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ISSN on-line 2238-0302
volume 28 número 3 set./dez. 2021
EDUCAÇÃO E FILOSOFIA EM
JOHANN FRIEDRICH HERBART
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Revista Espaço Pedagógico [online] / Universidade de Passo
Fundo, Faculdade de Educação. – Vol. 16, n. 2 (2009)- . –
Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2009-
Anual: 1994-1998. Semestral: 1999-2016. Quadrimestral:
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ESPAÇO
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Research Assessment (DORA)
ESPAÇO
PEDAGÓGICO
SUMÁRIO
Editorial .....................................................................................................................................................................845
Cláudio Almir Dalbosco
Odair Neitzel
Telmo Marcon
A vida e a obra de Johann Friedrich Herbart numa nova perspectiva..........................................................................855
La vida y el trabajo del Johann Friedrich Herbart en una nueva perspectiva
The life and work of Johann Friedrich Herbart in a new perspective
Hans-Jürgen Lorenz
Complexidade e educação: a pedagogia de Herbart e seus conceitos próprios ..........................................................877
Complejidad y educación: la pedagogía de Herbart y sus propios conceptos
Complexity and education: Herbart pedagogy and its own concepts
Ignazio Volpicelli
A escuta crítica e o aspecto dialógico da educação moral: a concepção de J. F. Herbart do professor como
guia moral ......................................................................................................................................................905
La escucha crítica y el aspecto dialógico de la educación moral: la concepción de J. F. Herbart del maestro como guía moral
Critical listening and the dialogic aspect of moral education: J. F. Herbarts concept of the teacher as moral guide
Andrea English
Complexidade, instrução educativa e formação política ............................................................................................. 929
Complexity, educational instruction and political formation
Complejidad, instrucción educativa y formación política
Thomas Rucker
A faceta negativa na ação pedagógica e seu caráter formativo ..................................................................................953
A faceta negativa en la acción pedagógica y su carácter formativo
The negative facet in pedagogical action and its formative character
Odair Neitzel
Possui a disciplina papel formativo? Um ponto controverso das teorias educacionais ................................................975
Does discipline have an educational role? A controversial point of educational theories
¿Tiene la disciplina un papel formativo? Un punto controvertido de las teorías educativas
Cláudio Almir Dalbosco
Instrução educativa e interesse múltiplo em Herbart: aproximações com a formação do sujeito ético em Foucault .....995
Instrucción educativa e interés múltiple en Herbart: aproximaciones con la formación del sujeto ético en Foucault
Educational instruction and multiple interest in Herbart: approaches with the formation of the ethical subject in Foucault
José Pedro Boueuer
Franciele da Silva dos Anjos Strohhecker
A pedagogia herbartiana e a sua inserção no cenário brasileiro: uma leitura histórica .............................................1016
Herbatian pedagogy and its insertion in the Brazilian scenery: a historical reading
La pedagogía herbartiana y su inserción en el escenario brasileño: una lectura histórica
Geise Kelly Alves de Morais
Aparecida Favoreto
Solitude e isolamento: o caráter formativo do encontro consigo mesmo .................................................................1036
Solitude and isolation: the formative character of the meeting with yourself
Soledad y aislamiento: el carácter formativo del encuentro con usted mismo
Vânia Lisa Fischer Cossetin
O bem-estar subjetivo de professores: uma investigação em tempos de pandemia .................................................1055
The subjective well-being of teachers: an investigation in times of pandemic
El bienestar subjetivo de los docentes: una investigación en tiempos de pandemia
Luiz Gonzaga Lapa Junior
Falta de empatia ao trabalho docente: os dissabores vivenciados pelo professor durante a pandemia .....................1070
Lack of empathy to teaching work: the disables experienced by the teacher during the pandemic
Falta de empatía al trabajo docente: las discapacidades experimentadas por el maestro durante la pandemia
Sônia da Cunha Urt
Silvia Segovia Araujo Freire
Adaline Franco Rodrigues
Práticas de cuidado de si no isolamento social .........................................................................................................1087
Practises of self care in the social isolation
Prácticas autocuidado en aislamiento social
Fernanda Antônia Barbosa da Mota
Heraldo Aparecido Silva
Ética da alteridade: implicações da não presencialidade na educação a distância ....................................................1104
Ética de la alteridad: implicaciones de la no presencialidad en la educación a distancia
Ethics of alterity: implications of non-presentiality in distance education
Amanda Pires Chaves
Pedro L. Goergen
Educação para a convivência ética: uma emergência ...............................................................................................1123
Educación para la convivencia ética: una emergencia
Education for ethical coexistence: an emergency
Juliana Aparecida Matias Zechi
Loriane Trombini Frick
Maria Suzana De Stefano Menin
O ensino como atividade mediadora no processo de apropriação de conceitos ........................................................1149
Teaching as a mediating activity in the process of appropriating of concepts
La enseñanza como actividad mediadora en el proceso de apropiación de conceptos
Sandro Roberto Cossetin
Marli Dallagnol Frison
Diálogo com educadores
Os clássicos e a educação atual: entrevista com Rainer Bolle .................................................................................... 1174
Cláudio Almir Dalbosco
Odair Neitzel
Resenha
Um lósofo que caminha: sobre educação e formação humana na sociedade atual” ..............................................1190
Francisco Carlos dos Santos Filho
Luciana Oltramari Cezar
Manifesto em defesa do legado de Paulo Freire à educação no ano do centenário de seu nascimento .....................1197
Eldon Henrique Mühl
845
ESPAÇO PEDAGÓGICO
v. 28, n. 3, Passo Fundo, p. 845-854, set./dez. 2021 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
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ESPAÇO
PEDAGÓGICO
EDITORIAL
Cláudio Almir Dalbosco*
Odair Neitzel**
Telmo Marcon***
Este número da revista Espaço Pedagógico tem como dossiê Educação e fi-
losofia em Johann Friedrich Herbart, pedagogo alemão (1776-1841). Tem por
objetivo, entre outros, ampliar a compreensão desse grande clássico da pedago-
gia para além do universo didático e das ciências da educação. Por muito tempo,
Herbart foi recebido, também por influência dos próprios neoherbartianos, como o
pai da formalização moderna dos passos didáticos de ensino: clareza, associação,
ordenação e ordem. De outra parte, também foi considerado o inventor moderno
das ciências da educação, oferecendo argumentos decisivos para que a pedagogia
pudesse ser tratada sob essa perspectiva. Por fim, neste mesmo âmbito diversifica-
do de recepção de seu pensamento, Herbart não tardou a ser enquadrado no rol da
pedagogia conservadora. Ao aceitar que suas ideias pedagógicas seriam conserva-
doras, os “progressistas” passaram a criticá-lo, porque teria secundarizado o papel
do aluno em nome da centralidade intelectual e pedagógica do professor. Segundo
tal interpretação atribuída a Herbart, o professor seria o soberano do processo
* Doutor em Filosoa pela Universidade de Kassel. Professor e pesquisador no Programa de Pós-Graduação em Educa-
ção da Universidade de Passo Fundo (UPF). Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3408-2975. E-mail: vcdalbosco@hot-
mail.com
** Doutor em Educação (UPF/Universität Kassel). Professor Adjunto na Universidade Federal Fronteira Sul (UFFS) – Cam-
pus Chapecó. Docente nos Programas de Pós-Graduação em Educação e em Filosoa (PPGE/PPGFIL). Líder do Grupo
de Pesquisa Educação, Filosoa e Sociedade (GPEFS). Orcid: https://orcid.org/0000-0001-8121-1149. E-mail: odair.neit-
zel@us.edu.br
*** Doutor em História Social pela PUC-SP, com pós-doutorado em Educação Intercultural pela UFSC. Professor e pes-
quisador na Faculdade de Educação e no Programa de Pós-Graduação em Educação (mestrado e doutorado) da UPF.
Orcid: http://orcid.org/0000-0002-9110-3210. E-mail: telmomarcon@gmail.com
846 ESPAÇO PEDAGÓGICO v. 28, n. 3, Passo Fundo, p. 845-854, set./dez. 2021 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
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pedagógico, não deixando lugar para a participação do aluno. Como se pode ver,
muitos são os problemas a serem aprofundados e esclarecidos.
Há uma vasta literatura internacional atualizada que auxilia a desfazer os
supostos didaticismo, cientificismo e conservadorismo autoritário do pensamento
pedagógico de Johann Friedrich Herbart. É preciso reconhecer o trabalho investi-
gativo pioneiro empreendido por Dietrich Benner e Wolfdietrich Schmied-Kowar-
zik na década de 1960, no âmbito da filosofia da educação (BENNER; SCHIEMI-
D-KOWARZIK, 1967). Ao investigar a interdependência entre filosofia prática e
pedagogia, os autores inserem Herbart na mais antiga tradição da pedagogia da
práxis, mostrando o quanto a teoria educacional herbartiana possui um fundo ético
indispensável, que fundamenta seus principais conceitos pedagógicos. Esse traba-
lho pioneiro foi levado adiante pelo próprio Benner nas décadas seguintes, desta-
cando-se, entre outros, seu renomado livro: Pedagogia de Herbart (Die Pädagogik
Herbarts). Com este trabalho, Benner consolidou-se como um dos principais intér-
pretes atuais do pensamento de Herbart, oferecendo uma interpretação original da
Pedagogia geral (Allgemeine Pädagogik), considerada a principal obra de Herbart
(BENNER, 1993). Sua originalidade interpretativa repousa, entre outros aspectos,
na defesa da unidade tensional sistemática entre o pensar e o agir pedagógicos que
se desdobra em três âmbitos distintos da ação pedagógica, mas profundamente
interligados entre si: governo, ensino e disciplina.1
Outro passo decisivo na atualização crítica do pensamento de Herbart foi a
fundação, no início do século XXI, da Sociedade Internacional Herbart (Internatio-
nale Herbart Gesellschaft), com a realização de um congresso anual voltado especi-
ficamente para dialogar com as ideias de Herbart sob diferentes perspectivas teó-
ricas atuais. O próprio leitor é presenteado, neste número da Espaço Pedagógico,
com uma entrevista inédita que fizemos com o atual o presidente da Internationale
Herbart Gesellschaft, professor Rainer Bolle. O fato é que, desse esforço coletivo
interdisciplinar, tem-se como resultado um amplo trabalho de editoração, abar-
cando vários volumes que contemplam diferentes temas e dimensões do próprio
pensamento de Herbart.2
Para o nosso propósito, interessa destacar, neste momento, o volume “Con-
ceitos próprios e o desenvolvimento interdisciplinar” (“Einheimische Begriffe und
Disziplinentwicklung”), resultado do 7º Congresso Internacional da Sociedade In-
ternacional Herbart, ocorrido na Universidade de Duisburg, na Alemanha, de 20
a 22 de março de 2013 (CORIAND; SCHOTTE, 2014). O referido volume contém
um material precioso de estudo, representado pela voz de muitos especialistas do
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
v. 28, n. 3, Passo Fundo, p. 845-854, set./dez. 2021 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
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pensamento de Herbart sobre a possibilidade e a importância de a pedagogia se
autocompreender como campo autônomo de investigação da educação e da prática
educativa, em trabalho interdisciplinar com outros campos do conhecimento hu-
mano.3
O diálogo com a literatura internacional atualizada permite ver com olhos
críticos o didaticismo, o cientificismo e conservadorismo autoritário atribuídos a
Herbart. Em primeiro lugar, no que se refere ao didaticismo, a redução do complexo
e profundo pensamento pedagógico de Herbert à esquematização do formalismo
didático desconsidera a ideia de formação (Bildung) que sustenta filosoficamente
as noções de educação e ensino que estão na base de suas ideias pedagógicas. Uma
leitura cuidadosa da Pedagogia geral revela o quanto Herbart busca sustentar
suas ideias do ensinar e do aprender na mais alta tradição pedagógica ocidental,
ou seja, nos ideais da Paideia grega e da Humanitas latina, que desaguam na
Bildung alemã de inspiração kantiana.4 É do diálogo crítico com essa tradição que
Herbart cria e justifica dois de seus conceitos pedagógicos fundamentais, a saber:
a instrução educativa (erziehender Unterricht) e o interesse múltiplo (vielseitiger
Interesse). Isso significa dizer que o ensino, antes de ser didático no sentido de
ser guiado por regras e técnicas impostas de fora ao aluno, precisa ser formativo,
ou seja, organizado e exercitado de tal maneira que possa conduzir os envolvidos
no processo de ensinar e aprender a pensarem por si mesmos. Sob este aspecto,
Herbart recria e amplia, com sua tese do autogoverno ético formativo, o núcleo da
pedagogia esclarecida, colocando a coragem de pensar por si mesmo (sapere aude)
como ponto de partida da formação das capacidades humanas.
No que se refere ao cientificismo, ele brota da tendência pedagógica dominan-
te no século XX de querer reduzir questões teórico-metodológicas do ensino à lógica
das ciências naturais. Tal tendência termina por desaguar, em última instância, na
própria redução da pedagogia em uma ciência da educação, acalentando o sonho
de alcançar o mesmo nível de “objetividade” de outras ciências. Ora, quando Her-
bart foi chamado, nesse contexto, para levar água ao moinho da ciência educativa,
ignorou-se o fundamental de sua própria pedagogia, a saber, que ela não pretendia
igualar-se à ciência experimental de sua época, mas, sim, buscar ser uma pedago-
gia geral, sustentada tanto pela filosofia prática como pela psicologia. Nesse con-
texto, sua obra Die Allgemeine Pädagogik vem novamente nos socorrer, pois, nela,
o pedagogo alemão defende, ainda na introdução, o seguinte:
848 ESPAÇO PEDAGÓGICO v. 28, n. 3, Passo Fundo, p. 845-854, set./dez. 2021 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
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Seria bem melhor se a pedagogia pudesse refletir da forma mais precisa possível sobre
seus próprios conceitos (einheimischen Begriffe) e cultivasse melhor o pensamento autô-
nomo. Assim, ela poderia se tornar o núcleo de um campo investigativo e não correr mais
o perigo de ser governada por um estrangeiro, como uma distante província conquistada
(HERBART, 1965, p. 21).
Fica estabelecido, então, na breve passagem supracitada, o projeto de tornar
a pedagogia um campo de investigação independente, baseada no pensamento au-
tônomo capaz de justificar seus próprios conceitos, irradiando assim outros campos
investigativos. Contudo, esse projeto fora abandonado nas décadas seguintes, cul-
minando, já no século XXI, na redução quase por completo da pedagogia em curso
de formação de professores, orientada cada vez mais pela noção de aprendizagem
dominada pela linguagem das competências e habilidades.
Por fim, nada mais injusto aos ideais pedagógicos herbartianos do que a acusa-
ção de conservadorismo autoritário. Sob esse aspecto, suas ideias pedagógicas pre-
cisam ser submetidas a uma leitura “não tradicional”, capaz de mostrar o quanto o
aluno, diferentemente do que se pensa, ocupa lugar proeminente no processo peda-
gógico. Sua reflexão sobre o governo das crianças (Regierung der Kinder) destaca
o princípio pedagógico, herdado tanto de Rousseau como de Pestalozzi5, de que o
processo formativo precisa partir do mundo experiencial do aluno, respeitando suas
condições intelectuais e emocionais iniciais, e somente com base nisso pode esten-
der-se para novas experiências, contemplando novas unidades temáticas. Contudo,
e nisso Herbart insiste convictamente, o respeito ao mundo da criança precisa vir
acompanhado pelo trabalho intelectual permanente do professor, sem que este possa
renunciar em nenhum momento ao seu papel de condutor espiritual do processo
formativo. Pois, quando o professor assume com responsabilidade esse papel, além
de respeitar efetivamente seu aluno, termina por se formar ele próprio no processo
educativo. Podemos observar, com isso, que o autogoverno pedagógico defendido pelo
pedagogo alemão vale, reciprocamente, tanto para o aluno como para o professor.
O dossiê Educação e filosofia em Johann Friedrich Herbart inicia com
o artigo do professor doutor Hans-Jürgen Lorenz, que, por longos anos, foi diretor
do Herbartgynasium de Oldenburg, cidade natal de Herbart. Com o título A vida
e a obra de Johann Friedrich Herbart numa nova perspectiva, objetiva principal-
mente desconstruir a imagem de Herbart como pedagogo autoritário e carrancudo.
Lorenz faz uma reconstrução da biografia de Herbart, destacando momentos im-
portantes da vida pessoal e acadêmica do filósofo-pedagogo. O texto traz elementos
da relação de Herbart com a comunidade acadêmica, tanto em Göttingen quanto
849
ESPAÇO PEDAGÓGICO
v. 28, n. 3, Passo Fundo, p. 845-854, set./dez. 2021 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
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em Königsberg, referindo figuras familiares e os próprios estudantes. O autor bus-
ca resgatar a figura do mestre e do intelectual Herbart, acessível, de bom trato,
humano, sensível e intelectual.
O professor doutor Ignazio Volpicelli, da Università degli Studi di Roma, abor-
da, em seu artigo Complexidade e educação: a pedagogia de Herbart e seus conceitos
próprios, um dos temas mais caros a Herbart: a natureza estatutária da pedagogia
como campo de saber próprio e acadêmico. Trata-se da reflexão sobre a elaboração
de seus conceitos próprios com base na complexa relação que a pedagogia mantém
consigo mesma e com as outras áreas do saber, especialmente com a filosofia práti-
ca e a nascente psicologia. O autor tangencia, assim, a discussão herbartiana que
coincide com o surgimento da pedagogia como ciência ou campo do saber acadêmico
e da defesa de investigação da ação pedagógica para o desenvolvimento da prática
educativa.
A doutora Andrea English, professora da Universidade Edimburgo, na Es-
cócia, nos brinda com seu texto A escuta crítica e o aspecto dialógico da educação
moral: a concepção de J. F. Herbart do professor como guia moral. A autora faz uma
reflexão a partir da obra nuclear de Herbart: Pedagogia geral derivada do fim da
educação (1806), destacando o aspecto da escuta crítica do outro que é inerente à
relação dialógica professor-aluno. English sustenta que a escuta crítica, principal-
mente a partir do papel de docente, é fundamental para o desenvolvimento moral
dos educandos.
No artigo Complexidade, instrução educativa e formação política, o professor
doutor Thomas Rucker, da Universidade de Berna, na Suíça, realiza um esforço
de atualização do pensamento pedagógico de Herbart, tomando nuclearmente o
conceito de instrução educativa, para refletir sobre a possibilidade da formação
política na atualidade. Busca destacar possíveis relações entre o conceito de in-
teresse múltiplo e a multiplicidade de orientações, perspectivas de pensamento e
saberes que caracterizam a sociedade complexa contemporânea. Nesse sentido, de-
fende, sustentando-se no conceito de interesse múltiplo da pedagogia de Herbart,
a necessidade de formação para a complexidade de orientações como condição da
convivência política democrática nas sociedades contemporâneas.
Nessa perspectiva, também se inscreve o artigo A faceta negativa na ação pe-
dagógica e seu caráter formativo, do professor doutor Odair Neitzel, que intenciona
refletir sobre o aspecto negativo enquanto descontinuidade do habitual na ação
pedagógica. Essa argumentação, sustentada no conceito de disciplina formativa
de Herbart, pretende mostrar que, das inúmeras facetas da ação pedagógica, a di-
850 ESPAÇO PEDAGÓGICO v. 28, n. 3, Passo Fundo, p. 845-854, set./dez. 2021 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
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mensão da negação não pode ser negligenciada, sendo esta compreendida como um
momento de descontinuidade da ação habitual, visando provocar uma suspensão
e uma abertura do pensamento para a reflexão. Trata-se da negação como suspen-
são da ação habitual e irrefletida do sujeito, sendo que, precisamente por isso, ela
assume dimensão formativa.
O professor doutor Cláudio Almir Dalbosco contribui com as reflexões sobre
Herbart tocando em um dos conceitos mais controversos e mal compreendidos: a
disciplina formativa. Em Possui a disciplina papel formativo? Um ponto controver-
so das teorias educacionais, o autor lança mão da crítica de Foucault às práticas
disciplinadoras que são perversas à medida que negam os sujeitos, para apresen-
tar, como contraponto, a dimensão formativa atribuída por Herbart à disciplina. O
referido ensaio procura mostrar o lugar arquitetônico ocupado pela disciplina na
tríade da ação pedagógica pensada por Herbart, deixando claro seu papel ético-for-
mativo na difícil e progressiva conquista do autogoverno de si mesmo e dos outros.
O artigo de José Pedro Boufleuer e Franciele da Silva dos Anjos Strohhecker,
Instrução educativa e interesse múltiplo em Herbart: aproximações com a formação
do sujeito ético em Foucault, retoma as noções de instrução educativa e de mul-
tiplicidade do interesse em Herbart, objetivando uma releitura do seu potencial
pedagógico e a “sua articulação com o caráter hermenêutico da condição humana”.
Os autores destacam que há uma “dimensão ética e formativa presente nos sabe-
res/conhecimentos escolares e que tornam possível a constituição de um modo ético
de existir”. O artigo estabelece aproximações entre essas ideias de Herbart com o
sentido formativo do cuidado de si e do saber da espiritualidade a ele vinculado,
em Michel Foucault. Os autores concluem que a formação para a multiplicidade do
interesse amplia o universo simbólico do sujeito, permitindo-lhe compreender a si,
ao outro e ao mundo de modo alargado, o que é fundamental para uma vida ética.
A contribuição de Geise Kelly Alves de Morais e Aparecida Favoreto é o artigo
intitulado A pedagogia herbartiana e a sua inserção no cenário brasileiro: uma
leitura histórica. As autoras problematizam como a pedagogia de Herbart chega ao
Brasil e reconhecem que há controvérsias sobre essa recepção: ora citada como um
modelo que deveria ser incorporado ao ensino, ora como exemplo de uma pedago-
gia conservadora, um psicologismo e um didatismo não recomendáveis. A segunda
parte do artigo analisa, numa perspectiva histórica e dialética, os fundamentos dos
princípios pedagógicos herbartianos e conclui que a obra de Herbart é um docu-
mento extraordinário para pensar a pedagogia e para a tomada de posição frente
ao processo histórico.
851
ESPAÇO PEDAGÓGICO
v. 28, n. 3, Passo Fundo, p. 845-854, set./dez. 2021 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
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Na sequência, há um conjunto de artigos que abordam questões diversas, es-
pecialmente relativas à pandemia da Covid-19. O primeiro é de Vânia Lisa Fischer
Cossetin: Solitude e isolamento: o caráter formativo do encontro consigo mesmo.
A autora trata sobre os impactos decorrentes da pandemia em relação à saúde
mental da população e o sofrimento psíquico decorrente do distanciamento físico. A
hipótese norteadora da reflexão é que a pandemia acabou induzindo a uma intros-
pecção que poucos estavam dispostos ou aptos a fazer, intensificando o sentimento
de solidão e o sofrimento dela advindo. Esse processo, no entanto, permitiu que a
pandemia não fosse pensada apenas como “efeito traumático ou patologia”, mas,
sim, “como inerente à condição humana, inclusive como uma experiência de teor
formativo”. Nesse sentido, destacam-se três posicionamentos em decorrência da
pandemia: o sentimento de solidão devido ao isolamento; a solidão compreendida
num sentido positivo; e, por fim, a reflexão sobre o caráter formativo de o sujeito
ficar só.
O artigo de Luiz Gonzaga Lapa Junior, O bem-estar subjetivo de professores:
uma investigação em tempos de pandemia, analisa os impactos nas regras e nos há-
bitos das pessoas devido à pandemia da Covid-19 e as novas realidades sociais e es-
colares que impactaram nas formas de trabalho dos professores. O artigo objetivou
estudar o bem-estar subjetivo em docentes de três municípios de Goiás. Participa-
ram da pesquisa 481 docentes. Os resultados apontaram para a predominância de
afetos positivos e uma indefinição quanto à satisfação com a vida. Conclui que é
importante investigar o bem-estar subjetivo de docentes, visando o planejamento
de ações e a formulação de políticas públicas que levem em consideração a saúde
coletiva e a felicidade dos docentes.
