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ISSN on-line 2238-0302
volume 28 número 2 maio/ago. 2021
EDUCAÇÃO E SAÚDE
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Revista Espaço Pedagógico [online] / Universidade de Passo
Fundo, Faculdade de Educação. – Vol. 16, n. 2 (2009)- . –
Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2009-
Anual: 1994-1998. Semestral: 1999-2016. Quadrimestral:
2017-.
eISSN 2238-0302.
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1. Ciências humanas – Periódico. 2. Educação – Periódico.
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ESPAÇO
PEDAGÓGICO
SUMÁRIO
O mundo em distanciamento: as escolas pararam, as necessidades educacionais não ...............................................444
The world during social distancing: though schools are on hold, educational needs are not
El mundo em distanciamiento: las escuelas pararon, las necesidades educacionales no
Ricardo Burg Ceccim
Rosimere da Rosa Correa
A experiência de acadêmicos de Enfermagem no ensino remoto durante a pandemia por Covid-19 (SARS-CoV2).....470
The experience of Nursing academics in remote education during the pandemic by Covid-19 (SARS-CoV2)
La experiencia de los académicos de Enfermería en educación remota durante la pandemia por Covid-19 (SARS-CoV2)
Marcia Maria Ribera Lopes Spessoto
Raphael Ramos Spessoto
Mental resilience or mental asco? Covid-19 pandemic: ethnographic reections of international students in higher
education from Czech Republic ..................................................................................................................................490
Resiliência mental ou fracasso mental? Covid-19 pandemic: reexões etnográcas de estudantes internacionais de ensino superior da
República Tcheca
¿Resiliencia mental o falla mental? Pandemia Covid-19: reexiones etnográcas de estudiantes internacionales de educación superior
de la República Tcheca
Preeti Rajendran
Saúde docente: o possível impacto das condições de trabalho no ensino remoto emergencial ..................................508
Salud docente: el posible impacto de las condiciones de trabajo en la educación remota de emergencia
Teaching health: the possible impact of working conditions on emergency remote teaching
Elita Betânia de Andrade Martins
Juliana Campos Schmitt
Alessandra Maia Lima Alves
O Plano de Estudos Dirigidos como orientador do trabalho pedagógico durante a pandemia na rede municipal de
Londrina, PR ...............................................................................................................................................................534
The Study Plan Directed as a guideline for pedagogical work during the pandemic in the municipal network of Londrina, PR
Plan de Estudio Dirigido como orientación para el trabajo pedagógico durante la pandemia en la red municipal de Londrina, PR
Simone Burioli Ivashita
Francielle Nascimento Merett
Nathalia Martins Beleze
Perspectivas no futuro educacional da Bahia: breves relatos de educadores em tempos de Covid-19 .......................551
Perspectives in Bahias educational future: brief reports from educators in Covid-19 times
Perspectivas en el futuro educativo de Bahia: cortos informes de los educadores em tiempos de Covid-19
Arlete Ramos dos Santos
Antônio Domingos Moreira
O lugar do estágio curricular supervisionado das licenciaturas no contexto de pandemia por Covid-19: as condições
econômicas e sociais e a morbimortalidade ...............................................................................................................573
The place of supervised curricular internship of teacher training courses in the context of pandemic by Covid-19: economic and social
conditions and morbidity and mortality
El lugar de la práctica curricular supervisada de cursos de formación docente en el contexto de pandemia por Covid-19: condiciones
económicas y sociales y morbimortalidad
Patrícia Caldeira Tolentino Czech
Rodrigo Diego de Souza
Patrícia Correia de Paula Marcoccia
Saúde, educação e a pós-verdade como estratégia de (des)educabilidade: notas sobre a pandemia e o
bolsonarismo .............................................................................................................................................................591
Health, education and the post-truth as an (un)educability strategy:
notes on the pandemic and bolsonarism
Salud, educación y posverdad como estrategia de (in)educabilidad:
apuntes sobre la pandemia y el bolsonarismo
Mozart Linhares da Silva
Camila Francisca da Rosa
O que é educar um bebê? Os primórdios da estruturação psíquica dentro da instituição escolar ................................609
What is to educate a baby? The beginnings of psychic structuring within the school institution
¿Qué es educar un bebé? Los primordios de la estructuración psíquica dentro de la institución escolar
Julieta Jerusalinsky
Formação em saúde no âmbito da UFRN: aspectos fundamentais das aprendizagens em contextos
interdisciplinares ........................................................................................................................................................622
Health training in the context of UFRN: fundamental aspects of learning in interdisciplinary contexts
La formación en salud en la UFRN: aspectos fundamentales de los aprendizajes en contextos interdisciplinarios
Eliana Costa Guerra
Antônio Medeiros Júnior
Nilma Dias Leão Costa
Práticas multidisciplinares de atenção à pessoa com transtorno do espectro autista (TEA) ........................................640
Multidisciplinary practices of attention to persons with autistic spectrum disorder (ASD)
Prácticas multidisciplinarias de atención a personas con trastorno del espectro autista (TEA)
Mylene Cristina Santiago
Karla Aparecida Gabriel
Literacia em saúde: um estudo com alunos do ensino médio de escolas brasileiras ...................................................657
Health literacy: a study with high school students from brasilian schools
Alfabetización en salud: un estudio con estudiantes de secundaria de escuelas brasileñas
Andreia Freitas Zompero
Tania Aparecida Silva Klein
Amâncio António Sousa Carvalho
Adoecimento docente nas escolas públicas do estado do Paraná ...............................................................................671
Teaching illness in public schools of the state of Parana
Educación docente en las escuelas públicas del estado de Paraná
Alboni Marisa Dudeque Pianovski Vieira
Elza Fagundes da Silva
Educación y salud: mirada diversa, reexiva y relacional para el desarrollo humano del siglo XXI ..............................689
Education and health: a diverse, reexive and relational look for human development in the 21st century
Educação e saúde: um olhar diverso, reexivo e relacional para o desenvolvimento humano no século XXI
Yoisell Lopez Bestard
Juan Eligio Lopez Garcia
Maria Caridad Bestard Gonzalez
Educação ético-estética em tempos de pandemia: conexões entre arteterapia e bem-estar humano ........................ 704
Ethical-aesthetic education in times of pandemic: connections between art therapy and human well-being
Educación ético-estética en tiempos de pandemia: conexiones entre arteterapia y bienestar humano
Patrícia Carlesso Marcelino
Franciele Silvestre Gallina
Alex Sander da Silva
Crianças oncológicas e as experiências do adoecer e das práticas pedagógicas em ambiente hospitalar ....................727
Oncological children and the experiences of illness and pedagogical practices in a hospital environment
Niños oncológicos y las experiencias de enfermedad y de prácticas pedagógicas en un entorno hospitalario
Osdi Barbosa dos Santos Ribeiro
Alessandra Alexandre Freixo
Saberes de adolescentes quilombolas incorporados aos saberes cientícos na construção de roteiro educativo sobre
gravidez ....................................................................................................................................................................744
Knowledge of quilombola teenagers incorporated into scientic knowledge in the construction of an educational script on pregnancy
Conocimiento de adolescentes quilombolas incorporado al conocimiento cientíco en la construcción de un guión educativo sobre el
embarazo
Adriana Nunes Moraes-Partelli
Marta Pereira Coelho
“Se tomo um pileque, dou a vez na direção?”: investigando percepções de adolescentes cabo-verdianos e brasileiros
sobre a prevenção de acidentes de trânsito ................................................................................................................768
“Se tomo um pileque, dou a vez na direção?”: investigating perceptions of cape verdian and brazilian teens on the prevention of trac
accidents
“Se tomo um pileque, dou a vez na direção?”: investigando las percepciones de los adolescentes caboverdianos y brasileños acerca de la
prevención de accidentes de tráco
Júlio Cesar Bresolin Marinho
Caracterização da autorregulação emocional e estados afetivos em alunos da pós-graduação stricto sensu .............. 791
Characterization of emotional self-regulation and aective states in postgraduate students stricto sensu
Caracterización de la autorregulación emocional y estados afectivos en estudiantes graduados stricto sensu
Jamille Gabriela Cunha da Silva
Luciana Amaral Garcia
Maély Ferreira Holanda Ramos
Diálogo com educadores ............................................................................................................................................817
Vanderléia Leodete Pulga
Renata Maraschin
Altair Alberto Fávero
Metodologias ativas para uma educação inovadora: uma abordagem teórico-prática ...............................................835
Adriana Aparecida de Lima Terçariol
Romeu Afecto
435
ESPAÇO PEDAGÓGICO
v. 28, n. 2, Passo Fundo, p. 435-443, maio/ago. 2021 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Este artigo está licenciado com a licença: Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
ESPAÇO
PEDAGÓGICO
EDITORIAL
A reflexão a respeito da relação saúde e educação é uma das mais instigantes
e desafiadoras tarefas, pois envolve não só especialistas dessas áreas, mas, tam-
bém, filósofos, sociólogos, antropólogos, psicólogos, psicanalistas, economistas, teó-
logos, entre outros. A recente pandemia do novo coronavírus (SARS-CoV-2), agente
causador da Covid-19, instigou cientistas, gestores públicos e a população de um
modo geral a debruçarem-se sobre as formas de enfrentamento da doença, bem
como analisarem as consequências locais e globais. A revista Espaço Pedagógico
da Universidade de Passo Fundo (UPF) participa desses esforços, abrindo espaço
para acolher experiências e reflexões sobre os impactos provocados pela pandemia
na vida pessoal, social e nas instituições educativas. O dossiê Educação e Saúde
objetiva promover um diálogo interdisciplinar e crítico sobre a pandemia e suas
implicações subjetivas e sociais.
Um conjunto de questões coloca-se nesse contexto: que saberes interdiscipli-
nares se fazem necessários para relacionar educação e saúde? De que modo a saú-
de pode afetar processos educativos? Que elementos são levados em consideração
quando da tomada de decisões referentes à educação formal e informal em tempos
de pandemia, de aumento nos riscos de contágio, de disseminação incontrolável da
doença e de possibilidades reais de colapsos no sistema de saúde? De que concepção
de educação podemos falar em meio às demandas impostas pela pandemia? Que
relações podem ser estabelecidas entre processos educativos, sistema econômico e
sistema de saúde? Que racionalidade sustenta processos educativos em tempos de
crescente adoecimento coletivo? Que experiências educativas foram construídas
durante a pandemia e quais seus limites e suas possibilidades?
Essas são algumas interrogações que emergem dentro de um horizonte de diá-
logo interdisciplinar entre saúde e educação em tempo de pandemia. Esse debate
é incrementado com a colaboração de inúmeros investigadores que trazem suas
436 ESPAÇO PEDAGÓGICO v. 28, n. 2, Passo Fundo, p. 435-443, maio/ago. 2021 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
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contribuições na composição deste dossiê. Há artigos resultantes de pesquisas teó-
ricas e empíricas que auxiliam na reflexão sobre educação e saúde, considerando
a importância da interdisciplinaridade na produção de conhecimentos que tratam
diretamente ou tangenciam esses campos. Pensar nas complexas relações entre
educação e saúde implica trazer para o debate aportes filosóficos, sociológicos, bio-
lógicos, antropológicos, políticos, ideológicos, dentre outros.
A título de exemplo, podemos tratar da relação entre educação e saúde na
perspectiva hermenêutica gadameriana. Hans-Georg Gadamer (1900-2002) foi um
filósofo alemão que apostou no trabalho hermenêutico como motor do resgate da
humanidade após os horrores da Segunda Guerra Mundial, bem como um meio
para fazer frente ao tecnicismo instrumental que solapou da condição humana di-
mensões como a cooperação, a solidariedade e a ética. Defendeu a linguagem como
modo de humanização, fundando no diálogo o alicerce para a sobrevivência da hu-
manidade como civilização. De modo mais específico, articulou a hermenêutica à
saúde, em um conjunto de ensaios publicados na obra que tem por título: O caráter
oculto da saúde (2006). Nesses ensaios, Gadamer (2006) reflete sobre a prática
médica a partir da hermenêutica filosófica, particularmente, da noção de diálogo
vivo, retomando a dimensão ética, fragilizada com o advento da medicina cientí-
fica. Para Gadamer (2006, p. 133), “o diálogo é troca recíproca entre pergunta e
resposta. Implica, portanto, o falar com alguém, o qual responde a seu interlocutor,
sendo este tipo de interação inseparável de seu significado”. Ainda de acordo com o
filósofo, “na área da medicina, o diálogo não é uma simples introdução e preparação
para o tratamento. Ele já é o tratamento e continua sendo muito importante no
tratamento que se segue, o qual deve conduzir a cura”.
O dossiê Educação e Saúde insere-se no contexto profundamente complexo e
desafiador que estamos vivendo. Necessitamos de tempos mais alongados para me-
lhor avaliar as implicações subjetivas, sociais, econômicas, políticas e educativas
decorrentes da pandemia. Diagnósticos mais profundos precisam ser feitos para
compreender melhor as transformações a que fomos submetidos de uma forma
brusca e inesperada, as sofridas experiências vivenciadas desde 2020, as milhares
de mortes de familiares, amigos, conhecidos, as dramáticas situações de sofrimento
provocadas pela falta de infraestrutura e pelos colapsos em sistemas de atendi-
mento, as limitações dos profissionais da saúde frente às excessivas demandas.
Neste momento, queremos nos somar a todos esses batalhadores que não mediram
esforços para resistir e enfrentar todas as adversidades que a pandemia gerou ou
agravou.
437
ESPAÇO PEDAGÓGICO
v. 28, n. 2, Passo Fundo, p. 435-443, maio/ago. 2021 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
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Ainda será necessário mais tempo para avaliar o que efetivamente aprendemos
com os processos de confinamento e isolamento a que fomos submetidos. Paradoxos
e contradições foram acirrados: disputas pelo controle das descobertas científicas;
controle e acumulação de vacinas por alguns países com maior poder econômico e
político e ausência para países excluídos das riquezas; negacionismos científicos e
políticos que agravaram o sofrimento e aumentaram exponencialmente a morte de
pessoas; esforços para criar novas relações de comunicação; construção de práticas
educativas em contextos profundamente desiguais, especialmente no Brasil; novas
relações pedagógicas decorrentes do ensino remoto. Essas e tantas outras questões
ganham sentido no contexto de pandemia e das suas consequências. O dossiê Edu-
cação e Saúde insere-se nesse contexto e é composto por dezenove artigos, mais
a seção de diálogo com educadores e uma resenha. As temáticas e as respectivas
abordagens são diversas, mas confluem para a relação entre educação e saúde.
O artigo de Ricardo Burg Ceccim e Rosimere da Rosa Correa, intitulado O
mundo em distanciamento: as escolas pararam, as necessidades educacionais não,
trata da relação educação e a saúde na perspectiva da educação especial. Analisa
os impactos educativos decorrentes das medidas adotadas por conta da pandemia,
no caso da educação especial, que, segundo os autores, não poderia ser postergado
em um agudo planejamento da intervenção pedagógica e psicossocial, ante o risco
de danos duradouros ou permanentes ao seu desenvolvimento, aos processos cogni-
tivos e afetivos e à inserção social, além de riscos à constituição de si e ao bem-estar
mental individual e familiar. A pandemia gerou mudanças nos ritmos existentes
anteriormente, mas, para alguns sujeitos, essas transformações foram profunda-
mente complexas, como no caso da educação especial.
A contribuição de Marcia Maria Ribera Lopes Spessoto e Raphael Ramos
Spessoto, A experiência de acadêmicos de enfermagem no ensino remoto durante a
pandemia por Covid-19 (Sars-cov2), objetiva fazer um levantamento com acadêmi-
cos de enfermagem da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul em relação
às condições em que estão desenvolvendo o ensino remoto emergencial (ERE) e às
suas percepções desse processo. Os autores fazem um estudo dos principais en-
caminhamentos adotados pelo Estado brasileiro na educação superior durante a
pandemia e, por consequência, da perspectiva institucional adotada pela referida
universidade. A pesquisa, realizada por meio de questionários, evidenciou que os
alunos usaram, predominantemente, celulares e outras ferramentas digitais para
o acesso aos conteúdos, concluindo que a pandemia trouxe rupturas e novas con-
438 ESPAÇO PEDAGÓGICO v. 28, n. 2, Passo Fundo, p. 435-443, maio/ago. 2021 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
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figurações para a área da educação, as quais necessitarão de reflexões, estudos e
amadurecimento por parte de docentes, discentes e familiares.
O artigo Mental resilience or mental fiasco? Covid-19 pandemic: ethnographic
reflections of international students in higher education from Czech Republic, de
Preeti Rajendran, apresenta, através de uma pesquisa quanti-qualitativa, o que
chama de resiliência mental em estudantes internacionais na República Tcheca.
Além de gráficos que analisam fatores sociais e mentais, o artigo baseia-se em sete
histórias etnográficas e autoetnográficas de estudantes. Essas histórias refletem
desde o período de alerta máximo até o fechamento das fronteiras de março de 2020
a novembro de 2020. A partir das histórias desses estudantes, conclui que o en-
frentamento à pandemia é variado, complexo e situacional, dependendo de vários
fatores individuais e contextuais, mas apontam para a existência de uma resiliên-
cia mental nos processos de enfrentamento às condições impostas pela pandemia.
Elita Betânia de Andrade Martins, Juliana Campos Schmitt e Alessandra
Maia Lima Alves participam do dossiê com o artigo Saúde docente: o possível im-
pacto das condições de trabalho no ensino remoto emergencial, abordando um tema
que ganhou destaque com a pandemia da Covid-19, que é o adoecimento de profes-
sores em decorrência das crescentes demandas provocadas pelas aulas remotas e
das pressões decorrentes de portarias e decretos, retirando a autonomia dos pro-
fessores em seus trabalhos, bem como do trabalho aumentado. Tudo isso agravou
as situações de adoecimento dos professores.
O artigo de Simone Burioli Ivashita, Francielle Nascimento Merett e Nathalia
Martins Beleze, intitulado O Plano de Estudos Dirigido como orientador do tra-
balho pedagógico durante a pandemia na rede municipal de Londrina, PR, trata
dos impactos da pandemia na educação e da necessidade de reorganizar o trabalho
pedagógico, condição para assegurar o direito à educação. O artigo analisa o Plano
de Estudos Dirigido organizado na rede do município de Londrina, PR, como forma
de assegurar aos alunos vínculos com a escola.
Arlete Ramos dos Santos e Antônio Domingos Moreira tratam das perspecti-
vas do ensino médio na Bahia no contexto da pandemia no artigo: Perspectivas no
futuro educacional da Bahia: breves relatos de educadores em tempos da Covid-19.
O artigo fundamenta-se numa pesquisa de campo com questionários aplicados a
educadores sobre as tecnologias na educação e os desafios para as políticas públi-
cas avançarem no ensino on-line, que, por sua vez, vai implicar condições de acesso
como computadores, internet e qualificação de todos os envolvidos na comunidade
escolar.
439
ESPAÇO PEDAGÓGICO
v. 28, n. 2, Passo Fundo, p. 435-443, maio/ago. 2021 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Este artigo está licenciado com a licença: Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
O artigo de Patrícia Caldeira Tolentino Czech, Rodrigo Diego de Souza e Pa-
trícia Correia de Paula Marcoccia, O lugar do estágio curricular supervisionado
das licenciaturas no contexto de pandemia por Covid-19: as condições econômicas e
sociais e a morbimortalidade, aborda o estágio curricular supervisionado nas licen-
ciaturas no contexto da pandemia. Essa atividade ficou profundamente atingida
pela suspensão de atividades presenciais. A conclusão a que os autores chegam é
a de que a pandemia e as condições socioeconômicas acentuaram as desigualdades
sociais e educacionais brasileiras e implicaram diretamente no trabalho docente e
na formação inicial dos professores.
Mozart Linhares da Silva e Camila Francisca da Rosa, no artigo Saúde, edu-
cação e a pós-verdade como estratégia de (des)educabilidade: notas sobre a pande-
mia e o bolsonarismo, tratam de questões que ganharam centralidade nos últimos
anos no Brasil, especialmente a partir de 2019. O artigo baseia-se na análise das
ações e dos discursos assumidos pelo governo Bolsonaro e por seus apoiadores. O
conceito de pós-verdade é compreendido pelos autores como estratégica enquanto
meio de educabilidade, principalmente durante a pandemia do novo coronavírus.
Os autores identificam que, antes da eleição, já estava sendo gestada uma política
anti-intelectualista e de deslegitimação do saber científico, com ataques sistemá-
ticos à universidade e à educação em geral, espaços que tradicionalmente são con-
siderados legítimos para a produção e a difusão da verdade. Na pandemia, um dos
alvos dos ataques foi a ciência no âmbito da saúde.
Julieta Jerusalinsky é autora do artigo O que é educar um bebê? Os primórdios
da estruturação psíquica dentro da instituição escolar. A autora analisa o direito do
bebê ao acesso à educação infantil, as implicações da separação da criança em rela-
ção à mãe e os cuidados que clínicos e educadores precisam ter no aprofundamento
de como ocorrem as relações entre mãe e bebê em relação aos cuidados. Chama
atenção para o trabalho dos profissionais da educação infantil no cuidado para com
as crianças em relação a alimentação, higiene e embalo do sono. Conclui que pro-
fissionalizar a intervenção de educadores da primeira infância não implica cair em
técnicas rígidas, mas resgatar a complexidade da transmissão simbólica implicada
nos cuidados cotidianos, no brincar da criança pequena e nos jogos constituintes de
um bebê como sujeito do desejo em estruturação, sublinhados nas contribuições da
clínica da estimulação precoce permeada pela psicanálise.
Formação em saúde no âmbito da UFRN: aspectos fundamentais das apren-
dizagens em contextos interdisciplinares é a contribuição de Eliana Costa Guerra,
Antônio Medeiros Júnior e Nilma Dias Leao Costa. Como observam os autores,
440 ESPAÇO PEDAGÓGICO v. 28, n. 2, Passo Fundo, p. 435-443, maio/ago. 2021 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
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o artigo, de natureza bibliográfica, documental e de portfólios com experiências
produzidas nessa universidade, que resultaram na construção das disciplinas de
Saúde e Cidadania I e II, objetiva configurar a contribuição de experiências de
ensino desenvolvidas no âmbito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
nos processos de mudança na formação em nível de graduação dos cursos de saúde,
tendo por base atividades acadêmicas realizadas em estreita colaboração com os
serviços de saúde e tendo por horizonte a construção da interprofissionalidade. Os
autores concluem que ocorreram importantes mudanças nas práticas profissionais
em serviços da Atenção Básica à Saúde e na preparação de profissionais para atua-
rem, especialmente, nas redes do Sistema Único de Saúde.
O artigo de Mylene Cristina Santiago e Karla Aparecida Gabriel, Práticas
multidisciplinares de atenção à pessoa com transtorno do espectro autista (TEA),
analisa as práticas multidisciplinares de saúde e inclusão relacionadas ao TEA.
Os modelos diagnósticos de deficiência, o médico e o social, trazem repercussões
distintas em relação às possibilidades de inclusão da pessoa com TEA nos espaços
educacionais e sociais. As autoras concluem que o modelo social favorece a articu-
lação entre saúde e educação, gerando novas práticas que ampliam as oportunida-
des de participação e aprendizagem da pessoa com autismo e dos seus familiares,
propondo novos olhares e perspectivas, que se desdobram em possibilidades de
intervenção precoce, propostas de acessibilidade curricular, atendimento educacio-
nal especializado e mediação no processo de aprendizagem.
O artigo de Andreia Freitas Zompero, Tania Aparecida Silva Klein e Amân-
cio António Sousa Carvalho, Literacia em saúde: um estudo com alunos do ensino
médio de escolas brasileiras, trata de um estudo que visou identificar o nível de
literacia em saúde, prevenção de doença e promoção da saúde de estudantes do
ensino médio. Trata-se de um estudo observacional, descritivo-correlacional, de
abordagem quantitativa, envolvendo alunos do 2º e 3º anos do ensino médio, em
duas escolas públicas da cidade de Londrina, PR. Para desenvolver a pesquisa, foi
aplicado um questionário adaptado do European Health Literacy Survey. A pes-
quisa mostrou que a média dos alunos participantes apresenta literacia em saúde
inferior a países da Europa, em que os estudantes nessa mesma faixa etária apre-
sentaram nível satisfatório.
Alboni Marisa Dudeque Pianovski Vieira e Elza Fagundes da Silva abordam
um tema muito preocupante na contemporaneidade com o artigo Adoecimento do-
cente nas escolas públicas do estado do Paraná. Trata-se de uma discussão sobre os
fatores que contribuem para o adoecimento docente nas escolas de ensino básico na
441
ESPAÇO PEDAGÓGICO
v. 28, n. 2, Passo Fundo, p. 435-443, maio/ago. 2021 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
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rede pública estadual do Paraná. O artigo resulta de uma pesquisa bibliográfica,
documental e de campo. Os dados mostram, em primeiro lugar, a correlação entre
afastamentos de função e licenças médicas decorrentes de fatores emocionais; em
segundo, estão problemas de desgaste físico.
Educação e saúde: um olhar diverso, reflexivo e relacional para o desenvolvi-
mento humano no século XXI é a contribuição de Yoisell Lopez Bestard, Juan Eligio
Lopez Garcia e Maria Caridad Bestard Gonzalez. A reflexão centra-se nos conceitos
de educação e saúde no século XXI, especialmente, no contexto da pandemia da
Covid-19. “É realizada a análise gramatical das palavras que compõem a frase
educação e saúde, direciona sua interpretação para a dimensão social de ambos os
processos de alta incidência no desenvolvimento humano”. O desafio, concluem, é
um trabalho interdisciplinar no campo da educação em diálogo com a saúde visan-
do “influenciar as novas gerações e, com elas, a garantia de continuidade da vida”.
Patricia Carlesso Marcelino, Franciele Silvestre Gallina e Alex Sander da
Silva contribuem com o artigo: Educação ético-estética em tempos de pandemia:
conexões entre Arteterapia e bem-estar humano. Os autores objetivam refletir sobre
a noção de bem-estar humano e a promoção da saúde. Isso implica numa mudança
epistemológica e na contribuição da arteterapia como possível referencial teórico
e prático para a promoção do bem-estar das pessoas em tempos pandêmicos. Essa
perspectiva ganha relevância numa sociedade marcada por desigualdades, exclu-
são, racismo e preconceitos. O artigo aprofunda uma perspectiva ético-estética de
educação e de saúde que conceba o ser humano em sua integralidade.
O artigo de Osdi Barbosa dos Santos Ribeiro e Alessandra Alexandre Freixo,
Crianças oncológicas e as experiências do adoecer e das práticas pedagógicas em
ambiente hospitalar, objetiva aprofundar a compreensão sobre o adoecimento e as
práticas pedagógicas por crianças em um Centro de Oncologia em Feira de Santa-
na, Bahia. Com o apoio de observações participantes, foram realizadas entrevistas
semiestruturadas com crianças. A pesquisa evidenciou que o hospital é, para as
crianças, um lugar de dor e de cura, destacando o papel pedagógico da brinque-
doteca e sua identificação com o ambiente escolar, especialmente a contação de
histórias. Dessa forma, a criança mantém vínculos sociais e educativos.
Adriana Nunes Moraes-Partelli e Marta Pereira Coelho contribuem com o
artigo: Saberes de adolescentes Quilombolas incorporados aos saberes científicos
na construção de roteiro educativo sobre gravidez. As autoras objetivam analisar
como saberes de adolescentes de comunidade Quilombola foram incorporados aos
saberes científicos na elaboração do roteiro de duas histórias em quadrinhos em
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um material educativo sobre gravidez não planejada. As autoras concluem que as
histórias, que foram produzidas de forma participativa, valorizaram experiências,
significados, divergências e convergências entre os saberes populares e científicos,
traduzindo a realidade do cotidiano dos adolescentes afro-brasileiros de forma útil,
prazerosa, didática e esclarecedora, para ser utilizada no processo educativo.
Julio Cesar Bresolin Marinho traz sua contribuição sobre o importante tema
que é a relação entre direção e bebida alcoólica. O autor faz um estudo comparativo
de percepções de adolescentes do Brasil e de Cabo Verde a respeito do tema. A
pesquisa que resultou no artigo chegou à conclusão de que, para que o sujeito não
se exponha e coloque sua vida em risco em um acidente de trânsito, é necessário
que ele se perceba como alguém de valor. Para isso, é preciso o desenvolvimento da
autoestima, da autoconfiança e do autorrespeito, bem como a construção de repre-
sentações de si com valor positivo.
Jamille Gabriela Cunha da Silva, Luciana Amaral Garcia e Maély Ferreira
Holanda Ramos contribuem com o artigo: Caracterização da autorregulação emo-
cional e estados afetivos em alunos da pós-graduação stricto sensu. As autoras ana-
lisam a percepção de alunos de pós-graduação sobre a autorregulação emocional
e seus estados afetivos no contexto acadêmico e sobre como aspectos emocionais e
afetivos influenciam a ação dos indivíduos, social e academicamente. A metodolo-
gia utilizada incluiu vários recursos, entre os quais, um questionário com 58 alu-
nos de pós-graduação – mestrado e doutorado – de dois programas da Universidade
Federal do Pará, que se dispuseram a participar. Os resultados evidenciaram que,
mesmo tendo muitas exigências e tarefas a cumprir na pós-graduação, os alunos
conseguem administrar suas emoções e sua variação de humor, sem perder a per-
cepção de determinação, animação e interesse no processo de formação em questão.
O Diálogo com educadores conta com as preciosas reflexões de Vanderléia
Leodete Pulga, educadora que tem uma longa trajetória de diálogo entre saúde e
cultura popular, trazendo para debate contribuições e desafios para a formação de
profissionais sensíveis e qualificados no atendimento à saúde, especialmente de
setores populares, com uma visão de mundo capaz de compreender os sujeitos em
suas práticas sociais e em suas manifestações de doença-saúde.
A resenha de Adriana Aparecida de Lima Terçariol e Romeu Afecto é sobre a
obra Metodologias ativas para uma educação inovadora: uma abordagem teórico-
-prática, de Bacich e Moran (organizadores), com a contribuição de vários autores
que abordam práticas pedagógicas aplicadas por docentes por meio de novas me-
todologias de ensino e aprendizagem, consideradas como inovadoras e definidas
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como ativas. Os autores concluem que a obra traz importantes contribuições meto-
dológicas para pensar as práticas pedagógicas.
Desejamos que este conjunto de reflexões nos ajudem a compreender melhor
os impactos da pandemia, as relações fundamentais entre saúde e educação e a
construção de experiências alternativas. A vocês, desejamos uma boa leitura.
Altair Alberto Fávero – organizador
Renata Maraschin – organizadora
Telmo Marcon – editor-chefe
Referência
GADAMER, H. G. O caráter oculto da saúde. Trad. Antônio Luz Costa. Petrópolis: Vozes, 2006.
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v. 28, n. 2, Passo Fundo, p. 444-469, maio/ago. 2021 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
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O mundo em distanciamento: as escolas pararam, as necessidades educacionais não
The world during social distancing: though schools are on hold, educational needs are not
El mundo em distanciamiento: las escuelas pararon, las necesidades educacionales no
Ricardo Burg Ceccim*
Rosimere da Rosa Correa**
Resumo
O presente trabalho aborda as relações entre educação (ensino) e atenção (saúde) no tocante ao público-obje-
tivo da educação especial, tendo em vista problematizar o distanciamento escolar e as demandas escolares ao
desenvolvimento cognitivo, afetivo e psíquico desse segmento populacional em face da pandemia de Covid-19.
A situação de pandemia impôs em todo o mundo o fechamento das escolas como uma das principais medidas
de controle da disseminação do novo coronavírus, o SARS-CoV-2, uma vez que a única evitabilidade conhecida
para suas correspondentes morbidade e mortalidade é o manejo epidemiológico em saúde coletiva. O segmen-
to da educação especial não poderia ser postergado em um agudo planejamento da intervenção pedagógica e
psicossocial ante o risco de danos duradouros ou permanentes ao seu desenvolvimento, aos processos cogniti-
vos e afetivos e à inserção social, além de riscos à constituição de si e ao bem-estar mental individual e familiar. A
metodologia é a da obtenção de dados em contexto e composição de resultados pela redação. Como resultado,
o trabalho reporta excertos narrativos de uma pesquisa qualitativa em fase inicial, apresentados como vinhetas,
em busca de contribuir com pensamentos e práticas em processos inclusivos na educação especial e na saúde.
Palavras-chave: Covid-19; distanciamento social; suspensão das aulas; saúde na escola; educação especial.
Abstract
The present study addresses the relationship between education (teaching) and care (health) with regard to the
target audience of special education, aiming to question the distancing from school and the school demands to
the cognitive, aective and psychological development for this specic population in the face of the Covid-19
pandemic. The pandemic has imposed the worldwide closure of schools as one of the main measures to control
the spread of the new coronavirus, Sars-CoV-2, since the only known prevention for its morbidity and mortality
is the epidemiological management of public health. The area of special education could not be set aside by an
acute planning of educational and psychosocial intervention, in view of risking prolonged or permanent dama-
ge to its development, cognitive and aective processes and social insertion, aside from the risks to self-forma-
tion, and individual and family mental well-being. The methodology consisted of obtaining data within a specic
* Professor titular de educação em saúde (quadro estatutário, regime de dedicação exclusiva), professor do quadro
permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS). Av. Paulo Gama, 110, prédio 12.201, 7° andar, Bairro Farroupilha. CEP 90046-900. Porto Alegre,
RS, Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0379-7310. E-mail: burgceccim@gmail.com
** Graduada em Pedagogia pela UFRGS, especialista em Educação Especial pela Universidade La Salle, mestre em Edu-
cação Especial, Saúde e Processos Inclusivos pelo PPGEdu da UFRGS, professora dos anos iniciais da rede municipal
de Canoas, foi professora do Atendimento Educacional Especializado de 2016 a 2019 no mesmo município e da rede
estadual de ensino do RS. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0677-9839. E-mail: rosimere_correa@hotmail.com
Recebido em: 17/11/2020 – Aprovado em: 25/02/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i2.11855
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context and the elaboration of written results. Thus, the present study documents narrative excerpts, presented
as sketches, of a qualitative research in its initial stages, aiming at contributing to the awareness of and practices
for inclusive processes in special education and in health.
Keywords: Covid-19; social distancing; classes on hold; health in schools; special education.
Resumen
El presente trabajo aborda las relaciones entre educación (enseñanza) y atención (salud) en lo que toca el pú-
blico-objetivo de la educación especial, teniendo en cuenta la problematización del distanciamiento y las de-
mandas escolares al desarrollo cognitivo, afectivo y psíquico de ese segmento poblacional frente a la pandemia
de Covid-19. La situación de pandemia impuso en todo el mundo el cierre de las escuelas como una de las
principales medidas de control de la diseminación del nuevo coronavirus, el Sars-CoV-2, una vez que la única
evitabilidad conocida para su correspondiente morbilidad y mortalidad es el manejo epidemiológico en salud
pública. El segmento de la educación especial no podría postergarse en un agudizado planeamiento de inter-
vención pedagógica y psicosocial ante el riesgo de daños duraderos o permanentes a su desarrollo, a procesos
cognitivos y afectivos y a la inserción social, además de riesgos a la constitución de sí e al bienestar mental indivi-
dual y familiar. La metodología es de obtención de datos dentro de un contexto y composición de los resultados
por la redacción. Como resultado, el trabajo reporta trechos narrativos de una investigación cualitativa en fase
inicial, presentados como viñetas, en busca de contribuir al pensamiento y prácticas en procesos inclusivos en
la educación especial y en la salud.
Palabras clave: Covid-19; distanciamiento social; suspensión de las clases; salud en la escuela; educación especial.
Introdução
Com a chegada da pandemia de Covid-19, surge, também, o distanciamento
social, uma prescrição para a contenção da disseminação de uma doença de trans-
missão pelas vias aéreas, ou seja, pela respiração e pela comunicação oral, para
falar o mínimo. Para assegurar o distanciamento social, todos os lugares de aglo-
meração de pessoas tiveram suas atividades suspensas, a começar pelas escolas e
pelos espaços das artes e da cultura, assim como, nos primeiros meses, inclusive
ações e serviços de saúde se não voltados para urgências, internações hospitalares
e programas de treinamento em biossegurança, além dos protocolos farmacêutico
e laboratorial. As medidas de distanciamento social no controle da pandemia de
Covid-19 envolviam condutas progressivas de distanciamento social, com o fecha-
mento de escolas e universidades, a proibição de eventos de massa e de aglomera-
ções, a conscientização da população para que permanecesse em casa e até mesmo
a completa proibição da circulação nas ruas (AQUINO et al., 2020). Os processos
de inclusão que obtinham na escola sua principal sustentação entraram, portanto,
em suspensão. Uma vez sem escola, os estudantes que tinham no Atendimento
Educacional Especializado (AEE) ou na sala de recursos um ponto de apoio ao
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seu desenvolvimento afetivo e cognitivo ficaram remetidos ao ensino remoto, cujo
alcance, além de limitado às tecnologias eletrônicas e telemáticas, exige domínio
de recursos tecnológicos não necessariamente correspondentes às características
de acesso e uso desse particular grupo social.
O distanciamento social provocou ao segmento da educação especial (alunos
com deficiência, alunos com transtornos globais do desenvolvimento e alunos com
altas habilidades/superdotação), demandatário das salas de recursos nas escolas,
a suspensão de atividades cruciais à proteção de seu desenvolvimento intelectual
e psíquico, como até mesmo impediu o acesso qualificado e correspondente às suas
especiais condições de comunicação e interação no tocante às informações sobre
prevenção do contágio e compreensão da pandemia. Esse segmento (sobretudo,
esse segmento) precisaria do apoio da educação especial e da atenção psicossocial
que dissesse respeito às suas particulares necessidades. Contudo, escolas, ateliês,
oficinas artístico-culturais, centros de saúde mental e centros de convivência, lu-
gares possíveis ao acolhimento de necessidades psíquicas, pedagógicas e culturais,
foram os primeiros equipamentos fechados quando confirmada a circulação, em
nosso meio, do novo coronavírus. Professores do AEE e profissionais dos Centros
de Atenção Psicossocial (Caps) teriam, então, de delinear ações inovadoras na dire-
ção de assegurar as melhores intervenções em apoio ao desenvolvimento cognitivo,
afetivo e da subjetividade atinentes às circunstâncias da vida desse segmento da
população e aos seus processos de inclusão, não apenas tal como demandados até
então, mas como passaram a ser demandados em face da nova realidade, sob pena
de gerar quadros de agravos, não pelo contágio, mas pela negligência e omissão no
ensinar e no atender.
À semelhança de muitas outras questões relacionadas com a população com
deficiência intelectual, transtornos globais do desenvolvimento e discrepância no
domínio de habilidades mentais ou intelectivas, os processos inclusivos em educa-
ção especial e atenção psicossocial frequentemente são objeto de incompreensão e
estigmatização. No entanto, se essas questões forem abordadas como problema de
inclusão e não falha individual, os riscos intelectuais e psicossociais podem ser con-
trolados da mesma maneira que qualquer outro risco em educação e saúde mental.
O que difere, sem dúvida, é a necessidade da oferta de processos inclusivos, sua
garantia e sua disponibilidade em tempo e lugar que sejam apropriados e possíveis.
O direito à inclusão, além de um direito humano fundamental, um direito social e
um direito à diversidade, traz no bojo de suas práticas uma exigência de oferta das
condições de acesso ao desenvolvimento cognitivo, afetivo e psíquico.
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O presente artigo pretende reafirmar aquilo que a educação especial (em uma
perspectiva de educação inclusiva) e a saúde mental (em uma perspectiva da saúde
mental coletiva) vêm apresentando à sociedade brasileira como tarefa interseto-
rial e, mesmo nesse momento de pandemia, impostergável: processos inclusivos.
A oferta de estratégias de educação (ensino) e de atenção (saúde) a esse segmento
populacional não tem efeito genérico ou humanitário, mas de proteção ante o risco
de danos duradouros ou permanentes ao desenvolvimento, aos processos cognitivos
e afetivos e à inserção social, além de riscos à constituição de si e ao bem-estar
mental individual e familiar. O distanciamento social e a suspensão das atividades
escolares e dos serviços de saúde que requeriam atividades coletivas ou grupais de
promoção da saúde, manejo de quadros psicossociais, ludopedagogia e psicopeda-
gogia passaram a requerer interrogação ética e análise de riscos e danos neuropsi-
copedagógicos, sob pena de negligência ou omissão, o que até o presente momento
não foi dimensionado e não se dispõe de recursos metodológicos consensuados para
tal dimensionamento.
Pretendemos, então, trazer à cena essa agenda, segundo um posicionamento
ético-inclusivo, mas com base na escuta de narrativas de docentes de AEE na rede
municipal de ensino de um município da região metropolitana de Porto Alegre,
estado do Rio Grande do Sul, a fim de contextualizar desafios emergentes. Embora
pensado como um texto de conjecturas, também é de lançamento dos questiona-
mentos de pesquisa. Mais que afirmativas resultantes de investigação científica,
são trazidos excertos narrativos de primeira aproximação com o campo, sob a me-
todologia da “obtenção de dados dentro de um contexto e composição dos resultados
pela redação” (BIASOLI-ALVES; DIAS-DA-SILVA, 1992), que pertencem a uma
pesquisa em andamento sobre educação especial, saúde e processos inclusivos na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Os dados, nesta etapa, são apresenta-
dos como “excertos narrativos”, sem categorização, sem análise de discurso e sem
a pretensão de discurso do sujeito coletivo, trazem apenas uma paisagem afetiva
da realidade.
O público-objetivo da educação especial
O público-objetivo da educação especial, segundo o arcabouço educacional na-
cional, pode ser agrupado em três grandes agregados de especificidades: alunos
com deficiência (aqueles que têm impedimentos de longo prazo de natureza física,
intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem ter
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obstruída sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condi-
ções com as demais pessoas), alunos com transtornos globais do desenvolvimento
(aqueles que apresentam um quadro de alterações no desenvolvimento neuropsi-
comotor, comprometimento nas relações sociais e na comunicação ou estereotipias
motoras) e alunos com altas habilidades/superdotação (aqueles que apresentam
um potencial elevado e grande envolvimento com as áreas do conhecimento hu-
mano, isoladas ou combinadas, tais como aspectos intelectuais ou psicomotores
e aspectos envolvendo artes e criatividade ou liderança). Os transtornos globais
do desenvolvimento incluem crianças e jovens com Transtorno do Espectro Au-
tista (autismo clássico e síndrome de Asperger, por exemplo), Síndrome de Rett,
transtorno desintegrativo da infância (psicoses) e transtornos invasivos sem outra
especificação (BRASIL, 2008b).
A política educacional brasileira, vigente até o ano de 2020, garantia a ma-
trícula dos alunos público-objetivo da educação especial em escolas comuns, mo-
vimento que se desdobra de iniciativas semelhantes no cenário internacional. Em
2007, a Organização das Nações Unidas (ONU) (2007) promulgou a Convenção
sobre o Direito das Pessoas com Deficiência, documento que sistematiza os estudos
e debates mundiais realizados sobre o tema nas duas últimas décadas do século
XX, estimulando a construção de novos marcos políticos, legais e pedagógicos da
educação especial, com vistas a assegurar as condições de acesso e participação de
todos no ensino comum (Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas
com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova Iorque, em 30 de
março de 2007). O Congresso Nacional ratificou o Protocolo Facultativo por meio
do Decreto Legislativo n. 186, de 9 de julho de 2008, em conformidade com o pro-
cedimento previsto no § 3° do art. 5° da Constituição da República Federativa do
Brasil, entrando seus termos em vigor a partir de 31 de agosto de 2008 (BRASIL,
2008a).
O Brasil, signatário da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas
com Deficiência, não só adotou o documento, como, inclusive, incorporou o seu texto
à legislação, corroborando a interpretação de deficiência nas políticas de inclusão
(Decreto n. 6.949, de 25 de agosto de 2009). Para os Estados-Partes presentes na
Convenção, “a deficiência é um conceito em evolução e resulta da interação entre
pessoas com deficiência e as barreiras atitudinais e ambientais que impedem sua
plena e efetiva participação na sociedade em igualdade de oportunidades com as
demais pessoas” (BRASIL, 2009, não paginado). Essa proposição sobre deficiência
é encontrada na Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educa-
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ção Inclusiva, vigente até 30 de setembro de 20201, que observava o Atendimento
Educacional Especializado (AEE) com a função de “identificar, elaborar e organizar
recursos pedagógicos e de acessibilidade que elimin[ass]em as barreiras que impe-
d[iss]em a participação escolar de todos os alunos” (BRASIL, 2008b, não paginado).
O documento orientava também sobre as atividades desenvolvidas no AEE, trazen-
do que as atividades ali desenvolvidas são diferentes das atividades realizadas na
sala de aula comum de ensino, deixando claro que as ações ali realizadas não eram
substitutivas à escolarização, sendo que o atendimento oferecido nesses espaços
complementava e/ou suplementava a formação dos alunos, visando à autonomia e
à independência não só dentro da escola, como também fora dela. O decreto presi-
dencial do governo Bolsonaro tornou a educação inclusiva em construção nos últi-
mos 12 anos de um arcabouço legal progressivamente consistente, novamente uma
pauta dos movimentos “Nada sobre nós, sem nós”, criado em 1981, como expressão
da luta das pessoas com deficiência pela integração escolar e social (SASSAKI,
2007), a fim de que a participação das pessoas com deficiência e suas associações
fosse assegurada em todas as decisões e ações que a elas dissessem respeito.
Em 2015, havia sido promulgada a Lei n. 13.146, de 6 de julho de 2015, que
instituiu a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, também designa-
da por Estatuto da Pessoa com Deficiência, cujo art. 1º a define como: “destinada a
assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das
liberdades fundamentais por pessoas com deficiência, visando à sua inclusão social
e cidadania” (BRASIL, 2015, não paginado). O Estatuto da Pessoa com Deficiência
reafirma a autonomia e a capacidade de todas as pessoas para exercerem atos da
vida civil em condições de igualdade. O seu artigo 3º indica como barreiras qual-
quer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que impeça ou limite o acesso e
a participação da pessoa com deficiência nos diversos meios sociais.
Muitos documentos legais – como a Constituição federal (BRASIL, 1988), a
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996), o Plano Nacio-
nal de Educação (2001a); as Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na
Educação Básica (2001b) e o Estatuto da Pessoa com Deficiência (2015), entre ou-
tros – mostraram a obrigatoriedade da ampliação do acesso e da permanência das
pessoas com deficiência junto ao sistema regular de ensino e passaram a enfatizar
o modo como a escolarização dessa população deveria ser implementada. A escola
como dispositivo educacional foi concebida para dar conta dos desafios que um
certo modo de ser criança coloca. Entretanto, a escola se viu diante do desafio de
intensificar a defesa da escolarização do público-objetivo da educação especial na
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educação básica, segmento populacional que interroga as tradicionais formas de
ensinar (VASQUES; BAPTISTA, 2014).
As salas de recursos multifuncionais se institucionalizaram como espaço para
o AEE em âmbito nacional e muitos municípios as adotaram como política central
de inclusão. Esses serviços se configuraram em diferentes formas de implementa-
ção, mostrando também resultados diferentes no que tange ao aprendizado do alu-
no, cujas necessidades educacionais são particulares, comuns a uns e singulares
a outros. Para que se observe o AEE, é importante considerar as suas diferentes
constituições organizativas, por exemplo, as políticas de cada mantenedora, de
cada município: reuniões docentes, ofertas de assessoramento, orientações polí-
tico-educacionais, financiamento articulado entre os diferentes entes de governo,
repasse municipal para cada escola, qualificação profissional dos professores, for-
mação pedagógica específica em educação inclusiva e disponibilidade dos recursos
materiais em tecnologias assistivas, entre outros.
As salas de recursos multifuncionais têm papel fundamental, é nelas que se
organiza o AEE e se atende às particularidades do aluno segundo um planejamen-
to individual e uma abordagem desde o lugar do ensino. Muitas vezes, os alunos
possuem a mesma deficiência, no entanto, por terem características diferentes, é
preciso verificar a melhor forma de alcançar resultados positivos para a aprendi-
zagem, de acordo com suas dificuldades e potencialidades. Além disso, o professor
de educação especial deve auxiliar o professor regente de turma na formulação das
estratégias curriculares para o aluno com deficiência, minimizando dificuldades
possíveis no encontro com as tarefas escolares diárias.
O Instituto Rodrigo Mendes publicou, em junho de 2020, uma pesquisa rela-
tiva aos protocolos adotados em 23 países e organismos internacionais relativa-
mente à educação inclusiva durante a pandemia de Covid-19, apontando que “as
políticas públicas voltadas às pessoas com deficiência sempre envolveram impor-
tantes interseções e tensões entre as áreas da Educação e da Saúde”, mas que,
durante a pandemia e o isolamento social, essas relações passaram a demandar
“um olhar intersetorial e conciliador” (INSTITUTO RODRIGO MENDES, 2020,
não paginado). Ao explorar o tema dos direitos que devem ser garantidos às pes-
soas com deficiência, independentemente da gravidade do momento enfrentado,
destacam-se os direitos à informação, à saúde e à educação, portanto, vê-se a im-
portância da continuidade do ensino formal, já que interrupções podem causar
retrocessos na aprendizagem, recomendando-se que sejam mantidos os vínculos
das escolas com as famílias, além de um acompanhamento próximo do desenvolvi-
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mento dos alunos. O documento reporta que, quando da volta às aulas, mesmo que
certas crianças e adolescentes com deficiência pertençam a grupos de risco para a
Covid-19, o laudo médico de deficiência não deve ser aceito como justificativa para
que esses estudantes sejam postergados. Novamente, uma conciliação interseto-
rial entre Educação e Saúde deve prover as condições de acesso e permanência. O
alerta é que não se trata apenas do direito à educação, mas de uma necessidade de
desenvolvimento cognitivo e afetivo, da proteção à saúde mental e da intervenção
pedagógica consentânea às exigências neuropsicomotoras.
Toda criança ou adolescente precisa ter acesso à educação de qualidade na
perspectiva da educação inclusiva, com acesso e permanência na escola regular
e na sala de aula comum. É importante esclarecer que não existe correlação au-
tomática entre deficiência e risco para o contágio pelo novo coronavírus. São as
condições de acesso à informação, acessibilidade ambiental e garantia dos apoios
necessários que tornam o grupo mais ou menos vulnerável. Pode-se apontar não a
vulnerabilidade do grupo, mas sua vulnerabilização (CARMO; GUIZARDI, 2018)
pela falta de oferta segura e adequada às suas condições, necessidades e particu-
laridades, que fazem parte da diversidade da população e não constituem motivos
para exclusão, omissão ou negação de acesso. A educação especial e a atenção psi-
cossocial no distanciamento protetivo de todos, no caso dos estudantes com defi-
ciência, devem embasar-se na abordagem individual referente à construção de sua
acessibilidade (em oposição aos riscos de segregação, discriminação e preconceito).
É fundamental envolver AEE, CAPS, grupo familiar e cuidadores. Uma reflexão
prudente a ser apresentada é a da necessidade de envolvimento do contexto domi-
ciliar no planejamento de ações de modo particular, pois as estratégias tradicionais
de alternativas familiares, de vizinhança, comunitárias e culturais, entre outras,
estarão comprometidas durante a pandemia.
Apesar de tais argumentos, em 7 de julho de 2020, o Conselho Nacional de
Educação (CNE), quanto ao retorno das atividades escolares presenciais (Pare-
cer CNE/CP n. 11/2020), recomendou que o AEE deveria observar atendimento
dos apoios e suporte diferenciados para o alcance das expectativas e metas traça-
das nos processos de ensino e aprendizagem, referentes a planejamento de aulas,
orientações pedagógicas, avaliação e estratégias de recuperação, considerando os
direitos dos estudantes da educação especial. Não referiu a ação integrada entre
educação especial e atenção psicossocial ou o contexto domiciliar nos termos aqui
enunciados. Afirmou que a escola e o AEE devem ser rígidos quanto à aplicação
dos protocolos de higiene, não permissão de aglomerações, vigilância dos sinto-
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mas de contaminação junto às pessoas presentes no atendimento e manutenção
do distanciamento, promovendo atividades individuais agendadas, o que pode ser
uma boa alternativa, mas ressalva quanto aos estudantes autistas, que poderiam
“ter dificuldades ampliadas no retorno às aulas, dado que lhes é difícil reconhecer,
estabelecer e manter os vínculos afetivos anteriormente construídos no contexto
da escola”, que deveriam “ser protegidos de hiperestimulação visual ou auditiva
e de ambientes desorganizados”. Portanto, por sua maior vulnerabilidade (leia-
-se pela vulnerabilização imposta pelo viés capacitista), conforme argumentado,
“não deve[ria]m retornar às aulas presenciais ou [ao] Atendimento Educacional
Especializado, enquanto perdurarem os riscos de contaminação com o coronavírus”
(BRASIL, 2020e, não paginado). O parecer lista todos os impedimentos relaciona-
dos com esse alunado, sempre como se fosse vulnerabilidade (um traço do estudan-
te) e não a vulnerabilização (um efeito da omissão e negligência em proporcionar
acessibilidades).
Professores do AEE e profissionais do atendimento psicossocial precisam tra-
balhar juntos para manter e promover novos processos inclusivos, especialmente
quando são adotados modelos de distanciamento social e de ensino remoto, ago-
ra ainda mais, pois, em franca pandemia, escolas fechadas e ensino remoto não
universalizável, retorna a proposta, via decreto presencial, da classe especial, da
escola especial, da segregação domiciliar ou institucional e da omissão da educação
escolar. Prevê o decreto: aprendizado em outros momentos e contextos, formais ou
informais, planejados ou casuais. A educação inclusiva passa a uma possibilidade
entre outras, as necessidades intelectivas segundo a necessidade de dispor delas
no mundo prático imediato, portanto, sob a possibilidade de ausência à escola e
supressão da aprendizagem escolar na interpretação do desenvolvimento cogni-
tivo, afetivo e psíquico. No decreto de setembro de 2020, classes hospitalares e
atendimento pedagógico domiciliar sequer são elencados, territórios educativos
sequer enunciados, comunidades de aprendizagem sequer citadas e cidades edu-
cadoras sequer lembradas. Em face da construção de um ensino remoto, este até
pode ser uma oportunidade para a construção de maneiras de ensinar e aprender
inclusivas, mas, em todo o processo de ensino remoto escolar, é imprescindível que
os professores do AEE participem do planejamento e da avaliação no caso dos estu-
dantes da educação especial, tendo em vista que esse alunado permaneça ligado ao
(ou venha a ligar-se a um) grupo de professores, colegas e amigos, tenha acesso a
uma educação inclusiva de qualidade na escola comum e tenha suporte da atenção
psicossocial, sendo fundamental que educação, atenção, assistência social e cultura
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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caminhem juntas. Esses eram os enunciados mínimos que uma atualização das
políticas para as pessoas com deficiência merecia em sua progressão, não o vertigi-
noso recuo nas políticas de inclusão em educação e em saúde para as pessoas com
deficiência.
A suspensão das aulas presenciais pela pandemia de Covid-19
O distanciamento social imposto internacionalmente (OPAS; OMS, 2020) de-
vido à pandemia modificou a forma de alcançarmos nossos estudantes. Para tanto,
as aulas remotas ofereceram a continuidade da escolarização por meio de recursos
em tecnologias da informação e da comunicação por transmissão digital, longe de
que isso representasse ensino para o uso e o domínio de recursos de tecnologias
digitais da informação e da comunicação (TDICs). O objetivo maior foi diminuir
o impacto negativo da suspensão das aulas no que diz respeito à aprendizagem
intelectual, ainda que não tenha sido possível que esse movimento alcançasse um
número significativo de estudantes, uma vez que nem todos possuem acesso ou
domínio de uso das tecnologias digitais ou eletrônicas.
Muito se discutiu sobre o lugar das pessoas com deficiência no ensino regular,
e essa discussão – que se estabelece no contexto educativo e acadêmico – sempre
esteve voltada à elaboração e à implementação das condições educativas adapta-
das às especificidades de cada criança/adolescente, necessárias ao seu estar e à
sua efetiva permanência no contexto presencial do ensino e, posteriormente ou
em simultaneidade, à sua inserção em contextos de maior autonomia na vida so-
cial, no mundo do trabalho e nas configurações de família. A educação especial na
perspectiva da educação inclusiva tem um papel fundamental na disruptura com
prejuízos, preconceitos e estigmatização de sua população, mas a pandemia trouxe
um novo momento, deflagrou um novo limitante à ação da escola, pois a escola não
estando fisicamente presente precisa de outros dispositivos (até então imprevistos)
para alcançar seus alunos de educação especial.
O Ministério da Saúde editou a Portaria n. 188, em 3 de fevereiro de 2020,
declarando a introdução no país da infecção humana causada por um novo corona-
vírus, a Covid-19, como “Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional”
(BRASIL, 2020a). Em 6 de fevereiro de 2020, a Lei n. 13.979 dispôs sobre as medi-
das para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância interna-
cional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019 (BRASIL, 2020b).
As aulas presenciais deveriam ser suspensas. Por meio da Medida Provisória (MP)
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n. 934, de 1º de abril de 2020, o governo federal estabeleceu normas excepcionais
para o ano letivo da educação básica e do ensino superior decorrentes das medi-
das para o enfrentamento da situação de emergência de saúde pública (BRASIL,
2020c).
O CNE, por meio de seu Conselho Pleno, emitiu o Parecer CNE/CP n. 5, em
28 de abril de 2020, destacando que também quanto à educação especial as ativi-
dades pedagógicas não presenciais, mediadas ou não por TDICs deveriam adotar
medidas de acessibilidade: “enquanto perdura[sse] a impossibilidade de ativida-
des escolares presenciais na unidade educacional da educação básica e superior
onde est[ivessem] matriculados” os alunos da educação especial (BRASIL, 2020d,
não paginado). O CNE (BRASIL, 2020d, não paginado) definiu esse alunado como
aquele dos estudantes que “apresentam altas habilidades/superdotação, deficiên-
cia e Transtorno do Espectro Autista, atendidos pela modalidade de Educação
Especial”. Indicou aos sistemas municipais, estaduais e do Distrito Federal que
buscassem assegurar medidas locais que viessem a garantir “a oferta de serviços,
recursos e estratégias para que o atendimento dos estudantes da educação especial
ocorr[esse] com padrão de qualidade”. Asseverou que o AEE deveria, também, “ser
garantido no período de emergência, mobilizado e orientado por professores regen-
tes e especializados, em articulação com as famílias para a organização das ativi-
dades pedagógicas não presenciais a serem realizadas”. Conforme o CNE (BRA-
SIL, 2020d, não paginado), “os professores do AEE atuar[iam] com os professores
regentes em rede, articulados com a equipe escolar, desempenhando suas funções
na adequação de materiais, provimento de orientações específicas às famílias e
apoios necessários”.
Se o parecer parece óbvio, por dizer o óbvio e identificar-se com o óbvio, ele
realmente o foi. Interessava que, em 2020, pudéssemos ler sobre iniciativas ousa-
das, criativas e inventivas, o que, afinal, teve de ser liderado por órgãos e entidades
da sociedade, como: Campanha Nacional pelo Direito à Educação (CNDE), Centro
de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca-CE), Grupo de Pesquisa
Direito à Educação, Políticas Educacionais e Escola (DiEPEE), da Universidade
Federal do ABC, Rede Escola Pública e Universidade (REPU), Associação Brasi-
leira de Pesquisadores em Educação Especial (ABPEE) e Confederação Nacional
dos Trabalhadores em Educação (CNTE). Para a CNDE, a reabertura das escolas
e o retorno às aulas é um “processo”, tendo tecido 20 recomendações e orientações
básicas aos sistemas de ensino, dentre os quais, além dos protocolos de segurança
exigidos e recomendados pela área de saúde: a necessidade de colaboração interse-
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torial entre as áreas de educação, saúde, assistência social e conselhos tutelares; a
participação da comunidade, com destaque para a inclusão da voz dos estudantes;
a forte participação de mulheres e meninas e das populações em vivência das di-
versidades; a análise de situação e o planejamento participativo, que respeitem ga-
rantias de direitos, olhando para as especificidades da educação especial na pers-
pectiva inclusiva; a educação humanizada e integral na fase de abertura, para que
seja marcada por “processos” envolvendo acolhida, segurança, cuidados, escutas e
diálogos de todos e para todos os sujeitos da comunidade escolar, com atendimen-
tos psicossocial e de saúde especializados, ressalvando que essa é a prerrogativa
prioritária, passando à frente de qualquer processo de avaliação e/ou recuperação
de conteúdos; formas de avaliação que privilegiem aspectos qualitativos, não os
quantitativos; reorganização curricular, trazendo a pandemia de Covid-19 e suas
consequências (como isolamento social, condições sanitárias, proteção individual e
social, atendimento à saúde e desigualdades sociais, raciais e de gênero); presença
da saúde e atenção psicossocial na orientação e providências para a formação de
professores, acessibilidades da infraestrutura, gestão segura dos ambientes, segu-
rança alimentar e nutricional e transporte escolar, entre outras, além de “estra-
tégias intersetoriais urgentes para evitar o abandono escolar e para realização de
busca ativa” (CNDE et al., 2020, p. 24-27).
Já quando emitiu o Parecer n. 11/2020, de 7 de julho de 2020, o CNE contem-
plou orientações específicas para o atendimento ao público da educação especial,
referindo que ao AEE competia especificamente a área da educação especial e,
assim, o retorno à escola dependeria de quando os riscos de contaminação estives-
sem em curva descendente e de indicação pela equipe técnica da escola (BRASIL,
2020e). As orientações incluíram atividades não presenciais ou presenciais, a partir
de uma avaliação do estudante pela equipe técnica da escola. Tanto os estudantes
como suas famílias deveriam ser contatados para informar suas possibilidades de
acesso aos meios e às TDICs. Além do apoio da equipe escolar, um Plano de Ensino
Individual deveria ser elaborado para cada aluno, de acordo com suas singularida-
des. O parecer referiu que “as orientações e atividades não presenciais dever[iam]
ocorrer através de ações articuladas entre o professor do AEE e o acompanhante
(mediador presencial) no domicílio, ou com o próprio estudante quando possível,
por meio de tecnologias de comunicação” (BRASIL, 2020e, não paginado). Lembrou
a necessidade de serem “previstas ações de apoio aos familiares ou mediadores, na
realização de atividades remotas, avaliações e acompanhamento”. Alertou para as
especificidades da disponibilidade de “materiais pedagógicos acessíveis e adequa-
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dos à interação e à comunicação” aos alunos surdos ou com outros impedimentos
e aos alunos com altas habilidades e superdotação, em que se deveria considerar
“seu programa de enriquecimento curricular e atividades suplementares”.
O CNE, ao recortar, sobremaneira, os alunos da educação especial, em lugar
de favorecer a perspectiva da educação inclusiva, retomou as classificações e orien-
tações segregadas por perfil de deficiência/diversidade desse segmento. Em lugar
de apontar a construção necessária de ações inclusivas e de acessibilidade à escola,
às aprendizagens escolares, ao desenvolvimento afetivo e cognitivo e, ainda, em
particular, às apreensões interpretativas da situação de pandemia, seus efeitos e
modos de controle e prevenção de transmissão e contágio, classificou e recortou em
características “especiais” as possibilidades de acesso ou não e de permanência ou
não. A linguagem não afirmativa da inclusão e da localização dos recursos de aces-
sibilidade tecnológica, comunitária e intersetorial coloca todas as inacessibilidades
como dificuldades do estudante. As vulnerabilidades passam, portanto, à vulne-
rabilização do segmento da educação especial, o qual comparece no parecer como
risco, como falta e, inclusive, como dano ao coletivo, não o contrário, isto é, como
potência, diversidade e inventividade. O parecer, em lugar de defesa e reafirmação
da inclusão, reacende o imaginário social de imposição do normal versus deficiente,
a que chamamos “capacitismo” (VENDRAMIN, 2019).
Além do CNE, entretanto, estados e municípios vêm editando decretos e ou-
tros instrumentos legais e normativos para o enfrentamento da emergência de saú-
de pública, estando, entre eles, a suspensão das atividades escolares. Em março
de 2020, a Prefeitura de Canoas, cidade da região metropolitana de Porto Alegre
com aproximadamente 348.208 habitantes (IBGE, 2018), declarou estado de cala-
midade pública para fins de prevenção e enfrentamento à pandemia causada pelo
novo coronavírus, por meio do Decreto n. 80, em 26 de março de 2020 (CANOAS,
2020a). Em maio, por meio do Decreto n. 115, de 1º de maio de 2020 (CANOAS,
2020b), ficaram suspensas, por prazo indeterminado, as aulas em todas as escolas
da rede pública municipal (art. 24). Em 12 de junho de 2020, o Conselho Municipal
de Educação de Canoas aprovou a Indicação CME n. 003/2020, que indica, orienta
e estabelece diretrizes para organização de atividades pedagógicas não presenciais
para as escolas de ensino fundamental e proposições pedagógicas interativas para
escolas de educação infantil, em regime especial, para fins de enfrentamento e pre-
venção da pandemia causada pela Covid-19, às instituições integrantes do Sistema
Municipal de Ensino de Canoas (CANOAS, 2020c).
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Entre as 15 indicações às escolas, estava a orientação de organizar-se “de for-
ma a enviar atividades pedagógicas não presenciais para os estudantes que fazem
parte de sua comunidade escolar”; tais atividades não presenciais se caracteriza-
riam por “práticas mediadas ou não por tecnologias digitais”; dentre as tecnologias,
“meios tais como videoaulas, plataformas virtuais, correio eletrônico, blogs e redes
sociais”, além da adoção de “material didático impresso com orientações pedagógi-
cas aos alunos, sempre visando à manutenção dos vínculos entre alunos-professo-
res-escola e que o acesso [fosse] oportunizado a todos os estudantes”; observação
“de todos os protocolos de higienização, proteção e cuidados relativos à propagação
da Covid-19, para todos os envolvidos nas ações”; planejamento “de acordo com os
objetivos de aprendizagem essenciais de cada componente curricular e/ou ano de
escolarização, incluindo as aprendizagens decorrentes do contexto vivenciado [no]
período de pandemia, de forma transversalizada a todos os componentes curricu-
lares”; organização dos arquivos de acompanhamento e comprovação do trabalho
escolar realizado em tempos de pandemia, a ser acompanhado pela equipe diretiva
da escola, de forma sistematizada e segura (CANOAS, 2020c, não paginado).
Uma nota técnica de entidades educacionais (CNDE) apontou que entre os
casos comumente relatados nas redes públicas de ensino está a falta de ações efe-
tivas voltadas às especificidades de modalidades de ensino como a Educação de
Jovens e Adultos, a Educação do Campo, a Educação Quilombola, a Educação In-
dígena e, notadamente, a Educação Especial, que tem como pressuposto não ser
substitutiva. Em setembro de 2020, a Secretaria Municipal de Educação de Canoas
organizou e distribuiu às escolas um documento chamado “Orientação para o ensi-
no remoto durante a pandemia de Covid-19” (CANOAS, 2020d). A indicação, entre
outras questões norteadoras para a educação do município, previa que o Centro de
Capacitação em Educação Inclusiva e Acessibilidade (CEIA), entidade vinculada
à Secretaria de Educação do município, desse continuidade aos atendimentos ali
realizados, “promovendo o atendimento aos alunos, a assessoria aos pais e o supor-
te aos professores, valorizando as possibilidades e potencialidades de cada aluno”,
entretanto, o documento não sustentava uma estratégia de suporte aos profissio-
nais de apoio de modo que pudessem trabalhar com os alunos, com os pais ou com
os professores da rede municipal de ensino, pudessem discutir seu singular papel,
pudessem atualizar-se em face das especiais circunstâncias, inclusive tecnológicas.
Destaca-se a quantidade de alunos matriculados no AEE e a quantidade de
fato atendida e alguns motivos para esse número ser tão baixo. Acontece que ape-
nas um pequeno número de aluno tem acesso à internet, portanto, como as en-
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tidades de educação têm apontado, muitos estudantes que por direito devem ter
acesso a esse atendimento, além de relevante necessidade de atendimento apoiado
às suas necessidades intelectuais, estão negligenciados. A privação de apoio edu-
cacional ao segmento de alunos com transtorno global do desenvolvimento repre-
senta a privação do atendimento de uma necessidade, privação com consequências
deletérias ou prejudiciais ao desenvolvimento cognitivo, afetivo e psicossocial de
um segmento populacional cujo atendimento educacional especial é um direito e
uma necessidade. Com a pandemia, um aumento das desigualdades incide sobre
esse segmento da população, que se torna vulnerabilizado pela ausência de ações,
serviços e políticas de suporte.
Coronavírus, internet, escolas e alunos com deciência
Zélia Biasoli-Alves e Maria Helena Dias-da-Silva (1992, p. 61) ponderam que
há muito se discute a necessidade de requisitos básicos para a análise de dados
em pesquisa qualitativa, mas que “a maioria dos autores ligados ao tema conside-
ra que a experiência do pesquisador dentro da área, com a literatura pertinente
e diferentes formas de analisar dados de entrevista”, é aquilo que conta, que o
pesquisador é, na realidade, “o seu próprio instrumento de trabalho”. As autoras
comentam que, com frequência, aparecem dúvidas sobre o trabalho qualitativo de
escuta de narrativa constituir-se realmente em pesquisa, ou seja, “em conhecimen-
to crítico da realidade, e não simples exercício de camaradagem ou ativismo; e, a
literatura brasileira a respeito é escassa” (1992, p. 62). Contudo, há necessidade
de obter dados dentro de um contexto e é assim que, “das atitudes de aproximação,
respeito e empatia trazidas pelo pesquisador, virá a disponibilidade dos sujeitos e o
seu envolvimento com a tarefa de informantes” (1992, p. 64). Essa condição amplia
a possibilidade de validade dos dados obtidos, fazendo da pesquisa um momento de
reflexão, retomada de fatos, valores e ideias.
Nesses termos, trazemos a seleção de excertos narrativos que, devido à impo-
sição do distanciamento social, foram obtidos em uma estratégia de troca de men-
sagens com a solicitação “conta pra mim”, dirigida a colegas do AEE no município
de Canoas, RS, entre julho e setembro de 2020. Nessa etapa, sistematizou-se um
bloco das organizações/providências (Bloco 1) e um bloco das sensações/experiên-
cias (Bloco 2), sequenciados por letras, a fim de citação, isto é, uma lista numerada
por letras (a, b, c e d), que, neste texto, surgem como vinhetas e encerram a presen-
te exposição, antes das considerações finais.
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Em editorial à revista Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação,
Érika Dias e Fátima Pinto (2020) destacaram, quanto ao número especial sobre
“A Educação e a Covid-19”, a questão problematizadora: qual o futuro da Educa-
ção num mundo abalado pelo novo coronavírus? As professoras alertavam que,
“por mais que a economia dos países sofra com a pandemia, os investimentos em
Educação devem ser mantidos, quiçá aumentados”, uma vez que, segundo a comis-
são Futuros da Educação, da Organização das Nações Unidas para a Educação,
a Ciência e a Cultura (Unesco), em análise sobre as consequências da pandemia
à aprendizagem escolar, os danos ou prejuízos poderão “alastrar-se por mais de
uma década” na situação em que não sejam, segundo as autoras, “criadas políticas
públicas que invistam em melhorias de infraestrutura, tecnologias, formação, me-
todologias e salários, além do reforço da merenda, melhor aproveitamento do tem-
po, tutoria fora do horário usual das aulas e material adicional, quando possível”
(DIAS; PINTO, 2020, p. 545).
Lá na escola, eu atendo os professores, ajudo a fazerem as atividades para os alunos com
deficiência, se estas precisam de adaptação ou algum complemento e depois envio às famílias
pelo WhatsApp, além de ter um grupo com as famílias para recados e auxiliá-las com informa-
ções ou para tirar dúvidas gerais. No Município, nós temos um grupo de WhatsApp das profes-
soras do AEE e estamos bem articuladas. No início da pandemia, fizemos uma reunião entre
nós mesmas, porque o Departamento de Inclusão da SME não se manifestou. A reunião foi
importante porque nos ajudamos e criamos algumas alternativas para as atividades durante a
pandemia. Eu tenho pouco tempo para fazer um canal no YouTube ou uma página na Internet,
mas tem professoras do AEE que fizeram blogs, canais etc. e cada dia participa um professor
de uma disciplina junto à professora do AEE. (Excerto 1.a).
Dias e Pinto (2020) destacam o reconhecimento dos problemas causados pela
pandemia e a necessidade de reorganizar as atividades acadêmicas, sinalizando
com aulas aos sábados, horários de contraturno e períodos previstos para as férias,
também apontando outras medidas semelhantes àquelas já defendidas pela Unes-
co. Lembram que “a Educação a Distância (EaD) não pode ser a única solução, esta
metodologia tende a exacerbar as desigualdades já existentes, que são parcialmen-
te niveladas nos ambientes escolares, simplesmente, porque nem todos possuem o
equipamento necessário”. É absolutamente importante o destaque relativo à de-
núncia de estudiosos da EaD na perspectiva discente de que, “se a meta for investir
apenas em ferramentas digitais, certamente, contribuiremos para uma piora na
aprendizagem dos alunos a curto e a médio prazos” (DIAS; PINTO, 2020, p. 546).
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Algumas professoras fizeram páginas na Internet para se aproximarem mais dos alunos com
deficiência, mas a maioria delas está com o recurso do WhatsApp que é mais privado e os pais
têm fácil acesso. Tentamos o site da escola, mas é bem complicado para alguns. No site tem
todas as pastas das turmas, mas tem alunos que precisam de atividades específicas, próprias
para eles e essa pasta ficaria exposta para os demais alunos da turma. Assim, pelo WhatsApp
é mais fácil para os pais e alunos e, de vez em quando, faço chamadas de vídeo para conver-
sar com alunos ou auxiliar os pais em alguma atividade caso algum dos alunos precise, mas,
geralmente, as famílias conseguem. (Excerto 1.b).
Para Dias e Pinto (2020), existem ainda obstáculos bastante objetivos e graves,
como a falta de computadores, aparelhos de telefonia móvel, softwares e internet de
boa qualidade, recursos imprescindíveis para uma EaD que resulte em aprendizagem,
especialmente para alunos e professores mais empobrecidos, e não podemos esquecer
que saúde física e saúde mental andam juntas. Conforme as autoras, a duração pro-
longada do confinamento, a falta de contato pessoal com os colegas de classe, o medo
de ser infectado e a falta de espaço em casa tornariam os estudantes menos ativos
fisicamente do que se estivessem na escola. São fatores de estresse que atingem a
saúde mental de boa parte dos estudantes da educação básica e das suas famílias.
A “Orientação para o ensino remoto durante a pandemia de Covid-19”, da
Secretaria Municipal de Educação da cidade de Canoas, traz em seu texto uma
reorganização para os anos de 2020, 2021 e 2022 (CANOAS, 2020d). Evidencia-se
a necessidade de políticas públicas que invistam em tecnologia, por exemplo, mas
também em pessoal e recursos pedagógicos de longo prazo. Se os problemas de
infraestrutura, formação de professores e salários não são novidades na educação
pública brasileira, constata-se a falta de equipamentos tecnológicos e de acesso à
internet pela maioria dos estudantes brasileiros. Nesse momento de enfrentando
da pandemia, crianças de todos os níveis escolares estão afastadas fisicamente da
escola, mas também das tecnologias compensatórias da distância.
As atividades que estão sendo desenvolvidas no período de pandemia com relação à sala de
recursos, busquei fazer atividades mais lúdicas, que envolvessem a família, lazer entre os fa-
miliares, para a criança brincar junto. Não direcionei folhinhas, tudo foi algo para ser construído
com recursos recicláveis e sucatas. Fiz brincadeiras, fiz jogos, trabalhando conceitos matemá-
ticos: soma, subtração, sequência, crescente, decrescente. Além disso, fazemos reuniões via
meet. Também converso com os professores destes alunos pelo meet para saber das dificul-
dades, como eu posso ajudar, me coloco à disposição a respeito de planejamento. Converso
também muito com a orientadora, com a supervisora sobre quando não consigo contato com
alguma família, quando não recebo retorno. Também compartilho materiais no drive com os
colegas, já que nós temos o e-mail institucional e mando pelo WhatsApp no privado quando
me solicitam algo específico para complementar o planejamento. Pesquiso e envio. Também
dou “feedback” para os professores quando consigo contato com as famílias porque às vezes
estes professores não conseguem (Excerto 2.a).
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Com a pandemia, pessoas em todo o mundo estão recolhidas em casa e a inter-
net se tornou a principal ferramenta para estudo, trabalho, informação e serviços.
Porém, para as pessoas com deficiência, por exemplo, a falta de recursos assistivos
nos websites cria barreiras para a informação. O portal da Feira Internacional de
Tecnologias em Reabilitação, Inclusão e Acessibilidade (Reatech), em “Coronaví-
rus: isolamento reforça importância da acessibilidade digital” (REATECH, 2020,
não paginado), reporta que, no Brasil, “57% dos cidadãos com deficiência usam
com frequência a Internet” e que, embora nosso país tenha aproximadamente 14
milhões de websites, somente 100 mil possuem “algum tipo de acessibilidade”. Tal
dado “representa 0,7% de páginas que podem ser acessadas por pessoas com defi-
ciência, principalmente os com deficiências severas, além dos indivíduos com pouca
prática no uso da tecnologia no qual estão muitos idosos que vivem sozinhos”.
Eu converso com as famílias e com todos os meus alunos. Pararam os atendimentos [de
saúde], exceto um que a mãe conseguiu manter e conseguiu até aumentar o número de aten-
dimentos, estava na fila de espera e foi chamada em alguns. Sorte desta criança porque vai
ter como aproveitar as podas neurais e ser estimulado precocemente. Ele está no primeiro ano
e vai continuar seu desenvolvimento. Em compensação, há crianças que não estão fazendo
nenhum atendimento e que, daí, em casa, está pior ainda a situação. Tem mães que estão
desequilibradas, desestabilizadas, frágeis neste momento, que já não sabem mais o que fazer,
pois o filho, às vezes, quer bater nelas, surta, não tem o controle. (Excerto 2.b).
A pandemia modificou a relação entre alunos e professores. Primeiro, os alu-
nos já não veem mais seu professor presencialmente e passam a ter sua imagem
através de atividades que ele lhes envia das formas mais diversas possíveis em
um cenário de distanciamento social. Os mais ousados sugerem chamadas de ví-
deo para ter contato com os alunos, mas sabemos que boa parte dos alunos não
está tendo acesso nem aos conteúdos, nem aos seus professores. Para os alunos
com deficiência, tendo que se utilizar das TDICs, aulas por plataformas digitais e
atividades enviadas por e-mail, os processos de exclusão são reativados, seja pelas
desigualdades sociais, seja pela falta de acessibilidade, presentes antes da pande-
mia, potencializadas neste momento.
Quando criei o grupo para os pais, fiz um áudio e escrevi um pequeno texto explicando as
regras para o uso do aplicativo e está tranquilo. Mas nesse grupo tem apenas 11 alunos, ou
seja, aqueles que têm acesso à internet, ainda que eu tenha matriculado no AEE da escola 42
alunos. A realidade da escola é alunos de baixa renda, muitos estão sem o acesso e tem pais
que estão sem renda, perderam os empregos, se utilizam, inclusive, dos kits de alimentação
que a escola doa. Sobre as atividades do AEE, no meu caso, estou trabalhando com atividades
mais práticas, através de vídeos, [oriento] brincadeiras e confecção de materiais para fazerem
em casa. (Excerto 1.c).
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No Brasil, conforme divulgado pela Reatech (2020), o setor de tecnologia assis-
tiva faturou R$ 5,5 bilhões em 2017. Considerando o número de cidadãos brasileiros
com deficiência e, também, com dislexia, daltonismo e idosos, a quantidade de usuá-
rios da internet que precisam de acessibilidade pode chegar a 30,2 milhões. Contudo,
considerando os estados e municípios brasileiros, estes não tiveram uma proposta es-
truturada e contundente pela falta de diretriz política oficial do Ministério da Educa-
ção. Em nenhum momento, vimos o ministro da Educação vir a público para abordar
o tema ou gerir junto aos estados e municípios esse processo. Pelo contrário, o que
vemos é um conjunto de iniciativas principalmente das escolas, cada uma fazendo do
jeito que dá, sem nenhuma política oficial, seja com um protocolo de segurança, seja
com um protocolo para garantir a acessibilidade ou o acesso digital de alunos.
Além disso , tem a cobrança da sociedade, da escola, das professoras que às vezes não se dão
conta, não por mal, mas por ignorância, às vezes de julgar aquela família, aquela criança, de
apontar as falhas e de achar que “se fosse de tal maneira” seria diferente. Mas a pessoa não faz
ideia da caminhada que aquela família teve. Acho muito arriscado uma pessoa de fora daquele
âmbito familiar ficar falando qualquer coisa que seja, muito menos que julgue porque a situação
já é difícil. Se não for para ajudar, melhor não dar opinião. Eu fiz um canal no YouTube e alguns
dos vídeos meu filho de 8 anos, que é autista, participa. E tem uma história legal por trás disto,
porque estava impossível trabalhar em casa. Inclusive falei para meu marido que eu não ia con-
seguir trabalhar em casa: o bebê precisa de mim, quer colo o tempo todo, e chora. (Excerto 2.c).
No momento em que vivenciamos uma era pandêmica, na qual há uma crise
na economia, na educação, sem falar nas crises de outras demandas, e em que a in-
ternet ainda não é um bem comum da população em geral, carecemos de iniciativas
do governo federal para garantir o acesso e a acessibilidade para todas as pessoas,
seja negociando com empresas de telefonia, seja distribuindo recursos para esse fim
a estados e municípios. Os impactos nas desigualdades sociais e educacionais se evi-
denciam maiores do que tínhamos dimensão. Com o distanciamento social e o ensino
remoto, mostra-se uma diferença nos suportes de apoio necessários à educação em
seus diferentes níveis, sobretudo nos anos iniciais e para a educação especial.
Agora, inclusive , ficou mais fácil de ajudar os professores porque temos mais tempo teori-
camente para conversar sobre os alunos e as atividades, mas sempre tem aqueles que não
fazem atividades adaptadas para estes alunos ou, ainda, aqueles professores que mandam a
mesma atividade para todos os alunos com deficiência do sexto ao nono anos, só mudando
o nome do aluno no título do arquivo. Logo no início da pandemia, só as primeiras atividades
para os alunos com deficiência passariam por mim, mas preferi receber assim, continuamente.
Porque estava indo cada atividade do tipo: atividade de desenho e pintura para um aluno que
não tinha preparação motora para pegar um lápis, por exemplo. O professor de matemática,
em outro exemplo, mandava toda semana histórias matemáticas, praticamente as mesmas, só
mudando os números. Então, tive que intervir mais frequentemente. (Excerto 1.d).
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Oliveira, Gomes e Barcellos (2020) buscaram examinar situações de paralisa-
ção de atividades, uso do tempo e impacto de tecnologias no desempenho escolar,
tendo em vista o fechamento das escolas e as consequências para a aprendizagem
dos alunos, decorrente da pandemia provocada pela Covid-19. Para os autores, o
exame das evidências sugere como pouco promissoras as estratégias de aumento
intensivo de tempo, o recurso a tecnologias e a aposta nos deveres de casa. Eles su-
gerem como estratégias potencialmente promissoras e/ou mais eficazes interven-
ções estruturadas com base em avaliações individuais e coletivas, uso estratégico
dos deveres de casa e programas de desenvolvimento cognitivo que se associem
com a cultura, melhor aproveitamento do tempo, com maior ênfase na redução do
absenteísmo que na extensão das jornadas, e tutoria intensiva de alta qualidade
realizada em pequenos grupos, focada nos alunos de maior risco. Os estudiosos
ressalvam que eventos como a pandemia desnudam a fonte e a origem das desi-
gualdades, cuja atenuação requer atenção especial para os alunos nos primeiros
anos escolares, e exemplificam eventos que, no decorrer da história, ainda que não
na mesma magnitude, alteraram o funcionamento das escolas, por isso identificam
seus argumentos como “baseados em evidências”.
Meu filho maior precisa de mim, também, me chama o tempo todo e quer que eu brinque com
ele, quer que eu fique com ele o tempo inteiro. Nem no banheiro eu não consigo ir. Eu estava
ansiosa querendo dar conta do mundo, pensando em “como vou trabalhar?”. Quando “vou
para o trabalho” lá eu tenho o tempo para o meu trabalho. Aqui em casa eu não tenho tempo
para mim. Então, tive uma ideia, eu disse. Meu filho começou a participar dos vídeos e foi a
solução pra tudo. Ele tem ideias para os jogos e quer ensinar como tenho que falar, ele se
sente importante, valorizado. E isso resolveu bastante a minha vida na questão do trabalho.
Só que agora se ele não quer participar dos vídeos, mas respeita e não incomoda, não faz
barulho. (Excerto 2.d).
Oliveira, Gomes e Barcellos (2020) listam: 1916, Estados Unidos, epidemia de
poliomielite, com escolas fechadas nos dois primeiros meses do ano letivo, resultou
em evasão e boa parte dos alunos teve escolaridade menor ao longo da vida; 1990,
Bélgica, greve de professores, com escolas paralisadas por quase dois meses, tendo
alunos afetados e não afetados com o afastamento da escola (nos que foram afeta-
dos, a escolaridade média caiu); 2005, Estados Unidos, furacão Katrina e furacão
Rita, com fechamento das escolas e realocação de alunos para outras escolas, obser-
vando-se queda no desempenho em matemática. Já no Brasil, há um longo passado
de greves históricas, tal o descaso com a educação pública escolar. São eventos não
planejados que impactam no aprendizado dos alunos, mas estudos mostram que,
mesmo durante as férias, um período que compete a uma programação, ocorreria
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uma desaceleração nas aquisições cognitivas ou perda no aprendizado obtido du-
rante o período letivo (OLIVEIRA; GOMES; BARCELLOS, 2020). Não se trata,
portanto, de apenas manter abertas, fechar ou reabrir as escolas, mas de reconhe-
cer que as necessidades educacionais não são interrompidas e seu atendimento
requer planejamento de ações, não classificação daqueles a ensinar ou não, atender
ou não, incluir ou não.
Considerações nais
Durante a pandemia, a principal oferta de retaguarda educacional oferecida
foi o ensino remoto emergencial, o que nos faz pensar de que forma as aulas remo-
tas estão afetando os alunos de forma geral e particularmente aos alunos públi-
co-objetivo da educação especial. Um aluno de pós-graduação, por exemplo, envia
um e-mail para o professor e questiona algo que não tenha ficado muito claro na
aula síncrona, mas como faz um aluno com transtorno global do desenvolvimento
ou sua família, talvez com escolarização incompleta? Ainda que estejamos na “era
da informática”, esse acesso não é universal e nem seu manejo é uma obviedade.
Perde-se energia e experimenta-se a ansiedade. Todas essas inquietações são in-
dicativas de que o cotidiano do distanciamento social está evidenciando aspectos
daquilo que já sabíamos quanto à divisão social, a falta de cobertura das políticas
públicas, o desfinanciamento da educação e da saúde, assim como a exclusão de
parcelas da população aos bens culturais e educacionais.
Baptista, Ceccim e Ferla (2020, p. 2), em editorial da revista Saúde em Redes,
referem que “as políticas de desfinanciamento [mas, também, de] desinvestimento
em saúde e educação est[ariam] associadas a uma maquinaria de ataques à quali-
dade, à autonomia, às especificidades desses setores”, desse modo, submetendo-os
“a normas administrativas e burocráticas que, a pretexto de prevenir desvios e cor-
rupção, travam os objetivos finalísticos e, objetivamente, constituem novas formas
de esvaziamento da probidade”.
Logo que chegou, o distanciamento social nos invadiu com um sentimento de
desespero em relação à contaminação pelo vírus, não sabíamos bem o que fazer,
tirando até a roupa para entrarmos em casa. Com o tempo, mais que um semestre
letivo (praticamente todo um ano) vivendo sob a pandemia no Brasil, toda esta
experiência nos permitiu reflexões de muito significado individual e coletivo. Esta-
mos num impasse quanto à volta ou não às aulas em que, de um lado, ocorre a pres-
são da rede privada para a reabertura e, de outro lado, lideranças governamentais
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mais interessadas nos seus pactos de classe que no interesse coletivo. Não se trata
apenas de não ter aula presencial na forma que conhecíamos, mas da forma de
administrar a Educação. O que é realmente prioritário: cuidar dos estudantes e
dos professores, cuidar da educação, cuidar de uma escola em território ou tirar
crianças e adolescentes de casa, devolvendo os familiares ao mundo do trabalho e
devolvendo aos setores produtivos a retomada de renda, apesar da propagação de
um adoecimento e uma morte evitáveis? Os dirigentes de escola, que também estão
sendo cobrados intensamente pelas suas secretarias, estão preocupados com seus
professores ou apenas os estão lembrando “do preenchimento de planilhas”, dos
dias que deverão postar as aulas e dando seus números de telefones pessoais para
os atendimentos a distância via WhatsApp?
O que a gente faz quando escuta as pessoas? Quem está escutando os profes-
sores? Quem está escutando as famílias? Quem está escutando os alunos? O que
esta experiência do afastamento vai trazer aos alunos com transtorno global do
desenvolvimento, por exemplo, àquele que gostava de dar um “oi” – antes de ir
para a sua aula – para a professora que ele mais gosta na sala dos professores? O
afeto atinge a saúde mental e, num momento em que estamos privados do contato,
afastados da escola, cada vez mais nos sentimos frágeis. Tudo é feito de encontros,
dos efeitos corporais que transcorrem quando estamos diante um do outro ou de
um grupo. Há muita gente em sofrimento hoje pelo resguardo em casa, pela falta
de acesso a condições fundamentais para a qualidade de vida, aspectos de ativa-
ção cognitiva, de ativação da atenção. Quando não se tem um acompanhamento
sistemático para essas questões, é grande o prejuízo. E quanto mais longo o tempo
de afastamento, maior é o prejuízo. Como estão sendo preparados os sistemas de
ensino para planejar a volta das escolas? Não se trata de “adotar todos os protoco-
los de prevenção”, mas de adotar medidas relacionadas ao ensino, à educação em
saúde e à integração saúde-educação. Não estamos falando de estabelecimentos,
mas de educação escolar e atenção psicossocial ao segmento de prioridade quanto
ao crescimento e ao desenvolvimento.
Quando pensamos nas pessoas com deficiência, a questão fica ainda mais com-
plexa. Em se tratando especificamente do público-objetivo da educação especial,
evidencia-se a necessidade do ambiente escolar para sua organização interna, seus
laços afetivos, a interação social e o desenvolvimento psíquico. A sua educação se
dá em contato com seus pares. A escola também é lugar de saúde mental, de tessi-
tura de redes e de construção de laços com o grupo domiciliar. O distanciamento e
as novas estratégias de vida fizeram com que as escolas e os professores buscassem
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alternativas de manter o contato com os alunos, de manter o acompanhamento no
desenvolvimento dos alunos, de manter de certa forma os conteúdos de cada nível
escolar, mas, afinal, qual é definitivamente o nosso problema com o afastamento
da escola? Seriam a perda do ano letivo, a reposição de conteúdos e a conclusão do
ano escolar? Ou seriam os vínculos com a Educação, o desejo de ou pela escola, o
interesse pelo desenvolvimento da subjetividade, o crescimento “como pessoa”, a
apreensão da solidariedade, a construção da capacidade de ler os acontecimentos
do mundo em emergência à nossa volta?
Este trabalho pretendeu conjecturas à reflexão sobre o que de fato importa,
se é manter o percurso dos conteúdos escolares ou é a manutenção de uma relação
com o ensino, com a instituição, com os sentidos que a aprendizagem pode trazer?
No ensino remoto emergencial, o que mesmo interessa? O que pode ser mantido,
não no sentido da transmissão de conteúdo, mas dos encontros de aprendizagem?
O que fazemos com as necessidades intelectuais, educacionais, escolares? Estão
suspensas enquanto perdurar o fechamento das escolas? O que dizer das conse-
quências da falta de escola quando o distanciamento acabar? Parece que temos
a tarefa de pavimentar caminhos para melhor formular as tantas perguntas que
foram pingando na presente exploração temática e melhor responder a elas. Se a
pergunta não está bem formulada ou os passos escolhidos não trazem densa consis-
tência, acreditamos estar no caminho de formulação de uma questão de pesquisa à
Educação e à Saúde e de invenção de um método de aproximação.
Nota
1 Em 30 de setembro de 2020, o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, assinou o Decreto n. 10.502, que “ins-
titui a Política Nacional de Educação Especial: equitativa, inclusiva e com aprendizado ao longo da vida”,
que derruba a Política de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva como roteiro nacional
orientador, passando a área da educação especial aos patamares do início dos anos 1990, uma política
completamente identificada com o capacitismo. O presente texto pretende ter se perfilado totalmente con-
trário às concepções e às teorias de tal decreto, almejando uma posição ético-inclusiva e não capacitista. As
referências à anterior Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva dizem
respeito, então, à identificação com esse paradigma para pensar as pessoas com deficiência, a educação
especial e a atenção psicossocial (BRASIL, 2020f). O decreto não revogou disposições em contrário, então,
outras leis e resoluções ainda devem ser invocadas em respeito às pessoas com deficiência.
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A experiência de acadêmicos de Enfermagem no ensino remoto durante a
pandemia por Covid-19 (SARS-CoV2)
The experience of Nursing academics in remote education during the pandemic by
Covid-19 (SARS-CoV2)
La experiencia de los académicos de Enfermería en educación remota durante la pandemia por
Covid-19 (SARS-CoV2)
Marcia Maria Ribera Lopes Spessoto*
Raphael Ramos Spessoto**
Resumo
O objetivo geral do artigo é realizar um levantamento junto aos acadêmicos de Enfermagem da Universidade
Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) sobre as condições em que estes vêm desenvolvendo o ensino remoto
emergencial (ERE) e as suas percepções a respeito do processo. O texto é resultado de uma pesquisa de caráter
descritivo-analítico, compreendendo as informações à luz da análise de conteúdo. Realizou-se um levantamen-
to sobre os principais encaminhamentos educacionais adotados pelo Estado brasileiro, com foco na educação
superior, no momento de pandemia por Covid-19, e, por consequência, a perspectiva institucional adotada pela
UEMS. Os dados foram coletados por meio de questionário e apontaram a predominância da realização das
atividades educativas por meio de celulares e a utilização de uma série de ferramentas digitais para o acesso
aos conteúdos. Sobre como foi a vivência do acadêmico no ERE, foram destacadas categorias relacionadas ao
processo de ensino-aprendizagem, ao estudo no ambiente domiciliar e aos equipamentos e recursos tecnoló-
gicos. Acredita-se que a pandemia por Covid-19 trouxe à área da educação rupturas e novas congurações que
necessitarão de reexões, estudos e amadurecimento por parte de docentes, discentes e familiares.
Palavras-chave: enfermeira; educação superior; coronavírus.
* Enfermeira, mestra e doutora em Educação. Professora no curso de graduação em Enfermagem e no Mestrado Pros-
sional Ensino em Saúde, ambos da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS). Com experiência nas áreas
de educação superior, formação de recursos humanos em saúde e processos educativos em saúde. Orcid: https://
orcid.org/0000-0002-9077-1989. E-mail: spessotommrl@gmail.com
** Biólogo. Mestre Prossional em Ensino em Ciências pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS). Pro-
fessor de Ciências na Escola Estadual João Paulo dos Reis Veloso. Com experiência nas áreas de ciências biológicas,
de processos educativos a partir de metodologias ativas. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-9882-5494. E-mail: prof.
rrspessoto@gmail.com
Recebido em: 30/10/2020 – Aprovado em: 13/01/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i2.11801
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Abstract
The general objective of the article is to carry out a survey with nursing students at the State University of Mato
Grosso do Sul (UEMS) about the conditions in which they have been developing emergency remote educa-
tion (ERE) and their perceptions about the process. The text is the result of a descriptive-analytical research;
understanding information in the light of content analysis. A survey was carried out on the main educational
approaches adopted by the Brazilian State, with a focus on higher education, at the time of the pandemic by Co-
vid-19 and, consequently, the institutional perspective adopted by UEMS. Data were collected through a ques-
tionnaire and pointed out the predominance of educational activities using cell phones and the use of a series of
digital tools to access the content. Regarding how the academic experience was at ERE, categories related to the
teaching-learning process, the study in the home environment and the technological equipment and resources
were highlighted. It is believed that the Covid-19 pandemic brought disruptions and new congurations to the
area of education that will require reections, studies and maturation by teachers, students and family members.
Keywords: nurse; college education; coronavirus.
Resumen
El objetivo general del artículo es realizar una encuesta a estudiantes de enfermería de la Universidad Estatal
de Mato Grosso do Sul (UEMS) sobre las condiciones en las que han venido desarrollando la educación remota
de emergencia (ERE) y sus percepciones sobre el proceso. El texto es el resultado de una investigación descrip-
tivo-analítica; comprender la información a la luz del análisis de contenido. Se realizó una encuesta sobre los
principales enfoques educativos adoptados por el Estado brasileño, con enfoque en la educación superior, en el
momento de la pandemia por Covid-19 y, en consecuencia, la perspectiva institucional adoptada por la UEMS.
Los datos fueron recolectados a través de un cuestionario y señalaron el predominio de actividades educativas
utilizando teléfonos celulares y el uso de una serie de herramientas digitales para acceder a los contenidos. En
cuanto a la experiencia académica del ERE, se destacaron categorías relacionadas con el proceso de enseñanza-
-aprendizaje, el estudio en el ámbito del hogar y los equipos y recursos tecnológicos. Se cree que la pandemia
Covid-19 trajo disrupciones y nuevas conguraciones al área de la educación que requerirán reexiones, estu-
dios y maduración por parte de docentes, estudiantes y familiares.
Palabras clave: enfermera; educación universitaria; coronavirus.
Introdução
A Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou a existência de uma pande-
mia causada por um novo coronavírus (SARS-CoV-2), que teve início na China, no
fim do ano de 2019. Até o final de outubro de 2020, foram confirmados 44.002.003
de casos no mundo e 1.167.988 mortes (OPAS; OMS, 2020). No Brasil, os dados
de 28 de outubro de 2020 apontam 5.472.316 casos confirmados e 158.538 óbitos,
sendo 81.033 casos confirmados e 1.570 óbitos no estado de Mato Grosso do Sul
(FIOCRUZ, 2020).
Para combater a transmissão da Covid-19, houve necessidade de uma série
de mudanças de comportamentos, imputando à população mundial a realização,
por exemplo, de distanciamento e de isolamento social, além da adoção de outras
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medidas protetivas, como o uso de máscara facial e a higiene frequente das mãos. A
circulação pelos espaços coletivos foi restringida e as unidades educacionais foram
instituições diretamente impactadas por esse contexto.
A meta-análise realizada por Crawford et al. (2020) aponta que, nos 20 países
analisados, oriundos das 6 áreas da OMS, ocorreram semelhanças e diferenças com
relação aos encaminhamentos adotados para a educação superior. O estudo sina-
liza que a maioria dos países desenvolvidos fecharam campi e adotaram o ensino
remoto. Todavia, países como o Brasil, a Cingapura, o Canadá, a Groenlândia, a
Federação Russa e os Estados Unidos da América não adotaram políticas nacio-
nais contundentes sobre o fechamento de escolas, mas fechamentos localizados. De
fato, no Brasil, as aulas presenciais foram suspensas pelo Ministério da Educação
em todos os níveis de ensino; houve, contudo, a possibilidade de flexibilização no
sentido de se ofertar ou não aulas remotas. Assim, delegou-se às instituições e aos
sistemas de ensino o como, o quando, a quem, com quais suportes e caminhos se
enfrentaria a situação.
Na educação superior, após quatro meses com as atividades de ensino, pes-
quisa e extensão suspensas, as universidades públicas federais acenaram para um
retorno por meios digitais, de forma não presencial. Respeitando o princípio do
federalismo brasileiro e a autonomia universitária, as universidades públicas es-
taduais, por sua vez, puderam se organizar de acordo com as condições específicas
de seu contexto. Dessa forma, a Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul
(UEMS) desenvolveu momentos de discussões entre a gestão e os representan-
tes docentes e discentes, no intuito de estruturar um modelo que atendesse às
exigências de isolamento social necessárias ao cenário, mas que não descurasse
do compromisso com o processo de ensino-aprendizagem exercido pela instituição.
Destarte, o percurso escolhido pela instituição foi o da adesão às aulas remotas,
seguida por uma série de orientações e recomendações para os cursos.
O Curso de Enfermagem da UEMS, que historicamente desenhou sua trajetó-
ria pautada em embates no sentido de aprimorar o processo de ensino-aprendiza-
gem ofertado, inseriu-se no rol de discussões a respeito do ensino remoto adotado
pela instituição e vem procurando desenvolvê-lo junto aos acadêmicos. Todavia,
questiona-se sobre o como se deu para o acadêmico de Enfermagem da UEMS o
processo de implementação de um modelo de aulas remotas. Entende-se que essa
mudança ocorreu de forma abrupta para docentes e discentes, dentro de um con-
texto de incertezas, ansiedades, novas organizações dos processos de trabalho e
estudos relacionados a cursos estruturados para serem desenvolvidos de modo
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100% presencial, como o Curso de Enfermagem da UEMS. Dessa forma, o artigo
tem como objetivo geral realizar um levantamento junto aos acadêmicos de Enfer-
magem da UEMS sobre as condições em que vêm desenvolvendo o ERE e as suas
percepções a respeito do processo.
Primeiramente, o trabalho contextualiza as principais políticas educacionais
adotadas pelo Estado brasileiro com foco na educação superior, no período de pan-
demia por Covid-19, e, por consequência, incide na perspectiva institucional ado-
tada pela UEMS. A segunda seção procura caracterizar as condições em que os
acadêmicos de Enfermagem da UEMS vêm desenvolvendo o ERE, no período de
março a agosto de 2020, e apresenta as percepções dos discentes a respeito de suas
experiências com relação ao ERE. Por fim, as considerações finais visam a colabo-
rar com novas (e antigas) reflexões sobre o processo educativo.
A educação superior brasileira no período de pandemia por Covid-19
Após a notificação dos primeiros casos de Covid-19 no Brasil, o Ministério da
Educação (MEC) publicou a Portaria n. 343, de 17 de março de 2020, autorizando a
suspensão das aulas presenciais e, de acordo com a deliberação de cada instituição
de ensino superior (IES), a substituição dessas aulas por aulas mediadas por tec-
nologias de informação e comunicação (TICs), por um prazo de 30 dias (BRASIL,
2020a). Tal autorização foi prorrogada por mais 30 dias pela Portaria n. 395, de 15
de abril de 2020 (BRASIL, 2020b). Cabe ressaltar que as IES poderiam optar pela
suspensão das aulas presenciais sem que houvesse a adesão ao ensino mediado por
TICs, de acordo com o art. 2º da Portaria n. 343, de 17 de março de 2020. A portaria
determina, ainda, que haja a reposição integral das atividades acadêmicas; além
disso, possibilita a flexibilização dos calendários.
Em parceria com o MEC, o Conselho Nacional de Educação (CNE) elaborou
parecer a respeito de orientações gerais para os sistemas de ensino organizarem
suas atividades durante a pandemia por Covid-19. Entre as possibilidades de ativi-
dades não presenciais a serem utilizadas, o CNE cita “[...] meios digitais, videoau-
las, plataformas virtuais, redes sociais, programas de rádio ou televisão e material
didático impresso e entregue aos pais ou responsáveis” (MEC, 2020, não paginado).
A Portaria n. 473, de 12 de maio de 2020, estabelece nova prorrogação rela-
tiva à suspensão de aulas presenciais pelo mesmo período adotado anteriormente
nas demais portarias (BRASIL, 2020c). Por fim, a Portaria n. 544, de 16 de junho
de 2020, determina que a suspensão das aulas presenciais perdure até o final do
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ano letivo de 2020, revogando as portarias anteriores (BRASIL, 2020d). Embora
apresentem possibilidades de encaminhamentos para as atividades educativas de
nível superior, durante o período da pandemia, as flexibilizações apontadas pelas
portarias consentem que as IES trilhem seus próprios caminhos de organização.
A partir das orientações fornecidas pelo MEC e pelo CNE, as IES estabele-
ceram seus posicionamentos com relação à adesão ou não ao ensino remoto. Na
UEMS, o primeiro movimento institucional foi o de suspensão das atividades aca-
dêmicas presenciais por 30 dias, a partir do dia 18 de março de 2020, e a reco-
mendação de substituição dessas atividades por práticas desenvolvidas de modo
remoto, conforme indicam as Portarias UEMS n. 18 e n. 19, de 16 de março de 2020
(UEMS, 2020a, 2020b).
Ao final de um mês, a Portaria UEMS n. 23, de 13 de abril de 2020, suspen-
deu as aulas presenciais e remotas no período de 17 de abril a 3 de maio de 2020.
Durante o período em tela, reuniões de diferentes setores da instituição, incluindo
a participação de docentes, técnicos e discentes, foram realizadas com vistas a se
de discutir a permanência ou não da realização de atividades remotas no período
da pandemia por Covid-19. Esse movimento foi importante no sentido de subsidiar
as propostas apresentadas e votadas durante a reunião do Conselho de Ensino,
Pesquisa e Extensão (CEPE) da UEMS, realizada nos dias 18 e 19 de maio de
2020, em que a decisão foi o retorno às atividades de ensino remotas, por meio da
Resolução CEPE-UEMS n. 2.153, de 19 de maio de 2020, que estabelece o seguinte:
“Art. 1º Prorrogar, por prazo indeterminado, a suspenção das aulas presenciais e
sua substituição por atividades de Ensino Remoto Emergencial (ERE) da Universi-
dade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), a partir do dia 23 de maio de 2020”
(UEMS 2020c, p. 2). A partir da Circular Reitoria/UEMS n. 015/2020, o ERE se
constitui de:
[...] atividades de ensino não presencial em substituição às presenciais, com a utilização de
Tecnologias da Informação e da Comunicação [...]. Se por um lado, estas atividades não pos-
sam ser consideradas efetivamente como modalidade EaD, que normalmente exigem prá-
ticas pedagógicas bem definidas nesta modalidade educacional, também é verdade que o
ERE nos trouxe a necessidade de maior interação e integração entre educação e tecnologia,
não obstante seus princípios sigam os mesmos da educação presencial (UEMS, 2020d, p. 1).
Para Hodges et al. (2020), a educação a distância (EaD) implica planejamen-
to prévio detalhado e sistematizado, ou seja, há uma intencionalidade explícita e
primária no uso da EaD, característica que não se enquadra ao descrever a mu-
dança que os sistemas educacionais vêm implementando devido à pandemia por
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Covid-19. Os autores ressaltam que a educação remota digital é diferente da EaD,
por se caracterizar como um recurso que está sendo utilizado em caráter emer-
gencial e que faz uso das TICs para, temporariamente, continuar as atividades de
ensino que foram planejadas e vinham sendo implementadas por meio do ensino
presencial. A respeito da educação remota emergencial, Arruda (2020, p. 266) ain-
da discorre que:
A educação remota emergencial pode ser apresentada em tempo semelhante à educação
presencial, como a transmissão em horários específicos das aulas dos professores, nos for-
matos de lives. Tal transmissão permitiria a colaboração e participação de todos de forma
simultânea, mas pode envolver a gravação das atividades para serem acompanhadas por
alunos sem condições de assistir aos materiais naquele momento. Ela também pode en-
volver mais iniciativas da EaD, implementando ferramentas assíncronas (que funcionam
de forma não instantânea, como fóruns de discussão) e melhor estruturação de materiais.
Pode também envolver a transmissão de conteúdos por TV, rádio ou canal digital estatal,
de forma mais massiva e emergencial.
Compreende-se que as repercussões causadas pela pandemia da Covid-19 vêm
afetando todas as áreas, mas a da educação, em especial, vem exigindo de educa-
dores e educandos novas construções, novas posturas e até mesmo novos cenários.
Destarte, impactaram o cenário da política educacional brasileira e repercutiram
nos diferentes sistemas de ensino por todo o país, que procuraram se organizar de
acordo com suas realidades e demandas, caracterizando o fenômeno da glocaliza-
ção, conforme explica Stephen Ball (2004, p. 1115): “[...] a acomodação de tendên-
cias globais em histórias locais produz políticas híbridas e diversidade política”.
Sendo a política constituída por uma série histórica de intenções e ações in-
fluenciadas por diferentes atores, a partir de uma multiplicidade de fatores e não
apenas de uma lei ou de uma legislação única, conforme aponta Palumbo (1994),
entende-se que os acadêmicos são atores privilegiantes para a compreensão do pro-
cesso de ensino-aprendizagem por meio do ensino remoto desenvolvido no ano de
2020 pela UEMS.
O ERE experienciado pelos acadêmicos de Enfermagem
Contemplando os marcos normativos e regulatórios para a formação do enfer-
meiro bacharel, o Curso de Enfermagem da UEMS exerce suas atividades há mais
de 20 anos, no município de Dourados, interior do Mato Grosso do Sul (UEMS,
2014). Além de contribuir para o arcabouço das universidades públicas brasileiras,
de acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 (LDBEN),
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a UEMS se caracteriza por ser uma IES pública estadual (UEMS, 2014; BRASIL,
1996).
O curso de graduação em Enfermagem, bacharelado, foi implantando na
UEMS em 1994 e oferece, anualmente, 50 vagas para ingressantes, incluindo as
vagas gerais e as por cotas negras e indígenas. Com período mínimo de integraliza-
ção de 5 anos, o curso procura desenvolver atividades teórico-práticas em ambien-
tes hospitalares e da atenção primária à saúde, desde a segunda série, atendendo
ao solicitado pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação
em Enfermagem, de 2001 (UEMS, 2014; BRASIL, 2001).
Em meio ao cenário da pandemia, a graduação em Enfermagem da UEMS
procurou se inserir no âmbito de discussões e reflexões sobre o processo ensino-
-aprendizagem a partir de reuniões realizadas entre docentes dos diferentes cursos
da instituição e, concomitantemente, de reuniões do próprio curso, com as diferen-
tes séries, organizando-se e trocando informações, sugestões e conhecimentos. É
importante ressaltar que, no Projeto Pedagógico desenhado pelo curso, na última
série (5ª), não há disciplinas teóricas, tal momento é reservado somente para a
realização do estágio curricular supervisionado. Dessa forma, este estudo foi de-
senvolvido com acadêmicos da 1ª a 4ª série que aceitaram participar, estavam ma-
triculados em 2020, com exceção dos acadêmicos menores de 18 anos e indígenas1.
A coleta de dados acerca da experiência dos estudantes de Enfermagem no
processo de implementação de um modelo de aulas remotas foi realizada mediante
questionário elaborado no formulário eletrônico e disponibilizado na Plataforma
Microsoft Teams. Todos os participantes foram esclarecidos sobre a pesquisa e as-
sinaram o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE).
A partir da lista com os nomes dos acadêmicos matriculados no Curso de En-
fermagem da UEMS, fornecida pela coordenação do curso, estabeleceu-se o primei-
ro contato com os alunos, no sentido de convidá-los a participarem da pesquisa.
Para tal, foram utilizados os e-mails e os contatos via WhatsApp. Nesse primeiro
contato, o aluno foi esclarecido sobre os objetivos da pesquisa e recebeu um link
para ter acesso ao TCLE na íntegra, indicando seu aceite ou não em participar
da pesquisa. Após o aceite, o participante era direcionado a uma seção do formu-
lário em que estavam inseridas as questões do estudo. Caso houvesse recusa do
acadêmico em participar, o formulário indicava a última seção, na qual constava o
agradecimento pela leitura do TCLE.
As informações coletadas por meio das questões fechadas do formulário foram
compreendidas à luz da perspectiva descritiva e analítica, e as questões abertas
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por meio da análise de conteúdo de Bardin (2016), sendo discutidas a partir da
literatura da área. Nesse sentido, a análise de conteúdo é formada por uma série de
técnicas de análise das comunicações que, por meio da sistematização de etapas ob-
jetivas orientadas pela descrição de conteúdo dos textos e indicadores analisados,
possibilita a compreensão de dados referentes à produção e à recepção do conteúdo
analisado (BARDIN, 2016).
Assim, o estudo abrangeu a pré-análise dos dados, a exploração do material,
o tratamento, a inferência e a interpretação das informações coletadas. Para pre-
servação da identidade dos participantes, os acadêmicos foram identificados como
A1, A2 e assim sucessivamente. Dos 159 acadêmicos matriculados no Curso de
Enfermagem da UEMS, 142 se incluíam nos critérios da pesquisa. Dentre eles, 43
responderam ao contato efetuado previamente, assinalando no formulário eletrôni-
co e o aceite ao TCLE, o que corresponde a uma amostra de 30%.
Na caracterização dos acadêmicos participantes da pesquisa, 38 eram do
sexo feminino (88,4%), sendo que 34 participantes possuíam até 22 anos de ida-
de (79,1%), e 9 possuíam entre 23 e 30 anos (20,9%). A cor autodeclarada por 23
acadêmicos foi a branca (53,5%), seguida pela parda, com 14 (32,6%), pela preta,
com 5 (11,6%), e pela amarela, com uma (2,3%) autodeclaração. Ressalta-se que os
estudos realizados por Lopes (2011), Bampi et al. (2013) e Antochevis-de-Oliveira et
al. (2017) com acadêmicos de Enfermagem encontraram resultados semelhantes.
Com relação à representatividade das séries neste estudo, observou-se que
houve percentis similares entre a 2ª, a 3ª e a 4ª séries, todavia, a 1ª série teve
apenas 16,7% de participação entre os matriculados, conforme demonstrado no
Quadro 1. Embora esse fator não seja o foco do estudo, entende-se que há necessi-
dade de maior investigação a respeito, uma vez que o ano de ingresso do discente
no universo acadêmico caracteriza-se por uma série de modificações, desafios e in-
certezas. Cumpre destacar que os acadêmicos ingressantes optaram por um curso
de graduação desenvolvido de forma presencial e que, devido a uma pandemia de
origem viral, foram inseridos em uma dinâmica de ensino remoto. Entende-se que
os impactos desse processo ainda necessitarão de uma série de estudos a partir de
diferentes aspectos.
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Quadro 1 Representatividade das séries do Curso de Enfermagem da UEMS na participação do estudo,
2020
Série Acadêmicos matriculados N %
54 09 16,7
33 14 42,4
33 12 36,4
22 8 36,4
Fonte: elaboração dos autores.
