizan já defendia na Idade Média.
Diante da compreensão da importância da educação para o protagonismo hu-
mano, cujo movimento de educar com iguais condições ambos os gêneros propicia
equidade social, salienta-se a relevância de se alcançar os objetivos número 4 e 5
(ONU, 2015), que preconizam: “assegurar a educação inclusiva e equitativa de qua-
lidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos” e
“alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas”.
Notas
1 Bell Hooks, enquanto teórica negra, analisa a realidade a partir de uma estrutura interseccional,
desse modo considera que nossa sociedade é um heterocapitalismo patriarcal de supremacia branca.
As opressões que vivenciamos não devem ser consideradas separadamente, mas como intersecções.
Considera que a superação do sexismo, do racismo e dos preconceitos de classe devem ser pensados
conjuntamente.
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Patrícia Ketzer, Ana Paula Scheer
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Socialização feminina, protagonismo humano e educação: uma análise a partir de Christine de Pizan
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Nathalye Nallon Machado, Anderson Ferrari
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* Doutora em Educação pela UFJF. Mestra em Educação pela UFJF. Professora e Coordenadora da Rede Municipal de
Educação de Juiz de Fora, pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Gênero, Sexualidade, Educação e Diver-
sidade (GESED/UFJF). Orcid: https://orcid.org/0000-0003-2406-0027. E-mail: Natha_30@hotmail.com
** Professor associado da Faculdade de Educação da UFJF, professor permanente no PPGE/UFJF, coordenador do Grupo
de Estudos e Pesquisas em Gênero, Sexualidade, Educação e Diversidade (GESED/UFJF). Pós-doutorado em Educação
e Cultura Visual pela Universidade de Barcelona/Espanha. Doutor em Educação pela Unicamp. Mestre em Educação
pela UFJF. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-5681-0753. E-mail: aferrari13@globo.com
Recebido em: 31/07/2020 – Aprovado em: 21/05/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i1.11518
Dispositivo de feminilidade, juventudes e imagens de si como processos
educativos e de socialização
Femininity device, youth and images of the self as educational and socialization processes
Dispositivo de feminidad, juventud e imágenes del yo como procesos educativos y de socialización
Nathalye Nallon Machado*
Anderson Ferrari**
Resumo
O artigo é resultado de uma pesquisa na área da Educação, realizada com sete mulheres jovens, estudantes de
uma escola pública, interessada na relação entre as imagens seles – que são publicadas nas redes sociais. O
foco de análise diz dos dispositivos de feminilidade e juventude que são acionados e postos em circulação para
a construção de imagens de si como mulheres jovens. Isso aproxima o trabalho da perspectiva foucaultiana
que entende gênero como atravessado por relações de saber-poder e que diz dos processos de subjetivação
como processos educativos. A metodologia se organizou em grupos focais e nas observações nas páginas do
Facebook e do Instagram, para trazer para discussão falas e análises a partir do que foi construído por esses
procedimentos metodológicos. Como resultado principal, arma-se que os dispositivos vão atuando sobre elas,
ao mesmo tempo que apresentam linhas de visibilidade, de força e de subjetivação.
Palavras-chave: gênero; feminilidade; juventudes; imagens de si; educação.
Abstract
The article is the result of a research in the eld of Education, carried out with seven young women, students
from a public school, interested in the relationship between the seles images - which are published on social
networks. The focus of analysis is on the devices of femininity and youth that are triggered and put into circula-
tion for the construction of images of themselves as young women. This brings the work closer to the Foucaul-
dian perspective that understands gender as crossed by knowledge-power relations and that says about the
processes of subjectivation as educational processes. The Methodology was organized in focus groups and in
the observations on the Facebook and Instagram pages, to bring up discussions and speeches based on what
was built by these methodological procedures. As a main result, it is stated that the devices are acting on them,
at the same time that they present lines of visibility, strength and subjectivity.
Keywords: gender; femininity; youth; images of the self; education.
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Resumen
El artículo es el resultado de una investigación en el campo de la Educación, realizada con siete mujeres jóvenes,
estudiantes de una escuela pública, interesadas en la relación entre las imágenes de seles, que se publican en
las redes sociales. El foco del análisis está en los dispositivos de feminidad y juventud que se activan y ponen
en circulación para la construcción de imágenes de sí mismas como mujeres jóvenes. Esto acerca el trabajo a la
perspectiva foucaultiana que entiende el género como atravesado por las relaciones conocimiento-poder y que
dice de los procesos de subjetivación como procesos educativos. La Metodología se organizó en grupos focales
y en las observaciones en las páginas de Facebook e Instagram, para traer discusiones y discursos basados en lo
construido por estos procedimientos metodológicos. Como resultado principal, se arma que los dispositivos
están actuando sobre ellos, al mismo tiempo que presentan líneas de visibilidad, fuerza y subjetividad.
Palabras clave: género; feminidad; juventud; imágenes de si; educación.
Introdução
Os conceitos de “feminilidade” e “juventudes” que compõem o título deste arti-
go nos colocam diante da necessidade de esclarecer os seus entendimentos e usos.
Dois conceitos que nos remetem, imediatamente, aos atravessamentos de gênero e
faixa etária, na impossibilidade de falar do feminino como algo homogêneo, natural
ou essência. Nesse sentido, nos aproximamos da perspectiva feminista que cons-
truiu uma crítica “ramificada e sistemática”, como classifica Nancy Fraser (2019,
p. 27), ao revisar as ondas do movimento feminista para afirmar que os ideais femi-
nistas de igualdade de gênero demonstram o caráter paradoxal da luta das mulhe-
res. Por um lado, eles representam uma conquista que, hoje em dia, “são populares
e fazem parte do imaginário social” (FRASER, 2019, p. 26). Por outro lado, esses
mesmos ideais de igualdade necessitam ser colocados em prática cotidianamente.
Com isso, Fraser (2019) está afirmando o sentido de construção das relações de
gênero e a necessidade constante de luta, de maneira que estamos assumindo os
conceitos de feminilidade e juventude como resultado dessas negociações e confron-
tos permanentes entre sujeitos, saberes e discursos atravessados por relações de
poder, que se renovam constantemente. Corroborando com esses entendimentos,
Michel Foucault (1988) e Joan Scott (2019) defendem que “as palavras, assim como
as ideias e as coisas que elas significam, têm uma história” (SCOTT, 2019, p. 49),
de tal forma que tomar como foco de análise as construções do gênero feminino e
das juventudes através das imagens que as mulheres produzem de si significa co-
locar em investigação as descontinuidades históricas dessa ação de falar e produzir
imagens de si como efeito das relações de gênero e seus processos educativos.
Isso nos obriga a ficarmos atentos para as forças atuais que agem nessas cons-
truções para problematizarmos as questões da atualidade na constituição de mu-
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lheres e suas feminilidades como resultado de processos educativos de constituição
de si. Mulher e menina constituem o que vem a ser o feminino como construto
performativo (BUTLER, 2001, 2003). Trazer Judith Butler para essa discussão
é uma forma de tensionar o conceito de gênero como aquele que é produzido por
uma sequência de atos. Seguindo as provocações de Judith Butler (2001, 2003),
queremos tomar feminino para pensar o sujeito em processos constantes de produ-
ção nas relações entre os indivíduos e os saberes. A autora tensiona o feminismo,
argumentando que as teóricas feministas assumiram a existência de um sujeito
feminino – mulher – quase como uma essência. Para ela, a categoria mulher diz de
um sujeito em processo, que é resultado dos discursos e dos atos que executa.
É necessário deixar claro, neste momento, que o nosso esforço de investigação
e de análise é por essa constituição dos sujeitos nos seus processos performativos/
educativos, o que nos serve para ampliar o sentido de educação que estamos colo-
cando em circulação como aquele que não diz somente do que acontece nas escolas e
nas relações entre professora/professor e aluna/aluno, mas que envolve as relações
entre sujeitos nos mais variados espaços sociais que educam, locais em que apren-
demos e ensinamos como ser mulheres e homens jovens. Dito isso, é importante
dizer, ainda, que este artigo tem vínculos com uma pesquisa mais abrangente, na
área da Educação, especificamente no campo das relações de gênero, sexualidade e
educação, realizada entre 2016 e 2019, com um grupo de sete mulheres jovens, alu-
nas de uma mesma escola, que aceitaram o convite de contar sobre suas relações
com as imagens que constroem de si e publicam nas redes sociais. São elas: Carla,
Aurélia, Amélia, Laura, Vânia, Kátia, Diana1.
Além do gênero e da juventude, outro fator as une: são sete mulheres jovens,
alunas e ex-alunas de uma mesma escola. Portanto, a pesquisa teve como locus de
investigação as redes sociais Facebook e Instagram – espaços virtuais em que
cada uma das jovens vai se constituindo. Mas a escola também está presente. É
onde elas se encontravam cotidianamente, para conversar, combinar as postagens
das fotos que vão para as redes, assim como é o local em que comentavam, bri-
gavam, de maneira que a escola e as redes sociais se integravam na constituição
dessas mulheres jovens. A escola em que as jovens estudam localiza-se em um
bairro na periferia da cidade. Trata-se de uma pequena escola municipal, com,
aproximadamente, 270 alunas e alunos, 38 profissionais entre professoras, pro-
fessores, equipe diretiva e funcionárias (números de dezembro de 2018). Nesse
espaço, convivem desde crianças de 04 anos na Educação Infantil, até jovens entre
14 - 16 anos no último ano do ensino fundamental.
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Metodologicamente, a pesquisa foi realizada através da observação nas pági-
nas construídas e públicas das participantes, além da organização de nove encon-
tros de grupos focais (entre agosto de 2017 e outubro de 2018) em que discutimos
algumas temáticas, tais como a construção de um autorretrato, as discussões em
torno da rede de sociabilidade na definição das imagens a serem publicadas, den-
tre outras. Para além das imagens que produzem de si, também provocamos as
narrativas de si nesses grupos focais. As narrativas de si são aqui entendidas como
as maneiras pelas quais, nós, sujeitos de nossas histórias, nos utilizamos da ética
e do cuidado consigo próprios para individualizar o que vivemos. Michel Foucault
(2018, p. 141) problematiza a escrita de si como uma possibilidade de exercício
pessoal:
A escrita como exercício pessoal praticado por si e para si é uma arte da verdade contras-
tiva; ou, mais precisamente, uma maneira reflectida de combinar a autoridade tradicional
da coisa já dita com a singularidade da verdade que nela se afirma e a particularidade das
circunstâncias que determinam seu uso.
Narrar-se, ter cuidado consigo mesma/o, dominar a arte da existência pode,
em primeira mão, sugerir o afastamento dos convívios e voltar-se para si, entretan-
to, não é o que ocorre. Paradoxalmente, quanto mais trocas cada uma/um de nós é
capaz de fazer com as/os outras/os, mais exercitamos o cuidado conosco mesmas/
os. Cuidar de nós mesmas/os em um ambiente social nos leva a escolhas que sejam
mais próximas às nossas aspirações éticas, estéticas, aos nossos anseios, permi-
tindo o acolhimento e o conhecimento que temos. Assim vamos nos subjetivando,
seguindo e/ou questionando regras, construindo conhecimentos sobre si. Seguindo
essa linha de análise, as jovens eram provocadas a se pensar, a colocar sob investi-
gação seus modos de constituição.
De imediato, uma preocupação tomou forma: como chamar e nos referir às
pessoas que fazem esta pesquisa? Acreditávamos que não podíamos nos referir a
elas a partir dos nossos enquadramentos, mas que seria importante saber como
se viam, se chamavam e se enquadravam nos seus atravessamentos. Não nos
agradava denominá-las como meninas, tampouco como adolescentes, em função do
viés ideológico, carregado de sentidos médicos, psicologizantes e preconceituosos
que esses termos trazem. Colocada essa preocupação para as sete participantes da
pesquisa, Vânia elabora uma resposta que, rapidamente, foi acolhida pelas demais
e que, portanto, justifica nossa escolha pelo termo “mulher jovem” para nos referir-
mos a elas ao longo da escrita.
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Penso que sou uma mulher, acho que todas nós também somos porque a maioria aqui já
namora e toma as suas próprias decisões. Assim, quero dizer que sou mulher, mas sou jovem
também (Vânia).
O critério de Vânia para sua definição enquanto mulher liga-se ao fato de já
ter uma vida afetiva concretizada por um relacionamento e por tomar “suas pró-
prias decisões”. Mas ela só se define como “mulher” no coletivo, na medida em que
identifica que as outras também vivem algo semelhante, o que permite que fale
por todas: “acho que todas nós também somos”, de forma que a categoria “mulher”
parece ser algo que se constrói na relação entre os gêneros, mas também no interior
do gênero feminino. No entanto, se filiar a um gênero não basta, há necessidade de
um atravessamento etário, visto que dizer que “é mulher” está associado à ideia de
fase da vida, rompendo com períodos anteriores como criança e menina (ligados à
infância e à adolescência, respectivamente) e anunciando uma etapa mais adulta.
Daí a necessidade de Vânia acionar, conjuntamente, um discurso de juventude:
“quero dizer que sou mulher, mas sou jovem também”, estabelecendo, para si e para
as outras, a categoria “mulher jovem” que, consequentemente, difere das mulheres
adultas. Esses atravessamentos são constituídos e divulgados em diferentes modos
de circulação do conhecimento, chegando até essas participantes, que tomam para
si essa necessidade de se enquadrar em um gênero e faixa etária, dois organizado-
res sociais eficientes. Diante das afirmativas e concordâncias de que se consideram
mulheres e jovens, a pesquisa que este artigo apresenta, foi feita com mulheres
jovens entre 13 e 18 anos2, que utilizam cotidianamente as redes sociais para dizer
de si e para construir imagens de si, demonstrando que esse é um espaço educativo
importante para a construção do feminino e das juventudes, nas suas continuida-
des e descontinuidades.
Queremos demonstrar que a sujeição que a imagem de si possibilita aconte-
cer ativa e é ativada por dispositivos de feminilidades que atuam nas publicações
de cada uma delas. Michel Foucault (1988), no exercício de pensar a sexualidade
como um dispositivo, nos coloca diante da “unidade do dispositivo” como uma for-
ma de controle que, historicamente, perpassou as monarquias, as formas da lei,
avançando para o poder e os “dispositivos de aliança” que, por meio de discursos
e domínios, principalmente no que se referia à sexualidade, estrategicamente, nos
conduziam a uma ou outra forma de viver. Embora o filósofo não tenha falado
especificamente dos dispositivos de feminilidades, este trabalho lança o olhar para
esses mecanismos de construção e reconstrução de si, que encontram suporte no
dito e no não-dito dos discursos, em imagens, na mídia, nos aparatos tecnológicos,
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entre outros, para discutir as maneiras pelas quais as mulheres são mais ou menos
afetadas por esses construtos sociais. Estamos considerando que os dispositivos de
feminilidades são mecanismos pedagógicos - pois ensinam e educam -, que podem
ser imagéticos, textuais, comportamentais, discursivos, entre outros que atuam na
maneira como as mulheres aprendem a ser mulheres. Em cenas sociais, na mídia,
nas roupas, maquiagem, cabelo, gestos, palavras, aceitações, recusas e pertenci-
mentos, cada uma delas vai sendo capturada por representações do feminino que
são aprendidas.
Essa forma de ver e de ser vista na internet é bastante habitual entre muitas
jovens em período de escolarização, fazendo com que as escolas estejam implicadas
na produção de imagem (FERRARI, 2013). Viemos de um passado em que nos ca-
tálogos de venda de pneus até na publicidade de divulgação de imagens turísticas
do Brasil no exterior, corpos femininos eram usados para atrair, vender, agradar,
o que nos permite pensar que há uma historicidade nesses processos de ver, de
ser vista e de produzir imagens de si. Essas imagens que existiam muito antes da
internet já divulgavam mulheres em poses muito próximas às que encontramos
nas páginas das jovens, provocando-nos a pensar que elas vão educando o olhar e
o corpo ao longo dos tempos e ensinando a ser mulher, num investimento do que é
ser feminino. Como desconstruir essa história de governo, exploração e abuso dos
corpos femininos é uma tarefa que ainda não terminamos de fazer, podemos pensar
que essas poses estão internalizadas na memória e nas práticas que unem modos
de pensar e agir no processo de educação dos sujeitos. As imagens que compõem as
páginas dessas mulheres jovens nas redes sociais integram um conjunto de meca-
nismos de governo da conduta dos indivíduos nos nossos dias, aos moldes do que
Michel Foucault (1999) chama de governo de si e dos outros. Não é irrelevante
dizer que existe um recorte de gênero que aponta a forma de posar, de se mostrar
e de aparecer para uma foto, sendo mulher. Para Guacira Lopes Louro (2017, p.
116), as mulheres, “possivelmente mais do que homens, têm sido educadas para
viver na expectativa de serem julgadas. Parece que faz parte das pedagogias da
feminilidade o receio de não corresponder ao que, supostamente, delas é esperado”.
Essas mulheres jovens não representam a verdade do que é ser jovem hoje, o
que não significa dizer que estamos trabalhando com uma ideia de que haja uma
verdade sobre o que é ser jovem. Elas são jovens que, junto a tantas outras, dão
forma e dizem de uma realidade situada, instável e provisória. Metodologicamen-
te, temos caminhado com esse sentido, ou seja, reconhecendo a instabilidade que
existe na constituição dessas mulheres em suas performances de gênero feminino e
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dentro do corte geracional que as coloca como jovens. Assim como outras categorias
etárias, a juventude e, consequentemente, as/os jovens fazem parte dessas dispu-
tas teóricas que tendem a maneiras distintas de entender essas pessoas. Nesse
sentido, nos interessa problematizar as jovens e as juventudes como construtos
sociais produzidos e que, no decorrer da história, vão mudando, transformando-se.
Isso porque:
[...] cada sociedade estabelece, por meio de suas práticas, o que é ser jovem. Isso se dá em
um processo que é histórico e se modifica ao longo dos tempos. A categoria juventude deve
ser entendida em seu dinamismo fluidez, instabilidade e provisoriedade. Os modos de ser
jovem não são fixos, nem permanentes (SALES, 2018a, p. 85).
Nessa provisoriedade e instabilidade que as jovens encontram como condição
para viver suas vidas, a dimensão cultural é potente para a produção das suas
juventudes. Essa dimensão cultural, nos dias em que vivemos, passa, inevitavel-
mente, pelas vivências digitais, proporcionadas pela internet. Jovens que estão se
constituindo em diferentes espaços – físicos ou virtuais – e que nos provocam a pen-
sar os diferentes discursos que educam essas mulheres jovens. Estar na internet
produzindo a si mesmas através das imagens diz de um processo maior que atinge
e tem efeitos em outras mulheres jovens e não somente entre as participantes da
pesquisa.
Dispositivo de feminilidade
Os dispositivos atuam na nossa vida nos organizando e nos constituindo. Essa
é uma afirmação seguindo as trilhas das investigações foucaultianas que nos per-
mitem dizer que os dispositivos estão ligados às relações de poder, aos saberes e às
“verdades” dos sujeitos. Michel Foucault (2018) amplia o entendimento de disposi-
tivo como aquele composto por discursos, leis, construções arquitetônicas, práticas
médicas e jurídicas, postulados científicos, enfim, uma rede que se constitui entre
esses elementos. São essas redes que podemos tecer entre esses elementos que nos
interessa, quando pensamos nas feminilidades como dispositivo. Ao entendermos
isso, torna-se possível problematizar que os discursos e também outras formas não
discursivas de organização da sociedade contribuem para a construção desse meca-
nismo. Entender que as feminilidades estão em permanente construção, como es-
tamos defendendo, significa tomar essa rede como objeto de investigação nos seus
processos de constituição dessas mulheres jovens e seus desafios e potencialidades
na atualidade.
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Na atualidade de uma sociedade imagética, as imagens selfies são, ao mesmo
tempo, partes e disparadoras dos dispositivos da feminilidade, das juventudes, das
subjetividades, uma vez que colocam em funcionamento o processo de produção,
discussão, divulgação, aceitação e/ou rejeição que dele advém. As participantes da
pesquisa sentem prazer em ter um aparelho celular nas mãos e em poder produzir
imagens de si. Prazer que se traduz no poder de ter o controle sobre a produção de
si, de apagar as fotografias que julgam como inadequadas para uma construção
favorável e valorizada de si. Prazer que dialoga com poder o tempo todo, desde o
poder em disputar o melhor celular e, portanto, mais potente para a valorização das
fotografias, até o poder em conseguir realizar uma imagem que, primeiramente,
passe pela avaliação, pela aprovação das outras amigas para se concretizar em nú-
meros de curtidas e comentários nas redes sociais. Esses prazeres, os sentimentos
de valorização e de participação de um contexto juvenil em rede, assim como as
trocas e construção de laços entre mulheres vão estabelecendo e fortalecendo o dis-
positivo da feminilidade, que inclui, em sua composição, formas discursivas e não
discursivas, além de aliar instância de saber e de poder que atuam sobre as pessoas,
constituindo-as. As redes sociais são dispositivos na vida dessas mulheres jovens.
Para mim, selfie é aquela foto que você mesma tira e decide se você gosta ou não, mas a selfie
perfeita é aquela que você acha que ficou bonita e pergunta para as amigas se está boa e elas
falam que está. Para as meninas a selfie tem que estar perfeita (Amélia).
Num lugar com árvore, o brilho certo, um carão bem top! Fazer montagem, colocar emojis3.
Num lugar legal, paisagem legal, igual às fotos da Maria Venture4 (Vânia).
Selfie para mim é uma foto top, uma foto tirada por mim mesma que representa a pessoa,
mostra se ela gosta de viajar, o que gosta de comer, que tipo de lugares que ela gosta de
frequentar (Kátia).
Eu acho a selfie importante para mostrar como a pessoa parece ser, o jeito dela, o que ela
gosta de fazer, além de ser importante ficar bonita e mostrar para as pessoas (Carla).
Selfie é uma coisa que gosto muito, é como a gente guarda lembranças. Tem que ter o local
perfeito, luz ideal. Pessoas que são boas em selfies são o Victor Hugo, Maria Venture e Ana
Gabriela que são todos Youtubers (Laura).
Selfie para mim é importante e eu gosto muito de tirar. Ficar bonita, com um bom fundo para
ficar boa. Eu gosto de me inspirar na Mari Maria5 (Diana).
As selfies compõem as páginas dessas mulheres jovens. Ao pesquisarmos nas
páginas pessoais das participantes da pesquisa, constatamos que a fotografia de
apresentação, com suas poses, com os acessórios que escolheram, com as pessoas
que compõem a imagem, passam informações que querem construir de si nesse
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momento, considerando que essas fotografias podem mudar e mudam na medida
em que iniciam ou encerram determinados momentos da vida pessoal. Quando
aparecem de corpo inteiro, as roupas são justas, com decotes, saias mostrando as
pernas, num ar de sensualidade que marca o corpo feminino. Quando aparecem
em fotografias de rosto, o mesmo ar de sensualidade é marcado pelo olhar, estando
sempre muito bem maquiadas, demonstrando um investimento nas fotografias. Os
acessórios que utilizam também contribuem para a construção do feminino ou do
que convencionamos como próprio do gênero feminino. Assim, as fotografias utili-
zam espelhos, coroas e tiaras em tons de dourado, símbolos de coração, imagens em
que aparecem abraçadas com namorados, fotos tiradas por ocasião da suas festas
de 15 anos, definindo vínculos com a juventude a partir desse rito de passagem.
Essas são interpretações possíveis daquela/e que olha e que vai preenchendo o
espaço do vazio entre a foto e nossos olhares, utilizando, para esse preenchimento,
os valores, os saberes e os discursos que os corpos, os gêneros, os símbolos e as poses
vão acionando naquela/e que olha e que é chamada/o a ler as imagens através desse
diálogo entre que sentidos queriam passar e o que somos capazes de elaborar. Para
além dos grupos focais, ouvíamos, em outras ocasiões de sociabilidade e conversas
informais, essas jovens mulheres fazendo referência ao que fora postado em redes
sociais. Assim, podíamos perceber que essa circulação e construção de si nesse am-
biente eram algo do cotidiano e de importância para as relações de trocas entre elas.
Inclusive, durante a pesquisa, as jovens falaram sobre os status6 do WhatsApp como
um espaço de “mandar recado” para as “amigas e inimigas”. Mandar recado parece
ser uma forma de controlar as outras mulheres jovens e a si mesmas na constituição
desse coletivo de feminilidade no estabelecimento de regras do que é permitido e
proibido. Numa conversa sobre esse controle pelas imagens, Kátia afirma: “Agora
‘tô’ namorando e as coisas mudam um pouco. Não posto tantas fotos e nem sempre
vou ficar dançando aqui na escola”. Concordando com essa mudança de comporta-
mento na internet, Amélia, reforça: “Quando a gente namora, a gente posta muito
menos. Esse espaço captura a atenção e faz a vigilância ser uma constante entre
as jovens. Manter-se ativa nas redes sociais significa ter uma boa foto, com uma luz
adequada, saber o horário adequado para inseri-la, ter muitos contatos.
Para isso, pode-se começar a pensar o gênero baseado numa visão teórica foucaultiana,
que vê a sexualidade como uma “tecnologia sexual”; dessa forma, seria possível propor
que também o gênero, como representação e como autorrepresentação, fosse produto de
diferentes tecnologias sociais, como cinema, por exemplo, e de discursos, epistemologias e
práticas críticas institucionalizadas, bem como das práticas da vida cotidiana (LAURETIS,
2019, p. 123).
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Ampliando a citação de Teresa de Lauretis (2019), no seu diálogo com a pers-
pectiva foucaultiana, tomamos a construção do gênero, especificamente o lugar de
mulher jovem desse grupo pesquisado, como construído significativamente nas re-
des sociais. Coletivamente, através das redes sociais, do que produzem de si e que
confirmam nas publicações das demais participantes, vão construindo a si mesmas
como mulheres jovens, pertencentes ao que é a representação desse gênero e dessa
faixa etária. Carla, ao dizer que “a reação das pessoas às minhas fotos é importante
porque me sinto especial”, parece nos apontar para a relevância que a reação de
uma outra/um outro possui nessa feminilidade em construção.
Emprestar energia a uma imagem diz de um esforço que existe em se ver
representada, em uma rede de significações que criam personagens mais ou me-
nos populares nas redes sociais. Nessa busca pela popularidade e aceitação das
demais, Carla traz à tona um certo uso dos mecanismos de produção dessa popu-
laridade: “Eu até me importo com as curtidas, mas, se é pra ter curtidas, é só você
buscar um aplicativo no Google que é pra aumentar seus likes. Você coloca o tanto de
curtidas que quer e o aplicativo vai lá e coloca”. Questionada sobre as razões dessa
estratégia, ela completa: “É porque as pessoas vão ver sua rede cheia de curtidas,
vão curtir também. Aí você passa a ser alguém como muitos seguidores”. Sentir-se
especial nas redes sociais tem a ver com ser gostada/o, possuir uma imagem que
seja simpática às/aos demais, significa ser aprovada/o. E, para serem aprovadas,
no caso das jovens participantes, elas vão balizando suas condutas em uma ou
outra maneira que lhes seja satisfatória.
Temos os nossos grupos de WhatsApp que mostramos nossas roupas e maquiagens antes de
sair, ou até mesmo antes de postar a foto na internet, porque as amigas do grupo são aquelas
que são mais, que são próximas, então a gente vai lá e pergunta. Manda a foto e pergunta.
Dependendo do que ela responder aí a gente pode até trocar a roupa, mudar tudo mesmo.
(Diana).
Esperando a aprovação das outras meninas e, posteriormente, das suas se-
guidoras e seguidores, elas nos convidam a pensar que o feminino não é algo que
já está pronto, mas, ao contrário disso, é algo que diz de um investimento, que tem
uma temporalidade. Como ressalta Butler (2019), gênero não é uma propriedade
do corpo e, tampouco, algo que existe a priori nos sujeitos. A ação das mulheres
jovens com a produção e a divulgação de imagens de si nos convida a problematizar
a construção do feminino como o conjunto de efeitos produzidos nesses corpos (não
por acaso, as poses se repetem, com pouca variação entre elas), nos comportamen-
tos que valorizam e desvalorizam, que reproduzem ou negam e nas relações sociais
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que vão construindo em torno dessa amizade como desdobramento dessa complexa
tecnologia política que é o gênero. “Neste sentido, saber o significado de alguma
coisa é saber como e por que ela importa, sendo que “importar” significa ao mesmo
tempo “materializar” e “significar” (BUTLER, 2019, p. 63-64).
Nesse jogo entre o que importa e o que é valorizado, Carla nos provoca a pen-
sar sobre a imagem nas redes sociais ao ter em sua capa, no Facebook, uma foto de
seu aniversário de 15 anos. Entre tantas coisas que se pode dizer sobre ela mesma,
Carla escolheu a imagem em que está representada por elementos que a colocam
em um padrão aceitável para si e para as outras e outros, uma mulher feminina.
Entende que usar maquiagem, acessórios, trajar um vestido e salto alto a coloca em
um lugar que talvez seja o aceitável, desejável. O dispositivo de feminilidade acio-
nado, no caso de Carla, em sua festa de 15 anos, teve a ver com a padronização des-
sa feminilidade que conhecemos a partir desse rito de passagem que comumente é
associado ao feminino. Assim como Aurélia, que também pediu, como presente de
aniversário de 15 anos, um dia de princesa como o que viveu Carla. As fotos desse
“momento de princesa”, nos dois casos, foram muito divulgadas nas redes sociais
das duas jovens, conquistando muitas curtidas e comentários, o que foi motivo de
prazer e poder, criando uma rede de amizades que se ampliou nesse momento na
escola, fornecendo um outro lugar na escola e entre as jovens.
Shirley Sales (2018b, p. 117) afirma que as condutas juvenis “passam pelo
julgamento das/os outras/os internautas que avaliam constantemente a conduta
dos pares, em um ciclo permanente de práticas de governo de si e das/os outras/os”.
A internet é um território de existência e as fotos selfies possibilitam que as jovens
façam contato, interajam, se expressem e compartilhem o conhecimento acerca de
si e de como é ser mulher. Ao experimentarem o poder que a imagem representa,
estão construindo e compartilhando saberes sobre beleza, sedução, comportamen-
to, roupas, acessórios, enfim, saberes que dialogam com outros espaços de apren-
dizagem do que é ser mulher jovem, como cinema, televisão, revistas, publicidade.
Carla está atenta ao que se passa em suas redes, o que pode ser observado
por meio de memes7 que posta em sua timeline. Essa constatação de que há um
código de aceitação que também circula na internet foi percebido por Carla. Ela,
entendendo que há uma certa hegemonia nas imagens publicadas, nas mensagens
postadas, utiliza esse conhecimento como balizador de sua figura on-line. Esse
tipo de aprendizagem que as redes sociais ensinaram à Carla possibilitou que ela
se aventurasse em testar sua aceitação ou popularidade por meio de memes que
necessitam de respostas sobre ela. O código da popularidade também passa pela
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aceitação do que é postado, mesmo que não seja imagem da própria pessoa. Ser
popular também passa por postar bons memes, estar atenta às novidades musicais
e das celebridades da TV e da internet.
Eu gosto muito do BTS8 e na escola não é todo mundo que gosta. Eu sigo a página deles e
tudo que existe para saber mais sobre eles. Às vezes quem gosta das coisas que eu posto
nem é gente daqui, porque aqui na minha sala o povo gosta mais de funk (Carla).
Carla diz que o grupo musical do qual é fã não é o mesmo da maioria de suas/
seus companheiras/os da escola, entretanto, na internet, esse tipo de postagem
confere a ela popularidade e aceitação. Ser popular e aceita tem sentido de per-
tencimento e permanência na internet, nas redes sociais e isso modifica as formas
como cada uma das jovens se movimenta no espaço virtual, de maneira que elas se
tornam espelho daquilo que admiram.
Sustentar uma imagem na internet significa lidar com a vigilância, que, de
acordo com Foucault (2009), tem ligação com a vontade de saber: é uma forma de
dispositivo muito utilizada pela sociedade. A vigilância em torno da sexualidade
funciona como um dispositivo, ou seja, diz do “prazer da verdade do prazer, prazer
de sabê-la, exibi-la, descobri-la, de fascinar-se ao vê-la, secretamente, desalojá-la
por meio de astúcia; prazer específico do discurso verdadeiro sobre o prazer” (FOU-
CAULT, 2009, p. 81). O dispositivo da sexualidade auxilia no controle dos corpos e
na manutenção de uma ordem sobre o corpo, o desejo e as vontades. As falas das
participantes apontam que o desejo e a vontade de postar passam pelo julgamento
da outra em torno da “foto perfeita”. “Às vezes eu acho que a selfie ficou perfeita,
ficou bonita, aí eu vou perguntar para as minhas amigas se ‘tá boa mesmo’, se elas
falarem que está boa, eu vejo que a foto está mesmo perfeita” (Laura). Os critérios
de beleza são construídos e compartilhados nesse grupo, pela aprovação ou não das
fotos, de modo que vão ensinando umas às outras o que é ser uma mulher jovem
bonita. Sobre essa rede estabelecida entre elas, Vânia conclui: “Eu acho importante
a opinião das outras pessoas sobre as minhas fotos porque às vezes elas veem coisas
que talvez eu não veja”.
Podemos sugerir que as redes sociais são locais de visibilidade e também de dis-
curso no nosso cotidiano. Fazer-se mulher passa, de maneira mais ou menos intensa,
por se produzir como tal, espelhar-se como tal, entender-se como tal, discursivamen-
te, entendendo-se como tal. Com isso, queremos dizer que não há uma identidade ou
subjetividade fixa nessa construção de ser mulher e ser jovem. Não somente Carla,
mas também as outras mulheres incessantemente estão construindo-se e descon-
truindo-se de acordo com os discursos que lhes afetam. Um exemplo dessa afetação
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foi a transformação de Kátia ao entrar em um relacionamento sério, tomando como
verdade o discurso da fidelidade e do amor eterno, referendado também por Diana,
que, desde o início de nossa pesquisa, já possuía um anel de compromisso no dedo
anelar direito. À medida que assumiram o “relacionamento sério”, rapidamente, al-
teraram o status nas suas páginas para “namorando”, assim como modificaram seus
comportamentos diminuindo as postagens, dando preferência às imagens em que
estavam com os namorados. As subjetivações pelas quais passou Laura, ao mudar
de escola e ingressar no Ensino Médio em uma escola maior, também foram para
as suas páginas, com fotos de novas amizades e espaço de circulação. As questões
ligadas ao corpo gordo que antes não apareciam em suas falas e que muito nos cha-
mavam a atenção passaram a fazer parte de um discurso mais presente:
Laura: (...) você viu que a Kátia ‘tava falando que ‘tá gorda?
Entrevistadora: Claro que ouvi! [risos]. Pensei em mim na hora!
Laura: Já pensou se a Kátia for gorda? Se ela for gorda, nem sei o que eu sou!
Kátia: E eu engordei mesmo, gente! Desde que comecei com o Iuri, eu aumentei cinco quilos.
Em nossos encontros anteriores, Laura não sinalizava nenhum incômodo ou
fazia qualquer referência à obesidade. Nas redes socais também não se colocava
como pessoa gorda. Isso nos faz pensar que os dispositivos de feminilidade aciona-
dos por padrões podem estar capturando Laura no entendimento de que um corpo
bonito é um corpo magro. Na sua fala encontramos a sedução que um corpo magro
desperta em nossa sociedade. Ela se utiliza da comparação ao corpo magro de Ká-
tia como referência para o corpo obeso dela. Esse jogo de sedução que nos enquadra
e nos diminui, embora sejamos grandes em tamanho, também captura Kátia, que
não deseja ficar maior do que já está, mesmo sendo esse ganho de peso resultado da
calmaria de um namoro que vem acompanhado de lanches e mais comida junto ao
namorado. Subjetivamo-nos de maneira mais ou menos intensa tendo os dispositi-
vos de feminilidade como componentes nesta tarefa que é tornar-se mulher jovem.
Continuidade e descontinuidade no dispositivo da feminilidade
Continuidade e descontinuidade foram aspectos que marcaram as redes es-
tabelecidas entre as jovens participantes, demonstrando que o gênero não é uma
construção estável, “mas uma identidade tenuamente constituída no tempo - iden-
tidade instituída por meio de uma repetição estilizada de certos atos” (BUTLER,
2019, p. 213-214, grifos da autora). Ao mesmo tempo em que determinadas ações
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eram contínuas entre elas, como as poses que se repetiam nas selfies, outras mar-
cavam uma descontinuidade como, por exemplo, a relação com a sexualidade, rom-
pendo com a associação gênero/heterossexualidade. Mas trabalhar com continui-
dade e descontinuidade no dispositivo da feminilidade nos remete ao arcabouço
foucaultiano e à sua influência nos estudos de gênero e sexualidade, principal-
mente no que se referem à perspectiva histórica da construção desses conceitos e,
consequentemente, ao rompimento com a ideia de essência.
A descontinuidade aparece no trabalho de Michel Foucault (1986, 1988, 2007),
sendo considerada um dos eixos fundamentais quando se dedica à análise histórica.
Para ele, a história é descontinuidade. Nesse sentido, a descontinuidade passa a ser
a estratégia utilizada para descontruir os essencialismos com que lidamos no nosso
tempo, ao mesmo tempo que serve para ironizar a ideia de origem e, por último,
para desestabilizar os lugares de verdade e suas relações de saber-poder no discurso
do conhecimento, visto que a história é marcada pelas rupturas e descontinuidades.
Na sua análise histórica, Michel Foucault criticava a história por sua insistência
pela continuidade, pela crença em uma origem essencial que subsiste ao tempo e
que comanda os destinos dos sujeitos. Um pensamento que contribuiu para a for-
mulação das teorias de gênero, retirando-o de um modelo essencial e aproximando
suas análises à necessidade de uma postura que considere a sua historicidade como
descontinuidade, sobretudo em relação a uma certa temporalidade social.
Se os gêneros são instituídos por atos descontínuos, essa ilusão de essência não é nada
mais além de uma ilusão, uma identidade construída, uma performance em que as pessoas
comuns, incluindo os próprios atores sociais que as executam, passam a acreditar e perfor-
mar um modelo de crenças. Se a base da identidade de gênero é a contínua repetição esti-
lizada de certos atos, e não uma identidade aparentemente harmoniosa, as possibilidades
de transformação dos gêneros estão na relação arbitrária desses atos, na possibilidade de
um padrão diferente de repetição, na quebra ou subversão da repetição do estilo mobilizado
(BUTLER, 2019, p. 214).
A citação de Butler (2019) reforça a ideia de gênero como “instituído por atos
descontínuos”, ao mesmo tempo em que afirma a necessidade de uma certa conti-
nuidade para a construção da “identidade de gênero”. Podemos pensar que a des-
continuidade e a continuidade marcam a construção dos gêneros e das identidades
de gênero. As participantes performam e colocam em circulação um “modelo de
crenças” em torno do que é ser mulher jovem, sobretudo porque falam de si em meio
à metodologia do grupo focal, em que a fala de uma se encontra com as demais.
Num dos encontros que tivemos, Amélia “revela-se” grávida, esperando sua
filha, Emília, para janeiro de 2019. Falar de si agora é falar do processo de ser mãe:
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Amélia: ‘Tô ansiosa, ‘tô com medo, ‘tô com tudo. Mas também é uma sensação muito boa,
às vezes eu me estresso muuuitooo (sic), mas agora consigo me controlar mais um pouco; é
porque tem muito hormônio.
Entrevistadora: Daqui uns dias a Emília vai estar aqui com a gente [na escola] correndo com
quatro anos. Nem acredito, parece que sou avó, porque te vi aqui, Amélia, com quatro anos.
Amélia: Tem horas que nem eu acredito.
A gravidez de Amélia a desloca dentro da própria juventude e confere a ela um
lugar outro que não seja somente de jovem, estudante, compromissada, periférica,
negra. Essa descontinuidade é marcada pelo tempo, ou seja, só é descontinuidade
porque, social e discursivamente, não se espera gravidez na adolescência, construí-
da como um problema. Ao mesmo tempo que marca sua descontinuidade no grupo,
visto que se trata de um grupo de mulheres jovens, Amélia também anuncia um
futuro, reforça um desejo nas demais participantes, inclusive na entrevistadora,
que, rapidamente, estabelece uma identidade de se “sentir avó”, marcando uma
continuidade com Amélia a partir da escola, do seu vínculo com entre educação e
família. Após o nascimento da criança, ela também se transforma em mãe da Emí-
lia e isso fica muito evidente nas muitas imagens da filha que divulga nas redes
sociais. A sua nova identidade como mãe é construída, performativamente, nas
redes sociais, junto com as imagens da filha, com roupas femininas, com acessórios
femininos, enfim, como se estivesse “brincando” de boneca, possivelmente como
aprendera desde muito jovem. Amélia também vem construindo a imagem de Emí-
lia na internet: divulga fotos, faz postagens, declarações e publicações sobre a filha.
A criança e o discurso de maternidade conferem à Amélia uma nova subjetividade:
a de mãe jovem. O discurso, além de uma prática de produção de sujeitos, é tam-
bém uma prática social que controla a produção, a circulação e a apropriação dos
enunciados, como explora Foucault (1986). Nas palavras do autor, discursos são:
[...] práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam. Certamente os discur-
sos são feitos de signos; mas o que fazem é mais que utilizar esses signos para designar
coisas. É esse mais que os torna irredutíveis à língua e ao ato da fala. É esse “mais” que é
preciso fazer aparecer e que é preciso descrever (FOUCAULT, 1986, p. 56).
Discursiva e performativamente, Amélia vai tornando-se mãe. A gravidez, na
medida em que ocorre, também se transforma em investimento nas redes sociais.
Amélia passa a postar imagens de si na transformação do corpo e, assim, vai se
subjetivando como mulher jovem grávida para, depois, investir em imagens de si
como mulher, negra, jovem mãe. Para isso, é fundamental imagens da filha segui-
da de mensagens como “Amor que não se mede”, “filha”, “apaixonada”. A partir de
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Foucault, podemos pensar que Amélia não constrói sentidos de ser mãe de maneira
livre, mas ela é subjetivada como mãe a partir de sistemas de restrição e incitação
a ser mãe, como aquela que ama incondicionalmente, que está apaixonada pela
filha, atos que se repetem. O saber-poder de ser mãe em sua positividade vai pro-
duzindo verdades para Amélia mãe.
A ação de postar imagens da filha nos possibilita problematizar as redes sociais
em processos de subjetivação. Emília está crescendo e sendo educada por meio de
imagens que são divulgadas de si mesma, ainda que não tenha consciência disso.
O macacão que Amélia escolhe para vestir Emília, com a estampa do Instagram,
demonstra que a inserção nesse mundo conectado se inicia antes mesmo que a pessoa
tenha escolha para dele participar. Agora Amélia também é mãe: a única mãe do
grupo. Problematizando sobre gravidez e juventude, Helena Altmann (2007) destaca
a questão do biopoder de Michel Foucault como mecanismo de controle e dominação
dos corpos. Altmann (2007) faz uma análise em que nos coloca em contato com o senso
comum para compreender que circula na sociedade a ideia de que uma jovem grávida
encerra possibilidades na vida. Partindo dessa questão, problematiza a ideia de que
tanto a juventude quanto a gravidez são construções sociais que sofrem mudanças ao
longo da história. Não é natural e essencial que a mulher queira ser mãe. Entretanto,
o que observamos com Amélia e as demais jovens é que essa condição alterou seu
lugar no grupo. A mudança de Amélia dentro do grupo e também das outras jovens
em relação a ela, nos faz olhar para a gravidez e a maternidade não somente como
fenômenos biológicos, mas sobretudo culturais, históricas, sociais e afetivas.
Esse entendimento de que Amélia teve sua subjetividade alterada com a che-
gada de Emília, outra mulher que se apresenta nesta pesquisa, nos deixa perceber
que esse acontecimento trouxe elementos para o discurso de Amélia, até então
ausentes. Quando ela diz que “tá ansiosa, tá com medo e as outras escutam com
atenção e respeito, isso vai dando um sentido de mulher não só para Amélia, mas
para todas, inclusive para as leitoras mulheres deste artigo. Os discursos de mater-
nidade, em nossa sociedade, vão constituindo o lugar do feminino, de tal maneira
que é “esperado” que mulheres tenham filhos fazendo o discurso de maternidade
ser uma prática social que só existe como ato. Daí o sentimento de completude que
é experimentado por aquelas (não todas) que se descobrem grávidas e o sentido de
incompletude quando não se consegue engravidar. A maternidade está inscrita em
um tipo de saber-poder que produz mulheres grávidas e não grávidas, que divide,
inclui e exclui, que só pode ser entendido em meio a essas relações entre os gêneros
e no interior do gênero feminino.
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Esse discurso circulante no grupo contribui para a construção do gênero entre
mulheres que estão vivenciando a maternidade de Amélia de perto. No interior do
próprio gênero, vão se entendendo como mulheres que podemos escolher entre ma-
ternar ou não. Ainda no interior do gênero, formam uma rede que vai fornecendo
sentidos para a gravidez, a juventude e a escola, uma rede que acolhe e rechaça,
que constrói desejo de repetição e possibilidades de outros caminhos, enfim, reforça
o entendimento de gênero como resultado de atos descontínuos e das performativi-
dades que estão presentes nesses elementos.