O artigo de Sônia da Cunha Urt, Silvia Segovia Araujo Freire e Adaline Fran-
co Rodrigues, intitulado Falta de empatia ao trabalho docente: os dissabores viven-
ciados pelo professor durante a pandemia, aprofunda a importância do desenvolvi-
mento das funções psicológicas superiores, que são primordiais para possibilitar ao
homem a percepção de si e de suas atitudes na relação com o outro na sociedade,
bem como denuncia a falta de empatia ao trabalho docente emergido durante a
pandemia. As autoras analisam como a empatia pode ajudar a enfrentar o adoe-
cimento do professor em épocas de crises e inseguranças pessoais e profissionais
e criticam, também, o desapreço ao educador e os desafios que ele enfrenta no
trabalho remoto. Ainda, reforçam a importância da escola e da educação escolar na
formação humana.
852 ESPAÇO PEDAGÓGICO v. 28, n. 3, Passo Fundo, p. 845-854, set./dez. 2021 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
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Fernanda Antônia Barbosa da Mota e Heraldo Aparecido Silva contribuem, no
contexto da pandemia, com o artigo Práticas de cuidado de si no isolamento social.
Os autores objetivam refletir sobre a contribuição do cuidado de si para a ressigni-
ficação da prática docente no panorama atual de isolamento social ocasionado pela
pandemia do novo coronavírus. Para tanto, recuperam elementos do cuidado de si
do período helenístico e romano, concluindo que as práticas de si podem contribuir
para lidar melhor com a situação pandêmica, pois somente com o cuidado de si
podemos cuidar do outro, ao proporcionar melhores condições físicas e mentais
para o enfrentamento de um contexto adverso, no qual as novas metodologias edu-
cacionais foram subitamente inseridas na vida dos docentes, os quais tiveram que
se reinventar no cenário contemporâneo de crise.
Amanda Pires Chaves e Pedro L. Goergen colaboram com o artigo intitulado
Ética da alteridade: implicações da não presencialidade na educação a distância.
Nele, os autores discutem as possíveis implicações da não presencialidade na cons-
tituição da alteridade enquanto fundamento da ética nos processos de formação
superior a distância. Fundamentam suas reflexões em Emmanuel Levinas, espe-
cialmente no conceito de alteridade, e dizem, com base no autor, que a relação face
a face entre seres humanos rompe o caráter totalizador da relação de indiferen-
ça e intolerância e abre caminho para uma nova relação eu-Outro, que considera
plenamente a alteridade, respeitando as diferenças. Eles concluem que é possível
verificar que a não presencialidade traz implicações para a constituição da alteri-
dade enquanto fundamento ético dos processos de formação superior a distância,
associados às relações intersubjetivas, entre professores e alunos.
O artigo de Juliana Aparecida Matias Zechi, Loriane Trombini Frick e Ma-
ria Suzana De Stefano Menin, intitulado Educação para a convivência ética: uma
emergência, ressalta a importância de a escola favorecer a construção de valores
na constituição de indivíduos solidários, cooperativos, empáticos e justos. Nesse
sentido, o artigo objetiva reconstruir os princípios da educação para a convivên-
cia ética, mostrando algumas experiências educacionais inspiradoras. As autoras
comparam experiências de escolas brasileiras e espanholas, para observar como
elas desenvolviam práticas de melhoria da convivência e realização de entrevistas
semiestruturadas com professores ou equipe diretiva. Mesmo com as diferenças e
as especificidades das instituições pesquisadas, destacam que elas inspiram refle-
xões frutíferas sobre a urgência da educação para a convivência ética e modos de
organizá-la.
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Por fim, temos a contribuição de Sandro Roberto Cossetin e Marli Dallagnol
Frison, com o artigo O ensino como atividade mediadora no processo de apropria-
ção de conceitos, que objetivou problematizar a atividade de ensino e a formação de
conceitos em ambientes de estudo e suas implicações no desenvolvimento humano.
Ancorados em autores da perspectiva histórico-cultural, Cossetin e Frison con-
cluem que são necessárias mudanças quanto às concepções referentes à formação
de conceitos, na organização curricular, na direção da apropriação do conhecimento
pelos sujeitos a partir da coletividade, nos pressupostos das mediações e da forma-
ção docente para atuar na educação básica e superior.
O Diálogo com educadores traz as contribuições resultantes da entrevista fei-
ta com Rainer Bolle, tratando dos clássicos e da educação atual. O professor doutor
Rainer Bolle é o atual presidente da prestigiosa Sociedade Internacional Herbart
(Internationale Herbart Gesellschaft). Com sede na Alemanha, a referida socieda-
de desenvolve amplas atividades acadêmicas e científicas sobre o clássico autor
da pedagogia alemã. Os interessados que desejarem maiores informações sobre
a referida sociedade, poderão acessar o site: https://www.herbart-gesellschaft.de.
A entrevista contou com a participação dos professores doutores Cláudio Almir
Dalbosco e Odair Neitzel, tanto na formulação quanto na tradução das questões.
Por fim, temos a resenha da obra de Dalbosco: Educação e condição humana
na sociedade atual: formação humana, formas de reconhecimento e intersubjeti-
vidade de grupo (Curitiba: Appris, 2021), que tem como título: Um filósofo que
caminha: sobre educação e formação humana na sociedade atual. A resenha foi
realizada por Francisco Carlos dos Santos Filho e Luciana Oltramari Cezar. Eles
sintetizam o alcance da obra ao afirmar: “Resenhar esse livro é dar um passeio que
nos leva desde um diagnóstico de época da educação, do papel dos clássicos e sua
atualização na formação humana, até propostas para os problemas da educação na
sociedade atual”. A conclusão da resenha é lapidar: “se o reducionismo na formação
acadêmica representa o risco constante do encolhimento das mentes, o encurta-
mento das humanidades significa o encurralamento do sujeito”.
Por fim, o Manifesto em defesa do legado de Paulo Freire, elaborado pelo pro-
fessor-doutor Eldon Henrique Mühl, em nome do Programa de Pós-Graduação em
Educação, do Nupefe, do Gepes, do Nupepp e demais grupos de pesquisa vincu-
lados ao programa, bem como da revista Espaço Pedagógico, ao grande educador
Paulo Freire, que continua inspirando pesquisas e intervenções pedagógicas eman-
cipadoras e alimentando esperanças de vida e cidadania para todos.
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Notas
1 Ocupamo-nos, recentemente, cada um ao seu modo e sob a forte influência do trabalho de Dietrich Benner
(1993), com a interpretação da Pedagogia geral de Herbart. Ver, a esse respeito, Dalbosco (2018a, 2018b) e
Neitzel (2019).
2 Para os interessados, segue o link da Sociedade Internacional Herbart, no qual consta também a relação
de todos os volumes publicados, com o respectivo resumo de cada um: https://www.herbart-gesellschaft.de.
3 Chamamos a atenção principalmente para a terceira parte do referido volume, que trata dos “conceitos
próprios” da pedagogia em sua relação com disciplinas próximas. Para exemplificar, essa parte do volume
contém um ensaio muito interessante, escrito por Steffen Schlüter, sobre a liberdade da criança segundo
Herbart (SCHLÜTER, 2014, p. 257-269).
4 Cabe referir que Herbart, além de ser um profundo conhecedor da filosofia crítica de Immanuel Kant, foi
seu sucessor na famosa cátedra de Lógica e Metafísica na Universidade Albertina, de Königsberg.
5 Logo depois de seus estudos e com apenas 21 anos de idade, Herbart muda-se para a Suíça, assumindo lá,
por vários anos, o trabalho de preceptoria na casa de famílias nobres. Um dos objetivos que o moveram
para lá foi conhecer de perto as experiências pedagógicas e os escritos de Pestalozzi. Sobre isso, ver Walter
Asmus (1968).
Referências
ASMUS, Walter. Herbart. Band I: Der Denker. Heidelberg: Quelle & Meyer, 1968.
BENNER, Dietrich. Die pädagogik Herbarts: eine problemgeschichtliche Einführung in die
Systematik neuzeitlicher Pädagogik. Weinheim/München: Juventa-Verlag, 1993.
BENNER, Dietrich; SCHMIED-KOWARZIK, Wolfdietrich. Prolegomena zur Grundlegung der
Pädagogik: Herbarts praktische Fhilosophie und Pädagogik. Ratinger bei Düsseldorf: A. Henn
Verlag, 1967. v. I.
CORIAND, Rotraud; SCHOTTE, Alexandra (Hrsg.). “Eiheimische Begriffe” und Disziplinent-
wicklung. Jena: Garamond Verlag – Edition Paideia, 2014.
DALBOSCO, C. A. Condição infantil e pedagogia da autoridade amorosa em Johann F. Her-
bart. Educação e Realidade, Porto Alegre: UFRGS, v. 43, p. 1131-1148, 2018a.
DALBOSCO, C. A. Uma leitura não-tradicional de Johann Friedrich Herbart: autogoverno
pedagógico e posição ativa do educando. Educação e Pesquisa, São Paulo: USP, v. 44, p. 1-18,
2018b.
HERBART, Johann Friedrich. Pädagogische schriften. Zweiter Band: Allgemeine Pädagogik,
aus dem Zweck der Erziehung abgeleitet (1806). Herausgegeben von Walter Asmus. Düssel-
dorf/München: Verlag Helmut Küpper Vormals Georg Bondi, 1965.
NEITZEL, Odair. A pedagogia como autogoverno em Johann Friedrich Herbart. Ijuí: Editora
Unijuí, 2019.
SCHLÜTER, Steffan. Über die Freiheit des Kindes nach Herbart. In: CORIAND, Rotraud;
SCHOTTE, Alexandra (Hrsg.). “Eiheimische Begriffe” und Disziplinentwicklung. Jena: Gara-
mond Verlag – Edition Paideia, 2014.
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A vida e a obra de Johann Friedrich Herbart numa nova perspectiva
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A vida e a obra de Johann Friedrich Herbart numa nova perspectiva1
La vida y el trabajo del Johann Friedrich Herbart en una nueva perspectiva
The life and work of Johann Friedrich Herbart in a new perspective
Hans-Jürgen Lorenz*
Resumo
O presente trabalho é uma revisão bibliográca e documental de cunho analítico e hermenêutico. Com base em
registros e documentos, o texto pretende reapresentar o lósofo e educador alemão Johann Friedrich Herbart a
partir de um outro olhar, contrapondo a caracterização que se cristalizou nos manuais de história e nas teorias
pedagógicas que retratam o pensador como um pedagogo tradicional e autoritário. Descortinando elementos
biográcos da vida e do pensamento, o texto objetiva revelar momentos marcantes de sua trajetória acadêmica,
como a experiência em Berna na Suíça, o contato com Fichte em Jena, a cátedra em Königsberg e as passagens
pela Universidade de Göttingen, assim como de elementos pessoais, como a presença da música e sua ligação
com diferentes personagens determinantes em sua vida. Intenciona-se aproximar o leitor a aspectos da vida de
Herbart que revelam todo seu esforço e sua dedicação na sistematização e na investigação da pedagogia e da
defesa da liberdade de pensamento. O texto revisita fontes importantes de investigação como a biograa feita
por Walter Asmus, que traz elementos minuciosos da vida do pensador. O texto pretende contribuir com os es-
forços que, a partir da década de 1960, buscam revisar as ideias losócas e pedagógicas de Herbart.
Palavras-chave: biograa; Herbart; pedagogia; formação de professores.
Resumen
El presente trabajo es una revisión bibliográca y documental de naturaleza analítica y hermenéutica. Basán-
dose en registros y documentos, el texto pretende representar al lósofo y educador alemán Johann Friedrich
Herbart desde otro punto de vista, oponiéndose a la caracterización que ha cristalizado en los manuales de
historia y las teorías pedagógicas que retratan al pensador como un pedagogo tradicional y autoritario. El texto
tiene como objetivo revelar momentos signicativos de su carrera académica, como su experiencia en Berna,
su contacto con Fichte en Jena, su cátedra en Königsberg y sus visitas a la Universidad de Göttingen, así como
elementos personales como la presencia de la música y su conexión con diferentes personajes determinantes
de su vida. La intención es acercar al lector a aspectos de la vida de Herbart que revelan todo su esfuerzo y dedi-
cación en la sistematización e investigación de la pedagogía y la defensa de la libertad de pensamiento. El texto
vuelve a visitar importantes fuentes de investigación como la biografía de Walter Asmus, que aporta elementos
detallados de la vida del pensador. El texto pretende contribuir a los esfuerzos que a partir de los años 60 tratan
de revisar las ideas losócas y pedagógicas de Herbart.
Palabras clave: biografía; Herbart; pedagogía; formación de profesores.
* Doutor em Educação. Diretor aposentado do Herbartgymnasium de Oldenburg, Alemanha. Orcid: https://orcid.
org/0000-0001-9607-2436. E-mail h.j.lorenz@nwn.de
Recebido em: 29/01/2021 – Aprovado em: 25/11/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i3.12235
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Hans-Jürgen Lorenz
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Abstract
The present work is a bibliographic and documentary review of analytical and hermeneutical nature. Based on
records and documents, the text intends to re-present the German philosopher and educator Johann Friedrich
Herbart from another point of view, opposing the characterization that has crystallized in history manuals and
pedagogical theories that portray the thinker as a traditional and authoritarian pedagogue. The text unveils
biographical elements of life and thought, revealing moments of his academic career such as his experience in
Bern, his contact with Fichte in Jena, his professorship in Königsberg, and his visits to the University of Göttingen,
as well as personal elements such as the presence of music and its connection with dierent determining cha-
racters in his life. The intention is to bring the reader closer to aspects of Herbarts life that reveal all his eort and
dedication in the systematization and investigation of pedagogy and the defense of freedom of thought. The
text revisits important sources of research such as Walter Asmus‘ biography, which brings detailed elements of
the thinker‘s life. The text intends to contribute to the eorts that since the 1960s have sought to revise Herbarts
philosophical and pedagogical ideas.
Keywords: biography; Herbart; pedagogy; teacher training.
Oldenburg: cidade natal de Herbart
Sobre Johann Friedrich Herbart (1776-1844), poder-se-ia dizer o mesmo que
Schiller sobre Wallenstein2: “Confundido entre ódio e admiração por seus partidá-
rios, sua imagem flutua na história” (SCHILLER, 2004, p. 12). Pode-se dizer que
certa rejeição a suas ideias se baseia na simples confusão entre o próprio Herbart
e o modo como os sucessores o representaram. É o caso dos herbartianos que de-
rivaram de sua obra os rígidos estágios formais de ensino, provocando posições
anti-herbartianas ao fracasso do próprio movimento no início do século XX. Uma
segunda acusação dos pedagogos reformistas, liderados por professores como o pe-
dagogo Ziller em Leipzig ou Rein em Jena, defendia que a pedagogia herbartiana
promovia uma educação acrítica. No entanto, em 1972, o pedagogo Jörg Ruhloff
evidenciou o equivocado núcleo das objecções às ideias pedagógicas de Johann Frie-
drich Herbart, afirmando que:
É quase um caso de sarcasmo histórico, que justamente o teórico, aquele que desde o prin-
cípio lançou dúvidas sobre o potencial educacional das escolas públicas, foi o encosto por
um bom meio século para os mestre-escola alemães. Esse crítico esqueleto escolar, deve
ser retirado do sistema pedagógico de Herbart, para que o cadáver metodológico de ensino
formal [os passos formais] pudesse efetivar a escola como instrumento de poder do Estado
(RUHLOFF, 1982, p. 66).
A ironia da história é que reformadores educacionais, em meio às tensões pro-
vocadas pelos embates com os herbartianos, não perceberam que estavam realmen-
te lutando com Herbart contra seus alunos, que tinham formalizado suas opiniões
e muitas vezes as viraram ao avesso. É nesse sentido que o presente ensaio tem
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por objetivo, sob todos os escombros históricos, trazer de volta à luz, na medida do
possível, a pessoa de Johann Friedrich Herbart e suas ideias pedagógicas.
O monumento no parque em frente ao Herbartgymnasum3 encarna assim uma
imagem de Herbart questionável. A viúva de 85 anos, Mary Jane Herbart, escreveu
de Königsberg ao diretor Strackerjan, afirmando que a imagem de Herbart era
demasiada séria e que sentia a ausência da simpatia que era própria do pensador
(STRACKERJAN, 1880). A impressão é que lhe foi atribuída uma feição carran-
cuda, transformando Herbart numa espécie de imperativo categórico ambulante,
imagem repetida insistentemente por vários autores infelizmente ainda hoje. Esse
não deve ser o lugar de um clássico, um dos maiores clássicos da pedagogia. A
afirmação de que Herbart era praticamente um “imperativo categórico ambulan-
te” encontra um contraponto na afirmação de que “[…] ele era muito receptivo à
música, sem que esta contradição se refletisse no todo. Herbart não era alguém
que só tocava partituras perfeitamente, mas, como veremos mais tarde, compôs e
improvisou livremente no piano” (ASMUS, 1968, p. 35).
Seu avô, Michael Herbart, possuía particularidades e valores fundamentais
que reencontraremos em seu neto. Michael Herbart, nascido em 1703 em Ostheim,
na Francônia, depois dos seus últimos estudos em Wittenberg e Helmstedt, e Vi-
ce-Reitor em Delmenhorst, em dezembro de 1734, assume como Reitor da Escola
Latina em Oldenburg. Michael Herbart é enérgico e aberto ao que é novo, esforçan-
do-se, dentro do quadro estreito que lhe era dado, para estabilizar e desenvolver
ainda mais a escola latina, interna e externamente. Após a morte de Michael Her-
bart em 1768, o então conhecido médico e escritor Dr. Gramberg escreveu: “Pode-se
dizer com certeza que o verdadeiro iluminismo em Oldenburg é, em grande parte,
sua obra” (apud ASMUS, 1968, p. 35).
O pai de Herbart, Thomas Gerhard, era praticamente o oposto do seu avô, um
jurista egocêntrico e seco que, como membro do Conselho Jurídico e Consistório,
se dedicou exclusivamente às suas funções administrativas. O fato de o casamento
com a filha de médico Luzia Margareta Schütte não durar por muito tempo não foi
surpreendente, dado o antagonismo dos dois temperamentos. Ela é descrita como
inteligente, interessada pela literatura contemporânea, espirituosa e jovial, en-
quanto o marido se enterrava no trabalho e frequentava o clube da cidade. Um ano
após o casamento dos seus pais, Johann Friedrich Herbart nasceu, em 4 de maio
de 1776, em Langenstraße 86, a casa dos seus avós maternos. Precocemente, a mu-
sicalidade se manifestava e, ainda na infância, ele despertava como um habilidoso
dançarino. Herbart escreveu em retrospectiva de sua juventude: “Gritar, saltar,
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cantar e dançar eram a minha melhor vida até aos 14 anos de idade” (H16, p. 96).4
Já aos oito anos, aprendeu violino, violoncelo, harpa e piano simultaneamente, e
aos 11 anos já dava pequenos concertos.5
Em 1788, o jovem Johann Friedrich, de 12 anos, entrou na escola secundária
de cinco anos de latim, que se tornou escola ginasial, em 1792. Como um gradua-
do do que era então o seminário filológico mais progressista da Universidade de
Göttingen e um filantropo entusiasta, o Reitor Manso tinha lutado por reformas
contra a ignorância da maioria do Consistório, como mais alta autoridade esco-
lar. Só quando Esdras Mutzenbecher assumiu a liderança do Consistório é que
ele conseguiu implementar reformas há muito esperadas, como o princípio do pro-
fessorado por áreas e cursos de dois anos para as turmas do ensino superior. A
única diferença era que os professores das disciplinas naquela época eram mais ou
menos talentosos candidatos de teologia que estavam esperando por um escritório
paroquial. Herbart, mais tarde, criticou o ensino como muito pouco planejado e não
suficientemente estimulante na filosofia.
Um olhar sobre a distribuição da carga horária por disciplinas mostra a pre-
dominância das línguas antigas: onze horas de latim, quatro horas de grego contra
duas horas de alemão, nenhuma matemática e apenas duas horas de ciências da
natureza, cujo conteúdo corresponde às aulas de biologia da escola secundária de
hoje. Duas horas de inglês foram a única concessão à modernidade, sendo que o co-
nhecimento do inglês ainda se tornaria importante para Herbart quando, dezenove
anos depois, se casaria com a inglesa Mary Jane Drakenote.
Já na escola, Herbart se encontrou com a filosofia de Immanuel Kant, que foi
determinante em toda a sua vida e no seu pensamento futuro, sobretudo ao assu-
mir a cátedra de Kant em Königsberg, em 1809. E nesse processo, de acordo com
a tradição introduzida pelo seu avô, no dia 4 de abril de 1794, Herbart concluiria
o ensino médio com um discurso em latim na prefeitura da cidade, reportando-se
a Cícero e ao pensamento de Kant sobre o bem supremo e o princípio da filosofia
prática. Soube-se que o jovem Herbart tinha deixado a escola primária com um
poderoso discurso latino sob os aplausos de todos. Como ele tinha pouco em comum
com o pai, o conselheiro e diretor do governo de Oldenburg, Gerhard Anton von
Halem, era o amigo paterno do jovem Johann Friedrich Herbart, comprovado por
uma extensa correspondência.
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Estudos em Jena entre 1794 e 1797
Escolher Jena como um lugar para estudar revela o desejo de Herbart ficar o
mais longe possível de Oldenburg e da miséria doméstica de seus pais. Era desejo
principalmente da mãe de Herbart que este estudasse direito, mas foi atraído pela
filosofia, tendo em Fichte sua referência em Jena. Fichte logo tomou conhecimento
de Herbart através da mediação do historiador de Oldenburg, Woltmann, e o con-
vidou para tomar parte à sua mesa de almoços.
A mãe de Herbart não deixou seu filho sair de seu domínio: depois de ter
vendido todos os móveis por causa de seu divórcio iminente, partiu incógnita para
Jena e, fingindo ser a irmã de seu filho, tomou parte de diversas atividades, como
ela mesma relatou em uma de suas cartas ao seu amante: “De minha parte, eu
teria sido capaz de fazer algo assim [vivência estudantil] já a vinte anos atrás e,
quando eu ando pela cidade à noite com um manto azul e chapéu redondo, sou uma
estudante tão boa quanto qualquer um deles” (H16, p. 30).
Como a Sra. Herbart era bem instruída na literatura contemporânea, ela se
tornou a interlocutora da Sra. Fichte e uma espécie de representante literária en-
tre as nobres damas. Embora seus contemporâneos enfatizem a suposta relação
de proximidade entre mãe e filho, sua constrangedora evasão de Oldenburg se
desenhava como uma denúncia contra ela.
Como aluno destacado de Fichte, Herbart tornou-se progressivamente um crí-
tico de seu mestre sob a influência das posições de Kant. Decisiva foi a entrada de
Herbart na Associação dos Homens Livres (Bund freier Männer), uma associação
de estudantes e professores que se reuniam para palestras e subsequentes rodadas
de discussão. Aqui, Herbart conheceu pessoas das quais se tornaria amigo para
toda a vida, especialmente o posterior prefeito de Bremen, Smidt. Herbart era mui-
to procurado como pensador independente, professor de poesia e pianista.
A partir da chegada de seu piano de Oldenburg no outono de 1797, a música
voltou a ter um papel relevante em sua vida, de modo que ele foi logo considerado o
melhor pianista de Jena, rendendo convites para se apresentar em eventos sociais,
tocando sonatas duplas de quatro mãos com a bela esposa do jurista Hufeland.
Aqui, ele também começou suas primeiras composições musicais para peças como
A dignidade das mulheres (Die Würde der Frauen) de Schiller e poemas de seus
amigos. Infelizmente, a maioria dessas composições foram perdidas.
Para se fortalecer fisicamente, Herbart fez aulas de esgrima e principalmente
aulas de equitação. O instrutor de equitação elogiou-o como um aluno esperanço-
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so, tornando as cavalgadas em Königsberg quase diárias. Uma testemunha ocular
relata:
Quando chegamos perto do portão, encontramos um senhor, que estava prestes a ir para
o campo aberto num belo corcel. O mesmo deve ter atraído a atenção de cada pessoa que
encontrara, não só pela sua aparência elegante, mas também pela sua atitude nobre, es-
pecialmente pelo seu olho iluminado e espirituoso. Depois de nos ter saudado, perguntei a
Lettau: Meu filho, conheces o senhor que acaba de nos saudar ainda que não pessoalmente?
Seu nome, porém, você já deve ter ouvido. Ele se chama Herbart. Ele é um dos nossos mes-
tres da edificação pedagógica (ASMUS, 1967, p. 29).