Para padronizar plataformas digitais a serem utilizadas pelos docentes, a
UEMS orientou o uso dos Ambientes Virtuais de Aprendizagem (AVAs) Moodle®
e Microsoft Office 365 Education®; todavia, outros meios digitais poderiam ser
usados como apoio ao processo de ensino-aprendizagem (UEMS, 2020). Os meios
digitais que vêm sendo empregados pelos acadêmicos para acesso às atividades
disponibilizadas pelos docentes refletiram as condutas adotadas pela instituição,
conforme demonstra a Figura 1.
Figura 1 Relação de ferramentas digitais utilizadas pelos acadêmicos para o acesso às atividades oferta-
das pelos docentes do Curso de Enfermagem da UEMS durante a pandemia por Covid-19, 2020
Fonte: elaboração dos autores.
Amaral e Polydoro (2020) relataram que, na implementação do ERE, devido
à pandemia pela Covid-19, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) tam-
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bém fez uso de AVAs como o Moodle® e o Google Classroom®, agregando no percur-
so outras possibilidades, como o Google Apps for Education® e o Microsoft Office
365 Education®. De acordo com o estudo de Crawford et al. (2020), houve ampla
variabilidade entre os países na implementação das atividades digitais na educa-
ção superior durante a pandemia, a princípio, buscando apoio em recursos acessí-
veis para as instituições e para os discentes. Segundo os autores, essa estratégia
foi mais utilizada pelos países com a economia em desenvolvimento, a exemplo da
Jordânia, que implementou “soluções de baixa tecnologia”, como a utilização do
PowerPoint® e de seus recursos de narração, além do uso de ferramentas freeware,
como Skype®, Google Classroom®, Moodle® e Facebook®.
Entre os equipamentos eletrônicos mais utilizados para as atividades de en-
sino e aprendizagem, foram citados o celular, por 39 (90,7%) participantes, e o
notebook, por 35 (81,4%), o que permite inferir que existiu um revezamento entre
os aparelhos eletrônicos usados. Foi afirmado por 37 (86%) acadêmicos que o apa-
relho eletrônico utilizado era de sua propriedade e/ou da família, enquanto 6 (14%)
acadêmicos utilizavam aparelhos emprestados. Cumpre destacar que 25 (58,1%)
participantes afirmaram compartilhar o equipamento eletrônico utilizado para es-
tudo com outras pessoas de sua residência.
O estudo efetuado por Appenzeller et al. (2020) com acadêmicos do Curso de
Medicina da Unicamp identificou que os aparelhos eletrônicos prevalentes no ERE
implantado foram computadores e notebooks, que, por vezes, também eram utiliza-
dos por outros integrantes da família. A Pesquisa Nacional de Amostras por Domi-
cílio (PNAD) de 2018 demonstrou que o celular é o aparelho mais empregado para o
uso da internet, alcançando 98% de utilização, seguido pelo microcomputador, com
50,7% (IBGE, 2018). Além disso, a PNAD de 2018 apontou que a faixa etária que
mais utiliza a internet se encontra entre 18 e 29 anos, embora venha crescendo em
todas as demais idades.
Entre os participantes deste estudo, 24 (55,8%) expuseram que quase sem-
pre conseguem acompanhar as atividades síncronas desenvolvidas no curso; 18
(41,9%) acadêmicos afirmaram que sempre conseguem; e apenas 1 (2,3%) referiu
que quase nunca consegue acompanhar. Appenzeller et al. (2020) também identifi-
caram que os acadêmicos tiveram dificuldades em acompanhar as aulas síncronas,
destacando que as aulas assíncronas, depositadas em plataformas digitais, foram
citadas pelos estudantes como de melhor facilidade de acesso e de aproveitamento.
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Com relação a como foi a vivência do acadêmico no ERE, foram destacadas
categorias relacionadas ao estudo no ambiente domiciliar, aos equipamentos e aos
recursos tecnológicos e ao processo de ensino-aprendizagem.
Os participantes apontaram que o principal fator que interferiu no acompa-
nhamento das aulas síncronas foi o ambiente familiar não propício ao desenvol-
vimento de estudos, envolvendo questões como espaço, filhos e barulho, conforme
demonstrado no Quadro 2.
Quadro 2 A questão do estudo no ambiente familiar a partir da experiência dos acadêmicos de Enferma-
gem da UEMS no ERE, período de março a agosto de 2020
“Não trabalho, mas tenho coisas para fazer aqui em casa, como: almoço, a faxina e às vezes a janta. Isso
pesa um pouco.”
“Não tenho um espaço próprio para estudos e geralmente ocupo a sala, mas na maioria das vezes a minha
família está no mesmo ambiente conversando ou assistindo televisão.”
“Moro em casa de vila onde uma é bem próxima da outra o que me permite escutar o que acontece nas casas
vizinhas além da minha, tenho que cuidar da minha vó porque ela é do grupo de risco e mora sozinha e está
sendo difícil ir ver ela por conta das muitas tarefas propostas.”
“A dificuldade é lidar ao mesmo tempo com as responsabilidades/horários/rotina do ambiente de casa com as
aulas e atividades que temos que realizar, visto que com o estudo em casa não há distinção de ambiente e
muitas vezes acabo me atrapalhando com isso.”
“Além da falta de recursos, é o apoio da família, e a compreensão deles que eu ainda tô estudando, a neces-
sidade de ter que trabalhar agora também.”
Fonte: elaboração dos autores.
Conforme apontam Ramos-Morcillo et al. (2020), em estudo realizado com os
acadêmicos de Enfermagem na Espanha durante os primeiros meses da pandemia
por Covid-19, uma das limitações elencadas para o ERE foi a questão de desenvol-
ver as atividades educativas no domicílio, com a presença da família, por conta do
barulho e da interferência que dificultam a concentração do estudante.
Destaca-se que a unidade universitária da UEMS que oferta o bacharelado
em Enfermagem localiza-se a aproximadamente 15 km de distância da cidade de
Dourados, interior do estado. No período anterior à pandemia, os acadêmicos se
dirigiam ao campus universitário no início da manhã e retornavam às suas resi-
dências ao final da tarde, desenvolvendo, dessa forma, uma rotina de estudos, de
alimentação, de descanso e de convivência social no próprio espaço acadêmico.
Entende-se que o distanciamento social, necessário no período da pandemia,
desencadeou uma série de novos arranjos sociais, inclusive dentro do ambiente
familiar, que passou a ser utilizado como espaço de estudo, de trabalho, de lazer e,
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em muitos casos, no mesmo cômodo da casa. Nesse sentido, Arruda (2020, p. 259)
afirma:
Mais do que um problema educacional, o bloqueio do acesso à escola reconfigurou a socie-
dade, na medida em que tempos e movimentos foram desconstruídos, famílias passaram
a coadunarem as responsabilidades do trabalho e da vida dos estudantes em tempos am-
pliados e em contexto ora da necessidade da manutenção do emprego e da renda, ora no
contexto de confinamento em espaços razoavelmente reduzidos, de maneira ao isolamento
ser cotidianamente comparado a situações de guerra.
Ainda com relação ao acompanhamento das aulas síncronas pelos participan-
tes da pesquisa, foram destacadas dificuldades referentes ao intenso cansaço resul-
tante do fato de terem de acompanhar as aulas somente por celular e à necessidade
de trabalhar, afirmada por alguns discentes. Ressalta-se, ainda, que 29 (67,4%)
acadêmicos disseram permanecer em torno de 8 a 12 horas diárias em frente às
telas para o desenvolvimento de atividades acadêmicas.
Destaca-se que a carga horária elevada de estudos faz parte da rotina dos
acadêmicos de Enfermagem durante o ensino presencial. Todavia, a mudança para
o ERE impôs novas condições de estudo, que envolvem o ambiente familiar, a per-
manência em frente a telas eletrônicas por muitas horas diárias, a intensificação
de realização de atividades assíncronas, ou seja, sem a presença física do professor
explicando a respeito da atividade a ser desenvolvida, em interações interpessoais
que fogem ao alcance do contanto mediado por ferramentas digitais, conforme indi-
cado nas reflexões dos participantes apresentadas no Quadro 3.
Quadro 3 As implicações didático-pedagógicas no processo de ensino-aprendizagem, a partir da expe-
riência dos acadêmicos de Enfermagem da UEMS no ERE, período de março a agosto de 2020
“Atividades propostas, quando muito complexas, dificultam a compreensão de como realizá-las, cada um
entende de uma forma.”
“Atividades ou aulas que demandam muito tempo de atenção e que tenham um nível de dificuldade mais alto.”
“Ficar muito tempo na frente do notebook, onde após uma hora e meia na frente dele, começo ter dores de
cabeça e cansaço e não consigo mais absorver o conteúdo dado ou que deve ser feito.”
“A quantidade de exercícios que alguns professores enviam e a forma que fazem as aulas, nem sempre co-
bram o que explicam, geralmente é muito além.”
“O horário que fico em frente ao computador, faço as atividades obrigatórias e muitas vezes não tenho tempo
de aprender, de estudar a parte.”
“Dificuldades do cotidiano, prazos muito curtos e atividades concomitantemente propostas, quando podem
ocorrer imprevistos [...]. Nesse momento muita coisa pode ocorrer e sinto muita falta de flexibilidade por parte
de alguns professores, como se estivéssemos ainda no presencial, cara a cara. Algumas exigências são
difíceis para o momento e nos desestimulam.”
Fonte: elaboração dos autores.
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Silva, Silva Neto e Santos (2020), ao afirmarem que o cenário educacional
induzido pela pandemia trouxe incertezas, dúvidas, angústias, desconhecimento
e ausência de formação de professores, alunos e famílias com relação ao ensino
mediado pelas TICs, destacam que o ritmo e a programação do tempo dedicados
ao ensino são outros, bem como a postura do estudante, enquanto protagonista
ativo de seu tempo de estudo e de sua aprendizagem. É importante ressaltar que
as questões levantadas pelos acadêmicos se referem à prática pedagógica docente
utilizada durante o ERE. Tal contexto também é destacado pelos acadêmicos par-
ticipantes do estudo de Amaral e Polydoro (2020, p. 5-7):
Como dificuldades, foram apontados aspectos relacionados à organização da disciplina
(foco/objetivos, cronograma, critérios de avaliação e prazos, feedback, AVA), videoaulas lon-
gas, ausência de encontros síncronos ou encontros não disponíveis por meio de gravação,
reduzida atividade em grupo, sobrecarga de atividades. Os estudantes relataram dificul-
dade em gerenciar os estudos e necessidade de investir maior tempo para a realização das
atividades e para apreensão do conteúdo.
Ao realizar a mudança de uma aula presencial para o modelo remoto são ne-
cessários ajustes com relação a quantidade de conteúdo, formato de oferta, tempo
necessário para a realização da atividade, meios de interação com e entre os aca-
dêmicos e modelos de presença e de avaliação. Toda a aula precisa ser replanejada
pelo docente, dentro de uma proposta que ele desconhece, pois estava inserido no
ensino presencial, e, além disso, também desconhece o ritmo desse mesmo processo
para o aluno, que se encontra do outro lado da tela, sendo também novo para o
discente. A aula ministrada presencialmente possibilita uma interação entre o do-
cente e o discente que permite maior fluidez ao processo de ensino-aprendizagem.
Destarte, o ERE exige novas posturas dos docentes e dos discentes dentro de seus
contextos, todavia, ele traz à discussão antigas questões dentro da área da educa-
ção e do ensino que dizem respeito à concepção teórico-pedagógica que docentes,
cursos e IES, respaldados em seus PP e projetos institucionais, optaram por ofer-
tar. Dessa forma, entende-se que o ERE evidencia uma questão fundamental para
o processo de aprendizagem, presencial ou remota, e que se refere ao componente
didático-pedagógico necessário para o planejamento das atividades. Além disso,
observa-se que o ERE pode assumir diferentes formatos e propostas, podendo ser
síncrono ou assíncrono, individual ou coletivo, mas precisa ser compreendido a
partir da realidade no cenário educacional causada pela pandemia por Covid-19.
Nesse contexto, infere-se que as metodologias ativas de aprendizagem se in-
serem no rol de discussões, uma vez que se constituem enquanto estratégias de
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ensino-aprendizagem que privilegiam o papel do estudante enquanto ator princi-
pal na construção do conhecimento individual e coletivo (MORAN, 2018). De fato,
tal perspectiva dialoga com as Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de
graduação em Enfermagem, de 2001, que estabelecem, em seu art. 9º:
[...] o Curso de Graduação em Enfermagem deve ter um projeto pedagógico, construído co-
letivamente, centrado no aluno como sujeito da aprendizagem e apoiado no professor como
facilitador e mediador do processo ensino-aprendizagem (BRASIL, 2001, p. 5).
Cumpre ressaltar que a constituição do enfermeiro bacharel ocorre por meio
da aquisição de uma série de habilidades e competências, gerais e específicas, com
o intuito de formar para a prestação do cuidado em enfermagem. Com relação a
duração e modalidade da graduação em Enfermagem, a Resolução do MEC CNE/
CES n. 4, de 6 de abril de 2009, dispõe a respeito da carga horária mínima e sobre
os procedimentos para a integralização dos cursos, sob o grau de bacharelado, na
modalidade presencial, instituindo, para os cursos de graduação em Enfermagem,
a carga horária mínima de 4.000 horas (BRASIL, 2009). Dessa forma, o Curso de
Enfermagem da UEMS está organizado em 4.139 horas, a serem integralizadas no
período mínimo de 5 anos na modalidade presencial. Para o implemento da carga
horária no prazo previsto, as aulas são ofertadas em turno integral (UEMS, 2014).
O estudo de Sanes et al. (2020) apresenta e discute os posicionamentos das
duas principais entidades representativas da enfermagem, a Associação Brasileira
de Enfermagem (ABEn) e o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen). Os autores
destacam a histórica preocupação das entidades com a graduação em modalidade a
distância, uma vez que o discente de Enfermagem necessita de ações e reflexões no
sentido de formação de habilidades e competências para o cuidado em enfermagem.
Entende-se que a implementação do ERE não pode ser utilizada como argu-
mento para a defesa do ensino de graduação em Enfermagem na modalidade EaD,
uma vez que sua utilização se deu em um cenário pandêmico, que implica a neces-
sidade de distanciamento social. Todavia, a partir de uma perspectiva epidemio-
lógica da pandemia, presume-se que não há como assegurar quando haverá a pos-
sibilidade de retorno das aulas presenciais. Propostas de planos de biossegurança
para um retorno mais seguro vêm sendo discutidas pelas diferentes instituições
da sociedade, mas, com certeza, teremos ressonância nas discussões educacionais
a respeito de novas perspectivas de ensino apreendidas durante a pandemia, espe-
cialmente com relação ao uso das TICs.
Entretanto, a inserção das TICs no processo educativo deve levar em conside-
ração uma série de fatores, como o tempo que o acadêmico passa diante das telas
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dos equipamentos eletrônicos, a qualidade da internet, o consumo do pacote de
dados pelas atividades propostas pelo docente, o correto manuseio de ferramentas
e plataformas digitais e, até mesmo, a instabilidade climática, conforme indicam as
respostas elencadas no Quadro 4.
Quadro 4 As ferramentas midiáticas e o processo de ensino-aprendizagem, a partir da experiência dos
acadêmicos de Enfermagem da UEMS no ERE, período de março a agosto de 2020
“Muitas plataformas.”
“O que me atrapalha são as plataformas que travam muito.”
“Dificuldade em manusear as ferramentas digitais utilizadas.”
“O tempo de chuva influencia na disponibilidade da rede de internet.”
“Recursos tecnológicos limitados ou insuficientes.”
“Além da internet e o notebook serem de baixa qualidade.”
“Ficar horas na frente do computador é muito cansativo, porém alguns professores entendem essa dificulda-
de. Tenho Wi-Fi em casa, mas direto a rede cai por conta do tempo e a localização.”
Fonte: elaboração dos autores.
Conforme apontado por Godoi et al. (2020), os docentes e os discentes não se
encontravam preparados para a brusca mudança que ocorreu do ensino presencial
ao remoto. Fatores como o desconhecimento e/ou a dificuldade com relação ao uso
das ferramentas digitais levaram docentes e discentes ao universo digital em busca
de cursos, atualizações e embasamentos para o domínio do novo cenário de apren-
dizagem (PASINI; CARVALHO; ALMEIDA, 2020). Atrelada a essa questão, existe
a discussão a respeito do acesso e da qualidade da internet existente no Brasil. De
acordo com a UNESCO (2017), o acesso à internet deve ser compreendido como
um pré-requisito para o desenvolvimento da sociedade, todavia, observa-se que
seu acesso e sua qualidade estão relacionados ao perfil socioeconômico. Em levan-
tamento realizado pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (2019), as conexões
mais velozes de internet no país estão localizadas em domicílios e regiões mais
elitizadas, com predomínio nas áreas urbanas em detrimento das áreas rurais.
Observa-se, dessa forma, a necessidade de se avançar nas discussões de inclusão
digital, de forma que todos possam ter acesso à internet de boa qualidade. A exem-
plo de outras IES, a UEMS procurou ofertar bolsas de auxílio aos acadêmicos para
a aquisição de pacotes de internet para o acompanhamento do ERE.
Ressalta-se que as respostas dos acadêmicos com relação às suas experiências
durante o período de ERE evidenciaram questões relacionadas ao acesso à internet
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e ao domínio de equipamentos e ferramentas digitais por docentes e discentes. Es-
sas questões foram as primeiras elencadas enquanto preocupantes no movimento
de mudança do ensino presencial ao remoto por conta da pandemia por Covid-19,
porém, a pesquisa desvelou outros fatores que vêm impactando no ERE vivenciado
pelos acadêmicos de Enfermagem da UEMS, como a dificuldade em realizar os
estudos no ambiente familiar, a falta de uma relação mais próxima com o docente
e as perspectivas didático-pedagógicas adotadas pelos professores.
Verifica-se a necessidade de maiores estudos desse processo, envolvendo todos
os atores inseridos e que já se encontram em um outro momento de desenvolvimen-
to do ERE. Persistem muitas dúvidas no cenário de pandemia, principalmente no
curso de Enfermagem, que depende de aulas práticas para o desenvolvimento de
competências e habilidades próprias à profissão e que exigem maior aproximação
com os usuários dos serviços de saúde.
Considerações nais
A pandemia pela Covid-19 trouxe a necessidade de reconfigurações na socie-
dade a partir de seus diferentes setores. A maioria dos países, incluindo o Brasil,
optou pela suspensão de aulas presenciais como uma das estratégias implementa-
das no sentido de diminuir a disseminação do vírus. Todavia, ao analisar as ações
desenvolvidas pelo MEC, observa-se que não foi desenvolvido um plano de ação em
âmbito nacional, ou oferecido suporte para as instituições e os sistemas de ensino
dentro de um plano emergencial de ensino remoto. Alguns marcos normativos e
regulatórios foram flexibilizados, mas coube às próprias instituições e aos sistemas
de ensino a viabilização do enfrentamento à situação. Nesse sentido, a UEMS,
como uma IES estadual, procurou se organizar adotando o modelo de ERE.
Ao realizar um levantamento junto aos acadêmicos de Enfermagem da UEMS
sobre as condições em que estes vêm desenvolvendo o ERE e as suas percepções a
respeito do processo, no período de março a agosto de 2020, foi desenvolvido este
trabalho. Os dados refletem que os acadêmicos vêm experienciando o ERE por
meio do uso de celulares e computadores, em ambiente familiar, tendo, consequen-
temente, cansaço e dificuldade de concentração para o desenvolvimento de seus
estudos. Em associação a essas questões, os acadêmicos apontaram dificuldades
com as ferramentas digitais e com atividades longas e complexas desenvolvidas
pelos docentes.
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Defende-se a primazia do ensino presencial, entretanto, entende-se que o ERE
vem sendo utilizado pelas IES como o recurso possível no sentido de manter o pro-
cesso educativo no contexto da pandemia por Covid-19. Dessa forma, evidencia-se
a necessidade de maiores estudos para acompanhar esse processo que vem se apre-
sentando como um desafio para os docentes, os discentes e as famílias.
Nota
1 Apesar de entendermos a relevância da participação dos acadêmicos indígenas, a demora nos trâmites
legais para a aprovação de pesquisa com essa população inviabilizou sua inclusão neste estudo.
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A experiência de acadêmicos de Enfermagem no ensino remoto durante a pandemia por Covid-19 (SARS-CoV2)
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Preeti Rajendran
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Mental resilience or mental asco? Covid-19 pandemic: ethnographic reections
of international students in higher education from Czech Republic1
Resiliência mental ou fracasso mental? Covid-19 pandemic: reexões etnográcas de
estudantes internacionais de ensino superior da República Tcheca
¿Resiliencia mental o falla mental? Pandemia Covid-19: reexiones etnográcas de estudiantes
internacionales de educación superior de la República Tcheca
Preeti Rajendran*
Abstract
This article makes a case for the existence of “Mental Resilience” in international students in the Czech Republic.
This article analyses international students and coping during the ongoing Covid-19 pandemic through a mix-
ture of quantitative and qualitative approaches. A quantitative survey was utilized, conducted by Klusáček and
Kudrnáčová (2020) in the Czech Republic with college students during the rst wave of the coronavirus pande-
mic. This article then goes beyond each quantitative graph that analyses social and mental factors, drawing on
7 full-time international students stories of their voices, through ethnographic and auto ethnographic stories.
The identity of international students is anonymous except for myself as the writer. The stories here span from
the onset of high alert and borders closing in March 2020 to November 2020. From the stories of international
students, it is clear that coping during these times is varied, complex, and situational depending on multiple
individual and contextual factors, however, the stories point to an existence of “Mental Resilience as the article
narrates coping processes.
Keywords: international students; Covid-19 pandemic; mental resilience.
Resumo
Este artigo defende a existência de “resiliência mental” em estudantes internacionais na República Tcheca. Este
artigo analisa os estudantes internacionais e o enfrentamento durante a pandemia de Covid-19 em andamento,
por meio de uma mistura de abordagens quantitativas e qualitativas. Foi utilizada uma pesquisa quantitativa,
conduzida por Klusáček e Kudrnáčová (2020) na República Tcheca, com estudantes universitários durante a pri-
meira onda da pandemia de coronavírus. Este artigo vai além de cada gráco quantitativo que analisa fatores
sociais e mentais, baseando-se em 7 histórias de vozes de estudantes internacionais em tempo integral, por
meio de histórias etnográcas e autoetnográcas. A identidade dos estudantes internacionais é anônima, exceto
eu, como escritora. As histórias abrangem desde o início do alerta máximo e o fechamento das fronteiras em
março de 2020 até novembro de 2020. A partir das histórias de estudantes internacionais, ca claro que o enfren-
* Researcher at Faculty of Social Sciences, Institute of Sociological Studies Charles University, Prague, Czechia. Educa-
tional Researcher, University Counselor – ALI; International Education University Guidance at Rethinking ‘Internatio-
nal’ Stories the other way around. University Counselor at UWC Mahindrea College. Orcid: https://orcid.org/0000-
0001-6533-2338. E-mail: preeti.rajendran@fsv.cuni.cz
Recebido em: 11/01/2021 – Aprovado em: 09/08/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i2.12189
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tamento durante esses tempos é variado, complexo e situacional, dependendo de vários fatores individuais e
contextuais, no entanto, as histórias apontam para uma existência de “resiliência mental”, à medida que o artigo
narra os processos de enfrentamento.
Palavras-chave: estudantes internacionais; pandemia de Covid-19; resiliência mental.
Resumen
Este artículo deende la existencia de “resiliencia mental” en estudiantes internacionales en la República Checa.
Este artículo analiza a los estudiantes internacionales y cómo afrontar la pandemia Covid-19 en curso a través
de una combinación de enfoques cuantitativos y cualitativos. Se utilizó una encuesta cuantitativa, realizada por
Klusáček y Kudrnáčová (2020) en la República Checa com estudiantes universitarios durante la primera ola de la
pandemia de coronavirus. Luego, este artículo va más allá de cada gráco cuantitativo que analiza los factores
sociales y mentales, basándose en las historias de sus voces de 7 estudiantes internacionales de tiempo com-
pleto, a través de historias etnográcas y autoetnográcas. La identidad de los estudiantes internacionales es
anónima, excepto yo como escritor. Las historias aquí abarcan desde el inicio de la alerta máxima y el cierre de
fronteras en marzo de 2020 hasta noviembre de 2020. A partir de las historias de estudiantes internacionales,
está claro que afrontar estos tiempos es variado, complejo y situacional dependiendo de múltiples situaciones
individuales y contextuales. Sin embargo, las historias apuntan a la existencia de “resiliencia mental”, ya que el
artículo narra los procesos de afrontamiento.
Palabras clave: estudiantes internacionales; pandemia de Covid-19; resiliencia mental.
Introduction: Covid-19 world pandemic and the Czech Republic
The novel coronavirus, Covid-19 first appeared in Wuhan, China before the
world realized the virus was at each of their doorsteps as well, having travelled
across borders as easily as the most privileged of passport countries. Covid-19 has
thus spared no country, currently running riot in the whole world with glaringly
high numbers in the ‘free world’. The stress is on the ‘free world’ because the world
of higher education has been built on the ideas and goals of how the ‘most develo-
ped’ have set standards for what learning and higher education should look like
and how it should be recognized. But with the onset of Covid-19 the idea that our
psyche as human beings lives and learns on a spectrum of opportunity from ‘under-
developed to developed’ has been contradicted on many levels.
Covid-19 has created the realization that during this pandemic we can no
longer say that one section of the world is more ‘progressive or developed’ than
the other in the handling of this pandemic. According to the World Health Organi-
zation (WHO) (2020), more than 100 Covid-19 potential vaccines are undergoing
human trials around the world. There is hope that a successful vaccine is on the
horizon in 2021.
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In the Czech Republic, the infection of Covid-19 was confirmed on March 1,
2020, with three cases. The country went into a first wave Covid-19 state of emer-
gency on March 12, 2020 and extended this state of emergency till May 17, 2020.
State of emergency meant restrictions on the free movement of people, closure
of most businesses, and all institutions and border closures. The Czech Republic
went back into the restrictive measure and state of emergency on October 5th,
2020, and is currently extended into November 2020 as it experiences a second
wave Covid-19.
Methodology
This paper analyses through a mixture of quantitative and qualitative
approaches the question, “How are international students in higher education in
the Czech Republic coping during this Covid-19 pandemic?”. This paper makes a
case for the existence of ‘Mental Resilience’ in international students in the Cze-
ch Republic. This paper draws on a quantitative survey conducted by Klusáček
and Kudrnáčová (2020) in the Czech Republic with College students during the
first wave of the coronavirus pandemic. The researchers analysed possible fac-
tors impacting the mental and social well-being of students during the first wave
of Covid-19. This paper then goes beyond each quantitative graph, drawing on 7
full-time international students’ stories of their voices, through ethnographic and
autoethnographic narratives. The identity of international students is anonymous
except for myself as the writer. The stories here span from the onset of high alert
and borders closing in March 2020 to now, November 2020.
What is Ethnography?
Ethnography is one of the most relevant methods in qualitative research, and
both psychology and sociology use qualitative methods in their research (HANSON,
2008). Its characteristic methodology consists of detailed descriptions of the situa-
tions and observable behaviors. It embodies what participants say, their experiences,
attitudes, beliefs, thoughts, and reflections uttered by themselves instead of their des-
criptions of themselves. Besides the use of observation and interview as assessment
or information collection techniques, ethnography as a paradigm and psychology and
sociology as scientific disciplines have in common the fact that they do not separate
people’s behavior from the context in which it is shown (MARCÉN et al., 2013).
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What is Auto-Ethnography?
In research that seeks to discover personal experience, there is a unique re-
lationship between researcher and participant, and the issue of voice arises. It
is suggested that the freedom of a researcher to speak as a player in a research
project and to mingle his or her experience with the experience of those studied is
precisely what is needed to move inquiry and knowledge further along. If a resear-
cher’s voice is omitted from a text, the writing is reduced to a mere summary and
interpretation of the works of others, with nothing new added (WALL, 2006). What
can be learned about methods in autoethnography is that it varies widely, from the
highly introspective, through more familiar approaches connected to qualitative
research, to somewhat experimental literary methods, experimental, at least, in
terms of thinking of writing as research (WALL, 2006).
The Czech Republic and Higher Education
The Czech Republic is part of the European Higher Education Area (EHEA)
and Bologna Process. This means that the Czech Republic along with 48 other cou-
ntries collaborates based on free movement between staff and students to increase
employability and exchange of faculty and staff learning with the European Union
(CZECH REPUBLIC, 2020).
The Bologna Process is an interesting one, for in many ways it allows the
opportunity of all students to learn within multiple borders of the European Union.
On the other hand, there is a neoliberal side to its function (KUSHNIR, 2020). The
voice of inclusion in the midst of neoliberalist noise in the Bologna Process writes,
Ball (apud KUSHNIR, 2020), who analyses the shift in governing of higher educa-
tion, states that competitive self-ambitions are replacing collective interests and
transforming them into commercial values.
The scholar maintains that the all-devouring focus on benchmarks, tests, and audits in
higher education is undermining the professionalism of education practitioners at all levels
of education; and the author calls for the need to reignite the focus on ‘real educational
work’ which is about ethics and morals (BALL apud KUSHNIR, 2015, p. 1046).
Functioning within the framework of EHEA, the Czech Republic is home to
several good universities drawing a significant number of students for both Euro-
pean Union and non-European Union passport holders to pursue affordable, En-
glish-taught quality higher education in the context of this small Central European
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country. The universities grapple and evolve within the EHEA identity drawing
international students with a definite neoliberal arc while delivering an affordable
overall valued higher education opportunity for many international students.
Under “normal circumstances” the “pre-Covid-19 era”, what I alongside many
international students that chose to study here have discovered, the study expe-
rience goes beyond the classroom right into the heart of each vibrant city within
the Czech Republic. Many times students around the world find that their univer-
sities are built outside the city centers, sometimes in areas that do not have easily
accessible public transport or proximity to big cities and airports. The beauty of
education in the Czech Republic is how the universities are part of not just the cen-
tral city architecture but intellect and learning are drawn in equal measure from
the classroom and within each city. Then under ‘normal’ circumstances the Bolog-
na process and the open borders within the EU have been valuable for students to
access learning in person beyond borders within the European Union.
However, today, with the onset of Covid-19 the world as we know it has dra-
matically changed with worldwide border shutdowns, including within the EU cou-
ntries, flights cancelled and we are seeing a slow decline in the world’s economy.
The world of education has gone from problems that often affected ‘certain sections
of the developing world’ to a worldwide contextual problem. The coping of students
in higher education has been catapulted from a primarily understood classroom-
-based learning to a massively online solo based learning experience with no cou-
ntry a ‘normal haven’. This has thrown the thought process of learning into new,
large-scale, unprecedented territories. This has also created the question of ‘Are
online classes at the same cost of in-person classes a fair charge’?
Mental resilience or mental ascos
Here in the Czech Republic, confusion, disbelief, fear, adaptability, resilience,
acceptance, at ease are some of the many emotions tied to the onset of the pan-
demic chaos and the continued months into seeing no concrete sign of success in
eradicating the repercussions of this pandemic.
“Should we stay or should we go?” was on the mind of international students here
in the Czech Republic when the pandemic grabbed the world. The reflections in this
paper generate thoughts on the coping precarity of the international student as Third
Country Nationals in the Czech Republic. According to the Ministry of the Interior
of the Czech Republic - MOI, a Third Country National is defined as a citizen of a
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state that is not a member of the EU nor a citizen of Iceland, Lichtenstein, Norway or
Switzerland (CZECH REPUBLIC, 2020). Something to note is that students as ‘Third
Country Nationals’ in the Czech Republic have to renew their student visa every year.
A survey was conducted by (KLUSÁČEK; KUDRNÁČOVÁ, 2020) on “Colle-
ge students during the first wave of the coronavirus pandemic”. The survey and
graphs have been translated from Czech to English using Google Translate. Their
research spanned 28 April to 19 May 2020 through online data which provided
insight into students and mental health here in the Czech Republic. Students from
7 universities in the Czech Republic were involved in contributing to online data.
The researchers Klusáček and Kudrnáčová (2020) examined the physical, mental,
and social well-being of students. The pandemic in the Czech Republic during the
period of the hardest measures was psychologically stressful.
The Graph 1 shows the sum index of the eight items of the Depression Scale from
the European Social Research – ESS (feeling sad, frustrated, anxious, isolated…). The
authors of the research compared the latest available data of the Czech general po-
pulation (ESS 7, 2014) with newly collected data concerning university students. Stu-
dents appear to have been more prone to depression on average between late April and
early May 2020 than the general population under normal circumstances.
Graph 1 – The sum index of the eight items of the Depression Scale from the European Social Research – ESS
Research source: (KLUSÁČEK; KUDRNÁČOVÁ, 2020).
Graph 1 translation Czech to English. Procenta = Percent.
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Student story 1: a student from India (Masters program)
I always wanted to go abroad to pursue my masters. I opted for Prague for my
masters for the fact that it is a very beautiful city and the benefits students get to
study in EU countries. I arrived on 1st October with lots of hope and excitement for
my new beginnings. From October till February, everything was going so smoothly.
My classes were going well, I was enjoying the interactions with my professors,
going out for trips with my friends, and tasting all the delicious European cuisines.
But as they say, every good thing comes to an end, around March the first case
of Covid was detected in the Czech Republic. I was a bit frightened, knowing the
seriousness of this virus, I consequently, started to take necessary precautions. I
went and bought 2 liters of sanitizer and sanitized my room. Soon the cases began
to rise and the Czech government was planning for a lockdown. I remember vivi-
dly, the government announcing lockdown, I rushed to the grocery store to stock
up. I wasn’t surprised to see that the store was packed with people, making it
heavily crowded. It was a total frenzy. I bought all the stuff and arrived back at
my apartment. Then my father contacted me from India telling me to come back
home immediately, he had already booked a ticket to India. Alas! all my efforts to
store up groceries went in vain. But, I was excited to go back to my parents during
this difficult time. Since the cases were spiking, all the universities in the Czech
Republic announced that the classes would be online. So I left for India. I returned
to Prague on 12th June, and I remember my arrival at Prague airport where the
concerned authorities were strictly checking the Covid test of all the incoming in-
ternational passengers. Luckily, I had a slip which I showed them indicating my
Covid negative status. I booked a cab and went to my apartment where I did a
strict 14 day quarantine. During this time, the cases reported in the Czech Repu-
blic were very low. After a few days, the Czech government eased the restrictions,
and to mark how well they had fought the pandemic, the government announced
that they would do a feast for the public on Charles bridge with a 500- meter long
table and 2,000 guests. However, the same week Prague reported many new Covid
cases. People seemed to be going back to ‘normal’. During this time, I was also
facing other problems with which I couldn’t cope, and because of which I had lots
of depression and anxiety. Subsequently, I started taking online counselling. From
June to August, my days were the worst. I started consuming alcohol more than
usual. I had no idea what was going around me. It was the worst nightmare I had
ever got but in real life, far from my family. Fortunately, during this time only one
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good thing happened to me, and that was I found another new apartment in the
city center with an amazing owner. My previous apartment was not good and a
little gloomy and the owner was also not very welcoming. I love my new cozy apart-
ment. It was also close to an amazing friend. While my anxiety and sadness were
growing it was my friend close by and my online counsellor that kept me sane. But
I desperately wanted to go back to India now as my mental health was not getting
better. My student visa was going to expire on 20th October and I had to apply for
my renewal as it’s advised in the Czech Republic to apply for it 2 months before
to the expiry. It was already the 1st week of September. But thank goodness, I got
the help of a visa agent to quickly reapply for a visa. He arranged everything and
my visa process started on time. While waiting for my visa, I got the news of my
grandmother’s death. This made me even more desperate to go back to India. To
get my visa fast so I can go back and be with my family in India.
‘S’ is still currently waiting on the renewal of her Czech student visa before
she can head to India.
Student story 2: a student from Chile (Masters program)
I first met ‘P’ in the university corridor of the university building both our
departments shared. This was a month before the pandemic hit. We had exchan-
ged numbers feeling a quick sense of camaraderie when we mutually laughed in
delight at a poster on the department bulletin board. I do not remember now what
that poster was advertising, but it started the two of us dialoguing. We exchanged
phone numbers to meet up for coffee and we did manage to meet once, but then
the Czech Republic went on a strict lockdown. Since then we have kept in touch
online. ‘P’ She volunteered to share her experiences over time from the onset of the
pandemic to now. ‘P’ and we had an online Google Meet hangout as she reflected
on her life here personally within the framework of being an international student.
She told me it was tough when the pandemic hit, she juggled a personal life back
home in Chile with an ailing parent, while living here alone in the Czech Republic.
She has a Croatian passport which allows her flexibility within the EU, but home
is very much Chile and the affordability of an EU passport was rendered a bit use-
less when the Czech Republic went on lockdown since it seemed at the time that
the Czech Republic was doing better than some western European countries. So
she stayed at home. But the stress of the pandemic was anxiety-inducing for her
as not only was part of her family in Chile, part of her family was in the USA. The
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pressure of her university study then was too much to handle and she decided to
take the semester off. Over time the pandemic was not getting better as the world
continued to be glaringly suffering from online news. ‘P’ said she has been seeing a
therapist and is currently on prescription medication to help deal with her stress
and anxiety and she is doing ‘okay’.
Quantitative survey continued: Klusáček and Kudrnáčová (2020) researchers
also measured loneliness using the University of California Los Angeles (UCLA)
loneliness scale, 37.5% of college students felt lonely (scores 8 to 12).
Graph 2 – The scores of the three-item scale of loneliness UCLA (3 = does not feel lonely at all, 12 = feels
very lonely)
Research source: (KLUSÁČEK; KUDRNÁČOVÁ, 2020).
Graph 2 translation Czech to English. Osamělost = Loneliness.
Student story 3: a student from the United States of America (Ph.D. program)
‘L’, an African-American studying in the Czech Republic reflected on his life
as a student during the pandemic. For a self-identified introvert who loves to
spend more time alone than with a group of people, ‘L’ initially proclaimed that the
lockdown in Prague suited him well. He did not have to force himself to interact
with people. He told me he could spend all the time he wanted in his apartment,
blogging, reflecting, collecting research for his dissertation through online conver-
sations with people and he was not forced to have in-person conversations with
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people unless he needed to. As the weeks turned into months, his forced isolation
started to wear him down a bit. He wondered about ‘home’. But he said to me:
I think in a nutshell , it makes the isolation you already feel, a little more here in the Czech Re-
public. Everyone is wary of strangers these days, and when you’re different... in a way it makes
international students and expats closer than ever. And if ‘home’ was better (you know what I
mean) then it might be easier. ‘Home’ as you know is not a ‘better place’, especially right now.
So, I am choosing to look at all this time on my hands to ‘get sh**t done.
Quantitative survey continued, Klusáček and Kudrnáčová (2020), the resear-
chers, also tried to map the financial situation of university students before the
outbreak of the coronavirus crisis (before restrictions and lockdown set in) and
during it in early May. They found that financial problems did increase from 4.2%
to 14.8%, decreasing financial security in the students.
Graph 3 – To what extent do you agree with the following statement? “I had sufficient funds to cover my
monthly expenses”
Research source: (KLUSÁČEK; KUDRNÁČOVÁ, 2020).
Graph 3 translation Czech to English. Rozhodně souhlasí= Strongly agree; Souhlasí = Agree; Ani souhlas, ani nesouhlas = Neither
agree nor disagree; Nesouhlas = Disagree; Rozhodně nesouhlas = Strongly disagree.
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Student story 4: a student from Brazil (Ph.D. program)
I’m ‘J’. I’m a Ph.D. student at Charles University in Prague. My current pro-
ject examines the lives and experiences of football and futsal migrant athletes
in Central and Eastern Europe. When the Covid-19 pandemic reached the Czech
Republic, I had just moved into a permanent place in Krakow. I was planning on
doing fieldwork in Poland, and taking courses at the Jagiellonian University. My
life in Poland up until that moment was living in a hostel [I can’t remember the
name of it, but it was super central], going to courses, planning fieldwork, organi-
zing my attempt to publish. I guess I made my research project more interesting
to me in this way, I “follow” sports migrants, and used academic mobility periods
to answer my research questions. While I could have stayed in Poland when the
classes switched to an online mode, some friends told me to come back to the Czech
Republic because the borders were going to close. So I arranged everything with
the landlady. She was kind enough to return the rent I had paid her. I guess we’re
talking about March 2020. It was the most troublesome period. I was thinking
about coming back to my home country. I started feeling a lot of anxiety about my
mother. She lives alone, and I guess that was a critical moment for me. She raised
me as a single mother, and there is always this feeling that I will come back to take
care of her when she gets older. Surprisingly, my mom reacted most calmly, and
she did help me going through these moments. I remember I started to drink a lot
at this point, and I was not the most motivated student to finish with the courses
in Krakow. Slowly, I came back to “myself”, my supervisor just gave me a lot of
advice via email. I used the first wave of Covid-19 to look for more data online, and
I managed to write the remaining two chapters of my thesis. But I guess framing
things in this way, “I managed”… is unrealistic. I could “manage” because I recei-
ved the rent money in Poland back, that gave me some money to get by, I have a
steady source of income, my project is funded, I can study from home, and I still
have a deadline to finish a thesis. Now that we see a second wave, I confess I feel a
lot more pessimistic about “the future”. Maybe my pessimism will eventually fade
away when a vaccine is out there. I certainly hope so.
Quantitative survey continued: Klusáček and Kudrnáčová (2020), the resear-
chers continued to study ‘study load and stress’ possibly created by the difficulty of
meeting students and professors after the onset of the pandemic and when full-ti-
me teaching was disrupted at universities. It was found that there was an increase
of 4.5 hours per week during the pandemic of teaching hours and, to a bigger ex-
tent, personal study time was increased to 7.8 hours per week.
501
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Graph 4 – “How many hours did you normally spend on teaching, personal study, and paid work?”
Research source: (KLUSÁČEK; KUDRNÁČOVÁ, 2020).
Graph 4 translation Czech to English. Týdenní hodinová dotace = Hours weekly; Kdy = When; Před pandemií = Before pandemic;
během pandemie = After pandemic; Počet hodin týdně = Average weekly hours; Prezenční výuka = Offline courses; Práce = Paid
job; Osobní studium = Personal study time; Online výuka = online courses.
Student story 5: a student from China (Masters program)
‘N’ reflected on her experiences here once the Czech Republic went on lockdo-
wn. She said:
My personal opinion , especially as an international here, we don’t have much contact with
others other than our schoolmates, so we feel alone and lonely often when we are restricted to
our housing. Online courses are not as efficient especially to us social sciences students, due
to a lack of face-to-face discussion. Recreational life has been greatly impacted too so most of
the time I am just confined to my dorm room and my income has decreased. I speak for several
international students who have experienced the same as me and have lost part-time jobs or
have fewer opportunities. As far as I know, quite a few international students are struggling
with depression. I don’t feel different as a student here bcz of my nationality (I do get asked
questions about the communist regime and some stereotyped Chinese society tho). but about
studying here I feel it’s way more like living/studying in Prague than studying at my university.
The integration and interaction among faculties are insufficient and bcz of some other reasons
too, I don’t feel the school spirit. and to know non-schoolmate ppl is even easier than to have
connections with students from other faculties.
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Quantitative survey continued: Klusáček and Kudrnáčová (2020), researchers
also found a marked difference between university faculties in their approach to
dealing with the disruptions in regular teaching styles. This played a part in how
students dealt with the perceived level of study load and stress. There was the pos-
sibility that with the lack of coordination and clarity in teaching delivery, students
created their versions of study time and keeping up with class content on their
own and is seen in Graph 05 when the students indicated a progressive increase
in study load stress which was similar to the rise in stress during the pandemic.
Graph 5 Averages of perceived study load and stress according to the difference in the length of personal
study before and during the pandemic (in hours)
Research source: (KLUSÁČEK; KUDRNÁČOVÁ, 2020).
Graph 5 Czech to English translation. Průměry pociťovaného zatížení = Average perceived load; Průměry pociťovaného stresu =
Average perceived stress.
503
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Student story 6: a student from Indonesia (Ph.D. program)
A student from Indonesia, ‘R’ studying in the Czech Republic was content
thinking of remaining in the country while waiting out the pandemic. But he did
periodically worry about his aging mother back in Indonesia and the lack of proper
family support for her. He said he was quite content with having online classes
here and was keeping busy. Most recently, with several months passing by with no
sign of the pandemic getting better with Europe’s second wave, ‘R’ tells me:
I am now thinking of going back to Indonesia, collecting my research within Indonesia, and
being with family, and then we’ll see. I can’t bear the idea of spending Christmas here with
everything closed and restrictions on meeting people, it would be sad. I am better off being at
home. I can’t concentrate on my research and online classes here. I plan to go to Indonesia
before Christmas and come back in March.
A few days later ‘R’ called me to tell me he found out his research stipend
will not be enough to cover his expenses in fieldwork in Indonesia and with the
economy the way it is, he is unsure how best to navigate staying in the Czech
Republic or going back to Indonesia. ‘R’ is also waiting on the renewal of his Czech
student visa feeling uncomfortable about leaving on a temporary short-term visa
for Indonesia with the current unreliable rules of borders opening and closing but
also keeping in mind how best to collect data for his research project from within
Indonesia.
Quantitative survey continued: Klusáček and Kudrnáčová (2020), the resear-
chers also found that university faculties that had the could go straight into online
teaching created a scenario where students were more at ease and indicated lesser
extended study periods and lower study stress as indicated in Graph 06.
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Graph 6 – Averages of perceived study load and stress according to the ratio of the increase in online tea-
ching and persola study before and during the Covid-19 pandemic
Research source: (KLUSÁČEK; KUDRNÁČOVÁ, 2020).
Graph 6 translation Czech to English translation. Průměry pociťované zátěže = Average perceived load; Průměry pociťovaného
stresu = Average perceived stress.
The quantitative survey above indicates, the general student well-being wi-
thin the students who participated in the Czech Republic did show a marked de-
crease overall in multiple areas.
Student story 7: (author) this is my story so far (Ph.D. program)
My passport is from India, I was born in Papua New Guinea and I am here in
the Czech Republic researching higher education migration from Asia, Latin Ame-
rica, and Africa to what was historically Czechoslovakia while looking at current
higher education migrations to the Czech Republic. The year 2019-2020 seemed
like a regular start to any new academic year for all students involved. I joined the
many students in the Prague Czech Republic in October 2019 a few short months
before the pandemic took hold of the world and the Czech Republic went on lock-
down.
505
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For an international student who grew up in a developing context that was
postcolonial and widely ‘English speaking’, being a newcomer to a primarily Czech
speaking country where English is a second language was exciting and a challen-
ging welcome. As I think back to a few months before the pandemic hit the Czech
Republic, some several interesting thoughts and emotions made up my experience:
1. The excitement of learning a new language;
2. The confusion of buying groceries where the language is not ‘English’;
3. The navigation around the city trying to learn the different trains, trams,
metros, and districts or city locations and pronouncing Czech names of va-
rious destinations within the Czech Republic;
4. Navigating the immigration government offices where the information was
primarily in Czech though English translations were available if a student
learned where to look and there was extra excitement if the immigration
officer spoke English;
5. Classroom education was in Czech and English and it was fun.
So, the joys of new experiences, confusion in language translation, and con-
tinued learned resilience seemed like a ‘normal’ cross-cultural experience to have
overall with its ups and downs within any new country. My mental state was
‘normal’ with the stresses and excitements of the new cross-cultural experiences.
Then came the pandemic, borders shut down and utter confusion around the world
started. I had just planned a trip to do some Ph.D. research in Ecuador in March
2020. Just before I was to fly out, Ecuador shut their borders and the Czech Repu-
blic followed. It’s November 2020 now and my visa has expired for Ecuador. The
Czech Republic is going through a second wave of Covid, more severe this time
and we are back on restrictions. Like me, many students have had to halt their
fieldwork data collection. It has been easier for me as I am using ‘Ethnography’
and can interview people online. However, the pandemic has created a different
context within the Czech Republic that will influence how my higher education
migration research will be narrated. In terms of my personal life, I miss my family
in India and we stay connected through online channels regularly. We hear there
might be a positive outcome for a vaccine in the next few months, but at this point,
everything around the world is still in the ‘new normal chaos’. When I was asked to
consider writing a paper on Education and Health, I knew an ethnography in the
Czech Republic, my current residence would work best. This paper would not have
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been possible without access to the internet to reach out to each of the full-time
international students like me, living during this pandemic in the Czech Republic.
Analysis
In “Covid-19, higher education and the impact on society: what we know so
far and what could happen”, (HUGHES, 2020) points out that right now, Covid-19
is threatening the cohesiveness of human relationships: lockdowns are creating
a fractured world of isolated individuals experiencing fewer opportunities to con-
gregate than ever before. “The consequences could be dramatic, exacerbating the
type of atomized society that the great French sociologist Emile Durkheim warned
against” (HUGHES, 2020, p. 1).
While the world is reeling from outbreaks of the Covid-19 pandemic with the
ongoing infection rate, it is practical to say that even post-Covid-19 our world has
taken a massive shift in every possible way conceivable. It is not possible to fully
comprehend and understand right now how and what will get affected long term
once a successful vaccine to combat Covid-19 is discovered. However, keeping in
mind the mental pressures and push toward more isolated living, this paper hoped
to understand if a case could be made that shows there is mental resilience in the
face of coping as an international student from overseas living in the Czech Repu-
blic during the Covid-19 pandemic.
The world is full of adaptable human beings making up ways to cope in little
and big ways to keep surviving, evolving, while at the same time the pandemic is
forcing the world to re-think and re-develop. From the stories of international stu-
dents, it is clear that coping during these times is varied, complex, and situational
depending on multiple individual and contextual factors. While certain references
can be drawn from the fact that all student narratives depicted here deal with
incredible themes of loneliness, anxiety, stress, and a lack of in-person community,
the international student narratives indicate resilience, the ability to function,
think, plan and reach for available resources.
We cannot forget that neoliberal frameworks of higher education have for the
sake of large monetary gains, allowed access to education for international stu-
dents from overseas. What this points to is an inner resilience within an interna-
tional student to leave their sense of comfort and community in one country for a
further desirable education and opportunity in another country and institution. In
the international student stories above, 4 out of 7 students are continuing to stay
507
ESPAÇO PEDAGÓGICO
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in the Czech Republic during this pandemic, far from their passport country and
family. So when faced with a pandemic of this magnitude, international students
already have resources in place to allow survival within new places or pandemic
isolation for a long time.
Nota
1 is work was supported by the grant SVV 260 596.
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508 ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Elita Betânia de Andrade Martins, Juliana Campos Schmitt, Alessandra Maia Lima Alves
v. 28, n. 2, Passo Fundo, p. 508-533, maio/ago. 2021 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Saúde docente: o possível impacto das condições de trabalho no ensino
remoto emergencial
Salud docente: el posible impacto de las condiciones de trabajo en la educación
remota de emergencia
Teaching health: the possible impact of working conditions on emergency remote teaching
Elita Betânia de Andrade Martins*
Juliana Campos Schmitt**
Alessandra Maia Lima Alves***
Resumo
O texto apresenta reexões sobre as condições de trabalho de professores da educação básica no ensino remoto
emergencial, durante a pandemia da Covid-19, desenvolvidas a partir da realização de uma pesquisa que obje-
tivou identicar as percepções dos professores da educação básica sobre o seu trabalho no referido contexto.
O estudo é de caráter quantitativo-qualitativo, com o emprego de um questionário online, respondido por 110
professores de um município de Minas Gerais, e contou com o apoio de teóricos como Ball, Fairclough, Irigaray,
Johnson, Zhang, etc., e do Modelo Teórico Job Demand Resources, de Bakker e Demerouti. Os dados indicaram
o despreparo dos professores para lidar com as demandas do novo contexto, sem autonomia para lecionar e
com seu trabalho expressamente controlado, sem aporte físico e mental e com sobrecarga de tarefas, revelando
ainda a presença de sentimentos como cansaço, angústia e preocupação, que indicam uma linha tênue entre as
condições de trabalho e o adoecimento do professorado, em um contexto de muita demanda e pouco recurso
para lecionar.
Palavras-chave: ensino remoto emergencial; Covid-19; condições de trabalho docente.
* Professora Adjunta da Faculdade de Educação (UFJF), atuando na disciplina de Políticas Públicas e Gestão escolar.
Doutora em Educação pela UFJF (2014), dedica seus estudos ao tema autonomia docente. Coordenadora do grupo
de pesquisa GESE, que discute questões ligadas a administração e sistemas de ensino. Tem experiência na educação,
nas áreas de políticas públicas educacionais, gestão e formação de professores. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-
0070-6380. E-mail: elita.martins@uf.edu.br
** Doutoranda e mestre em Psicologia (UFJF/2017), graduada em Letras (UFJF/2014) e graduanda no curso de Pedago-
gia na UFJF. Membro do CogLin (UFJF/Psicologia), Grupo de Pesquisa Cognição e Linguagem. Na área de Psicologia,
investiga os processos subjacentes à leitura e a inuência das funções executivas na compreensão de textos em crian-
ças com e sem TDAH. Na área da Educação, estuda as condições do trabalho do professor e é membro do grupo GESE
(UFJF/educação). Orcid: https://orcid.org/0000-0003-4979-7623. E-mail: julianaschmittuf@hotmail.com
*** Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal de Viçosa (2003), mestra em Educação pela Universidade Federal
de Juiz de Fora (2008) e doutora em Pós-Graduação em Educação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2015).
Professora efetiva da educação básica – Colégio de Aplicação João XXIII/UFJF, professora do mestrado prossional do
Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação, atuação – Universidade Aberta do Brasil. Tem experiência na
área de Educação, com ênfase em Educação Pré-Escolar, atuando principalmente nos seguintes temas: políticas públi-
cas, educação infantil, políticas educacionais, formação de professores e aprendizagem. Orcid: https://orcid.org/0000-
0002-7279-8766. E-mail: alesandramaialima@outlook.com
Recebidoem: 30/10/2020 – Aprovado em: 12/08/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i2.11804
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Saúde docente: o possível impacto das condições de trabalho no ensino remoto emergencial
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Resumen
El texto presenta reexiones sobre las condiciones laborales de los docentes de educación básica en la Enseñan-
za Remota de Emergencia, durante la pandemia del Covid-19, desarrolladas a partir de unainvestigaciónque
tuvo como objetivo identicar las percepciones de los docentes de educación básica sobre su labor en el con-
texto mencionado. El estudio es cuanti-cualitativo, con el uso de un cuestionario on-line, respondido por 110
docentes de un municipio de Minas Gerais y contó con el apoyo de teóricos como Ball, Fairclough, Irigaray, John-
son, Zhang, etc. y el Modelo TeóricoJob Demand Resourcesde Bakker y Demerouti. Los datos indicaron la falta
de preparación de los docentes para afrontar las demandas del nuevo contexto, sin autonomía para enseñar y
con su trabajo expresamente controlado, sin apoyo físico y mental y sobrecarga de tareas, revelando la presencia
de sentimientos como cansancio, angustia y preocupación, lo que indica una delgada línea entre las condiciones
laborales y la enfermedad de los docentes en un contexto de alta demanda y pocos recursos para enseñar.
Palabras-clave: educación remota de emergencia; Covid-19; condiciones laborales docente.
Abstract
The current text presents reections on the working conditions of basic education teachers in Emergency Remo-
te Teaching, during the Covid-19 pandemic. The reections were developed from a survey that aimed to identify
the perceptions of basic education teachers about their work in the present context. The study is quantitative
and qualitative, using an online questionnaire, it answered by 110 teachers from a municipality in Minas Gerais.
The study was supported by theorists such as Ball, Fairclough, Irigaray, Johnson, Zhang, etc., and the Theoretical
Resources Model of Employment Demand of Bakker and Demerouti. The data have pointed to the lack of prepa-
ration of teachers to deal with the demands of the new context, they were without autonomy to teach and their
work expressly controlled, they were without physical and mental support and they have an overload of tasks,
it was revealed feelings such as tiredness, anguish and worry, which indicates the ne line between working
conditions and the illness of teachers in a context of high demand and few resources to teach.
Keywords: emergency remote teaching; Covid-19; working conditions teacher.
Introdução
Por meio deste artigo, propomos uma reflexão acerca do trabalho de docentes
da educação básica no contexto pandêmico que nos assola e ponderamos, com base
em teóricos da área e dados preliminares de uma pesquisa realizada em uma cidade
de médio porte do estado de Minas Gerais, que os docentes podem ser alvo de adoe-
cimento devido às suas condições de trabalho. Esses profissionais atuam na linha
de frente, com diversas mudanças em seu modo e seu meio de trabalho, reféns de
portarias e decretos do governo, sem autonomia para lecionar e com seu trabalho
expressamente controlado; muitas vezes, sem preparo e amparo emocional, físico
e mental para atuar. Partindo da premissa de que as atuais condições de trabalho
docente podem desencadear o adoecimento da referida categoria, depreende-se a
necessidade de dar visibilidade ao possível adoecimento docente decorrente das
condições de trabalho vivenciadas no atual contexto e fomentar discussões com o
intuito de instrumentalizar a categoria na luta por seus direitos.
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Elita Betânia de Andrade Martins, Juliana Campos Schmitt, Alessandra Maia Lima Alves
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Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a Covid-19 é uma doen-
ça causada por um coronavírus, o SARS-CoV-2; as pessoas infectadas apresentam
doenças respiratórias de leves a moderadas. Assim, faz-se necessário que os indiví-
duos se mantenham em isolamento devido ao fácil contágio e à rápida transmissão,
tendo em vista que o vírus se espalha através de gotículas salivares. Desse modo,
torna-se impraticável o ensino presencial nas escolas e universidades, assim como o
funcionamento de outros espaços em que há aglomeração de pessoas. Devido à difi-
culdade de combater a doença diante do desconhecimento de medicamentos que de-
monstrassem eficiência, a principal alternativa adotada foi o distanciamento social,
a fim de prevenir e diminuir os casos e a demanda por vagas no serviço de saúde.
Há de se destacar que, diante do exposto, tem-se uma faca de dois gumes: de um
lado, a educação e, de outro, a saúde. A Constituição federal (CF) (BRASIL, 1988)
assegura como direitos sociais, dentre outros, a educação e a saúde como fundamen-
tais. Entretanto, foi necessária a adoção de medidas de contenção do coronavírus em
diversos contextos, dentre eles, o educacional, interferindo na garantia desse direito.
Ressaltamos que, além de (BRASIL,1988) reconhecer a saúde como um direito de
todos, a CF atribui ao Estado o dever de garantir políticas que reduzam o risco de
doenças, como destacado no art. 196: “A saúde é direito de todos e dever do Estado,
garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de
doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para
sua promoção, proteção e recuperação” (BRASIL, 1988, não paginado).
Assim, dentro do contexto de isolamento, as aulas presenciais foram suspen-
sas em todo o país e o Ministério da Educação, por meio da Portaria n. 343, de 17 de
março de 2020, autorizou, em caráter excepcional, a substituição das aulas presen-
ciais por aquelas que utilizassem meios e tecnologias de informação e comunicação.
Esta seria uma alternativa com intuito de cumprir uma outra obrigação constitu-
cional, a de assegurar a educação como um direito de todos, conforme estabelecido
no art. 205 da CF (BRASIL, 1988). Todavia, a Portaria n. 343/2020 não determinou
que essa medida tivesse que ser seguida, tratando-a como uma opção: “§ 4º As
instituições que optarem pela substituição de aulas deverão comunicar ao Minis-
tério da Educação tal providência no período de até quinze dias”. Assim sendo,
nenhuma escola se viu obrigada a adotar a educação online. Entretanto, diante da
pressão exercida pelos responsáveis pelos alunos, sobretudo os da rede particular,
que ameaçaram não pagar a mensalidade ou reduzi-la, o uso dos recursos online
passou a ser justificativa para a não suspensão dos pagamentos das mensalidades,
já que o serviço foi mantido.
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Nesse contexto, o fortalecimento da ideia de educação como uma mercadoria
que é entregue conforme pagamento ganhou tamanha força que o Programa Esta-
dual de Proteção e Defesa do Consumidor (Procon-MG), através da Nota técnica n.
1/2020, publicada em 06 de abril de 2020, recomendou a suspensão dos contratos no
caso de escolas de educação infantil diante da “impossibilidade de oferta de serviço
na modalidade não presencial”. Tal recomendação foi posteriormente questionada,
quanto à competência do órgão para tal orientação e sobre a constitucionalidade
da medida.
Na rede pública, apesar de as famílias não terem o poder de pressão das men-
salidades, os governantes sentem a necessidade de dar satisfação à opinião públi-
ca, ou ainda, pelo fato de estarem ligados a grupos empresariais com interesse no
“mercado da educação básica”, aproveitam para expandir a proposta de educação
online, mesmo com todas as dificuldades enfrentadas pelo alunado atendido pelas
escolas públicas.
Assistimos, então, ao crescimento da oferta de aulas por meio de platafor-
mas digitais, pertencentes a grupos tais como Microsoft, Google, Zoom e Facebook,
que, juntos com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e
a Cultura (UNESCO), participaram de uma coalizão global para a educação, sob
o lema “#AprendizagemNuncaPara”, com o objetivo de apoiar os países a ampliar
suas melhores práticas de aprendizagem a distância e atingir crianças e jovens em
maior risco (UNESCO, 2020).
A proposta de assegurar o direito à educação, mesmo que a distância, modifi-
cou a forma de lecionar e aprender, exigindo dos professores uma reestruturação
na forma de ensinar, sendo obrigados a adaptarem o processo de ensino e apren-
dizagem no ambiente virtual; o próprio papel do professor se intensificou, qualifi-
cando-o como protagonista, uma vez que a situação impôs que ele tivesse domínio
sobre o processo de concepção, desenvolvimento e implementação de suas aulas
online, muitas vezes sem ter sido preparado para isso. Desse modo, eles se viram
obrigados a reinventar o seu ofício, seja agindo no preparo de atividades que manti-
vessem os alunos estimulados, seja respondendo e-mails, telefonemas de diretores,
pais e alunos; devendo estar disponíveis para esclarecer as dúvidas de todos. Isso
impactou diretamente no trabalho docente, imputando maior responsabilização e,
por conseguinte, maior desgaste laboral.
Cabe salientar que os recursos tecnológicos nem sempre são familiares aos
professores, como revela o Parecer CNE n. 11/2020, o qual, a partir de pesqui-
sas realizadas por diferentes institutos, citou que apenas 39% das redes de ensino
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ofereceram formação para as atividades não presenciais e 83% dos professores se
sentiram despreparados para o ensino virtual. A falta de capacitação dos docentes
com esses recursos tecnológicos também foi evidenciada na pesquisa que vem sen-
do desenvolvida por nosso grupo e sobre a qual trataremos adiante.
Outro fator que merece atenção é o local no qual o professor passou a desen-
volver o seu trabalho. Mota (2012, p. 24) destaca que é “de extrema importância
localizar o trabalho docente no espaço em que ele é executado”. Durante o ensino
remoto emergencial (ERE), as atividades foram, na maioria das vezes, desenvolvi-
das na casa do docente, misturando espaço de vida privada e espaço de trabalho,
o que pode tornar ainda mais complexa suas atividades, principalmente para as
mulheres, que historicamente exercem dupla jornada. No ERE, a dupla jornada
pode acontecer simultaneamente, havendo, dessa forma, uma sobrecarga.
É preciso salientar que, apesar de o ensino presencial ter migrado para um
ensino virtual, o que comumente se denomina educação a distância (EaD), há dife-
rença entre tal modalidade e o ERE. O primeiro já é estudado há décadas, havendo
planejamento sistemático, um modelo de design e desenvolvimento (BOZKURT;
SHARMA, 2020), já o segundo não foi planejado com antecedência, sendo caracte-
rizado por uma mudança repentina do ensino tradicional para o remoto. A grande
diferença é que a EaD sempre foi uma opção alternativa em termos de educação,
ao contrário do ERE, que vem sendo apresentado como “a alternativa” em um con-
texto de pandemia, causando maior impacto ainda no processo de ensino e aprendi-
zagem. Acreditamos que o ERE deva ser encarado como uma “solução” temporária
para um problema imediato.
O que as pesquisas evidenciam?
Motivados a conhecer a realidade dos professores que estão atuando no ERE,
nosso grupo de pesquisa passou a desenvolver uma investigação1 de cunho quan-
titativo-qualitativo, com o objetivo de identificar as percepções dos professores da
educação básica que atuavam no ERE. Apoiados no ciclo de políticas apresentado
por Ball, entendemos que uma política não é simplesmente implementada, ela pode
ser reinterpretada e sofrer alterações por diferentes sujeitos nos diferentes contex-
tos: o de influência, no qual as políticas e os discursos políticos são construídos; o
de produção de texto, em que são construídos os textos políticos em suas diversas
formas (textos legais, textos políticos, pronunciamentos oficiais, etc.), e o contexto
de prática, em que a política é interpretada e produz seus efeitos.
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Conforme Mainardes (2006, p. 53),
[...] esta abordagem, portanto, assume que os professores e demais profissionais exercem
um papel ativo no processo de interpretação e reinterpretação das políticas educacionais
e, dessa forma, o que eles pensam e no que acreditam têm implicações para o processo de
implementação das políticas.
Assim, entendemos que, para compreender alguns dos possíveis efeitos da
adoção do ensino remoto como estratégia de manutenção do processo de escolari-
zação, em tempos de pandemia, era fundamental ouvir os professores que estavam
atuando diretamente no contexto da prática, representado pela escola. Para cum-
prir tal propósito, aplicamos questionários por meio da plataforma Google Forms e
realizamos entrevistas via telefone.
Iniciamos o estudo convidando cinco professores a responderem o questionário
online e, por meio da técnica snow ball sampling, eles ficaram incumbidos de con-
vidar mais dois professores que atendessem aos critérios de inclusão: ser professor
da educação básica de Juiz de Fora e estar lecionando online durante o período de
pandemia. Dessa forma, obtivemos 110 questionários respondidos no período de
maio a agosto de 2020.
Para análise dos dados obtidos, considerando que as políticas se expressam
em textos, contamos com as contribuições de Fairclough (2016), com a análise de
discurso para a interpretação das informações obtidas. O referido autor destaca
que várias disciplinas reconhecem que as mudanças linguísticas estão ligadas a
processos sociais e culturais mais amplos, refletindo mudanças sociais. Assim, os
discursos dos professores expressos em suas respostas escritas nas entrevistas e
nas notícias e legislações revelaram um pouco do contexto social que nos permitiria
esboçar de modo crítico a realidade na qual os professores estavam desenvolvendo
suas atividades online.
Dentre os respondentes de nossa pesquisa (2020), 75,5% eram mulheres, pre-
dominando a faixa etária de 30 a 44 anos (61,8%); com significativa experiência
profissional, 39,1% possuindo entre 8 e 15 anos de atuação, 21,8% de 16 a 25 anos e
13,6% com mais de 25 anos de docência. Observamos que 56,4% atuavam nos anos
iniciais do ensino fundamental. Todos eram devidamente habilitados para a função
e 55,7% declararam possuir especialização, 26,4% mestrado e 4,5% doutorado.
As entrevistas foram realizadas com os cinco primeiros participantes do ques-
tionário, que, ao longo de cinco dias, em horários previamente estabelecidos, conta-
vam um pouco de sua rotina. Entrevistamos, também, representantes do sindicato
dos professores e patronal, com o objetivo de reunir informações que nos auxi-
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liassem a compreender melhor o contexto. Entretanto, no presente texto, foram
abordados os dados obtidos nos questionários, em especial aqueles que se referem
às condições de trabalho docente, e à luz desses dados trazemos à baila as possíveis
consequências que as condições de trabalho no ERE podem acarretar na saúde
docente. Com o objetivo de fomentar a discussão, também são discutidos os dados
coletados pelo Instituto Península (2020), da pesquisa intitulada Sentimento e per-
cepção dos professores brasileiros nos diferentes estágios de coronavírus.
É importante destacar que, tratando-se do ERE, as condições de trabalho dos
professores devem ser levadas em consideração por todas as redes de ensino, uma
vez que nem todos possuem equipamentos necessários e adequados, e isso não de-
veria ser de responsabilidade dos empregados, mas do empregador. Como cons-
tatado pelo Instituto Península (2020), 99% dos professores utilizavam o celular
para trabalhar; 90% usam o notebook e 46% o desktop. Houve, ainda, casos como o
noticiado em São Paulo, em que professores foram pressionados a disponibilizarem
seus telefones particulares para que os alunos esclarecessem suas dúvidas. Isso
mostra que os professores acabam sofrendo interferência da escola até mesmo em
sua vida particular. Como constatado em nossa pesquisa (2020), eles revelaram
que recebiam dúvidas de alunos até mesmo no fim de semana e em horários alter-
nados do dia, tendo a sua jornada de trabalho sem horário para terminar.
Um dos professores que responderam o questionário de nossa pesquisa (2020)
expôs a exaustiva jornada e suas possíveis consequências:
Sinto-me trabalhando em tempo integral, apesar da rotina estabelecida. Isso tem causado
um esgotamento mental bastante acentuado, junto das dores físicas pelo processo ergonô-
mico estar acontecendo de forma errada. (Prof. 1132, Questão 6.3).
Sublinha-se que, com o objetivo de tentar coibir situações em que os profes-
sores não apresentassem ferramentas para executar o seu trabalho, o Sindicato
dos Professores assinou, junto com o Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino
Privados do município pesquisado, uma recomendação conjunta que, entre outros
pontos, destaca:
Se os professores não dispuserem de equipamentos eletrônicos para a preparação das aulas
e transmissão dos arquivos de dados, voz e/ou imagem, deverá o estabelecimento de ensino
disponibilizar os equipamentos necessários, sob forma de comodato, bem como ressarcir o
professor relativamente a eventuais custos adicionais, decorrentes da utilização de banda de
internet ou pacote de dados para fins de transmissão de dados (SINPRO/JF, SINEPE, Reco-
mendação conjunta, 2020, não paginado).
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Diante do exposto, acreditamos que o mínimo que devia ser fornecido ao pro-
fessor seria ferramentas para que ele exercesse o ERE, o que já demandaria dele
a aprendizagem de novos recursos e mais tempo para preparar as suas aulas, pois
muitos ainda precisavam aprender a utilizar as ferramentas online (Google Clas-
sroom, YouTube, Instagram, Moodle). No caso da realidade pesquisada, o fato de
61,8% terem de 30 a 44 anos pode indicar, ainda, uma familiaridade menor com os
recursos tecnológicos, em comparação ao conhecimento que seus alunos podem pos-
suir, afinal, segundo Quintanilha (2017), a chamada geração Alpha (nascida a partir
de 2010), que já compõe a educação básica, é a primeira a ser “100% nativo digital”. As
dificuldades tendem a se agravar quando consideramos que 60,9% dos respondentes
afirmaram não ter concluído nenhum curso sobre educação online. Isso, por si só, já
altera a relação do professorado com o seu trabalho, devido ao aumento das deman-
das que se tornam necessárias para o desenvolvimento desse novo modelo de aula.
De acordo com Demerouti, Bakker, Nachreiner e Schaufeli (2001), as deman-
das são aspectos físicos, psicológicos, sociais ou organizacionais relacionados ao
trabalho e que requerem habilidades físicas e/ou psicológicas do indivíduo ou um
esforço por parte dele para cumpri-los. Como exemplos, citam-se elevada pressão
no trabalho, ambiente físico desfavorável e/ou exigência emocional nas interações
com os alunos/responsáveis. Já os recursos são provedores de energia e de suporte
psicossocial ao indivíduo, que se referem aos aspectos físicos, psicológicos, sociais
ou organizacionais do trabalho. Vale destacar que, segundo dados do Instituto Pe-
nínsula (2020), 75% dos professores afirmaram que não receberam sequer suporte
emocional em meio à pandemia; sendo que 55% declararam que gostariam de su-
porte emocional e psicológico. Isso pode impactar no trabalho docente, já que os
recursos ajudam na consecução de metas, na redução das demandas de trabalho e
dos custos fisiológicos e psicológicos, além de estimularem o crescimento pessoal,
a aprendizagem e o desenvolvimento do indivíduo. Como exemplos de recursos,
destacam-se: feedback, participação em treinamentos, oportunidade de carreira e
nível de autonomia.
No contexto investigado, os professores revelaram não ter recebido apoio da
escola, 54,5% afirmaram que sua escola não ofereceu nenhuma formação para au-
xiliá-los no exercício da docência na realidade de pandemia. Além disso, 22,7%
declararam terem adquirido com recursos próprios equipamentos para o desenvol-
vimento de seu trabalho. Tais informações nos levaram a interpretar que há alta
demanda e pouco recurso para os professores exercerem o ERE, ou seja, há um
desequilíbrio entre ambos.
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O modelo teórico Job Demand Resources (BAKKER; DEMEROUTI, 2007) pres-
supõe que a tensão no trabalho pode ser fruto de elevados níveis de demandas e
baixos níveis de recursos no trabalho e que a motivação no trabalho pode ser poten-
cializada pelos recursos, levando o indivíduo a um estado de engajamento elevado,
uma baixa despersonalização e um excelente desempenho, sendo visto como um
equilíbrio entre as demandas e os recursos de trabalho (TARIS; LEISINK; SCHAU-
FELI, 2017), pois, ao receber demandas e recursos adequados, as pessoas sentem-se
desafiadas a cumprirem as metas e apresentam mais prazer na realização de seu
trabalho. Acredita-se que, na realidade brasileira, a maioria dos professores não
estavam/estão engajados devido ao estresse e à falta de recursos apropriados.
Outro fato que também pode ter impactado o trabalho docente na realidade
pesquisada foi a diferença de calendário e de modelos de ERE adotados por cada
uma das redes de ensino presentes no município de Juiz de Fora. As escolas da
rede privada foram as primeiras a iniciarem as aulas não presenciais, logo em
março, até mesmo como resposta à pressão dos responsáveis para redução ou sus-
pensão de mensalidades, como tratamos anteriormente, mas, até entre elas, houve
diferenciação de calendário. As que utilizavam plataformas de ensino migraram
rapidamente suas atividades para esse espaço, as outras optaram por antecipação
de recesso para poder se organizar. Já a rede pública iniciou algum tempo depois,
primeiro porque os docentes, tanto da rede estadual quanto da municipal, haviam
deflagrado greve alguns dias antes da suspensão das aulas pela pandemia e, tam-
bém, em virtude de ter que considerar a realidade socioeconômica dos alunos aten-
didos e a dificuldade de acesso aos equipamentos necessários ao ensino virtual,
assim como o próprio acesso à internet. Cabe ressaltar que as duas redes adotaram
estratégias diferenciadas.
A rede estadual de Minas Gerais iniciou o que chamam de “regime de estudo
não presencial” no mês de maio de 2020, fazendo uso de um canal de TV e de Planos
de Estudos Tutorados (PETs), que são apostilas com o conteúdo das disciplinas,
mas também de uma plataforma digital. A rede municipal iniciou as atividades
virtuais de forma mais sistematizada a partir de agosto de 2020, com a utilização
de diferentes ferramentas (TV, plataformas, atividades impressas), como parte do
Programa “Cadinho de Prosa”, o qual, no primeiro semestre, priorizou atividades
que fortaleciam o contato entre escola e comunidade, sem uma preocupação mais
específica com o conteúdo.
Vale ressaltar que muitos docentes trabalhavam em uma ou mais redes de en-
sino, e o calendário diferenciado pode permitir um tempo maior para a adequação
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a cada realidade, mas também pode implicar maior complexidade de tarefas, tendo
que lidar com diferentes propostas, dominar tecnologias diversas e, ainda, como já
destacamos, ter que lidar com as demandas de casa, com as necessidades de seus
próprios filhos e entes queridos, enquanto gerenciam seu próprio medo em relação
ao coronavírus.
A diferença de calendário entre redes de ensino e escolas para início das ativi-
dades virtuais pode ajudar a compreender o motivo pelo qual 54,5% dos professores
que responderam ao questionário de nossa pesquisa (2020) afirmaram que esta-
vam desenvolvendo atividades virtuais em apenas uma escola, apesar de a maioria
(60%) ter afirmado trabalhar em duas escolas ou mais (40,9% em duas escolas e
19,1% em mais de duas escolas).
Há de se reconhecer as chances de agravamento de tais demandas quando
consideramos que o professor pode estar enfrentando sobrecarga de trabalho. Con-
forme as respostas do questionário, apenas 20,9% tinham uma única turma sob sua
responsabilidade; 24,5% tinham de duas a três turmas; 12,7%, de quatro a seis tur-
mas; e 41,8%, mais de seis turmas. Se considerarmos a possibilidade de os profes-
sores trabalharem em mais de uma rede de ensino e estas terem adotado diferentes
estratégias para oferecer o ERE, o professor passa a ter a necessidade de se adaptar
a cada modelo de forma a atender as demandas de seus alunos, cujo número varia
em torno de 30 estudantes por turma, como no caso do ensino médio, segundo dados
do Instituto Nacional de Educação e Pesquisa Anísio Teixeira (Inep) (2017).
A própria dinâmica do trabalho online trouxe novas responsabilidades para o
professor, como gravar as aulas, cuidar da edição, postar os materiais, atividades
que ocupam grande tempo e que são necessárias para o desenvolvimento da própria
aula, o que muitas vezes acontece em um tempo bem menor que o necessário para
a sua preparação. Os professores revelaram também terem que lidar com trocas de
mensagens com muita frequência, o que implica mais tempo voltado para telas de
celulares. As mensagens eram de alunos, pais, colegas e também da coordenação
da escola, que passou a utilizar esse recurso para o planejamento.
As respostas ao questionário indicaram que 97,3% dos docentes planejavam
suas atividades remotas e 64,5% tinham feito esse planejamento com seus pares,
sendo os grupos de mensagens a forma mais utilizada pelos professores para pla-
nejarem com seus colegas de trabalho, correspondendo a 34,5% da frequência de
respostas. Em seguida, apareceu como forma de planejamento entre docentes: re-
uniões por aplicativos (32%) e trocas de e-mail (11,1%). Se tais novas formas de
comunicação com os colegas de trabalho implicam mais tempo do professor em
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frente às telas, podendo gerar impactos em seu trabalho e ainda mais cansaço, o
trabalho realizado de forma individual, quase solitário, também pode interferir no
seu emocional, principalmente se considerarmos o contexto atual de isolamento.
Em nosso estudo, dentre as respostas sobre a forma utilizada para planejamento,
18,5% indicaram que desenvolvem a atividade individualmente, o que pode au-
mentar a responsabilidade do professor em buscar meios para manter seu aluno
engajado e garantir o seu aprendizado.
Salientamos que a falta de diálogo com os colegas não parece ser por uma
desconsideração sobre sua importância no trabalho docente, mas consequência da
sobrecarga de trabalho, como justifica no questionário o Prof. 93: “Todos nós já
estamos com uma demanda grande de trabalho. Não há possibilidade de contactar
os amigos. Eles trabalham em outros colégios ou estão já sobrecarregados”.
A sobrecarga de trabalho foi evidenciada nas respostas, pois, quando foi solici-
tado aos professores que relatassem suas dificuldades e facilidades ao ministrarem
aulas em tempos de pandemia, destacamos o seguinte depoimento:
O trabalho aumentou demais! São atividades semanais que devem ser corrigidas individual-
mente, fora a preparação, gravação, edição e postagem das aulas...e a burocracia é enor-
me com planos semanais de aula, controle das atividades e aulas, além de diários e controle
de disciplina administrada em cada aula (Questão n. 6.1, Prof. 5, grifos nossos).
O relato supracitado apontou que a educação online envolve mais do que sim-
plesmente enviar conteúdo, é um processo complexo que requer planejamento cui-
dadoso, concepção e determinação de objetivos, a fim de propiciar a aprendizagem,
e por isso resulta em: “Um tempo excessivo na frente do computador e uma neces-
sidade de adaptação às novas tecnologias em tempo recorde” (Prof. 1).
Os professores tiveram que lidar com uma velocidade e um senso de urgência
sem precedentes, bem como o crescimento de tarefas sob a iminente perda do con-
trato de trabalho (IRIGARAY, 2020). Eles tiveram que barganhar por seus empre-
gos, submetendo-se à realização de atividades adicionais, tais como treinamentos e
reuniões não remuneradas (IRIGARAY, 2020), tendo que equilibrar suas múltiplas
identidades dentro do espaço doméstico (professor, pai, mãe, cônjuge, chefe de fa-
mília), o que era local de descanso passou a ser uma empresa sem CNPJ.
O depoimento dos professores 2 e 31 revelaram o desafio de combinar o tra-
balho remoto com as demandas domésticas, muitas vezes, em uma sociedade ma-
chista, atribuídas às mulheres: “Filho pequeno e não tenho ajuda que tinha ante-
riormente” (Prof. 2); “Conciliar as tarefas domésticas e escolares, recursos eficazes
para exercer uma aula de qualidade nesta modalidade” (Prof. 31). Isso, por si só,
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já é promissor para o desencadeamento de diversas doenças físicas e mentais, sem
considerar que, em meio a esse conjunto de professores, também há aqueles que
sofrem violência doméstica, ainda mais exacerbada na pandemia. Dados do Anuá-
rio Brasileiro de Segurança indicaram que, em 2019, a cada 2 minutos, foi criado
um boletim de ocorrência em alguma delegacia do país, com denúncia de violência
doméstica (BASÍLIO, 2020). Com a pandemia e o confinamento em casa, segundo
noticiários (ESTADÃO CONTEÚDO, 2020), houve um aumento de 40% no número
de casos de violência contra a mulher.
Estudos como o do Instituto Península, que “ouviu” 2.400 professores da edu-
cação básica e foi desenvolvido em três estágios: a) estágio inicial - 2 semanas após
a suspensão de aulas, b) estágio intermediário - 2 a 6 semanas após a suspensão de
aulas e c) estágio de controle - 4 a 6 semanas antes do retorno, reforçam aspectos
indicados por nossa pesquisa (2020). Já em seu primeiro estágio, o referido estudo
indicou que, apesar de pequenos, os efeitos podem ser observados na saúde mental
dos professores; no segundo estágio, destacou que 66% dos docentes ocupavam seu
tempo com mais atividades domésticas, e 32% se declararam sobrecarregados; na
terceira fase, o número dos que se declararam sobrecarregados aumentou para
53%, e 1 a cada 3 professores revelou piora na qualidade de vida, incluindo a qua-
lidade do sono.
No estudo realizado pelo GESE (2020), os professores, ao serem questionados
sobre como se sentiam exercendo a docência durante a pandemia, expressaram-se
utilizando os termos da Tabela 1.
Tabela 1 – Sentimentos dos docentes e frequência das expressões utilizadas
Expressão utilizada Frequência (%)
Cansaço/exaustão 19,0
Satisfação/adaptação 14,5
Desafio 11,8
Angústia 11,8
Incapaz/despreparado 10,9
Sobrecarga 9,0
Preocupação/apreensão 5,4
Pressão/coação 4,5
Fonte: GESE (2020).
520 ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Ao nos depararmos com a expressão “satisfação/adaptação” em segundo lugar
na ordem da Tabela (14,5%), isso pode parecer incoerente, afinal, como podiam
estar satisfeitos em plena pandemia? Mas, como nos alerta Fairclough (2016), há
o contexto de situação. Para alguns professores, “poder executar as atividades em
home office traz a sensação de segurança” (Prof. 110), pois diminuem as chances de
contágio, mas, ao mesmo tempo, como sinalizou o Prof. 73, a satisfação pode estar
ligada à ideia de conseguir superar desafios: “Hoje estou mais tranquila e adapta-
da. Domino mais as ferramentas e a confecção das mediações”.
Apesar da manifestação do sentimento de satisfação por parte de alguns dos
respondentes diante da questão 6.3 “Como você se sente tendo que exercer a do-
cência em tempos de pandemia?”, a maioria das respostas indicaram sentimentos
negativos em relação à experiência ou ligados a um processo de desgaste físico e
emocional, como revelou a resposta a seguir:
Vivo a contradição da desigualdade social. Ofereço o meu dia de trabalho intenso para uma
rede e para outra não foi discutida nenhuma proposta até o momento. Isso gera uma sensação
horrível. Outra questão que tem angustiado é a demanda de trabalho, não nos permitindo ter
tempo para cuidar dos filhos, da casa, da saúde emocional... Apesar de tudo vivido, é bom
poder dar continuidade ao trabalho (Prof. 66, Questão 6.3).
O respondente 66, apesar de ter afirmado ser bom poder dar continuidade
ao trabalho, revelou cansaço, mesmo trabalhando em apenas um de seus cargos,
e tal cansaço não está ligado apenas ao aumento da demanda de atividades, mas
também à “sensação horrível” de saber que parte de seus alunos pode estar sendo
excluída de seu direito de educação, por fazer parte de uma rede de ensino3 que,
até aquele momento, não estava desenvolvendo atividades de ensino remoto, de
forma mais sistematizada. Essas sensações podem trazer impactos na saúde do-
cente, quando adicionados os sentimentos de cansaço, como revelado nos seguintes
relatos:
Sobrecarregado. Muita demanda além das preocupações em função da pandemia (Prof. 97,
Questão 6.3).
Me sinto sobrecarregada devido ao volume de trabalho que não permite trabalhar com quali-
dade. Me sinto depressiva e desmotivada visto que minha sala de aula presencial, sempre foi
a motivação da minha docência. Me sinto invadida pois meu trabalho é integralmente dentro
de casa e não consigo me desligar facilmente das tarefas docentes (Prof. 47, Questão 6.3).
Suspender as aulas presenciais foi a estratégia encontrada para diminuir o
contato e, assim, preservar a saúde diante de um contexto de pandemia de Co-
vid-19. Entretanto, o ERE adotado como “alternativa” para se assegurar o direito
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à educação pareceu estar causando nos professores, além do agravamento das más
condições de trabalho com sobrecarga de atividades, o crescimento de sentimentos
como angústia, impotência, cansaço e desmotivação, o que pode comprometer a
saúde docente.
De acordo com estudos desenvolvidos por Faro et al. (2020), muitas vezes,
sequelas na saúde mental em uma pandemia são maiores do que o número de mor-
tes. Os referidos autores destacaram que, conforme uma pesquisa desenvolvida
em mais de 40 países, a maior preocupação em relação ao contágio é que o gênero
feminino e as faixas etárias mais jovens estavam entre os fatores “preditores signi-
ficativos para maior nível de estresse” (FARO et al., 2020, p. 7). Os autores citam,
também, um estudo desenvolvido na China, envolvendo 52 mil pessoas, o qual evi-
denciou a maior vulnerabilidade ao estresse entre mulheres, pessoas com mais de
60 anos e com maior nível educacional. Tais dados nos sinalizaram que a categoria
docente possui características e condições de trabalho que podem contribuir para
significativos danos em sua saúde, em um contexto de pandemia.
Uma linha tênue: condições de trabalho no ensino remoto emergencial e
adoecimento do professorado
A pandemia e o isolamento social tendem a provocar mudanças de humor no
indivíduo, tais como solidão, tristeza, falta de motivação, estresse, picos de ansie-
dade, depressão, etc., além disso, muitos indivíduos têm que executar o seu serviço
em home office, o que pode intensificar esses sentimentos devido a novas demandas
e mudanças na rotina. Cumpre destacar que pesquisas como a de Diehl e Marin
(2016) e a de Tostes (2018) já evidenciavam dados preocupantes em relação ao
adoecimento mental dos professores, devido às diversas modificações ocorridas na
profissão docente, como, por exemplo, a fragilização dos vínculos empregatícios.
Com a pandemia, as mudanças se intensificaram, gerando impactos significativos
na saúde docente. O contexto escolar tem se tornado um ambiente ocasionador de
tensão e estresse; consequentemente, os professores sentem-se a cada dia menos
estimulados a exercerem o seu trabalho, acarretando em sofrimento, resultando
em adoecimento e repercutindo em afastamento (MOREIRA; RODRIGUES, 2018).
Segundo Ferreira (2019) e Araújo e Carvalho (2009), pesquisas qualitativas
ou quantitativas acerca do trabalho docente evidenciam que professores sofrem de
distúrbios de voz, distúrbios osteomusculares e problemas relacionados à saúde
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mental. Vivências de sofrimento psíquico e sintomas de mal-estar são caracteri-
zados, por esses profissionais, como nervosismo, esgotamento mental, estresse,
ansiedade, irritabilidade, medo, depressão, insônia, entre outros, conforme ampla
literatura (FERREIRA, 2019; NEVES; SILVA, 2006; GOMES; BRITO, 2006).
É notório que os professores, diante da pandemia, sofreram mudanças drás-
ticas em sua rotina, sendo obrigados a lidarem com o ERE e com as demandas
de suas casas. Há diferenças significativas entre o ensino presencial e o ERE no
que se referem à preparação e à execução do trabalho. Apesar de a presença física
do professor ceder lugar à presença digital, o que chamamos de “presença social”
(GARRISON, 1991); para a promoção do conhecimento, o professor deve imple-
mentar modelos e estratégias pedagógicas, bem como fornecer ao aluno uma aula
iterativa e motivadora e feedbacks constantes, a fim de mantê-lo engajado e evitar
a evasão, mas tudo isso virtualmente, na maioria das vezes sozinho, sem apoio
pedagógico e emocional, com uma carga de trabalho elástica, sendo submetido à
pressão de terceiros.
Os professores experimentaram uma mudança brusca em seu dia a dia, com
a penetração insidiosa do trabalho em todos os espaços de seu cotidiano, indepen-
dentemente se o seu empregador é o governo ou donos de escolas, muitas vezes, não
lhes foi garantida a estrutura para a realização de seu trabalho de modo remoto
(ZAIDAN; GALVÃO, 2020).
Cuervo et al. (2018) afirmam que o uso de tecnologias de informação e comu-
nicação (TICs) para exercício do trabalho virtual pode criar sentimentos de tensão,
ansiedade, exaustão e diminuição de satisfação no trabalho. Em tempos de pande-
mia, como já discutido exaustivamente neste texto, estas eram as únicas ferramen-
tas disponíveis para os professores.
Segundo Correa (2020), o trabalho remoto trouxe sobrecarga ao professor,
como evidenciado na presente pesquisa, bem como em Oliveira e Pereira Júnior
(2020), agregando a ansiedade, o estresse e outros sintomas relacionados à saúde
mental de professores, neste momento em que a sala de aula não tem paredes.
Araújo et al. (2020) corrobora Correa (2020) ao mencionar que as formas de adoecer
do professor são experienciadas por meio de manifestações de alto nível de ansie-
dade, humor deprimido, sintomas de estresse e incertezas recorrentes, que levam
os profissionais ao esgotamento mental e profissional.
O contexto atual em que o professor se encontra inserido permite-nos fazer luz
à teoria de Freud (1930/1996), quando o psicanalista discorre sobre o “mal-estar”,
segundo ele, o termo se refere ao adoecimento psíquico, refere-se “às condições
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necessárias à construção e manutenção do processo civilizatório, pois exige que
os sujeitos abram mão da satisfação pessoal pelo bem-estar comum, o que traz
desconforto e dor” (PACHIEGA; MILANI, 2020, p. 222). Nesse sentido, o professor
se viu obrigado a ignorar parte do que sentia física e psicologicamente, em prol da
oferta e garantia de educação aos alunos em meio à pandemia.
O mal-estar docente está relacionado inteiramente às novas formas de rela-
ções da prática pedagógica, à própria identidade docente e às novas demandas
do mundo externo que fogem do controle tanto de professores quanto de alunos
(PACHIEGA; MILANI, 2020). O atual formato do trabalho docente apresenta indí-
cios de agravamento para a saúde mental da classe. Dentre as causas desse adoe-
cimento, destacam-se, segundo Souza et al. (2021), classes virtuais numerosas,
despreparo para lidar com a tecnologia de ensino virtual, falta de apoio da gestão
escolar, alunos desinteressados em aprender, inexistência de tempo adequado para
descanso, além das cobranças, o que coaduna com os dados produzidos pela pre-
sente pesquisa.
A Fiocruz (2020, p. 02) alerta que “entre um terço e metade da população
exposta a uma epidemia pode vir a sofrer alguma manifestação psicopatológica,
caso não seja feita nenhuma intervenção de cuidado específico para as reações e
sintomas manifestados”. Segundo Schmidt et al. (2020), apesar de as investigações
e pesquisas científicas sobre os impactos na saúde mental dos professores devido à
pandemia de Covid-19 ainda se configurarem como incipientes, já há implicações
negativas consideráveis que merecem atenção.
A Fiocruz (2020) indicou estratégias de cuidado psíquico durante a pandemia,
para aqueles que estavam trabalhando, como a criação de pausas no trabalho em
local calmo e evitar o isolamento de sua rede socioafetiva, mantendo contato ain-
da que virtual. Porém, na realidade investigada, evidenciam-se limites para tais
cuidados. Os trabalhos de docência e de cuidados com a casa se confundiram, difi-
cultando o local calmo para a pausa, além disso, a sobrecarga ocasionou obstáculos
na busca pelo outro, que também estava sobrecarregado, como evidenciado na fala
de um respondente da presente pesquisa: “Não há possibilidade de contactar os
amigos” (Prof. 93).
Assim sendo, com base nos estudos supracitados, nos dados desta pesquisa,
bem como do Instituto Península e até mesmo de noticiários (SOUZA et al., 2020),
como o depoimento de uma professora dado ao jornal baiano sobre o ensino remoto:
“Tenho tido ansiedade, picos de pressão. Já dei aula parando para vomitar por
conta da hipertensão, dores de cabeça e das náuseas que tenho tido regularmente.
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Muita pressão de todos os lados. [...]. Me sinto usada” (NATIVIDADE, 2020, não
paginado), podemos inferir que o professor pode ter a sua saúde física e mental
prejudicada, prova disso são as expressões da Tabela 1, destacadas no discurso dos
docentes, ao serem questionados sobre como se sentiam no exercício da profissão.
Diante do exposto, devemos reflexionar a respeito da relação entre a saúde
mental do professor e as suas condições de trabalho atuais. Os dados desta pesqui-
sa revelaram insatisfação da categoria em relação às suas condições de trabalho.
Cabe salientar que estas nunca foram as melhores, nem mesmo no ensino presen-
cial, como relata Carvalho (2018, p. 41), “esses profissionais atuam em ambientes
escolares que, muitas vezes, funcionam em condições estruturais precárias”. Sendo
assim, podemos entender que o ERE agravou as condições de trabalho do profes-
sorado e, somado à pandemia, pode acarretar consequências negativas para a sua
saúde, como elevar o nível de estresse e ansiedade, desencadear uma depressão,
podendo até mesmo levar à síndrome de burnout.
É imprescindível trazer à baila que décadas de pesquisa confirmam que a
profissão de lecionar por si só já é estressante (JOHNSON et al., 2005; SKAAL-
VIK; SKAALVIK, 2015). Arriscamo-nos a dizer que não é a pandemia em si que
intensificou o estresse da categoria, mas, sim, o isolamento social aliado à carga de
trabalho intensa, à falta de recursos, à falta de apoio emocional e psicológico.
Segundo Gomes e Pereira (2008), o estresse ocupacional é entendido como a
interação de condições laborais e de características do indivíduo, de modo que as
exigências direcionadas a ele podem ultrapassar a sua capacidade de enfrenta-
mento. Zaffari et al. (2009 apud SILVEIRA et al., 2014) destacaram que podem
ser fonte de estresse: a indisciplina dos alunos, o excesso de trabalho e a falta de
tempo, a própria motivação dos alunos e as políticas públicas educacionais (PO-
CINHO; CAPELO, 2009). Em casos de extremo estresse pode ocorrer a síndrome
de burnout, associada às dimensões de exaustão emocional, fadiga e perda de re-
cursos emocionais, como esgotamento emocional devido ao trabalho (MASLACH;
JACKSON, 1986). No ambiente de trabalho, quando o indivíduo é convocado a
resolver problemas que estão relacionados ao meio em que está inserido, ele sai
de um estado de equilíbrio para um estado de estresse. Se a demanda sobrepor as
suas capacidades, ele tende a não voltar ao estado original enquanto não resolver
o problema (LIPP, 2003).
Zhang e Ma (2020) constataram que a mudança repentina na rotina associa-
da à situação de isolamento social são fatores que por si só já causam estresse. Al-
guns sentimentos, emoções e reações geralmente sentidos por pessoas que sofrem
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de estresse são: pensamentos negativos, ansiedade, preocupação, medo, tristeza,
lágrimas, perda de interesse em atividades agradáveis, frustração, irritabilidade,
raiva, inquietação ou agitação, sentimento de impotência, desconexão, dificulda-
de de concentração, dificuldade para relaxar ou dormir, sinais físicos como dor de
estômago, fadiga e sensações desconfortáveis. Dessa forma, a pandemia pode con-
tribuir para a exaustão emocional, acarretando dificuldade em continuar com as
atividades laborais por parte dos docentes.
De acordo com Maslach, Schaufeli e Leiter (2001), a síndrome de burnout pode
ser entendida como uma reação crônica que pode levar a pessoa a uma situação de
esgotamento. Os referidos autores nomearam três dimensões relacionadas à doen-
ça: exaustão emocional, despersonalização e frustração profissional. Segundo Koga
et al. (2015), a exaustão emocional pode ser compreendida como o esgotamento das
capacidades (físicas e psíquicas) do indivíduo para lidar com a situação estressora;
a despersonalização como o estado em que o sujeito se distancia emocionalmente
de seu papel/cargo, ficando menos receptivo com alunos e colegas de trabalho, bem
como com suas atividades laborais; e a frustração profissional está relacionada a
sentimentos negativos, como sensação de incapacidade e baixa eficácia e falta de
produtividade.
Sokal, Trudel e Babb (2020) investigaram 1.278 professores canadenses du-
rante a pandemia com base no modelo Job Demands Resources e constataram que
a maioria das demandas estava fortemente correlacionada ao estado de exaustão
inicial da síndrome de burnout. Foram investigadas variáveis relacionadas a de-
manda e recursos, sendo examinadas: gestão do tempo, tecnologia, expectativas
dos pais, equilíbrio da casa e vida profissional e falta de recursos. O modelo re-
tromencionado reconhece uma relação sistêmica dinâmica em que “as proprieda-
des da situação de trabalho, assim como as características do indivíduo, podem
amortecer os efeitos do estressor” (BAKKER; DEMEROUTI, 2007, p. 314). Assim,
“propriedades da situação de trabalho”, como o apoio do diretor da escola, o apoio
dos pares (COLLIE; MARTIN, 2017) e o desenvolvimento profissional (BOLDRINI;
SAPPA; APREA, 2018), em ambos os métodos de ensino e tecnologia, foram exami-
nados para determinar sua relação com os estágios de esgotamento do professor.
Os dados revelaram um desequilíbrio entre demanda e recursos. Foi aplicado um
instrumento para medir o risco para burnout e constatado que os participantes
estavam funcionando em um nível de exaustão que poderia ser interpretado como
uma indicação de que eles estavam nos estágios iniciais de burnout.
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No estudo de Dalagasperina e Monteiro (2014), um dos resultados encontra-
dos mostrou que, quando os professores estão sobrecarregados com suas atividades
e quando há um desgaste emocional associado a isso, existe uma tendência maior
para o desenvolvimento do estado de esgotamento (burnout). Essa relação com a
quantidade de atividades também afetou as dimensões de despersonalização e bai-
xa realização profissional, ou seja, quanto maior o número de atividades, menor é
a sensação de competência e realização com o trabalho. Outro fator que apresentou
importância nos resultados foi a falta de capacitação, sendo apontada como uma
das principais variáveis que explicam a ilusão com o trabalho, suscitando exaustão
emocional e frustração.
A fim de corroborar o que foi expresso nesta seção, descrevemos estudos em-
píricos recentes que investigaram a saúde do professorado durante o contexto pan-
dêmico. Assim, cabe citar o estudo de Stachteas e Stachteas (2020) realizado na
Grécia, em que os pesquisadores investigaram os efeitos psicológicos da pandemia
de Covid-19 em professores do ensino médio, que assumiram o fardo da abstinência
forçada de suas funções regulares de trabalho e a simultânea necessidade de se
adaptarem ao processo sem precedentes de ensino a distância. Foram aplicados
questionários, a fim de examinar as associações entre variáveis psicológicas e ou-
tras variáveis. Foi detectado, então, que 34% dos professores sentiram-se ansiosos
durante a pandemia e 8% demonstraram emoções depressivas graves.
Santamaría et al. (2021) realizaram estudo na Espanha com 1.633 professores
atuantes da educação infantil até o ensino superior, com idade média de 42 anos,
e fizeram uso de instrumentos para medir a ansiedade e o estresse. Os dados evi-
denciaram alta porcentagem de professores com sintomas de estresse, ansiedade e
depressão, sendo que as mulheres apresentaram significativamente mais sintomas
de estresse e ansiedade do que os homens; as mulheres com filhos apresentaram
mais sintomas depressivos do que aquelas sem filhos; e os professores que tinham
patologia crônica ou que viviam com outras pessoas com a patologia apresentaram
mais estresse, ansiedade e depressão.
À guisa de conclusão, inferimos que, devido às condições de trabalho atuais,
somadas à falta de apoio psicológico e em conjunto com a grande demanda e os
baixos recursos no trabalho, há possibilidade de professores serem acometidos pela
síndrome de burnout, bem como estarem sujeitos a altos níveis de estresse, ansie-
dade, depressão, entre outros transtornos e doenças.
Como afirma o estudioso Jim Wallis, às vezes é preciso um desastre natural
para revelar um desastre social. A educação e principalmente aqueles que atuam
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nela não recebem a devida atenção que merecem. A pandemia tende a iluminar
ainda mais a importância de trabalhos voltados para o professor e a sua saúde
física, emocional e mental. O Instituto Península (2020) apresentou dados em re-
lação à saúde do professorado e revelou que os respondentes não receberam ne-
nhum apoio emocional durante o seu trabalho, assim como os resultados de nossa
pesquisa, que revelaram como os docentes se sentiam no exercício de seu ofício no
ERE. Acredita-se que algumas formas de amenizar os impactos das condições de
trabalho no ERE na saúde do professorado na pandemia seriam: fornecer a eles
recursos apropriados, diminuir as demandas, a carga de trabalho e, principalmen-
te, ofertar-lhes apoio físico e mental. Alta demanda e pouco recurso é fator de risco
para a síndrome de burnout e, segundo Taris, Leisink e Schaufeli (2017), é mais
fácil preveni-la do que revertê-la.
Nas palavras de Palacios e Fleck (2020), um professor deve ter condições am-
bientais mínimas para exercer as atividades investidas em seu cargo ou função,
deve ter tanto saúde psíquica quanto equilíbrio emocional, para prestar o seu ser-
viço de modo eficiente, o contrário pode comprometer a qualidade do serviço, além
da saúde como um todo desse profissional. Assim sendo, nossas preocupações com
o trabalhador docente se acentuam quando consideramos o contexto revelado em
um estudo realizado por Calliari e Junqueira (2021), para o Fórum Econômico
Mundial com 30 países, que apontou que 53% dos brasileiros entrevistados acre-
ditam que sua saúde mental piorou desde o início da crise de Covid-19.
Considerações nais
Como explicitado neste artigo, são inúmeras as dificuldades experienciadas
pelos docentes durante o seu trabalho na pandemia. A publicação de portarias e
decretos elaborados pelo governo que visam garantir o cumprimento de carga ho-
rária letiva, mas sem assegurarem as condições adequadas para que os professores
concretizem tal tarefa, impacta diretamente no trabalho docente.
A categoria participa do processo de ensino remoto como apenas um dos ins-
trumentos necessários para o processo de aprendizagem, muitas vezes sem auto-
nomia para lecionar, tendo que utilizar plataformas educacionais, as quais não
escolheram e até mesmo desconheciam. Com o seu trabalho sendo controlado por
terceiros, sem a oferta de apoio pedagógico e recursos para exercer o seu próprio
trabalho e ainda sem forças para lutar diante dos limites do isolamento e da de-
manda de atividades em meio ao contexto pandêmico.
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A partir do lema adotado mundialmente “Learning never stops”, foram toma-
das diferentes medidas e soluções para imediatamente sustentar a educação, mas
não houve, pelo menos no Brasil, a mínima preocupação com os profissionais que
estão atuando na linha de frente para garantir o direito à educação. Além disso,
há uma falha visível nas práticas atuais, que são os altos investimentos e a alta
confiança depositados em processos de aprendizagem aprimorados pela tecnologia.
A tecnologia é o meio e não o agente do processo, ou seja, o investimento também
deve ser no professor, pois sem ele não é possível colocar em prática o lema adotado.
A educação online envolve mais do que simplesmente enviar conteúdo, tra-
ta-se de um processo de aprendizagem que exige dos alunos participação ativa,
responsabilidade e flexibilidade. É um processo complexo que requer planejamento
cuidadoso, concepção e determinação de objetivos, a fim de propiciar a aprendiza-
gem. É preciso considerar que os recursos tecnológicos podem ser uma importante
ferramenta neste momento, mas devem estar a serviço de professores e alunos, e
não ser o centro do processo de aprendizagem.
A não consideração do professor como sujeito ativo no processo educacional do
ensino remoto emergencial, somada à falta de condições adequadas para o desen-
volvimento de suas atividades, pode fazer com que a estratégia adotada para pre-
servação da saúde diante da pandemia tenha como um dos seus efeitos colaterais
o adoecimento docente. Fornecer ao professorado condições básicas para atuar é o
mínimo que deveria ocorrer, incluindo apoio emocional.
Espera-se que, à luz do modelo teórico Job Demands Resources e a partir dos
dados apresentados neste texto, os profissionais da educação possam se instrumen-
talizar para lutar ainda mais pelos seus direitos, ainda que em um futuro próximo,
que estudiosos da área de políticas públicas e autoridades públicas possam criar
políticas, a partir do modelo e dos dados apresentados, a fim de propor medidas
com intuito de prevenir doenças e transtornos que possam ser decorrentes ou até
mesmo maximizados com as atuais condições de trabalho.
Por último, mas não menos importante, é necessário considerar que, em uma
possível retomada das atividades presenciais, será extremamente importante se
atentar para o acolhimento dos sujeitos envolvidos nesse processo, propondo for-
mas que assegurem a professores e alunos o apoio que necessitam, inclusive com
a atuação de psicólogos, que poderão “ocupar seu espaço na escola” em tempos de
pandemia; o monitoramento contínuo da saúde dos profissionais da educação sob
o enfoque da saúde coletiva e da vigilância em saúde do trabalhador também deve
ser considerado.
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Notas
1 O nome da pesquisa não será divulgado neste artigo por questões éticas.
2 Atribuímos número conforme a ordem que as respostas dos professores apareceram na tabulação das res-
postas ao questionário, o que não significa nenhuma forma de classificação.
3 Vale lembrar que, como tratamos anteriormente, a rede municipal de Juiz de Fora só inicia um trabalho
remoto mais sistematizado em agosto de 2020. No período que aplicamos o questionário, havia nesta rede
apenas um trabalho de aproximação da comunidade com a escola, o que, para essa professora, pode repre-
sentar um “atraso”, em comparação à rede privada, que desde março adotou o ensino remoto emergencial
de forma mais sistematizada.
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Simone Burioli Ivashita, Francielle Nascimento Merett, Nathalia Martins Beleze
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O Plano de Estudos Dirigidos como orientador do trabalho pedagógico durante a
pandemia na rede municipal de Londrina, PR
The Study Plan Directed as a guideline for pedagogical work during the pandemic in the
municipal network of Londrina, PR
Plan de Estudio Dirigido como orientación para el trabajo pedagógico durante la pandemia en la
red municipal de Londrina, PR
Simone Burioli Ivashita*
Francielle Nascimento Merett**
Nathalia Martins Beleze***
Resumo
Com o avanço da pandemia do novo coronavírus em âmbito nacional, diferentes esferas e instituições precisa-
ram repensar suas formas de atuação na sociedade, inclusive a educação. Com o fechamento das escolas em di-
versas cidades brasileiras, houve a necessidade de uma reorganização do trabalho pedagógico, a m de garantir,
ainda que de forma remota, o direito à educação. Diante desse cenário, o objetivo deste estudo é apresentar e
reetir como a rede municipal de educação de Londrina, no norte do Paraná, organizou-se em relação às aulas
em formato remoto. Utilizamos como fonte o Plano de Estudos Dirigidos (PED), que é similar ao plano de aula,
pensado e planejado pelo professor e enviado aos alunos e às famílias, constituindo-se como o guia para o tra-
balho pedagógico de professores e professoras, e uma breve análise do documento “Boas práticas pedagógicas.
O estudo proporcionou reexões sobre o PED, no sentido de que se trata de uma possibilidade de sistematização
e transmissão dos conteúdos durante a pandemia, a qual intenta assegurar o direito à educação, bem como o
vínculo do aluno com as atividades escolares, de forma mediada pelo professor.
Palavras-chave: trabalho pedagógico; educação na pandemia; educação básica; trabalho docente.
* Pedagoga com mestrado e doutorado em Educação. Professora adjunta do Departamento de Educação e do Programa
de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual de Londrina. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-8766-8331.
E-mail: si.ivashita@gmail.com
** Pedagoga. Mestra e Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual
de Londrina. Professora dos anos iniciais do ensino fundamental da Prefeitura Municipal de Londrina. Professora colabo-
radora do Departamento de Educação da Universidade Estadual de Londrina. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9202-
9713. E-mail: francielle1024@hotmail.com
*** Pedagoga. Mestra e Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual
de Londrina. Professora da educação infantil da Prefeitura Municipal de Londrina. Professora colaboradora do Departa-
mento de Educação da Universidade Estadual de Londrina. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-7203-5005. E-mail: natha-
liamartins92@hotmail.com
Recebido em: 30/10/2020 – Aprovado em: 10/08/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i2.11799
535
ESPAÇO PEDAGÓGICO
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O Plano de Estudos Dirigidos como orientador do trabalho pedagógico durante a pandemia na rede municipal de Londrina, PR
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Abstract
With the advancement of the new Coronavirus pandemic nationwide, dierent spheres and institutions had to
rethink their ways of operating in society, including education. With the closure of schools in several Brazilian
cities, there was a need for a reorganization of pedagogical work, in order to guarantee, even if remotely, the
right to education. Given this scenario, the objective of this study is to present and reect how the Municipal
Education Network of Londrina, in the north of Paraná, was organized in relation to the classes in remote format.
We use the Directed Studies Plan (PED) as a source, which is similar to the lesson plan, thinking and planned by
the teacher and sent to students and families, constituting itself as the guide for the pedagogical work of tea-
chers and a brief analysis of the document “Good Pedagogical Practices”. The study provided reections on PED,
in the sense that, it is a possibility of systematization and transmission of content during the pandemic, which
aims to ensure the right to education, as well as the student’s link with school activities, mediated by the teacher.
Keywords: pedagogical work; pandemic education; basic education; teaching work.
Resumen
Con el avance de la nueva pandemia de Coronavirus a nivel nacional, diferentes ámbitos e instituciones tuvieron
que repensar sus formas de operar en la sociedad, incluida la educación. Con el cierre de escuelas en varias ciu-
dades brasileñas, surgió la necesidad de una reorganización del trabajo pedagógico, a n de garantizar, aunque
sea remotamente, el derecho a la educación. Ante este escenario, el objetivo de este estudio es presentar y ree-
jar cómo se organizó la Red Municipal de Educación de Londrina, en el norte de Paraná, en relación a las clases en
formato remoto. Utilizamos como fuente el Plan de Estudios Dirigidos (PED), que es similar al plan de lecciones,
pensado y planicado por el docente y enviado a los estudiantes y familias, constituyéndose como la guía para
el trabajo pedagógico de los docentes y un breve análisis del documento “Buenas Prácticas Pedagógicas. El es-
tudio brindó reexiones sobre los PED, en el sentido de que, es una posibilidad de sistematización y transmisión
de contenidos durante la pandemia, que tiene como objetivo garantizar el derecho a la educación, así como el
vínculo del estudiante con las actividades escolares, mediado por el profesor.
Palabras clave: trabajo pedagógico; educación pandémica; educación básica; trabajo docente.
Introdução
Vivemos tempos difíceis. É de conhecimento da população o grande mal que
assola a humanidade no ano de 2020, ano que ficará marcado na história pela
pandemia de Covid-19, a qual, descrita inicialmente na China, tomou o mundo e já
infectou mais de 11 milhões de pessoas no globo, levando a óbito mais de um milhão
de pessoas. Hoje o Brasil é o terceiro país do mundo em número de casos e o segun-
do em número de óbitos. Contamos com mais de 5,49 milhões de casos confirmados
e mais de 159 mil óbitos, atrás apenas dos EUA, com 234 mil mortos.
O estado do Paraná tem se mostrado firme nas medidas sanitárias visando
o combate à disseminação do novo coronavírus. Em dados, enquanto a incidência
nacional é de 2.614,5 infectados por 100 mil habitantes, o Paraná registra incidên-
cia de 1.853 infectados por 100 mil habitantes1. Esse feito só foi possível por meio
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Simone Burioli Ivashita, Francielle Nascimento Merett, Nathalia Martins Beleze
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da implementação precoce de medidas de isolamento social, restrição do fluxo de
pessoas e intervenções sanitárias apropriadas. Visto isso, são fundamentais a per-
manência e a vigilância no cumprimento de tais medidas, com intuito de manter
a taxa de incidência baixa para evitar prejuízos ainda maiores na economia, na
educação e, principalmente, no número de vidas perdidas.
Esse contexto modificou a forma de viver e conviver em sociedade, evidencian-
do uma crise na saúde, na economia e também no sistema educacional, afetando
toda a humanidade, enaltecendo fragilidades que já eram intrínsecas à sociedade
e impondo novos desafios que necessitam de reinvenção de modelos já conhecidos.
Assim, desde o momento em que o primeiro caso foi confirmado no Brasil (RODRI-
GUEZ-MORALES et al., 2020), houve uma mobilização, principalmente dos pais
e professores, sobre a condição em que crianças e jovens permaneceram afastadas
do espaço escolar; alguns meses se passaram e a decisão de permanecer de forma
remota aponta que o retorno, quando for proposto, deve ser feito de forma organi-
zada e cautelosa, considerando as orientações em relação às medidas sanitárias.
O futuro retorno também precisa apontar a necessidade de o Ministério da
Educação, as secretarias destinadas, as equipes gestoras e o grupo de professores
pensarem sobre a reorganização do trabalho pedagógico, com intuito de retomar
conteúdos e reorganizar espaços e tempos de acolhida aliados ao acompanhamento
devido, para que as crianças tenham maiores aproveitamento e desenvolvimento,
ressaltando que tanto a equipe da escola como os alunos não estão retornando das
férias, mas de um momento de medo generalizado.