Amélia traz muitos sentidos para o dispositivo da feminilidade que circula no
grupo e atravessa de maneira contundente a todas as jovens mulheres participan-
tes. A história de gravidez que Amélia está construindo faz todas elas se olharem
e se pensarem e, mais do que isso, a criarem expectativas em torno de projetos de
casamento e filhos, sem a garantia de cumprimento, mas Amélia parece anunciar o
“destino manifesto” das mulheres, como se fosse algo homogêneo. Esses projetos em
torno do casamento e da maternidade estão inscritos no dispositivo da feminilidade
operando em todas as participantes na forma como planejam suas histórias de vida
em relação a outras mulheres, a outras histórias que conhecem, que compartilham
e que passam a desejar. No entanto, o imponderável é parte desse processo, não ga-
rantindo que as histórias se repitam. O fato de não se repetir não significa que não
exista, mesmo que tenha sido uma verdade momentânea, existe enquanto possibi-
lidade, enquanto desejo socialmente valorizado, gerado por um discurso que parece
verossímil para um determinado momento da vida. A gravidez de Amélia aciona,
em todas as participantes do grupo, o dispositivo da feminilidade que permite a
cada uma delas se olhar através de Amélia e sua gravidez, principalmente Kátia
e Diana, que acolheram a gravidez de maneira mais próxima. Michel Foucault
(2007, p. 16-17) reflete sobre esses processos de transformação dos sujeitos:
[...] práticas reflexivas e voluntárias pelas quais os homens não somente se fixam regras
de conduta, mas procuram se transformar a si próprios, se modificar em seu ser singular
e fazer de sua vida uma obra que sustente certos valores estéticos e responda a certos
critérios de estilo.
E quais não foram os acontecimentos que vieram e mudaram os modos de pen-
sar, como as novidades, como práticas históricas, irromperam a linearidade de um
destino? Esses acontecimentos afetam as formas com as quais nos subjetivamos,
forçando-nos a não sermos mais as mesmas ou os mesmos. Essas regras de existên-
cia que damos a nós mesmas/os vão ganhando contornos morais e éticos que fazem
parte do processo de subjetivação. Foucault (1994) entende que essa ética como
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cuidado de si existe porque cada uma/um de nós reflete sobre si mesma/o de acordo
com regras que vão dando contorno às existências, na medida em que o “cuidado
de si atravessou verdadeiramente todo o pensamento moral” (FOUCAULT, 1994,
p. 262). Essa relação existente entre moral e ética, que atravessa a constituição dos
sujeitos, passa, inevitavelmente, pela presença das/os outras/os. Assim, é potente
perceber que a/o outra/o é alguém que contribui para que sejamos o que somos,
uma vez que desestabiliza nossas certezas. O sujeito ético entende que dar sentido
à própria vida significa trabalhar sobre si mesmo e interagir com os demais; cuidar
de si é uma maneira de enfrentar as opressões e de se posicionar em resistência
contra os poderes políticos que ameaçam novas formas de subjetividade.
Questionar-se eticamente frente às desigualdades e aos preconceitos do mun-
do, não aceitar a vida em sua forma limitada e estreita, não se conformar, assim
entendemos a estética da existência presente no pensamento de Michel Foucault e
que nos orienta na maneira como problematizamos os posicionamentos de Aurélia,
por exemplo. Ela se descobre com uma jovem mulher negra, que questiona a ausên-
cia de variedade em cosmética para o seu tipo de pele:
É difícil encontrar coisas para minha pele, por exemplo. Até o filtro solar é para pele de pessoas
brancas, mas eu uso mesmo assim. Algumas pessoas pensam que, por eu ser negra, não
preciso usar filtro solar, mas eu também me queimo! (Aurélia).
Cada uma dessas jovens traz as demais, as falas de cada uma delas reverbe-
ram nas outras, fazem com que se vejam e se revisitem. Elas existem como parte
desta investigação, nas relações que estabelecem entre si nas suas performativida-
des de gênero, em que características biológicas são descartadas no entendimento
de como nos tornamos mulheres, homens ou nenhum dois (BUTLER, 2018).
A feminilidade e seu dispositivo estão em atuação nessa construção e atuam
principalmente no entendimento de uma “identidade primária” ou original que
tende a ser entendida por uma grande maioria de pessoas como estável. Na relação
entre nós, que somos iguais, vamos construindo nosso gênero. O dispositivo da
feminilidade nos une e é acionado na construção do gênero e no interior do próprio
gênero, é algo que nos precede e faz parte de uma norma cultural a que estamos
expostas. Judith Butler (2018, p. 71) nos diz que:
O fato de que as normas agem sobre nós implica que somos suscetíveis à sua ação, vulne-
ráveis a uma certa nomeação desde o início. E isso se inscreve em um nível que antecede
qualquer possibilidade de volição. [...] A performatividade de gênero não caracteriza apenas
o que fazemos, mas como o discurso e o poder institucional nos afetam, nos restringindo e
nos movendo em relação ao que passamos a chamar de a nossa “própria” ação.
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Cada existência pode ser percebida como uma criação discursiva, uma inven-
ção dos sujeitos na movimentada tarefa que é constituir-se. As normas vão sendo
incorporadas pelo discurso, que existem antes mesmo de habitarmos este mundo,
ou seja, já chegamos ao mundo organizado discursivamente. Entretanto, a arte
de viver nos desafia e possibilita que alguns acontecimentos se tornem fortes o
bastante para mudar uma trajetória, um pensamento, uma forma de ver a vida.
Essas subjetivações dão suporte aos dispositivos de feminilidade que cons-
tituem o sujeito em espaços de ação. Dispositivo de feminilidade é um conceito e
investimento neste trabalho, tendo como fundamento o conceito de dispositivo de
Michel Foucault (1988), que nos indica haver uma rede que interliga vários aspec-
tos da vida social, agindo em cada um de nós, individualmente ou em conjunto, de
maneira a interferir na ação dos outros sobre mim e de mim sobre mim mesmo,
acionando os campos de saber, de poder e subjetividade. Fabiana de Amorim Mar-
cello (2004), abordando a presença do dispositivo na experiência da maternidade,
faz uma discussão a respeito do conceito que foi muito útil para a escrita deste
trabalho. Nas palavras da autora:
Já que Foucault se refere tão explicitamente a elementos tais como discursos, organizações
arquitetônicas, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, podemos entender que
as práticas discursivas e não-discursivas contribuem para a construção do dispositivo e, ten-
do estes presentes, é possível afirmar ainda que o conceito em questão reúne as instâncias
do “poder e [do] saber numa grade específica de análise” (MARCELLO, 2004, p. 200).
A emergência do dispositivo da feminilidade pôde ser vista na relação entre
as jovens mulheres e suas muitas selfies publicadas nas redes sociais. Além disso,
também se apresentava como uma produção cotidiana de imagens feitas por meio
de celulares como parte da realidade de cada uma delas e que faz parte das suas
relações interpessoais. Apropriam-se do discurso, da imagem e da representação do
poder de uma foto e assim vão construindo suas subjetividades narradas on-line.
Nas narrativas de si, em que cada história é vista como uma forma de se colocar
frente ao mundo com suas pressões, opressões e naturalizações, fomos buscando
nossas formas de entendermos, por meio de nossas palavras, fomos construindo
nossos discursos. Foucault (2007, p. 92) assim diz:
Trata-se, então, de constituir-se e reconhecer-se enquanto sujeito de suas próprias ações,
não através de um sistema de signos marcando poder sobre os outros, mas através de uma
relação tanto quanto possível independente do status e de suas forças exteriores, já que ela
se realiza na soberania que se exerce sobre si próprio.
É o que somos capazes de construir discursivamente que vai constituindo nos-
sa subjetividade. Foucault trabalha com o que vem à tona e, quando direcionamos
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Dispositivo de feminilidade, juventudes e imagens de si como processos educativos e de socialização
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nossos olhares para as mulheres jovens e as maneiras como constroem suas pági-
nas, entendemos que elas estão dando vidas às suas vivências, estão construindo-
-se discursivamente. E isso nunca é igual, assim como as juventudes também não
são. As subjetividades dessas pessoas possivelmente passam pelas imagens que
também as constituem.
Por fim, queremos afirmar que, nessa problematização em torno das imagens
selfies e as constituições de subjetividades em mulheres jovens, os dispositivos vão
atuando sobre elas, modificando e forjando outras no seu interior. Ao mesmo tempo
que os dispositivos apresentam linhas de visibilidade, de força e de subjetivação, eles
também apontam descontinuidades nas fissuras e brechas possíveis, sobretudo na
potência de encontros como realizamos nos grupos focais, investindo na problemati-
zação e apostando nas transformações advindas das falas de cada uma delas e nas
possibilidades de colocar sob suspeita suas formas de ser, pensar e estar no mundo.
Notas
1 Os nomes das participantes são fictícios. Buscamos, assim, preservar o anonimato em torno dessas mulhe-
res que, juntas, construíram esta pesquisa com suas falas, que aparecerão sempre em itálico para diferen-
ciar das demais citações.
2 Essas idades se referem ao ano de 2018.
3 Emojis são figurinhas que representam expressões.
4 Maria Venture é uma youtuber e influenciadora digital com quase um milhão de seguidores.
5 Mari Maria é também uma youtuber e influenciadora digital com mais de 1.200.000 seguidores e seguido-
ras no Instagram e 700 mil inscritos no seu canal do YouTube.
6 Status do WhatsApp é uma ferramenta do aplicativo que permite a postagem de uma foto, frase, poesia,
para ficar ativa durante 24 horas, permitindo ao usuário e a usuária saber quem visualizou a publicação.
Esse recurso, oriundo do SnapChat, também está disponível no Instagram e Facebook.
7 Memes, termo oriundo do grego que significa imitação, são piadas, ou formas divertidas de falar sobre
determinado assunto que se tornou muito popular na internet.
8 BTS ou Bangtan Boys é um grupo musical sul-coreano composto por homens jovens que se tornou um
fenômeno mundial no ano de 2013.
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Experiências narrativas de professoras iniciantes: movimentos de socialização no
cotidiano escolar1
Narrative experiences of novice teachers: socialization movements in the daily life of the school
Experiencias narrativas de maestros principiantes: movimientos de socialización en la vida
diaria de la escuela
Inês Ferreira de Souza Bragança*
Joelson de Sousa Morais**
Resumo
O presente artigo tem como objetivo compreender os processos de socialização prossional de professoras
iniciantes no cotidiano escolar, bem como reetir acerca da constituição das experiências nos primeiros anos da
docência. O estudo foi desenvolvido na abordagem da pesquisaformação narrativa (auto)biográca em educa-
ção, com os seguintes dispositivos metodológicos: imersão no cotidiano escolar, conversas, diário de pesquisa
e narrativas escritas. Participaram da pesquisa três professoras iniciantes, pedagogas atuantes no 5º ano do
ensino fundamental em duas escolas da rede pública municipal de Caxias, MA. A fundamentação teórica pauta-
-se em: Josso (2010), Huberman (2000), Dubar (2012) e outros. Na compreensão e interpretação das narrativas,
foi invocada a hermenêutica da narratividade e temporalidade em Paul Ricoeur (2010). O desenvolvimento do
trabalho indica que os processos de socialização da experiência no cotidiano escolar pelas professoras inician-
tes acontecem por meio de ocupações” exercidas em contratos precários para desenvolvimento de atividades
didáticas e pedagógicas com as turmas, no tempo do trabalho extraclasse das professoras efetivas por meio do
Terço da Jornada. Assim, as narrativas das professoras iniciantes apontam, ao mesmo tempo, para aprendiza-
gens importantes na consolidação do campo prossional e, paradoxalmente, para aspectos de desprossionali-
zação do magistério das docentes em sua inserção no cotidiano institucional das escolas.
Palavras-chave: socialização prossional; professoras iniciantes; narrativas; cotidiano escolar; pesquisaformação.
* Professora da Faculdade de Educação da Unicamp e docente colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Educa-
ção Processos Formativos e Desigualdades Sociais da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (FFP/Uerj). Realizou pós-doutorado pela PUCRS. Doutora em Ciências da Educação pela Universidade
de Évora-Portugal. Mestre em Educação pela UFF. Coordena o Grupo Interinstitucional de Pesquisaformação Polifo-
nia, vinculado ao Gepec (Unicamp) e ao Vozes da Educação (FFP/Uerj). Orcid: https://orcid.org/0000-0003-4782-1167.
E-mail: inesbraganca@uol.com.br
** Doutorando em Educação pela Unicamp. Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN/2015). Pedagogo e pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada (Gepec/Unicamp) e
do Grupo Interinstitucional de Pesquisaformação Polifonia (Unicamp/Uerj). Professor Substituto da Universidade Federal
do Maranhão (UFMA)/Campus Codó. Orcid: http://orcid.org/0000-0003-1893-1316. E-mail: joelsonmorais@hotmail.com
Recebido em: 29/07/2020 – Aprovado em: 21/05/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i1.11455
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Abstract
This article aims to understand the processes of professional socialization of beginning teachers in school daily
life, as well as reect on the constitution of experiences in the rst years of teaching. The study was developed in
the approach of research (narrative) (auto) biographical education, with the methodological devices: immersion
in the school routine, conversations, research diary and written narratives. Three beginning teachers participat-
ed in the research, pedagogues working in the 5th year of elementary school in two public schools in Caxias-MA.
The theoretical basis is based on: Josso (2010), Huberman (2000), Dubar (2012) and others. In understanding and
interpreting the narratives, the hermeneutics of narrativity and temporality was invoked in Paul Ricoeur (2010).
The development of the work indicates that the processes of socialization of experience in the school routine
by the beginning teachers happen through occupations” exercised in precarious contracts for the development
of didactic and pedagogical activities with the classes, during the time of the extra-class work of the eective
teachers through of the Terço da Jornada”. Thus, the narratives of the beginning teachers point, at the same
time, to important learning in the consolidation of the professional eld and, paradoxically, to aspects of depro-
fessionalization of the teachers teaching in their insertion in the institutional daily of the schools.
Keywords: professional socialization; beginning teachers; narratives; school life; research training.
Resumen
Este artículo tiene como objetivo comprender los procesos de socialización profesional de los docentes prin-
cipiantes en la vida diaria escolar, así como reexionar sobre la constitución de experiencias en los primeros
años de docencia. El estudio se desarrolló en el enfoque de investigación (narrativa) (auto) educación biográca,
con los dispositivos metodológicos: inmersión en la rutina escolar, conversaciones, diario de investigación y
narrativas escritas. En la investigación participaron tres maestros principiantes, pedagogos que trabajaban en
el quinto año de la escuela primaria en dos escuelas públicas de Caxias, MA. La base teórica se basa en: Josso
(2010), Huberman (2000), Dubar (2012) y otros. Para comprender e interpretar las narrativas, Paul Ricoeur (2010)
invoca la hermenéutica de la narratividad y la temporalidad. El desarrollo del trabajo indica que los procesos de
socialización de la experiencia en la rutina escolar por parte de los docentes principiantes suceden por ocupa-
ciones” ejercidas en precarios contratos para el desarrollo de actividades didácticas y pedagógicas con las clases,
durante el tiempo de la extra-clase. trabajo de los profesores ecaces a través del Terço da Jornada. Así, las nar-
rativas de los docentes principiantes apuntan, al mismo tiempo, a aprendizajes importantes en la consolidación
del campo profesional y, paradójicamente, a aspectos de desprofesionalización de la docencia de los docentes
en su inserción en el cotidiano institucional de las escuelas.
Palabras clave: socialización profesional; maestros principiantes; narrativas; vida escolar; entrenamiento de in-
vestigación.
Contextualizando a discussão
Os primeiros anos da docência são marcados por uma infinidade de expecta-
tivas, anseios e incertezas na constituição da profissão e se configuram de modo
fundamental para o desenvolvimento da carreira profissional. Alguns clássicos
estudos desenvolvidos acerca do tema da socialização profissional, no contexto
da sociologia das profissões, como é o caso dos realizados por Dubar (2012), mos-
tram que os processos de socialização acontecem articulando educação, trabalho
e carreira, possibilitando a construção das identidades dos sujeitos no contexto
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das instituições e em processos interativos coletivamente, caracterizando, assim, a
legitimidade da profissão e da profissionalização.
O presente artigo tem como objetivos compreender os processos de socializa-
ção profissional de professoras2 iniciantes no cotidiano escolar, bem como refletir
acerca da constituição das experiências nos primeiros anos da docência.
A perspectiva epistemológica e teórico-metodológica3 está pautada nos princí-
pios da pesquisaformação narrativa (auto)biográfica em educação, articulados aos
estudos da socialização profissional com os contributos de Josso (2010), Ricoeur
(2010), Huberman (2000), Dubar (2012), Goodson (2019), entre outros. A pesquisa-
formação contou com a participação de três professoras iniciantes que atuam em
duas escolas da rede pública municipal de ensino de Caxias, MA. Os dispositivos
metodológicos tomados na produção do conhecimento científico foram: imersão no
cotidiano escolar, conversas, narrativas escritas e diário de pesquisa.
A pesquisa foi desenvolvida entre os meses de fevereiro a março de 2020, antes
do período de paralisação das atividades escolares, em decorrência da pandemia do
Covid-19 do novo coronavírus, em momentos em que as docentes ainda estavam
desenvolvendo a sua prática pedagógica no cotidiano escolar. Em Caxias, MA, as
aulas foram paralisadas no dia 16 de março de 2020, por meio de decreto público
municipal em consonância com o estadual, sobretudo, para as escolas, período este
em que foram detectados os primeiros casos de Covid-19 na capital do estado do
Maranhão, São Luís, então, não fomos mais às instituições, cessando, portanto, o
contato presencial com as professoras iniciantes participantes da pesquisa, para
evitarmos riscos que pudessem ser gerados pela pandemia. Participaram da pes-
quisa 03 (três) professoras iniciantes, formadas em licenciatura em Pedagogia e
que se encontram atuando no 5º ano do Ensino Fundamental em duas escolas da
rede pública municipal de Caxias, MA.
Estamos compreendendo professoras iniciantes aquelas que se encontram no
exercício da profissão docente em um recorte cronológico entre 01 a 03 anos, con-
forme indica Huberman (2000). Segundo este autor, nessa fase de início de carrei-
ra aludida no ciclo de vida profissional de professoras, estas apresentam, muitas
vezes, duas latentes características que são evocadas narrativamente por elas nos
estudos biográficos que realizou, quais sejam: a “sobrevivência” e a “descoberta”. A
primeira oscila muito em função do que acontece em seu cotidiano, seria um modo
de ir construindo o perfil com o que lhe apresenta, (re)cria ou lhe é possível tecer,
que poderá gerar impactos, alguns desânimos diante da realidade com que se de-
frontam e dos descaminhos ao longo de seus itinerários trilhados pelo “choque de
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realidade” que enfrentam. Enquanto que a segunda característica, a “descoberta”,
é o que move a primeira, no sentido de se configurar como saberes, práticas e situa-
ções que surgem de modo até inesperados, bem como acontecimentos e surpresas
que as afetam de modo positivo, fazendo-as acreditarem na docência e a continua-
rem na profissão (HUBERMAN, 2000).
Uma das provocações reflexivas que mediatiza nossas ideias neste texto é con-
duzida pelo seguinte questionamento: como acontece a socialização de professoras
iniciantes no cotidiano escolar, no contexto de um processo de desenvolvimento
profissional?
Procedemos na compreensão e interpretação das narrativas das professoras
iniciantes por meio da “hermenêutica da narratividade e temporalidade” em Ri-
coeur (2010), como uma forma tangível de atribuição de sentidos outros tecidos nos
processos trilhados.
O artigo é composto de quatro partes, em que a primeira é esta “Contextua-
lizando a discussão” apresenta um panorama inicial do estudo; a segunda traz os
percursos metodológicos tematizados “Nas trilhas dos caminhos metodológicos: a
centralidade da pesquisaformação”; a terceira seção elucida o tema “A socialização
de professoras iniciantes nos caminhos da experiência profissional” com reflexões
que situam como se deu a experiência das professoras iniciantes participantes do
estudo em seus processos de socialização no cotidiano escolar; e a quarta e última
parte traz as “Lições deixadas ou da incompletude de uma formação” com algumas
reflexões trazidas pela pesquisa.
Nas trilhas dos caminhos metodológicos: a centralidade da pesquisaformação
A pesquisaformação é uma perspectiva da abordagem narrativa (auto)biográ-
fica em educação que consiste em um processo de reflexividade potencializada pela
formação e (auto)formação do pesquisador em diálogo com a realidade, os sujeitos
que compartilham consigo a experiência de pesquisar e se formar ao mesmo tempo
e em partilhar com os múltiplos acontecimentos que os acompanham nos itinerá-
rios percorridos.
Assim, na pesquisaformação não há uma separabilidade entre quem pesquisa
e quem se forma, mas uma articulação profícua e simultânea desencadeada nos
processos de aprendizagem, formação e constituição da experiência da pesquisa re-
ciprocamente enquanto todos os envolvidos estão se transformando e tecendo uma
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consciência reflexiva dos percursos e itinerários que tecem ao longo da caminhada
trilhada.
Segundo nos mostra Abrahão (2016, p. 31), a pesquisa-formação foi perspecti-
vada no âmbito da corrente das histórias de vida em formação com Gaston Pineau,
Marie Christine Josso e Pierre Dominicé nos inícios da década de 1980, no desen-
volvimento de investigação com adultos e respectivos projetos de aprendizagem4.
Com Pineau, na Universidade de Montreal, Canadá, e com Josso e Dominicé, na
Universidade de Genebra, Suíça. António Nóvoa, partilhou com Domincé uma ex-
periência de escrita (auto)biográfica que influenciou seus trabalhos que chegam ao
Brasil nos anos 1990, trazendo significativa contribuição para nós.
Na acepção de Josso (2010), a pesquisa-formação implica uma tomada de cons-
ciência acerca do vivido, praticado e experienciado pelo sujeito durante os cami-
nhos percorridos na construção da pesquisa e formação que se entretecem gerando
possibilidades reflexivas, transformadoras no sujeito e permitindo a construção
do conhecimento de si, dos contextos sócio-histórico-culturais, da profissionaliza-
ção e formação. Segundo a autora, a abordagem “[...] demonstra a importância da
atividade de integração de toda e qualquer aprendizagem num contexto, no caso
presente, o da ecologia do pensamento do aprendente e o da sua atividade profis-
sional” (JOSSO, 2010, p. 162).
Por isso, faz muito sentido a reflexão gerada por meio de uma elaboração nar-
rativa em que o sujeito desenvolve durante o processo de pesquisa, o que também
tem se dado em nossas práticas como pesquisadores, aos entrelaçar os múltiplos
fios em que estamos a tecer com as professoras iniciantes no cotidiano escolar,
tanto quanto isso acontece com elas, ao colocarmos em nossas conversas elementos
disparadores para que possam narrar suas experiências iniciais de aprendizagem
da docência em que estão se constituindo no campo profissional.
Temos desenvolvido a pesquisaformação em nossas produções e na pesquisa
científica por uma escolha política, epistemológica e teórico-metodológica, além do
fato de que esta perspectiva acaba tendo em vista uma potencialidade reflexiva e
transformadora com que se configura na tomada de consciência em que o sujeito
consegue se perceber, passando por transformações plausíveis, sedutoras e emanci-
patórias, que geram esse movimento de aprender, se formar e pesquisar, de forma
complexa.
Nesse sentido, comungamos com as ideias de Motta e Bragança (2019, p. 1038)
ao nos fazerem refletir que a pesquisaformação se inscreve como “[...] metodologias
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Inês Ferreira de Souza Bragança, Joelson de Sousa Morais
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dialógicas entre o pesquisador e os sujeitos envolvidos, principalmente, por com-
preender que, nesse processo, a formação acontece em partilha, para ambos”.
Desse modo, a imersão no cotidiano foi o primeiro fato que nos impulsionou a
conhecer as professoras que possivelmente fariam parte da pesquisa, em conversas
iniciais, nas quais foram escolhidas por apresentarem um perfil em que se encon-
travam nos primeiros anos como docentes, como também, foi o meio privilegiado
em que tecemos nossas aprendizagens, formação e desenvolvimento da pesquisa,
mediados por olhares, toques, sensações outras e processos de conversas, que fo-
ram compondo a produção do conhecimento científico.
Conversar com as professoras iniciantes, nos deu pistas para compreendermos
suas vidas pessoais, profissionais e de organização e desenvolvimento do trabalho
pedagógico, além das relações estabelecidas com as crianças, seus pares e demais
agentes escolares, entre outras inúmeras possibilidades importantes correlaciona-
das aos seus saberes e fazeres dos processos de aprender e ensinar.
Ao primarmos pela conversa como dispositivo metodológico na pesquisa cien-
tífica, estamos compreendendo que:
Não se trata, no bojo da conversa como metodologia de pesquisa, de categorizar as falas
dos sujeitos interlocutores da ação investigativa, de inseri-las em quadros descritivos ou
em conceitos-chave, recolher delas dados e analisa-los. Trata-se, antes, de pensar com elas,
escutá-las, pensar a partir delas, com toda a imprevisibilidade, incomensurabilidade, in-
ventividade e contingência que a pesquisa pode revelar (RIBEIRO; SOUZA; SAMPAIO,
2018, p. 169).
Assim, a conversa com as professoras iniciantes deu materialidade às com-
preensões e aos entendimentos que compartilhamos acerca do si e do nós, dos pro-
cessos pedagógicos, da aprendizagem da profissão e dos movimentos de se consti-
tuir como docente no início de carreira, e das múltiplas outras questões que foram
emergindo de uma forma menos categórica e fluída, já que conversar implica uma
entrega, disponibilidade e troca recíprocas de saberes, experiências e conhecimen-
tos que não estão dados, mas construídos na relação que estabelecemos com o ou-
tro, pensando bakhtinianamente (BAKHTIN, 2017).
No que concerne ao diário de pesquisa, foi o dispositivo metodológico que nos
acompanhou no registro cotidiano das experiências que tivemos com as docentes,
e de todos os acontecimentos que nos pareceram significativos e plausíveis serem
registrados, para subsidiar nossas conversas em momentos posteriores, durante os
encontros que juntos tivemos no cotidiano escolar.
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E foram nas narrativas que, evocadas pelas vozes das professoras em situa-
ções de sua prática pedagógica e das nossas conversas, que foram compondo o nos-
so inventário de pesquisa, para permitir a imbricação entre as diferentes experiên-
cias e registros que tivemos, permitindo a composição das ideias e tessituras do
conhecimento científico, como o que culminou, por exemplo, nesse artigo.
Mergulhar no cotidiano escolar em um contexto de pesquisa científica, dá
possibilidades outras de compreender e apreender uma realidade que se processa
de uma pluralidade de formas, acontecimentos e sensações que somente estando
imersos nas relações estabelecidas com os sujeitos com os quais dialogamos, par-
ticipantes de nossas pesquisas, nos é possível construir. Desse movimento, emer-
ge uma potencialidade rica de conhecimentos, saberes e experiências instituintes
capazes de contribuir para a tessitura da emancipação social, ou como melhor nos
faz pensar os estudiosos nos/dos/com os cotidianos a quem temos uma afinidade
teórico-metodológica e epistemológica:
[...] cotidianamente, são criados conhecimentos e tecidas relações entre eles e seus sujeitos,
relevantes não só para a vida cotidiana, mas para o desenvolvimento de novas práticas
sociais de conhecimento e que podem contribuir com a tessitura cotidiana da emancipação
social (OLIVEIRA, 2012, p. 53-54).
Nesse sentido, as professoras iniciantes são autoras e protagonistas de suas
histórias, experiências e narrativas, as quais passamos, como pesquisadores, a elu-
cidar essa dimensão potencial em nossas conversas fruto de suas narrações em pro-
cessos de construção e aprendizagem profissional da docência, como fundamentais
para a tessitura de seus saberes e conhecimentos de si, do que fazem, e das práticas
pedagógicas enredadas em múltiplas outras questões relacionadas ao aprender e
ensinar.
Diante desse contexto do desenvolvimento de uma pesquisaformação é plau-
sível fazemos os seguintes questionamentos: Como chegamos até as professoras
iniciantes? E como se deu a escolha para participarem do estudo?
Primeiramente, fomos à Secretaria Municipal de Educação, Ciências e Tec-
nologia de Caxias, MA (SEMECT), e conversamos com a Secretária Municipal de
Educação, que nos recebeu, e com quem partilhamos o propósito da pesquisa que
estávamos a desenvolver. Com base nesse primeiro contato, fomos direcionados ao
setor de Recursos Humanos (RH), que fez um levantamento, trazendo uma lista
com 08 (oito) professoras iniciantes, que estavam distribuídas em diferentes esco-
las da rede pública municipal.
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Fomos entrando em contato com algumas ao irmos pessoalmente para as es-
colas em que estavam listados os seus nomes, realizando uma primeira conversa,
para que pudéssemos chegar à uma definição de quem poderia fazer parte da pes-
quisaformação. Nesse processo de conversa, identificamos que algumas professo-
ras já tinham mais de três anos na docência, não sendo mais iniciantes, enquanto,
nos levaram a conhecer outras que foram se adequando ao perfil da pesquisa, por
sugestão de outras docentes que nos indicaram suas colegas. Após uma primeira
conversa, definimos 03 (três) professoras localizadas em duas escolas, situadas em
diferentes locais da cidade, pelo fato de estarem em um recorte cronológico que
vai de 01 até 03 anos no exercício do magistério, se enquadrando, portanto, como
professoras iniciantes, segundo Huberman (2000). São as que apresentamos neste
trabalho e com as quais dialogamos na produção do conhecimento.
Por uma questão de ética na pesquisa científica não iremos revelar os nomes
verdadeiros das participantes da pesquisa, e sim nomes fictícios, resguardando,
portanto, suas identidades. Assim, serão designadas as docentes: Júlia, Liz e Fá-
bia.
No início da pesquisa com as professoras iniciantes, explicitamos os princí-
pios do estudo, e fomos dialogando com os esclarecimentos necessários relativos
ao mesmo, elucidando os objetivos e as possíveis contribuições que pudesse trazer,
e as professoras concordaram, bem como autorizaram que suas narrativas pudes-
sem ser publicizadas em meios de divulgação científica, seja em revistas, livros ou
eventos da área, entre outros. Agimos assim, pautados pela ética na pesquisa cien-
tífica e com a responsabilidade com que concebemos a produção do conhecimento
científico.
Quanto ao perfil das professoras iniciantes participantes da pesquisa, todas
possuem formação inicial em Pedagogia, que foram cursadas em instituições da
rede privada de ensino na cidade de Caxias, MA. Duas professoras, Júlia e Liz, rea-
lizaram o curso em uma mesma instituição, porém, em épocas diferentes, e a outra
docente, Fábia estudou em outra instituição privada, em outro período diferente
das outras duas professoras também.
E no que concerne à atuação profissional das professoras iniciantes que fize-
ram parte da pesquisa, estas se encontravam como docentes exercendo o ofício de
professoras no 5º ano do Ensino Fundamental. Duas das professoras atuam em
uma mesma escola no turno matutino (a Fábia e a Liz), e a outra professora (a Jú-
lia) atua em outra escola localizada em outro bairro, e no turno matutino. Todas as
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três professoras participantes da pesquisaformação são docentes contratadas pela
rede pública municipal de ensino e seus contratos ficam sob renovação a cada ano.
Para o processo de compreensão e interpretação das narrativas das professo-
ras iniciantes nos fundamentamos na “hermenêutica da narratividade e tempora-
lidade” de Paul Ricoeur (2010), como uma possibilidade tangível de produção de
significados outros, de apreensão dos comportamentos e sentidos dos sujeitos que
entrelaçam memória, experiência, tempo e narração.
No tocante à compreensão que consideramos ser uma dimensão potencial na
pesquisa, reforçamos a dimensão de que faz Ricoeur (2010, p. 213) ao declarar que
“[...] compreender a ação é reviver, reatualizar, repensar as intenções, as concep-
ções e os sentimentos dos agentes”.
Assim, ao entrelaçarmos a nossa imersão no cotidiano escolar, as conversas
com as professoras iniciantes e os registros de narrativas escritas em nosso diário
de pesquisa, fomos tecendo compreensões acerca do vivido e praticado, ampliando
um leque de possibilidades que puderam se consolidar no processo de interpretação
desse imbricamento de ações, permitindo, assim, a construção do conhecimento
científico.
Daí o fato de que “[...] o momento de intepretação é aquele em que avaliamos,
isto é, atribuímos sentido e valor” (RICOEUR, 2010, p. 196) às múltiplas expe-
riências que fomos compondo juntos, mediados pelas ações que foram tramadas
e tecidas cotidianamente nos percursos da pesquisaformação. A interpretação ga-
nha, portanto, substancial legitimidade quando tecida nas relações entre quem
pesquisa e os sujeitos participantes do estudo, em contextos que se consolidam na
cultura institucional onde as professoras iniciantes estão tecendo as experiências,
caso este que chegamos a perceber essa potencialidade.
Como se deu, então, metodologicamente a imbricação entre os registros das
narrativas no cotidiano da pesquisaformação com os processos de compreensão e
interpretação das mesmas na produção do conhecimento científico?
Através de nossa imersão no cotidiano da escola, na participação com as pro-
fessoras em sala de aula e em outros espaços educativos da instituição no tocante
às suas práticas, e ao mesmo tempo durante as conversas em que íamos, enquan-
to pesquisadores, registrando por escrito em nosso diário o que ia surgindo desse
processo de conversação, além de outros ditos e não ditos que se implicavam em
gestos, comportamentos, aspectos corporais e sensitivos que revelavam e que per-
cebíamos das professoras iniciantes e dos múltiplos atravessamentos outros, no
plano de uma educação das sensibilidades no sentido benjaminiano (BENJAMIN,
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2012), como uma racionalidade sensível na produção do conhecimento científico
como também faz alusão Bragança (2012), que se deu, de modo assimétrico, não
controlado e nem circunscrito a uma temporalidade estabelecida, como campo de
possibilidades que emergiam das interações tecidas entre nós.
Assim, o que registrávamos no plano da escrita em nosso diário de pesquisa,
foram aos poucos compondo uma narrativa, em que não apenas transcrevíamos o
que nos diziam as professoras iniciantes durante nossas conversas, mas, fizemos
uma construção mesmo narrativa mediada por uma reconstrução a posteriori e de
um modo mais elaborado, a partir do que dialogávamos com elas, em que as profes-
soras iniciantes passavam a entender e saber o que tínhamos escrito nos encontros,
e nos diziam outros tantos acontecimentos relacionados ao que líamos do nosso
diário fruto de sua experiência que registramos por escrito, passando a ser, portan-
to, um processo de reconstrução da narrativa, trazendo, assim, uma compreensão
e interpretação coletiva da experiência narrativa que juntos fomos produzindo ao
longo da pesquisaformação.
A socialização de professoras iniciantes na construção da experiência prossional
A ideia que estamos concebendo como socialização profissional relaciona-se
com um processo de inserção na cultura institucional pelo sujeito levando atitudes,
valores, modos de racionalizar e organizar suas dinâmicas pessoais e profissionais,
constituindo outras tantas possibilidades de aprendizagem com os outros nas me-
diações estabelecidas que possam surgir no cotidiano do trabalho. Ao pensarmos
por esse prisma, partimos do princípio que “[...] a socialização profissional é, por-
tanto, esse processo muito geral que conecta permanentemente situações e percur-
sos, tarefas a realizar e perspectivas a seguir, relações com outros e consigo (self),
concebido como um processo em construção permanente” (DUBAR, 2012, p. 358).
Para tecermos maiores aprofundamentos nesta parte do texto, urge um ques-
tionamento fundamental: como se socializam as professoras iniciantes participan-
tes da pesquisa no contexto de seu desenvolvimento profissional no cotidiano das
escolas? E quais experiências tecidas na vida das docentes? Como encararam os
acontecimentos propiciados nos primeiros anos da profissão de professora inician-
te?
Antes de refletirmos sobre essas questões, trazendo as narrativas das profes-
soras iniciantes, e como uma forma de compreendermos o que nos revelaram estas,
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com base em nossas conversas com algumas coordenadoras pedagógicas que atuam
dentro da Secretaria de Educação, e por meio do nosso diálogo com a secretária de
educação, ressaltamos que no município em que atuam junto às escolas públicas da
rede municipal da SEMECT, não possui propriamente uma política específica ou
programa de acompanhamento e orientação destinado a professores e professoras
que iniciam o seu trabalho no cotidiano das escolas. Sobretudo, para docentes ini-
ciantes, que nunca desenvolveram o seu trabalho como professores/as, ou aqueles/
as que ainda não tiveram a experiência de ser professor/a.
De acordo com as conversas que tivemos com as professoras iniciantes, em
compartilhamento de suas experiências narrativas do início da profissão docente,
as aprendizagens da profissão e os processos de socialização profissional, portanto,
acontecem em experiências que vão sendo descortinadas pelas docentes, em função
do contato com a cultura escolar e do que encontram no cotidiano da instituição,
das relações estabelecidas com outras professoras que já tiveram alguma experiên-
cia ou que já se encontram na carreira do magistério, bem como através da (re)
criação de dispositivos didáticos-pedagógicos que julgam ser necessários criarem e
desenvolverem com seus alunos, além de aprendizagens que passam a ter com seus
filhos, do que trazem da escola para casa, servindo como subsídios para empreen-
derem no seu trabalho com seus alunos na escola onde trabalham.
No que se refere ao conceito de experiência estamos concebendo-a a partir da
perspectiva de Benjamin (2012) como um processo de afetação que se configura na
vida do sujeito, passando a gerar implicações transformadoras e significativas que
marcam os seus percursos trilhados e lhe dão consciência do acontecimento que
passa a ser evocado em suas memórias em diferentes momentos de sua existência.
Na perspectiva de Larrosa (2011), estamos compreendendo a experiência como
um acontecimento que nos passa e que respondemos com a afetação e implicação
que é gerada desse movimento entre o mundo externo e o interno, capaz de produzir
uma reflexão, transformação e mudança podendo nos acompanhar em diferentes
espaços-tempos da vida, formação e existência. A experiência, é, portanto, “[...] um
movimento de ida e volta [...] que vai ao encontro com isso que passa, ao encontro
do acontecimento” (LARROSA, 2011, p. 6).
Buscamos, nas linhas que se seguem, trazer os diferentes acontecimentos que
foram se descortinando narrativamente na experiência dos primeiros anos de pro-
fessoras iniciantes no cotidiano do desenvolvimento profissional, a partir do que
enunciaram as participantes da pesquisa durante os encontros que tivemos com
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elas nas escolas, caracterizando-se, assim, como processos de socialização profis-
sional na carreira docente.
A professora Júlia iniciou suas atividades profissionais na escola no segundo
semestre do ano de 2017, e começou através do “Terço da Jornada”5. Segundo nos
narrou a professora Júlia:
O Terço da Jornada é um programa em que desenvolvemos atividades com turmas do 1º ao
5º ano do Ensino Fundamental. É destinado a professores temporários com várias disciplinas
em diferentes tempos, horários e escolas, visando com que estes possam “cobrir” o tempo dos
professores efetivos, que possuem um dia disponível para sua formação e estudo, e que os
outros professores acabam ocupando esse outro tempo (Narrativa da profa. Júlia, 19/02/20).
Como podemos perceber, a professora Júlia compreende os princípios e con-
tradições do exercício da docência no “Terço da Jornada”, mas encontrou nesta
oportunidade de trabalho a possibilidade de ingressar como docente em uma escola
da rede pública de ensino. A organização da jornada de trabalho das professoras
participantes da pesquisa vem como consequência da Lei nº 11.738, que instituiu o
Piso Salarial Profissional Nacional para os profissionais do magistério público da
educação básica (PSPN), em 2008.
Tendo como referência uma jornada de quarenta horas semanais, a Lei do PSPN estabelece
um vencimento base ajustado anualmente, bem como o limite máximo de dois terços do
tempo para efetivo trabalho de interação com os estudantes e um terço do tempo de traba-
lho sem estudantes, chamado extraclasse. Dessa forma, tendo como referência uma jornada
de 40h semanais, 26 horas devem ser destinadas ao efetivo trabalho com os estudantes e 14
horas às atividades extraclasse (BRAGANÇA; PEREZ, 2016, p. 1167).
A Lei do Piso, como ficou conhecida, afirma-se com importante conquista dos
profissionais da educação, consistindo na dedicação de um terço da jornada de tra-
balho ao estudo, planejamento e avaliação. Trata-se de incentivo e valorização pro-
fissional, implicando em melhores condições de trabalho. O cumprimento da refe-
rida lei consiste em um desdobramento do que já havia sido preconizado na Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei nº 9.394/1996 (BRASIL, 1996),
sobretudo no artigo 67, que trata da valorização dos profissionais da educação.
O desafio posto é o cumprimento desse piso salarial dos professores no que
diz respeito às administrações públicas espalhadas pelo Brasil, no sentido de as-
segurar o terço de horas-atividade para as docentes no contexto de trabalho na
educação básica. E vale ainda ressaltar que esta lei é garantida para os profissio-
nais da educação básica que são concursados na rede pública, o que não contempla
professores e professoras que são contratados em regime temporário, como no caso
das professoras iniciantes que fizeram parte desta pesquisaformação. São múlti-
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plas as contradições na operacionalização em muitos municípios para atender a
legislação, em que fazem a contratação de professores temporários que “cobrem” os
horários extraclasse dos docentes efetivos, desenvolvendo atividades pedagógicas
com as turmas. No município de Caxias-Maranhão, a referida atuação profissional
é denominada informalmente pelas professoras como “Terço da Jornada”.
Assim como as participantes da pesquisaformação, observamos que muitos
professores iniciantes na profissão começam a atuação na docência por estar via de
trabalho precarizado e o que desenvolvem, como fazem e as múltiplas característi-
cas que empreendem em seu trabalho, trazem implicações avaliativas que podem
contribuir para conseguirem “conquistar uma vaga” na escola e trabalhar como
docentes em um regime de contratação, ainda que também de forma precária, com
atuação profissional em uma turma, consistindo em uma melhoria nas condições
de trabalho.
O “Terço da Jornada” tem representado um lócus de aprendizagem inicial do
ser professora com diferentes configurações, em que muitas passam a se inserir na
cultura escolar, a conhecer as dinâmicas pelas quais funcionam, e a ter a oportuni-
dade de “mostrar o seu trabalho” para continuar no cargo ou passar de um status
para o outro.
Essa constituição dos espaços de trabalho na formação e aprendizagem da
profissão durante os processos de socialização das professoras iniciantes no coti-
diano escolar, em termos do que desenvolvem no “Terço da Jornada”, acreditamos
que se relaciona mais como uma “ocupação” do que uma “profissão” nos termos de
Dubar (2012), já que as docentes revelaram, em nossas conversas, que desenvol-
viam diferentes tipos de atividades focando as áreas do conhecimento que a elas
era designadas, em várias turmas e em duas ou mais escolas. O que, com o passar
do tempo, somente veio a conquistar uma vaga de trabalho, como professora con-
tratada de somente uma turma em uma escola, passando a alçar o status, de fato
de professora, como ficou bem marcado em suas narrativas essa transição.
Ainda segundo a professora Júlia, acerca dessa experiência, revelou-nos que o
fato de atuar no “Terço da Jornada”:
[...] não permitia com que a gente criasse vínculo com a turma, com os alunos, o que isso
dificultava de desenvolver um trabalho mais minucioso e específico no que se refere às dificul-
dades de aprendizagem e relacionadas ao acompanhamento do comportamento das crianças,
já que não dava para conhecer o perfil dos mesmos (Narrativa da professora Júlia, 19/02/20).
Diante do exposto, podemos notar que as atividades desenvolvidas pela docen-
te, indicam uma forma de buscar iniciar-se na profissão, ou mesmo conquistar um
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espaço e legitimidade que venha a se consolidar. Outro aspecto se torna fundamen-
tal trazer, ao que Estrela (2010, p. 46) vai designar pela “dimensão pedagógica dos
sentimentos e emoções dos professores e professoras”, quando chegamos a perceber
as questões implícitas de afetação que a professora demonstrou ao narrar essa
experiência mencionada anteriormente. Transpareceu-nos que ela estava no plano
do desejo e da expectativa em querer uma turma que ficasse sob sua responsabili-
dade, em que pudesse criar vínculos e se envolver afetuosamente com as crianças
no processo de ensino e aprendizagem, e poder acompanhá-las durante todo o ano
letivo, para mediar os processos educativos e pedagógicos na caminhada.
A professora Julia continuou desenvolvendo o seu trabalho na mesma escola
em que se encontra atuando hoje, desde 2017, e foi essa experiência no desenvolvi-
mento de atividades em sua prática pedagógica, que a fez “conquistar” a tão sonha-
da vaga como professora, no ano seguinte em 2018, em uma turma somente sua,
mudando o status de “ocupação”. Percebemos que para ela, como para outras tam-
bém, a mudança para atuação em uma turma traz maior segurança no campo pro-
fissional, embora, sabendo que sua permanência no cargo, continua correlacionada
à sua atuação, e que, portanto, sua competência profissional estava em processo de
consolidação, bem como sob avaliação da equipe gestora da escola e dos resultados
da aprendizagem que os alunos pudessem desenvolver e obter pelo que fazia.