Embora ainda não tivesse feito muitos progressos nesse sentido em Jena, ele
deveria lançar as bases de sua pedagogia na próxima estação da Suíça.
Preceptor em Berna (1797 – 1800)
Através de um amigo suíço, foi oferecido a Herbart um lugar como preceptor
dos filhos de Altlandvogt Steiger. A carta de candidatura de Herbart é esclarece-
dora:
[…] espero assim poder ensiná-los [os três filhos] geografia, história, física, matemática,
sobre o estilo alemão, língua latina e grego. Seria um grande prazer para mim, acrescentar
algumas lições musicais, pois tenho estado envolvido desde a minha juventude com o piano,
o violino e o baixo contínuo (H16, p. 48).
Também se torna evidente a sua preocupação pedagógica, assumindo a não
imposição autoritária aos alunos, mas em ajudá-los a desenvolver as suas capa-
cidades a partir de si mesmos, quando ele escreve: “Seria de minha maior alegria
poder tornar-me algo mais do que apenas um professor para eles” (H16, p. 48).
Herbart colocou como condição para além do ensino, a realização de experiências e
exercícios junto à natureza com seus pupilos, como levantamento geométrico nas
montanhas, motivo que levou o pedagogo americano Kilpatrik a se referir em 1935,
com razão, a Herbart, em seu ensino por projetos.
Por ocasião do 150º aniversário do Herbartgymnasium em 1994, o prof. Klafki
descreveu extensivamente as abordagens pedagógicas de Herbart a partir de seus
relatos de preceptor, que constituíram a base para a Pedagogia Geral de 1806. Po-
demos apenas mencionar brevemente alguns pensamentos: (1) o ensino educativo
deve respeitar a individualidade do aluno e ajudá-lo a pensar e julgar de forma
independente, como escreve Herbart já no primeiro relatório, afirmando que a edu-
cação seria tirania se não desejasse conduzir o sujeito para a liberdade; esta não
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A vida e a obra de Johann Friedrich Herbart numa nova perspectiva
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foi a expressão de excentricidade de um jovem de 21 anos, mas permaneceria uma
constante em seu pensamento pedagógico; (2) a experimentação deve levar para
além do âmbito do ensino, ocorrendo em atividades práticas e ações autorresponsá-
veis; palavra-chave: projeto; (3) o objetivo de toda a educação deve ser desenvolver
o interesse múltiplo do aluno ao longo da sua vida; (4) o fundamento de todo ensino
é o tato pedagógico do educador e, por isso, toda ação pedagógica deve se fundar
em confiança, a partir da compreensão da força e da fragilidade de cada educando.
Os relatos da experiência de Herbart como preceptor na família Steiger são
bastante autocríticos, quando, por exemplo, reconhece suas dificuldades e falhas
com o mais velho, Ludwig, de 14 anos, que já estava na puberdade. Com o mais
novo, Karl, de 10 anos, ele teve muito mais sucesso, sendo que ambos ficaram
ligados por uma amizade que duraria por toda a vida. Karl Steiger escreveu sobre
aquela época:
Ele também nos ensinou química usando um pequeno aparelho. Herbart não era apenas
um professor, mas muito mais um educador, segundo o método de Sócrates, à medida que
não treinava, mas prioritariamente despertava a inteligência do educando e assim permi-
tia que ele se desenvolvesse por si mesmo (H19, p. 92).
Outra experiência importante para Herbart refere-se às visitas a Pestalozzi
em Burgdorf, que se refletiram na sua primeira publicação – ABC da Intuição de
Pestalozzi apresentada em 1802 em Göttingen. Em razão do iminente divórcio, a
mãe de Herbart chamou seu filho de volta a Oldenburg em abril de 1800. Herbart
foi brevemente em Oldenburg pela última vez. O casamento infeliz de seus pais
sobrecarregara Herbart durante sua vida e, assim, Oldenburg fora arruinada para
ele. Após o divórcio, a Sra. Herbart foi para Paris com a filha adotiva Antonie Her-
bart e o médico pessoal de Schiller, Dr. Harbauer, que ela conheceu em Jena. Lá,
ela morreu no ano seguinte, em 1802.
Preparação para uma carreira acadêmica em Bremen entre 1800 e 1802
No período seguinte, após sua curta visita a Oldenburg em 1800, Herbart
ficou com a família do senador Smidt e, mais tarde, do prefeito de Bremen. Aqui,
ele se preparou para seu doutorado e habilitação em Göttingen, escrevendo seus
primeiros escritos educacionais. Em 1801, redigiu ideias para um currículo pe-
dagógico para o Domgymnasium de Bremen, com foco nos estudos superiores em
matemática. Também com base nesse currículo, ensinou matemática aos princi-
piantes em 1801. O manuscrito original foi doado pelo filho de Sr. Smidt em 1876
862 ESPAÇO PEDAGÓGICO
Hans-Jürgen Lorenz
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à então escola primária para a inauguração do monumento no centenário de Her-
bart. Assim, a decisiva reforma da escola de Bremen de 1817, para uma instituição
dupla composta por uma escola primária (Gymnasium) e uma escola secundária
(Realschule), remonta a Herbart.
Os contemporâneos de Bremen descreveram Herbart da seguinte forma:
Cabelo loiro encaracolado até ao ombro, emoldurando um rosto alongado, finamente dese-
nhado, sério, de aspecto atraente, com grandes olhos azuis e espirituosos: elegante, formal,
no início quase dolorosamente reservado! Mas se ele deixar olhar para o seu interior, então
ele pode ser muito amável. Amigo no contato com mulheres com as quais não lhe faltava
senso superior [...] ele desfrutava com elas de uma popularidade extraordinária. Mestre
no piano, ele tinha o dom de contar através dos tons daquilo que movia seu ser interior
(SMIDT, 1913, não paginado).
Isso depõe contra a repetida afirmação de que Herbart era um racionalista
emocionalmente frio, porque – horrivelmente dito – introduziu a matemática na
psicologia. Herbart financiou a sua estadia em Bremen com aulas particulares de
grego, latim e matemática superior. Assim expressa um incidente:
Estava com a cabeça cheia de raízes e secções cônicas; então meus jovens mestres, acabara
de me deixar aquela que já havia vindo nas sete manhãs anteriores - Então veio a menina
Castendyk [uma criada da Irmã Smidts] e deu-me um pedaço do jornal semanal de Bremer
e disse: ‘O senhor poderia gentilmente ler o encaminhamento da senhora doutora’ (N´Em-
pfehlung von Fro Doctrin, un of se nich so goht sin wullen, un lesen dat mal!). Eu li: ‘Solici-
ta-se gentilmente ao Sr. Herbart que me mostre o seu alojamento ou, se ele já não estiver
aqui, pede-se aos seus conhecidos que o façam porque algo me foi enviado de Basileia para
ele. Von Schmidt, residente em Faulengasse (H16, p. 233).
Para a revista de Oldenburger de Halems Irene, Herbart escreveu um extenso
artigo: Sobre a mais nova obra de Pestalozzi: Como Gertrud ensinou seus filhos,
no qual refletiu sobre as suas experiências com Pestalozzi em Burgdorf. Dois anos
mais tarde, em Göttingen, publicou a já citada versão ampliada sob o título ABC
da intuição de Pestalozzi.
Herbart preparou-se com determinação para o seu doutoramento e habilitação
em Göttingen. Ele foi para lá em maio de 1802, com três jovens calouros confiados
a ele. Herbart escreveu a um amigo: “O que estou procurando aqui em Göttingen?
Na ausência da minha posição de professor perdida em Berna, estou à procura de
um púlpito!6” (H16, p. 254). Herbart começou os trabalhos de defesa decididamente
em 15 de outubro de 1802, às quatro da tarde, realizando o exame principal para o
doutoramento. Herbart deve ter impressionado os examinadores, que o admitiram
à disputa de doutorado e habilitação. Já no dia 22 de outubro, ele defendeu suas
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A vida e a obra de Johann Friedrich Herbart numa nova perspectiva
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10 teses em uma disputa de duas horas e, no dia seguinte, defendeu 12 teses da
habilitação. Hoje, algo semelhante a isso dura cerca de 8 anos ou mais.
Nessas teses, ficavam evidentes suas ideias pedagógicas, assim como na tese
10: “A arte da educação não se baseia apenas na experiência” (H1, p. 278) (Ars
paedagogica non experientia sola nititur). Ou seja, a experiência sozinha não é
suficiente como a sola fide de Lutero, mas compõe o ensino. Herbart principiava
sempre pela sua experiência prática, mas também manteve a estreita ligação entre
prática e teoria, que, para ele, levava à reflexão. Ele próprio sempre esteve envol-
vido com o ensino até 1833. Escreveu contra a experiência irrefletida da pedagogia:
“um professor nonagenário tem apenas a experiência de seus noventa anos de pro-
fissão vividos” (H2, p. 7).
A tese 11 mostra seu conceito amplo e abrangente de educação: “A poesia e
a matemática são as principais forças da educação das crianças” (In liberorum
educatione Poeseos et Matheseos maxima vis est) (H1, p. 278). No entanto, o termo
grego poeseos, que Herbart usou aqui, inclui não só a literatura, mas todos os as-
suntos linguísticos, abrangendo a história e, por fim, o termo matheseos ao lado da
matemática e das ciências naturais.
A 12ª tese se opõe ao conhecimento dos manuais escolares que, na sua época,
eram muito difundidos nas antigas línguas e, em seu lugar, exige a leitura de tex-
tos integrais (H1, p. 278).
Docente em Göttinger entre 1802 e 1808
No semestre de inverno de 1802/1803, o quadro negro de avisos anuncia os
horários do Dr. Herbart: “Pedagogia após ditados com a adição de uma hora de
convívio às quartas e sextas-feiras, às 5 horas da tarde” (H1, p. LXVI). O jovem con-
ferencista logo foi notado: falava livremente, pedia a seus ouvintes para não tomar
notas, mas para pensar junto, e que depois ele ditaria um resumo, convidando-os
para o acompanharem à sua casa para uma hora de convivência. “Além disso, para
aqueles senhores que gostariam de manter uma conversa mais longa sobre o tema
apresentado, podem me encontrar no meu apartamento na casa do Padre Fritsch à
tardinha das 16:30 às 18 horas” (H1, p. 289). Herbart manteve isso mesmo quanto
lia sobre filosofia e logo reuniu um círculo de estudantes à sua volta, que se encon-
travam três ou quatro vezes semanalmente com ele como uma sociedade literária
e, juntos, liam inclusive literatura alemã contemporânea.
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Em 1804, ele publicou um pequeno texto sob o título: A representação estética
do mundo como ocupação principal da educação (H1, p. 259-274). Um ensaio enge-
nhoso e que ecoou pelos temas básicos do seu pensamento pedagógico:
Fazer com que o aluno se encontre como escolhendo o bem, como rejeitando o mal: isto
ou nada é a formação do caráter! […]. Nem toda obediência à primeira ordem é moral. O
obediente deve ter examinado, escolhido, honrado o comando – isto é, ele mesmo deve ter
elegido o comando. A moral ordena a si mesma (H1, p. 261-262).
Aqui, fala claramente um representante da Aufklärung, que assumindo o sen-
tido de autonomia de Kant, da autodeterminação, também o exige do aluno. Para
além disso, o potencial de possibilidades da estética para a educação até hoje ainda
não foi suficientemente explorado. Herbart chamou a atenção em Heidelberg e
foi-lhe oferecida uma cátedra de filosofia em 1804. A Universidade de Göttingen
reagiu rapidamente e ofereceu ao doutor em Filosofia uma cátedra e um aumento
de salário em consideração à sua reconhecida docência e aos seus talentos. Herbart
ficou em Göttingen. Pouco depois, recebeu uma chamada para Landshut, que tam-
bém rejeitou.
No semestre de inverno 1805/1806, o professor Herbart realizava cinco horas
de leituras de introdução à filosofia, à ética e à pedagogia. Durante esse período,
Herbart escreveu seu mais importante trabalho: A pedagogia geral derivada do
propósito da educação (Die allgemeine Pädagogik aus dem Zweck der Erziehung
abgeleitet) (H2, p. 1-139). Esta foi a primeira apresentação da pedagogia como uma
ciência específica, pois, até então, ela sempre fora considerada como apêndice da fi-
losofia prática. O ano 1806 seria fatídico para a Alemanha com a ocupação francesa,
sendo que Göttingen se tornou parte do reino da Westfália sob o reinado de König
Lustig, Jerome7. A universidade foi subordinada à prefeitura do Departamento de
Leine8, procurando manter sua independência sob o mote “a cidade pertence ao Rei,
a Universidade à Europa” (die Stadt gehört dem König, die Universität Europa).
Nessa época sombria, Herbart mandou imprimir a sua Filosofia prática geral
(H2, p. 329-458) e voltou-se para a composição de uma sonata, que foi impressa em
1808 em Leipzig, reeditada e executada mais tarde, em Oldenburg, para a celebra-
ção da inauguração do memorial de Herbart, em 3 de maio de 1876. Em meio a isso,
Herbart tinha fundado uma Sociedade Pedagógica, na qual reunia os seus alunos
mais talentosos. A atmosfera foi descrita pelo posterior supervisor pedagógico da
cidade de Hannover, Kohlrausch:
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No Inverno de 1808/09 eu ouvi um colega que estava com Herbart sobre pedagogia e entrei
para uma sociedade pedagógica fundada por ele. Nesta se fazia uma livre discussão sobre
os pensamentos estimulados pelas palestras pedagógicas sobre o ensino e a educação [...]
e nós desenvolvemos nossos próprios pontos de vista em ensaios, que Herbart mandara
imprimir junto com um prefácio seu (ASMUS, 1968, p. 264).
Na cátedra de Kant em Königsberg entre 1809 e 1833
Tanto quanto era gratificante para Herbart ver ressoar suas ideias entre seus
alunos em Göttingen, tanto menos gratificantes eram as condições políticas no Rei-
no de Westfália sob o luxuoso König Lustig. Em 21 de outubro de 1808, Herbart
recebeu uma chamada para assumir a cátedra de Kant. Ele foi indicado como a
cabeça pensante de notável perspicácia e talento e, por causa de sua Pedagogia ge-
ral, foi considerado capaz para “tomar parte no trabalho de uma profunda reforma
na renovação educacional da Prússia”. Com isso, realiza-se para Herbart um sonho
dos tempos de estudante, como ele escreveu a seu amigo Smidt:
[...] para mim foi de uma sorte inesperada, alcançar aquele lugar que tantas vezes desejei
em sonhos recorrentes enquanto jovem quando estudava as obras do círculo de Königsberg.
Com todo o gosto ocuparei esse posto especial na obrigação em ajudar a preservar a memó-
ria de Kant (H17, p. 28).
Foi exatamente o que Herbart fez em inúmeros discursos para celebrar o ani-
versário de Kant. O quanto Herbart viu a mudança da área da ocupação francesa
para Königsberg, como uma mudança para novas perspectivas, pode ser visto nas
seguintes observações: “Eu preciso de um novo estímulo externo […]. Eu não vou
deixar a Alemanha, mas sim viajar para a Alemanha”. Isso também lhe deu es-
peranças em participar das reformas prussianas: “Estou feliz por servir o rei que
sobreviveu tanto e que ainda tem a coragem de abraçar mudanças tão grandes”
(H17, p. 28).
A viagem de Göttingen a Königsberg durou de meados de março a meados
de abril. Lá, ele chegou a tempo de celebrar o aniversário de Kant em singela so-
lenidade na Casa Alemã, em 22 de abril de 1809. Como a corte prussiana residia
em Königsberg, Herbart foi apresentado à corte, o que resultou em encontros fre-
quentes com o príncipe herdeiro, de quem se tornou agradável companhia no seu
“mais agradável saber”, ao “improvisar engenhosamente ao piano”, apresentando e
explicando seus instrumentos matemáticos e esclarecendo e corrigindo enunciados
(GÜNTHER, 1887, p. 283). Ali, Herbart também encontrou o seu chefe de secção
Wilhelm von Humboldt, que escreveu numa carta a Goethe, que “gostava muito de
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ter nas proximidades o mais recém-nomeado Herbart de Göttingen, do que ler as
resenhas de seus livros de longe” (GEIGER, 1909, p. 205).
Herbart sempre defendeu a combinação de teoria e prática, e por esta razão
se envolveu constantemente com o ensino. Criou um seminário de didática para
professores, com objetivo de desenvolver experiências de ensino prático. Hoje, como
afirma Hentig, isso seria chamado de “escola de laboratório”. O próprio Herbart
descreveu este seminário didático numa carta de 24 de outubro de 1808 ao De-
partamento Cultural Prussiano (Kultusverwaltung), durante as tratativas de seu
chamado para Königsberg, como relata Ziller (1871, p. 179):
Gradualmente, os professores seriam formados de maneira a que os seus métodos tivessem
de ser aperfeiçoados através da observação e da partilha mútua de suas experiências. […]
então talvez uma pequena escola experimental destas, pois penso que seria a preparação
mais adequada para planos futuros em maior escala. É uma afirmação de Kant: Primeiro
as escolas experimentais, depois as escolas normais!
Durante muitos anos, Herbart foi também membro e, por vezes, diretor da
“deputação científica”, uma comissão de reforma do Ministério da Cultura, até a
sua dissolução em 1816. Também presidiu a comissão de exame científico, foi mem-
bro da comissão de exame de conclusão de curso secundário dos ginasiais da Prús-
sia Oriental, conselheiro escolar com assento e voto no colegiado escolar provincial,
que era a maior autoridade escolar da Prússia Oriental. Além desses trabalhos
de gestão, também havia ainda os cargos de honra das comissões acadêmicas de
Decano, Reitor, Senador, destacando-se como estimado orador acadêmico.
Através dos seus votos em separado como Reitor e Senador da Universidade
de Königsberg, a sua defesa da liberdade de ensino foi o fio condutor, por exemplo,
quando toma posição contra uma decisão do ministério de restringir a liberdade de
escolha dos estudantes da Faculdade de Direito ou contra a substituição do curador
da universidade por um chanceler, que teria se tornado o supervisor dos professo-
res. Encontraremos também esta linha novamente em seu posicionamento sobre os
Sete de Göttingen, em 1837.
Em meio a tudo isso, o jovem professor conheceu em sua pensão a jovem in-
glesa Mary Jane Drake. Ela tinha perdido sua mãe e sua madrasta cedo, e seu pai,
James Lawrence Drake, primeiro comerciante de grãos da região de Memel, por
causa da barreira continental, retornou à Inglaterra. Em 13 de janeiro de 1811, a
cerimônia de casamento teve lugar em Memel. Em 1819, o casal pôde finalmente
se mudar para uma casa espaçosa na Königstraße, onde também proferiu as suas
palestras e onde a sua mulher cuidava dos dez pensionistas do seu seminário di-
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dático. Em 1828, o casal Herbart acolheu o filho de seu amigo matemático Stiemer
– Otto, portador de deficiência mental e que ficara órfão. A esposa de Herbart
desempenhou um papel especial na criação de Otto Stiemer.
Já em Göttingen, o estilo livre das palestras de Herbart havia sido elogiado.
O que foi aqui elogiado positivamente sobre o tipo de palestra também se aplicou
ao tipo de explicações de termos e experiências importantes. Incluímos uma breve
explicação na seguinte descrição que se refere à Psicologia como ciência fundada
novamente a partir da experiência, da metafísica e da matemática (Psychologie
als Wissenschaft, neu gegründet auf Erfahrung, Metaphysik und Mathematik).
Enquanto no estrangeiro – por exemplo, na Áustria, na Rússia e nos EUA –, este
trabalho foi e é valorizado de forma muito diferente, na Alemanha, deparou-se
com uma falta de compreensão. Há uma razão muito simples para isso, porque na
Alemanha foram principalmente os estudiosos de humanidades que lidaram com o
pensamento de Herbart, cujo conhecimento matemático e, sobretudo, científico da
antiga escola de gramática do século XIX era bastante pobre.
Até mesmo o letrado Wilhelm Grimm destacou, em carta datada de 3 de de-
zembro de 1833 ao alemão Lachmann em Berlim, o seguinte:
Esta bela reviravolta me lembra que Herbart [...] quis apresentar a filosofia em fórmulas
matemáticas, que muito agrada aos estudantes. Eu acho que é porque eles não o entendem.
Se eu pudesse confiar em meus olhos, eu teria colocado sua psicologia junto com a álgebra
em nossa biblioteca (GRIMM; GRIMM; LACHMANN, 1927, p. 868).
Lachmann, defendendo a psicologia matemática de Herbart contra o hege-
lianismo então prevalecente, respondeu ironicamente: “Entretanto, recomendo-o
a vocês e informo que o jovem Brandis (filho do professor de filosofia de Bonn) se
orgulha de Herbart. É preciso considerar que é sempre melhor com ele do que com
a hegemonia que ainda estamos trabalhando” (GRIMM; GRIMM; LACHMANN,
1927, p. 872).
Isso também pode ser visto no livro do diretor do seminário de Oldenburg
em 1908, Dr. Ostermann, que intitulou seu trabalho de forma pomposa, como Os
principais erros da psicologia de Herbart (Die hauptsächlichen Irrtümer der Her-
bartschen Psychologie), assumindo uma posição idealista de Herbart – totalmente
absurda –, tal como a recusa da liberdade da vontade e a consciência uniforme,
não entendendo, portanto, a concepção nem a preocupação de Herbart. Sobre esses
enunciados, o próprio Herbart já tinha se antecipado:
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Quem disser que não posso pensar em uma vontade para mim, que já não seja livre como
tal, deve ser respondido: Guardai a liberdade, porque no sentido em que tomais esta pala-
vra, ela está realmente disponível. A alma humana não é um teatro de fantoches, nossos
desejos e resoluções não são marionetes, nenhum malabarista está por trás delas, mas nos-
sa verdadeira vida está em nossa vontade, e esta vida não tem sua regra fora de si mesma,
mas dentro de si mesma. Ela tem sua própria regra puramente espiritual, de modo algum,
emprestada da regra do mundo do corpo; mas esta regra é certa e firme nele, e por causa
desta firme determinação ela ainda tem mais semelhança com as leis de impulso e pressão
que com a admiração de uma liberdade supostamente incompreensível (H5, p. 91).
Pesquisadores americanos de tempos mais recentes avaliam que a psicologia
de Herbart provocou uma ruptura fundamental em direção a novas descobertas.
Travers (1983, p. 52) comentou em 1983, em seu livro Como a pesquisa mudou as
escolas americanas (How research has changed American schools):
Herbart abriu as portas para a nossa moderna concepção de educação ao reconhecer que
a informação flui através dos sentidos, levando à formação de um sistema interligado de
conhecimento no indivíduo. [...]. Herbart iniciou este caminho de pensamento, que levou
a experiências sobre a aquisição de conhecimento através da experiência sensual e que
eventualmente levou ao programa de educação sensorial de Maria Montessori (1870-1952).
A Psicologia Matemática pressupõe a ideia de que qualquer coisa pode ser medida, e Her-
bart escreveu sobre a medição da atenção e a percepção de que uma ideia deve ter poder
suficiente para ultrapassar o limiar ou limite para entrar na consciência.
Freud manda lembranças! E, de fato, Freud já demonstrou ter conhecimento
da psicologia de Herbart, como mostra Lindner em Livro didático de psicologia
empírica de acordo com o método genético (Lehrbuch der empirischen Psychologie
nach genetischer Methode) (LINDNER, 1858). O livro Convite ao estudo da filoso-
fia com consideração das necessidades das escolas segundarias (Einleitung in das
Studium der Philosophie mit Rücksicht auf das Bedürfnis der Gymnasien) (LIND-
NER, 1866) também se baseou na filosofia de Herbart. Ambos os trabalhos eram
de leitura obrigatória para os iniciantes na Áustria9.
Travers (1983, p. 52) afirmou ainda:
Embora a ideia de que o conhecimento é ordenado não fosse nova, a discussão de Herbart
sobre como a experiência sensorial é alterada, inserida e usada era inteiramente nova.
Herbart adotou o termo percepção de Leibniz para descrever como novas experiências sen-
soriais são processadas pelo conhecimento. Ele lançou assim as bases para uma psicologia
moderna da aprendizagem. A dificuldade de Herbart reside na falta de dados que lhe per-
mitissem desenvolver uma verdadeira psicologia matemática. No entanto, Herbart tinha
uma nova ideia importante que deu frutos após a sua morte.