No início da pandemia, em artigo publicado dia 1º de abril de 2020, a Unesco
(2020) informava que 165 países já haviam fechado suas escolas, deixando 87% dos
alunos sem aula em todo o mundo, cerca de 1 bilhão e meio de estudantes. Esse nú-
mero atingiu sua totalidade com o avanço da contaminação, agravando a situação
global. Naquele momento, estávamos apenas iniciando o ano letivo e encaramos a
situação como provisória, na esperança de um retorno rápido, o que sabemos que
não aconteceu.
Compreendemos que as escolas têm um papel fundamental não só na instrução
de crianças e jovens, mas também na configuração de um espaço de socialização, de
proteção contra a violência e de garantia de direitos básicos, como alimentação e
cuidado de crianças e jovens. Com o fechamento das escolas, houve, de certa forma,
a retirada desses direitos das crianças e, com o avanço da pandemia, foi necessário
repensar as formas de ensinar e aprender, para garantir que fossem mantidos a
oferta de instrução e o vínculo com os alunos e as famílias.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Diante desse cenário, nosso objetivo neste texto é apresentar e refletir como
a rede de educação municipal de Londrina está enfrentando as aulas em formato
remoto. Utilizamos como fonte de produção de dados o Plano de Estudos Dirigidos
(PED), que é um documento orientador do trabalho pedagógico de professores e
professoras.
A escola está fechada, e agora?
Os desafios enfrentados pela sociedade, no cenário pandêmico, foram cata-
lisados na escola e também na prática docente, a qual precisou ser reinventada
completamente, transformando a maneira como os educadores veem o processo de
ensino-aprendizagem, com o agravante de ter que realizar tudo isso em um curto
espaço de tempo, já que a pandemia da Covid-19 assolou o mundo em uma veloci-
dade descontrolada. Os desafios docentes são inúmeros e foi necessário um preparo
para alcançar o(a) aluno(a) de forma virtual, considerando todas as dificuldades de
acesso, e isso se refletiu no entendimento do processo de ensino-aprendizagem em
tempos de isolamento social.
Entendemos o professor na mesma perspectiva que o pesquisador português
António Nóvoa (1995), como sendo um profissional que incorpora ao menos três
dimensões indissociáveis: a pessoal, a profissional e a organizacional, dimensões
estas que ficam manifestas com maior ênfase neste período de pandemia. A docên-
cia é composta de muitas ações complexas que não se restringem à sala de aula,
extrapolando inclusive o espaço escolar. Na configuração atual, o espaço doméstico
se transformou também em um espaço educativo.
Na educação brasileira, da educação infantil ao ensino superior, as institui-
ções estão fechadas. As indicações do governo foram a Portaria n. 343, de 17 de
março de 2020 (BRASIL, 2020c), e a Medida Provisória n. 934, de 1º de abril de
2020 (BRASIL, 2020a), dispensando, em caráter excepcional, a obrigatoriedade de
observância ao mínimo de dias de efetivo trabalho escolar e possibilitando a subs-
tituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais, a princípio autorizadas
pelo período de trinta dias, situação que foi prorrogada posteriormente. Assim:
[...] em caráter excepcional, a substituição das disciplinas presenciais, em andamento, por
aulas que utilizem meios e tecnologias de informação e comunicação, nos limites estabele-
cidos pela legislação em vigor, por instituição de educação superior integrante do sistema
federal de ensino [...] (BRASIL, 2002a, não paginado, Art.1).
538 ESPAÇO PEDAGÓGICO
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O Conselho Nacional de Educação (CNE) emitiu, em abril de 2020, o Parecer
n. 5, acerca da reorganização do calendário escolar e da possibilidade de cômputo
de atividades não presenciais para fins de cumprimento de carga horária mínima
anual, em razão da pandemia de Covid-19. Como podemos verificar: “É importante
que as escolas e sistemas de ensino planejem cuidadosamente o retorno às aulas
considerando o contexto bastante adverso do período de isolamento social e mante-
nham um sistema de comunicação permanente com as famílias” (BRASIL, 2020b,
não paginado).
Há algumas críticas a esse parecer do CNE, segundo Mascarenhas e Franco
(2020, p. 2), que apontam o documento como uma forma de priorizar o cumpri-
mento do calendário escolar, “sem aprofundar as especificidades e desigualdades
presentes nas diversas regiões do país, desconsiderando a função social da escola
e, ainda, sem a problematização do processo de ensino e aprendizagem no contexto
não presencial”.
Após o fechamento das escolas, alguns desafios foram se apresentando no pro-
cesso de retorno às aulas de forma remota; primeiro, professores, estudantes e pais
de alunos tiveram que se mobilizar para adquirir ferramentas, materiais e meto-
dologias para implementar uma nova forma de ensinar e aprender, tal situação nos
remete à problematização a respeito do processo de definir artefatos e estratégias,
com pouca conotação epistemológica e congruência com o cotidiano. Além da orga-
nização desses espaços domésticos para o estudo, visto que nem sempre é possível
obter um local e condições adequadas para o estudo.
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua divulgada pelo Ins-
tituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) relativa ao ano de 2018 aponta
que uma em cada quatro pessoas no Brasil não tem acesso à internet, considerando
números totais, são cerca de 46 milhões de brasileiros que não acessam as redes.
Em áreas rurais, o índice de pessoas sem acesso é ainda maior que nas cidades,
chegando a 53,5%, enquanto em áreas urbanas é 20,6% (TAKORNIA, 2020). Esses
dados são alarmantes quando pensamos na demanda de uma educação que está
acontecendo por meio de tecnologias digitais, visto que a desigualdade coloca em
detrimento novamente os menos favorecidos em uma sociedade demarcada pela
exclusão. Portanto, uma ponderação importante e fundamental neste momento é
o acesso às tecnologias digitais tanto pelos professores quanto pelos alunos. Para
além do acesso, o grande desafio está na utilização das tecnologias de informação e
comunicação (TICs), pois isso exige a reinvenção dos protagonistas no processo de
ensino-aprendizagem. É visível que algumas mudanças já aconteceram, por exem-
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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plo, uma maior interação entre família e escola, um contato frequente entre pais
e professores, um acompanhamento mais de perto, por parte dos pais, de todas as
atividades realizadas pelas crianças e pelos jovens, a centralização do estudante na
sua própria formação, estimulando a autonomia e a emancipação.
Todavia, esses elementos relatam a realidade de alunos e alunas que têm aces-
so às tecnologias digitais e, assim, são privilegiados, porém, há outra realidade, os
alunos que não têm o acesso. E como a escola tem agido diante dessa contradição?
Considerando a realidade em que se encontram alunos e alunas que não têm aces-
so às tecnologias digitais, precisamos enfatizar que, neste momento e nestas con-
dições, o artigo 53 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) não está sendo
cumprido, pois negligencia que “a criança e o adolescente têm direito à educação,
visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cida-
de e qualificação para o trabalho” (BRASIL, 2005, p. 31).
Os professores não têm nenhum meio de interação com os alunos há meses,
apenas enviam materiais, “atividades” para serem executadas junto à família. Tal
situação se equipara com o que Freire (2006) nomeou de “expulsão escolar”, que
se configura aliada à educação bancária de “depósito de conhecimentos”, desconsi-
derando que o educando é um ser histórico e tem suas experiências, configurando
essa situação em uma injustiça e uma exclusão que precisa, do ponto de vista ético,
causar indignação e atitude de mudança.
Ao olharmos para a educação nesse contexto histórico-social, ressalta-se que,
desde a sua origem até a contemporaneidade, ela se apresenta como um campo con-
troverso, por isso, o diálogo entre as práticas educativas é essencial para configurar
o espaço de aprendizagem tensionado à realidade. Logo, as ações pedagógicas não
dizem respeito somente aos professores, mas também aos estudantes, à direção
escolar e à comunidade, pois envolve a ação e a reflexão de um percurso que os
submerge.
Com o fechamento das escolas e universidades, houve uma mudança no am-
biente destinado ao ensino e à aprendizagem, estendendo-se ao contexto familiar,
com um cenário abruptamente comprometido. Para além de repensar a organi-
zação do ensino, foi preciso pensar no novo espaço destinado a isso. Assim, foi
necessário repensar a organização do trabalho docente, indicando as necessidades
de novas práticas que deveriam ser acrescidas aos saberes docentes para uma ten-
tativa de garantir o direito à educação, mesmo diante do panorama de isolamento
social. Esse cenário trouxe à baila muitas discussões referentes à nossa forma de
fazer educação até então, retomando a ideia de que o espaço escolar não se restrin-
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ge apenas a transmitir os conhecimentos historicamente acumulados, ele inspira
um desenvolvimento mais global dos estudantes, todo um processo de socialização,
que, neste momento, fica restrito ao ambiente doméstico.
No início dessas medidas, o sentimento ingênuo era de provisoriedade na pers-
pectiva de um retorno rápido, com o passar do tempo, foi-se percebendo que seria
necessário repensar toda a forma de ensinar, porque a realidade do ensino remoto
iria perdurar por muito tempo além do previsto. A partir de então, as escolas, os
professores e os gestores começaram a pensar em estratégias didático-pedagógicas
para a retomada das aulas em um novo formato.
As estratégias de ensino remoto são importantes para a redução dos efeitos
negativos do distanciamento, mas as evidências em relação à participação e ao
desenvolvimento das propostas indicam que lacunas de diversas naturezas serão
criadas sem a interação presencial, visto que a utilização de tecnologias digitais,
materiais impressos ou, ainda, kits destinados à elaboração das atividades não
garante que o processo de ensino-aprendizagem aconteça de forma satisfatória.
É preciso reinventar-se, pois esse percurso requer protagonismo e autonomia por
parte de professores e alunos, já que se trata de uma situação frágil pensando nas
múltiplas realidades que perpassam as modalidades e as etapas de ensino.
Assim, apresentamos e refletimos as possibilidades de organização do traba-
lho docente no município de Londrina, indicando um caminho possível para o retor-
no remoto, considerando todas as lacunas indicadas anteriormente.
Caracterização da rede municipal de Londrina
A cidade de Londrina está localizada na região norte do estado do Paraná e
sua rede municipal de educação dispõe de 120 unidades escolares, distribuídas em:
74 unidades escolares na zona urbana e 13 na zona rural; e 33 centros de educação
infantil. Trata-se de um Sistema Municipal de Educação, criado na cidade em de-
zembro de 2002, o que significa que o município tem autonomia para desenvolver a
educação de acordo com os princípios e as regras discutidos pela comunidade e por
meio de seus representantes no Conselho Municipal de Educação.
Vale salientar que as ações atendem as especificidades do município, discutidas
e definidas no Conselho Municipal de Educação, contudo, têm como base as normas
nacionais. Fazem parte do Sistema Municipal de Educação todas as escolas muni-
cipais e todas as escolas de educação infantil do município (públicas e privadas).
Sendo assim, além das 120 municipais já citadas, há 53 centros de educação infantil
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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filantrópicos (conveniados); 125 centros de educação infantil particulares; 41 escolas
com atendimento de Educação de Jovens e Adultos (EJA); e 7 entidades filantrópicas
de educação especial; totalizando 346 instituições escolares que atendem o município
de Londrina e que vêm enfrentando essa situação de retorno remoto.
Plano de Estudos Dirigidos
Diante da pandemia do novo coronavírus, todas as esferas da sociedade, como
os setores de prestação de serviço, comércio, alimentação, saúde, etc., precisaram
replanejar suas ações de forma aligeirada, visto que, por cuidados com a vida, no-
vas formas de atender o público e desenvolver o trabalho foram exigidas. O mesmo
ocorreu com a educação, sendo necessária, em nível nacional, uma reorganização
do trabalho pedagógico em todas as etapas da educação básica e no ensino superior.
Na rede municipal de Londrina, a partir do dia 17 de março, as instituições de
educação infantil, ensino fundamental e EJA entraram em quarentena. O fecha-
mento das escolas ocorreu por meio do Decreto n. 334, de 17 de março de 2020, e
por meio da Portaria n. 36, de 15 de abril de 2020, foi constituído um comitê para
análise dos encaminhamentos pedagógicos das instituições escolares da Rede Mu-
nicipal de Ensino de Londrina durante a pandemia da Covid-19, pois foi preciso
repensar e planejar o trabalho educativo, de acordo com a nova realidade, que
separou fisicamente professor e aluno e que limitou os encontros pedagógicos.
As discussões do referido comitê resultaram na Resolução n. 25, de 27 de maio
de 2020, a qual orientou todas as unidades escolares da rede sobre o desenvolvi-
mento das atividades não presenciais, em caráter de excepcionalidade, enquanto
forem tomadas as medidas de distanciamento social devido à pandemia. Foi esse
documento que regulamentou o Plano de Estudos Dirigidos (PED):
Art. 1° - Estabelecer regime especial de atividades escolares não presenciais, organizado
pelo Plano de Estudos Dirigidos – PED, para as unidades escolares da Rede Municipal
de Ensino de Londrina, em todas as etapas e modalidades ofertadas, durante o período
em que vigorarem a suspensão das aulas presenciais e as medidas de isolamento social,
decorrentes da excepcionalidade em função da pandemia do Novo Coronavírus (COVID19)
(LONDRINA, 2020a, p. 2).
De acordo com o Guia de orientações, o PED tem como objetivo assegurar o
vínculo do aluno da educação básica com as atividades escolares. O documento
ressalta que tais medidas de cunho pedagógico não consistem na modalidade de
ensino a distância (EaD), mas de uma alternativa, ou seja, uma estratégia pedagó-
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gica adotada com o intuito de assegurar às crianças o direito à educação durante o
distanciamento social (LONDRINA, 2020a). O documento também pontua que não
se trata da substituição das aulas presenciais por aulas remotas, mas de uma nova
organização pedagógica diante das necessidades de garantir o acesso à educação
em meio a uma crise de saúde pública.
Sobre os conteúdos, outro documento sobre o PED elaborado pela rede afirma
que as aulas ministradas durante a pandemia têm como objetivo principal:
[...] consolidar aprendizagens iniciadas neste ano letivo, bem como, retomar conteúdos em
Língua Portuguesa e Matemática aprendidos ao longo da escolaridade, sem avançar em
conteúdos novos nesses dois componentes curriculares. Entretanto, avançaremos nos estu-
dos em Ciências, História e Geografia, pois os conteúdos desses componentes curriculares
estão relacionados às necessidades da vida cotidiana, problematizando a realidade do aluno
e proporcionando experiências de aprendizagem importantes nesse momento de pandemia
(LONDRINA, 2020c, p. 1).
Portanto, o avanço ou não para cada ano escolar (1º ao 5º) em relação aos con-
teúdos ficou organizado dessa forma. Lembrando que se trata de uma perspectiva
integradora dos componentes curriculares, ou seja, os conteúdos de Ensino Religio-
so, Arte, Educação Física, Língua Portuguesa e Matemática foram estruturados a
partir de pontos de integração entre Ciências, História e Geografia e organizados
em trimestres.
Para apresentar o PED aos professores das unidades escolares da cidade,
foram realizadas práticas pedagógicas por videochamadas, com a mediação da
coordenação pedagógica de cada unidade. Assim, todos os profissionais foram
orientados sobre os objetivos desse recurso e como elaborá-lo. A estrutura do PED,
incluindo seus elementos pedagógicos, é similar ao plano de aula. De acordo com o
artigo 5º da Resolução n. 25/2020:
Para efeito da elaboração das aulas remotas, o planejamento do professor deverá conter:
I - Objetivos de aprendizagem do conteúdo; II - Estratégias, práticas pedagógicas ou fer-
ramentas não presenciais a serem utilizadas; III - Tempo estimado (carga horária) e; IV-
Formas de registros para acompanhamento da aprendizagem (LONDRINA, 2020d, p. 5).
Esses itens foram colocados no PED em formato de pergunta, sendo: o que
vamos aprender hoje? Para que vamos estudar esses conteúdos? Como vamos es-
tudar esses conteúdos? De que forma vamos registrar o que aprendemos? Cada um
desses elementos se assemelha aos que constituem o plano de aula, optou-se por
questões com a finalidade de deixar mais compreensível para os alunos e a família.
Na primeira pergunta (o que vamos aprender hoje?), o professor deve mencio-
nar qual o conteúdo a ser trabalhado no dia. Na segunda pergunta (para que vamos
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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estudar esses conteúdos?), devem ser descritos os objetivos de aprendizagem. Vale
ressaltar que todos os conteúdos e objetivos são retirados da Base Nacional Comum
Curricular (BNCC). Com a pandemia e a mudança no calendário escolar, a rede
municipal de Londrina compilou os objetivos da BNCC e denominou de objetivos
essenciais de aprendizagem.
Diante disso, revela-se a reflexão: cabe à escola, neste momento, provar que
suas estruturas não são tão rígidas e que a palavra de ordem é a flexibilidade, por
meio de projetos adaptados à situação, envolvendo bons livros, filmes, situações
de aprendizagem vinculadas à experiência social de isolamento e enfrentamento
de uma pandemia mundial, questões que independem de um currículo rígido, de-
monstrando às escolas que os desafios às crianças são de outra ordem.
A questão que compõe o terceiro elemento do PED é: como vamos estudar es-
ses conteúdos? Trata-se da metodologia, da descrição de como vai ser a aula, como o
professor instrumentaliza o conteúdo, ou seja, de que maneira serão viabilizados o
ensino e a aprendizagem. Nesse momento do PED, a aula é detalhada e explicada,
por exemplo, deve-se mencionado quais páginas do livro didático serão utilizadas
para estudo, qual música, poema ou livro, quais vídeos os alunos devem assistir,
como pode ser a participação dos pais em cada etapa etc. Tal cenário foi previsto
pelo artigo 5 da Resolução n. 25/2020.
§ 2° - As estratégias, práticas pedagógicas ou ferramentas não presenciais a serem utili-
zadas constituem-se na forma como o professor pretende realizar as atividades, a fim de
que os objetivos de aprendizagem sejam alcançados: videoaulas, conteúdos organizados
em plataformas virtuais de ensino e aprendizagem, redes sociais, correio eletrônico, outros
meios digitais ou que viabilizem a realização das atividades por parte dos alunos, contendo,
inclusive, indicação de sites e links para pesquisa. Podem ser considerados aqui materiais
didáticos e/ou orientações na forma impressa para dirigir a aprendizagem de alunos que
porventura não possuam acesso às ferramentas digitais (LONDRINA, 2020d, p. 5).
O último elemento do PED é constituído pela pergunta: de que forma vamos
registrar o que aprendemos? Trata-se do momento em que o aluno vai registrar
sua síntese, ou seja, o que aprendeu. Com as aulas remotas, as formas de registros
foram ampliadas. Permaneceram as páginas do livro, as interpretações de textos e
outras atividades prontas, no entanto, foram acrescentadas gravações de áudio e
vídeo e fotografias.
Uma questão importante que precisa ser ressaltada é a carga horária des-
tinada à realização das atividades escolares pelos alunos e por suas famílias. No
PED, consta que cada aula equivale a 4 horas, sendo assim uma forma de definir
o tempo de realização das atividades por meio da aplicação de metodologias ou
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práticas pedagógicas mediadas ou não por tecnologia para o alcance dos objetivos
de aprendizagem. Devemos considerar que as atividades no formato remoto podem
ser realizadas de forma síncrona ou assíncrona, a primeira acontece com a comuni-
cação entre alunos e professores em tempo real, no horário em que a aula acontece
na escola em que o aluno está matriculado; na segunda, as partes podem acessar o
material em momentos distintos.
Também foi necessário considerar que o tempo não é o mesmo, pois:
Na escola, os espaços utilizados são organizados para o atendimento e, além disso, a ins-
tituição dispõe de recursos variados, tempo destinado a situações diversas (hora do conto,
aulas de educação física, atividades do Programa Vida, participação em sala multimídia,
e recreio dentre outras). [...]. Durante as aulas, a realização das atividades ocorre imersas
a outras situações escolares: há interação entre alunos, atividades em grupos, explicações
coletivas, correções e atendimentos individuais, enfim, uma multiplicidade de ações que
fazem parte da rotina escolar. Nesta perspectiva, o tempo e o espaço escolar constituem
elementos mediadores do processo ensino-aprendizagem (LONDRINA, 2020b, p. 6-7).
Portanto, a carga horária é apenas uma forma de organizar o trabalho escolar,
para que os objetivos da aprendizagem sejam alcançados. Ela deve ser considerada
no todo do processo, e não apenas nos momentos síncronos. É indispensável lembrar
que o tempo para o aluno realizar as atividades e produzir conhecimento a distân-
cia, ou seja, sem orientação e presença do docente, é absolutamente hipotético, de-
vido a infinitas variáveis, alerta preconizado pelas indicações do PED que enfatiza
o interesse maior na qualidade das propostas de atividades, e não na quantidade.
O papel do professor foi adaptado, ele ainda tem a função de mediar o processo,
mas o acompanhamento do aluno acontece de forma diferente do que aconteceria
presencialmente. Para Libâneo (2014), o papel do professor é mediar a relação ati-
va do aluno com a matéria, considerando o conhecimento, a experiência e também o
significado que ele traz à sala de aula, à sua capacidade cognitiva e ao seu interes-
se. No formato remoto, o monitoramento do aluno durante o PED pode ocorrer por
meio de verificação de acesso e comunicação com a família e/ou aluno no aplicativo
WhatsApp, com ou sem imagem, áudio ou vídeo do registro no livro, caderno e/
ou atividades impressas. Os professores preenchem planilhas de monitoramento,
assim, a coordenação de cada unidade escolar tem acesso a todas as turmas, verifi-
cando quais alunos estão realizando as atividades e quais não estão.
A partir da análise de quais alunos estão ou não realizando as atividades, é
feito o contato com as famílias com intuito de manter o vínculo e perceber se há
dificuldade em relação às atividades e o que a escola pode fazer para amenizar a
ausência do envio de atividades. Lembrando que os materiais concretos, como ati-
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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vidades e livros, são entregues às famílias na escola, em diferentes períodos, para
que todos os professores de cada turma tenham acesso ao que as crianças estão
realizando, bem como suas aprendizagens, de acordo com os objetivos de cada aula.
Diante dessa realidade, a inquietação de muitos professores e das famílias foi:
de que maneira será feita a avaliação, se o professor não esteve presencialmente
com o aluno? Os alunos maiores não farão provas? O acompanhamento do processo
de ensino e aprendizagem ocorre por meio dos registros enviados digitalmente e
também pela correção dos materiais didáticos em sua forma concreta. Dessa forma,
a rede municipal de Londrina determinou que, neste ano, a avaliação da aprendi-
zagem ocorrerá por meio de pareceres descritivos.
No documento denominado “Como fica a avaliação em tempos de pandemia”,
foi explicitado que: “a SME irá adotar o parecer descritivo sem o objetivo de avaliar
o desenvolvimento, ou seja, nele irá constar a descrição de como foi esse processo de
ensino e aprendizagem por meio da atividade remota” (LONDRINA, 2020a, p. 16).
Sendo assim, os professores deverão elaborar um parecer para cada aluno, da sua
respectiva turma, descrevendo se os objetivos de aprendizagem foram alcançados.
Ele terá como base para essa elaboração os registros de monitoramento, os ca-
dernos e os livros entregues pela família na escola e os materiais (fotos, áudios e
vídeos) enviados via WhatsApp. No caso dos alunos que não realizarem as ativida-
des, a gestão escolar deverá tomar as devidas providências, no intuito de garantir
que eles tenham acesso à educação. Como prevê a Resolução n. 25, no artigo 5:
§ 6° - Quando comprovada a não realização das atividades, seja por dificuldade de acesso,
por falta de conectividade ou por qualquer outra situação, cabe à unidade escolar entrar
em contato com a família e sugerir outras possibilidades para a aprendizagem, inclusive
a possibilidade de convocar a criança, de forma presencial, para atendimento individual
(LONDRINA, 2020d, p. 6).
Portanto, cabe a cada unidade escolar providenciar meios para auxiliar os
alunos que, por algum motivo, não buscaram os materiais ou não estão conseguin-
do ter acesso às aulas remotas. Para tanto, há uma equipe de mediadores escola-
res disponibilizada pela Secretaria Municipal de Educação, que são profissionais
responsáveis por mediar as atividades escolares e os alunos com dificuldades de
acesso. Conforme o Guia do PED:
Os alunos que apresentam dificuldades de conectividade com a rede de internet, o que
inviabiliza o acesso às formas virtuais, estão sendo atendidos somente com material im-
presso, seja com atividades específicas, ou o uso dos livros e cadernos (LONDRINA, 2020b,
p. 13).
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Também está previsto no Guia que os alunos que por alguma justificativa não
participarem das atividades do PED, quando houver o retorno das aulas presen-
ciais, serão inseridos em atendimentos de Plano de Recuperação Paralela e/ou no
PIAPC. Também é mencionado pelo documento que será realizada uma avaliação
diagnóstica, a fim de
[...] identificar se os conhecimentos essenciais definidos por meio das expectativas de
aprendizagem para esse período foram consolidados pelos alunos. Os resultados subsidia-
rão o ingresso dos alunos com defasagens nos planos de atendimentos citados (LONDRINA,
2020b, p. 16).
Ao analisar a estrutura desenvolvida pela Secretaria Municipal de Educação
de Londrina, é possível perceber a preocupação em relação à organização do PED,
em especial no que diz respeito ao apoio às famílias no acompanhamento das ati-
vidades pedagógicas dos alunos, entretanto, ressaltamos que incorremos o risco
de abordagens que não condizem com a prática pedagógica necessária à apropria-
ção dos conteúdos para o desenvolvimento dos alunos, uma vez que, na relação
conteúdo e forma, a dialética entre o encadeamento das ações pressupõe o saber
pedagógico. Por certo, atingir todas as famílias foge do controle da escola e das pro-
fessoras, mas a ação de ir ao encontro, da forma como é possível no distanciamento
social, merece ser reconhecida e valorizada, pois os laços foram estreitados a partir
de grupos de WhatsApp, ligações, atividades repensadas, kits de materiais, tendo
como pressuposto a realidade dos alunos e com intuito de superar a fragmentação,
o negacionismo e a dicotomia entre família e escola.
Destacamos que os documentos são uma mostra das práticas compartilhadas,
não sendo possível fazer análise das incidências do trabalho da rede como um todo.
Contudo, sabemos que foi e está sendo a possibilidade pedagógica planejada e sis-
tematizada pelos gestores da educação do município, a fim de garantir o acesso à
educação, por meio do vínculo entre os alunos matriculados e as atividades escola-
res durante o período de isolamento social e de todas as outras medidas de caráter
excepcional que afetaram a educação devido à pandemia do novo coronavírus.
Considerações nais
Diante do cenário de pandemia, o qual trouxe significativas implicações para a
organização escolar e todo o trabalho pedagógico, um novo perfil docente certamen-
te será instituído no pós-pandemia, pois o aprendizado adquirido e as exigências
por novas reformulações no seu trabalho neste período de ensino remoto podem
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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ter levado muitos professores a novas vivências com sua atividade de ensino e com
seus alunos. Foi preciso coadunar o uso das tecnologias ao processo de ensino e
aprendizagem, que busca a formação de um aluno crítico e participativo, um desa-
fio constante da profissão agravado pelo momento pandêmico.
Cada instituição de ensino, da educação básica ao ensino superior, teve que
encontrar sua maneira de atuar, por meio de estratégias e alternativas mediadas
pelo uso de ferramentas digitais e recursos variados. Diante desse cenário, o ob-
jetivo deste estudo foi apresentar e refletir como a Rede Municipal de Educação
de Londrina, no norte do Paraná, organizou-se em relação às aulas em formato
remoto. Nesse município, a possibilidade organizada pelos gestores da educação foi
o Plano de Estudos Dirigidos (PED).
O caminho da educação formal durante todo o ano tem sido árduo em todas
as etapas, com suas ínfimas especificidades, porém, algo é comum, a tentativa de
fazer o melhor diante das condições e criar novas possibilidades para a garantia do
processo de ensino e aprendizagem por meio da educação. É perceptível, por meio
da análise do PED, bem como dos documentos que o norteiam, a preocupação com o
vínculo entre o aluno e a escola no período de isolamento, a linguagem desse plane-
jamento que chega até as famílias, a cautela com a avaliação das crianças de todas
as etapas e, principalmente, a busca por um modelo planejado que vise garantir o
acesso à educação às crianças.
Em relação ao cuidado com a avaliação nesse período, é importante salientar
que, além de os pareceres descritivos considerarem a ausência da mediação pre-
sencial do professor em relação às situações de aprendizagem, há menção de um
documento nomeado “Plano de recuperação de conteúdos pós-pandemia”, o qual
aponta que, no retorno das aulas presenciais, haverá outra reflexão que há tempos
perpassa os espaços escolares, sem o devido alcance em termos práticos, que se
trata da individualização do ensino e dos processos avaliativos. Afirmando a neces-
sidade de repensarmos a avaliação das crianças, levando em consideração tudo o
que as engloba e quais foram suas possibilidades de acesso e aproveitamento das
atividades escolares durante o período de pandemia.
Dessa forma, o processo de construção desse novo modo de ensinar e aprender
pode nos indicar um caminho de possibilidades, cercado de erros e acertos, porém,
entendido como processo, uma vez que inclui inúmeros aprendizados, não somen-
te aos professores, que reinventaram sua maneira de ensinar, mas também aos
alunos, que tiveram que aprender a participar de forma mais ativa no processo
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de construção do seu próprio saber, além também das famílias, que precisaram se
realocar dentro de um contexto de mudanças.
Diante disso, será necessário realizar uma nova avaliação diagnóstica, bus-
cando mensurar os efeitos do período de longo afastamento escolar, uma vez que
compreendemos que, independentemente do acesso às atividades não presenciais e
do suporte da família, o ano letivo será prejudicado do ponto de vista qualitativo. É
indispensável, portanto, que as escolas refaçam seus planejamentos, pensando em
como recuperar os alunos que tiveram prejuízos em suas aprendizagens de acordo
com o ano. Além disso, é imprescindível que seja atribuído maior enfoque ao acolhi-
mento dos alunos, destinando a eles um olhar atento, que nos possibilite, enquanto
profissionais da educação, estarmos sensíveis à identificação não só dos prejuízos
escolares, mas também de possíveis situações de desigualdade e vulnerabilidade,
já existentes, porém, e muitas vezes negligenciadas na escola presencial, e que
podem ter sido acentuadas com a pandemia.
De fato, ainda não podemos mensurar o alcance das práticas docentes no pe-
ríodo pandêmico. Olhamos para o entorno e turvamente observamos as ações, que
ora nos orgulham, ora nos assustam, ficamos maravilhadas de ver devolutivas de
atividades que são compartilhadas pelas famílias e impotentes em efetivar a prá-
tica docente que habitualmente realizamos (pela tríade: forma-conteúdo-destina-
tário). Se, de fato, essa oferta tem sentido, é uma questão que buscamos descobrir,
com olhar crítico e reflexivo.
Portanto, reconhecemos a necessidade de futuras investigações a serem rea-
lizadas pós-pandemia sobre a educação do município, numa parceria entre a uni-
versidade e a educação básica, a fim de, a partir da prática social, apontar novos
caminhos para a sistematização e a efetivação de uma prática docente que consi-
dere a escola um lugar de estar junto, de transmitir e produzir conhecimentos e
cultura humana, por meio da participação dos alunos, da família e de toda a equipe
pedagógica e gestora, almejando o desenvolvimento humano.
Nota
1 Dados obtidos por intermédio do monitoramento realizado pelo Ministério da Saúde em tempo real. Dispo-
nível em: https://covid.saude.gov.br/.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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O Plano de Estudos Dirigidos como orientador do trabalho pedagógico durante a pandemia na rede municipal de Londrina, PR
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Perspectivas no futuro educacional da Bahia: breves relatos de educadores em tempos de Covid-19
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* Doutora em Educação (FAE/UFMG). Professora Adjunta do Departamento de Ciências da Educação (DCIE), na Univer-
sidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Professora no Programa de Pós-Graduação – Mestrado em Formação de Profes-
sores para a Educação Básica (DCIE/UESC). Coordenadora do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação e Ciências
Humanas (CEPECH). Coordenadora do Grupo de Estudos Movimentos Sociais, Diversidade e Educação do Campo
(GEPEMDEC/CEPECH) (DCIE/UESC). Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0217-3805. E-mail: arlerp@hotmail.com
** Mestre em Educação no PPGEd-UESB. Graduado em Pedagogia e em Tecnologia Gestão Ambiental. Especialista em
Inovação Social com Ênfase em Economia Solidária e Agroecologia/IF Baiano. Especialista em Supervisão Escolar e
Coordenação Pedagógica com Ênfase em Educação Especial e Inclusiva, Faculdade Montenegro. Professor do Colé-
gio Estadual Sinésio Costa (CESC), Riacho de Santana, BA. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-2856-1219. E-mail: tony.
dom1987@gmail.com
Recebido em: 14/06/2020 – Aprovado em: 12/08/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i2.11181
Perspectivas no futuro educacional da Bahia: breves relatos de educadores em
tempos de Covid-19
Perspectives in Bahia’s educational future: brief reports from educators in Covid-19 times
Perspectivas en el futuro educativo de Bahia: cortos informes de los educadores em tiempos
de Covid-19
Arlete Ramos dos Santos*
Antônio Domingos Moreira**
Resumo
O presente trabalho teve como objetivo discutir as perspectivas para o futuro educacional do ensino médio no
estado da Bahia, no momento de pandemia do coronavírus vivenciado em 2020. A pesquisa traz uma discussão
a partir da tentativa de aproximar e identicar algumas características da educação tecnológica, remota e a
distância no atual contexto de crise com a propagação da Covid-19. Adotamos a pesquisa qualitativa, cujo ins-
trumento de coleta de dados foi questionário com educadores que são servidores das escolas de ensino médio
da Bahia, os quais relatam experiências vivenciadas no atual contexto educacional em que trabalham. Os dados
demonstram que as políticas públicas certamente começarão a avançar no que se referem ao ensino online, em-
bora exista a necessidade de que elas se tornem acessíveis para todos. Isso envolve múltiplos aspectos: viabilizar
o acesso a computadores e internet, capacitar gestores, professores e pais de famílias, desenvolver materiais
adequados, dentre outros.
Palavras-chave: Covid-19; ensino remoto; políticas públicas.
Abstract
The present work aimed to discuss the perspectives for the educational future of high school in the state of
Bahia, at the time of the coronavirus pandemic experienced in 2020. The research brings a discussion from the
attempt to approximate and identify some characteristics of technological education, remote and from distance
in the current context of crisis with the spread of Covid-19. We adopted qualitative research, whose data collec-
tion instrument was a questionnaire with educators who are employees of high schools in Bahia, who report
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experiences in the current educational context in which they work. The data demonstrate that public policies
will certainly begin to advance with regard to online education, although there is a need for them to become ac-
cessible to all. This involves multiple aspects: enabling access to computers and the internet, training managers,
teachers and parents of families, developing appropriate materials, among others.
Keywords: Covid-19; remote teaching; public policy.
Resumen
El presente trabajo tuvo como objetivo discutir las perspectivas para el futuro educativo de la escuela secundaria
en el estado de Bahía, en el momento de la pandemia de coronavirus experimentada en 2020. La investigación
trae una discusión que empieza del intento de aproximar e identicar algunas características de la educación
tecnológica, remota y a distancia en el contexto actual de crisis con la difusión de Covid-19. Adoptamos una
investigación cualitativa, cuyo instrumento de recolección de datos fue un cuestionario con educadores que son
empleados de escuelas secundarias en Bahía, quienes informan experiencias vividas en el contexto educativo
actual en el que trabajan. Los datos muestran que las políticas públicas ciertamente comenzarán a avanzar con
respecto a la educación en línea, aunque es necesario que sean accesibles para todos. Esto implica múltiples
aspectos: permitir el acceso a computadoras e internet, capacitar a gerentes, maestros y padres de familia, de-
sarrollar materiales apropiados, entre otros.
Palabras clave: Covid-19; enseñanza a distancia; políticas públicas.
Introdução
A presente pesquisa traz discussões sobre os desafios e as transformações que
o estado da Bahia vem sofrendo com a crise da pandemia da Covid-19, que vem
assolando todo o contexto mundial. A crise sanitária em escala mundial causada
pelo vírus da Covid-19 tem provocado desdobramentos incalculáveis em todas as
esferas da vida humana. A educação escolar, enquanto parte constituinte desse
processo, tem sofrido diretamente os impactos desse cenário. Com o fechamento
das escolas, cerca de 1,5 bilhão de estudantes estão sem aulas presenciais em 188
países, segundo relatório da Organização das Nações Unidas (ONU). Segundo o
Ministério da Saúde (BRASIL, 2020, não paginado):
A COVID-19 é uma doença causada pelo coronavírus SARS-CoV-2, que apresenta um qua-
dro clínico que varia de infecções assintomáticas a quadros respiratórios graves. De acordo
com a Organização Mundial de Saúde (OMS), a maioria dos pacientes com COVID-19 9cer-
ca de 80 %) podem ser assintomáticos e cerca de 20 % dos casos podem requerer atendimen-
to hospitalar por apresentarem dificuldade respiratória e desses casos aproximadamente
5% podem necessitar de suporte para o tratamento de insuficiência respiratória (suporte
ventilatório).
No Brasil, como alternativa ao quadro de interrupção das atividades escola-
res, os governos têm editado medidas emergenciais, seja por decreto ou por regula-
mentação de órgãos colegiados, que sinalizam para a utilização das tecnologias no
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ensino remoto como possibilidade de se manter o vínculo de crianças, jovens e adul-
tos com a escola, bem como a realização de atividades pedagógicas que impeçam
uma bruta interrupção com as culturas escolares. Os sistemas de ensino têm sido
orientados pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) para o redimensionamento
do tempo, a organização dos calendários e a readequação das atividades escolares,
permitindo que o ensino remoto possa ser considerado no cômputo das cargas ho-
rárias previstas na legislação.
Como se já não bastasse a histórica e reconhecida falta de prioridade do poder
público para com a educação no país, as alterativas que se impõem à escola durante
a pandemia de Covid-19, como a utilização do ensino remoto mediado por tecnolo-
gias, evidenciam mais uma vez as enormes desigualdades que afetam a educação
pública, como a realidade de 30,4% das escolas que não têm conexão com a internet
(INEP, 2018). Além disso, é importante considerar que 11% da população formada
por crianças e jovens da faixa etária entre 9 e 17 anos não possuem acesso à rede
mundial de computadores (UNESCO, 2020), situações que se impõem como gera-
doras de exclusão digital e que geralmente são precedidas e acompanhadas por
problemas socioeconômicos e culturais que também afetam a escola.
A educação, no seu aspecto fundamental, sofreu paralisação das aulas pre-
senciais e, consequentemente, na Bahia, especialistas se preocupam com o futuro
da educação, mas, no nosso caso, destacaremos o ensino médio dos jovens para os
quais não tem sido ofertado um ensino de qualidade. Com o advento da pandemia
do coronavírus, com o uso de educação a distância, isso piorou consideravelmente,
uma vez que nem todos os alunos têm acesso às tecnologias mediadas, principal-
mente a internet. E isso tem escancarado o fato de que a educação não é ofertada
para todos de forma democrática.
O fechamento das escolas, uma das medidas tomadas em relação à pandemia,
impactou diretamente na manutenção dos dias letivos e da carga horária anual
estabelecida na Lei n. 9.394/1996, art. 24, I, que determina a carga horária mínima
anual de 800 (oitocentas) horas, distribuídas por no mínimo 200 (duzentos) dias
de efetivo trabalho escolar. Para que isso fosse garantido, os sistemas de ensino
públicos e privados começaram a atuar em várias frentes por meio do uso das
tecnologias educacionais, enviando atividades via internet, ou mesmo garantin-
do aulas remotamente por meio de plataformas específicas. Nesse sentido, o CNE
aprovou o Parecer CNE/CP n. 5, de 20 de abril de 2020, que trata da reorganização
do calendário escolar e da possibilidade de cômputo de atividades não presenciais
para fins de cumprimento da carga horária mínima anual, em razão da pandemia
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da Covid-19. Esse cenário fez com que os Conselhos Estaduais de Educação de di-
versos estados e vários Conselhos Municipais de Educação emitissem resoluções e/
ou pareceres com orientações para as instituições de ensino pertencentes aos seus
respectivos sistemas sobre a reorganização do calendário escolar e o uso de ativida-
des não presenciais (BRASIL, 2020).
Nesse período de transição no sistema educacional, observa-se que a educação
remota é para quem tem acesso à internet. É importante afirmar que ter internet
para acessar WhatsApp é diferente de ter uma rede com capacidade para baixar
um arquivo, um livro, etc. Aliás, são três aspectos que precisam ser levados em
conta quando se fala do uso dessa ferramenta: o serviço, ou seja, a internet; os
equipamentos, uma vez que os alunos podem ter um bom acesso à internet, mas
não ter um bom computador ou celular; e a formação para o uso das tecnologias.
Também é importante salientar que, no contexto educacional na Bahia, parte dos
professores que têm internet e equipamentos não tem a formação adequada para
trabalhar com educação a distância, o que é imprescindível para ofertar um ensino
de qualidade para os alunos.
Analisando o contexto baiano e o Brasil, o professor da Faculdade Getúlio
Vargas (FGV), Vieira (2020 apud FGV, 2020, não paginado), afirma que chamam a
atenção, primeiramente, durante essa crise sanitária, a resiliência e a capacidade
de adaptação. “O mais importante foi que a sociedade vem se conformando aos
direcionamentos propostos pelas ciências, que atualmente passavam por uma fase
de descrédito”. Ainda segundo o professor, as autoridades que refutaram a ciência
foram obrigadas a voltar atrás. Aquelas que usaram de seu poder institucional
para reforçar a prudência e a racionalidade foram fortalecidas. Vieira (2020 apud
FGV, 2020) alerta que os esforços têm que ser redobrados em um país como o Bra-
sil, uma vez que a desigualdade social tornará a crise de saúde pública muito mais
aguda e dramática para os mais pobres, pois, nos momentos de crise, os problemas
de uma sociedade, escamoteados durante a normalidade, afloram de maneira mais
contundente.
Já a psicanalista Heloisa Ditolvo (2020 apud FGV, 2020) afirma que a crise
advinda do novo coronavírus irá abrir possibilidades de diálogos e momentos de
conversa. Na análise da psicanalista, uma forma de enfrentar esses sentimentos
surgidos com a quarentena é fazer um corte para que tudo convirja para dentro de
casa. Por isso, as redes sociais entram agora como instrumento essencial, mas sua
forma de uso vai mudar: ao invés de registrar grandes feitos, grandes conquistas,
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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grandes viagens, as redes sociais serão usadas para se importar com o outro, para
criar outros tipos de ajuda, para pedir apoio do outro.
Tecnologias no sistema educacional em crise epidêmica: possibilidades de
articular o trabalho pedagógico aos recursos tecnológicos
O mundo contemporâneo, neste momento histórico da pandemia da Covid-19,
está marcado pelas diversas transformações sociais, econômicas, culturais, edu-
cacionais e outras. Santos, Silva e Alves (2018, p. 19) salientam que: “As mudan-
ças ocorridas no Brasil, desde a década de 1970, provocaram transformações que
mudaram a forma de gerir as políticas públicas e o relacionamento entre Estado
e sociedade civil”. No que se refere à propagação do coronavírus em toda parte do
planeta, as autoridades competentes e os especialistas na área de saúde percebem
um avanço significativo no Brasil, o que ocasionou a suspensão de aulas das redes
pública e privada em todo o país. A medida serve para evitar aglomerações e des-
locamentos. Segundo autoridades de saúde, uma das melhores formas de parar a
transmissão é ficar em isolamento social. Mas, esse distanciamento social, que,
praticamente, anula a capacidade de mobilização e de reação da sociedade, não
pode vendar os nossos olhos para ataques oportunistas que, pegando carona na
excepcionalidade da situação, não têm outra intenção senão a de favorecer a deter-
minados setores, em detrimento da vida humana.
Vimos isso com a Medida Provisória n. 927/2020, a qual previa a suspensão
dos contratos de trabalho por 4 meses, sem salário, como ajuda aos grandes empre-
sários; a injeção de R$ 1,2 trilhão para “salvar” os bancos; a proposta de redução
dos salários dos servidores públicos; a redução de repasses de recursos para políti-
cas de transferência de renda, etc. Essas medidas não são de todo novas, pois vêm
sendo gestadas há algum tempo, como germes do projeto de governo ultraliberal e
que, de tão impopulares, não são trazidas à luz. O momento de excepcionalidade e
a comoção social se tornaram, então, a penumbra necessária para a proposição de
ações que, certamente, resultarão em prejuízos sociais incalculáveis, que, ademais,
favorecerão o grande capital financeiro e o mercado. Sinal de alerta, então, para o
Parecer n. 33/2020, do Conselho de Educação do Distrito Federal, publicado no dia
26 de março de 2020, que orienta a implantação do ensino a distância na educação
básica, como medida de ajuste da organização do trabalho pedagógico e adminis-
trativo e do calendário escolar, enquanto durar a pandemia (SINPRO-DF, 2020).
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Arlete Ramos dos Santos, Antônio Domingos Moreira
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Sem aulas, estabelecimentos de ensino têm adotado o ensino remoto com uso
de computadores e atividades complementares, para dar continuidade à aprendi-
zagem das crianças. É importante salientar que nem todos os estudantes do país
têm acesso a computadores e à internet de qualidade. Outro problema é manter
a concentração de crianças mais novas, enquanto os pais também trabalham em
casa. Segundo a Unicef (2020), 154 milhões de estudantes estão sem aulas na Amé-
rica Latina e Caribe. A entidade alerta que a situação poderá se estender e há
risco de abandono escolar definitivo. Uma pesquisa divulgada em 2019 aponta que
58% dos domicílios no Brasil não têm acesso a computadores e 33% não dispõem
de internet (CGI.BR, 2020). Os dados apontam que, nas áreas rurais, nem mesmo
as escolas têm acesso à rede mundial de computadores: 43% delas afirmam que o
problema é a falta de infraestrutura para o sinal chegar aos locais mais remotos.
Diante desse cenário de possibilidades, Santos (2020) pondera sobre a atua-
lização das práticas pedagógicas. Para ela, a grande questão da cibercultura é a
transição de uma educação e uma formação estritamente institucionalizadas para
uma situação de troca generalizada de saberes. Os sujeitos deste espaço “do sa-
ber”, ciberespaço, formam também uma inteligência coletiva, e a busca em torno
da obtenção de novos saberes e identidades é necessária para o indivíduo poder
delimitar seu lugar no mundo e se fazer reconhecer como diferente entre tantos
outros, compartilhando seus conhecimentos e construindo ideais coletivos de forma
democrática.
Durante a propagação da pandemia da Covid-19 em 2020, em todos os luga-
res, a oferta do ensino tem sido repensada. Nesse sentido, no estado da Bahia, a
secretaria de educação, juntamente com educadores, pais e responsáveis dos alu-
nos, terá que driblar uma das funções da escola física, que é a de ser espaço de
convivência e saberes presenciais. Em tempos de isolamento social, a convivência
está sendo adaptada virtualmente, por tecnologias que tentam aproximação com a
realidade presencial. Segundo o Ministério da Educação (BRASIL, 2020, não pagi-
nado), no mês de maio de 2020: “A ação tem caráter excepcional e valerá enquanto
durar a situação de emergência de saúde pública por conta do coronavírus. A ade-
são por parte das instituições é voluntária”.
É importante compreender o papel da educação baiana no atual contexto so-
cial, político, e econômico, conforme sugerido pela temática, bem como a relação
entre as políticas públicas aplicadas ao sistema tecnológico atual em consonância
com a pandemia do coronavírus. A Secretaria de Educação do estado da Bahia (SE-
C-BA) publicou os Decretos n. 19.529/2020 e n. 19.635/2020, que versam sobre a
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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paralisação das aulas, com a condição de reposição presencial. A SEC-BA diz ainda
que estuda cenários sobre como ocorreria essa reposição, porém, em qualquer caso,
ela será implementada apenas após o retorno das atividades escolares. Dentre as
alternativas sugeridas pela SEC-BA, encontram-se a que sugere que as aulas se-
jam recuperadas no formato 100% presencial, com prolongamento do período letivo
adentrando o ano de 2021. Outra possibilidade versa sobre o retorno das aulas de
maneira 100% não presencial, com ou sem o uso de tecnologia. Além disso, a SEC-
-BA considera alternativas híbridas e complementares entre aulas regulares e não
presenciais, destacando que as últimas não se confundem com educação a distância
(BAHIA, 2020).
Segundo o secretário de educação da Bahia, Jerônimo Rodrigues, desde a che-
gada da Covid-19 ao Brasil, diversas medidas em vários setores vêm sendo toma-
das para evitar a contaminação das pessoas (CARVALHO, 2020). O secretário sa-
lienta que o governo do estado decretou isolamento social desde o dia 16 de março
de 2020, de modo que apenas as atividades essenciais seguiram acontecendo. Na
rede pública estadual de ensino, de acordo com o decreto do governador, Rui Costa
(PT), as aulas estão suspensas por tempo indeterminado no referido ano.
Diante dessas transformações que a educação na Bahia vem sofrendo por
causa da pandemia da Covid-19, gestores, professores, estudantes e famílias vêm
buscando alternativas para diminuir os prejuízos no sistema educacional. Uma das
políticas implantadas pelo governo do Partido dos Trabalhadores (PT), na Bahia,
foi o programa de Vale Alimentação Estudantil, aprovado pela Assembleia Legisla-
tiva da Bahia no dia 14 de maio de 2020. Foi concedido um auxílio-alimentação no
valor de R$55 para todos os estudantes da rede estadual de ensino, enquanto durar
o isolamento social, para amenizar os prejuízos e ajudar na situação financeira
desses estudantes e da própria família. É perceptível a preocupação da secretaria
de educação do estado em promover diversas parcerias com instituições, na pers-
pectiva de promover algumas atividades online para estudantes e professores no
período da pandemia.
Nas discussões de especialistas da área educacional, Vieira e Ditolvo (2020
apud FGV, 2020) afirmam que não se trata de problematizar a pertinência da edu-
cação remota, educação a distância ou via redes sociais, como é caso de WhatsApp
e outros aplicativos. Até mesmo porque esse é um fenômeno nada novo, previsto
no art. 80 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei n. 9.394/1996, e
devidamente regulamentado pelo Decreto n. 5.622, de 19 de dezembro de 2005, o
qual estabelece, no seu art. 3º: “A criação, organização, oferta e desenvolvimento de
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cursos e programas a distância deverão observar ao estabelecido na legislação e em
regulamentações em vigor, para os respectivos níveis e modalidades da educação
nacional”. Limitado pelas condições materiais de sobrevivência de grande parte
das famílias brasileiras, pelo baixo investimento no setor educacional e pela falta
de políticas efetivas de formação continuada de professores e sem o devido preparo,
ainda mais com a pandemia da Covid-19.
Segundo Arroyo (2010), é urgente retomar a relação, não superada, entre edu-
cação e desigualdade, visto que ocorreram, no decorrer da história, mudanças de
qualidade das desigualdades e opressão que perduram na atualidade, não apenas
por seu aumento, mas pelo refinamento dos tradicionais processos que as determi-
nam. Essas desigualdades podem ser redefinidas, no contexto atual, pelos proces-
sos de concentração e de apropriação-expropriação da renda, da terra, do espaço
urbano, do conhecimento, das ciências e tecnologias, da privatização do Estado, de
suas agências e políticas.
Procedimentos metodológicos da pesquisa
Para elaboração desta pesquisa, adotamos a metodologia qualitativa explorató-
ria. Realizamos uma discussão para aprofundarmos a pesquisa do campo educacio-
nal sobre os impasses e as perspectivas para o futuro educacional no ensino médio na
Bahia e trazer relatos de alguns educadores (professores, coordenadores e diretores)
que lecionam ou coordenam escolas estaduais no âmbito baiano em tempos da Co-
vid-19, que ficam nos seguintes municípios: Bom Jesus da Lapa, Candiba, Riacho de
Santana, Salvador, Santa Maria das Vitórias, Matina e Vitória da Conquista.
Nessa perspectiva, optamos por realizar a coleta de dados através da aplicação
de questionários, cujos sujeitos da pesquisa responderam por e-mail as questões
enviadas, pois, devido ao isolamento social do presente momento, os pesquisado-
res não puderam aplicar o questionário de modo presencial. Utilizamos o correio
eletrônico também para enviar um documento explicando sobre os aspectos éticos
da pesquisa. Para a apresentação dos resultados, os sujeitos foram identificados
apenas pela sua função (professor, coordenador e diretor) nas instituições onde
trabalham. Para a coleta de dados a partir do questionário, recorremos a Gil (1999,
p. 128), que afirma o seguinte: o questionário pode ser definido “como a técnica de
investigação composta por um número mais ou menos elevado de questões apre-
sentadas por escrito às pessoas, tendo por objetivo o conhecimento de opiniões,
crenças, sentimentos, interesses, expectativas, situações vivenciadas etc.”.
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Diante dos impactos causados pela Covid-19 no mundo todo e das mudanças
ocasionadas no sistema educacional, a partir do isolamento social, optamos por
aplicar um questionário com educadores de algumas escolas do estado da Bahia,
para compreender as angústias e os principais impactos causados por esse vírus
que determinou o fechamento das escolas e optou pelo ensino remoto. Assim sendo,
os sujeitos escolhidos para participar foram servidores concursados pela Secretaria
de Educação do estado da Bahia, conforme demonstra o Quadro 1, que contém as
informações sobre os participantes da pesquisa, a profissão, a formação acadêmica,
a instituição em que trabalha e a cidade em que atua.
Quadro 1 – Informações dos participantes da pesquisa
Função Formação Instituição que atua Município
Professora Educação Física Colégio Estadual Antônio Batista Candiba
Professora Química Colégio Estadual Professora Marilene Silva Salvador
Professor Matemática Centro Territorial de Educação Profissional da
Bacia do Rio Corrente – Cetep Santa Maria da Vitória
Professora História Educandário Padre Gilberto Vaz Sampaio Vitória da Conquista
Coordenadora
pedagógica Pedagogia Colégio Estadual Sinésio Costa Riacho de Santana
Professor Letras e
Administração Colégio Modelo Luís Eduardo Magalhães Bom Jesus da Lapa
Gestão escolar
(diretora) Letras Centro Territorial de Educação Profissional da
Bacia do Rio Corrente – CETEP Santa Maria da Vitória
Fonte: elaboração dos autores.
É importante salientar que o questionário de perguntas abertas é um instru-
mento composto de um conjunto de perguntas ordenadas de acordo com um critério
predeterminado, que deve ser respondido sem a presença do respondente (MAR-
CONI; LAKATOS, 1999, p. 100), e que tem por objetivo coletar dados de um grupo
de respondentes. Este, por sua vez, objetiva levantar opiniões, crenças, sentimen-
tos, interesses, expectativas e situações vivenciadas; a linguagem utilizada nesse
instrumento deve ser simples e direta, para que o questionado possa compreender
e responder com clareza o que está sendo perguntado.
Na busca pela coleta de dados com os educadores do estado da Bahia, a pers-
pectiva é de que a mudança do ensino presencial para o ensino remoto não está
sendo fácil na realidade atual com a crise da pandemia da Covid-19. Todavia, as-
sumir o papel de educador e ser humano nesse contexto, tão essencial para o es-
tudante aprender com as ferramentas usadas, será complexo e haverá inúmeras
dificuldades a serem vencidas.
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A pesquisa será o caminho para construir o conhecimento necessário dos
estudantes e analisar as suas angústias e como os educadores se sentem nessa
conjuntura no sistema educacional e social. Adotamos o questionário por este ins-
trumento ser considerado como uma técnica bastante viável e pertinente para ser
empregada quando se trata de problemas cujos objetos de pesquisa correspondem
a questões de cunho empírico, envolvendo opinião, percepção, posicionamento e
preferências dos pesquisados.
Incertezas no sistema educacional
O artigo 1º da Lei n. 9.394/1996 define que a educação abrange os processos
formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no tra-
balho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e nas organi-
zações da sociedade civil e nas manifestações culturais. Nesse sentido, a educação
não pode ser negada como direito do ser humano.
É importante lembrar que, na Constituição federal de 1988, no artigo 205 (BRA-
SIL, 1988), a educação é tarefa do Estado em colaboração com a família, através
da promoção e do incentivo, no processo educativo. O termo colaboração indica o
reconhecimento por parte do Estado da enorme tarefa que cabe à sociedade, especial-
mente a civil organizada, na formação dos educandos. Conforme salientam Steca-
nela e Lomons (2020, p. 2), pensar no direito à educação nos remete a três aspectos:
(a) refletir acerca da natureza do direito, sua validez e expressão legal, incluindo-se aí a
diferença entre conquistá-lo e tê-lo reconhecido; (b) considerar os processos educacionais que
envolvem a organização curricular, a formação de professores e a infraestrutura oferecida
pelas escolas; e (c) problematizar as práticas ou modos de apropriação das políticas educacio-
nais e dos recursos materiais e humanos disponíveis, especialmente por parte dos docentes.
Nada impede, portanto, que a sociedade civil planejada, representada por as-
sociações comunitárias, entidades religiosas e organizações não governamentais,
possa, em conjunto com o Estado, realizar o trabalho de educar as pessoas. Partin-
do desse pressuposto, a questão se mostra mais na perspectiva humana e solidária
nessa crise epidêmica. A relação com o papel social da educação, principalmente
em tempos traumáticos, deve estimular reflexões sobre o que será feito com milha-
res de crianças e jovens após o fim do isolamento social imposto pelo risco iminente
do contágio pelo coronavírus.
Sobre tais incertezas e desafios da educação no estado da Bahia, da realidade
atual e problematizada, pensemos nas conexões do pensamento freiriano sobre a
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ação dos sujeitos dialógicos sobre ela, para transformá-la. “Educação problemati-
zadora se faz assim, um esforço permanente através do qual os homens vão perce-
bendo criticamente, como estão sendo no mundo” (FREIRE, 1988, p. 72). Todavia,
a problemática, como aborda Freire, é do próprio conhecimento em sua indiscutível
relação com a realidade concreta na qual se gera e sobre a qual incide, para melhor
compreendê-la, explicá-la e transformá-la.
Análise dos resultados
A partir dos dados coletados através de questionários respondidos por alguns
educadores das escolas estaduais pesquisadas na Bahia, evidenciamos nos relatos
que o número de crianças e jovens com dificuldade de aprendizagem aumentou sig-
nificativamente com a chegada do coronavírus. Assim, entendemos que a solução do
problema não está na “caça às bruxas”, como em uma visão maniqueísta de busca a
culpados. É necessária uma atitude frente aos problemas relatados, bem como dia-
logar com a sociedade a saída para a melhoria educacional em toda sua totalidade.
Na execução das atividades pedagógicas no sistema educacional baiano, se-
guindo as orientações do Conselho Nacional de Educação (CNE) e do Conselho
Estadual de Educação (CEE), para os estabelecimentos de ensino, em face da
pandemia da Covid-19, deve-se reportar à aplicação do previsto no art. 32 da Lei
n. 9.394/1996, que, de modo explícito, determina que no ensino fundamental as
atividades regidas pelos princípios da educação a distância sejam utilizadas como
complementação da aprendizagem ou aplicadas em situações emergenciais, subli-
nhada a regularidade da oferta no modelo de ensino presencial.
Em 18 de março de 2020, o CNE veio a público elucidar aos sistemas e às redes
de ensino, de todos os níveis, etapas e modalidades, considerando a necessidade de
reorganizar as atividades acadêmicas por conta de ações preventivas à propagação da
Covid-19. Em decorrência desse cenário, os CEEs de diversos estados e vários Conse-
lhos Municipais de Educação (CMEs) emitiram resoluções e/ou pareceres orientati-
vos para as instituições de ensino pertencentes aos seus respectivos sistemas sobre a
reorganização do calendário escolar e o uso de atividades não presenciais.
Em 3 de abril de 2020, o Ministério da Educação publicou a Portaria n. 376,
que dispõe sobre as aulas nos cursos de educação profissional técnica de nível mé-
dio enquanto durar a situação de pandemia da Covid-19. Em caráter excepcio-
nal, a portaria autoriza as instituições integrantes do sistema federal de ensino,
quanto aos cursos de educação profissional técnica de nível médio em andamento,
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a suspender as aulas presenciais ou substituí-las por atividades não presenciais
por até 60 dias, prorrogáveis a depender de orientação do Ministério da Saúde e
dos órgãos de saúde estaduais, municipais e distrital. Nas análises e discussões
sobre o sistema educacional brasileiro, é importante destacar alguns dados sobre
a educação na Bahia em decorrência da Covid-19, que afetou toda a população, e,
consequentemente, a paralisação das aulas presenciais.
Nessas análises, para compreender o que os sujeitos pensam sobre as aulas
remotas de modo online, fizemos o seguinte questionamento: quais medidas a sua
escola tem tomado até agora para minimizar os impactos da Covid-19 no que se refe-
re à oferta das aulas? Os participantes argumentaram conforme os relatos a seguir:
Desde o dia 19/03 as aulas presenciais foram suspensas. Foi implantado o acompanhamento
dos alunos através das mídias sociais. Foram feitos grupos de WhatsApp por turmas, por gru-
pos de líderes e as atividades e orientações foram enviadas desta forma. No segundo momen-
to, que começou no final de abriu, os professores passaram a utilizar a ferramenta do Google
sala de aula (Classroom). Os alunos que não tem acesso a internet ou outras dificuldades de
acessar, vão até a escola, com horário programado, buscar as atividades impressas (Professor
da cidade de Bom Jesus da Lapa, 2020).
Com relação às medidas preventivas a escola está sob afastamento social atendendo aos
decretos do governo do estado, como medida de prevenção e combate ao novo coronavírus
– Covid-19. Quando há a necessidade de adentrarmos nos recintos da escola utilizamos os
EPIs (máscaras e luvas) indicados pela Organização Mundial de Saúde – OMS e demais
orientações das autoridades municipais (Coordenadora pedagógica da cidade de Riacho de
Santana, 2020).
Assim como as demais escolas da rede estadual, seguindo orientações da Secretaria de Edu-
cação da Bahia, o CETEP trabalha com Rotinas de Estudo com objetivo de manter o vínculo
entre escola-professores-estudantes. É uma ação realizada parcialmente, de forma colaborati-
va e voluntária, através dos professores que se interessaram em seguir esse caminho durante
o período de suspensão das aulas. Infelizmente o alcance não é satisfatório, pois não pode-
mos contar com nossos estudantes sem acesso digital, principalmente os que vivem no meio
rural. Portanto, não adotamos como regra e nem como substituição das aulas ou reposição
de carga horária, trata-se apenas de uma possibilidade de troca de informações. (Diretora da
cidade de Santa Maria da Vitória, 2020).
Nós professores, somos orientados a encaminhar exercícios para os alunos para que nesse
período de quarentena, eles continuam em uma rotina de estudos com uma ênfase maior so-
bretudo para os alunos do 3º ano que irão fazer o Exame Nacional do Ensino Médio e precisa
acelerar os estudos para os vestibulares no final de ano. Abordando questões referentes a mi-
nha disciplina, encaminho para os líderes das turmas, e essa comunicação ela se dá por meio
de WhatsApp, os líderes das turmas por sua vez repassa essas atividades, esses exercícios
e vídeo aulas para as turmas que os representam (Professora da cidade de Candiba, 2020).
As considerações gerais sobre a legislação indicam a necessidade de construir
novas alternativas de organização curricular, comprometidas, de um lado, com o
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novo significado do trabalho no contexto da globalização e, do outro, com o sujeito
ativo, a pessoa humana que se apropriará desses conhecimentos para aprimorar-
-se no mundo do trabalho e na prática social. Não podemos deixar de apontar a
precariedade em infraestrutura tecnológica, conectividade, conteúdo digital e ex-
periência de ensino existente para poder concretizar o modelo de educação virtual
em casa. Isso nem mesmo para a lógica do mercado poderá ser resolvido em meses
ou em alguns anos.
Os educadores foram questionados na seguinte perspectiva: a escola está
preocupada em garantir o aprendizado do ano letivo, e no cumprimento de carga
horária e na distribuição de conteúdo no período do isolamento? Os participantes
relataram o que segue:
Penso que a melhor saída seja contabilizar horas de tarefas de casa, quando as aulas forem
retomadas. Certamente, será necessário repensar a distribuição de conteúdo e carga horária
(Professor da cidade de Santa Maria da Vitória, 2020).
Nossa escola não está preocupada com o cumprimento dos dias letivos, no momento, esta-
mos focados em favorecer a aprendizagem dos estudantes através de tecnologias de comuni-
cação e atividades remotas. Além dessas ações, a escola presta atendimento diariamente aos
estudantes de maneira virtual sobre as atividades da escola, como o Programa Mais Estudo
(Coordenador pedagógico da cidade de Matina, 2020).
Os professores deverão reduzir a quantidade de conteúdo trabalhando de forma significativa.
Com relação à carga horária, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (9.9394/96) informa
que o calendário deve ter no mínimo 200 dias letivo. No entanto, diante da pandemia o projeto
de Lei 680/20 permite flexibilizar o calendário em caso de situações graves (Professora da
cidade de Salvador, 2020).
Importante destacar que todos nós professores, gestores, coordenação pedagógica, alunos
e família, estamos pisando em terrenos ainda muito incerto. Nós não sabemos esse efetiva-
mente como educação ficará na Bahia, se esse ano letivo se dará sob orientação à distância.
A orientação que nós educadores temos, que é necessária essa conexão com o alunado para
que os mesmos continuem uma rotina de estudos com ênfase em relação aos alunos do
terceiro ano, estudando com roteiro das disciplinas, para todas as avaliações externas, que
eles certamente farão, mas nós ainda estamos em um futuro incerto nessas mudanças todas
ocorridas pelo Covid-19 (Professora da cidade de Candiba, 2020).
A deputada Maria do Rosário (PT-RS) tem uma proposta com o foco de alterar
a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9.394/1996). A referi-
da proposta está descrita no Projeto de Lei (PL) n. 680/2020, em tramitação para
permitir a flexibilização do calendário letivo em caso de pandemias, doenças infec-
tocontagiosas ou outras situações graves e emergenciais. Com base nesse PL, asse-
guradas as cargas horárias mínimas anuais e os conteúdos previstos, será possível
descumprir a exigência de no mínimo 200 dias de efetivo trabalho escolar. Nesse
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sentido, o Parecer CNE/CP n. 5/2020, aprovado em 28 de abril de 2020, trata da
reorganização do calendário escolar e da possibilidade de cômputo de atividades
não presenciais para fins de cumprimento da carga horária mínima anual, em
razão da pandemia da Covid-19 (BRASIL, 2020), o qual emite orientações para a
oferta de ensino no que se refere às modalidades educacionais.
Em consonância com o CNE, o CEE da Bahia dispõe, na Resolução n. 37,
de 18 de maio de 2020, normas complementares, considerando a “suspensão das
atividades escolares por conta da pandemia da Covid-19”, com a possibilidade de
“ocasionar descontinuações indesejáveis do processo educacional, com efeito na
aprendizagem dos estudantes”. Segundo o CEE (BAHIA, 2020, p. 2):
Art. 3º - §1º A dimensão exarada no caput estabelece a possibilidade de aferir a soma do tem-
po destinado à consecução das tarefas pedagógicas por processos remotos, no conjunto das
oitocentas horas letivas anuais, desde que esta decisão seja consentânea com os propósitos
e os argumentos dos gestores das redes, em articulação com as unidades escolares, para
o Ensino Fundamental e para o Ensino Médio, bem como para a Educação Profissional e
Tecnológica.
Sobre o processo de ensino e aprendizagem desses educandos, fizemos o se-
guinte questionamento: qual é a importância do espaço escolar para o aprendizado,
a presença física, o convívio social? Os sujeitos se posicionaram da seguinte ma-
neira:
A educação não é feita unicamente pela transmissão de conteúdo, a aprendizagem está
ligada às relações interpessoais e as competências socioemocionais. O convívio social é de
suma importância para o desenvolvimento das crianças e adolescentes (Professora da cidade
de Vitória da Conquista, 2020).
O ser humano não é uma ilha! Daí a necessidade do convívio social e da presença física para
o compartilhamento e troca de experiências e o seu desenvolvimento psicossocial saudável.
A riqueza do convívio heterogêneo é indiscutível no processo ensino aprendizado. Porém, a
experiência que o afastamento social que o Covid-19 nos impôs com as atividades online, nos
mostra a importância da forma “hibrida” de ensinar (Coordenadora pedagógica da cidade de
Riacho de Santana, 2020).
A presença física de alunos e professores na escola é fundamental para a formação dos es-
tudantes, como seres sociais, psicológicos e cognitivos. O compartilhamento de informações
e saberes nas relações na escola enriquece a formação integral dos alunos (Coordenador
pedagógico da cidade de Matina, 2020).
A interação presente no espaço da escola é um importante instrumento no processo ensino-
-aprendizagem. Sem ela, em toda sua dinâmica na conjuntura escolar, as possibilidades de
ensinar e de aprender tornam-se difíceis e excludentes (Diretora da cidade de Santa Maria da
Vitória, 2020).
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Sobre interação e aprendizagem, segundo Libâneo (1994, p. 90), “a relação
entre ensino e aprendizagem não é mecânica, não é uma simples transmissão do
professor que ensina para um aluno que aprende”. Ele mesmo concluiu que é algo
bem diferente disso, pois “é uma relação recíproca na qual se destacam o papel diri-
gente do professor e a atividade dos alunos”. Dessa forma, podemos perceber que “o
ensino visa estimular, dirigir, incentivar, impulsionar o processo de aprendizagem
dos alunos”. Entretanto, há que se pensar a partir da perspectiva do isolamento
social ocasionado pelas eventuais pandemias, a exemplo do momento histórico que
estamos vivendo. Por isso, fizemos o seguinte questionamento: e sobre a questão da
pandemia na Bahia resultante da Covid-19 que afetou o mundo todo, na sua opi-
nião, qual o impacto desse vírus, se o sistema educacional continuar com atividades
de ensino remoto no estado? Para essa questão, os sujeitos relataram o que segue:
Urge a necessidade de aprimoramento, extensão e utilização de tecnologias de informação e
comunicação dos recursos tecnológicos (TICs) na educação brasileira. Chamo a atenção, no
entanto, para a qualidade dos recursos tecnológicos que chegam até a escola, principalmente
para o estudante, sem a qualidade que a demanda requer. O caso dos tabletes por exemplo
(Coordenadora pedagógica da cidade de Riacho de Santana, 2020).
Acredito que haverá mais atenção e investimento na área das tecnologias na escola, por parte
da administração pública. Só assim vão perceber que a desigualdade, a dificuldade de acesso
é muito grande, e neste momento as atividades remotas não estão atingindo a todos devido
essa falta de atenção e investimento nas escolas e na sociedade de forma geral. Neste ano,
durante a jornada pedagógica, foi muito discutido sobre as metodologias ativas da aprendi-
zagem, mas nenhum suporte técnico foi oferecido pela secretaria de educação (Professor da
cidade de Bom Jesus da Lapa, 2020).
A educação a distância no Brasil, passará por uma mudança na visão e na aplicação. A legis-
lação brasileira deve regulamentar essa modalidade de ensino (aplicada para a educação bá-
sica), além de debater junto com a sociedade a importância do ensino a distância (Professora
da cidade de Vitória da Conquista, 2020).
Uma alternativa para diminuir o impacto da paralisação das aulas. Porém, como veio de re-
pente, a grande maioria dos professores e alunos não reúne condições mínimas para que se
obtenha o resultado desejado (Professor da cidade de Santa Maria da Vitória, 2020).
Sobre o ensino remoto cada vez mais presente e a organização das atividades
curriculares, a Resolução n. 37 do CEE explicita, no art. 11 (BAHIA, 2020, p. 05):
No planejamento do retorno às atividades presenciais ou mesmo enquanto perdure a pande-
mia, as redes e unidades escolares da educação básica nas etapas da Ensino Fundamental e
do Ensino Médio, podem reconstituir a delimitação dos conteúdos na reprogramação das ativi-
dades de ensino, com suporte no Art. 32, Arts. 35 e 35-A, da LDB, respectivamente, reiterada
a BNCC como base desse procedimento.
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Todas essas questões geram mudanças e, de certo modo, transformam o siste-
ma educacional para um novo modelo ainda pouco conhecido. Sendo assim, ques-
tionamos o seguinte: nessas mudanças ocorridas nos últimos meses desse ano de
2020, na concepção de educador, o que é necessário fazer para compreender as
transformações ocorridas pelo advento da Covid-19 nesse cenário atual do sistema
educacional na Bahia? Os sujeitos responderam conforme segue:
Em primeiro lugar o professor precisar desmitificar que será substituído pela tecnologia e
aceitá-la como um forte aliado. Os recursos tecnológicos – TICs – oferecem diversas ferra-
mentas à disposição dos professores entre todas as áreas do saber. Os estudantes sinalizam
a necessidade dos professores se aperfeiçoarem para seguir a mudança. O uso da tecnologia
possibilita o estudo interativo de conteúdos, tornando-os mais atraentes e fazendo com que
o estudante adote uma postura mais participativa. As ferramentas tecnológicas permitem di-
versificar as metodologias de ensino a abrir caminho para infinitas possibilidades didáticas.
O trabalho com os recursos tecnológicos de aprendizagem são exemplos do potencial da
tecnologia para o desenvolvimento da educação. Infelizmente, ainda existe muita resistência
por parte significativa dos professores em encarara o desafio que hoje se torna necessário e
imperativo. Quiçá, por comodismo, por não querer sair da sua zona de conforto, ou seja, de
continuar fazendo o que já tem segurança para fazer, ou até mesmo, por falta de competência
técnica para o uso das ferramentas digitais, por fim, desmotivação, vontade e falta de incentivo
para inovar e aderir às mudanças que a nova era requer (Coordenadora pedagógica da cidade
de Riacho de Santana, 2020).
A atual conjuntura da educação mundial, é um desfio para os educadores. Pois, é necessá-
rio revisitar o fazer pedagógico. Os educadores precisam se adaptar a educação remota. A
tecnologia é uma importante aliada nesse momento da educação, como um entrave, já que
grande parte dos educadores não possuem equipamentos qualificados, ou não dominam as
tecnologias (Professora da cidade de Vitória da Conquista, 2020).
O professor deve estar sempre se reciclando para se adaptar as tecnologias surgidas e utiliza-
das pelos estudantes (Professora da cidade de Salvador, 2020).
Contudo, para além da importância de refletirmos sobre o desafio de preparar
os professores para o uso das tecnologias em seu fazer pedagógico, é necessário
avaliarmos se a formação contempla as tecnologias por uma ótica crítica, levando
os professores a compreenderem que aquilo que o discurso hegemônico proclama,
ou seja, as tecnologias como panaceia educativa, bem como a sua utilização sem
princípios críticos e éticos, corresponde exatamente ao que o sistema capitalista
almeja (VENTURINI; MEDEIROS, 2016).
Outra questão que apresentamos, ainda com o intuito de percebermos a con-
cepção dos sujeitos sobre a modalidade de ensino trabalhada no contexto atual, foi
a seguinte: na vertente da educação remota, híbrida ou a distância, como vocês,
educadores, analisam o uso de tecnologias para o ensino? É necessária uma forma-
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ção continuada do estado? Dê sua opinião. Para tais questões, os sujeitos fizeram
as seguintes reflexões:
O ensino a distância deve ser proposto como ferramenta não como algo que possa substituir o
ensino presencial tendo em vista que a condição social e econômica pode variar entre alunos,
cidades e Estados. Muitos alunos não possuem computador, celular, internet. Tem localidades
que não tem rede de internet. Então, essas dificuldades deverão ser avaliadas. Quanto à
formação continuada do Estado é importante para capacitar dando suporte na discussão de
determinados temas (Professora da cidade de Salvador, 2020).
Sim. É necessário mais investimento no profissional e também na estrutura da escola. E dar
acesso aos alunos no ambiente escolar (Professor da cidade de Bom Jesus da Lapa, 2020).
O uso de tecnologias como recursos educativos será fortalecido e isso ocorrerá de maneira
gradativa, com a formação de professores e necessidade de uso desses mecanismos, para
aprimoramento da comunicação com alunos (Coordenador pedagógico da cidade Matina,
2020).
Sim, é importante, como complemento aos saberes docentes, jamais como novo método de
ensino. Pelo menos a meu ver deveria ser assim. Por outro lado, temo que os que estão no
poder insistam nessa tese de que a educação possa ser totalmente mediada pelas tecnologias
(Diretora da cidade de Santa Maria Vitória, 2020).
A partir dos relatos dos sujeitos, percebe-se um indicativo para aulas online,
ainda assim, as pesquisas mais recentes evidenciam que não se trata de alterna-
tiva equivalente: atividades remotas e até mesmo atividades mais estruturadas
na modalidade educação a distância (EaD) têm suas limitações e, com efeito, não
conseguirão substituir a experiência escolar presencial, em particular, quando
aplicadas em escala na educação básica (SANTOS; NUNES, 2020).
Outro aspecto analisado nesta pesquisa foi sobre o papel da família na apren-
dizagem dos alunos e como a função do Estado tem sido transferida para os pais
nesse contexto. Para sabermos o que os sujeitos pensam sobre isso, destacamos a
questão seguinte: nessas mudanças ocorridas na educação do estado da Bahia para
ficar em casa por causa da Covid-19, na sua opinião, esse período de isolamento
social e de quarentena das pessoas pode transformar o papel dos pais na educação
dos seus filhos? As respostas foram as seguintes:
Durante esse período de atividades remotas, é notório a participação das famílias nas ativi-
dades diárias dos educandos. Acredito, que após o fim desse período de isolamento social,
os pais participarão mais ativamente da vida dos filhos (Professora da cidade de Vitória da
Conquista, 2020).
Certamente. Os pais são fundamentais no processo de aprendizagem, a pandemia acaba
aproximando pais e filhos, de maneira que a maioria deles possa ser mais presente (Professor
da cidade de Santa Maria Vitória, 2020).
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Pode ajudar em maior responsabilização pela educação dos filhos em função da quarentena e
assumir o verdadeiro papel dos pais na educação dos filhos conforme assegura a CF, no artigo
205, que a educação é dever da família e do Estado (Coordenador pedagógico da cidade
Matina, 2020).
Sim. Muitos atinaram para a importância do profissional da educação ao lidar com a diversida-
de e com tantos, intempéries ao longo do ano letivo. Acredito que a relação família/escola será
mais valorizada (Coordenadora pedagógica da cidade de Riacho de Santana, 2020).
Sim. Os pais, nesse cenário que configura o Brasil, são de extrema importância para o desen-
volvimento de estudante, pois com a ausência direta dos professores eles têm agora como
função de incentivar os filhos frente aos exercícios propostos (Professora da cidade de Salva-
dor, 2020).
Os estudantes vêm resistindo à rotina, pois acreditam que estão de férias,
já que estão em casa. Essa situação tem gerado estresse para eles e seus pais. Os
pais se sentem impotentes frente a esse quadro, especialmente no que se refere à
ausência, muitas vezes, de um espaço específico para os estudantes realizarem as
tarefas e participarem das interações virtuais de forma privada, visto que a famí-
lia está em casa todo o tempo e se adaptar a esse novo formato não tem sido fácil
(ALVES, 2020).
Por fim, a última questão apresentada foi: nas reflexões e análises de vocês,
educadores, quais mudanças mais profundas podem surgir na educação depois da
pandemia, no seu ponto de vista? Os sujeitos responderam conforme os seguintes
relatos:
Ocorrerão mudanças na estrutura social, com mais exclusão de alunos pobres e impossi-
bilidade de recuperar a aprendizagem em curto período de tempo. Com o retorno das aulas
presenciais em condições normais, acredito que as escolas passarão a trabalhar conforme a
proposta pedagógica estabelecida antes da pandemia (Coordenador pedagógico da cidade
Matina, 2020).
Afirmo que é necessário refletir sobre mudanças ocorridas e que as atividades remotas faz
repensar o conceito de como o professore deve atuar e sobretudo muitos não têm facilidade
para lidar com o uso da tecnologias, como os professores mais jovens usam, questões que são
reflexões necessárias e também são provocativas. A questão da desigualdade pode aumentar
gradativamente com a educação remota e à distância e é inconcebível pensar em educação
homogênea em um país extremamente heterogêneo como o nosso (Professora da cidade de
Candiba, 2020).
Espero que a juventude desperte para a importância dos estudos, da ciência e do conhecimen-
to. Neste momento de pandemia, está sendo revelado os verdadeiros heróis e vilões. E vimos
que o conhecimento, a formação, os estudos é um grande aliado na crise, e as pessoas que
estão à margem de tudo isso, serão como pedras a beira do caminho, infelizmente (Professor,
cidade de Bom Jesus da Lapa, 2020).
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Talvez se direcionem o olhar para a educação como fonte de vida para a dinâmica social e com
isso haja preocupação, investimentos e compromisso político e social (Diretora da cidade de
Santa Maria Vitória, 2020).
Uma das mudanças está relacionada ao uso da tecnologia até então não explorada de forma
efetiva pelos colégios, a exemplo da Classroom; adaptação dos professores as tecnologias;
calendário acadêmico e os assuntos que deverão ser trabalhados (Professora da cidade de
Salvador, 2020).
A educação após a pandemia passará por diversas mudanças, uma delas é a valorização da
escola, como instituição de fundamental importância para o desenvolvimento da sociedade.
Além disso, a valorização dos profissionais da educação, as relações entre família e escola e
até mesmo as relações interpessoais (Professora da cidade de Vitória da Conquista, 2020).
Percebe-se, nos relatos dos sujeitos da pesquisa, que, com o ensino remoto e
a EaD, está concentrando no Brasil um índice altíssimo de desigualdade educa-
cional; mesmo diante da crise sanitária criada pela Covid-19, o governo federal se
junta aos setores privatistas e fundamentalistas que visam somente manter lucros
e privilégios para adotar uma postura negacionista frente às medidas tomadas em
favor da saúde, da vida e da solidariedade humana. Apropriam-se de incertezas,
falta de conhecimento científico, ansiedade e insegurança da população diante da
pandemia, para, cinicamente, induzir os trabalhadores, de maneira errônea, à fal-
sa dicotomia no que se refere ao direito à vida em contraposição economia. O Fó-
rum Nacional de Educação do Campo (2020, p. 1) chama atenção que esses mesmos
setores se organizem para:
Buscam estabelecer acordos com o Ministério da Educação (MEC), secretarias e conselhos
de educação (nacional, estaduais e municipais) para criar soluções burocráticas e padroniza-
das com o pretexto de não deixar a “educação parar”. Eles tentam induzir os professores e
professoras a acreditarem que a Educação a Distância (EaD), por meio do uso das tecnolo-
gias digitais de informação e comunicação, é a panaceia necessária para dar continuidade às
atividades escolares que, acertadamente, foram interrompidas em função da necessidade de
medidas de distanciamento social.
Considerações nais
Na presente pesquisa, apresentamos breves relatos de educadores que traba-
lham em algumas escolas da Secretaria de Educação do estado da Bahia. Nas aná-
lises apresentadas, ficou evidenciado que, após a propagação da Covid-19 em todo o
mundo, há incorporação de um novo sistema educacional a partir das constatações
de um ensino remoto e a distância, como flexibilização do calendário escolar para
atender as demandas dos alunos e das instituições de ensino. Fica claro que, sem o
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aporte do Estado e sem o devido planejamento, isso funcionará apenas para quem
já dispõe dos recursos necessários, como dispositivos tecnológicos que suportam
diferentes módulos, recursos e programas, conexão de alta velocidade e qualidade,
aparelho de TV com boa qualidade de imagem e som, espaço adequado para reali-
zação das tarefas e atividades.
Assim, analisando a realidade do contexto atual do estado da Bahia, é percep-
tível que grandes mudanças ocorreram no final de março de 2020 e se perpetuaram
nos meses seguintes, sem previsão de retorno das aulas e com um sistema de saú-
de próximo de um colapso. Nesse aspecto, sob o caos que acontece na saúde e na
educação, percebe-se que a educação perpetuou para um sistema a distância, que
tem um papel de destaque no momento em que há o isolamento social que estamos
vivendo com o desenvolvimento do coronavírus. Os estudantes do ensino médio
baiano sentiram bruscamente as transformações ocorridas pelo sistema adotado
pela secretaria de educação e pelos educadores.
É importante compreender que, com as novas tecnologias no cotidiano atual,
através de uma educação remota, a escola desencadeia um maior conhecimento
factual e demonstra necessidades e expectativas mais objetivas quanto à forma-
ção dos educadores no ambiente escolar. Como resposta a essa realidade, é funda-
mental o questionamento da postura tradicional do professor enquanto detentor
do poder e do conhecimento, em total descompasso com as tendências atuais de
incorporação das novas tecnologias da informação e da comunicação na educação,
segundo a perspectiva construtivista.
Concluímos que muitos educadores, pais e alunos sentem o impacto das mu-
danças drásticas ocorridas, principalmente em 2020, em que o momento do dis-
tanciamento social continua a ser recomendado por conta da Covid-19, mas não o
distanciamento da sociedade, o que, sem dúvidas, exige a valorização das ciências
humanas e daqueles que a elas se dedicam, pois as tecnologias sociais serão fun-
damentais para recuperação de um país assolado pela pandemia, mas também
por negacionismos, reducionismos e necropolíticas estatais. É necessário pensar/
repensar em um ensino de qualidade em toda a educação básica, que é o nível que
mais afeta a cidadania, por isso deve ser visto como um compromisso de todos e de
uma educação justa.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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* Doutora em Educação Cientíca e Tecnológica (UFSC). Professora do Departamento de Biologia Geral da Universi-
dade Estadual de Ponta Grossa (DEBIO/UEPG). Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosoa, Políticas
Educacionais e Educação em Ciências (UnB), do Diretório do CNPq. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6082-8043.
E-mail: pctolentino31@gmail.com
** Doutor em Educação Cientíca e Tecnológica (UFSC). Professor da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília
(FE/UnB). Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE-MP/UnB) e do Programa de Pós-Graduação
em Educação em Ciências (PPGEduC/UnB). Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosoa, Políticas Educacionais
e Educação em Ciências (UnB), do Diretório do CNPq. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4157-6116. E-mails: profes-
sor.rodrigosouza@gmail.com / rodrigo.souza@unb.br
*** Doutora em Educação (UTP). Professora do Departamento de Pedagogia da Universidade Estadual de Ponta Grossa
(DEPED/UEPG). Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE-UEPG). Líder do Grupo de Pesquisa
em Trabalho, Educação, Formação de Professores e Educação do Campo (UEPG) e Pesquisadora do Grupo de Estudos
e Pesquisas em Filosoa, Políticas Educacionais e Educação em Ciências (UnB), ambos do Diretório do CNPq. Orcid:
https://orcid.org/0000-0001-5407-7685. E-mail: pa.tyleo12@gmail.com
Recebido em: 26/10/2020 – Aprovado em: 12/08/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i2.11785
O lugar do estágio curricular supervisionado das licenciaturas no contexto de
pandemia por Covid-19: as condições econômicas e sociais e a morbimortalidade
The place of supervised curricular internship of teacher training courses in the context of
pandemic by Covid-19: economic and social conditions and morbidity and mortality
El lugar de la práctica curricular supervisada de cursos de formación docente en el contexto de
pandemia por Covid-19: condiciones económicas y sociales y morbimortalidad
Patrícia Caldeira Tolentino Czech*
Rodrigo Diego de Souza**
Patrícia Correia de Paula Marcoccia***
Resumo
Este artigo apresenta reexões acerca do lugar do estágio curricular supervisionado nas licenciaturas no contexto
de suspensão das atividades acadêmicas e escolares presenciais em virtude da Covid-19, articulado com as con-
dições econômicas e sociais e as taxas de morbimortalidade oriundas da pandemia. A problemática que balizou
a discussão indaga: qual o lugar do estágio curricular supervisionado no contexto de suspensão do ensino pre-
sencial ocasionado pela pandemia por Covid-19? Na tentativa de responder essa questão, foram realizados: um
estudo teórico na legislação educacional referente à pandemia; um estudo dos dados ociais apresentados e dos
dados de pesquisas das áreas de educação e saúde. Fundamentado nesses estudos, este artigo discute as condi-
ções econômicas e sociais e a morbimortalidade da pandemia por Covid-19, articuladas à realidade do trabalho
docente no ensino remoto e de suas relações com o estágio curricular supervisionado nas licenciaturas. Eviden-
cia-se que as condições econômicas e sociais e a morbimortalidade da pandemia, juntamente com os problemas
ético-político-educacionais, os desaos da gestão escolar e do trabalho docente, virtual/remota ou presencial-
mente, também fazem parte da agenda de debates do estágio, por comporem a realidade escolar nesse momen-
to histórico. Defende-se, então, que o lugar do estágio curricular supervisionado das licenciaturas no contexto da
pandemia por Covid-19 consiste na problematização dessas condições que acentuam as desigualdades sociais
e educacionais brasileiras e implicam diretamente no trabalho docente e na formação inicial dos professores.
Palavras-chave: estágio supervisionado; ensino remoto; Covid-19; políticas educacionais; formação de professores.
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Patrícia Caldeira Tolentino Czech, Rodrigo Diego de Souza, Patrícia Correia de Paula Marcoccia
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Abstract
This article presents a reection on the place of the Supervised Curricular Internship of Teacher Education cours-
es, in the context of suspension of academic and school activities in face of Covid-19, articulating it with the
economic, social and morbidity and mortality conditions. The research problem in this article is: What is the place
of the Supervised Curricular Internship of teacher training courses in the context of Pandemic by Covid-19? To
answer it, a theoretical study was carried out on the educational legislation on the pandemic; study of ocial
data and demographic research; and in research in the area of Education and Health. The economic, social con-
ditions and the morbidity and mortality of the pandemic by Covid-19 are discussed, linked to the reality of the
work of teachers in remote education and its relationship with the Supervised Curricular Internship. The results
show that the economic, social conditions and morbidity and mortality of this pandemic, the ethical-political
educational problems, the challenges of school management and teaching work, virtual or in person, are also
demands of the Internship. It is argued that the place of the Supervised Curricular Internship in the context of
the Pandemic by Covid-19 consists of problematizing these conditions that accentuate Brazilian social and edu-
cational inequalities and directly imply teaching and teacher training.
Keywords: supervised internship; remote teaching; Covid-19; educational policies; teacher training.
Resumen
Este artículo presenta una reexión sobre el lugar de la Práctica Curricular Supervisada de los cursos de For-
mación Docente, en el contexto de suspensión de actividades académicas y escolares frente al Covid-19, ar-
ticulando con las condiciones económicas, sociales y tasas de morbilidad y mortalidade. El tema que marcó la
discusión pregunta: ¿Cuál es el lugar de la Práctica Curricular Supervisada en Licenciaturas en el contexto de
Pandemia por Covid-19? Para responderla, se realizó un estudio teórico sobre la legislación educativa sobre la
pandemia; estudio de datos ociales e investigación demográca; y en investigación en el área de Educación y
Salud. A partir de estos estudios se discuten las condiciones económicas, sociales y de morbilidad y mortalidad
de la pandemia por Covid-19, vinculadas a la realidad del trabajo docente en educación remota y su relación
con la Práctica Curricular Supervisada. Los resultados muestran que las condiciones económicas, sociales y de
morbilidad y mortalidad de esta pandemia, los problemas ético-político-educativos, los desafíos de la gestión
escolar y el trabajo docente, virtual o presencial, también son demandas de la Práctica Curricular Supervisada.
Se argumenta, entonces, que el lugar de la Práctica Curricular Supervisada de cursos de pregrado en el contexto
de Pandemia por Covid-19 consiste en problematizar estas condiciones que acentúan las desigualdades sociales
y educativas brasileñas e implican directamente el trabajo docente y la formación de estudiantes de pregrado.
Palabras-clave: práctica supervisada; enseñanza remota; Covid-19; políticas educativas; formación de profesores.
Introdução
A vacina só será eficaz se ela também nos ajudar a
superar a doença da desigualdade social de acesso
à saúde (OLIVEIRA, 2020, não paginado).
A pandemia da Covid-19 explicitou e aprofundou as desigualdades de acesso à
saúde no Brasil. Porém, não foram somente as questões relacionadas à saúde que
foram expostas. A pandemia colocou em tela todas as desigualdades as quais estão
na base da sociedade de classes, com ênfase na desigualdade social. Articulada às
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desigualdades sociais e à saúde, amplificada no contexto pandêmico, há a relação
entre educação e saúde, a qual se constitui nas pesquisas desenvolvidas nas áreas
de educação, saúde pública, educação médica, práticas de saúde pública e coletiva
em educação, nas instituições de ensino superior que formam os profissionais de
saúde e os profissionais da educação na relação entre educação e saúde no contexto
escolar e em outros espaços educativos.
Historicamente, até os anos 1990, há a predominância de um caráter higie-
nista da educação em saúde no contexto escolar. Esse modelo se associa, em nível
internacional, à predominância do modelo biomédico de saúde, que enfatiza o refe-
rencial técnico-instrumental das biociências em detrimento do contexto psicossocial
dos pacientes (MARCO, 2006; SILVA et al., 2010; PEREIRA; BARROS; AUGUSTO,
2011). No entanto, na década de 1980, iniciam-se movimentos de educação popu-
lar em prol da educação em saúde que visam romper com esse modelo higienista
(SILVA et al., 2010). A partir dos anos 1990 ocorre, com maior evidência, um redi-
recionamento das práticas de saúde para a perspectiva do modelo biopsicossocial,
o qual passa a considerar o paciente como sujeito integral, pessoa humana, nas
suas dimensões biológica, psicológica e social (MARCO, 2006; SILVA et al., 2010;
PEREIRA; BARROS; AUGUSTO, 2011).
Dessa forma, a mudança de perspectiva do modelo biomédico para o mode-
lo biopsicossocial também encontra ressonância, a partir dos anos 1990, com as
possíveis práticas pedagógicas em educação e saúde na educação básica (MARCO,
2006; SILVA et al., 2010; PEREIRA; BARROS; AUGUSTO, 2011). Entretanto, a
prevalência da abordagem higienista nas escolas não foi superada, especialmen-
te, quando se abordam temas de suma importância como parasitoses, pediculose,
higienização das mãos, infecções sexualmente transmissíveis (IST), entre outras
patologias e problemáticas que se colocam à educação em saúde e à saúde pública
e coletiva.
Essa breve incursão acerca de educação e saúde na educação básica e modelos
de saúde aponta, de forma geral, para as relações colocadas sobre esse campo na
educação escolar. Ressalta-se que o modelo biopsicossocial de saúde considera os
elementos sociais e, por isso, as desigualdades que estão colocadas à saúde huma-
na. Porém, qual o espaço para o debate dessas questões, para que elas se façam
presentes no cotidiano da educação escolar? Seria o momento da formação inicial
dos professores propício para essas discussões?
As questões retóricas apresentadas não são respondidas de forma prescriti-
va neste artigo, mas tensionadas diante do contexto pandêmico vivido com mais
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indagações: qual o papel da educação escolar, com ênfase na escola pública, nesse
contexto pandêmico? As condições econômicas e sociais e a morbimortalidade da
pandemia por Covid-19 são objetos da educação escolar? Que dilemas os professo-
res estão enfrentando no cotidiano das aulas no ensino remoto? Como está o traba-
lho docente nesse momento? Como os estudantes das licenciaturas se aproximam
e vivenciam o estágio curricular supervisionado nesse cenário pandêmico em que
está inserido o trabalho docente atualmente? Quais conteúdos e conhecimentos
são mobilizados na educação escolar nesse período? Como esses conhecimentos
são apropriados pelos estudantes na realidade na qual se embaralham o isola-
mento social, o desemprego, o aumento da pobreza e as necessidades básicas de
subsistência?
Na tentativa de contribuir para as reflexões sobre as indagações supracitadas,
realizou-se um recorte temático dentre os objetos que compõem a área de pesquisa
em Educação, considerando-se também a realidade vivida pelos autores deste ar-
tigo, professores que atuam nas disciplinas de estágio curricular supervisionado,
nas relações entre a escola e a universidade mediadas por esse espaço formativo
das licenciaturas, buscando, também, avançar nas discussões já apresentadas por
Tolentino-Czech e Souza (2021).
Nessa direção, frente aos desafios colocados pelo ensino remoto, recurso mo-
bilizado para a continuidade da educação escolar e acadêmica em virtude da pan-
demia, pela realidade vivida de professores e estudantes no cotidiano das escolas
públicas e das universidades públicas brasileiras, nesse momento de aprofunda-
mento das desigualdades, do desemprego, da falta de alimentação e de saúde para
todos, além da alta taxa de óbitos; este artigo indaga: qual o lugar do estágio cur-
ricular supervisionado no contexto de suspensão do ensino presencial ocasionado
pela pandemia por Covid-19?
Na busca de respostas à problemática, apresentam-se os dados oficiais do Ins-
tituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (BRASIL, 2019) e os resultados
de pesquisas acadêmicas desenvolvidas acerca das condições econômicas e sociais
e de morbimortalidade por ocasião da Covid-19. Diante disso, apresentam-se, bre-
vemente, as condições que estão colocadas ao trabalho dos professores do estado do
Paraná no ensino remoto para, então, frente ao contexto de pandemia e de trabalho
docente nas escolas, discutir sobre o lugar do estágio curricular supervisionado
durante a pandemia por Covid-19.
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Condições econômicas e sociais e a morbimortalidade na pandemia por Covid-19
Segundo o Boletim Epidemiológico Especial (BRASIL, 2020d), do Ministério
da Saúde do Brasil, realizado no período de 20 a 26 de setembro de 2020, no dia
26 de setembro, foram confirmados 32.616.929 casos de Covid-19 no mundo. O
país com o maior número de casos foi Estados Unidos, com 7.033.430, seguido pela
Índia, com 5.903.932, e pelo Brasil, com 4.717.991. No que diz respeito ao número
de óbitos, foram confirmados 989.733 no mundo até o dia 26 de setembro de 2020,
sendo os Estados Unidos o país com o maior número de óbitos (203.774), seguido do
Brasil (141.406) e da Índia (93.379) (BRASIL, 2020d).
Os estudos do Banco Mundial (2019), com base nos dados da Pesquisa Na-
cional por Amostra de Domicílios (PNAD), mencionam que houve queda na renda
dos 40% mais pobres no Brasil, população equivalente a 85 milhões de pessoas, no
período de 2014 a 2019. Essas pessoas começaram o ano de 2020 em situação de
extrema privação, visto que não recuperaram sua renda. Tal condição se aprofun-
dou no contexto de crise sanitária por meio da pandemia por Covid-19, embora a
Renda Básica Emergencial de R$ 600,00 seja uma ação para minimizar a situação
econômica dessas pessoas, não é o bastante.
No tocante à pandemia por Covid-19, a realidade revela que ela produziu mais
queda em todos os níveis de distribuição de renda, expandiu o desemprego, o tra-
balho informal e o processo de adoecimento e morte, especialmente nas populações
mais vulneráveis. Segundo o site do Banco Mundial, a primeira mensagem na tela
é a de que as projeções indicam que o Brasil entrará na pior recessão de sua histó-
ria. Todavia, as medidas mencionadas para amenizar esse cenário são a consolida-
ção fiscal mais robusta e a adoção de reformas estruturais. Na prática, isso já está
ocorrendo, por meio de desvalorização da indústria nacional, venda de empresas
estatais a preços abaixo do valor justo e ataque ao trabalho, à proteção social e à
redução das despesas públicas, inclusive com saúde e educação.
Na sociedade neoliberal e capitalista, durante a pandemia por Covid-19, reve-
lam-se de forma mais aguda as ações políticas que retiram direitos dos(as) traba-
lhadores(as), diminuem a proteção social, tornam secundários os direitos sociais,
expandem a pobreza e a desigualdade, potencializam os discursos e as práticas
privatizantes da educação e da saúde, desmantelam os sistemas de ensino e o Sis-
tema Único de Saúde, as relações entre as condições educacionais, econômicas e
sociais e a morbimortalidade, que está colocada à classe que vive do seu trabalho.
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Santos et al. (2020, p. 225) evidenciam que a “Organização Mundial de Saúde
(OMS) concebe o racismo como um dos determinantes sociais do processo de adoeci-
mento e morte”. Sobre isso, o Informativo IBGE sobre Desigualdades Sociais por Cor
ou Raça no Brasil (2019) revela que os(as) trabalhadores(as) negros(as) e pardos(as)
representam parcelas significativas nas ocupações informais, são os que possuem
remunerações inferiores, baixa escolaridade, maior número de pessoas abaixo da
linha de pobreza, precárias condições de moradia, sendo Rio de Janeiro e São Paulo
os municípios em que há maior probabilidade desses segmentos residirem em aglo-
merados subnormais, adensamento domiciliar excessivo, ônus excessivo com alu-
guel, principalmente nos domicílios formados apenas por mulheres negras. Sobre
os serviços de saneamento básico, esses segmentos sociais apresentam baixo acesso
à coleta de lixo, ao abastecimento de água por rede geral, ao esgotamento sanitário
por rede coletora ou pluvial, implicando maiores condições de vulnerabilidade e de
exposição de doenças e de mortalidade do que a população branca.
As diferenças de saúde entre negros e grupos étnicos no contexto da Covid-19
são abordadas por Santos et al. (2020, p. 229), que identificaram, no
[...] relatório do governo de Nova York sobre 580 pacientes hospitalizados com a Covid-19
que inclui dados sobre etnia/raça [e] mostrou as piores taxas de mortalidade para a doença
para negros e minorias étnicas, ainda que fossem numérica e proporcionalmente menores.
O Brasil tardou para incluir a informação raça/cor nos sistemas de informa-
ção da Covid-19, sua inclusão é fruto das lutas de diversos coletivos e movimentos
sociais. A inclusão dessa pauta no boletim epidemiológico referente à semana 21 re-
vela o descaso com a “estratificação da raça/cor ignorada totalizava 51,3% (60.383)
do total de 117.598 casos confirmados” (SANTOS et al., 2020, p. 229). Os dados
mencionados apontam para os segmentos sociais historicamente excluídos, ou seja,
a população negra, pobre, coletivos étnicos, tais como indígenas, quilombolas, ribei-
rinhos, povos tradicionais, pescadores artesanais, entre outros, os quais estão muito
mais vulneráveis à Covid-19, assim como as pessoas privadas de liberdade e as que
vivem em situação de rua. Todos esses segmentos apresentam maior risco de óbito.
Não obstante, a maioria dos sistemas de informação em saúde e o próprio Mi-
nistério da Saúde expressam pouco ou quase nada de interesse em evidenciar o per-
fil das pessoas que adoecem e morrem por Covid-19. Os boletins epidemiológicos
publicados pelo Ministério da Saúde apresentam dados somente sobre óbitos, por
região, pessoas que foram infectadas, por região, profissão e gênero apontados nes-
sas profissões, por região. A mensagem tácita desses boletins é a de que o processo
de adoecimento e/ou morte por Covid-19 é uma fatalidade e que não tem relação com
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classe social, raça, gênero, etnia, acesso adequado à moradia, à saúde e à educação.
Observa-se, assim, o alinhamento na exposição dos dados, que deveria ser técnico-
-científica, com a ideologia conservadora que baliza o atual governo brasileiro.
Para Santos et al. (2020, p. 237), “a resposta à pandemia da Covid-19 envolve
a proteção de vidas e comunidades, obviamente em risco em nossa sociedade de-
sigual”. Nesse sentido, considera-se que o mapeamento do perfil das populações
vulneráveis contribuiria para a prevenção, o acompanhamento e o controle da pan-
demia; possivelmente se essas estratégias fossem adotadas, o Brasil não teria sido
o epicentro da Covid-19, em decorrência, não seria o segundo país do mundo com o
maior número de óbitos, visto que a prioridade seria a garantia do direito à vida.
A questão fundamental durante a pandemia é a de que os mais privilegiados
possuem esperança de vida superior aos não privilegiados, ou seja, a renda, as
condições socioeconômicas, os níveis de pobreza e de escolaridade, as condições
higiênico-sociais, a situação da moradia, a assistência à saúde, entre outros, podem
ou não traduzir maiores riscos de mortalidade pela Covid-19. Os filhos e as filhas
dessas populações estão na escola pública, portanto, é emergencial debater o que
se mostra sobre adoecimento e morte por Covid-19 na mídia em geral, problemati-
zando as condições econômicas e sociais, com vistas à superação desse sistema por
demais injusto.
Diante da discussão supracitada, considera-se que professores e professoras
em formação sejam interpelados por essa realidade, no sentido de desocultar as
condições históricas em que vivem os(as) vulneráveis muito antes da pandemia por
Covid-19, porém mais aguda nesse contexto.
Considerando-se a urgência desse debate no contexto escolar, apresenta-se, na
próxima seção deste artigo, uma breve contextualização do trabalho docente nas
escolas públicas do Paraná no contexto do ensino remoto por ocasião da pandemia.
Optou-se por apresentar o contexto paranaense pela aproximação dos autores com
essa realidade nas disciplinas de estágio curricular supervisionado.
O trabalho docente nas escolas públicas do Paraná em tempos de pandemia: uma
breve contextualização
Há um consenso entre os pesquisadores da área de Educação sobre as trans-
formações políticas, sociais e culturais no contexto escolar, e essas transformações
demandam uma outra perspectiva nos processos de ensinar e aprender. A formação
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de professores, nesse contexto, não pode desconsiderar a realidade social, econô-
mica e política do atual tempo histórico, configurado por uma sociedade neoliberal
cujo modo de governo das economias e das sociedades é a generalização do mercado
e da concorrência (DARDOT; LAVAL, 2016).
Nessa perspectiva, descortinou-se um cenário de pandemia, com um dos maio-
res desafios sanitários em perspectiva global e que impactou com todas as suas
forças o cotidiano da escola e do trabalho docente. Essa nova realidade expôs con-
trastes, especialmente no âmbito da saúde e da educação da população brasileira,
acirrou desigualdades sociais e educacionais e explicitou as contradições presentes
no processo educativo, da educação básica ao ensino superior, trazendo à tona uma
série de questões que precisam ser refletidas para sinalizar caminhos a serem se-
guidos.
Em decorrência desse contexto, um dos primeiros movimentos para evitar
uma sobrecarga nos serviços de saúde devido à pandemia foi a suspensão das ati-
vidades escolares em todos os níveis de ensino. Segundo Muñoz (2020), mais de 1,5
bilhão de estudantes, em 174 países, foram afetados pelo fechamento de escolas
em virtude da Covid-19. Devido à imprevisibilidade do percurso da doença, têm-se
mais dúvidas do que certezas em relação ao retorno das aulas.
No sentido de atenuar os prejuízos no processo de ensino e aprendizagem dian-
te da pandemia foram criadas políticas que possibilitam, em caráter excepcional, a
substituição de aulas presenciais por aulas a distância/remotas (BRASIL, 2020a,
2020b, 2020c). A inclusão de atividades remotas foi a alternativa utilizada pelas
instituições de ensino para mediar o processo formativo, sendo as tecnologias digi-
tais a principal ferramenta de apoio para a continuidade das aulas. No entanto, o
acesso a essas tecnologias não contempla todos os estudantes e professores, repre-
sentando um desafio frente ao acesso à educação, evidenciando-se que essa forma
de atividade também coloca sob a responsabilidade dos docentes um sobretrabalho
que não lhes pertence.
Nesse sentido, também há o discurso, muitas vezes veiculado pelas mídias
e por setores educacionais via organizações sociais, que reforça a ideia de que o
professor precisa ser formado para estar alinhado às demandas do século XXI,
às competências socioemocionais, a aprender a aprender e à inovação, para dar
conta das necessidades da sociedade neoliberal e, não necessariamente, para uma
qualidade da educação em si, de forma desinteressada. Pesquisas no âmbito da po-
lítica educacional sobre o trabalho docente já apontam para essas questões que se
apresentam à prática pedagógica numa perspectiva mais ampla, estrutural e não
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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apenas focada no praticismo pedagógico, colocando o professor como protagonista
e obstáculo para a implementação das reformas educacionais e suas “inovações”
(EVANGELISTA; SHIROMA, 2007).
No estado do Paraná, por exemplo, durante a pandemia e a escrita deste arti-
go, o ano letivo de 2020 da educação básica segue com atividades remotas. Desde
o dia 06 de abril de 2020, a Secretaria de Educação e do Esporte (Seed) colocou
em funcionamento um sistema denominado de “Aula Paraná” com os conteúdos,
buscando atender 1,07 milhão de estudantes da rede estadual de ensino (PARANÁ,
2020). Nessa direção, a Seed1 aponta que são cinco as vias de acesso ao conteúdo
disponibilizadas na plataforma “Aula Paraná”:
(1) transmissão na televisão digital aberta, com três canais: um exclusivo
para os sextos e sétimos anos do ensino fundamental, outro para os oitavos
e nonos anos, e o terceiro para o ensino médio. As aulas têm horário pré-
-definido e duração de 45 a 50 minutos;
(2) canal “Aula Paraná” no YouTube®;
(3) salas de aula virtuais no Google Classroom®;
(4) aplicativo Aula Paraná, que fornece acesso para todos os conteúdos digi-
tais;
(5) materiais impressos aos alunos que não têm acesso à TV aberta ou a
smartphone.
No dia 20 de maio de 2020, a Seed2 apresentou que, nos primeiros 45 dias de
aulas, houve um total de 1.028 aulas nos canais digitais da TV aberta e 16 milhões
de visualizações no canal do YouTube®. O aplicativo Aula Paraná foi baixado por
mais de 800 mil usuários, com 579 mil acessos únicos, sendo que dessas pessoas 539
mil acessam diariamente o Google Classroom®, que são as salas de aula virtuais
em que se encontram os conteúdos, as atividades e os materiais de apoio, além dos
alunos que buscam materiais impressos nas escolas. No entanto, são muitas as
dificuldades encontradas. Segundo a Seed, em todo o Paraná, cerca de 20% dos es-
tudantes não possuem acesso aos canais de TV aberta e ao aplicativo Aula Paraná.
Esses estudantes estão recebendo material impresso em suas escolas, para darem
continuidade aos seus estudos. Na fanpage da Seed na rede social Facebook®, há
relatos que apontam para: o envio de um número excessivo de atividades, inclusive
durante a madrugada, finais de semana e feriados, a dificuldade dos pais em auxi-
liar os filhos nas atividades e a ansiedade dos alunos que não conseguem concluir
suas tarefas.
582 ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Com relação à organização do trabalho pedagógico dos professores, a Seed
sinaliza que faz um levantamento diário e aponta 97% dos quase 43 mil professores
acessando os sistemas online, com a informação de que os professores já passaram
por mais de mil eventos virtuais em que foram feitas ações de formação e orien-
tação. Contudo, é complexa a realidade dos professores nesse processo. Além da
preocupação e da angústia geradas pela pandemia e pelo isolamento social a que
todos foram submetidos, os professores foram obrigados a adequar suas práticas
pedagógicas para o ensino remoto de forma súbita e, frequentemente, comprar no-
vos artefatos tecnológicos para trabalhar.
Na área de pesquisa em Educação é consenso de que os processos educativos e
escolares que são efetivados de forma aligeirada levam a práticas irrefletidas, nem
sempre exitosas, decididas sem consulta ou apoio dos profissionais da educação,
são generalizadas com o discurso de que foram exitosas. Estudos anteriores ao
cenário pandêmico já apontavam para a alta carga de sobretrabalho para os profes-
sores no contexto brasileiro, como Evangelista e Shiroma (2007, p. 537) sintetizam,
a seguir, o que contribui para reforçarmos o quanto o período de pandemia e ensino
remoto potencializam essa situação:
Os sintomas do sobretrabalho docente podem ser verificados numa longa lista de situações
que prenunciam o alargamento das funções docentes: atender mais alunos na mesma clas-
se, por vezes com necessidades especiais; exercer funções de psicólogo, assistente social e
enfermeiro; participar nos mutirões escolares; participação em atividades com pais; atuar
na elaboração do projeto político-pedagógico da escola; procurar controlar as situações de
violência escolar; educar para o empreendedorismo, a paz e a diversidade; envolver-se na
elaboração de estratégias para captação de recursos para a escola.
A partir disso, nas atividades remotas em tempos de pandemia, se, por um
lado, muitos alunos não têm acesso à internet, a artefatos tecnológicos (smartpho-
ne, personal computer, tablet, entre outros), por outro, também há professores que
não têm acesso a esses dispositivos e softwares e à internet com capacidade para
produzir conteúdos e disponibilizá-los para os alunos. Ressalta-se, ainda, que a
responsabilidade de comprar esses materiais de trabalho também onera financei-
ramente os docentes, pois, para ter um computador com a qualidade necessária
para o trabalho, o professor deverá comprá-lo, as faturas de uso da internet e da
energia elétrica utilizadas para o trabalho em casa também serão pagas pelo pro-
fessor. Assim, além da sobrecarga física e emocional de trabalho, o ato de trabalhar
em casa também sobrecarrega economicamente os docentes, suas contas e seus
vencimentos básicos mensais.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Compreende-se que as experiências vividas pelos professores no Paraná po-
dem encontrar consonância com as experiências de outros docentes brasileiros, no
entanto, estas reflexões não possuem a pretensão de generalização.
Considerando as condições econômicas, sociais e a morbimortalidade na pan-
demia e o trabalho dos professores que estão em serviço nas escolas, atuando de
forma remota, qual o lugar do estágio curricular supervisionado durante a pande-
mia por Covid-19? Na próxima seção, apresentam-se reflexões sobre o estágio nas
licenciaturas no contexto pandêmico.
O lugar do estágio curricular supervisionado das licenciaturas no contexto de
pandemia por Covid-19
O estágio curricular supervisionado nos cursos de licenciatura consiste numa
atividade obrigatória e tem a finalidade de aproximar os licenciados da prática
profissional, vivenciando os dilemas e desafios da docência. Essa aproximação dos
futuros professores com o ambiente escolar e a atuação profissional docente difere
de outras iniciativas que acontecem na relação entre as universidades e a escolas,
como as atividades de prática pedagógica como componente curricular, Pibid, resi-
dência pedagógica e ações extensionistas, nas quais os licenciandos também desen-
volvem projetos em escolas. O estágio curricular supervisionado das licenciaturas
não consiste em desenvolver projetos nas escolas, mas, sim, na aproximação ao
exercício profissional da docência, supervisionado por professores orientadores da
universidade e professores supervisores das escolas. Assim, o estágio curricular su-
pervisionado é uma atividade obrigatória dos cursos de licenciatura, em consonân-
cia com os documentos oficiais que o preconizam (BRASIL, 1996, 2015a, 2015b).
Dessa forma, a docência no estágio curricular supervisionado é uma ação com-
plexa em todos os elementos que a compõem (CUNHA, 2010), desde a caracteriza-
ção dos espaços e dos sujeitos da prática pedagógica, a observação participante nas
aulas, as reuniões de planejamento com os professores supervisores, as regências,
até as ações que permeiam o espaço da escola, com seus sujeitos, e a construção
coletiva e singular da identidade docente dos licenciandos.