O estar presente e inserido no cotidiano como pesquisadores, mas também
como professores e vivendo um processo de formação com as docentes, nos traz
outros tantos olhares e construção de percepções, entendimentos e compreensões
acerca do vivido e praticado. São nesses momentos que extrapolamos a dimensão
prescritiva e da racionalidade técnica tão presentes no âmbito da educação. Por
isso, nos foi possível apreender outras tantas significações que somente as pala-
vras e as narrativas não nos deram conta: o viver e experienciar a sala de aula, o
contato com as crianças e as conversas com as professoras dentro do seu âmbito de
trabalho, e nos diferentes espaços-tempos da cultura escolar e da interação com os
múltiplos sujeitos que nela habitavam ou que visitavam/participavam reafirma a
ultrapassagem de um trabalho de pesquisa para o sentido de pesquisaformação.
Nesse aspecto, acreditamos ter praticado uma “racionalidade sensível, incor-
porando a vida dos sujeitos, em toda sua complexidade existencial, como componen-
te fundamental do processo formativo” (BRAGANÇA, 2012, p. 28). O que também
nos remete a pensar no que esta mesma autora ressalta quanto a “experiências
instituintes de formação”, que acreditamos ser como aquelas tecidas em dinâmicas
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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singulares-plurais que os sujeitos possam revelar, e que impulsionam uma poten-
cialidade transformadora e emancipatória na vida, formação e profissão.
Olhamos, portanto, a socialização profissional no contexto da educação como
uma perspectiva singular e que se constitui diferentemente de uma realidade para
outra. É um vir a ser que vai imprimindo um modo outro de consolidação em um
espaço de trabalho em que professores e professoras iniciantes ou experientes en-
frentam subjetivamente e a partir das condições materiais de existência, trabalho
e profissão.
Assim, mesmo que “[...] a questão da profissionalização é assim redefinida
pelos interacionistas como um processo geral” (DUBAR, 2012, p. 356), há uma
natureza de singularidade pela qual o sujeito constrói nas mediações da cultura
institucional, com os sujeitos com os quais estabelece relações e com os múltiplos
atravessamentos que vão sendo tecidos ao longo do aprender, ensinar, organizar
o trabalho pedagógico e dos enfrentamentos pelas lógicas hegemônicas e contra
hegemônicas que se tecem à sua volta: das diretrizes educacionais preconizadas
no seu trabalho, do currículo escolar, da avaliação, do planejamento e de múltiplas
outras questões que emergem nesse processo de socialização profissional da profis-
são de professora.
Já em relação à professora Liz, esta iniciou como professora também com ati-
vidades desenvolvidas no “Terço da Jornada”, no ano de 2017, mas em duas esco-
las e com cinco turmas, ministrando diferentes disciplinas. Fazendo uma reflexão
acerca dessa experiência, a professora relatou que:
Uma professora do “Terço da Jornada” trabalha muito mais do que a que fica numa turma só.
Na época eu trabalhava em duas escolas e com cinco turmas, em diferentes horários, e na
minha época eram as disciplinas de Artes, Educação Física e Religião, esse ano é História e
Geografia (Narrativa da professora Liz, 04/03/2020).
A experiência desenvolvida pela profa. Liz demonstra os movimentos de se
constituir professora em um contexto multifacetado da didática, de enfrentar mui-
tas turmas e se deslocar de um lugar para o outro, em se tratando das atividades
desenvolvidas em diferentes escolas, como uma das propostas preconizadas por
essa realidade e que, mesmo se tratando de ser mutável de um tempo para o outro,
a docente ainda carrega memórias que foram importantes no processo de se tornar
professora e passar de uma fase à outra da profissão, ou seja, de ser professora no
“Terço da Jornada”, e agora estar compromissada apenas com uma turma e em
uma escola. Fica explícito que é exatamente isso que a professora queria, já que
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consegue desenvolver um trabalho e acompanhar o andamento das crianças em
todos os percursos formativos da experiência educativa.
É no processo de narrar que as docentes conseguem se enxergar e tomar
consciência de sua prática e das relações estabelecidas com a cultura escolar, as
crianças, seus pares e os múltiplos atravessamentos e deslocamentos gerados no
movimento entre aprender, educar e ensinar.
Podemos dizer que a professora Liz teve uma experiência, a qual foi fundante
para resgatar no plano da memória o que aprendeu com as atividades que desen-
volveu no “Terço da Jornada”, situando o passado no presente pela sua narração.
Tal perspectiva nos remete à reflexão da temporalidade da narrativa com que
empreende Ricoeur (2010), em Tempo e narrativa, quando a professora iniciante
situa o que viveu em sua experiência do passado no início de se constituir como
professora, refletindo no presente esses acontecimentos que foram marcantes para
ela. O que Ricoeur (2010) vai refletir acerca do tríplice presente, em Santo Agosti-
nho, de que a narrativa é produzida em: um presente do passado, um presente do
futuro e um presente do presente.
Nesse sentido, a professora iniciante Liz retratou o que desenvolveu, como era
o seu trabalho baseado na realidade da época, e fez uma comparação no momento
atual, com reflexões de como se dá o ser professora em relação ao tempo que atuou
no “Terço da Jornada”, com o que está desenvolvendo agora. Acreditamos ser uma
forma de perceber as nuances e diferenças que envolvem a organização e desenvol-
vimento do trabalho pedagógico, já que no momento se encontra como professora
em uma turma só, questão essa desejada por ela, e que foi “conquistada” fruto do
seu trabalho, da sua didática e do que desenvolveu para chegar ao status que se en-
contra atualmente: professora contratada de uma turma somente em uma escola.
A relação com os demais pares de professores da escola e de outras, e suas
relações com a equipe de gestão, também foi outro fator que trouxe elementos de
referência para que a professora pudesse fazer uma reflexão nos momentos iniciais
que enfrentou nas escolas no aprender a ser professora, como percebemos essa
dimensão durante nossas conversas, e que vez por outra emergiam em suas narra-
tivas esse aprender com o outro.
Acerca das características que se manifestam no início da carreira docente no
processo de socialização profissional, parece-nos tangível declarar que “[...] neste
primeiro ano, os professores são principiantes, e, em muitos casos, no segundo e
terceiro anos podem estar ainda a lutar para estabelecer a sua própria identidade
pessoal e profissional” (MARCELO GARCIA, 1999, p. 113).
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Aspecto esse que percebemos se fazer presente tanto no que se refere à vida
profissional da professora Liz, que aludiu também isso em suas narrativas, como
se relaciona com as outras duas professoras participantes desta pesquisaformação.
O que fazem e mobilizam de saberes e fazeres contribuem enormemente para a
construção do perfil, didática e modo de ser professora iniciante e que acompanha-
rá as mesmas ao longo do processo de socialização no campo profissional, sendo
construído e reconstruído na trajetória docente, em um processo sempre aberto ao
longo da vida.
Outro aspecto pertinente a ser compreendido diz respeito às relações coletivas
constitutivas do ser e se transformar nesse entrecruzamento. Isso nos lembra Ba-
khtin (2017) acerca dos processos relacionais em que o sujeito produz com o outro,
possibilitando a constituição de si e dos modos, em que, coletivamente se transfor-
mam, reforçando o que o autor chama de relações de alteridade que vão imprimin-
do um caráter axiológico de que resulta desse processo interativo, de engajamento
e produtor de uma multiplicidade de significações. O sujeito passa não apenas a se
transformar, mas a tomar consciência em reflexões que tece desse passar de uma
condição para a outra mediada pelas relações humanas coletivas.
No que se refere a outra professora iniciante, Fábia iniciou seu trabalho como
docente na escola em maio do ano de 2018 também no “Terço da Jornada”, em cada
dia numa sala em turmas diferentes, e que se prolongou com as atividades ao longo
do ano de 2019, passando a assumir uma turma só sua, já como professora contra-
tada neste ano de 2020, no 5º ano do ensino fundamental.
Segundo narra Fábia, em uma conversa que tivemos, acerca de suas expe-
riências iniciais de inserção profissional na docência, ser professora no “Terço da
Jornada”:
É um desafio constante. A gente tem que se reinventar e se permitir a novas aprendizagens.
A maior dificuldade é vencer as barreiras da questão social dos alunos, pois muitos não tem
condições tanto financeiras para adquirir os materiais escolares, quanto do acompanhamen-
to familiar dos pais no processo de ensino e aprendizagem (Narrativa da professora Fábia,
03/03/20).
Tal narrativa nos leva a refletir acerca da complexidade que emana dos proces-
sos pedagógicos, educativos, e, sobretudo, humanos e emocionais que atravessam
a docente, e que influenciam nos modos de constituição de suas identidades pro-
fissionais, nesse início de carreira, quando de sua socialização na cultura escolar.
Algumas das narrativas que foram surgindo em nossas conversas, foram sendo
reveladas espontaneamente pela docente, em momentos em que percebemos uma
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necessidade de compartilhar com um outro, o que por vezes acreditamos ter sido
uma necessidade de fazer isso com outras professoras na escola, embora, estivésse-
mos com ela em outra condição: de pesquisadores-formadores, mas também cons-
tantes aprendizes do ser professor, no contexto da escola pública básica, nesse caso.
A professora Fábia, demonstrou narrativamente suas dificuldades em alguns
momentos que começou a rememorar de sua socialização profissional no cotidiano
da escola. Um de seus discursos pontuou que:
Olha não é fácil. Eles [alunos] leem de uma forma e escrevem de outro jeito, do jeito que eles
acham que sabem. Tem horas que a garganta dói de tanto eu tá explicando, e as pernas doem,
andando na sala de aula pra poder ajudar a eles, porque no final do ano eu preciso apresentar
resultados (Narrativa da professora Fábia, 03/03/20).
As dificuldades, portanto, reveladas pela professora Fábia, são algumas das
muitas em que permeiam o trabalho da professora em início de carreira, que passa
a se esforçar e aprender na própria prática como é ser professora, com a realidade
que possui, e os múltiplos acontecimentos que perpassam o seu campo profissional
e que podem reverberar emocionalmente em como a docente se sente.
Além do mais, como a professora ainda está nos movimentos iniciais de seu
processo identitário profissional e de socialização, isso pode se configurar como
momentos de oscilação entre os impactos que enfrenta cotidianamente em um con-
texto em que não estava acostumada a enfrentar, em se tratando da escola pública,
como nos revelou narrativamente a professora em outras conversas6, e que, os es-
forços empreendidos para contribuir no processo de ensino e aprendizagem, é uma
das questões que trazem muitas reflexões e acompanham-na em afirmar-se na
profissão de professora.
Conforme revelou em outra narrativa, Fábia disse-nos que sofreu um “choque”
quando passou de uma transição como professora da Educação Infantil que só ti-
nha 11 alunos e entrou nessa escola da rede pública do Ensino Fundamental com
uma turma de 35 alunos. Essa transição entre ser professora do “Terço da Jornada”
mexeu muito com a docente, que narrou:
Ano passado foi muito difícil, pensei até em desistir. A turma que eu peguei eram 15 alunos
no “Terço da Jornada”, porque eram repetentes. Então, tinha dias que eu chorava em casa e
chorava, porque eu parava e pensava na situação deles [alunos] de não querer nada com a
vida (Narrativa da professora Fábia, 20/02/2020).
Os múltiplos acontecimentos que surgem nos primeiros anos da profissão do-
cente, no processo de socialização profissional, parecem ser importantes para a
continuidade ou o abandono da profissão. Tanto que, pela narrativa da professora
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Fábia, suas primeiras experiências na docência reverberaram em sua subjetivida-
de, desencadeando emoções, gerando outros tantos estados de ser e estar, levando
ao questionamento quanto à continuidade ou ao abandono do magistério.
Em uma pesquisa longitudinal desenvolvida por Goodson (2019) e apresen-
tada no livro Currículo, narrativa pessoal e futuro social, entre as quais envolveu
professoras iniciantes nos dois primeiros anos da docência, o autor identificou que
“[...] acompanhando-os pelos primeiros dois anos de docência, vimos esses profes-
sores se esforçarem para definir seu(s) novo(s) papel(papéis) e contextos e para se
perceberem como professores no cenário da faculdade comunitária” (GOODSON,
2019, p. 146).
As professoras iniciantes participantes desta pesquisa, não se mostraram in-
diferentes a essa perspectiva, já que revelaram preocupação em constituir a sua
profissionalidade e um perfil de ser professora ainda no início da carreira docente.
O que também foi reforçado por suas narrativas e durante os encontros que com
elas tivemos no cotidiano escolar.
A narrativa no processo de pesquisaformação, parece-nos ser um dispositivo
potencial de formação, reflexão e construção de saberes e conhecimentos que vão
configurando o ser e aprender a ser professora iniciante mediada pelas experiên-
cias de narrar o que lhes acontecem, e como encaram esse acontecimento na vida
que dá significação e sentido que se revela por meio de contar o que fez, o que pensa
e o que está refletindo. Tal como conseguimos perceber durante a escrita narrativa
que fomos registrando em nosso diário, do que nos narravam as professoras ini-
ciantes durante as conversas no cotidiano escolar. Cabe-nos salientar uma citação
elucidativa desta questão, qual seja, de que:
As narrativas escritas nos oferecem a oportunidade de trabalhar sobre essa questão das
experiências fundadoras que, em boa parte, são constituídas pela narração de microssitua-
ções (designadas, às vezes, por episódios significativos) que pressupomos não estar aí por
acaso. O trabalho sobre esses microacontecimentos da vida permite destacar as componen-
tes de uma vivência que se transformaram em experiência (JOSSO, 2010, p. 214).
Portanto, os acontecimentos que se processaram na vida e na profissão das
professoras iniciantes ao passarem em suas inserções profissionais no processo
de socialização da profissão constituíram de uma singularidade da qual foi tecida
à luz das experiências do se fazer e viver a profissão, do estar em contato com
uma realidade e enfrentar os percalços e as conquistas da consolidação do status
profissional, bem como dos aprendizados e das marcas que esses movimentos con-
seguiram lhes trazer como fundantes para se tornarem professoras, mesmo em
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situações e modos que não tenham sido as que esperavam ou que passaram a se
consolidar em conquistas do que queriam.
Do mesmo modo, não podemos nos furtar de deixar claro que os processos de
socialização profissional com que as professoras iniciantes passaram ao se inseri-
rem no contexto de trabalho, foi constituído de um teor de desvalorização profissio-
nal, pois passam a ser vistas mais como uma ocupação de atividades no “Terço da
Jornada” – no lugar daquela professora que está gozando desse direito legal que
lhe foi assegurado – enquanto as professoras iniciantes, tiveram que desenvolver
o seu trabalho às custas do que lhes foi possível ter de oportunidades para, então,
“conquistar” uma vaga de emprego como professoras contratas, o que aponta para
um outro status de mobilidade profissional com um pouco mais de durabilidade e
prestígio. A esse respeito, é válido reforçar que:
É nesse quadro de trabalho escolar, permeado por processos de desqualificação e de intensi-
ficação do trabalho, que o professorado em início de carreira se insere, tendo que enfrentar
diferentes desafios inerentes ao exercício da profissão e, ao mesmo tempo, sendo desafiado
e impulsionado a agir dentro das regras, como as preconizadas pelas políticas regulatórias
(ILHA; HYPOLITO, 2014, p. 107).
De um lado, eis o aprender uma profissão com a realidade que se apresenta e
com o que lhes foi dado de oportunidades na construção de um campo profissional,
de outro, a desvalorização e condições precárias de ser e aprender a ser docente,
com cargas horárias várias, muitas turmas e um constante movimentar-se entre
as muitas disciplinas, vários alunos e escolas. E, assim, são os processos de socia-
lização de professoras iniciantes com que nesta pesquisaformação nos foi possível
perceber, numa dada realidade, em um dado tempo e em um contexto de transfor-
mações sociais, econômicas, políticas e culturais do momento em que vivemos e
estamos. E que vai diferenciando-se de um tempo e sociedade para o outra.
Lições deixadas ou da incompletude de uma formação
Ao desenvolvermos a pesquisaformação, entremeada com as articulações dis-
cursivas expressas nas narrativas e das experiências das professoras iniciantes,
chegamos às seguintes provocações reflexivas: como se socializam as professoras
iniciantes? Que experiências lhe pareceram significativas e como as revelam nos
primeiros anos da docência?
A sensação de “conquista” foi a que nos transpareceu bem visível durante nos-
sas conversas e no modo como revelaram as professoras iniciantes em relação às
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diferentes aprendizagens que conseguiram ter e construir, além da inserção no co-
tidiano profissional nas escolas que foram determinantes para conseguiram estar
como professoras no momento atual.
Uma das questões que na realização deste estudo ficou latente para nós: o
modo como as professoras iniciantes foram se socializando caracterizou-se em um
contexto de desprofissionalização do ofício docente, já que tiveram que “passar”
primeiramente pela experiência de serem professoras do “Terço da Jornada”, para
poder mostrar o seu trabalho, tendo a possibilidade de serem contratadas em um
regime temporário, sujeito a renovação contratual a cada ano, também de caráter
precário.
Pelas narrativas das professoras iniciantes participantes da pesquisaforma-
ção, foi possível percebermos a ideia de “conquista” do campo profissional, mediada
pelos processos de socialização no cotidiano escolar por meio das atividades peda-
gógicas e didáticas no “Terço da Jornada” em diferentes turmas e escolas.
As experiências pedagógicas e de aprendizagem da profissão docente mostra-
ram-se através das conversas que tivemos com as professoras iniciantes e do acom-
panhamento da pesquisaformação em que mergulhamos no cotidiano escolar, um
modo específico e singular de socialização profissional no contexto educacional, o
que certamente poderá se diferenciar de outros modos de socialização no campo da
educação, e por outras professoras iniciantes ou experientes.
Além do mais, os acontecimentos pelos quais foram tecidos nas experiências
de socialização profissional nas escolas pelas docentes iniciantes, demarca um tem-
po histórico, um entendimento de políticas, educação, cultura e sociedade pelas
quais estão se consolidando no momento atual, que outrora tinha outras dimensões
e experiências, e que, certamente se diferenciarão futuramente de outras tantas
experiências que estão porvir no tema da socialização profissional.
Tanto é assim, que em uma pesquisa desenvolvida com professoras iniciantes
na mesma cidade, há 5 anos atrás, feita por Morais (2015) evidenciou que as docen-
tes participantes do estudo não tiveram uma socialização profissional com os mes-
mos moldes, em se tratando de desenvolver atividades no “Terço da Jornada”, o que
reflete no contexto atual, relacionando-se ao cumprimento da lei do Piso Salarial
Profissional Nacional para os profissionais do magistério público da educação bá-
sica (PSPN) nos últimos anos no Brasil, no Maranhão e na cidade de Caxias, onde
a presente pesquisaformação foi realizada. Portanto, há uma mudança crucial nas
políticas educacionais e nos processos de socialização de professores e professoras
no cotidiano das escolas.
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Embora todas as professoras iniciantes, participantes do presente trabalho,
tenham passado pela experiência como docentes no desenvolvimento de atividades
didáticas e pedagógicas no “Terço da Jornada”, foi possível compreender que cada
uma teve um modo singular e subjetivo de viver a experiência de ser professora, e
de saber lidar com as mudanças, expectativas, desejos e emoções que perpassaram
o início da carreira docente e o aprender a ser professora.
O entrelaçamento entre a construção das narrativas escritas de experiências
pedagógicas com as conversas no cotidiano e a participação das professoras ini-
ciantes no processo de reconstrução narrativa com os pesquisadores no processo
de pesquisaformação mostraram-se como uma potência criadora e fundamental na
construção do conhecimento científico, mas não somente isso, aprendemos outras
formas de compreender e interpretar a educação, o ser professora e o produzir
conhecimentos coletivamente, mediados pela reflexão, conversação e imersão no
cotidiano escolar.
Nas narrativas das experiências pedagógicas, de formação e profissionaliza-
ção das professoras, portanto, acreditamos emergir outros tantos saberes, refle-
xões e modos de pensar os processos de socialização profissional com professoras
iniciantes no cotidiano escolar, podendo servir como subsídios para pensarmos
outras tantas lógicas e modos com que acontecem essa socialização na sociedade
contemporânea. Questões essas, fundamentais para compreendermos e criarmos
propostas de formação de professores e professoras, políticas públicas na área, e
dispositivos potenciais de transformação da realidade em se tratando de menos
conflituosa como substanciais para o aprimoramento e melhoria da qualidade da
educação e da inserção profissional de futuros professores e professoras que esco-
lhem a docência como vida e profissão.
Notas
1 Pesquisa financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e que faz
parte da tese de doutorado em educação em desenvolvimento do segundo autor deste artigo, orientado pela
primeira autora.
2 Neste texto, utilizamos o termo “professora” no feminino pelo respeito ao gênero, porque foram professoras
que fizeram parte desta pesquisa e pelo fato de que a maioria das profissionais que estão no magistério são
mulheres.
3 A junção de duas ou mais palavras como o termo pesquisaformação e outras utilizadas neste texto, trata-se
de uma escolha política, teórico-metodológica e epistemológica que fizemos, buscando dar outras tantas
significações que extrapolam o modelo clássico de ciência e produção do conhecimento científico. Assim o
fizemos adotando também os princípios dos estudos nos/dos/com os cotidianos, como faz Oliveira (2012).
4 Na acepção dos referidos pesquisadores, as palavras-conceito pesquisa e formação vêm lado a lado ou arti-
culadas por hífen. Inspirados nesta tradição e também dos estudos dos/nos/com os cotidianos, temos usado
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no nosso grupo de pesquisa, sendo a primeira autora deste artigo a coordenadora e o segundo autor um dos
integrantes, conforme expresso ao longo do presente texto e justificado na segunda nota, pesquisaforma-
ção. Esclarecemos, entretanto, que quando fizermos referência à produção dos autores manteremos o uso
do hífen.
5 Lei do Piso Salarial Profissional Nacional para os Profissionais do Magistério Público da Educação Bá-
sica (Lei nº 11.738/2008) (BRASIL, 2008) (disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-
2010/2008/lei/l11738.htm). O Parecer no. 9 de 2009, do Conselho Nacional de Educação detalha a orga-
nização do trabalho docente, prevendo o Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo (HTPC) e Horário de
Trabalho Pedagógico em Local de Livre Escolha pelo docente (HTPLE). “O HTPC é o horário destinado ao
encontro entre os seus pares da unidade escolar, momentos de formação na escola, movimentos de troca
dos docentes, reunião pedagógica; o HTPLE consiste no período em que o docente escolhe atividades fora
da instituição escolar que possam ampliar seus conhecimentos” (BRAGANÇA; PEREZ, 2016, p. 1167).
6 A professora Fábia trabalhou por um ano em uma escola da rede privada de ensino, mas nos informou que
é completamente diferente a organização do ensino, o perfil dos alunos e as múltiplas questões que envol-
vem a estrutura, condições de trabalho e o próprio universo cultural das crianças, já que a escola em que
atua fica situada em uma região periférica da cidade, e a maioria de seus alunos são oriundos de filhos da
classe trabalhadora e com baixo poder aquisitivo e econômico.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Produzir e compartilhar: a produção de professores da educão básica no YouTube
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Produzir e compartilhar: a produção de professores da educação
básica no YouTube
Producing and sharing: the productions of basic education teachers on YouTube
Producir y compartir: la producción de profesores de la educacaión básica en YouTube
Simone Lucena*
Gersivalda Mendonça da Mota**
Sandra Virginia Correia da Andrade Santos***
Resumo
Este artigo é resultado de uma pesquisa que buscou compreender as possibilidades de utilização do YouTube
na educação, envolvendo uma proposta de criação e cocriação de vídeos, junto aos professores da educação
básica. A metodologia utilizada foi a pesquisa-formação, a qual requer do pesquisador uma implicação com
os sujeitos e com os dispositivos da investigação. Nesse sentido, foi criado um dispositivo autoral de formação
continuada docente, a ocina “Possibilidades do uso da rede social YouTube na educação”. A pesquisa-formação
tem como aporte teórico Josso (2010), Macedo (2009, 2010) e Santos (2014). Os dispositivos para levantamento
de dados foram: observação, diálogo com os participantes e diários de campo. Como resultado, vericou-se
que nem todos os professores se apropriaram da dinâmica de criação e/ou cocriação de vídeos, bem como do
compartilhamento de suas produções. Alguns demonstraram insegurança e resistência. Dessa forma, concluí-
mos que a ausência de práticas autorais e dinâmicas, por parte dos professores envolvidos, está relacionada
principalmente a dois fatores: diculdades de imersão na cibercultura e de disponibilidade para a realização de
atividades de formação continuada, pois as políticas educacionais, seja no nível municipal, estadual ou federal,
não têm possibilitado que os professores tenham disponibilidade para realizar sua formação continuada.
Palavras-chave: autoria; cibercultura; educação básica; formação docente; YouTube.
* Doutora em Educação. Professora do Departamento de Educação e do Programa de Pós-graduação em Educação da
Universidade Federal de Sergipe / Campus Universitário Prof. Alberto Carvalho. Líder do ECult - Grupo de Pesquisa em
Educação e Culturas digitais. Orcid: http://orcid.org/0000-0003-1636-7707. E-mail: sissilucena@gmail.com
** Graduada em História pela Universidade Tiradentes. Mestre em Educação pela Universidade Federal de Sergipe. Orcid:
https://orcid.org/0000-0002-7764-5144. E-mail: historiagerssyn@hotmail.com
*** Graduada em Letras e mestre em Língua Portuguesa pela Universidade Federal de Sergipe. Doutoranda em Educação
pela Universidade Federal de Sergipe. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-0129-056X. E-mail: sanlitera@yahoo.com.br
Recebido em: 30/07/2020 – Aprovado em: 06/04/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i1.11466
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Abstract
This paper is the result of a research that sought to understand the possibilities of using the YouTube social
network in education, involving a proposal of creation and co-creation of videos, together with teachers of basic
education. The methodology used was the research-training, which requires the researcher an implication with
the subjects and the research devices. In this regard, an authorial device for teacher training was created, the
workshop “Possibilities of using the YouTube social network in education. The research-training has as theoreti-
cal contribution Josso (2010), Macedo (2009, 2010) and Santos (2014). As data collection device, observation,
dialogue with the participants, and eld journal were used. As a result, it was veried that only one teacher
had already appropriated the dynamics of creation and/or co-creation of videos, as well as the sharing of their
productions. The other ones demonstrated insecurity and resistance. In this way, we conclude that the lack of
construction of authorial practices and dynamics by the teachers involved is mainly related to two factors: dif-
culty in cyberculture immersion and availability for continuing education activities, since educational policies,
whether at the municipal, state or federal levels, have not made it possible for teachers to be available to carry
out their continuing education.
Keywords: authorship; cyberculture; basic education; teacher training; YouTube.
Resumen
Este artículo es el resultado de una investigación en la que se tuvo como reto comprender las posibilidades
de utilización de la página web de red social YouTube en la educación, involucrando una propuesta de crea-
ción y creación conjunta de vídeos, junto a los profesores de la educación básica. Se utilizó la metodología
investigación-formación, la cual requiere del investigador implicarse con los sujetos y con los dispositivos de la
investigación. En este sentido, se creó un dispositivo de autoría propia de formación continua docente, el taller
“Posibilidades del uso de la red social YouTube en la educación”. La investigación-formación tiene como aporte
teórico Josso (2010), Macedo (2009, 2010) y Santos (2014). Como dispositivo de búsqueda de datos se utilizó
la observación, diálogo con los participantes, y diarios de campo. Como resultado, se vericó que no todos los
profesores se apropiaron de la dinámica de creación y/o creación conjunta de vídeos, bien como no compartie-
ron sus producciones. Algunos demostraron inseguridad y resistencia. De esta forma, concluimos que la falta de
construcción de prácticas de autoría y dinámicas, de parte de los profesores involucrados, se relaciona principal-
mente a dos factores: dicultad de inmersión en la cibercultura y de la disponibilidad para la realización de acti-
vidades de formación continua, pues las políticas educacionales, tanto en nivel municipal como los niveles esta-
dual o federal, no les posibilitan a los profesores que tengan disponibilidad para realizar su formación continua.
Palavras-clave: autoría; cibercultura; educación básica; formación docente; YouTube.
Introdução
O atual contexto sociotécnico tem possibilitado mudanças nas formas de agir,
pensar e produzir informações no cotidiano dos praticantes culturais, os quais real-
izam, cada vez mais, diversas atividades com seus dispositivos móveis na palma da
mão, especialmente, os smartphones e tablets. Nesse sentido, por meio da dissemi-
nação das tecnologias móveis digitais ou “tecnologias nômades” como denomina
Silva (2013), passou-se a ter outras formas de se comunicar, de produzir e de se re-
lacionar com pessoas de diferentes lugares, pois essas tecnologias potencialmente
“reinventam espaços urbanos como ambientes de multiusuários, significando que
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é possível se comunicar com indivíduos que não estão presentes fisicamente, ao
mesmo tempo em que se move pelo espaço físico, que é também habitado por outras
pessoas” (SILVA, 2013, p. 283).
Diante desse cenário social e tecnológico emergente, bem como das práticas
desenvolvidas nos mais variados espaços, inclusive nos educativos, em que os re-
cursos digitais estão cada vez mais presentes, essa pesquisa propõe compreender
as possibilidades de utilização da rede social YouTube por professores da educação
básica, com finalidades pedagógicas, uma vez que os vídeos criados e comparti-
lhados nesta rede social fazem parte cotidianamente dos praticantes culturais em
contextos diversos. Para chegar ao objetivo traçado, parte-se da concepção de um
sujeito construtor de uma cultura, a qual é construída a partir do desenvolvimento
de sua prática, de sua maneira de pensar e de agir no mundo. Trata-se, portanto,
de uma pesquisa-formação, metodologia justificada pelo fato de situar-se numa
perspectiva de compromisso e de implicação dos pesquisadores com suas práticas,
permitindo mudanças individuais e/ou coletivas.
Desse modo, ao fundamentar-se no contexto da pesquisa-formação de Macedo
(2009, 2010) e Josso (2010), esta pesquisa consubstancia-se nas contribuições dos
autores citados para a formação do professor-pesquisador de modo a não gerar
um engessamento das rígidas posições teóricas e encaminhamentos metodológicos
que destituem a condição de praticante diante da ação em que se encontra imerso.
Sendo assim, o pesquisador se encontra inserido em toda a pesquisa como sujeito,
a fim de que ele também venha a desfrutar da experiência de toda a atividade
desenvolvida, constituindo-se como um indivíduo aprendente.
Na mesma perspectiva, têm-se as ideias de Macedo (2009), o qual afirma que
esse tipo de pesquisa valoriza as práticas, o saber-fazer plural, produzido pelos
sujeitos autorais e permite sair do instituído para achar o imprevisto, a ousadia
produzida pelo sujeito praticante. Ao ir a campo para fazer as observações, o pes-
quisador deve se despir dos seus próprios conceitos e estar aberto ao que está posto
por meio das práticas cotidianas dos professores e da realidade. Portanto, os su-
jeitos de uma pesquisa-formação são ativos em todo o processo de formação, pois
desenvolvem uma cultura por meio de seus atos sociais, são instituídos da ordem
sociocultural e são construtores ativos, direcionados a outras possibilidades (MA-
CEDO, 2009). Ainda de acordo com este autor, os sujeitos são peças importantís-
simas para caracterizar a pesquisa, sendo cada fala de extrema importância, pois
produzem sentidos e significados. Sem o sujeito, sem a sua voz, seria impossível
desenvolver uma pesquisa-formação.
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Nesse sentido, esta investigação apresentou-se como uma caminhada em con-
junto com outros em busca do ponto de vista do outro para interpretar suas reali-
zações. Macedo (2010) defende que as formas de construção do conhecimento origi-
nadas da vida do cotidiano escolar são significativas para pensar, dado o conjunto
de interpretações que as pessoas compartilham e que, ao mesmo tempo, fornecem
os meios e as condições para que essas interpretações aconteçam.
Macedo (2010) enfatiza ainda que, nesse tipo de pesquisa, os atores socais
instituintes da ordem sociocultural a ser compreendida não falam pela boca da
teoria ou de uma estrutura fatalística; suas ações e suas racionalidades são per-
cebidas como estruturantes, em meio às estruturas socioculturais que, em muitos
momentos, recursivamente, os configuram. Desse modo, o pesquisador é ativo em
todo o processo, sendo objeto e sujeito da pesquisa. Assim, ao mesmo tempo, reflete
a própria prática e aprende, conforme desenvolve a pesquisa. Ou seja, aprende
enquanto pesquisa e pesquisa enquanto aprende. Esse movimento é muito impor-
tante para que o professor tenha contato com outras práticas e experiências, as
quais podem servir de ensinamentos para que, posteriormente, ele venha a atuar
de maneira a seguir, ou não, os exemplos vivenciados. Trata-se de um momento de
aprendizagem e reflexão de suas ações e práticas (MACEDO, 2010).
Portanto, pretendeu-se trilhar uma pesquisa embasada nos fundamentos de
“um rigor outro” que consiste em problematizar, questionando as formas de pensa-
mentos constituídas e normatizadas. Para Macedo (2009), fazer pesquisa com “um
rigor outro” coloca o pesquisador na formação experienciada, numa mútua relação
entre os saberes científicos, as práticas e seus entretecimentos ou hibridismo, me-
diante o cultivo de uma epistemologia plural, crítica e emancipacionista, dando
ênfase aos saberes outros: os saberes não acadêmicos, as experiências e o cotidia-
no. Outrossim, essa forma de fazer pesquisa permite a construção de dispositivo
ou dispositivos para serem desenvolvidos junto aos sujeitos da investigação. Por
dispositivo, Ardoino (2003, p. 80) define “uma organização de meios materiais e/ou
intelectuais, fazendo parte de uma estratégia de conhecimento de um objeto”. Ou
seja, entendemos que dispositivo é tudo aquilo que produzimos, criamos ou cocria-
mos para melhor conhecer e interagir com os sujeitos e objetos da pesquisa. Sendo
assim, a experiência dos atores sociais possui legitimidade própria, pois as pessoas
produzem suas ordens sociais, de onde brotam saberes e experiências. Desse modo,
é no campo, e a partir dele, que toda a pesquisa toma forma, tudo é desenvolvido
pensando na realidade posta e não na já instituída previamente, pois parte do
contexto real e das suas necessidades.
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Para Macedo (2010), o método requer grande dispêndio de tempo para o pes-
quisador aproximar-se daqueles para os quais ele pode não ser familiar. Porém,
nesse tipo de pesquisa, é o objeto de estudo que vai fornecer uma decisão quanto
à quantidade de tempo e à dimensão do período de observação, além do grau de
envolvimento necessário. Partindo desse pressuposto, portanto, urge a necessidade
de uma formação adequada e continuada para que os professores possam adquirir
competências que lhes permitam fazer uso das TDIC em sala de aula, numa pers-
pectiva de construção do conhecimento. A partir dessa constatação, propôs-se um
dispositivo formativo, na perspectiva de oficina, intitulado “Possibilidades do uso
da rede social YouTube na educação”, a fim de conhecer como os professores fazem
uso do YouTube, bem como lhes apresentar outras potencialidades do site de rede
social, como, por exemplo, a criação de um canal próprio para armazenar os vídeos
favoritos, bem como a criação, cocriação e socialização de suas produções.
O olhar cuidadoso é uma das principais características desse tipo de pesqui-
sa, pois, conforme afirma Macedo (2010), é necessário um esforço incessante para
analisar a realidade como está sendo apresentada, com todas as impurezas, de
modo que a pesquisa não consista em apenas observar e registrar fatos. Sobre
esse assunto, Santos (2014) descreve que a pesquisa-formação na contemporanei-
dade se atenta para a relação entre história de vida, formação inicial e continuada,
tal como a aprendizagem construída ao longo da carreira e do exercício da sua
profissão, onde o docente interage e aprende com estudantes e pares. Contudo,
cabe ressaltar que não foi sempre assim, pois até metade do século XX a ênfase
era para a formação inicial direcionada apenas para a aprendizagem. Portanto,
conforme afirma Santos (2011), para que a diversidade de linguagens, produções
e experiências de vida sejam contempladas nos e pelos espaços de aprendizagem,
os saberes precisam ganhar visibilidade e mobilidade coletiva, ou seja, os sujeitos
do conhecimento precisam reconhecer a sua alteridade, sentindo-se envolvidos em
uma produção coletiva, dinâmica e interativa, rompendo com o espaço tempo. Eles
precisam entender e conhecer a importância de suas produções.
Desse modo, precisa-se dar ênfase à formação atual, pensando nas possibi-
lidades e transformações sociais, não somente ao que está posto. Ribeiro (2015)
afirma que pensar a formação docente no contexto atual nos remete, de alguma
forma, às grandes transformações sociais em todos os setores da contemporaneida-
de, em função das práticas interativas e da consequente cultura participativa que
se prolifera em função das tecnologias digitais e do advento da hipermobilidade
e da ubiquidade possibilitadas pelos dispositivos móveis. Tudo isso foi levado em
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consideração ao se construir a proposta da oficina “Possibilidades de uso da rede
social YouTube na educação” como dispositivo formativo e de pesquisa.
Materiais e métodos
Na contemporaneidade, ao se estar imerso em uma nova cultura, ou melhor,
na cibercultura, entende-se que as pessoas estão cada vez mais conectadas em rede
e gastam parte do seu tempo em ambientes plurais e virtuais. Assim, uma vez que
as pessoas estão cotidianamente inseridas nesses ambientes e, em contato con-
stante com todo tipo de conteúdo de que precisam para as mais variadas práticas
sociais, questiona-se como os professores podem utilizar-se de tais dispositivos de
maneira a contribuir para o desenvolvimento de suas aulas e, consequentemente,
para uma melhor aprendizagem de seus alunos.
Partindo desse questionamento e entendendo que o site de rede social You-
Tube dispõe de possibilidades para criar e cocriar materiais audiovisuais por meio
de adequação, reaproveitamento, edição e reedição, propiciando a apresentação de
uma série de conteúdos de qualidade, essa investigação buscou compreender e
apresentar as possibilidades do site de rede social Youtube para a educação básica.
Desta forma, têm-se como questões norteadoras da pesquisa como os professores
fazem uso da rede social YouTube e quais suas possibilidades de utilização, de modo
a potencializar práticas autorais a partir do que a própria rede social disponibiliza.
Para o levantamento das informações iniciais, as quais seriam fundamentais
para o desenvolvimento desta proposta, fora feita uma conversa no campo da pes-
quisa com os possíveis participantes e, após este diálogo, os mesmos responde-
ram a um formulário on-line para composição de outros dados importantes para
o processo investigativo. Essa conversa ocorreu de forma individual no próprio
ambiente escolar, durante os intervalos e horários vagos, tanto na sala dos profes-
sores, quanto nos corredores e espaços coletivos. Durante as observações na escola,
desenvolveu-se maior aproximação com os professores no intuito de conhecê-los
e promover maior aceitação da pesquisadora no cotidiano escolar. Nesse sentido,
durante os intervalos entre as aulas, era comum conversar sobre variados assuntos
educativos, tais como: cumprimento de calendário escolar, planejamento das aulas,
semana de avaliação, conteúdos, dificuldades enfrentadas pelos docentes, recursos
tecnológicos oferecidos pela escola e suas funcionalidades, entre outros.
Assim, foi necessário imergir no campo de pesquisa durante dias e horas, pois
enquanto estavam na escola, os professores tinham horários a serem cumpridos e,
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por isso, nem sempre podiam dar total atenção ou dispor de horas para conversar
sobre a pesquisa. Essa imersão no próprio campo da pesquisa, especificamente no
momento dos intervalos na sala dos professores, fora de fundamental importân-
cia para ganhar a confiança dos professores, pois, estando entre eles, foi possível
perceber que pareciam mais à vontade para demonstrar seus sentimentos sobre
a escola, a educação e sobre os recursos que já faziam uso nas suas práticas de
sala de aula. Outrossim, ressalta-se que esse contato inicial da pesquisa, além de
promover a aproximação entre pesquisador e participantes, foi pensado com dois
intuitos: apresentar a pesquisa, seus objetivos e sua relevância; e identificar os
usos que os próprios professores já faziam da rede social YouTube.
Durante este período de contato direto no locus escolhido para a pesquisa,
o Colégio Estadual Professor Nestor Carvalho Lima, localizado na cidade de Ita-
baiana, SE, os professores demonstraram interesse em participar e colaborar, no
entanto faltava a disponibilidade de tempo para fazer parte da Oficina. Essa im-
possibilidade poderia comprometer o desenvolvimento da proposta, contudo, uma
das professoras demonstrou maior disponibilidade para participar e informou que,
por estar atuando como supervisora do Programa Institucional de Bolsa de Inicia-
ção à Docência (Pibid) do curso de Pedagogia da Universidade Federal de Sergipe,
Campus Prof. Alberto de Carvalho, em Itabaiana, SE, poderia participar da forma-
ção e, inclusive, convidaria os demais professores. Assim, por intermédio dessa pro-
fessora participante, foram convidados os professores do Pibid para participarem
da oficina sobre YouTube na educação, delineando novos espaços e participantes.
Desse modo, consolidaram-se como sujeitos da pesquisa duas professoras do Colé-
gio Estadual Nestor Carvalho Lima, no município de Itabaiana, e três professores
das escolas municipais da mesma cidade, os quais faziam parte do Pibid no período
de 2014 a 2018.
Por se tratar de uma pesquisa que tem como foco a formação docente, decidiu-
-se então utilizar como metodologia para sua realização a pesquisa-formação, pois
possibilita contemplar e atender às perguntas da pesquisa e aos objetivos elenca-
dos. Essa escolha se dá por esta metodologia levar em consideração o sujeito e a
sua formação, seja ela inicial ou continuada, considerando o seu cotidiano e a sua
prática, as vivências e experiências que contribuem para sua própria formação.
Para tal, fora desenvolvido um dispositivo autoral, uma oficina de quarenta ho-
ras, realizada no laboratório de informática da Universidade Federal de Sergipe,
Campus Alberto Carvalho, onde foi possível compartilhar conhecimentos sobre os
usos já presentes nas práticas dos professores, bem como possibilidades outras
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de utilização do site de rede social YouTube na educação, como, por exemplo, o
desenvolvimento de um canal no próprio YouTube, em que o professor passaria a
produzir e postar os seus próprios vídeos, podendo compartilhar esses materiais
com os alunos e demais professores.
Análises e resultados
Esta pesquisa tratou-se de uma imersão no contexto das práticas escolares,
tentando identificar o uso da rede social YouTube pelos professores, bem como dis-
solver com os próprios professores outras possibilidades de uso pedagógico. Du-
rante o processo, foi necessário inserir-se no ambiente da escola com olhar plural
acerca do processo formativo, sendo sujeito e autor praticante da pesquisa, inserin-
do-se nas reflexões.
Em meio às primeiras observações no campo, identificou-se que, das cinco
professoras, duas já utilizavam o site de rede social YouTube para fazer suas pes-
quisas em casa, baixar o arquivo e apresentar o conteúdo via televisão na sala
de aula. A escola dispunha de internet, entretanto, nem todos os dias funcionava
adequadamente. Assim, optava-se por baixar em casa no pendrive para expor o
vídeo no televisor da escola, evitando, assim, contratempos. Os professores relata-
ram também que, apesar de possuir laboratório de informática e rede Wi-Fi, essa
rede não possuía velocidade adequada para atender a toda a comunidade escolar.
Outro aspecto relacionado às tecnologias era o fato de a escola não possuir funcio-
nários para solucionar os problemas existentes. Desta forma, quando havia algum
problema nos equipamentos, era necessário solicitar agendamento com o técnico
à Diretoria Regional de Educação do município (DRE-03), um processo demorado,
pois, segundo a professora da escola, só havia um técnico para atender todas as
escolas da DRE-03, a qual administra 15 escolas.
Após o levantamento da realidade escolar, ficou constatado que a escola não
possuía as condições de infraestrutura tecnológica adequadas para a realização do
curso para formação de professores. Por esta razão o curso foi realizado nas depen-
dências da Universidade Federal de Sergipe – Campus Professor Alberto Carvalho.
Como afirmado por Macedo (2010), a pesquisa se desenvolve dentro do campo
e não fora, pois, para compreender as perspectivas dos entrevistados, é necessário
um mergulho com todos os sentidos para perceber detalhes sutis aparentemente
imperceptíveis. Alguns professores ao iniciar o curso apontaram que já conheciam
o site de rede social YouTube e que consideravam os muitos vídeos interessantes,
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com assuntos variados e aos quais costumavam utilizar, mas não em sala de aula.
A professora B afirmou que:
Inúmeras vezes uso o YouTube para pesquisar conteúdos escolares, receitas de bolo e de
sobremesas, como fazer tarefas e usar determinados equipamentos, aqui também buscamos
receitas caseiras para qualquer problema de saúde, é fantástico a utilidade e variedade de
coisas que encontramos aqui (PROFESSORA B).
Nesse processo de diálogo, os docentes também ressaltaram a necessidade
de saber escolher o vídeo, bem como a necessidade de orientar os alunos a fazer
escolhas quanto ao uso desses em suas pesquisas diárias. Além disso, no que diz
respeito à importância do uso das TDIC na educação, a professora B entende que
o uso delas é de fundamental importância para incentivar a participação dos alu-
nos e inseri-los no contexto de construção da aprendizagem. Ressalta ainda que
esses alunos já estão inseridos no contexto cibercultural e são imersivos no que diz
respeito às redes sociais. Para ela, é perceptível que eles usam o tempo todo: “Se
pudéssemos desenvolver projetos escolares em que articulássemos os conteúdos
pedagógicos às TDIC, sei que teríamos bons resultados e aceitação da maioria dos
alunos”, afirma.