Após este excurso sobre a psicologia de Herbart, voltamos à exposição metódi-
ca sobre Herbart a partir da caracterização de uma testemunha, como segue:
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Assim como Herbart, além da filosofia entre as ciências, era particularmente dedicado à mate-
mática e, entre as artes, especialmente à música, e procurou promover-se em ambas, além de
sua pesquisa produtiva, assim também a matemática e a música passaram inequivocamente
para o caráter de sua filosofia, na verdade para o modo como ele deduzia - abduzia - especial-
mente como ele costumava falar. Herbart sabia, enquanto recitava, sem giz, meramente com
palavras sonoramente brilhantes, como desenhar as figuras geométricas mais realistas no ar,
por assim dizer, com seu ABC da intuição, e guiar o ouvinte através de tais construções de
forma excelente para a compreensão das evidências seguintes. Herbart aumentou ainda mais
essa clareza e objetificação ao tratar os conceitos metafísicos, mas especialmente as ideias
psicológicas individuais com sua pressão e contrapressão, com sua inibição e aceleração, como
séries de tons que seguem as leis da matemática em suas relações precisamente calculáveis e,
podem ser rastreadas até elas, através de cálculos completos (ASMUS, 1967, p. 22).
O dr. Voigdt chamou a atenção para outro aspecto: o humor do Herbart. Uma
questão que, na minha opinião, tem recebido pouca atenção até agora. Relata dr.
Voigdt (apud ASMUS, 1967, p. 23): “[...] ele introduziu repetidamente a piada nos
experimentos, mostrando repetidamente o engano dos sentidos em experimentar.
Este desafio gracioso deu o refresco necessário para a inevitável secura da lógica”.
Ele também era capaz de desenhar seus oponentes idealistas, acima de tudo da
escola de Hegel, a quem ele ironicamente chamou de os “conceitos absolutos”, que
erroneamente o acusaram de pensamento mecanicista, determinista e, assim, de
negar a liberdade da vontade. Assim, ele escreveu uma resposta a uma crítica
sobre a questão de saber se o termo chama era um conceito a priori dado ou um
conceito derivado da experiência:
Bem, meu Senhor, tente ver a chama mais larga no topo do que no fundo, olhe a vela como
brilhante, a chama como escura, segure seu dedo na chama, e agora, pela liberdade do seu
reflexo, deixe a característica do calor ser removida do seu conceito de chama, enquanto
nós pessoas não livres, onde vemos a luz da chama, temos cuidado com o seu calor (apud
ASMUS, 1967, p. 24).
As consequências da restauração na Prússia
Em 1816, a euforia dos anos de reforma tinha desaparecido. A restauração
continuou no mesmo ano com a dissolução das deputações científicas, depois que já
havia sido iniciada a transferência da supervisão da escola sobre as Consistórias.
Sob a bandeira do trono e do altar, o governo prussiano ordenou que as reformas
parassem, em marcha para o Estado autoritário.
Em 1818, Herbart fez uma avaliação extremamente negativa das possibilida-
des de uma reforma escolar radical no seu Relatório sobre as classes escolares: “A
minha visão da atual agitação literária, política e eclesiástica não me permite espe-
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rar, nos nossos dias, uma verdadeira [isto é, para Herbart, iluminada] e duradoura
reforma do ensino público” (H4, p. 521).
Quanta razão Herbart manteve até 26 de novembro de 1900, isso ficou claro
quando olhamos a história do Herbartgymnasium. Os diretores das escolas secun-
dárias prussianas evidenciaram isso claramente em sua petição de 1886, na qual
foi constatado que a Prússia não estava atrasada apenas em relação aos outros
estados do Reich, mas era também o país menos desenvolvido da Europa Ocidental
em educação realista, ou seja, científica e continuada. Há várias razões para esse
atraso no tempo. O conceito de universidade de Humboldt, por muito idealista que
seja, impediu a discussão sobre as possibilidades e as necessidades da educação
e da formação politécnica. E, quando se tornou evidente em Viena, em 1848, que
muitos dos estudantes de tecnologia eram portadores de agitação política e social,
isso fortaleceu a posição dos adversários das chamadas “academias de metalúrgi-
cos”, “centros de espírito materialista” (TREUE, 1984, p. 569).
A decepção de Herbart com a Prússia cresceu quando, em 1831, depois da morte
de Hegel, ele não foi nomeado seu sucessor em Berlim, mas, em seu lugar, um hege-
liano insignificante. Embora eles ainda se adornassem com Kant e Hegel, não havia
lugar na Prússia para uma perspectiva de esclarecimento de fato. A atitude básica
de Herbart de defender a escola tanto do ataque direto do Estado quanto da igreja
não se enquadra mais na política baseada no trono e no altar. Então, em 1833, ele
aceitou uma chamada para Göttingen. No último aniversário de Herbart em Kö-
nigsberg, seu 57º aniversário, em 4 de maio de 1833, quase todo o corpo docente da
universidade apareceu em sua casa, e os estudantes trouxeram-lhe uma procissão
de luzes de lanterna. Herbart convidou seus alunos novamente no final de setembro,
em uma noite descrita em carta por Eduard Simson à sua noiva, que viria a se tornar
professor de direito, primeiro presidente do Reichstag e presidente da corte do Reich:
Eu teria ficado muito satisfeito com a noite se ela não tivesse terminado de uma forma verda-
deiramente tocante para mim. Herbart seguiu o nosso pedido para improvisar ao piano. Co-
meçou silenciosamente, de modo tímido e hesitante, como se fosse uma primeira apresenta-
ção. Com maior consciência e autoconfiança, conduziu e encaminhou para maior sonoridade.
Um salto repentino levou-o à distância, e sentiu-se que era nada menos do que a cadeira de
Kant, a qual ele se assentou. Aqui anos selvagens de guerra passam por ele, mas a ciência se
fortaleceu em suas mãos, e o reconhecimento não falta. No início há dissonâncias silenciosas,
gradualmente multiplicando e enrijecem, por fim suprimindo todos os sons agradáveis, e só
aqui e ali é que o lamento silencioso do grande homem maltratado passa. Por fim, a pers-
pectiva de ser privado destas condições e do seu cumprimento, mas a dor de ser arrancado
de círculos dos quais se sente amado e reverenciado. E finalmente, como um sinal de que o
amor pelo rei cavaleiro não tinha arrefecido apesar de todos os maus-tratos, as harmonias
fundiram-se gradual e surpreendentemente (apud ASMUS, 1967, p. 282).
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Novamente em Göttingen entre 1833 e 1841
Göttingen seria a última estação de sua vida. Herbart encontrou Göttingen
muito diferente de quando a deixara, com muitos de seus antigos colegas aposen-
tados ou falecidos. A filosofia era modesta, de tal modo que um ex-aluno o tinha
avisado sobre essa situação: “O espírito científico dos alunos é ruim, e é muito
provável que a fama de seu nome e o espírito de suas palestras contribuam para a
melhoria gradual. Mas você não deve criar muitas expectativas” (ASMUS, 1967,
p. 282).
Temos uma imagem nítida das condições na Universidade de Göttingen, a
essa altura, do mais tarde Reitor Friedrich de Wiesbaden, como assinala Asmus
(1967, p. 41):
No outono de 1833 eu me mudei para a Universidade de Göttingen, e foi uma sorte para
mim que Herbart tenha começado ao mesmo tempo a ensinar por lá. Comecei os meus estu-
dos com grande entusiasmo pela ciência, mas encontrei as minhas expectativas frustradas
de muitas maneiras. Nomes famosos tinham sido mencionados para mim, e eu imaginava
todos os mestres da ciência com ideais brilhantes, mas logo percebi que os ideais não corres-
pondiam no mínimo à realidade. Agora, dificilmente se pode fazer uma ideia das condições
acadêmicas da época. Os professores só deram palestras no sentido literal da palavra, ou
seja, em salas sem adornos, na maioria das vezes até mesmo impuras, aparecendo em rou-
pas e posturas descuidadas e obviamente não sabiam nada de retórica ou a negligenciaram
ao mais alto grau. Fomos impressionados, eu e meus colegas, pela mais agradável impres-
são a partir da aparição de Herbart. Ele havia montado um auditório com conferências,
que poderia ser chamado de elegante em comparação com todas as salas similares, com
iluminação suficiente e sempre aparecendo no mais fino e impecável terno social. Mas estas
aparências exteriores superiores eram eclipsadas pela sua inteligente palestra e excelente
retórica. Ele não leu de um livreto, nem mesmos nomes e datas, mas falou livremente, tão
fluente e expressivamente, como se todos estes pensamentos cativantes fossem uma inspi-
ração do momento. É costume pensar que a lógica é uma ciência seca - não sem razão - e,
no entanto, Herbart soube apresentá-la de tal forma que seus ouvintes o interromperam
com sinais de grande entusiasmo e aplausos tempestuosos. O seu olhar aguçado e pene-
trante descansava, sem que a leitura o incomodasse, com verdadeira magia no seu público.
A maior vantagem do seu método de ensino, no entanto, foi que ele nunca envolveu seus
pensamentos em palavras obscuras ou abstratas, mas pronunciou-as tão clara e definitiva-
mente que até mesmo os objetos mais difíceis podiam ser apreendidos e lembrados de forma
indelével. Não nos foi permitido reescrever; instigou-nos imediatamente a não o fazer. Não
nos foi permitido copiar; ele imediatamente nos pediu que não o fizéssemos. Mas, para tor-
nar possível a retomada, mandou imprimir um pequeno guia, que incorporava as principais
ideias abordadas em sua palestra, evitando o que nas palestras de outros professores pela
reescrita era mortificante para o espírito.
Esse testemunho de seus últimos anos faz com que o talento pedagógico de
Herbart se destaque sem dúvida com a constância de seu trabalho. Ele não era um
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teórico estranho ao mundo, mas atribuía fundamental importância a uma frutífera
contraposição entre a prática e a teoria. A escola jamais deveria isolá-las, mas, sim,
abri-las para a vida. Assim, sair da escola para a vida e novamente voltar da vida
para a escola.
Herbart não estava apenas interessado em arte, literatura e filosofia, mas
também, por exemplo, nos novos processos de obtenção de açúcar de beterraba,
como se pode ver numa troca de cartas com um proprietário de terras perto de
Göttingen. Na sua filosofia, Herbart foi um dos últimos representantes da filoso-
fia moderna que, como Leibniz e Kant, aderiu à unidade das humanidades e das
ciências naturais. É interessante notar que a filosofia alemã está começando a
descobrir Herbart como um didático e metodologista notável da filosofia, de modo
que o renomado editor de filosofia Felix Meiner Hamburg publicou novamente, em
1993, Lehrbuch zur Einleitung in die Philosophie, de Herbart, como uma introdu-
ção abrangente e completa à filosofia em geral.
Antes de chegar ao fim da sua vida, explicaremos as ideias pedagógicas de
Herbart, que ainda hoje são válidas, através de algumas frases-chave:
(1) A instrução educativa deve continuar a se desenvolver na criança, conec-
tando, selecionando, eventualmente corrigindo e sistematizando as repre-
sentações preexistentes advindas da experiência e da convivência. A edu-
cação deve ajudar o aluno a encontrar-se a si próprio e a desenvolver uma
personalidade autoconsciente.
(2) A educação deve incentivar o aluno através de um sentimento de realiza-
ção. Nesse contexto, deve-se lembrar mais uma vez que Herbart pensou em
projetos práticos como um complemento ao ensino, que ele também tinha
realizado na Suíça, em medições trigonométricas em montanhas e em ex-
perimentos de física e química, e que continuou em seu seminário didático
em Königsberg.
(3) A educação é uma prática que deve ser refletida repetidamente e que não
deve seguir a moda do tempo sem críticas.
(4) O ensino não tem apenas a função de transmitir conhecimento, mas tam-
bém a tarefa de educar para a convivência social, razão pela qual Herbart
sempre falou de instrução educativa. (5) Herbart inventou as chamadas
etapas formais de ensino? A responda é “Não”.
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A vida e a obra de Johann Friedrich Herbart numa nova perspectiva
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Os assim denominados estágios
Os estágios formais de desenvolvimento cognitivo não foram entendidos como
seus sucessores então afirmaram, como um roteiro para desenvolver as aulas, mas
como pontos de orientação para todo o processo de ensino, diferentes também de
acordo com os níveis das classes. Na prática pedagógica, a dialética entre aprofun-
damento (através de novas informações) e reflexão (como a inserção e consolidação
do novo no que já foi aprendido) foi particularmente importante para Herbart. A
aplicação dos níveis formais para cada hora de ensino pelos herbartianos levou
a uma formalização unilateral, contra a qual os reformadores lutam com razão.
Os conteúdos educativos devem desenvolver um interesse múltiplo e equilibrado
entre “poesia e matemática”, com o objetivo de desenvolver um interesse ao longo
da vida, uma abertura intelectual no aluno. “O objetivo da aprendizagem é criar
interesse a partir dela” (H4, p. 521). Em 1948, Hermann Nohl chamou isso de Mu-
dança copernicana na pedagogia.
Já se tornou claro que Herbart, através de suas experiências negativas na
Prússia, defendeu-se contra qualquer interferência política direta do Estado. O
objetivo da educação deve ser o de promover o “esclarecimento múltiplo das men-
tes”, não a unilateralidade de sujeitos treinados. Ele permaneceu um iluminista
durante toda sua vida e, portanto, o desenvolvimento do indivíduo sempre esteve,
para ele, no centro de toda a educação.
O ano de 1837 seria fatídico para Herbart, cujas consequências ofuscaram o
fim de sua vida. Em setembro, apesar de seu estado frágil de saúde, como escreveu
aos seus amigos, Herbart presidiu como decano na faculdade filosófica a celebração
do centenário da Georgia Augusta, com um discurso em latim sobre o “realismo
natural” de seu antecessor, Gottlob Ernst Schulze. Assumira com muita crítica
o departamento: “O que os outros podem medir a seu favor será um momento de
sofrimento para mim”. Isso deveria se concretizar em breve. Aconteceu aquilo que
Herbart chamou mais tarde de A catástrofe de Göttingen.
Como resultado das várias leis de sucessão, a união singular entre Hannover
e Inglaterra foi extinta. Em Hanover, Ernst-August anunciou como um de seus
primeiros atos oficiais novas eleições, mas segundo a Constituição Estadual de
1819, suprimindo praticamente a Constituição de 1833. Sete jovens professores da
Universidade de Göttingen, incluindo os Irmãos Grimm e Dahlmann, os chamados
Sete de Göttinger, protestaram contra este golpe de Estado em nome da univer-
sidade, mas – e isso é importante nesse contexto – sem consultar previamente os
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seus colegas e as comissões acadêmicas. Além disso, Albert Oppermann tinha feito
cópias da sua carta sem o conhecimento dos sete e tinha enviado aos jornais, o que
levou a um escândalo real.
Espera-se que se tenha tornado claro, a partir do que foi dito até agora, que
Herbart não era um sujeito reacionário, nem um oportunista complacente. A mani-
festação dos Sete havia causado uma resistência maciça da universidade mediante
uma decisão majoritária de um protesto esvaziado. Smidt relata a defesa de Her-
bart por ocasião de seu último encontro com ele em maio de 1838:
Em maio de 1838 o vi pela última vez e passei à tarde e à noite junto de Herbart. Na sua
sala de estudo, tive uma hora a sós e confidencial com ele, [...]. O tema da nossa conversa
nessa altura foi principalmente o processo conhecido como os sete professores de Göttingen,
a sua situação e o seu posicionamento na conversa com o rei na sua fortaleza de caça, bem
como sobre tudo o mais. Você sabe o quanto nosso amigo foi repreendido por isso e o que ele
sofreu como resultado. Mas, mesmo que eu tivesse me comportado de forma diferente numa
situação destas, existe apenas um critério individual para a correção do julgamento de cada
indivíduo em situações deste tipo, por tudo o que ele me disse sobre o assunto, a minha ple-
na convicção de que ele não se tornaria infiel a si próprio, mesmo nestas circunstâncias. Ele
teve que considerar a preservação da Universidade com sua eficácia intelectual dependente
da educação da juventude alemã [...] como estando ameaçada (H1, p. XXXXIV).
Se considerarmos novamente a atitude constante que Herbart praticou ao lon-
go da sua vida para preservar a autonomia da educação nas escolas e nas ciências
da universidade em relação ao Estado e às igrejas, a sua atitude é consistente, mes-
mo que se critique a frase: “A política não tem lugar na ciência”, como apolítica e
ingênua. As experiências do nosso século com as múltiplas intervenções de regimes
ditatoriais na liberdade de pesquisa e ensino talvez nos possam fazer compreen-
der que Herbart estava preocupado em preservar a universidade do paternalismo
ideológico estatal.
Cerca de um ano antes da sua morte em 1840, Herbart sentiu uma fraqueza
física e estava ciente de que a sua vida estava lentamente chegando ao fim. Assim,
ele escreveu ao matemático e lógico Drobisch:
Eu também gostaria de me retirar dos corações. Se não fosse pelo trabalho oficial. Talvez
em breve me contente em fazer música com as mãos e os pés, porque agora tenho um pedal
de órgão no meu piano, onde passo o meu tempo – e ficar ocioso é saudável (ZILLER, 1871,
não paginado).
Em 11 de agosto de 1841, ele havia dado suas palestras em plena energia
mental, na noite em que um derrame o atingiu, do qual ele se recuperou, mas, na
manhã de 14 de agosto de 1841, um segundo derrame fatal o atingiu. Herbart foi
enterrado no cemitério de Albani, com uma procissão de lanternas de seus alunos.
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A vida e a obra de Johann Friedrich Herbart numa nova perspectiva
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Dez dias mais tarde, o Oldenburger Zeitung publicou o relatório do Göttinger
Leinezeitung sem comentários:
Göttingen, 14 de agosto: A nossa Georgia Augusta, tão abalada há já alguns anos, ficou
hoje novamente num profundo luto geral pela morte súbita do diretor Herbart, nascido
em Oldenburg. Herbart, o fundador de uma das mais importantes escolas filosóficas dos
últimos tempos, foi grande não só como pensador perspicaz e escritor frutífero, mas tam-
bém como professor acadêmico prático. Portanto, não é apenas a juventude acadêmica, que
sempre escutou com grande aplauso as palestras do falecido que perde, mas também todo
o mundo científico perde infinitamente muito pela morte deste homem (ZILLER, 1871, não
paginado).
Notas
1 Título original: Das leben und werk Johann Friedrich Herbarts (1776-1841) aus neuer sicht. Tradução e
revisão do Dr. Odair Neitzel e do Dr. Claudio Almir Dalbosco.
2 Aqui, referindo-se ao general Albrecht von Wallenstein e à sua trajetória na guerra dos 30 anos, que ins-
pirou a trilogia de Schiller com o mesmo nome.
3 O Herbartgynasium fica localizado na cidade natal de Herbart – Oldenburg. Foi erguido um monumento
em frente à escola em homenagem à passagem do centenário de seu nascimento, em 1876.
4 O autor adota o modo habitual de citação das obras completas de Herbart (1887/1989), abreviando a pró-
pria obra pela letra “H”, seguida do número do volume e da indicação de página. (NT).
5 Ver a carta de Weineke (H16, p. 249), Nadia Moro, 2006 (22). As condições do ambiente escolar da época
eram insuportáveis, mesmo para as crianças mais robustas: classes com até 150 crianças em salas estrei-
tas, úmidas e em mau estado de conservação eram a regra. A Sra. Jurista Herbart, portanto, enviou seu
filho para a escola noturna privada para meninas do suborganicista Carsten Hinrich Kruse. Ele veio da
instituição francesa, onde foi fundada em 1706 a primeira escola secundária na Alemanha. Foi ele que ins-
pirou o jovem Herbart para a matemática e as ciências naturais – disciplinas que mais tarde desempenha-
riam um papel de pouca relevância na escola latina – e com as quais o jovem Johann Friedrich se ocupou
em atividades físicas, jogos matemáticos e geográficos. Só sobreviveu um pedaço de papel datado daquela
época, cujo verso “n. 1” e cuja frente diz: “Em consideração a Johann Friedrich Herbart, pela comprovada
assiduidade demonstrada na escola particular. Oldenburg, Páscoa 1786, C. Kruse” (ASMUS, 1968, p. 57).
Da Páscoa de 1783, Johann Friedrich e outros filhos de funcionários da corte tiveram como tutor o candi-
dato Ültzen, que despertaria seu amor sobretudo pelo grego e pelo latim, mas também pela filosofia.
6 Traduzimos aqui o termo Katheder por púlpito, designando o tablado ou elevação em que ficava o quadro
do professor e de onde ele proferia sua aula (NT).
7 O Rei Jérôme Bonaparte ou Könnig Lustig era o irmão mais novo de Napoleão Bonaparte (NT).
8 Departamento de Leine (Département de la Leine) era uma das oito unidades administrativas do Reino da
Westfália e incorporava Göttingen de 1807 a 1814 (NT).
9 Sobre isso, ver também Jones (1984, p. 429).
Referências
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ASMUS, W. Johann Friedrich Herbart: eine pädagogische Biografie (Band I - Der Denker).
Heidelberg: Quelle & Meyer, 1968. v. I.
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56
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Complexidade e educão: a pedagogia de Herbart e seus conceitos próprios
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Complexidade e educação: a pedagogia de Herbart e seus conceitos próprios1
Complejidad y educación: la pedagogía de Herbart y sus propios conceptos
Complexity and education: Herbart pedagogy and its own concepts
Ignazio Volpicelli*
Resumo
O presente artigo é fruto de revisão bibliográca, de perspectiva hermenêutica e analítica. O autor busca re-
construir as reexões de Johann Friedrich Herbart, sinalizando para como esse pensador situa a pedagogia na
complexa relação, interna e externamente, com outras áreas e outros campos epistemológicos. Johann Friedrich
Herbart pode ser considerado o pai da pedagogia acadêmica ao sistematizar e alçá-la ao campo epistêmico e
de investigação. Para tanto, exige a necessidade de a pedagogia ocupar-se com a formulação e a construção de
conceitos próprios que deem conta da especicidade de seu objeto. Porém, tal tarefa exige que a nascente pe-
dagogia acadêmica se exercite no complexo diálogo com outros campos de saber, principalmente no exercício
losóco, evitando justamente a prática parasitária de importar conceitos de outros campos de saber.
Palavras-chave: Herbart; educação; ciência; reexão losóca.
Resumen
Este artículo es el resultado de una revisión de la literatura, desde una perspectiva hermenéutica y analítica.
El autor busca reconstruir las reexiones de Johann Friedrich Herbart, señalando cómo este pensador sitúa la
pedagogía en la compleja relación interna y externa con otras áreas y campos epistemológicos. Johann Frie-
drich Herbart puede ser considerado el padre de la pedagogía académica al sistematizarla y elevarla al campo
epistémico y de investigación. Para ello, exige que la pedagogía se ocupe de la formulación y construcción de
sus propios conceptos que tengan en cuenta la especicidad de su objeto. Sin embargo, esto requiere que la
naciente pedagogía académica se ejercite en el complejo diálogo con otros campos del conocimiento, especial-
mente en el ejercicio losóco, evitando precisamente la práctica parasitaria de importar conceptos de otros
campos del conocimiento.
Palabras clave: Herbart; educación; ciencia; reexión losóca.
* Doutor em educação. Professor Adjunto no Departamento de História, Patrimônio Cultural, Formação e Sociedade
da Università degli Studi di Roma Tor Vergata – Itália. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5209-5118. E-mail: ignazio.
volpicelli@uniroma2.it
Recebido em: 29/01/2021 – Aprovado em: 25/11/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i3.12238
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Abstract
This article is the result of a literature review, from a hermeneutic and analytical perspective. The author seeks
to reconstruct the reections of Johann Friedrich Herbart, signaling how this thinker situates pedagogy in the
complex internal and external relationship with other areas and epistemological elds. Johann Friedrich Herbart
can be considered the father of academic pedagogy by systematizing and elevating it to the epistemic and re-
search eld. To do so, he demands that pedagogy be concerned with the formulation and construction of its own
concepts that take into account the specicity of its object. However, this requires that the nascent academic
pedagogy exercise itself in the complex dialogue with other elds of knowledge, especially in the philosophical
exercise, avoiding precisely the parasitic practice of importing concepts from other elds of knowledge.