No estágio curricular supervisionado, há as articulações entre os conhecimen-
tos específicos das áreas de formação e os conhecimentos pedagógicos, que possi-
bilitam a construção da práxis docente, como García (1999, p. 29) aponta: “[...] de
modo a que aprender a ensinar seja realizado através de um processo em que o
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conhecimento prático e o conhecimento teórico possam integrar-se num currículo
orientado para a ação”.
Dentre os desafios do estágio curricular supervisionado, podem ser identifi-
cados desde os elementos burocráticos que permeiam aos trâmites legais e convê-
nios de cooperação entre as instituições de ensino, as resoluções de conflitos que
permeiam as ações do estágio, pois esse componente curricular não se limita a
apreensão de conteúdos e devolução desses em provas, até a dicotomia apontada
tradicionalmente pela área de Educação entre a teoria e a prática. De todo modo,
salienta-se que o estágio atua diretamente na formação da subjetividade dos licen-
ciados, na formação humana, no tornar-se professora e professor.
Perante a dicotomia clássica entre teoria e prática, que permeia as discussões
do estágio (denominada anteriormente de prática de ensino) e a didática, os pes-
quisadores da área nunca estiveram passivos em relação à problemática nos cursos
de formação de professores (PIMENTA, 2012; PIMENTA; LIMA, 2012). Há um mo-
vimento constante de estudos e propostas visando à minimização dessa dicotomia.
No entanto, é necessário trazer para o debate que há uma tendência fortemente
arraigada que coloca o estágio como a parte prática do processo de formação do
professor.
Considera-se, neste artigo, que a concepção teoria e prática deve sustentar
o estágio, compreendendo-o em um movimento dialético e histórico na realidade,
pois toda e qualquer prática está imersa em pressupostos teóricos, mas dialoga
dialeticamente com a realidade na construção de uma práxis. A partir dessa rela-
ção dialética entre teoria e prática enraizada na realidade, compreende-se que o
estágio não é apenas a maneira de realizar a aplicação prática dos conhecimentos
teóricos vistos no curso, e sim uma ação planejada, refletida e consciente do poten-
cial transformador da realidade que a docência e a educação possuem.
Dessa maneira, a formação dos professores, em especial nas atividades de
estágio, pode ser pensada numa perspectiva mais ampla, que englobe as condições
sociais, políticas, econômicas, epistemológicas, culturais, ideológicas, educacionais
e históricas que estão na realidade na qual a escola e os seus sujeitos estão inse-
ridos. Os problemas da realidade da escola, do cotidiano de alunos e professores,
estão muito além da aparência que se apresenta no dia a dia, muito além da proble-
mática dicotômica da teoria e da prática, pois o que está aparente ofusca as contra-
dições presentes nas práticas sociais, naturaliza as diferenças, produz e reproduz
hegemonias, projetos e modelos de sociedade.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Nessa direção, defende-se que o lugar do estágio curricular supervisionado
das licenciaturas no contexto da pandemia por Covid-19 consiste na problemati-
zação das condições econômicas e sociais e da morbimortalidade dessa doença, as
quais acentuam as desigualdades sociais e educacionais brasileiras e implicam di-
retamente no trabalho e nas condições de trabalho dos professores. Por isso, faz-se
necessário, neste contexto de pandemia, que o desenvolvimento das atividades no
estágio possibilite, além do conhecimento, a análise e a reflexão do trabalho docen-
te e a sua compreensão na historicidade, nos problemas reais que estão colocados
no momento pandêmico presente e que implicam no aumento e na radicalização
das desigualdades sociais e educacionais dos milhões de brasileiros que estão nas
escolas pública, bem como na morbimortalidade.
Dessa forma, considera-se necessário, na atual conjuntura pandêmica, ir além
da concepção restrita de prática como o apenas fazer prático, mas compreender
que pode ser nessa experiência vivida do estágio, de forma remota, tensionando e
problematizando a realidade do momento presente, um espaço de aprendizado e
problematização das situações limite que levam à desumanização e à potenciali-
zação do sofrimento por parte das camadas mais empobrecidas do Brasil e tornam
mais visíveis e aumentam ainda mais as desigualdades sociais e educacionais que
já existiam.
As recomendações apresentadas pelo Parecer n. 5/2020 do Conselho Pleno/
Conselho Nacional de Educação (BRASIL, 2020c), para a reorganização do calen-
dário escolar e a possibilidade de cômputo de atividades não presenciais para fins
de cumprimento da carga horária mínima anual, em razão da pandemia da Co-
vid-19, acenam para o desenvolvimento das atividades de estágio curricular super-
visionado de forma remota, quando apontam:
No caso dos cursos de licenciatura ou formação de professores, as práticas didáticas vão ao
encontro de um amplo processo de oferta de aprendizado não presencial à educação básica,
principalmente aos anos finais do ensino fundamental e médio. Produz, assim, sentido
que estágios vinculados às práticas na escola, em sala de aula, possam ser realizados de
forma igualmente virtual ou não presencial, seja a distância, seja por aulas gravadas etc.
(BRASIL, 2020c, p. 17).
E complementam:
Dessa forma, permite-se aos acadêmicos o aprofundamento acerca das teorias discutidas
em sala e complementam a aprendizagem com a aplicação prática, inclusive de forma não
presencial, dada sua experiência com o uso de meios e tecnologias digitais de informação
e comunicação, sobretudo, nos cursos da modalidade EaD, mas não exclusivamente a eles
(BRASIL, 2020c, p. 17).
586 ESPAÇO PEDAGÓGICO
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No entanto, o referido parecer também sinaliza a seguinte proposição:
A substituição da realização das atividades práticas dos estágios de forma presencial para
não presencial, com o uso de meios e tecnologias digitais de informação e comunicação,
podem estar associadas, inclusive, às atividades de extensão das instituições e dos cursos
de licenciatura e formação de professores (BRASIL, 2020c, p. 17).
A partir dos direcionamentos do referido parecer (BRASIL, 2020c), constata-se
a importância dessa realidade vivida para as atividades de estágio e o processo
formativo dos licenciandos, pois, se considerarmos o estágio como o espaço/tempo
de exercício e aproximação profissional da docência, este momento de pandemia,
com toda a sua complexidade, está sendo vivido pelos docentes em seus contextos
e condições de trabalho. Todavia, o mesmo parecer abre a possibilidade para que
as atividades de extensão dos cursos de licenciatura também possam valer como
carga horária de estágio, o que desconfigura a natureza do estágio como o espaço/
tempo para o exercício profissional do professor, da docência.
Atrelado a isso, outro problema é a utilização do termo “prática” no contexto
de um praticismo pedagógico, pois outros documentos oficiais atuais para a forma-
ção docente, como o parecer que fundamenta as Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e a Base Nacional
Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-For-
mação) (BRASIL, 2019), continuam reverberando concepções relacionadas a esse
praticismo, as quais eram mais presentes na década de 1990, nos estudos educacio-
nais brasileiros, e receberam nova roupagem com a associação entre prática, com-
petências e habilidades no início dos anos 2000, tendo forte influência das políticas
neoliberais em nível internacional, e em 2019 retornam com essas concepções de
prática. É possível observar isso nos fragmentos a seguir:
[...] à necessidade de dar à formação inicial de professores novos marcos para o desenvolvi-
mento de habilidades e competências profissionais e que devem, por sua vez, dialogar com
aquelas postas na BNCC. [...].
A formação de professores exige um conjunto de saberes, conhecimentos, competências e
habilidades que são inerentemente alicerçadas na prática. A prática na formação docente
deve ir muito além do momento de estágio obrigatório ou outras formas de prática pedagó-
gica. Ela deve estar presente ao longo de toda sua formação; [...] (BRASIL, 2019, p. 18-19).
Observa-se que os encaminhamentos político-educacionais colocados associam
o termo de prática em seu sentido esvaziado de teoria e não como síntese teóri-
co-prática, associado a outros momentos que podem ser chamados de prática e
não na compreensão do estágio como exercício profissional, reduzindo a prática ao
alinhamento de conteúdos, habilidades e competências da Base Nacional Comum
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Curricular (BNCC) (BRASIL, 2018) da educação básica. Assim, defende-se que o
estágio curricular supervisionado na formação dos professores não pode estar re-
duzido às premissas pragmáticas sinalizadas pelas atuais políticas educacionais
e, no contexto de pandemia, precisa estar articulado com a realidade vivida pelos
professores nas escolas, virtualmente e/ou remotamente, frente aos desafios que
estão colocados com o aprofundamento das desigualdades sociais e educacionais e
as condições de morbimortalidade da Covid-19.
A pandemia expôs a nervura do real, que permite um olhar mais atento às
práticas sociais cotidianas e o reconhecimento das fragilidades e das potencialida-
des do processo formativo. Nesse cenário, as escolhas devem ir ao encontro do me-
nor impacto, o que permite uma revisão crítica do que se pode fazer e como se pode
fazer. Nesse cenário, não há como deixar os estagiários sem qualquer orientação,
estímulo aos estudos e um olhar humanizado do processo, pois o estágio é formação
humana, e professores e estagiários podem ter perdido pessoas para a Covid-19,
podem ter perdido o trabalho que dá as condições de produção, manutenção e re-
produção da subsistência e existência, então, faz-se necessário um olhar humano e
cuidadoso de todo esse processo.
Considerações nais
Este artigo apresentou uma reflexão sobre o lugar do estágio curricular super-
visionado das licenciaturas no contexto de suspensão das atividades acadêmicas e
escolares presenciais em virtude da Covid-19. Apresentou as condições econômicas
e sociais e a morbimortalidade da pandemia por Covid-19, articuladas ao contexto
do ensino remoto nas escolas públicas paranaenses e como se conectam com o tra-
balho dos professores e com o estágio curricular supervisionado das licenciaturas.
Evidencia-se que as condições econômicas e sociais e a morbimortalidade da
pandemia, os problemas ético-político-educacionais, os desafios da gestão escolar
e do trabalho docente, virtual/remota ou presencialmente, também são demandas
do estágio na formação dos professores em todas as licenciaturas, em tempos com
pandemia. Defende-se que o lugar do estágio curricular supervisionado das licen-
ciaturas no contexto da pandemia por Covid-19 consiste na problematização das
condições econômicas e sociais e da morbimortalidade dessa doença, as quais acen-
tuam as desigualdades sociais e educacionais brasileiras e implicam diretamente
no trabalho e nas condições de trabalho dos professores.
588 ESPAÇO PEDAGÓGICO
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As reflexões apresentadas neste artigo não esgotam as possibilidades de dis-
cussão sobre o tema, mas apontam um caminho para a formação de professores,
para os questionamentos que se colocam entre a educação e a saúde no contexto de
aprofundamento das desigualdades que colocam em xeque a vida de milhares de
brasileiros.
Notas
1 Disponível em: https://www.educacao.pr.gov.br/Noticia/Baseado-em-cinco-pilares-EaD-Aula-Parana-se-
-consolida-e-alcanca-1-milhao-de-alunos-no. Acesso em: 13 out. 2021.
2 Fonte disponível em: https://www.educacao.pr.gov.br/Noticia/Seed-traz-bons-resultados-dos-primeiros-
-45-dias-de-Aula-Parana . Acesso em: 13 out. 2021.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Saúde, educão e a pós-verdade como estratégia de (des)educabilidade: notas sobre a pandemia e o bolsonarismo
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Saúde, educação e a pós-verdade como estratégia de (des)educabilidade:
notas sobre a pandemia e o bolsonarismo
Health, education and the post-truth as an (un)educability strategy:
notes on the pandemic and bolsonarism
Salud, educación y posverdad como estrategia de (in)educabilidad:
apuntes sobre la pandemia y el bolsonarismo
Mozart Linhares da Silva*
Camila Francisca da Rosa**
Resumo
O presente artigo objetiva analisar a perspectiva da pós-verdade como estratégica enquanto meio de educabili-
dade principalmente durante a pandemia de coronavírus e o governo Bolsonaro. Desde sua campanha eleitoral,
o atual presidente, Jair Bolsonaro, mandato 2019-2022, vem construindo uma política anti-intelectualista e de
deslegitimação do saber cientíco, com ataques sistemáticos à universidade e à educação em geral, espaços
que tradicionalmente são considerados legítimos para a produção e a difusão da “verdade”. Acontece que, com
a pandemia, esses ataques e processos de deslegitimação também se acentuaram na área da saúde. Assim, para
tal análise, tomamos as ações e os discursos assumidos pelo governo Bolsonaro e seus apoiadores em relação à
educação, à ciência e à forma como foi conduzida a pandemia de coronavírus, através do ataque ao saber mé-
dico e a instituições como a Organização Mundial da Saúde. Dessa forma, dividimos o texto em dois momentos,
um para contextualizar a emergência da pós-verdade e os efeitos sobre o saber cientíco e, em seguida, a partir
da materialidade já citada, mostramos como essa deslegitimação da ciência apresentou desdobramentos no
enfrentamento da pandemia de coronavírus no Brasil. Apontamos que a deslegitimação do saber cientíco e
das instituições do dizer verdadeiro”, calcada nas práticas discursivas da pós-verdade, vem contribuindo para a
divisão social, a proliferação de teorias de conspiração, violência e crise das instituições de saber.
Palavras-chave: educação; saúde; pós-verdade.
* Doutor em História pela PUCRS, com extensão na Universidade de Coimbra, com pós-doutorado em Educação pela
UFRGS. Professor do Programa de Pós-graduação em Educação (mestrado e doutorado) e do Departamento de Ciên-
cias, Humanidades e Educação da Universidade de Santa Cruz do Sul. Líder do Grupo de Pesquisa Identidade e Dife-
rença na Educação (CNPq). Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9838-5436. E-mail: mozartt@terra.com.br
** Doutoranda (bolsista Capes – Modalidade 1) e mestra em Educação pela Universidade de Santa Cruz do Sul. Licen-
ciada em História. Membro do Grupo de Pesquisa Identidade e Diferença na Educação (CNPq). Orcid: https://orcid.
org/0000-0003-1418-4288. E-mail: camilafdarosa@gmail.com
Recebido em: 30/10/2020 – Aprovado em: 30/08/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i2.11800
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Abstract
This paper aims to analyze the post-truth perspective as strategic as a means of educability mainly during the
coronavirus pandemic and the Bolsonaro government. Since the election campaign, the current President Jair
Bolsonaro, term 2019-2022, has been developing an anti-intellectualist and delegitimizing policy of scientic
knowledge, with systematic attacks on the university and education in general, places that are traditionally con-
sidered legitimate for production and spreading the truth. It turns out that with the pandemic, these attacks
and delegitimization processes were also accentuated in the health area. So, for such an analysis, we take the
actions and speeches taken by the Bolsonaro government and its supporters in relation to education, science
and the way it led the coronavirus pandemic, through the attack on medical knowledge and institutions such as
the World Health Organization. Therefore, the study is divided into two parts, the rst aims to contextualize the
emergence of the post-truth and its eects on scientic knowledge, and the second part analyzes how science
denial has been aecting the way of coping with the coronavirus in Brazil. It is indicated that the underestima-
tion of scientic knowledge and the institutions of “truth”, based on post-truth discursive practices, has led to
social division, proliferation of conspiracy theories, violence, and crisis in Brazilian education.
Keywords: education; health; post-truth.
Resumen
Este artículo tiene como objetivo analizar la perspectiva de la posverdad como estrategia de educabilidad prin-
cipalmente durante la pandemia del coronavirus y el gobierno de Bolsonaro. Desde su campaña electoral, el
actual presidente Jair Bolsonaro, período 2019-2022, viene construyendo una política antiintelectualista y des-
legitimadora del conocimiento cientíco, con ataques sistemáticos a la universidad y la educación en general,
espacios que tradicionalmente se consideran legítimos para la producción y propagación de la “verdad”. Resulta
que con la pandemia estos ataques y procesos de deslegitimación también se acentuaron en el área de la salud.
Entonces, para tal análisis, elegimos las acciones y discursos del gobierno de Bolsonaro y sus partidarios en
relación con la educación, la ciencia y la forma en que lideró la pandemia de coronavirus. a través del ataque al
conocimiento e instituciones médicas como la Organización Mundial de la Salud. De esta forma, dividimos el
texto en dos momentos, uno para contextualizar el surgimiento de la posverdad y los efectos sobre el conoci-
miento cientíco, y luego, a partir de la materialidad ya mencionada, mostramos cómo se ha desarrollado esta
deslegitimación de la ciencia frente a la pandemia del coronavirus en Brasil. Señalamos que la deslegitimación
del conocimiento cientíco y las instituciones del “verdadero decir”, basadas en las prácticas discursivas de la
posverdad, ha contribuido a la división social, proliferación de teorías conspirativas, violencia y crisis en las ins-
tituciones del conocimiento.
Palabras clave: educación; salud; posverdad.
Introdução
Assistimos, no processo da campanha eleitoral de 2018, o emparelhamento do
Brasil a um movimento antidemocrático presente na eleição de alguns países eu-
ropeus e mesmo no plebiscito do Brexit, na Inglaterra, e, sobretudo, nos EUA, com
a eleição de Donald Trump. As eleições de 2018, no Brasil, foram marcadas pelo
acirramento da polarização política, pela amplificação do discurso de ódio e pelo
uso até então inédito das fake news, cujos desdobramentos resultaram na eleição
de Jair Bolsonaro para a Presidência da República, no mandato de 2019 a 2022.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Saúde, educação e a pós-verdade como estratégia de (des)educabilidade: notas sobre a pandemia e o bolsonarismo
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Fazendo intenso uso das redes sociais, das fake news e da manipulação mi-
diática, desde a campanha, o atual presidente orquestrou um ataque sistemático à
educação, considerada em seu discurso como espaço de doutrinação, nomeadamen-
te de esquerda – “um dos maiores males atuais”, como consta em seu Plano de Go-
verno (BRASIL, 2018, p. 46). No Plano de Governo do então candidato, registrado
junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), tanto a educação como a saúde eram
anunciadas como contendo gastos em demasia e resultados fracassados.
Na Educação, assim como na Saúde, os números levam à conclusão que as crianças e os
jovens brasileiros deveriam ter um desempenho escolar muito melhor, tendo em vista o
montante de recursos gastos. Os valores, tanto em termos relativos como em termos absolu-
tos, são incompatíveis com nosso péssimo desempenho educacional (BRASIL, 2018, p. 41).
Como proposta e possível solução, o Plano de Governo de Bolsonaro previa, no
campo da educação, a mudança curricular, com a troca de conteúdos e a aplicação
de nova metodologia de ensino, com prevalência às disciplinas de matemática e
português. Para as universidades, por ele muito criticadas, o plano propõe “fomen-
tar o empreendedorismo para que o jovem saísse da faculdade pensando em abrir
uma empresa” (BRASIL, 2018, p. 46) e frisa em letras garrafais, o objetivo de uma
educação “SEM DOUTRINAÇÃO E SEXUALIZAÇÃO PRECOCE” (BRASIL, 2018,
p. 41). Na área da saúde, também se previa o abandono de qualquer “questão ideo-
lógica” para gerir os gastos já elevados e com poucos resultados à população.
Os trechos retirados do Plano de Governo de Jair Bolsonaro proporcionavam
indícios de que, com a efetiva eleição, a educação seria alvo da pauta conservadora,
e profissionais da área, em especial professores, já começavam a vivenciar ataques
diretos em sala de aula, filmagens indevidas – encorajadas pelo próprio presidente,
acusações de doutrinação e partidarismo político, ou seja, iniciava-se um processo
de desestabilização, descrédito e desautorização de uma área cuja característica
fundamental é o saber e a disseminação do conhecimento, processo que já vinha
ganhando espaço com o Movimento Escola Sem Partido. O mesmo ocorreu com as
universidades, principalmente as de nível federal, acusadas de formar “esquer-
distas” e militantes. Durante a campanha eleitoral, a chapa de Bolsonaro colocou
em circulação as imagens de protestos de movimentos de cunho identitário, com
atenção aos feministas, para associar com um possível caráter ideológico das uni-
versidades brasileiras, sobretudo no que diz respeito à “ideologia de gênero”. Logo
que eleito, defendeu que professores universitários fossem filmados, que a polícia
pudesse entrar dentro dos campi universitários e chegou a chamar os espaços de
“ninhos de rato”.
594 ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Mozart Linhares da Silva, Camila Francisca da Rosa
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O que se segue à eleição de Jair Bolsonaro, para além do conservadorismo, foi
uma política deliberada de precarização do ensino, da ciência e da função professor/
pesquisador. As universidades, assim como pesquisadores e intelectuais, formam
o campo que historicamente está relacionado com a autoridade do conhecimento e
com a verdade. Para além da precariedade material imposta à educação, falamos
de uma precariedade social e moral, de uma desautorização do “falar verdadeiro”,
condição para que outras narrativas, como as relacionadas à pós-verdade, possam
emergir com êxito. O ataque à ciência e às instituições que tradicionalmente pos-
suem autoridade para o “falar verdadeiro” não iniciou nas eleições de Bolsonaro ou
mesmo no processo de impeachment de Dilma Rousseff, precisa ser entendido em
sua genealogia e entendido como se instituiu na emergência da pós-verdade, cujo
efeito evidente na política é seu desdobramento metodológico e midiático.
Com a pandemia, o campo da saúde, que, até então, detinha um status de
saber e poder, também foi reconfigurado no emaranhado de enunciados que desau-
torizam e deslegitimam dados e pesquisas ou mesmo profissionais, produzindo, por
meio da pós-verdade, outras estratégias de educabilidade para o enfrentamento
ao coronavírus. O que propomos problematizar neste texto é a pós-verdade como
método político de desconstrução das instituições de saber do dizer verdadeiro, o
que implica nas políticas nos campos educacional, de saúde e científico. Processo
esse acentuado com o bolsonarismo e durante a pandemia do coronavírus, que des-
tacamos como exemplos dos desdobramentos desse movimento anti-intelectualista
e anticiência.
Pós-verdade como método político
No vasto campo reflexivo sobre a pós-verdade, damos destaque, neste texto, à
forma como as instituições do “dizer verdadeiro” e seus representantes – intelec-
tuais, cientistas, professores(as) e jornalistas – são destituídos de autoridade. E
disso resulta, como efeito, a suspensão das certezas e dos jogos de consensos, o que
abre o caminho para as estratégias políticas personalistas e reacionárias que se
sustentam na desagregação social. A pós-verdade, nessa direção, é elevada à mé-
todo político que lança mão de posturas performáticas que manipulam a confian-
ça e suspendem a autoridade institucional do dizer verdadeiro. Como caracteriza
D’Ancona (2018, p. 20), “no cerne dessa tendência global está um desmoronamento
do valor da verdade, comparável ao colapso de uma moeda ou de uma ação”. Nesse
cenário, ainda conforme o autor, “os ‘especialistas’ são difamados como um cartel
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mal-intencionado, em vez de uma fonte de informações verificáveis” (2018, p. 20).
Na pós-verdade há uma substituição das estratégias, não são mais os argumentos
que precisam ser mobilizados no discurso político, mas uma “atitude estética, hu-
morada e flexível” (DUNKER, 2017a, p. 24), caricata em Donald Trump, para citar
um exemplo.
Muito rapidamente, é preciso apontar para o contexto de emergência da pós-
-verdade, para não cairmos na armadilha de personalizarmos o fenômeno, como se
ele tivesse surgido, por exemplo, a partir da era Trump ou Bolsonaro. Esses podem
ser considerados, inclusive, o ponto de chegada e não o de partida da pós-verdade.
Segundo Dunker (2017a, p. 40-41):
A pós-modernidade é a condição ideológica a partir da qual a pós-verdade pode emergir
como uma espécie de reação regressiva. Ela se aproveita de uma percepção social de que
há um excesso de indefinições contido em termos como: politicamente correto, relativismo,
multiculturalismo, igualitarismo, coletivismo, ecologismo e secularismo.
A performance política daí desdobrada é uma reação a essas indefinições e ins-
tabilidades, que convoca a sociedade a voltar a um “estado personalista da verdade,
resgatar suas raízes na família, retomando o tempo em que a verdade era definida
pela identidade do autor que a anuncia” (DUNKER, 2017a, p. 41). Essa perspecti-
va rasura as bases modernas da verdade, calcadas na ciência, no secularismo, na
universidade, na educação e na imprensa. São essas instituições que são colocadas
sob a égide da dúvida e desconfiança, e são elas que, de certa forma, garantiam a
formação da esfera pública, das bases epistêmicas, a partir das quais o debate e as
discussões políticas e culturais podiam se estabelecer, sem com isso desagregar a
sociedade em conflitos e discursos de ódios. Ao minar a separação entre as esferas
públicas e privadas, a pós-verdade personaliza o que antes era entendido como
discurso político, calcado na “ágora”. Não é sem sentido que o apelo a emoções e
ao carisma pessoal é mobilizado com melhor êxito do que argumentos calcados
na frieza de números ou fatos objetivos. Vivemos, portanto, um deslocamento da
confiança na verdade, conforme fora estabelecido na modernidade. De acordo com
Rodrigo Cracco (2018, p. 60):
O “provado cientificamente” foi se instituindo como sinônimo de verdade desde meados da
modernidade e atinge seu auge nos séculos XIX e XX, com o avanço tecnológico que pos-
sibilitou a verificação empírica de várias hipóteses construídas ao longo da modernidade.
O pensamento científico moderno, construído desde a Renascença, sobretudo
a partir da Revolução Copernicana, foi se constituindo como oposição à forma men-
tis medieval, calcada na religião, no comunitarismo, na autoridade da communis
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opinio doctorum do escolasticismo e na misticidade. O cientificismo oitocentista
em diante consagra a verdade à racionalidade científica, secular e universalista,
basilares na construção do próprio homem moderno.
É, pois, uma crise civilizatória que se anuncia. Uma crise da razão, do univer-
salismo e da cidade como espaço público. Segundo Dunker (2017a, p. 27), “a cidade
é a matriz da verdade como história compartilhada, da qual se pode dar testemu-
nho de convivência comum. A pós-verdade substitui essa experiência pelos condo-
mínios e compartimentalizações étnicas”. A fragmentação e a destituição do espaço
público da verdade implicam na destruição da confiança como cimento constitutivo
das sociedades. Como afirma D’Ancona (2018, p. 42), “esse colapso da confiança é
a base social da era da pós-verdade todo o resto flui dessa fonte única e deletéria”.
É preciso situar melhor como essa desconfiança em relação às instituições do
dizer verdadeiro atua. Fazemos uso, para tanto, da maneira como Michel Foucault
problematiza a ideia de verdade, ou o que ele denomina de uma “economia políti-
ca” da verdade, que, para o filósofo, possui cinco características. Historicamente:
1) “a ‘verdade’ é centrada na forma do discurso científico e nas instituições que
o produzem”; 2) “está submetida a uma constante incitação econômica e política
(necessidade de verdade tanto para a produção econômica, quanto para o poder
político)”; 3) “é objeto, de várias formas, de uma imensa difusão e de um imenso
consumo (circula nos aparelhos de educação ou de informação, cuja extensão no
corpo social é relativamente grande, não obstante algumas limitações rigorosas)”;
4) “é produzida e transmitida sob o controle, não exclusivo, mas dominante, de al-
guns grandes aparelhos políticos ou econômicos (universidade, exército, escritura,
meios de comunicação)”; e 5) “é objeto de debate político e de confronto social (as
lutas ideológicas)” (FOUCAULT, 2013, p. 52).
A verdade, nesse sentido, precisa ser pensada historicamente (CANDIOTTO,
2006) e entendida como suporte de determinados regimes de verdade que produ-
zem sentido e atuam na organização das sociedades em determinados contextos,
bem como atuam nos processos de subjetivação e constituição dos sujeitos. Não há,
vale dizer, um sujeito autônomo, universal e dotado de essência própria a dizer a
verdade. Ao contrário, não é no sujeito que devemos procurar a verdade, e sim no
discurso que o atravessa e o constitui. São as formas de controle do discurso, os
jogos de verdade, que estabelecem o que deve ser considerado e aceito como falso
ou verdadeiro, que produzem a legitimidade do dizer a verdade. As instâncias do
dizer verdadeiro, então, são desdobramentos dos “aparelhos políticos ou econômi-
cos”, cuja materialidade encontramos nas instituições científicas e educacionais e
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nos meios de comunicação. A vontade de verdade se manifesta, nessa direção, como
vontade de poder, pois, indissociável dos jogos de verdade. Quando falamos da ver-
dade em nosso tempo, estamos nos referindo, então, à sua legitimidade constituída
pelas regras de veridicção que aceitamos como confiáveis. Trata-se de uma contin-
gencialidade histórica e, por isso, entendida como acontecimento em sua raridade,
em que pese sua ambição à universalidade.
Essa perspectiva em relação à verdade não implica, como querem alguns, em
uma suspensão ou um relativismo radical da verdade, um vale tudo opinativo, ao
contrário, a verdade possui regramentos e critérios de veridicção que legitimam,
em determinado contexto histórico, as ferramentas cognitivas que os sujeitos lan-
çam mão. São os critérios de veridicção que legitimam a verdade socialmente, or-
ganizando os saberes e seus efeitos na constituição dos sujeitos ou, ainda, na forma
como os sujeitos são governados. E é na ciência, com seus critérios metodológicos,
que a verdade, na modernidade, é instituída. A promessa moderna foi justamente
organizar a sociedade a partir de uma razão redentora que lança mão da ciência
como modus operandi das instituições do dizer verdadeiro. Daí a importância das
universidades, da ciência e da imprensa como redutos legítimos que produzem e
fazem circular os discursos que funcionam como verdadeiros.
Muito dessa promessa moderna perdeu força a partir da primeira metade
do século XX, quando todo o manancial científico e tecnológico contribuiu siste-
maticamente para guerras, genocídios, dominações coloniais, etc. Inclusive, para
Signates (2012, p. 140), uma das crises da ciência acontece no aspecto social, pois
“não consegue atender a algumas das mais caras promessas da modernidade: a da
justiça social, a da construção ética e a da solidariedade, racionalmente fundamen-
tadas”. Pelo contrário, o próprio holocausto fora possível devido a sua estrutura
burocrática, sua racionalidade técnica e científica, não sendo um desvio em si da
razão moderna (BAUMAN, 1998). Como lembra Bauman (1998, p. 83), o racismo é
impensável sem o avanço da ciência moderna, da tecnologia moderna e das formas
modernas do poder estatal. Foucault (2002, p. 304), em sua análise do biopoder e
da biopolítica, chama a atenção justamente para a função do racismo na própria
organização e na fundação do Estado-nação moderno:
[...] o que inseriu o racismo nos mecanismos do Estado foi mesmo a emergência desse bio-
poder. Foi nesse momento que o racismo se inseriu como mecanismo fundamental do poder,
tal como se exerce nos Estados modernos, e que faz com que quase não haja funcionamento
moderno do Estado que, em certo momento, em certo limite e em certas condições, não
passe pelo racismo.
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O racismo e suas bases construídas cientificamente durante os séculos XVIII e
XIX são, portanto, um “mecanismo fundamental do Estado” (PELBART, 2011, p. 57-
59). Não é preciso citar muitos exemplos para pensarmos em como o discurso cien-
tífico ofereceu legitimidade às políticas eugenistas e de extermínios em nome de um
conhecimento tido como verdadeiro, desinteressado e pretensiosamente universal.
Não é sem sentido que as sociedades ocidentais, após a Segunda Guerra Mundial,
tenham dado vazão a contranarrativas que se opuseram, gradativamente, às ideias
de pureza racial, homogeneidade cultural/nacional e heteronormatividade patriar-
cal. O multiculturalismo, os movimentos migratórios, as mudanças revolucionárias
na pauta dos costumes, a fratura na fronteira entre cultura popular e alta cultura,
entre outros, pontuaram a crítica à tradição das verdades que até então deram
feição às sociedades modernas. A promessa redentora da modernidade, calcada na
legitimidade e no poder da ciência como narrativa organizadora das sociedades,
perde força e confiança, abrindo espaço para o que Hicks (2011) chamou de estilha-
çamento epistemológico. É interessante notar que esse estilhaçamento epistemo-
lógico correspondeu, no contexto pós-Segunda Guerra, a uma pauta das esquerdas
que visava atacar o cerne dos valores tradicionais, como é o caso do patriarcado, do
universalismo e do cientificismo, a exemplo do darwinismo social e da engenharia
social calcada na eugenia, entre outros. O que temos, agora, é uma outra narrativa
que opera uma inversão nesse relativismo, confrontando as esquerdas e o próprio
pensamento liberal. Como afirma Kakutani (2018, não paginado):
Na primeira rodada das guerras culturais, a Nova Esquerda rejeitou os ideais do Ilumi-
nismo como vestígios do antigo pensamento patriarcal e imperialista. Hoje, esses ideais de
razão e progresso são atacados pela direita por serem vistos como parte de uma conspiração
liberal para minar valores tradicionais.
Logo, cabe a questão: como a pós-verdade se institui como método político?
Mesmo longe de responder integralmente à pergunta, são necessárias algumas
considerações. A pós-verdade faz uso desse estilhaçamento epistemológico que ata-
ca as bases do pensamento moderno e, com isso, do próprio pensamento político.
É na corrosão da política e, sobretudo, de seus agentes, os políticos, que persona-
gens como Trump e Bolsonaro estaquearam suas bases discursivas calcadas, justa-
mente, na antipolítica e, para tanto, mobilizaram pautas morais, como corrupção,
sexualidade e liberdade. A política e a ideologia são associadas à corrupção e à
imoralidade. Entende-se, nesse caminho, como as ciências humanas foram pionei-
ramente atingidas por essa postura, nomeadamente aquelas áreas que assumiram
a política como recurso epistemológico de suas temáticas, como são os estudos rela-
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cionados a identidades, cultura e gênero. Conforme contextualiza Dunker (2017a,
p. 15), no início do século XXI,
[...] o ambiente acadêmico fervilhava em torno da herança das teorias feministas dos anos
70, agora revigorados em estudos de gênero (Gender Studies), estudos gays e lesbianos e
mais tarde pela teoria queer. Independente de seus temas e autores específicos, o movimen-
to incluía uma espécie de retomada da presença da política nas ciências humanas.
Na agenda da pós-verdade, também se encontra uma “guerra cultural” que
lança mão de um revisionismo histórico pernicioso, oferendo interpretações alterna-
tivas para o colonialismo, a escravidão, as ditaduras (como no caso latino-america-
no) e o racismo, para citar alguns. Vale lembrar a entrevista de Jair Bolsonaro no
programa Roda Viva, em 2018, quando afirmou, após ser questionado sobre a dívida
histórica referente à escravidão no Brasil: “eu nunca escravizei ninguém na minha
vida. Se for ver a história realmente, o português nem pisava na África. Os próprios
negros que entregavam os escravos. Que dívida é essa?” (RODA VIVA, 2018).
Esse contexto de suspensão da razão, com a possibilidade de narrativas alter-
nativas sem o menor critério científico ou filosófico, faz da pós-verdade um fenômeno
que abre o campo de viralização para as fake news. Bem entendido, a mentira não é
nenhuma novidade na política, mas, nesse contexto e com o auxílio enorme das redes
sociais, ela adquire uma potência sem precedentes. Kakutani (2018, não paginado)
lembra o alerta do empreendedor do Vale do Silício, Andrew Keen, para quem:
[...] a internet havia não apenas democratizado a informação de maneira inimaginável,
como também estava fazendo com que a ‘sabedoria das multidões’ tomasse o lugar do co-
nhecimento legítimo, nublando perigosamente os limites entre fato e opinião, entre argu-
mentação embasada e bravata.
O embaralhamento da opinião pública, a manipulação da memória, como no caso
da história, e o achatamento da confiança nos especialistas possibilitam o livre trânsi-
to de opiniões sustentadas na credibilidade pessoal, na performance de quem diz. Mi-
nar a confiança, mentir sistematicamente e confundir são métodos de desarticulação
da opinião pública, de generalização da dúvida. D’Ancona (2018, p. 42) aponta que,
“na década de 1990, Ted Goertzel, sociólogo da Universidade Rutgers, realizou uma
pesquisa de opinião por telefone que revelou que aqueles inclinados a desconfiar dos
outros também eram mais propensos a acreditar em teorias da conspiração”.
Fica evidente como a fragilização da verdade e das instituições do falar ver-
dadeiro nos coloca frente à construção de um “novo” ethos político, que desafia a
democracia e seus necessários acordos que permitem às sociedades certa previsibili-
dade e confiança contratual. Não é exagero apontar para um ethos do fascismo, não
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o fascismo histórico, mas rastros que vão se reconstruindo, por exemplo, no apelo
moral e na identificação do inimigo. O sistema moral é extremamente simplificado,
facilitando a comunicação e o alcance à opinião pública. Toda mensagem deve ser fa-
cilmente digerível e repercutida, como os estereótipos sociais e os rótulos ideológicos.
Já os inimigos são facilmente construídos, mobilizados e estereotipados (PAXTON,
2007; STANLEY, 2018). Quando consideramos as falas de Trump e Bolsonaro, por
exemplo, fica evidente como são recorrentes os discursos que lançam mão da conver-
são a valores relacionados à pátria, à heteronormatividade, à família tradicional, a
inimigos comuns, como comunistas, imigrantes ou refugiados, entre outros.
Os rastros de um discurso fascista contemporâneo, que emerge conjuntamente
com a pós-verdade e o abandono da razão, criam um mundo em que os chamados
“cidadãos de bem”, convertidos a esses valores, estão sempre frente a ameaças
externas (globalismo de esquerda) ou internas, como pobres, párias sociais, mino-
rias ressentidas etc. São esses “outros” que se precisa enfrentar cotidianamente,
e, ao menor sinal de ameaça, o ódio e a violência são mobilizados. Os inimigos
são muitos, mas facilmente enquadrados, pois, como observa Dunker (2017a, p.
35), “um fato importante na nova cultura da indiferença e do ódio é que nossas
respostas não são exatamente concentradas no que o outro diz, mas no ambiente,
no contexto, no que se ajusta bem à paisagem”. É fácil, assim, identificar inimigos
nos intelectuais, por exemplo, pois, independente do que se diz, o enquadramento
ideológico presumido deslegitima qualquer possibilidade discursiva. O ataque às
instituições como universidades e escolas e ao saber médico diante da pandemia,
nessa direção, mostra exemplarmente essas táticas de descredibilização e interdi-
ção da autoridade do “dizer verdadeiro”.
Desautorização da ciência e pandemia
No final do ano de 2019, o mundo começa a ter as primeiras notícias sobre a
ocorrência de um vírus altamente contagioso – o novo coronavírus, SARS-CoV-2.
Os primeiros casos aconteceram em Wuhan, na China, mas logo o vírus se espalhou
e agravou o contágio em outros países. A Organização Mundial da Saúde (OMS)
classifica o momento como uma pandemia e, em 2020, o Brasil passa a lidar com o
avanço do vírus.
Ainda sem vacina, uma das únicas formas de prevenção e enfrentamento da
pandemia, indicada pela OMS e por vários pesquisadores, é o isolamento social.
Medida que foi acatada pelo Ministério da Saúde brasileiro, por governadores de
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estados e muitos representantes políticos. Mas, frente aos problemas econômicos
oriundos dos desdobramentos da desaceleração da economia com o fechamento do
comércio, por exemplo, o governo federal inicia um confronto com a OMS, advogan-
do uma narrativa alternativa, próxima à adotada nos EUA, por Donald Trump.
A despeito das inúmeras pesquisas sobre a pandemia, o Planalto passa, então, a
defender um discurso de salvação de empregos, considerando que as mortes na epi-
demia são inevitáveis e que é preciso manter a economia funcionando. Bolsonaro,
seguindo essa direção, entra em rota de colisão, inclusive, com o então ministro da
saúde, o médico Luiz Henrique Mandetta.
A pandemia do coronavírus potencializou, no contexto brasileiro, a deslegiti-
mação da ciência, principalmente porque atingiu uma área de grande status como a
da saúde. Ainda segundo dados da pesquisa sobre a Percepção pública da ciência e
tecnologia no Brasil, os médicos apareciam, em 2019, em primeiro lugar como fonte
confiável de informação para os brasileiros, para só depois figurarem os cientistas
de universidade e instituições públicas de pesquisa (CGEE, 2019, p. 13). Como mui-
to pouco ou nada se sabia sobre o vírus antes de sua aparição, as pesquisas sobre o
coronavírus aconteciam conjuntamente com o avanço da pandemia e muitas infor-
mações foram sendo produzidas, ora recomendando e ora desencorajando determi-
nadas ações, o que colaborou para um descrédito da área e para o fortalecimento de
teorias paralelas, principalmente quando estas partiam do presidente da República.
Bolsonaro recrudesceu o negacionismo à pandemia e descreditou sua gravi-
dade ao nomeá-la como uma “gripezinha” (G1, 20/03/2020). Indo de encontro às
recomendações de afastamento social, chegou a convocar seus apoiadores para atos
(com aglomerações) “a favor dos empregos” (CARVALHO, 2020), disse que faria
uma “festinha” para comemorar seu aniversário (COLETTA, 2020) e foi frequen-
temente flagrado fazendo passeios e aparições públicas sem o uso recomendado de
máscara e outras medidas de higiene. Não raras vezes, apresentou-se em vídeos
abraçando e apertando a mão de apoiadores. Ou seja, um conjunto de performati-
vidades corporais que produziam, através de imagens, o descrédito às orientações
científicas e um encorajamento para o descumprimento das normas estabelecidas
pelos órgãos oficiais de saúde.
Além disso, é preciso destacar a forma como Bolsonaro se relacionou com o
Ministério da Saúde, sobretudo com o ministro Luiz Henrique Mandetta, defensor
das orientações da OMS. Em várias ocasiões, Bolsonaro desacreditou o ministro e
suas políticas atinentes à pandemia, como em relação ao isolamento e ao distan-
ciamento social, que Bolsonaro criticava, postulando a suficiência de um modelo de
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isolamento vertical, direcionado apenas para os grupos da população considerados
de risco. A gravidade e a preocupação com a pandemia e um possível colapso do
sistema de saúde também geraram impasses entre ambos – Bolsonaro chegou a
alegar que a pandemia foi alarmada e agravada pela mídia. Nas suas palavras,
“obviamente temos no momento uma crise, uma pequena crise. No meu entender,
muito mais fantasia, a questão do coronavírus, que não é isso tudo que a grande
mídia propala ou propaga pelo mundo todo” (G1, 10/03/2020).
Aliás, a crise econômica foi a principal sustentação das falas de Jair Bolsonaro
contrárias às formas de prevenção ao vírus. Enquanto estados e municípios inten-
sificavam campanhas de conscientização e prevenção, o governo federal preparava
o lançamento da campanha intitulada “O Brasil não pode parar”, que caracterizava
o momento como histeria e defendia a retomada das atividades econômicas e a
reabertura das escolas. Agravava-se o confronto com o ministro Mandetta, que, em
entrevistas e pronunciamentos diários, continuava defendendo as recomendações
da OMS, além de fazer uma inusitada defesa do Sistema Único de Saúde (SUS),
pois até então o ministro era um defensor da privatização do sistema.
Após as inúmeras divergências, Mandetta não resistiu e foi substituído por
Nelson Teich, que ficou à frente do ministério cerca de um mês apenas. Mesmo sen-
do a aposta de um diálogo mais afinado com a posição de Bolsonaro, Teich também
manteve o discurso alinhado à OMS e aos órgãos de pesquisa. Atualmente, está à
frente do ministério o militar de carreira Eduardo Pazuello, não formado em medi-
cina, vale dizer. O ministério cancelou as entrevistas coletivas diárias e, inclusive,
passou a postergar o horário da divulgação dos dados da pandemia, para que não
fossem divulgados pela imprensa, medida revogada pela justiça.
Para além da disputa discursiva com seus ministros, Bolsonaro mantém a pos-
tura de desacreditar instituições internacionais como a OMS, como já mencionamos,
apelando para o discurso do “viés ideológico” da instituição. Chegou a declarar que:
“ou a OMS realmente deixa de ser uma organização política, partidária, assim, va-
mos dizer, até partidária, ou nós estudamos sair de lá” (GARCIA, 05/06/2020). Ainda
na tentativa de diminuir a importância da pandemia, Bolsonaro minimizou as mor-
tes causadas pelo coronavírus, com frases como: “E daí? Lamento. Quer que eu faça
o quê?” (GARCIA, 28/04/2020), que afirmou quando questionado, em abril de 2020,
sobre o número de óbitos; ou mesmo: “Ô, cara, quem fala de... [morte] Eu não sou
coveiro, tá certo?” (G1, 20/04/2020), como declarou também em abril de 2020.
O discurso de Bolsonaro que visa atacar um inimigo ideológico, o viés partidá-
rio, as teorias conspiratórias, acaba ganhando adeptos que desmobilizam o isola-
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mento social, única estratégia comprovada para conter a pandemia, e saem às ruas
protestando pela retomada das atividades econômicas do país. O negacionismo do
governo é flagrante e tem mobilizado seus seguidores a apoiá-lo, inclusive com
atos violentos e antidemocráticos. Vale dizer, nesse sentido, que a atuação de Jair
Bolsonaro diante da pandemia foi denunciada junto ao Alto Comissariado da Orga-
nização das Nações Unidas (PORTAL UOL, 01/07/2020) como atentado aos direitos
humanos das populações mais vulneráveis.
O presidente, a Cloroquina e a bula anticientíca
Ainda no mês de março, durante os primeiros casos de coronavírus no Brasil,
o presidente, Jair Bolsonaro, apareceu em vídeo, vestindo a camisa de um time de
futebol, anunciando que um hospital particular iria iniciar testes com cloroquina
em pacientes acometidos pelo coronavírus e que o laboratório químico e farmacêu-
tico do exército daria início à produção em massa do medicamento. Não demorou
muito para que, mesmo sem comprovação científica e com a possibilidade de fortes
efeitos colaterais, os estoques dos medicamentos fossem esvaziados nas farmácias.
Entusiasta da cloroquina, assim como Donald Trump, Bolsonaro passou a pro-
por o uso do medicamento em diversas entrevistas. Fato determinante para a sua
conturbada relação com o até então ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta,
que recorria à ciência e não defendia o uso indiscriminado do medicamento. Segun-
do declarou o ministro: “só trabalho com critério técnico e critério científico, só tra-
balho com Academia, só trabalho com o que é ciência. Agora existem as pessoas que
trabalham com critérios políticos, que são importantes, deixem que eles trabalhem.
Não me ofende nada” (ISTOÉ, 01/04/2020). Nessas duas situações estão visíveis
as disputas entre uma estratégia que reformula a ciência pelo viés da pós-verdade
para fins políticos e outra que toma o saber científico da medicina – em que ambos
ocupam espaços de autoridade e, portanto, produzem informações que educam a
população diante da pandemia. Vale frisar que a OMS suspendeu as pesquisas
com cloroquina em função dos efeitos colaterais e da ineficácia no tratamento dos
acometidos pela Covid-19.
Entendemos que a pandemia pode ter proporcionado o exemplo mais claro do
descrédito científico quando Bolsonaro, para manter sua teoria de que a cloroquina
funcionava, chegou a propor a troca da bula do medicamento, orientando-o para
o tratamento de Covid-19. Em entrevista, Mandetta (GAÚCHAZH, 21/05/2020)
revelou:
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O presidente se assessorava ou se cercava de outros profissionais médicos. Eu me lembro
de quando, no final de um dia de reunião de conselho ministerial, me pediram para entrar
numa sala e estavam lá um médico anestesista e uma médica imunologista, que estavam
com a redação de um provável ou futuro, ou alguma coisa do gênero, um decreto presiden-
cial... E a ideia que eles tinham era de alterar a bula do medicamento na Anvisa, colocando
na bula indicação para covid-19.
Em julho de 2020, Bolsonaro declarou ter testado positivo para o coronavírus
e já ter iniciado o tratamento com a cloroquina. O presidente (VEJA, 07/07/2020),
centrando-se em sua figura performática, aparece em vídeo tomando o medicamento:
Sabemos que hoje em dia existem outros remédios que podem ajudar a combater o coro-
navírus, sabemos que nenhum tem a sua eficácia cientificamente comprovada, mas mais
uma pessoa que está dando certo, completou, fazendo uma referência a si próprio logo após
tomar um copo de água para engolir o medicamento. “Eu confio na hidroxicloroquina, e
você?”, perguntou.
A manobra discursiva de Bolsonaro é fazer dele mesmo o garoto propaganda de
suas crenças e continuar criando o mito do homem que é sempre atacado pelos ini-
migos “ideológicos”, mesmo quando é capaz de provar, ou formular, suas verdades.
A pandemia permitiu a construção de uma trama de descrédito à ciência calcada em
fake news e na proliferação de teorias atinentes à pós-verdade. As estratégias per-
formáticas de Bolsonaro continuam confrontando a ciência e advogando uma narra-
tiva alternativa próxima do ethos do fascismo, tentando interditar as divergências
ou crenças desalinhadas sobre o que pode ou não ser a verdade sobre a pandemia.
A vacina, saúde e processos de (des)educabilidade da população pela pós-verdade
Um dos episódios mais recentes que a relação do governo bolsonarista com a
pandemia proporcionou, ainda durante a escrita deste texto, diz respeito à com-
pra de vacinas capazes de produzir anticorpos contra o coronavírus e destinadas à
imunização da população brasileira. Ocorre que a oferta de vacinas partia da Chi-
na – um país “comunista” – e, portanto, um dos inimigos discursivos dos governos
conservadores. As vacinas que são desenvolvidas pelo mundo estão em períodos
de testagem, mas o Brasil, através do Ministério da Saúde, e o estado de São Pau-
lo haviam estabelecido um acordo com o laboratório chinês para a compra de 46
milhões de doses. A vacina chinesa é desenvolvida em parceria com o renomado
Instituto Butantan (SP) e já realiza testes com voluntários no país. Segundo Bol-
sonaro, o acordo estabelecido entre o Ministério da Saúde e o estado de São Paulo
destituiu sua autoridade: “já mandei cancelar, o presidente sou eu, não abro mão
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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da minha autoridade [...]. Até porque estaria comprando uma vacina que ninguém
está interessado nela, a não ser nós” (PORTAL UOL, 21/10/2020). A posição do
presidente foi justificada por não haver aprovação por órgãos de controle para a
comercialização do medicamento – não reconhecendo o trabalho feito dentro do
próprio país junto ao Instituto Butantan.
Provocar e parar o processo de compra de vacinas é coerente com a postura
de um representante nacional que constantemente minimizou a pandemia como
problema de saúde. Bolsonaro e seus apoiadores utilizaram a postura negacionis-
ta como estratégia de atuação frente ao coronavírus e provocaram estratégias de
educabilidade à população diferentes das recomendadas pelas organizações oficiais
de saúde. Isso se dá por meio de performatividades corporais que vão às ruas, que
mantêm contato físico, sem máscara ou qualquer proteção. Ocorre pela construção
paralela de uma narrativa que minimiza a pandemia e produz soluções alternati-
vas, amparadas pela estratégia da pós-verdade, como isolamento vertical, contágio
em rebanho, cloroquina ou, até mesmo, a não necessidade de vacinas.
Considerações nais
Christian Dunker (2017b) frisa que a pós-verdade tem muitas implicações po-
líticas, morais e institucionais, mas é no campo da educação que a suspensão da
verdade prenuncia um conjunto de efeitos ainda incalculáveis. E foi esta a preo-
cupação deste texto quando tratou de analisar como o campo da educação, em es-
pecial o da ciência, passa a ser destituído de valor e reconhecimento institucional
do “dizer verdadeiro”. Logo, quando entendemos o ataque à ciência, nomeamos um
ataque às instituições que ela fomenta, como educação e saúde.
A deslegitimação do saber científico, o cerceamento financeiro à pesquisa, o
descrédito às universidades e aos pesquisadores, que passam constantemente a
serem atacados, são característicos dessas práticas políticas calcadas na pós-ver-
dade. Desautorizar instituições e profissionais que caracteristicamente são deten-
tores da verdade é parte estratégica do método político da pós-verdade. Vale ainda
frisar como este processo de deslegitimação passa a ser articulado através do ne-
gacionismo, na produção de fake news, na formulação de teorias alternativas ou
mesmo conspiratórias, que desestabilizam a opinião pública. A pós-verdade como
método político do governo Bolsonaro se apresenta na performatividade pessoal,
nos discursos conservadores calcados na pauta moral, na “valorização” da pátria,
da família e da religião, muito próximos aos rastros do fascismo, fazendo da ciên-
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cia, da educação e dos intelectuais, inimigos públicos. O exemplo mais flagrante
dessas práticas políticas encontramos na forma como o governo Bolsonaro lidou
com a pandemia do coronavírus. Ela nos oferece a materialidade dos efeitos trá-
gicos da pós-verdade como método político e que está nos desafiando a lidar com
novas perspectivas de processos de educabilidade.
Caberá às instituições como universidades, mídias e escolas tomar novamente
o controle do direito pelo dizer verdadeiro. Silva e Hillesheim (2021, p. 6) frisam
que os discursos de verdade necessitam e são regrados pelas instituições:
Precisam da legitimidade das instituições, dos diplomas, das chancelas e da autoridade do
dizer as coisas. As instituições são espaços fundamentais que possibilitam a ordem dos dis-
cursos e sua difusão no tecido social. É importante notar que as instituições oferecem os pa-
râmetros, os critérios e os procedimentos necessários para a legitimidade social da verdade.
Se vivemos historicamente um contexto de expansão da pós-verdade, também
existe a ampliação dos movimentos de resistência, diálogo, produção científica e
crítica ao desprezo pelo dizer verdadeiro. Há que se fortalecer as instituições que
sigam procedimentos científicos de produção da verdade.
Isso não significa uma cristalização da verdade, entendendo-a como universal e imutável,
mas, mediante a constatação de sua precariedade, um exercício cuidadoso no sentido de
problematizar as próprias formas pelas quais nós, enquanto sociedade, construímos deter-
minadas verdades, resultantes de determinados arranjos discursivos. Para isso, é preciso
retomar tanto a realidade da experiência, quanto os critérios do pensamento, elementos
que, como assinalado no início deste texto, estão fraturados em uma sociedade mergulhada
em um ethos fascista (SILVA; HILLESHEIM, 2021, p. 15-16).
Há que se produzir enfrentamentos ao ethos fascista que atravessa o campo da
educação. As estratégias de educabilidade, desta educação que está para além do
espaço da escola, mas que se faz na mídia, nos espaços públicos, nos movimentos
sociais, precisam perpassar pela verdade como mobilizadora discursiva.
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O que é educar um bebê? Os primórdios da estruturação psíquica dentro da instituição escolar
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O que é educar um bebê? Os primórdios da estruturação psíquica dentro da
instituição escolar
What is to educate a baby? The beginnings of psychic structuring within the school institution
¿Qué es educar un bebé? Los primordios de la estructuración psíquica dentro de la institución escolar
Julieta Jerusalinsky*
Resumo
O acesso de bebês à educação infantil é, por um lado, um direito da mãe-trabalhadora e, por outro, do bebê e da
pequena criança. Tal conquista legal não implica que clínicos e educadores deixem de lado a interrogação acerca de
como ocorre a sustentação da presença-ausência entre uma mãe e um bebê, para que a passagem entre os cuidados
maternos e institucionais possa representar uma extensão de laços, e não um rompimento da referência primeira (tra-
ço unário) que sustenta a série simbólica da vida de um bebê. Ao mesmo tempo, é preciso qualicar a intervenção dos
prossionais da educação infantil, tornando transmissível como nesses pequenos atos cotidianos de alimentação,
higiene ou embalo do sono, frequentemente desvalorizados dentro da cultura, estão em jogo as primeiras inscrições
constituintes do psiquismo de um bebê que atrelam as percepções que chegam até ele às representações simbólicas
ofertadas por quem dele cuida. Por isso, prossionalizar a intervenção de educadores da primeira infância não implica
cair em técnicas rígidas, mas resgatar a complexidade da transmissão simbólica implicada nos cuidados cotidianos,
no brincar da pequena criança e nos jogos constituintes de um bebê como sujeito do desejo em estruturação, subli-
nhados nas contribuições da clínica da estimulação precoce permeada pela psicanálise.
Palavras-chave: educação infantil; psicanálise; creche; estimulação precoce; primeiríssima infância.
Abstract
Babies’ access to early childhood education is, on the one hand, a right of the working mother and, on the other,
of the baby and the small child. Such a legal achievement does not imply that clinicians and educators leave
aside the question about how the presence-absence is sustained between a mother and a baby so that the tran-
sition between maternal and institutional care can represent an extension of bonds and not a break of the rst
reference (unary trait) that supports the symbolic series of a baby’s life. At the same time, it is necessary to qualify
the intervention of early childhood education professionals, making it transmissible how in these small daily acts
of feeding, hygiene or sleep lulling, often devalued within the culture, the rst inscriptions constituting the ba-
by’s psyche are at stake. They tie the perceptions that reach him to the symbolic representations oered by those
who care for him. For this reason, professionalizing the intervention of early childhood educators does not imply
falling into rigid techniques, but rescuing the complexity of the symbolic transmission involved in daily care, in
playing with the small child and in the games that constitute a baby as the subject of desire in structuring, un-
derlined in the contributions of the clinic of early stimulation permeated by psychoanalysis.
Keywords: child education; psychoanlysis; early stinulation; very early childhood.
* Psicóloga, especialista em Estimulacion Temprana (FEPI Centro Dra. Lydia Coriat Buenos Aires), mestre e doutora em
Psicologia Clínica (PUC-SP). Membro da Clínica Prof. Dr. Mauro Spinelli, do Centro Lydia Coriat, do Instituto Travessias
da Infância e da REDE-BEBÊ. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3184-5412. E-mail: julietajerusalinsky@gmail.com
Recebido: 15/11/2020 – Aprovado: 28/06/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i2.11845
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Resumen
El acceso de los bebés a la educación infantil es, por un lado, un derecho de la madre trabajadora y, por otro del
infante. Tal logro legal no implica que clínicos y educadores dejen a un lado la pregunta de cómo se sostiene la
presencia-ausencia entre una madre y un bebé, para que la transición entre el cuidado materno y el institucional
pueda representar una extensión de lazos y no una ruptura con la primera referencia (rasgo unario) que sostiene
la serie simbólica de la vida de un bebé. Al mismo tiempo, es necesario calicar la intervención de los profesio-
nales de la educación infantil, haciendo transmisible cómo en estos pequeños actos diarios de alimentación,
higiene o adormecimiento, muchas veces descalicados dentro de la cultura, están en juego las primeras ins-
cripciones que constituyen la psique del bebé articulando las percepciones que le llegan a las representaciones
simbólicas que le ofrecen quienes lo cuidan. Por ello, profesionalizar la intervención de los profesionales de la
educación infantil no implica producir técnicas rígidas, sino rescatar la complejidad de la transmisión simbólica
involucrada en el cuidado cotidiano, jugar de los pequeños y juegos constitucionales del bebé como sujeto del
deseo en estructuración, subrayados en los aportes de la clínica de la estimulación temprana permeada por el
psicoanálisis.
Palabras-clave: educacion infantil; psicoanalisis; estimulacion temprana; infancia temprana.
Introdução
O acesso de bebês à educação infantil como um direito público e gratuito im-
pôs-se como necessário pela transformação do lugar social das mulheres, que, ao
ocuparem o mercado de trabalho, tornaram imprescindível terem a quem delegar
os cuidados dos bebês (0-3 anos) e das pequenas crianças (3-6 anos) durante a
jornada laboral. Assim, os bebês, com chupetas, fraldas, naninhas, berços, mama-
deiras e cueiros, adentraram no Ministério da Educação e Cultura há pouco mais
de duas décadas e meia, já que somente em 1988, pela Constituição federal, e em
1996, pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9.294/1996),
passou a haver uma legislação de educação para crianças com menos de 6 anos, ou
da etapa até então denominada como período pré-escolar.
Se, nas primeiras gerações de mulheres com dedicação à carreira, o cuidado
dos bebês era sustentado junto à família extensa, contando frequentemente com a
retaguarda de tias ou avós que ainda exerciam a função social de donas de casa,
além da figura da babá, a partir do momento em que a realidade do mercado de
trabalho produziu tanto o afastamento das famílias extensas quanto a dedicação
laboral de mulheres já da geração anterior, foi preciso produzir uma nova resposta
social: creches e berçários, até então esparsos, informais ou particulares, impuse-
ram-se como uma necessidade de políticas públicas dentro da educação infantil.
Acabou por se produzir nesse campo uma superposição de direitos (MOREI-
RA, 2013). Por um lado, a legislação trabalhista, que regula o direito de mulheres
à licença maternidade, bem como, ao seu término, o direito de uma mãe/trabalha-
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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dora de acesso a creche ou berçário para o seu bebê (CLT. Art. 400); e, por outro, o
direito da criança de ter acesso à educação infantil, entre 0 e 6 anos, sendo nos 3
primeiros anos uma escolha dos pais (ECA, Lei n. 8.069/1990).
Essas transformações deixam em sua esteira diversos percalços que não deve-
mos ignorar e que tantas vezes recolhemos na clínica da primeira infância, sendo
ainda preciso debruçar-nos sobre eles para poder avançar socialmente com direitos
que considerem as especificidades desse momento da vida, a fim de que ir à escola
possa produzir efeitos estruturantes para o bebê e para o exercício da maternidade
e da paternidade. Para isso, é preciso escutar o que mães e pais têm a dizer sobre
as diversas experiências de delegar os cuidados dos bebês ao berçário e, princi-
palmente, promover uma formação dos profissionais da educação infantil que os
prepare para ler o que os bebês dão a ver em suas produções, revelando como estão
respondendo psiquicamente aos acontecimentos de vida, entre os quais, às passa-
gens entre os cuidados familiares e institucionais.
A passagem do bebê da família à escola: extensão ou esgarçamento do laço?
A conquista do direito ao berçário ou à educação infantil não deve deixar de
lado a interrogação por modos de organização da licença maternidade mais pau-
tadas pelas possibilidades de elaboração psíquica das passagens entre presença-
-ausência e a duração, que é possível de atravessar para um bebê e para uma mãe
sem sucumbirem psiquicamente. O prazo de 4 a 5 meses estipulado para a licença
maternidade, se bem seja uma conquista, apoia-se ainda em uma concepção biolo-
gizante da maternidade, correspondendo a um período de convalescência física da
perinatalidade e do aleitamento materno exclusivo.
Diante disso, a clínica revela como seria favorável que o tempo de licença e de
retorno ao trabalho pudesse se dar de modo mais flexível e adaptável às circunstân-
cias de cada caso, por exemplo, com a possibilidade de que algumas mães-mulheres
pudessem retornar até mesmo antes ao trabalho, mas com uma jornada mais breve
e mais esparsamente distribuída ao longo dos meses. Isso poderia tirar muitas mu-
lheres da condição inicial tantas vezes experimentada como profundo isolamento
e solidão a dois com seu bebê, permitindo progressivas experiências de separação
entre eles e a extensão de cuidados a terceiros de um modo menos abrupto e defini-
tivo. Por sua vez, licenças paternidades semelhantes às das mães implicam, nesse
sentido, um ganho para todos, podendo evitar segregações de mulheres no mercado
de trabalho, maior chance de participação dos pais nos cuidados da primeiríssima
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infância e, principalmente, para um bebê, a possibilidade de experienciar a exten-
são de cuidados, para além da mãe, de modo mais progressivo.
Os rígidos prazos de retorno ao trabalho em jornada integral, pelos quais mãe
e bebê passam de estar o dia inteiro juntos, quase sempre isolados do convívio com
outras pessoas ao longo de 4 ou 5 meses, a estar distantes de 10 a 12 horas por
dia (contando-se a jornada de trabalho e o tempo de transporte), podem produzir
consequências desfavoráveis para a estruturação do sujeito psíquico na primeirís-
sima infância e para o exercício da maternidade, como tantas vezes recolhemos na
clínica.
Com muita frequência, a separação abrupta após um período de isolamento
a dois se traduz em depressões maternas ou em quadros de dor impeditivos do
trabalho, culminando em afastamentos laborais. Recordamos aqui do caso de uma
mãe que passou a sofrer de grave enxaqueca que a impediu de retornar ao trabalho
(composto por uma extensa jornada de 12 horas) após licença maternidade e que
afirmava “o bebê não me sai da cabeça”, tendo que ser afastada (BUGHAY ACETI;
JERUSALINSKY, 2012). A dor psíquica traduzida em dor física foi impeditiva do
trabalho, implicando uma condição de retorno absoluto aos cuidados do bebê.
Do lado do bebê, testemunhamos situações em que se produzem doenças de
repetição (quadros alérgicos de pele, respiratórios, quadros infectocontagiosos,
entre outros) na entrada na instituição escolar, que revelam uma reação imuno-
lógica diante de uma nova circunstância de vida que se impõe de modo cortante,
como uma descontinuidade de tudo o que é familiarmente conhecido e diante da
qual o seu corpo colapsa enquanto seu psiquismo reage ao estranhamento. Em
outros casos, comparecem desorganização nos hábitos de sono (o bebê dormindo
na escola para se suprimir psiquicamente e ficando acordado em casa com os pais,
por exemplo), no controle esfincteriano (com retenções de fezes que se apresentam
como respostas à angústia de separação) e, ainda, nos hábitos alimentares (o bebê
recusando-se a comer ou apresentando seletividades alimentares excessivas). Este
último ponto frequentemente se vê agravado por introduções da alimentação sóli-
da, semissólida e variada que se precipitam em função da entrada na creche, sendo
tantas vezes desencadeadas muito mais por uma necessidade externa de adapta-
ção à legislação laboral do que pautadas pelas possibilidades de estruturação de
um bebê, como a progressiva extensão de satisfações orais (olfativas, gustativas e
táteis), em que a degustação e a apresentação de papinhas, frutinhas e suquinhos
possam constituir-se como novos objetos de prazer por conquistar e desvendar, ca-
pazes de despertar o desejo do bebê.
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É preciso que a alteridade ao que é familiar possa ser introduzida respeitan-
do-se a extensão que o laço e as experiências primeiras têm, dentro das quais cada
nova apresentação de objeto possa entrar respeitando a elasticidade desse laço, con-
vocando o desejo desse bebê e dessa mãe para abrir lugar à entrada do novo – novos
lugares, pessoas, sabores, vozes, rostos, ruídos, cheiros e ritmos que permeiam o
cuidar. Revela-se aí como a organização do funcionamento das funções de um bebê
na psicomotricidade, na linguagem, nos hábitos de vida diária e nos esquemas de
ação das primeiras aprendizagens sensório-motoras não está simplesmente regida
por um automatismo neurobiológico. Se bem cada uma dessas áreas tenha uma
sequência de etapas que guardam uma coerência lógica intrínseca de progressiva
complexização – tal como descrito por Piaget (1987), em relação à construção da
inteligência na criança –, tais conquistas se apoiam não só nas possibilidades orgâ-
nicas e na maturação do equipamento neuroanatômico que as torne possíveis, mas
também na estruturação psíquica de um bebê na relação com aqueles que dele cui-
dam. Isso porque o desenvolvimento de um bebê não é automático, nem autônomo.
Ele não prescinde das sucessivas convocatórias (nos hábitos de sono, alimentação,
controle esfincteriano, postura e movimento, fala e compreensão, etc.), para que
se ponham em funcionamento as diferentes funções, que vão se organizando pela
e na relação com o Outro, permeadas por uma possiblidade de obtenção de prazer
(BERGÉS, [1988] 1997). Estar atento a isso é imprescindível para considerarmos
que lugar pode ter para um bebê e seus pais a ida dele para a escola, na medida em
que isso pode significar uma abertura progressiva à alteridade – em que os laços se
estendem, favorecendo a estruturação – ou um esgarçamento do laço primordial,
que sustenta a referência do bebê, com consequências desfavoráveis para a sua
estruturação psíquica e o seu desenvolvimento.
A estruturação psíquica de um filhote humano torna imprescindível que ele
seja o bebê de alguém, ficando referido a um desejo não anônimo de um Outro
que sustenta para ele um lugar no mundo real que o cerca de forma atrelada a
uma rede simbólica desde a qual as sensações que chegam até ele ganham a sua
significância, sendo percebidas como prazer ou desprazer a partir dessa relação.
Essa instância do Outro (anterior e exterior ao bebê) é, portanto, imprescindível
para a sua estruturação como sujeito, estando, nos primórdios da vida, encarnada
pelo agente que exerce a função materna. É esse Outro encarnado que sustenta os
traços de identificação desde os quais um bebê se reconhece. Assim, a série simbó-
lica de sua vida poderá ir se desdobrando e alinhavando a partir dessa referência
primeira, bem como seus laços poderão ir se estendendo progressivamente a um
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Outro familiar, escolar, clínico e social, que vai sendo convocado a compor tais re-
lações e cuidados.
Por isso, é preciso zelar pela articulação dessa série, sustentando a sua ex-
tensão e, ao mesmo tempo, a sua referência ao traço unário (LACAN, [1961-1962]
1996) de um bebê, ou seja, aos traços inaugurais de identificação desde os quais a
sua vida faz sentido, já que é a partir deles que se reconhece seu singular lugar na
filiação, articulando a um só tempo o desejo e os ideais culturais dos quais seus pais
o fazem destinatário. O que costuma chamar-se de “terceirização” dos cuidados de
um bebê (delegados a escola, babá ou familiar) pode representar um apagamento
dessa referência primordial, em lugar da conquista de um lugar terceiro, esgarçan-
do ou até mesmo rompendo o laço, deixando o bebê cair em meio a um anonimato
dos cuidados feitos entre muitos, mas de modo fragmentário ou desarticulado de
uma série referida a um traço unário pela qual esses cuidados sustentem um lugar
simbólico e desejante.1
A minúcia de detalhes que costumam habitar as narrativas de passagens de
cuidados entre uma mãe e um outro substituto (vó, babá ou professora) implica
justamente entretecer cuidadosamente a série de cada pequeno acontecimento do
dia de um bebê (quanto e o que comeu, quanto e quando dormiu, quanto e quando
fez cocô, que novidade se introduziu em suas produções, o que gostou, o que não e
até mesmo o que ficou como enigmático), permitindo assim que se alinhave uma
série desde a qual o próximo acontecimento (por exemplo, choro do bebê) possa
ser interpretado considerando-se o valor que tal produção irá assumir dentro do
contexto dessa sequência.
As passagens de cuidados da mãe a outros familiares e da família para a esco-
la precisam levar em conta a elasticidade que esse laço é capaz de suportar sem se
esgarçar. Ao mesmo tempo, é imprescindível que os que entram como cocuidadores
zelem pela sustentação dessa série para um bebê, estando atentos a suas preferên-
cias, ritmos e sequências, bem como aos sinais de sofrimento que ele possa dar a
ver, para que tais passagens estejam a serviço de sua estruturação e não que ocor-
ram simplesmente por imperativos externos aos quais um bebê tem que se adaptar
sem poder se estruturar.
Nesse sentido, as contribuições da psicanálise ao campo da clínica de bebês
e seu tratamento em estimulação precoce podem também se estender à educação
infantil, tornando transmissível o que essa clínica nos ensinou acerca da sustenta-
ção de certas operações imprescindíveis para a estruturação de um bebê, que pre-
cisam ser introduzidas e sustentadas pelo Outro encarnado (mãe, familiares, babá
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ou professor) – de suposição do sujeito, estabelecimento da demanda, alternância
presença e ausência e função paterna – e o modo como seus efeitos de inscrição
comparecem, organizando a produção de um bebê por meio de olhar, voz, psicomo-
tricidade e hábitos.
Os indicadores de referência/risco psíquicos do desenvolvimento infantil (IRDI)
podem ser uma importante ferramenta dentro de um contexto maior de formação
de educadores para intervir com a primeiríssima infância, considerando-se que um
bebê está em pleno processo de desenvolvimento e estruturação psíquica. Zelar por
ele, conhecendo seus passos, implica ações de prevenção primária, promovendo
saúde, bem como a possibilidade de realizar detecção precoce do que não vai bem
para favorecer a estruturação (JERUSALINSKY, 2002, 2020).
Mulheres ao trabalho, bebês à escola, professores ao ensino, ao cuidado, à
estruturação ou à educação?
O fato de que um bebê vá a escola exige interrogar o que seria educar um
bebê e o que é construir um lugar para o infante dentro do berçário/educação infan-
til, já que, para isso, não basta estender a uma época mais precoce da vida critérios
pensados para a infância como um todo, sendo preciso lançar luz sobre as especi-
ficidades que a primeira infância comporta e, dentro dela, a diferença da pequena
criança (de 3 a 6 anos) e do bebê (de 0 a 3 anos).
Se, aos 3 anos, esperamos uma criança que fala, caminha e que já é capaz de
dizer “Eu”, bem como de brincar simbolicamente de faz de conta e identificar-se com
os colegas como semelhantes, estas não são produções que estão dadas no início da
vida. Para que tais realizações possam se produzir, será preciso que, anteriormen-
te, haja outros na condição de sustentar para essa futura criança, no tempo em que
ela for bebê, a suposição de um sujeito desejante, brincante, falante, movente e
aprendente, para que ele possa ter chance de vir a se constituir enquanto tal.
A condição do vir a ser do bebê torna muito mais decisiva as consequências
das intervenções dos outros com ele. Pelo fato de o bebê estar muito mais expos-
to ao outro, tanto maior é a responsabilidade dos outros perante ele e, portanto,
tanto mais relevante a formação dos profissionais para intervir nessa etapa da
vida. Contrariamente a isso, desde o senso comum, frequentemente se desvaloriza
o profissional que, dentro da educação, intervém com bebês, como se isso consis-
tisse em cuidar “apenas de xixi, cocô, mamá, papá e naná”. Ora, é justamente ao
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relacionar-se com o bebê por meio desses cuidados primordiais (não só primeiros,
mas também essenciais) que se produzem inscrições estruturantes decisivas para
quem ele irá se tornar.
Que a intervenção com bebês implique minúcias e detalhes no olhar que sus-
tenta o gesto, na cantiga que embala o sono, no colo que acalanta o choro e nos
pequenos e grandiosos jogos de constituintes do sujeito que, ao serem introduzidos
e sustentados pelos outros, semearão o campo do futuro brincar inventivo do bebê,
está longe de fazer desses atos insignificâncias. Tais minúcias são, sim, pequenos
elementos, mas constitutivos e decisivos para um todo, pois é dessa filigrana com
que o Outro encarnado tece no laço com o bebê o bordado entre corpo à linguagem
que se estendera o sentido dessa vida (JERUSALINSKY, 2011).
Lembremos que, há alguns anos, costumava-se chamar as professoras dos
pequenos de “tias”. Tal denominação caiu em desuso por causar desconforto ao
poder denotar um lugar “menos profissional” e mais “maternante”, como uma “sim-
ples extensão não qualificada” dos cuidados familiares. Mas o que implicaria a
profissionalização para intervir nessa etapa da vida?
Testemunhamos na cultura a proliferação de técnicas e da sua intrusão cada
vez mais cedo na infância, que se propõem a ensinar os pais a fazerem os bebês
aprenderem a dormir, a comer, a obedecer, a contar, a recitar a sequência numérica
ou de letras do alfabeto, a dizer o nome das formas geométricas e até mesmo a pro-
nunciar palavras em línguas estrangeiras, em um tempo em que a maioria desses
bebês ainda sequer teve a possibilidade de começar a fazer uso da palavra como um
ato de representação pelo qual possam falar do que os afeta.
Os pais passaram a estar tão angustiados perante as exigências sociais de
eficácia que temem as suas próprias interrogações, preferindo, muitas vezes, su-
plantá-las por métodos supostamente eficazes do educar. Ter um filho leva inevi-
tavelmente os pais a se interrogarem, revisitando as suas próprias escolhas dian-
te da vida e diante da geração anterior, a se perguntarem sobre o que se deseja
transmitir e sobre o que se acaba transmitindo, mesmo sem o desejar. Por isso, o
saber inconsciente e o não saber dos pais são muito mais complexos do que a pre-
tensa simplificação propositiva de cada uma dessas pseudotécnicas que aniquilam
os interrogantes dos pais com anônimas certezas desde as quais se padronizam
os cuidados do bebê, como um afazer de rotinas a serem repetidas ou exercitadas,
fixando-se comportamentos como se eles tivessem significações fixas, invariantes
fora de contextos. Tal inclinação da cultura, ao sublinhar produções performáticas
de bebês, tem feito obstáculo a que os pais possam tomar seus interrogantes como
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ponto de partida para a educação como um ato de transmissão inventivo de um
saber-fazer subjetivado e subjetivante.
Educar é muito mais do que instruir. É ato de sustentar a criação de uma
criança (JERUSALINSKY, 2011) e, nesse sentido, não pode ficar reduzido a um ex-
perimento que tome o bebê como objeto no qual se pretende inculcar a positivação
de uma produção pela aplicação de um procedimento padronizado para gerar obe-
diência. Esse afã para que coma, durma, obedeça, fale, conte, etc., frequentemente,
instaura um atropelo da condição do bebê como sujeito em estruturação que possa
vir a desejar tais realizações (JERUSALINSKY, 2014), como consequência de uma
identificação amorosa com os outros e, portanto, com a transmissão de seus ideais.
Para articular a educação à estruturação do bebê como sujeito do desejo, não
basta “querer que o bebê faça”, é preciso “desejar que o bebê deseje”. Há um giro
a mais nessa transmissão entre gerações imprescindível à transmissão da falta
e do desejo, que costuma ser elidida em métodos do comportamento que miram,
em linha reta, na obtenção de resultados por submissão do bebê a procedimentos.
Diante deles, as contribuições psicanalíticas ao campo da intervenção com bebês
em estimulação precoce vêm nos lembrar que a educação implica, de modo amplo,
a transmissão de uma falta e, somente sobre o rastro deixado por esta, um norte
capaz de vetorizar o desejo na direção de possíveis realizações de ideais culturais.
É aí que a educação se inclina na direção de uma experiência formadora para todos
os nela implicados.
Se a redução do ato educativo a técnicas adaptativas aparece sublinhada no
discurso social, produzindo consequências no laço pais-bebê, ela pode se ver forte-
mente recrudescida desde uma realidade na qual muitos bebês, mesmo que inseri-
dos em uma família, têm uma vida institucionalizada, já que passam a maior parte
de seus dias dentro da instituição educacional.
O psicanalista Bruno Bettelheim (1967, p. 70-71), em A fortaleza vazia, apon-
ta que, ao se lançar cedo demais um bebê à rigidez de rotinas, “empurrando-o a fa-
zer coisas” que os adultos querem que ele faça, instaura-se uma destrutividade no
desenvolvimento que subjuga o bebê, primeiramente aos adultos que lhe exigem e,
posteriormente, à sua própria ansiedade, o que acaba por produzir “personalidades
vazias e compulsivas”. Diante disso, é preciso compreender a educação nessa etapa
da vida como a possibilidade de dar lugar a experiências de prazer, por meio das
quais se cultive o ensejo, o broto do desejo de realizações da cultura nesse pequeno
ser, ao mesmo tempo tão fragilmente exposto e cheio de potências. Quando uma
mãe cuida de seu bebê, introduzindo brincadeiras prazenteiras, de cosquinhas, bei-
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jos, embalos e carícias, tratando-o de modo amoroso, organizando-o erogenamente,
ao mesmo tempo em que busca não lhe produzir excessos, afirma que está ensinan-
do seu bebê a amar (FREUD, [1905] 1996, p. 230). Tendo isso em vista, produzir
uma qualificação na formação de profissionais para intervirem dentro do contexto
educacional com a primeiríssima infância não passa por uma rigidez técnica de
métodos. A seriedade está em que se possa compreender que não haverá um sujeito
epistêmico com curiosidade de apreender se não cultivarmos, antes de mais nada,
sua estruturação como sujeito do desejo.
Freud ([1908] 1996) afirmou que brincar corresponde às mais altas realizações
culturais, pois uma criança quando brinca renuncia a uma satisfação pulsional
imediata e, no lugar dela, produz uma invenção. Isso já está em jogo quando o pe-
queno Ernst, netinho de Freud, com seu um ano e meio de idade, brinca de jogar e
recuperar um carretel, fazendo-o aparecer e desaparecer atrás da barra da saia de
seu berço, dizendo fora-aqui, no jogo do fort-da (FREUD, [1920] 1996). Ele realiza
essa invenção em lugar de se agarrar na barra da saia da mãe. Uma alta realização
cultural... tal é a importância do brincar como sintoma estruturante do sujeito na
infância! E por isso brincar é coisa séria.
O brincar da criança e os jogos constituintes do bebê que articulam o prazer
pulsional às realizações culturais
Na educação infantil, é imprescindível apresentar às crianças o que há de
mais sublime na nossa cultura – a dança, a música, a pintura, a escultura, os
esportes, a literatura, o desenho, as artes circenses, os jogos da cultura, as in-
vestigações e as grandes questões científicas diante dos mistérios da natureza –,
oferecendo-os às pequenas crianças não como conteúdos acadêmicos a reproduzir,
mas como objetos aos quais se pode dar novos usos, ou seja, profanar com o brincar
(AGAMBEN, 2007, p. 75). Desse modo, as pequenas crianças podem experimentar,
com tais objetos, prazeres desde os quais se cultivará o seu desejo em relação aos
ideais culturais, na medida em que o educador colocar a importância no processo
da experiência de um fazer brincante da pequena criança, sem ter tanta pressa em
formatar tais produções como resultados finais e imediatos.
No tempo do berçário, por sua vez, todas essas realizações culturais podem per-
mear os cuidados cotidianos com invencionices arteiras, em que musiquinhas, parlen-
das, canções de ninar, protonarrativas, pequenas histórias, caretas e jogos gestuais,
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junto a todo o arcabouço de jogos constituintes do sujeito sustentados entre o bebê e
o Outro encarnado (cadê-achou, cosquinhas, deixar cair e recuperar, tira-bota, ritmo
e temporalidade intersubjetiva), têm o seu lugar. Tais produções devem ser reconhe-
cidas na condição de uma lúdica e artística filigrana que convoca o bebê a engajar-se
prazenteiramente na relação com o Outro encarnado e as possibilidades de represen-
tação que este lhe empresta. Por isso, antes de colocar em cena objetos-brinquedos
(chocalhos, móbiles, encaixes, etc.), para que estes possam vir a funcionar como metá-
fora da relação com o Outro e apoio para um fantasiar, é preciso um primeiro tempo
no qual o brincar seja um jogo compartilhado pelo qual o bebê se engaje na relação.
É neste litoral entre a afetação pulsional entre o bebê e o Outro, em que se convoca o
gozo do corpo e a linguagem que permite produzir a representação de um saber, que
se produzem as inscrições primordiais do psiquismo (JERUSALINSKY, 2011).
Os registros sensoriais que chegam até um bebê, nos atos aparentemente
tão simples de alimentar, embalar, acariciar, brincar, tranquilizar ou higienizar,
só poderão ser representados, através da relação com um Outro/outro que, longe
de querer inculcar-lhe conhecimentos formais por meio de procedimentos técnicos
(como a repetição de nomes, cores, formas ou números), precisa estar em posição
de acolher o que atinge o bebê em meio à sua circulação lúdica e espontânea pela
escola, atrelando tais sensações a cantigas, lalações, embalos, palavras, jogos da
cultura e pequenos jogos amorosamente constituintes (amorosos, sim!), desde os
quais se sustenta e se introduz para um bebê a dimensão do Eros, da pulsão de
vida, da articulação do que se passa em seus sensórios a um convidativo contexto
simbólico de representação.
É desse modo que as sensações de um bebê poderão tornar-se percepções que
ganham seu relevo de figura a fundo pela rede simbólica que as contextualiza e
lhes dá significância (significado e importância) na relação com o Outro. Ou seja, as
sensações só se tornam perceptíveis em função do valor que assumem ao passarem
pelo crivo simbólico dos outros que cuidam do bebê. Trocando em miúdos, é porque
o vermelho é do Inter, o azul do Grêmio ou o verde do Palmeiras e porque tais cores
representam o time de um ser querido que elas podem importar. Ou, ainda, é por-
que um mesmo som gutural produzido por bebês é denominado “agu” em português
e “ajo” em espanhol, sendo escutado inconscientemente pelos adultos dentro da
legalidade fonética da língua à qual pertencem, que se sanciona e se devolve o valor
do que o bebê produz.
Podemos compreender assim que, na falta de instinto, o estímulo perceptivo
não tem um valor intrínseco já estabelecido previamente no ser humano como um
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saber da espécie. Nossa única chance de construir algum saber que oriente o nosso
viver é por meio da linguagem. Na falta desse saber prévio do que convém, é a
partir desse cruzamento dos sensórios do bebê com o valor significante que eles vão
assumindo, através da relação com o Outro nas situações cotidianas de cuidados
permeados por jogos constituintes do sujeito, que se fiará a meada dos percursos
de prazer e desprazer de um bebê (NOLASCO; JERUSALINSKY, 2020). Seu olhar,
sua voz, sua psicomotricidade e seus hábitos do cotidiano (tais como sono e alimen-
tação) irão vetorizar-se, organizar-se e estender-se como fios pulsionais, à medida
que estes forem entretecidos aos enredos significantes ofertados pelo laço com o
Outro encarnado.
É aí que se produzirão estímulos estruturantes dos bebês (JERUSALINSKY,
2002), desde os quais o ato de educar não se veja reduzido à aplicação de métodos
instrutivos padronizados para gerar comportamentos esperados, supondo que as-
sim ganhariam o estatuto de uma seriedade supostamente profissional. Educar
implica uma experiência criativa, inventiva, subjetivante, que é séria, não porque
é rígida, mas por se ocupar de transmitir ideais de modo a que estes possam ser
causa para que, a partir do traço unário que singulariza cada um, possa estender-
-se o surpreendente fio do desejo de cada pequeno bebê que passar pela instituição
de educação infantil.
Nota
1 A esse propósito, René Spitz ([1965] 1992) apresentou os lapidários exemplos dos marasmos hospitalares
ou as depressões anaclínicas de bebês institucionalizados.
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Formação em saúde no âmbito da UFRN: aspectos fundamentais das
aprendizagens em contextos interdisciplinares
Health training in the context of UFRN: fundamental aspects of learning in interdisciplinary contexts
La formación en salud en la UFRN: aspectos fundamentales de los aprendizajes en contextos
interdisciplinarios
Eliana Costa Guerra*
Antônio Medeiros Júnior**
Nilma Dias Leão Costa***
Resumo
No Brasil, a preocupação com a formação em nível de graduação na área da saúde se expressa de modo mais sig-
nicativo a partir do nal da década de 1970, com o crescimento do movimento sanitarista, gurando como ques-
tão estratégica a partir da implementação do Sistema Único de Saúde (SUS), no início dos anos 1990. As análises
evidenciavam os limites das abordagens setoriais e uniprossionais e de suas soluções compartimentalizadas, em
subáreas ou ocupações, e a imperiosa necessidade de promover mudanças na formação, nos currículos dos cursos
e nas perspectivas pedagógicas, em benefício de metodologias ativas, com maior interação ensino-serviço, traba-
lho interdisciplinar e multiprossional. O presente artigo tem por objetivo analisar a contribuição de experiências
de ensino desenvolvidas no âmbito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) nos processos de mu-
dança na formação em nível de graduação dos cursos de saúde, tendo por base atividades acadêmicas realizadas
em estreita colaboração com os serviços de saúde e tendo por horizonte a construção da interprossionalidade.
Apoiou-se na leitura de documentos, artigos, portfólios produzidos sobre as experiências desenvolvidas na UFRN,
que deram origem aos componentes curriculares Saúde e Cidadania I e II e à realização de diversos projetos em
interação com os serviços de saúde, com o apoio de programas nacionais de reorientação da formação em saúde
(Pró-Saúde, Propet, PET-Saúde). Em 20 anos de experiência, dentre as conquistas, destacam-se a contribuição efeti-
va para mudanças nas práticas prossionais nos serviços da Atenção Básica à Saúde, a preparação de prossionais
para atuarem, de modo mais ecaz, nas redes do SUS e em sintonia com as necessidades dos usuários.
Palavras-chave: ensino superior; interação ensino-serviço-comunidade; interdisciplinaridade; interprossionali-
dade; formação em saúde.
* Professora Associada IV do Departamento de Saúde Coletiva/UFRN e do Programa de Pós-graduação em Saúde Co-
letiva – PPGSCOL/UFRN – Tutora do PET Interprossionalidade. Doutora em Sociologia pela Universidade de Paris
VIII (2003). Mestre em Urbanisme et Aménagement pela Universidade de Paris VIII (1996). Especialista em Gestão e
administração em saúde (1991). Graduada em Serviço Social pela Universidade Estadual do Ceará (1987). Professora
associada IV da Universidade Federal do Rio Grande do Norte/Departamento de Saúde Coletiva. Membro do Grupo
de Pesquisa Gestão, Educação, Trabalho e Saúde/diretório do CNPQ/ Observatório de Recursos Humanos em Saúde
e do Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva (NESC). Exerceu função de Coordenadora de GT PET Saúde GraduaSUS e
do PET Saúde Interprossionalidade (Programa de Educação pelo Trabalho na Saúde). Orcid: https://orcid.org/0000-
0001-8368-488X. E-mail: elianacostaguerra@hotmail.com
** Professor Associado 4 do Departamento de Saúde Coletiva/UFRN e do Programa de Pós-Graduação em Saúde da
Família/UFRN – Tutor do PET Interprossionalidade. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-5928-2896. E-mail: soriede-
mjunior@gmail.com
*** Professora Titular do Departamento de Saúde Coletiva/UFRN e do Programa de Pós-Graduação em Qualidade dos
Serviços de Saúde – PPGQualiSaúde/UFRN – Tutora do PET Interprossionalidade. Orcid: https://orcid.org/0000-
0003-0778-9473. E-mail: nilmadlcosta54@gmail.com
Recebido em: 16/03/2021 – Aprovado em: 29/06/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i2.12369
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Abstract
In Brazil, the concern with training at the undergraduate level in the area of health has been expressed in a more
signicant way since the late 1970s, with the growth of the sanitary movement, guring as a strategic issue from
the implementation of the Single Health System. Saúde (SUS), in the early 1990s. The analyzes showed the limits
of sectoral and uniprofessional approaches and their compartmentalized solutions, in sub-areas or occupations
and the imperative need to promote changes in training, in the curricula of courses and in pedagogical per-
spectives, for the benet of active methodologies, with greater teaching-service interaction, interdisciplinary
and multiprofessional work. This article aims to congure the contribution of teaching experiences developed
within the scope of the Federal University of Rio Grande do Norte in the processes of change in training at the
undergraduate level of health courses, based on academic activities carried out in close collaboration with the
students. health services and aiming at the construction of Interprofessionality. It was supported by reading
documents, articles, portfolios produced on the experiences developed at UFRN, which gave rise to the curricu-
lar components Health and Citizenship I and II and the realization of several Projects in interaction with health
services, with the support of Programs National reorientation of health training (Pró-Saúde, Propet, PET-Saúde).
In 20 years of experience, among the achievements, we highlight the eective contribution to changes in profes-
sional practices in Primary Health Care services, the preparation of professionals to work more eectively in SUS
networks and in line with the user needs.
Keywords: university education; teaching-service-community interaction; interdisciplinarity; interprofessional-
ity; health training.
Resumen
En Brasil, la preocupación por la formación de licenciatura en el área de la salud se expresa de manera más
signicativa a partir de nales de la década de 1970, con el crecimiento del movimiento sanitarista, surgiendo
como un asunto estratégico a partir de la puesta en marcha del Sistema Único de Salud (SUS), a principios de la
década de 1990. Los análisis mostraron los límites de los enfoques sectoriales y uniprofesionales y sus soluciones
compartimentadas, en sub-áreas u ocupaciones, y la urgente necesidad de promover cambios en la formación,
en los planes de estudio de los cursos y en las perspectivas pedagógicas, a favor de las metodologías activas,
con mayor interacción enseñanza-servicio, trabajo interdisciplinar y multiprofesional. Este artículo tiene como
objetivo analizar la contribución de experiencias docentes desarrolladas en el ámbito de la Universidad Federal
de Rio Grande do Norte en los procesos de cambio en la formación a nivel de pregrado de los cursos de salud, a
partir de actividades académicas realizadas en estrecha colaboración con los servicios de salud, teniendo como
horizonte la construcción de la inter-profesionalidad. Se apoyó en la lectura de documentos, artículos y portafo-
lios producidos sobre las experiencias desarrolladas en la UFRN, que dieron origen a los componentes curricula-
res Salud y Ciudadanía I y II, y la realización de diversos proyectos en interacción con los servicios de salud, con
el apoyo de Programas Nacionales de reorientación de la formación en salud (Pró-Saúde, Propet, PET-Saúde). En
20 años de experiencia, entre los logros, destacamos la contribución efectiva a cambios en las prácticas profesio-
nales en los servicios de Atención Básica a la Salud, la preparación de los profesionales para trabajar de manera
más efectiva en las redes del SUS y en armonía con las necesidades de los usuarios.
Palabras clave: enseñanza superior; interacción enseñanza-servicio-comunidad; interdisciplinariedad; interpro-
fesionalidad; formación en salud.
Introdução
O presente artigo tem por objetivo analisar a contribuição de experiências
de ensino no campo da saúde desenvolvidas no âmbito da Universidade Federal
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do Rio Grande do Norte (UFRN), focando especialmente processos de mudança
na formação em nível de graduação dos cursos de saúde. Tais experiências têm
como perspectiva a construção da interprofissionalidade e o desenvolvimento de
habilidades e competência para atuar de modo colaborativo. Para tanto, são desen-
volvidas diversas experiências, no âmbito de componentes curriculares interdis-
ciplinares realizados em cenários de prática da Atenção Primária à Saúde (APS).
Em período anterior à pandemia da Covid-19, intelectuais da área da saúde
já alertavam para a complexidade dos problemas e das necessidades de saúde da
população, cujo enfrentamento demandava intervenções interprofissionais, inves-
tigações críticas e trabalho colaborativo (COSTA, 2016). No início dos anos 2000,
em Natal, Rio Grande do Norte, já havia um grupo de professores e trabalhadores
da saúde preocupados em promover mudanças no modelo de assistência e na prá-
tica profissional, o que implicava, necessariamente, propiciar transformações nos
processos formativos em saúde (ARAÚJO, 2004), tanto nos currículos como na for-
mação docente, considerando o conceito ampliado de saúde e as demandas postas
pela implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil.
Para o grupo de professores da área da saúde ficou cada vez mais claro que
lançar um estudante em um campo de estágio apenas ao final de sua graduação
dificilmente possibilitaria o desenvolvimento de “[...] habilidades [para o levar] a
assumir uma postura autônoma, mas não autossuficiente, sabendo dialogar com
o outro, crescendo com as opiniões divergentes da sua” (RIBEIRO; MEDEIROS
JÚNIOR, 2016, p. 39). Assim, partindo do entendimento dos problemas e desafios
da formação em saúde, da necessidade imperiosa de ultrapassar os limites estritos
das abordagens setoriais e uniprofissionais na sociedade e de suas soluções com-
partimentalizadas, em subáreas ou ocupações, iniciou-se a experiência pioneira do
Projeto Uni-Natal1, apoiado pela Fundação Kellogg (1995-2000), com o objetivo de
contribuir com a formação de recursos humanos para a saúde. O projeto integrou
um programa da fundação, desenvolvido em 11 países, e envolveu 103 cursos uni-
versitários, com predomínio de Medicina, Enfermagem, Odontologia e Nutrição. O
programa já colocava a necessidade da construção de relações entre a universida-
de, os sistemas locais de saúde e as comunidades, no sentido de promover respostas
efetivas às necessidades de saúde da população, e uma das estratégias era desen-
volver habilidades para o trabalho interdisciplinar e multiprofissional (MACHA-
DO; CALDAS JR.; BORTONCELLO, 1997). Em Natal, experiências inovadoras
marcaram o período de funcionamento do projeto (ARAÚJO, 2004).
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Ao final do Projeto Uni-Natal, os professores e os profissionais envolvidos ar-
ticularam o Programa Integrado de Educação, Saúde e Cidadania (PESC), com
o propósito de, por um lado, contribuir com o processo de mudança na lógica dos
currículos dos cursos de graduação em saúde, cuja formação encontrava-se, ainda,
centrada na assistência curativa; e, por outro, promover a renovação das práticas e
dos conteúdos pedagógicos, que se apresentavam desvinculados da realidade social
e ministrados de forma acrítica. O programa, de natureza extensionista, teve apoio
da UFRN e pôde propiciar ambientes favoráveis ao desenvolvimento da reflexão
crítica sobre problemas e necessidades de saúde da população de territórios de
atuação das equipes de Saúde da Família. Trata-se de um programa que constituiu
um verdadeiro laboratório para a construção de um projeto político-pedagógico ino-
vador, no Centro de Ciências da Saúde (CCS). Um dos desdobramentos foi a cria-
ção da Atividade Integrada de Ensino em Saúde e Cidadania (SACI), vinculada ao
Departamento de Saúde Coletiva e cadastrada junto à Pró-Reitoria de Graduação
da UFRN, nos moldes de uma disciplina, mas desenvolvida de modo articulado ao
PESC-SACI (2000 a 2003), cadastrado junto à Pró-Reitoria de Extensão da UFRN.
Cabe ressaltar que já se propunha, naquele momento, uma estreita articulação
entre atividades de ensino e de extensão universitária, a partir da inserção de
estudantes e professores em territórios nos quais atuavam as equipes de Saúde da
Família em Natal, RN.
A ideia de suscitar e promover o conhecimento da realidade social das popu-
lações em situação de maior vulnerabilidade social e econômica e, por isso mesmo,
mais acometidas por doenças evitáveis, por meio de vivências nos ambientes de
atuação das equipes de Saúde da Família pelos alunos recém-chegados à univer-
sidade, abre horizontes para uma formação em sintonia com as necessidades da
maior parte da população brasileira e com as demandas do SUS. Assim, foram
desenvolvidos, progressivamente, os componentes curriculares Saúde e Cidadania
I e II (SACI I e II); o primeiro componente curricular, criado em 2000, constitui a
primeira estratégia de aproximação dos alunos dos cursos da saúde com relação às
condições de vida de populações de comunidades periféricas de Natal; o segundo
componente, criado em 2009, a partir da necessidade de aprofundar conhecimen-
tos acerca dos processos de trabalho das equipes de Saúde da Família2 de cada
território deu mais um passo no processo de mudança na formação em saúde. Efe-
tivamente, são formadas turmas, designadas Grupo Tutorial (GT), compostas por
estudantes dos mais variados cursos da área da saúde, tais como Medicina, Odon-
tologia, Enfermagem, Nutrição, Saúde Coletiva, Fisioterapia, Educação Física, Fo-
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noaudiologia, Farmácia e outras áreas afins, com 15 a 18 estudantes por GT; cada
grupo é acolhido por uma unidade de saúde no município de Natal, RN.
O teor interdisciplinar é evidente com a presença de professores oriundos de
vários departamentos da UFRN (Saúde Coletiva, Medicina Clínica; Odontologia,
Enfermagem; Fisioterapia, Fonoaudiologia, Farmácia, Educação Física), que, de
modo coletivo, definem o programa e o cronograma de atividades de cada semestre,
privilegiando atividades de ensino pautadas em metodologias ativas. Concreta-
mente, trata-se de propiciar o aprendizado e a reflexão crítica a partir do contato
com diferentes facetas do cotidiano das comunidades e do trabalho das equipes
de saúde e motivar o aluno a aprofundar seu conhecimento a partir de leituras
realizadas individualmente e discutidas coletivamente. O semestre inicia com uma
atividade única que reúne todos os estudantes matriculados nos componentes Saú-
de e Cidadania I e II, ocasião em que são repassadas informações preliminares
sobre a inserção nas comunidades e nas unidades de saúde. Ao final do semestre,
as atividades são encerradas com um evento, quando ocorre a apresentação dos
resultados dos projetos e das atividades coletivas realizadas em parceria com as
equipes de saúde da unidade na qual os alunos permaneceram durante o semestre
letivo. As ações das disciplinas são desenvolvidas com o envolvimento de organiza-
ções sociais, instituições e grupos de moradores existentes em cada território.
Tal experiência formativa contou com apoio dos Ministérios da Saúde e da
Educação, por meio de editais dos projetos do Programa Nacional de Reorientação
da Formação Profissional em Saúde (Pró-Saúde I e II) e do Programa de Educação
pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde), que possibilitaram bolsas para estudan-
tes e professores, bem como para profissionais das Unidades de Saúde da Família,
que passaram a atuar como preceptores nos componentes curriculares, desempe-
nhando o papel de mediadores nos processos de ensino e aprendizagem, junta-
mente com os docentes, além de financiarem melhorias nas unidades de saúde e
equipamentos para que elas pudessem acolher atividades coletivas de ensino em
serviço. Esses projetos constituíam, a um só tempo, espaço de formação em serviço,
atualização e capacitação para o ensino em saúde e meio para provocar mudanças
nos processos de trabalho, nos cenários da APS.
Batista et al. (2015, p. 749) chamam a atenção para a importância do PET-
-Saúde enquanto “[...] inovação pedagógica de integração dos cursos de graduação
da área da saúde, e de fortalecimento da prática acadêmica que integra a univer-
sidade, em atividades de ensino, pesquisa e extensão, com demandas sociais de
forma compartilhada”. Os autores destacam, ainda, o potencial do programa no
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sentido de “[...] concretizar a aprendizagem construída nos espaços de trabalho em
saúde, criando redes de interlocução entre os estudantes, docentes e profissionais
de serviço, ampliando as possibilidades de aprendizagens problematizadoras e sig-
nificativas” (2015, p. 745).
As experiências ora analisadas somaram-se, então, aos esforços que vinham
sendo empreendidos no Brasil para promover mudanças no processo de formação
dos profissionais de saúde, com vistas a adequar os perfis profissionais às neces-
sidades da população e dos serviços públicos de saúde; situam-se na mesma dire-
ção das experiências contra-hegemônicas da Medicina de Família e Comunidade
e filiam-se aos princípios da Reforma Sanitária Brasileira, que defende uma com-
preensão ampliada de saúde e propõe atuação na promoção, na educação e na pre-
venção, colocando-se, portanto, na contramão da visão de saúde médico-centrada,
ainda hegemônica no país (COSTA; BORGES, 2015). Ceccim e Ferla (2008, p. 444)
destacam a importância do contexto singular da emersão desse “movimento no
setor da saúde”, que conferiu um sentido peculiar à saúde pretendida:
[...] uma saúde colada no modo de andar a vida das pessoas e, portanto, muito além dos
recortes preventivista ou curativista, saúde pública ou assistência médica, promoção ver-
sus reabilitação. Tal movimento disputava pela ‘atenção’ no lugar da ‘assistência’, pela in-
tegralidade no lugar da polaridade prevenção – cura e pela processualidade saúde – doença
em lugar da promoção versus reabilitação.
Em verdade, desde a década de 1990, com a implantação do SUS, tornou-se
mais evidente a necessidade de promover transformações efetivas na formação dos
profissionais de saúde, para que estes pudessem dar sustentação às reformas alme-
jadas e postas pela Lei n. 8.080/1990 (Lei do SUS), em sintonia como o Movimento
Sanitarista. Esse processo é permeado por contradições e tensões, na medida em
que se avança na construção e na implantação do SUS, acompanhando o movimen-
to de organização social na saúde, consubstanciado nas Conferências Nacionais de
Saúde, o tema da formação da força de trabalho para o SUS ganha destaque.
Do ponto de vista institucional, um marco histórico importante foi a Lei n.
10.172/2001, que configurou as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs), as quais
passam a orientar os projetos pedagógicos e os currículos dos cursos de graduação,
no sentido de assegurar flexibilidade e diversidade nos programas de estudos ofere-
cidos pelas diferentes instituições de educação superior. Em agosto de 2001, o Con-
selho Nacional de Educação (CNE) publica a Resolução CNE/CES n. 1.133/2001,
com as DCNs específicas para os cursos de Medicina, Enfermagem e Nutrição, de-
lineando o perfil aspirado dos profissionais, competências e habilidades dos egres-
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sos, conteúdos curriculares, estágios e atividades complementares, organização do
curso, acompanhamento e avaliação, na perspectiva de atender às necessidades do
SUS (COSTA; SILVA; LIMA; RIBEIRO, 2018).
É nesse contexto de intensas mudanças, inscritas no chamado processo de
redemocratização vivenciado pela sociedade brasileira, que se inscrevem as ex-
periências tomadas como objeto de análise. Elas revelam os esforços e a energia
criativa de grupos de professores da UFRN e profissionais da saúde de Natal que
comungavam com os ideais da Reforma Sanitária, que defendiam mudanças efe-
tivas nos processos de ensinar e aprender, a partir da introdução de metodologias
ativas e da realização de atividades curriculares capazes de agregar a correspon-
sabilidade de todos os agentes educacionais e demais presenças necessárias nas
construções instituídas e instituintes dos tempos de ensinar/aprender de forma
crítica, como autores das mudanças nas dimensões formativas, interprofissionais
e organizacionais.
Assim, o entendimento construído, ao longo dos anos, sobre a necessidade de
mudanças na formação em saúde, no âmbito da UFRN, coaduna-se com análises
feitas em nível nacional sobre os limites e os impasses da formação em saúde,
marcada pela fragmentação das relações profissionais e pela lógica uniprofissional,
bem como pela prioridade dada a “[...] abordagens pedagógicas que não possibili-
tavam o desenvolvimento de competências profissionais colaborativas indispen-
sáveis para a melhoria da qualidade da atenção à saúde e pelo fortalecimento do
princípio da integralidade dos cuidados” (COSTA; FREIRE FILHO; BRANDÃO;
SILVA, 2018, p. 1507).
A busca de mudanças e o enfrentamento das resistências internas do corpo
docente, nos vários departamentos, têm motivado o coletivo de professores e profis-
sionais a se recompor e se reinventar ao longo de duas décadas. Então, mais uma
vez, no cenário do Brasil contemporâneo, têm-se novos desafios postos pela pande-
mia, com a modalidade de ensino remoto, com todas as implicações e problemáti-
cas daí decorrentes, e seguem os questionamentos: como assegurar componentes
curriculares que tomam os cenários reais de prática como ambientes prioritários
de aprendizagem, em um contexto de ensino remoto? Como enfrentar posturas
conservadoras e mesmo negacionistas?
Com efeito, com o advento da pandemia, o apelo à ciência e, mais ainda, ao
diálogo, ao trabalho interprofissional e às práticas colaborativas ganha força, uma
vez que a gravidade e os níveis de transmissibilidade e morbimortalidade deman-
dam conhecimentos, mobilização de saberes, desenvolvimento de habilidades e
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competências de praticamente todas as áreas do conhecimento. Há necessidade
premente do desenvolvimento de terapêuticas, vacinas, protocolos de tratamento,
fármacos, mas também de mudanças nos modos de vida e de relacionamento, nos
processos de trabalho, na vida em sociedade, nas dinâmicas de escolarização, nas
estratégias para a formação em saúde.
As reflexões ora apresentadas baseiam-se em experiências decorrentes da
participação em projetos históricos e em curso, desenvolvidas no âmbito da UFRN
e dos serviços de saúde da APS, na cidade de Natal, RN. Essas experiências con-
templam, anualmente, 600 alunos de 11 cursos da área da saúde, cerca de 20 pro-
fessores de diversos departamentos da UFRN e diretamente 30 profissionais da
Secretaria Municipal de Saúde de Natal, das unidades de Saúde da Família, que
atuam como preceptores nos processos formativos. Tais experiências envolvem gru-
pos de professores, alunos e profissionais de diversos cursos da saúde e contam com
a participação de estudantes do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva
(PPGSCol) da UFRN, que atuam como estagiários em docência, contribuindo com
o fortalecimento da metodologia de problematização e de projetos adotada. O artigo
baseia-se na investigação de documentos, dissertações, teses, artigos e portfólios de
estudantes.
Em 20 anos de atividades, as experiências possibilitaram avanços importantes
na formação para uma ação mais efetiva junto às redes do SUS, expressando ainda
o compromisso da universidade com as necessidades de mudanças na sociedade
brasileira. A ampliação do debate envolvendo a área da educação poderá trazer
aportes importantes, especialmente, para enfrentar os desafios do tempo presente.
Uma experiência histórica que se reinventa na dinâmica de desaos e
necessidades postos à área da saúde
Nascidos de experiência de caráter extensionista, os componentes curriculares
Saúde e Cidadania I e II (SACI I e II – SACI I e POTI) podem ser considerados
como atividades inovadoras no campo da formação em saúde em diversos aspectos
(MEDEIROS JUNIOR; LIBERALINO; COSTA, 2011). Dentre os principais aspec-
tos, destacam-se: a interação ensino-serviço-comunidade, a perspectiva interdisci-
plinar de trabalho e as metodologias de ensino utilizadas.
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Interação ensino-serviço-comunidade na APS: aspecto central da metodologia de
formação em saúde
A experiência em foco se pauta em dois componentes curriculares complemen-
tares, Saúde e Cidadania I e II (SACI I e II – SACI I e POTI), realizados em cenários
reais de prática (MENDES et al., 2020), com objetivos específicos bem delineados:
no primeiro componente, compreender as dinâmicas socioeconômicas, culturais,
políticas e ambientais dos territórios e seus rebatimentos sobre as condições de
vida e saúde da população, avançando no entendimento dos determinantes sociais
em saúde; no segundo, apreender os processos de trabalho realizados por equipes
de Saúde da Família, na perspectiva do cuidado integral à saúde da população do
território; criar situação de aprendizagem que possibilite a atuação eficiente das
equipes de saúde diante de problemas concretos encontrados no cotidiano do tra-
balho. De modo geral, os componentes em foco constituem oportunidades efetivas
para educação e formação para a cidadania, ao trabalharem saúde como direito, ao
discutirem os diversos tipos de direitos e situá-los no contexto de redemocratização
da sociedade brasileira. Os dois componentes têm ainda por objetivo suscitar o
desenvolvimento de habilidades e competências para o trabalho colaborativo e em
equipes interdisciplinares e de capacidade crítica para reinterpretar concepções,
princípios e práticas de saúde, a partir da inserção em territórios distintos e no
atual contexto histórico.
As bases metodológicas das experiências em foco foram sendo construídas, aos
poucos, a partir do debate coletivo. Araújo (2004, p. 59) destaca que a “pedagogia
da problematização” – de onde vieram as bases da estruturação do primeiro com-
ponente Saúde e Cidadania (SACI I) – permite a criação de:
[...] condições favoráveis para promover, ao mesmo tempo, a transformação individual e so-
cial, em situação grupal, [promovendo] o aumento da capacidade do aluno como participan-
te e agente de transformação social, levando-o a reconhecer problemas, a fazer perguntas
relevantes que o conduzam a uma busca de soluções adequadas.
Tal perspectiva pedagógica tinha por base as formulações de Bordenave (1983,
p. 32), para quem a pedagogia da problematização considera que,
[...] em um mundo de mudanças rápidas, o importante não são os conhecimentos ou ideias
nem os comportamentos corretos e fáceis que se espera, mas sim o aumento da capacidade
do aluno – participante e agente da transformação social – para detectar os problemas reais
e buscar para eles soluções originais e criativas.
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Como parte significativa da metodologia utilizada no componente curricular
Saúde e Cidadania I, destaca-se o “Arco de Maguerez”, que consiste em um cami-
nho metodológico construído por Charles Maguerez – para, a partir da problema-
tização de uma dimensão da realidade concreta, ascender-se ao abstrato. Isso pode
ocorrer por meio dos estudos e da reflexão, construídos pelos participantes, para
em seguida retornar à complexidade da realidade, ou seja, ao concreto, com uma
perspectiva de intervenção para produzir algum nível de mudança. Berbel (2012, p.
116) entende que há uma relação direta entre o Arco de Maguerez e a metodologia
da problematização e enfatiza que:
[...] a importância da participação, do envolvimento dos grupos que se deseja atingir, seja
em situação de ensino (com pesquisa), seja de pesquisa, com o mesmo princípio anterior,
de partir da realidade concreta, vivida, para então desencadear o processo de reflexão que
culmina com alguma ação transformadora na mesma parcela da realidade tomada como
ponto de partida.
A experiência inicial de Saúde e Cidadania I não parecia suficiente para con-
solidar a perspectiva formativa almejada. Assim, em 2009, com a aprovação do
Programa PET-Saúde, apresentado pela UFRN junto ao Ministério da Saúde, a ex-
periência da disciplina Saúde e Cidadania é incorporada ao programa e ampliada,
com a criação de um novo componente curricular: Programa de Orientação Tutorial
Integrado (POTI), também designado de SACI II. Baseado nas mesmas metodo-
logias, mas agora enfatizando os processos de trabalho das equipes de Saúde da
Família como objeto de estudo/intervenção por parte dos GTs, o novo componente
curricular passa a ser adotado, sendo obrigatório apenas para os cursos de Medici-
na, Odontologia e Enfermagem, o que, em si, constitui uma limitação, pois essa ex-
periência visa desenvolver habilidades para o trabalho interdisciplinar a partir de
uma questão-chave: como trabalhar em equipes de modo colaborativo, se, ao longo
da formação, os estudantes seguem nos seus cursos de modo compartimentalizado
e desconhecem, ainda que de modo aproximativo, as competências e habilidades
dos colegas de outras profissões?
É importante destacar, ainda, que tais experiências pioneiras deram lugar
a uma multitude de projetos de intervenção realizados a cada final de semestre,
configurando-se como a dimensão extensionista dos referidos componentes curricu-
lares, ainda que tal carga horária não seja computada enquanto tal. Outro aspecto
importante é a estreita relação entre os docentes que atuam nas diversas unidades
de saúde e os profissionais, em sua maioria enfermeiros, que foram sendo capa-
citados para a atividade de preceptoria por meio de cursos de extensão e mesmo
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de especialização, que os habilitam a atuar como um “docente” de outro tipo, que
enriquece o processo de ensino com o aporte de experiências e casos concretos que
são discutidos e, em função dos debates coletivos, podem tornar-se objeto de inter-
venção por parte do coletivo de estudantes, em parceria com os trabalhadores da
unidade de saúde e com representantes das comunidades.
Assim, pode-se incluir como parte da proposta metodológica dos componentes
a aprendizagem baseada em projeto (BENDER, 2014), que consiste em delinear
projetos de intervenção, a partir da problematização, articular parcerias e realizar
ações em comunidades e unidades de saúde, capazes de contribuir com a melhoria
das condições de saúde da população local, de alguns moradores, de uma família.
Desse modo, avançando nos caminhos metódicos, em SACI II, cabe destaque para
os Projetos Terapêuticos Singulares (PTS) ou Projetos Terapêuticos Familiares
(PTF), como opção de construção de uma ação centrada nos usuários e/ou nas fa-
mílias, que assumem a condição de sujeitos ativos em seus processos de cuidado3.