Questionamos sobre o motivo que impede os professores e a escola de articula-
rem projetos pedagógicos associados ao uso das TDIC, obteve-se o seguinte relato
da professora C:
Seria necessário que os professores tivessem uma formação para que eles pudessem melhor
desenvolver ideias e executá-las, a fim de trazer melhores resultados, muitas vezes a falta de
familiaridade sobre o uso e o desconhecimento das possibilidades de uso para a educação
inibe a aplicabilidade em sala de aula, acredito que o professor não se sente entusiasmado em
utilizar algo que ele não tenha segurança (PROFESSORA C).
Durante o período de observação, ficou evidente que os professores participa-
vam de redes sociais de forma imersiva no seu cotidiano social; entretanto, não pos-
suíam conhecimento mais aprofundado sobre suas possibilidades para a educação.
A professora C afirma que:
O uso da rede social, das TDIC, faz parte da nossa cultura e muito mais da cultura dos nossos
alunos. Eles gastam parte do seu tempo com elas, assim como nós. Se desenvolvêssemos
algo para atraí-los, tornando-os ativos em todo processo, sem dúvida, teríamos bastante acei-
tação.
Nesse momento, detectou-se que os professores da escola utilizavam o site
do YouTube para atualizar seu conhecimento acerca dos conteúdos a serem mi-
nistrados em suas aulas, ou seja, eles o utilizavam como ferramenta de pesquisa.
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Além do site YouTube, também faziam uso de outros recursos como livros didáticos,
revistas, entrevistas e jornais para ampliar seu repertório. Com a aplicação do
formulário on-line, a fim de obter novas informações sobre o uso que estes faziam
do YouTube em suas práticas, os cinco professores reafirmaram utilizar a rede so-
cial para pesquisa, muitas vezes levando os vídeos para aplicação em suas aulas,
considerando-os como um importante e atrativo recurso pedagógico e promotor de
maior possibilidade de fixação dos conteúdos.
Em contrapartida, essa realidade das práticas educativas sinaliza a presença
recorrente de um uso passivo, já que o que mais há é a pesquisa sobre determina-
dos conteúdos, os quais serão repassados transmissivamente aos alunos. Nesse
sentido, embora considerem importante tanto para pesquisa pessoal quanto para
suas aulas, com possibilidades de colaborar na aprendizagem, ampliar e fixar
conhecimentos por meio dos conteúdos variados e disponíveis, há uma limitação
significativa neste uso. Nas relações de sala de aula com os alunos, por exemplo,
professores reconhecem que os alunos são conquistados por aulas e atividades di-
ferenciadas, inclusive com uso de vídeo e celulares, entretanto, poucos professores
se utilizavam dos recursos disponíveis.
Nessa pesquisa, portanto, especificamente por meio do formulário on-line
aplicado aos professores envolvidos, percebeu-se que as práticas realizadas pelos
professores, diante das possibilidades oferecidas pelo YouTube, ainda eram muito
restritas, não se apropriando das suas potencialidades, principalmente como for-
ma de apresentar novas linguagens, autoria própria e formatos diferenciados. Na
prática, restringe-se à busca pela fixação de conteúdos e/ou a ampliação do conhe-
cimento dos próprios professores para, ao final, passar para seus alunos.
Partindo desta análise, percebe-se que os professores desconhecem outras
possibilidades oferecidas pela rede social YouTube e, inclusive, não há uma apro-
priação ampliada. Cada professor se utiliza de uma forma, enquanto alguns já con-
seguem baixar para, posteriormente utilizar, outros nem essa habilidade mínima
possuíam. Esses dados foram importantes para repensar as atividades de pesquisa
a partir das informações obtidas pelos instrumentos de coleta, os quais deixam cla-
ro que os professores desconhecem que no site de rede social YouTube eles também
podem produzir, compartilhar e ser autores, não se identificando como a(u)tores,
os quais, de acordo com Lucena e Pretto (2009), são pessoas que, ao mesmo tempo,
produzem conteúdos e também atuam em redes.
Essa realidade se dá principalmente pela falta de formação continuada dos
professores da educação básica que promova habilidades docentes diante dos dis-
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positivos tecnológicos digitais. Diante desse fato, comprovou-se a necessidade de
desenvolver uma oficina para mostrar aos professores possibilidades outras, den-
tre elas a de autoria de vídeos do YouTube e de postagens e reflexões por meio dos
comentários que podiam ser feitos pelos alunos. Essa apropriação fora buscada a
partir da oficina “Possibilidades do site de rede social YouTube na Educação”, com
carga horária de 40 horas, cuja proposta buscava, dentre outras possibilidades,
incentivar os professores a se verem como autores, criando, cocriando e publican-
do seus conteúdos na rede. Esse processo formativo não seria responsável apenas
pela produção dos dados da investigação, mas pela constituição de um espaço de
formação em que os docentes desenvolvem competências necessárias e adequadas
para utilizar as tecnologias digitais em sua prática pedagógica. Assim, para Santos
(2014), a prática de formação é um lugar legítimo de formação e de aprendizagem
significativa, não só referente ao pesquisador, como também a todos os participan-
tes envolvidos nesse processo.
Ao perceber que o YouTube não era uma novidade para os professores, consta-
tou-se a hipótese inicial de que a rede social que possibilita a criação e o comparti-
lhamento de materiais audiovisuais já faziam parte do cotidiano dos professores,
embora a maioria apenas consumia os materiais, o que demarca o desconhecimen-
to das possibilidades plurais do site, já que não se viam como autores e coautores,
apenas apreciadores de vídeos. Provavelmente, o uso passivo desses recursos au-
diovisuais na era digital se dá pela dificuldade de manusear o próprio computador,
pois não sabiam postar, compartilhar, criar e alterar um perfil ou editar um vídeo
produzido. Esse não domínio gera uma resistência, contribuindo cada vez mais
para a passividade diante dos recursos tecnológicos.
Partindo dessa premissa, é importante destacar que o desenvolvimento do
professor autor/criador e cocriador se constrói por meio de experiências no contexto
escolar, nos espaços de formação, nas suas decisões de escolhas ao fazer um plane-
jamento e definir tarefas e na sua prática diária. Isso se dá por meio de reflexão
dos seus saberes, sejam eles existentes ou construídos. Porém, se não há proces-
sos formativos contínuos não há como os docentes se apropriarem dos dispositivos
digitais que a cada dia se renovam e inovam suas possibilidades. Portanto, para
Veloso (2014), a criação autoral pode ser identificada nas salas de estudos, onde os
professores se debruçam para repensar e inovar a sua prática, como também nos
espaços coletivos, ambientes físicos ou virtuais. Ele também identifica, em sua tese
de doutorado, que durante o processo de autoria/criação os professores que usam
a internet e os sites de rede social já possuem ações planejadas e que, no decorrer
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da pesquisa, recebem ajustes e com isso cocriam e criam etnométodos e táticas
próprias, descobrem saídas e experimentam soluções. Eles fazem levantamento
prévio, estabelecem provocações aos alunos, seguem a programação dos conteúdos
e tentam atrelar o conteúdo à ação. Dessa forma, o processo de autoria/criação é
inacabado, imprevisível, mutável, pois podem emergir novas práticas que podem
potencializar outras criações. No entanto, em meio a essa perspectiva, percebe-se
que os professores apresentam bastante ansiedade, provocada pelo desejo de pro-
duzir e, ao mesmo tempo, por depararem-se com a não compreensão das possibili-
dades e as dificuldades no momento da produção. Um exemplo disso se reflete na
fala da professora B:
Acho as possibilidades de autoria interessantes, mas não tenho muita paciência de ficar ‘futu-
cando’, ainda mais quando estou pesquisando e a busca está muito lenta, eu saio e deixo lá,
minha filha é que faz algumas coisas para mim quando preciso.
Dos cinco professores participantes da pesquisa, quatro possuíam um nível
de conhecimento básico com relação às interfaces virtuais; eles sabiam pesquisar,
porém não sabiam de outras possibilidades para poder realizar as atividades pro-
postas na oficina. Uma das professoras dessa pesquisa, a professora A, é imersa
na cibercultura, habita as redes sociais. Ela possui blog, Facebook e canal no You-
Tube. Os demais possuíam canal, mas não eram imersos, habitavam raramente
esse espaço, não produziam, compartilhavam ou postavam e somente uma delas
costumava comentar as publicações.
Diante dessa realidade, é importante destacar que, além da importância e da
necessidade da formação continuada para aperfeiçoamento dos profissionais da
educação, devemos atentar para a questão da usabilidade e da interface huma-
no-computador, compreendendo os diferentes graus de dificuldade para pessoas
com mais ou menos habilidades e competências para o manuseio. Assim, devemos
atentar a todo o contexto referente às dificuldades apresentadas pelos professores
e compreender que existem algumas competências necessárias para uma utiliza-
ção efetiva e que a formação continuada pode ser muito útil para aperfeiçoar a
prática com o uso das tecnologias. Como ficou evidente, no percurso da pesquisa, os
professores reconhecem a importância das TDIC, mas se paralisam diante da pri-
meira dificuldade encontrada quando acessam ou precisam realizar algo na inter-
net, não insistindo, diante do primeiro problema que surge. Esse fato deixa clara a
necessidade de se garantir o empoderamento docente ao fazer uso dos dispositivos
tecnológicos contemporâneos, e isso só será possível com um percurso formativo
contínuo e permanente.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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A professora A já se apropriou disso. Produz vídeos ao fazer visitas a pontos
específicos da cidade, tais como a feira de Itabaiana, o museu, os bairros próximos
à escola, em visitas referentes ao projeto pedagógico “Cidade Espaço de Aprendiza-
gem”. Ela criou, cocriou e divulgou seu trabalho em outras redes, como Facebook
e seu próprio blog pessoal. Parte dos seus projetos escolares já eram postados em
seu blog. Assim, a professora produz vídeos e posta também em seu próprio canal
do YouTube, incorporando em seus vídeos várias linguagens, como sons, imagens,
escrita, hiperlinks, possibilitando o desenvolvimento de vídeos mais atrativos.
Algo também debatido pelos próprios professores participantes foi a importân-
cia de saber selecionar conteúdos no YouTube, uma vez que nele se encontram os
mais variados tipos de vídeos, do mais amador ao mais bem produzido. A sugestão
apresentada foi procurar vídeos de pessoas que já possuem uma carreira estabi-
lizada em ramos específicos, a exemplo os autores de livros que produzem suas
palestras e reproduzem explicações de suas obras já renomadas no mercado e que
possuem públicos específicos. A professora B ressalta que:
É preciso ter cuidados específicos com o conteúdo que foi selecionado para a sua pesquisa.
Ao fazer uma pesquisa sobre o tema Independência Norte Americana, me deparei com vários
vídeos e, ao visualizá-los, percebi que foram feitos por uma aluna do nono ano.
Não desmerecendo o conteúdo, mas a professora afirmou que esse vídeo, por
não ter sido produzido por uma pessoa licenciada na área ou especialista, pode pos-
suir informações desconexas. Além disso, as professoras destacaram a importância
de verificar os comentários dos vídeos postados, pois através deles é possível ava-
liar o conteúdo e iniciar novas discussões, uma vez que cada comentário postado
apresenta um perfil de discussão e viés variado de reflexão sobre aquele assunto,
em graus diversos de complexidade. Além dessas percepções significativas sobre o
YouTube, os professores também reconheceram a possibilidade de bloquear deter-
minados comentários indevidos e/ou excluí-los, ampliando as possibilidades de uso.
Outra possibilidade reconhecida no percurso formativo foi a reedição dos ví-
deos. Permite-se fazer adaptações, reduzir, retirar cenas específicas, ou ampliar,
incluindo outras, reeditando o conteúdo desejado como, por exemplo, adaptando
para a idade específica, o que se configura uma cocriação. O professor, ao fazer esse
processo, está fazendo uma nova produção com autoria própria e essa pode ser uma
boa possibilidade para quem trabalha com educação básica, que exige cuidado com
a faixa etária dos vídeos exibidos. Um exemplo de cocriação pode ser dado a partir
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do que fez a professora A, que desenvolveu vídeos incorporando conteúdos variados
e fazendo a reedição de conteúdo, adaptando para a idade específica. Dessa forma,
ela fez o diferencial em suas atividades e projetos, adaptando com criatividade.
Outrossim, após todo percurso de compreensão das práticas de criação, recria-
ção, cocriação, adentrou-se na possibilidade de postagem. Para isso, o professor
pôde selecionar o tipo da postagem que queria fazer, escolhendo entre compartilhar
de três formas: a) para o público, quando todos podem visualizar a postagem; b)
privado, quando apenas quem foi selecionado poderá visualizar; c) formato não
listado, no qual só é possível a visualização pelas pessoas que receberam seu link.
Nessa perspectiva, a professora C considerou o formato de publicação para o públi-
co o mais interessante: “Nesse tipo de postagem, todas as pessoas podem visuali-
zar, curtir, comentar e promover uma maior reflexão do conteúdo. Quanto maior o
número de visualizações, maior será a possibilidade de ampliar as discussões sobre
determinados conteúdos”. Ainda sobre a postagem, a professora A compartilha
uma forma de divulgar e expandir os conteúdos: “Uma maneira de fazer o seu canal
ter bastante visualizações é compartilhar o link da postagem em, no mínimo, três
outras redes sociais da internet para fazer circular e ganhar maior visibilidade,
curtidas e compartilhamento”. Ela já desenvolve esse recurso, ao postar o mesmo
conteúdo em seu Blog, no Facebook e agora no YouTube, amplia o alcance das suas
produções e oportuniza a utilização por outros sujeitos.
Destarte, a realização da oficina possibilitou discussões teóricas sobre a pes-
quisa-formação e a educação, apresentando as possibilidades de uso do site de rede
social YouTube e também o compartilhamento de experiências sobre a efetivação
da mesma no espaço escolar. Momentos como esse são de fundamental importância
para os professores da rede pública de ensino, pois juntos há uma efetiva troca de
experiências e socialização das várias possibilidades de uso a partir de experiên-
cias concretas, criando redes de aprendizagem coletiva.
Discussões e conclusões
Por meio do ciberespaço, podemos realizar vários procedimentos sem a ne-
cessidade de deslocamentos físicos, tais como o pagamento de contas, a emissão
de extratos e declarações, compras em lojas de qualquer lugar do mundo, entre
outras atividades. Diante da amplitude destas formas de cibercultura, não estar
inserido nessa realidade é simplesmente fazer parte de um mundo desconectado e
sem redes on-line.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Neste contexto, os espaços educativos, também envolvidos com a cibercultu-
ra, passam a incorporar novas práticas, não apenas como fator motivacional, mas
especialmente para apropriação dos professores, os quais já fazem uso tanto nas
suas relações sociais quanto educacionais. Nessa perspectiva, tem-se o site de rede
social YouTube, a partir do qual há a possibilidade de criação e cocriação, fato esse
que contribui para o surgimento de autores de conhecimento, ou seja, pessoas que
produzem com o propósito de construir novas aprendizagens e não apenas absorver
informações, constituindo-se uma relação ativa dos sujeitos envolvidos em proces-
sos de produção, recriação e compartilhamento por meio das comunidades virtuais.
Nessa perspectiva, as possibilidades oferecidas com as tecnologias digitais
são compreendidas como espaços multifacetados, com várias possibilidades de co-
municação, interação, troca, produção e aprendizagem por meio de um universo
de possibilidades que podem ser utilizadas a qualquer hora e em qualquer lugar,
bastando apenas estar conectado (SANTAELLA, 2013). Sendo assim, no percurso
da pesquisa, foram apresentadas várias possibilidades oferecidas pelo site de rede
social YouTube, cabe então questionar: Qual é a maior dificuldade encontrada pelos
professores? Por que eles (a maioria) não usam possibilidades múltiplas, limitan-
do-se apenas ao uso passivo de algo pronto?
Para responder a estes questionamentos, não se pode pensar em inserir os
novos recursos da comunicação na educação sem que seja garantida a qualidade
do processo. Não se pode ter a ideia pura e simples de que esta ação promove uma
nova educação e uma nova escola para o presente e futuro. Partindo dessa premis-
sa, precisa-se, de fato, de uma integração mais efetiva entre a educação e a comu-
nicação, o que só se dará se estes novos meios estiverem presentes nas práticas
educacionais. A relevância de se desenvolver o ensino na rede social da internet se
dá, principalmente, por sua capacidade de romper barreiras, reafirmando a apren-
dizagem que pode ocorrer em lugar e em espaços variados e em todo tempo, não
exclusivamente em sala de aula. No entanto, para que isso seja possível, mais uma
vez enfatiza-se a necessidade de uma formação continuada para os professores.
O professor do mundo contemporâneo deve assumir o ensino com o papel de
mediador, adotando práticas interdisciplinares, conhecendo estratégias que o le-
vam a ensinar e a aprender, promovendo uma compreensão crítica dos conteúdos
com capacidade comunicativa para reconhecer o impacto das novas tecnologias de
comunicação e informação. Para que isso seja possível, urge a necessidade de uma
formação adequada e de políticas públicas que garantam a participação dos profes-
sores e o desenvolvimento de competências necessárias.
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Percebe-se, portanto, nesta pesquisa, a necessidade de mudanças profundas
nas estruturas das bases educacionais, de modo a ampliar as possibilidades de ex-
pressão, em que cada um pode se colocar de acordo com sua cultura e seu contexto,
tendo o YouTube como importante possibilidade da expressão livre de modelo ou
padrão pré-estabelecido. Nesse sentido, o professor poderá ser coordenador, orien-
tador, aquele que vai oferecer estímulos e objetos a serem experimentados, propor-
cionando a aprendizagem.
Durante esta pesquisa, portanto, foi identificado que muitos professores não
conheciam possibilidades diversificadas oferecidas pelo YouTube, já que a maioria
se limitava a assistir aos vídeos on-line, mas alguns não sabiam como, por exemplo,
baixar, copiar os vídeos e levá-los para a sala de aula. Além dessa possibilidade,
outras como criar um canal, criar lista dos vídeos favoritos e organizá-los por tema
na sua conta YouTube, também eram desconhecidas pelos professores. Diante dis-
so, a oficina “Possibilidades do site de rede social YouTube na Educação”, buscou
utilizar-se de conteúdos teóricos e práticos para auxiliá-los na ampliação e na me-
lhor utilização dos recursos disponíveis no site de rede social YouTube em suas
atividades pedagógicas.
Ao descrever e refletir sobre o percurso da pesquisa, nota-se que apenas uma
das professoras participantes da oficina conseguiu utilizar o YouTube para além
de pesquisar e obter informações. Durante a oficina realizada, ficou evidenciado
que a referida professora possui imersão na cibercultura, já sendo autora de blog
e de perfis em redes sociais da internet. Por outro lado, mesmo tendo o domínio
do YouTube, a oficina contribuiu para ampliação de seus conhecimentos, possibili-
tando que ela produzisse e compartilhasse novos vídeos em seu canal no YouTube
e, inclusive, colaborasse para que outros professores se sentissem mais à vontade
para utilização dessa rede social, numa relação de formar-se e formar ao outro.
Sabe-se, porém, que a realização de oficinas pontuais não é suficiente para
preparar os professores que não possuem imersão nas culturas digitais para traba-
lhar com as TDIC em sala de aula. Para uma ampla e verdadeira inserção das tec-
nologias na educação, é imprescindível a formação continuada, conforme ressaltou-
-se anteriormente, uma formação que possa oportunizar ao professor a aquisição
de letramento digital. Essa forma de letramento é muito mais do que simplesmente
saber usar as funções básicas das tecnologias digitais ou acessar a internet. Estar
letrado digitalmente inclui compreender as tecnologias e suas interfaces digitais
não como consumidores de informação, mas essencialmente como produtores de
saberes, culturas e conhecimentos compartilhados na/em rede. O professor com
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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letramento digital entende que interagir na/em rede potencializa a troca de infor-
mações e a construção de conhecimentos coletivos e colaborativos.
Diante das constatações desta pesquisa, acredita-se que, para utilizarmos as
possibilidades do YouTube e demais interfaces digitais na educação, é importante
a garantia de professores fortalecidos e isso significa ter remuneração adequa-
da que lhe possibilite realizar formação continuada sem sacrificar seu tempo de
trabalho para seu aperfeiçoamento profissional. Isso pôde ser constatado quando
muitos professores não puderam participar da oficina porque trabalham 60 horas
semanais para conseguirem remuneração mais condizente com suas necessidades.
Além disso, é necessário ter escolas fortalecidas com infraestrutura adequada não
apenas em termos de materiais, de espaços físicos, tecnologias digitais e acesso
à internet, como também no que se refere ao suporte tecnológico e ao corpo ad-
ministrativo capaz de entender a necessidade de uma gestão que realmente se
preocupe com todos os aspectos da escola, buscando manter as tecnologias sempre
funcionando em condições adequadas e acessíveis ao professor da forma menos
burocrática possível.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Família e propaganda – imagem restaurada: um exercício de leitura de imagens
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Família e propaganda – imagem restaurada: um exercício de leitura de imagens
Family and advertising – restaured image: an exercise of image reading
Familia y propaganda – imagen restaurada: un ejercicio de lectura de imágenes
Ireno Antônio Berticelli*
Resumo
Este artigo é uma análise cultural da família, assim como ela é vista numa/pela propaganda de um modelo de
automóvel. Insere-se na proposta dos Estudos Culturais (ECs), neste caso, com ns educativo-pedagógicos de
leitura de imagens. O método de análise é predominantemente qualitativo, no sentido de que a verdade bus-
cada se insere essencialmente no campo da interpretação e do ensaio crítico: prática corrente de método, nos
ECs. Dentre as metodologias mais correntes nos ECs, escolhi a que Barker (2008) caracteriza como abordagem
textual. A mesma autoridade deixa claro que a perspectiva teórica da semiótica ocorre normalmente em autores
dos ECs, de modo que eu mesmo, neste estudo, faço incursões semióticas. O texto-imagem encerra ideologias
e mitos – mito proposto por uma propaganda de fundo ideológico. A imagem se constitui num texto revelador
de intenções/mensagens cuja signicação é por ela mediada de modo complexo, numa dialética de mostrar e
esconder, de dizer e silenciar, onde o poder se exerce em nome de uma vontade que se materializa na linguagem
textual: uma fotograa. Trata-se do exercício da leitura de um texto não convencional, cuja presença é uma das
características marcantes de nosso tempo: a imagem. Nela, lemos sobre um padrão cultural de família através de
um modelo de automóvel, em que busco as forças de persuasão que a imagem exerce, na produção da subjeti-
vidade de uma família “restaurada”.
Palavras-chave: leitura de imagens; leitura; imagem como texto.
Abstract
This article is a cultural analysis of the family as it is seen in an/through an advertising of a car model. It is inserted
in the proposal of Cultural Studies (CS), in this case, for educational-pedagogical purposes of image lecture. The
method of analysis is prevailingly qualitative, in the sense that the sought truth is essentially inserted in the eld
of interpretation and of the critic essay: a current practice of method, in the CS. Among the methods most fre-
quent in the CS, I have chosen the one that Backer (2008) characterizes as textual approach. The same authority
makes clear that the theoretical perspective or semiotics occurs normally in authors of CSs, so that myself, in this
study, make semiotic inroads The image-text, in this case, contains ideologies and myths – the proposed myth
by an advertisement ideologically based. The image is a discloser text of intentions/messages whose signica-
tion is mediated by it, in a complex way through a dialectical of to show and to hide, of to say and to mute, where
* Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestre em Educação: Ensino Superior
pela Universidade Regional de Blumenau (Furb). Docente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu (Mestrado em
Educação) e no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciências da Saúde (Doutorado em Ciências da Saúde) da
Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó). Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3498-9999. E-mail:
ibertice@unochapeco.edu.br
Recebido em: 12/05/2019 – Aprovado em: 15/04/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i1.9437
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the power is exerted in the name of a will that is materialized in textual language: a photography. This study is an
exercise of lecture of a not conventional text whose presence is one of the most remarkable characteristics of our
time: the image. In it we read about a family cultural pattern through a car model, in which I search for the forces
of persuasion that the image exercises, in the production of the subjectivity of a “restored” family.
Keywords: image reading; reading; image as text.
Resumen
Este artículo es un análisis cultural de la familia, así como ella es vista en/por una publicidad de un modelo de
coche. Se incluye en la propuesta de los Estudios Culturales (EC), en este caso, con nes educativo-pedagógico
de lectura de imágenes. El método de análisis es predominantemente qualitativo, em sentido de que la verdade
buscada se inserta essencialmente en el ámbito de la interpretación y el ensayo crítico: práctica común em los
EC. Entre las metodologías mas comunes em los EC, elegí aquella que Backer (2008) caracteriza como enfoque
textual. La misma autiridad deja claro que la perspectiva teórica de la semiótica ocorre normalmente em los au-
tores de los ECs, de modo queyo mismo, em este estudio, hasgo incursiones semióticas. El texto-imagen, em este
caso, contiene ideologias y mitos – el mito propuesto por uma publicidad ideológica. El método de análisis es
predominantemente qualitativo, em sentido de que la verdade buscada se inserta essencialmente en el ámbito
de la interpretación y el ensayo crítico: práctica común em los EC. Entre las metodologías mas comunes em los
EC, elegí aquella que Backer (2008) caracteriza como enfoque textual. El texto-imagen, em este caso, contiene
ideologías y mitos – el mito propuesto por uma publicidad ideológica. La imagen se constituye en un texto re-
velador de intenciones/mensajes cuyo signicado es por ella mediada de modo complejo, en una dialéctica de
mostrar y ocultar, de decir y silenciar, adónde el poder se ejerce en nombre de una voluntad que se materializaa
en el lenguaje textual: aquí, una fotografía. Este estudio es un ejercicio de lectura de un texto no convencional
cuya presencia es una de las características de nuestro tiempo: la imagen. En ella leemos a respecto de un están-
dar cultural de familia, a través de un modelo de coche em la que busco las fuerzas de persuasión que la imagen
exerce em la productioón de la subjectividad de uma familia “restaurada.
Palabras clave: lectura de imágenes; lectura; imagen como texto.
Introdução
Passados mais de 22 anos da publicação do número da revista Quatro Rodas,
da qual extraí uma imagem para realizar, em torno e a respeito dela, um estudo
cultural, há de convir que as condições sociais e conceptuais de “família” sofreram
grandes transformações, principalmente com a disseminação generalizada dos
meios eletrônicos de informação como a internet e os artefatos como os computa-
dores, os celulares, os tablets e outros gadjets semelhantes. Mesmo a TV digital
trouxe profundas modificações ao acesso de informação. Com isto, o processo de
homogeneização cultural, em alguns aspectos, se tornou uma realidade corrente.
Mesmo assim, mutatis mutandis, a imagem que escolhi para análise não perdeu
seu vigor informativo/deformativo/reformativo/performativo.
Na intencionalidade deste estudo, a metodologia lhe é constitutiva, ou seja, leva
diretamente à compreensão das significações do signo, neste caso, uma fotografia,
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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com seus elementos que a compõem. Os Estudos Culturais (ECs), havendo mesmo
muitos “caminhos investigativos” (não raro até conflitantes) propostos pelos múlti-
plos autores que neles operam, a meu alvitre, mantém algumas características que
são constantes. Assim, admitem a complexidade dos fenômenos/artefatos que anali-
sam. Propõem-se a produzir conhecimentos com relevância social (PINA, 2003). Por
outro lado, a pretensão de um estudo cultural nunca opera como se o conhecimento
fosse neutro. É sempre um posicionamento político e ideológico. A ideologia, diferen-
temente do conceito marxista, é parte constritiva de todo discurso. Não é oculta em
intenções escusas, mas “visível”, como parte mesmo que caracteriza qualquer texto/
discurso. É desta maneira que a ideologia é entendida por mim, neste texto. Barker
(2008), importante nome, neste campo, confirma esta posição. Tal como em Stuart
Hall (1972), a perspectiva que orienta os ECs é a articulação entre as preocupações
teóricas com as inquietações concretas. E a questão da ideologia, ganha intensidade,
sob a compreensão aqui defendida, quando os autores dos ECs começaram a dar sus-
tentação argumentativa às suas produções com Michel Foucault. Assim, este estudo
busca a articulação entre os valores meramente capitalistas com os valores sociais/
familiares (as posições hierárquicas includentes e excludentes ocupadas pelos perso-
nagens da propaganda em análise). Na trama do pensamento deste artigo, pode-se
identificar rastros de política cultural, mais uma característica teórico-metodológica
dos ECs. Ou seja, a ordem em que se distribui o poder através do artefato (o automó-
vel) e os diversos personagens que completam o quadro analisado. São visíveis, nele,
o poder do mercado articulando-se com a cultura popular e a quase veneração dos
“carrões”, tão ligados ao conceito de status social.
O estudo tem por objetivos:
a) fazer um exercício de leitura de imagem, com fins pedagógico-educativos para
discentes e docentes;
b) analisar uma peça publicitária, decodificando seus componentes materiais e
imateriais (simbólicos), de sorte a propiciar a possibilidade de compreender pro-
cessos de produção de subjetividades, pela força ilocucionária da imagem-texto;
O significado de texto e leitura, na contemporaneidade, alcança uma amplitude
muito maior do que se supunha, a bem menos de um século atrás. Ou seja, o mundo
é texto que pode ser lido a partir de muitos horizontes de visão e de interpretação.
E nunca, como na contemporaneidade, a imagem ocupou tamanha significação,
tanto em tempo, quanto em espaço, na vida cotidiana de todas as pessoas, sob todas
as idades e condições socioeconômicas, políticas, geográficas. Na educação, a lei-
tura de imagens se tornou uma demanda emergente e aguda. Desde a mais tenra
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idade, as crianças manipulam milhões de imagens, em sempre maior profusão, com
sempre maior complexidade e apelo. E os adultos também estão neste mesmo jogo.
O mundo digital faz parte constitutiva das identidades contemporâneas. As novas
gerações já nem conseguem mais imaginar o mundo sem televisão, sem computa-
dores, sem iPhones, sem tablets e numerosos outros meios técnicos de comunicação
e entretenimento, de trabalho cotidiano/diuturno, em que o mundo se expõe em
profusão de cores e imagens que moldam as identidades contemporâneas. Tempo
e espaço se fundem no virtual imagético e a educação mesma é, com isto, ressig-
nificada. O tempo e o espaço do aprender foram inteiramente ressignificados pelo
acesso ao conhecimento, independentemente de lugar, de espaço físico, como há tão
pouco tempo fazia parte do cotidiano das pessoas. Examinem-se, por exemplo, os
materiais escolares, incluídos, nisto, os manuais de 1960 para trás para constatar
quão pouco havia neles de imagens. E se havia, eram, em geral, imagens por vezes
precárias e desprovidas de cor. Sendo imagens reais, sua profusão e difusão era
muitíssimo ou quase infinitamente limitada se compararmos os meios para tal com
os atuais meios eletrônicos que oferecem a virtualidade. O virtual, hoje, se confun-
de com o real (não é seu contrário, nem lhe é contraditório), com a diferença que
a multiplicação de imagens se faz à velocidade inimaginável daqueles tempos. A
preocupação de Walter Benjamin expressa em A obra de arte na era da reprodução
técnica (2013) ainda não subentendia, obviamente, o que acontece, hoje, com as
novas possibilidades de reprodução sempre mais perfeita. Vivemos o tempo em que
se nos impõe refletir sobre A imagem na era de sua reprodutibilidade eletrônica,
conforme tematizou, em sua dissertação de mestrado, Ruy Sardinha Lopes (1995,
p. 8), que inicia sua introdução dizendo: “A pletora de imagens constitui um dos
traços marcantes da cultura contemporânea. A se dar ouvidos à crítica da cultura,
podemos afirmar que a percepção contemporânea tem nas imagens seu elemento
fundante”.
Este estudo pretende ser um exercício de leitura de imagem, quando os educa-
dores necessitam familiarizar-se com este mundo novo das imagens em profusão, em
que a propaganda ocupa espaço significativo na vida de todos os cidadãos, de todas as
idades. A imagem adotada para o estudo foi escolhida propositadamente de um con-
texto histórico afastado do presente, para manter a necessária e desejável distância
de qualquer conotação de marketing, pois este não é, em absoluto, o objetivo do artigo.
A fotografia, que nunca é “[...] simplesmente uma visão capturada do outro,
mas antes um lugar dinâmico onde muitos olhares e pontos de vista se cruzam”
(LUTZ; COLLINS, 1994, p. 363), abre inúmeras possibilidades de manipular o
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“real” para torná-lo virtual, no sentido de ser possível adequar qualquer “realida-
de” a um quadro cultural típico. E a arte/ciência da propaganda/do marketing sabe
muito bem disto.
A produção publicitária se tornou um elemento de produção de identidades
que ocupa diuturnamente o imaginário social. A propaganda captura os desejos e
os sonhos dos sujeitos, obedecendo, inclusive, as diferenças de gênero e de idade
das pessoas. Faz uso de uma trama complexa de conhecimentos que vão da psico-
logia, à antropologia e à arte gráfica extremamente sofisticada, hoje, graças aos
meios digitais. A cada dia, o virtual e o real se aproximam mais e mais. Já vivi
a experiência de aguardar um pouco para entrar numa agência de automóveis,
pensando que o vendedor estivesse junto à entrada conversando com uma família
cliente. Ao invés dito, era uma propaganda da loja colada à parede envidraçada. A
produção publicitária consegue associar a preconizada excelência dos produtos à
excelência das pessoas que os consomem. O virtual “[...] tem somente uma pequena
afinidade o com o falso, o imaginário ou o ilusório” (LÉVY, 2011, p. 12). Assim, a
peça publicitária que ora analiso, excita vários sentimentos dos possíveis consu-
midores do modelo de automóvel proposto: a família ideal/idealizada, o vestuário
ideal/idealizado, a distribuição ideal/idealizada do poder, no seio de uma “família
ideal”, no mínimo tão ideal/idealizada como o próprio automóvel proposto oferecido
à venda. Para compreender a mensagem da peça publicitária como um todo, há
que atentar para cada elemento que a compõe: elementos materiais e imateriais.
O apelo publicitário se distribui sobre todos esses elementos constitutivos da peça
que produz, quando ela é resultado de efetivo conhecimento do assunto. Assim, a
imagem publicitária objeto desta análise há que ser desdobrada em seus vários
elementos materiais e imateriais constitutivos, sem perder de vista o conjunto que
produz o restauro da família contemporânea.
Através da análise de uma propaganda fotográfica que começa na capa da
revista Quatro Rodas, n. 38 (1998) e se estende por algumas páginas mais, tentarei
ver a metamorfose da família urbana, mas pelo avesso, ou seja, não o processo de
esvaecimento e desintegração por que passa. Pelo contrário: perquiro a imagem
restaurada da família. Restaurada pela propaganda de automóveis (neste caso,
alguns modelos da Fiat). Ainda que a revista faça a avaliação dos vários modelos
de automóveis, mantém-se (financeiramente) da propaganda desses mesmos au-
tomóveis. Bem por isto pode, a um momento, estampar uma imagem fotográfica
em que as legendas dizem tratar-se do melhor automóvel e, em outro momento,
na avaliação, poderá estar apontando falhas e defeitos quanto a espaço, equipa-
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mentos, desempenho, consumo, design ou outras questões mais. A mim interessa,
neste momento, o meu tema ou, seja, buscar gazes, olhares lançados pelo visor das
câmeras fotográficas sobre a família, em função de propaganda de automóveis da
Fiat que, segundo a hipótese que adotei, fazem uma restauração de sua imagem.
Tentarei verificar quais são os traços restaurados e quais são os traços mantidos,
de acordo com a tradição da família tipicamente burguesa, a família-padrão. Aliás,
família e fotografia são coisas que andam quase sempre juntas: é costume, sobre-
tudo na cultura ocidental, fotografar constante e persistentemente a família. A
família é produzida pela imagem fotográfica: fotos de casamento, de batizado, de
festas, de aniversários (com ênfase no primeiro), enfim, até praticamente a morte,
a fotografia acompanha a família. Incluída nisto aquela foto tumular com algum
epitáfio, às vezes e, na maior parte das vezes, simplesmente a foto do casal. A foto-
grafia do casal remete à saudade dos filhos sobreviventes. São bem menos comuns
as fotografias tumulares de indivíduos. São inúmeras as oportunidades em que
as fotografias e retratos instituem materialmente o conceito abstrato de família.
Como as flores, as fotografias acompanham o homem/a mulher do berço ao túmulo.
O estudo se desdobrará em mais quatro seções. A primeira lança um primeiro
olhar sobre a peça publicitária, com vistas a entendê-la sob o ponto de vista teoré-
tico e sígnico. Na segunda, trata-se do texto como hipertexto. Na terceira, diferen-
ciam-se texto e fotografia. Finalmente, a quarta seção versará sobre a imagem no
contexto do processo educacional.
A fotograa transcende a referência
Quando se pretende fazer retrospectivas de famílias, dificilmente não faz par-
te do processo a apresentação de fotografias. Há muito tempo, o programa de TV
Domingão do Faustão apresentado por Fausto Silva, na Rede Globo, vem refazen-
do históricos de artistas, onde a apresentação da família é uma constante. Velhas
fotos familiares são mostradas ao olho das câmeras que, por sua vez, as mostram
aos nossos olhos. Assim:
O papel crucial da fotografia no exercício do poder está em sua habilidade de oportunizar
estudo acurado do Outro e promover, conforme palavras de Foucault, “olhar normalizador”,
uma vigilância que torna possível qualificar, classificar e punir. Ela estabelece sobre os indi-
víduos uma visibilidade através da qual os diferenciamos e os julgamos (LUTZ; COLLINS,
1994, p. 366).
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A fotografia é, para Foucault, o recurso que estabelece interligação entre co-
nhecimento e poder. A fotografia funciona como algo bem mais forte que uma sim-
ples referência. A seguir, a Figura 1 apresenta o objeto de estudo deste artigo.
Figura 1 – O carro ideal para a sua família
Fonte: capa da revista Quatro Rodas, n. 38, 1998.
Não se tendo a si mesmos como disciplina acadêmica, os ECs, não por aca-
so, reúnem intelectuais estudiosos da Literatura, da linguística, da Sociologia, da
História, da Antropologia, da Comunicação, da Geografia, dos Estudos Fílmicos,
da Psicologia, da Educação e da Filosofia (BAPTISTA, 2009). Na verdade, por ca-
minhos muito diferentes entre si, convergem na busca das relações a que me referi
adrede: o liame entre o mundo concreto dos artefatos resultantes de qualquer uma
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das áreas de conhecimento arroladas, com a prática ou micropráticas políticas.
A imagem de “O carro ideal para a sua família”, tanto produz a identidade de
um carro ideal, quanto de uma “família ideal”, como consequência direta ou como
causa (o carro) e efeito (a família ideal” que, claro, não é para quem quer, mas para
quem pode e tem interesse nisso. Afinal, está aí a “imagem restaurada” da famí-
lia contemporânea evanescente: metamorfose da família urbana em desagregação
histórica transmudada numa família “hierarquicamente correta”, sob os melhores
padrões burgueses. A compreensão sociológica e a compreensão antropológica ser
entrelaçam na imagem em estudo.
A ilustração referente ao Palio Weekend coloca em primeiro plano uma família.
É de se notar que o homem, o pai da família, representa bem o chefe da família, o
pátrio poder, na melhor tradição da família clássica. Sua posição central recebe o
olhar da mulher (da mãe de família) e do filho. O pai comanda a cena: introduz as
malas no bagageiro do automóvel. A mulher se coloca na cena como quem espera
que o marido apanhe de suas mãos a mala. E o filho também depende de seu pai
para completar seu gesto de colocar a mala no bagageiro, enquanto a filha, que
é menor/criança, já está no interior do automóvel, mas com a bolsa na mão como
quem solicita que seja colocada no bagageiro.
A identificação entre as pessoas e a Weekend se dá em grau muito mais ele-
vado com as do sexo masculino: pai e filho usam camisa da mesma cor que a da
Weekend: o azul. Aliás, olhando para o quadro fica-se um pouco tentado a exclamar
Alles blau!” - “Tudo azul!” (em alemão). A harmonia entre o automóvel e a família
parece ser a mais perfeita possível! O pai é extremoso. Encarrega-se da tarefa mais
pesada. O filho, atrás dele, olha confiante e levemente sorridente, enquanto a mãe
e a filha também expressam sorriso de satisfação que se confunde com a satisfação
pelo novo automóvel ou, igualmente, pela visão do pai que distribui/irradia segu-
rança e no filho: promessa grandiosa de futuro. Trata-se de uma família idealizada
para o contemporâneo: homem, mulher e dois filhos. O primeiro, na ordem crono-
lógica de nascimento, é homem e o segundo é mulher (ainda criança), a realização
burguesa de um sonho: ter dois filhos nesta ordem. A identificação menor das duas
mulheres, uma criança e sua mãe, com a Weekend é muito bem compensada pela
segurança que oferecem: para a mulher, o marido e para a criança a Weekend, no
interior da qual já se encontra muito bem abrigada. O filho está no caminho do pai
que, pelo mérito do trabalho garante uma continuidade segura do clã.
O vestuário da família, como ilustração, é altamente significativo: distinção,
sem cair no clássico. Esportividade, sem excessos. O pai de família usa sapato es-
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porte, mas escuro; calça e camisa jeans, o que conota ainda, passados mais de 22
anos, atualidade, esportividade, mas com moderação. Se utilizasse tênis, como o
filho, perder-se-ia a necessária seriedade para corresponder a uma van: carro tipi-
camente de família ou, como diz a legenda de capa da revista em análise, “O carro
ideal para a sua família”. Aliás, é de notar que não se diz apenas “Carro ideal para
a”, mas diz “para a sua família”, o que garante a plenitude da proprietas (proprie-
dade), o proprium (a coisa própria) ou seja, a família e a Weekend: propriedade e
pátrio poder.
As cores mais vivas e alegres são reservadas, em primeiro lugar, para a crian-
ça: amarelo da camiseta e vermelho de bolinhas para a mochila, diadema e sus-
pensórios e, provavelmente, o restante da roupa, que não aparece toda. O moço
(filho) se projeta, de certa forma, no pai, pela utilização da mesma cor da camisa a
cor da bermuda correspondendo aproximadamente à cor da calça do pai. Trata-se
do herdeiro das virtudes paternas, o sucessor na ordem da tradição. A mãe usa
um conjunto creme: cor delicada, como convém a uma mulher que acompanha um
proprietário de uma Weekend: sem ostentação de joias e colares: trata-se de família
de classe média. Todos os membros da família exibem corte moderado do cabelo.
A fotografia forma um quadro extremamente clean. Nenhum elemento trai
a finalidade principal que é mostrar “o carro ideal para a sua família”. Todos os
membros da família são emoldurados pela Weekend. Para todos ela oferece con-
forto e segurança. Nenhum olhar das pessoas se dirige ao espectador do quadro.
Ainda que os olhares se dirijam basicamente ao pai de família, todos os membros
familiares fazem convergir seu gaze (olhar) para o centro principal de interesse: o
porta-malas da Weekend, de maneira a não distrair os espectadores da propaganda
e, por outro lado, para focar a abundância que o porta-malas oferece.
Todos os membros da família da ilustração deixam transparecer excelente
saúde, um desenvolvimento físico saudável. A mulher, ainda que em posição dis-
cretamente secundária e dependente em relação ao marido, é alta e de formas har-
mônicas. Trata-se, pois, de uma família em que os valores da mulher não sofrem
maiores ameaças de ofuscamento. Como família burguesa ideal1, é claro que não
se poderia dar excessivo destaque à emancipação feminina. Assim, a mala que ela
carrega é menor. A do moço parece ter as mesmas proporções que a do pai. Caso
contrário, não se justificaria a robustez de sua juventude, a legitimidade de filho
herdeiro das virtudes de uma família idealizada que optou por um carro ideal. E
a filha também é menor que o filho, mantendo-se a hierarquia, tal como convém.
O quadro se constitui uma metáfora perfeita em relação ao carro. Ou seja: carro
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ideal = família ideal. Ou, ainda, inversamente: família ideal = carro ideal. O signo
se constitui à medida que se constituem significante e respectivos significados.
Traço por traço, a propaganda da Weekend recompõe a família classe média bem-
-sucedida, de bom gosto, bem constituída, bem disciplinada e educada: uma nobre
hierarquia natural. A disciplina aparece na ação e postura hierárquica de cada
membro. O pai, ao centro. A mãe, logo a seguir (repare-se a ordem em que as malas
serão colocadas no bagageiro), com especial destaque para a proteção que a mulher
necessita (mala menor, de peso menor, mais delicada - é de tecido -, mais suave),
vestida em cores mais leves, mais suaves, mais iluminadas (mais etéreas), bem
por isto, no conjunto do quadro não há como não perceber o sexo frágil. Os próprios
sapatos que usa têm detalhe em cor mais clara. O moço já vai adiantando sua ta-
refa, não pela ordem de precedência, mas pela ordem do vigor físico: já conseguiu
introduzir metade da mala no bagageiro, como o pai, ainda que fique em posição
menos confortável, o que determinará sua espera para que o pai complete primeiro
sua tarefa. Por fim, mais a distância e mais isolada, a criança (uma menina), que
não poderia faltar para completar a família idealizada, talvez ainda não entenda
estar diante do “carro ideal para a sua família”. Por isto mesmo, ocupa o interior
do caro, uma extensão uterina da proteção materna, garantida pelo vigor paterno.