Keywords: Herbart; education; science; philosophical reection.
Introdução
No início do ano letivo de 1859-1860, Johann Friedrich Daniel Sanio, Rei-
tor da Universidade Albertina, proferiu o discurso comemorativo à memória de
Johann Friedrich Herbart enquanto professor na Universidade de Königsberg (Zur
Erinnerung an Herbart als Lehrer der Königsberger Universität). Reconstruindo,
em termos gerais, os momentos marcantes da biografia intelectual do seu colega
falecido, ele expressou sua convicção de que, para penetrar plenamente no núcleo
fundador do pensamento herbartiano, seria necessário “prestar particular aten-
ção à íntima interdependência entre os seus conceitos pedagógicos e filosóficos”
(SANIO, 1871, p. 10). Nesse sentido, deveria ser cuidadosamente considerado até
que ponto “as observações, experiências e tentativas pedagógicas que, assim que
deixou a escola de Fichte, fez como professor particular na Suíça, nos anos de 1797
a 1800, e a consequente reflexão pedagógica sobre os conceitos fundantes e o fim
da educação”, que tiveram “influência no desenvolvimento de seu conjunto peculiar
de pensamentos no curso de sua pesquisa e, portanto, indiretamente, na gênese de
seu sistema filosófico”(SANIO, 1871, p. 10). De fato, nos escritos de Herbart, são
encontrados numerosos vestígios atestando que a “ocasião e o estímulo” de suas
investigações no campo filosófico foram muitas vezes alimentados “por sua reflexão
propriamente pedagógica”(SANIO, 1871, p. 10).
A declaração de Sanio, expressamente dirigida a um hipotético futuro biógrafo
de Herbart, indica uma perspectiva hermenêutica que deve ser seguida até o fim.
Por isso, não limita o horizonte da pesquisa a uma confirmação das inúmeras pas-
sagens das obras pedagógicas de Herbart que se referem a ou recordam questões
especificamente filosóficas. Tais passagens também se relacionam a todas aquelas
referências que pontuam toda a extensão de sua reflexão filosófica sobre aspectos
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de crucial relevância pedagógica e que mostram claramente como a atenção aos
problemas educacionais formam uma espécie de fio condutor que atravessa todos os
escritos de Herbart, mesmo aqueles que não são explicitamente pedagógicos. Isso
constitui um testemunho inequívoco da centralidade que a questão pedagógica ocu-
pa no complexo da reflexão herbartiana. Segundo o próprio Herbart (H16, p. 89)2:
Minha filosofia – deixe-me traduzir a expressão para que não soe muito forte – minha
busca pela verdade – não gira simplesmente em torno de ideais; ela gostaria, antes de tudo,
entender – portanto também ver, mas não meramente ver – o que é o homem, como ele era,
e como ele pode se tornar outra coisa.
Compreender e ver o que é o homem, o que ele era e como era, e também
tentar identificar, além de ver, como ele pode tornar-se outra coisa (mehr werden)
são os motivos inspiradores da busca da verdade, ou seja, da filosofia de Herbart.
Ele próprio escreveu isso numa passagem significativa de uma carta datada do
final de junho de 1798 e dirigida aos pais de seus pupilos de Berna, atestando ine-
quivocamente como concebeu imediatamente a demonstração da possibilidade da
educação como tarefa central e fundamental de sua filosofia.
Herbart declarou em 1814, em resposta à revisão crítica feita por Reinhold
Bernhard Jachmann para Pedagogia geral derivada do fim da educação (Allgemei-
ne Pädagogik aus dem Zweck der Erziehung abgeleitet), que: “A minha pedagogia
não seria nada sem minhas concepções de metafísica e filosofia prática” (H2, p.
163). E, novamente, em 1812, na Investigação psicológica da força de uma deter-
minada representação em função da sua duração (Psychologische Untersuchung
über die Stärke einer gegebenenen Vorstellung als Function ihrer Dauer betrachtet):
“Devo expressamente observar, se alguém no futuro desejar submeter minha peda-
gogia a um exame, que eu espero dele o conhecimento da minha filosofia prática,
dos meus principais pontos de metafísica e do presente trabalho” (H3, p. 123).
A Pedagogia é, para Herbart, uma ciência que toma forma e se estrutura atra-
vés da cuidadosa e constante reflexão e elaboração de “conceitos próprios” que se
inserem no seu âmbito. E a tarefa de refletir e elaborar tais conceitos é uma questão
de filosofia. “Somos da opinião de que sem filosofia não se pode falar de pedagogia
geral, e consideramos a pedagogia em seus princípios como filosofia” (H2, p. 146).
Foi assim que Jachmann julgou na sua revisão crítica da Pedagogia geral de
Herbart, com referência evidente a uma passagem da obra, como se esta tivesse
avançado em sua tese da “autonomia” da pedagogia em direção a uma arrogante
“moda filosófica de seu tempo”3 (Modephilosophie dieser Zeit). E se Herbart podia,
em princípio, compartilhar o sentido dessa afirmação, ele não deixou, ao mesmo
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tempo, de enfatizar firmemente a peculiaridade da abordagem filosófica que sus-
tentava a sua pedagogia. Ele próprio responde: “Tudo bem e precisamente por isso
o revisor deveria ter consultado não a sua filosofia, mas a minha, como fonte da
minha pedagogia, e deveria ter esclarecido esta última” (H2, p. 169; H3, p. 347). A
Georg Ludolf Dissen, Herbart escreveu em 29 de julho de 1812: “Estou convencido
de que a pedagogia, precisamente porque é uma ciência derivada, será formada em
cada cabeça segundo concepções filosóficas peculiares”. Uma convicção que o levou
imediatamente a afirmar: “Devemos melhorar os fundamentos filosóficos, então
cada um melhorará também a sua pedagogia” (H17, p. 93).
Com base nessas e em inúmeras outras indicações difundidas em seus vários
escritos, é ainda mais problemático apoiar a tese de uma efetiva “autonomia da
pedagogia de Herbart”4, a ponto de considerá-lo como o teórico convicto da “peda-
gogia como ciência autônoma” (KLAFKI, 1971, p. 99), sem relação orgânica com a
filosofia.
As considerações desenvolvidas por Herbart em 1806, destinadas a conceber a
pedagogia como um campo de reflexão cuja compreensão poderia, de algum modo,
realizar-se mesmo independentemente de um aprofundamento preciso dos pressu-
postos que constituem o seu fundamento natural precisam ser devidamente com-
preendidas. Elas são enquadradas, para serem claras, num contexto discursivo for-
temente caracterizado pelo firme desejo de preservar a esfera educativa do “risco”
de se transformar numa simples “esfera das seitas” (Spielball der Secten) (H2, p. 8)
e ser, desta forma, degradado como um mero banco de ensaio de qualquer sistema
filosófico.
Na passagem da Pedagogia geral (Allgemeine Pädagogik), à qual se fez refe-
rência, bem conhecida e discutida pelos críticos5, Herbart (H2, p. 8) escreveu:
Seria muito melhor se a pedagogia refletisse com a maior precisão possível sobre os concei-
tos que lhe são próprios (auf ihre einheimischen Begriffe) e cultivasse de uma forma mais
independente de pensar; desta forma, tornar-se-ia o ponto central de uma esfera de pesqui-
sa e não correria mais o risco de ser governada por um estrangeiro (von einem Fremden)
como uma província conquistada remotamente.
Em que o estrangeiro (Fremd) não seria tanto filosofia em geral, mas mais
propriamente todas aquelas concepções filosóficas que não só não seriam capa-
zes de definir as condições de possibilidade da prática pedagógica concreta, como
também, mesmo em filosofias avançadas, cujo exemplo são Espinoza e Kant, re-
velaram, aos olhos de Herbart, uma natureza de todo antipedagógica6. Conforme
Herbart (H2, p. 230):
881
ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Complexidade e educação: a pedagogia de Herbart e seus conceitos próprios
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Em que relação você acha que a filosofia deve se colocar no que se refere às outras ciências
e à vida? Seria bom para você ser percebido como um poder de longe, armado com armas
estrangeiras (tremendo), desconhecido, odioso, mas terrível? Ou você gostaria de ser con-
siderado como autônomo (einheimisch) em sua esfera de ação, e definido como parente e
amigo, e constantemente reconhecido e testado?
Nesses termos, Herbart fez sua estreia em Über philosophisches Studium, um
escrito de 1807, certamente “fundamental” para a compreensão de sua “concepção
de filosofia” (BLASS, 1972, p. 289), que é também importante “chave para a inter-
pretação da Allgemeine Pädagogik (HILGENHEGER, 1993, p. 111).
Nas obras que acabamos de citar, as expressões “estranho” (fremd) e próprio
(einheimisch) são usadas para definir mais extensivamente o tipo de relação entre
a filosofia e as várias outras ciências. O adjetivo fremd é usado, em um sentido
específico, para qualificar mais geralmente uma filosofia “estrangeira” ao universo
de conhecimento que se desenvolve na vida real em relação direta com a experiên-
cia e o contato humano. Portanto, diz respeito à uma filosofia que não resultaria
do “conhecimento multifacetado dos problemas, diretamente provenientes da vida
e das ciências”, certamente assumido por Herbart como a única “fonte autêntica
de filosofar” (H2, p. 236). “Essa filosofia com a qual estamos lidando – ele de fato
especificou – não está de forma alguma fora (ausser) do resto do conhecimento, mas
é produzida com e dentro dele, como sua parte constituinte inseparável; ela tem um
relacionamento com ele que não é de forma alguma imanente” (H2, p. 230). “Fora
do demais saber”, portanto, nenhuma legitimação é possível para a filosofia, que
não só se constitui a si mesma e adquire substância, afastando-se do conhecimento
implícito das ciências individuais, mas também deve, precisamente através delas,
ser “constantemente reconhecida e posta à prova” (H2, p. 230).
Fiel a tais premissas, Herbart, se, por um lado, criticou resolutamente a abor-
dagem da filosofia concebida segundo o modelo do idealismo fichtiano, como doutri-
na transcendental da ciência, por outro, reconheceu o fato de que em toda a ciência
é imanente um “espírito filosófico” e que toda tentativa de explicação científica é,
portanto, em si mesma uma parte constitutiva e integral da reflexão ou sem dúvida
do Studium, isto é, de ocupação, de compromisso filosófico. Com esta postura, Her-
bart confirmou a plena legitimidade não simplesmente da possível reação (Zuruck-
wirkung), mas também de real reversão (Umkehrung) da relação entre ciências
particulares e filosofia e, em particular, entre pedagogia e filosofia. Nessa linha,
além da perspectiva voltada para a construção da pedagogia procedente deduti-
vamente das premissas filosóficas, Herbart foi também o porta-voz de abordagem
882 ESPAÇO PEDAGÓGICO
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diferente que concebeu a pedagogia como campo de reflexão destinado a cultivar
autonomamente, colocando no centro de sua esfera de pesquisa os “conceitos que
lhe são próprios (ihre einheimischen Begriffe)” (H2, p. 8).
Herbart falou mais sobre o motivo da “reviravolta” (Umkehrung) na revis-
ta Erziehungslehre de 1832, cuja primeira edição apareceu em 1829, do teólogo
Friedrich Heinrich Christian Schwarz. Um ano antes da publicação do Allgemeine
Pädagogik, em 1805, no Lehrbuch der Pädagogik und Didaktik, Schwarz (1805,
p. 5-6) começou por afirmar que queria manter sua teoria educacional “em uma
certa independência dos sistemas dominantes”; isso não só porque não haveria “ne-
nhum sistema filosófico absolutamente completo”, mas também porque a maioria
dos sistemas filosóficos mostrou que eles levaram pouco em conta a especificidade
do fato educacional.
Herbart iniciou sua discussão sobre o Erziehungslehre de Schwarz referindo-
-se, em primeiro lugar, a certas declarações de August Hermann Niemeyer. Com
referência explícita a Kant – que, num artigo de 1793 intitulado Über den Geme-
inspruch: Das mag in der Theorie richtig sein, taugt aber nicht für die Praxis, tinha
levantado a questão da relação entre teoria e prática – Niemeyer afirma, na tercei-
ra parte da quinta edição da sua Grundsätze der Erziehung und des Unterricht für
Eltern, Hauslehrer und Erzieher, de 1806:
Nós nos compreendemos sobre uma quantidade de objetos, sobre os quais surgem continua-
mente mal-entendidos assim que começamos a filosofar e especular sobre eles, quando os
consideramos na vida comum, independentemente de um determinado sistema. E isto é
certamente o que acontece com frequência também no que diz respeito à pedagogia (NIE-
MEYER, 1829, p. 187, v.1; H13, p. 218).
Herbart inspira-se nessas afirmações para destacar como o “conflito violento”
(H2, p. 8) das “teorias muito divergentes” (H13, p. 220) não se enquadrava de todo
“no terreno da pedagogia (Erziehungslehre)” (H13, p. 218). Ele também enfatizou
nessa ocasião a importância de todo aquele inestimável “tesouro” de “experiências
e ensinamentos” que, acumulado durante uma longa e contínua “prática pedagó-
gica”, era quase como “um terreno comum” para todos aqueles que concebem “a
sagrada questão da educação” como algo “profundamente sério” (H13, 218).
Na sequência da revisão, Herbart também questionou Friedrich Daniel Er-
nst Schleiermacher, cuja posição em relação a Schwarz aparece, de certa forma,
indubitavelmente atribuível ao final de uma passagem significativa das notas das
Vorlesungen, realizadas em Berlim em 1813-1814. Afirma que a pedagogia “é uma
disciplina que brota da ética, que depende dela por um lado, mas que, por ou-
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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tro, funda sobre si mesma a sua própria realidade” (SCHLEIERMACHER, 2000a,
p. 211). A pedagogia (Erziehungslehre), de fato, tinha argumentado Schleierma-
cher com referência explícita ao trabalho homônimo de Schwarz (1802) em uma
passagem do Grundlinien einer Kritik der bisherigen Sittenlehre de 1803, constitui
uma das “ciências derivadas” (abgeleiteten Wissenschaften) da ética, mas deveria
“contribuir também para trazê-la para fora mesmo que em um modo fragmentário
(diese selbst zerstückelt mit hervorzubringen)” (SCHLEIERMACHER, 2002, p. 335-
336; Cf. H13, p. 232).
A afirmação do filósofo e teólogo alemão foi bem explicada no seu modo de
conceber a pedagogia como um campo que, por um lado, revela-se estritamente su-
bordinado à dimensão ética, por outro, parece gozar de ampla esfera de autonomia,
constituindo, de fato, ela mesma, a verdadeira e própria pedra de toque da verdade
de cada sistema ético particular. Schleiermacher (2000b, p. 456) havia reiterado
em suas Vorlesungen de 1820/1821 que: “Cada sistema de ética só pode mostrar
que possui a verdade se for possível desenvolver um método capaz de implementar
o próprio sistema. A pedagogia é a prova da ética”.
Na reflexão de Schleiermacher sobre a ligação entre pedagogia e ética é,
como foi observado, “claramente uma relação mútua”, segundo a qual “um mo-
mento de dependência e um momento de independência estão implícitos em am-
bos” (BLASS, 1978, p. 101). De fato, as duas dimensões parecem unir-se numa
relação singularmente dupla, hermenêutica, circular, constituindo assim de facto
uma premissa necessária da outra e vice-versa. Se é verdade, para Schleierma-
cher (2000c, p. 31), que cada teoria pedagógica tem suas raízes “no âmbito de
uma concepção ética particular” e que também “cada concepção ética” parece
“susceptível de mudar”. Contudo, é verdade que a mesma dimensão pedagógica
pode contribuir decisivamente para a melhoria ética de toda a estrutura social
em direção ao bem maior.
Foi precisamente com referência às indicações de Schleiermacher que, na re-
formulação posterior do seu Erziehungslehre, Schwarz avançou na tese de uma
“reversão” da relação entre pedagogia e ética, alegando, em torno da hipótese que
visava “fundar a pedagogia pela ética”, que “poderia muito bem ser válido o contrá-
rio pelo mesmo caso” (H13, p. 232-233; SCHWARZ, 1829, p. 33).
Em sua própria revisão, Herbart não se limitou, no entanto, a apresentar a
tese de Schwarz, mas afirmou a si mesmo que tinha tomado posição análoga na
Allgemeine Pädagogik, e de forma muito mais radical.
884 ESPAÇO PEDAGÓGICO
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É evidente que tal inversão, se fosse possível, levaria muito além. Se a pedagogia, em vez de
pressupô-las, deve fazer emergir (hervorbringen) as suas próprias ciências auxiliares, então
isto aplica-se não só à ética, mas também à psicologia [...]. É sobretudo por esta razão que
o abaixo-assinado por muitos anos (no seu Allgemeine Pädagogik) exigiu que os conceitos
apropriados (die einheimischen Begriffe) da pedagogia fossem cultivados e colocados no
centro de uma esfera de pesquisa (H13, p. 233).
No que se refere à Allgemeine Pädagogik, Wilhelm Flitner (1958, p. 37) apon-
tou, referindo-se a algumas das passagens já mencionadas, que Herbart alertaria
contra “tornar a pedagogia dependente da filosofia”. Essa afirmação pode certa-
mente ser partilhada, desde que não seja lida de modo algum como legitimação da
interpretação destinada a apoiar a firme intenção de Herbart de avançar na defesa
da completa independência da pedagogia em relação à filosofia. Pois, isso confirma-
ria a tese da presença simultânea no seu pensamento de “dois modelos conceptuais
divergentes” sobre o fundamento da pedagogia, de que ele não teria, em qualquer
caso, percebido “a natureza contraditória”.
Desse modo, um modelo estaria destinado a exibir a pedagogia como “uma
ciência aplicada” que deriva seu status científico da ética, “ciência normativa” e
da psicologia, “ciência das condições de viabilidade”. O outro modelo, antitético
ao primeiro, apresentaria a pedagogia como “ciência independente”, desenhando
seus próprios “princípios científicos peculiares”, independentemente de suas “re-
lações constitutivas” referentes a outras disciplinas (KLAFKI, 1971, p. 85-86). Tal
interpretação parece ser muito pouco generosa para o filósofo e pedagogo alemão,
sempre cuidadosamente medido, nos seus vários escritos, no uso de cada expres-
são individual em relação ao seu preciso contexto conceptual de referência. O uso
conceitual cuidado origina-se da compreensão pontual dos diferentes níveis e pro-
blemas inerentes à questão da Begründung da pedagogia enquanto Wissenschaft.
Se a pedagogia, e consequentemente a concepção que deve guiar o educador na sua
ação educativa, não pode de modo algum ser configurado, segundo Herbart, sim-
plesmente como o resultado de uma dedução de princípios filosóficos a priori que
não são de todo estranhos ao nível da realidade atual, é também verdade que, como
a reflexão sobre a formação do ser humano, a pedagogia não pode ser concebida
como campo que é de todo autônomo e independente da reflexão filosófica em geral.
Não há dúvida de que as expressões de Herbart destinadas a legitimar o tema
da autonomia da pedagogia devem ser enquadradas, pelo menos no que diz res-
peito à Introdução da Pedagogia geral, num contexto discursivo fortemente empe-
nhado em delinear as possibilidades concretas e reais de despertar entre os jovens
educadores uma clara consciência pedagógica não obscurecida pelas aberrações
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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dos mais recentes sistemas filosóficos. Lemos numa passagem do Nachschrift de
1804 para a segunda edição da Idee eines ABC der Anschauung de Pestalozzi que
“Infelizmente é quase impossível mencionar a ideia pura da pedagogia sem sus-
citar novos conflitos vivos. Onde está, de facto, esta ideia? De que filósofo é que
ela deve ser emprestada?” (H1, p. 253). Por um lado, a filosofia, particularmente
a filosofia do idealismo alemão, não apareceu aos olhos dos velhos burgueses em
posição de embasar uma teoria capaz de explicar a possibilidade e os limites da
“relação causal pedagógica”(H10, p. 16)7 como uma relação. Por outro, a influência
tout court assimilada, no modelo das ciências físicas naturais, a “um fato, um even-
to natural”, cuja viabilidade, como lemos em Ueber die ästhetische Darstellung der
Welt, als das Hauptgeschäft der Erziehung, acabou por ser “um efeito inevitável de
certas causas espirituais [...] como qualquer efeito no mundo físico” (H1, p. 261)8.
Certamente, então, como Herbart se opôs repetidamente contra Kant, Fichte e
Schelling, foi necessário não só destacar os riscos e perigos que a adesão a tal
abordagem filosófica implicava necessariamente na base da fundação da teoria
pedagógica, mas também era apropriado examinar se e em que medida a própria
pedagogia poderia, por sua vez, constituir um antídoto para expor seus equívocos.
Não foi por acaso, nesta perspectiva, que a Selbstanzeige da Allgemeine Päda-
gogik, deve ser lida, como o próprio autor sugeriu, como uma espécie de “prefácio”
à obra. Herbart trata antecipadamente aí da questão do “caminho certo” para pro-
ceder “em relação à exposição” de uma pedagogia geral. Tal tratamento é precedido
pela rejeição da “escolha” oferecida por Rousseau para enfrentar “mais tarde o
que precisa ser feito a seguir” - seguindo e descrevendo passo a passo as fases do
desenvolvimento psicofísico de Émile durante seu processo evolutivo. Também é
precedido pela posição daqueles que propunham dividir “a obra nas suas partes
constituintes”, tratando-a de forma “claramente separada”, a ponto de justapor
a “cultura intelectual” com a “cultura estética” e, portanto, tanto com a “cultura
moral” e assim por diante9, em relação à opção de deduzir “toda a educação como
uma única tarefa dos princípios filosóficos”. Enfim, contra isso, Herbart especificou
que este “método” não podia “estabelecer uma pior relação com os leitores”. De que
sistema filosófico deveria o autor da obra de fato deduzir a educação?. A pergunta,
colocada por Herbart nesses termos, pretendia sublinhar, estigmatizando-os, os
riscos e perigos que uma rígida dedução da pedagogia do idealismo especulativo, ou
em todo o caso de hipóteses e princípios insuficientemente comprovados, implicava
no campo da prática educativa concreta.
886 ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Os apontamentos de Herbart foram inseridos, na linha indicada, num contex-
to discursivo fortemente caracterizado por uma preocupação constante e insistente
com as consequências perniciosas de uma má filosofia, e o tema de Umkehrung
assumiu neste sentido a função de um papel de tornassol para medir não só a sua
validade e legitimidade, mas também para desmascarar e corrigir eventuais erros
e defeitos. A pedagogia, portanto, também tinha, aos olhos de Herbart, o poder de
retificar a especulação filosófica, exercendo sobre ela uma ação integral e corretiva.
Assim lemos no final do primeiro capítulo de Aphorismen zur Pädagogik que “A
pedagogia deve ser tratada filosoficamente: certo! Também é certo que a partir da
pedagogia, se for tratada adequadamente, isto é, como exige a natureza peculiar
da tarefa educativa, até mesmo uma filosofia corrompida pode ser gradualmente
levada ao restabelecimento” (HERBART, 1850, p. 422).
O conteúdo do aforismo que faz as expressões acima mencionadas se repetirem
e no qual motivo do Umkehrung é novamente reproposto, ou seja, da “autonomia”
da pedagogia, é extremamente eloquente. Justifica, em todo caso, a forma como
Herbart definiu os termos de sua fundamentação (Begründung) como uma ciência
derivada da ética e da psicologia. Sua posição mostra-se, deste modo, contrária a
postura de Niemeyer, a qual se deixa resumir nos seguintes termos:
Como é certo que a filosofia deve falar da determinação e da natureza do homem: igualmen-
te certo é que a pedagogia deve e deve imperativamente (sein soll und sein muss) ser uma
ciência filosófica. Deve ser, porque o homem deve ser educado na virtude, no sentido pleno
e amplo do termo; deve necessariamente ser, porque sem conhecer a natureza do homem,
fica-se completamente obscuro da possibilidade de sua formação e deformação (NIEME-
YER, 1829, p. 421).