A metodologia de projeto como aporte para provocar mudanças na atuação das
equipes de Saúde da Família em territórios de alta vulnerabilidade social
Com o uso do Arco de Manguerez, é possível, a partir da problematização
sobre dimensões concretas da realidade na qual estudantes, docentes e trabalhado-
res encontram-se inseridos, retornar à realidade com uma questão: o que é possível
fazer com os recursos existentes, no território, na família, nos serviços de saúde? É
possível articular outros parceiros?
A metodologia de projeto possibilita aos estudantes lidarem com a frustra-
ção ao identificarem problemas complexos que afetam diretamente a saúde das
populações e famílias das comunidades onde atuam e cujas soluções demandam,
em geral, muito mais de políticas públicas, a exemplo das políticas urbanas, de
saneamento básico, de distribuição e acesso à água potável, de melhoria nas con-
dições de moradia, do que de ações curativas e pontuais por parte dos profissionais
da saúde, ainda que estas ações não devam ser menosprezadas, tendo em conta
as necessidades e urgências encontradas. Por exemplo, uma comunidade em que
crianças têm verdadeira infestação de “bichos de pé” em diversas partes do corpo,
porque convivem lado a lado com locais de criação de porcos e de armazenamen-
to de materiais recicláveis, a ação de cuidado, retirada e tratamento dos bichos
de pé é indispensável, mas o problema continua e, com certa frequência, ela tem
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que ser refeita. Ainda, a metodologia utilizada permite aos estudantes entenderem
que, sozinhos em seus futuros consultórios e de modo isolado, não serão capazes
de resolver ou dar conta da complexidade das situações dos usuários, que devem
estar no centro do processo do cuidado em saúde, como responsável por sua saúde.
Em verdade, as vivências propiciadas pelos componentes curriculares constituem
oportunidades efetivas para os estudantes trabalharem de modo interdisciplinar
e em equipe e começarem a vislumbrar modos diferentes de lidar com a relação
saúde-doença, a tratarem e se relacionarem com seus futuros pacientes.
A realização de projetos demanda diálogo e capacidade de comunicação e articu-
lação, quando se trata de mobilizar instituições para colaborar com os atores locais.
Nisso, a relação universidade-comunidade se faz presente mudando alguns cenários.
Por exemplo, em 2015-2016, o “Projeto Registrar é Legal” articulou o Tribunal de Jus-
tiça do Estado para propiciar às famílias registro de nascimento e outros documentos,
para que as famílias pudessem ter o Cartão Nacional de Saúde, ou Cartão do SUS, e
ser acompanhadas de modo integral por parte da equipe de saúde de sua área.
Os estudantes findam por entender que são realizadas as mudanças possí-
veis, mas elas funcionam como uma semente plantada, que pode dar frutos em um
futuro breve ou mais distante. Os resultados dos processos de inserção nas comu-
nidades são sistematizados e viram banners, vídeos, artigos, entre outros tipos de
produtos, e são apresentados ao final em uma atividade coletiva. Alguns vídeos e
materiais auxiliam ações educativas nas comunidades.
A respeito da metodologia adotada nos dois componentes curriculares, cabe
mencionar o uso do portfólio como instrumento de avaliação e acompanhamento
do processo de ensino e aprendizagem dos estudantes envolvidos. Muitos relatam
que se trata ainda de um espaço para dar vazão à criatividade. Assim, da reflexão
à ação, e desta à sistematização em portfólio, vídeos, banners ou artigos, o ciclo
de estudos se encerra, com questões e desafios que são levados para a vida pelos
estudantes, compartilhados com os profissionais de saúde para serem retomados
em suas reuniões de trabalho.
A interdisciplinaridade e a educação interprossional postas a serviço de uma formação
em sintonia com as demandas de pers prossionais para os serviços de saúde
Desde as primeiras experiências que antecederam a criação dos dois compo-
nentes curriculares analisados, havia a preocupação em se obter maior efetividade
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e eficácia às ações de saúde e possibilitar maior equidade no acesso à saúde, tida
como direito de cidadania, a partir da implantação do SUS. Nesse sentido, a atua-
ção em áreas de maior vulnerabilidade econômica e social fazia todo sentido, mas
se percebiam as incongruências e os limites da formação dos graduandos dos mais
diversos cursos da área de saúde. Para promover mudanças na formação, era ne-
cessário que docentes saíssem de sua zona de conforto e se dispusessem a aprender
a ensinar de outras maneiras.
Como destacam Ribeiro e Medeiros Júnior (2016, p. 47), a partir de pesquisa
realizada, persistem “[...] contraditórios em relação às metodologias de ensino, com
a necessidade de um olhar crítico sobre elas para que se traduzam em uma forma-
ção em saúde, respondendo aos anseios da sociedade”. Mas, em relação à necessária
articulação entre teoria e prática, de modo geral, identificam-se consensos que con-
duzem a proposições de formação por competência. Mais uma vez, os desafios para
os docentes se apresentam para que desenvolvam suas competências para ensinar.
A composição do corpo docente e do corpo de preceptores constituía um facili-
tador, por contar com professores e trabalhadores do SUS de diversas profissões da
área da saúde, a constituição dos GTs também buscava favorecer a interdisciplina-
ridade, convocando alunos de diversos cursos a cursarem o componente curricular,
inicialmente complementar e, posteriormente, obrigatório para alguns cursos.
A participação de docentes em editais do PET-Saúde constituiu, ao mesmo tem-
po, em oportunidade para reforçar a atuação nos componentes curriculares extra-
muros, bem como fortalecer os processos formativos dos preceptores e a parceria com
os serviços de saúde da Secretaria Municipal de Saúde de Natal. Cada edital era
como um desafio, ou uma “provocação”, para consolidar o que já havia sido obtido
e avançar nas mudanças. A UFRN participou de diversos editais: Pró-Saúde I, que
contemplava apenas os cursos de Enfermagem, Medicina e Odontologia, Pró-Saúde
II, estendido para os demais cursos da área da saúde, Propet Saúde, PET-Saúde
Vigilância, PET-GraduaSUS e, mais recentemente, o PET-Interprofissionalidade, a
destacar a necessidade imperiosa de se aprender junto para atuar de modo colabora-
tivo diante das complexas necessidades postas aos trabalhadores da saúde e do SUS.
Os projetos contribuíram para a formação de um corpo de profissionais em
sintonia com os objetivos do SUS, em particular, relacionados com o fortalecimento
e a maior efetividade da APS, e para promover mudanças na formação em saúde.
Ademais, têm permitido aprendizado e formação, em sintonia com as demandas
sociais, e têm iniciado estudantes calouros em cenários de prática e perspectivas
de aprendizagem bem distintas daquelas ainda hegemônicas.
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O aprendizado dos determinantes em saúde e dos processos de trabalho e a
aprendizagem signicativa
Os cenários de prática ou os locais de atuação das equipes de Saúde da Família
(unidades de saúde, residências, equipamentos sociais, dentre outros) são tidos como
potencializadores de aprendizagem significativa não apenas pelos processos de tra-
balho ali desenvolvidos, mas porque esses processos são tomados como provocadores
de reflexões e de debates coletivos, levando em conta saberes e savoir-faire prévios
dos estudantes, professores e preceptores. As estratégias de ensinagem (ANASTA-
SIOU, 2015) devem ser cuidadosamente escolhidas para provocar a reflexão crítica,
ultrapassando o nível do senso-comum e buscando apreender os determinantes e
condicionantes das realidades analisadas, para, em seguida, incorporar novos co-
nhecimentos, relacionando-os com saberes já acumulados, ressignificando-os.
O processo de aprendizagem constitui, sem dúvidas, o maior desafio enfren-
tado pelo corpo docente envolvido nos componentes curriculares analisados, espe-
cialmente em um tempo histórico em que a presença de informações superficiais
e fragmentadas, disseminadas por aparelhos celulares e tablets, computadores,
mídias digitais e espaços virtuais, seduzem sobremaneira os estudantes. O sentido
de estar em contato direto com o cotidiano de trabalho da APS não é simplesmente
para a observação rápida, para uma vista de olhos por parte de alunos e para es-
timular conversas e discursos coloquiais, para causar “espanto” diante dos proble-
mas das comunidades pobres. O sentido é colocar-se em situação real de trabalho,
desenvolver empatia, aprender a trabalhar em equipes e de modo colaborativo,
contribuir com a melhoria dos serviços prestados ou atuar na modificação e reso-
lução de problemas junto a comunidades e suas lideranças, conhecer e aprender a
manusear sistemas de informação em saúde, entender a lógica das redes de saúde
e a importância da APS como rede ordenadora e coordenadora dos cuidados e di-
mensão essencial do SUS.
Esse processo implica uma discussão sobre os conceitos de saúde e sobre a re-
lação saúde-doença, cuja perspectiva é levar os estudantes a valorizarem o conceito
ampliado de saúde (PAIM, 2008), a entenderem que os problemas e as necessida-
des postos no cotidiano dos serviços da APS são de fato complexos, demandando
soluções refletidas e definidas em equipes interprofissionais e de modo colaborati-
vo. Assim, os componentes curriculares Saúde e Cidadania I e II constituem opor-
tunidades ímpares de inserção nos cenários reais de prática, de modo orientado e
planejado.
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Considerações nais
As experiências analisadas têm contribuído para a formação em cenários da
Atenção Primária à Saúde (APS), na perspectiva de que os futuros profissionais
venham a contribuir com a adoção de uma atenção integral à saúde dos usuários,
estando melhor qualificados para atuarem nas redes do SUS. Trabalhar de modo
interdisciplinar e multiprofissional têm constituindo, ainda, para muitos estudan-
tes, uma rara oportunidade oferecida unicamente pelos componentes curriculares
Saúde e Cidadania I e II e, de modo geral, apreciada.
A aproximação com dimensões da realidade concreta das comunidades consti-
tui aspecto relevante, na perspectiva da articulação entre teoria e prática. Todavia,
restam dificuldades de adesão por parte dos estudantes às leituras para discus-
sões mais consistentes, quando das atividades coletivas. A adoção de metodolo-
gias problematizadoras e dialógicas pautadas em processos de problematização da
realidade e na realização de projetos de intervenção nos territórios e serviços onde
acontecem as atividades curriculares constitui aspecto de relevo, mas nem sempre
é entendida como estratégia para a construção de cidadãos e profissionais mais
autônomos e relações mais horizontais, dada a presença hegemônica de atividades
pautadas em perspectivas pedagógicas convencionais, oriundas da educação ban-
cária, da demanda por memorização, do estilo dominante de avaliação e de relações
entre docentes e discentes.
Tem sido marcante a sensibilização promovida para que os futuros profissio-
nais tenham compromisso com o reforço da APS e do SUS, como política pública
direcionada a enfrentar as iniquidades em saúde, priorizando ações de promoção e
de educação em saúde. As experiências relatadas foram desbravadoras e possibili-
taram ainda avançar na reflexão acerca da formação em Medicina, da necessidade
de provocar mudanças com vistas a melhor preparar os estudantes para atuarem
na APS. De fato, a partir de 2016, inserem-se no currículo de Medicina da UFRN
os Módulos de Atenção Primária à Saúde (MAPS), realizados a partir do terceiro
semestre letivo, com parte da carga horária destinada a atividades nas unidades
de Saúde da Família (Saúde da Mulher, Saúde do Idoso, Saúde da Criança, Aten-
ção Integral à Saúde do Adulto; Saúde Mental). Assim, os estudantes de Medicina,
após concluírem a SACI II, no segundo período letivo, seguem até o 8º semestre
com um Módulo de APS por semestre, assegurando sua presença nos serviços de
saúde ao longo da formação. A partir do 9º semestre, o acadêmico passa a realizar
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o rodízio dos estágios, estando ainda na APS, durante o estágio de Saúde Coletiva
e de Medicina de Família e Comunidade.
A interdisciplinaridade e a interprofissionalidade são dimensões a serem for-
talecidas em todos os cursos, pois o formato departamental e unidisciplinar ainda
impera na maioria dos cursos. Contudo, existe uma maior sensibilidade para ações
coletivas, envolvendo profissionais e estudantes de diversos cursos de graduação.
A simples presença de estudantes nos serviços de saúde não é suficiente para as-
segurar o trabalho colaborativo e interprofissional. Trabalhar com tais estudantes,
problematizando e refletindo em equipe sobre a realidade circundante às unidades
de saúde, colabora na construção de uma visão interprofissional.
Os projetos PET-Saúde coordenados em parceria com a Secretaria Municipal
de Saúde e professores dos componentes curriculares Saúde e Cidadania têm re-
forçado a realização de intervenções nas Unidades de Saúde da Família, com uma
maior presença de estudantes e professores nos serviços, aspecto fundamental,
que vem sendo comprometido, mais recentemente, pelo contexto da pandemia, que
impede essa presença cotidiana por questão de segurança e devido às orientações
sanitárias em vigor. Enquanto não houver vacinação massiva, essas atividades
estão sendo realizadas remotamente, priorizando estudos de casos trazidos pelos
preceptores, o que não permite ao estudante experimentar uma interação real com
usuários e trabalhadores.
Finalmente, dentre os desafios a serem enfrentados, destacam-se: a rigidez
dos desenhos curriculares; a cultura de trabalho unidisciplinar e fragmentado, com
grande divisão do trabalho; o insuficiente apoio institucional para que se possam
obter as condições materiais para a atuação segura nos cenários de prática; e a des-
continuidade de políticas indutoras de mudanças na formação profissional, além
da sobrecarga dos serviços de saúde, com demandas crescentes da sociedade, de
modo geral, em contexto de desfinanciamento do SUS. Vale mencionar os limites
da contratualização entre universidades e secretarias de saúde, realidade bastante
diversa se considerarmos a realidade dos diversos estados e municípios brasileiros.
A despeito dos avanços, resta muito a ser realizado para uma formação inter-
profissional em vista do desenvolvimento de práticas colaborativas no âmbito da
formação em saúde na UFRN, mas os componentes curriculares supracitados se-
guem como verdadeiros laboratórios de experimentação de práticas pedagógicas e
de capacitação continuada, deixando antever possibilidades futuras de mudanças.
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Notas
1 O Programa UNI constituiu uma iniciativa de cooperação da Fundação Kellogg com instituições de ensino
superior (IES), a OPS/OMS e o “Network of Community Oriented Educational Institutions for Health
Sciences”. O Programa foi implantado em Universidades de vinte e três cidades da América Latina:
Botucatu (SP, Brasil); Marília (SP-Brasil); Londrina (PR-Brasil); Natal (RN-Brasil); Brasília (DF-Brasil);
Montevideo (Uruguai); Tucuman (Argentina); Temuco (Chile); Santiago (Chile); Sucre (Bolívia); Quito
(Equador); Cali (Colombia); Rio Negro (Colômbia); Léon (Nicarágua); México City (México); Colima (Méxi-
co); Monterrey (México); Merida (México); Barranquilha (Colômbia); Maracaibo (Venezuela); Barquisimeto
(Venezuela).
2 No modelo brasileiro de Saúde da Família, a atenção é prestada por meio de uma equipe multidisciplinar,
formalmente constituída, que traz como peculiaridade a figura dos agentes comunitários de saúde, refor-
çando a abordagem comunitária. Outra característica importante é a definição de um território, designada
área de abrangência ou de cobertura de cada equipe, em que é vinculado um determinado número de
famílias/pessoas a uma equipe de referência.
3 Hori e Nascimento (2014, p. 3562) assim descrevem o Projeto Terapêutico Singular: “O PTS envolve um
conjunto de propostas de condutas terapêuticas articuladas, direcionadas a um indivíduo, família ou coleti-
vidade. Tem como objetivo traçar uma estratégia de intervenção para o usuário, contando com os recursos
da equipe, do território, da família e do próprio sujeito e envolve uma pactuação entre esses mesmos atores”.
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t/?lang=pt. Acesso em: mar. 2021.
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Este artigo está licenciado com a licença: Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
Mylene Cristina Santiago, Karla Aparecida Gabriel
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Práticas multidisciplinares de atenção à pessoa com transtorno do espectro
autista (TEA)
Multidisciplinary practices of attention to persons with autistic spectrum disorder (ASD)
Prácticas multidisciplinarias de atención a personas con trastorno del espectro autista (TEA)
Mylene Cristina Santiago*
Karla Aparecida Gabriel**
Resumo
Neste estudo teórico, busca-se historicizar as práticas multidisciplinares voltadas para a saúde e a inclusão em
educação da pessoa com transtorno do espectro autista (TEA). O modelo médico e o modelo social de deciên-
cia trazem signicativas repercussões ao direcionamento de intervenções às pessoas com TEA. Focando no mo-
delo social, busca-se apresentar, discutir e analisar os avanços teóricos e as estratégias de intervenção voltadas
para as áreas de educação e saúde, que ampliam as possibilidades de inclusão da pessoa com TEA nos espaços
educacionais e sociais. Iniciativas pautadas no modelo social de deciência têm favorecido novas práticas de
articulação entre saúde e educação. Tais práticas ampliam as oportunidades de participação e aprendizagem da
pessoa com autismo e seus familiares, propondo novos olhares e perspectivas, que se desdobram em possibili-
dades de intervenção precoce, propostas de acessibilidade curricular, Atendimento Educacional Especializado e
mediação no processo de aprendizagem.
Palavras-chave: transtorno do espectro autista; inclusão; educação; saúde.
Abstract
This theoretical study seeks to historicize multidisciplinary practices focused on health and inclusion in education
of people with autism spectrum disorder (ASD). The medical model and the social model of disability have signi-
cant repercussions for targeting interventions to people with ASD. Focusing on the social model, we seek to pre-
sent, discuss and analyze the theoretical advances and intervention strategies focused on the areas of education
and health, which expand the possibilities of inclusion of people with ASD in educational and social spaces. Ini-
tiatives based on the social model of disability have favored new practices and coordination between health and
education. Such practices expand the opportunities for participation and learning of the person with autism and
their families, proposing new perspectives and perspectives, which unfold in possibilities of early intervention,
proposals for curricular accessibility, Specialized Educational Assistance and mediation in the learning process.
Keywords: autism spectrum disorder; inclusion; education; health.
* Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense. Doutora em Educação
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-2769-8421. E-mail: mylenesantiago87@
gmail.com
** Mestre em Educação. Professora da Faculdade do Sudeste Mineiro e professora do Colégio Tiradentes da Polícia Militar
de Juiz de Fora. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-8568-8470. E-mail: karlagabriel67@gmail.com
Recebido em: 13/10/2020 – Aprovado em: 29/06/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i2.11736
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Resumen
Este estudio teórico busca historizar prácticas multidisciplinares enfocadas en la salud y la inclusión en la educa-
ción de personas con trastorno del espectro autista (TEA). El modelo médico y el modelo social de la discapaci-
dad tienen repercusiones signicativas para focalizar las intervenciones en personas con TEA. Centrándonos en
el modelo social, buscamos presentar, discutir y analizar los avances teóricos y estrategias de intervención enfo-
cadas en las áreas de educación y salud, que amplían las posibilidades de inclusión de las personas con TEA en
los espacios educativos y sociales. Las iniciativas basadas en el modelo social de la discapacidad han favorecido
nuevas prácticas y la coordinación entre salud y educación. Tales prácticas amplían las oportunidades de partici-
pación y aprendizaje de la persona con autismo y sus familias, proponiendo nuevas perspectivas y perspectivas,
que se despliegan en posibilidades de intervención temprana, propuestas de accesibilidad curricular, Asistencia
Educativa Especializada y mediación en el proceso de aprendizaje.
Palabras clave: trastorno del espectro autist;. inclusión; educación; salud.
Introdução
A história das pessoas com deficiência é marcada por concepções e práticas que
repercutiram em processos de exclusão, segregação, integração e, nos dias atuais,
inclusão. Cada paradigma está relacionado com as condições sociais, culturais e
econômicas de cada época. A exclusão consistiu na eliminação de crianças com de-
ficiência na antiga Grécia e Roma. Na Idade Média, a deficiência foi concebida
como intervenção de forças demoníacas, resultando em perseguições, julgamentos
e execuções. A influência da religião foi responsável pelas primeiras atitudes de
caridade para com as pessoas com deficiência, resultando na fundação de hospícios
e albergues que acolhiam pessoas com deficiências e marginalizadas em condições
de profunda degradação e abandono.
O processo de institucionalização marcadamente assistencialista das pessoas
com deficiência perdurou ao longo do século XIX e da primeira metade do século
XX. A preocupação com a educação surge mais tarde, com a educação especial de
caráter médico-terapêutico e a construção de centros para pessoas com deficiências.
Apesar da crescente preocupação com a educação das crianças com deficiência, cuja
intervenção, majoritariamente, decorria de um diagnóstico médico-psicopedagógi-
co, o processo de colocá-los numa escola de ensino especial ou numa classe especial
não deixava de ser um processo segregativo (SILVA, 2009).
A integração escolar decorreu da aplicação do princípio de “normalização” e,
nesse sentido, a educação das crianças e dos alunos com deficiência deveria ser
feita em instituições de educação e de ensino regular. Nas palavras de Mantoan
(2015, p. 19):
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O processo de integração ocorre dentro de uma estrutura educacional que oferece ao aluno a
oportunidade de transitar no sistema escolar — da classe regular ao ensino especial — em to-
dos os seus tipos de atendimento: escolas especiais, classes especiais em escolas comuns, en-
sino itinerante, salas de recursos, classes hospitalares, ensino domiciliar e outros. Trata-se de
uma concepção de inserção parcial, porque o sistema prevê serviços educacionais segregados.
A inclusão é entendida como o processo pelo qual a sociedade se adapta de
forma a poder incluir, em todos os seus sistemas, pessoas com deficiência e pessoas
em geral que sofrem barreiras e risco de exclusão, de forma simultânea, estas se
preparam para assumir o seu papel na sociedade. Segundo Silva (2009, p. 148):
A educação inclusiva parte do pressuposto de que todos os alunos estão na escola para
aprender e, por isso, participam e interagem uns com os outros, independentemente das
dificuldades mais ou menos complexas que alguns possam evidenciar e às quais cabe à
escola adaptar-se, nomeadamente porque esta atitude constitui um desafio que cria novas
situações de aprendizagem.
De acordo com os dados extraídos do Censo Escolar, divulgado anualmente pelo
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), o
número de alunos com transtorno do espectro autista (TEA) que estão matricula-
dos em classes comuns no Brasil aumentou 37,27% em um ano. Em 2017, 77.102
crianças e adolescentes com autismo estudavam em escolas regulares (públicas e
privadas). Esse índice subiu para 105.842 alunos em 2018 (TENENTE, 2019).
As escolas brasileiras possuem problemas estruturais referentes à garantia de
permanência e qualidade de aprendizagem aos alunos, quando se tratam de alunos
com deficiência, particularmente alunos com TEA, o desafio parece maior. Para
fins de contextualizar nossa discussão, faremos uma breve digressão à primeira
metade do século XX.
Leo Kanner, médico de uma universidade situada em Baltimore (EUA), em
1943, descreveu, no artigo intitulado Distúrbios autísticos do contato afetivo, um
quadro clínico pouco conhecido em crianças, cuja principal característica era a in-
capacidade de se relacionarem naturalmente com as pessoas. As crianças relatadas
em seu estudo apresentavam atraso de fala e uma linguagem peculiar, alterações
no desenvolvimento cognitivo, comportamentos repetitivos e outras dificuldades
sensoriais. A partir dessa constatação, podemos inferir que, antes da publicação do
estudo de Kanner, com descrição do quadro clínico, já havia crianças com autismo,
que provavelmente era confundido com outras patologias ou deficiências, princi-
palmente a deficiência intelectual (BORGES; WERNER, 2018).
Do pioneirismo de Kanner até os dias atuais, ainda existe uma grande lacuna
em termos de conhecimento e capacitação profissional em relação às práticas diag-
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nósticas e à implementação de programas de intervenção. Silva e Mulick (2009,
p. 118) indicam que:
A incidência de casos de autismo tem crescido de forma significativa em todo o mundo,
especialmente durante as últimas décadas [...]. Desse modo, profissionais da saúde, edu-
cação e áreas afins, que tenham a infância como especialidade, devem estar cada vez mais
preparados para se deparar com casos de autismo nas suas práticas. [...]. Apesar de ter
havido enormes avanços nessas últimas décadas em relação à identificação precoce e ao
diagnóstico de autismo, muitas crianças, especialmente no Brasil, ainda continuam por
muitos anos sem um diagnóstico ou com diagnósticos inadequados.
Para além das barreiras de um diagnóstico adequado e das consequentes in-
tervenções apropriadas, atualmente, não existem dados oficiais sobre as pessoas
com transtorno do espectro autista (TEA) no Brasil. A Lei n. 13.861, de 18 de julho
de 2019, altera a Lei n. 7.853, de 24 de outubro de 1989, para incluir as especifi-
cidades inerentes ao TEA nos censos demográficos (BRASIL, 2019). Essa propos-
ta divide opiniões, se, por um lado, é considerada como um avanço na pauta da
inclusão por grupos do movimento autista; por outro, a decisão também levanta
algumas ressalvas importantes no que tange à formulação das perguntas; se essa
abordagem poderia ou não causar constrangimento ou contribuir para estigmati-
zar ainda mais o TEA; se os dados obtidos serão compatíveis com a realidade do
país; e, por fim, se esse diagnóstico daria conta da complexidade de mapear quem
são os brasileiros com TEA.
O breve histórico apresentado nos dá a dimensão da influência do modelo mé-
dico que, historicamente, considerou a deficiência como desvio do estado normal
da natureza humana; nesse contexto, é empreendido esforço para reparar os im-
pedimentos corporais e as desvantagens naturais, visando que as pessoas possam
se adequar a um padrão de funcionamento típico da espécie (DINIZ; BARBOSA;
SANTOS, 2009). Na seção a seguir, apresentamos as práticas multidisciplinares no
processo de diagnóstico de alunos com TEA.
Educação e saúde: práticas multidisciplinares no processo de diagnóstico de
alunos com TEA
No ano de 2014, foram lançadas, no Brasil, as diretrizes de atenção à rea-
bilitação da pessoa com TEA, através do Ministério da Saúde (BRASIL, 2014a).
Essas diretrizes contêm uma tabela com indicadores e instrumentos que retratam
o desenvolvimento infantil e sinais de alerta para o diagnóstico precoce de crianças
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até no máximo 3 anos de idade, cujo objetivo é orientar os profissionais da saúde e
os multiprofissionais para melhor identificar os sinais de alerta para o transtorno.
As manifestações iniciais do TEA ocorrem antes dos três anos de idade, quando
pais/responsáveis percebem ou são alertados quanto ao atraso do desenvolvimento
de seus filhos. Geralmente, são perceptíveis alguns sinais, como atraso, diminuição
ou perda da linguagem, isolamento social e movimentos estereotipados. O diagnós-
tico do TEA é clínico, investigativo, extenso, baseado em informações comporta-
mentais do atendido e fundamentado em parâmetros com comprovação científica e
protocolos, realizados através de escalas e testes com a validação da equipe multi-
disciplinar junto à criança que apresenta características do transtorno.
Quanto maior for a variação das origens e a veracidade das informações maior será a pre-
cisão do diagnóstico. As escalas mais usadas atualmente são o Modifield Checklist for Au-
tism, M-Chat, (ROBINS, FEIN, BARTON, & WAGNER, 2008) a partir dos 36 m de idade,
sendo o primeiro para suspeição e o segundo de diagnóstico (CAMARGOS, 2017, p. 16).
Existem, também, teste e escala que não são realizados por médicos para ob-
servação de autismo e que auxiliam no diagnóstico de crianças menores de 24 me-
ses. Para Camargos (2017, p. 17):
Autism Diagnostic Observation Schedule – ADOS, e o Perfil Psicoeducacional 3. O ADOS
é um teste diagnóstico que auxilia muito quando as crianças têm menos que 24 meses, nos
quadros de menor gravidade onde as escalas diagnósticas, anteriormente citadas não têm
sensibilidade para “captar” a sutileza sintomatológica e quando as famílias apresentam
muita resistência à aceitação do diagnóstico (a pontuação fica abaixo do ponto de corte).
O ADOS 2 (segunda edição) trata-se de uma avaliação padronizada que mapeia
e avalia: “comunicação, interação social; brincadeira simbólica, e comportamentos
repetitivos e interesses restritos. Atualmente, é a única escala observacional con-
siderada ‘padrão ouro’ para avaliação do TEA” (CAMARGOS, 2017, p. 166). Essa
escala, por apresentar possibilidades de avaliar diversas áreas do desenvolvimento
infantil, oferece oportunidade de indicar quais áreas deverão necessitar de inter-
venções e quais profissionais farão parte do quadro da equipe multidisciplinar.
Além disso, por se tratar de um comprometimento do neurodesenvolvimento, os
profissionais envolvidos no diagnóstico e no tratamento devem ser especializados,
com práticas no atendimento ao TEA e conhecedores do desenvolvimento infantil.
Ressalta-se que o sucesso da avaliação depende de uma equipe multidisciplinar
(médicos, psicólogos, terapeutas ocupacionais, fonoaudiologia, professores, psico-
pedagogos, fisioterapeutas, entre outros) empenhada e conhecedora das especifici-
dades do TEA, das funções cognitivas e de validação em nosologia.
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O diagnóstico clínico no Brasil é realizado pela classificação Internacional de
Doenças 10ª e Problemas Relacionados à Saúde (CID) da Organização Mundial de
Saúde (OMS) e pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da
quinta edição (DSMV), da American Psychiatric Association (APA). É interessante
salientar que esses dois guias são harmônicos, porém com diferenças descritivas
de abordagens.
O CID é um sistema oficial de codificação das doenças utilizadas no Brasil, os profissionais
devem usar a nomenclatura e os códigos propostos nesse manual, principalmente nos rela-
tórios entregues para família e outros profissionais. O uso da nomenclatura do CID, além
de facilitar a comunicação entre profissionais de diferentes áreas, se faz obrigatório na
solicitação dos benefícios legais relacionados ao quadro clínico. [...] por isso usamos o DSMV
como um guia descritivo. Nesse guia é possível encontrar uma descrição atualizada sobre
a expressão dos sintomas relacionados aos transtornos mentais e como os profissionais
podem reconhecê-los (APA, 2013 apud JÚLIO-COSTA; ANTUNES, 2018, p. 91-92).
O DSMV (APA, 2013) trouxe mudanças com relação aos critérios de avaliação
e diagnóstico, reunindo os prejuízos da comunicação e interação social, comporta-
mentos restritos, repetitivos e estereotipados que tenham ocorridos até os 36 meses
de vida da criança. Esses sintomas devem ser persistentes, contínuos e devem ser
observados por todos aqueles que convivam com a criança, causando impacto ne-
gativo e prejuízos na vida cotidiana e escolar. De acordo com os critérios do DSMV
para que um indivíduo seja considerado autista, ele deve preencher os critérios A,
B e C apresentados no Quadro 1:
Quadro 1 – Critérios para diagnóstico do autismo
A. Dificuldades persistentes na comunicação social e na interação social que permanecem em dife-
rentes ambientes e situações. Essas dificuldades podem aparecer das maneiras seguintes:
1. Dificuldades nas trocas/interações sociais e emocionais;
2. Dificuldades nos comportamentos de comunicação não verbal (como gestos com as mãos, com o corpo,
expressões faciais);
3. Dificuldades em desenvolver, manter e entender relacionamentos sociais.
B. Comportamentos, interesses e atividades restritos e repetitivos, que se manifestam atualmente ou
historicamente por pelo menos duas das seguintes maneiras:
1. Movimentos, uso de objetos e/ou fala estereotipados ou repetitivos;
2. Insistência em manter tudo sempre igual, aderência inflexível a rotinas, ou comportamentos verbais ou
não verbais ritualizados (rígidos);
3. Interesses muito restritos e fortes, fora do normal em intensidade ou foco de atenção;
4. Reações muito fortes ou muito fracas (hiper-reatividade ou hiporreatividade).
C. Os sintomas devem estar presentes no período inicial do desenvolvimento (mas podem não se
manifestar totalmente até que as demandas/exigências sociais excedam sua capacidade de respon-
der a elas; também podem ser mascaradas mais a frente por estratégias aprendidas).
Fonte: Mello (2007).
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Esse manual propõe, além da manifestação sintomatológica do TEA, a análise
de níveis de gravidade, a fim de verificar a severidade e o impacto na vida do aco-
metido. São três níveis de gravidade, de acordo com Júlio-Costa e Antunes (2018,
p. 99):
Nível 1: Bom nível de funcionalidade e necessita de pouca intervenção;
Nível 2: Relativamente funcional e necessita substancialmente de interven-
ções;
Nível 3: Baixíssimo nível de funcionalidade e necessita substancialmente de
intervenções.
Concomitantemente aos níveis de gravidade do TEA, ainda existem as pos-
sibilidades reais das comorbidades mais frequentes que costumam fazer parte do
quadro desse transtorno. São elas: deficiência intelectual, transtorno de déficit de
atenção e hiperatividade (TDAH), transtorno do processamento sensorial (TPS),
distúrbios do sono, epilepsia, transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), entre outros.
Além desses critérios, os neuropediatras podem fazer uso de psicofarmacolo-
gia para amenizar os comportamentos disruptivos que acompanham o TEA, entre-
tanto, ainda não há medicamentos que atuem especificamente nesse transtorno. O
uso de psicotrópicos é de competência dos médicos, mas deve ser um consenso entre
equipe de saúde, familiares e equipe multidisciplinar.
No âmbito da área da saúde, são realizados protocolos para diagnóstico e indi-
cações de medicações e terapias, se for o caso. Mesmo antes do diagnóstico, a inter-
venção precoce de caráter educacional pode contribuir com o desenvolvimento das
crianças. Ressaltamos a importância de as instituições educacionais considerarem
que o diagnóstico não é destino, estimulações e intervenção precoce são relevantes
para o desenvolvimento de qualquer criança. Em alguns casos, os educadores pode-
rão contribuir com informações importantes que auxiliarão no diagnóstico clínico.
No campo da educação, qual a finalidade do diagnóstico? Identificar o aluno
a ser atendido e encaminhado para a sala de recurso multifuncional (SEM) para
fins da oferta do Atendimento Educacional Especializado (AEE)1 tem sido uma
preocupação recorrente nas escolas. Pautado no modelo médico de deficiência, a
solicitação de diagnósticos clínicos ainda tem sido uma prática recorrente nas es-
colas, para fins de sustentação do processo decisório sobre o ingresso do aluno no
AEE, bem como sua inserção como aluno do público-alvo da educação especial no
Censo Escolar do MEC/Inep. Todavia, ressaltamos que a Nota Técnica n. 04/2014
(BRASIL, 2014b) reconhece que a existência de um laudo médico não seja condicio-
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nante para a inserção do aluno nas SRMs, uma vez que o AEE se caracteriza por
atendimento pedagógico e não clínico.
A pesquisa realizada por Santiago, Santos e Melo (2017) demonstra a persis-
tência de um sentimento “autocoercitivo” por parte dos profissionais de que o aluno
só pode ser computado no censo escolar caso tenha um laudo legitimado pelos sabe-
res médicos-clínicos, seguido por narrativas que indicam “insistência” na obtenção
de laudo médico, ocorrendo em alguns casos pressão sobre a família para a aquisi-
ção do documento. Questionamos a exigência de laudos e diagnósticos clínicos para
oferecer condições de aprendizagem e participação em atividades complementares
ou suplementares, como é o caso do AEE, mas admitimos que o principal objetivo
de tais diagnósticos pode ser a oferta de intervenção precoce, para ampliar as con-
dições de desenvolvimento às crianças com possíveis barreiras.
A intervenção precoce como garantia do processo de inclusão de crianças com TEA
A literatura científica considera que o TEA é uma condição permanente, cuja
intervenção precoce adequada nos primeiros anos de vida, devido à plasticidade
cerebral, pode diminuir as barreiras sociocomunicativas, a fim de que não se tornem
grandes obstáculos ao desenvolvimento da criança. Segundo Nogueira e Mendes
(2018, p. 99), “a intervenção precoce vai atuar ampliando o repertório da criança de
modo que ela não se limite futuramente a interesses restritos, que aprenda a imitar,
a brincar com seus colegas, a se interessar pelo outro e a aprender nesse encontro”.
A equipe multidisciplinar será fundamental no diagnóstico diferencial em ten-
ra idade, assim como na estimulação precoce e para potencializar o desenvolvimen-
to assertivo junto ao TEA. No Brasil, o ponto central para se pensar em intervenção
precoce até os 4 anos perpassa pela atuação médica e pela dúvida de uma provável
conclusão diagnóstica, uma vez que a obtenção de um diagnóstico final transita por
um caminho demorado e, por vezes, marcado por incertezas e (des)informações a
respeito desse transtorno. Nogueira e Mendes (2018, p. 97), ao mencionar a teoria
da motivação social, destacam que:
Alguns sintomas emergem antes mesmo do primeiro ano de vida. Crianças com autismo
desde muito cedo não têm motivação para olhar para faces, prestar atenção em gestos ou
vozes, o que impede a estimulação necessária para o desenvolvimento do cérebro social,
ocasionando a falha secundária na especialização dos sistemas cerebrais formados por meio
das primeiras experiências sociais, gerando uma sucessão de problemas sociais, como por
exemplo, falha na atenção compartilhada, dificuldade em apontar e em responder o nome e
falha no processamento de expressões faciais.
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Necessário se faz avaliar a criança a partir dos primeiros sinais de desenvolvi-
mento atípico e traçar planos de intervenção desde cuidados básicos até um trabalho
baseado em pesquisa com a equipe multidisciplinar para crianças que tenham ou
não um diagnóstico. A preocupação central deve ser sempre o desenvolvimento das
potencialidades do TEA, através de um trabalho de qualidade e do aprimoramento
de técnicas que auxiliem nas diversas demandas que esse transtorno exige para a
promoção de saúde, a melhora na qualidade de vida e o sucesso da inserção social.
A literatura vem nos lembrando que o tratamento padrão-ouro (CAMARGOS,
2017) para o TEA perpassa por uma intervenção precoce juntamente com a equipe
interdisciplinar. Essa estimulação consiste em variadas modalidades de interven-
ções terapêuticas, para que potencialize o desenvolvimento social e a comunicação
da criança, de modo que sejam amenizados ou reduzidos os danos causados pelo
TEA. Além disso, a precocidade dessa estimulação pode auxiliar na melhora da
qualidade de vida, na própria autonomia do TEA, na orientação aos familiares e na
busca de terapias que tenham bases científicas.
A “intervenção precoce” no caso do autismo traz muitos ganhos e, para muitas crianças, é
totalmente responsável pelo bom prognóstico do quadro no futuro. Mas não basta boa von-
tade e amor. Existem abordagens menos e mais indicadas. Há vários pontos a se considerar,
quando se avalia uma criança com desenvolvimento atípico (CAMARGOS, 2017, p. 9).
Dessa forma, a equipe multidisciplinar não deve reproduzir o diagnóstico como
um carimbo da exclusão social histórica reproduzida pela falta, pelo normal versus
anormal, pelo fracasso, pelo caráter reducionista do sujeito, pela inabilidade, pelo
déficit, pelo hegemônico, enfim, pela falta e pela deficiência. A intervenção e a
estimulação precoce devem oportunizar a aprendizagem como uma possibilidade
de mudança de olhar na inserção central na inclusão do ser humano, visto através
de um caleidoscópio que muda de acordo com a busca das potencialidades, habili-
dades, complexibilidades e singularidades como um todo, observando as necessida-
des individuais e específicas do aprendente, a funcionalidade familiar e escolar. A
intervenção precoce perpassa, por exemplo, pela ampliação da comunicação verbal
e não verbal, pela convivência com os pares e pela estimulação por meio das brin-
cadeiras de faz-de-conta.
Não podemos deixar de mencionar o importante papel da brincadeira na pro-
dução de recursos simbólicos para as crianças. Chiote (2013), ao pesquisar o papel
da mediação pedagógica no desenvolvimento do brincar da criança com autismo
na educação infantil, considerou o brincar como uma atividade que se aprende
e desenvolve na relação com outras crianças e/ou adultos, no espaço da educa-
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ção infantil. Para a autora, compete aos professores investir na criação de condi-
ções para que a criança com autismo amplie suas experiências de brincadeira na
relação com seus pares. Seu trabalho evidenciou ainda que “as possibilidades de
desenvolvimento das crianças com autismo, assim como de qualquer criança não
são predeterminadas, elas são criadas e recriadas nas situações concretas em que
suas potencialidades se manifestam de alguma forma, nos processos interativos”
(CHIOTE, 2013, p. 16).
Martins (2009, p. 86), ao pesquisar crianças autistas em situações de brinca-
deira, explicita que:
No caso das crianças com autismo, a linguagem e outros signos precisam ser ativados pelo
outro para alterar aspectos bastante comprometidos do desenvolvimento. Não se pode espe-
rar que, sozinhas, elas alcancem mudanças favoráveis em suas funções, pois o isolamento
já é um aspecto preponderante do transtorno. Então, torna-se fundamental possibilitar a
transição para o mundo das esferas coletivas, estimulando as interações sociais.
A criança com desenvolvimento típico aprende através das interações sociais,
brincando com seus pares, imitando falas e gestos dos adultos, enquanto as crian-
ças com TEA necessitam de intervenção precoce e estimulação adequada para que
tenham oportunidades de acessar estratégias básicas para aprender de forma autô-
noma, considerando suas potencialidades e singularidades. Embora não haja cura
para o TEA, visto se tratar de uma condição relacionada à organização neurológica,
a intervenção precoce e a mediação adequada, desde os primeiros anos de vida,
poderão oferecer melhores recursos para que as limitações sociocomunicativas não
se tornem grandes barreiras no processo de desenvolvimento da criança.
Outro fator de grande importância para o desenvolvimento e a aprendizagem
da criança com autismo é a garantia do direito à educação. O processo de inclusão
da pessoa com deficiência na escola comum é garantido por lei. De acordo com a
Resolução CNE/CEB n. 4/2009 (BRASIL, 2009), o público-alvo da Educação Espe-
cial é constituído por:
I - Alunos com deficiência: aqueles que têm impedimentos de longo prazo de natureza física,
intelectual, mental ou sensorial.
II - Alunos com transtornos globais do desenvolvimento: aqueles que apresentam um qua-
dro de alterações no desenvolvimento neuropsicomotor, comprometimento nas relações
sociais, na comunicação ou estereotipias motoras. Incluem-se nessa definição alunos com
autismo clássico, síndrome de Asperger, síndrome de Rett, transtorno desintegrativo da
infância (psicoses) e transtornos invasivos sem outra especificação.
III - Alunos com altas habilidades/superdotação: aqueles que apresentam um potencial
elevado e grande envolvimento com as áreas do conhecimento humano, isoladas ou combi-
nadas: intelectual, liderança, psicomotora, artes e criatividade.
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A legislação em vigor determina que os sistemas de ensino devem matricular
os alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habili-
dades/superdotação nas classes comuns do ensino regular e no AEE, ofertado em
salas de recursos multifuncionais ou em centros de AEE da rede pública ou de
instituições comunitárias, confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos. Na
próxima seção, abordaremos questões referentes a esse processo.
O AEE para alunos com TEA
O AEE tem como função complementar ou suplementar a formação do aluno
por meio da disponibilização de serviços, recursos de acessibilidade e estratégias
que eliminem as barreiras para sua plena participação na sociedade e seu desen-
volvimento na aprendizagem. Tem sido considerado com um espaço para se pensar
o planejamento, as intervenções e as avaliações a serem feitas com alunos com
TEA. Os objetivos do AEE, conforme Decreto n. 7.611 (BRASIL, 2011, não pagina-
do), são:
I - prover condições de acesso, participação e aprendizagem no ensino regular e garantir
serviços de apoio especializados de acordo com as necessidades individuais dos estudantes;
II - garantir a transversalidade das ações da educação especial no ensino regular;
III - fomentar o desenvolvimento de recursos didáticos e pedagógicos que eliminem as bar-
reiras no processo de ensino e aprendizagem; e
IV - assegurar condições para a continuidade de estudos nos demais níveis, etapas e moda-
lidades de ensino.
As ações do AEE ocorrem nas salas de recursos multifuncionais, que são es-
paços dentro das escolas e contam com materiais didáticos específicos e alguns
recursos da tecnologia assistiva. Os estudantes são atendidos no contraturno esco-
lar, mas esse atendimento não é substitutivo ao processo de escolarização comum.
Assim, os professores da sala de recursos multifuncionais são orientados a manter
constante diálogo com os professores da sala de aula comum, para que, juntos,
possam organizar planejamentos que ampliem o processo de participação e apren-
dizagem do aluno com TEA em sala de aula (ROCHA; PACHECO, 2018).
Entre as várias incumbências do poder público dispostas na Lei Brasileira
de Inclusão, destacamos o art. 28, inciso VII, que prescreve o planejamento de
estudo de caso, de elaboração de plano de atendimento educacional especializado,
de organização de recursos e serviços de acessibilidade e de disponibilização e usa-
bilidade pedagógica de recursos de tecnologia assistiva. Tais competências incidem
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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diretamente no AEE, que busca acompanhar os alunos com deficiências, buscando
conhecer suas barreiras e suas potencialidades, para ampliar oportunidades edu-
cacionais.
Através do estudo de caso, é possível conhecer as particularidades de cada
aluno e criar estratégias colaborativas, envolvendo diferentes atores da escola, con-
siderando os contextos e as possibilidades de participação e de aprendizagem com a
turma. O estudo de caso envolve observação e planejamento das intervenções, que,
por sua vez, gera um plano de atendimento, cujo registro relata as expectativas e
possibilidades para estimular e ampliar o desenvolvimento da autonomia dos alu-
nos atendidos, assim como planejar e monitorar a rotina escolar, que, para alunos
com TEA, tem significativa importância. Rocha e Pacheco (2018, p. 280) conside-
ram que o referido plano contemple os objetivos, os recursos para acessibilidade
pedagógica em sala, as atividades e estratégias para alcançar as metas e, também,
a avaliação do processo de trabalho desenvolvido com cada criança.
No contexto de inclusão em educação para alunos com TEA, é importante
ressaltar o papel da acessibilidade curricular. O Desenho Universal para Apren-
dizagem (DUA) é uma abordagem curricular que procura reduzir os fatores de na-
tureza pedagógica que poderão dificultar o processo de ensino e de aprendizagem,
assegurando assim o acesso, a participação e o sucesso de todos os alunos. O DUA
propõe: i) responder às necessidades de diversos alunos; ii) remover as barreiras à
aprendizagem; iii) flexibilizar o processo de ensino; iv) permitir aos alunos formas
alternativas de acesso e envolvimento na aprendizagem; v) reduzir a necessidade
de adaptações curriculares individuais, contribuindo assim para o desenvolvimen-
to de práticas pedagógicas inclusivas (NUNES; MADUREIRA, 2015).
Acreditamos que os princípios do DUA – 1º: os alunos diferem nos seus inte-
resses e nas formas como podem ser envolvidos e motivados para aprender; 2º: os
alunos diferem no modo como percebem e compreendem a informação que lhes é
apresentada; e 3º: os alunos diferem no modo como podem participar nas situações
de aprendizagem e expressar o que sabem (NUNES, MADUREIRA, 2015) – possam
favorecer o processo de inclusão dos alunos com TEA, sem que haja necessidade
de adaptações individuais, em que os alunos não realizam praticamente nenhuma
atividade, ou quase nenhuma atividade igual à dos colegas.
No entanto, sabemos que cada situação tem suas especificidades e precisam
ser planejadas coletivamente, a partir do entendimento de que cada aluno é res-
ponsabilidade de todos os educadores da escola. Outro aspecto importante a ser
mencionado é a necessidade de compreender que todos os alunos aprendem, inde-
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pendentemente de suas barreiras, e que sua aprendizagem e seu desenvolvimento
não devem ser analisados de forma comparativa, mas cada aluno só pode ser ava-
liado tendo em vista seu próprio desenvolvimento. Nesse sentido, o papel da ava-
liação diagnóstica e do processo ganha força, pois, através de registros, podemos
monitorar o progresso de cada aluno.
É nessa perspectiva que desenvolvemos uma proposta de extensão: “Alunos
com TEA como desencadeadores de processos formativos e inovação pedagógi-
ca” (MELO; SANTIAGO, 2018). Nesse projeto, buscamos conhecer o processo de
aprendizagem de cada aluno com TEA no contexto das escolas participantes do pro-
jeto. Usamos como proposta teórico-metodológica o Index para a Inclusão (BOOTH;
AINSCOW, 2012), que contempla três dimensões interdependentes de inclusão, a
saber: culturas, políticas e práticas. Esse material nos permite compreender o pro-
cesso de inclusão em um sentido mais amplo, pois redimensiona a necessidade de
estabelecer culturas, no sentido de colocar valores em ação e repensar concepções
voltadas para o processo de ensino-aprendizagem e a constituição de ambientes
acolhedores em que todos se sintam pertencentes no ambiente escolar; as políticas
são relacionadas ao projeto político-pedagógico e à gestão das inter-relações no es-
paço escolar, que, por sua vez, trazem implicações para as práticas pedagógicas e
as relações curriculares.
Entendemos que o processo de inclusão envolve todos na escola e aposta na
participação e no acolhimento das famílias, que têm um importante papel no pro-
cesso de inclusão de alunos com TEA e outras barreiras de aprendizagem e par-
ticipação. Hoje, mais do que nunca, percebemos o envolvimento e o protagonismo
das famílias, que têm buscado conhecimento e formação para garantir os direitos
educacionais dos filhos. Contamos com diversos grupos de familiares que se organi-
zam nas redes sociais, produzindo conteúdos que visam auxiliar e orientar outras
famílias que vivem situações semelhantes. Outro fator importante é o protagonis-
mo de algumas crianças e jovens que têm produzido livros e blogs com o propósito
de apresentar suas vivências, enquanto pessoas identificadas com TEA.
Podemos considerar que, nos últimos anos, houve grandes avanços quanto à
produção e ao acúmulo de experiências e de conhecimentos sobre TEA, mas ainda
há muitos desafios para serem superados. Ao que tudo indica, temos caminhado
rumo a uma perspectiva social de deficiência, cuja ideia básica é que a deficiência
não deve ser entendida como um problema individual, mas uma questão da vida
em sociedade, transferindo a responsabilidade pelas barreiras do indivíduo para a
incapacidade da sociedade em prever e se ajustar à diversidade.
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No contexto de pandemia de Covid-19, que redimensiona as relações sociais e
suspende as atividades escolares presenciais, as crianças com autismo têm sofrido
forte impacto por conta de suas barreiras de comunicação e de interação social, al-
gumas escolas têm enviado atividades ou proposto ensino remoto aos seus alunos,
o que torna a participação da família essencial ao processo. Mais do que nunca, é
necessário pensar propostas que promovam acessibilidade curricular, de modo a
garantir a participação e a aprendizagem de todos os alunos, independentemente
de suas barreiras.
Considerações nais
Buscamos articular saúde e educação no processo de diagnóstico e interven-
ção de pessoas com TEA. Nesse processo, identificamos que o modelo médico de
deficiência teve forte impacto e influenciou de forma significativa o processo edu-
cacional de alunos com TEA, que, durante determinado período, esteve restrito a
escolas especiais. Com o surgimento do modelo integrativo e, nas últimas décadas,
em virtude de políticas públicas pautadas pelos princípios da inclusão, temos per-
cebido um crescente número de alunos com TEA nas escolas regulares.
Com base no direito ao acesso à educação, percebemos que educação e saúde
são serviços essenciais para garantir o desenvolvimento e o processo de inclusão
de alunos com TEA. O diagnóstico e a estimulação precoce favorecem o desenvolvi-
mento das crianças com TEA. Nesse contexto, uma abordagem multidisciplinar e
complementar envolvendo serviços da saúde e da educação pode garantir o direito
à participação e à aprendizagem aos alunos com autismo, minimizando barreiras à
aprendizagem e riscos de exclusão.
Aprender a compreender a pessoa com TEA não é um caminho fácil, trata-
-se de um grande desafio, principalmente no que diz respeito à aprendizagem dos
conteúdos acadêmicos. O TEA é um convite a dialogar e refletir sobre práticas que
oportunizem a participação e a aprendizagem da pessoa com autismo e de seus fa-
miliares, sob a mediação de professores e equipe multidisciplinar, na proposição de
novos olhares e perspectivas, que se desdobram em possibilidades de intervenção,
estimulação precoce, propostas de acessibilidade curricular, atendimento educacio-
nal especializado e mediação no processo de aprendizagem.
Uma abordagem interdisciplinar envolvendo saúde e educação pode oportu-
nizar novos saberes, assim como favorecer o processo de inclusão em educação e o
processo de humanização na saúde, em uma perspectiva voltada a um modelo so-
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cial de deficiência, que não se detém na falta, mas que compreende o outro em sua
singularidade, oferecendo condições de ampliar as potencialidades, a autonomia e
a participação na sociedade.
Nota
1 O AEE é um serviço da Educação Especial que identifica, elabora e organiza recursos pedagógicos e de
acessibilidade que eliminem barreiras para a plena participação dos alunos, considerando suas necessi-
dades específicas. Ele deve ser articulado com a proposta da escola regular, embora suas atividades se
diferenciem das realizadas em salas de aula de ensino comum (BRASIL, 2009).
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Literacia em saúde: um estudo com alunos do ensino médio de escolas brasileiras
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Literacia em saúde: um estudo com alunos do ensino médio de escolas brasileiras
Health literacy: a study with high school students from brasilian schools
Alfabetización en salud: un estudio con estudiantes de secundaria de escuelas brasileñas
Andreia Freitas Zompero*
Tania Aparecida Silva Klein**
Amâncio António Sousa Carvalho***
Resumo
A temática saúde está presente nos documentos ociais de ensino da educação básica no Brasil, por ser rele-
vante para a formação integral dos alunos e necessária para a literacia em saúde. É necessário conhecer o nível
de literacia dos estudantes para a proposição de direcionamentos educativos. Este estudo tem por objetivos
identicar o nível de literacia em saúde de alunos do ensino médio no Brasil, em aspectos relativos a cuidados
de saúde, prevenção de doença e promoção da saúde, e analisar a relação entre a literacia em saúde com o nível
de escolaridade e estabelecimento de ensino frequentado. Trata-se de um estudo observacional, descritivo-cor-
relacional, de abordagem quantitativa, do qual participaram 119 alunos matriculados nos 2º e 3º anos do ensino
médio de duas escolas públicas da cidade de Londrina, PR. Para a coleta de dados, foi utilizado um questionário
adaptado pelos investigadores a partir do questionário European Health Literacy Survey. Os resultados aponta-
ram que a média dos alunos participantes apresenta literacia em saúde classicada como problemática, sendo
inferior a países da Europa, em que os estudantes na mesma faixa etária apresentaram nível satisfatório. O índice
de literacia em saúde geral não diferiu signicativamente entre os alunos que frequentavam os dois anos de
escolaridade analisados.
Palavras-chave: literacia em saúde; adolescentes; escolas brasileiras.
Abstract
The health theme is present in the ocial teaching documents of Basic Education in Brazil, as it is relevant for
the integral training of students and necessary for Health Literacy. It is necessary to know the level of literacy of
students for proposing educational guidelines. This study aims to identify the health literacy level of high school
students in Brazil in aspects related to health care, disease prevention and health promotion and to analyze the
relationship between LS with educational level and educational establishment frequented. This is an observatio-
nal, descriptive-correlational study, with a quantitative approach in which 119 students enrolled in the 2nd and
3rd year of high school from two public schools in the city of Londrina PR participated. For data collection, a ques-
* Doutora em Ensino de Ciências. Docente do Curso de Ciências Biológicas e do Mestrado em Metodologias para o
Ensino de Linguagens e Tecnologias. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-5123-8073. E-mail: andzomp@yahoo.com.br
** Doutora em Ensino de Ciências. Docente do Curso de Ciências Biológicas da UEL. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-
0137-0973. E-mail: uel.tania@gmail.com
*** Doutor em Educação para saúde. Departamento de Enfermagem e saúde comunitária da Universidade de Tras os
Montes e Alto Douro, Vila Real, Portugal. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1573-5312. E-mail: amancioc@utad.pt
Recebido: 29/09/2020 – Aprovado: 12/08/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i2.11679
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tionnaire was used, adapted by the researchers from the European Health Literacy Survey questionnaire. The
results show that the average of the participating students has health literacy classied as problematic, being
lower than in European countries where students in this same age group had a satisfactory level. The LS General
index did not dier signicantly between the students who attended the two year of schooling analyzed.
Keywords: health literacy; Adolescents; Brazilian schools.
Resumen
El tema de la salud está presente en los documentos ociales de enseñanza de la Educación Básica en Brasil, por
ser relevante para la formación integral de los estudiantes y necesario para la Alfabetización en Salud, es nece-
sario conocer el nivel de alfabetización de los estudiantes para proponer lineamientos educativos. Este estudio
tiene como objetivo identicar el nivel de alfabetización en salud de los estudiantes de secundaria en Brasil en
aspectos relacionados con la atención de la salud, la prevención de enfermedades y la promoción de la salud y
analizar la relación entre la LS con el nivel de educación y el establecimiento educativo frecuentado. Se trata de
un estudio observacional, descriptivo-correlacional, con enfoque cuantitativo en el que participaron 119 estu-
diantes matriculados en 2º y 3º año de secundaria de dos escuelas públicas de la ciudad de Londrina-PR. Para la
recogida de datos, se utilizó un cuestionario, adaptado por los investigadores del cuestionario European Health
Literacy Survey. Los resultados muestran que la media de los estudiantes participantes tiene la alfabetización
en salud clasicada como problemática, siendo más baja que en los países europeos donde los estudiantes del
mismo grupo de edad tenían un nivel satisfactorio. El índice general de LS no dirió signicativamente entre los
estudiantes que asistieron a los dos años de escolaridad analizados.
Palabra clave: alfabetización en salud; adolescents; escuelas brasileñas.
Introdução
As temáticas relativas à saúde têm sido propostas historicamente nos do-
cumentos de ensino brasileiros e estão presentes da educação infantil ao ensino
médio. A partir da promulgação da atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDBEN) (BRASIL, 1996), diversos documentos curriculares foram pu-
blicados, como, por exemplo, os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL,
1997a, 1997b), os Parâmetros Curriculares Nacionais Temas Transversais (BRA-
SIL, 1997c), os Parâmetros Curriculares Nacionais Ensino Médio-PCN+ (BRASIL,
1999, 2002), as Diretrizes Curriculares Nacionais (BRASIL, 2010) e, por fim, a
Base Nacional Comum Curricular para Educação Infantil, Ensino Fundamental
e para o Ensino Médio (BRASIL, 2017). Porém, um estudo realizado por Sousa,
Guimarães e Amantes (2019), sobre a temática saúde nos documentos oficiais de
ensino divulgados após a LDBEN (BRASIL, 1996), aponta que a saúde tem sido
tratada com foco em aspectos biológicos, comportamentos individuais, priorizando
uma visão biomédica e não uma perspectiva sistêmica.
Já os documentos internacionais da World Health Organization (WHO) (1996,
1997, 1998) sustentam que a escola é local reconhecidamente apropriado para de-
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Literacia em saúde: um estudo com alunos do ensino médio de escolas brasileiras
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senvolver ações para promoção da saúde. Nesse sentido, vale ressaltar que a Orga-
nização Pan Americana de Saúde (Opas), desde 1995, tem estimulado iniciativas
das Escolas Promotoras da Saúde, que implicam um trabalho articulado entre a
educação, a saúde e a sociedade, visando estratégias de promoção da saúde no
espaço escolar com enfoque integral, incluindo o desenvolvimento de habilidades
para a vida.
Sabemos que os conhecimentos pertinentes à saúde são necessários para a
formação integral dos alunos e necessários para a literacia em saúde (LS). Esse
conceito, que surgiu na década de 1970, tem sido investigado em diversos estudos
no intuito de conhecer os diversos níveis de LS das pessoas, por expressarem os
conhecimentos e as habilidades em saúde de indivíduos, de diferentes idades e
níveis sociais e culturais.
Considerando que a temática saúde está presente nos documentos oficiais de
ensino da educação básica no Brasil, espera-se que os estudantes, ao terminarem
o ensino médio, apresentem um nível satisfatório de LS. Dessa maneira, temos por
objetivos, neste estudo: i) identificar o nível de LS de alunos do ensino médio no
Brasil, em aspectos relativos a cuidados de saúde, prevenção de doença e promoção
da saúde; ii) analisar a relação entre a LS com o nível de escolaridade e o estabele-
cimento de ensino frequentado.
Marco teórico
Conforme Monteiro e Bizzo (2015), o trabalho com a temática saúde no am-
biente escolar brasileiro foi tratado sob a ótica higienista até a segunda metade
do século XX. Após esse período, surge outra perspectiva para a incorporação da
saúde no ambiente escolar, que diz respeito às ações que promovem o caráter assis-
tencialista, como, por exemplo, o acesso à alimentação. Quanto às ações relativas
a promover a aprendizagem de conteúdos relativos à saúde, os autores apontam
que envolveu três modelos. O primeiro refere-se ao trabalho com essa temática
por meio de campanhas, como vacinação, combate ao tabagismo, alcoolismo e dro-
gas, dengue. O segundo modelo mencionado pelos autores é a proposta do trabalho
intersetorial, integrando profissionais das áreas de saúde e educação. Por fim, a
terceira proposta é a incorporação de temas relativos à saúde no currículo escolar a
ser desenvolvido, por meio de disciplinas e em caráter transversal.
Em 1986, na cidade de Ottawa, ocorreu a primeira conferência internacional
sobre saúde, que originou o documento conhecido como Carta de Ottawa. Nesse
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documento, os países participantes assumiram que as ações de promoção da saúde
devem oportunizar às pessoas fazerem escolhas mais favoráveis e serem os atores
principais no processo de produção da saúde e melhoria da qualidade de suas vidas
(BUSS; CARVALHO, 2009). Conforme esse documento, a promoção da saúde é um
“processo de capacitação da comunidade para atuar na melhoria da sua qualidade
de vida e saúde, incluindo maior participação no controle desse processo” (CARTA
DE OTTAWA, 1986, p. 1).
Na década de 1970, surgiu a expressão literacia em saúde (LS), que vem desde
então sofrendo evolução, passando de uma perspectiva individual, para um concei-
to que contempla também aspectos sociais do indivíduo, envolvendo, por exemplo,
a capacidade de tomar decisões fundamentadas no seu dia a dia, assumindo as
responsabilidades dessas decisões (PEDRO; AMARAL; ESCOVAL, 2016). A Or-
ganização Mundial de Saúde (OMS) define LS como o conjunto de competências
cognitivas e sociais que determinam a motivação e a capacidade dos indivíduos
para aceder, compreender e usar informação, de forma a promover e manter um
bom estado de saúde. Implica a aquisição de conhecimentos, competências pessoais
e confiança para agir de forma saudável mediante mudanças de estilo e condições
de vida (WHO, 1998).
O documento enfatiza a necessidade da aquisição de habilidades para a vida,
que são capacidades cognitivas e físicas que permitem às pessoas dirigirem suas vi-
das e produzirem mudanças em seus ambientes. Essas habilidades para a vida são
pessoais, conforme a WHO (1998), e são exemplificadas por tomadas de decisões,
pensamento crítico, resolução de problemas, autoconhecimento, empatia e saber
lidar com emoções. Nesse sentido, a LS implica aquisição de conhecimentos e habi-
lidades pessoais para tomar medidas para melhorar a saúde pessoal e comunitária.
No entanto, a LS depende de outros níveis mais gerais de alfabetização, e a baixa
literacia pode afetar diretamente a saúde das pessoas, limitando seu desenvolvi-
mento pessoal, social e cultural (WHO, 1998).
Nutbean (2000) aponta três níveis de LS: i) literacia básica ou funcional, que
são competências suficientes para ler e escrever informações sobre saúde; ii) lite-
racia interativa ou comunicativa, que compreende as competências que podem ser
usadas para participar nas atividades no dia a dia, para obter informação e significa-
dos a partir de diferentes formas de comunicação e aplicar essa nova informação; iii)
literacia crítica, que diz respeito às competências cognitivas mais avançadas, que,
juntamente com as capacidades sociais, podem ser utilizadas para analisar critica-
mente informações e usá-las para exercer maior controle sobre as situações da vida.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Seguindo essa perspectiva, Mialhe et al. (2019) utilizam o termo letramento
em saúde e apontam que, de modo geral, apresenta-se como o desenvolvimento
de habilidades que vão além de ler informações em saúde. Elas compreendem um
conjunto de habilidades que permite às pessoas participarem ativamente na socie-
dade, atuando em determinantes que podem impactar na saúde. De acordo com
Santos e Portella (2016), a LS envolve também os determinantes sociais da saúde.
Assim, por meio do desenvolvimento das habilidades, a pessoa pode otimizar tanto
a sua saúde quanto a de seus familiares e da comunidade.
O estudo de revisão bibliográfica realizado por Peres et al. (2017) aponta que
a primeira publicação sobre LS no Brasil foi encontrada nas bases científicas no
ano de 1998. De acordo com as autoras, o tema ressurgiu apenas em 2009, após
um longo intervalo de 11 anos, desde a primeira publicação. Conforme as autoras,
o levantamento realizado sobre as pesquisas em literacia no Brasil indica que os
assuntos que mais aparecem nos estudos são saúde mental, instrumentos para
avaliar a saúde mental e doenças crônicas não transmissíveis. Nesse sentido, as
autoras consideram ser relevantes estudos sobre instrumentos para avaliar a LS
dos brasileiros, por apontar direcionamentos e propor ações efetivas, relacionadas
à educação e à promoção da saúde da população.
Estudo posterior de revisão de literatura desenvolvido por Pavão e Werneck
(2020) aponta que o Brasil apresentou aproximadamente 20% mais estudos sobre
LS em comparação aos demais países da América Latina, o que mostra interesse
crescente por estudos dessa temática. No entanto, os autores corroboram a pesqui-
sa de Peres et al. (2017), quanto à necessidade de investimentos em estudos que
apontem tanto o nível de LS dos brasileiros como a efetividade de ações educativas
desenvolvidas com a finalidade de promover a literacia.
Encaminhamentos metodológicos
Trata-se de um estudo observacional, descritivo-correlacional, de abordagem
quantitativa (VILELAS, 2017). A população-alvo foi constituída por alunos que
frequentavam os 2º e 3º anos do ensino médio, de duas escolas estaduais situadas
na cidade de Londrina, Paraná, uma na área urbana e outra na área periférica, nos
anos letivos 2019/2020. Foram estabelecidos os seguintes critérios de inclusão: i)
ter idade compreendida entre 15 e 18 anos; ii) frequentar o 2º ou 3º ano do ensino
médio, nas duas escolas contexto do estudo. A população incluiu 136 alunos.
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Como critérios de exclusão consideraram-se: i) não ter respondido a, pelo me-
nos, 80% dos itens da escala de LS; ii) não estar presente no momento de recolha de
dados. Após a aplicação dos critérios, a amostra de conveniência ficou constituída
por 119 alunos, correspondente a 87,5% da população-alvo.
Para a coleta de dados, foi utilizado um questionário de autopreenchimento,
adaptado pelos investigadores para essa população de alunos brasileiros, a partir
do questionário European Health Literacy Survey, construído e validado para a
população europeia por Saboga-Nunes e Sorensen (2013). O instrumento estava or-
ganizado em duas partes: i) dados relacionados com a escolaridade; ii) escala de LS.
A escala de LS é um instrumento que pretende medir o nível de LS. É compos-
ta por 47 itens, abrangendo três domínios de saúde: Cuidados de saúde (itens 1-16),
Prevenção da doença (itens 17-31) e Promoção da saúde (itens 32-47). Esses três
domínios são avaliados em quatro níveis de processamento de informação (aceder,
compreender, avaliar e utilizar), relacionados com a tomada de decisão informada,
que permite aos respondentes procurar tratamento adequado, em caso de doença,
prevenir doenças e manter uma boa condição de saúde, resultando numa matriz
de 12 subdomínios. Cada item possui quatro opções de resposta com a pontuação
correspondente: muito difícil (1 ponto), difícil (2 pontos), fácil (3 pontos) e muito
fácil (4 pontos).
Para calcular o índice de LS, são somadas as pontuações e calculada a média,
por domínio e geral e aplicada a seguinte fórmula: Índice de LS = (Média – 1) X
(50/3). O valor zero representa o mínimo de alfabetização em saúde possível e o
50 representa o melhor possível. Em seguida, os três domínios e a LS Geral foram
classificados em quatro categorias de nível de LS: inadequado, problemático, sufi-
ciente e excelente. Os pontos de corte da pontuação foram os seguintes: i) 0-25,49
pontos: LS Inadequada; ii) 25,50-33,49 pontos: LS Problemática; iii) 33,50-42,49
pontos: LS Suficiente; iv) 42,50-50 pontos: LS Excelente. Foram ainda agregadas
as categorias negativas numa única categoria designada Alfabetização limitada
em saúde (0-33,49 pontos). As duas categorias positivas foram agregadas em uma
única categoria designada Alfabetização não limitada em saúde (33,50-50,0 pon-
tos), a fim de identificar grupos vulneráveis em termos de LS.
Posteriormente, foi realizada uma reunião com a direção das escolas, contexto
deste estudo, para apresentar o estudo, explicitar os objetivos, a metodologia pre-
tendida, acordar a forma de coleta dos dados e solicitar a colaboração dos docentes
envolvidos. Foi solicitado aos professores de Biologia das escolas pesquisadas que
auxiliassem fazendo o acompanhamento dos alunos durante a tomada de dados. A
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escala de LS, contendo as 47 questões, foi organizada no Google Forms, no intuito
de proporcionar maior comodidade para os participantes responderem e garantia
do anonimato das respostas. Os docentes enviaram o link aos alunos participantes
do estudo, que responderam às questões individualmente no laboratório de infor-
mática das referidas escolas, durante as aulas de Biologia. As respostas das ques-
tões foram organizadas de maneira automática pelo próprio sistema Google, para
posterior análise dos pesquisadores. O período de coleta dos dados ocorreu entre os
meses de outubro e novembro de 2019.
Para o tratamento de dados, foi utilizado o software Statistical Package for the
Social Sciences (SPSS Versão 22.0), no qual foi construída uma base de dados. Re-
correu-se à estatística descritiva e inferencial; em termos de estatística descritiva,
procedeu-se ao cálculo das frequências absolutas e relativas de todas as variáveis,
no caso das variáveis de nível de medição de rácio, foi pedido o cálculo das medidas
de tendência central e de dispersão; quanto à estatística inferencial, para verificar
se existia relação entre as categorias de LS com o ano de escolaridade e a escola
frequentada pelos alunos, utilizou-se o teste não paramétrico de Mann-Whitney.
O nível de significância estatística considerado foi de 5%, para todas as análises
efetuadas (MARÔCO, 2018).
Apresentação dos resultados e discussão
Do total da amostra (n = 119), a maioria dos alunos frequentava o colégio es-
tadual da região periférica da cidade (75,6%) e o 2º ano do ensino médio (73,1%). A
média dos índices de LS dos três domínios e do índice de LS Geral variou entre 29,96
e 32,60 pontos, todas no intervalo de LS Problemática. A média mais reduzida foi a
do domínio Cuidados de saúde (29,96), e a mais elevada do domínio Prevenção da
doença (32,60), significando que o primeiro domínio é aquele em que os alunos pos-
suíam mais baixa LS e mais dificuldades e o segundo, a LS mais elevada (Tabela 1).
Tabela 1 – Medidas de tendência central e de dispersão dos domínios e LS Geral
Variáveis N Mínimo Máximo Média±dp
Índice do domínio de LS Cuidados de saúde 119 2,08 50,0 29,96±6,98
Índice do domínio de LS Prevenção da doença 119 0,0 50,0 32,60±8,54
Índice do domínio de LS Promoção da saúde 119 0,0 50,0 31,45±9,57
Índice de LS Geral 119 1,77 50,0 31,31±7,45
Fonte: dados da pesquisa.
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Quanto ao nível de LS Geral, uma ligeira maioria dos alunos (57,1%) enqua-
drava-se na LS Problemática. Apenas 5,9% da amostra foi incluída na categoria de
LS Excelente. Assim, 71,4% da amostra apresentavam uma alfabetização limitada
para a saúde, conforme apresentado na Figura 1.
Figura 1 – Nível de LS Geral dos alunos da amostra (%)
Fonte: elaboração dos autores.
As proporções mais elevadas em todos os domínios e do índice de LS Geral si-
tuavam-se na categoria de LS Problemática e as mais reduzidas, na categoria Exce-
lente. O domínio que apresenta maior Alfabetização limitada para a saúde é o dos
Cuidados de saúde, e o domínio com menor Alfabetização limitada para a saúde é o
da Prevenção da doença, verificando-se a mesma tendência das médias (Tabela 2).
Tabela 2 – Níveis de LS por domínio e LS Geral (%)
Domínios/Categorias de LS Inadequada Problemática Suficiente Excelente
Domínio Cuidados de saúde 18,5 59,7 15,1 6,7
Domínio Prevenção da doença 12,7 45,8 30,5 11,0
Domínio Promoção da saúde 22,0 44,1 22,0 11,9
LS Geral 14,3 57,1 22,7 5,9
Fonte: dados da pesquisa.
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Não se verificaram diferenças estatísticas significativas entre o nível de LS
Geral dos alunos que frequentavam diferentes anos de escolaridade (Mann-Whit-
ney: p> 0,613). As categorias do índice de LS diferiam entre os alunos que frequen-
tavam os dois estabelecimentos de ensino em estudo (Mann-Whitney: p< 0,029),
sendo que os alunos da região periférica obtiveram uma média de ordenação mais
elevada, do que os alunos que frequentavam a escola da região central da cidade
(63,50> 49,14), o que significa que possuíam melhor LS (Tabela 3).
Tabela 3 – Relação entre o nível de LS Geral e o nível de escolaridade e escola frequentada pelos alunos
Variáveis n Média de ordenação Valor do teste P value
Categorias da LS Geral x Ano de
escolaridade
2º Ano
3º Ano
87
32
59,13
62,36
MW= 1316,50 0,613
Categorias da LS Geral x Escola
frequentada
Região Periférica
Região Central
90
29
63,50
49,14
MW= 990,00 0,029
Fonte: dados da pesquisa.
Em termos de área de localização da escola, no nosso estudo, a maioria dos
alunos frequentava uma escola situada na região periférica, o que diverge de um
estudo realizado no Norte de Portugal, por Silva, Saboga-Nunes e Carvalho (2019),
com uma amostra de 499 alunos do ensino secundário (equivalente ao ensino médio
no Brasil), no qual a maioria dos alunos (72,7%) era proveniente da área predomi-
nantemente urbana (central) da cidade.
A média do índice de LS dos domínios e da LS Geral do presente estudo é infe-
rior à obtida por Silva (2017), respetivamente, domínio Cuidados de saúde 29,96 <
31,82, domínio Promoção da saúde 31,45 < 32,84 e LS Geral 31,31 < 32,15, exceto
no caso do domínio Prevenção da doença 32,60 > 31,75. As médias dos domínios da
LS e da LS Geral do presente estudo são inferiores às obtidas por um estudo reali-
zado com uma amostra de 2.104 residentes em Portugal Continental (ESPANHA;
ÁVILA; MENDES, 2016), considerando apenas a subamostra do ensino secundário.
No nosso estudo, as proporções mais elevadas situavam-se na categoria de LS
Problemática, enquanto no estudo de Silva, Saboga-Nunes e Carvalho (2019), elas
se fixaram na categoria de LS Suficiente. Também, os percentuais mais elevados se
situavam na categoria da LS Problemática, enquanto no estudo de Silva, Saboga-
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-Nunes e Carvalho (2019), eles se fixaram na categoria de LS Suficiente. Mantém-
-se a mesma tendência com a proporção da Alfabetização limitada em saúde, que
é superior à do referido estudo. Isso significa que os alunos da cidade de Londrina
possuíam uma LS inferior. O mesmo cenário é visível no estudo de Espanha, Ávila
e Mendes (2016), no qual as maiores proporções se encontravam na categoria de LS
Suficiente. No caso deste estudo, a Alfabetização limitada em saúde é minoritária,
sendo no nosso estudo sempre inferior a LS, quer nos domínios quer na LS Geral.
Tais divergências entre os resultados do nosso estudo e de outros apresentados
poderão ser explicadas pelas diferenças culturais entre as duas amostras de alunos
e diferenças no sistema de ensino dos dois países.
No presente estudo, o índice de LS Geral não diferiu significativamente entre
os alunos que frequentavam os dois anos de escolaridade em análise (2º e 3º anos).
Esse resultado não vai ao encontro do obtido no estudo de Silva (2017), realizado
em Portugal, no qual os alunos do 11º ano (correspondente ao 2º ano do ensino mé-
dio no Brasil) possuíam melhor nível de LS Geral, nem da tendência referida pelos
autores Pedro, Amaral e Escoval (2016), quando afirmam que, à medida que o nível
de escolaridade aumenta, os níveis de LS tendem a ser superiores. As diferenças
entre os dois sistemas de ensino (Brasil e Portugal) poderão ser uma explicação
plausível para essa divergência.
No estudo de Manganelo (2007), pacientes adultos com baixa LS relataram
problemas para preencher formulários médicos e dificuldades para entender pres-
crições de medicamentos. O autor aponta a necessidade de que jovens e adolescen-
tes tenham acesso a informações visando a alfabetização em saúde. Nesse sentido,
adolescentes estão em um estágio crucial de desenvolvimento, caracterizado por
muitos aspectos físicos, mudanças emocionais e cognitivas. Essas mudanças fazem
a adolescência um momento apropriado para começar a pensar sobre intervenções
de alfabetização em saúde e como melhorá-la em uma idade precoce tem um impac-
to direto mais tarde, quando os adolescentes adquirirem conhecimento e definirem
padrões de comportamento (MANGANELO, 2007).
Considerações nais
A temática saúde está presente nos documentos oficiais de ensino da educação
básica no Brasil, por ser relevante para a formação integral dos alunos e necessária
para a LS. Por isso, é necessário conhecer o nível de literacia dos estudantes para
a proposição de direcionamentos educativos.
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Os resultados alcançados neste trabalho mostram que as médias dos índices
de LS dos três domínios e do índice de LS Geral foram prevalentes no intervalo de
LS Problemática. A maioria da amostra apresentou uma alfabetização limitada
para a saúde, em que o domínio que apresentou maior Alfabetização limitada para
a saúde foi o dos Cuidados de saúde, e o domínio com menor Alfabetização limitada
para a saúde foi o da Prevenção da doença. Isso significa que os alunos da cidade
de Londrina possuíam uma LS inferior, quer nos domínios quer na LS Geral, em
estudos comparativos europeus analisados. Essas divergências entre os resultados
deste estudo e de outros apresentados poderão ser explicadas pelas diferenças cul-
turais entre as duas amostras de alunos e pelas diferenças no sistema de ensino
dos respectivos países.
Constatou-se existir relação estatística entre o nível de LS dos alunos e a
escola na qual a pesquisa foi realizada. Os alunos da região periférica obtiveram
uma média de ordenação mais elevada do que os alunos que frequentavam a escola
da região central da cidade, o que significa que possuíam melhor LS. Entretanto,
o índice de LS Geral não diferiu significativamente entre os alunos que frequenta-
vam os dois anos de escolaridade em análise (2º e 3º anos do ensino médio), o que
não é coerente com autores que afirmam que, à medida que o nível de escolaridade
aumenta, os níveis de LS tendem a ser superiores.
Os dados observados enfatizam a necessidade de que a LS precisa ser incluída
no espaço da escola, pois é ali que se constroem crenças e valores que fazem parte
da educação em saúde. O desenvolvimento de ações educativas em saúde permite
a articulação com a família e a comunidade, assegurando o alcance de informações
além de discussão e reflexão sobre a temática da saúde. Os objetivos de ações edu-
cativas em saúde no espaço escolar cumprem-se a partir da sensibilização e cons-
cientização do direito à saúde, bem como da capacitação de utilização de medidas
de promoção para a saúde, o que compõe o que denominamos de LS.
Segundo a Opas (1998), as ações propostas para a educação em saúde têm um
enfoque na doença ou na sua prevenção, o que limita a promoção para a saúde. Para
isso, tais ações devem despertar a análise crítica e reflexiva de condutas, condições
sociais e estilo de vida, o que contribui para a construção da cidadania. A LS envol-
ve conceitos que contemplam aspectos sociais e de tomada de decisões do indivíduo
no que diz respeito à sua saúde. Nesse sentido, a motivação e a capacidade dos indi-
víduos para aceder, compreender e usar informação são necessárias para promover
e manter um bom estado de saúde. Envolve, assim, a necessidade da aquisição de
habilidades para tomada de decisões, pensamento crítico, resolução de problemas,
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autoconhecimento, empatia e saber lidar com emoções, no sentido de melhorar a
saúde pessoal e comunitária, o que permite às pessoas participarem ativamente na
sociedade, atuando em determinantes que podem impactar na saúde.
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670 ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Andreia Freitas Zompero, Tania Aparecida Silva Klein, Amâncio António Sousa Carvalho
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671
ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Adoecimento docente nas escolas públicas do estado do Paraná
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* Doutora e mestre em Educação. Mestre em Gestão de Instituições de Educação Superior. Licenciada em Pedagogia e
bacharela em Direito. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação (mestrado e doutorado) da Pontifícia
Universidade Católica do Paraná. Editora da Revista Diálogo Educacional – PUCPR. Orcid: http://orcid.org/0000-0003-
3759-0377. E-mail: alboni@alboni.com
** Doutoranda em Educação – PPGE da PUCPR, mestre em Educação e licenciada em Letras. Assessora jurídica do Conse-
lho Estadual de Educação do Paraná. Orcid: http://orcid.org/0000-0003-0822-3172. E-mail: efagundesilva@gmail.com
Recebido em: 17/06/2020 – Aprovado em: 12/08/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i2.11198
Adoecimento docente nas escolas públicas do estado do Paraná
Teaching illness in public schools of the state of Parana
Educación docente en las escuelas públicas del estado de Paraná
Alboni Marisa Dudeque Pianovski Vieira*
Elza Fagundes da Silva**
Resumo
Este estudo investiga os fatores que contribuem para o adoecimento docente nas escolas de ensino básico na
rede pública estadual do Paraná. Trata-se de pesquisa bibliográca, documental e de campo, com apoio dos
estudos de Esteves (1999), Codo (2006), Souza e Leite (2011). Também, pretende-se apresentar reexões sobre
o elevado número de atribuições e responsabilidades imposto a esse prossional e as consequências que resul-
tam no denominado mal-estar docente. Os resultados alcançados demonstram que a maioria dos afastamentos
de função e licença médica decorre, em primeiro lugar, por enfermidades de cunho emocional e, em segundo,
por problemas de desgaste físico. Os resultados, embora não permitam conclusões absolutas, chamam a aten-
ção para a necessidade de se pensar de forma imediata, principalmente pela mantenedora da rede estadual,
urgentes ações por meio de políticas públicas permanentes e efetivas voltadas a, se não solucionar, ao menos
minimizar os problemas de saúde no campo da docência.
Palavras-chave: professor; ensino; adoecimento docente; políticas públicas; rede estadual de ensino.
Abstract
This study investigates the factors that contribute to the teaching illness in elementary schools in the state pub-
lic system of Paraná. This is a bibliographic, documentary and eld research, supported by the studies of Esteves
(1999), Codo (2006), Souza and Leite (2011). It is also intended to present reections on the high number of du-
ties and responsibilities imposed on this professional and the consequences that result in the so-called teacher
malaise. The results achieved show that most of the leaves of duty and sick leave are due to illnesses, in the rst
place, emotional, and secondly, due to problems of physical exhaustion. The results, while not allowing absolute
conclusions, draw attention to the need to think immediately, especially by the maintainer of the State Network,
urgent actions through permanent and eective public policies aimed, if not solving, at least minimize the prob-
lems of health in the eld of teaching.
Keywords: teacher; teaching; teaching illness; public policy; state education network.
672 ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Alboni Marisa Dudeque Pianovski Vieira, Elza Fagundes da Silva
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Resumen
Este estudio investiga los factores que contribuyen a la enfermedad de los maestros en las escuelas primarias de
la red pública estatal de Paraná. Se trata de investigación bibliográca, documental y de campo, respaldada por
estudios de Esteves (1999), Codo (2006), Souza y Leite (2011). También se pretende presentar reexiones sobre
la gran cantidad de deberes y responsabilidades impuestas a este profesional y las consecuencias que resultan
en el llamado malestar docente. Los resultados obtenidos muestran que la mayoría de las bajas por enfermedad
y por enfermedad se deben a enfermedades, en primer lugar de naturaleza emocional y, en segundo lugar, a
problemas de agotamiento físico. Los resultados, aunque no permiten conclusiones absolutas, llaman la aten-
ción sobre la necesidad de pensar de inmediato, principalmente por parte del responsable de la Red del Estado,
acciones urgentes a través de políticas públicas permanentes y efectivas dirigidas a, si no resolver, al menos
minimizar los problemas. en el campo de la enseñanza.
Palabras clave: profesor; enseñando; enseñanza de la enfermedad; políticas públicas; red de educación del es-
tado.
Introdução
No Brasil, a educação apresenta-se, atualmente, como um dos grandes desa-
fios a serem enfrentados pelos gestores públicos, pais, professores, pesquisadores
e todos aqueles que a entendem como um dos pilares de transformação social. As
demandas que afetam esse campo são complexas e diversas, e, ao longo dos anos,
os setores educacionais vêm passando por um processo dinâmico de mudanças para
enfrentar os desafios impostos.
A democratização do acesso à educação por meio da universalização do direito
do cidadão à escola básica, propiciando a inclusão daqueles que antes eram excluí-
dos, representou um grande avanço sem dúvida, porém é fato que “a ‘desigualdade’
adentrou a escola, e com ela amplificou a diversidade de culturas, saberes, valores
e lógicas diferentes daqueles para os quais a instituição foi concebida para receber”
(PACIEVITCH, 2012, p. 13). Assim, de acordo com o Plano Nacional de Educação
(PNE), estabelecido na Lei Federal n. 13.005/2014, para avançar rumo à qualidade,
é preciso garantir o acesso e a permanência do educando na escola, reduzir as desi-
gualdades sociais, contribuir na formação do estudante para o trabalho e no exercí-
cio da cidadania. Entre essas metas, está a de incorporar na educação do estudante
princípios como o respeito aos direitos humanos, à sustentabilidade socioambiental
e à valorização da diversidade de inclusão (BRASIL, 2014).
Nesse contexto, o profissional que atua para que sejam efetivados os pressu-
postos de uma educação diferente, com qualidade e que atenda aos anseios da co-
munidade educacional, enfrenta cada vez mais os desafios para atuar na área, em
instituições tanto públicas quanto privadas, haja vista que o docente sofre pressões
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e cobranças, sendo atribuída a esse profissional a responsabilidade por resultados.
Logo, se o profissional da educação é considerado como elemento básico para elevar
o nível da educação no Brasil, preocupar-se com suas condições físicas e mental é
imprescindível.
Os profissionais sentem-se desvalorizados e desencantados pela profissão,
pois, em quase todos os discursos políticos, está sempre presente o ponto valori-
zação docente, entretanto, pouco se efetivam as propostas suscitadas, o que vem
causando desgaste para os docentes. Nesse caso, compreender as causas que de-
sencadeiam o sofrimento, seja físico ou psíquico, é relevante para que se possa
pensar em ações para, senão dirimir, ao menos minimizar tais problemas.
Via de regra, o docente trabalha em mais de um turno e/ou em estabelecimen-
tos distintos, em razão de a remuneração para a classe ser baixa e ser preciso com-
plementar a renda. Além disso, sente-se enfraquecido, desrespeitado, desmotivado,
trabalhando num ambiente sem estrutura, com turmas cheias, alunos desinteres-
sados e indisciplinados, com inúmeras negações de direitos e violações. O sofri-
mento característico da profissão, principalmente dos docentes de escolas públicas,
ocorre tanto pela evidente perda da substância de seu trabalho quanto pela perda
de seu próprio valor como trabalhador, uma vez que o professor se obriga a aceitar
condições laborais muito aquém das que merece, com atribuições que não fazem
parte de seu trabalho, não raro acumulando a função de pai, mãe, orientador, psi-
cólogo dos estudantes.
A falta de apoio psicológico para esses profissionais compromete o desenvolvi-
mento laboral, considerando que em muitas situações recai sobre eles a tarefa de
resolver os problemas de aprendizagem e emocionais dos alunos. Esses pontos vêm
criando uma crise de identidade nos docentes, que vão perdendo a referência sobre
o que fazer, como trabalhar, como comportar-se em sala. O ofício de ensinar vai se
perdendo juntamente com o papel do professor.
De acordo com Esteves (1999), o professor sofre do denominado mal-estar do-
cente, um tipo de doença social causada pela falta de apoio da sociedade, pelas con-
dições pedagógicas, sociais e psicológicas, que acarreta desmotivação e desencan-
tamento pela profissão, devido à sobrecarga de trabalho, realizado em condições
de estresse; outro fator que pode ser considerado para a deflagração de processos
de adoecimento é a diminuição ou a falta de tempo livre, fora do trabalho, para
realizar outras atividades pessoais e de lazer. Situações como essas expõem os pro-
fissionais a uma condição de crescente vulnerabilidade e adoecimento (SANTOS;
WANZINACK, 2017).
674 ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Segundo Souza e Leite (2011, p. 1.106), o trabalho docente é compreendido
como uma atividade repetitiva, fragmentada e executada com a imposição de rit-
mos intensos. Essa questão, resultante de suas condições de trabalho, vem desper-
tando interesse como objeto de estudos no meio acadêmico e mostra que os afasta-
mentos dos docentes de suas atividades podem estar relacionados diretamente com
as condições de trabalho a que estão expostos.
A pesquisa bibliográfica realizada para este artigo consistiu no levantamen-
to da literatura recente sobre o adoecimento docente no Brasil. Foram utilizados,
na pesquisa, o Banco Digital de Teses e Dissertações (BDTD) da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), a base indexadora SciELO
(portal de revistas brasileiras que organiza e publica textos completos de revistas
científicas na internet) e o Google Acadêmico.
O número de estudos realizados nessa área, no Brasil, aumentou a partir da
década de 1990, sugerindo um crescimento da precarização das condições de tra-
balho dos docentes, que inclui a desvalorização do trabalho e da remuneração, a
falta de recursos tanto materiais quanto humanos, a infraestrutura, o crescimento
da violência no ambiente escolar, os múltiplos empregos que sobrecarregam a força
de trabalho desses profissionais, entre outros fatores (GOUVÊA, 2016; SINDICA-
TO DOS PROFESSORES DO ENSINO OFICIAL DO ESTADO DE SÃO PAULO,
2012; CALDAS, 2012; ANDRADE, 2012).
Com o crescente número de docentes que se afastam do trabalho devido a pro-
blemas de saúde decorrentes da profissão, surgiu o interesse de pesquisar sobre as
causas subjacentes, com a finalidade de obter informações que possam propiciar o
entendimento dessas causas, bem como a proposição de medidas a fim de prevenir ou
ao menos minimizar os fatores que favorecem o adoecimento decorrente da profissão.
Pretende-se, ainda, promover reflexão sobre a necessidade de políticas públicas per-
manentes e efetivas voltadas à solução dos problemas de saúde no campo da docência.
Dessa forma, constitui o objetivo geral do estudo investigar os fatores que
contribuíram para o adoecimento docente nas escolas de educação básica na rede
pública estadual do Paraná. Como objetivos específicos, estabeleceram-se: identi-
ficar os principais transtornos de saúde que fundamentam a concessão de licenças
médicas aos professores do Quadro Próprio do Magistério do Paraná; investigar se
houve afastamento do trabalho ou de função no período avaliado e quais as causas;
avaliar a existência de fatores sociais no ambiente de trabalho que possam levar ao
adoecimento; propor, por meio de políticas públicas do Estado, programas e ações
que visem a prevenção do adoecimento docente.
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Metodologia
A metodologia incluiu a pesquisa bibliográfica, a pesquisa documental e a pes-
quisa de campo, com base nos trabalhos de Esteves (1999), Codo (2006), Souza e
Leite (2011). Para a pesquisa de campo, foi utilizada a entrevista semiestruturada
com 20 (vinte) professores da educação básica que atuam em diversas escolas do
município de Curitiba, com a finalidade de conhecer a sua percepção acerca das
causas do adoecimento docente. A pesquisa documental foi realizada com base
no Relatório de Perícia Médica Dinâmico, que apresenta os dados recentes sobre
a concessão de licença-saúde e afastamento da função de servidores do Quadro
Próprio do Magistério da Secretaria de Estado da Educação e do Esporte, no
período 2017/2018, junto com a Divisão de Medicina e Saúde Ocupacional (DIMS),
órgão pertencente à Secretaria da Administração e Previdência (Seap) do estado do
Paraná e que tem como uma de suas atribuições a avaliação da capacidade labora-
tiva dos servidores pelos critérios da décima versão da Classificação Internacional
de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10) (PARANÁ, 2018a).
A CID-10 é uma publicação da Organização Mundial de Saúde (OMS) adotada
em todo o mundo e visa padronizar a codificação de doenças e outros problemas rela-
cionados à saúde. Essa classificação utiliza um código formado por uma letra e três
números, que permite a identificação de todas as doenças conhecidas, bem como de
sintomas, queixas de pacientes, aspectos fisiológicos anormais, dentre outros.
Os relatórios da DIMS/Seap apresentam diversos motivos para a concessão
de licenças, tais como: tratamento de saúde em pessoa da família, trâmite de apo-
sentadoria por invalidez, doença em pessoa da família com perda de 50% dos ven-
cimentos, doença em pessoa da família sem remuneração, tratamento de saúde
por acidente de trabalho e licença para tratamento de saúde. Neste estudo, foram
analisadas apenas as licenças concedidas para tratamento de saúde do próprio
servidor.
Nesse contexto, para facilitar a análise, foi realizado um levantamento, nos
relatórios da DIMS/Seap, das causas mais prevalentes de concessão de licença-
-saúde ou afastamento de função. São elas: neoplasias, transtornos mentais e com-
portamentais, doenças do aparelho circulatório, doenças do aparelho respiratório,
doenças do aparelho digestivo, doenças do sistema muscular e do tecido conjuntivo,
doenças do aparelho geniturinário, lesões, envenenamentos e algumas outras con-
sequências de causas externas. As causas com menor prevalência foram agrupa-
das sob o título “outros” e incluem: doenças bacterianas e virais; gravidez, parto e
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puerpério; doenças endócrinas, nutricionais e metabólicas; doenças sanguíneas e
transtornos imunitários; doenças do sistema nervoso; doenças de olhos e ouvidos;
achados não classificados em outra parte.
Resultados
A Secretaria de Estado da Educação (Seed), de acordo com os dados divulga-
dos em dezembro de 2018, atende atualmente a 2.143 escolas, nos 399 municípios
do Paraná, contando com um efetivo de 60.638 professores do Quadro Próprio do
Magistério, sendo 128 com carga horária de 10 horas; 57.307, com 20 horas; 2 com
30 horas; e 3.201 com 40 horas (PARANÁ, 2018b).
Neste momento, é relevante pontuar que os professores da Rede Estadual de
Ensino do Paraná podem atuar como concursados com um padrão de 20 horas, dois
padrões de 20 horas ou ainda ter aulas extraordinárias, que são aquelas excedentes
depois de todos os concursados escolherem suas aulas padrão. Posteriormente, as
horas restantes são distribuídas aos professores contratados pelo Processo Seletivo
Simplificado (PSS), válido, via de regra, para um ano.
Outro ponto a ser destacado refere-se à carga horária do professor em sala de
aula. Para um cargo de 20 horas semanais, o professor tem direito, por lei, a sete
horas para planejamento e preparação de suas atividades. Entretanto, no Paraná,
a Seed estabeleceu o percentual de 15 horas em sala com os educandos e cinco para
planejamento de atividades fora de sala.
A maioria dos docentes atua com 40 horas/semanais, e principalmente aqueles
que atuam com aulas extras sentem receio de ir ao médico, quando necessitam,
porque, dependendo do número de atestados que têm ao longo do período letivo,
poderão ser prejudicados na próxima classificação para obter aulas extraordinárias.
Para este estudo, foram entrevistados 20 professores da rede pública estadual
de ensino, sendo 16 mulheres e 4 homens, todos atuando em escolas do município
de Curitiba. O tempo de magistério variou entre 10 e 40 anos, com média de 19,9
anos. Com relação à formação acadêmica, 12 professores possuem licenciatura em
diversas áreas (60%), 6 realizaram cursos de especialização (30%) e apenas 2 pos-
suem mestrado (10%). Os professores trabalham em escolas com clientela diversi-
ficada, heterogênea, com alunos pertencentes a diferentes níveis socioeconômicos.
Como a violência é apontada na literatura como um dos fatores que contribuem
para o adoecimento docente, os professores foram questionados acerca da violência
em seu ambiente de trabalho. A maioria deles não considera a escola violenta, rela-
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ta uma convivência tranquila entre alunos, professores, servidores e direção e sen-
te segurança para desenvolver o seu trabalho. Se algum conflito aparece em sala
de aula, o professor busca resolvê-lo e só em casos excepcionais busca auxílio dos
pedagogos ou da direção. No entanto, 30% dos professores consideram ser comum
a violência verbal e psicológica entre colegas, professores e funcionários, originária
de divergências ideológicas e pelo poder. A seguir, destacam-se alguns depoimentos
dos docentes participantes desta pesquisa nesse sentido:
Existe um tipo de violência sutil, porém constante na escola: uma desvalorização constante
do outro.
A relação com os alunos é bem mais tranquila em comparação aos profissionais da escola.
Imposição de posição ideológica, partidária, contribui para os conflitos.
A relação entre a equipe, de uma forma geral, é muito tensa, com várias atitudes de desres-
peito.
Questionados se já haviam sofrido violência por parte de algum estudante,
20% dos professores relatam já ter vivenciado episódios de intimidação e violência
moral, mas a maioria não relata a ocorrência de violência entre professores e estu-
dantes. Metade dos professores entrevistados relatou já ter se ausentado de suas
atividades por estresse ocasionado pelo trabalho. Dois deles, embora não tenham
se ausentado de suas atividades, deram os seguintes depoimentos: “ausentar não,
mas já tive vontade de pedir para o médico dar atestado de afastamento”; “algumas
vezes já senti vontade de solicitar ao médico afastamento para cuidar de minha
saúde mental devido ao estresse”. Indagados se já haviam pensado em abandonar
a sua profissão, 60% dos entrevistados responderam afirmativamente e atribuíram
como causas as limitações impostas pela dinâmica educacional e pelas condições
estruturais e salariais.
O levantamento de dados contidos nos relatórios da DIMS/Seap revelou que,
nos anos de 2017 e 2018, 45,38% dos professores do estado obtiveram licenças mé-
dicas por causas diversas. Foram registradas, no período, 55.042 licenças médicas
para tratamento de saúde dos docentes, com 12.231 casos de afastamento de fun-
ção (PARANÁ, 2017, 2018a).
Há casos de afastamento temporário de atividades relacionadas com a fun-
ção docente em que, quando recomendado pelo médico assistente, o servidor per-
manece no trabalho, mas executando outras atividades. Assim, esses professores
afastados de sua função docente passam a laborar em divisões administrativas
do estabelecimento de ensino e, em casos mais graves, passam a trabalhar em
678 ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Alboni Marisa Dudeque Pianovski Vieira, Elza Fagundes da Silva
v. 28, n. 2, Passo Fundo, p. 671-688, maio/ago. 2021 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
unidades administrativas da Seed, como os Núcleos Regionais de Educação (NRE).
Quando necessário, são afastados para tratamento médico, com acompanhamento
da DIMS/Seap, podendo ser readaptados ou aposentados por invalidez (PARANÁ,
2018a). Para isso, o servidor deverá comparecer à Coordenadoria de Segurança e
Saúde Ocupacional (CSO) ou à Junta de Inspeção e Perícia Médica (JIPM) e sub-
meter-se à avaliação.
Em 2017, houve 27.521 ocorrências de afastamento de professores por licen-
ça médica, sendo que 9.189 ocorrências possuíam relação direta com transtornos
mentais ou comportamentais, correspondendo a 33,39% do total das licenças. Em
2018, o número de ocorrências total permaneceu o mesmo, sendo que 9.580 foram
referentes a transtornos mentais e comportamentais, correspondendo a 34,81% do
total de licenças médicas, revelando um aumento de 1,42 p.p. no número de ocor-
rências desses transtornos em relação ao ano anterior.
A segunda causa de afastamentos por licença médica no período em análise
foi: doenças do sistema osteomuscular e do tecido conjuntivo, correspondendo a
17,22% e 17,39% do total de ocorrências, respectivamente.
O Quadro 1 e o Gráfico 1 apresentam os dados relativos à concessão de licen-
ça-saúde aos docentes do Quadro Próprio do Magistério no período de 2017 a 2018.
Quadro 1 – Concessão de licença-saúde aos docentes do Quadro Próprio do Magistério no período de 2017
a 2018, pelos critérios da CID-10
CID-10 2017 2018
Neoplasias [tumores] 6,10% 5,42%
Transtornos mentais e comportamentais 33,39% 34,81%
Doenças do aparelho circulatório 4,74% 4,58%
Doenças do aparelho respiratório 4,08% 4,16%
Doenças do aparelho digestivo 5,02% 4,68%
Doenças do sistema osteomuscular e do tecido conjuntivo 17,22% 17,39%
Doenças do aparelho geniturinário 6,97% 4,15%
Lesões, envenenamento e causas externas 3,83% 6,72%
Outras causas 18,65% 18,09%
Fonte: Paraná (2018a).
679
ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Gráfico 1 – Concessão de licença-saúde aos docentes do Quadro Próprio do Magistério no período de 2017
a 2018, pelos critérios da CID-10
0,061
0,3339
0,0474
0,0408
0,0502
0,1722
0,0697
0,0383
0,1865
0,0542
0,3481
0,0458
0,0416
0,0468
0,1739
0,0415
0,0672
0,1809
Neoplasias [tumores]
Transtornos mentais e comportamentais
Doenças do aparelho circulatório
Doenças do aparelho respiratório
Doenças do aparelho diges�vo
Doenças do sistema osteomuscular e do tecido
conjun�vo
Doenças do aparelho geniturinário
Lesões, envenenamento e causas externas
Outras causas
2017
2018
Fonte: Paraná (2018a).
Com base na OMS, vinculada à Organização das Nações Unidas (ONU), en-
tendem-se como transtornos mentais e comportamentais as condições carac-
terizadas por alterações mórbidas do modo de pensar e/ou do humor (emoções) e/ou
por alterações mórbidas do comportamento associadas a angústia expressiva e/ou
deterioração do funcionamento psíquico global (PSIQWEB, 2019).
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Entre os problemas relatados pelos docentes, aparecem com maior frequência:
ansiedade, estresse, insônia, tristeza, falta de expectativa para o futuro, altera-
ções de humor, falta de paciência e choro fácil, falta de autonomia para decisões.
Os docentes entrevistados afirmam que, nos intervalos, o ambiente está sempre
“pesado”, pois a maioria sente-se exaurida e as reclamações são constantes em
relação a indisciplina dos estudantes, chamadas de atenção e cobranças por parte
dos gestores e discussões entre professores.
Em segundo lugar, os afastamentos decorrem de problemas relacionados ao
sistema esquelético, por má postura, repetição de movimentos, excesso de peso com
material didático, muito tempo na mesma posição na preparação de atividades e
avaliações dos estudantes. A respeito, os entrevistados relataram que, em muitas
instituições, não há armários para guardar o material utilizado em sala e que são
obrigados a carregar desde o apagador até outros materiais de apoio. Ao final de
cada período, afirmam sentir-se esgotados fisicamente.
Assim como outras classes, resultantes da reconfiguração no campo do tra-
balho, os professores também sofrem pressões. Todavia, eles não recebem a con-
trapartida, visto que não foi realizada a contento melhoria na carreira na mesma
medida em que são cobrados. Como consequências, surgem as enfermidades.
A análise dos dados de 2017 mostra que 48,47% das licenças-saúde por tran-
stornos mentais e comportamentais e 28,95% dos transtornos osteomusculares
resultaram em afastamento da função docente. Essas duas causas foram respon-
sáveis por 77,42% de todos os afastamentos de função no período. Por sua vez, a
análise dos dados de 2018 mostra que 48,20% das licenças-saúde por transtornos
mentais e comportamentais e 26,36% dos transtornos osteomusculares resultaram
em afastamento da função docente. Essas duas causas, responsáveis por 74,56% de
todos os afastamentos de função no período, mostram que os índices foram semel-
hantes nos dois anos analisados.
O Quadro 2 e o Gráfico 2 apresentam os dados relativos ao afastamento de
função dos docentes do Quadro Próprio do Magistério no período de 2017 a 2018.
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Quadro 2 Afastamento de função dos docentes do Quadro Próprio do Magistério no período de 2017 a
2018
CID-10 2017 2018
Neoplasias [tumores] 2,71% 2,43%
Transtornos mentais e comportamentais 48,47% 48,20%
Doenças do aparelho circulatório 1,77% 2,03%
Doenças do aparelho respiratório 3,24% 3,06%
Doenças do aparelho digestivo 0,30% 0,33%
Doenças do sistema osteomuscular e do tecido conjuntivo 28,95% 26,36%
Doenças do aparelho geniturinário 0,02% 0,43%
Lesões, envenenamento e causas externas 3,48% 3,09%
Outras causas 11,06% 14,07%
Fonte: Paraná (2018a).
Gráfico 2 Afastamento de função dos docentes do Quadro Próprio do Magistério no período de 2017 a
2018
0,0271
0,4847
0,0177
0,0324
0,003
0,2895
0,0002
0,0348
0,1106
0,0243
0,482
0,0203
0,0306
0,0033
0,2636
0,0043
0,0309
0,1407
0,00% 10,00% 20,00% 30,00% 40,00% 50,00% 60,00%
Neoplasias [tumores]
Transtornos mentais e comportamentais
Doenças do aparelho circulatório
Doenças do aparelho respiratório
Doenças do aparelho diges�vo
Doenças do sistema osteomuscular e do
tecido conjun�vo
Doenças do aparelho geniturinário
Lesões, envenenamento e causas
externas
Outras causas
2018
2017
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Discussão
A questão do adoecimento dos professores, como resultante das suas condi-
ções de trabalho, vem sendo objeto de estudos tanto no meio acadêmico quanto
em instituições de pesquisa em âmbito nacional. De acordo com Landini (2008),
a literatura a respeito do adoecimento docente, nos últimos 15 anos, aponta fa-
tores como: excesso e precarização do trabalho, perda da autonomia, sobrecarga
de trabalho burocrático, estresse e cansaço mental, revelando também sentimento
de impotência, impaciência, baixa autoestima, hostilidade, entre outros. Para a
referida autora, nesse cenário no qual o professor é visto apenas como um presta-
dor de serviço, o adoecimento docente encontra terreno fértil. As enfermidades dos
docentes podem ser analisadas como respostas, provisórias ou não, do organismo
à pressão do ambiente, podendo seus sintomas representar mecanismos de defesa
pelos trabalhadores, frente às pressões desfavoráveis do ambiente laboral.
Uma pesquisa feita em Espírito Santo, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e
Distrito Federal, entre 2011 e 2012, mostra a Secretaria de Educação como o ór-
gão com maior percentual de servidores públicos afastados por doenças no Distrito
Federal e em Santa Catarina. O Distrito Federal lidera o índice, 58% dos profissio-
nais foram afastados por motivo de doença pelo menos uma vez no ano. Em Santa
Catarina, foram 25%. No Rio Grande do Sul, a educação aparece como a área com
o terceiro maior índice de afastamento entre as secretarias do estado, 30% (CON-
SAD, 2013). No entendimento do Conselho Nacional de Secretários de Estado da
Administração (Consad), a educação é responsável pela maior parte dos servidores
públicos afastados por doenças. Neste estudo, foi revelado que 45,38% dos docentes
da Seed foram afastados por licença médica pelo menos uma vez em 2017, tendo se
repetido o mesmo índice em 2018 (PARANÁ, 2017, 2018a).
Gouvêa (2016) aponta que dois elementos são determinantes para a deflagra-
ção de processos de adoecimento dos docentes. Um deles é a falta de tempo livre
para atividades de lazer fora do trabalho e outro é o desempenho da docência em
situações de estresse, o que expõe os professores a situações extremas.
Freitas e Castro (2015), em estudo realizado com servidores da Rede Munici-
pal de Ensino de Uberaba, Minas Gerais, observaram que a docência é uma das
profissões mais vulneráveis a fatores de estresse, como: alto nível de exigência,
excesso de tarefas e responsabilidades, tempo limitado, sobrecarga de trabalho,
falta de qualidade de vida, baixo salário, desvalorização profissional e precarie-
dade do sistema de trabalho. Para as autoras, as mudanças no papel do professor
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na sociedade refletem-se em altos níveis de estresse, resultando em absenteísmo e
solicitação de licença médica para tratamento de saúde.
Nas entrevistas realizadas com os professores para este estudo, observou-se que
metade deles já precisou se ausentar de suas atividades em decorrência do estresse
ocasionado pelo trabalho. Entre os fatores desencadeantes dessa patologia, 30% dos
docentes mencionaram as relações tensas entre colegas, funcionários e direção e
que se traduz em violência verbal e psicológica; além disso, atribuem que o estresse
também é resultante das limitações impostas pela estrutura educacional e pelas
condições salariais. Freitas e Castro (2015) consideram que o excesso de atividades,
a cobrança por qualificação profissional e a exigência extrema sobre o professor como
responsável pela qualidade do ensino, dentro de uma lógica de competitividade e
produção, criam, dentro da escola, um ambiente de competição, inveja, intriga, vaid-
ade, ciúme, fragilizando os vínculos e favorecendo o estresse, o sentimento de frust-
ração e o desenvolvimento de sofrimentos de ordem física e psíquica.
Gouvêa (2016) considera que os altos níveis de estresse aos quais os professo-
res são submetidos resultam no aumento de casos de afastamento do trabalho para
tratamento de saúde. No entanto, em vez de buscar uma solução para o problema,
a administração pública aplica medidas que pioram ainda mais a situação, como
é o caso da premiação dada à assiduidade, o que incentiva os professores, mesmo
doentes, a irem ao trabalho para não sofrerem prejuízos financeiros.
Vale e Aguillera (2016) identificaram, em uma revisão de literatura, que o es-
tresse e a Síndrome de Burnout são os principais motivos de afastamento do traba-
lho da categoria docente. A síndrome de Burnout pode ser entendida como um tipo
de estresse de caráter persistente, vinculado a situações de trabalho, resultante da
constante e repetitiva pressão emocional associada com intenso envolvimento com
pessoas por longos períodos de tempo.
De acordo com Reis (2009), a frequência de atestados e adoecimento docen-
te encontra relação com o trabalho exercido e com fatores como: muito tempo na
escola, nível de exigência e cobrança elevado, produtivismo acadêmico, falta de
autonomia, falta de tempo para cuidar de si, desvalorização profissional, influência
política e conflitos entre professor e gestão.
Diversos estudos, baseados em documentos gerados por órgãos oficiais de perí-
cia médica, identificaram o predomínio, entre os professores, dos transtornos men-
tais e comportamentais como os principais motivos de afastamento do trabalho,
seguidos pelos transtornos da voz e pelas doenças osteomusculares, do aparelho
respiratório, do aparelho circulatório e neoplasias (SANTOS; WANZINACK, 2017;
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GOUVÊA, 2016; SINDICATO DOS PROFESSORES DO ENSINO OFICIAL DO
ESTADO DE SÃO PAULO, 2012; CALDAS, 2012; ANDRADE, 2012).
Em estudo conduzido com professores do município de Matinhos, Paraná,
Santos e Wanzinack (2017) registraram o adoecimento de 62% desses profissionais
em função da profissão, ou seja, mais da metade dos docentes já tiveram que se
afastar de suas atividades laborais. Os transtornos psíquicos foram as maiores
queixas entre os docentes, com o estresse alcançando 71% e a depressão 32%, sendo
o primeiro o responsável por 16% dos afastamentos.
Neste estudo, encontramos os transtornos mentais e comportamentais e as
doenças osteomusculares como as causas principais não só da concessão de licen-
ça-saúde, mas também para o afastamento do docente de suas funções. Entre os
transtornos mentais e comportamentais, os mais frequentemente observados fo-
ram: estresse, depressão, ansiedade, nervosismo e síndrome do pânico.
Em sua pesquisa, Andrade (2012) observou um acentuado percentual de li-
cenças em prorrogação, subtendendo o afastamento contínuo do educador, além
da associação de diagnósticos para uma mesma licença, ou seja, para a referida
autora, o educador não apenas adoece, mas adoece por várias causas.
De acordo com Thiele e Ahlert (2016), o que muitas vezes leva o professor a
não tomar medidas preventivas e nem a ter mais cuidados com os sinais que o
corpo apresenta é que, em caso de afastamento das atividades por doença, se é por
um período curto, retornando ao trabalho, deve repor as aulas. Isso inibe muitos
professores de tratarem suas doenças de forma preventiva, uma vez que, em vez de
cuidarem da saúde, ficam preocupados com o trabalho dobrado que terão ao voltar
às suas atividades, fazendo com que, além da doença, sintam-se culpados por seu
estado “improdutivo” e que se sintam julgados pelos outros.
Radaelli (2017), em pesquisa realizada em 2011 e 2017, com a finalidade de
calcular o nível de adoecimento e estresse entre os professores da Rede Estadual
da Paraná, encontrou que mais de 35% dos professores entrevistados com menos
de dez anos de docência já estão no nível de estresse de “quase exaustão”, momento
em que há risco do surgimento de doenças graves, como depressão, dependência
química e, em casos extremos, o suicídio. Outro dado preocupante encontrado pela
pesquisadora foi o alto índice de psicopatologias declaradas pelos participantes
da pesquisa: 40%. Neste estudo, o índice de psicopatologias que resultaram em
concessão de licença-saúde aos docentes correspondeu a 48,20% e 48,47% do total
de licenças concedidas em 2017 e 2018, respectivamente, o que demonstra a gravi-
dade da situação.
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Considerações nais
O adoecimento docente constitui um tema de grande relevância e tem sido
objeto de inúmeros estudos e pesquisas realizados no país nos últimos 15 anos.