A leitura da propaganda: um texto/hipertexto
Naturalmente, estamos de acordo com Barthes (apud LUTZ; COLLINS, 1994,
p. 368) quando afirma que “[...] fotografia não é apenas percebida, recebida, ela é
lida, conectada mais ou menos conscientemente pelo público que a consome a um
estoque tradicional de signos”. Afinal, uma fotografia (uma imagem) é um texto/
hipertexto que permite leituras. Não apenas uma leitura. Como os desejos são dife-
rentes, as leituras lhes correspondem. Desejo e leitura estão intimamente ligados.
O olhar dos diversos leitores obedece à diversidade dos elementos culturais que
o constitui. Elementos culturais e modelos estruturam, por sua vez, o olhar dos
leitores. Modelos ligados a gênero, a sexo, a etnia definem olhares que põem à
mostra determinados elementos da mesma fotografia ou os escondem. Isto vale
para o próprio olhar do que cria um texto (lato sensu): padrões e modelos culturais
conduzem o olhar para determinados pontos que vão se tornar salientes. Assim, o
patriarcalismo de nossa cultura ocidental, a pretensa supremacia da raça branca,
a domesticação da mulher e outros traços culturais determinam destaques nos
textos como as fotografias, as imagens em geral produzidas pelo olhar do fotógrafo,
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a quem se encomenda e se paga a fotografia transformada em propaganda. “Em
Linguística”, diz Barthes (1997, p. 46), “[...] a natureza do significado deu lugar
a discussões sobretudo referentes a seu grau de ‘realidade’; todas concordam, en-
tretanto, quanto a insistir no fato de que o significado não é uma ‘coisa’, mas uma
representação psíquica da ‘coisa’”. Saussure (1995) também concorda com isto e
põe em destaque a natureza psíquica do significado ao denominá-lo conceito. A
fotografia produz este efeito que ultrapassa a realidade, a materialidade das coisas
fotografadas. Assim, uma família idealizada remete ao carro ideal - se é ideal é
conceptual, é ideia, produção dos sujeitos. Ainda que o processo de compreensão a
que remete “o carro idealizado para a família idealizada” seja um retorno a Platão,
a melhor maneira de tornar imperecível, eterno, perfeito o objeto de desejo é en-
viá-lo para o mundo das ideias, porquanto o mundo material é dele apenas pálida
imagem, imperfeita imitação, o que poderia pôr à mostra suas imperfeições. Assim,
no mesmo processo, envia-se (joga-se, lança-se: jactare, da língua latina), no caso
que estamos analisando, o objectum (Palio Weekend) e o subjectum para o mundo
ideal, onde tudo é perfeito. Mas para isto, há que se retocar profundamente a ima-
gem evanescente e defeituosa da família dita moderna, sobretudo urbana. E isto, a
fotografia em discussão faz muito bem. “O signo é uma fatia (bifacial) de sonorida-
de, visualidade etc.”, diz Barthes (1997, p. 50). “A significação pode ser concebida
como um processo; é o ato que une o significante e o significado, ato cujo produto
é o signo” (1997, p. 51). Identificar o Palio Weekend com as necessidades, com os
sonhos, com os desejos da família exige a convergência da cor, da visualidade e de
tudo quanto possa mover os sentimentos na direção dessa identificação. Peça por
peça, vai-se compondo esse construto complexo de identidades e afinidades. Produz
aquilo que, em O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III, Barthes (1990, p. 34) deno-
mina mensagem operatória:
[...] nunca se encontra (pelo menos em publicidade) uma imagem literal em estado puro;
mesmo que conseguíssemos elaborar uma imagem inteiramente “ingênua”, a ela se in-
corporaria, imediatamente, o signo da ingenuidade e a ela se acrescentaria uma terceira
mensagem, simbólica.
Sim, as coisas (esse automóvel) não nos é “entregue”, na peça publicitária,
simplesmente em sua consistência material. Elas nos são entregues como huma-
namente simbólicas: símbolos que nos acabam constituindo em novos sujeitos. Lin-
guagem dos objetos passam a se verterem em linguagem humanas. Exemplo: a
tinta azul do carro, a tinta azul do vestuário ou do sapato das pessoas que compõem
o quadro no que ele tem de material, se tornam linguagem humana que diz quem
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queremos ser ou quem é que alguém quer que sejamos. Assim: “Você é membro de
uma ‘família ideal’, tal como o automóvel que você está vendo é ‘ideal’”. Derrida
(1973) não exagera quando diz que “Não há o fora do texto”. O virtual se verte no
real e vice-versa. A peça publicitária-texto “nos fala” a seu modo. Só a lógica da
diferença consegue acolher esta posição teórica. “Além de serem interdependentes,
identidade e diferença partilham uma importante característica: elas são o resul-
tado de atos de criação linguística” (SILVA, 2000, p. 76). A peça publicitária-texto
transfunde o ideal no real das vidas realmente humanas: as pessoas. Desta mesma
forma é que sustento o conceito de imagem-texto; coisa-texto; mundo-texto.
É, bem por isto, interessante notar que por mais clean que seja a ilustração
que estamos a analisar, sua leitura não deixa de ser complexa e os elementos redu-
zidos em número compõem um texto cuja leitura demanda muita atenção e oferece
sentidos múltiplos, sem deixar, contudo, de ser tematizados em torno de objetivos
específicos e de um objetivo geral, neste caso, vender a Weekend a um número de
pessoas maior possível. E como o sonho capitalista de consumo tem maior chance
de realização, para este tipo de produto, entre as famílias de classe média, o eixo
em torno do qual se constrói a mensagem que passa por ela (a família ideal para
comprar esse produto ideal). Trata-se daquilo que Barthes denomina “a imagem
denotada”. Lembra, ainda, Barthes (1990, p. 38) que: “A diversidade das leituras
não é, no entanto, anárquica, depende do saber investido na imagem (saber prá-
tico, racional, cultural, estético)”. Ou, dito de outra forma pelo mesmo autor, “[...]
a mesma lexia mobiliza léxicos diferentes”. Porque a leitura é sempre um processo
em que interagem um texto e um leitor. Um texto e muitos leitores, onde como
já destaquei, os elementos culturais não são neutros. Produzem, ou induzem a
produzir leituras várias (mas sem anarquia, como bem lembra Barthes). Aliás, em
seu estudo intitulado “Estudos culturais: o quê e o como da investigação”, Baptista
(2009) toma o conceito de complexidade como uma das constantes das múltiplas
metodologias dos ECs. Além dito, nada é neutro, nada se produz, em cultura, via
natureza. Toda a ação cultural é ação política. Na produção da propaganda não se
olha por um visor de uma câmera para captar o casual, o natural: é, bem antes, um
ato criador, instituidor/destituidor. Percebemos, em minha análise, como se insti-
tui e se destitui a família. Como se institui um modelo de automóvel, determinam-
-se sua permanência e seu desaparecimento do mercado. A mesma análise pode ser
feita para verificar como se destitui um modelo cultural qualquer. No texto intitu-
lado “Eles são de família”, da Quatro Rodas (1998, p. 410), que tem como assunto
principal o modelo de automóvel Palio Weekend da Fiat, cuja propaganda é objeto
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deste estudo, encontrei um texto que diz: “MÉDIOS - Correndo por fora, o veterano
Kadett levou a melhor contra Corsa e Ford Escort”, que institui e destitui, a um
tempo (destitui enquanto se trata de um carro veterano e institui quando se diz que
“levou a melhor” contra...). E a destituição se torna definitiva para o Kadett quando
se fala sobre a “[...] falta de evolução de seu projeto” (1998, p. 44). A transitorieda-
de é um fenômeno e um valor de nosso tempo que demanda projetos constante e
rapidamente renovados, sob pena de obsolescência rápida. Nossa cultura ociden-
tal capitalista, consumista, põe como um dos valores o consumo. É um parâmetro
cultural que a ele as coisas devem corresponder. Entre as mudanças culturais fa-
miliares que devem corresponder às mudanças dos automóveis e vice-versa está
o pequeno número de filhos: o ideal é, quase sempre, um menino primeiro, depois
uma menina. Se o homem/macho é um pouco atarracado... não faz tanta diferença.
Mas a mulher deverá ser impreterivelmente esbelta, preferencialmente alta, uma
Barbie (apesar das adequações que sofreu) e assim por diante. Nossa propaganda
está em dia com estas características culturais de nosso mundo capitalista. Ao
disciplinamento do corpo deve corresponder o disciplinamento do novo modelo de
automóvel. Ou é o contrário? Não é nem isso, nem aquilo. São ambas as coisas que
se produzem mutuamente: o automóvel reproduz a família e, esta, ao automóvel. O
consumo é o denominador comum.
Desenho e fotograa
Para este estudo e análise se torna importante uma distinção entre desenho e
fotografia. Barthes adverte para esta diferença:
Deve-se, pois, opor a fotografia, mensagem sem código, ao desenho, que, embora denotado,
é uma mensagem codificada... o desenho não reproduz tudo, frequentemente reproduz mui-
to pouca coisa, sem, porém deixar de ser uma mensagem forte, ao passo que a fotografia, se
por um lado pode escolher seu tema, seu enquadramento e seu ângulo, por outro lado não
pode intervir no interior do objeto (salvo trucagem) (BARTHES, 1990, p. 35).
Mas é justamente por este lado ideológico da fotografia que pela trucagem se
podem produzir sentidos desejados, fatos não existentes na natureza fotografada,
e que sua riqueza semântica tem um grande ganho. No nosso caso específico, cria
o mito da família perfeita, entendido o mito no sentido que lhe conferem Adorno
e Horkheimer em Dialética do esclarecimento (1985), como “produto do próprio
esclarecimento”, ou seja, modos de abstrair os processos de controle e dominação,
os mesmos processos que o esclarecimento utiliza na modernidade. Portanto, a
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ideologia está presente e assume a forma do mito. Carro ideal, família ideal, que
são, afinal, mais que mitos? “O mito é uma fala”, diz Barthes (1982, p. 131) com
um título de Mitologias. “Naturalmente, não é uma fala qualquer [...]”. “O signifi-
cante do mito apresenta-se de uma maneira ambígua: é simultaneamente sentido
e forma, pleno de um lado e vazio do outro” (BARTHES, 1982, p. 139). Se, de um
lado, o mito da propaganda da Weekend (o carro ideal, a família ideal) suscita o
cotidiano verdadeiro, o familiar, por outro, no criar este mito, esvazia-o ao transfe-
ri-lo para outra coisa que não é a família, isto é, o automóvel. O automóvel institui
a não-família ideal que o discurso ambíguo produz em forma de mito. É tão estreita
a ligação entre o conceito de família ideal e de carro ideal que esta relação acaba
por desconstruir qualquer verdade por tênue que seja, em torno da família ideal.
Ocorre, nesta propaganda fotográfica, exatamente o processo de ideologização que
Barthes atribui ao mito. Diz ele: “A semiologia ensinou-nos que a função do mito
é transformar uma intenção histórica em natureza, uma contingência em eterni-
dade. Ora, este processo é o próprio processo da ideologia burguesa” (BARTHES,
1982, p. 162). Ao criar o mito da família ideal para o carro ideal, naturaliza-se
ideologicamente esta relação. A mediação entre o conceito e a materialidade destas
coisas é a ideologia que as transforma em ideais, naturalizando tal relação. É a
inversão a que se refere Barthes (1982, p. 163) da anti-physis que se converte em
pseudo-physis. Com isto, perde-se a lembrança da produção do mito e passa-se a
ver apenas natureza. Mas, em perfeito acordo com Adorno e Horkheimer, também
neste caso específico, o mito já institui a ideologia capitalista.
Diante disto tudo, considero que o texto materializado na fotografia da Wee-
kend cercada pela família ideal revela impasses de significado que viabilizam sua
desconstrução2. A família ideal se converte em família real, para o carro real. Mas
este fenômeno é circular (dialético). Uma espécie de gangorra semântica de inver-
são contínua de sentido. Se repararmos bem nas figuras, nas posturas, nas atitu-
des, nada encontraremos além do cotidiano. O conjunto, porém, composto por uma
família em um automóvel se compõe e decompõe continuamente, por força de seus
elementos componentes. Não existe nada além do cotidiano em cada figura (parte
do todo) em particular. O todo, porém, se constitui num texto acirradamente ideo-
lógico, reforçado por uma legenda que reforça a écriture que constitui o todo: texto
e imagem. E, neste caso, estamos diante de um fenômeno cuja força e importância,
em nossos dias, corresponde ao que diz Judith Williamson (1978, p. 11, tradução mi-
nha): “A propagandas são um dos mais importantes fatores culturais que moldam e
refletem nossa vida hoje”. Na propaganda se realiza a troca de valores, uma espécie
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de câmbio de valores em correspondências simbólicas que Williamson (1978, p. 12,
tradução minha) assim explica: “A propaganda traduz para nós essas afirmações
de ‘coisa’; elas nos são dadas como humanamente simbólicas”. A propaganda con-
segue fornecer estruturas capazes de verter a linguagem dos objetos em linguagem
das pessoas e vice-versa. A foto da Weekend cercada da família dos usuários produz
uma narrativa, um hipertexto familiar a partir de objetos: o próprio automóvel,
as malas sendo colocadas no interior do automóvel, a bolsa retida pela criança
no exterior da porta do carro, enfim, a indumentária dos personagens, as cores,
tudo é uma materialidade que recompõe, reestrutura, retoca, recompõe a imagem
em estado crítico de uma família moderna urbana, idealizando-a, remetendo-a ao
mundo incorruptível das ideias platônicas e, pelo processo ideológico interno, a
torna eterna, um conceito racional de perfeição e permanência. “Tomando”, como
diz, ainda, Williamson (1978, p. 11), “[...] o signo por aquilo que ele significa, a coisa
pelo sentimento”. Nada mais transitório que qualquer modelo de automóvel, que
muda ao menos uma vez por ano e cada vez mais rapidamente desaparece. Con-
tudo, a duração, a tradição e a permanência fiel da família ideal produzem e são
produzidas pela propaganda que analisamos, ao mesmo tempo que reproduzem a
fugacidade do consumo3. “Esta família está metonimicamente para a família, como
um tipo idealizado” (THWAITES; DAVIS; MULES, 1994, p. 53, tradução minha).
A transitoriedade dos modelos de automóveis subverte a duração, a perenidade da
família idealizada, segundo uma classe determinada.
Formação/educação pela imagem
No Brasil, a televisão chegou em 1950. Mas nem de longe chegou, então, para
todos os brasileiros. O cinema já havia alcançado longínquos rincões, bem antes
disto. Mas não há dúvida que a imagem invadiu, por atacado, os lares, com o ad-
vento da TV. Com ela, o mundo imagético passa a fazer parte do cotidiano diuturno
de todas as gerações: dos recém-nascidos aos mais provectos dos homens e mulhe-
res. A imagem passou a ocupar um tempo muito dilatado na formação/constituição
dos sujeitos. As atuais gerações sequer podem imaginar a escassez de imagens
em tempos que precedem o advento da televisão. Hoje, como se expressa Santos
(2015, p. 17), “[...] as imagens medeiam as relações de crianças, adolescentes e
mesmo adultos com novos saberes. Também inauguram novas expressões de sub-
jetividade, firmando-se como componentes qualitativos para a formação das novas
gerações por constituírem referência para os sujeitos”. Em escala nunca dantes
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vista e imaginada, sobremaneira com o advento do iPhones, os iPods, os iPad, os
tablets e numerosos outros recursos tecnológicos disponíveis no mercado, o mundo
se subverteu literalmente: o tempo e o espaço se encurtaram e nossos possíveis
interlocutores que moram do outro lado do planeta podem, em tempo real, dispo-
nibilizar sua voz juntamente com sua imagem, produzindo uma estreita relação e
sensação/vivência de proximidade. Assim, Santos (2015, p 18) pode afirmar:
Pode-se dizer que as imagens, de modo geral, habitam os sujeitos e, a partir de então, me-
deiam o relacionamento destes com o mundo, com os demais indivíduos da cultura e consigo
próprios. São, antes de qualquer outra coisa, forças comunicantes íntimas dos seres hu-
manos de longuíssima data, portanto, importantes como partes constitutivas dos saberes.
Se é bem verdade que a imagem faz parte da humanidade desde a mais re-
mota ancestralidade, também é verdade que na contemporaneidade a gigantesca
profusão e veiculação imagética nos cerca por todos os lados, 24 horas por dia e se
tornam centralizadoras dos mais diferentes modos de expressão, formas de comu-
nicação e autorreferência, dando intenso suporte às dinâmicas culturais, incluída,
em especial, a educação. A imagem vem moldando as sociedades e os indivíduos
intensa e persistentemente. Em consequência disto, como entende Santos (2015,
p. 19-20), “[...] as imagens se formam como componentes culturais relevantes na
atualidade, sobretudo se considerarmos o campo educacional que hoje se vê desa-
fiado por um novo sujeito de conhecimento que se compõe tanto verbalmente quan-
to visivelmente”. Mais e mais, as experiências visuais e as experiências educacio-
nais se aproximam. A cada dia surgem renovados meios inteiramente compatíveis
com os objetivos de compor a trama complexa do que se denomina educação. A
imagem passou a ser subsumida na própria constituição e destituição dos sujeitos
como, também, na sua formação ou deformação (os abismos da dark web). Como
constitutiva das diferentes culturas e vivências socioculturais, a imagem é uma
linguagem a cada dia mais expressiva, graças ao rapidíssimo avanço de suas dife-
rentes formas e recursos de produção. Com isto, o que desde os gregos antigos se
denominou escola como um locus privilegiado do ensinar e do aprender, mercê dos
meios que disponibiliza a profusão de imagens, esse locus se esfacelou num núme-
ro, na prática, quase infinito de loci (lugares) e tempos do ensinar e do aprender. A
heterotopia se instaurou. Todos os tempos e todos os lugares, a um só tempo podem
ser os espaços e os tempos da escola (de todos os níveis).
Contudo, foi tão rápida a emergência da profusão imagética e se complexificou
tão rapidamente que penso em não subestimar nada e a ninguém ao entender que
os educadores nos encontramos, em grande número, em estado de perplexidade.
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Esta perplexidade atinge a todos os educadores formais e informais e até natu-
rais da criatura humana. À emergência desta realidade, o ritmo da formação e da
aprendizagem do uso de tão espetacular linguagem pelos docentes lato sensu não
foi de longe acompanhado a contento. Não é nenhum exagero afirmar que vivemos
uma nova cultura visual. Nova, porque o visual sempre se constituiu em importan-
te modo de acesso ao mundo, ao outro e a si mesmo, tal como, em remotos tempos, o
desenho rupestre já o testemunhou. Mas o que se vê, hoje, alcançou uma escala de
proporções e profundidade que parece ter-se literalmente aberto à infinitude. Diz,
ainda, Santos (2015, p. 68): “O fenômeno da visualidade que se expande global-
mente sinaliza para uma mudança considerável dos paradigmas que decorrem e,
ao mesmo tempo, são decorrentes das transformações das formas de olhar, ver e ser
visto”. Não bastasse esse olhar sobre nosso planeta e sobre si mesmos, os humanos
já implantaram olhos artificiais em outros mundos que transmitem, sem cessar,
imagens/textos que são verdadeiros hipertextos cuja leitura expande nossa cida-
dania para uma (se assim se pode dizer), cosmocidadania. Por outro lado, isto não
é o anúncio de um fim, mas o anúncio de que este processo mal começou. A velha
escola, lato sensu, limitada a pequenos espaços circunscritos pelo real, expandiu-se
e implodiu em espaços e tempos virtuais, acessíveis à velocidade da luz. Bibliotecas
virtuais gigantescas se tornaram pocketbibliotecas (com a devida permissão do ter-
mo) que se levam ao bolso, na bolsa ou se guardam em chips minúsculos, onde quer
que seja. E nessas bibliotecas não se levam apenas textos convencionais estáticos.
Podem ser levadas imagem e som na forma de palestras, de vídeos com os mais di-
versos conteúdos, que tratam de toda e qualquer área de saber de nosso interesse.
Esta é a realidade nova que condiciona o educando dos novos tempos. O que
sempre se denominou escola viu seu tempo e seu espaço se expandirem, sem li-
mites físicos, no virtual, através de uma infinidade de meios. As velhas (nem tão
velhas assim) transparências que professores acumulavam para ministrar suas
aulas, evanesceram. Preparação de aulas para o ano inteiro, já não mais limita-
das a textos fixos, mas abertas a um sem número de possibilidades textuais em
que a imagem se tornou uma possibilidade rápida, qualificada, acessível e barato.
Podem estar confinadas no virtual, com possibilidades infinitas de atualizações,
remodelagens, reconfigurações e em total compartilhamento com os educandos.
As instituições de ensino, elas mesmas, sempre mais, colocam à disposição novos
meios eletrônico-informáticos em que, além do texto convencional, além do som, a
imagem estática ou dinâmica se integra, a cada dia mais intensamente, ao mundo
vivido no processo que medeia entre professores e alunos: a educação.
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Considerações nais
A partir desta análise, aportei para algumas das possíveis conclusões: a peça
publicitária analisada constrói uma identidade de família burguesa tradicional
(branca; com predominância do gênero masculino sobre o gênero feminino, com
uma posição social menor da criança; família com poucos membros e, em geral,
abastada e, muitas vezes de costumes conservadores, ora mais, ora menos). O estu-
do evidencia que o poder é instituinte. Este estudo se voltou, de forma particular, a
uma imagem. Trata-se apenas de uma amostragem que revela o potencial educati-
vo ou não da imagem. A ideologia não está apenas em lugares privilegiados, nem é
uma espécie de vilão da história: é a condição mesma para que o texto se produza,
para que a comunicação se estabeleça, na diferença. Mas o que se estabelece pelo
texto (que pode ser uma propaganda, apenas ilustração), se estabelece, se institui
a partir de parâmetros nela privilegiados (harmonia das cores; hierarquia dos su-
jeitos, e assim por diante). Não há, também, neste caso, parâmetros privilegiados,
tais como os do capital, os da economia. Os parâmetros culturais são muito mais
complexos, muito menos localizados em pontos aparentemente estratégicos, pontos
privilegiados. David Harvey (1996, p. 158), ao discorrer sobre a nova compreensão
do tempo-espaço na condição pós-moderna e ao abordar a temática da dinâmica
típica da sociedade do descarte, lembra, muito oportunamente, que: “Ela significa
mais do que jogar fora bens produzidos (criando um monumental problema sobre o
que fazer com o lixo); significa também ser capaz de atirar fora valores, estilos de
vida, relacionamentos estáveis, apego a coisas, edifícios, lugares, pessoas e modos
adquiridos de agir e ser”. Acrescentaria mais um item à lista dos descartes, muito
significativo de nossa cultura: os automóveis.
Enfim, o texto está aí para ser lido. Para ser mais que lido: consumido. Pro-
dução e consumo reproduz a circularidade ideal de quem queira estar on the top...
por algum momento fugaz. Aprender a ler imagens é uma demanda premente até
mesmo dos sistemas educacionais. As imagens deixaram de ser eventuais. Estão
por toda parte. Basta comparar, entre muitas outras coisas, os manuais escolares,
por exemplo, da década de 1960 para trás, ou nem tanto, para verificar como a
imagem ocupava espaço eventual.
Sem dúvida, a fugacidade da informação no contemporâneo provoca vertigens
e para não cair em desiquilíbrio, nada melhor do que familiarizar-se com a leitura
da imagem, meio pelo qual boa parte da educação no contemporâneo passa. É ta-
refa difícil. Não fazia parte do cotidiano dos docentes há não muito tempo passado.
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Família e propaganda – imagem restaurada: um exercício de leitura de imagens
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No Brasil, antes da década de 1990 fazia parte de um número bem reduzido de
pessoas, se levarmos em conta a emergência dos computadores e dos telefones ditos
celulares. Hoje, a imagem é uma realidade que abrange praticamente a todos, até
mesmo independentemente da vontade individual. Ela está em toda parte e já nem
é possível ignorá-la, nem se livrar dela. Melhor é aprender a lê-la. Este artigo é um
pequeno verbete desse volumoso compêndio representado pelas demandas educa-
cionais de nosso tempo, face ao mundo imagético.
Notas
1 Elizabeth Cristina Landi de Lima e Souza e Maria Angélica Magalhães Rodrigues ([1986]), em seu texto
intitulado Família e paternidade: o papel do pai na criação dos filhos, assim configuram a família da clas-
se média: “Principalmente no âmbito da classe média, difunde-se a ideia da família ‘ideal’ dentro de um
padrão americano, onde o pai é um trabalhador bem sucedido e a mãe, sempre feliz, é responsável pela
organização do lar e pelo cuidado com os filhos, que sempre bem cuidados aguardam o pai retornar do
trabalho para juntos desfrutarem os bens adquiridos e a casa bem equipada”.
2 Como afirma Eagleton (2006, p. 144), “A leitura típica habitual de Derrida consiste em tomar um fragmen-
to aparentemente periférico da obra - uma nota de rodapé, um termo ou imagem menor e repetido, uma
alusão casual - e nele trabalhar tenazmente até o ponto em que ele ameace desmantelar as oposições que
governam o texto como um todo. A tática de crítica desconstrutiva é em outras palavras, demonstrar como
os textos podem embaraçar seus próprios sistemas lógicos dominantes. E a desconstrução mostra isso to-
mando os pontos ‘sintomáticos’, os aporia ou impasses de significado, nos quais o texto enfrenta problemas,
perde a coesão esse abre a contradições”.
3 No interior do número da revista que analiso, a mesma Weekend é mostrada com uma família que acaba
de descarregar o carrinho de mercado no bagageiro. O carrinho ainda está aí, símbolo e realidade do con-
sumismo da família burguesa contemporânea: o transitório, o fugaz, como transitórias e fugazes são as
mercadorias, na voragem do consumo.
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Criança, infância e cidadania: diálogos de inspirão em Paulo Freire
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Criança, infância e cidadania: diálogos de inspiração em Paulo Freire
Child, childhood and citizenship: dialogues of inspiration in Paulo Freire
Niño, infancia y ciudadanía: diálogos de inspiración en Paulo Freire
Marta Regina Paulo da Silva*
Resumo
O presente artigo problematiza a relação criança, infância e cidadania a partir de diálogos de inspiração em
Paulo Freire. O intuito é o de apresentar as contribuições da epistemologia desse educador para pensar a consti-
tuição da cidadania da infância e a proposição de uma educação infantil cidadã. O diálogo parte dos resultados
de uma pesquisa teórica, que investiga nas obras de Freire sua compreensão sobre as crianças, as infâncias e a
educação das crianças pequenas. Em seus escritos, Freire denuncia as formas de opressão às quais estão sub-
metidos meninos e meninas e o quanto o processo educativo revela-se autoritário e antidialógico, silenciando,
assim, suas vozes. Esse autor defende as crianças como sujeitos de direitos, dentre eles o direito à palavra e à
participação, propondo que as instituições de educação infantil se transformem em centros de criatividade, nos
quais se ensine e se aprenda com alegria. O estudo conclui que a epistemologia freiriana nos remete à com-
preensão de que educação, cidadania e infância não são apenas conceitos abstratos, mas dimensões de uma
práxis crítica e criativa, que nos possibilita reconhecer as crianças como cidadãs e construir com elas práticas
pedagógicas emancipadoras.
Palavras-chave: infância; cidadania; Paulo Freire; participação; educação infantil.
Abstract
This article discusses the relationship between child, childhood and citizenship based on dialogues inspired by
Paulo Freire. The aim is to present the contributions of this educator’s epistemology to think about the consti-
tution of childhood citizenship and the proposition of a citizen education. The dialogue starts from the results
of a theoretical research that investigates in Freire’s works his understanding about children, childhood and the
education of young children. In his writings Freire denounces the forms of oppression to which boys and girls are
subjected and how authoritarian and anti-dialogical the educational process is, thus silencing their voices. This
author defends children as subjects of rights, including the right to speak and to participate, proposing that early
childhood education institutions become centers of creativity in which to teach and learn with joy. The study
concludes that Freires epistemology leads us to the understanding that education, citizenship and childhood
are not only abstract concepts, but dimensions of a critical and creative praxis that enables us to recognize chil-
dren as citizens and build emancipatory pedagogical practices with them.
Keywords: childhood; citizenship; Paulo Freire; participation; early childhood education.
* Doutora em Educação pela Unicamp. Mestre em Educação pela Universidade Metodista de São Paulo (Umesp). Gra-
duada em Pedagogia e Psicologia. Docente-Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Univer-
sidade Municipal de São Caetano do Sul (PPGE-USCS). Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa Infâncias,
Diversidade e Educação - GEPIDE (PPGE-USCS) e do Grupo de Estudos e Pesquisa Paulo Freire - GEPPF (PPGE-USCS).
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-8574-760X. E-mail: martarps@uol.com.br
Recebido em: 15/10/2019 – Aprovado em 21/05/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i1.10088
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Resumen
Este artículo analiza la relación entre niño, infancia y ciudadanía a partir de diálogos inspirados en Paulo Freire.
El objetivo es presentar las contribuciones de la epistemología de este educador para pensar sobre la constitu-
ción de la ciudadanía infantil y la propuesta de una educación ciudadana para los niños. El diálogo parte de los
resultados de una investigación teórica que investiga en los trabajos de Freire su comprensión sobre los niños, la
infancia y la educación de los niños pequeños. En sus escritos, Freire denuncia las formas de opresión a las que
están sujetos los niños y las niñas y cuán autoritario y antidiálogo es el proceso educativo, silenciando así sus
voces. El autor deende a los niños como sujetos de derechos, incluido el derecho a la palabra y a participación,
proponiendo que las instituciones de educación de la primera infancia se conviertan en centros de creatividad
donde enseñamos y aprendemos con alegría. El estudio concluye que la epistemología de Freire nos lleva a
comprender que educación, ciudadanía y infancia no son solo conceptos abstractos, sino dimensiones de una
praxis crítica y creativa que nos permite reconocer a los niños como ciudadanos y construir com ellos prácticas
pedagógicas emancipadoras.
Palabras clave: infancia; ciudadanía; Paulo Freire; participación; educación infantil.
Introdução
Desde o final da década de 1950, Paulo Freire (2001 [1959]1) já denunciava
as relações autoritárias e antidialógicas às quais as crianças estavam submetidas.
Esse educador pernambucano escrevia sobre o quanto tais experiências têm início
nas famílias e se prolongam nas escolas silenciando meninos e meninas em sua
curiosidade, em seu direito de se expressarem. Discutia, também, que a constru-
ção da autonomia exige experiências democráticas que são negadas às crianças,
sendo necessária a revisão de atitudes das famílias e das instituições educacionais
no sentido de ampliar cada vez mais a participação delas nos diferentes espaços
sociais nos quais convivem.
Esse silenciamento das vozes infantis, presente ainda hoje em nossa so-
ciedade, expressa uma das formas de opressão em que o adulto impõe sobre as
crianças a sua leitura de mundo. Essa ação antidialógica, imposta pelo opressor,
tem como uma de suas principais características o que Paulo Freire chamou de
“invasão cultural” (FREIRE, 2003 [1970]). Invasão porque se trata de conquistar e
dominar, não apenas econômica, mas culturalmente, negando àquele que é domi-
nado o direito de dizer a sua palavra ao mesmo tempo em que desqualifica a sua
cultura.
Nessa relação de dominação, o oprimido deve observar a realidade a partir da
ótica do opressor, jamais da sua. Com isso, verificamos uma das ações mais desu-
manizantes, visto que nega a homens e mulheres a sua vocação ontológica de “ser
mais”, subestimando a sua capacidade de criação e recriação, e afogando neles e
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Criança, infância e cidadania: diálogos de inspiração em Paulo Freire
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nelas o desejo de, curiosa e coletivamente, aventurarem-se no conhecimento de si,
do outro e do mundo.
Como assevera Freire, a invasão cultural ocorre de diferentes formas e entre
os diferentes atores sociais e dentre eles estão certamente as crianças. Na invasão
cultural da infância intenta-se tornar inautêntico o agir, o pensar e o sentir das
crianças, compreendendo-as tão somente como reprodutoras da cultura, cabendo,
portanto, aos adultos prepará-las para o exercício da cidadania. Não se reconhece a
criança como cidadã, mas como um “projeto”, como um “vir a ser”.
Nessa forma de invasão, busca-se frear a capacidade de criação de meninos
e meninas, desqualificar a leitura que fazem do mundo e silenciar seus corpos.
Como forma de “domesticação” intenta uma atitude de sujeição a uma determinada
ordem social, negando, assim, as subjetividades e, consequentemente, a afirmação
das crianças como agentes de criação e transformação.
No entanto, como discute Freire, a invasão cultural sempre irá se deparar com
resistências. No caso das crianças, estas insistentemente questionam os currículos
escolares, demonstrando, por meio de suas diferentes formas de expressão, que não
“cabem” nas instituições educacionais historicamente construídas para elas, com
práticas autoritárias e antidialógicas. Contra isso, meninos e meninas resistem.
Como afirma o filósofo Ernani Maria Fiori, no prefácio de Pedagogia do Oprimido
(FREIRE, 2003 [1970], p. 21), “[...] os dominados, para dizerem a sua palavra, têm
que lutar para tomá-la. Aprender a tomá-la dos que a detêm e a recusam aos de-
mais é um difícil, mas imprescindível aprendizado – é a ‘pedagogia do oprimido’”.
Segundo Freire (2003 [1970], p. 154, grifos do autor), renunciar à invasão cul-
tural significa “[...] deixar de estar sobre ou ‘dentro’, como ‘estrangeiros’, para estar
com, como companheiros”. Romper com a invasão cultural da infância, significa
compreender o mundo a partir dos olhos das crianças, o que implica na descons-
trução da cultura do silêncio, e, por sua vez, na construção de uma relação dialógi-
ca com elas, reconhecendo-as como cidadãs e, portanto, como participantes ativas
da e na sociedade. Se assim for, como afirma Tonucci (2005, p.18), “[...] a relação
com elas será correta, entre cidadãos adultos e pequenos cidadãos, mas, agora,
cidadãos”. Do contrário, continuaremos a exclui-las e ficaremos excluídos de seus
direitos, porque sempre serão “futuros cidadãos”.
Desse modo, escutar as crianças, é reconhecer que precisamos delas, uma vez
que são capazes de dar ideias, opiniões e fazer propostas; é considerar suas vozes
nas decisões que envolvem suas vidas e também as nossas, seja no âmbito familiar,
362 ESPAÇO PEDAGÓGICO
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escolar ou na comunidade, visando a construção de uma sociedade mais democrá-
tica, mais justa e mais humana.
Nesse sentido, este artigo apresenta o aporte teórico de Paulo Freire para
pensar esta criança cidadã e o seu direito à participação política na sociedade e,
em especial, no interior das instituições de educação infantil. A reflexão acerca das
contribuições desse autor é resultado da pesquisa intitulada “Crianças e Infân-
cias em Paulo Freire”, desenvolvida no Grupo de Estudos e Pesquisa Paulo Freire
do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Municipal de São
Caetano do Sul. Trata-se de uma pesquisa de natureza teórica, cujo objetivo é o de
investigar nas obras desse educador sua compreensão sobre as crianças e as infân-
cias e, nessa perspectiva, como sua epistemologia pode contribuir para (re)pensar
a educação das crianças. Por obra definimos, para efeitos desta investigação, os
livros desse autor publicados em português, que foram organizados em cinco pe-
ríodos como uma forma de melhor compreender o contexto de sua produção2. Como
procedimento metodológico, temos realizado nas leituras o rastreamento das pala-
vras: criança, infância ou expressões que remetem a estes universos.
O momento atual é propício para nos debruçarmos sobre a epistemologia e
a vida educadora desse educador, visto vivermos um período de recrudescimento
das formas de violência contra mulheres, negros, negras, indígenas, comunidade
LGBTQI+ e, é claro, as crianças, as que mais sofrem com o desmantelamento das
políticas públicas e das conquistas sociais e históricas resultantes das muitas lutas
travadas pelo povo brasileiro. Assim, em um período em que as forças conservado-
ras buscam amordaçar e silenciar estudantes, docentes, pesquisadores e pesqui-
sadoras, a atualidade do pensamento de Paulo Freire nos convoca à necessidade
política de reinventá-lo, de modo a responder aos desafios de nosso tempo histórico.
Posto isso, que o diálogo apresentando neste artigo possa inspirar o (re)pensar a
relação criança, infância e cidadania e, nela, a proposição de uma educação infantil
cidadã.
Criança: cidadã?
O reconhecimento da criança como sujeito de direitos é muito recente na legis-
lação brasileira, tendo sua origem na promulgação da Constituição federal brasilei-
ra (BRASIL, 1988), fruto de intensas lutas dos movimentos sindicais, feministas,
das mulheres, estudantis, populares que ganharam força, sobretudo na década de
1980, e passaram a reivindicar melhores condições de vida, de trabalho, de edu-
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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cação. Desse documento, desdobram-se outras leis que reafirmam os direitos das
crianças, dentre elas o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (BRASIL, 1990),
que trata da participação da criança na vida familiar, comunitária e política, e o seu
direito à opinião e à expressão; a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDBEN) (BRASIL, 1996), que reconhece o direito à Educação Infantil ao inseri-
-la como primeira etapa da Educação Básica; as Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação Infantil (DCNEI) (BRASIL, 2010), que reafirmam tais direitos e
explicitam os princípios para a educação das crianças pequenas, sendo eles:
Éticos: da autonomia, da responsabilidade, da solidariedade e do respeito
ao bem comum, ao meio ambiente e às diferentes culturas, identidades e
singularidades.
Políticos: dos direitos de cidadania, do exercício da criticidade e do respeito
à ordem democrática.
Estéticos: da sensibilidade, da criatividade, da ludicidade e da liberdade
de expressão nas diferentes manifestações artísticas e culturais (BRASIL,
2010, p. 16).
As conquistas observadas nessa legislação legitimam-se em documentos de
maior abrangência como: a Declaração Universal dos Direitos da Criança (ONU,
1959) e a Convenção Mundial dos Direitos da Criança (ONU, 1989). Segundo Sar-
mento, Fernandes e Tomás (2007, p. 192):
A Convenção sobre os Direitos da Criança assim como toda a legislação e instrumentos
jurídicos que se reporta às crianças, apesar de todas as limitações e críticas, é uma marca
de cidadania, um sinal da capacidade que as crianças têm de serem titulares de direitos e
um indicador do reconhecimento da sua capacidade de participação.
A afirmação de meninos e meninas como sujeitos de direitos resulta de uma
nova compreensão da criança como um ser potente, agente ativo no meio em que
vive, que lê e comunica o mundo de um modo muito singular e que produz cultura.
Resulta ainda da compreensão de sua educação para além dos contextos familia-
res, envolvendo nesse processo as diferentes instituições da sociedade, dentre elas
as educacionais.
Criança e infância são categorias construídas historicamente, o que significa
dizer que, a compreensão sobre elas foi se modificando ao longo da história em
função dos diferentes contextos sociais, político-econômicos e culturais nos quais
estavam inseridas. Desta maneira, capturadas pelos discursos médico, psicológico,
364 ESPAÇO PEDAGÓGICO
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pedagógico e sociológico tiveram sua imagem aprisionada à compreensão de uma
“[...] infância universal e um padrão de criança definido pelos critérios de idade, de
dependência em relação ao adulto, em função de uma fragilidade física e psicológi-
ca, e o seu desenvolvimento através de etapas sucessivas. Uma criança a-histórica
e reprodutora da cultura do adulto” (FARIA; GOBBI; SILVA, 2017, p. 17).
Desconstruir essa imagem da criança como um ser da “falta” e da infância
como uma etapa passageira do desenvolvimento humano vem sendo um processo
lento e gradativo. Com isso, apesar do reconhecimento da criança como um ser
potente e de direitos, seja na legislação seja nos estudos sobre a infância, a imagem
da criança como um “vir a ser” ainda se faz bastante presente no interior das insti-
tuições educacionais, configurando-se como um dos desafios à prática pedagógica.
Ora, mas se reconhecer a criança como um ser potente, não apenas no discurso,
mas na sua cotidianidade, já tem se desvelado um processo moroso, mais desa-
fiador ainda tem sido o seu reconhecimento como cidadã. Afinal, será a criança
cidadã? Quando nasce um/a cidadão/cidadã?
Qvortrup (2010) chama nossa atenção para as atitudes ambíguas de nossa so-
ciedade para com as crianças e para a relação entre elas e a política, com destaque
para as formas de proteção às quais meninos e meninas estão submetidos e que ter-
minam por afastá-los dos adultos e de assuntos referentes à economia e à política, o
que considera como uma atitude “irrealista”, uma vez que entre “[...] outras razões,
isto é provado pelo fato de que as crianças são parte de um projeto que faz delas a
matéria para a construção do futuro” (2010, p. 790). Para o autor, se, por um lado,
busca-se proteger as crianças do mundo adulto, separando-as desse mesmo mundo,
por outro, há uma indiferença ou desatenção a elas no desenvolvimento político e
econômico da sociedade, o que as coloca como o grupo geracional mais afetado pelas
desigualdades sociais.
Essa exclusão da participação das crianças da vida política também é debatida
por Sarmento, Fernandes e Tomás (2007, p. 184): “O confinamento da infância a
um espaço social condicionado e controlado pelos adultos produziu, como conse-
quência, o entendimento generalizado de que as crianças estão «naturalmente»
privadas do exercício de direitos políticos”, o que as torna “[...] o único grupo social
verdadeiramente excluído de direitos políticos expressos”. Essa exclusão termina
por invisibilizar meninos e meninas enquanto “atores políticos concretos” e, conse-
quentemente, impacta nas decisões políticas das gerações futuras.
A participação política das crianças é um imperativo para a cidadania da in-
fância. Contudo, ela está condicionada, mas não pré-determinada, às estruturas
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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sociais, políticas, econômicas e culturais em que se encontram meninos e meninas.
Sabemos que o conceito de cidadania é uma construção social e, como tal, está vin-
culado ao contexto no qual foi engendrado. Desse modo, ao analisarmos a realidade
brasileira marcada por uma história de escravidão, elitismo e exclusão, em que
a “[...] relação de forças que se estabelece entre grupos com interesses distintos e
antagônicos, esse conceito, como tantos outros, acaba se tornando categoria que
expressa a posição do projeto hegemônico” (BARBOSA; ALVES; MARTINS, 2008,
p. 4).
Nesse projeto, cidadania se restringe aos adultos, sendo as crianças excluídas
em função do fator idade, uma vez que permanece ainda fortemente no imaginário
social a compreensão da criança como um ser imaturo, frágil, dependente, que deve
ser preparado para a vida adulta. Para Sarmento, Soares e Tomás (2004, p. 1), é
esse “[...] conjunto de características bio-psicológicas que supostamente não outor-
gam à criança o conjunto de competências que os adultos consideram necessárias
para o exercício da cidadania”.
Outro fator que coaduna com essa exclusão da criança diz respeito a certa
compreensão de cidadania como algo pronto, acabado, cujo status de cidadão/ci-
dadã se adquire quando adulto, quase que como em um passe de mágica. A esse
respeito, Barbosa, Alves e Martins (2008, p. 4, grifos das autoras) asseveram que:
Quando se trata da infância, a cidadania parece ser colocada como projeto futuro: “a criança
de hoje é [será] a cidadã de amanhã”. Ou seja, é como se a cidadania desabrochasse no
adulto (bem) educado e ajustado às normas e padrões sociais. Porém, aqui não deixa de
haver uma abstração do termo “cidadania”: algo pronto a ser dado em algum momento e em
situações nos quais o sujeito recebe um título socialmente concedido.
A cidadania não é algo pronto e não se dá a partir de uma determinada ida-
de. Como seres inacabados, cuja vocação ontológica é a de “ser mais” (FREIRE,
2003 [1970]), lemos e comunicamos o mundo desde que nascemos e, nesse processo,
vamos nos constituindo como cidadãos/cidadãs. Desse modo, embora o reconheci-
mento legal dos direitos das crianças seja uma conquista fundamental, ele não é
suficiente; é preciso também criar condições para o seu exercício por meio da parti-
cipação ativa das crianças nas diferentes esferas da sociedade, a qual é aprendida
nas práticas cotidianas, constituindo-se em uma aprendizagem que nos acompa-
nha ao logo da vida.
Nesse processo, há que se respeitar a razão infantil, ou seja, a visão de mundo
das crianças, compreendendo-a como a faculdade humana que elas possuem de
criar estruturas ideativas a partir de suas impressões, sentimentos e compreen-
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sões do seu entorno. Na razão infantil não há uma hierarquização das linguagens,
uma vez que ela se efetiva por diferentes formas de expressão em que a corporeida-
de não fragmenta as sensações, as emoções e a cognição (SILVA; FASANO, 2020).
Sendo assim, meninos e meninas são capazes de intervir no mundo, expressando
suas ideias, escolhas, opiniões e fazendo propostas a respeito de todos os problemas
que se colocam em seu cotidiano, isso porque “[...] elas também ali vivem, como
cada cidadão, e ali vivem a partir de seu próprio ponto de vista particular que é, ao
mesmo tempo, mais ‘baixo’ e mais ignorado do que o dos outros” (TONUCCI, 2005,
p. 20-21, grifos do autor).