As posições de Herbart aparecem em numerosas e repetidas obras, mesmo
em obras distantes umas das outras numa perspectiva temporal, com o objetivo de
sublinhar o papel fundamental da reflexão filosófica no campo da educação. Lemos
na primeira das Vorlesungen über Pädagogik de 1802,
[…] que quem se aproxima da educação sem a filosofia, pode facilmente imaginar que fez
reformas de grande alcance, pelo facto de ter feito algumas pequenas melhorias na forma
como [educou]. Em nenhum outro lugar uma visão filosófica (Umsicht) é tão necessária
através de ideias gerais como aqui onde o exercício diário e a experiência individual, im-
pressos de tantas formas diferentes, restringem tão fortemente a esfera visual (Gesicht-
skreis) (H1, p. 285).
Um pouco mais adiante, explicando qual era o objetivo principal de suas pales-
tras, Herbart insistiu no papel central da filosofia para a construção da pedagogia
como ciência (Wissenschaft). Escreveu de fato:
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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[...] minha tentativa visa desenvolver e animar em você uma certa sensibilidade pedagógi-
ca, que deve ser o resultado de certas ideias e convicções sobre a natureza e a formabilidade
do homem. Terei que dar à luz essas idéias, terei que justificá-las, terei que conectá-las,
construí-las, fundi-las de modo a dar origem a essa sensibilidade [...]. Mas dar à luz, jus-
tificar e construir ideias é uma tarefa filosófica, e na verdade uma das mais nobres, mas
também uma das mais difíceis [...] (H1, p. 288).
Lemos, no início do Selbstanzeige da Allgemeine Pädagogik: “Pedagogia como
ciência é a tarefa da filosofia, e na verdade de toda a filosofia, tanto teórica como
prática, e igualmente da mais profunda pesquisa transcendental a partir do racio-
cínio que simplesmente conecta fatos de toda espécie” (H2, p. 143). Tais afirmações
indicam que a reflexão de Herbart sobre a possibilidade de uma inversão (Um-
kehrung) da relação entre ciências particulares e filosofia e, portanto, entre peda-
gogia e filosofia, não é de modo algum equivalente a uma atestação implícita do
seu próprio espaço de autonomia. Elas referem-se, antes disso, ao reconhecimento
do princípio de que as “outras” ciências, incluindo pedagogia e filosofia, devem ser
constituídas numa estreita relação de validação mútua.
Ilustrativo, nesse sentido, é o que Herbart escreveu em uma passagem en-
contrada em um escrito de 1821 intitulado Ueber einige Beziehungen zwischen
Psychologie und Staatswissenschaft. Nele, o oldenbuguense, referindo-se às teses
de Platão que visam ligar “psicologia e ciência política” nos “seus livros da Re-
pública” (H5, p. 27), estabeleceu uma estreita analogia entre os mecanismos que
determinam a vida do espírito (Geist) no microcosmo da esfera individual e aque-
les que governam, no nível do macrocosmo, o espírito do povo. No contexto de tal
abordagem, Herbart antecipando em alguns aspectos, um motivo chave da Völ-
kerpsychologie de Heymann Steinthal e Moritz Lazarus, indicou na psicologia um
núcleo fundador, ou seja, “uma ciência auxiliar”, da “ciência política” como campo
de pesquisa destinado a determinar as condições para a melhor configuração do
Estado em vista da melhoria progressiva das condições de vida e cultura dos povos.
Depois de destacar o papel significativo da psicologia como uma ciência auxi-
liar da ciência do Estado (Staatswissenschaft), Herbart especificou:
Agora, se a psicologia constitui uma parte do fundamento sobre o qual a ciência do Estado
deve assentar para ser plenamente fundada, ao mesmo tempo se estabelece uma relação
entre elas em sentido inverso (umgekehrte Verhältniss). É precisamente neste sentido que
a ciência derivada (abgeleitete Wissenschaft) serve de contraprova (Rechnungsprobe) para
aquilo de que ela depende. Portanto, os erros que poderiam estar contidos na psicologia
serão revelados na medida em que na ciência política nada aparece que seja válido e que
possa corresponder a eles (H5, p. 38-39).
888 ESPAÇO PEDAGÓGICO
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O que se aplica à ciência política também se aplica à ciência da educação, ou
seja, à pedagogia cujo paralelismo com a política já foi destacado por Herbart no
De Platonici systematis fundamento commentatio de 1805 (H1, p. 314). A pedagogia
como a política, portanto, também ajuda a dar legitimidade a sua ciência auxiliar
(Hilfswissenschaften) (H13, p. 233), ao mesmo tempo em que recebe legitimidade,
como a própria ciência política.
Mas essa relação – observou Herbart – também é recíproca; os princípios corretos da arte
da política vão assim além das ideias práticas; as determinações do que deve ser, devem
ser verdadeiras, no que diz respeito à praticabilidade e eficácia das normas que lhes são
prescritas por razões psicológicas devem servir de suporte, caso contrário são da mesma
forma suspeitas de erro (H5, p. 39).
Seguindo esta indicação interpretativa, nos ajuda a destacar imediatamente
que a reflexão filosófica e a reflexão pedagógica não são, para Herbart, planos es-
sencialmente separados, distintos, divididos, mas coessenciais, interdependentes,
em íntima, estreita correlação e constante intercurso entre eles. Isso ocorre a tal
ponto de se constituírem, mutuamente, a base um do outro e vice-versa, como ex-
pressões de uma aspiração idêntica, tanto para tornar os dados da experiência
teoricamente compreensíveis, em termos de não contrariedade, como para ilustrar,
de um ponto de vista prático, os fundamentos da ética, e para delinear em termos
pragmáticos os limites e condições relativos à possibilidade de uma relação causal
pedagógica. Um relatório que visa não só promover “a transição da indeterminação
para a estabilidade (Uebergehen von der Unbestimmtheit zur Vestigkeit)” (H10, p.
59), mas também para assegurar que esta passagem, na qual está inserido o de-
senvolvimento progressivo da maleabilidade do homem (Bildsamkeit) no processo
da sua evolução espiritual, não seja dirigida para a obtenção de uma forma de
estabilidade. Ora, é esta forma de estabilidade que, mesmo nunca concluída e sem-
pre em progresso, que Herbart resumiu na Pedagogia Geral através da expressão
fortalecimento do caráter moral (Charakterstärke der Sittlichkeit).
Segundo Herbart, a resposta a tal questão não pode deixar de envolver toda
a filosofia, na medida em que é a filosofia que deve dar à pedagogia e, em última
análise, à prática educativa a chave para definir as possibilidades e os limites da
formação (Bildsamkeit) humana e para indicar as possíveis estratégias otimizadas
para alcançar a passagem da indeterminação à estabilidade.
Os problemas, dificuldades, antinomias que surgem na pedagogia não são,
portanto, simples e abstratamente algo pertinente à filosofia (Sache der Philoso-
phie) em geral. Eles envolvem consideravelmente toda a filosofia (der ganzen Phi-
889
ESPAÇO PEDAGÓGICO
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losophie) (H2, p. 143). O campo de reflexão ao qual o educador pensador (denkende
Erzieher) deve constantemente voltar a sua atenção coincide de facto com o campo
da filosofia na totalidade e complexidade dos seus aspectos: “[..] tanto da teoria
como da prática, e igualmente da mais profunda investigação transcendental como
do raciocínio que simplesmente conecta factos de todo o tipo” (H2, p. 143). A filo-
sofia, em todas as suas dimensões, deve dar apoio e legitimidade à reflexão peda-
gógica. Daí a distância resoluta de Herbart da filosofia em moda (Modefilosofia)
do seu tempo como uma filosofia que não teria “até agora feito muito pelo pensa-
mento pedagógico” porque não é capaz de constituir a “prova” através da qual se
“torna concebível (begreiflich macht)” a “relação causal pedagógica (pädagogische
Causalverhältnis)” entre educador e educando (H3, p. 151). Pois, é em virtude de
tal relação que a educação se manifesta como atividade intencional que se propõe
especificamente a agir “nas profundezas da alma, não para provocar nenhuma ati-
vidade, mas para dirigir a existente para tudo o que é excelente” (H1, p. 299).
“A Pedagogia está, portanto, relacionada com uma filosofia completamente dife-
rente da filosofia Kantiana, Fichtiana e Schelliniana” (H3, p. 151). Essas concepções
filosóficas parecem a Herbart como incapazes e impotentes para definir as condições
da gênese da moralidade ao longo do tempo e fortemente inclinadas ao fatalismo.
Herbart, que tinha apenas vinte anos, tinha escrito numa carta ao seu amigo Johann
Smidt em dezembro de 1796, quase como que para sublinhar a centralidade que a
questão pedagógica assume, desde o início, na economia global da sua reflexão:
Sou extremamente modesto nas minhas pretensões quanto à liberdade do homem, e dei-
xando-a à filosofia de Schelling, e no máximo também a Fichte, para lidar com ela; prefiro
tentar determinar um homem de acordo com as leis da sua natureza e razão, para lhe
oferecer o que pode colocá-lo em condições de fazer algo consigo mesmo (H16, p. 44).
Wilhelm Dilthey, referindo-se às expressões de Kant, que bem expressam uma
crença profundamente difundida e enraizada na cultura pedagógica na virada dos
séculos XVIII e XIX, segundo a qual “Na educação é reposto o grande segredo da
perfeição da natureza humana” (KANT, 1923, p. 444), sustentou que “a grandeza e
o fim de toda filosofia autêntica é a pedagogia no sentido mais amplo, da teoria da
formação do homem” (DILTHEY, 1934, p. 7). Isto significa que as questões básicas
da pedagogia coincidem em parte com as que estão na base da própria filosofia e
que, portanto, qualquer tentativa de reflexão pedagógica autônoma a partir das
suas ligações com a reflexão filosófica e, vice-versa (Umgekehrt). Quem concebe
esta última como separada e estranha da pedagogia, apenas separa e divide de
forma suspeita aquilo que está intimamente relacionado e articulado.
890 ESPAÇO PEDAGÓGICO
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É a totalidade (ganze) da filosofia, para voltar ao tema das relações entre re-
flexão filosófica e reflexão pedagógica, que deve contribuir para definir as condições
de possibilidade da passagem da “educabilidade à formação (von der Bildsamkeit
zur Bildung)” (H10, p. 177). Só através desta clarificação preliminar será possível
legitimar uma atividade como a educação, que visa teleologicamente ter um im-
pacto efetivo na determinabilidade (Bestimmbarkeit) do ser humano. Para além
das limitações devidas às ‘circunstâncias de lugar e tempo” e para além das ca-
racterísticas específicas da “individualidade” (H10, p. 69), que podem condicionar
“a maior ou menor facilidade” com que o “estado de espírito muda” (H2, p. 102), o
ser humano constitui na sua indeterminação original e radical, entendida como a
possibilidade de assumir formas diferentes e variadas, sua principal característica
distintiva em relação a qualquer outro ser vivo.
O que caracteriza o homem, em comparação com qualquer outro organismo vivo,
o que o distingue antropologicamente, tornando-o único na sua espécie, reside na ex-
trema versatilidade das potencialidades de sua formação espiritual. Tal versatilidade
não se sujeita à uma “regularidade” tal como a de se igualar “plenamente ao firma-
mento” (H4, p.273), pois se assim o fosse se transformaria em testemunho inequívoco
da intencionalidade de todo modelo interpretativo destinado a conceber o espírito
humano como um organismo no qual as formas de seu desenvolvimento futuro seriam
encontradas predeterminadas, preformatadas e predefinidas desde sua origem.
Observou Herbart numa passagem de Diktate zur Pädagogik, que a “nature-
za não diz o que quer do homem. Simplesmente mostra-lhe a sua infinita educabili-
dade. Cabe a ele ver como pode se beneficiar melhor e buscar a maneira de realizar
sua própria educabilidade” (HERBART, 1913, p. 130, v. 1).
Os argumentos de Herbart parecem fortemente inspirados, também do ponto
de vista terminológico, pelas posições expressas por Fichte em 1796 na Grundlage
des Naturrechts nach Prinzipien der Wissenschaftslehre, na qual ele avançou na
tese da determinabilidade infinita (Bestimmbarkeit ins unendliche) do homem, ir-
redutível na sua indeterminação dentro dos limites da “formação (Bildung)”, que é
um princípio formal predefinido.
Todos os animais são perfeitos e acabados, o homem é apenas insinuado, esboçado [...].
Cada animal é o que é: só o homem é originalmente nada. O que ele tem de ser, tem de se
tornar. E como ele deve ser um ser para si mesmo, deve tornar-se um através de si mesmo.
A natureza completou todas as suas obras, só pelo homem retratou a mão e por isso mesmo
a confiou a si mesma. Como tal, o carácter da humanidade é a sua educabilidade (Bildsam-
keit) (FICHTE, 1966, p. 379).
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Para dizer a verdade, segundo Herbart, o conceito de educabilidade
(Bildsamkeit) não seria de todo responsável, para usar a expressão de Fichte, de
uma determinabilidade no infinito (Bestimmbarkeit ins unendliche) se, como ele
reconheceu no parágrafo 4º do Umriss pädagogischer Vorlesungen, “não for de todo
legal para a pedagogia assumir qualquer educabilidade ilimitada (unbegränzte
Bildsamkeit)” (H10, p. 69). No entanto, a esfera das possíveis determinações do
homem revela-se ampla e aberta a inúmeras metamorfoses, de modo a permitir-
-lhe, na sua indeterminação, como um ser que “é continuamente formado (geformt)
pelas circunstâncias”, ser capaz de “tornar-se uma besta selvagem ou razão per-
sonificada” (H1, p. 308), tomando a forma de “um anjo (Engel)” ou, vice-versa, em
“um animal (Vieh)” (HERBART, 1850, p. 432, v. 11)10.
Assim como a rosa, “rainha das flores”, declarou Herbart na Allgemeine Päda-
gogik usando uma imagem sugestiva, “requer muito pouco cuidado do jardineiro”;
assim “a maneira como cada planta [...] cresce em cada clima, alimenta-se de cada
alimento, aprende com extrema facilidade a levar ajuda e se beneficiar de tudo”
(H2, p. 5-6), a natureza do ser humano é tal que se adapta às mais diversas circuns-
tâncias. É isso que condiciona a forma de seu desenvolvimento espiritual e, por
isso, é necessário projetar as oportunidades, as circunstâncias favoráveis, em vez
de deixá-las ser confiadas ao acaso, de modo a estimular a receptividade, refinar o
modo de sentir, promover o interesse múltiplo, lançando as bases para a formação
do caráter. Sentenciou Herbart (H1, p. 307): “A energia humana (Kraft) simples-
mente elabora o que recebe e precisamente por isso o que lhe é dado torna-se muito
importante”.
A “área” (Amt) da educação, especificou o filósofo e pedagogo alemão, com
acentos claramente polêmicos para um modelo pedagógico que tinha em Rousseau
seu teórico mais convicto,
[...] não é de forma alguma simples vigilância e cuidado, como uma jardinagem, que se preo-
cupa apenas com as plantas. Neste último caso, é importante apenas que sejam promovidas
circunstâncias favoráveis e desfavoráveis, que a chuva e o calor, o solo e a atmosfera sejam
adequados para que cada espécie vegetal se desenvolva. O homem, por outro lado, que não
exige um clima determinado [...] precisa da arte, que o eleva, o constrói, para que receba a
forma acertada (H1, p. 307-308).
A arte de edificar (erbauen), de construir (construiren), nada mais é, neste
caso, do que a arte da educação que, para usar termos recorrentes no léxico pedagó-
gico herbartiano, propõe explicitamente hervorbringen, erzeugen, machen – isto é,
gerar, produzir, fazer – o homem, na convicção de que “o ser humano se torna como
nós o fazemos” (H4, p. 598).
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Em Vorlesungen über Pädagogik, publicado em 1803 por Friedrich Theodor
Rink, Kant resumiu em três expressões lapidares o sentido, significado e importân-
cia da educação, destacando magistralmente seu profundo valor ético: “O homem
é a única criatura que deve ser educada [...]. O homem só pode tornar-se homem
através da educação. Ele não é nada mais do que a educação faz dele (Er ist nichts,
als was die Erziehung aus ihm macht)” (KANT, 1923, p. 441–443). Naquela ocasião,
portanto, também Kant parece endossar a razão para uma ação causal da educação
sobre o homem como sendo suscetível de ser formada. Mas não surpreende que
Herbart revisite anonimamente em fevereiro de 1804 o livreto kantiano (Büchlein),
escrito, como ele mesmo assinalou, com “simplicidade antiga” e caracterizado “por
olhares e brilhantes acenos”. No entanto, queixou-se, especialmente no que diz
respeito à educação moral, que o seu autor tinha finalmente reiterado “dos seus
princípios bem conhecidos” em vez de indicar a possibilidade de que o todo “ocorre
como consequência da nossa influência sobre a alma do aluno” (KANT, 1803, p.
260–261). Nas palavras de Kant, na educação moral tudo depende de tornar “in-
teligível e aceitável” (begreiflich und annehmlich), e que é necessário “ter cuidado
para que (dahin sehen) a criança [...] aja de acordo com máximas”11 de fato. Tais pa-
lavras soam a Herbart como “palavras vazias”, sobretudo, na medida em que foram
pronunciadas por um filósofo que, tornando-se um afirmador decisivo do conceito
de liberdade transcendental, tinha, de fato, tornado não só inconcebível, no campo
da educação ética, a possibilidade de qualquer “vínculo causal (Causalnexus)”, mas
também negado a “pedagogia inteira (alle Pädagogik)” (KANT, 1803, p. 261).
A criança, escreveu Herbart no Allgemeine Pädagogik, esboçando os traços
essenciais de sua própria concepção de uma fenomenologia da vida ética, “vem ao
mundo sem vontade: portanto incapaz de qualquer relação moral” (H2, p. 18). Ape-
nas “com o passar do tempo surgirá nele uma vontade” (H2, p. 18). E que isto será
determinado pelo “modo de decidir (Art der Entschlossenheit)” não simplesmente
na forma de “este ou aquele outro caráter” (H2, p. 98) mas, como esperava Herbart,
na forma de um caráter rigorosamente inspirado em seus princípios pelas ideias
modelo de ética, isto constituiu, com respeito à ampla “necessidade dos fins futu-
ros [...] simplesmente possível” e “legítima” (HERBART, 1913, p. 141), o “primeiro
e único” “negócio principal da educação” (“Hauptgeschäft der Erziehung”) (H1, p.
259), isto é, o “fim necessário” que o educador “não poderia jamais perdoar a si mes-
mo por ter negligenciado” (H2, p. 28). Assim, rejeitando como nada “presunçosa a
ideia de que alguém pode ser moralmente bom imediatamente (auf der Stelle gut
sein) em virtude da sua própria decisão simples” (H12, p. 151), Herbart sublinhou a
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necessidade de conceber a transição da relativa “indeterminação da criança” para a
relativa “estabilidade do adulto” (H12, p. 69). Trata-se, então, da modificabilidade
(Veränderlichkeit) ao constante (Stetigkeit), como polaridades antropológicas que
são antitéticas mas complementares, como resultado de um “lento desenvolvimen-
to que passa por graus dificilmente distinguíveis” (H3, p. 18). O “cada grau”, tor-
nado possível por sua vez pelos graus evolutivos anteriores, constitui, por sua vez,
o fundamento necessário para os sucessivos desenvolvimentos posteriores, numa
contínua transição e alternância entre momentos e fases de relativa resolução e fa-
ses ou momentos de abertura para possíveis metamorfoses espirituais posteriores,
de modo que “o homem se vê resolvido em cada grau, mas globalmente ainda móvel
entre os mesmos graus” (HERBART, 1913, p. 524, v. 3).
O processo que caracteriza o caminho evolutivo do sujeito em seu próprio de-
senvolvimento formativo, portanto, ocorre de acordo com fases intimamente corre-
lacionadas e interligadas, das quais uma constitui a condição, isto é, o pré-requi-
sito necessário da outra. A principal tarefa da educação é encorajar e facilitar este
processo na ordem mais de acordo com as capacidades e grau de desenvolvimento
já alcançado, aproveitando a “modifiabilidade natural da alma humana” e “a sua
capacidade de alcançar uma certa estabilidade e constância” (HERBART, 1913,
p. 130, v. 1). Dessa forma, promove as inclinações e predisposições mais adequadas
para o alcance daquele fim da educação (Zweck der Erziehung) que constitui, numa
perspectiva teleológica, o termo de referência da dedução (Ableitung) realizada por
Herbart em 1806 de sua Pedagogia Geral (Allgemeine Pädagogik). “O pré-requi-
sito básico para a formação do carácter”, especificou Herbart, “é a construção das
inclinações”(HERBART, 1913, p. 524, v. 3) entendido como aquele complexo de
qualidades ou disposições da alma, tudo menos inato ou ontologicamente inerente
à estrutura original do sujeito, que a educação deve promover apropriadamente
através de um processo de movimento constante de “predisposição para predispo-
sição”, correspondente ao mesmo processo de transição progressiva e gradual do
indivíduo para diferentes níveis de formação (Bildung).
A hipótese é que o processo educacional deve coincidir no final com a mera
prestação do devido cuidado e atenção ao desdobramento natural das potencia-
lidades presumidas inerentes à constituição orgânica do espírito do homem em
geral (Mensch überhaupt). O ser humano é, então, concebido como um “agregado de
faculdades da alma” (H4, p. 334), como teatro de um verdadeiro “bellum omnium
contra omnes (H5, p. 199) entre poderes, predisposições, diferentes e opostas. Sub-
-repticiamente ele é assumido como original com base em “conceitos não cientifica-
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mente ressuscitados, do que acontece em nós” (H4, p. 303), não estando de acordo
com a abordagem educativa que visava, na esteira de Pestalozzi, sublinhar o dever
do educador de “não fazer, como se a criança já tivesse uma experiência, mas pro-
curar que ela a receba”. Sendo assim, tal postura contribuiria para edificar (bauen)
seu espírito (Geist) e “construir (construiren) nela [na criança] uma experiência
intuída de maneira determinada e clara” (H1, p. 309).
Os argumentos de Herbart sobre a noção de educabilidade (Bildsamkeit),
que ele considerava, para todos os efeitos, o primeiro postulado da educação, não
estavam de modo algum reduzidos aos limites da pedagogia. Reconheceu que o
âmbito (Umfang) deste conceito era de fato muito mais amplo, estendendo-se até
aos elementos da matéria (H10, p. 69). Esta extensão ocorria a tal ponto que na
segunda parte sistemática da Metafísica Geral (Allgemeine Metaphysik), tratando
dos Elementos de uma filosofia da natureza, o próprio Herbart dedicou um capítulo
inteiro à investigação sintética da educabilidade da matéria (Von der Bildsamkeit
der Materie). Ele o fez a fim de enuclear o conjunto de suposições que seria a base
de sua possível transformação constante e variada na “passagem gradual de uma
condição para outra” (H8, p. 278). No entanto, a noção de educabilidade (Bildsam-
keit) no ser humano assumiu em Herbart significado e papel muito diferentes do
que aqueles assumidos em outras manifestações naturais, revelando-se em con-
ceito chave para ultrapassar a aparente dicotomia entre “determinismo e ética”
(H1, p. 273) e, ao mesmo tempo, lançar as bases para uma definição das condições
de possibilidade da “formabilidade da vontade na perspectiva moral” (H10, p. 69).
Com tal conceito se reafirma a centralidade da “relação-causal (Causal-Verhält-
niss) entre educador e educando” (H1, p. 299; H3, p. 151). Ou seja, atribui à relação
educativa a capacidade plástica efetiva em conformidade com as leis, princípios e
normas que definem o desenvolvimento da vida psíquica. A educabilidade contesta,
ao mesmo tempo, qualquer concepção que vise à hipótese de que na alma já existe
uma estrutura orgânica pré-formada que deve ser desenvolvida, como já estivesse
constituída a ponto de querer fazer dela algo diferente, e isso “seria tão louco como
querer produzir um jacinto a partir de um bulbo de tulipa” (H6, 330-331). Herbart
assimilou a formação do caráter a um “fato (Ereigniss)”, a um “evento natural (Na-
turbegebebenheit)” que “necessariamente acontece, como um efeito inevitável de
certas causas espirituais [...] tão necessariamente como qualquer efeito no mundo
físico”. Procedendo nesta direção, ele estabeleceu um paralelo significativo entre
educador (Erzieher) e astrônomo (Astronom), ambos empenhados em tentar identi-
ficar “quais são as leis que governam o curso dos fenômenos que estão antes deles,
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e assim descobrir como é possível modificar esse curso de acordo com um fim e um
plano” (H1, p. 261; H6, p. 332).