No entanto, as políticas de prevenção à saúde docente ainda são escassas. Em
nível nacional, tramita na Câmara dos Deputados o projeto de lei que institui a
Política Nacional de Saúde Vocal, cujo objetivo é garantir, no Sistema Único de
Saúde (SUS), a oferta de ações de prevenção e de assistência ligadas à saúde dos
profissionais que trabalham com o uso da voz, como os professores. O texto prevê
a avaliação anual desses profissionais por médicos otorrinolaringologistas, psicólo-
gos, fonoaudiólogos e assistentes sociais. Também serão oferecidos programas pe-
riódicos de capacitação e treinamento para o uso adequado da voz, além de ações de
reabilitação dos profissionais acometidos por lesões vocais ou laríngeas. O referido
projeto tramita há três anos e, em 2018, foi aprovado pela Comissão de Seguridade
Social e Família, mas ainda tem que ser avaliado por outras comissões antes da
aprovação e implementação.
No Paraná, a Lei n. 14.939, de 14 de dezembro 2005, que institui o Programa
Estadual de Saúde Vocal preventiva para professores da Rede Pública Estadual de
Ensino, e a Lei n. 14.992, de 06 de janeiro de 2006, que institui o Programa de Saú-
de Mental, decretadas pela Assembleia Legislativa e sancionadas pelo governa-
dor do estado em 2015, não foram implementadas. Ainda, tramita na Assembleia
Legislativa o Projeto de Lei n. 88/2014, que estabelece as políticas de promoção e
prevenção da saúde, que até a finalização desta pesquisa não foi aprovado.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) aponta a categoria docente
como sendo a segunda a apresentar mais doenças ocupacionais. Este estudo reve-
lou que os transtornos mentais e comportamentais e as doenças osteomusculares
são as causas de adoecimento mais prevalentes e seus níveis são alarmantes, já
que responderam por cerca de 65% de todas as licenças-saúde e afastamentos da
função docente.
Um fato que chama a atenção é o número elevado de professores que cometem
suicídio. De acordo com matéria veiculada pelo Sindicato dos Trabalhadores em
Educação Pública do Paraná (APP – Sindicato), em 14 de outubro de 2019, o sui-
cídio de professores no Paraná aumentou 15 vezes em 5 anos. Só em 2018, foram
15 professores que tiraram a própria vida. A estatística é associada à precarização
das condições de trabalho e ao aumento da carga de trabalho. De acordo com o sexo,
foram 21 homens e 19 mulheres, a maioria tinha entre 40 e 49 anos (19 casos),
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seguida pela faixa de 30 a 39 (9 casos), 50 a 59 (6 casos) e 20 a 29 (3 casos). Nas
idades de 60 a 69, 70 a 79 e 80 ou mais, houve um suicídio em cada faixa etária. As
estatísticas incluem professores da rede pública e da iniciativa privada de todos os
níveis de ensino. Os dados foram extraídos do Sistema de Informação de Mortali-
dade (SIM) e fornecidos ao Sindicato pela Secretaria da Saúde do Paraná (Sesa).
Assim, este estudo pretende contribuir para dar a conhecer os níveis de adoe-
cimento dos professores do estado e sensibilizar os gestores públicos para o desen-
volvimento de políticas de assistência e prevenção da saúde daqueles profissionais.
Para além dos resultados, a presente pesquisa pretende, sobretudo, instigar os
profissionais das diversas áreas da saúde e os gestores públicos a refletirem sobre
o que tem levado tantos docentes ao adoecimento e coletivamente pensarem em
formas de prevenir o surgimento das enfermidades com vistas à melhoria das con-
dições de trabalho, de vida e de saúde dos professores.
Nessa ótica, é relevante:
a) identificar e mapear as causas que levam ao adoecimento dos docentes;
b) subsidiar ações no âmbito escolar que possam diminuir o desgaste físico dos
professores;
c) promover debates entre gestores de estabelecimentos públicos e privados,
com vistas a articular ações para enfrentamento dos problemas causadores
do mal-estar docente;
d) fomentar a discussão de políticas públicas voltadas ao enfrentamento das
doenças que atingem o professor e a formas de atendimento a esse profissio-
nal.
O docente precisa sentir-se mais seguro e amparado pelo seu empregador, e
não ameaçado, pressionado e culpado por eventuais fracassos dos alunos. Há que
se pensar nos protagonistas do processo educacional e entender que os problemas
devem ser repensados e as possíveis soluções devem perpassar também pelo papel
do professor como um profissional a ser respeitado e valorizado, não somente nos
discursos políticos e nos planos postos pelos gestores, mas também em ações con-
cretas. Por fim, ressalta-se a necessidade de voltar o olhar para as condições de
trabalho do professor, para seu bem-estar e para sua saúde, e não somente para os
resultados de sua ação profissional.
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Educación y salud: mirada diversa, reexiva y relacional para el desarrollo humano del siglo XXI
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Educación y salud: mirada diversa, reexiva y relacional para el desarrollo
humano del siglo XXI
Education and health: a diverse, reexive and relational look for human development in the
21st century
Educação e saúde: um olhar diverso, reexivo e relacional para o desenvolvimento humano no
século XXI
Yoisell Lopez Bestard *
Juan Eligio Lopez Garcia**
Maria Caridad Bestard Gonzalez***
* Doutor em Educação Ambiental pelo Programa de Pós-graduação em Educação Ambiental da Universidade Federal do
Rio Grande (PPGEA-Furg), na linha Fundamentos da Educação Ambiental. Mestre em Atividade Física na Comunidade
pela Universidade de Ciências da Cultura Física e do Esporte Manuel Fajardo (Cuba); título revalidado pela Universidade
Federal de Santa Maria (UFSM). Especialista em Educação Física Escolar pela Furg. Graduado em Cultura Física e Espor-
te pelo Instituto Superior de Cultura Física Manuel Fajardo (Cuba); título revalidado pela UFSM, CREF: 026175-G/RS/
Habilitação: Licenciado e Bacharel. Tem se ocupado de ações de promoção da arte marcial milenar Tai Chi Chuan e seu
emprego como Chi kung de saúde para a qualidade de vida de idosos, com o desenvolvimento de projetos comunitá-
rios. Possui experiência nas áreas: Educação Física e Saúde Coletiva. Suas investigações versam em torno dos seguintes
temas: Qualidade de Vida, Promoção da Saúde, Políticas Públicas Saudáveis, Doenças Crônicas não Transmissíveis e
Práticas Integrativas Complementares, com ênfase nas Práticas Corporais: Tai Chi Chuan, Lian Gong e Ba Duan Jin. Orcid:
https://orcid.org/0000-0001-8852-0526. E-mail: ylbestard@gmail.com
** Professor Titular e Consultor do Curso de Bacharelado em Ciências Físicas da Cultura da Universidade Carlos Rafael
Rodríguez de Cienfuegos, Cuba. Doutor em Ciências pela Universidade de Granada, Espanha. Desenvolveu o ensino
universitário no México, Equador. Treinador de Wrestling no México e Espanha, e assessor técnico da Federação Andalu-
za de Luta Associada. Reconhecido pela Universidade de Las Palmas de Gran Canaria como promotor da Lucha Canaria
em Cuba. Possui experiência prossional em esportes de combate, especialmente na Luta Livre e Greco-Romana, a
partir de sua posição como Treinador Físico e Técnico de Luta Olímpica na Escola de Iniciação Esportiva de Cienfuegos,
Cuba. Como professor universitário, desenvolveu programas de disciplinas em Teoria e Metodologia do Treinamento
Esportivo e Metodologia e Técnicas de Luta Esportiva. Desde os resultados da sua investigação para o grau de Mestre,
tem trabalhado com a detecção de necessidades de aperfeiçoamento de formadores de Wrestling na província de
Cienfuegos. Como professor universitário, desenvolveu programas de disciplinas em Teoria e Metodologia do Treina-
mento Esportivo e Metodologia e Técnicas de Luta Esportiva. Ele é presidente da cadeira honorária Artes Marciais e
Esportes de Combate” da Universidade de Cienfuegos. Atualmente é chefe da Linha de Pesquisa: Desenho, Controle e
Avaliação da Iniciação, Treinamento e Destração Esportiva, da Faculdade de Ciências Físicas da Cultura da Universidade
de Cienfuegos. A maior parte de suas pesquisas e publicações enfocam a observação sistemática de ações motoras
em esportes de combate, comunicação motora e papéis em Lucha Libre e Luta Greco-Romana. Orcid: http://orcid.
org/0000-0003-3786-0170. E-mail: mbestardgonzalez@gmail.com
*** Doutora em Ciências da Educação. Professora Associada e Consultora em Ciências Aplicadas. Orcid: https://orcid.
org/0000-0002-5323-4033. E-mail: mbestardgonzalez@gmail.com
Recebido em: 30/10/2020 – Aprovado em: 18/08/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i2.11803
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Resumen
El objetivo de esta comunicación es reexionar desde una perspectiva diversa y relacional sobre la educación
y la salud. Se tiene en cuenta el escenario de los primeros veinte años del siglo XXI, con especial atención al
contexto de la situación de la salud en el año 2020. Se demanda con argumentos, la ampliación, selección e
integración de saberes acorde con las necesidades sociales de preparación para, y toda, la vida. Se realiza el
análisis gramatical de los vocablos que conforman la frase educación y salud, la cual encamina su interpretación
hacia la dimensión social de ambos procesos de alta incidencia en el desarrollo humano. La revisión bibliográca
realizada destaca la sustentabilidad, unida a la urgente transformación de la educación, con un saber añadido en
favor del mejoramiento de la salud. Los saberes interdisciplinarios resultan fundamentales, como vía de ejercer
inuencias en las nuevas generaciones y con ello, la garantía de continuidad a la vida.
Palabras clave: educación; salud; saberes; desafíos.
Abstract
The objective of this communication is to reect from a diversied and relational perspective on education and
health. The scenario of the rst twenty years of the 21st century is taken into account, with special attention to
the context of the health situation in the year 2020. It is demanded with arguments, the expansion, selection and
integration of knowledge in accordance with the social needs of preparation for, and all, life. The grammatical
analysis of the words that make up the phrase education and health is carried out, which directs its interpretation
towards the social dimension of both processes of high incidence in human development. The bibliographic
review carried out highlights sustainability, together with the urgent transformation of education, with an
added knowledge in favor of improving health. Interdisciplinary knowledge is fundamental, as a way of exerting
inuences on the new generations and with it, the guarantee of continuity in life.
Keywords: education; health; knowledge; challenges.
Resumo
O objetivo desta comunicação é reetir a partir de uma perspectiva diversa e relacional sobre educação e saúde.
É levado em consideração o cenário dos primeiros vinte anos do século XXI, com especial atenção ao contexto
da situação da saúde em 2020. Exige-se, com argumentos, a ampliação, seleção e integração de conhecimentos
de acordo com as necessidades sociais de preparação para, e toda, a vida. É realizada a análise gramatical
das palavras que compõem a frase educação e saúde, direciona sua interpretação para a dimensão social de
ambos os processos de alta incidência no desenvolvimento humano. A revisão bibliográca realizada destaca a
sustentabilidade, aliada à urgente transformação da educação, com um saber agregado a favor da melhoria da
saúde. O conhecimento interdisciplinar é fundamental, como forma de inuenciar as novas gerações e, com elas,
a garantia de continuidade da vida.
Palavras-chave: educação; saúde; conhecimento; desaos.
Introducción
Los desafíos que enfrenta la sociedad del siglo XXI hacen apreciar a la
educación y a la salud como importantes ámbitos de influencia para el desarrollo
humano. Las dificultades de acceso a estos servicios públicos y su disfrute por la
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población en una buena parte de países del mundo, incide en males tan marcados
y reconocidos por todos como la pobreza, y con ella, la vulnerabilidad de una
importante cifra de la población.
La educación y la salud como dimensiones de la pobreza y sus consecuencias,
constituyen a través del tiempo el objeto de estudio de muchos investigadores
y de diferentes organismos internacionales. Cuando se revisan resultados de
investigación, informes mundiales o regionales, casi siempre, al referirse a las
dimensiones, indicadores, etc., como aspectos contenidos en la pobreza, aparece
primero la alusión a la salud y después a la educación. Sin embargo, en el propósito
de la presente comunicación la pretensión es priorizar el ámbito de la educación, a
través de sus saberes, como forma de favorecer la salud para el desarrollo humano.
Esta finalidad guarda relación con las necesarias transformaciones que desde finales
del siglo XX se vienen demandando a la educación en pro de una ampliación de los
saberes interdisciplinarios, que ya en los primeros veinte años de este siglo XXI se
precisan con fuerza para enfrentar los reclamos impuestos por el escenario de salud
actual que evidencia, en cierta medida, una afectación a los procesos educativos.
Ya sea por periodos de aislamiento, cambios en las conductas tradicionales,
afectaciones psicológicas, incorporación de nuevas prácticas de saneamiento a la
vida cotidiana, entre otras medidas, sobresalen unos requerimientos que adquieren
condición de saberes añadidos al proceso educativo, y en realidad, aportan una
nueva preparación para la vida.
Con tal escenario de salud actual, digamos que la educación se ha visto
obligada a asumir nuevas modalidades para desarrollar su proceso de enseñanza
aprendizaje, pero que, sin dudas, tanto saberes como modalidades, se han convertido
en vehículo de comunicación cultural y transformaciones para grandes masas de la
población por salvar y continuar el ritmo de la vida.
Se trata, por tanto, en la comunicación, de reflexionar cómo la educación,
amenazada por el escenario de salud actual, precisa de la ampliación, selección e
integración de saberes que vayan más acorde con las necesidades de preparación
para la vida de la sociedad.
Para el cumplimiento de esta finalidad la comunicación se organiza en un
grupo de epígrafes que aporten argumentos para su comprensión. Por tal razón
se comienza con un análisis gramatical de los vocablos que conforman la frase
educación y salud, que encamine su interpretación hacia la dimensión social de
ambos procesos de alta incidencia en el desarrollo humano y con ello, comprender
la necesidad de una sustentabilidad de estos procesos y el llamado a la urgente
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transformación de la educación, en favor del mejoramiento de la salud, donde la
presencia de saberes interdisciplinarios resulta fundamental, como vía de ejercer
influencias a las nuevas generaciones en torno al aprendizaje de normas, valores,
que modifiquen para bien, el comportamiento social de las personas y con ello, la
garantía de continuidad a la vida.
Educación y salud: de la mirada gramatical y su implicancia social
Pensar en los vocablos educación y salud, conlleva inicialmente a una
representación mental del significado de cada uno, donde lo primero que salta
a la vista es la perspectiva gramatical que deja distinguir una relación entre
ambos. Una de ellas es por el empleo de la conjunción “y”, porque deja claramente
establecida una necesaria relación. Resulta entendible su unión para alcanzar un
fin mayor: desarrollo humano. A la vez, también puede vislumbrarse un cierto
orden de acciones en la idea de que, para obtener la segunda, debe suceder antes la
primera. Una mirada hacia esa relación de dependencia destaca que la obtención
de salud precisa al menos de una adecuada educación para este fin. Lo que puede
ejemplificarse desde una perspectiva científico – literaria pues, es bastante común
encontrar la relación de estos vocablos unidos por la preposición “para”, cuando
indica el fin u objeto de una acción, en este caso, “educación para la salud”. Aunque
para los fines de esta comunicación el objeto de esta acción colocada como ejemplo,
queda muy reducido.
En una segunda mirada, la perspectiva relacional gramatical favorece una
deducción de índole social, por cuanto los dos vocablos se identifican universalmente
como derechos humanos, y esto conlleva a su comprensión desde las políticas
públicas y los planteamientos de organismos internacionales, la educación y la
salud, deben ser para todos y durante toda la vida. La configuración del carácter
social de estos vocablos conduce al pensamiento de que tanto la educación como la
salud, precisan de actores sociales que participen de ellas de forma responsable y
comprometida, tanto del que educa para la salud como del que obtiene beneficios
de esa educación.
Apreciadas las implicancias relacionales desde el punto de vista gramatical y
algunas de sus correspondencias con lo social, se permite una profundización del
análisis de ambos vocablos: educación y salud, desde otras perspectivas. Una de
ellas, la Teoría de las necesidades humanas para el desarrollo, y en ella la distinción
entre necesidades y satisfactores:
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La educación (ya sea formal o informal), el estudio, la investigación, la estimulación precoz
y la meditación, son satisfactores de la necesidad de entendimiento. Los sistemas curativos,
la prevención y los esquemas de salud, en general, son satisfactores de la necesidad de
protección (NEFF; ELIZALDE; HOPENHAYN, 2010, p. 17).
De tal manera puede entenderse que las relaciones entre educación y salud
desde las necesidades humanas para el desarrollo, se corresponden por constituir
satisfactores para una determinada necesidad: educación, satisfactor de la
necesidad de entendimiento; mientras que salud, satisfactor para la necesidad de
vivir.
Los desafíos de la educación y la salud: la necesaria organización de su estudio
desde las escalas geográcas
La satisfacción de necesidades humanas constituye siempre, a lo largo del
tiempo, un desafío para la sociedad en diferentes escalas geográficas. Así, la escala
universal, con las preocupaciones y ocupaciones generales a nivel mundial, se
plantea retos que son asimilados por la escala regional, según los continentes, y
de ahí, a escala nacional que, a nivel de país, concreta sus necesidades, desafíos a
ese nivel, e incluso llevándolo hasta la escala local, lo que puede permitir a todos
los pueblos del mundo un pensamiento de trabajo en común pero contextualizado
a sus espacios. En esta perspectiva, un entendimiento a escala mundial respecto
a la salud y la educación, se encuentra detallado en los Objetivos de Desarrollo
Sostenible, y en cuanto ellos respectivamente, reconocen que:
Para lograr el desarrollo sostenible es fundamental garantizar una vida saludable y
promover el bienestar para todos a cualquier edad. Se han obtenido grandes progresos en
relación con el aumento de la esperanza de vida y la reducción de algunas de las causas de
muerte más comunes relacionadas con la mortalidad infantil y materna. Se han logrado
grandes avances en cuanto al aumento del acceso al agua limpia y el saneamiento, la
reducción de la malaria, la tuberculosis, la poliomielitis y la propagación del VIH/SIDA.
Sin embargo, se necesitan muchas más iniciativas para erradicar por completo una amplia
gama de enfermedades y hacer frente a numerosas y variadas cuestiones persistentes y
emergentes relativas a la salud. […] La consecución de una educación de calidad es la
base para mejorar la vida de las personas y el desarrollo sostenible. Se han producido
importantes avances con relación a la mejora en el acceso a la educación a todos los niveles
y el incremento en las tasas de escolarización en las escuelas, sobre todo en el caso de las
mujeres y las niñas. Se ha incrementado en gran medida el nivel mínimo de alfabetización,
si bien es necesario redoblar los esfuerzos para conseguir mayores avances en la consecución
de los objetivos de la educación universal. Por ejemplo, se ha conseguido la igualdad entre
niñas y niños en la educación primaria en el mundo, pero pocos países han conseguido ese
objetivo a todos los niveles educativos. (CEPAL, 2016, p. 14-16).
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El mejoramiento de la calidad de vida de las personas, en la que está incluida
la salud, por constituir un recurso para obtener calidad de vida, requiere conseguir
una educación de calidad como base, así lo entiende el Objetivo 4to de los Objetivos
de Desarrollo Sostenible en la Agenda 2030 (SILVA, 2015, p. 16). Esa educación de
calidad precisa un entendimiento del concepto amplio de cultura y de preparación
para la vida, rompiendo con los cánones tradicionales de la enseñanza. Hay que
pensar en saberes que abarquen los aprendizajes necesarios, pero vinculados al
contexto y a la situación actual en cada espacio – tiempo.
No es ocioso percatarse de que los dos mencionados Objetivos estén uno a
continuación del otro, y sobre todo el pensamiento de que una educación de calidad
puede contribuir en gran medida al logro de una vida saludable. Una palabra clave
está presente en los Objetivos de desarrollo, y es su condición de que ese desarrollo
sea sostenible.
La sostenibilidad, de lo que a distintas escalas geográficas los países y su
población se proponen, depende mucho de la comprensión de las personas por la
certeza y logro de su alcance. Es decir, de su subjetividad, vista según Güell (1998,
p. 1) como: “(…) aquella trama de percepciones, aspiraciones, memorias, saberes y
sentimientos que nos impulsa y nos da una orientación para actuar en el mundo.
Subjetividad social es esa misma trama compartida por un colectivo”. Es algo en lo
que las personas, actores sociales en fin de la educación y la salud, deben confiar
para alcanzar las metas. Al respecto Güell (1998, p. 3) reconoce que:
La disposición de las personas a participar y a confiar en los escenarios Institucionales y
estratégicos que les ofrece el desarrollo, parece depender cada vez más de una condición
muy básica: del grado de seguridad, certidumbre y sentido que las personas obtienen de
ellos para sus vidas cotidianas. (…) un desarrollo que no promueve y fortalece confianza,
reconocimientos y sentidos colectivos, carece en el corto plazo, de una sociedad que lo
sustente. Entonces la viabilidad y éxito de un programa de desarrollo dependerá en una
medida importante de su sustentabilidad social.
Es ahí precisamente donde la educación desempeña un rol protagónico en
su vínculo con la obtención y sostenibilidad de la salud. De tal manera puede
entenderse que tanto la educación, como la salud, están reconocidas como desafíos
por la historia mundial. Desafíos identificados y enfrentados en cada espacio y
tiempo, con el empleo de diferentes alternativas de solución para cada caso, hasta
llegar a la actualidad de los primeros veinte años del siglo XXI. Pero, en el caso
de la educación, tales desafíos ¿fueron identificados de forma reciente? Se hace
necesario tener en cuenta antecedentes que ayuden a reconocer que los llamados a
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la transformación para el beneficio social no se han detenido a través del tiempo,
una evidencia puede distinguirse en los años finales del siglo XX.
La UNESCO: los previos llamados al cambio en la educación a nes del siglo XX
Al menos, dos ejemplos se citan con relación al llamado a los cambios en la
educación a finales del siglo XX. Uno de ellos parte de la encomiable labor de
Federico Mayor en la UNESCO: su llamado a Jackes Delors (1996) para presidir
la Comisión internacional (que quedó establecida en 1993) en función de una
reflexión sobre la educación y el aprendizaje en el siglo XXI. De la misma quedaron
planteados sus principios rectores orientados hacia el desarrollo de las personas,
en busca de respuestas a las necesidades sociales de la era del conocimiento y la
globalización, cuando reconocía desde la Comisión la necesidad de:
(…) añadir nuevas disciplinas como el conocimiento de sí mismo y los medios de mantener
la salud física y psicológica, o el aprendizaje para conocer mejor el medio ambiente
natural y preservarlo [con una educación para] preservar los elementos esenciales de una
educación básica que enseñe a vivir mejor mediante el conocimiento, la experimentación y
la formación de una cultura personal (DELORS, 1996, p. 12).
Así como reconocer que “La educación durante toda la vida se presenta como
una de las llaves de acceso al siglo XXI basada en cuatro pilares básicos: aprender
a conocer, aprender a hacer, aprender a vivir, juntos, aprender a ser” (DELORS,
1996, p. 34). Y posteriormente, cuando Federico Mayor (1999, p. 8), desde su
condición de director general de la UNESCO:
(…) solicitó a Edgar Morín que expresara sus ideas en la esencia misma de la educación del
futuro, en el contexto de su visión del “Pensamiento Complejo”. (…) como contribución al
debate internacional sobre la forma de reorientar la educación hacia el desarrollo sostenible.
Ambos resultados, publicados, promovidos en gran proporción mundialmente,
de seguro forman parte de los libros de “cabecera” de cualquier docente preocupado
por el desarrollo de sus educandos, por cuanto, tanto el planteamiento de los pilares
básicos y la visión pensamiento complejo, representan una guía de inestimable
valor para la educación de estos tiempos.
Educación y salud: desafíos para el siglo XXI
Para desarrollar este epígrafe se tuvieron en cuenta los llamados universales a
la atención al necesario cambio en la educación desde fines del siglo XX, entendidos
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como el preámbulo preparatorio al entendimiento de cómo la educación se vincula
a la salud (así como a otros ámbitos del desarrollo humano) en los primeros años
del siglo XXI.
En el epígrafe se citan autores que refieren la necesidad de nuevos saberes
que desde la educación apoyan a la salud para el desarrollo humano sostenible.
Estas ideas del epígrafe reafirman una vez más la relación entre educación y salud,
mediante el necesario conector a la cultura y a la comunicación para enfrentar los
desafíos de estos primeros años del siglo XXI y los del porvenir.
Esquema 1 – Relaciones y conectores entre la educación y la cultura
EDUCACIÓN SALUD
Y
CULTURA
COMUNICACIÓN
Fuente: elaboración propia.
En este sentido queda claro que la educación precisa de personas, docentes
bien preparados, actualizados, sensibilizados, convencidos y seguros de la necesaria
transformación de la enseñanza para que los estudiantes alcancen un aprendizaje
aplicable a la realidad en que se desenvuelven y a la vez, a lo porvenir en la vida,
una vez que abandonen el recinto educacional. Una adecuada y permanente
formación docente podrá aportar “luces” y ampliación del “abanico” de posibilidades
de enseñanza que motiven a los estudiantes a prepararse mejor para la vida.
Primeros años del siglo XXI: algunos desafíos identicados en relación con la
educación y la salud
El siglo XXI, aun cuando muchos pensábamos que estaríamos ante un mundo
nuevo, diferente, mejorado, no llegó a ser portador de todas las maravillas soñadas,
así lo describe el cantautor cubano Silvio Rodríguez: El 2000 sonaba, como puerta
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abierta, maravillas que silbaba el porvenir. Pero ahora que se acerca, saco cuentas,
que de nuevo tengo que esperar, que las maravillas, vendrán algo lentas, porque el
mundo tiene aún muy corta edad.
Cuando muchos imaginaban la entrada del año 2000 quizás con unos habitantes
usando escafandras y trajes especiales para viajes de ida y vuelta al espacio, el año
2020 trajo la difícil necesidad de usar trajes especiales (bata, sobre bata, botas,
gorros, guantes de distintos gruesos, máscaras transparentes y mascarillas de
triple tela para personal de salud en zona roja) pero para enfrentar una enfermedad
arrasadora. Para los demás, como parte de la población a protegerse, la obligación
de esconder la sonrisa tras una mascarilla, evitar el beso y el abrazo acostumbrado,
cuidando una distancia prudencial y atender a dónde se colocaban las manos.
Los retos que trajo han sido fuertes, y los que faltan por llegar, alertaron una
vez más que la educación y la salud son procesos que están llamados a incrementar
sus relaciones y labor para el desarrollo humano. Basta complementar con el
ejemplo de las tendencias que según Yurén (2005, p. 26) ponen en riesgo el planeta
y sus habitantes: “(…) barbarie de múltiples formas, narcotráfico y otras formas
de delincuencia (…) daños ambientales, especies en extinción y cambios climáticos
(…) nuevas formas de analfabetismo (…) desempleo creciente”.
Muchos investigadores en la publicación de sus resultados, van dejando su
huella preocupada en torno a los desafíos del siglo XXI. Según revisión bibliográfica
realizada, se comunican resultados que destacan, entre otros: la subjetividad como
requisito indispensable del desarrollo, en Güell (1998), la necesidad de salud,
educación, desde el ángulo económico, esferas de lo humano: salud, educación, en
Parra (2004), desarrollo integral, en Aguilazocho y Cazares (2005), el bienestar
social, el desarrollo humano sostenible, la totalidad compleja, Sánchez y Araya
(2012), el enfoque del derecho en las necesidades sociales, en Guedea (2016).
Todos, como desafíos que reconocen a la educación y a la salud dentro de ellos,
evidenciándose así la necesidad de un cambio en la mentalidad de la educación en
general, donde los saberes se muestren de forma interdisciplinar, y sea posible su
selección e integración acorde al contexto en función de la preparación para la vida.
Comprensión del proceso de salud en relación con los saberes necesarios
En cuanto al concepto de salud, ha dejado de verse como ausencia de
enfermedad, para abarcar otros campos en los cuales también presenta un proceso
el ser humano. Pero también se precisa una educación para enseñar a las personas
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a que aprendan a percibir, sentir y disfrutar de ese bienestar en salud. Las personas
pueden y deben aprender a descubrir a cada instante de su vida ese bienestar. De
ahí que pueda también tenerse en cuenta a García (2012, p. 15), quien distingue a
la salud como:
Un elemento universal de la vida que puede tratarse como un capital simbólico, en sintonía
biopsicosocial con su contexto. Aunque a veces es silente, no se percibe o significa de manera
estática, sino en movimiento. Tampoco se concibe aislada de la enfermedad y de su atención,
de ahí que la definamos como un proceso vital, de carácter histórico y social, determinado
por el acceso a los bienes materiales y no materiales que promueven el bienestar psicosocial
expresado como crecimiento y desarrollo individual y grupal sustentables y con sentido
humano.
Es de esta manera que la educación debe ampliar sus saberes durante su
proceso, pero contextualizados a la situación real que viven las personas en su
espacio – tiempo, y con ello, prepararlos mejor aún para la vida.
Los saberes añadidos: desde lo que llegó con el nal del 2019 y se aanzó en el
2020
Un ejemplo de cuanto queda todavía por aprender y retomar viejas acciones,
de acuerdo al tiempo y al contexto, tiene que ver con la mala jugada que nos legó
el final del año 2019 con el nuevo coronavirus (Covid-19) y su entrada “triunfal” en
el año 2020. Con su indeseada presencia repartida mundialmente, dejó percibir un
rompimiento de la vida cotidiana poblacional a nivel mundial, que se extendió en
cada espacio a la comunidad, al barrio, al hogar, a cada país que entró.
La primera y negativa consecuencia que aportó fue y es aún, la de padecer,
sufrir y, hasta en muchos casos, morir, por esta enfermedad. Este visitante
indeseable e inesperado sacó a la luz las vulnerabilidades de distintos tipos tanto
de los estados como de la propia población, en cuanto a la preparación para la
protección y convivencia de cada espacio habitado en el planeta tierra.
Sorprendió la falta de preparación de la sociedad dada principalmente en
muchos lugares por la previa ruptura en determinadas costumbres ciudadanas,
relacionadas con la higiene, el espacio físico y social, las formas de comportamiento
ciudadano. Pero más sorprendente aún fue la paralización de la vida cotidiana por
el imprescindible aislamiento social. Se acudió entonces a conocidas formas de
convivencia, pero que iban quedando en el pasado, como el regreso a otro tipo de
saludos, las formas de comunicación verbal sin tanto acercamiento, el mejor uso
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y apropiación del espacio y recordar la necesaria higiene de las manos. Mucho se
habló y se habla de frases como percepción del riesgo, la nueva normalidad (de la
que no debimos apartarnos).
La población fue receptora de nuevas formas de comunicación educativa
ciudadana: afloraron canciones, poemas, obras de arte, dramatizaciones, que
tuvieron la doble finalidad de educar y a la vez expresar sentimientos, estados de
ánimo. Se movilizaron representantes de diferentes especialidades para aportar
sus consejos, como los psicólogos, sociólogos, comunicadores sociales, etc. Pues,
las actividades masivas, las instituciones educativas, laborales y hospitalarias
cambiaron sus rutinas por nuevas formas de convivencia colectiva.
Las generaciones más jóvenes han debido aprender e interiorizar, de forma
urgente, conocimientos para mantener el curso de la vida cotidiana, pues el otro
gran aprendizaje es que habrá que acostumbrarse a convivir con este mal y otros
muchos por venir. Al decir de Morín (1999, p. 7):
Uno de los desafíos más difíciles será el de modificar nuestro pensamiento de manera
que enfrente la complejidad creciente, la rapidez de los cambios y lo imprevisible que
caracterizan nuestro mundo. Debemos reconsiderar la organización del conocimiento. Para
ello debemos derribar las barreras tradicionales entre las disciplinas y concebir la manera
de volver a unir lo que hasta ahora ha estado separado. Debemos reformular nuestras
políticas y programas educativos. Al realizar estas reformas es necesario mantener la
mirada fija hacía el largo plazo, hacía el mundo de las generaciones futuras frente a las
cuales tenemos una enorme responsabilidad.
Cada paso dado en favor de transmitir formas de comportamiento, estados de
ánimo, encierra un mensaje contenedor de saberes que se entregan desde diferentes
disciplinas, lo que deja entrever evidencias de la importancia de la aplicación de
saberes interdisciplinarios de una forma más generalizada en nuestra educación.
De la educación: los saberes, un punto de partida
Hacer referencia a los saberes conduce necesariamente a pensar en que el
saber tiene que ver con lo que se conoce, con lo que se ha aprendido, con un estado
del conocimiento que sobrepasa a la ignorancia.
El presente epígrafe se sitúa en el proceso de educación, en el camino de
conceptualizar a los saberes, y de estos, su clasificación, con la finalidad de abordar
el tema de los saberes interdisciplinarios que vinculen a la educación y a la salud.
La educación es un proceso, un desafío, un ámbito para el desarrollo humano,
específicamente se alude en este caso a su carácter permanente y de respuesta
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actualizada ante las demandas que la sociedad plantea. Así se coincide con Sánchez
y Araya (2012, p. 36) quienes lo caracterizan como:
(…) un proceso permanente y dinámico que le brinda al individuo herramientas para su
realización personal, que a la vez busca el perfeccionamiento de éste, al inculcarle reglas,
comportamientos, conocimientos, contenidos, valores, entre otros, acorde al entorno en el
cual se encuentra inmerso.
En el contexto, entorno, donde se desarrolla cada educando, puede distinguirse
el establecimiento de una interrelación de “toma y daca”, donde el contexto sustenta
al educando, pero a su vez, el educando sustenta al contexto, y esto se da a través
de los saberes.
Esquema 2 – Relaciones entre el contexto y el educando
NUTRECONTEXTO EDUCANDO
Fuente: elaboración propia.
Dicho proceso integra conocimientos llevados a contenidos según los fines de
la educación en cada país. Conocimientos, contenidos, comportamientos, valores se
incorporan a los saberes necesarios para la formación de las generaciones.
La primera idea respecto a saberes, tiene que ver con el pensamiento freireriano
cuando reconoce que la sabiduría parte de la ignorancia, y que no hay ignorantes
absolutos, pues al decir de Silva (2020, p. 72):
La dicotomía saber – ignorar se manifiesta de forma relativa, pues cada hombre sabe algo
que aprendió de su antepasado y que enseñará a su descendiente. Por tanto, la educación
se presenta como una búsqueda persistente del hombre por sí mismo.
La escuela por su parte busca socializar mediante el conocimiento, a través
del proceso de enseñanza aprendizaje, esa tarea socializadora precisa saberes que
los estudiantes aprenden. En ese aprendizaje, al decir de Ollivier (2017, p. 178):
(…) los ámbitos de la sociedad y los ámbitos de la persona se encuentran interconectados, por
lo que es función social de la escuela revalorar los contenidos de los procesos de enseñanza
aprendizaje y ofrecer interrelacionado, lo económico, lo social, lo político, lo cultural, lo
productivo – tecnológico, agropecuario, la salud, en relación con el desarrollo del lenguaje,
las habilidades del pensamiento, socio – afectivas, corporales, la eticidad.
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Cuando se habla de aprendizaje, la representación mental rápida que acude a
la mente es que se refiere a saber acerca de algo, y se es capaz de decir algo de eso
aprendido.
Pero realmente, ese decir, puede ser memorizado, (vieja tradición), pero
también puede ser comprendido, interpretado, expresado con palabras propias que
demuestren ese aprendizaje. Es lo que al decir de Ollivier (2017, p. 177) “(…) el
educando será capaz de otorgarle algún significado al incorporarlo a su esquema
de conocimientos”. Es precisamente ahí donde radica una de las principales ideas
a sugerir en cuanto a los criterios de selección de saberes para esta educación de
la contemporaneidad: el grado de significatividad que tenga para el estudiantado,
aquello que se les va a entregar como saber necesario en su preparación para la
vida.
En el caso de cómo aplicar el saber sobre la salud a la realidad, resulta
conveniente tener en cuenta García (2012, p. 90) quien reconoce que se requiere
“(…) aplicar tres conceptos fundamentales: conciencia, cultura y sensibilización”.
Son acciones que bien pueden quedar concebidas en una estrategia de actuación
docente a la hora de desarrollar el proceso de enseñanza - aprendizaje que incluya
saberes interdisciplinarios donde los saberes sobre salud como concepto general
estén integrados a los saberes de la educación actual.
De hecho ya se dan muchos pasos en los diferentes niveles de enseñanza en
algunos países donde se educa para prevenir, por ejemplo, contra enfermedades
contagiosas como la tuberculosis, o contra el síndrome de inmunodeficiencia
adquirida (VIH), pero también se educa por una educación ambiental que favorezca
el entendimiento de evitar los daños a la naturaleza, a la vida en general, por medio
de un llamado a atender a males del presente entre los que puede mencionarse
a la contaminación ambiental; o lo que también más comúnmente se distingue
en los diferentes niveles de enseñanza: la educación física, la práctica masiva de
deportes, como forma de alcanzar salud.
En todos los casos se trata de desarrollar un proceso educativo que contiene a
la concienciación, donde están presentes la comprensión y la interpretación de cada
acción, la comunicación de una cultura, en sentido amplio, a modo de conocimientos
y sensibilización para una actuación más comprometida y responsable.
Todos estos ejemplos se dan en las instituciones educativas de diversas
formas, unos bajo el nombre de estrategias curriculares, otros sobre la forma de
la transversalidad, también bajo los preceptos de la formación integral, quizás
otros, como parte de la educación para la salud. Muchas denominaciones pueden
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recibir acorde a la forma de organización y fines con que se decida en cada espacio
educativo, lo que sí queda claro es que se van dando pasos hacia una educación
donde la búsqueda de la salud está presente y se desarrolla desde la idea de
relaciones interdisciplinares, que van sentando las bases en los docentes para un
proceso sistemático, como una filosofía de trabajo, que aporta un pensamiento
interdisciplinar, colaborativo para alcanzar la articulación de los contenidos, como
saberes integrados.
Conclusiones
La comunicación ha tenido en cuenta una mirada reflexiva, relacional, amplia,
hacia los conceptos de educación y salud, que deja ver cómo desde el análisis
gramatical puede inferirse una relación que avanza hacia su comprensión social,
como procesos, satisfactores de necesidades, desafíos, que precisan de soluciones
con saberes integrados de forma organizada, bajo el pensamiento mayor de preparar
a las generaciones para la vida, para toda la vida.
En esa idea que se ha esbozado de priorizar la educación para alcanzar
salud como aspectos del desarrollo humano sostenible, se precisa de unos saberes
interdisciplinares, presentados con significatividad y desde las propias vivencias
del estudiantado para que puedan ser aplicados en su vida cotidiana.
Finalmente es válido el pensamiento estratégico de una relación entre
educación y salud desde las acciones de concienciación, unos saberes integrados
bajo el concepto amplio de cultura en función de la realidad contextual – temporal,
todo, acompañado de un bien organizado proceso de sensibilización.
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Educação ético-estética em tempos de pandemia: conexões entre arteterapia e
bem-estar humano
Ethical-aesthetic education in times of pandemic: connections between art therapy and human
well-being
Educación ético-estética en tiempos de pandemia: conexiones entre arteterapia y bienestar
humano
Patrícia Carlesso Marcelino*
Franciele Silvestre Gallina**
Alex Sander da Silva***
Resumo
O artigo tem como objetivo reetir acerca da noção de bem-estar humano, que evolui para a promoção da
saúde e a adequação da vida social, o que necessariamente sugere uma mudança epistemológica. Propõe a
arteterapia, no âmbito da educação ético-estética e das práticas integrativas e complementares em saúde, como
possível referencial teórico e prático para a promoção do bem-estar das pessoas em tempos pandêmicos, o qual
expõe fraturas sociais marcadas pela desigualdade econômica, por práticas excludentes, racistas e preconcei-
tuosas no trato com a vida humana. Assim, em um primeiro momento, contempla-se a temática da educação
ético-estética em prol da saúde, para que se possa pensar o ser humano em sua integralidade. A seguir, com
o intuito de valorizar tais reexões, acrescenta-se ao tema um diálogo entre a arte e o cuidado humanizado,
apontando a arteterapia como recurso expressivo terapêutico no contexto das práticas integrativas e comple-
mentares em saúde.
Palavras-chave: educação ético-estética; saúde; arteterapia; práticas integrativas e complementares.
*
Doutora e mestra em Educação pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Graduada em Educação Física – Licen-
ciatura Plena (UPF). Especialista em Docência na Saúde (UFRGS) e especialista em Atividade Física e Qualidade de
Vida (UPF). Docente universitária desde 2007, atua nas áreas de Educação, Estética e Cosmética, Saúde e Educação
Física. Coordenou os cursos de graduação em Educação Física Licenciatura e Bacharelado na Universidade Luterana
do Brasil (Ulbra), Campus Carazinho, RS, de 2011 a 2019. É terapeuta oral e personal wellness com ênfase em prá-
ticas integrativas e complementares em saúde (PICs), bem-estar, aromaterapia, terapias andinas e no atendimento
especializado para pacientes oncológicos hospitalizados. Membro dos grupos de pesquisa GEPES, NEPEFE e Teoria e
Prática Pedagógica (UPF). Orcid: http://orcid.org/0000-0002-9084-1182. E-mail: patriciacarlessowellness@gmail.com
** Doutora e mestra em Educação pelo PPGEdu da Universidade de Passo Fundo (UPF). Licenciada em Educação Artís-
tica, Habilitação em Artes Plásticas e Docente do curso de especialização em Arteterapia (UPF). Pesquisadora sobre
Educação Ética-Estética em diversos espaços de sociabilidade. Orcid: http://orcid.org/0000-0002-2528-4674. E-mail:
franciele_82@yahoo.com.br
*** Pós-doutor pelo PNPD/Capes no PPGE/Unimep no núcleo de História e Filosoa da Educação. Doutor em Educação
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande de Sul e mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa
Catarina. Graduado em Filosoa pela Universidade do Sul de Santa Catarina. Editor da Revista Criar Educação e pro-
fessor do Programa Pós-Graduação em Educação pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (PPGE/Unesc). Orcid:
https://orcid.org/0000-0002-0945-9075. E-mail: alexsanders@unesc.net
Recebido em: 06/04/2021 – Aprovado em: 31/08/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i2.12453
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Abstract
The article aims to reect about the notion of human welfare that evolves to the promotion of health and the
adequacy of social life, which necessarily suggests an epistemological change. It proposes art therapy, in the
scope of ethical-aesthetic education and integrative and complementary health practices, as a possible theore-
tical and practical reference for the promotion of peoples well-being in pandemic times, which exposes social
fractures marked by economic inequality, by exclusionary, racist and prejudiced practices in dealing with human
life. Thus, in a rst moment, the theme of ethical-ethical education in favor of health is contemplated, so that the
human being can be thought of in its entirety. Next, in order to enhance such reections, we add to the theme a
dialogue between art and humanized care, pointing to Art Therapy as an expressive therapeutic resource in the
context of Integrative and Complementary Health Practices.
Keywords: ethical-aesthetic education; health; art therapy; integrative and complementary practices.
Resumen
El artículo pretende reexionar sobre la noción de bienestar humano que evoluciona hacia la promoción de la
salud y la adecuación de la vida social, lo que sugiere necesariamente un cambio epistemológico. Propone la
arteterapia, dentro de la educación ético-estética y de las prácticas de salud integradoras y complementarias,
como una posible referencia teórica y práctica para la promoción del bienestar de las personas en tiempos de
pandemia, que expone las fracturas sociales marcadas por la desigualdad económica, por las prácticas exclu-
yentes, racistas y prejuiciosas en el tratamiento de la vida humana. Así, en un primer momento, se contempla
el tema de la educación ético-ética a favor de la salud, para poder pensar en el ser humano en su totalidad. A
continuación, para potenciar dichas reexiones, añadimos al tema un diálogo entre el arte y los cuidados huma-
nizados, apuntando a la arteterapia como recurso terapéutico expresivo en el contexto de las Prácticas de Salud
Integradoras y Complementarias.
Palabras clave: educación ético-estética; salud; arteterapia; prácticas integradoras y complementarias.
Palavras iniciais
Poucos acontecimentos históricos podem ser comparados à situação da pande-
mia do novo coronavírus (Covid-19)1, pelo menos na escala das últimas décadas, e
que não deixa de ser uma certa tragédia, que agora se afigura como um grandioso
teste para toda a humanidade. Para Butler (2020), o vírus por si só não discrimina,
mas nós, humanos, certamente o fazemos, moldados e movidos como somos pelos
poderes casados do nacionalismo, do racismo, da xenofobia e do capitalismo. Nesse
sentido, a autora afirma que parece provável que passaremos a ver, no próximo
ano, um cenário doloroso no qual algumas criaturas humanas afirmam seu direito
de viver ao custo de outras, reinscrevendo a distinção espúria entre vidas passíveis
e não passíveis de luto, isto é, entre aqueles que devem ser protegidos contra a mor-
te a qualquer custo, e aqueles cujas vidas são consideradas não valerem o bastante
para serem salvaguardadas contra a doença e a morte.
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Sobre esse contexto, Santos (2020, p. 32) aponta que as pandemias mostram,
de maneira cruel, como o capitalismo neoliberal incapacitou o Estado para respon-
der às emergências, no entanto, é necessário que se faça uma nova articulação,
uma espécie de viragem epistemológica, cultural e ideológica, capaz de sustentar
as soluções políticas, econômicas e sociais que garantam a continuidade da vida
humana digna no planeta. Essa mudança, segundo Santos (2020), tem múltiplas
implicações: a primeira consiste em criar um novo senso comum, a ideia simples
e evidente de que, sobretudo, nos últimos quarenta anos, vivemos em quarentena
política, cultural e ideológica de um capitalismo fechado sobre si próprio e a das
discriminações raciais e sexuais sem as quais ele não pode subsistir. O autor diz
que a quarentena provocada pela pandemia é, afinal, uma quarentena dentro de
outra quarentena, somente superaremos a quarentena do capitalismo, quando for-
mos capazes de imaginar o planeta como a nossa casa comum, e a Natureza como a
nossa mãe originária, a quem devemos amor e respeito. Ela não nos pertence. Nós
é que lhe pertencemos.
Com base nessas premissas, constituiu-se um estudo qualitativo, caracteri-
zado como bibliográfico, ancorado no método dedutivo-analítico, com o objetivo
de refletir acerca da noção de bem-estar humano, que evolui para a promoção da
saúde e a adequação da vida social, o que, necessariamente, sugere uma mudança
epistemológica. Para realizar tal feito, teceu-se um olhar para a humanização do
cuidado e para a concepção de corporeidade2 em seu sentido amplo. Fez-se, nas re-
flexões que se seguem, uma tentativa de rompimento com uma visão mecanicista,
instrumentalista, que, muitas vezes, concebe a pessoa de maneira fragmentada.
Assim, seu fio condutor considera o ser humano de maneira multidimensional,
aproximando as polaridades que o constituem, direcionando a atenção para a rela-
ção entre os processos artísticos, expressivos e terapêuticos e as práticas integra-
tivas e complementares (PICs). Sua proposição é unir o sensível-inteligível que o
pensamento técnico-instrumental separou, de modo a ser o sujeito capaz de agir
no mundo, por meio de um sistema de observação apto a contemplar a inteireza da
vida.
Nessa perspectiva de integralidade, trata-se a formação humana pelo viés de
uma ótica trinitária: educação ético-estética, saúde e arte, explorando referências
que possibilitem pensar a educação e o significado de formar gerações num contex-
to social, marcado por traços pós-metafísicos de pensamento, entrelaçados a aspec-
tos metafísicos da formação humana. Tal configuração parece instaurar uma crise
de sentido existencial, quando sujeitos, educados a partir de uma concepção pura-
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mente materialista, no sentido meramente instrumental do termo, olhem para a
saúde, somente quando essa estiver atingida em sua materialidade e configurada
como doença. O desafio se dá em romper com essa tradição e lógica, uma vez que
não fomos incentivados a prestar atenção nas mensagens que esse corpo emitiu por
meio da psique e do espírito.
Assim, da trama entre as leituras feitas, emergiram reflexões inquietantes,
que foram costuradas com fios tênues e que se apresentam em forma de discussão.
Nesse sentido, o presente ensaio busca refletir sobre esses aspectos com o intuito de
compreender as práticas integrativas e complementares em saúde, na intersecção
entre educação, saúde e arte. No que tange ao seu desenvolvimento, num primeiro
momento, apresentamos a temática da educação ético-estética em prol da saúde,
visando realizar a intersecção desses dois campos, para que se possa pensar o ser
humano em sua integralidade. Num segundo momento, com o intuito de valorizar
tais reflexões, propomos uma articulação e um diálogo entre a temática sinalizada,
a arte e o cuidado humanizado. Desse modo, aponta-se a arteterapia como recurso
expressivo terapêutico no contexto das PICs, especialmente para as futuras ações
pós-pandemia.
Educação ético-estética na saúde: o ser humano em sua integralidade
A complexidade da vida humana e das relações sociais exige que, cada vez
mais, os profissionais da educação e da saúde se apropriem de conhecimentos téc-
nicos e operacionais, mas não dissociados da ética, da estética e do cuidado. Nessa
direção, as políticas de formação em saúde no Brasil vêm passando por profun-
das transformações e, no bojo desse movimento, pode-se apontar uma mudança de
olhar para a constituição dos sujeitos em suas múltiplas dimensões.
Um destaque se pode fazer, de acordo com os estudos, as pesquisas e as ações
desenvolvidas através do Núcleo de Educação e Produção Pedagógica em Saúde
(EducaSaúde), coordenado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pelo
Sistema Único de Saúde (SUS). Esse núcleo está ancorado pelo projeto nacional
para a capacitação de profissionais especialistas na saúde, cujas mudanças são
resultado da reforma sanitária que se consolidou a partir das duas últimas décadas
do século XX, período no qual foram incluídos na Constituição nacional os princí-
pios e as diretrizes do SUS, bem como o rompimento com a racionalidade higienista
e medicalizadora do processo de formação dos trabalhadores dessa área, cunhado
pela via bio-reducionista e hipertecnificada. Nessa perspectiva, ainda hoje fazem
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parte nos modelos de assistência e de gestão setorial em saúde, inspirados apenas
nos domínios de saber das ciências biológicas. A partir do SUS, a organização do
setor sanitário passou a reger-se por universalidade do acesso, integralidade da
atenção, descentralização da gestão e participação da população com poder deci-
sório (UFRGS, 2015, p. 45). Embora legítima na descrição dos fatores fisiopatoló-
gicos, tal racionalidade mostra-se incapaz de elucidação dos fatores singulares do
adoecimento, da resposta terapêutica ou da adesão aos tratamentos.
Esses elementos, sem os recursos interpretativos das ciências sociais e huma-
nas, permaneceriam desconhecidos e sem possibilidade de abordagem restabelece-
dora da saúde individual ou coletiva. Ainda na concepção desses estudos, aponta-se
a contemplação de tais campos de saber como forma de atenção integral à saúde,
noção que continua em construção, ensejando conceitos sucedâneos como os de li-
nha de cuidado, apoio matricial, educação permanente, escuta pedagógica, projeto
terapêutico singular, rede de conversação, tecnologias leves, residência integrada
em saúde, entre outros.
De acordo com a UFRGS (2015, p. 25), a noção de educação que nos permite
desdobrar dessa maneira os processos educativos em saúde é, portanto, bem mais
ampla do que a de educação escolar e/ou educação profissional usualmente utiliza-
da. Essa tônica, segundo tais premissas, acontece numa via de mão dupla, em que
a cultura imprime no sujeito processos transformadores, ao mesmo tempo em que
os sujeitos fazem cultura. E, nessa seara, culturas profissionais e institucionais de
educação e saúde se inscrevem de diferentes maneiras no âmbito nacional. Nessa
perspectiva, a educação desdobra-se, então, em processos de ensino e aprendiza-
gem. Ambos os processos compõem nossa apreensão e nosso manejo das linguagens
e dos códigos constitutivos das culturas com as quais se dialoga.
Ensinar e aprender supõe, então, entrar em determinados domínios de significação, e isso
demanda tanto ensinar a ver, quanto (re/des)aprender a ver, com e a partir de determina-
dos sistemas de significação e colocando esses mesmos sistemas à prova – desnaturalizan-
do-os, entendendo-os como constelações de sentidos produzidos num determinado tempo e
num determinado espaço. Nessa direção, é possível dizer que tudo aquilo que ensinamos,
apre(e)ndemos e fazemos, nesse amplo campo da saúde, está ancorado em saberes e práti-
cas parciais e provisórias, que resultam de disputas travadas em diversos âmbitos do social
e da cultura (UFRGS, 2015, p. 27).
Compreender o exposto não é simples, pois exige uma mudança epistemológi-
ca direcionada a uma cosmovisão que integra educação e formação humana, como
auxílio pedagógico à saúde, adotando um movimento de aproximar polaridades,
relacionar parte e todo, enfatizando o processo de socialização e formação dos su-
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jeitos em vários setores da experiência e da atividade humana, e também, segundo
os estudos de Gallina (2017) implica refletir sobre o significado de formar gerações
num contexto social plural e complexo, visto se tratar da inteireza humana para
promoção da saúde individual ou social.
A discussão acerca da educação em contextos de pandemia, de acordo com
Reis (2020, p. 1), não pode ignorar esse cenário de desigualdades socioeconômicas
e raciais. Tampouco a cultura de privilégios – de raça, classe, território – que opera
em benefício de alguns grupos e impede que transformações estruturais, coletivas
e democráticas revertam a lógica de desumanização e de (des)vantagens em curso
no país, seja revestida pelos contornos da meritocracia, seja na desconsideração da
interseccionalidade como ferramenta imprescindível de análise das desigualdades
educacionais. Nesse sentido, o autor reforça que:
A infecção generalizada causada pelo vírus, apesar da gestão da epidemia em diferentes
escalas por parte dos países afetados e do monitoramento global, atingiu continentes e
territórios de modo diferenciado. O coronavírus aprofundou ainda mais as linhas abissais
entre grupos sociais, segmentos marginalizados e aqueles que têm o direito efetivamente
ao isolamento social com dignidade, resguardados em seus domicílios e sem se expor ao
risco alargado da contaminação. Mas não é só isso. A chance dilatada de adoecimento e
morte, os obstáculos interpostos no acesso aos sistemas de saúde – sobrecarregados – e a
intensificação dos riscos recaem, assimetricamente, aos segmentos mais vulnerabilizados
da sociedade brasileira, que têm cor e classe social bem definidas. Populações negras, pe-
riféricas, ribeirinhas, quilombolas, ameríndias, alvos diletos do racismo institucional bra-
sileiro, experimentam acentuada precarização das possibilidades de sobrevivência, devido
ao deliberado abandono a que são relegadas. Precariedades social, laboral e sanitária que,
imbricadas, expõem uma fratura social, exacerbada em territórios onde é latente a difi-
culdade de permanecer em isolamento social. Nesse sentido, a epidemia não tem nada de
democrática (REIS, 2020, p. 2).
Faz-se, então, necessário considerar uma ressignificação da educação, que
também construa saberes e práticas em saúde, a fim de que o sujeito possa se
expressar, perceber-se em sua subjetividade para uma tomada de consciência de
si. Ele também pode pensar e refletir, formulando os seus juízos e valores, porém,
para isso, precisa tomar como objetos tanto o seu corpo quanto a sua mente, tor-
nando-se sensível e inteligível.
Assim, objetiva-se, aqui, estabelecer um diálogo entre a ciência e outras for-
mas de apreensão da realidade na tentativa de superação do racionalismo redu-
cionista, destacando que essa superação não significa desconsiderar o paradigma
anterior, mas, sim, não ficar preso à pretensão de uma única verdade, indo além
dos pensamentos puramente lógicos.
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Numa sociedade em transformação como a nossa, que demonstra a necessida-
de de se investir na educação, para que o ser humano tenha consciência de si, de
seus direitos e deveres e das múltiplas possibilidades de sua participação cidadã,
destaca-se a importância de uma experiência formativa que contemple a pessoa
em sua singularidade, como também no aspecto social, pois se compreende que o
sujeito se constrói, também, na relação com o outro e com o mundo. Daí a importân-
cia da família, da sociedade, da natureza e da cultura na formação de um sujeito
multidimensional.
No momento em que uma criança recém-nascida é colocada nos braços dos
pais, em paralelo com a evolução física no decorrer dos dias, meses e anos seguin-
tes, existe o processo que, embora não tão visível nos tempos iniciais, é absoluta-
mente determinante: o trilho que a levará a tomar o seu lugar no mundo. É essa
procura que leva o bebê de meses a engatinhar, a criança de 3 anos a querer comer
e tomar banho sozinha, o estudante do primeiro ano a soletrar, o pré-adolescente
a formar um grupo de amigos, o adolescente a contestar tudo e todos, o adulto a
questionar-se sobre o sentido de sua existência e o idoso, sobre sua finitude.
O desejo de autonomia é uma das grandes características que nos torna hu-
manos, mas é uma via que se faz em dois sentidos: de nós em direção a quem nos
rodeia, e destes para o nosso interior. Segundo Gallina (2015), quando essa conver-
gência não acontece, pode-se apontar o fenômeno do empobrecimento da experiên-
cia formativa e humana pela redução da capacidade de refletir e de argumentar e,
especialmente, da incapacidade de viver a vida como um acontecimento minima-
mente feliz, o que parece de significativa importância para a educação que se quer
tornar crítica e produtora de uma condição humana mais significativa e saudável.
Essa configuração é apontada por Mühl (2017, p.132), quando diz que a experiência
formativa se torna fundamental para o desenvolvimento do sujeito emancipado,
“enquanto que a não consideração da experiência transforma a educação em um
instrumento de manipulação e de condicionamento que falsifica o próprio sentido
da formação humana”.
Os seres humanos se encontram em abismos de perdas, incapazes de conviver
no amor e na biofilia, segundo Strieder e Girardi (2019, p. 288), insistimos em
permanecer praticamente cegos em termos éticos e ambientais, por negarmos que
o mal-estar na contemporaneidade e os danos causados à antroposfera e à biosfera
são nossas criações. Porém, ainda conforme os autores, mesmo vivendo numa con-
figuração inconsciente de sentires relacionais, que negam a colaboração e o amar.
Somos seres humanos com possibilidades para cons truir reflexões e ações éticas
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conscientes e vivenciar a ternura como sendo nosso ser, vivenciar num conjunto
social dedicado a colocar limites na agressividade, para que esta não se transforme
em violência destruidora.
Sob a luz dos autores citados, somos instigados a dialogar sobre uma formação
renovadora de educação para a saúde, que contemple a produção de subjetivida-
des e intersubjetividades, evidenciando a urgência de um movimento dialético que
possibilite pensar de maneira diferente, o que contemplaria a possibilidade de a
ciência ressignificar-se, acolhendo aspectos até então cunhados no reduto da tera-
pêutica e da espiritualidade. Contudo, não se tem a pretensão de afirmar que tal
situação é necessidade específica do contexto atual. Entende-se o ser humano como
espécie capaz de compreender a sua evolução e reconhecer o poder do pensamento
vinculado à sensibilidade, e isso não é privilégio da contemporaneidade.
No decorrer da história, ciência e religião foram vistas como contraditórias,
porém, como destaca Gallina (2015), a humanidade precisa, urgentemente, de re-
formas epistemológicas, sociais, ecológicas, econômicas, além de uma renovação
espiritual, de modo que a sabedoria milenar, constante nos livros sagrados das
religiões, e o conhecimento da ciência caminhem para um futuro sustentável, no
qual o ser possa compreender o sentido e o significado da vida neste planeta.
Compreende-se também que, inerente ao processo de pensar-se de maneira
diferente da qual se está acostumado, configura-se um cenário de expansão da
consciência, um alargamento até “territórios mentais” inéditos. Isso sinaliza ares
de tarefa difícil, levando em consideração a dualidade entre o universo material e
mental humano que se instaurou na modernidade e que sentimos seus respingos
ainda hoje. Para isso, os campos da educação e da saúde necessitam abrir espaço
para a ampliação da consciência, fazendo interagir áreas do conhecimento hoje
fragmentadas, com métodos capazes de estabelecer uma relação, parte e todo, ca-
pazes de promover autonomia ao sujeito, possibilitando a esse se reconhecer e se
sentir parte do todo e o todo ao mesmo tempo. Nessa direção, Leloup (2019, p.56)
comunica que estarmos em estado saudável “é sinônimo de salvação” e que os cui-
dados do corpo não excluem os cuidados da alma e do espírito humano:
O corpo não pode ser visto somente como um objeto, uma coisa ou uma máquina funcio-
nando com defeito que seria mister “consertar”. Não; o corpo é um corpo “animado”. Não é
um corpo sem alma; um corpo sem alma, não sendo mais “animado”, não merece o nome de
corpo, mas de cadáver. Cuidar do corpo de alguém é prestar atenção ao sopro que o anima.
O terapeuta pode cuidar desse sopro que informa o corpo, uma vez que curar
alguém é fazê-lo respirar, observar suas tensões que impedem a livre-circulação
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do ar (sopro), ou seja, a plena expansão da alma num corpo. De acordo com Leloup
(2019), caberá ao terapeuta a função de “desatar” esses nós da alma, esses obstácu-
los à vida e à inteligência criadora no corpo animado do ser humano. Nessa mesma
direção, Marcelino (2019) aponta a necessidade de educar esse corpo e aprender a
perceber seus sinais de maneira mais consciente; para que isso aconteça, é neces-
sário desenvolver a sensibilidade, o agir e o pensar para a humanização do cuidado,
de maneira mais terna e cuidadosa com corpo. Por isso, precisa-se repensar nossa
forma de ser e de estar no mundo, considerando, para isso, o corpo para além de
seus aspectos puramente materiais.
O corpo é a condição de nossa existência e representa para o ser humano um
meio de comunicação; pelas diversas formas de estratégia textual, em especial nes-
se contexto – o gesto, a arte –, pode-se expressar a subjetividade, as emoções e até a
espiritualidade. Por meio dessa matéria viva que chamamos de “corpo”, é possível,
conforme Gallina (2015), estabelecer uma relação com a sensibilidade, capaz de
revelar ao sujeito sua posição dentro do mundo e de si mesmo. A autora chama
atenção também para a importância em prestar atenção na respiração, no rela-
xamento desse corpo e num direcionamento do sujeito em direção à reflexão sobre
ser e estar no mundo. A atenção ao corpo físico é de suma importância, pois é ele,
também, veículo que tornará possível o acesso para o mais profundo de nosso ser.
Cada passo nesse percurso tem que ser ajustado às necessidades singulares,
porém muitas pessoas chegam à vida adulta sem conhecer algumas informações
básicas a respeito de seu corpo e de sua mente. Sabendo que nosso corpo físico é
dirigido por um complexo de sistemas que se inter-relacionam entre as camadas
mais densas até as mais sutis, precisa-se mantê-lo sadio. Nesse sentido, é muito
importante que se pratiquem atividades em que o corpo e a mente trabalhem jun-
tos, intensificando a comunicação entre o cérebro e o resto do corpo. O autoconheci-
mento começa, também, na percepção e no cuidado com a nossa porção física.
Nesse processo, é preciso reconhecer também que o extermínio do meio am-
biente e a decadência da cultura humana caminham de mãos dadas. Destaca-se,
nesse sentido, a urgência de perceber que nós, seres humanos, somos a nature-
za e que, enquanto não houver esse despertar, hoje desconhecido ou reprimido,
pouco se terá a fazer para conservar o planeta Terra. É evidente que temos um
progresso técnico e científico, porém, sem um progresso ético-estético e ambiental
equivalentes. Ciência, consciência e natureza precisam de um encontro que aponte
esperanças para o ser humano, abrangendo desde a proteção dos mais humildes
organismos até o reconhecimento sublime do espírito humano.
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Uma possibilidade para pensar essa intersecção de ciência, consciência e na-
tureza seria pensá-la na perspectiva de uma educação ético-estética. A educação
ético-estética, se trabalhada em conjunto no processo de uma constituição de vida
saudável, é uma alternativa, pois possibilita que o sujeito busque sua liberdade por
meio da tomada de consciência. Nessa esteira, aponta-se a importância da arte e
sua relação com as práticas integrativas e complementares, que vêm a contribuir
numa mudança de paradigma na área da saúde.
Pensando a relação educação ético-estética em saúde pelo viés da arteterapia
A arteterapia é o uso da arte como base de um processo terapêutico e, de acor-
do com a União Brasileira das Associações de Arteterapia (UBAAT) (2020, p. 2),
propicia resultados em um breve espaço de tempo; visa estimular o crescimento
interior, abrir novos horizontes e ampliar a consciência do indivíduo sobre si e
sobre sua existência; utiliza a expressão simbólica, de forma espontânea, sem se
preocupar com a estética, através de modalidades expressivas como: pintura, mo-
delagem, colagem, desenho, tecelagem, expressão corporal, sons, músicas, criação
de personagens, dentre outras, mas utiliza fundamentalmente as artes visuais.
A palavra “terapeuta” vem do grego “theraphéa”, que significa servir, cuidar e
ajudar. Finimundi (2008, p. 44) cita que o “arteterapeuta” tem o comprometimento
com a arte de ajudar, deve ter conhecimentos básicos sobre arte, psicologia, educação
e estar preparado com o uso das técnicas com as quais pretende trabalhar. O vínculo
de confiança e empatia é fundamental para que o indivíduo se sinta seguro e capaz
de comunicar, mediante imagens, as suas tristezas, dúvidas e ansiedades, muitas
vezes silenciadas pelos limites verbais e pela repressão de seus pensamentos.
O papel do arteterapeuta é auxiliar no entendimento das imagens criadas pelo
indivíduo em ação mental e, através dessa dinâmica, possibilitar a percepção para
que possa ocorrer mudança de comportamento. Segundo a UBAAT (2020, p. 3),
enquanto a arte-educação ensina técnicas de arte, a arteterapia possui a finalidade
de propiciar mudanças psíquicas, assim como a expansão da consciência, a reconci-
liação de conflitos emocionais, o autoconhecimento e o desenvolvimento pessoal. A
arteterapia tem também o objetivo de facilitar a resolução de conflitos interiores e
o desenvolvimento da personalidade.
Há necessidades básicas humanas que diferem de acordo com os padrões físi-
cos e psíquicos dos sujeitos e, também, com as mudanças socioambientais, de modo
que o nível dessas demandas acompanhará a evolução das condições humanas.
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Para tal, é preciso compreender o ser humano, mergulhando na matéria do corpo e
na essência da alma, perceber o ser em sua inteireza, isto é, quando o exterior tem
uma ligação simbiótica com o interior, conforme se viu até o momento. No entanto,
nenhuma discussão sobre essa questão estaria completa sem um olhar para os
conhecimentos teóricos e práticos refletidos de maneira concomitante.
Quanto ao sentido contemporâneo da palavra “terapia”, Paín e Jarreau (2001,
p. 10) destacam que podemos verificar que ele evita o sufixo “psico”, como se a
arte tivesse, por ela mesma, propriedades curativas. De nossa parte, considera-
mos que a dimensão “terapia” subentende, neste caso, aquela de “psico”, sem o
qual nenhuma modificação duradoura do comportamento é considerada. O incluir
implicitamente é também expandir o campo da prática, até então ocupado, quase
exclusivamente, pela ação psiquiátrica.
A dinâmica da sessão está marcada por consignas e pelas condições materiais.
A primeira corresponde ao livre-arbítrio e as outras às da necessidade. Paín (2021,
p. 69) ressalta que, mesmo que a consigna for “façam o que quiserem”, a dificuldade
em gozar dessa liberdade será rapidamente vivida como uma limitação e ainda
mais conflituosa, porque, no ateliê, não há obrigação em querer alguma coisa, nem
mesmo a cura. Os próprios materiais, ao impor suas leis e qualidades, não são
neutros. Cada uma de suas propriedades torna-se altamente significativa para o
sujeito, na medida em que este percebe que elas o ajudam ou o limitam às suas
tentativas de expressão.
O processo terapêutico consiste em identificar os obstáculos encontrados nas
diferentes etapas da criatividade e descobrir seu significado, admitindo que a forma
e o conteúdo são inseparáveis. O ateliê, conforme Paín (2021), pode integrar uma
instituição ou ser ele próprio uma instituição terapêutica. Geralmente, o seu fun-
cionamento é um grupo, o que favorece uma troca particular de olhares e palavras,
de limitações e diferenciações, bem como um exercício contínuo de compreensão do
outro. A presença do terapeuta polariza a afetividade de cada um dos participan-
tes, permitindo, assim, a comunicação e a circulação das emoções. Visto que hoje
em dia a arteterapia é mais uma atividade que uma disciplina institucionalizada,
convém definir quais são os conhecimentos e a cultura necessários para organizar
um ateliê com fins terapêuticos. Eles pertencem a três campos: o da técnica das ati-
vidades plásticas, o da psicologia da representação e da psicanálise e, por último, o
do domínio da arte, de sua significação e de sua história.
O ateliê arteterapêutico não se apresenta como um lugar de aprendizagem,
onde se transmite conhecimento. Seria um erro acreditar que a expressão e os
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meios utilizados para dar forma podem separar-se: a execução de uma obra é um
trabalho de pesquisa cuja ressonância subjetiva é marcada pelos recursos usados
para representá-la. De acordo com Paín (2021, p. 70), o estilo pessoal, que faz res-
saltar as diferenças, facilitando a identificação, é um processo que compreende
tanto a descoberta das possibilidades representativas como a sua prática através
de múltiplas experiências, a fim de que estejam disponíveis para o uso e para as
escolhas sucessivas. Para poder compreender o processo do paciente, para reconhe-
cer os obstáculos que o impedem de criar os efeitos de espaço e luz que imagina,
para definir o gesto ou a cor que falta ao equilíbrio de seu quadro, como um lapsus
linguae, um erro gramatical, é necessário que o coordenador domine as regras mais
gerais da representação figurativa. Essa capacidade, essencialmente técnica, só
pode ser adquirida por uma prática pessoal e orientada.
Vale a pena comparar o processo arteterapêutico com o psicoterapêutico, para
visualizar a importância do uso dos instrumentos artísticos na arteterapia. Para
Paín (2021, p. 71), a psicoterapia também ocorre a um instrumento codificado,
a língua, que ambos, analista e analisando, compartilham; se não houvesse esse
código comum, o psicoterapeuta se veria obrigado a construí-lo previamente com o
paciente e a determinar com ele suas regras de utilização. Nesse caso, o terapeuta
deveria possuir um mínimo de referências sobre a estruturação da linguagem em
geral, ou seja, ele deveria falar pelo menos uma língua. A prática artística não
deve ser direcionada a um “estilo definido”, à “atenção flutuante”, que permite ao
psicoterapeuta estar permeável a diferentes formas de expressão dos pacientes.
Deve ser traduzida pela disponibilidade constante de ver as produções dos sujeitos,
evitando impor soluções que respondam mais às próprias inquietudes artísticas
que àquelas claramente colocadas pela dinâmica criativa do paciente.
Nesse sentido, Paín e Jarreau (2001, p. 11) reforçam que o trabalho de arte-
terapia orienta-se de acordo com várias tendências. As mais próximas da clínica
psicoterápica consideram a atividade plástica como secundária, o efeito terapêutico
sobrevém somente das trocas verbais em torno do conteúdo da obra. A expressão
plástica é, então, utilizada como meio de ascender à comunicação verbal ou como
única maneira de estabelecer uma comunicação. Mesmo que a representação grá-
fica e a modelagem sejam atividades completamente justificáveis em um processo
psicoterápico, elas não nos parecem depender da arteterapia, porque os problemas
à representação simbólica são ignorados nela. O objetivo terapêutico da atividade
artística é, conforme as autoras, justamente tentar tirar o sujeito de seu delírio por
intermédio da lei da matéria. De outro modo, uma tendência privilegia a organi-
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zação do trabalho e o enquadramento que favorecem a estruturação consciente da
representação.
Toda representação artística supõe uma atitude estética e um conjunto de hi-
póteses sobre a função que a construção das imagens e a comunicação simbólica
desempenham na vida humana. Cada estilo compreende uma experiência plástica
que responde aos grandes problemas humanos, apresentados por cada sociedade
de forma distinta, os que permanecem ativos em relação aos indivíduos, e, como
bem destaca Paín (2021, p. 73), a formação do arteterapeuta deve incluir uma re-
flexão sobre as questões estéticas, tanto na história como na arte e no pensamento
atual. A autora também nos chama a atenção, reforçando que a arteterapia não é
uma psicoterapia. O seu paciente não está em busca de um si mesmo, correndo o
risco de ficar preso na superfície do espelho; a busca de sentido do artistant está
orientada para o mundo onde ele criará um objeto capaz de ser visto, de captar
a atenção do outro e de se tornar interessante. Assim como o artistant não é um
artista, posto que definido pela instituição, o arteterapeuta não é um espectador
comum, se pensarmos que ele é testemunha do que ocorre na sua presença, no
momento da criação da obra.
No ateliê, o contexto e o olhar são suficientes para realizar o trabalho tera-
pêutico, deixando o paciente encontrar-se, esquecer-se e surpreender-se no encanto
que só ele pode encontrar na ausência de uma expectativa ansiosa. Em suma, a
arteterapia é uma psicoterapia, segundo Paín (2021), porque analisa presencial-
mente os obstáculos que se interpõem à capacidade de tornar consciente aquilo que
está no nosso inconsciente de modo mais original e anônimo, aquilo que se encontra
distante dos hábitos e dos símbolos instituídos. Ela tenta harmonizar o sujeito com
o mundo, sem afastá-lo daquilo que as instituições lhe impõem.
Na arteterapia, trabalha-se a percepção, a coordenação e a estimulação, que
são meios seguros e propícios para o indivíduo atingir níveis de compreensão e cog-
nição, que resultarão gradativamente na sua independência psíquica e emocional,
auxiliando na estimulação da expressão, do desenvolvimento da criatividade, fa-
vorecendo o autoconhecimento, a percepção, o aumento da autoestima, a liberação
das emoções, o entendimento do problema e a transformação pessoal. O processo
de arteterapia, segundo Finimundi (2008), é, geralmente, dividido em três etapas:
relaxamento (sensibilização), criação (processo de construção) e reflexão (entendi-
mento da criação e simbolismo). O objetivo final da arteterapia nunca será o belo,
mas a sensibilidade, a percepção de si mesmo.
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Por essa via, as PICs trazem a oportunidade para que esses seres percebam
suas dificuldades, suas patologias, e para que descubram que podem expressar
seus medos e conhecer novas possibilidades em saúde por meio de intervenções não
medicamentosas. Destaca-se, nesse sentido, que saúde é temática para todas as
pessoas que queiram refletir sobre a vida e o bem-estar humano, não somente para
os profissionais da área. Assim, cabe destacar que ser-estar bem ou mal depende da
singularidade de cada sujeito. Barelli (2019, p. 89) esclarece essa definição:
Trata-se de um conceito subjetivo, que depende do que cada um considera “sentir-se bem”,
ou “sentir-se mal”, e varia de pessoa para pessoa, sofrendo interferência cultural, religiosa,
do meio em que cada um está inserido e da maneira como nos relacionamos com o mundo.
Além disso, destaca que saúde e doença não são conceitos definitivos, nem opostos. Ambos
se referem à sobrevivência, à qualidade de vida ou à própria produção da vida. Esse concei-
to singular de saúde é definido como “margem de segurança” que significa o poder de cada
pessoa em tolerar e compensar as agressões do meio.
Ao considerar o exposto, relacionado a uma mudança paradigmática na edu-
cação para a saúde, somos motivados a uma aproximação com a arte, levando em
consideração tanto os estudos e as pesquisas acadêmicas como nossas percepções
do cotidiano. Nessa tessitura, compreende-se ser possível potencializar o desenvol-
vimento de processos expressivos e terapêuticos em vários setores da experiência e
da atividade humana, tendo em vista o caráter de valorização da sensibilidade, da
sociabilidade e da formação dos sujeitos como visto até então. Essa interação pode
ser capaz de atar fios que, pouco a pouco, vão tecendo uma rede de inter-relações.
Para costurar essa rede, conta-se com as PICs, que são atividades práticas e sabe-
res relativos ao cuidado e ao processo de saúde-doença que vêm a complementar a
medicina convencional.
Segundo Lima (2019, p. 8), a Organização Mundial da Saúde (OMS), desde
1979, apresenta tal proposta, fazendo essa articulação entre os tratamentos da
medicina tradicional e da complementar, definindo-os como: “tratamentos basea-
dos em crenças ou cultura, que incluem (ou não) utilização de ervas, partes de ani-
mais ou minerais e práticas diversas (yoga, acupuntura, terapias espirituais) não
reconhecidas pela medicina convencional”.
A Política Nacional de Práticas Integra-
tivas e Complementares (PNPIC) no SUS é transversal em suas ações e está presente
em todos os níveis de atenção, prioritariamente na Atenção
Primária à Saúde (APS).
Dentre os seus objetivos, propõe-se a contribuir com o aumento da
resolubilidade do
sistema e a ampliação do acesso às
PICs, garantindo qualidade, eficácia, eficiência e
segurança no uso.
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A importância e a eficácia na realização das PICs vêm sendo confirmadas ao
longo dos anos através de pesquisas científicas reconhecidas nos âmbitos nacional
e internacional. Para Soares et al. (2019, p. 28), desde a publicação da primeira
portaria em 2006, que ofertou serviços e produtos da medicina tradicional chine-
sa/acupuntura, homeopatia, plantas medicinais e fitoterapia, termalismo social/
crenoterapia e medicina antroposófica, bem como em 2017 e 2018, quando foram
adicionadas portarias contemplando novas práticas, dentre elas, arteterapia, ayur-
veda, biodança, dança circular, meditação, musicoterapia, naturopatia, osteopatia,
quiropraxia, reflexoterapia, reiki, shantala, terapia comunitária integrativa, yoga,
aromaterapia, apiterapia, bioenergética, constelação familiar, cromoterapia, geote-
rapia, hipnoterapia, imposição de mãos, ozonioterapia, terapia de florais. Demons-
tra-se a potência que essas práticas envolvem através de tecnologias seguras e
eficazes, o que, para os autores, configura-se numa abordagem holística com ênfase
na escuta acolhedora e no cuidado que visam estimular, por meio de mecanismos
naturais, a promoção da saúde.
Cabe mencionar também, nesse cenário, a Política Nacional de Saúde Mental
do SUS atual, que, segundo Valladares-Torres (2016, p. 15), visa consolidar o aten-
dimento aberto e de base comunitária, estruturado em variados serviços e equipa-
mentos de cuidados em saúde. Na perspectiva da autora, a nova política em saúde
mental, funcionando em rede integrada, fortalecida pela ampliação da capacidade
resolutiva com base nos territórios, tem gerado melhoria na qualidade de vida dos
usuários do serviço e dos trabalhadores.
Segundo os dados obtidos através do relatório de monitoramento das práticas
integrativas e complementares em saúde nos sistemas de informação em saúde
(BRASIL, 2020b, p. 11), o resultado da ampliação das PICs na APS é fruto do gran-
de esforço de profissionais da rede de saúde, juntamente à gestão, para a disponi-
bilização e a estruturação da oferta. O fortalecimento das PICs institucionalizadas
pela PNPIC no SUS é essencial para sua consolidação. A possibilidade de registro
das PICs de forma discriminada é um fator diferencial para reconhecer as práticas
que têm sido ofertadas à população e estabelecer indicadores para mensurar seu
impacto sobre a saúde e a potência de seu caráter complementar em contribuição
para a resolutividade da APS, subsidiando assim a tomada de decisões para o pla-
nejamento em saúde.
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Dados do ano de 2018, sugere, que as PICs estiveram presentes em 16.007 serviços de
saúde do SUS, sendo 14.508 (90%) da Atenção Primária à Saúde (APS), distribuídos em
4.159 municípios (74%) - APS e média complexidade – e em todas as capitais (100%). Fo-
ram ofertados 989.704 atendimentos individuais, 85.518 atividades coletivas com 665.853
participantes e 357.155 procedimentos em PICs. Já parciais para o ano de 2019, as PICs
estiveram presentes em 17.335 serviços de saúde do SUS, sendo 15.603 (90%) da Atenção
Primária de à Saúde (APS), distribuídos em 4.296 municípios (77%) – APS e média e alta
complexidade – e em todas as capitais (100%). Foram ofertados 693.650 atendimentos in-
dividuais, 104.531 atividades coletivas com 942.970 participantes e 628.239 procedimentos
em PICs. De acordo com os dados parciais obtidos para o ano de 2019, as PICs foram ofer-
tadas
em 17.335 serviços da Rede de Atenção à Saúde (RAS) distribuídos em 4.297 municípios
(77%)
, e em todas as capitais (100%). Houve um aumento de 16% (2.860) no quantitativo
de serviços, comparando com 2017. Em 2019, as atividades coletivas somaram 104.531
registros com aumento de 314% comparado aos números de 2017 (BRASIL, 2020b,
p. 12).
Porém, chama-se a atenção para o fato de que, embora a procura e a oferta das
PICs tenham aumentado, isso não garantiu, segundo Silva et al. (2020, p. 20), que
elas conseguissem conquistar espaço em pautas prioritárias da política de saúde
brasileira. Nesse sentido, tornam-se importantes as ações governamentais capazes
de produzir impacto nas práticas sociais, como também, cada vez mais, reflexões
acerca dessas atividades.
Com o intuito de valorizar tais reflexões, articulando um diálogo entre a arte
e o cuidado humanizado, aponta-se a arteterapia como prática a ser explanada.
Segundo Gonçalves, Ormezzano e Tondo (2016, p. 11), a arteterapia permite tra-
balhar em diversas realidades e com diferentes pessoas, quando aplicada pelos en-
volvidos no processo de cuidar-se e cuidar do outro. Inscreve-se entre os processos
terapêuticos de abordagem holística, tendência cada vez mais presente em escolas,
centros de atenção psicossocial, empresas, presídios, hospitais e outras organiza-
ções. Nesse sentido, enfatiza-se que todo processo terapêutico é um processo que
envolve a arte de escutar afetivamente e com equanimidade.
Destaca-se, assim, que arte, dentre tantas definições e usando-se de simplis-
mo, pode se referir a processos criativos com finalidade de apreciação estética, ou
referir-se ao conjunto de obras de um país, povo ou época, resultante da habilidade,
da imaginação e da invenção do ser humano. Terapia, por sua vez, refere-se ao meio
ou ao método usado para tratar determinada doença ou estado patológico, ou seja,
indica um tratamento, uma terapêutica. Na congruência dos dois termos, enten-
de-se arteterapia como processo expressivo terapêutico que se utiliza de recursos
artísticos para o autoconhecimento e a promoção do bem-estar.
Dados da UBAAT (2020, p. 3) citam que Jung foi o primeiro a utilizar a expressão
artística em consultório. Para ele, a simbolização do inconsciente individual e do cole-
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tivo ocorre na arte. Na década de 1920, recorreu à linguagem expressiva como forma
de tratamento e, para tanto, pedia aos clientes que fizessem desenhos livres, imagens
de sentimentos, de sonhos, de situações conflituosas ou outras, e, segundo ele:
Os pensamentos e ideias esquecidos não deixaram de existir. Apesar de não poderem se
reproduzir à vontade, estão presentes num estado subliminar – para além do limiar da
memória – de onde podem tornar a surgir espontaneamente a qualquer momento, algumas
vezes anos depois de um esquecimento aparentemente total. Refiro-me aqui a coisas que
vimos e ouvimos conscientemente e que em medida esquecemos. Mas todos nós vemos,
ouvimos, cheiramos e provamos muitas coisas sem notá-las na ocasião, ou porque a nossa
atenção se desviou ou porque, para os nossos sentidos, o estímulo foi demasiadamente fraco
para deixar uma impressão consciente. O inconsciente, no entanto, tomou nota de tudo,
e essas percepções sensoriais subliminares ocupam importante lugar no nosso cotidiano.
Sem percebermos, influenciam a maneira segundo a qual vamos reagir a pessoas e fatos
(JUNG, 2019, p. 37).
Jung priorizava, de acordo com a UBAAT (2020, p. 3), a expressão artística e
a verbal como componentes de cura, compreendendo-se essa terapêutica como um
modo de trabalhar, utilizando a linguagem artística como base da comunicação.
Sua essência é na criação estética e na elaboração artística em prol da saúde. Para
isso, utiliza as diferentes formas de linguagem, plástica, sonora, dramática, corpo-
ral e literária, envolvendo técnicas de desenho, pintura, modelagem, construções,
sonorização, musicalização, dança e poesia.
Zanin e Gallina (2017, p. 155) falam sobre a arte como terapêutica, destacando
que essa consiste, na atualidade, em uma importante ferramenta para auxiliar na
amenização de diversas problemáticas existentes em nossa sociedade e afirmam
que seu vasto leque de técnicas e instrumentais viabiliza a possibilidade e a con-
cretude de um trabalho diferenciado e, consequentemente, atrativo aos sujeitos,
superando uma carência sentida e vivenciada nos dias atuais.
Congruente com esse pensamento, Dittrich (2018, p. 8) afirma que, por meio
da criatividade na arte, o ser humano toma ciência de seu espírito e sua natureza,
expressa sua maneira de ser no mundo, o que lhe possibilita construir o sentido
existencial. Trata-se de viver o momento criativo, a experiência vivenciada, sem
focar num produto final que seja validado pela esfera do social.
Conforme a intensidade e o grau de percepção da experiência criativa, ela leva ao encontro
do sujeito consigo mesmo e com o outro, ao desenvolvimento da fantasia e do imaginário,
a viver momentos de ressignificação e de percepção mais intensa e apurada, momentos de
autoconhecimento e reconhecimento do outro. Enfim, são momentos criativos, intensos e
significativos, de vivência plena do aqui/agora, integrando intuição, ação, pensamento e
sentimento em processo de fruição, ou seja, o sentir/pensar/agir/criar de maneira integrada
e fluída (MORAES, 2019/2020, p. 84).
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Possibilitar aos sujeitos uma ontologia e uma epistemologia que harmonizem
os contrários pode promover a compreensão do sentido de realidade dos sujeitos
em seu trajeto antropológico existencial2, a partir da possibilidade de conjunção
entre educação e estética, onde se abre tempo-espaço para a expressão daquilo que
é reprimido pela lógica instrumental.
Desse modo, Silva (2016, p. 39) destaca que podemos acessar as formas con-
temporâneas da pluralidade conceitual e da racionalidade das obras de arte e só
um modo de vida plural e complexo criaria a força expressiva, que se deslocaria
como força vivificadora da educação. Para isso, a educação precisa voltar-se para si
mesma, ao mesmo passo em que se abre na direção do “outro”.
A beleza ou o seu sentimento origina-se nos domínios do sensível, esse vasto
reino sobre o qual se assenta a existência de todos nós, humanos, reino, contudo,
desprezado e até negado pela forma reducionista de atuação da razão, segundo
os preceitos do conhecimento moderno. Para Duarte Jr. (2006, p. 54), o inteligí-
vel e o sensível vieram, pois, sendo progressivamente apartados de si mesmos,
considerados setores incomunicáveis da vida, com toda a ênfase recaindo sobre os
modos lógico-conceituais de se conceberem as significações. No entanto, em larga
medida, a nossa atuação cotidiana se dá com base nos saberes sensíveis dos quais
se dispõem, na maioria das vezes, sem nos darmos conta de sua importância e sua
utilidade. Movemo-nos, segundo o autor, entre as qualidades do mundo, constituí-
das por cores, odores, gostos e formas, interpretando-as e delas nos valendo para
as ações, ainda que não cheguemos a pensar sobre isso, mas que por meio da arte
podem ser expressos.
Nesse sentido, Moraes (2019/2020, p. 93) reforça que “a criatividade, como
vivência de um processo fenomenológico transdisciplinar é, portanto, fruto de uma
tessitura complexa, relacional, auto e coorganizadora, emergente e transcendente,
tecida nos interstícios das vivências de um ser sensível-cultural e espiritual, cons-
ciente-inconsciente”; nessas tramas dos saberes e na pluralidade de percepções e
significados emergentes, a partir de uma dinâmica complexa que acontece entre os
diferentes níveis de materialidade do objeto e os diferentes níveis de percepção do
sujeito, dá-se também a compreensão do existir.
Segundo essas premissas, não apenas os aspectos cognitivo-emocionais, mas
também os pensamentos simbólico, mítico, mágico, intuitivo, bem como a dimensão
espiritual, são importantes para o processo de ação e de atuação nas PICs, por isso
essa lógica de saber contempla tantas outras atividades promotoras de bem-estar,
geradoras de saúde. Nesse sentido, todas essas dimensões se manifestam no ato
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criativo e curativo e se revelam a partir de uma alquimia processada também na
zona do inconsciente coletivo, do arquetípico, do imaginário, dos insights que aflo-
ram e da consciência que se renova.
Um grande desafio que se apresenta, com base nessas reflexões, será propor
um novo olhar que contemple o cuidado humanizado, realizando atividades pla-
nejadas e organizadas de acordo com as pessoas que serão atendidas, respeitando
suas características singulares e a origem de seus contextos, bem como oferecer um
espaço físico harmonioso, arejado, limpo e adequado para os atendimentos, estando
os terapeutas abertos à escuta dos sujeitos e, principalmente, às significações que
eles próprios atribuem ao processo expressivo.
Marcelino (2019) reforça-nos os aspectos supracitados e acrescenta que, na ar-
ticulação arte e corpo, pode-se ter a oportunidade de propor e de usar ferramentas
como a humanização, a sensibilidade, a ética, a estética, dentre outras, que pode-
rão servir de dispositivos libertadores dos mecanismos de imposição e de controle
corporal, social, educacional e cultural. Acredita-se que uma vida mais sensível,
provida de ternura por si e pelo outro, ofereça melhor qualidade ao viver, sendo im-
prescindível, também, enfatizar a importância de sempre seguir pelo viés de uma
conduta ética e profissional em todos os contextos, somando-se a isso a necessidade
de fazer do processo de formação a contemplação e a atuação do viver saudável.
Assim sendo, os processos artístico-terapêuticos e suas interfaces com as PICs
podem auxiliar, sem a pretensão de substituir a medicina convencional, possibili-
tando o relaxamento, o alívio de dores e tensões, uma vez que as pessoas que pas-
sam por esse processo podem expressar suas angústias e ansiedades, contar suas
histórias de maneira simbólica e significativa, fortalecendo laços intersubjetivos e
sociais, reduzindo, assim, o uso de medicamentos e suas reações adversas, melho-
rando, por conseguinte, o bem-estar dos atendidos.
Considerações nais
As reflexões suscitadas e articuladas às teorias aqui propostas apontam na
direção de que o bem-estar e o bem-viver são veículos promotores de saúde e possi-
bilitadores de melhor adequação social. Porém, para que tal estado seja alcançado,
os seres humanos necessitam, dentre tantos outros aspectos subjetivos, que não
puderam ser contemplados nessa reflexão, conhecer-se e atingirem autonomia.
Nessa direção, afirma-se a necessidade de uma ruptura com um objetivismo e ra-
cionalismo que, ao longo dos tempos, sustentou a ideia de que o sujeito não é parte
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potencial no processo de aquisição de conhecimento, bem como com um subjetivis-
mo cunhado na perspectiva de que o meio não contribui para fecundar significados.
O advento da saúde, pensado a partir do cuidado humanizado e de um olhar
que contemple os sujeitos em sua multidimensionalidade, corpo físico-psíquico-es-
piritual-socioambiental, parece convergir com o contexto plural e complexo no qual
se vive atualmente. Assim, destaca-se a importância de se incentivar e reconhecer
ações com premissas contempladoras de uma razão-sensível, como é o caso das
PICs. Desse modo, o exercício prático não pode ser pensado e desvinculado da teo-
ria, ambos, dimensões articuladas que podem criar um movimento de aprendiza-
gem, autoconhecimento, transformação.
Da experiência dialógico-reflexiva, ressalta-se também a arte, recurso expres-
sivo-terapêutico, como instrumento de grande valor, para que os conteúdos do in-
consciente encontrem terreno fértil e acolhedor na congruência de uma tomada de
consciência capaz de conduzir o humano em sua trajetória existencial, destacando
que a eficácia dessas atividades depende em grande parte de uma ótima organiza-
ção dos fatores externos e de uma conduta ético-estética dos profissionais envolvi-
dos.
Por todos os apontamentos feitos, coloca-se a relação entre educação ético-
-estética e saúde como pauta a ser ainda mais explanada, tendo em vista que tais
reflexões serão sempre aproximações do real, nunca uma tentativa de reduzi-las a
uma sistematização conceitual, especialmente em meio a esse cenário pandêmico,
no qual teremos que enfrentar as suas consequências biopsicossociais, nos mais
diversos contextos.
A pandemia da Covid-19 é a expressão de uma crise global, sanitária, econô-
mica e social excepcional, e, segundo Dardot e Laval (2020), poucos acontecimentos
históricos podem ser comparados a ela, pelo menos na escala das últimas décadas.
Trata-se de uma provação no duplo sentido da palavra: dor, risco e perigo, por um
lado; teste, avaliação e julgamento, por outro. O que a pandemia está testando é
a capacidade das organizações políticas e econômicas de lidar com um problema
global vinculado à interdependência dos indivíduos, ou seja, algo que afeta de uma
forma básica a vida social de todos. Como uma distopia que se torna realidade, o
que estamos experimentando agora revela aquilo que, com as mudanças climáticas
em curso, aguarda a humanidade em poucas décadas, se a estrutura econômica e
política do mundo não mudar muito rápida e radicalmente.
Nesse sentido, as ações pós-pandemia poderão também servir para reforçar
a utilização das PICs e direcioná-las, quiçá, para um novo olhar, em que a vida
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possa ser sentida, percebida e vivida de maneira consciente, e não simplesmente
como um objeto de uso para o trabalho e para o consumo, e que essas experiências
possam ser significativas e provedoras de sentidos, somando-se à necessidade de
fazer da formação humana um processo de ativação de novos dispositivos, capazes
de promover novas formas de viver mais humanizadas e mais sensíveis.
Notas
1 Em 22 de janeiro de 2020, foi ativado o Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública para o novo
Coronavírus (COE-nCoV), estratégia prevista no Plano Nacional de Resposta às Emergências em Saúde
Pública do Ministério da Saúde. O novo coronavírus (2019-nCoV) é identificado como a causa de um surto
de doença respiratória detectado pela primeira vez em Wuhan, China (BRASIL, 2020a, p. 5).
2 Santin (2014, p. 157-158) conceitua corporeidade, numa definição ampla, como sendo uma ideia abstrata
de corpo, de ser corpóreo. No pensamento grego, tal conceito é expresso no sentido de soma ou somático.
Para os gregos, soma designa o que é material, em oposição a psyqué ou psíquico. As culturas latina e cristã
reforçaram essa significação ao entender a corporalitas como aquilo que é de natureza material ou, sim-
plesmente, materialidade, radicalmente oposta à espiritualidade. Nesse sentido, portanto, corporeidade
diz respeito a tudo o que é material, porque todo ser material se manifesta como corpo.
3 Essa afirmação está ancorada nos resultados obtidos com a pesquisa de doutoramento em Educação de
Franciele Silvestre Gallina (2017), pelo PPGEdu-UPF, em que desenvolveu oficinas educativas estéticas
com profissionais da educação e saúde pública da região norte do Rio Grande do Sul, bem como com profis-
sionais liberais, apoiando-se nas estruturas antropológicas do imaginário propostas por Gilbert Durand e
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Crianças oncológicas e as experiências do adoecer e das práticas pedagógicas em ambiente hospitalar
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Crianças oncológicas e as experiências do adoecer e das práticas pedagógicas em
ambiente hospitalar
Oncological children and the experiences of illness and pedagogical practices in a hospital
environment
Niños oncológicos y las experiencias de enfermedad y de prácticas pedagógicas en un entorno
hospitalario
Osdi Barbosa dos Santos Ribeiro*
Alessandra Alexandre Freixo**
Resumo
O presente artigo objetivou compreender os sentidos atribuídos pelas crianças de um centro de oncologia ao
processo de adoecimento e às práticas pedagógicas no ambiente hospitalar. Este estudo se apoia numa abor-
dagem qualitativa do tipo descritiva. Como técnicas de pesquisa, foram utilizadas a observação sistemática, o
diário de campo e a entrevista semiestruturada. O universo de participantes envolveu crianças do Centro de
Oncologia Infanto-Juvenil do Hospital Estadual da Criança (HEC), em Feira de Santana, Bahia. Paralelamente à
observação sistemática das práticas pedagógicas, foram realizadas entrevistas com onze crianças. Os dados co-
letados foram analisados com base na análise de conteúdo. Foi evidenciada, nas falas das crianças, a percepção
do hospital como um lugar de dor e de cura. Porém, é na brinquedoteca que as crianças encontram elementos
que as aproximam do ambiente escolar, como a prática pedagógica de contação de histórias. Essa prática surge
como uma forma de tirar a criança de uma realidade de silêncio e isolamento, para ingressar em um mundo no
qual o sonho é possível, em que a fantasia tem o papel de transpor os limites impostos pela doença.
Palavras-chave: pedagogia hospitalar; prática pedagógica; centro de oncologia.
Abstract
This article aimed to understand the meanings attributed by children of an Oncology Center to the process of
illness and pedagogical practices at hospital environment. This study is based on a descriptive qualitative ap-
proach. As research techniques, systematic observation, eld diary and semi-structured interview were used.
The universe of participants involved children from the Oncology Center of State Childrens Hospital (HEC), in
Feira de Santana, Bahia. In parallel to the systematic observation of pedagogical practices, interviews were con-
ducted with eleven children. The collected data were analyzed based on content analysis. The perception of the
hospital as a place of pain and healing was evidenced in the children’s speeches. On the other hand, it is in the
* Mestra em Educação pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Professora da Faculdade Maria Milza, em
Cruz das Almas, Bahia. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3815-5502. E-mail: osdi.art@hotmail.com
** Doutora em Ciências pela Biológicas e doutorado em Ciências sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Professora titular do Departamento de Educação da Universidade Estadual de Feira de Santana. Docente do Programa
de Pós-Graduação em Educação da UEFS. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3566-8302. E-mail: aafreixo@uefs.br
Recebido em: 15/06/2020 – Aprovado em: 18/08/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i2.11183
728 ESPAÇO PEDAGÓGICO
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toy library that children nd elements that bring them closer to the school environment, such as the pedagogi-
cal practice of storytelling. This practice emerges as a way to take the child from a reality of silence and isolation
into a world where the dream is possible, in which fantasy transposes the limits imposed by the disease.
Keywords: hospital pedagogy; pedagogical practice; oncology center.
Resumen
El presente artículo objetivó comprender los sentidos atribuidos por los niños de un Centro de Oncología al
proceso de enfermedad ya las prácticas pedagógicas en el ambiente hospitalario. Este estudio se apoya en un
enfoque cualitativo del tipo descriptivo. Como técnicas de investigación, se utilizaron la observación sistemá-
tica, el diario de campo y la entrevista semi-estructurada. El universo de participantes fue niños del Centro de
Oncología Infanto-juvenil del Hospital Estadual del Niño (HEC), en Feira de Santana, Bahia. Paralelamente a la
observación sistemática de las prácticas pedagógicas, se realizaron entrevistas con once niños. Los datos reco-
gidos se analizaron sobre la base del análisis de contenido. Se evidenció, en las conversaciones de los niños, la
percepción del hospital como lugar de dolor y de curación. Por otro lado, es en la sala de juegos que los niños
encuentran elementos que les acercan al ambiente escolar, como la práctica pedagógica de contar historias.
Esta práctica surge como una forma de sacar al niño de una realidad de silencio y aislamiento para ingresar en
un mundo donde el sueño es posible, en que la fantasía hace ese papel de transponer más allá de los límites
impuestos por la enfermedad.
Palabras clave: pedagogía hospitalaria; práctica pedagógica; centro de oncología.
Introdução
A pedagogia hospitalar se configura como uma modalidade da pedagogia,
emergindo da relação entre educação e saúde. Com legitimidade, tem ocupado seu
espaço nas discussões sobre a educação como um direito fundamental da criança
em situação de adoecimento e hospitalização. Nesses termos, vem-se ampliando
a possibilidade de o profissional da educação atuar junto às crianças afastadas
do ambiente escolar na perspectiva de melhor compreendê-las e ajudá-las nesse
momento vivido.
A inserção do profissional de educação nos hospitais tem sido discutida em
fóruns diferenciados de educação e saúde, sobretudo na perspectiva de garantia
desse direito, como indicado por Fonseca (2008). Seja a partir de classes hospita-
lares, com vistas à continuidade da escolarização, seja na brinquedoteca, visan-
do a vertente lúdica de humanização, nos discursos há um consenso em torno da
necessidade de um atendimento integral a essa demanda existente nos hospitais
brasileiros.
Direcionamos nosso olhar para a criança em idade escolar acometida pelo
câncer e imersa em uma realidade diferenciada necessária ao tratamento. Tal pa-
tologia, aguda ou crônica, exige mudanças no modo de vida da criança. O trata-
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mento acontece por um longo período, com processos de internações, reinterações,
procedimentos e acompanhamentos médicos necessários, todos ocasionadores de
rupturas, como o afastamento do convívio familiar, escolar e do grupo de amigos.
Em decorrência disso, a criança necessita deixar o que fazia parte de sua vida coti-
diana, como as brincadeiras, os estudos e as aventuras de viver. Especificamente, a
situação de afastamento do convívio escolar decorrente da necessidade de lidar com
procedimentos pertinentes ao tratamento requer atenção especial à criança, que
pode apresentar alguma limitação transitória por estar impedida de frequentar a
escola por um tempo indeterminado.
As Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica, Re-
solução CNE/CEB n. 2/2001 (BRASIL, 2001), no artigo 3º, asseguram o direito ao
atendimento pedagógico do educando com necessidades especiais provisórias, de
modo a garantir a continuidade da sua aprendizagem e do seu desenvolvimento. O
artigo 13 dispõe sobre o imperativo de uma ação integrada entre educação e saúde
para o atendimento do educando, enquanto está impossibilitado de voltar à esco-
la em decorrência das limitações impostas por adoecimento e hospitalização. Por
sua vez, a Lei n. 13.716/2018 acrescenta à Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (BRASIL, 1996), o artigo 4º, que assegura o atendimento educacional ao
aluno da educação básica que se encontra em tratamento de saúde e internado em
hospitais.
As discussões acerca da pedagogia hospitalar vêm se expandindo, com vistas
à possibilidade de pensar a educação para além do contexto escolar, em particular
no hospital. Nesse contexto, a inserção e a atuação do pedagogo no ambiente hos-
pitalar podem contribuir de modo pontual para o bem-estar da criança em questão,
uma vez que o pedagogo, enquanto profissional da educação, busca aproximar as
crianças de um cotidiano rompido pelo tratamento à doença.
Na discussão dessas questões, fazemos referência ao estudo fundante de Ma-
tos e Mugiatti (2014, p. 32), ao considerarem que a pedagogia hospitalar tem como
aporte “[...] a pesquisa de envolvimento teórico e prático entre a realidade acadêmi-
ca/hospitalar [...]”, uma vez que busca construir conhecimentos acerca da educação
no contexto hospitalar. Nessa ótica, evidenciamos o papel do pedagogo enquanto
um profissional da educação que “[...] lida com fatos, estruturas, contextos, situa-
ções, referentes à prática educativa em suas várias modalidades de manifestações
[...]” (LIBNEO, 2010, p. 45), em nosso estudo, particularmente, a modalidade da
pedagogia hospitalar.
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Diante dessa problemática, emerge como objetivo deste artigo compreender
os sentidos atribuídos pelas crianças de um centro de oncologia ao processo de
adoecimento e às práticas pedagógicas no ambiente hospitalar. Considerando que
esse objeto de estudo ainda hoje é pouco investigado no Brasil, buscamos reflexões
e diálogos com os autores que têm dedicado seus estudos a dar visibilidade ao es-
paço da educação na instituição de saúde, para que as crianças com doença crônica
sejam contempladas com o atendimento pedagógico e os cuidados necessários em
contexto hospitalar.
Percurso metodológico da investigação
A presente pesquisa configura-se a partir da abordagem qualitativa aplicada
à pesquisa em educação, cuja especificidade, a particularidade dos seus correspon-
dentes métodos, possibilita o entendimento de que “[...] o investigador trabalha
com o reconhecimento, a conveniência e a utilização dos métodos disponíveis, em
face do tipo de informações necessárias para se cumprirem os objetivos do traba-
lho” (MINAYO, 2016, p. 54), obtendo impressões e orientações referentes ao cami-
nho a ser seguido. Optamos por “[...] uma metodologia de investigação que enfatiza
a descrição, a indução, a teoria fundamentada e o estudo de percepções pessoais
[...]” (BOGDAN; BIKLEN, 1994, p. 110), tendo em vista que os dados coletados se
constituem essencialmente descritivos, apresentando uma riqueza em descrições
de acontecimentos, de pessoas e de situações (LÜDKE; ANDRÉ, 1986).
O Centro de Oncologia Infanto-Juvenil do Hospital Estadual da Criança
(HEC) se constituiu como lócus desta pesquisa. A escolha pelo centro dessa insti-
tuição hospitalar se deu após uma consulta realizada em Feira de Santana e nas
cidades circunvizinhas, na busca por hospitais que possibilitassem a efetivação do
estudo. O hospital em questão foi inaugurado em 2010 e está localizado na cidade
de Feira de Santana, Bahia, sendo vinculado ao Sistema Único de Saúde (SUS) e
uma referência no atendimento ao público infanto-juvenil, especificamente crian-
ças e adolescentes com câncer, geralmente oriundos do município feirense e de
outras cidades do estado.
Para a delimitação das crianças participantes da pesquisa, inicialmente, con-
tamos com as informações dadas por uma pedagoga, pontuadas a partir dos seus
registros: ano de escolaridade, tipo de câncer diagnosticado e condição de saúde das
crianças hospitalizadas no centro de oncologia no mês de novembro de 2017. Pos-
teriormente, foi realizado um levantamento nos prontuários das crianças, a fim de
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reforçar as informações sobre o motivo da hospitalização, a exemplo de quando foi
diagnosticado o câncer, a situação do tratamento, a idade e os relatórios de acom-
panhamento pedagógico. Essas informações foram importantes para compreender
as necessidades e as especificidades referentes à condição de saúde de cada parti-
cipante. A partir de então, foi delimitado o universo da pesquisa: 11 participantes,
em idade escolar correspondente aos anos iniciais do ensino fundamental, que pas-
saram por situação de internação e participaram da prática pedagógica de conta-
ção de histórias desenvolvida por uma pedagoga do centro durante a observação
em campo.
Adotamos a observação sistemática, a entrevista semiestruturada e o diário
de campo em virtude de o estudo qualitativo trazer como possibilidade a variedade
de instrumentos e técnicas possíveis a serem empregados para a coleta de dados
(MINAYO, 2016). As observações da prática pedagógica e as entrevistas foram efe-
tivadas entre novembro de 2017 e fevereiro de 2018. No centro de oncologia, as
práticas pedagógicas não estavam sendo desenvolvidas desde o mês de fevereiro de
2017. As atividades foram retomadas juntamente com a efetivação desta pesquisa
em campo.
Em respeito à rotina da equipe da oncologia, as entrevistas foram realizadas
após um agendamento prévio. As crianças foram entrevistadas individualmente,
na companhia do seu responsável. No momento das entrevistas, buscamos manter
a tranquilidade e a privacidade dos depoentes, evitando a influência de outros, fa-
vorecendo o diálogo e a produção de informação por meio das falas. As entrevistas
foram gravadas sob a autorização dos participantes e de seus responsáveis.
Objetivando assegurar o diálogo com as crianças, foi elaborado um roteiro da
entrevista, organizado em blocos, com perguntas exploradas com todos os entrevis-
tados. As crianças participantes falaram sobre a prática de contação de histórias,
do que chama a atenção delas nas histórias, dentre outras questões que mobiliza-
ram as falas durante a entrevista.
Posteriormente, as entrevistas foram transcritas e analisadas. A transcrição
consistiu em uma etapa que demandou tempo, atenção e cuidado, para manter
fielmente as particularidades das falas. Segundo Flores e Silva (2005, p. 42), a
transcrição consiste na “fala passada a limpo”, permitindo observar as diferenças
entre o que se fala e o que se escreve. Assim, as entrevistas foram revisadas após
transcrição, de acordo com as regras ortográficas e gramaticais da língua portugue-
sa, de modo a minimizar a exposição do entrevistado.
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Em virtude da natureza deste estudo, os aspectos éticos foram considerados,
em observância ao que preconizam as Resoluções n. 466/2012 e n. 510/2016. A
partir das orientações desses documentos, no termo de consentimento livre e es-
clarecido e no termo de assentimento livre e esclarecido, os participantes foram
informados sobre a autonomia na participação, a possibilidade de desistência da
pesquisa a qualquer momento, a confidencialidade, os benefícios, os riscos e a rele-
vância do estudo. O projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da UEFS
e aprovado sob o protocolo CAAE 76789417.5.0000.0053.
Os dados coletados foram então analisados com base nos pressupostos teó-
rico-metodológicos da análise de conteúdo de Bardin (2011). Devido à natureza
dos dados, adotamos a análise de conteúdo por meio da construção de categorias
temáticas, considerando algumas etapas. Na primeira etapa, após a organização
dos materiais, na pré-análise, realizamos a leitura flutuante dos textos escolhidos
e dos documentos que definem o corpus da pesquisa. A etapa seguinte, para a ex-
ploração do material, consistiu na análise dos documentos, na busca de organizar
os dados coletados de forma sistemática e articulados em unidades de registro. Já
na última etapa, realizamos o tratamento dos resultados obtidos e a sua interpre-
tação. Para isso, foram definidas as dimensões do conteúdo em que o tema surge,
agrupando-o para a discussão de acordo com os critérios do pressuposto teórico ou
empírico (BARDIN, 2011).
A criança e as experiências vivenciadas em ambiente hospitalar
Ao longo da realização das entrevistas, observamos, a todo momento, um dire-
cionamento dos depoimentos para a relevância dada à dor, ao sentido e à referência
do diagnóstico em suas próprias vidas. Sendo assim, para compreender como elas
vivenciam a referida prática no contexto em estudo, abordaremos a perspectiva
em torno do diagnóstico da doença, na intenção de entender o pano de fundo que
permeia as falas das crianças em questão.
A criança em torno da descoberta da doença
No momento da realização da entrevista, em resposta às indagações acerca
da prática pedagógica, as crianças chamam para conversar sobre o diagnóstico do
câncer, ou seja, a descoberta da “doença”, assim denominado por elas. Dessa forma,
iniciamos essa abordagem considerando os sentidos em torno do diagnóstico que
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influenciam o olhar das crianças sobre as práticas, a partir da riqueza de detalhes
explicitados nos seus próprios relatos:
Eu fui internada [começou a chorar]. Eu tive tristeza, muita tristeza quando descobri. Não é
fácil. Minha mãe sofria muito, chorava. Minha avó veio me visitar. Tive muita tristeza quando
descobriu essa doença e eu cheguei aqui. Eu estava na ambulância. Eu cheguei aqui era tudo
estranho. As agulhas, esse lugar. Foi no sábado que eu vim para cá e eu fiquei quase um mês.
Eu não ia para casa, nem via a minha família, eu sentia saudade. Eu não conseguia voltar
para a escola. Eu perdi de ano [a entrevistada não conseguia conter as lágrimas, sugeri que
continuássemos em outro momento, ela pediu que continuasse, pois estava bem]. Eu gostava
de fazer a atividade que a escola mandava. Aí eu só queria ir para brinquedoteca, lá eu ficava
brincando, esquecia um pouco o que eu sentia, não é mãe? (Juliana1).
Quando se reporta ao diagnóstico da doença, além de relatar o que tem vivido,
enquanto doente e hospitalizada, a criança fala sobre sua vida cotidiana quando
possuía saúde. A essa questão, Matos e Mugiatti (2014) indicam o diagnóstico como
uma situação diferenciada, uma vez que produz uma ruptura na vida da criança,
devido ao afastamento causado nas relações com a família, com o grupo de amigos
e com a escola. Diante da descoberta da doença, as crianças compreendem que a
vida muda, como também explicitado por Abraão, ao falar sobre a necessidade de
lidar com essa situação:
Eu tinha saúde. Eu brincava com meus amigos, irmãos e vizinhos, eu sempre fui muito alegre,
ia para a escola, via a professora, os meninos que estudavam lá, corria, andava de bicicleta,
tudo isso. Estudava, passei para o ano seguinte daí, parei depois disso. Minha vida era normal,
mas depois que eu adoeci e descobri, deu uma coisa que me chocou, chocou. Assim, era uma
coisa que eu não queria para mim. Eu não queria porque eu sabia que teria de fazer isso tudo.
Antes eu aprontava demais. Quando eu vi que adoeci, eu não consertei minha vida. Você vê.
Eu sou gaiato ainda? Sou. Mas, eu não sou gaiato mais como eu era antes. Antes eu brincava
com qualquer pessoa, mas hoje não. Hoje não é com toda pessoa que eu brinco. Minha vida
mudou muito (Abraão).
O tratamento exige limitação dos espaços e das relações de convivência, como
mencionado por Abraão. Seu jeito “gaiato” e brincalhão de ser e lidar com as pes-
soas ao seu redor não era visto com bons olhos, não consistia em uma ação inerente
a uma criança na situação de doente no ambiente hospitalar. Dessa forma, além
encarar o diagnóstico e duas recidivas da doença durante o tratamento, ele percebe
que precisa mudar o modo de lidar com as pessoas que começam a fazer parte de
sua vida.
Ainda refletindo sobre o relato de Abraão, Matos (1998) orienta que a doença
modifica o modo subjetivo de a criança se situar no mundo. Na situação de adoeci-
mento e hospitalização, são evidenciados três tipos de experiências: a de privação
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da saúde, conforme a doença impossibilita o bem-estar da criança; a de frustração,
considerando que a vida fica limitada à doença em si e ao tratamento; e a experiên-
cia dolorosa, uma vez que a doença e a dor causam medo, sofrimento, desconfortos
e aversão à hospitalização.
Em busca da restauração da saúde, as crianças começam a enfrentar os limi-
tes impostos pelo tratamento. As brincadeiras, o estudo e as aventuras são subs-
tituídos por atenção e cuidados com a doença no ambiente hospitalar. Sobre essa
questão, o Ministério da Educação (BRASIL, 2002, p. 10) chama a atenção para
o fato de que “[...] a experiência de adoecimento e hospitalização implica mudar
rotinas, separar-se de familiares, amigos e objetos significativos; sujeitar-se a pro-
cedimentos invasivos e dolorosos e, ainda, sofrer com a solidão e o medo da morte”.
Mediante as informações coletadas, com a inserção no ambiente hospitalar, as
crianças interagem com o inesperado e o estranho. Surge, assim, a necessidade de
conviver com pessoas desconhecidas, lidar com a hospitalização, com idas e vindas
constantes ao hospital, para consultas médicas, realização de exames, medicações
e cirurgias, dentre outros procedimentos realizados durante o tratamento.