A cidadania da infância, ao defender o direito de participação política das
crianças, não minimiza a importância das medidas de proteção e provisão, que
devem ser garantidas pela família e Estado. De acordo com Soares (2005, p. 35-36,
grifos da autora):
Direitos de provisão – implicam a consideração dos programas que garantam os
direitos sociais da criança, nomeadamente o acesso de todas as crianças a direitos
como a saúde, educação, segurança social, cuidados físicos, vida familiar, recreio
e cultura;
Direitos de protecção – implicam a consideração de uma atenção distinta às crianças, de
um conjunto de direitos acrescidos, que, por motivos diversos, nomeadamente situações de
discriminação, abuso físico e sexual, exploração, injustiça e conflito, se encontrem privadas
ou limitadas no exercício dos seus direitos;
Direitos de participação – implicam a consideração de uma imagem de infância activa,
distinta da imagem de infância objecto das políticas assistencialistas, à qual estão asse-
gurados direitos civis e políticos, ou seja, aqueles que abarcam o direito da criança a ser
consultada e ouvida, o direito ao acesso à informação, à liberdade de expressão e opinião e o
direito a tomar decisões em seu benefício, que deverão traduzir-se em acções públicas para
a infância, que consideram o ponto de vista das crianças.
A compreensão da indissociabilidade destes direitos: provisão, proteção e
participação é fundamental, pois reconhecer a criança como um sujeito capaz de
participar das decisões referentes à sua vida, não significa negar a necessidade de
cuidados e proteção. Sobre essa indissociabilidade, Soares (2005) discute os para-
digmas da criança dependente, emancipada e participativa como formas de com-
preensão do exercício dos direitos de meninos e meninas. Segundo essa pesquisado-
ra, os paradigmas da criança dependente e da criança emancipada se apresentam
com posições quase que incompatíveis, em um movimento que oscila entre “[...] o
proteccionismo exacerbado e a emancipação das crianças” (2005, p. 42), enquanto
que o terceiro, o da criança participativa, “[...] recupera a ideia de interdependência
do exercício dos direitos, considerando que os direitos de protecção e participação
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Criança, infância e cidadania: diálogos de inspiração em Paulo Freire
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não são incompatíveis (2005, p. 42). Contudo, como ressaltam Sarmento e Pinto
(1997), desses três direitos, não se observam avanços no que diz respeito ao direito
à participação, seja na construção de políticas seja na organização das instituições
educacionais.
Freire (2001 [1993]), ao defender a participação, também alerta para o caráter
indissociável entre participação e proteção. Ao propor que as cidades estimulem as
suas várias instituições sociais a se empenharem em campanhas que tenham por ob-
jetivo desafiar crianças, jovens e adultos a refletirem sobre o direito de ser diferente,
adverte que essa discussão deva ocorrer “[...] sem que isto signifique correr o risco de
ser discriminado, punido ou, pior ainda, banido da vida” (2001 [1993], p. 26).
O direito de ser diferente afirma nossa vocação para “ser mais”, estando esta
condicionada pelo contexto social, político, econômico e cultural no qual estamos
inseridos. Com isso, no aprendizado da democracia, Freire (2003 [1994], p. 203)
ressalta alguns aspectos que devem ser “política e pedagogicamente tratados”:
A luta, no Brasil, pela democracia, passa por uma série de possíveis ângulos a ser política e
pedagogicamente tratados – o da justiça, sem a qual, não há paz, o direitos humanos, o do
direito à vida, que implica o de nascer, o de comer, o de dormir, o de ter saúde, o de vestir,
o de chorar os mortos, o de estudar, o de trabalhar, o de ser crianças, o de crer ou não, o de
viver cada um e cada uma a sua sexualidade como bem lhe aprouver, o de criticar, o de dis-
cordar do discurso oficial, o de ler a palavra, o de brincar não importa a idade que se tenha,
o de ser eticamente inconformado do que ocorre no nível local, no regional, no nacional e
no mundial.
Ao afirmar o direito de as crianças serem crianças, Freire chama a atenção
para as muitas crianças que têm sido expropriadas destes tantos direitos, em espe-
cial aquelas das classes populares, seja pela condição de pobreza, fruto das grandes
desigualdades sociais, seja pela cor de sua pele, gênero, idade, etnia.
Cabe ressaltar que as enormes desigualdades e a discriminação contra e entre
as crianças assentam-se na estrutura social. Desse modo, não se pode deixar de
considerar a interdependência dos diferentes direitos. Defender o direito à educa-
ção, por exemplo, implica, necessariamente, segundo Arroyo (2015, p. 20), defen-
der o “[...] direito à vida, trabalho, terra, território, teto, identidades, igualdade,
diversidade, justiça... direitos atrelados a outro projeto de sociedade, de campo, de
cidade, de padrão de trabalho e de poder”.
Assegurados na forma de Lei, estão os direitos à vida, à saúde, à liberdade,
ao respeito, à dignidade, à convivência familiar e comunitária, à educação, à cul-
tura, ao esporte e ao lazer, à proteção. Entretanto, nesse mundo ao avesso, como
denuncia Galeano (1999), há mais de vinte anos, é negado às crianças o direito de
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serem crianças, de brincar, não trabalhar, contar suas histórias, criar, imaginar.
Crianças, ricas ou pobres, todas confinadas aos valores do mercado, todas fadadas
à solidão. Solidão, como afirma Tonucci (2008), que se caracteriza como uma doen-
ça social que atinge crianças e adultos. Ambos presos em sua “casa fortaleza”, pois
lá fora, na cidade, há muitos perigos; instaurado o medo, a cidade já não pertence
mais aos sujeitos e, em especial, às crianças. Também não lhes pertence mais o
tempo e espaço só para si, em que possam criar, brincar, sujar-se, divertir-se, não
fazer nada.
Defender, portanto, a participação infantil significa compreender não apenas
a potencialidade das crianças, mas também sua vulnerabilidade, e protegê-las,
sem com isso (ou em nome disso) sufocar seu direito de dizerem sua palavra, de
se expressarem livremente, visto que, esse direito “[...] deve incluir a liberdade de
procurar, receber e divulgar informações e ideias de todo tipo, independentemente
de fronteiras, seja verbalmente, por escrito ou por meio impresso, por meio das ar-
tes ou por qualquer outro meio escolhido pela criança” (ONU, 1989, não paginado).
Como sujeitos de criação e não da pura adaptação, a presença das crianças
nas diferentes instâncias sociais, através de suas resistências, transgressões e
afirmando-se como sujeito de direitos, pressiona a (re)invenção das instituições
educativas e nelas a construção de outras identidades docentes.
Por uma educação infantil cidadã
Um dos ensinamentos de Paulo Freire é o de que a educação deve ser construí-
da com os educandos e as educandas, a partir de uma relação dialógica. No caso da
educação infantil, embora verifiquemos uma concepção mais afirmativa da criança
e da infância nos documentos legais e nas pesquisas da área, observamos ainda,
em muitas instituições, um abismo entre o discurso e as práticas educativas cons-
truídas para as crianças pequenas. Em sua maioria, revelam uma educação bancá-
ria, fundamentalmente narradora, nas quais podemos notar falas sobre conteúdos
“mortos” que não se referem à realidade das crianças, sendo-lhes alheios à sua
experiência existencial, e que, portanto, não se trata de uma educação que objetive
uma ação transformadora, mas apenas a fixação, a memorização e a repetição.
Dentre essas práticas, encontram-se aquelas que priorizam a memorização
do sistema alfabético e numérico, a cópia e repetição de palavras ou até mesmo
sílabas, no intuito de preparar as crianças para o ensino fundamental; ou ainda,
aquelas que didatizam as brincadeiras, reafirmando um modelo escolar hegemô-
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Criança, infância e cidadania: diálogos de inspiração em Paulo Freire
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nico que não valoriza a curiosidade, a inventividade, as múltiplas linguagens das
crianças e suas produções culturais. Tais práticas são reveladoras de uma história
em que pouco se olhou para o mundo das crianças a partir dos seus olhos, mas sim
a partir da maneira como o adulto via/vê o mundo das crianças. Desconstruir tais
práticas implica reconhecer a criança em sua alteridade, uma vez que:
[...] a infância nunca é o que sabemos (é o outro dos nossos saberes), mas, por outro lado,
é portadora de uma verdade à qual devemos nos colocar à disposição de escutar; nunca é
aquilo apreendido pelo nosso poder (é o outro que não pode ser submetido), mas ao mesmo
tempo requer nossa iniciativa; nunca está no lugar que a ela reservamos (é o outro que não
pode ser abarcado), mas devemos abrir um lugar para recebê-la. Isso realmente é aceitar a
criança como um outro (LARROSA, 2003, p. 186).
Receber a criança como um outro passa por compreender a infância para além
de uma etapa passageira do desenvolvimento humano, mas como um tempo social
importante em si mesmo e que nos acompanha na vida adulta, o que nos remete
a pensá-la como a própria condição da existência humana. Sendo assim, ela não é
apenas cronologia.
Encontramos essa compreensão da infância em Paulo Freire, esse educador
que se autodenominou como um “menino conectivo”, um homem que não deixou
morrer o menino que foi e que não pôde ser. Em suas palavras: “Eu acho que uma
das coisas melhores que eu tenho feito na minha vida, melhor do que os livros que
eu escrevi, foi não deixar morrer o menino que eu não pude ser e o menino que eu
fui, em mim” (FREIRE, 2001, p. 101).
Essa sua conexão com a infância, sobretudo quando relata suas próprias expe-
riências, denota uma imagem mais afirmativa da infância, “[...] a infância como algo
que o amadurecimento faria bem em preservar, alimentar e cuidar na medida em
que outorga vida à vida e, por isso, nunca deve abandonar-se” (KOHAN, 2018, p. 10).
A infância, desde essa perspectiva, ao desconstruir a ideia de se tratar apenas
de uma etapa passageira do desenvolvimento, desconstrói também a compreensão
da criança como um ser da “falta”, pois, como afirma Agamben (2005), a ausência
de voz (en-fant) não significa uma falta, e sim uma condição, visto ser na infância
que nos constituímos como sujeitos na e pela linguagem. De acordo com esse filó-
sofo:
[...] a infância que aqui está em questão, não pode ser simplesmente algo que precede
cronologicamente a linguagem e que, a uma certa altura, cessa de existir para versar-se na
palavra, não é um paraíso que, em um determinado momento, abandonamos para sempre
a fim de falar, mas coexiste originalmente com a linguagem, constitui-se aliás ela mesma
na expropriação que dela efetua, produzindo a cada vez o homem como sujeito (2005, p. 59).
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Segundo Agamben (2005), a condição de “en fant” é o que nos torna abertos
ao mundo, transformando, no cotidiano, a língua em discurso capaz de nos colocar
na situação de criadores de cultura. Desse modo, porque somos não falantes e nos
construímos como falantes há história. E porque os falantes continuam infantes e
continuam também, permanentemente, aprendendo a falar e a serem falados, a
historicidade do ser humano segue fazendo-se. Assim, se para Agamben há história
porque há infância, para Freire há infância devido à condição de inacabamento do
ser humano. Não é possível falar em infância sem a consciência de nossa condição
de seres inacabados, ao mesmo tempo em que tal condição, para não ser estéril, so-
licita de nós a capacidade de criar nosso agir no mundo molhado da nossa condição
infantil (SANTOS NETO; SILVA, 2006).
Nesse sentido, compreendemos que é preciso olhar e escutar esta infância, ou
seja, mantê-la viva. A infância das crianças e a nossa enquanto educadores e edu-
cadoras, para que possamos em nossa docência construir uma pedagogia curiosa,
que pergunta e se pergunta constantemente, e que reconheça que meninos e meni-
nas são portadores “de uma verdade” que precisa ser escutada. Que nesse processo
possamos viver uma vida educadoramente infantil, aquela que, inquieta, incansá-
vel, esperançosa está disposta a recomeçar, pois, de acordo com Kohan (2020, p. 98)
“[...] a infância que educa não tem idade nem se mede pela passagem das horas, dos
dias, dos anos... a infância educa em outro tempo, um tempo próprio... de presença
e presente. Um tempo infantil. [...]. Um tempo de pura presença”.
E aqui encontramos o tempo da criança, o tempo presente e de presença. Um
tempo presente de um eterno recomeçar. Um tempo de intensidade. Meninos e me-
ninas são seres ativos e na relação com o mundo humanizam-se ao mesmo tempo
em que também humanizam o mundo; portanto, não se entregam passivamente à
lógica adultocêntrica, mas se envolvem nos processos de socialização, lendo o mun-
do a partir de suas experiências existenciais e, no exercício da dialogicidade, produ-
zem as culturas infantis que, se devidamente consideradas, podem levar a cultura
estabelecida historicamente pelos adultos a ser repensada e ser reinventada e, com
isso, construir pedagogias das infâncias com as crianças e não para as crianças.
Nesse contexto, a participação das crianças é imprescindível para cidadania
da infância. Isso porque a cidadania só se concretiza quando os sujeitos participam
ativamente visando à transformação da sociedade. Para Freire, o ser humano é
participante ativo na construção histórica de seus direitos, tendo a educação uma
importante contribuição na formação dos cidadãos e cidadãs. Vale destacar que
esse educador, sem superestimar o papel da educação, defende sua relevância na
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construção de uma cidadania ativa. Segundo ele, sobre a relação dialética entre
educação e cidadania:
Não dá para dizer que a educação crie a cidadania de quem quer que seja. Mas, sem a
educação, é difícil construir a cidadania. A cidadania se cria com uma presença ativa, crí-
tica, decidida, de todos nós com relação à coisa pública. Isso é dificílimo, mas é possível. A
educação não é a chave para a transformação, mas é indispensável. A educação sozinha não
faz, mas sem ela também não é feita a cidadania (1995, p. 74).
Importante pontuar que, para o autor, o papel que a educação possui no pro-
cesso de transformação social não se baseia em um certo idealismo que não leva
em conta os contextos históricos e as condições socioculturais em que estão imersos
homens e mulheres, mas na sua profunda crença na capacidade dos seres huma-
nos, em colaboração, ao desvelar o mundo, transformá-lo. Assim, faz parte des-
se processo o sentido da crítica e dos conflitos, sendo esses inerentes ao espaço
público. A participação, portanto, é fundamental no processo de libertação, visto
que, nas palavras de Freire (2003, [1970], p. 90): “[...] a existência humana não
pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas
de palavras verdadeiras, com que os homens [e mulheres] transformam o mundo”.
Esse processo se inicia desde a mais tenra idade e tem na escola democrática uma
instância importante para seu exercício (FREIRE, 1993).
A criança compreendida por Freire é potente, curiosa, criativa, perguntadeira,
e precisa ser estimulada pelo educador e pela educadora de modo a ir:
[...] descobrindo a relação dinâmica, forte, viva, entre palavra e ação, entre palavra-ação-
-reflexão. Aproveitando-se, então, exemplos concretos da própria experiência dos alunos
durante uma manhã de trabalho dentro da escola, no caso de uma escola de crianças, es-
timulá-los a fazer perguntas em torno da sua própria prática e as respostas, então, envol-
veriam a ação que provocou a pergunta. Agir, falar, conhecer estariam juntos (FREIRE;
FAUNDEZ, 2017 [1985], p. 72).
Meninos e meninas têm o direito de participar ativamente dos processos edu-
cativos em uma relação horizontal, o que não significa a negação da autoridade
do educador, da educadora e nem a compreensão de que docentes e crianças são
iguais; ao contrário, afirmamos com isso a posição democrática entre eles e elas,
em que cada um conserva e defende sua identidade e em diálogo aprendem em
comunhão. Em Pedagogia do oprimido, Freire (2003 [1970], p. 81) afirma que:
Ao fundar-se no amor, na humildade, na fé nos homens, o diálogo se faz uma relação ho-
rizontal, em que a confiança de um pólo no outro é consequência óbvia. [...]. Se a fé nos
homens é um dado a priori do diálogo, a confiança se instaura nele. A confiança vai fazendo
os sujeitos dialógicos cada vez mais companheiros na pronúncia do mundo.
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Uma relação dialógica com as crianças pressupõe acreditar nelas, confiar em
sua capacidade de ler o mundo e de dizer a sua palavra a partir de suas diversas
formas de expressão. Por essa razão, Freire defende que o educador e a educadora
devem estimular o gosto das crianças pelas artes, pelos meios de comunicação, pela
leitura e escrita. Que respeitem nelas o seu brincar. A expectativa é a de que elas
avancem em seu conhecimento do mundo e que o façam de maneira participativa e
investigativa. E para que isso seja respeitado e considerado na prática educativa,
é preciso que educador e educadora se coloquem também em uma posição apren-
dente, isto é, de modo que possam aprender com o aprendizado da própria criança.
Aprender com a criança e com a infância...esta reflexão nos remete à Pedago-
gia da Autonomia.... Em Pedagogia da Autonomia, um dos saberes necessários à
prática educativa apresentado por Freire (1997 [1996], p. 23) é o de que “não há
docência sem discência”, pois enquanto ensinam, educador e educadora também
aprendem. E aprendem na relação com seus educandos e educandas mediatizados
pelo mundo, visto serem estes e estas sujeitos de sua própria formação e não obje-
tos. Assim, para Freire, o educador e a educadora progressistas não podem exercer
uma pedagogia imobilizante, que se constitua em mera transferidora de conteúdos
curriculares.
A criança, sujeito de sua formação, deve ser respeitada como tal. Escutar suas
vozes constitui-se em um saber essencial à educação como prática da liberdade.
Freire, acerca da ação antidialógica e autoritária da escola, relata a conversa com
um grupo de estudantes de uma escola de primeiro grau (hoje, ensino fundamental)
em que um dos educandos afirmava a necessidade de se escutar sempre as crianças
sobre o que lhes é ensinado. Dizia o estudante: “Nunca nos perguntaram sobre o
que queremos aprender. Pelo contrário, sempre dizem o que a gente deve estudar”
(FREIRE; GUIMARÃES, 1984, p. 77). Freire pontua dessa experiência o fato de
que meninos e meninas quando chegam às escolas têm algo a dizer e não apenas
a escutar, sendo assim, é preciso escutá-los não importando a idade que tenham.
O reconhecimento da importância da escuta das crianças está presente no
discurso de muitos educadores e educadoras, motivado, sobretudo, por estudos e
pesquisas da área da infância. Contudo, quando observamos o cotidiano de creches
e pré-escolas verificamos, em muitas destas instituições, uma prática pedagógica
esvaziada de sentido, pois nelas não há escuta e, consequentemente, não há diálo-
go. O que se nota é um discurso sobre a realidade. Como meio de buscar coerência
entre o discurso e a prática entendemos que retomar a concepção freiriana de diálo-
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go, escuta e amorosidade, pode contribuir no sentido de ressignificar tais conceitos
e com isso (re)pensar sua materialidade no cotidiano da educação infantil.
Como já mencionado neste texto, o diálogo é o encontro entre os seres huma-
nos que, mediatizados pelo mundo, o pronunciam, o que remete a uma profunda
crença neles e em sua capacidade de ler e dizer o mundo. É, portanto, a força
propulsora de um pensar crítico, que ao problematizar a realidade objetiva trans-
formá-la. Nesse sentido, como uma “exigência existencial” não pode ser reduzido
ao depósito de ideias de um sujeito sobre outro, como se verifica em perspectivas
antidialógicas, bancárias, nas quais as crianças são vistas como um futuro adulto,
que precisa se adaptar a uma sociedade pensada e construída pelos adultos para
elas e não com elas.
O diálogo implica necessariamente em humildade e abertura, reconhecendo
que ninguém sabe tudo e que ninguém sabe nada, mas que nesse encontro somos
capazes de saber mais. No caso da educação infantil, isso exige escutar as crianças.
Escuta que solicita silêncio por parte do educador e da educadora, o que não signifi-
ca omissão ou abandono, mas um profundo respeito à capacidade e às formas pelas
quais as crianças pensam e agem no mundo (SILVA, 2017).
O silêncio, enquanto um valor educativo, possibilita que meninos e meninas
possam dizer a sua palavra a partir de suas múltiplas linguagens. Cabe ressaltar
que a palavra em Freire reveste-se do sentido de dizer o mundo e agir sobre ele,
portanto, uma práxis social que nos impele ao compromisso com o processo de hu-
manização de todos e todas. Nesse processo, o aprendizado da escuta se faz essen-
cial, pois é escutando as vozes das crianças que aprendemos a falar com elas, visto
que, “Somente quem escuta paciente e criticamente o outro, fala com ele, mesmo
que, em certas condições, precise falar a ele. O que jamais faz quem aprende a
escutar para poder falar com é falar impositivamente (1997 [1996], p. 127).
A escuta, o diálogo, demandam um querer bem às crianças e ter a coragem
de dizê-lo, de falar de amor por elas enquanto compromisso não apenas técnico,
mas também ético, político e estético (FREIRE, 1993, 1997 [1996]). Nesse sentido,
educar dialogicamente é um ato de amor, é um comprometer-se consigo e com o
outro na luta pela libertação de todos e todas. A amorosidade, portanto, refere-se à
radicalidade de uma exigência ética, visto caracterizar-se como uma intercomuni-
cação entre duas consciências que se respeitam e que têm um profundo compromis-
so uma com a outra. Daí o fato de Freire afirmar que não há diálogo se não houver
um profundo amor ao mundo e aos homens e mulheres. Trata-se, deste modo, de
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um “amor armado”, um “[...] amor brigão de quem se afirma no direito ou no dever
de ter o direito de lutar, de denunciar, de anunciar” (1993, p. 57).
A defesa e a concretude de uma educação emancipadora na educação infantil
implicam em oferecer, desde os berçários, espaços e atividades em que os bebês e as
crianças pequenas possam fazer escolhas, tomar decisões, explorar, descobrir, per-
guntar, perguntar-se, narrar, debater, dizer sua palavra, participar. Nesse sentido,
encontramos em Freire pistas para pensarmos a materialização dessa participa-
ção, que deve partir da cotidianidade das crianças e considerar suas várias formas
de ler e comunicar o mundo.
Em diálogo com o educador Sérgio Guimarães, Freire defende o brincar como
linguagem fundamental da infância, como o modo pelo qual meninos e meninas
vão se desvelando, apropriando-se e confrontando-se com o mundo em que vivem
(FREIRE; GUIMARÃES, 1984). O brincar constitui-se como espaço de ação e de
compreensão da criança sobre a realidade; um espaço de descobertas e de apren-
dizagens. Em outro diálogo, discorrendo sobre os recursos da escola pública, os
autores pontuam:
[...] eu acho que o problema não é tanto porque sejam pedrinhas e tampinhas de garra-
fa. Acho que isso poderia dar uma excelente educação, se a escola realmente fosse capaz,
como política, de aproveitar os recursos naturais, aqueles fragmentos de mundo com que as
crianças brincam, por exemplo. Seria exatamente a partir da brincadeira delas com esses
pedaços de coisas e com essas coisas, que elas poderiam compreender a razão de ser das
próprias coisas (FREIRE; GUIMARÃES, 1982, p. 47).
Neste diálogo, Freire defende que a espontaneidade, a imaginação, a expres-
sividade, a inventividade e a criatividade das crianças não devem ser negadas “[...]
em nome da instalação de uma cega disciplina intelectual” (FREIRE; GUIMA-
RÃES, 1982, p. 53). No entanto, isso não significa a ausência de uma intenciona-
lidade pedagógica que, em Freire, intenta a ampliação da leitura de mundo pela
criança, uma leitura que possa ir se fazendo cada vez mais crítica.
Deste modo, o papel do educador e da educadora não é o de discursar sobre a
realidade mostrando às crianças o que ela é, segundo seu olhar adulto, mas instigar
a curiosidade para que elas possam, de maneira ativa, criativa e coletiva, desvelar
a realidade e transformá-la. Aqui caberia aos(às) docentes respeitar as diferentes
leituras, as diferentes compreensões e opiniões, sem, contudo, deixar de dizer tam-
bém a sua palavra. Freire assevera que o educador “[...] tem que ter a coragem de
dizer aos meninos como é que ele pensa também, desde que respeite a diferença
entre ele e os meninos. O que vale dizer: desde que exercite a tolerância, que é, em
curta análise, o respeito à diferença” (FREIRE; GUIMARÃES, 1984, p. 18).
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Nesse movimento dialético de leitura de mundo, uma outra pista diz respeito
às perguntas, pois para Freire, o ato de conhecer começa com o perguntar; são as
perguntas que instigam a busca pelas respostas. Para esse educador, “[...] é possí-
vel e é preciso fazer com as crianças um tipo de educação criadora, desinibidora,
uma educação que não se limite, nas crianças, o direito de perguntar; uma educa-
ção que, inclusive, sugira na prática, à criança, que ela jamais morra como criança”
(VANNUCCHI; SANTOS; FREIRE, 1983, p. 69).
A educação, de um modo geral, é uma educação das respostas e não das per-
guntas. Ao denunciar a pedagogia das respostas, que ainda marcam muitas de
nossas instituições educacionais, Freire alerta que:
[...] a repressão à pergunta é uma dimensão apenas da repressão maior - a repressão ao ser
inteiro, à sua expressividade em suas relações no mundo e com o mundo. O que se pretende
autoritariamente com o silêncio imposto, em nome da ordem, é exatamente afogar nele a
indagação (FREIRE; FAUNDEZ, 2017 [1985], p. 68).
Construir uma relação dialógica com meninos e meninas, reconhecendo-os
como participantes ativos da e na sociedade implica compreender o mundo a partir
dos seus olhos. Para tanto, é preciso criar com elas o hábito de perguntar, de se
espantar; de viver a pergunta, a indagação; de instigar a curiosidade pelo mundo
físico e social. Concordando com Freire, a pedagogia da resposta é uma “[...] peda-
gogia da adaptação e não da criatividade. Não estimula o risco da invenção e da
reinvenção. [...] negar o risco é a melhor maneira que se tem de negar a própria
existência humana” (FREIRE; FAUNDEZ, 2017 [1985], p. 75).
Como nos constituir cidadãos/cidadãs sem indagarmos e nos indagar? Sem
correr riscos? Sem sonhar a reinvenção de um outro mundo possível? Sem resis-
tir às formas de opressão? Sem lutar? É preciso conhecer a realidade para trans-
formá-la e o ato de conhecer inicia-se pelas perguntas. Assim, temos que romper
com o silêncio imposto e em seu lugar construir um movimento de perguntar e
perguntar-se, em que a dialogicidade, a amorosidade e a ludicidade constituam-se
como dimensões fundamentais à participação das crianças e à construção de uma
educação infantil cidadã.
Cidadã porque reconhece as crianças como cidadãs hoje, com direito à parti-
cipação, provisão e proteção. Cidadã, pois, com clareza de seu compromisso ético e
político na construção de uma educação emancipadora, faz-se e refaz-se no exercí-
cio cotidiano da cidadania, em um espaço coletivo de diálogo e partilha, não sendo
este, portanto, um conceito abstrato e esvaziado de sentido. Cidadã porque ao reco-
nhecer tal compromisso, luta para que todas as crianças e também seus educadores
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e educadoras aprendam e, assim, construam conhecimentos que os possibilitem ter
uma vida digna, o que coloca o desafio de romper com práticas pedagógicas padro-
nizadas e homogêneas. Cidadã, sobretudo, porque em um movimento inquietante
de perguntar e perguntar-se exercita a cidadania no dia a dia, no agora e não como
uma promessa de um tempo que talvez chegará. Crianças e adultos constituem-se
cidadãs/cidadãos na concretude da vida e, sendo assim, é preciso que essa cidada-
nia ativa seja instigada, (re)criada e (re)conquistada todos os dias.
Considerações nais
A epistemologia de Paulo Freire nos remete à compreensão de que educação,
cidadania e infância não são apenas conceitos abstratos, mas dimensões de uma
práxis crítica e criativa, que nos permite reconhecer as crianças como cidadãs e
com elas construir práticas pedagógicas emancipadoras. Práticas estas com aber-
tura suficiente para termos com elas um olhar de respeito a suas singularidades,
suas necessidades e seus direitos, dentre estes, o direito a dizer sua palavra e a
participar das decisões que envolvem suas vidas.
Concordamos, assim, com Freire quando ele afirma que a educação tem papel
fundamental na constituição da cidadania, visto ser esta a expressão dos interes-
ses tanto pessoais quanto coletivos dos diferentes sujeitos que atuam criticamen-
te sobre a realidade. Nesse sentido, a educação infantil, como primeira etapa da
educação básica, precisa criar um ambiente educativo marcado pelo exercício da
cidadania, cuja participação ativa de meninos e meninas, também nos processos de
decisão, seja uma constante no cotidiano das instituições. Com isso, educadores e
educadoras são desafiados a descentrarem-se da hegemonia adultocêntrica, para
que, desde uma perspectiva dialógica, e porque não infantil, possam estimular as
crianças no desvelamento e reinvenção do mundo.
Pensar uma educação infantil cidadã, que seja construída com as crianças
e não para as crianças, exigirá recriar o ambiente educacional, retirando dele as
mordaças e freios que silenciam as vozes das crianças, o seu brincar, suas produ-
ções culturais e tudo de criativo, inovador e transgressor que pode destes advir,
com vistas à construção de uma sociedade com mais boniteza e justiça social.
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Notas
1 Nas citações das obras de Paulo Freire, após a data da edição utilizada neste trabalho, a opção foi por
colocar entre colchetes [ ] a data da 1ª edição, a fim de considerar o período em que suas ideias foram de-
senvolvidas. Quando estas coincidiram, esse recurso não foi utilizado.
2 Os períodos são: 1) Antes do exílio, em outubro de 1964; 2) O Exílio, de outubro de 1964 a 16 de junho de
1980; 3) Depois do Exílio, de junho de 1980 até a sua saída da Secretaria de Educação do Município de São
Paulo, em maio de 1991; 4) Depois da Prefeitura de São Paulo, em maio de 1991, até sua morte em 02 de
maio de 1997 e 5) Obras publicadas, postumamente, por Ana Maria Araújo Freire. Para o levantamento
bibliográfico da obra de Paulo Freire, os seguintes trabalhos foram utilizados como referências: Paulo
Freire: uma biobibliografia (GADOTTI, 1996), A pedagogia da libertação em Paulo Freire (FREIRE, 2001)
e Paulo Freire: uma história de vida (FREIRE, 2006).
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380 ESPAÇO PEDAGÓGICO
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José Ricardo Barbosa Cardoso, Isabel Cristina Machado de Lara
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Resolução de algoritmos e de problemas de adição e subtração: uma análise
de estratégias utilizadas por estudantes com diagnóstico ou prognóstico de
Discalculia do Desenvolvimento
Resolution of algorithms and addiction and subtraction problems: an analysis of strategies used
by students with diagnosis or prognosis of Developmental Dyscalculia
Resolución de algoritmos y problemas de suma y resta: un análisis de estrategias utilizadas por
estudiantes con diagnóstico o pronóstico de Discalculia del Desarrollo
José Ricardo Barbosa Cardoso*
Isabel Cristina Machado de Lara**
Resumo
Este artigo apresenta parte dos resultados de uma pesquisa de Mestrado desenvolvida com cinco estudantes
que apresentam o diagnóstico ou prognóstico de Discalculia do Desenvolvimento. O objetivo é analisar as estra-
tégias utilizadas pelos participantes para resolver problemas convencionais, comparando-as com as utilizadas
para resolver algoritmos. Para tanto os participantes realizaram testes padronizados, dos quais foram seleciona-
dos, para este estudo os resultados dos algoritmos e problemas de adição e subtração. Para análise dos dados
coletados, optou-se pela Análise Textual Discursiva. Evidencia que para resolução de algoritmos as únicas estra-
tégias utilizadas são o cálculo mental e o uso dos dedos. Em relação à resolução de problemas convencionais do
tipo padrão, a estratégia mais utilizada foi o uso de algoritmos, e em seguida, novamente o cálculo mental e o
uso dos dedos. Mostra que os estudantes, embora possuam diagnóstico ou prognóstico de Discalculia Operacio-
nal apresentam um número maior de erros na execução dos algoritmos de subtração. Contudo, o desempenho
na resolução de problemas é satisfatório, apontando que possuem compreensão do conceito de adição e sub-
tração, portanto a Discalculia Ideognóstica não está vinculada ao treinamento do algoritmo.
Palavras-chave: algoritmos; Discalculia do Desenvolvimento; resolução de problemas.
* Mestre em Educação em Ciências e Matemática pela PUCRS. Licenciado em Matemática pelas Faculdades Porto-Ale-
grenses/FAPA. Atualmente é, professor do Colégio La Salle Niterói. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-0457-1519.
E-mail: ricardo_mat86@hotmail.com
** Pós-doutorado em Educação em Ciências e Matemática pela PUCRS. Doutora e Mestre em Educação pela Universi-
dade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Licenciada em Matemática pela UFRGS, Professora Permanente do Pro-
grama de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemática da PUCRS. Coordenadora do Grupo de Estudos e
Pesquisas sobre Discalculia GEPED/PUCRS. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-0574-8590. E-mail: isabel.lara@pucrs.br
Recebido em: 26/08/2019 – Aprovado em: 03/06/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i1.9813
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Abstract
This article presents part of the results of a Masters research developed with ve students presenting the diag-
nosis or prognosis of Developmental Dyscalculia. The objective is to analyze the strategies used by participants
to solve conventional problems, comparing them with those used to solve algorithm. Standardized tests were
used, being only in addition and subtraction operations. For analysis of the collected data we opted for the Dis-
cursive Textual Analysis. It shows that for algorithms resolution the only strategies used are mental calculation
and the use of ngers. Regarding conventional problem solving of the standard type, the most used strategy
was the use of algorithms, and then again the mental calculation and the use of the ngers. It shows that the
students, although having diagnosis or prognosis of Operational Dyscalculia present a larger number of errors in
the execution of the subtraction algorithms. However, the problem solving performance is satisfactory, pointing
out that the understanding of the concept of addition and subtraction, therefore the Ideognostic Dyscalculia, is
not linked to the training of the algorithm.
Keywords: algorithms; Developmental Dyscalculia; troubleshooting.
Resumen
Este artículo presenta parte de los resultados de una investigación de maestría desarrollada con cinco estudian-
tes que presentan el diagnóstico o pronóstico de Discalculia del Desarrollo. El objetivo es analizar las estrategias
utilizadas por los participantes para resolver problemas convencionales, comparándolos con los utilizados para
resolver algoritmos. Para esto, los participantes realizaron pruebas estandarizadas, de las cuales se seleccionaron
los resultados de los algoritmos y los problemas de suma y resta para este estudio. Para el análisis de los datos
recopilados, optamos por el Análisis textual discursivo. Muestra que para la resolución de algoritmos, las únicas
estrategias utilizadas son el cálculo mental y el uso de los dedos. En cuanto a la resolución de problemas con-
vencionales de tipo estándar, la estrategia más utilizada fue el uso de algoritmos, y luego nuevamente el cálculo
mental y el uso de los dedos. Muestra que los estudiantes, aunque tienen diagnóstico o pronóstico de Discalculia
Operativa, presentan un mayor número de errores en la ejecución de los algoritmos de resta. Sin embargo, el
rendimiento de resolución de problemas es satisfactorio, señalando que la comprensión del concepto de suma
y resta, por lo tanto, la Discalculia Ideognóstica, no está vinculada a la capacitación del algoritmo.
Palabras clave: algoritmos; Discalculia del Desarrollo; solución de problemas.
Introdução
A sociedade apresenta, historicamente, a Matemática como uma disciplina
em que os estudantes apresentam muitas dificuldades e baixo desempenho em
diferentes situações de avaliação. Algumas dessas dificuldades são constatadas
por meio de avaliações que verificam o rendimento escolar, geralmente organizado
pelo Ministério da Educação de cada país. De acordo com os resultados sobre o
desempenho de estudantes da Educação Básica de escolas estaduais e privadas do
Brasil, o rendimento em Matemática vem decrescendo constantemente. Entre os
testes que apontam isso, destacam-se o Programa Internacional de Avaliação de
Alunos (PISA) e a Prova Brasil. Em relação à Prova Brasil, em 2015, constatou-se
que 80% dos estudantes do Ensino Fundamental e Ensino Médio ficaram abaixo do
esperado (BRASIL, 2016).
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De acordo com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
Anísio Teixeira (Inep), em 2016, no teste do Pisa, o Brasil ficou na 66ª colocação,
atingindo uma pontuação de 337 pontos em relação ao parâmetro que é 490, evi-
denciando que 70,25% dos estudantes brasileiros estão abaixo do esperado (INEP,
2016). Considerando que a Matemática é uma área de conhecimento que se cons-
titui como um conjunto de conceitos e ferramentas essenciais para a resolução de
problemas do cotidiano e de outras áreas, torna-se relevante ficar atendo a esse
nível de desempenho dos estudantes.
Entre as justificativas apontadas para os resultados nessas avaliações, desta-
cam-se as defasagens na aprendizagem devido às dificuldades encontradas pelos
estudantes, desde os anos iniciais no Ensino Fundamental, e a formação dos docen-
tes que ensinam Matemática. Em relação a essa formação, evidencia-se, principal-
mente, a incapacidade do professor de identificar e compreender as dificuldades de
aprendizagem manifestadas pelos estudantes.
Dentre essas dificuldades de aprendizagem, verificam-se aquelas de cará-
ter extrínseco ao estudante e aquelas advindas de fatores internos ocasionadas,
portanto, por Transtornos de Aprendizagem. Uma definição para Transtornos de
Aprendizagem é dada por Ciasca (2003, p, 32), ao afirmar que:
[...] o termo utilizado para indicar uma perturbação ou falha na aquisição e uso de infor-
mações, ou na habilidade de solucionar problemas, manifesta-se por dificuldades signifi-
cativas na aquisição e uso da escrita, fala, leitura, raciocínio e/ou habilidades aritméticas,
devido a disfunção do sistema nervoso central, substancialmente abaixo do esperado para
a idade, escolarização e nível de inteligência.
É necessário fazer uma distinção entre dificuldade e transtorno de aprendi-
zagem. Dificuldades dizem respeito a falhas no processo de ensino ou de aprendi-
zagem, metodologias inadequadas utilizadas pelos docentes, fatores familiares e
psicológicos dos estudantes, bem como aspectos socioeconômicos (RELVAS, 2011).
Já, os transtornos ou distúrbios estão relacionados a uma falha no processamento
do sistema nervoso central que acarretam em problemas de leitura, escrita e habi-
lidades matemáticas (RELVAS, 2011).
No caso da Matemática, dois transtornos são reconhecidos, a Acalculia e a
Discalculia. Neste artigo, são aprofundadas as concepções acerca da Discalculia do
Desenvolvimento, uma vez que os estudantes participantes da pesquisa possuem
diagnóstico e prognóstico do transtorno. Entre as definições para Discalculia do
Desenvolvimento encontradas na literatura, destaca-se a de Kosc (1974, p. 166):
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[...] a structural disorder of mathematical abilities in which it had its origins in genetic
or congenital disorders of the parts of the brain which are the physiological anatomo sub-
strate of the maturation of age-appropriate mathematical abilities without a simultaneous
disorder of general mental functions.1
A Discalculia do Desenvolvimento é um transtorno que acomete entre 3% e 6%
da polução dos estudantes em idade escolar, ponde variar seu grau de severidade
e ter comorbidade com a Dislexia. Trata-se, portanto, de uma amostra conside-
rada rara nas escolas, uma vez que as etapas de diagnóstico não são acessíveis
a todos. Diante disso, neste estudo participaram cinco estudantes dos quais um
possui laudo de Discalculia, estudante do Ensino Médio e quatro com prognóstico
desse transtorno, sendo três estudantes que cursam o Ensino Fundamental e um
o Ensino Superior. O objetivo desta pesquisa é analisar as estratégias utilizadas
pelos participantes para resolver problemas convencionais e não convencionais,
comparando-as com as utilizadas para resolver algoritmo. Para coleta de dados
foram utilizados três instrumentos de avaliação: Prova de Aritmética (SEABRA;
MONTIEL; CAPOVILLA 2013); Teste de Desempenho Escolar (STEIN, 1994).
Discalculia do Desenvolvimento
A palavra Discalculia, etimologicamente, deriva dos termos “dis” (desvio)
acrescido de “calculare” (calcular, contar). Cohn (1968, p. 202) define o transtorno
como “[...] a dificuldade em realizar operações matemáticas, normalmente asso-
ciadas a problemas de revisualização de números, ideação, cálculo e aplicação de
instruções matemáticas”.
No Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - DSM-5 (2014,
p. 325), o termo Discalculia é nomeado como “Transtorno da Matemática” e sua
definição é de:
[...] um termo alternativo usado em referência a um padrão de dificuldades caracterizado
por problemas no processamento de informações numéricas, aprendizagem de fatos arit-
méticos e realização de cálculos precisos ou fluentes. Se o termo discalculia for usado para
especificar esse padrão particular de dificuldades matemáticas, é importante também es-
pecificar quaisquer dificuldades adicionais que estejam presentes, tais como dificuldades
no raciocínio matemático ou na precisão na leitura de palavras.
Esse manual apresenta uma nota de nomenclatura, cuja denominação é em
prejuízos na matemática, apontando quatro domínios que podem ser caracterís-
ticas do distúrbio: senso numérico; memorização de fatos numéricos; precisão ou
fluência de cálculos; precisão no raciocínio matemático (DSM-5, 2014). O documen-
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to enfatiza que os principais sintomas são: dificuldades na construção do núme-
ro que se caracterizam por inversões; na leitura de números; em realizar adições
simples; falhas na distinção dos sinais das operações; em decifrar de modo correto
o valor dos numerais com vários dígitos; na memorização de dados numéricos; em
armar a conta matemática e disposição no espaçamento errado de números com
operações de multiplicação e divisão (DSM-5, 2014).
De modo semelhante, a Classificação Estatística Internacional de Doenças e
Problemas Relacionados à Saúde - CID-10, refere-se à Discalculia do Desenvolvi-
mento como “Transtorno Específico da Habilidade em Aritmética”, com a seguinte
definição “[...] uma alteração na capacidade para a realização de operações mate-
máticas abaixo do esperado para a idade cronológica, nível cognitivo e escolarida-
de, sem presença de alterações neurológicas ou deficiências sensoriais e motoras”
(1993, p. 5). O documento ressalta que os protagonistas do processo são indivíduos
que possuem problemas relacionados à parte neurológica e de rendimento escolar
inferior aos demais, portanto suas defasagens não são relacionadas a dificuldades
físicas e emocionais, mas diretamente percebidas em problemas com cálculos arit-
méticos e raciocínio matemático (CID-10, 1993). Além disso, corrobora os quatro
domínios em defasagem apontados pelo DSM-5 (2014).
Adicionado a isso, vale ressaltar que, segundo Bastos (2016), os estudantes
que possuem Discalculia do Desenvolvimento podem ter indícios nos anos iniciais
do Ensino Fundamental, mas somente entre as idades de 7 a 8 anos, com a intro-
dução dos símbolos e das primeiras operações básicas que os sintomas podem ficar
nítidos. Dessa forma, perceber os sintomas na fase de criança até a juventude é
parâmetro para diagnosticar cedo a Discalculia (BASTOS, 2016).
Para dar conta dos objetivos propostos neste estudo, toma-se como alicerce teó-
rico principal os estudos de Kosc (1974), que, além de propor uma definição de Dis-
calculia do Desenvolvimento, propõe categorias que vão além dos quatro domínios
previstos pelos manuais, possibilitando uma visão mais detalhada das habilidades
que podem estar em defasagem em estudantes com diagnóstico e prognóstico desse
transtorno. Kosc (1974) define seis categorias para a Discalculia do Desenvolvimento:
Discalculia Verbal: indivíduos que apresentam defasagens em quantifi-
car e mencionar numerais, termos e simbologias;
Discalculia Practognóstica: indivíduos que apresentam defasagens em
fazer enumerações, comparações e manipulações de objetos;
Discalculia Léxica: indivíduos que apresentam defasagens na leitura de
simbologias matemáticas;
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Discalculia Gráfica: indivíduos que apresentam defasagens em realizar a
caligrafia dos numerais;
Discalculia Ideognóstica: indivíduos que apresentam defasagens em rea-
lizar cálculos de cabeça e no entendimento de conhecimentos matemáticos;
Discalculia Operacional: indivíduos que apresentam defasagens em rea-
lizar cálculos a partir da utilização da escrita em simbologias matemáticas.
Ressalta-se que neste estudo o foco principal é na Discalculia Operacional e na
Discalculia Ideognóstica.
Resolução de algoritmos e de problemas
Ifrah (1994, p. 95) afirma que “[...] os algoritmos são instrumentos desenvol-
vidos para tornar o cálculo mais simples por economizar tempo e facilitar sua rea-
lização através da generalização dos passos”. Complementando essa ideia, pode-se
citar Usiskin (1998, p. 7) ao definir algoritmo como um “[...] procedimento ou uma
sequência de procedimentos, com um número finito de passos, destinado a executar
uma tarefa que se deseja realizar”.
De acordo com Toledo e Toledo (1997), cada algoritmo é composto por elementos
diferentes, como, por exemplo, tem-se na adição os termos parcela, parcela e total
ou soma; na subtração minuendo, subtraendo e resto ou diferença; na multiplica-
ção temos o fator, fator e produto e na divisão dividendo, divisor, quociente e resto.
Na prática, percebe-se que nas aulas os estudantes têm a tendência de memorizar
os procedimentos do algoritmo para a resolução dos problemas propostos, mas não
conseguem ter o discernimento de escolher o caminho para encontrar a resposta.