Embora confirmando a legitimidade de seu compromisso em construir a psico-
logia como ciência exata da alma, no modelo das ciências físico-naturais, Herbart
estava bem consciente da profunda diferença que passa entre as “leis físicas (da
gravidade, do impacto, etc.)” e as que regem a mobilidade do espírito humano (Be-
weglichkeit des Menschengeistes). Sendo assim, o aparente estreitamento do fosso
entre as duas dimensões resultou, neste caso específico, motivado sobretudo pela
postura polêmica decisiva em relação àquela “falsa antítese entre leis naturais
(Naturgesetz) e leis da liberdade (Freiheitsgesetz)” (H13, p. 224). Tal antítese estava
menos disposta a reconhecer não apenas que a liberdade não está necessariamente
em contradição com o determinismo, mas que ela, como Herbart insistiu mais uma
vez em polêmicas abertas em relação ao conceito kantiano e fichtiano de liberdade,
constituía a condição necessária.
É necessário eliminar as razões do:
[...] mal-entendido de que quase todos, assim que percebem a terrível expressão do deter-
minismo, geralmente se conectam a ele como se desta forma a vontade fosse negada; a
reflexão e a resolução foram declaradas aparência e engano; a mesma avaliação ética como
inspiração extrínseca. Quem quer que entenda isto com determinação afirma, com razão,
que desta forma a moralidade (Sittlichkeit) é representada como uma quimera, desconside-
rando que esta, a moralidade, sem dúvida, tem seu fundamento em julgar e querer autono-
mamente. Mas aqueles que não têm outro conceito de determinismo além deste, não terão
necessariamente chegado ainda a uma reflexão madura sobre este tema (H3, p. 228-229).
Os conceitos de liberdade e determinismo não são tão antitéticos que não sejam
capazes de “promover a paz um com os outro (mit einander Frieden machen)”. Na
contramão disso, Herbart (H10, p. 305) argumentou que a “a liberdade é adquirida
com base nas condições a que a palavra determinismo se refere, na medida em que
a educação segue a correta autoeducação”. Se é verdade, de fato, como já o lemos,
que o ser humano precisa de uma arte que “o edifica, o construa, para que receba
a forma certa(H1, p. 305), também é verdade que “se torna menos ele mesmo,
quanto mais se impõe ou até mesmo simplesmente se apresenta com uma forma
estranha” (H9, p. 455). Tais afirmações são apenas aparentemente paradoxais e
contraditórias, cuja explicação é esclarecida pela função diferente que a educação
assume, segundo Herbart, no decurso do seu próprio desempenho.
Herbart desafia todas as hipóteses que visam defender “a representação de
que as chamadas disposições do homem constituem um complexo orgânico que se
desenvolve segundo leis internas, ao qual se pode, sim, oferecer cuidado e alimento,
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mas ao qual nenhum outro desenvolvimento pode ser imposto, exceto aquele que é
originalmente seu” (H3, p. 155). Também rejeita, consequentemente, a ideia rous-
seauniana de educação destinada a assegurar “crescimento livre e alegre para to-
das as manifestações de vegetação no homem” (H2, p. 5). Tal crescimento é concebi-
do como simples atenção, vigilância, cuidado, assistência, deixar crescer (Aufsicht,
Wartung, Pflege, Nahrung, Wachsenlassen). Em contraposição ao “desenvolvimento
que ocorre espontaneamente (aus sich selbst hervorgehende Entwickelung)” (SCH-
WARZ, 1829, p. 3, v. 2; H13, p. 231) no decurso do processo de desenvolvimento
progressivo e natural de uma condição original já pré-delineada, Herbart foi defen-
sor convicto da imagem de ser humano como susceptível de transformações, meta-
morfoses e mudanças. Concebido assim, o ser humano “é constantemente formado”
através da combinação de múltiplas “circunstâncias” (H1, p. 308) que constituem
no seu conjunto o pressuposto de seu desenvolvimento espiritual no quadro de sua
indeterminação original.
Quem assume a delicada tarefa de “elevar uma criança, estando no meio da
realidade, a uma existência melhor (zu einem bessern Daseyn)” (H2, p. 6-7), Her-
bart declarou nesta linha, sublinhando o papel do “destino”, das “circunstâncias”,
do “mundo que educa junto, em parceria (die miterziehende Welt)”, deve estar bem
consciente “que ele não é o verdadeiro educador que convém ao seu aluno, mas toda
a força de tudo o que os seres humanos ouviram, experimentaram e pensaram; e
que ele foi designado para a criança simplesmente como um intérprete inteligente
e digno companheiro” (H2, p. 7).
Prosseguindo nessa linha, Herbart não deixou de apontar que a relativa e
hipotética indeterminação original do ser humano - tanto mais hipotética e re-
lativa quanto o “educador não encontra de modo algum a alma jovem como uma
mesa branca, ainda não escrita” (HERBART, 1913, p. 521, v. 3) – abre a tal alma
jovem uma gama infinita igualmente hipotética e relativa de formações possíveis.
Embora esta gama infinita seja gradualmente encolhida com o passar do tempo, na
medida em que o processo da Bildung em curso assume conformação mais e mais
específica e peculiar, ela assume a objetividade de um caráter bem definido. Nas
palavras de Herbart (H1, p. 308):
Assumindo, portanto, que a arte ou o acaso, independentemente de qual dos dois, real-
mente começaram e continuam a fazer o que a natureza não faz – desde que o ser humano
esteja em constante formação e, portanto, em permanente educabilidade, ou seja, com um
ser ainda em aberto (noch halb offener Bildsamkeit) – nessa condição intermediária ele já
é claramente assimilável à planta.
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A passagem em questão pode ser encontrada na parte final de Ueber den
Standpunct der Beurteilung der Pestalozzischen Unterrichtsmethode, de 1804, que
consistiu originariamente em uma breve palestra proferida no Museu da Cidade
Livre de Bremen. Partindo de uma reflexão sobre os métodos didáticos de Pestalo-
zzi, Herbart deu algumas indicações importantes sobre sua maneira de conceber
questões pedagógico-filosóficas cruciais, entre as quais a questão controvertida e
amplamente discutida na cultura filosófico-científica da época entre preformismo
e epigenismo. Ou seja, trata-se aí da disputa entre, por um lado, a concepção do
desenvolvimento, neste caso específico, da espiritualidade do homem que pode ser
traçada até à presença de estruturas já, mais ou menos, preestabelecidas e, por
outro, a hipótese que visa traçar esse desenvolvimento, pelo menos até aos seus
primórdios, a um imponderável complexo de circunstâncias. Muito bem! Herbart
rejeita antecipadamente, deste modo, o paralelismo rousseauniano entre cultura
das plantas e educação humana (culturas des plantes et éducation des hommes),
argumentando que “na natureza humana” não há, ao contrário “da planta”, qual-
quer “disposição natural estável”. Ele recusa com isso qualquer possibilidade de
assimilar a atividade educativa à “simples vigilância e cuidado” nos termos como
aconteceria na “jardinagem”. Por seu turno, veio de forma aparentemente parado-
xal sustentar, como acabamos de ler, não só certa assimilação entre ser humano
e planta, como também uma real afinidade entre “Arte de educar” (Kunst der Er-
ziehung) e “arte da jardinagem” (Gartenkunst) (H1, p. 307-308).
O raciocínio desenvolvido por Herbart se deixa confirmar ainda em uma pas-
sagem de Über die dunkle Seite der Pädagogik:
Para dizer a verdade, cada círculo de pensamentos e sentimentos, à medida que se expan-
de, encadeia de forma mais íntima o que já está ligado, tornando-se cada vez mais como um
organismo, eliminando o que repele e assimilando o que acha adequado. No entanto, não
há originalmente na alma humana constituição orgânica, assim como em geral não é per-
mitido assumir nela um múltiplo seja ele qual for. Uma liberdade muito maior permanece
para a atividade do educador, que precisamente na sua juventude inicial forma em grande
parte a semente a partir da qual se produz o que mais tarde se revela ser aparentemente
orgânico (H3, p. 151-152).
A afirmação contida nesta passagem confirma implicitamente a transição de
uma visão mecanicista, destinada a explicar a gênese das disposições, das capa-
cidades, das estruturas em que a peculiaridade característica de cada indivíduo
é estruturada e toma forma, a partir do entrelaçamento das várias experiências
cognitivas, emocionais e afetivas que ocorrem nas primeiras etapas da vida, para
um cenário voltado para conceber o espírito como um verdadeiro organismo inex-
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plicável a partir dos dinamismos que o colocaram em prática e estruturaram de
acordo com suas próprias leis. Neste contexto, parece oportuno referir-se à hipótese
desenvolvida por Herbart, na esteira de Leibniz, sobre a centralidade, na “geistige
Leben”, ou seja, da função psíquica da apercepção como dispositivo destinado a
“ligar o novo ao velho” (H11, p. 412). Por meio disso seriam esclarecidas então as
modalidades de apropriação ou “assimilação” de novas representações “através de
representações previamente adquiridas” (H10, p. 147).
Esse processo assume particular importância na economia global da reflexão
herbartiana e, de um modo mais geral, no contexto da teoria das capacidades de re-
conhecimento e compreensão. Pois, não só evidencia que cada uma de nossas novas
experiências é aceite por nós e feita nossa a partir dos elementos constitutivos da
experiência anterior, como evidencia também que compreender uma nova situação
significa evocar situações semelhantes que já foram elaboradas. Também susten-
ta a tese de que nossa própria experiência anterior, constantemente enriquecida
e ampliada através da assimilação de elementos sempre novos e dinamicamente
transformados, não é senão o produto da multiplicidade de sucessivos atos de assi-
milação ou apercepção que a constituem e a estruturam como tal. Isso significa, em
outras palavras, que continuamos, indefinidamente, a organizar e reorganizar as
nossas estruturas mentais incorporando nelas experiências sempre novas.
A partir destas premissas, Herbart considerou o processo concreto de Bildung
do ser humano, em antítese a qualquer cenário que visasse prefigurar abstrata-
mente a existência de um presumível Bildungstrieb ou nisus formativus original,
como a expressão de um conjunto extremamente complexo e articulado de atos
e momentos relativos a modalidades e graus de constante apropriação de novos
elementos e contínua reelaboração de elementos preexistentes. Tais premissas
também lhe permitem sustentar a ideia de formação humana como consequentes
acomodações e remodelações de massas previamente estruturadas e do desenvolvi-
mento de séries e, simultaneamente, como a constituição de redes de elementos es-
treitamente entrelaçados e capazes de atuar como estruturas próprias, até formar
gradualmente o núcleo original do “caráter objetivo” do homem.
Movendo-se nesse sentido, Herbart foi finalmente induzido a assimilar o pro-
cesso parcial de formação em andamento, ou seja, o resultado da halbe Bildung e,
consequentemente, da halbe Bildsamkeit ainda aberta, a uma “condição interme-
diária” (Mittelzustande) de desenvolvimento em que o ser humano já encontraria
um núcleo germinal de predisposições organizadas. Estas, atuando como massas
apercebidas consolidadas e em processo de posterior consolidação, não só seriam o
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pré-requisito para futuros desenvolvimentos, mas também representariam, para
todos os efeitos, a analogia de um organismo real, em virtude do qual a “forma-
bilidade” é gradualmente transformada de um processo de construção inicial de
“individualidade” (H1, p. 305) para outro processo de autodeterminação livre e es-
pontânea, isto é, de autodeterminação do próprio sujeito. Assim resume Herbart
(H1, p. 304-305):
Vamos antes de tudo olhar para a multiplicidade (auf das Mannigfaltige) que se encontra
junto à alma de um ser humano adulto. Consiste em conhecimento e imaginação, decisões
e dúvidas, sentimentos e inclinações bons, maus, intensos, fracos, conscientes e incons-
cientes. Constitui-se de maneira diferente no ser humano culto e no vulgo; diferente no
alemão do que no francês; no inglês em comparação ao turco, no preto e no habitante das
ilhas Samoa. A forma como é constituída determina a individualidade do ser humano. A
educação quer construir e melhorar isto, só que não sabe muito bem como deve começar e
quanto pode presumir alcançar.
Na “condição intermediária”, de formação em processo, como condição de hal-
be Bildsamkeit, ainda aberta,
[…] já existe, portanto, algo que se desenvolverá ainda mais de forma definida, se não for
impedido; algo que facilita ou contrasta de forma determinada com tudo o que retorna. Por
outro lado, o que acontece de novo deve também conformar-se com o que já existe, promo-
vendo-o e encorajando seu ulterior florescimento, na medida em que tal florescimento seja
desejável. A arte de continuar a educação já iniciada torna-se, portanto, cada vez mais
semelhante à jardinagem; os dons desta arte são transformados cada vez mais em simples
exposições, o tratamento torna-se cada vez mais um simples sopro; e vice-versa, o real dar
e receber diminui (H1, p. 308).
Herbart especificou numa passagem já referida antes e que devemos citá-la
agora novamente, na íntegra: “os seres humanos se tornam, como nós os fazemos
(wie man sie macht), e como eles próprios preparam sua formação (und wie sie
selbst ihre Bildung veranstalten)” (H4, p. 598). Machen (fazer), construiren (cons-
truir), bilden (formar), erzeugen (gerar), hervorbringen (produzir) são termos recor-
rentes no léxico pedagógico de Herbart, expressando e definindo todos eles a pró-
pria possibilidade da “causalidade pela educação” (H4, p. 331), constitutivamente
orientada para lançar as bases do desenvolvimento livre e autônomo do sujeito em
formação. “A educação seria tirania se não conduzisse à liberdade”, disse o jovem
Herbart, no primeiro de seus discursos de Berichte ao Sr. Von Steiger, em 4 de
novembro de 1797. “Mas, deve tentar certificar-se antecipadamente do uso desta
liberdade” (H1, p. 48). “Fazer homem”, então, para Herbart, “significa determinar
a autodeterminação” (BUCK, 1985, p. 102) e predispô-lo à liberdade. Deste ponto
de vista, a ação pedagógica se configura como uma forma de causalidade, isto é,
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uma forma de intervenção, que se propõe a lançar as bases para que “a criança (das
Kind)”, que se tornou adulta e “educada no uso da razão (zur Vernunft Gebildete),
assuma a tarefa do autogoverno no tempo” (H2, p. 18).
A “verdadeira e própria educação”, lemos numa passagem emblemática da Allge-
meine Pädagogik, concebida como “a arte de perturbar a alma de uma criança na sua
paz, de a ligar a si mesma com confiança e amor, de a deprimir e excitar à vontade,
e desmascará-la prematuramente na inquietação dos anos vindouros, seria a mais
odiosa de todas as artes do mal, se ela não tivesse que alcançar um fim, que poderia
servir para justificar o uso de tais meios também nos olhos dela, por quem seria para
ser temido a reprimenda” (H2, p. 25). “O ser humano”, resume Herbart novamente,
“precisa de uma arte que o eleve, construa-o, para que ele possa receber a forma ade-
quada (H1, p. 308). Educar, ou melhor, promover a passagem da indeterminação à
estabilidade, favorecendo uma “determinada construção de inclinações” através de
um constante “caminho” (Gang) (H3, p. 520), um “desenvolvimento (Entwickelung)
constante de predisposição à disposição” (H3, 519), que melhora, aumenta, eleva e
enobrece a atividade espiritual das crianças, constitui uma atividade que deve ser
proposta como tarefa primária. Em síntese, “fazer (machen) para que o aluno se
encontre (sich selbst finde) no ato de escolher o bem e rejeitar o mal” (H1, p. 261).
“A educação deve fazer (machen) com que a vida se torne uma grande obra de
arte, ainda que na sua maioria extemporânea, cuja excelência não deve ser procu-
rada na aparência externa, mas no sentimento interior e na consciência de cada
indivíduo envolvido” (H3, 519). Machen, que é “fazer que”, significa para Herbart,
como já foi mencionado, pôr em prática uma relação causal destinada a determinar
o homem pedagógico para se autodeterminar como ser capaz de agir livremente, na
crença de que “a relação causal entre educador e aluno” implica não só que “você
pode agir sobre o aluno, mas também que certas influências correspondem a certos
resultados e que através da pesquisa contínua, juntamente com uma observação
relevante, você pode se aproximar cada vez mais de um conhecimento precoce des-
ses resultados” (H3, 519).
“Um dos maiores problemas da educação é como conciliar a submissão à coerção
da lei com a capacidade de usar a própria liberdade”. Ou seja, em termos kantianos:
“Como é possível cultivar a liberdade através da coerção?” (KANT, 1923, p. 441).
Esta questão colocada por Kant nas Vorlesungen über Pädagogik deve ser vista à
luz da mesma questão que Herbart também se coloca através de sua tentativa de
demonstrar, em polêmica aberta com a noção de liberdade transcendental, que a
liberdade não é incompatível com o mecanismo representativo, mas que é de facto
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alcançável através de um processo pedagógico causal que é realizado em obediência
às “leis que regulam a vida do espírito (Gesetzen geistiger Wirkung)” (H1, p. 262).
“O ser humano é a única criatura a ser educada” (KANT, 1923, p. 441), conde-
nou Kant imediatamente na abertura de suas Vorlesungen über Pädagogik. Como
afirma Herbart, só o ser humano é, de fato, suscetível a Bildung; só ele pode de-
terminar a si mesmo e, ao mesmo tempo, ser determinado, estimulado, levado à
autodeterminação.
Fichte tinha concebido, no terceiro parágrafo da Grundlage des Naturrechts
nach Prinzipien der Wissenschaftslehre de 1796, a ação pedagógica, a educação,
como um “desafio (Aufforderung) para libertar a actividade espontânea (zur freien
Selbsthätigkeit)”, ou como forma de relação, de Wechselwirkung, de inter-actio es-
quematicamente referenciável à relação entre um sujeito que impele outro sujeito
a fazer, a realizar livremente o que é potencialmente capaz de fazer. Esse “desafio
do sujeito a uma livre atividade espontânea (Aufforderung des Subjekts zu einer
freien Wirksamkeit)” (FICHTE, 1966, p. 345; H1, p. 254-255) não é concebido, po-
rém, de acordo com um esquema rígido de causa e efeito, como uma real ação causal
em necessidade, pois isso contradiria o conceito de livre atividade. Pelo contrário,
o sujeito, com base em tal incentivo ou apelo, pode resolver a atividade, uma vez
que ele percebe o convite não como um simples mandamento, mas o compreende e
o assume espontaneamente. O sujeito só pode fazer seu este convite na medida em
que a sua causa tenha seu fundamento na liberdade e na razão.
Esta causa deve, portanto, ter necessariamente o conceito de razão e de liberdade; portan-
to, deve ser ela própria capaz de conceitos, uma inteligência, e precisamente porque, como
foi demonstrado, isto não é possível sem liberdade, um ser também livre, portanto, em
geral, um ser racional, e como tal deve ser colocado (FICHTE, 1966, p. 345).
A concepção de Fichte do significado da atividade educativa como atividade
capaz, em geral, de conciliar determinação e liberdade em termos da determinação
do sujeito à autodeterminação (des Subjekts zur Selbstbestimmung) parece ser, em
certos aspectos, plenamente partilhada por Herbart. Sendo assim, Herbart, par-
tindo de tal abordagem, alcançou, contudo, um firme afastamento das posições de
seu mestre em relação ao tema da fundação da liberdade transcendental. Em suas
próprias palavras:
Esta [concepção] implica uma inconsistência no campo da pedagogia, uma vez que o acto
inteligível da liberdade não se encontra em nenhuma relação com o tempo, enquanto a edu-
cação, se extrairmos do seu início e progresso no tempo e da relação causal entre educador
e aluno, se torna para nós algo completamente incompreensível (H3, p. 151).
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A atitude polêmica de Herbart em relação ao conceito kantiano-fichteano de li-
berdade foi, portanto, motivada pelo reconhecimento de que esta dimensão de modo
algum retira suas raízes da esfera fundamentalmente diferente daquela na qual as
vidas dos seres humanos ocorrem concretamente, em suas manifestações empíri-
cas fenomenais. Portanto, não se refere, segundo Herbart, a uma esfera completa-
mente desligada de qualquer forma de causalidade (fenomênica). De outra parte,
baseia-se também na firme convicção de que não só o processo de autonomia, isto é,
de emancipação (Mündigkeit) do indivíduo procede de mãos dadas com o processo
de sua formação espiritual, mas também, além disso, de que este processo encontra
sua coroação na aquisição daquela “firmeza interior (enxerto de Festigkeit)” (H2,
p. 11), na qual só pode enraizar-se plenamente aquele ato de Selbstbestimmung
que dá à decisão o caráter de liberdade.
Notas
1 Título original: Komplexität und Bildung. Die Pädagogik Herbarts und ihre einheimischen Begriffe. Tra-
dução e revisão do Dr. Odair Neitzel e do Dr. Cláudio Almir Dalbosco.
2 Na sequência, adotamos o modo habitual de citação das obras completas de Herbart (1887/1989), abrevian-
do a obra pela letra “H”, seguida do número do volume e da indicação de página.
3 Recordo que a resposta à revisão de Jachmann, juntamente com a relativa ao debate crítico sobre o Lehr-
buch zur Einleitung in die Philosophie, foi publicada por Herbart sob a forma de uma brochura com o
título: Ueber meinen Streit mit der Modephilosophie dieser Zeit.
4 Die Autonomie der Pädagogik Herbarts é o título de um artigo de Walter Asmus (1975), um dos principais
estudiosos e sem dúvida o mais importante biógrafo de Herbart. Trata-se de um artigo extremamente
controverso contra as declarações de Gunther Buck, destinado a sublinhar a absoluta inconsistência dos
“argumentos” apresentados pelos recentes intérpretes de Herbart em apoio à “tese de autonomia” da sua
pedagogia. Os argumentos de Buck, expressos num artigo eloquentemente intitulado Über die dunkle
Seite der Pädagogik Herbarts: Ein Literaturbericht (BUCK, 1974), será retomado e ampliado no volume
Herbarts Grundlegung der Pädagogik (BUCK, 1985).
5 Cf. em propósito: Bernhard Schwenk (1963), Wolfgang Klafki (1971), Walther Asmus (1975), Josef Leopold
Blass (1972), Günter Buck (1969), Norbert Hilgenheger (1993).
6 “Os sistemas filosóficos que admitem o fatalismo ou a liberdade transcendental são excluídos da pedagogia
por si mesmos, uma vez que não podem assumir em si mesmos, sem inconsistência, o conceito de educabi-
lidade, o que implica uma passagem da indeterminação para a estabilidade” (H10, p. 69). Nesses termos,
Herbart se expressou na Introdução da Umriss pädagogischer Vorlesungen (H10). É evidente que com a
expressão “liberdade transcendental” Herbart se refere expressamente à perspectiva kantiana, como abso-
lutamente inadequada, em sua opinião, para esclarecer a possibilidade da gênese da moralidade no tempo
(H10, p. 209).
7 Cf. “O conceito de educação é um conceito dado; nenhuma construção idealista pode alcançá-lo sem cair
nos erros mais grosseiros e evidentes. Mesmo este fato constitui simplesmente uma refutação suficiente do
idealismo em todas as formas que ele pode experimentar. Uma das provas essenciais da autêntica metafí-
sica e psicologia é que elas tornam compreensível a relação causal pedagógica” (H10, p. 16).
8 “Tal como o astrônomo, o educador – Herbart mais esclarecido – tenta finalmente identificar, questionando
a natureza apropriadamente e através de um raciocínio preciso e suficientemente extenso, quais leis re-
gem o curso dos fenômenos que estão diante dele e, assim, também compreender como é possível modificar
esse curso de acordo com um propósito e um plano. Bem! Essa concepção realista não tolera a menor in-
terferência da concepção idealista. Nem mesmo o mais leve sopro de liberdade transcendental é permitido
respirar, penetrando através de uma pequena fissura, no domínio do educador” (H1, p. 261).