Aqui não dá nem para ver o mundo. Eu gostaria que fosse um lugar que a gente viesse ruim e
voltasse bom para casa. Voltasse curada para continuar fazendo as coisas que gostava. Mas
a gente precisa voltar. Aí as plaquetas baixam, interna a gente de novo. Tem a comida. Aí vêm
as agulhadas [risos]. Não pode perder o acesso! E quando perde tem que furar de novo, dói,
eu choro, sinto dor, tenho medo. Não queria que fosse assim (Isabela).
Os relatos informam que, no contexto em estudo, a experiência vivida em tor-
no do diagnóstico e do tratamento influencia a vida das crianças a ponto de fazê-las
compreender, apropriar-se e naturalizar os termos técnicos da área médica, que
seriam desconhecidos por elas caso não estivessem nesse contexto. O uso do termo
“acesso”, ressaltado pelos entrevistados, refere-se a um procedimento utilizado no
hospital, que consiste em introduzir um objeto do tipo cateter (tubo ou sonda mi-
limétrica) na veia para coletar amostras sanguíneas, injetar medicamentos, entre
outras finalidades. Gomes et al. (2013) destaca que esses termos fazem parte do
cotidiano da criança devido ao contato frequente com os profissionais da área de
saúde durante o tratamento.
Por vezes, para a criança, a sensação de estar no ambiente hospitalar cau-
sa desconfortos e medo dos procedimentos realizados. Os objetos estranhos que
furam – tratados por elas de modo geral como agulhadas e furadas – assustam e
tornam desagradável a estadia nesse ambiente. Desse modo, em todas as falas, são
evidenciados os sentidos atribuídos ao hospital como um lugar de dor. Todavia, o
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hospital também consiste em um lugar importante para as crianças, como podemos
perceber no ponto de vista a seguir:
Eu precisava tomar medicamento. O medicamento ardia muito na veia, não sei o porquê, mas
ardia igual a pimenta na veia. Eu ficava com medo, aqui era estranho. Ficavam umas manchas
na pele. Umas marcas que ainda não saíram. A coisa mais difícil era tomar sangue na veia.
Mas, hoje eu vejo que era para o meu bem [risos]. Aqui, no HEC é um lugar que a gente vem
e sente dor. Mas, que a gente vem para tratar da doença. E agora estou curada. Estou muito,
muito feliz (Amora).
Apesar das marcas da doença, a criança expressa a alegria em torno do diag-
nóstico de cura do câncer. Amora, pelo corredor do centro, falava com as outras
crianças para não desistirem diante dos desafios impostos pelo tratamento e pela
doença: “Assim como eu me curei, vocês também serão curados, tenham fé em
Deus, eu venci” (Amora), em comemoração elas se abraçavam, choravam e sorriam.
Nesse sentido, Abraão reconhece a importância do ambiente hospitalar na
perspectiva de continuar superando os desafios impostos ao longo do tratamento
em busca da cura do câncer:
Eu reclamava muito mais de dor. Mas, hoje me sinto bem, porque de qualquer maneira é para
o meu bem, como tomar remédios e fazer tudo certinho. E se eu estou aqui é para o meu bem
e para continuar a viver. Mesmo com todas as cirurgias, olha aqui minha cabeça como está. Eu
luto para não deixar essa doença me vencer. Nesse momento estou triste e só estou pensando
em tomar plaquetas e passar o Natal em casa. Nada para Deus é impossível.
Considerando os relatos, as crianças buscam no hospital cuidados necessários
para minimizar a dor e encontrar a cura. Na perspectiva de recuperar a saúde,
as crianças enfrentam os efeitos agressivos do tratamento, dentre esses efeitos,
observamos que elas se sentem enjoadas e enfraquecidas, rejeitam a alimentação,
permanecendo a maior parte do tempo nos leitos, em silêncio. Além disso, elas
emagrecem, incham, perdem os cabelos e a alegria, sentem medo e dor. Por vez, as
reações causadas pelos efeitos colaterais do tratamento e pela doença em si podem
provocar risco iminente à vida ou deixar sequelas irreversíveis.
Eu pensava que ia melhorar logo . Fiquei muito tempo aqui internado. Depois voltei para casa,
mas ficou tudo difícil. Quando a gente esquecia alguma coisa na casa de minha avó [interrom-
pe a fala e demostra tristeza], eu ia com minha mãe buscar. Agora, tenho que ficar sozinho
em casa. Eu fico com medo enrolado na coberta [...]. Eu não ando mais, aí não posso sair. Só
saio para vim para o hospital, mas é de carro, de ambulância que vem me pegar. Aí eu fico lá
e cá. Interno e depois volto. Eu estou chateado, triste, sei lá. Você sabe o que aconteceu, não
é? Naquele dia que bati a mão na bandeja dos medicamentos que a enfermeira ia me dar, não
queria falar com a psicóloga, nem com ninguém (Diego).
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Embora volte para casa após as constantes hospitalizações, Diego já não pode
viver as aventuras de outrora. Em decorrência do agravo da doença, perdeu os mo-
vimentos dos membros inferiores. Inconformado, começou a rejeitar a alimentação,
os procedimentos e atendimentos dos profissionais de saúde. De acordo com Go-
mes, Amador e Collet (2012), embora com os avanços da tecnologia e da ciência, o
diagnóstico do câncer está associado à ideia de uma situação irreversível, trazendo
ao longo do tempo o estigma de sentença de morte.
A partir do diagnóstico de câncer, as crianças lidam constantemente com a
experiência de perda na oncologia. Elas são envolvidas por medo e incertezas da
situação vivenciada, como afirmam Matos e Mugiatti (2014), pois, apesar dos avan-
ços e inovações no campo da medicina, o adoecimento ainda implica uma experiên-
cia dolorosa vivenciada nos hospitais, diante da possibilidade da morte. Nesses
termos, Rolim (2008, p. 18) esclarece que uma doença como o câncer “[...] traz em si
um provável risco de morte, o estar doente provoca a consciência dolorosa da inse-
gurança e da certeza da finitude da vida”. Em colaboração, Souza e Lima (2007, p.
162) entendem a doença como uma ameaça à vida e ao bem-estar, constantemente,
não sendo nada fácil conviver com ela, tão pouco aceitá-la.
Enquanto prática institucionalizada, evidenciamos o trabalho do pedagogo na
relação da criança com a equipe de saúde, considerando o destaque dado por Matos
e Mugiatti (2014) e Gomes, Amador e Collet (2012), em torno da importância de a
equipe multidisciplinar atuar coletivamente para o atendimento integral à criança,
no intento de tornar menos doloroso o momento do diagnóstico e a hospitalização.
Dentro de seu campo de atuação, a pedagogia hospitalar tem a intenção de
modificar tais situações, que não se confundem com o atendimento à doença. A
finalidade da prática pedagógica no ambiente hospitalar é própria do profissional
de educação, o pedagogo tem sua própria autonomia, de modo que não se opõe nem
se confunde com a medicina ou os demais profissionais de saúde (MATOS; MUGIA-
TTI, 2014). Na perspectiva de contribuir com o processo de recuperação da saúde
da criança, a prática pedagógica se integra ao trabalho da equipe multidisciplinar
do contexto em estudo como um apoio na relação da criança com os demais profis-
sionais da saúde.
A criança em torno da prática pedagógica
Apesar de o ambiente hospitalar ser compreendido como um lugar estranho,
na brinquedoteca as crianças encontram elementos que as aproximam das ativida-
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des cotidianas antes da descoberta da doença, como apontado por Cinderela: “Eu
gosto de ficar na brinquedoteca com a pedagoga porque ela conta história. Não têm
agulhadas, aí eu fico contente”. A esse respeito, Layla destaca que “[...] a pedagoga
traz coisas boas: conta história, dá massinha e pede para desenhar”. Logo, Ariel
acrescenta que: “Gosto quando estou com a pedagoga na brinquedoteca porque dá
para fazer coisas incríveis. Quando ela conta história [riso] eu me divirto. Eu gosto
muito, eu não fico tão sozinha [...]”.
Quando as crianças chegam ao hospital, são envolvidas por sentimentos de
angústia e medo, sofrem intervenções dolorosas, além de terem uma rotina to-
talmente alterada. Por entender o momento vivido pelas crianças, o profissional
pedagogo busca interagir com elas, a partir de “[...] pequenos gestos, como chamar
pelo nome, conversar sobre a doença, recuperação, conversas sobre a família, sua
escola ou de algum outro assunto de seu interesse” (BOTELHO, 2007, p. 119), sem
perder de vista a intencionalidade da prática pedagógica.
Os relatos destacam o conforto de participar da prática pedagógica na brin-
quedoteca, sendo uma oportunidade de pensar em algo que não sejam a doença e o
diagnóstico, como explicitado pelos entrevistados:
Eu me divirto aqui na brinquedoteca. E, é bem, legal! Aí eu brinco com minha mãe e com a
professora, eu fico imaginando que eu estou na escola estudando. Na escola a professora
conta história para mim. Gosto quando vou com a professora [tossindo muito] aqui ela conta
história, ensina fazer dever e dá desenho para pintar (Bela).
Gosto de brincar na brinquedoteca com a pedagoga que é tipo uma professora. E gosto de
ouvir história, porque é bom, as professoras alegram a gente. Ela lê história, ajuda a gente con-
versando, alegrando, brincando e ensinando o dever. Ajuda a fazer prova, faz tudo (Abraão).
Os entrevistados atribuem à brinquedoteca o sentido de um lugar de encontro
com a pedagoga e com outras crianças no centro de oncologia. Nesse ambiente,
as crianças se imaginam na escola, embora estando no hospital. A pedagoga é a
professora, ela não traz injeção, diagnóstico e medicamentos, mas, sim, a prática
pedagógica envolvendo o lúdico, proporciona o sorriso, a brincadeira, a contação
de histórias e a possibilidade de conversar com o outro. Assim como indicado por
Matos e Mugiatti (2014) e Fontes (2005), a prática pedagógica não isola o hospita-
lizado à condição de doente, por entender a necessidade de mantê-lo integrado às
atividades que faziam parte do seu cotidiano.
Quando estão na brinquedoteca, participando da prática pedagógica, as crian-
ças têm a sensação de estar na escola, com possibilidade de brincar, conversar,
aprender e se divertir. Assim, a brinquedoteca é o lugar da prática pedagógica, de
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alegria, de brincar, jogar, desenhar, pintar, fazer atividades da escola, ouvir histó-
rias, enfim, de sorrir e se sentir bem.
Cabe ressaltar, a partir da compreensão das crianças, o quanto a prática peda-
gógica na brinquedoteca é importante, pelo fato de tirá-las do isolamento e fazê-las
sorrir, sentir alegria. Ceccim (1997) e Botelho (2007) afirmam que os encontros nos
afetam, tanto pelos momentos de alegria como pelos de tristeza. Nesse sentido,
Botelho (2007) entende que a tristeza pode entravar, bloquear ou empobrecer nossa
vida, enquanto a alegria tem a capacidade de expandir-se, ampliar nossa forma de
olhar a situação vivida, apontando diferentes caminhos.
A melhor coisa era brincar na brinquedoteca com a pedagoga, porque eu tenho uma compa-
nhia. Assim, um distribui emoção para o outro, sentimentos, força para continuar lutando. Lê
historinha, ajuda a fazer as provas da escola e brinca (Amora).
Gosto de jogar Playstation e de pintar aqui na brinquedoteca com a pedagoga, porque a gente,
sozinho, não tem com quem a gente falar. Aí a gente não fica sozinho. Quando ela vem para
cá, conversa, conta história e outras coisas mais (Diego).
Analisando esses dados, compreendemos que, para os entrevistados, a brin-
quedoteca faz sentido com a presença da pedagoga que, em sua prática, faz coisas
incríveis, arranca sorrisos no momento de dor, medo e tristeza e ajuda a criança a
enfrentar a situação vivenciada. No estudo de Silva et al. (2016, p. 53), as crian-
ças compreendem o hospital como um lugar de tristeza, e, por vezes, na busca
de um ambiente menos agressivo, “[...] a brinquedoteca, conhecida por escolinha,
é reconhecida pelas crianças como um lugar agradável”, no qual elas participam
da prática pedagógica, com atividades lúdicas, tendo a oportunidade de brincar,
divertir-se e aprender.
Por meio da prática pedagógica, as crianças trazem a compreensão da brin-
quedoteca como um lugar mágico dentro do centro de oncologia. Trata-se de um
lugar em que se despontam sorrisos! As falas das crianças definem a brinquedoteca
como um lugar de alegria, de realizar atividades escolares (“dever” e provas), ler
um livro, jogar, desenhar, pintar, ouvir histórias, com possibilidade de transportá-
-las para um mundo imaginário, de pensar em outra coisa que não seja a doença,
encontrar-se com outras crianças e com a pedagoga, brincar um pouco, fazer o que
se gosta, conversar, falar de si e sorrir ao menos por um momento.
O profissional de educação não pode perder de vista que a criança hospitali-
zada é seu referencial dentro do hospital. Nessa perspectiva, a prática pedagógica
desenvolvida na perspectiva do enfoque educativo sugere flexibilidade e adapta-
bilidade, a fim de atender às peculiaridades da criança hospitalizada. Segundo
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Matos e Mugiatti (2014) e Silva e Andrade (2013), o pedagogo necessita estar apto
às mudanças ao lidar com a criança em idade escolar acometida por doença, de
modo que a prática pedagógica não esteja voltada apenas para a escolaridade, mas
considere outros aspectos decorrentes do afastamento do cotidiano.
No contexto em estudo, a vertente de escolarização, por meio do acompanha-
mento das atividades escolares, é valorizada pelas crianças, por seus acompanhan-
tes e pelos profissionais da oncologia – coordenadora, médicos, assistente social e
enfermeiros –, que solicitam com frequência a mediação da pedagoga junto à crian-
ça por entenderem que a doença e as necessárias hospitalizações causam atrasos
na escolarização. Cabe reforçar que, diante dos achados, existe a necessidade de
implantação de uma classe hospitalar nesse contexto, no intuito de realizar um
atendimento pedagógico mais pontual às crianças.
Além dessa perspectiva do acompanhamento escolar, a prática pedagógica
contempla mais enfaticamente a vertente do lúdico:
Na brinquedoteca a pedagoga faz atividade. Eu gosto muito de jogar Playstation e outra ativi-
dade que eu gostei de fazer foi a brincadeira de bingo. Eu e minha mãe ganhamos um monte
de brindes. Aí uma menina não ganhou e eu dei um para ela. Eu penso assim, está todo mundo
aqui junto brincando, não é? Outra atividade legal é o dia que vem pintar. É bom, quando conta
história, manda ilustrar, desenhar e pintar (Naruto).
De acordo com o relato supracitado, na prática pedagógica na perspectiva do
lúdico, com jogos como Playstation e bingo, contação de histórias, produção de de-
senhos e pinturas, têm-se atividades que motivam a saída do leito e a participação
na brinquedoteca: “[...] por trazer um momento de prazer de vida, seja por permitir
não pensar na doença, fazer uma pausa ainda que curta, aliviando o constante
estresse em que vive” (ROLIM, 2008, p. 70).
No entendimento de Naruto, nesses momentos de brincar, jogar, ouvir histó-
rias, ele tem oportunidade de compartilhar experiências e objetos materiais, por
entender que estão todos juntos no enfrentamento do câncer. Nesse sentido, para
as crianças, a prática pedagógica ajuda a esquecer, ao menos por um momento, a
vivência dolorosa enfrentada após a descoberta da doença. Para Silva e Andrade
(2013, p. 65), a prática pedagógica auxilia na recuperação da saúde, pois “[...] o ato
de brincar e aprender são capazes de espantar a tristeza, dando lugar à invenção
através da imaginação criadora. Tais práticas promovem, ainda, entretenimento,
informação, aprendizado e o desejo de continuar a viver”.
Dessa forma, com base no enfoque educativo, uma prática lúdica cria condi-
ções para as crianças participarem e interagirem no hospital, com possibilidade de
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mudar a forma como elas olham para esse ambiente. Como indicado também por
Matos e Mugiatti (2014), a prática envolvendo o lúdico ajuda a criança a entender
e a colaborar melhor com o tratamento, à medida que percebe o hospital como um
lugar agradável.
Segundo a compreensão das crianças, a prática pedagógica traz um pouco do
que viviam antes, para dentro do ambiente hospitalar, sobretudo quando a pedago-
ga vem com a história, com a relação com o mundo imaginário. Para elas, em torno
do diagnóstico e da prática pedagógica, perpassam um dentro e um fora, que são
imaginários, trata-se do momento em que a criança está no hospital, mas se sente
fora dele. Sob esse aspecto, apesar de perceber seu espaço aparentemente pequeno
no ambiente hospitalar, a pedagoga tem um espaço imenso no universo da criança
do centro de oncologia.
Considerações nais
A prática pedagógica no ambiente hospitalar consiste em uma forma signi-
ficativa e precisa de acolhimento e atendimento ao escolar hospitalizado. Nesse
contexto, o pedagogo, enquanto profissional da educação, insere-se e atua junto
com profissionais de saúde, trazendo os conhecimentos e modos de fazer da área de
educação como uma expressão de direito educacional e processo de humanização
e cuidado à criança em questão. Com efeito, consideramos a contação de histórias
como prática pedagógica possível de desenvolver no ambiente hospitalar junto às
crianças em situação de adoecimento e hospitalização, sem perder de vista a aten-
ção às especificidades reveladas pela situação clínica da criança.
Percebemos que a compreensão das crianças sobre as experiências vivencia-
das no ambiente hospitalar está relacionada aos sentidos atribuídos aos ambientes
escolar e hospitalar, que trazem as marcas do processo de adoecimento, dos novos
modos de vida assumidos nas relações sociais constituídas. No que diz respeito à
escola, as crianças atribuem uma multiplicidade de sentidos ao compreenderem
como lugar de estudar, brincar, encontrar com a professora e os colegas, para con-
versar, fazer “dever” e atividades, viver aventuras, etc. No que tange ao hospital,
foi evidenciada, nas falas das crianças, uma dicotomia entre lugar de dor e de cura.
Mediante as análises, o diagnóstico e o tratamento oncológico deixam marcas
na vida da criança, não as marcas de um tombo ou aranhão brincando na esco-
la, que causam dor, mas algo diferente. Para as crianças, as marcas ocasionadas
pelo tratamento imprimem sofrimento, saudades, tristeza, cansaço, manchas na
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pele, cicatrizes de cirurgia, dor, perdas, além dos medos, sobretudo o de morrer.
As experiências de privação, frustação e dor, acompanhadas pelas perdas, como o
afastamento das relações de convívio e as referentes aos aspectos físicos (perdas do
cabelo e dos movimentos), tornam a criança fragilizada e paciente em meio ao que
está ocorrendo na sua vida.
As análises mostram que, quando se acentuam os efeitos do tratamento ou se
agrava a doença, o que antes a criança realizava de forma natural, como falar, es-
crever, desenhar, diante de tal situação, requer um esforço excessivo. Percebemos
nas crianças a vontade de participar das atividades propostas. Com vistas a supe-
rar limitações e dificuldades, com persistência, pediam ajuda quando precisavam,
demostrando o quanto a prática pedagógica fazia sentido naquele momento.
Por meio dos relatos de experiências, a brinquedoteca faz uma ligação entre
os sentidos atribuídos à escola e ao ambiente hospitalar. As crianças percebem o
contexto da brinquedoteca hospitalar como um lugar mágico, de encontro, alegria,
brincadeira, aprendizagem e fantasia, com a presença da pedagoga e da prática pe-
dagógica, em especial da contação de histórias, que se expressa com toda a potência
conforme possibilita viver além do que a doença estabelece.
Assim, é imprescindível pensar no desafio posto ao pedagogo em assumir o
compromisso de tornar-se parte desse processo de atendimento em hospitais, tendo
em vista a necessidade da devida abertura desse espaço ao profissional de educação
em busca de novas soluções dos dilemas enfrentados pelas crianças enfermas, das
tensões colocadas em torno desse espaço laborativo do pedagogo, ainda pouco conhe-
cido pela sociedade, dos aspectos legais que legitimam a pedagogia hospitalar e das
possibilidades de atuação desse profissional, no que concerne ao desenvolvimento de
práticas pedagógicas, ao desenvolvimento e ao acolhimento de crianças com câncer.
Nota
1 Todos os nomes apresentados neste artigo são fictícios, escolhidos pelas próprias crianças que participa-
ram deste estudo, para serem identificadas na pesquisa.
Referências
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Saberes de adolescentes quilombolas incorporados aos saberes cientícos na
construção de roteiro educativo sobre gravidez
Knowledge of quilombola teenagers incorporated into scientic knowledge in the construction
of an educational script on pregnancy
Conocimiento de adolescentes quilombolas incorporado al conocimiento cientíco en la
construcción de un guión educativo sobre el embarazo
Adriana Nunes Moraes-Partelli*
Marta Pereira Coelho**
Resumo
Este estudo tem como objetivo ilustrar como os saberes de adolescentes de uma comunidade quilombola foram
incorporadas aos saberes cientícos na elaboração do roteiro de duas histórias em quadrinhos em um material
educativo sobre gravidez não planejada no contexto de suas vivências e experiências, utilizando o banco de
dados de uma pesquisa participativa, que empregou o método criativo e sensível, pelas dinâmicas de criativi-
dade e sensibilidade, que forneceu imagens e narrativas que foram empregadas no desenvolvimento do en-
redo das histórias A misteriosa gravidez pelo beijo” e “Escola: espaço para diálogos e promoção da saúde, as
quais compõem o almanaque intitulado: “Lendas e histórias de gravidez na adolescência em uma comunidade
quilombola. Além das histórias, o almanaque aborda demandas cientícas com curiosidades, passatempo e
“Você sabia. As histórias, produzidas de forma participativa, valorizaram experiências, signicados, divergências
e convergências entre os saberes populares e cientícos, traduzindo a realidade do cotidiano dos adolescentes
afro-brasileiros de forma útil, prazerosa, didática e esclarecedora, para ser utilizada no processo educativo.
Palavras-chave: gravidez na adolescência; comportamento e mecanismos comportamentais; grupo com ances-
trais do continente africano; educação para a saúde comunitária.
* Graduada em Enfermagem e Obstetrícia pela Universidade Federal do Espírito Santo. Especialista em Enfermagem
Neonatal. Mestre em Ciências Fisiológicas pela Universidade Federal do Espírito Santo. Doutora em Enfermagem
pela Escola de Enfermagem Anna Nery – UFRJ. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9978-2994. E-mail: adrianamo-
raes@hotmail.com
** Doutora em Enfermagem. Professora adjunta da Universidade Federal do Espírito Santo, Centro Universitário Norte
do Espírito Santo, Departamento de Ciências da Saúde, São Mateus, Espírito Santo. Orcid: https://orcid.org/0000-
0002-2046-6954. E-mail: martapereiracoelho@hotmail.com
Recebido em: 26/10/2020 – Aprovado em 09/08/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i2.11772
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Abstract
This study aims to illustrate how the knowledge of adolescents from the quilombola community was incorpo-
rated with scientic knowledge in the preparation of a script for two comic strips in an educational material
about unplanned pregnancy in the context of their experiences using the database of a participatory research,
which used the Creative and Sensitive Method, for the Dynamics of Creativity and Sensitivity, which provided
images and narratives that were used in the development of the storyline The mysterious pregnancy by kissing”
and the “School: space for dialogues and health promotion ”that makes up the almanac entitled:“ Legends and
stories of teenage pregnancy in a quilombola community ”. In addition to the stories, the almanac addresses
scientic demands with curiosities, a hobby and you knew it. The stories produced in a participatory way valued
experiences, meanings, divergences and convergences between popular and scientic knowledge, translating
the daily reality of Afro-Brazilian teenagers in a useful, pleasant, didactic and enlightening way, to be used in the
educational process.
Keywords: pregnancy in adolescence; behavior and behavior mechanisms; African continental ancestry group;
education, community health.
Resumen
Este estudio tiene como objetivo ilustrar cómo se incorporó el conocimiento de las adolescentes de la comuni-
dad quilombola con el conocimiento cientíco en la elaboración de un guión para dos historietas en un material
educativo sobre el embarazo no planeado en el contexto de sus vivencias utilizando la base de datos. de una
investigación participativa, que utilizó el Método Creativo y Sensible, para la Dinámica de la Creatividad y la
Sensibilidad, que brindó imágenes y narrativas que se utilizaron en el desarrollo del argumento “El embarazo
misterioso por besos” y la “Escuela: espacio para diálogos promoción de la salud” que conforma el almanaque ti-
tulado: “Leyendas e historias del embarazo adolescente en una comunidad quilombola. Además de las historias,
el almanaque aborda las demandas cientícas con curiosidades, un hobby y lo sabías. Los relatos producidos de
manera participativa, valoraron experiencias, signicados, divergencias y convergencias entre el conocimiento
popular y el cientíco, traduciendo la realidad cotidiana de los adolescentes afrobrasileños de manera útil, ame-
na, didáctica y esclarecedora, para ser utilizada en el proceso educativo.
Palabras clave: embarazo en adolescencia; conducta y mecanismos de conducta; grupo de ascendencia conti-
nental africana; educación para la salud comunitaria.
Introdução
Desde o final do século XX, estudos vêm suscitando o crescimento do uso de
tecnologias educativas em saúde, como instrumento mediador em prol do bem-
-estar no viver de pessoas, grupos e comunidades (TEIXEIRA, 2017). Entende-
-se como tecnologia, ferramentas, processos ou produtos que permitem ampliar
o envolvimento de profissionais de saúde e educação, na realização de práticas
promotoras do cuidado, possibilitando a educação e a promoção de saúde (SARAI-
VA; MEDEIROS; ARAUJO, 2018; SILVA et al., 2019), favorecendo a autonomia da
pessoa (SALBEGO et al., 2018).
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Na atualidade, tem-se vivenciado uma pandemia de coronavírus (SARS-
-CoV-2), agente causador da Covid-19, que culminou no fechamento de escolas e
no distanciamento social e instigou, principalmente, profissionais de saúde e de
educação a reinventarem novas formas que permitam dar continuidade aos proces-
sos educacionais de crianças e adolescentes. Dentro dos conteúdos curriculares de
ciências naturais, encontra-se o eixo sobre corpo humano e saúde (BRASIL, 1997),
que leva à discussão sobre perpetuação da espécie humana, sendo a gravidez não
planejada uma temática contemporânea que necessita ser abordada de forma sen-
sível, criativa e dialógica.
Gravidez não planejada é a gestação que não é programada pela mulher, po-
dendo ser denominada também como indesejada, tornando-se inoportuna, quando
acontece em um momento considerado desfavorável (EVANGELISTA; BARBIERI;
SILVA, 2015). Embora o Ministério da Saúde tenha registrado uma redução de 17%
na incidência de gravidez na adolescência no Brasil em 2017/1, ela é considerada
um problema de saúde pública, devido à alta ocorrência de morbimortalidade ma-
terna e infantil e por constituir um possível elemento desestruturador da vida das
adolescentes (SOUZA et al., 2017).
Em relação aos fatores que contribuem para o aumento da gravidez na adoles-
cência, destacam-se questões sociais, econômicas, familiares, de gênero, culturais
e de educação (ARAÚJO; NERY, 2018; AZEVEDO, 2018), além do início precoce
da vida sexual associado à ausência do uso de métodos contraceptivos e às difi-
culdades de acesso a programas de planejamento familiar (BORGES et al., 2016;
CAMPOS; SCHALL; NOGUEIRA, 2013).
A adolescência é um período complexo e dinâmico sob os pontos de vista físico
e emocional na vida do ser humano. É nesse período que ocorrem diversas mudan-
ças no corpo e é o início da inserção social, profissional e econômica na sociedade
adulta, marcada por descobertas e instabilidade emocional, momento em que a
personalidade é formada (FONSECA et al., 2013). Esse período de transição e de
vulnerabilidade requer, dos profissionais de saúde e educação, um olhar sensível
e direcionado às reais necessidades desses jovens para a promoção e a educação
em saúde. Para tanto, tem-se aumentado a utilização, por vários profissionais de
diversas áreas do saber, de materiais educacionais para alcançar esse público (BE-
RARDINELL et al., 2014).
Os materiais que veiculam temas sobre saúde, em geral, são produzidos por
técnicos de comunicação de agências de publicidade contratadas por órgãos de
governo, de modo que o leitor final tem pouca participação na construção de um
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material educativo (REBERTE; HOGA; GOMES, 2012). Dessa forma, a linguagem
adotada e as ilustrações de materiais educativos dialogam mais com os conteúdos
científicos do que com as experiências e vivências dos possíveis leitores. Soman-
do-se a isso, a literatura traz estudos sobre gravidez não planejada com jovens
residentes no meio urbano e de raça branca que possuem livre acesso ao serviço
de saúde e à informação, deixando de fora os residentes no meio rural e os negros,
que são maioria (54% é de pretos ou pardos), segundo o último senso do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (BRASIL, 2010).
Dentro dessa abordagem, adolescentes residentes em comunidades quilombo-
la ficam privados de informação que considere os componentes étnico-geográficos
que lhes permitam criar uma identidade de leitores com personagens, cenários e
histórias. Há necessidade de compreender o modo de vida e as particularidades
desse público para melhorar a assistência à saúde, a educação e as políticas públi-
cas direcionadas para as reais necessidades da população, por meio de tecnologias
educativas em saúde, o que pode ser utilizado por diversos profissionais para a
educação e a promoção da saúde nessa faixa etária.
Nesse sentido, uma educação participativa em saúde, que enfatiza uma cons-
trução horizontal do conhecimento, mais do que estratégias tradicionais de trans-
missão vertical do conhecimento, poderia ajudar os adolescentes a tomarem uma
decisão baseada na consciência crítica. É nesse sentido que entendemos que, para
realizar educação em saúde, não basta transferir conhecimentos e conteúdos pron-
tos, pois quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender,
além de aprender a conviver e a ser (DELORS, 2012).
Educação em saúde
Materiais educativos para adolescentes de comunidade quilombola, como re-
presentantes de grupo com ancestrais do continente africano, são escassos (CA-
BRAL; NEVES, 2016). Para muitas temáticas de interesse e para a promoção da
saúde do adolescente, registra-se um vazio de informação que considera os compo-
nentes étnico-geográficos que lhes permitem criar identidades de leitores com per-
sonagens, cenários e histórias. Esse grupo fica à margem do acesso de informações
sobre saúde, pois materiais educativos que refletem mais a visão ontológica do edu-
cador e do produtor da informação, ao invés de produzir saberes, constitui-se em
invasão cultural (FREIRE, 1983). Uma forma de contrapor a essa invasão é promo-
ver a união dos conhecimentos da cultura local com o conhecimento científico, em
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relação à gravidez em um material educativo e de divulgação científica, permitindo
que adolescentes reflitam sobre o mundo onde vivem, compartilhem suas experiên-
cias e vivências na construção desse material. O conhecimento local baseia-se no
senso comum e, segundo a antropologia interpretativa de Geertz (2008), significa
um corpo organizado de pensamento deliberado, resgatado diretamente da expe-
riência, transmitido intergeracionalmente por um determinado grupo social, ao
tempo em que marca a identidade cultural desse grupo.
Nesse sentido, os materiais educativos como as histórias em quadrinhos (HQ)
são gêneros de texto que podem se constituir em uma tecnologia potente na media-
ção de leituras na escola de ensino fundamental e médio e na educação em saúde,
com vistas à formação de cidadania e à promoção de saúde, também em tempos de
pandemia. É preciso levar em consideração saberes de educandos e saberes de edu-
cadores, numa perspectiva freiriana (FREIRE, 2002), para que possa ser elaborado
um material baseado na realidade experimentada e vivida pelo próprio adolescen-
te, ao mesmo tempo em que se constitui em instrumento informativo de conteúdo
científico presente na literatura com potencial para ser utilizado em espaços de
educação dialógica.
A educação dialógica freiriana (FREIRE, 2002), no contexto da saúde, enuncia
um paradigma próprio de pensar e educar, colocando a dimensão subjetiva dos
educandos como parte do processo de construção desse material educativo, centra-
do no diálogo, na decodificação dos temas, na compreensão dos significados para
a produção do roteiro (PARTELLI; CABRAL, 2017). Dessa forma, objetivou-se
ilustrar como os saberes de adolescentes de uma comunidade quilombola foram
incorporadas com os saberes científicos na elaboração de um roteiro de material
educativo sobre a gravidez não planejada no contexto de suas vivências e expe-
riências, utilizando o banco de dados de uma pesquisa participativa realizada no
primeiro semestre de 2019.
Metodologia
Para conhecer o universo cultural e vocabular em relação à gravidez não pla-
nejada em adolescentes residentes em comunidade quilombola, foi realizada uma
pesquisa participante (RAMOS et al., 2018), com abordagem qualitativa, que uti-
lizou o método criativo sensível (MCS) de pesquisa grupal baseada em arte (CA-
BRAL; NEVES, 2016). O MCS favorece a expressão da crítica reflexiva dos estágios
de transitividade da consciência e da dialogicidade própria do fenômeno humano
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investigado. É baseado no referencial teórico de Paulo Freire, que se caracteriza
pela valorização da singularidade de cada indivíduo e pela coletivização das expe-
riências. O método permite, ainda, que o participante, por meio da criatividade e
da sensibilidade, possa expressar seus pensamentos, suas ações e seus conceitos a
respeito do mundo e de si mesmo, utilizando dinâmicas de criatividade e sensibili-
dade (DCS). As DCS são compostas por cinco momentos do MCS: 1º) apresentação
individual e coletiva, disponibilizando o material para a atividade a ser realizada
no ambiente, lançar a questão geradora de debate (QGD) e explicar a atividade; 2º)
tempo para a produção da atividade sugerida/explicada; 3º) exposição das produ-
ções artísticas, quando se sentirem prontos; 4º) discussão grupal, a partir da QGD;
e 5º) momento em que o pesquisador resume o conjunto dos temas e subtemas,
enquanto o grupo o valida.
A pesquisa foi realizada na comunidade quilombola mais antiga de São Ma-
teus, fundada em 1822 (MACIEL, 2016), localizada na zona rural, às margens do
Rio Cricaré, na região conhecida como Sapê do Norte, a 44 quilômetros do municí-
pio de São Mateus, Espírito Santo.
Comunidades quilombolas são grupos étnicos, constituídos pela população
negra rural ou urbana, que se autodefinem a partir das relações com a terra, o pa-
rentesco, o território, a ancestralidade, as tradições e práticas culturais próprias.
Os quilombos eram aldeias formadas por escravos que fugiam das fazendas e casas
de família. Ficavam escondidas nas matas, em lugares preferencialmente inacessí-
veis, como o alto de montanhas e grutas, e era onde então os escravos se reuniam
e conseguiam levar uma vida livre. As pequenas aldeias eram também chamadas
mocambos, e tanto eles como os quilombos duraram todo o período da escravidão
no Brasil (NARDOTO; LIMA, 2001).
O tráfico de negros no Brasil surgiu por uma questão econômica e pela ne-
cessidade de mão de obra qualificada para trabalhar nos engenhos de açúcar da
colônia (ALBUQUERQUE; FRAGA FILHO, 2006). O tráfico de negros entre o Es-
pírito Santo e a África começou em fins de 1621 (OLIVEIRA, 2008). No Norte do
Espírito Santo, a resistência ao sistema escravista, com inúmeras fugas, consoli-
dou vários quilombos na região. Atualmente, a região denominada Sapê do Norte,
composta pelos municípios de São Mateus e Conceição da Barra, possui mais de
trinta comunidades quilombolas, compostas por descendentes diretos dos escravos
(NARDOTO; LIMA, 2001).
Segundo Silva e Carvalho (2008), o tráfico de africanos escravizados perdu-
rou por longo período de tempo no Porto de São Mateus, onde os escravos eram
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comercializados e encaminhados para as diversas fazendas da região. O porto de
São Mateus constituía-se como o centro dessa comercialização, abastecendo os la-
tifúndios de mandioca, cana de açúcar e, mais tarde, café, quando, em algumas fa-
zendas capixabas, chegava a haver 400 trabalhadores. Foi nesse porto que ocorreu
a apreensão do último carregamento clandestino na costa brasileira em 1856, com
350 africanos (NARDOTO; LIMA, 2001).
A comunidade quilombola onde o estudo foi realizado é composta por 64 fa-
mílias, totalizando 207 pessoas, segundo cadastramento da estratégia de saúde
da família. Essas famílias apresentam várias características em comum, como:
parentesco – são todos parentes, provavelmente de origem angolana (NARDOTO;
LIMA, 2001) –, costumes, cultura e vida social. Para a pesquisa, a liderança da
comunidade e a agente comunitária de saúde distribuíram convites às famílias de
adolescentes para uma reunião, a qual ocorreu no último domingo do mês de mar-
ço de 2019, quando foi exposta a proposta e realizado o convite para participação
na pesquisa. Na sequência foi lido e explicado o conteúdo dos termos da pesquisa
(consentimento livre e esclarecido, para os pais/responsáveis, e de assentimento,
para os adolescentes), seguido do recolhimento das assinaturas em concordância a
participação. Todos os preceitos éticos foram respeitados, sendo a pesquisa iniciada
após aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa (Certificado de Apresentação
de Apreciação Ética n. 99138718.1.0000.5063). Participaram nove adolescentes,
sendo três meninos e seis meninas, com idades entre 11 e 15 anos, todos residentes
na comunidade quilombola.
A geração de dados foi implementada com dois encontros. No primeiro, apli-
cou-se a dinâmica de sensibilização: “Encurtando distâncias”, com o emprego da
QGD “Eu sou... estou... quero...”. Essa dinâmica favoreceu a constituição da iden-
tidade grupal dos participantes para fins da pesquisa. Além disso, ajudou com a
integração e a construção do sentimento de pertencimento no grupo, envolvendo
os participantes, a pesquisadora e os auxiliares de pesquisa. No segundo encontro,
com a aplicação da dinâmica “Corpo saber”, com a QGD: “Qual sua percepção sobre
gravidez não planejada na fase da adolescência aqui na comunidade?”, trouxe a
memória latente da percepção do adolescente residente em comunidade quilombo-
la quanto à gravidez não planejada e às manifestações comportamentais do ado-
lescente a se imaginar na situação de uma gestação não planejada. Com o material
fornecido (cartolina, canetinhas e cola) e em torno de 118 palavras, o grupo elabo-
rou uma produção artística. A preocupação foi fornecer palavras que envolvessem a
questão da gravidez. Houve separação natural de meninos e meninas e cada grupo
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foi convidado a desenhar a silhueta de uma gestante na cartolina. A partir disso,
o grupo se debruçou para realizar a produção artística, colando as palavras-chave
oferecidas pela pesquisadora ou escrevendo novas na parte do corpo que julgaram
pertinentes, com a finalidade de responder à QGD, durante o tempo livre necessá-
rio. Durante a realização da atividade manual, o grupo discutiu e compartilhou o
material fornecido.
O corpus textual das DCS forneceu um banco de dados com imagens e nar-
rativas (MORAES-PARTELLI; COELHO; FREITAS, 2021), que foram utilizadas
no desenvolvimento de um roteiro de duas HQ contidas em um almanaque. Dessa
forma, as imagens foram utilizadas para compor cenário e cenas das HQ. Já as
narrativas revelaram três categorias temáticas: 1) repercussão da gravidez para os
adolescentes na comunidade quilombola; 2) direitos da gestante na comunidade; e
3) comportamento das famílias e dos adolescentes frente à gravidez na comunidade
quilombola; que foram utilizadas nos enredos das duas HQ.
Quanto à repercussão na vida dos adolescentes na gravidez não planejada, os
participantes mencionaram que isso traz mudanças na vida do adolescente, rela-
cionadas ao abandono dos estudos para trabalhar na propriedade da família ou em
outra propriedade rural para sustentar a criança que irá nascer. Outra repercus-
são é o aumento da responsabilidade, principalmente das meninas, que assumem
o cuidado integral da criança, enquanto o sustento do filho é de competência mas-
culina. Observou-se crítica ao comportamento de algumas meninas que ingerem
bebida alcoólica mesmo na gestação. Na comunidade quilombola, ficou evidente a
diferença de gênero, em que o adolescente assume o papel de “homem”, replicando
atitudes consideradas como comuns no meio social em que vivem. Em relação aos
direitos das gestantes, foi citado o direito ao acesso à saúde pública, o acolhimen-
to, a família, a alimentação saudável, etc. Sobre o comportamento das famílias e
dos adolescentes diante da gravidez, evidenciou-se que, na comunidade, não há o
hábito de se casar, mas, sim, de se “juntar”/”amasiar”, sem pensar em um futuro
próximo, e que geralmente a menina vai morar na casa do menino, sendo bem
acolhida pela sua família.
Dessa forma, a gravidez na adolescência na comunidade quilombola é um
período de grandes mudanças, principalmente pela interrupção dos estudos para
assumir o trabalho para o sustento da nova família. Porém, com o amparo da co-
munidade, da família e do parceiro e com todos os direitos/deveres sendo prestados/
exercidos, a gravidez se torna um momento menos árduo de ser vivenciado (LU-
CIO, 2019).
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Para dar continuidade ao processo educacional de adolescentes em tempos de
pandemia, este artigo ilustra como as imagens e as narrativas de adolescentes de
uma comunidade quilombola foram incorporadas aos saberes científicos na elabo-
ração de roteiro de HQ sobre a gravidez não planejada, utilizando o banco de dados
de uma pesquisa participativa baseada em arte.
Escolha do material educativo e metodologia de criação do roteiro
A história registra que, desde tempos remotos, o almanaque esteve presen-
te na vida das pessoas e é um dos principais instrumentos promotores de aces-
so e difusão de conhecimento na forma escrita nas classes populares (CALDAS;
BAALBAKI, 2018). Na história do uso dos almanaques, eles eram recursos para os
viajantes das cidades, que necessitavam de informações geográficas para se locali-
zar. Já os habitantes também saíam favorecidos, pois acabavam por localizar mais
facilmente produtos e serviços. Percebe-se que, por essa diversidade de conteú-
do, os almanaques tornaram-se inventários minuciosos acerca dos pormenores da
vida cotidiana de muitas cidades. Eles também continham conselhos relacionados
à moral e à virtude, chegando a regular todos os aspectos da vida humana. Eram
conselhos abrangendo modos de alimentação, o que comprar, como dormir, regras
de conduta social, etc. O almanaque demonstra a preocupação em como instruir a
população. O foco passa a não ser exclusivamente ligado ao caráter divinatório. Os
almanaques vão incorporar os saberes da ciência e da história, levando os leitores
a uma reflexão da sua realidade, pois partem da realidade do sujeito, mostram
sua história, seus saberes, suas práticas, tendo sua origem no conhecimento que é
popular (TRIZOTTI, 2008; PEREIRA, 2012).
Devido às suas características populares, o almanaque no formato de HQ foi
escolhido para a produção do material educativo. Assim, a organização e a forma-
tação de um roteiro tipo storyboard foram fundamentais e necessárias para faci-
litar o desenvolvimento da etapa de criação das HQ, que foram incorporadas em
um almanaque, enquanto forma de arte. Esse roteiro abrangeu a estruturação da
descrição das cenas e dos personagens, a inserção de diálogos dos personagens, a
narrativa entre as cenas, a ligação com textos explicativos, entretenimentos peda-
gógicos e comentários gerais.
A utilização de roteiros é uma etapa de pré-produção que apresenta imagens
do ambiente no qual a história se passa, dos personagens, das narrativas, apresen-
tadas em quadros de tal forma que organizem o material. Os roteiros são utilizados
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para escrita de cenas de filmes, peças teatrais, quadrinhos em rádios, HQ, etc.
(CAMPOS, 2007).
Como a literatura aponta vários formatos de roteiros (FIELD, 2001; CAM-
POS, 2007), adaptamos o formato descrito por Campos (2007) para elaborar dois
storyboards provisórios com os materiais empíricos fornecidos pelos participantes,
que se constituíram em fonte de inspiração para a construção de um material edu-
cativo dialógico, interativo e culturalmente centrado na vida.
Os contos, os acontecimentos e as lendas mantêm o existir de uma comunidade
cenário das histórias, além de definir um percurso, organizar e narrar as histórias
que retratam a gravidez não planejada, suas repercussões na vida individual e em
família dos adolescentes. São baseados em roteiros escritos, com textos previamen-
te elaborados que reproduzem a fala dos personagens dentro de um contexto socio-
-histórico (JARCEM, 2007). Podem ser fictícios ou baseados em acontecimentos do
cotidiano. Caracterizam-se pela narração de fatos com diálogos naturais, por meio
dos quais os personagens interagem com palavras, gestos e expressões faciais. O
discurso é direto, em balões, auxiliado por legendas e recursos linguísticos (pala-
vras onomatopeicas, sinais de pontuação), paralinguísticos (intensidade de sons,
velocidade de pronúncia e expressão de emoções) e visuais (figuração pictórica das
emoções dos personagens, nos balões e nas letras) (PRESSER; SCHLÖGL, 2013).
Após a definição de que o almanaque seria constituído de HQ, o próximo passo
foi construir as histórias com o vasto material disponível no banco de dados. Esse
material forneceu dados para a criação de cenas, cenários, personagens e enredo
das HQ.
Informações locais para a produção dos roteiros de HQ do almanaque
A primeira premissa adotada para a construção de um roteiro de almanaque
no formato de HQ foi a seleção de informações geográficas. Nesse sentido, foram
utilizadas informações geográficas contidas no almanaque “Álcool e ritos de adoles-
centes em uma comunidade quilombola” (PARTELLI; CABRAL, 2016), produzido
pela primeira autora deste manuscrito, e por também ser o locus da pesquisa atual.
Assim, foi elaborada uma descrição da comunidade fictícia, de forma a manter
imagens de um ambiente rural com plantações (café, pimenta do reino, etc.), casas,
escola, igreja, campo de futebol e botecos da comunidade quilombola.
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Descrição geográca do local em que as HQ ocorreram
Para fugir da escravidão, em 1822, foi criada a Comunidade Quilombola
Chiumbo (Figura 1), a mais antiga comunidade remanescente de quilombo do
município de São Mateus, no Norte do Espírito Santo, Brasil, localizada em zona
rural, às margens do Rio Cricaré, está a 44 quilômetros do município. O acesso à
comunidade é por estrada de chão, passando-se por uma grande plantação de coco,
mantida por uma empresa que emprega muitas pessoas. Na comunidade, há plan-
tações de café conilon, pimenta do reino e árvores frutíferas usadas no sustento
das famílias e na agricultura familiar. Atualmente, a comunidade tem uma Igreja
Católica, uma Igreja Evangélica, um campo de futebol, cinco bares/botecos e uma
escola municipal pluridocente.
Figura 1 – Cenário da Comunidade Quilombola Chiumbo onde as histórias acontecem, São Mateus, ES, 2019
Fonte: modificado do almanaque Álcool e ritos de adolescentes em uma comunidade quilombola, 2016.
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A escola municipal pluridocente1 da comunidade funciona em dois turnos,
ofertando o ensino fundamental com uma classe de alfabetização e uma classe de 4º
ao 6º ano, no turno matutino, e uma classe de 1º, 2º e 3º anos, no turno vespertino. A
conclusão do ensino fundamental ocorre na Escola Família Agrícola (EFA)2 do Km
41, que funciona em sistema de alternância. Os alunos frequentam integralmente
a escola durante uma semana e, na outra semana, desenvolvem atividades com a
família. A prefeitura disponibiliza ônibus para o trajeto diário dos estudantes. Para
continuar os estudos no ensino médio, geralmente, os jovens estudam na EFA de
Boa Esperança, para obtenção do diploma de técnico agrícola, ou procuram outras
escolas de São Mateus.
Em relação à assistência à saúde, as pessoas que residem na comunidade
contam com a atenção primária fornecida pela Unidade Básica de Saúde (UBS),
mantida pela Prefeitura Municipal de São Mateus. Essa UBS encontra-se a 12
quilômetros da comunidade. Há cobertura pelo Programa de Agente Comunitário
de Saúde, que está em atividade há 16 anos.
Hoje, apesar de algumas dificuldades, principalmente pela distância de al-
guns serviços como a saúde, é possível estudar até o 6º ano na comunidade. Mas,
nem sempre foi assim. É possível ouvir dos antigos moradores várias histórias,
contos e lendas que foram fatos reais que aconteceram há muito tempo e que hoje
fazem parte da vida social e cultural das pessoas que ali vivem.
Descrição biográca dos personagens
Prosseguindo na construção das HQ, passou-se à caracterização dos persona-
gens, para tanto, a descrição biográfica, os nomes e as caricaturas dos personagens
também são fictícios e inspirados na descrição de caracterização dos adolescentes
contidas no banco de dados. Dessa forma, os personagens apresentam identidades
socioculturais compatíveis com o modo de vida da população residente na Comuni-
dade Quilombola Chiumbo.
Kenyetta – adolescente do sexo feminino com 12 anos de idade. No ano de 2019,
cursava o 6º ano do ensino fundamental na Escola Pluridocente Municipal da Co-
munidade Quilombola, no turno da manhã. Era líder de turma. Seu pai é agricultor
e a família cultiva: café conilon e pimenta do reino, para venda; frutas, como coco,
jaca, banana, manga e abacate, para consumo próprio ou distribuição para outras
pessoas da comunidade. Sua mãe é do lar, trabalha na propriedade da família e,
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eventualmente, em outras propriedades da comunidade, na colheita da pimenta do
reino; sendo remunerada pelo dia trabalhado. Tem uma irmã (de 15 anos) e dois
irmãos (um de 9 anos e outro de 13 meses).
Eshe – adolescente do sexo feminino com 13 anos de idade. No ano de 2019, cursa-
va o 6º ano do ensino fundamental na Escola Pluridocente Municipal da Comunida-
de Quilombola, no turno da manhã. Sempre obteve sucesso escolar, sendo aprovada
anualmente. Faz parte de uma família de formação evangélica (Igreja Evangélica
Assembleia de Deus), composta de pai, mãe e irmão (17 anos). Sua família possui o
título de propriedade rural onde reside e planta em regime de agricultura familiar.
Sandra – tem 35 anos e é enfermeira da unidade de saúde que atende a Comuni-
dade Quilombola Chiumbo. Ela enfrenta grandes desafios na promoção de saúde
em seu território de responsabilidade, pois este é muito grande e de difícil acesso.
Malaika – tem 56 anos e é uma das professoras na Escola Pluridocente Municipal
da Comunidade Quilombola, em dois turnos, sendo que o turno matutino atende
duas turmas e o turno vespertino atende uma turma. Dedicada à sua profissão,
adora o que faz, leciona na comunidade há 30 anos, na qual é também moradora.
Informações históricas e culturais
A terceira premissa da elaboração das HQ de um almanaque, para atender ao
critério de temporalidade, é a informação histórica como transversal aos saberes
construídos localmente. Nos storyboards, as informações históricas retratam uma
festa tradicional religiosa celebrada na comunidade quilombola: a Folia de Reis,
que mobiliza toda a comunidade em sua preparação, além de representar grande
evento.
A Festa de Reis tem início no dia 06 de janeiro (Santos Reis) e se prolonga
até 03 de fevereiro (São Brás), homenageando os três reis magos (Gaspar, Bal-
tazar e Belchior) que visitaram e presentearam Jesus Cristo no seu nascimento.
Os grupos, trajando camisas de mangas compridas, faixa de fita cruzada sobre o
peito, chapéus e fitas multicoloridas, visitam as casas das pessoas cantando o “abre
portas”, anunciando que o Menino Jesus havia nascido. Os cânticos são produzidos
pelos próprios componentes do grupo com temas diversos. As pessoas festejam com
muita alegria e envolvimento da comunidade.
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Com o banco de dados produzido na pesquisa anterior, compreendeu-se que a
vida rural na comunidade quilombola apresenta aspectos próprios, a identidade de
um povo, que permeiam e orientam o cotidiano das famílias, sendo que a gravidez
não planejada na adolescência apresenta repercussões, porém não é encarada pelos
adolescentes participantes como um problema, e, sim, como uma fase de transição
da vida, marcada por abandono dos estudos, aquisição de emprego, união estável,
aquisição de responsabilidades, o que necessita do apoio das famílias. Nesse sen-
tido, o tema gravidez não planejada na adolescência requer uma forma criativa e
sensível de abordagem. A utilização e a reinvenção de instrumentos mediadores,
como os materiais educativos, para a educação em saúde, podem ser alternativas
interessantes para essa abordagem, principalmente em período de pandemia.
Para contrapor a invasão cultural, na perspectiva freiriana, buscou-se pro-
mover a união dos saberes de uma cultura local com o conhecimento científico,
em relação à gravidez não planejada, permitindo que adolescentes possam refletir
sobre o mundo em que vivem, compartilhando suas experiências e vivências na
construção desse material. Portanto, o processo de autonomia, tomada consciente
de decisão, escuta, diálogo, a relação eu-tu, a reflexão coletiva e a criticidade se
efetivaram com a participação de adolescentes fornecendo material empírico para
a construção das HQ desse almanaque, pois tomou-se como marco de referência
suas raízes histórico-sociais e culturais.
O ser humano é histórico, logo, está imerso em condições espaço-temporais,
isto é, o homem, estando nessa situação, quanto mais refletir de maneira crítica so-
bre a sua existência, mais poderá influenciar-se e será mais livre (FREIRE, 2013).
Enredo das histórias em quadrinhos
Os adolescentes, durante as DCS, forneceram um material rico de informa-
ções, bastando a pesquisadora dar um começo, definir um percurso, organizar e
narrar as HQ do almanaque, que foi intitulado “Lendas e histórias de gravidez na
adolescência em uma comunidade quilombola”. Portanto, as narrativas dos adoles-
centes foram utilizadas para construir os roteiros das HQ “A misteriosa gravidez
pelo beijo” e “Escola: espaço para diálogos e promoção da saúde”, como será apre-
sentado nos enredos a seguir.
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A misteriosa gravidez pelo beijo
Nessa história, a enfermeira Sandra conta uma lenda que ouviu dos antigos
moradores da comunidade Chiumbo. Há muitos e muitos anos, morava na comu-
nidade uma menina de 13 anos, muito bonita, ingênua e sonhadora, que queria ser
cantora. Certo dia, em noite de lua cheia, na festa de Reis, apareceu um rapaz todo
de branco que beijou a mão da menina e ela teve um sonho muito inusitado. Após
acordar, percebeu que tudo não passou de sonho e refletiu sobre as mudanças em
sua vida com uma gravidez não planejada.
Escola: espaço para diálogos e promoção da saúde
A história acontece com a conversa de duas meninas sobre uma lenda envol-
vendo a tataravó de uma delas. Essa conversa teve início após uma aula sobre
puberdade e adolescência, que a enfermeira ministrou na escola da comunidade.
As HQ constituem-se de enredos narrados, quadro a quadro, por meio de ima-
gens e textos, utilizando discursos diretos, característicos da língua falada (ARAÚ-
JO; MERCADO, 2007), podendo ser facilmente identificados em razão de suas
particularidades específicas: os balões e os quadros (MENDONÇA, 2002). Dessa
forma, o roteiro foi organizado e estruturado com quadros numerados na sequência
dos fatos, contendo textos narrados na porção superior, balões com diálogo dos per-
sonagens e imagens no centro do quadro. A descrição das cenas ocorreu após a fala
do narrador, pois, nas HQ, “o texto é lido como imagem e as imagens são comunica-
dores que, em situações, falam mais que os próprios textos” (EISNER, 1999, p. 10).
A Figura 2 ilustra parte do processo de produção do storyboard preliminar da
HQ 1 – “A misteriosa gravidez pelo beijo” e da HQ 2 – “Escola: espaço para diálogos
e promoção da saúde”.
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Figura 2 – Fragmentos do storyboard preliminar das HQ, contendo sequência de quadros com narrativas e
imagens, São Mateus, ES, 2019
HQ 1 A misteriosa gravidez pelo beijo
HQ 2 “Escola: espaço para diálogos e promoção da sde”
Fonte: modificado do almanaque Álcool e ritos de adolescentes em uma comunidade quilombola, 2016.
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As informações cientícas incorporadas ao material educativo
Outra premissa do almanaque é a escolha do formato do conteúdo científico
informativo a ser mediado. Nesse sentido, realizou-se busca na literatura para for-
necer aporte literário para obtenção do conhecimento, por meio da leitura de ma-
teriais científicos que envolvessem conteúdos referentes à gravidez. Nesse sentido,
elegeu-se o formato “Curiosidades” e “Você sabia”. Além disso, o passatempo foi
incorporado no almanaque pela sua interatividade e sua dialogicidade na composi-
ção de textos humorísticos ou recreativos, com informações variadas específicas de
vários campos do conhecimento.
As curiosidades no formato de informações científicas foram inseridas nas his-
tórias com texto curto e direto, logo após a exposição da situação-problema pelos
personagens. Dessa forma, as curiosidades sobre adolescência, gravidez e formas
de prevenção foram abordadas da seguinte forma nas HQ:
Curiosidade: A adolescência é um período do desenvolvimento social, psicológico e biológico, com vivências,
transformações corporais e fisiológicas e relações interpessoais mais complexas, inclusive por situações de
violência em contexto escolar.
Curiosidade: Puberdade é o período em que ocorrem mudanças corporais, como altura e forma, preparando
o corpo de meninos e meninas para a reprodução.
Curiosidade: A reprodução é fundamental para a perpetuação das espécies, uma vez que os seres vivos
surgem apenas a partir de outros seres vivos iguais a eles, por meio desse processo.
Curiosidade: Educação sexual é um termo utilizado para se referir ao processo que busca proporcionar co-
nhecimento e esclarecer dúvidas sobre temas relacionados à sexualidade.
Curiosidade: Métodos contraceptivos são diferentes formas de evitar uma gravidez. Os métodos contracepti-
vos impedem a fecundação (o encontro do óvulo com o espermatozoide) e a gravidez não planejada.
O formato “Você sabia” foi inserido no almanaque como conteúdo científico
complementar, não fazendo parte das HQ e mais amplo em relação às curiosidades
(Figura 3).
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Figura 3 Fragmento do Você sabia” contido no almanaque “Lendas e histórias de gravidez na adolescên-
cia em uma comunidade quilombola, São Mateus, ES, 2019
Fonte: modificado do almanaque Álcool e ritos de adolescentes em uma comunidade quilombola, 2016.
Os passatempos foram elaborados em quadros, conforme modelo apresentado
em dois jogos: palavras cruzadas e caça-palavras (Figura 4).
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Figura 4 Fragmento do passatempo do almanaque “Lendas e histórias de gravidez na adolescência em
uma comunidade quilombola, São Mateus, ES, 2019
Fonte: modificado do almanaque Álcool e ritos de adolescentes em uma comunidade quilombola, 2016.
Dessa forma, o adolescente (educando) participou, com suas narrativas, na
construção de uma tecnologia educacional inovadora, que é dialógica e que partiu
de informações que vêm do mundo social e da leitura social dele, e não do pesqui-
sador. O educando é lotado de criticidade. Esta se apresenta capilar na produção
das HQ do almanaque, que foi elaborado no espaço da pesquisa participante que
compôs o banco de dados de pesquisa. Assim, o almanaque produzido nessa pesqui-
sa configurou-se como uma tecnologia educacional em saúde, construído a partir
de elementos textuais e imagéticos cujas características se situaram nas fronteiras
entre as formas de sistematização científica, apropriadas pela concepção popular
de “informação útil”, e servindo, ao mesmo tempo, como espaço de expressão da
cultura popular naquilo que esta conserva, cria e recria do mundo da vida e da
ciência (MARTELETO; DAVID, 2014; LIMA, 2020).
A produção de materiais educativos vem ganhando um considerável espaço no
que se refere à educação em saúde da população. Esse fato se dá porque eles têm
sido utilizados como uma ferramenta facilitadora no que tange ao esclarecimento
de dúvidas relacionadas aos diversos temas da saúde. Por se tratar de um mate-
rial educativo baseado nas narrativas e na participação dos leitores finais, foram
consideradas as condições socioeconômicas, as experiências, a etnia e a cultura
do público-alvo, aproximando assim as HQ e as ilustrações à realidade social dos
leitores, com propósito de estimular novas verdades, modificar conceitos, práticas
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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e comportamentos em busca de uma vida mais saudável (PINHEIRO; FREITAS;
PEREIRA, 2017).
Esse é um novo modelo de atuação de profissionais da educação e da saúde
que começa a superar a visão hegemônica e normatizadora de cuidar da vida da
população (GALHARDI; MATSUKURA, 2018). Nesse contexto, a educação popu-
lar oferece um instrumental teórico fundamental para o desenvolvimento dessas
novas relações, “através da ênfase ao diálogo, à valorização do saber popular e à
busca de inserção na dinâmica local” (CRUZ, 2018), tendo a identidade cultural
como base do processo educativo e compreendendo que o “respeito ao saber popular
implica necessariamente o respeito ao contexto cultural” (FREIRE, 1999, p. 86).
Considerações nais
O desenvolvimento do roteiro de HQ do almanaque educativo responde a uma
necessidade de produção de tecnologias educacionais para adolescentes no âmbito
da prevenção da gravidez não planejada. Para isso, foram utilizadas estratégias de
pesquisa participante baseada em arte, que valorizaram experiências, significa-
dos, divergências e convergências entre o saber popular e o científico, traduzindo
a realidade do cotidiano dos adolescentes afro-brasileiros de forma útil, prazerosa,
didática e esclarecedora.
O pensamento de Freire tem colaborado de forma significativa na construção
de uma educação reflexiva na saúde, incorporando uma educação crítica e pro-
blematizadora na mediação entre o profissional e a população, compreendendo o
que é e para que serve a educação, indo de encontro à proposta pedagógica ain-
da hegemônica do monólogo, batendo de frente com aqueles conteúdos prontos e
preestabelecidos.
Dessa forma, ao utilizar o diálogo para a produção de HQ sobre a gravidez, me-
diado pelos saberes de adolescentes e pelos saberes científicos, baseado nas ideias
de Freire, pretendemos contribuir para que a educação em saúde ocorra de forma
crítica, criativa e libertadora, preparando os adolescentes para compreender seu
mundo; assim, conscientemente, eles estarão mais abertos e aptos para vencerem
desafios, descobertas e possíveis soluções dos problemas e conflitos existentes, ou
seja, eles se tornarão abertos para a leitura de mundo.
Ao final, o almanaque intitulado “Lendas e histórias de gravidez na adoles-
cência em uma comunidade quilombola” foi composto por 28 páginas: capa, folha
de rosto com ficha técnica com os nomes dos elaboradores, folha de apresentação,
764 ESPAÇO PEDAGÓGICO
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dois roteiros das histórias, “Você sabia”, passatempos, referências e contracapa. O
próximo passo será contratar empresa para diagramar essa tecnologia e disponibi-
lizá-la via rede social.
Notas
1 A escola pluridocente é aquela que tem mais de um professor dando aula para várias séries numa mesma
sala de aula. É destinada à educação do campo.
2 EFA é uma associação de famílias, pessoas e instituições que buscam solucionar problemas relacionados
ao campo e ao desenvolvimento local, por meio de atividades de formação. Baseia-se em quatro pilares:
associativismo, pedagogia de alternância, formação integral e desenvolvimento local. A EFA do Km 41 é
filantrópica, contudo, equiparada à publica pela Lei Estadual n. 7.875, de 26 de novembro de 2004.
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Júlio Cesar Bresolin Marinho
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“Se tomo um pileque, dou a vez na direção?1”: investigando percepções de
adolescentes cabo-verdianos e brasileiros sobre a prevenção de acidentes de trânsito
“Se tomo um pileque, dou a vez na direção?”: investigating perceptions of cape verdian and
brazilian teens on the prevention of trac accidents
“Se tomo um pileque, dou a vez na direção?”: investigando las percepciones de los adolescentes
caboverdianos y brasileños acerca de la prevención de accidentes de tráco
Júlio Cesar Bresolin Marinho*
Resumo
Dirigir sem habilitação e após consumir bebida alcoólica pode gerar graves acidentes de trânsito. A população
adolescente necessita de atenção em relação a essa questão. Dessa forma, investigou-se o pensamento dos ado-
lescentes sobre a prevenção de acidentes de trânsito. A pesquisa é qualitativa e utilizou como técnica a realiza-
ção de grupos focais com o uso de um dilema moral. Participaram 45 adolescentes de Cabo-Verde e do Brasil. Os
dados foram analisados mediante técnica da análise do discurso do sujeito coletivo e resultaram na construção
de quatro discursos, nos quais foi evidenciada a força da heteronomia moral. Para que o sujeito não se exponha
e coloque sua vida em risco em um acidente de trânsito, acredita-se ser necessário que ele se perceba como al-
guém de valor. Para isso, é preciso o desenvolvimento da autoestima, da autoconança e do autorrespeito, bem
como a construção de representações de si com valor positivo.
Palavras-chave: educação em saúde; educação para o trânsito; adolescentes.
* Licenciado em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa), Campus São Gabriel (2010).
Doutor em Educação em Ciências pelo Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências: Química da Vida e
Saúde – Associação Ampla entre UFRGS/UFSM/Furg (2018), com período sanduíche na Universidade de Cabo Verde
– UniCV (Praia, Ilha de Santiago, Cabo Verde, 2015). Integrante do Grupo de Pesquisa Desenvolvimento, Meio Am-
biente e Sociedade (GPDEMAS/Unipampa) e do Grupo de Estudos e Pesquisas em Linguagem no Ensino de Ciências
(Geplec/UFSJ). Professor Adjunto da Unipampa, Campus São Gabriel, atuando nas disciplinas pedagógicas do Curso
de Ciências Biológicas – Licenciatura, e professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Educação em
Ciências: Química da Vida e Saúde da UFSM. Na Unipampa, é Coordenador do Curso de Licenciatura em Ciências
Biológicas; docente orientador voluntário do núcleo Ciências e Biologia do Programa Residência Pedagógica da Ca-
pes; membro titular do Comitê Local de Gênero e Sexualidade; membro titular da área de Ciências da Natureza e
suas Tecnologias da Comissão Institucional de Formação dos Prossionais da Educação Básica (CIFOR). Orcid: https://
orcid.org/0000-0002-2313-500X. E-mail: marinhojcb@gmail.com
Recebido em: 26/10/2020 – Aprovado em: 12/08/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i2.11782
769
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Abstract
Driving without a license and after drinking alcohol may lead to serious trac accidents. The teen population
needs attention concerning this issue. Therefore, the thought of teens on prevention of trac accidents was
investigated. It consists of a qualitative research and we used the technique of focus groups with the usage
of a moral dilemma. 45 Cape Verdian and Brazilian teens participated. Data was analyzed through the use of
Discourse Analysis technique of the Collective Subject and it resulted in the construction of four discourses, in
which the strength of moral heteronomy was highlighted. For the subject not to be exposed and put at risk his
life in a trac accident, we believe it is necessary that he sees himself as someone worthy. In order to do that,
self-esteem and self-respect need to be developed as well as the construction of representations of the self with
a positive value.
Keywords: health education; trac education; teens.
Resumen
Conducir sin licencia y después de consumir alcohol puede causar accidentes de tránsito graves. La población
adolescente necesita atención en relación con este tema. Así, se investigó el pensamiento de adolescentes sobre
la prevención de accidentes de tráco. La investigación es cualitativa y, como técnica, se utilizaron grupos foca-
les con el uso de un dilema moral. Participaron 45 adolescentes de Cabo Verde y Brasil. Los datos se analizaron
utilizando la técnica de análisis del Discurso del Sujeto Colectivo y dieron como resultado la construcción de
cuatro discursos, en los que se evidenció la fuerza de la heteronomía moral. Para que el sujeto no se exponga
y ponga en riesgo su vida en un accidente de tráco, creemos que es necesario que se perciba como alguien
valioso. Para esto, es necesario desarrollar la autoestima, la autoconanza y el respeto propio, así como la cons-
trucción de representaciones del yo con valor positivo.
Palabras clave: educación para la salud; educación para el tráco; adolescentes.
Contextualizando a investigação
O consumo de bebidas alcoólicas por adolescentes é um crescente e associado
à direção de veículos, mesmo que em pequenas quantidades, compromete a capaci-
dade de dirigir (SBP DA, 2007). Françoso (2005) apresenta dados do Ministério da
Saúde brasileiro que colocam os acidentes de trânsito como a causa externa/violenta
que mais mata adolescentes na faixa etária de 10 a 14 anos e a segunda entre 15 e
19 anos, perdendo apenas para homicídios. Nesse contexto, investigar o pensamen-
to dos adolescentes sobre a prevenção de acidentes de trânsito se faz pertinente.
Optou-se por desenvolver este estudo com adolescentes oriundos de dois con-
textos geográficos e culturais diferenciados, na tentativa de perceber a existên-
cia, ou não, de diferenças em relação aos adolescentes de outro país (Cabo Verde),
quando comparados aos adolescentes brasileiros. A escolha por adolescentes de
Cabo Verde foi propiciada pela oportunidade de mergulhar em outra cultura no pe-
ríodo do doutorado sanduíche2 e por concordar com La Taille (2006, p. 20), quando
menciona que:
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[...] mesmo em se verificando que, em todas as sociedades, é dado valor à vida, à verdade
e à reprodução humana e que, portanto, os comportamentos relacionados a esses valores
são objetos de regras, somos forçados a reconhecer que tais regras variam, e muito, de uma
sociedade para outra, notadamente em relação ao universo de sua aplicabilidade.
O perfil populacional de Cabo Verde é acentuadamente jovem, visto que 65
pessoas em cada 100 têm menos de 24 anos (ANJOS, 2005), e o alcoolismo configu-
ra-se como um grave problema de saúde pública. De acordo com o Primeiro Inqué-
rito Nacional sobre o Consumo de Substâncias Psicoativas no Ensino Secundário
(realizado em 2013): “45,4% de estudantes entre 12 e 18 anos já ingeriram álcool
pelo menos uma vez na vida3”.
A idade mínima para a obtenção de carta de condução em Cabo Verde, pelo
artigo 122 do Código de Estrada (CABO VERDE, 2005), depende da habilitação
pretendida, sendo necessário um mínimo de: 16 anos, para subcategorias A1 (mo-
tocilclos de cilindrada não superior a 125 cm3 e de potência máxima de até 11Kw)
e B1 (triciclos e quadriciclos); 18 anos para categorias A (motocilclos de cilindrada
superior a 50 cm3, com ou sem carro lateral), B (automóveis ligeiros ou conjuntos
de veículos compostos por automóvel ligeiro e reboque de peso bruto até 750 kg
ou, sendo este superior, com peso bruto do conjunto não superior a 3.500 kg, não
podendo, neste caso, o peso bruto do reboque exceder a tara do veículo tractor) e B +
E (conjunto de veículos compostos por um automóvel ligeiro e reboque cujos valores
excedam os previstos para a categoria B); e 21 anos, para as demais categorias.
Em relação ao consumo de álcool em Cabo Verde, embora exista uma lei em
vigor que:
[...] proíba a venda de bebidas alcoólicas a menores de 18 anos, é bem de ver que 45,4% de
estudantes entre 12 e 18 anos já ingeriram álcool pelo menos uma vez na vida, como revela
o Primeiro Inquérito Nacional sobre o Consumo de Substâncias Psicoativas no Ensino Se-
cundário, realizado em 2013 (CABO VERDE, 2019, p. 692).
A Lei n. 51/IX/2019 proíbe a condução de veículos sob efeito do álcool e consi-
dera “estar sob a influência do álcool todo o condutor que apresentar uma taxa de
álcool no sangue igual ou superior a 0,5 g/l” (CABO VERDE, 2019, p. 702). A lei
também aponta que:
Quem conduzir, violando a proibição estabelecida no artigo 1º, apresentando uma taxa de
alcoolemia igual ou superior a 0,5 g/l e inferior a 1,2 g/l é punido, a título de contra-or-
denação muito grave, com coima de 25.000$00 (vinte e cinco mil escudos) a 250.000$00
(duzentos e cinquenta mil escudos) (CABO VERDE, 2019, p. 702).
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No contexto brasileiro, optou-se por produzir os dados junto a adolescentes
que cursavam o ensino médio em uma escola da rede estadual de Uruguaiana,
RS. A escolha por essa escola se deu por ela possuir uma boa interlocução com a
universidade em que o autor do artigo é docente. A universidade realiza diversos
projetos com essa escola, a qual procura desenvolver uma organização curricular
diferenciada, trabalhando com o estudo da realidade na qual os adolescentes estão
inseridos. A escola também organiza cada ano do ensino médio por um foco/tema
que articula os componentes curriculares e seus conteúdos.
Em relação à obtenção da habilitação para dirigir veículos no Brasil, o Código
de Trânsito, em seu artigo 140, estabelece como requisitos: ser penalmente impu-
tável; saber ler e escrever; possuir carteira de identidade ou equivalente (BRASIL,
1997). Um dos critérios consiste em “ser penalmente imputável”, assim obriga o
sujeito a já ter completado 18 anos de idade, visto que, segundo a Constituição
federal (BRASIL, 1988), são penalmente inimputáveis os menores de 18 anos.
Assim como em Cabo Verde, no Brasil, o artigo 165 do Código de Trânsito
apresenta que dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância
psicoativa que determine dependência configura-se como uma infração gravíssima,
gerando como penalidade multa e suspensão do direito de dirigir pelo período de 12
meses (BRASIL, 1997). Já no artigo 306, estipula que conduzir veículo automotor
com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra
substância psicoativa que determine dependência gera pena de detenção (de seis
meses a três anos), multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a
habilitação para dirigir veículo automotor (BRASIL, 1997).
Pode-se observar que tanto em Cabo Verde como no Brasil, para se conduzir
automóveis, é necessário ter mais de 18 anos de idade e é proibida a condução de
veículos sob efeito do álcool. No entanto, questiona-se se a existência de uma lei
que proíbe menores de dirigir, bem como de uma que proíbe a condução de veícu-
los estando alcoolizado, é capaz de inibir os adolescentes. Assim, concebe-se que
atividades de educação para trânsito e educação em saúde, aliadas a essas leis,
tornam-se importantes para conscientizar o sujeito adolescente.
No que tange à educação para o trânsito, Faria e Braga (1999) evidenciaram
que, no Brasil, existem dois tipos de abordagens: 1) em algumas cidades, é aborda-
da como uma disciplina específica; 2) outras adotam o conceito de interdisciplinari-
dade, o tema de educação para o trânsito não constitui uma nova disciplina, sendo
abordado em todas as disciplinas. No entanto, os autores visualizam que a prática
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brasileira na educação para o trânsito é falha por diversos motivos, os quais são
apresentados no Quadro 1.
Quadro 1 – Motivos pelos quais a prática brasileira da educação para o trânsito é falha
• Fundamenta-se na experiência estrangeira, que, principalmente, ensina como se “safar dos perigos do trân-
sito”, sem estudos necessários para sua adaptação à nossa realidade;
• a maioria das escolas aborda o tema trânsito apenas no seu aspecto cognitivo, não atendendo, desta forma,
às suas peculiaridades, que exigem uma sensibilização quanto aos seus aspectos éticos, à importância da
cooperação no trânsito, ao respeito aos direitos dos outros, etc.;
• acredita-se que o ensino das regras de trânsito e das consequências legais da sua inobservância sejam
suficientes para modelar o comportamento dos alunos, quando forem futuros motoristas;
• as abordagens pedagógicas utilizadas nesta área são desenvolvidas de acordo com uma concepção tradi-
cional, em que os técnicos/adultos identificam os conceitos e os aspectos do tema, bem como produzem os
instrumentos necessários para tanto;
• por essa concepção, o ponto de vista, a percepção e a expectativa do público a atingir não são pesquisados,
tampouco levados em consideração, e o tema é abordado somente de forma cognitiva, o que nem sempre
resulta na adoção de comportamentos adequados no trânsito ou na mudança de comportamento;
• o ensino da educação para o trânsito também sofre reflexos da situação da educação em geral, em que
muitas crianças ainda não têm acesso à escola: baixa remuneração, falta de incentivo e de reciclagem dos
professores; ausência de materiais e instalações satisfatórias.
Fonte: Faria e Braga (1999, p. 104-105).
Em relação à educação em saúde, o seu modo de estruturação deve residir no
proposto por Marinho e Silva (2018), que visa uma compreensão. Para os autores,
nesse modo de estruturação, a saúde é concebida como um bem-estar em um con-
junto, considerando o físico e o mental. A saúde possui um lugar legítimo no cur-
rículo, e a percepção transversal e interdisciplinar da questão é levada em conta.
Sobre as práticas educativas, postulam que as atividades são organizadas de forma
articulada entre profissionais da saúde e professores, o diálogo e as atividades com
caráter investigativo são técnicas profícuas para o alcance dos objetivos. Por fim,
o modo de estruturação que visa uma compreensão concebe a aprendizagem como
uma mudança de pensamento, na qual várias possibilidades são apresentadas,
oportunizando a escolha e favorecendo o desenvolvimento da autonomia do sujeito.
Assim, com o que foi exposto, a questão de pesquisa reside em compreender:
quais as percepções morais e éticas nos discursos de adolescentes cabo-verdianos e
brasileiros no que tange à prevenção de acidentes de trânsito?
“Traçando a rota”: a aposta teórica da investigação
Piaget é pioneiro ao utilizar um enfoque construtivista para o estudo moral.
Sua ideia, no que tange ao desenvolvimento moral, reside na passagem da hete-
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ronomia para autonomia. Caracteriza a primeira como resultado da coação moral,
marcada pelo respeito unilateral, que “é a origem da obrigação moral e do sen-
timento do dever: toda ordem, partindo de uma pessoa respeitada, é o ponto de
partida de uma regra obrigatória” (PIAGET, 1994, p. 154). Quando as relações de
coação dão lugar a relações cooperativas, “o respeito unilateral dá lugar ao respeito
mútuo ou recíproco, graças ao qual se abre o caminho para a conquista da autono-
mia moral pelo sujeito” (FREITAS, 2002, p. 19). Piaget (1994, p. 155) entende que
existe autonomia moral quando “a consciência considera como necessário um ideal,
independentemente de qualquer pressão exterior”. Dessa forma, ter certa postura
ou realizar determinada ação pelo simples fato de existir uma lei que determina
(Código de Trânsito, por exemplo) não configura uma postura autônoma, visto que
se deve ter uma internalização dessa lei, para que seja incorporada à consciência
do sujeito.
No que tange às definições para os vocábulos moral e ética, constata-se que
essas são diversas e possuem variação dependendo da aposta teórica adotada. Nes-
te estudo, compreende-se moral e ética segundo La Taille (2006), o qual, em linhas
gerais, estabelece que moral configura-se como um sistema de regras e princípios
que corresponde à indagação para a pergunta: “Como devo agir?”. Já a reflexão
ética procura responder: “Que vida quero viver?”, ocupando-se assim da questão da
felicidade ou da vida boa. Para o autor, moral relaciona-se com deveres e ética, com
a busca de uma vida boa, uma vida que “vale a pena ser vivida”.
Em relação ao plano moral, La Taille (2006, p. 53-54) concebe que age moral
quem assim o quer, pois não se pode dissociar “dever” do “querer”, e nos ilustra da
seguinte forma:
Se legitimo a regra que diz ser um dever ajudar as pessoas necessitadas, abdico da liberda-
de de ir passear tranquilamente no bosque, se alguém precisar de minha ajuda. E isso vale
para todas as regras morais: ao dizerem o que se deve fazer, elas limitam o campo das ações
possíveis, portanto, limitam a liberdade. Porém, como já vimos, somente age moralmente
quem se sente intimamente obrigado a tal, e não quem é coagido por algum poder exterior.
Logo, o sujeito moral é, por definição, livre, porque é ele mesmo quem decide agir por dever.
A exemplificação apresentada possibilita compreender por que “somente é mo-
ral quem assim o quer”, visto que considera o sujeito moral livre, pois é o próprio
sujeito que optou por agir guiado pelo dever e, ao realizar essa escolha, acaba tendo
limitações no campo das ações possíveis. Ao relacionar tal constatação ao campo da
educação em saúde, infere-se que um adolescente que zele pela sua saúde, tendo
uma vida saudável, possui grande apreço por ela, atribuindo um valor muito signi-
ficativo a si, de forma que procura se preservar na tentativa de ter uma vida boa.
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Para que o sujeito consiga se atribuir valor significativo, é necessária a construção
das representações de si com valor positivo (LA TAILLE, 2009), para que assim seja
possível o desenvolvimento da autoestima, da autoconfiança e do autorrespeito.
No que tange ao plano ético, La Taille (2006) avalia que viver uma vida que
faça sentido reside em condição necessária para a “vida boa”, seja ela qual for, e,
assim, acabamos por encontrar um elemento essencial à definição do plano ético.
O autor consegue ir mais além e postula que, ao escolher um sentido para a vida
e formas de viver, o sujeito acaba se definindo como ser, dessa forma, ele acredita
que a resposta para o “como viver?” deve permitir a realização da expansão de si
próprio. Ele compreende a expressão “expansão” como uma busca de novos hori-
zontes de ação, uma busca da superação de si próprio, para conseguir enxergar a si
próprio como uma pessoa de valor. Acaba, assim, por visualizar que ver a si próprio
como pessoa de valor é condição necessária para o gozo da felicidade, da “vida boa”.
Para compreender os comportamentos morais dos indivíduos, La Taille (2006,
p. 51) assevera que precisamos conhecer a perspectiva ética que adotam e afirma que:
[...] somente sente-se obrigado a seguir determinados deveres quem os concebe como ex-
pressão de valor do próprio eu, como tradução de sua auto-afirmação. Em suma, identifi-
camos na ‘expansão de si próprio’ e no valor decorrente atribuído ao eu a fonte energética
das ações significativas em geral, e das ações morais em particular. Em poucas palavras,
identificamos no plano ético as motivações que explicam as ações no plano moral.
Assim, o sentimento de obrigatoriedade moral depende da expressão do valor
do próprio eu. Evidencia-se que o sentimento de autorrespeito acaba unindo os
planos moral e ético, considerando que o sujeito que respeita a moral respeita a si
próprio. Assim, entende-se que o adolescente que se percebe como sujeito de valor
irá cuidar de sua saúde, procurando se afastar das condutas de risco. Porém, se
esse adolescente não se percebe como um sujeito de valor, pode acabar por não ter
um cuidado mais acurado com sua saúde, pois não visualiza importância no zelo
para consigo.
“É hora de dar a partida”: detalhando a investigação
A pesquisa configurou-se como explicativa, pois procurou identificar as causas
do fenômeno estudado através da interpretação possibilitada por métodos quali-
tativos (SEVERINO, 2007). Nos próximos itens, detalham-se: os participantes do
estudo; a técnica de pesquisa empregada; o instrumento de pesquisa utilizado; e a
técnica utilizada para analisar os dados.
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Os passageiros”: participantes do estudo
Participaram do estudo 45 adolescentes imersos em contextos geográficos dis-
tintos: adolescentes africanos da Cidade da Praia (Ilha de Santiago, Cabo Verde)
que estavam cursando o ensino secundário e adolescentes brasileiros que estavam
cursando o ensino médio regular. O processo de recrutamento dos participantes foi
realizado pelas escolas em que os adolescentes estudavam, as quais foram contata-
das previamente pelos pesquisadores.
Nos dois países, em um primeiro momento, o projeto foi apresentado à direção
de cada escola, para saber se autorizava a realização do estudo na sua instituição.
Após a autorização, solicitou-se que as escolas selecionassem de 10 a 12 adolescen-
tes de ambos os gêneros, na faixa etária de 14 a 18 anos, para integrar os grupos.
No Cabo Verde, foram contatadas 3 escolas que aceitaram participar. Elas estavam
localizadas em três diferentes localidades da Cidade da Praia. Já no Brasil, foi
contatada uma escola que aceitou participar da investigação, tal escola é da rede
estadual de ensino do Rio Grande do Sul (RS) e situa-se em um bairro da periferia.
Salienta-se que, para o desenvolvimento da investigação, obteve-se autoriza-
ção de todas as escolas envolvidas e os adolescentes que aceitaram participar dos
grupos focais receberam um termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE)
para que seus responsáveis assinassem, consentindo com sua participação.
Grupo focal como técnica de pesquisa
Para a produção de dados, utilizou-se a técnica do grupo focal, a qual possi-
bilita compreender informações de naturezas diferentes, envolvendo conceitos e
preconceitos, opiniões e ideias, valores, sentimentos e ações dos participantes a
respeito de determinado assunto (GATTI, 2005). A possibilidade de trazer à tona
o pensamento dos adolescentes através da abertura proporcionada a eles, em um
grupo de pares, faz a técnica de grupo focal ser pertinente à investigação.
Foram realizados 5 grupos focais (Quadro 2), todos no ano de 2015, em salas
das próprias instituições frequentadas pelos adolescentes, em período previamente
agendado. No início de cada grupo focal, os adolescentes foram dispostos em cír-
culo, para facilitar o contato visual de todos. Após, foi realizada a apresentação do
pesquisador e dos adolescentes, bem como foi apresentada a dinâmica da discussão.
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Quadro 2 – Organização e características dos grupos de adolescentes
Contexto Idade Número de participantes
Cabo Verde
14 – 15 anos 10 (3 gênero masculino e 7 gênero feminino)
16 – 17 anos 10 (5 gênero masculino e 5 gênero feminino)
14 – 17 anos 10 (4 gênero masculino e 6 gênero feminino)
Brasil 16 – 18 anos 7 (2 gênero masculino e 5 gênero feminino)
14 – 17 anos 8 (2 gênero masculino e 6 gênero feminino)
Fonte: elaboração do autor, 2015.
A utilização de dilema moral como instrumento de pesquisa
A aposta para mobilizar os grupos e fomentar uma discussão mais aprofunda-
da das questões referentes à prevenção de acidentes de trânsito residiu na utiliza-
ção de um dilema moral. Concebeu-se que a opção pelos grupos focais como técnica
para produção de dados e o dilema como instrumento possibilitariam a obtenção de
opiniões mais espontâneas e verdadeiras, fugindo de discursos programados que
muitas vezes são obtidos em pesquisas que utilizam entrevistas estruturadas.
Os dilemas morais, em linhas gerais, “se constituem em narrativas breves de
situações envolvendo conflitos de natureza moral que encerram valores diferentes”
(GONÇALVES, 2015, p. 96). Kawashima, Martins e Bataglia (2015, p. 220) apon-
tam que os dilemas apresentam situações que “não oferecem uma única solução,
obrigando o sujeito a refletir, argumentar e justificar racionalmente a alternativa
que lhe parece mais justa”.
Para elaborar o dilema, levou-se em conta as orientações de Puig (1988): defi-
nir com clareza o âmbito do dilema; definir um protagonista; propor uma escolha;
propor temáticas morais; perguntar pelo que “deveria fazer” o protagonista e “por
que” deveria fazer; formular outras perguntas e dilemas alternativos. Para discutir
a temática relacionada à prevenção de acidentes de trânsito com os adolescentes,
elaborou-se um dilema moral, o qual pode ser visto a seguir:
Pedro é um adolescente de 16 anos que não possui CNH (Carteira Nacional de Habilitação),
sendo assim, não pode dirigir. Pedro está em sua casa bebendo com os amigos e tem a ideia
de pegar o carro de seu pai para sair com eles, dar uma volta no centro da cidade. O que
Pedro deve fazer? Por quê?
Tal dilema se classifica como real, visto que seu conteúdo se refere a problemas
que os sujeitos conhecem de perto ou já experimentaram de forma direta (PUIG,
1988). Optou-se pela elaboração desse tipo de dilema porque se refere às próprias
vidas dos sujeitos envolvidos na pesquisa. “Tais exercícios são muito úteis porque
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asseguram ao máximo a implicação pessoal de quem os discute, mesmo que às
vezes essa mesma implicação acarrete também sérias dificuldades e entraves emo-
cionais” (PUIG, 1988, p. 59).
Quando os dilemas foram apresentados nos grupos focais, os adolescentes
tiveram que se posicionar e explicar como agiriam se estivessem expostos a tal
situação. Para apresentar os dilemas, realizaram-se os seguintes procedimentos:
1º) foi realizada a leitura oral da história com o grupo, bem como distribuído o
texto com o dilema impresso;
2º) foi questionado se o dilema tinha ficado claro e se não tinham nenhuma
dúvida relacionada à situação;
3º) não existindo dúvidas, foi solicitado que os adolescentes realizassem a lei-
tura do dilema para si mesmos e, após, explicassem o conflito pela ótica do
protagonista.
Finalizado esse momento introdutório, partiu-se para a discussão do dilema
moral propriamente dito, que sempre partiu da questão “o que o protagonista deve-
ria fazer”. Os adolescentes puderam expressar suas opiniões acerca do dilema, bem
como confrontar pontos de vista diversos sobre um mesmo problema moral (PUIG,
1988), por isso, julgou-se a utilização de dilemas como instrumento potencializador
para o desenvolvimento dos grupos focais.
Utilizando um GPS” potente: discurso do sujeito coletivo como técnica de análise
O registro das interações foi feito com auxílio de uma filmadora. Os dados
registrados foram transcritos pelo pesquisador e analisados mediante técnica de
análise do discurso do sujeito coletivo (DSC) (LEFEVRE; LEFEVRE, 2005, 2012),
a qual:
[...] consiste em uma série de operações sobre a matéria-prima dos depoimentos individuais
ou de outro tipo de material verbal (artigos de jornais, revistas, discussões em grupo etc.),
operações que redundam, ao final do processo, em depoimentos coletivos, ou seja, cons-
tructos confeccionados com estratos literais do conteúdo mais significativo dos diferentes
depoimentos que apresentam sentidos semelhantes (LEFEVRE; LEFEVRE, 2012, p. 17).
Desse modo, a partir dos depoimentos dos adolescentes nos grupos, foram
construídos os discursos coletivos, os quais foram resgatando todas as ideias que
emergiram das discussões. Lefevre e Lefevre (2014) mostram que, no DSC, as opi-
niões de cada indivíduo, as quais apresentam sentidos semelhantes, são reunidas
em categorias semânticas gerais, como em qualquer técnica de categorização. O
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diferencial dessa metodologia é que “a cada categoria estão associados os conteú-
dos das opiniões de sentido semelhante presentes em diferentes depoimentos, de
modo a formar com tais conteúdos um depoimento síntese” (LEFEVRE; LEFE-
VRE, 2014, p. 503).
Para a construção dos discursos coletivos, o DSC utiliza quatro operadores,
que são detalhados no Quadro 3.
Quadro 3 – Caracterização dos operadores do DSC
Operadores do DSC Caracterização
Expressões-chave
(ECHs)
Buscam resgatar a literalidade do depoimento. Consistem em pedaços, trechos,
segmentos contínuos ou descontínuos do discurso. Devem ser selecionadas pelo
pesquisador e revelar a essência do conteúdo do discurso. Refinam o discurso
retirando o que é irrelevante, não essencial, secundário, para ficar o mais próximo
possível com a essência do pensamento, tal como ele aparece, literalmente, no
discurso analisado.
Ideias centrais
(ICs)
Também conhecidas como categorias, são um nome ou expressão linguística que
revela e descreve, da maneira mais sintética, precisa e fidedigna possível, os
sentidos das ECHs dos discursos analisados e de cada conjunto homogêneo de
ECHs.
Ancoragem
(AC)
São a expressão de uma dada teoria ou ideologia que o autor do discurso propala
e que está embutida no seu discurso, como se fosse uma afirmação qualquer.
DSC Discurso-síntese redigido na primeira pessoa do singular e composto pelas ECHs
que têm a mesma IC ou AC.
Fonte: elaboração do autor com base em Lefevre e Lefevre (2005, 2012).
Para construir os DSCs, primeiramente foram identificadas as ECHs e no-
meadas as ICs/ACs presentes no material que foi transcrito. Foram analisadas
todas as ICs/ACs agrupando por semelhanças em categorias e, por fim, foram cons-
truídos os discursos-síntese (DSCs), reconstruindo, com trechos de cada discurso
singular, tantos discursos-síntese quantos se julgaram necessários para expressar
uma representação social sobre o fenômeno (LEFEVRE; LEFEVRE, 2005). As ICs
e as ACs que foram agrupadas por semelhanças na mesma categoria foram agluti-
nadas e organizadas para construção do discurso na primeira pessoa do singular.
Para dar maior fluidez ao discurso, foram utilizados conectivos (assim, então, logo,
enfim etc.).
Os dados obtidos nos grupos focais desenvolvidos em Cabo Verde e no Brasil
resultaram na construção de quatro DSCs, dois oriundos de cada contexto, os quais
serão apresentados na sequência.
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Acelerando”: apresentação dos DSCs, resultados e discussões
Optou-se por apresentar os resultados, inicialmente, de forma descritiva (mais
geral), articulando a análise com auxílio de pesquisas das áreas do ensino e da saú-
de. Em um segundo item, são aprofundadas as análises e apresentada a análise
referente à moral e à ética nos discursos dos adolescentes no que tange à prevenção
de acidentes no trânsito.
Os discursos e as análises gerais
Apresentam-se, inicialmente, os discursos contrários ao ato de conduzir o veí-
culo sem habilitação e após consumir bebida alcoólica, nos dois contextos (DSC
1CV e DSC 1BR):
DSC 1CV – Caso beber, não dirijas
Isso representa uma falta de responsabilidade, porque está a tomar medidas erradas e as coisas que ele
quer fazer não é certo. Porque ele é um menor, estar a beber. Quer apanhar o carro do pai e dar uma volta na
cidade e não tem a carteira. E mesmo que ele não tivesse 16 anos, tivesse mais idade, só pelo fato de estar
bebendo isso já não seria algo correto porque, caso beber, não dirijas. Quando se bebe muito álcool, a visão
vai ficando distorcida, assim a maior irresponsabilidade não seria pegar o carro, mas sim de conduzir o carro
bêbado. Existem muitas consequências. Imagine. Eu estar bêbado, saio com o carro, se a polícia me parar,
tem também consequências com a polícia. Pode apanhar um acidente, pode ficar ferido, não só ele, mas os
amigos também, como outras pessoas que nem estiveram na convivência em que ele estava. Ele pode matar
uma pessoa, os amigos podem morrer e a bebida faz mal à saúde. E não só o acidente e as consequências
físicas, mas também isso vai quebrar a relação que se tem com os pais, os pais não têm mais confiança nos
filhos e tem uma série de consequências. A pessoa se torna uma pessoa inconfiável: eu não vou mais deposi-
tar minha confiança numa pessoa irresponsável, que não dê limites aos seus atos. Então, o que deve ser feito
é não apanhar o carro, pedir autorização, precaver a usar o álcool. Ele deveria refletir antes de praticar a ação.
DSC 1BR – Não vale a pena correr esse risco
Isso é errado, por envolve álcool com direção. É uma ideia irresponsável por ele não ter habilitação. Ele pode
prejudicar a vida de outras pessoas, e o carro do pai dele fica perdido também. Sem falar que, se ele provoca
algum acidente, além que ele pode matar uma pessoa, pode ser preso. Ele vai ser preso. Devido ao álcool,
talvez, vão optar por fazer isso, mas alguns podem pensar com a cabeça e não fazer. Não vale a pena correr
esse risco, tu é jovem ainda, pode perder a vida. Tá louco. 16 anos ainda. Tem toda uma vida pela frente.
Pelos DSCs apresentados, evidenciam-se similaridades nos dois contextos. Em
ambos os discursos, existe a ideia de o adolescente ter um pensamento irresponsá-
vel, pelo fato de que, se pegar o carro bêbado, pode causar acidentes, ferir ou matar
pessoas, bem como ser preso. Particularidades também são evidenciadas, no DSC
1CV, produzido com dados oriundos de Cabo Verde, nos quais emerge o pensamento
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que, se o adolescente pegar o carro, ele vai estar perdendo a confiança do pai. Já no
DSC 1BR, é acentuada a ideia de o adolescente ser muito jovem para perder a vida.
Para além dessas primeiras impressões, se for analisada de forma mais por-
menorizada a discursividade, evidencia-se que os adolescentes, em ambos os con-
textos, apresentam motivos racionais para o protagonista do dilema não utilizar o
carro, como: “ele é um menor, estar a beber”; “caso beber, não dirijas”; “não tem a
carteira”. Os fatores de risco mencionados pelos participantes da pesquisa ilustram
um conhecimento do grupo, pois se posicionam dizendo que, antes de ele pensar
em dirigir, a situação já está errada por ele ser um menor e estar a consumir bebi-
das alcóolicas. Fatores de risco podem ser entendidos como “elementos com grande
probabilidade de desencadear ou associar-se ao desencadeamento de um evento
indesejado, não sendo necessariamente fator causal” (BENINCASA; REZENDE,
2006, p. 242). Além do fator de risco “bebida”, os adolescentes também menciona-
ram o fato de o adolescente não possuir habilitação como algo que impossibilita a
ação de ser concretizada.
No DSC 1CV, é mencionado que a bebida faz mal para a saúde, bem como são
apresentados os efeitos que o álcool causa no sujeito e que acabam por dificultar
a condução de veículos. Prevedello, Pereira, Souza e Ferreira (2016) evidenciam
que os adolescentes investigados em seu estudo tinham ciência dos efeitos do uso
do álcool, bem como reconheceram os impactos, danos e consequências do uso do
álcool, como os acidentes de carro. Tal questão é corroborada no discurso produzido,
visto que se observa que os adolescentes possuem domínio das informações sobre
os riscos de dirigir alcoolizado. Nesse mesmo discurso, são apresentadas diversas
consequências que o fato de dirigir alcoolizado pode vir a trazer para o protagonista
do dilema: problemas com a polícia; sofrer um acidente; ficar ferido e ferir pessoas;
matar alguém; quebrar a relação de confiança com os pais. As consequências iden-
tificadas nesse DSC foram ampliadas em relação às identificadas no estudo de
Benincasa e Rezende (2006), as quais consistiram em: morrer, machucar-se, matar
e machucar os outros, bem como ter problemas com os pais. Na investigação desses
autores, os adolescentes não apontaram “problemas com a polícia” como uma con-
sequência dos acidentes de trânsito.
No discurso “não vale a pena correr esse risco” (DSC 1BR), os adolescentes
apresentam como consequências que podem vir a ocorrer, caso o protagonista do
dilema opte por pegar o carro, as seguintes: prejudicar a vida de outras pessoas;
perder o carro do pai; provocar acidente; matar uma pessoa; ser preso. Tais con-
sequências se aproximam das identificadas no DSC 1CV. Por fim, percebe-se que,
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nesse discurso, a ideia de o protagonista ser muito jovem para perder a vida, tendo
toda uma vida pela frente, apresenta uma força para a não concretização da ação.
Tal ideia foi identificada nos estudos de Rodriguez e Kovács (2005a) e Barbosa,
Melchiori e Neme (2011). Os primeiros apresentam o relato de um adolescente do
seu estudo que diz o seguinte: “quero morrer com mais de 80 anos, quero primeiro
viver e depois pensar na morte” (RODRIGUEZ; KOVÁCS, 2005a, p. 139), ficando
clara uma suposição de que a morte ocorre só para idosos. Barbosa, Melchiori e
Neme (2011, p. 178), ao estudarem o significado da morte, evidenciaram relatos de
adolescentes que visualizam a morte como aniquiladora dos projetos de vida, como
pode-se visualizar no seguinte depoimento: “Eu ainda não fiz tudo o que eu queria.
Eu tenho muita coisa para fazer ainda e não quero morrer sem fazer isso. Tenho
tantos sonhos”.
Apresentam-se, a seguir, os discursos coletivos favoráveis à realização da ação
pretendida pelo adolescente (DSC 2CV e DSC 2BR):
DSC 2CV – Vamos curtir, não vai acontecer nada
Se eu tivesse no lugar do Pedro, eu faria o mesmo – pegaria o carro, pois estaria bêbado com meus amigos,
mas, se eu fosse mais responsável, não faria isso. Talvez ele resolveu ter essa ideia por influência dos ami-
gos. Ambos querem se divertir, então eles vão dizer “vamos, pegue o carro, pois assim vamos nos divertir
mais, as miúdas vão gostar”. Ele vai pensar “eles têm razão”. Os amigos deveriam dizer “não vamos fazer
isso, é perigoso”, mas acho que a influência fala mais alto. Podia haver uma opção mais responsável, mas, no
grupo, as pessoas podiam dizer “ah, deixa de coisas, vamos curtir, não vai acontecer nada”, e eles acabavam
por ir. Eu acho que não é fácil na situação do Pedro de decidir porque é, por exemplo, se eu estou com uns
amigos e eles dizerem para pegar o carro do pai e se eu disser que não posso pegar, eles vão dizer que não é
fixe4, não vou me dar com ele mais. Para decidir num momento, é muita, muita personalidade mesmo. É uma
pessoa que não importa se vai ter uns amigos após a festa. Normalmente, quem faz isso são pessoas que
pedem muito daquele apoio no grupo, principalmente na adolescência, nós que precisamos muito daquela
afetividade, de estar inserido no grupo. Sempre existe a pessoa no grupo que tem, podemos dizer, mais adre-
nalina. Não sei muito bem explicar, é mais insistente: “Vamos, temos que ir, não vai acontecer nada, vamos
tentar”. E mesmo tendo talvez a consciência de “ah, e caso acontecer?”, mas fica mais para o lado positivo e
pensa “ah, não vai acontecer nada, é só essa vez, ninguém vai saber”. Então, às vezes, nem é porque não é
amigo de verdade, é simplesmente para satisfazer a curiosidade, o calor da emoção.
DSC 2BR – Iriam fazer no calor do momento
Possivelmente, iriam fazer, porque estão bêbados. Isso influencia muito, pois, na hora que ele tá assim,
vamos dizer assim, um pouquinho alterado assim, aí, no caso, a gente tá fazendo as coisas, e quando a
gente vê, não tem noção do que pode acontecer. Fica meio inconsciente dos atos. Ainda mais na influência
dos amigos. Se ele teve a ideia ou se ele comentou com os amigos, com certeza os outros vão instigar ele a
fazer isso. Eles estão numa rodinha bebendo, ninguém vai falar não. Se estivesse tudo bêbado, é óbvio que
a gente ia sair, com certeza. A idade também interfere. Se fossem mais velhos, talvez tivessem uma ideia
mais racional. Eu, nesse contexto, teria, infelizmente essa atitude irresponsável. Ia querer me aventurar sem
responsabilidade, sem medir o que pode ocorrer, as consequências dos atos. No calor do momento, quer se
divertir com as amizades.
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Em um primeiro momento, evidencia-se, nos dois discursos, uma justificativa
no fato de estarem bebendo e na influência dos amigos para a escolha por realizar o
ato pretendido pelo protagonista do dilema. Cruz, Silva e Teixeira (2015) apontam
que essa associação álcool-direção aumenta a vulnerabilidade a riscos na adoles-
cência e tal mistura é um dos principais fatores para a ocorrência de acidentes
desastrosos.
No DSC 2CV, emerge a questão da dependência do grupo para o adolescente
como um fator importante para a escolha, pois, caso não realize o que foi idealiza-
do, demonstra temer pelo abandono dos amigos. Santrock (2014) corrobora essa
ideia apontando que os adolescentes possuem uma forte necessidade de estarem
ligados e serem aceitos pelos amigos e pelo grupo de pares. O autor evidencia que,
quando os adolescentes são aceitos, isso pode resultar em sentimentos prazerosos,
porém, quando são excluídos e menosprezados, podem apresentar estresse e an-
siedade. Nesse discurso, também emerge o sentimento de onipotência muito pró-
prio do adolescente, com a máxima do “não vai acontecer nada”. A investigação de
Rodriguez e Kovács (2005b), sobre as altas taxas de mortalidade na adolescência,
evidenciou que a própria morte não é motivo de preocupação dos adolescentes, pois
predomina a ideia de imortalidade e onipotência, a qual também emerge nos dados
do estudo. Sampaio Filho, Sousa, Vieira, Nóbrega, Gubert e Pinheiro (2010, p. 511)
evidenciaram que o pensamento abstrato se encontra imaturo nos adolescentes,
fazendo com que estes se “sintam invulneráveis, se expondo a riscos sem prever
suas consequências”.
No discurso “iriam fazer no calor do momento” (DSC 2BR), os adolescentes
concebem que o fato de o protagonista do dilema ser muito jovem acaba implicando
nessa escolha, pois acreditam que “se fossem mais velhos, talvez tivessem uma ideia
mais racional”. Dessa forma, iam pegar o carro, mesmo alcoolizados, para se aventu-
rar, divertir-se, sem pensar no que possa vir a acontecer. Rodriguez e Kovács (2005b)
auxiliam na compreensão de tal pensamento no momento em que evidenciam uma
linha tênue entre o prazer e a autodestruição na adolescência, pois, na maioria das
vezes, os adolescentes não conseguem ter essa compreensão. Rodriguez (2005, p.
97), sobre isso, expõe que “no momento do prazer, os adolescentes não pensam nas
consequências de seus atos, a possibilidade de autodestruição não é considerada a
não ser quando enfrentam uma situação concreta e chocante”. O estudo de Benin-
casa e Rezende (2006) expõe que existe uma falta de oportunidade para a reflexão
dos adolescentes no que tange aos riscos que se encontram expostos diariamente,
pois evidenciaram que, mesmo eles já tendo escutado “sobre os danos provocados
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pela associação de álcool e direção, relataram nunca terem pensado sobre como suas
atitudes os deixam expostos” (BENINCASA; REZENDE, 2006, p. 254).
Análise da moral e da ética nos discursos dos adolescentes
A obediência às normas socialmente instituídas, como ter habilitação após os
18 anos e a proibição da condução de veículos após ter consumido bebidas alcoóli-
cas, permite evidenciar a força da heteronomia moral em ambos os discursos que
são contrários ao fato de os adolescentes conduzirem o carro alcoolizados (DSC 1CV
e DSC 1BR), visto que a heteronomia configura-se como a moral da obediência, da
regra, do dever, tendo a lei como seu império (LA TAILLE, 2001). A posição hete-
rônoma também fica evidente quando os adolescentes mencionam que podem ser
abordados pela polícia (DSC 1CV) ou até virem a ser presos (DSC 1BR). Eviden-
ciam-se, assim, os traços heterônomos na medida em que o cumprimento da regra
se dá em função do outro, considerado como autoridade ou hierarquicamente su-
perior. Nota-se que não se trata de um regramento interno dos adolescentes, nem
o cumprimento de uma regulação pelos pares, mas de uma obrigação estruturada
a partir de alguém considerado como uma figura de autoridade, o que é um traço
tipicamente heterônomo. Evidencia-se que os adolescentes pensam em deixar de
realizar tal ação movidos pelo medo de sansões que possam vir a receber caso se-
jam pegos, o que demonstra a carência de um sentimento de obrigatoriedade forte
para delinear a conduta que previna acidentes no trânsito.
No DSC 1CV, a expressão “caso beber, não dirijas” ilustra o exemplo de uma
regra que é reproduzida muitas vezes, mas que acaba por carecer de interioriza-
ção pelos adolescentes, fazendo com que isso seja pouco significativo para esses
sujeitos. Tal fato ocorre por uma limitação própria das regras – o fato de elas nos
dizerem o que fazer, mas não “por que” fazer (LA TAILLE, 2009, 2013). O autor
acredita que “quem se limita ao conhecimento das regras morais não somente fica,
na prática, sem saber como agir em inúmeras situações (porque não há regras ex-
plicitadas para todas) como corre o risco de ser dogmático e injusto” (LA TAILLE,
2006, p. 74). Dessa forma, a regra sem princípio acaba sendo vazia, não permitindo
que ela seja interiorizada pelo sujeito.
Outro ponto interessante que vale a pena ser resgatado para compreender o
pensamento dos adolescentes no que tange ao não conduzir o carro reside no fato
da perda da confiança dos pais. Tal questão é apontada no discurso cabo-verdiano
(DSC 1CV) no momento que é mencionado: “vai quebrar a relação que se tem com
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os pais, os pais não têm mais confiança nos filhos [...]. A pessoa se torna uma pessoa
inconfiável”. Evidencia-se que o que acaba movimentando esses adolescentes a jul-
gar que não realizariam a ação é o medo de perder o amor dos seus pais. Essa ideia
é muito visível nas crianças (heteronomia infantil), nas quais o binômio medo/amor
configura-se como a fonte afetiva do respeito moral aos pais (figuras de autoridade)
(LA TAILLE, 2006). Calligaris (2000, p. 25) confirma que a insegurança é um traço
próprio do adolescente, pois ele “vive a falta do olhar apaixonado que ele merecia
quando criança e a falta de palavras que o admitam como par na sociedade dos
adultos”. Dessa forma, o que se evidencia no DSC 1CV, possibilita inferir que a per-
da de confiança/amor dos pais se configura como fator significativo no pensamento
dos adolescentes no momento de suas escolhas. Também se pode associar a questão
do autorrespeito, visto que querer ser merecedor de confiança é um de seus traços
essenciais (LA TAILLE, 2006).
Além dessas posições heterônomas evidenciadas, existem outras ideias que
os adolescentes apontam para não realizarem a ação, como: “ficar ferido, não só
ele, mas os amigos também, como outras pessoas” (DSC 1CV); “pode matar uma
pessoa, os amigos podem morrer” (DSC 1CV); “prejudicar a vida de outras pessoas”
(DSC 1BR). Nota-se que o pensamento centrado sobre si, típico da heteronomia,
começa a introduzir a figura do outro, isto é, alguém além de si, que pode sofrer a
consequência de suas ações. Esse avanço demonstra uma abertura dos valores e
evidencia traços de descentração do pensamento. Esse cuidado para consigo, para
com os amigos e para com outras pessoas permite evidenciar uma ideia de respeito
pelos outros, o qual é movido pelo sentimento de solidariedade, que é o substra-
to afetivo que sustenta e impulsiona ações individuais e coletivas (GONÇALVES,
2015). É possível também verificar uma descentração do sujeito, que, ao conseguir
colocar-se no lugar do outro, consegue tomar consciência das implicações e conse-
quências que suas ações terão, não somente a si, mas também sobre os outros.
Nos discursos em que os adolescentes julgam que o protagonista do dilema
iria sair para dar uma volta de carro com seus amigos, mesmo após terem consu-
mido bebidas alcoólicas (DSC 2CV e DSC 2BR), novamente, evidencia-se força no
pensamento heterônomo, com a diferença de que a figura de respeito não são os
pais ou a polícia, mas os próprios amigos. Quando relatam que o adolescente iria
optar por tal ação pela influência dos amigos, tal pensamento é acentuado, pois,
como apontam Mezzaroba e Martins (2015), o grupo acaba exercendo força sobre os
adolescentes, determinando seus hábitos e comportamentos. Assim não se alcança
a autonomia, pois
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[...] somente age moralmente quem se sente intimamente obrigado a tal, e não que é coagi-
do por algum poder exterior. Logo, o sujeito moral é, por definição, livre, porque é ele mesmo
quem decide agir por dever. Dito de outra forma, somente é moral quem assim o quer (LA
TAILLE, 2006, p. 53-54).
No momento em que consideram que podem sofrer influência dos amigos para
agir, eles não estão tendo um pensamento que possibilite uma ascensão à autonomia.
Mezzaroba e Martins (2015, p. 187) constatam, no que tange ao consumo de bebidas,
que, por vezes, “o jovem pode julgar de uma forma incorreta o fato de embriagar-se,
mas cede às convenções sócio organizativas do grupo. Para não ficar de fora, embora
julgue moralmente incorreto, continua a beber sob a pressão da turma”.
No DSC 2CV, os adolescentes mencionam que, “para decidir num momento,
é muita, muita personalidade mesmo”. A ideia de “personalidade” é interpretada
como consistindo em uma autonomia para dizer não aos amigos, mesmo que isso
acarrete o risco da perda desses. Nesse contexto, os sujeitos mencionam que os
adolescentes necessitam muito da afetividade, de estarem incluídos em um grupo,
o que contribui para que ajam de maneira heterônoma em relação aos próprios
pares. Para que tal dependência não faça com que o adolescente aja de uma forma
diferente da qual julga ser a adequada, entende-se que é necessário o desenvol-
vimento da autoestima, da autoconfiança e do autorrespeito, que permitirá “uma
capacidade reflexiva que permite o conhecimento das próprias capacidades, inte-
resses, habilidades, preferências, limitações, aspirações, possibilidades, valores
etc. A possibilidade de sentir, interpretar e perceber as próprias necessidades e os
próprios desejos” (GONÇALVES, 2015, p. 57).
É hora de pisar no freio”: considerações nais
Ao realizar o estudo em dois contextos geográficos e culturais distintos, pode-se
observar que nenhuma diferença expressiva, em relação aos valores morais e aos
juízos elaborados no que tange à prevenção de acidentes no trânsito, foi observada
entre eles. Tal fato pode ser explicado por La Taille (2001, p. 81), quando expõe
que existe “uma universalidade no que tange aos sistemas morais e éticos”. Para o
autor, “as opções morais e éticas das pessoas não dependem exclusivamente do fato
de elas pertencerem a determinada cultura, mas dependem também de construções
psíquicas que delimitam e restringem as escolhas” (LA TAILLE, 2001, p. 81).
O título do artigo inicia com um fragmento do samba de enredo de 2004 do
Grêmio Recreativo Escola de Samba Mocidade Independente de Padre Miguel, o
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qual era intitulado “Não corra, não mate, não morra. Pegue carona com a Mo-
cidade!”. Assim, para finalizar o artigo, irei resgatar outras partes do samba. A
escolha para realizar esse resgate reside em compreender que partes desse samba
se interligam com o que foi discutido no trabalho: “Basta de tanto acidente. Não
seja imprudente [...]. Seja mais consciente. A vida é um presente. Chegou a hora
de mudar. Sai desse ‘pega’ moleque. Pisa no breque. Tem alguém a te esperar [...].
Proteja quem te ama. Siga em paz na direção”5.
Ao analisar os dados apresentados à luz do referencial escolhido, é possível
se questionar sobre: o que é necessário para diminuir a imprudência no trânsito
e contribuir para que os sujeitos sejam mais conscientes? Pelos dados que foram
obtidos e pela discussão estabelecida, observa-se que a heteronomia exerce força
no pensamento dos adolescentes participantes do estudo, visto que a obediência às
normas socialmente instituídas, o cumprimento da regra em função do outro (au-
toridade ou alguém hierarquicamente superior), o medo da sanção que possam vir
a receber, o medo de perder o amor de seus pais e a influência dos amigos habitam
o imaginário dos adolescentes, para expressar os argumentos para a realização ou
não da ação de conduzir um veículo alcoolizado e/ou sem possuir a habilitação. Tal
evidência corrobora o que foi postulado por La Taille (2009) sobre a força da hetero-
nomia, visto que o autor infere que existem pessoas autônomas, mas a autonomia
é rara, visto que a maioria das pessoas são heterônomas.