Contudo, essa memorização não é suficiente para que esse estudante seja
considerado numeralizado. De acordo com Nunes e Bryant (1997), identifica-se
que um indivíduo está numeralizado quando ele é capaz de utilizar seu raciocínio
matemático de maneira significativa e adequada em certas circunstâncias e do-
mina o sistema numérico e as operações aritméticas e pensa com o conhecimento
matemático. “É ser capaz de pensar sobre e discutir relações numéricas e espaciais
utilizando as convenções […] da nossa própria cultura” (NUNES; BRYANT, 1997,
p. 19). Assim, o mesmo deverá realizar a leitura de enunciados de uma situação-
problema e escolher qual operação é apropriada para encontrar sua solução, além
disso, deverá identificar as distintas operações matemáticas.
Mesmo diante dessa definição de numeralização, o ensino da Matemática nos
anos inicias do ensino Fundamental, ainda tem como objetivo principal para al-
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guns professores a habilidade de resolver algoritmos. Entretanto, de acordo com
Kamii e Housman (2002, p. 100), o uso dos algoritmos é considerado prejudicial na
aprendizagem por dois fatores: “[...] i) eles encorajam a criança a abandonar seu
próprio pensamento; ii) eles “desensinam” valor posicional, desse modo impedindo
as crianças de desenvolver o senso numérico”. Nesse sentido, Carraher, Carraher e
Schliemann (1988) afirmam que a escola deveria incentivar os estudantes a desen-
volverem seu pensamento utilizando um simbolismo que possibilite a comunicação
e a troca de experiências. Os autores afirmam ainda que o método de resolução de
problemas não elimina a aprendizagem dos algoritmos.
Em suas pesquisas, desenvolvidas com cinquenta estudantes do ao 5° ano
do Ensino Fundamental, Lara (2011, p. 17) mostra que:
[...] a partir do momento em que as crianças começavam a lidar com algoritmos pareciam
iniciar um processo de desligamento do seu próprio modo de pensar, afastando-se cada vez
mais de um pensamento flexível e da capacidade de fazer estimativas e interpretações.
Lara (2011, p. 119) comprova que “[...] na medida em que eles avançam na vida
escolar, tendem a abstrair o seu pensamento de modo a optar cada vez mais pelo
uso dos algoritmos”. Contudo, isso pode implicar no abando do seu próprio modo
de pensar bem como na desistência da busca de estratégias próprias para resolver
problemas (LARA, 2011).
No que concerne à resolução de problemas, D’Amore (2007, p. 285) argumenta
que: “[...] é a forma mais eficaz não somente do desenvolvimento da atividade ma-
temática dos estudantes, mas também da aprendizagem dos conhecimentos, das
habilidades, dos métodos e de suas aplicações”. Contudo, faz necessário repensar a
concepção de problema. Villa e Callejo (2006, p. 29) ressaltam que:
Um problema é uma situação, proposta com finalidade educativa, que propõe uma questão
matemática, cujo método de solução não é imediatamente acessível ao aluno ou ao grupo
de alunos que tenta resolvê-la, porque não dispõe de um algoritmo que relaciona os dados e
a incógnita ou de um processo que identifique automaticamente os dados com a conclusão
e, portanto, deverá buscar, investigar, estabelecer relações e envolver suas emoções para
enfrentar uma situação nova.
Diante disso, um problema não seria resolvido facilmente com uma simples
aplicação de algoritmo. Nesse sentido, Brito (2006) aborda o termo “solução” para
comentar sobre as estratégias de se chegar a uma resposta de um problema. Em re-
lação ao termo de solução de problemas, Brito (2006, p. 27) entende que “[...] é uma
forma complexa de combinação dos mecanismos cognitivos disponibilizados a partir
do momento em que o sujeito se depara com uma situação para a qual precisa bus-
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car alternativas de solução”. Portanto, a solução de problemas remete a um processo
que começa quando o indivíduo encontra uma circunstância que provoca a vontade
pela busca de uma solução e na reorganização dos elementos que constam na es-
trutura, de uma maneira que chegue a um resultado (BRITO, 2006). Em relação
às classificações sobre os problemas matemáticos, Diniz (2001) denomina-os como
convencionais e não convencionais. Assim, segundo a autora (2001, p. 100-101),
[...] as características básicas de um problema convencional são: texto na forma de frases,
diagramas ou parágrafos curtos; os problemas vêm sempre após a apresentação de deter-
minado conteúdo; todos os dados de que o resolvedor necessita aparecem explicitamente no
texto e, em geral, na ordem em que devem ser utilizados nos cálculos; os problemas podem
ser resolvidos pela aplicação direta de um ou mais algoritmos; a tarefa básica em sua reso-
lução é identificar que operações são apropriadas para mostrar a solução e transformar as
informações do problema em linguagem matemática; a solução numericamente correta é
um ponto fundamental, sempre existe e é única.
De acordo com Brito (2006), o uso de problemas convencionais pode gerar al-
guns comportamentos inoportunos nos estudantes quando estão realizando a reso-
lução, pois é comum os discentes vincularem esses problemas com alguns cálculos
aritméticos e indagarem: “Qual a conta que tenho que fazer nesse problema?”, ou
tentarem identificar nos problemas termos que associam a linguagem à alguma
operação, como: “ao todo”, “total” ou “acrescentar” que podem ser direcionados a
natureza das operações de adição e “restou”, “sobrou”, “faltou” e “perdeu” que estão
relacionados ao campo da subtração. Isso leva a ter um desequilíbrio na aprendiza-
gem se tratando da resolução de problemas, pois os estudantes tendem a pensar só
no algoritmo que deve escolher sem pensar nos conceitos envolvidos no problema,
buscando memorizar como resolve cada tipo de problema. Efeito disso pode ser um
fracasso na aprendizagem se apegando cada vez mais ao uso de um algoritmo e
deixado de lado seu próprio raciocínio, como mostra Lara (2011) em seus estudos.
Esse tipo de comportamento pode causar o medo, insegurança e ao longo de sua vida
escolar ter defasagens que dificultam sua aprendizagem matemática (DINIZ, 2011).
A resolução de problemas, conforme Polya (2006), é um processo cujo objetivo
é a investigação de um ato para atingir um propósito que deseja alcançar, mas
que não se pode ter certeza se vai conseguir concretizá-lo, dessa forma estabeleceu
quatro etapas para a solução de problemas: 1) Compreender o problema: por meio
da leitura o estudante precisa identificar palavras, significados e expressões com
o objetivo de descobrir a solução; 2) Elaboração de um plano: após a leitura deve
organizar os processos e estratégias que julga adequados para encontrar a solução;
3) Executar o plano: deverá escolher pela melhor estratégia e executá-la; 4) Re-
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trospecto: nessa última etapa o estudante deverá apurar e reconhecer a resposta
encontrada a partir da circunstância inicial do problema.
Na mesma perspectiva de Polya, Dante (1991) renomeia algumas etapas: 1)
compreender o problema; 2) elaboração do plano; 3) execução; 4) retrospecto ou
verificação. De acordo com Dante (1991), as etapas estabelecidas auxiliam os es-
tudantes na organização do seu pensamento na resolução de problemas. Percebe-
-se que, ao longo do tempo, as etapas para a resolução de problemas foram sendo
aprimoradas por cada autor com intuito de auxiliar os estudantes a resolverem os
problemas propostos.
O campo conceitual da estrutura aditiva
Com base em alguns conceitos da teoria de Piaget, em particular de esquema
e dos estudos de Vygotsky sobre linguagem, Gérard Vergnaud propôs a Teoria dos
Campos Conceituais (LARA, 2011). De acordo com Golbert (2002, p. 28), Vergnaud
define que um campo conceitual é “[...] um conjunto de situações, cujo tratamento
implica esquemas, conceitos e teoremas, em estreita conexão, assim como as repre-
sentações linguísticas e simbólicas, suscetíveis de serem utilizadas para represen-
tá-lo”. A autora complementa que, para Vergnaud, existem três aspectos para os
campos conceituais: situações; conceitos; e, representações simbólicas.
Relacionando a aprendizagem a esses três aspectos, percebe-se que um indi-
víduo necessita lidar com diversas situações, seja pela aprendizagem escolar, seja
por suas vivências fora do ambiente escolar. Tais situações lhe propiciarão a criar
esquemas para saber enfrentá-las, e assim irá se apoderar de representações sim-
bólicas que se agregará às situações para saber solucioná-los. Será a partir do
movimento desses três aspectos que o indivíduo estará criando conceitos, de acordo
com a teoria de Vergnaud (GROSSI, 2001).
O campo conceitual das estruturas aditivas é uma união de circunstâncias,
cujo princípio acarreta em uma ou inúmeras adições ou subtrações, ou combinação
das duas, e um agrupamento de conceitos e teoremas que possibilitam averiguar as
circunstâncias como afazeres matemáticos (VERGNAUD, 1996). Conforme Kamii
(1998, p. 84), com perspectivas piagetianas, a operação de adição possui como prin-
cípio “[...] uma ação mental (abstração construtiva) de combinar dois totais para
criar um de ordem superior no qual os totais anteriores, se tornam duas partes”.
Já a subtração, é considerada pela autora como mais complicada do que a adição,
devido aos seus níveis de entendimento. Assim, na adição o estudante tem como
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princípio “ascender” de dois totais (6 e 3, por exemplo) para uma totalidade supe-
rior (9), enquanto na subtração, (9 – 6), ele precisa descender do total (9) para parte
(6) e depois ascender da parte (3) para encontrar o total (9) (KAMII,1998).
Participantes da pesquisa e instrumentos de coleta de dados
Buscaram-se estudantes que possuíam laudos ou prognósticos de transtor-
nos de aprendizagem em Matemática. Para referir-se a cada um deles, durante a
pesquisa, criaram-se codinomes, expostos no Quadro 1, juntamente com algumas
informações básicas.
Quadro 1 – Descrição básica dos participantes da pesquisa
Codinome Gênero Idade Ano em que
estuda*
Modalidade de
escola Município
Antônio Masculino 15 9º ano EF Privada Porto Alegre
Taíssa Feminino 17 3º ano EM Privada Canoas
Paulo Masculino 15 7º ano EF Pública Porto Alegre
Ricardo Masculino 10 5º ano EF Pública Caçapava do Sul
Carlos Masculino 19 4º sem ES Privado Porto Alegre
Fonte: elaboração dos autores.
* EF – Ensino Fundamental; EM – Ensino Médio; ES – Ensino Superior.
Além disso, coletaram-se todas as informações que os responsáveis possuíam
sobre anteriores avaliações e possíveis diagnósticos. Para apresentá-las, organi-
zou-se uma síntese sobre cada participante. Vale ressaltar, que nem toda a do-
cumentação foi disponibilizada pelos responsáveis ou pelas escolas. Desse modo,
não foi possível obter maiores informações sobre os mesmos aspectos para cada
participante. Em todo momento do desenvolvimento da pesquisa, foram mantidas
em anonimato as identidades dos participantes.
Para a coleta de dados, foram realizados os seguintes testes: Subteste de Aritmé-
tica (STEIN, 2004) e Prova de Aritmética (SEABRA; MONTIEL; CAPOVILLA, 2013).
Analisando o desempenho na resolução de algoritmos
No Quadro 2, foram organizadas as respostas dos Subteste de Aritmética de
Stein (1994) e de Seabra, Montiel e Capovilla (2013), contendo os números de acer-
tos (A) e o número de erros (E).
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Jeruza da Rosa da Rocha, Marta Nörnberg
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Quadro 2 – Respostas sobre as atividades propostas do Teste de Aritmética – Seabra, Montiel e Capovilla (2013) e Stein (1994) (Adição e Subtração)
Sujeito Teste Stein Desempenho Teste Capovilla Desempenho
A E A E
Antônio 12 1
15 1
Taíssa 13 3 13 3
Paulo 5 8 4 12
(continua...)
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Tem gente caminhando pra lá e para cá”: caminhar com as crianças – a pesquisa em contexto campesino
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Ricardo 10 3 15 1
Carlos 12 1 13 3
Fonte: elaboração dos autores.
(conclusão)
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O primeiro sujeito a realizar os testes foi Antônio, que obteve dois erros com
operações da adição e subtração proposto em cada atividade. O primeiro erro foi a
partir de uma subtração (401-74) no Subteste de Aritmética (STEIN, 1994) encon-
trando como resposta o resultado 337. No Teste de Aritmética (SEABRA; MON-
TIEL; CAPOVILLA, 2013), ao ouvir a operação (65+17) o mesmo registrou (75+17)
encontrando como resposta 102, cálculo que deveria ter como resposta 92. A estra-
tégia utilizada por esse estudante foi cálculo mental. Verifica-se que o estudante já
havia acertado outras subtrações com retorno e adições com transporte, o que suge-
re que esses erros ocorreram devido à desatenção em resolver as operações. Sobre
isso, Consenza e Guerra (2011) afirmam que existem algumas áreas que auxiliam
na aprendizagem como: emoção; memória; atenção; motivação; socialização. No
caso da atenção, Brandão (1991) afirma que é o caminho da mente e o agrupamento
de procedimentos psicológicos que proporcionam o foco em certo acontecimento ou
objeto, com intuito de que o indivíduo possa fazer escolhas, selecionar e planejar os
dados que acha significativo. O momento de avaliação sempre pode causar um pou-
co de ansiedade e angústia para o estudante fazendo com que seu foco de atenção
seja outro que não a tarefa que está sendo solicitada naquele instante.
A estudante Taíssa obteve alguns erros em ambos os testes envolvendo algo-
ritmos da adição e subtração. Os erros em ambos os testes foram variados, embora
na adição prevaleçam os erros quando necessita de transporte, foi o caso de (75+8)
e de (452+137+245), o erro em (3+9) contradiz um padrão ou a não construção do
sistema das dezenas. Já na subtração, todos os erros foram cometidos nos algo-
ritmos em que era necessário o retorno de uma ordem para uma ordem inferior,
(43 – 18 = 26), (401 – 74 = 427), (3415 – 1630 = 2885), (58 – 29 = 31) e (61 – 53 = 7),
porém não existe um padrão no tipo de erro. Isso pode corroborar a não construção
dos sistemas tanto de dezena quanto da centena, apontando para um erro de pro-
cessamento numérico, o que poderá ocasionar dificuldades no cálculo. Seu desem-
penho vai ao encontro do que consta em seu parecer psicológico e psicopedagógico
os quais apontam déficits em habilidades visoespaciais e visoperceptivas que cau-
sam dificuldades em realizar operações aritméticas, tendo como diagnóstico final
pelo CID 10, o transtorno F81.2, ou seja, Discalculia do Desenvolvimento. De fato,
os erros cometidos por Taíssa são característicos da Discalculia, uma vez que entre
as defasagens apresentadas nesse transtorno, conforme Bastos (2016), destaca-se
a habilidade para realizar cálculos simples, memorização de fatos numéricos e di-
ficuldades em resolver operações com transporte. Além disso, em relação à catego-
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rização realizada por Kosc (1974), Taíssa apresenta indícios fortes de Discalculia
Operacional.
O estudante Paulo ao resolver os testes teve alguns acertos nas adições e sub-
trações de unidade por unidade, exceto no caso de 3+8=10. Em relação a outros
erros, nas adições e subtrações com dois ou mais algarismos o estudante acertou
somente uma operação como (19 – 3=16), demonstrando defasagem no processa-
mento numérico, em particular na construção do número e seu valor posicional,
embora que a maioria dos erros não estabelecem um padrão. No Subteste de Arit-
mética (STEIN, 1994), os erros em relação à adição foram: (17 + 21 + 40 = 87);
(75 + 8 = 35); (452 + 137 + 245 = 253) e (1230 + 150 + 1620 = 4150). Na subtração
os erros foram os mesmos cometidos pela adição, ou seja, a não compreensão do
sistema de numeração decimal e não existência de um padrão, exemplo disso são
casos como: (28 – 12 = 15); (43 – 18 = 12); (401 – 74 = 41); e, (3415 – 1630 = 1515).
Ou seja, percebem-se erros tanto nas adições e subtrações simples quanto nas de
transporte e retorno, respectivamente.
Para compreender possíveis estratégias utilizadas pelos estudantes para
encontrar a resposta, é possível citar Kamii (1998) ao tratar que é necessário a
criança realizar operações, escrever e identificar os numerais, assim criando um
pensamento mental para a utilização da contagem e leitura dos numerais, não
acarretando em uma mera memorização de sequências de números. Contudo, no
caso de Paulo, nem a memorização de fatos aritméticos foram observados.
O estudante Ricardo ao realizar o Subteste de Aritmética (STEIN, 1994) não
apresentou nenhum erro nas operações de adição, mas apresentou três erros na
subtração. Na primeira operação (43 – 18) encontrou como resposta o número 21.
Já nas outras duas, (401 – 74 = 473) e (3415 – 1630 = 2225), é observável que o
estudante desenvolveu seu cálculo da subtração retirando sempre do algarismo de
maior módulo, não levando em conta as regras da subtração, nem mesmo questões
do processamento numérico considerando os valores relativos de cada numeral. Na
Prova de Aritmética (SEABRA; MONTIEL; CAPOVILLA, 2013), Ricardo utilizou a
mesma estratégia equivocada, pois na operação (58 – 29) encontrou como resposta
31. Já em relação as demais operações que não exigiam realizar subtrações com
reserva, ou seja, com retorno, o estudante acertou todos os cálculos propostos.
De acordo com Kamii (1998, p.101): “Quando se ensina a criança regras ou
operações que elas não entendem, elas perdem a intuição que tinham e têm de ler
todos os dígitos como unidades”, talvez isso justifique pensar em 9 – 8 e não o 8 – 9
como solicitado. Além disso, Ricardo em suas respostas representou números espe-
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lhados, que conforme argumenta Zorzi (2001), crianças que possuem esse tipo de
registro em avalições e atividades tende ao possível quadro de Dislexia, envolvendo
dificuldades quanto ao domínio de relações espaciais e temporais relacionadas ao
conhecimento da escrita, reforçando erros nas letras e nos números. Embora Ricar-
do não apresente um laudo oficial de Dislexia, são nítidas as suas dificuldades com
a leitura e a com a escrita, fato esse corroborado pela fala de sua mãe.
Para compreender os erros cometidos pelos estudantes, vale sublinhar o que
Cury (2007, p. 63) afirma, “[...] ao analisar as respostas dos alunos, o fundamental
não é o acerto ou o erro em si, mas as formas de se apropriar de um determinado
conhecimento, que pode indicar dificuldades de aprendizagem”.
O estudante Carlos apresentou desempenho favorável ao realizar o Subteste
de Aritmética (STEIN, 1994), acertando todas as operações de adição e de subtra-
ção, exceto a operação (401 – 74 = 328), ou seja, encontrando um valor a mais que a
resposta certa (327), o que leva a sugerir que foi uma falta de atenção. Na Prova de
Aritmética (SEABRA; MONTIEL; CAPOVILLA, 2013), Carlos apresentou um erro
na adição (7 + 4 = 12) e na parte oral o mesmo apresentou dois erros (3 – 8 = – 5),
onde a proposta era (3 + 5) e (71 + 53 =124) onde foi lhe ditado (71 – 53). Percebe-se
que, no segundo erro, talvez Carlos tivesse feito a adição mental e, devido à pressa
em fazer o registro, acabou invertendo os numerais, o que caracterizaria uma falta
de atenção por parte do estudante, embora, por outro lado, considerando números
inteiros como seu universo, o estudante acertou o cálculo que se propôs a realizar.
O mesmo acontece quando lhe é ditada uma adição e, por distração, realiza uma
subtração. Verificando a avaliação psicopedagógica que foi disponibilizada pelo es-
tudante, percebe-se um avanço em seu desempenho, pois percebe-se que não é mais
tão lento, como consta no laudo fornecido em 2016, e em geral não apresenta difi-
culdades em realizar operações de adição, apenas alguns erros que não seguiram
um padrão, sugerindo, portanto, uma desatenção.
Em relação aos erros, Fiorentini (2006, p. 4) afirma que:
[...] erro escolar, na verdade, resulta do esforço dos alunos em participar do processo de
aprendizagem, produzindo e negociando, a partir de seu mundo e de sua cultura, sentidos
e significados sobre que se ensina e aprende na escola. E nesse sentido, o erro não poderia
ser visto como um mal a ser erradicado, mas como parte do processo de aprender e desen-
volver-se intelectualmente.
É perceptível que os participantes da pesquisa cometeram muito mais erros
nos algoritmos de subtração do que nos de adição, corroborando o que Kamii (1998)
afirma em relação à subtração ser uma operação que envolve esquemas mais com-
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plexos que a adição, principalmente, frente à noção de negatividade, que muitas
vezes não é desenvolvida pelo professor desde os anos iniciais. Durante a realiza-
ção das atividades propostas, os sujeitos relataram que a subtração é mais difícil
que a adição, pois tinham que lembrar como realizavam os seus procedimentos, em
particular o “pegar emprestado”. O fato de alguns afirmarem que não lembravam
de como “pedir emprestado” já demonstra uma não construção do valor posicional
e a compreensão de que uma unidade maior vale dez vezes a ordem anterior. De
acordo com Ramos (2009), na operação de subtração não acontece o procedimento
de “emprestar”, mas o processo de desmanchar grupos quando é necessário, fazer
trocas por meio de uma estrutura lógica do sistema de numeração decimal, inte-
grando e reintegrando quantias de dez em dez. Trata-se, conforme outros autores,
do domínio do processamento numérico. O que conforme as características des-
critas no DSM-5 (2014), poderiam se referir a prejuízos na memorização de fatos
aritméticos, precisão ou fluência de cálculo. Isto é, dois dos quatro domínios lista-
das pelo manual como aqueles que podem apontar para o Transtorno Específico
da Aprendizagem em Matemática, para Discalculia do Desenvolvimento. Contudo,
entre os participantes aquele que mais se aproximaria de um prognóstico desse
transtorno seria Paulo.
Ao final da análise das estratégias utilizadas, preponderou na resolução de al-
goritmos, o cálculo direto do algoritmo, sem a tentativa de uma alternativa diferen-
ciada, apenas o cálculo mental, e a contagem nos dedos utilizado por alguns estudan-
tes para pequenas quantidades. Isso pode ser um sinal de que em sala de aula eles
já tenham desenvolvido a habilidade de resolver algoritmos de forma mnemônica.
Para os estudantes que não possuem laudo, mas apresentaram, durante a
resolução dos algoritmos fortes indícios de uma Discalculia Operacional, é funda-
mental uma análise mais acertada de uma equipe multidisciplinar e a realização
de neuroimagens. Conforme Consenza e Guerra (2011), por meio de neuroimagem
é possível visualizar uma ativação do lobo parietal quando os sujeitos estão rea-
lizando comparações de quantidades. Dessa forma, uma lesão nessa região pode
acarretar problemas em realizar operações aritméticas, mas não perdem a noção
de realizar os cálculos por estimativa por meio do hemisfério direito.
Analisando o desempenho na resolução de problemas
Esta seção tem o objetivo de apresentar as estratégias dos participantes de
pesquisa acerca da resolução de problemas convencionais envolvendo o algoritmo
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da adição e subtração. Por meio dos aportes teóricos utilizados, nesta pesquisa, so-
bre resolução de problemas, elencaram-se cinco categorias a priori, que por meio de
uma ATD, com base em Moraes e Galiazzi (2011), serviram para analisar as estra-
tégias utilizadas pelos estudantes participantes da pesquisa, sejam elas: represen-
tação pictórica; cálculo mental; uso de algoritmo; contagem nos dedos; oralidade.
Para avaliar as estratégias criadas por cada um dos sujeitos na resolução de
problemas convencionais, a partir das categorias a priori, utilizaram-se as seguin-
tes situações-problema:
Situação 1: João tinha quatro maçãs e ganhou mais oito. Com quantas
maças João ficou? (SEABRA; MONTIEL; CAPOVILLA, 2013)
Situação 2: Maria tinha treze livros mas perdeu dois. Com quantos livros
Maria ficou? (SEABRA, MONTIEL; CAPOVILLA, 2013)
Para organizar os dados da resolução dos problemas a partir do registro dos
sujeitos de pesquisa, elaboraram-se quadros com as respostas dos estudantes.
Situação 1: Para resolver a situação: João tinha quatro maçãs e ganhou mais
oito. Com quantas maças João ficou? Os sujeitos utilizaram diferentes estratégias,
organizadas no Quadro 3.
Quadro 3 – Estratégias utilizadas para resolver a situação problema 1
Estudante Antônio Taíssa Paulo Ricardo Carlos
Resolução
Estratégia Algoritmo Contagem nos dedos Cálculo mental Algoritmo Cálculo mental
Fonte: elaboração dos autores.
É perceptível que as estratégias utilizadas pelos estudantes foram distintas,
abrangendo três das categorias a priori propostas. O problema proposto para os
estudantes é classificado de acordo Golbert (2002, p.48) como “Composição – dois
estados fixos se unem num terceiro estado fixo”. Em relação à leitura dos proble-
mas, Antônio, Taíssa e Carlos não necessitaram da ajuda do aplicador, já Ricardo
e Paulo solicitaram a ajuda da leitura do problema por possuírem o prognóstico de
Dislexia. Para Ricardo, devido a sua dificuldade, foi necessário ler duas vezes o pro-
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blema para que ele abstraísse os dados. Mesmo assim foi solicitado que o estudante
lesse o problema em uma leitura mais rápida para o entendimento do enunciado.
Antônio, Paulo, Ricardo e Carlos conseguiram chegar à resposta correta,
exceto Taíssa que encontrou a resposta incorreta do problema. A partir disso, a
estudante foi indagada de como resolveu o problema e a mesma relatou que “o pro-
blema dizia que tinha quatro maçãs e ele ganhou mais quatro maçãs, por isso que
encontrei como resposta o número 8”. A partir do erro cometido por Taíssa, sugere-
-se que foi apenas falta de atenção, mas vale acrescentar o dito por Cândido (2001)
ao enfatizar que é necessário trabalhar com textos nas aulas de Matemática, pois
os estudantes precisam se apropriar da linguagem matemática e dos símbolos uti-
lizados nos conceitos desenvolvidos, assim possibilitando uma compreensão das
articulações e expressões do conhecimento construído.
Situação 2: Para resolver a situação: Maria tinha treze livros, mas perdeu
dois. Com quantos livros Maria ficou?, os participantes utilizaram diferentes estra-
tégias, organizadas no Quadro 4.
Quadro 4 – Estratégias utilizadas para resolver a situação problema 2
Estudante Antônio Taíssa Paulo Ricardo Carlos
Resolução (11livros)
Estratégia Algoritmo Algoritmo Contagem nos dedos Algoritmo Cálculo mental
Fonte: elaboração dos autores.
Nessa situação-problema, todos os participantes conseguiram chegar à res-
posta correta. Os sujeitos Paulo e Ricardo necessitaram que o aplicador fizesse a
leitura do problema para realizar a atividade. Para resolver essa situação a maio-
ria dos estudantes optou pela realização do algoritmo e apenas um fez o cálculo
mentalmente.
Embora a magnitude dos números envolvidos em ambas situações-problema
seja bem menor dos envolvidos na resolução de algoritmos, é perceptível que os es-
tudantes entendem a adição como um esquema de acrescentar e a subtração como
um esquema de retirar. Percebe-se que pensam matematicamente para encontrar
essas soluções, demonstrando defasagens voltadas em particular à Discalculia
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Operacional e não ao entendimento de conhecimentos matemáticos característicos
à Discalculia Ideognóstica.
Conuências e divergências
Ao referir-se aos resultados encontrados e à análise das estratégias desen-
volvidas pelos cinco participantes em resolver algoritmos da adição e subtração e
para resolver problemas convencionais, utilizando como instrumentos testes pa-
dronizados, é possível perceber algumas confluências. Além disso, baseando-se no
desempenho dos cinco estudantes em resolver algoritmos de adição e subtração e
problemas convencionais, nota-se que as estratégias utilizadas em cada processo
foram distintas.
Vale ressaltar que Antônio, Taíssa, Ricardo e Carlos nas tarefas que envolviam
resolução de algoritmos não cometeram muitos erros. Analisando o desempenho de
Antônio e Carlos, verifica-se que ambos demonstraram traços de desatenção, uma
vez que cometeram erros aleatórios que não demonstraram um padrão. Já Taíssa
e Ricardo evidenciaram erros acerca do processamento numérico explicitados du-
rante a resolução de adições com transporte e subtrações com retorno. Em relação
a Paulo, percebem-se erros mais básicos, o que sugere a não construção do número
e do valor relativo e absoluto dos numerais, o que condiz com sua capacidade de
processamento numérico.
Em relação aos problemas convencionais, os participantes tiveram um ótimo
desempenho. Nas dez soluções apresentadas, verificou-se que a estratégia mais
utilizada foi a montagem do algoritmo, apenas três soluções foram encontradas por
meio do cálculo mental e duas pela contagem dos dedos. O único erro foi cometido
por Taíssa, mas sua argumentação leva a pensar que pela rapidez de sua resposta
e processamento mental confundiu uma das partes da adição com o total.
Embora a magnitude das quantidades expressas nas situações-problema seja
bem menor que as envolvidas nos algoritmos, o que não possibilitaria detectar os
mesmos erros no processamento numérico frente a adições com transporte e sub-
trações com reservas, o objetivo com a proposição dessas duas situações-problema
consistiu na possibilidade de analisar se esses cinco estudantes dominam os con-
ceitos de adição e subtração. Diante disso, foi perceptível que embora todos possam
possuir algum tipo de dificuldade diante a resolução de um algoritmo, todos enten-
dem que em uma situação de acréscimo está envolvido o conceito de adição e que
em uma situação de retirar está envolvido o conceito de subtração.
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Verificou-se que, durante os momentos de aplicações dos problemas convencio-
nais, a maioria dos participantes não conseguiu e nem tentou expressar de modos
distintos sua resolução. Isso, por um lado, conforme o relato de alguns, pode ser
ocasionado pelo fato de seus professores não estimularem a utilização de outras
estratégias para resolução de problemas, por outro, pode estar relacionado à crença
de que um problema matemático possui apenas uma forma de resolução e apenas
uma resposta correta, evidenciando, como já feito em outras pesquisas, que na
escola alguns professores supervalorizam o uso do algoritmo.
Essa prática dos professores é criticada por Diniz (2001, p. 89) ao afirmar que
a resolução de problemas “[...] trata de situações que não possuem solução evidente
e que exigem que o resolvedor combine seus conhecimentos e decida pela maneira
de usá-los em busca da solução”. Corroborando a ideia de Diniz, as autoras Lara e
Pimentel (2015) ressaltam que os estudantes ao encontrar problemas padroniza-
dos, irão resolver de forma automatizada os seus procedimentos.
É relevante destacar, que este artigo apresenta apenas uma parte da pesqui-
sa, e que em outras tarefas, em que a resolução de problemas não convencionais
foi analisada, verificaram-se outras estratégias como a utilização de representação
pictórica e oralidade.
Considerações nais
Este artigo teve como objetivo analisar as estratégias utilizadas pelos parti-
cipantes para resolver problemas convencionais, comparando-as com as utilizadas
para resolver algoritmos. Percebeu-se que, ao resolver as operações, os estudantes
apresentaram dificuldade em realizar adições com transporte e subtrações com
retorno evidenciando defasagens em relação ao processamento numérico. Contudo,
na resolução de problemas que abordavam as mesmas operações, e que tinham
o intuito de verificar se os estudantes dominam o conceito de adição e subtração
o desempenho foi satisfatório, embora Taíssa tenha errado o problema envolven-
do adição, evidenciou-se que cometeu o erro por falta de atenção. Vale ressaltar
que um dos participantes envolvidos na pesquisa possui diagnóstico de Discalculia
Operacional, três participantes possuem fortes indícios de Discalculia Operacional
em comorbidade com a Dislexia e um com fortes indícios de Discalculia Operacio-
nal e Ideagnóstica.
As estratégias utilizadas pelos participantes para resolver os algoritmos da
adição e subtração foram distintas como: cálculo mental; uso dos dedos. Coinciden-
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temente, as mesmas estratégias foram utilizadas para resolver os problemas pro-
postos que foi convertido em algoritmo pela maioria. Acredita-se que isso ocorreu
por tratar-se de problemas convencionais que explicitam em seu enunciado a ope-
ração aritmética a ser utilizada. Diante disso, por ser considerado um problema do
tipo padrão e, geralmente, o mais abordado em sala de aula, os estudantes acabam
automatizando as resoluções por meio do algoritmo adotado. Contudo, o fato de
demonstrarem o entendimento dos conceitos de adição e subtração apontam para a
possibilidade desses estudantes conseguirem pensar matematicamente utilizando
as operações matemáticas de modo adequado. Vale sublinhar, que em um estu-
do mais aprofundado com estes estudantes, Cardoso (2019) evidencia que quando
solicitado que resolvam problemas não-convencionais, sejam eles de lógica, sem
solução, com excesso de dados ou com mais de uma solução, muitas vezes buscam
por outras estratégias de resolução, principalmente a representação pictórica como
apresentado por Lara (2011) em seus estudos.
Isso aponta que, frente a um estudante que possui um prognóstico ou um diag-
nóstico de Discalculia, aconselha-se que o professor crie condições que possibilitem
ao estudante pensar flexivelmente frente à resolução de problemas. O treinamento
de algoritmos não garante que o estudante desenvolverá, neste caso, a sua es-
trutura aditiva e pense matematicamente para resolver problemas. É necessário
que o professor estimule a criação de outras alternativas de resolução e que não
abandone seu pensamento flexível. Adicionado a isso, o fato de um estudante ter
dificuldades com operações aritméticas, o que caracteriza uma Discalculia Opera-
cional, não significa que ele seja incapaz de resolver problemas em que necessite
operacionalizar conceitos por meio de estratégias distintas, dificuldade essa rela-
cionada à Discalculia Ideognóstica.
Nota
1 “[...] um transtorno estrutural de habilidades matemáticas, na qual teve suas origens em transtornos
genéticos ou congênitos das partes do cérebro que são o substrato anátomo fisiológico da maturação das
capacidades matemáticas adequadas à idade, sem um transtorno simultâneo de funções mentais gerais”
(tradução nossa).
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ESPAÇO
PEDAGÓGICO
DIÁLOGO COM
EDUCADORES
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Dialogue avec les éducateurs1
Pierre Dardot
Christian Laval
Le premier numéro de la Revista Espaço Pedagógico du Programa de Pós-Gra-
duação em Educação de la Universidade de Passo Fundo (PPGEDU/UPF) qui sera
publié aux premiers quatre mois de 2021 a pour thème Éducation et socialisation.
L’invitation à la collaboration de Pierre Dardot et Christian Laval dans la section
Dialogue avec les éducateurs se justifie par la contribution de ces chercheurs à
l’analyse sociologique des transformations en cours dans le monde, des multiples
dimensions du néolibéralisme comme politique, mais aussi comme culture (modes
de vie). Les contributions importantes de Dardot et Laval, notamment dans les
ouvrages La nouvelle raison du monde : Essai sur la société néolibérale (2009),
Commun : Essai sur la révolution au XXIe siècle (2014) et celui de Laval L’école
n’est pas une entreprise : Le néo-libéralisme à l’assaut de l’enseignement public
(2003), ont contribué aux études et réflexions dans des disciplines, séminaires,
groupes de recherche, thèses et mémoires du PPGEDU. C’est un plaisir pour nous,
les organisateurs, ainsi que pour la collaboration décisive du doctorant Regiano, de
pouvoir établir ce dialogue plus direct à partir de questions articulées au thème de
la revue et des recherches développées par Dardot et Laval.
Questions :
1. Le néolibéralisme produit un ensemble de transformations politiques et indi-
viduelles. Quelles sont-elles et comment ces transformations interfèrent-elles
dans les processus de socialisation et d’individualisation?
Pendant longtemps, on a pensé que le néolibéralisme était avant tout une
certaine forme de politique économique, qu’il consistait à revenir à un type de ca-
pitalisme très dur, à un régime de surexploitation des travailleurs. Ce n’est pas
faux mais on passait à côté de l’originalité du néolibéralisme comme technologie
de pouvoir pouvant s’appliquer à de multiples domaines, on manquait ainsi l’une
Recebido em: 15/09/2021 – Aprovado em: 15/09/2021.
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i1.12804
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de ses caractéristiques principales : son ubiquité. Le néolibéralisme comme forme
de pouvoir étend la logique capitaliste à la vie entière, et en particulier à la sub-
jectivité, au domaine intime, à la représentation de soi. Ce n’est pas seulement
un individualisme, une promotion de l’individu contre la société, car cela est trop
général. Les individus sont mis dans des situations telles qu’ils doivent vivre dans
un régime de compétition, et sont soumis à des pressions de toutes sortes afin
qu’ils aillent toujours plus vite, qu’ils aillent au-delà d’eux-mêmes, comme le com-
mande l’idéologie du sport de compétition. Pour obtenir ce résultat, il convient que
la socialisation dans son sens le plus général d’intégration des valeurs collectives
s’opère selon une logique concurrentielle plutôt que coopérative, et que l’individu
fonctionne comme un capitaliste de lui-même, c’est-à-dire qu’il se valorise subjec-
tivement comme s’il était un capital. En ce sens, l’éducation joue un rôle majeur
dans la fabrication de ces nouvelles subjectivités. Cela a été l’enjeu de mes tra-
vaux personnels : je voulais convaincre dès les années 1990 le plus de gens dans
les milieux éducatifs, et surtout les syndicalistes et les membres des mouvements
pédagogiques que nous étions en train de vivre une grande mutation des systèmes
scolaires, vers ce que j’ai appelé l’école néolibérale, et plus tard « la nouvelle école
capitaliste ». Mais évidemment pour cela, il fallait montrer que le néolibéralisme,
ce n’était pas seulement de l’économie, que c’était une norme générale et une forme
d’existence qui allait de en plus trouver ses conditions dans la sphère éducative.
2. Des concepts tels qu’«entrepreneur de soi-même» ou «néo-sujet» composent le
langage de l’éducation articulé aux discours méritocratiques. De quelle manière
ces concepts indiquent-ils une dynamique qui cache des contradictions sociales,
économiques et culturelles et qui tend à ne saluer que l’effort individuel?
Pierre Dardot et moi-même avons repris à Foucault ce concept si éclairant d’
« entrepreneur de soi-même », et à certains psychanalystes celui de « néo-sujet ».
Nous n’avons donc que peu innové sur le plan terminologique et conceptuel. Ce
qui nous semblait intéressant c’était de se dire qu’une certaine éducation, qu’une
socialisation d’un certain genre, et qu’une vie aussi d’un certain style, pouvaient
conduire à une nouvelle forme de subjectivité, ce que nous avons appelé la « sub-
jectivité capitaliste », liée à une identification à un capital personnel qu’il faut
valoriser durant toute son existence, en recherchant à toujours accumuler « plus de
valeur ». Un peu comme si la logique du « toujours plus » si subtilement analysée
par Marx dans Le Capital sortait du champ économique pour s’étendre à tout le
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fonctionnement social et à toutes les institutions. Cela va beaucoup plus loin que
l’idéologie méritocratique propre aux systèmes scolaires de l’époque moderne, qui
ont incorporé la morale du travail, de la peine, de la souffrance, pour obtenir une
récompense. C’est toujours une normativité qui met en jeu une notion de « mérite »,
mais elle est celle de l’accumulation individuelle indéfinie et non plus celle de l’ac-
complissement d’une personnalité autonome, selon les valeurs de l’humanisme
classique. On pourrait dire que l’individu idéal n’est plus l’homme de raison et de
dignité que voulaient incarner autrefois certains bourgeois, membres des profes-
sions libérales éduquées, mais le sportif ou le spéculateur en bourse hyperconnecté
qui a l’œil collé sur le tableau des performances de ses investissements physiques
ou financiers. Ce mode de fonctionnement de l’institution scolaire ne profite qu’à
ceux qui peuvent se permettre ce genre d’investissements dans la compétition. Il
ne peut qu’accroître les inégalités entre les classes sociales devant l’école. A mes
yeux, dans le champ éducatif, l’introduction d’une compétition exacerbée est à la
fois l’effet sectoriel d’une logique normative générale et la réponse de l’institution
à la demande d’égalité de la part des classes populaires et moyennes. La concur-
rence est une idéologie de combat et une technologie de pouvoir qui consolident
la domination de ceux qui ont tous les atouts pour dominer et qui atomisent les
dominés mis en concurrence entre eux pour obtenir les miettes du festin.
3. Les discours sur la compétitivité et l’efficacité sont incorporés dans les poli-
tiques éducatives de nombreux pays. Comment pouvons-nous avancer de ma-
nière critique pour déconstruire cette compréhension?
Comme vous le suggériez dans votre question précédente, au bout de la
concurrence il y a toujours plus d’inégalité sociale. Mais il faudrait surtout essayer
de convaincre les familles des classes moyennes qui adhèrent pour partie à un tel
système concurrentiel, d’ailleurs de plus en plus coûteux pour elles, qu’elles sont
perdantes à jouer un jeu qui détruit petit à petit le système public d’éducation en
l’abandonnant aux plus pauvres. Car au bout du processus il y a la privatisation
de l’éducation, donc l’endettement des familles et des étudiants, mais aussi l’ap-
pauvrissement des contenus culturels puisque seules les disciplines « rentables »
sur le marché du travail seront enseignées. Mais ne nous trompons pas : le combat
pour faire de l’éducation un véritable bien commun ne peut s’isoler d’une lutte
beaucoup plus générale pour une société dont la valeur centrale ne serait plus
l’accumulation mais ce que nous appelons le « commun », entendant par là l’égali-
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té, la solidarité, la démocratie véritable, le libre accès à des ressources collectives
indispensables, et en premier lieu à l’éducation. Et pour cela il vaut mieux payer
des impôts que de payer des frais d’inscription de plus en plus élevés en vuie d’un
rendement financier de plus en plus incertain.
4. La logique de la gestion d’entreprise capitaliste est en train d’être assumée dans
de multiples institutions sociales et éducatives très fortement au Brésil d’au-
jourd’hui. Quels sont les risques de ce modèle plus largement pour une éduca-
tion républicaine et plus spécifiquement pour l’école?
Le risque, c’est évidemment la croissance de l’inégalité dans les conditions
concrètes de d’éducation selon les établissements. L’école, à partir d’un certain
degré d’inégalité, ne prépare abolument pas à une société favorisant un minimum
d’intégration sociale, de communication même minimale entre les classes. Avec le
néolibéralisme, nous vivons un grand recul de l’idée d’école commune, d’école pour
tous, d’école inclusive. Les systèmes scolaires sous l’effet des logiques de marché
sont en train de se fragmenter. Et la mobilité sociale, même si elle était faible, s’en
trouve gravement atteinte. La sociologie de la reproduction a certes montré que
l’éducation républicaine dont vous parlez n’avait pas remis en question le fonc-
tionnement inégalitaire de l’école, mais elle montrait aussi que des progrès étaient
possibles. Et le seul fait que dans les sociétés très scolarisées, la reproduction so-
ciale passait par la médiation d’une sanction scolaire ouvrait une brèche dans les
mécanismes quasi automatiques de cette reproduction quand elle s’opérait de fa-
çon excluivement familiale. Ainsi, dans beaucoup de pays, l’école était bien la seule
chance, même si elle était réduite, de changer de position sociale. Et surtout, elle
pouvait dans une certaine mesure donner des outils intellectuels aux enfants des
classes populaires pour se défendre et conquérir de nouveaux droits.
Mais il existe encore un autre risque, qui est plus profond en un certain sens
et qui touche à ce que le sociologue allemand Max Weber appelait « le type hu-
main ». Faire entrer les nouvelles générations dans des entreprises éducatives,
diffuser une culture d’entreprise dès le plus jeune âge comme le recommandent les
grandes organisations économiques et financières dans le monde, c’est accélérer la
transformation de l’humain en un être purement économique, un homo oeconomi-
cus qui ne raisonne qu’en termes de coûts/bénéfices et qui a perdu tout sens des
valeurs de solidarité, de culture, de dignité. Ce n’est donc pas seulement un mode
de gestion des écoles plus efficace, c’est une culture qui se répand et qui modèle des
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subjectivités capitalistes. L’école devient alors non pas seulement une annexe du
système économique dominant, mais une vraie matrice du capitalisme généralisé.
5. Comment avancer politiquement et pédagogiquement face à la tension entre
l’individualisation et la socialisation intensifiées, dans le contexte actuel par le
néolibéralisme «hyperautoritaire»?