As posturas heterônomas não possibilitam que o indivíduo “seja mais cons-
ciente”, como “pede” a letra do samba enredo apresentado. Constatou-se que as
regras (possuir habilitação e a proibição de dirigir após consumir álcool, por exem-
plo) dizem ao indivíduo o que fazer, mas não apresentam o porquê de se fazer ou
não determinada ação. A carência dessa conscientização da regra para o sujeito
dificulta a sua compreensão no que tange à prevenção de acidentes no trânsito.
Concebo que, para o sujeito não se expor e colocar sua vida em risco, em um
acidente de trânsito, é necessário que ele compreenda que “a vida é um presente”. O
DSC 1BR, produzido com dados oriundos dos discursos dos adolescentes brasileiros,
trouxe a seguinte ideia: “Não vale a pena correr esse risco, tu é jovem ainda, pode per-
der a vida. Tá louco. 16 anos ainda. Tem toda uma vida pela frente”. Esse fragmento
nos possibilita compreender que a vida aparenta ter um valor significativo para es-
ses adolescentes. Assim, compreende-se ser necessário que o próprio indivíduo ado-
lescente se perceba como alguém de valor, sabendo que “tem alguém a lhe esperar”
e que deve se proteger, para “proteger a quem lhe ama”, parafraseando o samba da
Mocidade. Para isso, é preciso o desenvolvimento da autoestima, da autoconfiança
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e do autorrespeito. Também é necessária a construção de representações de si com
valor positivo, as quais devem atribuir alto valor à sua própria vida, para que assim
seja possível preservar sua saúde, obtendo sucesso na expansão de si mesmo.
O estudo possibilitou compreender que o sujeito adolescente tem suas con-
dutas influenciadas pelo pensar e pelo agir moral, bem como pelos valores que o
constituem. Dessa forma, como destacam Faria e Braga (1999, p. 105):
Não é possível mudar comportamentos no trânsito abordando o tema como tem sido feito
no Brasil. O tema precisa ser inserido num contexto mais amplo, onde a criança e o ado-
lescente possam refletir sobre os aspectos éticos do comportamento no trânsito, para assim
entender os motivos das regras de trânsito (a segurança para todas as pessoas) e adotar
comportamentos humanos no trânsito.
Com esse entendimento, assim como Marinho e Silva (2018), concebo que o
modo de estruturação das práticas de educação em saúde na escola deve ser aquele
que vise uma compreensão. Esse modo de estruturação proporciona uma mudança
de pensamento, pois, ao apresentar variadas possibilidades (as quais oportunizam a
escolha do indivíduo), contribuem com o desenvolvimento da autonomia do sujeito.
Dessa forma, proponho algumas indicações sobre como a escola e os espaços de
educação não formal podem contribuir para o desenvolvimento de práticas focadas
na prevenção de acidentes no trânsito junto aos adolescentes. Para isso, compreen-
do que, quando se busca desenvolver ações para contribuir com a preservação da
saúde desses sujeitos, não se pode pensar apenas em campanhas e ações explica-
tivas, que visam elucidar a consequência das ações das más condutas. Com o que
foi evidenciado nesta investigação, deve-se pensar em ações que se voltem para a
construção e a consolidação de valores positivos sobre si mesmos, como uma for-
ma integradora e significativa de cuidado. Um trabalho com dilemas morais de
saúde, podendo ser como o elaborado para este estudo ou outros que forem mais
apropriados, acaba por mobilizar os adolescentes, pois permite projeção, auxilia na
superação da inibição, promove diálogo entre pares, favorece o respeito mútuo e
uma compreensão mais holística da saúde.
Outra alternativa para trabalhar com essa questão seria a proposta por La
Taille (2009), a qual promove a manifestação e o desabrochar de certos sentimentos
morais. Ao transpor a proposta do autor para as ações de educação em saúde e
educação para o trânsito, concebe-se que, ao possibilitar a reflexão dos adolescen-
tes sobre o valor humano dos sentimentos morais, como por exemplo simpatia e
confiança, poderá ser possível a adoção de condutas de saúde mais imbricadas, que
levem à preservação da vida do sujeito.
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Nota
1 Questionamento elaborado com base em parte do samba de enredo do ano de 2004: “Não corra, não mate,
não morra. Pegue carona com a Mocidade!”, do Grêmio Recreativo Escola de Samba Mocidade Independen-
te de Padre Miguel.
2 Realizado com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), por meio
do Programa Pró-Mobilidade Internacional da Associação de Universidades de Língua Portuguesa (AULP)
– processo n. 3283/15-1.
3 Informações disponíveis em: http://igae.cv/igae/2019/05/02/parlamento-de-cabo-verde-aprova-lei-que-proi-
be-alcool-para-menores-de-18/. Acesso em: 15 ago. 2021.
4 Na variante da Língua Portuguesa utilizada em Cabo Verde, os adolescentes utilizam a palavra fixe para
o que na variante brasileira chamamos de legal.
5 Disponível em: https://www.galeriadosamba.com.br/escolas-de-samba/mocidade-independente-de-padre-
-miguel/2004/. Acesso em: 15 ago. 2021.
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Caracterização da autorregulação emocional e estados afetivos em alunos da
pós-graduação stricto sensu
Characterization of emotional self-regulation and aective states in postgraduate
students stricto sensu
Caracterización de la autorregulación emocional y estados afectivos en estudiantes
graduados stricto sensu
Jamille Gabriela Cunha da Silva*
Luciana Amaral Garcia**
Maély Ferreira Holanda Ramos***
Resumo
Os aspectos emocionais e afetivos podem inuenciar diretamente nos cursos de ação adotados pelos indiví-
duos, além de interferir em vários âmbitos da vida, sejam eles sociais ou acadêmicos. A presente pesquisa tem
como objetivo avaliar a percepção de alunos de pós-graduação sobre a autorregulação emocional e seus esta-
dos afetivos no contexto acadêmico. Para isso, o estudo caracterizou-se como uma pesquisa empírica, contando
com 58 alunos de pós-graduação – mestrado e doutorado – de dois programas da Universidade Federal do
Pará. Apropriando-se de uma abordagem quantitativa, a pesquisa se utilizou da análise estatística descritiva.
Os resultados demonstraram que, apesar das exigências e das tarefas necessárias na pós-graduação, os alunos
* Mestre em educação no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGED/UFPA). Licenciada em Pedagogia na
Universidade Federal do Pará. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Psicologia Educacional, atuando
principalmente nos seguintes temas: Teoria Social Cognitiva; autoecácia docente; autorregulação; autorregulação
emocional; redes sociais pessoais; ansiedade; pós-graduandos; formação de professores; educação básica; educação
infantil. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-8666-6043. E-mail: jamillegabriela22@gmail.com
** Possui graduação em Pedagogia pela Universidade do Estado do Pará (2013), graduação em Tecnologia em Sanea-
mento Ambiental pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará (2010) e mestrado em Formação
de Professores, Teorias e Práticas Docentes pela Universidade Federal do Pará (2019). Tem experiência na área de
Educação, com ênfase em Métodos e Técnicas de Ensino, atuando principalmente nos seguintes temas: outeiro, aná-
lise de conteúdo, educação infantil, professores e violência. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9095-7276. E-mail:
luje2504@gmail.com
*** Doutora em Teoria e Pesquisa do Comportamento – Psicologia (UFPA - 2015). Realizou pós-doutorado no Programa
de Pós-Graduação em Teoria e Pesquisa do Comportamento – Psicologia (UFPA). Mestre em Educação pela Uni-
versidade Federal do Maranhão (UFMA - 2010). Atualmente é professora Adjunta da UFPA, vice-coordenadora do
Programa de Pós-graduação em Segurança Pública (PPGSP-UFPA) e professora permanente do Programa de Pós-
-graduação em Educação (PPGED-UFPA). Orienta nos níveis de mestrado e doutorado. Coordena o Núcleo de Es-
tudos Aplicados ao Comportamento (NEAC). Foi vice-diretora da Faculdade de Educação do Instituto de Ciências
da Educação (UFPA/2017-2019). Desenvolve pesquisas relacionadas as seguintes temáticas: Teoria Social Cognitiva;
crenças individuais e coletivas de ecácia; satisfação no trabalho; satisfação com a vida; autorregulação; redes sociais
e semânticas, adoecimento (estresse, burnout, ansiedade), desengajamento moral e violência escolar. Orcid: https://
orcid.org/0000-0001-6150-6345. E-mail: maelyramos@hotmail.com
Recebido em: 01/07/2020 – Aprovado em: 10/08/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i2.11262
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conseguem administrar suas emoções e sua variação de humor, sem perder a percepção de determinação, ani-
mação e interesse no processo de formação em questão. Os participantes ainda informaram que se utilizam de
estratégias, como o envolvimento em atividades prazerosas, para manter a alegria e modicar os estados emo-
cionais negativos – no caso de tristeza e raiva – que tendem a afetar diretamente o desempenho acadêmico dos
sujeitos. Sugere-se a realização de novas pesquisas sobre a temática, que consigam acompanhar o processo for-
mativo dos alunos, a m de perceber o gerenciamento emocional e as implicações do desempenho acadêmico.
Palavras-chave: gerenciamento emocional; contexto acadêmico; pós-graduandos; Teoria Social Cognitiva.
Abstract
Emotional and aective aspects can directly inuence the courses of action adopted by individuals, as well as
inferring in various areas of life, whether social or academic. This research aims to evaluate the perception of
postgraduate students about emotional self-regulation and its aective states in the academic context. For this,
the study was characterized as an empirical research, with 58 postgraduate students – masters and doctorate –
from two programs of the Federal University of Pará. Appropriating a quantitative approach, the research used
statistical analysis. descriptive. The results showed that, despite the demands and tasks required in graduate
school, students are able to manage their emotions, mood swings, without losing perception of determination,
animation and interest in the training process in question. Participants also reported that they use strategies
such as engaging in pleasurable activities” to maintain joy and modify negative emotional states – in the case
of sadness and anger – that attempt to directly aect subjects’ academic performance. Further research on the
subject is suggested, which can follow the students training process in order to understand the emotional ma-
nagement and the implications of academic performance.
Keywords: emotional management; academic context; postgraduates; Cognitive Social Theory.
Resumen
Los aspectos emocionales y afectivos pueden inuir directamente en los cursos de acción adoptados por los
individuos, además de inferir en diversos ámbitos de la vida, ya sean sociales o académicos. Esta investigación
tiene como objetivo evaluar la percepción de los estudiantes de posgrado sobre la autorregulación emocional y
sus estados afectivos en el contexto académico. Para ello, el estudio se caracterizó como una investigación em-
pírica, con 58 estudiantes de posgrado – maestría y doctorado – de dos programas de la Universidad Federal de
Pará Apropiando un enfoque cuantitativo, la investigación utilizó análisis estadístico descriptivo. Los resultados
mostraron que, a pesar de las demandas y tareas necesarias en la escuela de posgrado, los estudiantes logran
manejar sus emociones, variaciones de humor, sin perder la percepción de determinación, animación e interés
por el proceso de formación en cuestión. Los participantes también informaron que utilizan estrategias, como la
“participación en actividades placenteras”, para mantener la alegría y modicar estados emocionales negativos
– en el caso de la tristeza y la ira – que intentan afectar directamente el rendimiento académico de los sujetos. Se
sugiere una mayor investigación sobre el tema, que sea capaz de seguir el proceso de formación de los estudian-
tes para comprender la gestión emocional y las implicaciones del rendimiento académico.
Palabras clave: manejo emocional; contexto académico; estudiantes de posgrado; Teoría Social Cognitiva.
Introdução
O ser humano possui a capacidade de agir diretamente nas situações que o
rodeiam, sejam elas no âmbito familiar ou no contexto acadêmico, traçando metas
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para alcançar objetivos diversos nessas e em outras áreas. Esse é um processo con-
tínuo que ocorre em todos os momentos da vida do indivíduo, desde uma simples
meta de vencer uma partida de jogo, até concluir um curso superior (BANDURA,
1999). Bandura (1986) constituiu uma teoria que explica esse fenômeno por meio
de construtos consistentes que envolvem tanto o cognitivo como o aspecto social do
sujeito.
A Teoria Social Cognitiva, que teve como precursor o psicólogo Albert Bandura
(1986), define o ser humano como um “ser agente”, o qual é capaz de agir mediante
a uma perspectiva de futuro, ou seja, agir com intencionalidade visando a utiliza-
ção de estratégias para realizar o esperado, demonstrar proatividade, auto-organi-
zação, autorreflexão, criando planos e prevendo possíveis resultados como forma de
pensamento antecipatório (BANDURA, 2005).
Esse “ser agêntico” exerce uma função ativa dentro da construção do seu pró-
prio comportamento, influenciando e sendo influenciado pelo meio no qual está
inserido (AZZI, 2014). Bandura (1999) estabelece uma tríade que compõe a cons-
trução do comportamento humano, considerando elementos internos e externos
ao indivíduo, a saber: (1) fatores ambientais – que consistem no próprio ambiente
físico ou socioestrutural que está naturalmente constituído pela sociedade, ou ain-
da pode se tratar de um ambiente construído pelo próprio sujeito, por meio de suas
relações; (2) fatores pessoais – são características de aspecto cognitivo, afetivo e
biológico do indivíduo, além de suas crenças pessoais, ou seja, acreditar na sua ca-
pacidade e habilidade de alcançar determinado objetivo; (3) comportamento – esse
elemento da tríade refere-se ao próprio curso de ação adotado, seja ele de natureza
física, verbal ou a partir de escolhas.
É por meio dessa concepção de determinismo recíproco – outra nomenclatu-
ra utilizada por Bandura (1999) para denominar a construção do comportamento
humano – que o indivíduo como um ser agêntico consegue exercer influência no
meio, estabelecer objetivos e metas para cumpri-los, além de prever possíveis re-
sultados. A Teoria Social Cognitiva se utilizou do construto da “autorregulação”, o
ressignificando de maneira a explicar esse processo de realização até o alcançar dos
resultados, sejam eles favoráveis ou não (BANDURA; AZZI; POLYDORO, 2008).
De acordo com a perspectiva de Bandura (1991), a autorregulação consiste
em um mecanismo interno do ser humano, que pode ocorrer de forma consciente
ou inconsciente/voluntário, que o sujeito controla e gerencia suas ações, seus sen-
timentos e pensamentos ou suas motivações, com o intuito de alcançar os objetivos
propostos e os resultados esperados. Para garantir a eficácia desse processo au-
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torregulatório, é necessário um automonitoramento periódico, no qual o próprio
sujeito observa, julga e avalia os cursos de ação adotados e, caso haja necessidade,
emprega as alterações necessárias (BANDURA; AZZI; POLYDORO, 2008, p. 151;
SCHUNK, 2012; POLYDORO, 2017, p. 13).
A autorregulação é um processo que se constitui por meio de um sistema es-
truturado em três subprocessos cognitivos, a saber: auto-observação, julgamento e
autorreação. Na função auto-observação, o indivíduo tem acesso à sua real situação
no processo regulatório, visto que monitora os comportamentos adotados e suas
possibilidades de mudanças, dispondo assim de informações essenciais para os de-
mais subprocessos (BANDURA, 2002).
O subprocesso julgamento consiste na análise do comportamento adotado, que
apresenta um caráter positivo ou negativo, tendo em vista os padrões adotados
para esse julgamento (BANDURA; AZZI; POLYDORO, 2008, p. 52). Para nortear
esse subprocesso, existem dois tipos de referências: pessoais e sociais (BANDU-
RA; AZZI; POLYDORO, 2008, p. 154). As referências pessoais consistem nas expe-
riências adquiridas pelo próprio sujeito, que, dependendo do resultado, podem ser
adotadas novamente, a fim de alcançar um desempenho satisfatório (BANDURA,
1999). Já as referências sociais estão fundamentadas nas relações com o outro, ou
seja, com as experiências vividas em sociedade, que também poderão ser aplicadas
no processo se trouxeram resultados eficazes durante a trajetória do sujeito (BAN-
DURA, 1999).
O último subprocesso da autorregulação consiste na autorreação, que é a for-
ma como o indivíduo vai reagir mediante ao julgamento realizado. Se o julgamento
for positivo, é provável que o sujeito reaja de forma satisfatória, demonstrando
que os cursos de ação adotados estão evidenciando eficácia em seu desempenho.
Entretanto, se o julgamento for negativo, a reação do indivíduo demonstrará sua
insatisfação no processo e poderá refletir em uma mudança de comportamento ou
até em uma inatividade. Existem três tipos de autorreação, que são: avaliativa –
está baseada na avaliação dos padrões adotados, que podem ser pessoais ou sociais;
tangível – está relacionada às consequências do julgamento, que pode refletir na
mudança dos cursos de ação adotados ou até mesmo em comportamentos puniti-
vos; inexistente – na qual o sujeito não adota nenhum tipo de conduta, ou seja, ele
fica em um estado de inatividade por tempo indeterminado (BANDURA; AZZI;
POLYDORO, 2008, p. 52, 155-156; BANDURA, 1986).
O construto da autorregulação, mesmo dentro da Teoria Social Cognitiva, é
amplamente aplicável em vários aspectos da vida humana, por se tratar de um con-
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ceito que norteia os cursos de ação do sujeito. A autorregulação pode ser aplicada
no âmbito do próprio comportamento, da motivação, do processo de aprendizagem,
do afeto ou do contexto emocional, dentre outros. Para este estudo, delimitar-se-á
o construto da autorregulação no aspecto afetivo, também chamado de emocional
(BANDURA, 1999; BANDURA; CAPRARA; BARBARANELLI, 2003).
A autorregulação emocional, ou do afeto, consiste na capacidade do sujeito
de identificar e gerenciar suas emoções, reconhecendo as possíveis consequências
derivadas de cada comportamento afetivo adotado (BANDURA; AZZI; POLYDO-
RO, 2008, p. 160; BANDURA; CAPRARA; BARBARANELLI, 2003). Além disso, o
referido construto está relacionado ao controle de aspectos de natureza fisiológica
e física – como a externalização da emoção apresentada – da emoção, que pode pro-
mover ao indivíduo a capacidade de regular-se quanto a suas próprias expressões
emocionais (GROSS, 1999).
Vale ressaltar que existem dois tipos de aplicação da regulação no âmbito emo-
cional, que são: intrínseca ou intrapessoal – consiste na regulação das emoções do
próprio indivíduo, resume-se ao conceito de autorregulação emocional adotado nes-
te estudo; extrínseco ou interpessoal – refere-se à regulação de emoções de outrem,
ou seja, quando o indivíduo tenta gerenciar a emoção de outra pessoa (GROSS;
JAZAIERI, 2014).
A autorregulação no contexto emocional tende a influenciar no humor e nos
estados afetivos dos indivíduos, visto que esses conceitos se fundamentam na ca-
pacidade emocional e suas consequências, que, dependendo do seu gerenciamento,
podem tanto promover o bem-estar físico e psíquico como também podem acarretar
a alteração de humor do indivíduo, provocando o estabelecimento de um estado
emocional negativo (CRUVINEL; BORUCHOVITCH, 2011). Um sujeito que con-
segue autorregular suas emoções tem mais possibilidade de adquirir satisfação em
suas experiências da vida cotidiana, promovendo eficácia e qualidade no funciona-
mento de suas funções básicas, inclusive nos relacionamentos sociais (BANDURA;
CAPRARA; BARBARANELLI, 2003).
Garnefski, Kraaij e Spinhoven (2001) destacam que existem muitas estraté-
gias de enfrentamento emocional, entretanto, algumas são utilizadas com mais
frequência, são elas: supressão da emoção – consiste na tentativa de diminuir as
expressões decorrentes da emoção apresentada; aceitação – quando o indivíduo
aceita a situação e a emoção decorrente desta; disfarce – como o próprio nome su-
gere, é a tentativa de esconder a emoção apresentada; externalização – a expressão
por meio de ações verbais ou físicas; autoculpabilização – na qual o sujeito atribui a
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culpa do estado emocional a si mesmo; reavaliação positiva da situação – quando o
indivíduo extrai lições do evento, a fim adquirir aprendizado; ruminação – consiste
no pensamento exagerado no estado emocional no qual o indivíduo se encontra;
apoio social – busca pelo apoio de amigos, familiares ou pessoas próximas, que te-
nham determinado grau de importância para o sujeito; distração – envolver-se em
tarefas diversas como forma de “esquecer” o atual estado emocional; entre outras.
Para auxiliar no gerenciamento eficaz das emoções, a Teoria do Processamen-
to da Informação de Garber, Walker e Zeman (1991) constituiu um modelo de seis
etapas que corrobora o aperfeiçoamento da autorregulação emocional, a saber: (1)
identificação da emoção e, se necessário, seu controle; (2) percepção do que mo-
tivou a emoção e do que deveria ter sido feito para evitar as consequências; (3)
estabelecimento de metas com o intuito de gerenciar a emoção apresentada; (4)
identificação de possíveis respostas que podem ser alcançadas mediante o curso
de ação adotada; (5) avaliação dos resultados alcançados no processo; (6) avaliação
do desempenho pessoal quanto ao que fora estipulado. A execução dessas etapas
pode promover a eficácia do controle emocional, possibilitando uma estabilidade
emocional que tende a favorecer aspectos da saúde emocional do indivíduo. Caso o
sujeito não consiga administrar de forma satisfatória as suas emoções, é provável
que surjam doenças de caráter psicossomático, como ansiedade excessiva, síndro-
mes, estresse, depressão, que podem gerar até casos de suicídio, comprometendo
seu desenvolvimento social e acadêmico (CAPRARA et al., 2012).
O descontrole é visto com grande frequência no contexto acadêmico, que tem
sido marcado pela presença de doenças psicossomáticas nos alunos que acabam
por desfrutar de um insucesso acadêmico (STORRIE; AHERN; TUCKETT, 2010).
As consequências disso são os recorrentes casos de esgotamento físico, emocional e
mental, que comprometem a eficácia da socialização, da organização e das ativida-
des acadêmicas do indivíduo (FRIED, 2010; SANTOS; PRIMI, 2014).
Bortoletto e Boruchovitch (2013) demonstram esse fato quando trazem in-
formações de um estudo com 298 estudantes de um curso de Pedagogia de uma
instituição pública e de uma privada do estado de Minas Gerais, que teve como
objetivo investigar as relações entre as estratégias de aprendizagem e a regulação
emocional desses alunos. O referido estudo demonstrou uma correlação positiva,
significativa e moderada entre os construtos: estratégias de aprendizagem e es-
tratégias de regulação emocional. Esses dados possibilitaram a afirmação de que,
quanto mais os universitários mostravam-se estratégicos no desempenho de suas
797
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atividades acadêmicas, mais capazes eles se mostravam em controlar as emoções
tristeza e raiva e manter a alegria.
No âmbito da pós-graduação, esse quadro não é diferente. A falta da autorre-
gulação emocional tem afetado o desempenho de estudantes pós-graduando, visto
que, além das atividades e exigências desse segmento de ensino, muitos desses
alunos trabalham e trazem consigo insatisfações desses ambientes. Essa insatis-
fação no trabalho, atrelada ao desempenho precário no processo de aprendizagem,
tem acarretado um número elevado de afastamento por motivos de depressão, sín-
drome de burnout, estresse, dentre outras doenças psicossomáticas, promovendo o
desinteresse na continuidade do processo de formação (BRANDTNER; BARDAGI,
2009; BATISTA et al., 2016).
A partir desse contexto, esta pesquisa tem como objetivo avaliar a percepção
de alunos de pós-graduação sobre a autorregulação emocional e seus estados afeti-
vos no contexto acadêmico.
Percurso metodológico
Natureza da pesquisa
A presente pesquisa caracterizou-se como um estudo empírico, que possibilita
ao pesquisador aproximar-se do lócus da pesquisa, oferecendo maior solidez no
levantamento e na identificação dos dados do fenômeno (DEMO, 1996). A pesquisa
ainda apresenta um caráter quantitativo, descritivo e exploratório que abarca uma
gama de procedimentos e técnicas para quantificar os dados obtidos, descrevendo
as principais características do objeto estudado, com o intuito de obter maior fami-
liaridade (GATTI, 2004; KAUARK; MANHÃES; MEDEIROS, 2010).
Lócus e participantes
A amostra deste estudo foi selecionada por conveniência, ou seja, aqueles que
demonstraram interesse em participar foram selecionados, podendo romper com
a decisão sem trazer prejuízo para o estudo ou para si mesmo. Com isso, partici-
param da pesquisa 58 alunos de dois programas de pós-graduação – nos níveis de
mestrado e doutorado –, sendo um na área da Educação (acadêmico) e outro na área
de Segurança Pública (profissional), da Universidade Federal do Pará (UFPA), no
Campus Guamá, na Cidade Universitária Prof. José da Silveira Netto, em Belém.
798 ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Procedimentos e instrumentos de coleta de dados
Os instrumentos utilizados foram: (1) questionário de caracterização – elabo-
rado pelas autoras deste estudo; (2) Escala Analógica de Humor (ZUARDI; KAR-
NIOL, 1981); (3) Escala de Avaliação das Estratégias de Regulação Emocional de
Adultos (BORUCHOVITCH; BORTOLETTO, 2010); (4) Escala de Afeto Positivo
(LENT et al., 2011); (5) Escala de Satisfação com a vida (DIENER et al., 1985).
O questionário de caracterização – elaborado pelas autoras – constitui-se
em um instrumento de questões fechadas, utilizado com o intuito de coletar dados
sociodemográficos, características profissionais, acadêmicas e pessoais dos partici-
pantes envolvidos (Apêndice A).
A Escala Analógica de Humor, proposta por Norris (1971) e traduzida por Zuar-
di e Karniol (1981), é caracterizada como um instrumento de 16 itens que analisa
estados subjetivos do sujeito por meio de um traço no sentido horizontal, que deve
ser marcado em uma linha reta de 10 cm que liga dois estados de humor opostos,
como “alerta” e “sonolento”, por exemplo. Para melhor compreensão dos resultados,
a escala teve seus itens agrupados em quatro fatores: ansiedade, sedação mental,
sedação física e outros sentimentos (SANCHEZ; GOUVEIA JR., 2011; GUIMA-
RÃES, 2000; GRAEFF et al., 2003). Vale ressaltar que, para este estudo, foram
utilizados apenas dados do primeiro fator, ou seja, dados de ansiedade (Anexo B).
A Escala de Avaliação das Estratégias de Regulação Emocional de Adultos
foi elaborada pelas autoras Boruchovitch e Bortoletto (2010), com o objetivo de
conhecer as estratégias de regulação emocional dos participantes. O referido ins-
trumento consiste em uma escala do tipo likert com 4 pontos e é subdividida em
3 subescalas – tristeza, alegria e raiva – totalizando 92 itens. Na subescala de
alegria, há 22 itens e o escore pode variar entre: no mínimo 22 e no máximo 88.
Nas subescalas de tristeza e raiva, existem 35 itens em cada, que podem variar de
35 a 140 pontos. Como resultado das análises realizadas, encontrou-se coeficiente
Alpha de Cronbach da escala geral α = 0,82, assim como os escores respectivos
de cada subescala: tristeza (α = 0,58), alegria (α = 0,61) e raiva (α = 0,69). Vale
ressaltar que, quanto maior o escore obtido, mais adaptativas são as estratégias
utilizadas pelo participante (Anexo C).
A Escala de Afeto Positivo foi construída por Lent et al. (2011), mediante
a um Modelo Social Cognitivo de Satisfação do trabalho, que é constituído por
um conjunto de subescalas e tem como objetivo avaliar aspectos sobre metas de
apoio, condições de trabalho, progresso de objetivos, afeto positivo e autoeficácia
799
ESPAÇO PEDAGÓGICO
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docente (RAMOS, 2015). Além disso, a referida escala foi validada em um estudo
nacional por Azzi, Ferreira e Casanova (2016). Apesar do contexto diferenciado,
a escala é facilmente aplicável em outros seguimentos como a pós-graduação.
A referida escala é do tipo likert e apresenta 9 itens com intervalos de 1 (muito
raramente ou nunca) a 5 (muito frequentemente). Em estudo desenvolvido por
Duffy e Lent (2009), essa escala alcançou um coeficiente Alpha de Cronbach de α
= 0,92 (Anexo D).
A Escala de Satisfação com a vida foi construída por Diener et al. (1985) e
validada por Azzi, Ferreira e Casanova (2016). Ela é do tipo likert e possui 5 itens,
apresentando intervalos entre 1 (discordo fortemente) e 7 (concordo fortemente).
No estudo de Lent et al. (2011), o coeficiente de Alpha de Cronbach nesta escala é
equivalente a α = 0,88 (Anexo E).
Inicialmente, os participantes foram esclarecidos sobre a temática e os obje-
tivos do estudo. Logo após esse momento, os participantes receberam orientações
gerais quanto ao preenchimento dos instrumentos. A aplicação dos instrumentos
deu-se de forma coletiva, primeiramente com os alunos do programa de pós-gra-
duação da Educação e posteriormente com os alunos do programa da área de Se-
gurança Pública. Os alunos foram acompanhados e receberam auxílio sempre que
solicitado.
Questões éticas
A fim de garantir a segurança e o anonimato dos participantes e dos dados ob-
tidos, foi aplicado o termo de consentimento livre e esclarecido, que certifica a dis-
posição do sujeito em participar da pesquisa. Além disso, a presente investigação
está vinculada ao projeto de pesquisa intitulado “Estresse, Burnout e Regulação
emocional: Implicações para Professores e Alunos”, que foi submetido e aprovado
pela Plataforma Brasil com o seguinte número do parecer 3.026.005 (Anexo A).
Análise de dados
Para analisar os dados, utilizou-se o software SPSS 24.0, aplicando estatística
do tipo descritivo e exploratório, que visa descrever as características dos partici-
pantes e/ou do fenômeno em destaque, além de estabelecer maior familiaridade
com o evento analisado (BUSSAB; MORETTIN, 2013).
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Resultados e discussão
Caracterização dos participantes
Ao analisar os dados levantados, percebeu-se que 69% dos participantes eram
do sexo feminino e 31% são do sexo masculino, demonstrando que a maioria da
amostra é composta por mulheres. Sobre a prevalência de mulheres na pós-gra-
duação, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)
divulgou uma notícia, em março de 2020, apontando para o alto índice de mulheres
matriculadas e tituladas em mestrado e doutorado (CAPES, 2020).
No ano de 2016, o doutorado obteve 57.380 matrículas femininas e 11.190
mulheres foram tituladas; quanto aos homens, 50.260 foram matriculados e 9.415
foram titulados. O número é ainda maior no mestrado acadêmico, que contou com
69.211 matrículas e 27.662 titulações femininas, enquanto o gênero masculino ob-
teve 57.238 matrículas e 21.393 titulações. Esse quadro só é invertido no contexto
do mestrado profissional, que apresentou 15.811 mulheres matriculadas e 5.290
tituladas, e 16.935 homens matriculados e 5.328 titulados. Percebe-se uma parti-
cipação significativa feminina nesse segmento de ensino, modificando uma cultura
patriarcal de relação de gênero, em que a mulher não poderia ter outra função,
além do lar. A participação feminina nas universidades, sobretudo na pós-gradua-
ção, é um marco na história das conquistas femininas, que deve ser difundida e
ampliada (GUEDES, 2008).
A idade dos alunos variou entre 22 (mínimo) e 57 anos (máximo). Os agru-
pamentos por faixa etária foram compostos da seguinte forma: (i) 22 a 29 anos
(23%); (ii) 30 a 39 anos (47,7%); e (iii) 40 a 57 anos (29,3%). Quanto ao estado civil,
contatou-se o seguinte: 36,2% casados, 27,6% solteiros, 19,0% com união estável,
15,5% divorciados e 1,70% em estado de viuvez. Além disso, 51,7% dos participan-
tes relataram ter filhos e 48,3% disseram não ter filhos.
Da amostra analisada, 31% dos alunos eram do Programa de Pós-graduação
em Segurança Pública e 69% do Programa de Pós-graduação em Educação. Dos 58
envolvidos, somente 30 alunos relataram ter cursado especialização. Vale ressaltar
que os participantes estavam cursando diferentes semestres, tanto no mestrado
quanto no doutorado.
Sobre a variável trabalho, 82,8% dos participantes afirmaram trabalhar – e
por isso não recebem bolsa de estudos –, e a média de carga horária trabalhada
foi de ± 34,9 h/semana. Dentre os participantes, 41,4% indicaram que receberam
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licença para cursar a pós-graduação, porém, 25 alunos (43,1%) disseram não ter
recebido liberação do trabalho para dedicar-se somente ao curso; 15,5% não respon-
deram a essa questão. Destaca-se que 17,2% dos participantes afirmaram não ter
trabalho formal e, por isso, receber bolsas de incentivo. Esse quadro pode ser expli-
cado pelo fato de apenas um dos dois programas analisados ser acadêmico, ou seja,
programas acadêmicos tendem a garantir incentivos para pesquisas e produções
acadêmicas, além da exigência de dedicação exclusiva por parte do aluno; diferen-
temente de programas profissionais, que buscam oferecer um produto material a
serviço da comunidade (BRASIL, 2009).
No que diz respeito a apoio – material, emocional, social, dentre outros as-
pectos – para a realização do curso, 42,9% afirmaram receber forte apoio, 26,8%
disseram receber apoio razoável, 12,5% disseram receber pouco apoio e 17,9% afir-
maram não receber nenhum tipo de apoio, demonstrando grande vulnerabilidade
nesse processo formativo. Estudos indicam que a falta de apoio psicológico, finan-
ceiro e emocional pode influenciar negativamente na adaptação do aluno na pós-
-graduação (SANTOS; ALVES JUNIOR, 2007; SANTOS; PERRONE; DIAS, 2015),
podendo gerar um estado de esgotamento mental e estresse, prejudicando a saú-
de dos mestrandos e doutorandos. Quanto à participação em grupos de pesquisa,
52,6% dos alunos afirmaram participar frequentemente dessas atividades, 33,3%
disseram participar de grupos de pesquisa, mas com pouca frequência, e 14% afir-
maram não participar de grupos. Esses dados podem estar ligados à exigência feita
pelos programas de pós-graduação, os quais requerem do aluno um envolvimento
com grupos de pesquisa que tendem a contribuir com o estudo realizado. No Pro-
grama de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Pará (UFPA),
por exemplo, essa participação é requisito obrigatório na produção acadêmica, de
acordo com a Resolução n. 01 (UFPA, 2017), caso contrário, o aluno poderá ser
impedido de realizar o exame de qualificação. Já no Programa de Pós-graduação
em Segurança Pública da UFPA, segundo a Resolução n. 4.800 (UFPA, 2016), a
participação em grupos de pesquisa faz parte de uma recomendação do próprio
orientador ao seu orientando.
Os participantes ainda relataram informações sobre a qualidade da sua rela-
ção com o orientador: 50% avaliaram a relação como excelente, 27,6% como muito
boa, 20,7% como boa e 1,7% como ruim (Gráfico 1). Quanto à regularidade das
orientações, 38,6% indicaram ter orientação semanalmente, 19,3% quinzenalmen-
te e 29,8% mensalmente; além disso, 7% dos alunos apontaram que dificilmente
recebem orientação, enquanto 5,3% dos pós-graduandos disseram que, até o mo-
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mento da pesquisa, não haviam recebido orientação alguma. Isso pode ser explica-
do, mas não justificado, por conta do período acadêmico desses alunos, que variam
entre 1° e 2° semestres.
Gráfico 1 – Percentual de alunos em relação à qualidade do relacionamento entre orientando e orientador,
2019
0,0
5,0
10,0
15,0
20,0
25,0
30,0
35,0
40,0
45,0
50,0
Péssima Muito
Ruim
Ruim Razoável Boa Muito Boa Excelente
2,0
21,0
27,0
50,0
Percentual
Qualidade do Relacionamento
Nota: refere-se ao item “Como você avalia sua relação com o orientador”, do questionário de caracterização.
Fonte: elaboração da autora, 2019.
Essa relação entre orientador e orientando (Gráfico 1) é fundamental no de-
senvolvimento da pesquisa e no desempenho do aluno. Viana (2008) afirma que
essa relação é composta por aspectos afetivos, profissionais, teórico-metodológicos
e institucionais. Leite Filho e Martins (2006) destacam que os orientadores são per-
sonagens de suma importância nesse processo, visto que devem manter relações
intersubjetivas, complexas e enriquecedoras com seus orientandos; se assim for, os
resultados poderão ser amplamente satisfatórios. Caso a relação seja conturbada e
problemática, há maior probabilidade de resultados negativos, podendo comprome-
ter o desempenho e a qualidade dos trabalhos (LEITE FILHO; MARTINS, 2006).
Da amostra utilizada, 12,1% afirmaram, ainda, possuir alguma doença crô-
nica e 87,9% declararam ser saudáveis. Além disso, 6,9% dos alunos disseram ter
alguma doença psicossomática já diagnosticada, sendo dois casos no Programa de
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Pós-graduação em Educação e dois casos no Programa de Pós-graduação em Segu-
rança Pública; 93,1% afirmaram não apresentar nenhuma doença dessa natureza
de forma diagnosticada por especialista. Vale ressaltar que não foram levantados,
neste estudo, as tipologias e o grau das doenças.
Fatores pessoais, como saúde física e psicológica, fazem parte da boa adapta-
ção dos alunos na pós-graduação, podendo influenciar no desempenho e no desen-
volvimento da pesquisa. O adoecimento mental tem se tornado recorrente nesse
segmento de ensino e casos de ansiedade e estresse têm sido frequentes entre esses
alunos (SANTOS, 2015). Apesar disso, os participantes parecem não demonstrar
um quadro de adoecimento, afirmando disporem de saúde física e psíquica.
Humor
Estudos sobre variação e transtornos de humor são desenvolvidos tanto pela
perspectiva da medicina e outras áreas da saúde como pela filosofia e sociologia,
desde o período da Grécia antiga (CAMPOS; CAMPOS; SANCHES, 2010). O hu-
mor pode ser proveniente de experiências pessoais e interpessoais com o meio, que,
dependendo do estado estável ou não, pode gerar um funcionamento psicológico
positivo e mais saudável, ou um quadro negativo de ansiedade (HORTA, 2013;
ALBUQUERQUE; TRÓCCOLI, 2004).
A presença dos sintomas de ansiedade pode ser marcada pela variação de hu-
mor, gerando características como: preocupação, agitação e alto índice de tensão
(CASTILLO et al., 2000). Sobre essa temática, os alunos investigados deveriam
responder o quanto determinado humor o representava, as opções variavam de
1 a 10, por exemplo: o aluno deveria marcar qual opção o representava naquele
momento “sonolento” ou “alerta”. Nesse caso, as opções de resposta variavam de
“significa muitíssimo sonolento” a “muitíssimo alerta”. A partir desse instrumento,
características de ansiedade também são identificadas e aferidas, visto a sensibili-
dade da escala utilizada (SANCHEZ; GOUVEIA JR., 2011).
Os resultados indicaram que uma grande parte dos alunos (31,1%) estava
calma, porém outra parte significativa da amostra demonstrou um estado de agi-
tação (22,4%). Os demais (46,5%) oscilaram em baixos índices entre os dois estados
de humor mencionados. A tranquilidade no contexto acadêmico tem sido cada vez
mais escassa, visto as exigências requeridas no âmbito universitário, sobretudo na
pós-graduação, a qual exige certo equilíbrio. Caso o aluno não consiga manter-se
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em um estado de calmaria, as chances de esgotamento aumentam, acarretando ris-
cos à saúde física, emocional e mental (PADOVANI et al., 2014; CARLOTTO, 2002).
Apesar de afirmarem sentir-se calmos, a maioria dos alunos (49,9%) indicou
estar preocupada e apenas um pequeno grupo (13,8%) disse estar tranquilo. Os
outros participantes (36,3%) optaram por marcar baixos índices dos dois estados de
humor. A preocupação, quando vivenciada de forma recorrente e excessiva, é uma
das características da ansiedade que tem acometido a muitos, principalmente no
contexto universitário. Aspectos como a manutenção dentro do curso, tarefas, car-
ga horária, disciplinas e a conclusão do curso têm se tornado motivos para o com-
prometimento da saúde mental de estudantes universitários, tornando-se motivos
de comprometimentos e até afastamentos das atividades acadêmicas (PADAVANI
et al., 2014; BATISTA et al., 2016).
Além disso, parte significativa dos participantes (32,8%) afirmou estar em um
estado de tensão, um grupo menor (19,0%) afirmou estar mais relaxado e o restan-
te (48,2%) oscilou entre um estado de humor e outro. A tensão tende a interferir
no bem-estar pessoal, podendo promover doenças de caráter psicossomático nos
alunos, influenciando de forma negativa o desempenho acadêmico (STORRIE; AH-
ERN; TUCKETT, 2010). Além das demandas do curso já mencionadas, outro aspec-
to que merece destaque está nas relações interpessoais que o aluno estabelece no
contexto acadêmico. A relação com o outro, principalmente com o orientador, pode
contribuir para essa variação de humor e até acometimento de ansiedade, visto
que relações conturbadas tendem a gerar sentimentos de tensão (SANTOS, 2015).
Percebe-se, a partir das respostas dos alunos, a falta de estabilidade no humor
na maioria dos itens relacionados à dimensão “ansiedade”, que podem interferir
no desempenho desses alunos quanto a suas tarefas acadêmicas, como também na
qualidade de vida e na saúde mental. Parte significativa dos participantes apre-
sentou algumas características da ansiedade, tais como preocupação e sensação de
tensão, que devem ser aferidas com mais detalhamento, a fim de evitar um quadro
de adoecimento, que infelizmente tem sido tão recorrente em universitários (HOR-
TA, 2013; PADAVANI et al., 2014; SANTOS, 2015).
Afeto positivo
O sentimento de bem-estar está diretamente ligado a aspectos de avaliação
cognitiva e afetiva. O afeto positivo está relacionado ao quanto o sujeito sente-
-se entusiasmado, ativo, alerta e com engajamento prazeroso nas atividades do
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cotidiano (GIACOMONI; HUTZ, 2006; WATSON; CLARK; TELLEGEN, 1988;
GALINHA; PAIS-RIBEIRO, 2005; RAMOS, 2015). Autores como Storrie, Ahern
e Tuckett (2010), Castro (2017) e Louzada e Silva Filho (2005) demonstram, em
suas pesquisas, a vulnerabilidade dos alunos na pós-graduação, indicando casos de
depressão, ansiedade e elevados níveis de estresse, que tendem a afetar o desenvol-
vimento dos pós-graduandos em suas atividades.
Apesar da gama de atividades da pós-graduação e da intensidade da vida aca-
dêmica e pessoal, percebeu-se que os alunos da presente pesquisa apresentaram
boas características de estados afetivos, visto que a maioria das respostas apontou
para aspectos positivos; nos escores dessa escala, a maioria das médias aproxi-
mou-se de 4 ou 5, ou seja, frequentemente e muito frequentemente, como mostra
a Tabela 1. Essas informações indicam que os alunos, apesar das dificuldades do
contexto da pós-graduação, continuam apresentando características de afeto posi-
tivo, sendo assim, sentem-se frequentemente interessados, animados, fortes, entu-
siasmados, orgulhosos, atentos, inspirados, determinados e ativos.
Tabela 1 – Estatística resultante de análise descritiva e exploratória sobre afeto positivo de alunos de pós-
-graduação em educação e segurança pública da UFPA, 2019
N. de
participantes Mínimo Máximo Média Desvio
padrão
Você geralmente se sente interessado 58 3 5 4,12 ,677
Você geralmente se sente animado 58 2 5 4,00 ,649
Você geralmente se sente forte 58 3 5 3,86 ,760
Você geralmente se sente entusiasmado 58 2 5 3,78 ,750
Você geralmente se sente orgulhoso 58 1 5 3,64 ,831
Você geralmente se sente atento 58 3 5 3,91 ,601
Você geralmente se sente inspirado 58 3 5 3,62 ,644
Você geralmente se sente determinado 58 3 5 4,14 ,712
Você geralmente se sente ativo 58 2 5 4,02 ,713
Nota: a Tabela 1 informa os valores mínimo e máximo que os participantes marcaram na escala de afeto positivo, além das
médias alcançadas em cada resposta dos alunos.
Fonte: elaboração das autoras, 2019.
Os resultados apresentados na Tabela 1 vêm de encontro com a literatura
acerca dos principais fatores de descontrole no ambiente universitário. Tal como
Santos (2015) ressalta que os alunos da pós-graduação estão vulneráveis a quadros
de estresse por conta da necessidade de administrar as demandas acadêmicas, com
as demandas da vida pessoal, como do trabalho, do lar, entre outras. Ramos (2015)
desenvolveu um estudo com docentes sobre a temática em questão e reconheceu
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que o estado emocional positivo pode corroborar o melhor cumprimento de ativi-
dades acadêmicas, demonstrando a importância de se manter um estado de afeto
positivo. Apesar desses aspectos positivos, vale aferir a qualidade do gerenciamen-
to dos estados afetivos, para que se acompanhe se de fato os participantes deste
estudo conseguem controlar-se no cotidiano acadêmico, além de observar a eficácia
quanto ao desempenho desses alunos.
Satisfação com a vida
Outra importante variável investigada é a satisfação com a vida, que consiste
em um conceito subjetivo, pessoal, que está relacionado à sensação de bem-estar do
indivíduo. Além disso, a satisfação constitui-se como um construto dinâmico e mul-
tidimensional, visto seu envolvimento com aspectos relativos ao humor, às emoções
e ao autojulgamento, que tendem a mudar com o passar do tempo (ALBUQUER-
QUE; TRÓCCOLI, 2004; SILVEIRA et al., 2015). Nesse aspecto, os alunos foram
questionados sobre a própria vida, identificando de que maneira têm percebido
algumas características do seu bem-estar social e pessoal.
A maioria dos participantes (67,3%) informou que a vida que possuem pode
ser considerada como vida real, correspondente ao que haviam planejado. O senti-
mento de estar satisfeito com a própria vida foi percebido em um percentual signi-
ficativo da amostra (70,7%), que afirmou sentir-se satisfeito com a vida que possui.
Entretanto, apesar de ser a maioria, um grupo de alunos disse não ter certeza sobre
esse sentimento (13,8%) e outro grupo afirmou (15.5%) não estar satisfeito com a
própria vida. Esses dados preocupam, tendo em vista que a ausência do sentimento
de bem-estar pode acarretar sérios riscos à saúde do indivíduo (ALBUQUERQUE;
TRÓCCOLI, 2004). A percepção de satisfação, além de estar relacionada ao estado
emocional, também pode ser compreendida a partir do contexto que permeia o in-
divíduo (HORTA, 2013).
No que tange às condições de vida, parte importante dos alunos (56,9%) disse
ser excelente, porém, outros (43,1%) discordaram que as condições sejam comple-
tamente favoráveis. Esse resultado pode estar atrelado a condições fisiológicas ou
a condições acadêmicas e de trabalho do sujeito. Quando as condições fisiológicas
são supridas – alimentação, sono, lazer –, o sujeito tende a sentir-se mais satisfei-
to, visto que suas necessidades básicas foram contempladas (KUPPENS; REALO;
DIENER, 2008). Quanto ao trabalho, um ambiente que apresente boas condições,
tanto no âmbito estrutural como no afetivo, pode promover o sentimento de bem-es-
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tar, acarretando o bom desempenho do indivíduo naquele contexto (RAMOS, 2015;
KLASSEN, 2010). A condição acadêmica também tende a influenciar no bem-estar
do sujeito, visto que a falta de estrutura financeira e orientação acadêmica pode
trazer estados de estresse e adoecimento ao aluno (SANTOS; PERRONE; DIAS,
2015). Entretanto, quando essas condições básicas não estão sendo supridas de
forma satisfatória, o estado de satisfação pode ser afetado, trazendo impactos ne-
gativos para a vida do sujeito.
As conquistas adquiridas podem corroborar com este sentimento de satisfação.
Quanto a isso, os participantes (86,2%) demonstraram que têm conseguido adqui-
rir coisas que desejavam obter para a vida. Essas conquistas estão relacionadas a
aspectos materiais, sentimentais, formativos, etc. Nessa perspectiva, Albuquerque
e Tróccoli (2004) destacam que o julgamento do sentimento de satisfação do indiví-
duo é dependente da comparação feita por ele acerca das circunstâncias de vida e
do padrão almejado. Quando o sujeito alcança algo que almejava, o sentimento de
felicidade corrobora o estado de satisfação.
Quando questionados sobre a possibilidade de mudar algo ou alguma expe-
riência que já viveram, a maioria dos participantes (69%) afirmou não estar inte-
ressado nessa mudança e, se pudesse, dificilmente mudaria algum comportamento
já vivido. Apesar da ausência do sentimento de mudança em mais da metade dos
alunos, parte dos participantes (20,7%) afirmou que não tem certeza se desejaria
mudar algo ou não, e outro grupo de alunos (31%) demonstrou o interesse em mu-
dar algum curso de ação já efetuado. Estar consciente e satisfeito com os comporta-
mentos realizados pode proporcionar aos sujeitos um estado de felicidade, visto que
as experiências tanto positivas quanto negativas tendem a influenciar a sensação
de bem-estar (ALBUQUERQUE; TRÓCCOLI, 2004).
Os resultados obtidos demonstram que a maioria dos participantes apresen-
tou opiniões satisfatórias acerca da vida e das condições as quais estão submetidos.
Entretanto, alguns alunos demonstraram certa insatisfação com a própria vida.
Quando os sujeitos se demonstram satisfeitos, é comum que se sintam felizes em
diversos âmbitos da vida, como nos aspectos pessoais, familiares, acadêmicos, pro-
fissionais, relacionais, etc. (RAMOS, 2015). Além disso, essas informações podem
corroborar os dados de humor e de afeto positivo, visto que a satisfação possibilita
a sensação de bem-estar mental e emocional, podendo promover o controle efetivo
do humor e um gerenciamento positivo nos seus estados afetivos, contribuindo in-
clusive para o desempenho acadêmico e a eficácia na socialização, organização e no
cumprimento das atividades acadêmicas (FRIED, 2010; SANTOS; PRIMI, 2014).
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Autorregulação emocional
Aspectos emocionais são de suma importância para compreender a satisfação
com a vida, além da variação do humor de um indivíduo, tendo em vista que a
estabilidade emocional tende a influenciar no comportamento, na motivação e no
desempenho do sujeito (CAPRARA et al., 2012). Portanto, os participantes res-
ponderam afirmativas referentes a três emoções –tristeza, alegria e raiva – e às
principais estratégias de autorregulação emocional utilizadas para gerenciar essas
emoções. Nas subescalas de tristeza e raiva, os itens são subdivididos em estraté-
gias funcionais para controlar as referidas emoções, estratégias menos favorecedo-
ras da regulação dessas emoções e estratégias ambivalentes, que podem ser boas
ou ruins para o gerenciamento emocional. No caso da subescala de alegria, os itens
são subdivididos em estratégias de apoio à manutenção dessa emoção, estratégias
menos favorecedoras da autorregulação emocional e estratégias ambivalentes (BO-
RUCHOVITCH; BORTOLETTO, 2010). Vale ressaltar que o presente estudo não
contemplou todas as questões relativas a cada dimensão, porém, fez-se destaque
apenas a alguns itens entendidos como mais relevantes após a análise dos dados.
No que se refere à subescala de tristeza, a maioria dos alunos (93,1%) afir-
mou perceber quando está triste. Além disso, os escores mais significativos, nessa
escala, estão relacionados a estratégias funcionais de controle da emoção, como
realizar atividades prazerosas, que foi apontada por 75,9% dos alunos, e pensar em
experiências agradáveis, que também foi identificada pelos participantes (62,1%).
Estratégias que não favorecem o gerenciamento emocional de forma satisfatória
também obtiveram índices significativos, visto que a maioria dos participantes
(65,5%) disse que estar triste atrapalha na concentração para o desenvolvimento
dos estudos.
Arruda (2014) destaca que a tristeza pode afetar diretamente a inibição do
interesse do sujeito em praticar atividades prazerosas e pode ajudar a fixar o pen-
samento excessivo no evento que proporcionou esse estado emocional. Entretanto,
os resultados obtidos demonstraram que os participantes da presente pesquisa pa-
recem não se abater pelos efeitos da tristeza que sentem, mas buscam engajar-se
em modificar essa emoção, a fim de conseguir uma estabilidade emocional.
Sobre a emoção alegria, a maioria dos participantes (89,7%) afirmou que
consegue identificar quando está alegre. As estratégias mais utilizadas foram as
ambivalentes e de manutenção do estado emocional vivido. Os alunos (62,1%), em
sua maioria, disseram que, quando estão alegres, conseguem executar tarefas ou
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efetuar escolhas que visam manter a alegria, demonstrando que comportamentos
dessa maneira podem ser bons para a manutenção do estado emocional positivo.
Essas estratégias são chamadas ambivalentes, que apresentaram índices significa-
tivos nessa escala. Além disso, a maioria dos alunos (74,1%) afirmou que estar ale-
gre não atrapalha no desempenho acadêmico, nem prejudica os relacionamentos
sociais estabelecidos (91,4%). Esses dados apontam para a influência positiva da
alegria no desempenho pessoal e interpessoal desses estudantes, além da possível
sensação de bem-estar (PADAVANI et al., 2014).
Miguel (2015) destaca que a emoção alegria é vivida após um evento satisfa-
tório que exprime valor ao indivíduo, causando uma expressão positiva. Garantir
a manutenção dessa emoção é importante para o bem-estar do indivíduo e, por
meio dos resultados aferidos, identificou-se o empenho dos alunos em manter esse
estado emocional positivo. Além disso, percebeu-se que os alunos conseguem iden-
tificar e expressar a alegria vivida e ainda ressaltam que essa emoção positiva não
interfere nos estudos. Caprara et al. (2012) destacam que a manutenção da emoção
positiva tende a facilitar e impulsionar o desempenho do indivíduo, inclusive no
âmbito acadêmico.
No que tange à subescala de raiva, 94,8% dos participantes afirmaram que
conseguem perceber quando estão com raiva. As estratégias para gerenciar essa
emoção que obtiveram maiores escores foram as funcionais, que visam o controle
da emoção, e as estratégias menos favorecedoras. Quanto às estratégias funcionais,
a maioria dos alunos (79,3%) afirmou que modifica seus pensamentos para tentar
controlar a raiva que sente. Além disso, como forma de exemplo de estratégias que
não favorecem o gerenciamento emocional, os estudantes (67,2%) indicaram que a
raiva atrapalha a concentração nos estudos.
A raiva é fruto de uma frustação que pode desencadear sensação de irritabi-
lidade, indignação, além de comportamentos violentos com tendência ao ataque.
Essa emoção é caracterizada pela tomada de decisão impulsiva, em que muitas
vezes o indivíduo só se arrepende quando a ação já foi executada (ARRUDA, 2014).
De acordo com os resultados, os participantes identificam facilmente a raiva apre-
sentada. Além de afetar no curso de ação adotado, a raiva também pode atrapalhar
o desempenho acadêmico dos alunos, como eles demonstraram em suas respostas.
Monteiro, Freitas e Ribeiro (2007) ilustram isso quando apontam que raiva, irrita-
bilidade e dificuldade de concentração podem acarretar um quadro de estresse, que
é comum no contexto acadêmico em vista das pressões e cobranças desse segmento.
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A estabilidade emocional é necessária para a garantia do bem-estar, do sen-
timento de satisfação e do desempenho em diversos contextos (CAPRARA et al.,
2012). Pessoas que alcançam essa estabilidade por meio do gerenciamento eficaz
das emoções tendem a estabelecer melhores relacionamentos interpessoais, au-
mentando os níveis de afeto positivo e sentimento de felicidade (GROSS; JOHN,
2003). Padavani et al. (2014) ressaltam a importância de políticas públicas que
auxiliem os alunos nesse processo, dando suporte emocional e psicológico como
forma de prevenção a possíveis doenças.
Considerações nais
A variação de humor, somada ao sentimento de satisfação ou insatisfação com
a vida, ao afeto positivo e ao gerenciamento das emoções, pode influenciar direta-
mente nos aspectos fisiológicos, cognitivos e de desempenho social e acadêmico. O
objetivo deste estudo foi avaliar a percepção de alunos de pós-graduação sobre a
autorregulação emocional e seus estados afetivos no contexto acadêmico. Conside-
ra-se que os participantes conseguem lidar fortemente com seus aspectos afetivos,
além do gerenciamento emocional.
A maioria da amostra disse sentir-se interessada, animada, determinada e
ativa, resultando em um nível de satisfação positivo, que tende a influenciar nos
cursos de ação adotados. Além disso, apesar de declarar ter pouca agilidade, a
maioria dos participantes afirmou sentir-se muito competente e satisfeita, expres-
sando um sentimento de alegria moderado. Porém, vale ressaltar que, apesar de
não ser a maioria, um grupo menor de alunos demonstrou uma percepção negativa
de alguns aspectos fundamentais, como humor e satisfação com a vida. Isso de-
monstra que as demandas requeridas pelo contexto da pós-graduação parecem não
afetar, na totalidade, o humor e o sentimento de satisfação com a vida da amostra
analisada.
Quanto ao aspecto emocional dos participantes, identificou-se que a maioria
dos sujeitos consegue identificar o estado emocional no qual se encontra e o expres-
sa por meio da fisionomia. Percebeu-se que o envolvimento com atividades prazero-
sas foi uma estratégia utilizada com bastante frequência, tanto para a manutenção
da alegria quanto para a modificação de emoções negativas – nesse caso, a tristeza
e a raiva. Outro fator importante foi a percepção da influência negativa nos estu-
dos, quando os alunos estão tristes ou com raiva, a maioria dos participantes iden-
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tificou que os estados emocionais negativos prejudicam o bom desenvolvimento
acadêmico, confirmando o que a literatura tem apontado.
O presente estudo relevou a importância dos aspectos emocionais e afetivos na
vida dos sujeitos, porém, limitou-se à aplicação de instrumentos apenas para um
levantamento inicial. Sugere-se, para novas pesquisas nessa área, a continuidade
nessa perspectiva, mas com uma amostra mais robusta, acompanhando o processo
formativo dos alunos, para assim ter maiores informações sobre a influência das
características emocionais no desempenho acadêmico da amostra.
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ESPAÇO
PEDAGÓGICO
DIÁLOGO COM
EDUCADORES
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Diálogo com educadores
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Diálogo com educadores
Vanderléia Leodete Pulga*
Renata Maraschin**
Altair Alberto Fávero***
Na seção “Diálogo com educadores” deste volume da revista Espaço Pedagó-
gico (REP), contamos com a instigante entrevista concedida pela professora e pes-
quisadora Dra. Vanderléia Laodete Pulga, doutora em Educação – Educação em
saúde pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) (2014), premiada
em 1º lugar na categoria Pesquisas e Sistematizações na 2ª edição do Prêmio Victor
Valla pela Abrasco e pelo Ministério da Saúde. Vanderléia fez seu mestrado em
Educação – Educação, Cultura Popular e Saúde no Programa de Pós-Graduação
em Educação (PPGEdu) da Universidade de Passo Fundo (UPF) (2003), e sua dis-
sertação foi premiada em 3º lugar na 1ª edição Prêmio Margarida Alves. Também é
especialista em Preceptoria no Sistema Único de Saúde (SUS) pelo Instituto Sírio
Recebido em: 11/03/2021 – Aprovado em: 11/03/2021.
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i2.12342
* Doutora em Educação - Educação em saúde (UFRGS/2014), premiada em 1º lugar na categoria Pesquisas e Sistema-
tizações na 2ª edição do Prêmio Victor Valla pela Abrasco e Ministério da Saúde. Mestre em Educação - Educação,
Cultura Popular e Saúde (UPF/2003), dissertação premiada em 3º lugar na 1ª edição Prêmio Margarida Alves. Especia-
lista em Preceptoria no SUS pelo Instituto Sírio Libanês de Ensino e Pesquisa. Especialista em Docência na Saúde pela
UFRGS. Graduada em Filosoa (IFIBE/UPF/1998/2000). Docente de Saúde Coletiva da UFFS/Campus Passo Fundo/RS
na graduação em Medicina. Coordenadora da COREMU da UFFS e do Programa de Residência Multiprossional em
Saúde - Área de Concentração - Atenção Básica - Saúde da Família e Comunidade - da UFFS. Integrante do Grupo
de Pesquisa Inovação em Saúde Coletiva: políticas, saberes e práticas de promoção da saúde da UFFS. Orcid: http://
orcid.org/0000-0002-1918-0916. E-mail: vanderleia.pulga@us.edu.br
** Graduação em Fisioterapia pela Universidade de Passo Fundo (2005). Especialização em Terapia Manual e Postural
pelo Centro Universitário de Maringá (2009). Especialista em Fisioterapia Respiratória pela Associação Brasileira de
Fisioterapia Cardiorrespiratória e Fisioterapia em Terapia Intensiva (ASSOBRAFIR) (2016). Mestrado em Envelheci-
mento Humano pela Universidade de Passo Fundo (2011). Doutorado em Educação pela Universidade de Passo
Fundo (2017). Estágio pós-doutoral em andamento em Educação - Bolsa Capes. Participa do grupo de estudos Filo-
soa e Educação (UPF) e do Projeto de Pesquisa Formação Humana e exercício de si, cadastrados no CNPq. Atuou
como docente em nível de graduação e pós-graduação na área da saúde. Pesquisa os seguintes temas: formação
humana, formação e atuação prossional em saúde, hermenêutica losóca, educação em saúde, cuidado de si,
envelhecimento humano, pedagogia das competências, metodologias ativas de ensino e aprendizagem, pedagogia
hermenêutica, sioterapia respiratória, sioterapia pediátrica. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0595-1641. E-mail:
rechinpf@gmail.com
*** Pós-doutorado (bolsista Capes) pela Universidad Autónoma del Estado de México (2012), doutorado em Educação
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2007), mestrado em Filosoa pela Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul (1998), especialização em Epistemologia das Ciências Sociais (1993) e graduação em Filoso-
a Licenciatura Plena pela Universidade de Passo Fundo (1989). Atualmente é professor titular III e pesquisador da
Universidade de Passo Fundo desde 1992. É professor do Corpo docente permanente do Mestrado e Doutorado em
Educação (desde 2008) atuando na linha de Políticas Educacionais. É coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas
em Educação Superior (GEPES - UPF/RS). Orcid: https://orcid.org/0000-0002-9187-7283. E-mail: favero@upf.br
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Vanderléia Leodete Pulga, Renata Maraschin, Altair Alberto Fávero
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Libanês de Ensino e Pesquisa; especialista em Docência na Saúde (UFRGS); gra-
duada em Filosofia (Ifibe/UPF/1998/2000). É docente de Saúde Coletiva da Univer-
sidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Campus Passo Fundo, RS, na graduação
em Medicina. Coordenadora da Coremu da UFFS e do Programa de Residência
Multiprofissional em Saúde – área de concentração: Atenção Básica – Saúde da
Família e Comunidade – da UFFS. Integrante do Grupo de Pesquisa Inovação em
Saúde Coletiva: políticas, saberes e práticas de promoção da saúde da UFFS. Te-
mas de estudo: saúde coletiva; educação em/na saúde; residências em saúde/educa-
ção popular em saúde, integração ensino-serviço-comunidade, gestão participativa
em saúde; gênero e saúde; movimentos sociais. Integrante da Coordenação do GT
Educação Popular e Saúde da Abrasco. Membro da direção da Associação Brasilei-
ra da Rede Unida (2010-2016). Integrante da Articulação Nacional de Movimentos
e Práticas de Educação Popular e Saúde.
A presente entrevista foi concedia ao Dr. Altair Alberto Fávero e à Dra. Renata
Maraschin, coordenadores do Dossiê Educação e Saúde. De imediato, manifestamos
nosso profundo agradecimento à Dra. Vanderléia por nos conceder esta entrevista.
REP Você é uma educadora reconhecida no âmbito da saúde. Conte-nos um
pouco de sua trajetória de vida e sua formação acadêmica. Qual foi o percurso de
sua formação até chegar aos campos da educação e da saúde?
Dra. Vanderléia – Minha profunda alegria e gratidão à equipe editorial pelo
convite para compartilhar minha trajetória como educadora aqui na REP da UPF,
instituição que tem contribuição histórica na minha formação pessoal e profissio-
nal.
De origem camponesa, sou filha de pequenos agricultores, nascida no interior
de Guaporé, atualmente é o município de União da Serra, Rio Grande do Sul. Es-
tudei na escola pública em Pulador até a 6ª série, última possibilidade existente no
local para o estudo. Depois, tive que estudar em Bento Gonçalves e em Guaporé,
para concluir o 1º Grau e cursar Magistério, que preparava para atuar com edu-
cação para as séries iniciais, pois sempre adorei crianças e sonhava em ser profes-
sora. Foi um período que também trabalhei no cuidado de crianças e da casa de
parentes para ter onde morar e poder estudar.
Nesse período, na Diocese de Passo Fundo e nas regiões do Rio Grande do Sul,
havia a organização dos jovens através da Pastoral da Juventude, onde fui convi-
dada a participar de um Treinamento de Ação Pastoral. Me engajei nessa organi-
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Diálogo com educadores
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zação da Pastoral da Juventude Estudantil inicialmente, mas logo me identifiquei
e me comprometi com a Pastoral da Juventude Rural, que mobilizava milhares de
jovens rurais com o lema “Jovem da roça também tem valor”, para refletir sobre
o êxodo rural, as alternativas para a juventude viver no meio rural. Nesse espaço
organizativo, logo fui desafiada a contribuir no setor de formação/educação e de
comunicação, onde atuei por vários anos como educadora popular nos finais de
semana.
Concluí o Magistério e voltei a viver no meio rural, onde trabalhava na roça
num turno e, no outro, era professora concursada do município de Guaporé, atuan-
do em escola multisseriada de 1ª a 5ª série. Foi um período de trabalho como pro-
fessora e na militância junto à Pastoral da Juventude Rural da área de Guaporé
(acompanhando 500 grupos de jovens rurais na época) e atuando junto com as
famílias sem-terra que eram pais dos alunos onde eu atuava e com grupos de mu-
lheres da roça. Foi um período em que nos mobilizamos muito na construção de
propostas de direitos que foram encaminhadas aos deputados federais constituin-
tes para incluir na Constituição de 1988, em especial, relacionadas às áreas rural,
da saúde, da previdência social e da educação. Nesse ano histórico do processo
constituinte, vim para Passo Fundo e comecei a trabalhar no Centro de Educação
e Assessoramento Popular (Ceap) como educadora popular, atuando na assessoria
educativa da Pastoral da Juventude Rural, na ESCAJUR, que era a escola para
jovens; junto à Organização das Mulheres da Roça, que depois se constituiu no Mo-
vimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais e Camponesas. Também atuei junto
aos sindicatos de trabalhadores Rurais e Grupos de periferia urbana. Fiz muitos
cursos, dentre eles, um no Instituto Cajamar com Paulo Freire, de formação de
formadores populares.
Foi na atuação como educadora popular que me aproximei da luta pelo direito
universal à saúde, que me encantou e me seduziu ao lindo encontro entre a educa-
ção e a saúde; enquanto fazia graduação em Filosofia durante as noites.
Atuei como professora de Ensino Religioso (estudei Teologia e Pastoral) e Fi-
losofia para adolescentes e jovens em colégio, como educadora no Ceap, no Movi-
mento de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Rio Grande do Sul (MMTRS/RS) e
na articulação nacional dessas mulheres do campo. Em 1999, com o então gover-
nador Olívio Dutra, fui convidada a trabalhar na assessoria de movimentos sociais
do gabinete da Secretária de Saúde do estado, tendo atuação, especialmente, na
implementação da agenda dos movimentos populares para o acesso ao direito à
saúde, na formulação da Política Intersecretarial de Plantas Medicinais; nas ações
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vinculadas a políticas públicas para as mulheres e no processo de capacitação de
conselheiros e atores sociais para o SUS, junto com os conselhos municipais, esta-
dual e nacional de saúde.
Nesse período, desafiei-me e passei na seleção do mestrado junto ao PPGEdu
da UPF, pesquisando, com as mulheres trabalhadoras rurais, a dimensão educati-
va da luta por saúde desenvolvida pelo MMTR/RS. Depois, atuei como consultora
técnica junto ao Ministério da Saúde, na parceria com a Organização Pan-America-
na da Saúde e a Unesco, junto às Secretarias de Gestão do Trabalho e da Educação
na Saúde e a da Gestão Estratégica e Participativa da Saúde, durante 6 anos.
Esse processo me desafiou a atuar em programas de especialização junto à UPF, à
Universidade de Caxias do Sul e na Escola de Saúde Pública da Bahia, nos cursos
relacionados à saúde.
Posteriormente, passei no concurso do Grupo Hospitalar Conceição (GHC),
onde atuei na Gestão do Trabalho e Educação junto às equipes de saúde deste com-
plexo hospitalar e na Gerência de Ensino e Pesquisa, na coordenação do ensino, na
criação da Escola GHC e como docente dos cursos técnicos, de especialização e da
residência integrada em saúde. Foi um momento em que senti a necessidade de me
qualificar na pesquisa e passei no processo seletivo do doutorado em Educação da
UFRGS.
Também nesse período atuei, através da parceria do GHC com o município
de Passo Fundo, no processo de criação do Curso de Medicina. Em 2013, passei no
concurso para ser docente na UFFS, onde estou até hoje, como professora de Saú-
de Coletiva e coordenadora da Residência Multiprofissional em Saúde na Atenção
Básica.
Já na UFFS, senti a necessidade de aprimorar os conhecimentos no ensino na
área da Saúde e me tornei Especialista em Docência na Saúde pela UFRGS e em
Preceptoria no SUS pelo Instituto Sírio Libanês.
Cabe ressaltar meu engajamento junto ao Grupo Temático de Educação Popu-
lar e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, na Associação Brasileira
Rede Unida, na Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Po-
pular em Saúde, no Movimento de Mulheres Camponesas, no Instituto Cultural e
Educacional Paulo Freire e em Conselhos de Saúde.
Acredito que o processo vivenciado nos espaços formais de ensino aliado à
prática profissional nos diversos locais de trabalho e no engajamento e militância
social, popular e feminista foram sendo a base para ser uma educadora com perfil
popular e na saúde coletiva.
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REP De 2001 a 2003, você realizou seu mestrado na UPF, defendendo a
dissertação Educação, cultura popular e saúde: experiências de mulheres traba-
lhadoras rurais; e, de 2010 a 2014, realizou o doutorado na UFRGS, defendendo
a tese Mulheres camponesas plantando saúde, semeando sonhos, tecendo redes de
cuidado e de educação em defesa da vida. Quais aspectos importantes poderiam ser
ressaltados nessas duas pesquisas e quais suas contribuições para sua formação
como pesquisadora e na produção acadêmica atual?
Dra. Vanderléia – O mestrado e o doutorado me desafiaram para a reali-
zação da pesquisa exploratória e qualitativa junto às mulheres camponesas em
Programas de Pós-Graduação em Educação. Foi um desafio, pois, na época, poucas
eram as pesquisas com enfoque de gênero e de saúde no campo da Educação, ênfase
das duas pesquisas realizadas.
Na dissertação de mestrado, intitulada Educação, cultura popular e saúde: ex-
periências de mulheres trabalhadoras rurais, realizada no Programa de Pós-Gra-
duação em Educação da UPF, sob orientação do Dr. Telmo Marcon, as protagonistas
da pesquisa foram as mulheres camponesas engajadas no Movimento de Mulheres
Trabalhadoras Rurais do Rio Grande do Sul (MMTR/RS), através de estudo de caso
na Região Litorânea. Buscou compreender as bases e motivações que davam sus-
tentação à luta por saúde no movimento, bem como os significados, representações,
sentidos e tensionamentos existentes no MMTR, articuladas ao processo da reforma
sanitária no Brasil e da dimensão de gênero e classe. Num contexto onde as políticas
públicas de saúde no Brasil vêm sendo historicamente demarcadas pelo confronto
entre as necessidades do povo e os interesses do capital, a duras consequências para
as classes populares e as mulheres, foi no MMTR/RS que as mulheres construíram
um espaço de luta e valorização das mulheres camponesas na conquista de direitos, e
a saúde foi uma das lutas centrais deste movimento. Nele, as mulheres foram ressig-
nificando a vida e vivenciando experiências de libertação enquanto sentido profun-
do de sua práxis portadora de uma dinâmica educativa e uma mística libertadora.
Nesse processo, a luta pela saúde possibilitou a construção de novos significados
à integralidade da saúde, o fortalecimento de pertença das mulheres para com o
movimento, ao mesmo tempo em que foram realizando ações de enfrentamento ao
projeto neoliberal e à cultura machista. As experiências de organização e luta deste
movimento contribuíram para repensar o modo de cuidar a vida e a saúde
O resultado da pesquisa e da dissertação do mestrado foi um dos trabalhos
premiados que recebeu o 3º lugar no Prêmio Margarida Alves Estudos Rurais e
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de Gênero, iniciativa do Ministério do Desenvolvimento Agrário, por meio do Pro-
grama de Promoção da Igualdade de Gênero, Raça e Etnia e do Núcleo de Estudos
Agrários e Desenvolvimento Rural (NEAD), em parceria com a Associação Brasi-
leira (ABA), com a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) e com
a Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 2006.
Já a pesquisa que deu origem à tese de doutorado junto ao PPGEdu da
UFRGS, vinculada à Linha de Pesquisa “Trabalho, Movimentos Sociais e Edu-
cação”, sob orientação da Dra. Marlene Ribeiro, intitulada Mulheres camponesas
plantando saúde, semeando sonhos, tecendo redes de cuidado e de educação em
defesa da vida, foi realizada com o Movimento de Mulheres Camponesas Nacional.
Consistiu na identificação de contribuições político-pedagógicas dos movimentos
sociais populares nas experiências e práticas culturais, integrativas, tradicionais
de cuidado e de educação popular em saúde, especialmente do Movimento de Mu-
lheres Camponesas, para contribuir com os processos de formação de profissionais/
trabalhadores(as) da saúde para sua atuação no SUS em comunidades do campo,
da floresta e das águas. A pesquisa foi realizada junto ao Movimento de Mulheres
Camponesas através de análise de observações, registros, documentos, histórias de
vida, oficinas e círculos de cultura feitos com mulheres integrantes dessa organi-
zação, como também as redes de interação com a educação popular e permanente
em saúde. A pesquisa articulou essas experiências e seus saberes no contexto de
produção de vida, saúde e adoecimento das populações que vivem nesses territórios
e os desafios para o cuidado integral e a educação em saúde. Territórios marcados
pelos interesses do capital transnacional e seus impactos sobre os(as) campone-
ses(as), onde os determinantes sociais e as desigualdades compõem a complexidade
da situação de saúde dessas populações.
A tese refletiu sobre a ação das mulheres camponesas na produção de cuidado
da vida e da saúde na sua trajetória histórica, os eixos estruturantes articulados
às relações sociais de gênero, raça/etnia, classe e orientação sexual, ao feminismo e
ao projeto popular de agricultura camponesa. Reafirmou o que já havia sido iden-
tificado na pesquisa anterior, em que, diante da fragilidade de políticas públicas
para as populações do campo, florestas e águas, o MMC surgiu como espaço de luta
e valorização das mulheres camponesas; a conquista de direitos e a saúde emergem
como uma das lutas importantes do movimento. Nele, as mulheres se ressignifi-
cam, têm o cuidado com a vida e a saúde como base central do seu agir e fazem
experiências de libertação e emancipação, enquanto sentido profundo de sua práxis
portadora de uma dinâmica educativo-terapêutica e uma mística libertadora.
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Mas avança no sentido de que, das experiências de organização, de cuidado,
de luta e de formação que o movimento desenvolve, bem como a interação com os
movimentos e as práticas de educação popular em saúde e de educação permanente
em saúde, emergem as contribuições político-pedagógicas que ajudam a repensar
o modo de cuidar a vida e a saúde, bem como as políticas públicas de educação da
saúde, tanto para o meio acadêmico como para os processos de trabalho e educação
na saúde junto ao SUS e seus atores, principalmente para a atuação no campo, nas
florestas e nas águas.
A pesquisa realizada, seus resultados expressos na tese, foi premiada em
1º lugar na categoria Pesquisas e Sistematizações na 2ª edição do Prêmio “Victor
Valla de Educação Popular em Saúde”, organizado pelo Ministério da Saúde em
parceria com a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e os Conselhos
Nacionais de Secretários de Saúde (Conass) e de Secretarias Municipais de Saúde
(Conasems), que buscou estimular e reconhecer iniciativas de educação popular em
saúde voltadas ao enfrentamento dos determinantes sociais da saúde e que articu-
lassem os saberes e práticas populares com as ações e políticas públicas de saúde.
REP Como você avalia os avanços e as dificuldades em fazer pesquisa nos
campos da educação e da saúde no atual cenário brasileiro?
Dra. Vanderléia – Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), “saúde é
um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não meramente a au-
sência de doença”. No Brasil, fruto da luta pela Reforma Sanitária, conquistou-se,
na Constituição federal de 1988, uma concepção ampliada de saúde, fortemente
vinculada aos direitos humanos, sociais, e ao projeto de desenvolvimento, além de
afirmar os princípios da universalidade, da integralidade e da equidade, ao pre-
conizar que: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante
políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros
agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção,
proteção e recuperação” (Art. 196).
Nessa perspectiva, a saúde é base essencial do desenvolvimento do país e a
pesquisa pode dar uma grande contribuição para a saúde e para o desenvolvimen-
to. Assim, é fundamental investir em estratégias eficientes que integrem os novos
conhecimentos e a sua utilização em benefício da população e contribuir para me-
lhorar a vida e a saúde dos povos.
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O Brasil teve participação ativa no debate mundial sobre a pesquisa em saúde
levando a formulação dos marcos institucionais para o desenvolvimento científico e
tecnológico em saúde do nosso país, aprovados na 2ª Conferência Nacional de Ciên-
cia, Tecnologia e Inovação em Saúde, em 2004, a partir de consenso técnico-político.
Assim, a Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde e a
Agenda Nacional de Prioridades de Pesquisa em Saúde vinham sendo os instru-
mentos norteadores das ações de fomento promovidas pelo Ministério da Saúde até
2016. Havia uma compreensão de que as investigações deveriam buscar respostas
e soluções para os problemas prioritários de saúde da população e da gestão do
SUS. Assim como ocorre em outros países, no Brasil, o principal desafio histórico
refere-se à capacidade de incorporação dos resultados das pesquisas no sistema e
nos serviços de saúde.
A pesquisa em saúde e para a saúde precisa considerar os aspectos relaciona-
dos à transição epidemiológica que o Brasil e o mundo passam, onde há uma combi-
nação de doenças infectocontagiosas; as pandemias, em especial a do coronavírus;
doenças crônicas e situações de violência urbana, no trânsito, de gênero e étnico-
-raciais que incidem sobre o adoecimento e mortes; a transição demográfica com o
aumento da expectativa de vida da população e os desafios do cuidado relacionados
ao envelhecimento da população; assim como um conjunto de sofrimentos e adoe-
cimentos produzidos pelas condições de vida, pelas iniquidades e desigualdades
sociais, falta de saneamento básico, condições e relações de trabalho, as questões
ambientais e seus impactos sobre a saúde dos povos.
Sabemos a relevância das pesquisas científicas para os avanços e as conquis-
tas no campo da saúde em geral e da medicina para o aumento da expectativa de
vida da população e para os tratamentos de inúmeras doenças. Entretanto, é pre-
ciso avançar na realização de mais pesquisas, de mais recursos e de fortalecimento
de sistema nacional de pesquisa em saúde e para a saúde vinculados aos atuais
desafios globais colocados.
Cabe destacar que tem relevância, para avançar nas pesquisas, o fortaleci-
mento do ensino na saúde e dos programas de pós-graduação, assim como o aporte
financeiro para pesquisa, ciência e tecnologia, processo que vem sendo reduzido,
especialmente depois do Golpe de 2016 e com a aprovação da EC 95, que congelou
os recursos para a saúde e a educação.
Ademais, desenvolver pesquisas junto ao cotidiano da saúde, seja sobre siste-
mas de saúde, serviços, processos de trabalho, equipes, territórios, comunidades,
formas de participação, educação em/na saúde, dentre outros, são necessidades
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colocadas para o campo da pesquisa e o aprimoramento de proposições com o em-
basamento técnico-científico.
REP Você realizou especializações relacionadas à docência na saúde e à
preceptoria no SUS. Como foi essa experiência e o que destacaria de significativo
dessas experiências, bem como o impacto delas para a educação em saúde?
Dra. Vanderléia – A Constituição federal, em seu artigo 200, preconiza que
uma das competências do SUS é a de ordenar a formação de recursos humanos na
área de saúde. Essa premissa foi dispositivo importante para que, no processo de
construção e implementação do SUS, já se constitua como Sistema Saúde-Escola,
onde todos os cursos da área da saúde têm suas atividades educativas práticas,
vivenciais, de estágios e especializações no SUS.
A área da formação na saúde vem percorrendo processos de ativação de mu-
danças nos cursos da saúde desde a década de 1990, a fim de aproximar as bases
curriculares com o cotidiano do SUS, seus serviços, equipes, territórios e comuni-
dades e de fortalecer as pesquisas inseridas nas realidades da saúde.
Sabemos que a gente aprende nos processos educativos formais nas escolas e
nos diferentes níveis educacionais, mas que também se aprende com as vivências
e experiências do nosso cotidiano. Com base nas perspectivas educacionais liberta-
doras e emancipatórias, a partir dos anos 2000, constrói-se um movimento forte no
campo da educação em/na saúde, a partir da compreensão de que os processos de
trabalho na saúde produzem aprendizados significativos, se colocados em reflexão
individual e coletiva junto às equipes de saúde, e que, nos processos de participa-
ção social, há dimensões político-pedagógicas que podem fortalecer o protagonismo
popular. Nessa perspectiva, foram construídas a Política Nacional de Educação
Permanente em Saúde e a Política Nacional de Educação Popular em Saúde, junto
ao SUS.
Para implantar essas políticas de educação, foram construídas estratégias de
formação como cursos nacionais de facilitadores de educação permanente em saú-
de, de formação de educadores, de descentralização do SUS, dentre outros.
O Curso de Especialização em Docência na Saúde foi uma dessas ações que
realizou processo seletivo e que formou muitos especialistas em docência na saúde,
vinculada às reais necessidades do SUS para a formação de novos profissionais,
para os cursos técnicos, de graduação e pós-graduação. O aprofundamento pedagó-
gico com as bases orientadoras, as metodologias, as ferramentas educativas para
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ser educadores de profissionais da saúde que aprendem a cuidar cuidando e os
desafios específicos para a formação destes profissionais.
Neste período, também teve a aprovação da Lei do Mais Médicos, através da
vinda de médicos estrangeiros e da expansão das Escolas Médicas com a abertura
de novos cursos, dentre eles o da UFFS em Passo Fundo, RS, e em Chapecó, SC.
Foram estratégias formativas que incidiram diretamente na qualificação profissio-
nal, na ampliação de acesso para mais de 60 milhões de pessoas e para a qualifica-
ção da assistência à saúde da população brasileira como um todo. Entretanto, os re-
trocessos são visíveis no atual cenário brasileiro, onde não há mais essa prioridade.
Outra modalidade fundamental de formação na saúde se expressa nos Pro-
gramas de Residências em Saúde (médica, multiprofissional e uniprofissional), em
que milhares de profissionais fazem suas especializações em serviço e realizam
pesquisa inserida no SUS. Apesar de ainda não termos uma Política Nacional de
Residências em Saúde, os Programas de Residências constituem-se como uma das
melhores estratégias de formação de especialistas para as mais diversas áreas da
saúde. Algumas instituições ofertaram Cursos de Especialização de Preceptoria no
SUS, para especializar profissionais que estão nos serviços de saúde e desempe-
nham, além do cuidado às pessoas, a formação de novos profissionais em serviço,
numa função designada de preceptoria.
Assim, desafiei-me ao processo seletivo do Instituto Sírio Libanês para reali-
zar essa especialização, por ser a Coordenadora da Residência Multiprofissional
em Saúde da UFFS. Ao ser selecionada, pude realizar essa especialização e apro-
fundar as bases pedagógicas da formação em serviço que integra ensino-serviço-co-
munidade; as ferramentas, pesquisas e metodologias ativas e participativas para a
formação de especialistas inseridos nos serviços de saúde do SUS.
REP Em sua trajetória formativa, você se graduou em Filosofia, na UPF,
no ano 2000, escrevendo o trabalho final de curso intitulado A dimensão educativa
da estratégia socialista em Gramsci, com a orientação do Pe. Elli Benincá, que nos
deixou no ano passado. Conte-nos um pouco de sua experiência formativa junto a
este grande educador.
Dra. Vanderléia – A graduação em Filosofia foi um marco fundamental para
minha formação humana e profissional, pois possibilitou o aprofundamento das
bases orientadoras para a vida, para o desenvolvimento do pensamento reflexivo
e inserido na práxis. Para o trabalho final, busquei em Gramsci as reflexões sobre
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a dimensão educativa presente nos processos de luta e de emancipação política na
perspectiva socialista. Ele foi um filósofo que refletiu muito sobre o porquê havia
um processo de naturalização da dominação do fascismo e do nazismo que mata-
vam milhares de pessoas. Suas Cartas na Prisão, suas reflexões, me ajudaram a
compreender como se dão os processos de dominação política e cultural das socie-
dades, sobre a disputa de hegemonia na sociedade, desafiando os sujeitos políticos
(no sentido de que todos/as fazemos política tanto no agir, como no ato de omissão)
e que todos/as somos filósofos/as no sentido de que temos um conjunto de ideias
que orientam nosso agir, seja consciente ou não. Gramsci evidencia a importância
da cultura e dos intelectuais orgânicos às classes populares para contribuir nos
processos de emancipação.
A orientação do Pe. Elli Benincá foi de um educador-filósofo encantador. Ele
foi o mestre que interrogava e desafiava a gente a ser mais, a buscar mais; a nos
inquietarmos para sermos pesquisadores/as e a sermos filósofos/as e educadores/
as. Ele trazia também os ensinamentos de Paulo Freire e nos mostrava, pelo seu
agir, como sermos educadores/as comprometidos/as e implicados/as com os edu-
candos/as e seus processos educativos construindo protagonismo, emancipação e
pessoas engajadas na transformação da sociedade e das relações humanas numa
perspectiva da solidariedade, da justiça e da igualdade. Sou profundamente grata
por conviver, aprender e fazer parte de percursos nos caminhos educativos liberta-
dores ainda em curso, apesar dos tempos sombrios que vivemos. Aprendi com ele
que, ao caminhar junto com as classes populares e com as pessoas que interagem
conosco, compartilhamos saberes, conhecimentos, práticas, experiências e, ao co-
locá-las em reflexão, produzimos novos conhecimentos que poderão ser potências
para a transformação.
Assim como este ano celebramos o Centenário de Paulo Freire, podemos tra-
zer junto o Pe. Elli Benincá com seu legado relacionado à Educação Libertadora!
REP – Você é, atualmente, professora na UFFS, Campus Passo Fundo. Fale-
-nos um pouco dessa experiência e de que forma você avalia o processo de expansão
e interiorização das universidades federais ocorrido nas duas últimas décadas.
Dra. Vanderléia – Eu sou apaixonada pelo que faço! O desafio político-pe-
dagógico de formar pessoas para cuidar de pessoas, no processo de cuidado em
saúde junto ao SUS é intenso, complexo e apaixonante porque exige implicação
permanente com o cuidar e o educar como dimensões indissociáveis. Como afir-
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mava Paulo Freire que não há como educar sem amar o mundo e as pessoas, eu
acrescento que não tem como educar e cuidar sem ser um ato de amor à vida, às
pessoas e ao mundo.
A UFFS nasceu da luta social dos movimentos sociais populares da região Sul
do Brasil e o Campus Passo Fundo, com o Curso de Medicina, foi resultado da com-
binação entre a mobilização popular, de órgãos públicos e da sociedade em geral;
de Políticas Públicas de Expansão do Ensino Superior no Brasil, assim como a de
Expansão das Escolas Médicas, com a capacidade e agilidade de atores políticos,
gestores públicos da região, do estado do Rio Grande do Sul e do Brasil e da reitoria
da Universidade Federal da Fronteira Sul daquele período que teve agilidade e
compromisso para incidir rapidamente num contexto de oportunidade histórica.
Atuei no processo de criação com papel técnico designada pelo Grupo Hos-
pitalar Conceição na parceria com o município de Passo Fundo e na cooperação
técnica com a UFFS e posso afirmar que a articulação desses três elementos com
o compromisso efetivo dos diversos atores sociais e políticos engajados garantiu
esse processo de criação de uma universidade pública e popular, interestadual e
multicampi em toda a região da Fronteira Sul do Brasil, com a sede da reitoria em
Chapecó, Santa Catarina, com Campus em Erechim, Cerro Largo e Passo Fundo
no Rio Grande do Sul, e em Realeza e Laranjeiras do Sul no Paraná.
A Política de Expansão e interiorização do Ensino Profissional e Superior no
Brasil a partir dos Governos Lula e Dilma foi fundamental para garantir acesso aos
jovens que não tinham possibilidades de estudar e, ao mesmo tempo, possibilitou,
com a criação dos Institutos Federais e das Universidades Federais, novas moda-
lidades e processos pedagógicos tão necessários para os desafios contemporâneos.
Assim, o acesso ao ensino através do Enem com a política de cotas (sociais,
étnico-raciais e de pessoas com deficiências) possibilitou a inclusão social das clas-
ses populares ao ensino profissionalizante e ao ensino superior, onde mais de 80%
dos estudantes, no caso da UFFS, são a primeira geração na família a cursar nível
superior.
A indissocialibidade entre ensino, pesquisa e extensão é um aspecto a desta-
car, assim como o compromisso e implicação com o desenvolvimento regional e seu
vínculo com os diversos atores sociais da comunidade regional como protagonistas.
A UFFS tem participação da comunidade regional no Conselho Universitário, no
Conselho Estratégico e Social, nos Conselhos de Campi e nos Conselhos Comunitá-
rios em cada um dos campi; além de que há a participação dos docentes, técnicos,
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discentes e comunidade regional nos processos democráticos de escolha de reitor e
de diretores dos campi.
Infelizmente, a partir do Golpe de 2016 que retirou a Presidenta Dilma do
poder, vemos dia a dia a democracia sendo ameaçada, os retrocessos não só no que
se refere ao fim da expansão do ensino superior, mas a retirada de direitos traba-
lhistas, previdenciários, da educação, saúde, da assistência social, da pesquisa...
Um desmonte e desmantelamento das Políticas Públicas, dos direitos de cidadania
e uma ofensiva neofascista, com a lógica da necropolítica, levando o Brasil de volta
ao mapa da fome, do aumento das desigualdades sociais, das iniquidades, da vio-
lência e das morte diárias que nos colocam em luto permanente.
REP Como você avalia as medidas recentes de cortes do governo a recursos
para o financiamento das pesquisas e das bolsas de mestrado e doutorado?
Dra. Vanderléia – Infelizmente, o Brasil está vivendo um de seus maiores
retrocessos no que se refere aos direitos. Os cortes na Educação e Saúde resultado
tanto da Aprovação da Emenda Constitucional 95 que congelou os recursos por 20
anos, como também por outras medidas de corte de recursos e da desestruturação
das Políticas Públicas, são elementos deste cenário sombrio e desesperador. É como
se deixasse uma pessoa morrendo por falta de água, onde a pessoa sente que está
definhando, enfraquecendo e morrendo, mas os outros não percebem.
Sem financiamento para os programas de mestrado e doutorado e para a pes-
quisa o Brasil vai perdendo sua capacidade de inovação e de produção de ciência e
tecnologia que são fundamentais para a soberania do país.
O sucateamento do ensino público federal, aliado ao processo que vai rompen-
do com a autonomia universitária pelas intervenções e nomeações de reitores/as
que não representam o resultado dos processos participativos decisórios internos
de cada instituição está desestruturando as bases da educação pública federal.
REP Qual sua avaliação em relação aos rumos do ensino público no país?
Como você vê o acesso a este ensino, sobretudo em relação às populações mais
fragilizadas, como indígenas, quilombolas e população rural?
Dra. Vanderléia – O tensionamento entre o fortalecimento da educação pú-
blica, de qualidade, inclusiva e universal de um lado e, de outro, os caminhos da
privatização do ensino marcam a trajetória das políticas educacionais. O atual
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contexto tende a fortalecer trilhas para privatização do ensino e sua subordinação
político-pedagógica aos interesses do mercado. Diante do contexto da pandemia da
Covid-19, essa situação se agrava, pois o acesso não é universal às ferramentas tec-
nológicas para o ensino remoto, telepresencial síncrono e assíncrono ou educação
na modalidade a distância (EaD) ou mesmo na modalidade híbrida, aumentando
as desigualdades sociais e de inclusão de grande parte das crianças, jovens e adul-
tos em todos os níveis de ensino.
A população mais fragilizada socialmente é que está enfrentando as maiores
dificuldades, o que tenderá a aumentar as desigualdades sociais, econômicas e cul-
turais.
Esse processo aliado aos cortes orçamentários para a educação diminuirá ain-
da mais a oferta de vagas públicas ou as dificuldades de acesso e de permanência
nos diversos níveis educacionais para a população das periferias urbanas, para os
povos indígenas, às comunidades quilombolas e para quem vive nas áreas mais
remotas do meio rural, campo e florestas.
REP Especificamente sobre Educação e Saúde (temática do Dossiê da Es-
paço Pedagógico), frente ao cenário pandêmico que vivenciamos, o que você teria a
dizer sobre os rumos desses dois campos ou mesmo da articulação entre eles?
Dra. Vanderléia – O ano de 2020 será marcado na história pela pandemia
da Covid-19, também conhecida como pandemia de coronavírus, uma pandemia
em curso de uma doença respiratória aguda causada pelo coronavírus da Síndrome
Respiratória Aguda Grave (SRAG) 2 (SARS-CoV-2). Iniciamos o ano de 2021 com
essa situação de “guerra invisível” com o agravamento da pandemia que levou a
vida de mais de 250 mil pessoas no Brasil, sendo a principal causa de morte em
populações em áreas de periferia urbana e em grupos sociais vulnerabilizados.
Sabemos que para enfrentar a pandemia da Covid-19, o Estado brasileiro tem
a obrigação moral e constitucional de coordenar ações emergenciais para contro-
lá-la, superá-la e reduzir impactos econômicos e sociais sobre a nação brasileira.
Mas infelizmente, constata-se irresponsabilidade, inércia e omissão das autorida-
des federais, assim como de alguns gestores estaduais e de âmbitos municipais,
demonstrada pelo fato de o Brasil estar há um ano da pandemia e a situação se
agrava dia a dia e coloca a população inteira em risco.
Após muitas lutas pela Reforma Sanitária, o povo brasileiro conquistou o di-
reito à saúde na Constituição Federal de 1988 e o Sistema Único de Saúde com seu
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caráter público, universal, integral, equânime, descentralizado e com participação
popular. Graças ao SUS, que resiste mesmo diante de fragilidades e do desfinan-
ciamento, a população está tendo possibilidades de cuidado nesse momento pan-
dêmico.
No entanto, a pandemia atingiu o Brasil em meio a uma agenda de reformas
centrada na austeridade fiscal e na redução do papel do Estado que resultou em
desfinanciamento do SUS e fragilização das políticas sociais, e agrava ainda mais
a situação de vida e de saúde dos grupos sob maior risco de adoecimento e morte,
acentuando as iniquidades geradas por raça/cor, classe, etnia, gênero, idade, defi-
ciências, origem geográfica e orientação sexual. Assim como a experiência de ou-
tras epidemias mostra, em especial as mulheres têm sofrido fortemente o impacto
da Covid-19.
Frente à situação do quadro de recessão mundial e nacional causado pela pan-
demia, são necessárias medidas de promoção e geração de emprego e renda e de
proteção social à população. De modo imediato, é necessário contemplar os grupos
sob maior risco de adoecimento e morte, como pessoas idosas e em vulnerabilidade
socioeconômica, como trabalhadores precarizados, população negra, povos indíge-
nas, população LGBTI+, pessoas em situação de rua, ciganos, migrantes e refugia-
dos, pessoas com deficiência, populações privadas de liberdade.
É fundamental as medidas de proteção aos trabalhadores/as da saúde e de ou-
tras áreas essenciais que estão adoecendo e morrendo em trabalhos determinantes
para manter a vida da população.
Medidas de isolamento social, uso de máscaras e de cuidados básicos de hi-
giene são fundamentais. Entretanto, os direitos básicos de acesso à água, sanea-
mento, moradia, alimentação e renda são fatores essenciais para que as pessoas
possam cuidar de si, de suas famílias e comunidades.
Outro elemento a destacar é que as orientações sobre a Covid-19 ou a pande-
mia do coronavírus, sua gravidade, letalidade e as medidas efetivas e científicas
propostas para serem feitas pela sociedade como um todo e as de dever do Estado
estão submersas numa guerra ideológica entre a ciência e a defesa da vida de um
lado, e, de outro, o negacionismo aliado aos interesses econômicos. Essa disputa
ideológica ocorre no mundo real e nos espaços virtuais que adentra no imaginário
da sociedade brasileira, que tem tido dificuldades de saber por onde se guiar em
meio às fake news e os tempos sombrios que passamos.
Cabe ressaltar que a comunidade científica brasileira tem demonstrado vitali-
dade e engajamento no contexto da crise, com participação marcante na testagem
832 ESPAÇO PEDAGÓGICO
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de vacinas e condução de inquéritos epidemiológicos, essenciais para avaliar a di-
nâmica da pandemia.
No contexto atual em que se somam diferentes processos sociais, sanitários,
políticos, econômicos e culturais produtores de adoecimentos, sofrimentos e mor-
tes, também pode ser compreendido como sindêmico e não só pandêmico, o que traz
um processo mais complexo tanto para compreender, como para as soluções.
O campo da Saúde está totalmente imerso na linha de frente do enfrentamen-
to à pandemia/sindemia junto ao Sistema de Saúde e impacta diretamente sobre os
processos de formação dos profissionais da saúde em todos os níveis.
A Educação está tendo impacto nunca imaginado de ter de se adaptar às tec-
nologias para o ensino remoto nesse contexto de isolamento social. Tanto a área da
saúde, como a da educação clamam por ações intersetoriais, multi e interdiscipli-
nares e uma convocação à criação, ressignificação e produção de estratégias, tecno-
logias e processos de cuidado, de conhecimentos capazes de enfrentar os desafios
do século XXI que traz, junto com a crise sanitária, as crises econômica, política,
cultural, ambiental e civilizatória.
A convocação deste momento é para repensar que sociedade queremos e que
possibilidades de desenvolvimento será mais viável para que todas as vidas no
Planeta Terra – nossa grande “Mãe e Casa Comum” –, possam ser preservadas,
valorizadas e protegidas, assim como, possam construir novas relações humanas e
humanitárias entre as pessoas, povos e nações entre si e com as outras formas de
vida no Planeta.
REP Até que ponto a expansão do setor privado empresarial no campo da
educação afronta os pressupostos do artigo 205 da Constituição de 1988, de uma
educação como dever do Estado e da família, visando “ao pleno desenvolvimento
da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o
trabalho”?
Dra. Vanderléia – A expansão do setor privado empresarial no campo da
educação afronta todos os pressupostos do artigo 205 da Constituição de 1988 e
transforma a educação concebida como direito social de todos(as) em mercadoria a
ser ofertada a quem puder pagar. Fere o princípio do direito e seu caráter univer-
sal, restringe o acesso à educação e o coloca a serviço dos interesses econômicos,
rompendo com o dever de educar para o pleno desenvolvimento da pessoa, inci-
dindo diretamente no preparo para o exercício da cidadania, que ficará restrito
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aos interesses de quem detém o poder, e a qualificação para o trabalho ficará sub-
metida ao preparo de mão de obra e não para o exercício profissional autônomo e
protagonizado pelas pessoas.
Um desmonte das políticas educacionais tanto do ponto de vista dos princípios
orientadores como das possibilidades concretas e reais das classes populares fica-
rem à margem, sem acesso ao direito à educação.
REP Que palavras finais você deixaria para os leitores da REP sobre o pre-
sente e o futuro dos que lutam em prol da saúde e da educação de qualidade para
todos?
Dra. Vanderléia – Estamos em tempos de pandemia do coronavírus, Co-
vid-19, mas, na verdade, vivemos uma sindemia, com a combinação desta pan-
demia que assola a humanidade, mas as outras doenças continuam presentes e
aliadas aos impactos sobre os processos de saúde e adoecimento relacionados às
desigualdades sociais, que têm aumento de forma assustadora nesse período, à
redução de políticas sociais que incidem na saúde da população. Momento que nos
desafia a desenvolver a capacidade: a) de construir ferramentas de análise para
compreender os fenômenos; b) de ter visão crítico-reflexiva e científica para supe-
rar a alienação e a naturalização das formas de exploração, dominação, alienação,
discriminação e violência; c) de construir ferramentas para criar, ressignificar ou
produzir formas de resistência social popular, organizativa, mobilizadora e trans-
formadora das práticas, da realidade e das relações.
Tempos sombrios que nos desafiam à indignação diante das injustiças, das
violências e de tudo que fere a vida. Tempos que nos convocam ao esperançar que
Paulo Freire tanto nos ensinou, e que, ao celebrar seu centenário, neste ano, pos-
samos ressignificar e assumir o protagonismo popular de construção de valores,
relações e projetos de sociedade onde todas as vidas valem, devem, podem e serão
preservadas, protegidas, valorizadas e sejam a expressão de um novo modo de bem
viver no Brasil e no mundo!
ESPAÇO
PEDAGÓGICO
RESENHA
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Metodologias ativas para uma educão inovadora: uma abordagem teórico-prática
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Metodologias ativas para uma educação inovadora:
uma abordagem teórico-prática
Adriana Aparecida de Lima Terçariol*
Romeu Afecto**
As práticas pedagógicas aplicadas por docentes por meio de novas metodolo-
gias de ensino e aprendizagem, consideradas como inovadoras e definidas como
“ativas”, compõem o tema central do livro Metodologias ativas para uma educação
inovadora: uma abordagem teórico-prática, organizado pela professora Dra. Lilian
Bacich e pelo professor Dr. José Moran. A obra é composta de uma coletânea de
textos escritos por diversos autores que descrevem abordagens metodológicas teó-
rico-práticas aplicadas em sala de aula e promovem reflexões sobre a formação de
professores.
A expansão das tecnologias da informação e comunicação (TICs), neste início
do século XXI, gerou mudanças na sociedade, que vêm criando uma dissolução en-
tre espaço virtual e espaço físico e são responsáveis pela criação de uma nova cultu-
ra, chamada cultura digital, e uma multiplicidade de letramento (ROJO; MOURA,
2012). Isso cria uma divisão na educação, tendo-se a educação formal e a informal.
A diferença principal é que a informal não conta com a participação do professor e
nem com certificado.
Segundo Moran, surge a necessidade da criação de uma nova escola, que
requer professores habilitados com abordagens pedagógicas para as quais não es-
tão sendo preparados. É preciso reinventar a educação, analisando os riscos e as
contribuições resultantes da interação com a cultura digital, justificando-se, desse
modo, a argumentação que incide sobre abordagens e experiências metodológicas
ativas.
* Doutora em Educação e Currículo pela PUC-SP. Mestre e Pedagoga pela Unesp, SP. Docente no Curso de Pedagogia,
no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) e no mestrado em Gestão e Práticas Educacionais (Progepe) na
Universidade Nove de Julho (Uninove), SP. Líder do Grupo de Pesquisa em Educação, Tecnologias e Cultura Digital
(GRUPETeC) – CNPq/Uninove. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-5824-2294. E-mail: atercariol@gmail.com
** Professor, licenciado em Pedagogia pelo Centro Estadual de Educação e Tecnologia Paula Souza (CEETEPS) e mestre
no Programa de Mestrado em Gestão e Práticas Educacionais (Progepe) da Universidade Nove de Julho (Uninove).
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-8784-1192. E-mail: romeu.afecto@etec.sp.gov.br
Recebida em: 24/12/2018 – Aprovada em: 02/08/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i2.9002
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Adriana Aparecida de Lima Terçariol
v. 28, n. 2, Passo Fundo, p. 834-839, maio/ago. 2021 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Metodologia ativa, de acordo com a autora do texto de apresentação da obra,
Maria Elizabeth Bianconcini, é caracterizada pela “inter-relação entre educação,
cultura, sociedade, política e escola, sendo desenvolvida por meios ativos e cria-
tivos” (2018, p. xi). Assim, com base nessa afirmação, identificamos muitos mé-
todos ativos abordados na obra: problematização, sala de aula invertida, sala de
aula compartilhada, aprendizagem por projetos, ensino híbrido e design thinking.
Portanto, entendemos que o pensamento da escola nova, explorado por Moran, é
condizente com as ideias de Freire (1996) sobre educação dialógica, participativa e
conscientizadora, em suas palavras: “[...] não apenas para nos adaptarmos à reali-
dade, mas, sobretudo, para transformar, para nela intervir, recriando-a [...]” (1996,
p. 28).
A obra é dividida em duas partes: a parte I compreende os capítulos 1 a 6, que
apresentam experiências realizadas em sala de aula; a parte II abarca os capítulos
7 a 10, os quais se baseiam na formação continuada de professores. Na primeira
parte, “Metodologias ativas para uma aprendizagem mais profunda”, Moran faz
uma breve introdução sobre aprendizagem ativa, passando pelo conceito de apren-
dizagem e pelos tipos de aprendizagem. O autor define que toda aprendizagem é
ativa em algum grau, porque exige, do aprendiz e do docente, formas diferentes
de movimentações interna e externa. A obra procura enfatizar que a participação
do professor deve ser a de um mediador ou orientador, e que o aluno constrói seu
próprio conhecimento pela sua iniciativa; portanto, ele é o responsável por esse
conhecimento.
Na introdução, Moran destaca que a obra discutirá: a flexibilidade do modelo
de aprendizagem híbrido, definido como mistura e compartilhamento de espaços,
tempo e atividades; a aprendizagem personalizada, definida como uma aprendi-
zagem voltada às necessidades do aluno; a aprendizagem personalizada a partir
do projeto de vida, definida por associar o interesse do aluno aos seus talentos; a
aprendizagem compartilhada, definida como encontro de pessoas com objetivos de
aprendizagem em comum; a aprendizagem por tutoria, em que o professor torna-se
gestor. O autor enfatiza que, “sozinhos, podemos aprender a avançar bastante,
compartilhando, podemos conseguir chegar mais longe e, se contarmos com tutoria
de pessoas mais experientes, podemos alcançar horizontes inimagináveis” (2018,
p. 08).
Moran relata as contribuições das tecnologias digitais para a aprendizagem
ativa, apoiado pelos conceitos de Almeida e Valente sobre tecnologia, e menciona
algumas técnicas para aprendizagem ativa: a sala de aula invertida, em que o
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Metodologias ativas para uma educação inovadora: uma abordagem teórico-prática
v. 28, n. 2, Passo Fundo, p. 834-839, maio/ago. 2021 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
aluno pesquisa e traz os resultados para discussão em sala; a aprendizagem ba-
seada em investigação e em problema, em que é proposto um problema e o aluno
pesquisa, organiza e administra recursos com a mediação do professor; a aprendi-
zagem baseada em projeto, em que o autor explica os tipos de projeto (construtivo,
investigativo e explicativo), as atividades do projeto (motivacional e contextual,
brainstorming, organização, registro e reflexão, de melhoria de ideias, produção e
apresentação ou publicação), os diferentes níveis de projeto (disciplinar, interdisci-
plinar e transdisciplinar), e termina falando da aprendizagem por jogos e histórias,
que é uma modalidade na qual o aluno aprende se divertindo.
No primeiro capítulo, “A sala de aula invertida e a possibilidade do ensino
personalizado: uma experiência com a graduação em midialogia”, José Armando
Valente faz um breve resgate sobre a importância das tecnologias digitais e das
novas abordagens pedagógicas, definindo as metodologias ativas como: práticas
pedagógicas alternativas ao ensino tradicional. No decorrer do texto, o leitor tem a
oportunidade de conhecer um pouco mais sobre sala de aula invertida e aprendiza-
gem personalizada e sobre como essas abordagens foram utilizadas em um estudo
de caso em um curso de comunicação social ministrado na Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp).
No segundo capítulo, “O leitor como protagonista: reflexões sobre metodolo-
gias ativas nas aulas de literatura”, Marcelo Ganzela relata avanços pedagógicos
ocorridos no curso de licenciatura de Letras com o uso de tecnologias, faz questio-
namentos quanto ao currículo do curso, criticando que, em um primeiro momento,
a tecnologia utilizada se resumiu à apresentação de slides, mas que encontrou nas
reflexões de ensino híbrido contribuições para o processo de aprendizagem; em um
segundo momento, com o uso de ferramentas como Moodle e Skype, ocorreram
transformações e novas possibilidades, que resultaram em experiências positivas.
No terceiro capítulo, “Sala de aula compartilhada na licenciatura em Matemá-
tica: relato de prática”, Marta de Oliveira Gonçalves e Valdir Silva destacam o im-
pacto do avanço da tecnologia no mundo, em que o aluno não pode ser considerado
como alguém que não sabe nada, mas como alguém que, em qualquer momento e a
qualquer tempo, pode pesquisar o assunto que desejar, que o professor deve mudar
de detentor do conhecimento para mediador. Os autores demonstram como aplica-
ram a sala de aula compartilhada com alunos de três semestres compartilhando
o mesmo espaço, assistidos por dois professores de cursos diferentes, e também
trazem depoimentos dos professores e do coordenador, falando da importância das
plataformas digitais e da aula invertida no processo.
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Adriana Aparecida de Lima Terçariol
v. 28, n. 2, Passo Fundo, p. 834-839, maio/ago. 2021 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
No quarto capítulo, “Procedimentos metodológicos nas salas de aula do curso
de Pedagogia: experiências de ensino híbrido”, Ivaneide Dantas da Silva e Eli-
zabeth dos Reis Sanada afirmam que os professores não estão sendo preparados
para o novo cenário educacional. São feitas considerações sobre o ensino híbrido e
a sala de aula invertida em um curso de Pedagogia usando as ferramentas Moodle
e Google Docs.
No quinto capitulo, “Mediação e educação na atualidade: um diálogo com for-
madores de professores”, Jordana Thadei segue a mesma linha do capítulo ante-
rior. A autora defende que o papel do professor como transmissor de conhecimento,
no processo educacional, deu lugar para o professor mediador. A autora afirma que
o docente deve vivenciar a mediação por meio de práticas e relata a construção
desse processo junto aos alunos de um curso de Letras.
No sexto capítulo, “Construção de jogos e uso de realidade aumentada em
espaços de criação digital na educação básica”, Helena Andrade Mendonça faz uma
reflexão sobre o uso de tecnologias digitais na escola. A autora expõe ações feitas
com vários tipos de softwares para criação de jogos, explorando recursos digitais
nos cursos extracurriculares de uma escola de ensino fundamental, e demonstra,
por meio da narrativa dos alunos, experiências positivas de multiletramento, con-
ceito explicado no texto, e de práticas positivas inovadoras.
A parte II é composta de quatro capítulos. Na introdução, “Formação conti-
nuada de professores para o uso de metodologias ativas”, Lilian Bacich apresenta
uma reflexão sobre os professores que aderiram à tecnologia e continuam com as
mesmas práticas adaptadas aos novos recursos. Nas palavras da autora, a mu-
dança efetiva das práticas educativas só ocorre com um movimento gradativo em
etapas, até se alcançar a integração entre tecnologia e novas metodologias. Para a
autora, no processo educacional, o aluno deve ser o centro do aprendizado.
No sétimo capítulo, primeiro da segunda parte, “Design thinking na formação
de professores: novos olhares para os desafios da educação”, Julciane Rocha faz
uma breve introdução sobre a metodologia do design thinking, partindo do contexto
histórico, com o objetivo de explicar ao leitor todo o processo do design thinking no
contexto educacional e suas possíveis aplicações.
No oitavo capítulo, “O professor autor e experiências significativas na educa-
ção do século XXI: estratégias ativas baseadas na metodologia de contextualiza-
ção da aprendizagem”, Julia Pinheiro Andrade e Juliana Sartori, após uma breve
introdução sobre como as tecnologias digitais exercem uma influência nos jovens
e adultos nas grandes cidades e um questionamento em relação à formação de
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Metodologias ativas para uma educação inovadora: uma abordagem teórico-prática
v. 28, n. 2, Passo Fundo, p. 834-839, maio/ago. 2021 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
professores e à escola que ensina conhecimentos ou competências, abordam o con-
ceito de metodologia de contextualização da aprendizagem (MCA), que desenvolve
o engajamento e a formação de professores autores por meio da aprendizagem sig-
nificativa.
No nono capítulo, “Desenvolvimento do currículo STEAM no ensino médio:
a formação de professores em movimento”, Mariana Lorenzin, Cristiana Mattos
Assumpção e Alessandra Bizerra, seguindo a mesma linha do capítulo anterior, re-
fletem sobre a formação de professores, abordam a interdisciplinaridade, a apren-
dizagem baseada em projetos e a reorganização do currículo, citando como exemplo
o currículo STEAM como caminho para capacitação profissional e uma mudança
na prática docente.
No décimo capítulo, “Metodologias ativas de aprendizagem: elaboração de ro-
teiros de estudos em ‘salas sem paredes’”, Célia Maria Piva Cabral Senna, Sarah
Papa de Morais, Daniela Zaneratto Rosa e Amélia Arrabal Fernandez refletem
sobre a educação do passado e a educação atual, a globalização e o aprendizado
através da convivência, o processo de avaliação, a elaboração de roteiros de es-
tudos, as metodologias ativas e a quebra das paredes das salas de aula para um
ensino colaborativo. As autoras apresentam um relato de uma escola pública da
zona leste da cidade de São Paulo que utiliza essa metodologia.
O livro apresenta possibilidades para os leitores que desejam utilizar metodo-
logias ativas nos processos de ensino e aprendizagem e, para os que não conhecem
tais metodologias, são apresentados fundamentos importantes, mas o que mais
chama a atenção na obra são as ferramentas digitais utilizadas nos casos apresen-
tados nos capítulos, que servem como referência para futuras práticas docentes.
Nesse sentido, a obra cumpre seu objetivo, que é a construção de conhecimento
sobre metodologias ativas e suas possibilidades para inovar o processo educacional.
Referências
BACICH, Lilian; MORAN, José (org). Metodologias ativas para uma educação inovadora: uma
abordagem teórico-prática. Porto Alegre: Penso, 2018. 238 p.
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 27. ed. São Pau-
lo: Paz e Terra, 1996.
ROJO, Roxane; MOURA, Eduardo (org.). Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola,
2012.