Les enseignants doivent résister de toutes leurs forces à cette transformation
et défendre les valeurs humaines les plus fondamentales, aujourd’hui dévaluées
par l’esprit du capitalisme scolaire. En commençant peut-être par refuser de par-
ler la langue du capitalisme scolaire, c’est-à-dire celle du management : « objec-
tifs », « culture du résultat », « rendement », « capital humain », « employabilité »,
« compétences » , etc. S’en tenir au vocabulaire classique et normal de l’éducation
humaniste, ce serait déjà beaucoup. Car comme disait Freud, si l’on cède sur le mot
on cède sur la chose. On dira que c’est uniquement « défensif ». Oui, mais pour l’ins-
tant, les éducateurs sont agressés de toutes parts et doivent se défendre contre des
formes subtiles d’invasion linquistique et conceptuelle. Elles sont subtiles parce
que cette culture capitaliste a su utiliser beaucoup des apports des mouvements
pédagogiques, en Europe et aux Etats-Unis, pour les détourner à son profit. S’il
y a une attitude plus constructive à adopter, je crois qu’elle doit consister à révi-
ser la tradition progressiste de l’éducation et à considérer d’un œil plus critique
les formes idéologiques qui ont caractérisé certains courants ou certains auteurs
regardés comme des fondements de la pédagogie progressiste. Je veux dire par là
qu’il y a une hétérogénéité idéologique dans beaucoup de ces courants qui n’a pas
été suffisamment analysée, ce qui a entraîné beaucoup de confusions dont a pro-
fité le capitalisme scolaire. Des éducateurs progressistes se sont fait les porteurs
malgré eux de contenus individualistes, utilitaristes, psychologistes, au détriment
de la sociologie critique et de l’esprit coopératif. Le travail à la fois théorique et
pratique est immense : refonder une éducation démocratique au-delà des réutilisa-
tions néolibérales des pédagogies dites nouvelles. Et dans cette tâche considérable,
la difficulté est qu’il faut tenir étroitement liées quatre dimensions : la création
de situations éducatives réellement égales ; la construction d’une culture scolaire
commune, socle solide à poser avant les spécialisations ultérieures ; la mise en
place d’une pédagogie coopérative dès le plus jeune âge ; et une organisation dé-
mocratique des écoles dans lesquelles chacun, quelle que soit sa place d’éducateur,
d’élève et de parent, puisse participer à une activité commuen.
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6. L’éducation a un rôle fondamental dans la formation du sujet démocratique.
Pourquoi l’éducation ne réussit pas complètement à former par la démocratie,
mais des sujets indifférents, autoritaires ou même «fascistes»?
D’abord l’école ne peut pas tout. C’est la société qui éduque d’abord. Si le fas-
cisme est très présent dans une société, elle produit beaucoup de sujets fascistes, et
c’est la même chose pour le racisme ou le machisme. Il faut arrêter de trop attendre
de l’école. Ensuite, les systèmes scolaires quand ils se sont créé n’ont pas eu comme
but de former des sujets démocratiques. Il s’agissait de former des chrétiens puis
des citoyens obéissants de l’État nation. On oublie trop que l’idée d’émancipation
des Lumières ne s’est pas réalisée concrètement dans les institutions réellement
existantes. Ce sont l’Église et l’État qui ont fait l’École, et cette dernière en est
restée profondément marquée, comme du reste toutes les institutions des sociétés
européennes ou issues de la colonisation européenne. Et aujourd’hui c’est l’Entre-
prise qui veut modeler l’École. Donc, cette idée selon laquelle « L’éducation a un
rôle fondamental dans la formation du sujet démocratique » a été très peu ou très
mal incorporée dans les structures réelles de l’institution. Et elle est aujourd’hui
chassée par l’idée selon laquelle il faut former des sujets économiques. Mais sans
doute ce mythe progressiste de la formation du sujet démocratique est-il plus que
jamais indispensable pour donner aux éducateurs et aux enseignants un sens à
leur travail, mais encore faut-il qu’ils soient bien conscients que ce n’est pas la
réalité. La question pratique, politiquement efficace, est donc plutôt de se deman-
der comment ce mythe utile peut devenir réalité. Et donc comment faire pour que
l’école ne produise plus ou produise moins de futurs sujets fascistes, racistes et
machistes. La réponse ne peut tenir en quelques lignes, mais on peut dire de façon
sans doute trop générale que ce qui est le plus précieux dans la tradition démo-
cratique ce sont trois valeurs et façons d’être : 1) le sens de l’égalité réelle entre
tous les jeunes, comme entre jeunes et adultes dans le respect des fonctions et des
places différentes ; 2) le sens de la coopération démocratiquement organisée dans
les apprentissages, les activités scolaires, la vie de la classe et de l’école ; 3) le sens
de l’autonomie individuelle et collective, et surtout le sens du rapport qui existe
entre l’autonomie individuelle et collective. Et tout ceci demande à s’incarner
dans une organisation concrète, qui n’existe pas encore. L’éducation démocratique
n’existe pas, elle est un projet.
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7.
Quelles nouvelles perspectives le commun peut-il ouvrir, en tant que principe po-
litique, pour penser des processus éducatifs émancipatoires? En ce sens, quel type
d’imaginaire politique l’éducation peut-elle ou doit-elle encore aider à penser?
Dans l’ouvrage Commun nous n’avons pas développé la dimension éducative,
et vous faites bien de poser la question. Je suis en train de mettre au point avec
un ami syndicaliste, Francis Vergne, un nouveau livre, dont le titre provisoire est
Éducation démocratique. Nous essayons de tracer les grandes lignes d’un nouveau
système éducatif propre à une société effectivement démocratique, c’est-à-dire or-
ganisée selon le principe du commun. Nous entendons par « commun » non pas une
caractéristique naturelle comme dans le droit romain, la théologie ou l’économie
néoclassique mais comme un ordre juridico-politique qui a pour double modalité
la participation démocratique à tous les niveaux et dans toutes les activités col-
lectives, et la libre jouissance à égalité des ressources collectives jugées indispen-
sables à l’épanouissement individuel et à la vie collective. L’un des aspects les plus
importants, c’est le rapport que tous les élèves et les enseignants doivent avoir
selon nous à la connaissance dans une société démocratique. Non pas comme un
capital personnel qui assure une position de domination, mais un produit et une
dimension de l’intelligence collective. Faire de la connaissance un bien commun,
comprendre de façon sensible que la création de connaissance est affaire collec-
tive et que l’apprentissage a aussi une dimension collective, nous paraît essentiel.
L’individualité ne peut se développer dans sa différence et sa singularité que dans
l’échange et l’activité coopérative. En ce sens, le principe du commun peut servir
à redonner de la cohérence aux pratiques pédagogiques et à la redistribution du
pouvoir dans les établissements.
8. Comment considérez-vous la réception de l’œuvre Commun : Essai sur la révo-
lution au XXIe siècle jusqu’à ce moment?
J’ai envie de vous répondre en plaisantant : le sous-titre du livre a anticipé
une réception sur un siècle ! Nous avons donc le temps d’en juger ! Blague à part,
la réception est assez curieuse. Le terme de « commun » est utilisé partout en
France, en Europe et dans beaucoup de pays. Il y a un effet de mode considérable.
Aux dernières élections municipales françaises, en mars 2020, beaucoup de listes
ont adopté un nom sur le modèle de « Barcelone en commun ». C’est ainsi que
j’ai pu voter pour une liste intitulée « Paris en commun ». Mais cela n’a que peu
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avoir avec notre proposition politique beaucoup plus radicale. Toute la question
est de savoir si durant les décennies prochaines un nouveau corps doctrinal saura
condenser trois types de lutte qui pour nous sont liées dans le revendication du
commun : la lutte pour la démocratie, la lutte pour l’égalité sociale et la lutte pour
sauver la planète. Le concept de commun pourrait contribuer efficacement à cette
synthèse. Mais cela ne dépend pas des auteurs du livre mais des acteurs politiques
et sociaux, s’ils en sentent la nécessité, si le lexique du commun et des communs
leur paraît clarifier le sens qu’ils donnent à leurs combats.
Nota
1 Cette entrevue a été concédée par courriel aux organisateurs de l’édition 2021/1 de la revue Espaço Pe-
dagógico, Angelo Vitório Cenci et Telmo Marcon. Il a été réalisé et traduit par le doctorant du Programa de
Pós-Graduação em Educação de la Universidade de Passo Fundo (PPGEDU/UPF) qui participe au Groupe
d’études sur le néolibéralisme et les alternatives (GENA) coordonné par les auteurs avec lesquels nous
avons dialogué.
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Diálogo com educadores1
Pierre Dardot
Christian Laval
O primeiro número da Revista Espaço Pedagógico do Programa de Pós-Gra-
duação em Educação (PPGEdu) da Universidade de Passo Fundo (UPF) a ser pu-
blicado no primeiro quadrimestre de 2021 tem como tema Educação e Sociali-
zação. O convite para a colaboração de Pierre Dardot e Christian Laval na seção
Diálogo com educadores justifica-se pela contribuição desses pesquisadores nas
análises sociológicas das transformações mundiais atuais, das múltiplas dimen-
sões do neoliberalismo, na perspectiva política, mas também como cultura (modos
de vida). As importantes contribuições de Dardot e Laval, especialmente nas obras:
A nova Razão do Mundo: ensaios sobre a sociedade neoliberal (2016) e Comum:
ensaios sobre a revolução no século XXI (2018), e de Laval, em A escola não é uma
empresa: o neoliberalismo em ataque ao ensino público (2004), têm contribuindo
para estudos e reflexões em cursos, seminários, nos grupos de pesquisa e em teses
e dissertações do PPGEdu. É um prazer para nós, organizadores, bem como a co-
laboração decisiva do doutorando Regiano, podermos estabelecer essa interlocução
mais direta a partir de questões articuladas ao dossiê da revista e a pesquisas
desenvolvidas pelos referidos autores.
Questões:
1. O neoliberalismo produz um conjunto de transformações políticas e individuais.
Como essas transformações interferem nos processos de socialização e de indi-
vidualização?
Durante muito tempo entendemos que o neoliberalismo era, antes de tudo,
uma certa forma de política econômica que consistia no retorno a um tipo de capi-
talismo ortodoxo, em um regime de superexploração dos trabalhadores. Isto não
é falso, mas essa abordagem passava ao lado da originalidade do neoliberalismo
como uma tecnologia de poder podendo ser aplicada à múltiplos domínios, faltando,
Recebido em: 15/09/2021 – Aprovado em: 15/09/2021.
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i1.12804
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Diálogo com educadores
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assim, uma de suas principais características: sua ubiquidade. O neoliberalismo
como forma de poder estende a lógica capitalista a toda a vida, e, em particular, à
subjetividade, ao domínio íntimo, à representação de si. Não se trata apenas de um
individualismo, uma promoção do indivíduo contra a sociedade, pois isso é muito
geral. Os indivíduos são colocados em situações em que têm que viver em regime
de competição, e são submetidos a todo tipo de pressão afim de que possam ir cada
vez mais rápido, superar-se constantemente, como manda a ideologia do esporte
competitivo. Para alcançar este resultado, a socialização em seu sentido mais geral
de integração de valores coletivos se opera de acordo com uma lógica concorrencial
ao invés de cooperativa, e o indivíduo deve funcionar como um capitalista de si
mesmo, ou seja, deve valorizar-se subjetivamente como se fosse um capital. Neste
sentido, a educação desempenha um papel fundamental na produção destas no-
vas subjetividades. Este era o desafio dos meus trabalhos pessoais: eu desejava
convencer, desde os anos 1990, o maior número possível de pessoas dos meios edu-
cativos e, principalmente, sindicalistas e membros de movimentos pedagógicos, de
que estávamos em processo de grande transformação dos sistemas escolares, em
direção ao que chamei de escola neoliberal, e mais tarde “a nova escola capitalista”.
Mas, obviamente, para isso, era necessário mostrar que o neoliberalismo não se
restringia apenas à economia, mas que era uma norma geral e uma forma de exis-
tência que encontraria cada vez mais suas expressões na esfera educativa.
2. Conceitos como “empresário de si” ou “neossujeito” adentram a linguagem da
educação articulados ao discurso meritocrático. De que modo esses conceitos in-
dicam uma dinâmica ocultadora de contradições sociais, econômicas e culturais
e que tende a acentuar apenas o esforço individual?
Pierre Dardot e eu retomamos de Foucault este conceito muito esclarecedor
de “empresário de si”, e de alguns psicanalistas o de “neosujeito”. Por isso pouco
inovamos em relação ao plano terminológico e conceitual. O que nos pareceu in-
teressante foi a ideia de que uma certa educação, um certo tipo de socialização
e um certo tipo de vida, poderiam conduzir a uma nova forma de subjetividade,
o que chamamos de “subjetividade capitalista”, ligada a uma identificação a um
capital pessoal que necessita ser valorizado ao longo da existência, procurando
constantemente acumular “mais valor”. É como se a lógica do “sempre mais”, tão
sutilmente analisada por Marx na obra O capital, tivesse abandonado o campo
econômico para se estender a todo funcionamento social e a todas as instituições.
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Isso vai muito além da ideologia meritocrática peculiar aos sistemas escolares mo-
dernos, que incorporaram a moralidade do trabalho, da dor e do sacrifício a fim
de obter uma recompensa. É sempre uma normatividade que coloca em jogo uma
noção de “mérito”, mas aquela da acumulação individual indefinida e não mais
aquela da conquista de uma personalidade autônoma, de acordo com os valores do
humanismo clássico. Poder-se-ia dizer que o indivíduo ideal não é mais o homem
de razão e de dignidade que alguns burgueses, membros das profissões liberais
esclarecidas um dia quiseram incarnar, mas o esportista ou o especulador da bolsa
de valores hiper conectado que tem os olhos fixados nos gráficos de desempenhos
de seus investimentos físicos ou financeiros. Essa forma de operar a instituição
de ensino só beneficia quem tem condições de arcar com esse tipo de investimento
na competição. Esse modelo só pode aumentar as desigualdades entre as classes
sociais perante a escola. No meu modo de ver, no campo da educação, a introdução
de uma competição exacerbada é tanto o efeito setorial de uma lógica normativa
geral e, como também, a resposta da instituição à demanda de igualdade por parte
das classes populares e médias. A competição é uma ideologia de combate e uma
tecnologia de poder que consolida a dominação daqueles que têm todos os atributos
para dominar e que atomizam os dominados, colocados em competição entre si para
conseguir as migalhas do banquete.
3. Os discursos da competitividade e da eficiência estão sendo incorporados por po-
líticas educacionais em muitos países. Como avançar numa crítica qualificada
para descontruir esses pressupostos?
Como sugerido na questão anterior, a competição resulta sempre em maior
desigualdade social. No entanto, devemos, acima de tudo, tentar convencer as fa-
mílias de classe média que aderem em parte a esse sistema competitivo, que ele
será cada vez mais custoso para elas, e que estão perdendo ao jogar um jogo que
está gradualmente destruindo o sistema de educação pública, pois está excluindo
os mais pobres. Porque, no final do processo, há a privatização da educação, e por
conseguinte, o endividamento das famílias e dos estudantes, mas, também, o em-
pobrecimento dos conteúdos culturais, uma vez que somente as disciplinas que são
“rentáveis” para o mercado de trabalho serão ensinadas. Mas não nos enganemos:
a luta para fazer da educação um verdadeiro bem comum não pode ser isolada de
uma luta muito mais geral, para uma sociedade cujo valor central não seria mais
a acumulação, mas o que chamamos de “comum”, entendendo-o como igualdade,
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solidariedade, verdadeira democracia, livre acesso aos recursos coletivos indispen-
sáveis e, em primeiro lugar, à educação. E para isso é melhor pagar impostos do
que pagar taxas de inscrição cada vez mais altas, por retornos financeiros cada vez
mais incertos.
4. A lógica da gestão empresarial capitalista está sendo assumida em múltiplas
instituições sociais e educativas e muito fortemente no Brasil hoje. Quais os
riscos desse modelo para uma educação republicana e para a escola, de um modo
particular?
O risco é obviamente o crescimento da desigualdade nas condições concretas
da educação em diferentes estabelecimentos de ensino. A escola, uma vez atingido
um certo grau de desigualdade, não prepara absolutamente para uma sociedade
que promova um mínimo de integração social, de comunicação, mesmo que míni-
ma, entre as classes. Com o neoliberalismo, vivemos um grande retrocesso em rela-
ção à ideia de escola comum, de escola para todos, de escola inclusiva. Os sistemas
escolares, sob o efeito da lógica do mercado, estão se fragmentando. E a mobilidade
social, mesmo se fosse baixa, é seriamente afetada. A “sociologia da reprodução”
certamente mostrou que a educação republicana, da qual você fala, não questionou
o funcionamento desigual da escola, mas mostrou também que o progresso era
possível. E o simples fato de que nas sociedades com alto nível de escolaridade a
reprodução social passava pela mediação de uma sanção escolar, abria uma brecha
nos mecanismos quase automáticos dessa reprodução quando ela era realizada de
forma exclusivamente familiar. Assim, em muitos países, a escola era de fato a
única oportunidade, mesmo que reduzida, de mudar de posição social. E, sobretu-
do, ela poderia, em certa medida, oferecer ferramentas intelectuais às crianças da
classe popular para se defenderem e conquistarem novos direitos.
Mas há ainda outro risco, que é mais profundo em certo sentido, e que toca o
que o sociólogo alemão Max Weber chamou de “o tipo humano”. Fazer entrar as no-
vas gerações em empresas educativas, difundir uma cultura empreendedora desde
a infância, como recomendam as grandes organizações econômicas e financeiras do
mundo, é acelerar a transformação do ser humano em um ser puramente econômi-
co, um homo oeconomicus que raciocina apenas em termos de custos/benefícios e
que perdeu todo o sentido dos valores de solidariedade, de cultura e de dignidade.
Não é, portanto, apenas uma forma mais eficiente de administrar escolas, mas
também uma cultura que se difunde e modela as subjetividades capitalistas. A
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escola se torna, então, não apenas um anexo do sistema econômico dominante, mas
uma verdadeira matriz do capitalismo generalizado.
5. Como é possível avançarmos política e educativamente diante da tensão entre
individualização e socialização marcada, no contexto atual, pelo neoliberalismo
“hiperautoritário”?
Os professores devem resistir a esta transformação com toda as suas forças e
defender os valores humanos mais fundamentais, que hoje são desvalorizados pelo
espírito do capitalismo escolar. Começando, talvez, pela recusa de falar a lingua-
gem do capitalismo escolar, ou seja, a linguagem da gestão: “objetivos”, “cultura
de resultados”, “rendimento”, “capital humano”, “empregabilidade”, “competên-
cias” etc. Ater-se ao vocabulário clássico e normal da educação humanista já seria
muito. Pois como disse Freud, se você cede à palavra, você cede à coisa. Diríamos,
então, que é unicamente “defensivo”. Sim, mas neste momento, os educadores es-
tão sofrendo ataques de todos os lados e devem se defender contra formas sutis
de invasão linguística e conceitual. Elas são sutis porque esta cultura capitalista
conseguiu usar muitas das contribuições dos movimentos pedagógicos, na Europa
e nos Estados Unidos, para utilizá-los em benefício próprio. Se existe uma atitude
mais construtiva a ser adotada, acredito que ela deve consistir em rever a tradição
progressista da educação e em considerar com um olhar mais crítico as formas
ideológicas que caracterizaram certas correntes ou certos autores considerados
como os fundamentos da pedagogia progressista. Com isto quero dizer que existe
uma heterogeneidade ideológica em muitas destas correntes que não foi suficien-
temente analisada, o que levou a muitas confusões que beneficiaram o capitalismo
escolar. Educadores progressistas, involuntariamente, tornaram-se portadores de
conteúdos individualistas, utilitários e psicológicos, em detrimento da sociologia
crítica e do espírito cooperativo. O trabalho, tanto teórico, quanto prático, é imenso,
ou seja, refundar uma educação democrática para além dos pressupostos neolibe-
rais das chamadas novas pedagogias. E nesta tarefa considerável, a dificuldade
consiste em manter estreitamente ligadas quatro dimensões: a) a criação de si-
tuações educativas genuinamente iguais; b) a construção de uma cultura escolar
comum, uma base sólida a ser construída antes de especializações posteriores; c) o
desenvolvimento de uma pedagogia cooperativa desde a mais tenra idade; c) e uma
organização democrática escolar em que todos, qualquer que seja seu lugar como
educador, aluno ou pai, possa participar conjuntamente das atividades.
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6. A educação tem um papel fundamental na formação do sujeito democrático. Por
que a educação não está conseguindo, em parte, formar para a democracia e,
sim, sujeitos indiferentes, autoritários ou, mesmo, “fascistas”?
Inicialmente, a escola não pode tudo. É a sociedade que educa primeiro. Se
o fascismo está muito presente em uma sociedade, é porque ela produz muitos
sujeitos fascistas, e é a mesma coisa para o racismo ou machismo. Temos que pa-
rar de esperar muito da escola. Em segundo lugar, os sistemas escolares, quando
foram criados, não tinham o objetivo de formar sujeitos democráticos. Tratava-se
de formar cristãos e, após, cidadãos obedientes ao Estado-nação. Esquecemos de-
masiadamente que a ideia de emancipação do Iluminismo não foi concretizada nas
instituições realmente existentes. Foi a Igreja e o Estado que fizeram a escola, e,
esta última, permaneceu profundamente marcada por isso, assim como todas as
instituições das sociedades europeias ou as resultantes da colonização europeia.
E, hoje, é a Empresa que quer modelar a Escola. Assim, esta ideia segundo a qual
“a educação tem um papel fundamental na formação do sujeito democrático” tem
sido muito pouco ou muito mal incorporada às estruturas efetivas da instituição.
E, agora, ela está sendo empurrada para fora em função da ideia de que é preciso
formar sujeitos econômicos. Mas, sem dúvida, este mito progressista da formação
do sujeito democrático é mais essencial do que nunca para dar aos educadores e
professores um sentido ao seu trabalho, mas é preciso que eles estejam bem cons-
cientes de que esta não é a realidade. A questão prática e politicamente eficaz é,
portanto, a de se questionar como este mito útil pode se tornar realidade. E, então,
como podemos fazer para que a escola não produza mais, ou produza menos futuros
sujeitos fascistas, racistas e machistas? A resposta não pode ser dada em poucas
linhas, mas pode ser dito de uma maneira sem dúvida muito geral que o mais
precioso na tradição democrática são três valores e formas de ser: 1) o sentido de
igualdade real entre todos os jovens, assim como entre jovens e adultos, respeitan-
do funções e lugares diferentes; 2) o sentido de cooperação democraticamente orga-
nizada nas aprendizagens, nas atividades educativas, na vida da classe e da escola;
3) o sentido de autonomia individual e coletiva e, sobretudo, o sentido da relação
que existe entre autonomia individual e coletiva. E tudo isso precisa ser encarnado
em uma organização concreta, que ainda não existe. A educação democrática não
existe, ela é um projeto.
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7. Que novas perspectivas o comum pode abrir, enquanto princípio político, para
pensar processos educacionais emancipadores? Nesse sentido, que tipo de ima-
ginário político a educação ainda pode ou deve ajudar a pensar?
No livro Comum não desenvolvemos a dimensão educativa, e você está certo
ao fazer a pergunta. Atualmente estou trabalhando com um amigo sindicalista,
Francis Vergne, em um novo livro, cujo título provisório é Educação Democrática.
Estamos tentando delinear as grandes linhas de um novo sistema educativo pró-
prio para uma sociedade efetivamente democrática, ou seja, organizada segundo
o princípio do comum. Por “comum” não entendemos uma característica natural
como no Direito Romano, na Teologia ou na Economia neoclássica, mas como uma
ordem jurídico-política que tem como dupla modalidade a participação democrática
em todos os níveis e em todas as atividades coletivas, e o livre e igual exercício dos
recursos coletivos considerados indispensáveis para o desenvolvimento individual e
a vida coletiva. Um dos aspectos mais importantes, entendemos, refere-se à relação
que todos os estudantes e professores devem ter para com o conhecimento em uma
sociedade democrática. Não como um capital pessoal que assegura uma posição de
dominação, mas, como um produto e uma dimensão de inteligência coletiva. Fazer
do conhecimento um bem comum, compreender de forma sensível que a criação
do conhecimento é uma questão coletiva e que a aprendizagem também tem uma
dimensão coletiva, parece-nos essencial. A individualidade só pode se desenvolver
em sua diferença e sua singularidade por meio de trocas e atividades cooperativas.
Neste sentido, o princípio do comum pode servir para restituir a coerência às prá-
ticas pedagógicas e à redistribuição do poder nas escolas.
8. Como tem sido a recepção da obra Comum: ensaios sobre a revolução no século
XX?
Quero responder brincando: o subtítulo do livro antecipou uma recepção em
mais de um século! Então teremos tempo para julgá-lo! Brincadeira à parte, a re-
cepção é bastante curiosa. O termo “comum” é usado em toda parte na França,
na Europa e em muitos países. Há um efeito de moda considerável. Nas últimas
eleições municipais francesas, em março de 2020, muitas listas adotaram um nome
baseado no modelo de “Barcelona em comum”. Foi assim que pude votar para uma
lista chamada “Paris em comum”. Mas isto tem pouco a ver com nossa proposta
política muito mais radical. A questão é saber se nas próximas décadas um novo
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corpo doutrinal será capaz de condensar três tipos de luta que, em nosso modo de
ver, estão ligados na reivindicação do comum: a luta pela democracia, a luta pela
igualdade social e a luta para salvar o planeta. O conceito de comum poderia con-
tribuir efetivamente para esta síntese. Mas isto não depende dos autores do livro,
mas dos atores políticos e sociais, ou seja, se eles sentem a necessidade disso e se o
léxico do comum e dos comuns lhes parecer clarificar os sentidos que eles atribuem
às suas lutas.
Nota
1 Esta entrevista foi concedida aos organizadores da edição 2021/1 da Revista Espaço Pedagógico, Angelo
Vitório Cenci e Telmo Marcon cuja mediação e tradução para o português foi tecida pelo doutorando do
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Passo Fundo, Regiano Bregalda, que parti-
cipa do Groupe d’études sur le néolibéralisme et les alternatives [Grupo de estudos sobre o neoliberalismo e
alternativas] (GENA) coordenado por Dardot e Laval
ESPAÇO
PEDAGÓGICO
RESENHA
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Socialização em contextos de violência e desconança: reexões sobre a obra República das Milícias – do esquadrão da morte à era Bolsonaro
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Socialização em contextos de violência e desconança: reexões sobre a obra
República das Milícias – do esquadrão da morte à era Bolsonaro
Telmo Marcon*
Daniela dos Santos**
A obra República das Milícias: do esquadrão da morta à era Bolsonaro, do jor-
nalista Bruno Paes Manso, lançada em 2020 pela Editora Todavia (SP), tem a arte
da capa de Pedro Inoue. Nas 302 páginas, o autor desenvolve oito capítulos e mais
uma reflexão final com o título Ubuntu. Os capítulos estão assim organizados: 1)
apenas um miliciano; 2) os elos entre o passado e o futuro; 3) as origens em Rio das
Pedras e na Liga da Justiça; 4) fuzis, polícia, bicho; 5) facção e a guerra dos tronos;
6) Marielle e Marcelo; 7) as milícias 5G e o novo inimigo em comum; 8) Cruz, Ustra,
Olavo e a ascensão do capitão.
A obra trata de um amplo conjunto de questões e personagens envolvidos nas
tramas descritas, não apenas milicianos, mas, também, traficantes de drogas, gru-
pos de extermínio não milicianos, policiais, bicheiros, setores do legislativo munici-
pal, estadual e federal, personagens vinculados ao judiciário e setores do executivo
de diferentes esferas da gestão pública. As ações desses múltiplos grupos organiza-
dos produzem relações de poder, dominação, silenciamento, assassinatos, chacinas,
extorsões, controle de favelas e serviços básicos que deveriam ser função do Estado,
legitimam ou censuram determinadas formas de vida social que resultam em no-
vas formas de socialização extremamente precarizadas.
A presente resenha delimita uma questão que emerge da análise cuidadosa
do autor: a socialização no contexto de relações sociais baseadas na subordina-
ção, no medo e na desconfiança. Como pensar numa sociabilidade democrática
e cidadã, onde as pessoas não têm as possibilidades efetivas de se constituírem,
conviverem e se expressarem livre e democraticamente? É possível uma socializa-
ção humanizadora onde predomina o medo e a desconfiança no outro? Entende-se
* Doutor em História Social pela PUC-SP, com pós-doutorado em educação intercultural pela UFSC. Professor e pes-
quisador na Faed e no PPGEDU (mestrado e doutorado) da UPF. Orcid: http://orcid.org/0000-0002-9110-3210. E-mail:
telmomarcon@gmail.com
** Doutoranda em Educação pelo PPGEDU da UPF. Professora na Faculdade de Ciências Econômicas, Administrativas e
Contábeis da UPF. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9931-6352. E-mail: danielasantos@upf.br
Recebida em: 17/05/2021 – Aprovada em: 17/05/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i1.12586
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por socialização a apropriação e a vivência de normas e valores compartilhados,
aceitos e reconhecidos numa determinada sociedade em seus diferentes contextos
socioculturais. A socialização pode estar ancorada em princípios republicanos e ci-
dadãos, mas, também pode ser precarizada. A obra em questão evidencia o quanto
é precária a socialização de milhares de pessoas na grande Rio de Janeiro onde
as milícias prosperaram de modo exponencial nas últimas duas décadas, gerando
insegurança, violência, desconfiança, homicídios e chacinas. Nesse sentido, a obra
descreve em detalhes um conjunto de realidades que afronta uma sociabilidade
democrática e humanizadora.
A violência como prática social não é estranha à história da humanidade. Ela
ganha, no entanto, diferentes formas e intensidades em cada contexto histórico.
Bruno Paes Manso faz uma análise desse fenômeno na grande Rio de Janeiro, esta-
belecendo algumas breves conexões com São Paulo e outros estados. O que chama
atenção é a privatização da cidade e o controle das pessoas, práticas que colidem
com os avanços civilizatórios e republicanos. As transformações decorrentes dos
processos de urbanização analisadas por Manso dão conta da emergência de novos
sujeitos coletivos que se armam, estruturam-se e desenvolvem práticas de violên-
cia em defesa de interesses corporativos. Para tanto, fazem uso de armamento
pesado, ameaçam, reprimem, torturam, assassinam, lincham, traficam, organizam
segurança privada em troca de mensalidades e fidelidade.
Os grupos emergentes, especialmente milicianos, entram em confronto direto
com outros grupos já existentes, resultando em disputas, tiroteios e mortes. Ao lon-
go da obra há descrições de como os milicianos expandiram suas áreas de atuação
e controle em várias regiões no rio de Janeiro e em setores estratégicos: monopo-
lizando a venda de gás; gatonet; gatoluz; tráfico de armas; transporte clandestino
em vãs; jogos de contravenção; jogo do bicho; controle na construção e venda de
imóveis; cobrança de taxas para a segurança privada de moradores e empresas;
assassinato de pessoas ‘indesejáveis’; venda ilegal de cigarros; agiotagem; grilagem
de terras (especialmente em éreas de preservação); grupos de extermínio; extorsão
de dinheiro; pagamento de arrego, ou seja, taxas para a polícia não realizar abor-
dagens e operações em determinados espaços etc. Quando milicianos entram em
confronto com outros grupos, usando armamento pesado, o cidadão fica exposto
a tiroteios, muitos morrem por balas perdidas, escolas e outros serviços públicos
são fechados. O medo e a insegurança tomam conta das pessoas, produzindo um
cotidiano extremamente incerto e precarizado.
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As milícias expandiram-se em contextos de fragilidades institucionais e de
corrupção nas corporações oficiais que têm a finalidade de dar segurança ao cida-
dão. Não por acaso, muitos milicianos foram expulsos de suas corporações e cria-
ram organizações paralelas. São exemplos bem conhecidos: Ronnie Lessa (acusado
de assassinar a vereadora Marielle e seu motorista Anderson), Fabrício Queiroz
e Adriano da Nóbrega (recentemente assassinado). Adriano passou a ganhar di-
nheiro como matador profissional, considerado um exímio atirador que tinha uma
formação militar de alta qualidade (MANSO, 2020, p. 198). Dados mostram que em
2008 as milícias dominavam 171 áreas na grande Rio de Janeiro (2020, p. 88). Em
2008, foi criada a CPI das milícias, presidida pelo deputado Marcelo Freixo para
apurar as ações de milicianos e as relações com o poder legislativo. A CPI foi con-
cluída em 2008 e, desde então, até 2017, foram presos 1.310 milicianos acusados de
múltiplos crimes (MANSO, 2020, p. 98).
A fala do miliciano Lobo, entrevistado por Manso e objeto de análise do primei-
ro capítulo da obra, ressalta a importância da nova ordem social que os milicianos
ajudaram a instaurar: “... era melhor do que a vigente no passado, estabelecida por
bandidos e pelo tráfico. A violência fundada dos paramilitares se justificava por ser
um meio de defender os interesses dos cidadãos de bem contra a ameaça dos crimi-
nosos” (MANSO, 2020, p. 9). Chama atenção que entre os milicianos a corrupção
e o roubo são inaceitáveis, enquanto os homicídios são naturalizados. Assassinar
criminosos torna-se um ato heroico. O criminoso é o que rouba e essa condição é
“intolerável e covarde” (MANSO, 2020, p. 13). Nesses casos, os assassinatos são
justificados. Daí a grande quantidade de crimes cometidos por milicianos, bem pla-
nejados e executados, mas pouco investigados. A expressão “bandido bom é bandido
morto” ganha, aqui, um sentido profundo. O miliciano sente-se autorizado a matar
o bandido (traficante ou ladrão) para defender o cidadão de bem, ou seja, ele está do
lado do bem. Esse discurso polarizado entre os do bem e os outros, é muito conheci-
do entre nós, especialmente desde a campanha presidencial de 2018.
Para executar bem o serviço de matar é fundamental a posse de equipamento
de alta precisão para não deixar rastros do crime. É nesse contexto, que a milícia
expandiu seus negócios, também, no contrabando de armas, especialmente do Pa-
raguai, visando a constituição de verdadeiros arsenais de guerra. Somente na casa
do miliciano Ronnie Lessa, preso pelo assassinato de Marielle e seu motorista,
Anderson, juntamente com o ex-PM Élcio de Queiroz, foi apreendido, em 2019,
material suficiente para montar 117 fuzis (MANSO, 2020, p. 112). O livro relata
situações de desvio de armas da polícia, contrabando de armas, partilha de espólios
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apreendidos em operações policiais. Em algumas operações da polícia, descreve
Manso, parte das tropas sequer seguiram as ordens dos comandantes superiores
e agiram por impulso próprio, gerando mais morte e sofrimento para pessoas e
famílias.1
A expansão das milícias e outros grupos, à margem da lei, ocorre concomitan-
temente à corrupção de agentes e instituições públicas, incluindo setores do legis-
lativo, do judiciário e do executivo municipal e estadual, bem como, do enfraque-
cimento do Estado na prestação de serviços básicos. Esses grupos organizados se
expandem na mesma proporção em que o Estado encolhe, gerando um ambiente de
insegurança, exploração, violência e de medo e, dessa forma, justificam suas ações.
“Quando o Estado e a Justiça abrem mão de suas funções, a disputa é definida pela
lei do mais forte” (MANSO, 2020, p. 293).
A sensação de uma aparente segurança gerada pela presença de milicianos
permitiu a consolidação de um poder paralelo ao próprio Estado. Alguns agentes do
Estado atuavam em diferentes espaços e funções ao mesmo tempo, ou seja, atua-
vam na corporação e também na segurança privada junto com milicianos. Assim,
as milícias ampliaram seu poder de ação por dentro de espaços institucionalizados.
Certas práticas foram facilitadas, na grande Rio de Janeiro, pela constituição geo-
gráfica da cidade, bairros e favelas, pelos complexos processos de urbanização e
pela ausência de emprego e outras formas alternativas de sobrevivência. A obra de
Manso ajuda a pensar a constituição dos territórios e seus processos socializadores.
A cidade é um território em constante transformação. É o lugar onde as pessoas
moram, trabalham, convivem, porém, o acesso às condições de uma vida digna não
é para todos. O estudo de Rio das Pedras, analisada no capitulo terceiro, evidencia
como os milicianos foram adentrando esse território, criando novas relações com a
população, profundamente insegura e vítima da violência de traficantes e de outros
grupos.
O preço que moradores pagam para ter a segurança privada de milicianos é
alto, não somente monetariamente, mas, principalmente, social e cultural. As mi-
lícias aproveitaram-se da ausência do Estado criaram seus tentáculos, ganhando
confiança da população e implementando práticas de controle e extorsão, impondo
suas normas, legitimando a morte como um mal necessário para manter a ordem
e a segurança da comunidade e banalizando a violência na certeza da impunidade.
Daí a associação das milícias com a chamada banda ‘podre’ da polícia (MANSO,
2020, p. 31).
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Diante desse breve quadro, questiona-se como fica a socialização tanto nos
espaços familiares e sociais, quanto no âmbito da escola? Se entendermos que a
socialização tem de criar as condições para as pessoas se integrarem socialmen-
te, educando-as para uma vida democrática, como ficam esses pressupostos em
contextos de medo e insegurança? Como educar para a sensibilidade estética e a
valorização do outro se as experiências são predominantemente de violência, medo
e morte? A democracia exige confiança no outro. Como fica, então, a educação para
uma vida democrática quando as relações sociais estão assentadas na desconfian-
ça? Muitos autores problematizaram os desafios de uma educação democrática e
cidadã, valorizando e reconhecendo o outro. A pesquisa feita por Manso evidencia o
quão são precarizadas as formas de socialização no contexto analisado.
A história brasileira é permeada de violência e brutalidade, práticas fortaleci-
das durante a experiência escravocrata. A ditadura militar de 1964 a 1985 fortale-
ceu essa ideia que foi, posteriormente, disseminada em outros espaços. No capítulo
oitavo da obra, Manso (2020, p. 257-287) analisa as raízes dessa tradição autoritá-
ria que foi radicalizada durante a ditadura de 1964 a 1985. Essa cultura não acaba
com o fim da ditadura em 1985. Ao contrário, o autor mostra a sua continuidade
em personagens conhecidos como do general Newton Cruz, de Olavo de Carvalho, o
do coronel Brilhante Ustra até chegar a Jair Bolsonaro que ascende politicamente
na medida em que o discurso miliciano é incorporado em sua pauta de campanha:
combate aos corruptos e criminosos (inaceitáveis) e a defesa da violência para colo-
car ordem no país. Há, portanto, um conjunto de elementos discursivos e de práti-
cas que justificam a violência e a morte de criminosos como valores. As milícias se
estruturaram em cima desses pressupostos e disseminam em suas ações o medo, a
morte e a desconfiança. A tese que defendem é que a violência é uma necessidade
para instaurar a ordem social, ou seja, a violência é pedagógica e ensina como se
comportar.
A lógica miliciana é que a violência produz ordem (MANSO, 2020, p. 13). Nes-
se sentido, é interessante a fala de Lobo, entrevistado por Manso (2020, p. 23), ao
descrever as ações da milícia: “O segredo de ganhar a comunidade era fazer o que o
Estado não conseguia fazer. Até escola particular pra criancinha especial o Betinho
pagava. Quando o tráfico quis voltar, os moradores amavam tanto o pessoal que
alguns até pediram armas para ficar atirando da janela nos traficantes”. Chama
atenção, também, que operações policiais praticamente não ocorreram em áreas
comandadas pelos milicianos. Onde a atua milícia a polícia praticamente não mata
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(2020, p. 244), ou seja, não faz operações, ao contrário das favelas onde entram em
disputas os traficantes com os milicianos.
A pesquisa que resultou no livro teve como objetivo, segundo Manso (2020,
p. 32), “compreender por que e como a sociedade vem produzindo esses compor-
tamentos violentos e induzindo seus participantes a seguirem esses caminhos...”.
Assassinatos sem deixar rastros e a segurança privada com a cobrança por serviços
(2020, p. 77), passou a dar mais dinheiro do que o tráfico, além de ser ‘menos peri-
goso’. A ação miliciana, no entanto, não se limita às descritas acima. Passaram a
influir e intervir na política partidária com a eleição de representes para os dife-
rentes cargos eletivos: vereadores, deputados estadual e federal e ao senado, pre-
feitos, governador e presidente. Assim, o domínio dos milicianos implicou, também,
a conquista de votos para candidatos indicados e apoiados pelas próprias milícias.
As investigações sobre rachadinhas na Alerj envolvendo o atual senador Flávio
Bolsonaro, quando ainda era deputado estadual, e as ações do miliciano Fabrício
Queiroz, ajudam entender as vinculações entre a milícia e a representação política.
Recursos advindos de práticas ilegais são ‘lavados’ de diferentes formas, entre as
quais, investindo no setor imobiliário.
A tese desenvolvida por Manso é de que: a ausência do Estado em serviços
básicos cria condições para a expansão de grupos privados que executam alguns
desses serviços e, em contrapartida, exercem diferentes formas de domínio sobre
as populações locais. Os processos que interferem na construção do território são
fundamentais para a constituição de uma cidade que pode ser educadora ou gera-
dora de mais desigualdades e discriminações. Nos processos educativos, o Estado
se torna imprescindível, uma vez que detém o poder de administrar, regular, fis-
calizar, executar programas e projetos sociais, defendendo os interesses comuns.
Os contextos analisados por Manso, mostram as profundas cisões existentes nas
cidades da grande Rio de Janeiro e os paradoxos e contradições estruturais que são
agravados pela intervenção desses grupos corporativos que atuam em múltiplas
frentes, a maioria delas ilegais como jogos de azar ou o jogo do bicho. O território
é um produto, ou seja, uma construção social que pode servir de base para uma
sociedade democrática e cidadã, mas também, como é o caso, constituir-se em es-
paço de exploração imobiliária e de controles políticos e paramilitares. Quando o
Estado é ausente, o cidadão busca outras formas de suprir suas necessidades e é
essa a realidade que oportunizou milicianos travestidos de ‘empresários’ a expan-
direm seus negócios, criando estruturas extremamente lucrativas e autossuficien-
tes. O Estado, nessas circunstancias, acaba sendo “terceirizado ou leiloado”, como
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Socialização em contextos de violência e desconança: reexões sobre a obra República das Milícias – do esquadrão da morte à era Bolsonaro
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diz Manso (2020, p. 77). As instituições que têm a obrigação legal de combater a
violência e fortalecer o Estado de Direito ficam extremamente fragilizadas e as or-
ganizações paramilitares acabam se associando ao crime organizado. Atuam mais
em conivência como o crime do que no seu enfrentamento. Basta ver a lentidão das
investigações no caso Marielle e Anderson, assim como, no caso das rachadinhas
na Assembleia Legislativa.
Como fica a formação das novas gerações, objeto fundamental das reflexões
sobre socialização? Manso traz inúmeros elementos que ajudam a pensar como as
novas gerações que estão se constituindo nesses contextos de violência terão difi-
culdades para experienciar práticas efetivamente democráticas. Muitas crianças
são afastadas da escola por inúmeras razões; outras são inseridas em práticas vin-
culadas ao tráfico e ao crime; outras vivenciam desde muito cedo situações dramá-
ticas. O relato de Reginaldo de quando era criança de 11 anos impressiona: “Com
onze anos, eu tinha visto muita gente morta nas ruas. Com essa idade, também
vi os primeiros homicídios acontecerem bem na minha frente” (2020, p. 148). Ele
relata que num confronto entre grupos rivais um desses grupos ficou encurralado
e foi feito refém pelos adversários.
Eles amarraram os braços e pescoços desses homens, como fazem na pesca do caranguejo, e
levaram juntos, em fileira, para um lugar perto da minha casa. A embira (corda) foi puxada
pelo chefe do grupo. Eu tinha acabado de chegar do trabalho. Ainda era criança. Estava
sentado na soleira da minha porta, não tinha muro. Eu morava na subida do morro. O chefe
do bando me viu e gritou: ‘não sai daí, não, que é par você ver e aprender a ser homem’.
E daí começou a chacina. Todos os doze foram mortos a pauladas, socos, pedradas e tiros
calibre 22 (MANSO, 2020, p. 148).
Essa ideia de ver para aprender é parte da tese que o autor diz fazer parte
do cotidiano desses grupos, entre os quais os milicianos, que entendem a violência
como ação educativa. Como observa Manso (2020, p. 293):
O homicídio ensinaria aos demais o destino dos ladrões que ousavam desobedecer. Essa
modalidade de assassinato, portanto, era vista como um antídoto ao roubo e ao tráfico de
drogas, formas de violência consideradas covardes, desrespeitadoras das regras e gera-
doras de imprevisibilidade. Assassinatos, encarados desse ponto de vista, podem levar à
ordem, que por sua vez traz segurança. Já o roubo e o tráfico são sinônimos de desordem,
provocam medo e uma sensação de vulnerabilidade.
Essa hierarquia ocorre, também, em outras situações como o jogo do bicho: “o
jogo é coisa querida, amada pelo povo. Tóxico é odiado” (2020, p. 164). Tóxico é coisa
de traficante, enquanto o jogo do bicho é aceito. Em síntese, a obra traz um conjun-
to de provocações fundamentais para compreender determinados discursos que ga-
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nharam espaço nos últimos três anos. Tudo isso, no entanto, nos leva a questionar
se é possível pensar a cidade como espaço educador e construtor de sociabilidade?
Como pensar na garantia dos direitos sociais? Como o território pode propiciar
uma socialização articulada à cidadania? Como pensar a Cidade enquanto espaço
democrático e humanizador?
Nota
1 Não estranha o que ocorreu no dia 06 de maio de 2021 em Jacarezinho, Rio de Janeiro, quando uma ação
da polícia resultou na morte de 29 pessoas, sendo 28 civis e um policial. Ainda não foram esclarecidas
várias questões sobre as mortes, mas há indícios de crueldade, execuções e destruição de provas com a re-
moção de cadáveres. Após a leitura da obra de Manso (2020) é possível compreender melhor essas práticas
e as possíveis disputas em pauta.
Referência
MANSO, Bruno Paes. República das Milícias: do esquadrão da morta à era Bolsonaro. São
Paulo: Todavia, 2020.