9 A referência implícita aqui é a August Hermann Niemeyer, cujo Grundsätze der Erziehung und des Unter-
richts für Eltern, Hauslehrer und Schulmänner, que Herbart apreciou particularmente e repetidamente
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questionou em várias ocasiões, foi precisamente articulado, no que diz respeito aos três primeiros capí-
tulos da seção “Sobre educação espiritual (Von der geistigen Erziehung)” contida no primeiro volume do
trabalho, de acordo com a lógica que visa distinguir e justapor a “formação da faculdade do conhecimento
(Erkenntnissvermögen) ou educação intelectual”, a formação da “faculdade da sensibilidade (Gefühlsver-
mögen)” ou “educação estética”, a formação da “faculdade do desejo (Begehrungsvermögen)” ou educação
moral, de acordo com a partição clássica da chamada Vermögenspsychologie, contra a qual Herbart tomará
repetidamente posição em suas várias obras. “Se a educação – resumiu Niemeyer – é para promover o
desenvolvimento e a formação das capacidades do homem como um todo, então ela deve ser em parte a
educação do corpo, em parte a educação do espírito e contribuir para a formação do intelecto, do sentimento
e da vontade. Uma educação intelectual, estética e moral pode, portanto, ser distinguida” (NIEMEYER,
1829, p. 12).
10 A metáfora herbácea pode ser rastreada até a Versuche über den Zusammenhang der tierischen Natur des
Menschen mit seiner geistigen de Friedrich Schiller, em que o homem foi definido como algo intermediário
entre “anjo e animal”. Ver Schiller (1980, p. 296, v. 5).
11 As passagens de Kant às quais Herbart se refere aqui estão na seguinte ordem: “Na educação tudo depen-
de disso, que as bases corretas sejam colocadas em todos os lugares e que elas sejam tornadas inteligíveis
e aceitáveis (begreiflich und annehmlich) para as crianças. É preciso ter cuidado (dahin sehen) para que o
aluno aja bem, não por hábito, mas por suas próprias máximas. Ver Immanuel Kant (1923, p. 492 e 475).
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A escuta crítica e o aspecto dialógico da educação moral: a concepção de J. F.
Herbart do professor como guia moral1
La escucha crítica y el aspecto dialógico de la educación moral: la concepción de J. F. Herbart del
maestro como guía moral
Critical listening and the dialogic aspect of moral education: J. F. Herbart’s concept of the teacher
as moral guide
Andrea English*
Resumo
Em seu trabalho educacional central, Pedagogia geral derivada do m da educação (1806), J. F. Herbart não desen-
volveu explicitamente uma teoria da escuta, entretanto, seu conceito de professor como um guia no desenvolvi-
mento moral do educando fornece percepções valiosas sobre a dimensão moral da escuta inerente à interação
professor-aluno. A teoria de Herbart questiona radicalmente a linearidade assumida entre escuta e obediência à
autoridade externa, não apenas iluminando distinções importantes entre socialização e educação, mas também
ressaltando as consequências para nossa compreensão do papel da escuta nas relações educacionais. Nesta
investigação, argumenta-se que a escuta crítica no ensino contribui para a educação moral e o desenvolvimento
do aluno. Para tanto, examina-se a visão de Herbart sobre a tarefa do professor como um guia moral no campo
da educação moral. Sustenta-se que reexaminar a teoria da educação de Herbart (uma teoria que é, majoritaria-
mente, não mais discutida na losoa educacional anglo-americana) pode ser producente à nossa compreensão
da educação moral em sociedades democráticas e plurais.
Palavras-chave: educação moral; escuta crítica; Herbart.
Resumen
En su obra educativa central, Pedagogía General derivada del n de la educación (1806), J. F. Herbart no desarrolló
explícitamente una teoría de la escucha, sin embargo, su concepto del maestro como guía en el desarrollo moral
del alumno proporciona valiosas ideas sobre la dimensión moral de la escucha inherente a la interacción maes-
tro-alumno. La teoría de Herbart cuestiona radicalmente la linealidad asumida entre la escucha y la obediencia a
la autoridad externa, no sólo iluminando importantes distinciones entre socialización y educación, sino también
destacando las consecuencias para nuestra comprensión del papel de la escucha en las relaciones educativas. En
esta investigación, Andrea English argumenta que la escucha crítica en la enseñanza contribuye a la educación
moral y al desarrollo del estudiante. Con este n, examina la visión de Herbart sobre la tarea del maestro como
guía moral en el campo de la educación moral. El pensador argumenta que reexaminar la teoría de la educación
* Doutora em Educação pela Humboldt University de Berlim, Alemanha. Professora Associada a Moray House School of
Education and Sport, University of Edinburgh. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1351-0507. E-mail: andrea.english@
ed.ac.uk
Recebido em: 29/01/2021 – Aprovado em: 25/11/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i3.12237
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de Herbart (una teoría que en su mayoría ya no se discute en la losofía educativa angloamericana) puede ser
productivo para nuestra comprensión de la educación moral en sociedades democráticas y plurales.
Palabras clave: educación moral; escucha crítica; Herbart.
Abstract
In his central educational work, The Science of Education (1806), J. F. Herbart did not explicitly develop a theory
of listening, yet his concept of the teacher as a guide in the moral development of the learner gives valuable
insight into the moral dimension of listening within teacher-student interaction. Herbarts theory radically calls
into question the assumed linearity between listening and obedience to external authority, not only illumina-
ting important distinctions between socialization and education, but also underscoring consequences for our
understanding of the role of listening in educational relations. In this inquiry, Andrea English argues that critical
listening in teaching contributes to the moral education and development of the learner. To do this, she exami-
nes Herbarts view of the teachers task as a moral guide in the realm of moral education. English contends that
reexamining Herbarts theory of education (a theory that is, for the most part, no longer discussed in Anglo-A-
merican educational philosophy) can productively inform our understanding of moral education in democratic
and pluralist societies.
Keywords: moral education; critical listening; Herbart.
Introdução
Em seu principal trabalho educacional – A pedagogia geral derivada do fim da
educação –, Johann Friedrich Herbart não desenvolveu explicitamente uma teoria
da escuta. Entretanto, seu conceito de professor como guia do desenvolvimento mo-
ral do educando oferece percepções valiosas sobre a dimensão formativa da escuta
na interação professor-aluno (HERBART, 1902a). A teoria de Herbart questiona
radicalmente a linearidade assumida entre escuta e obediência à autoridade exter-
na, não apenas iluminando distinções importantes entre socialização e educação,
mas também ressaltando as consequências para nossa compreensão do papel da
escuta nas relações educacionais. Nesta investigação, defendo que a escuta crítica
no ensino contribui para a educação moral e o desenvolvimento do educando. Para
fazer isso, eu examino a visão de Herbart sobre a tarefa do professor como um guia
moral no campo da educação moral.
Pode parecer contraintuitivo dizer que o modo como um professor escuta um
aluno contribui para o desenvolvimento moral do educando. Em geral, podemos
supor que são as regras e normas morais que um professor transmite aos alunos,
ou as boas ações do professor e as interpretações de papéis que servem para educar
moralmente o aluno. A partir dessas suposições, pareceria que a educação moral
exigiria principalmente que o educando, não o professor, ouvisse, já que o aprendiz
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é aquele que precisaria entender e obedecer às regras e normas morais passadas a
ele ou a ela. Nessa perspectiva, a escuta do professor parece se conectar à educação
moral apenas como um meio de avaliar se o aluno deu respostas corretas definidas
de maneira normativa.
Para compreender estas hipóteses, devemos primeiro reconhecer que a escu-
ta não é um aspecto unilateral e passivo do aprendizado. Em vez disso, implica
uma inter-relação entre as pessoas, em que cada uma é aberta para o outro. Ouvir
nos mantêm abertos para o outro – para as necessidades, os desejos, as ideias, os
questionamentos e os julgamentos do outro. Quanto a esse aspecto, a escuta é uma
parte essencial da experiência de ensino do professor2.
Para explorar a noção de escuta no ensino, volto-me para o trabalho de Johann
Friedrich Herbart, um dos fundadores da moderna teoria educacional. Em geral,
Herbart não é mais discutido na filosofia educacional anglo-americana, o que se
deve, pelo menos em parte, à crítica de John Dewey a alguns aspectos do trabalho
de Herbart3. Essa negligência em relação ao trabalho de Herbart no discurso edu-
cacional contemporâneo levou a uma perda de percepção dos aspectos frutíferos de
sua teoria educacional. Eu afirmo que reexaminar a teoria da educação de Herbart
pode ser producente à nossa compreensão da educação moral em sociedades demo-
cráticas e plurais.
No modelo de Herbart, a tarefa do professor como guia moral não é transmitir
um conjunto particular de regras morais e leis à criança e, subsequentemente,
escutar como a criança se conforma a essas regras. Ao invés disso, a tarefa do
professor é criar um relacionamento com o aluno que apoie o educando no desen-
volvimento de um censor interno. Esse censor interno pode ser descrito como uma
voz interior que interrompe no pensamento do aluno e orienta o educando ao que
fazer ou não diante de um dilema moral. Essa voz interior é cultivada através da
educação. Por conta disso, o professor se depara com uma tarefa difícil: identificar
em que medida os alunos estão se ouvindo, isto é, interrompendo-se por meio de
seu próprio censor interno, antes de uma ação explícita. Nesse contexto, o diálogo
com o aluno – e, portanto, a escuta da parte do professor – assume um papel vital.
Esta investigação analisa o papel da escuta na concepção de educação moral
de Herbart. Especificamente, acompanho o papel da escuta do professor na concep-
ção de Herbart como guia moral. Eu analiso a escuta do professor como um modo
crítico de ouvir o aluno e como um modo reflexivo autocrítico de ouvir. Antes de
examinar esses dois aspectos da escuta do professor que são vitais para o desenvol-
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vimento da pessoa moral, é necessário primeiro investigar a ideia de Herbart sobre
o que torna uma pessoa moral.
O sujeito moral e o paradoxo educacional
Em seu influente trabalho inicial, A representação estética do mundo como
tarefa principal da educação, Herbart definiu sua noção do sujeito moral mais con-
cretamente ao afirmar que: “o homem moral comanda a si mesmo” (HERBART,
1902b, p. 62). Herbart viu essa ideia representada no imperativo categórico de
Kant e procurou destacar a relação intersubjetiva entre o eu e o outro, ou seja, for-
mulando que o imperativo categórico expressa um julgamento de si próprio à luz do
reconhecimento do outro. Isso aparece mais claramente na segunda formulação de
Kant (1988, p. 58): “Haja de tal maneira que você trate a humanidade, seja em sua
própria pessoa ou na pessoa de qualquer outro, sempre e ao mesmo tempo como fim
e nunca meramente como meio para um fim”.
Na visão de Herbart, o imperativo categórico é central para entender a mora-
lidade. Contudo, o conceito da pessoa moral como alguém que é capaz de julgar a
sua própria vontade de acordo com os princípios da universalização e da humani-
dade instaura um dilema para os educadores que Herbart acreditava que Kant não
abordou adequadamente. Esse dilema está no fato de que a capacidade dos alunos
de julgar por si mesmos o que é bom e correto precisa ser cultivada através da
educação. Além disso, para cultivar a capacidade dos alunos de julgar com autode-
terminação, os educadores devem influenciar as escolhas dos alunos sem escolher
por eles e sem manipulá-los4. A preocupação de Herbart destaca o paradoxo da
educação que reside no fato de que a educação para a autonomia é alcançada atra-
vés da heteronomia, ou, em outras palavras, a capacidade do indivíduo de mediar
o pensamento e a ação com razão e julgamento é possibilitada por relações educa-
cionais intergeracionais e intersubjetivas.
A fim de abordar essa preocupação, Herbart argumentou que os educadores
devem entender como os indivíduos fazem escolhas. Ele argumentou que não é a
liberdade transcendental, mas a “liberdade de escolha” concreta que os educadores
precisam entender, pois esse é o único tipo de liberdade sobre a qual eles podem ter
influência (HERBART, 1902b, p. 61). Herbart adotou uma abordagem fenomeno-
lógica para analisar como os seres humanos fazem escolhas. Especificamente, ele
investigou o que está envolvido na escolha pelo bem. Ele perguntou: O que acontece
no momento em que um indivíduo escolhe não seguir suas inclinações ou desejos
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egoístas, preferindo agir em reconhecimento e respeito pelo outro? Conforme Her-
bart, em momentos de crise moral, o indivíduo experimenta uma ruptura com seu
self, distancia-se do eu e começa a observá-lo e julgá-lo. Assim, podemos entender o
eu como dividido em dois eus, isto é, tanto como sujeito julgador quanto como objeto
sendo julgado. Herbart se referiu a esses dois lados de nós mesmos como partes de
nosso caráter, um subjetivo e outro objetivo (HERBART, 1902a, p. 200).
Embora a terminologia de Herbart esteja um pouco desatualizada, a distinção
entre eu subjetivo e eu objetivo é útil para entender sua visão dos processos de
tomada de decisão moral. O “caráter objetivo” compreende todas as escolhas que
alguém fez até aquele momento em sua vida. Esse lado de si mesmo é objetivo
porque já é formado por escolhas que, em grande medida, se tornaram hábitos e
rotinas. O “caráter subjetivo” refere-se ao eu reflexivo, o qual julga o self objetivo,
potencialmente critica escolhas passadas e cria novas regras para a conduta futu-
ra (HERBART, 1902a, p. 200). Esses dois lados de nós mesmos surgem divididos
quando nos deparamos com situações novas e desconhecidas.
O rompimento que experimentamos em dilemas morais é significativo para
Herbart porque marca um certo tipo de relação consigo mesmo. Marca o momento
em que alguém está em desacordo consigo e se encontra em um conflito interior
ou “luta interior” (inneren Kampf) (HERBART, 1902a, p. 200). Para entender o
conceito de Herbart sobre o sujeito moral e a educação moral é necessário aprofun-
dar-se nesse conceito de luta interior. A experiência da luta interior se deve ao fato
de que nossas decisões passadas entram em conflito com as exigências da situação
atual – assim, nosso lado objetivo entra em conflito com nosso lado subjetivo. A luta
interior marca o ponto em que podemos fazer mudanças na maneira como agimos
no mundo. Esses momentos de luta interior não são necessariamente morais; eles
podem ser parte de todo tipo de processo de tomada de decisão em uma pessoa
harmoniosamente interior. Nossa luta interior torna-se parte da tomada de decisão
moral quando marca o ponto em que temos a opção de nos afastarmos das ações
egoístas e nos movermos para ações que respeitem os outros. Esses são os momen-
tos em que nos perguntamos: o que devo fazer?
A fim de extrair as implicações morais da luta, Herbart destacou o aspecto
dialógico dessa relação de self-self implícita na noção de Kant de julgamento moral.
Argumentou que, quando um indivíduo enfrenta uma crise moral – por exemplo,
mentir ou dizer a verdade em uma dada situação –, podemos imaginar que a “voz
do imperativo moral” surge no indivíduo e distingue o “digno e bom” de um lado,
e o “comum e ruim” de outro (HERBART, 1902b, p. 63). Essa voz surge dentro do
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espaço de auto-observação. Isto é, surge como parte do lado subjetivo de nosso
caráter, quando nos encontramos em uma luta sobre se devemos seguir desejos e
inclinações egoístas ou tomar um novo caminho que respeita o outro.
Herbart enfatizou que essa voz do imperativo moral não tem nada necessaria-
mente em comum com o eu que julga. Essa voz dominante que ouvimos dentro de
nós tem um aspecto moral na medida em que é informada por ideias éticas e é auto-
crítica. Em outras palavras, é ouvido como uma “censura” (Censur) – um julgamen-
to negativo – pela pessoa que está inclinada a seguir interesses e desejos egoístas
(HERBART, 1902b, p. 63, 1902a, p. 204-209). Uma pessoa deve aprender a ouvir
essa voz, isto é, cada indivíduo deve aprender a ouvir seu próprio censor interior.
Implícita na análise de Herbart do indivíduo moral está a ideia de que, para
ser moral, deve-se ouvir a si mesmo de uma maneira particular, a saber, deve-se
ouvir os comandos de seu próprio senso interno no contexto dos dilemas morais.
Isso se baseia no senso moral da noção de ouvir a si mesmo que lembra o daemon
que chega a Sócrates como uma voz dizendo-lhe o que não fazer (PLATO, 1966)5.
Nesses momentos, podemos dizer que começamos a escutar interiormente e iniciar
um diálogo interno do tipo que Bernhard Waldenfels (1995, p. 96) descreve quando
afirma que, no diálogo interior, “o narrador se separa de seu passado e se impõe
para agir de maneira diferente no mundo futuro”. Dessa forma, a ideia de uma pes-
soa escutando uma voz interior como um sensor interno, como eu irei desenvolver
posteriormente, conecta-se à ideia de seres humanos como seres que questionam e
aprendem que podem questionar seus próprios motivos e colocar em dúvida seus
planos de ação. Somente quando essa voz que surge dentro de nós é informada por
ideias baseadas no reconhecimento do outro, é que a escuta dessa voz assume uma
dimensão moral.
A ênfase de Herbart nessa luta dentro de nós como um aspecto moral dos pro-
cessos decisórios é significativa para sua teoria da educação moral: a luta marca o
ponto em que há uma abertura na experiência de um indivíduo, um espaço no qual
o indivíduo tem a escolha de romper com seu passado e agir de forma diferente
no futuro. Esse momento de luta interior, observou Herbart, é um momento exis-
tencial que experimentamos com tanta força que pode ameaçar a “saúde mental”
e “corporal” (HERBART, 1902a, p. 204). O processo de aprender a encarar a luta
interna e ouvir o sensor interno é um aspecto essencial da aprendizagem no campo
da moralidade.
A escolha do indivíduo para ouvir a voz do imperativo moral e agir contra o
interesse próprio em direção ao outro é um ato de “liberdade interior”, que Herbart
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via como um aspecto de todos os seres humanos e algo que os educadores podem
influenciar. A ideia de “liberdade interior” delimita a relação moral de si mesmo
consigo mesmo, especificamente a relação da vontade de uma pessoa com o julga-
mento crítico que essa pessoa lança sobre sua própria vontade6. Essa ideia destaca
a capacidade humana de autorreflexão que separa os seres humanos de outros ani-
mais, isto é, nossa capacidade de nos libertar interiormente de nossas inclinações,
restringindo-nos da ação, nos voltando para nós mesmos, pensando criticamente
e julgando nossas inclinações com aprovação ou desaprovação. Assim, a pessoa
moral é capaz de agir contra as inclinações autocentradas e tornar a liberdade
interior “prática” (HERBART, 1851, p. 33f). Para Herbart, o conceito de “liberdade
interior”, juntamente com os conceitos de “retidão” (Rechtlichkeit) (o qual combina
as ideias de direito e equidade) e “bondade” (Güte), formam as três ideias éticas
centrais para a educação moral7.
Herbart argumentou que a tarefa da educação moral é desenvolver a capaci-
dade do educando de compreender e julgar moralmente de forma reflexiva, e não
normativamente8. Como Rainer Bolle (2007, p. 53) enfatiza, a moralidade de Her-
bart se refere à “capacidade de avaliar suas próprias ações de acordo com os pontos
de vista morais e agir de acordo com esse julgamento”. O relato de Herbart sobre a
tomada de decisão moral problematiza a ideia de que a educação moral equivale a
iniciar os outros cegamente em uma ordem ética existente ou em uma nova ordem
ética prevista pelos próprios educadores. Além disso, ele rejeitou as noções de edu-
cação centradas na criança que deixam todos os julgamentos nas mãos do educan-
do sem orientação. Em vez disso, para Herbart, há duas ideias opostas no cerne da
educação moral: primeiro, que os educadores têm a responsabilidade de não deixar
ao acaso, se os alunos escolhem ações de interesse próprio ou ações que reconhecem
o outro. Em segundo lugar, que os educadores devem deixar o espaço livre para que
os alunos decidam por si mesmos como agir, seja por interesse próprio ou moral. A
questão central, então, é a seguinte: que tipo de educação permitiria aos professo-
res guiar os alunos para as relações do self moral sem tornar os educandos depen-
dentes dos julgamentos dos outros? A resposta de Herbart é dupla. Ele argumentou
que a educação envolve tanto “instrução educativa” (erziehende Unterricht) quanto
“orientação moral” (Zucht)9. Consequentemente, a instrução baseia-se na expansão
do conhecimento e da experiência dos aprendentes para além do imediatismo de
seu mundo observado, para que eles vejam a pluralidade de escolhas que poderiam
fazer no mundo. A orientação moral é baseada no diálogo que apoia o pensamento
crítico dos alunos sobre as escolhas que devem fazer no mundo. Embora esses dois
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campos da educação estejam intimamente interligados na prática do professor,
meu foco aqui será em como Herbart vislumbrou o aspecto dialógico da relação
professor-aluno na educação como uma forma de orientação moral.
Escuta crítica e orientação moral
No contexto de sua discussão sobre a educação moral, Herbart apontou para
um dilema central na prática educacional que ainda tem relevância para a práti-
ca docente hoje. Ele observou que o professor só pode testemunhar a escolha da
criança – boa ou ruim – depois que a criança tiver agido de acordo com ela. Para
o professor, a moralidade da criança é um evento no mundo, um “acontecimento”
(Ereignis), para usar o termo de Herbart (1902a, p. 61). O dilema reside, portanto,
no fato de que, para influenciar a formação do caráter moral e do desenvolvimento
do educando, os professores não podem esperar que o educando tenha agido. Em
vez disso, eles devem ser capazes de influenciar o aluno antes que o aluno tenha
feito escolhas concretas no mundo. Mesmo as boas escolhas de uma criança po-
dem não ser, de fato, morais, se forem resultado de imitação e não de julgamento
autorreflexivo. Herbart explicou que a única maneira de contornar esse dilema é
conceber a tarefa do professor como uma forma de orientação moral que visa en-
tender e influenciar o processo de pensamento por trás das escolhas do educando.
Nesse sentido, a orientação moral implica uma forma de diálogo com o educando,
através do qual o professor questiona o aluno de um modo que leva o próprio aluno
a se questionar, isto é, a questionar suas próprias suposições e motivos para a ação.
Dessa forma, o diálogo com o aluno envolve interromper os modos tomados como
garantido de pensar e agir do aprendido, de forma a cultivar a luta interior do alu-
no, de modo que o aluno comece a desenvolver um censor interno. Nesse contexto,
a orientação moral exige que o professor ouça criticamente o educando e também
de maneira autocrítica, como explicarei a seguir.
Para entender esse conceito de professor como guia moral, é útil observar
como Herbart diferenciou sua ideia de professor de Jean-Jacques Rousseau, cujo
modelo também podemos associar ao educador como guia no cultivo do indivíduo
moral. Embora Herbart compartilhasse com Rousseau a preocupação com o desen-
volvimento e a liberdade de cada indivíduo e, como Rousseau, via a educação como
um meio de cultivar essa liberdade, ele diferia de Rousseau em sua abordagem
à educação. Em mais de uma ocasião em seu trabalho, Herbart criticou especi-
ficamente a visão de Rousseau do educador como “acompanhante de Emílio em
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cada passo” (HERBART, 1896, p. 128, 1902b, p. 79). Ainda que sua crítica pareça
relativamente inofensiva a princípio, Herbart estava enfrentando um problema
significativo presente no núcleo da concepção pedagógica de Rousseau, a saber, de
que a estreita relação entre o educador e Emílio não permite a Emílio a liberdade
de exploração do tipo que as crianças devem se envolver por conta própria. Além
disso, o educador não tem a liberdade de obter o tipo de distância do educando
necessária para o julgamento crítico de seus pensamentos e ações10. Assim, embora
Herbart reconhecesse que Rousseau acreditava tanto na possibilidade teórica como
real da educação que leva o indivíduo à liberdade, diferenciando-a da adesão cega
que conduz à autoridade, ele argumentou que o método de Rousseau realmente
alcançaria o fim oposto: o professor no modelo de Rousseau é como “um escravo
acorrentado ao educando” de uma maneira que dificulta a liberdade tanto do pro-
fessor quanto do educando (HERBART, 1896, p. 128)11. Em última análise, Herbart
considerou o método de Rousseau de educar “o homem natural” não apenas difícil
para o professor, mas também para o educando, porque o educando não ganha o
tipo de experiências variadas necessárias para aprender a ser livre no sentido de
ser capaz de viver “no meio da sociedade heterogênea” (HERBART, 1902b, p. 79).
A ideia contrastante de Herbart sobre o professor é mencionada em sua Pales-
tra introdutória a estudantes de pedagogia (HERBART, 1896). Nela deu uma visão
da teoria da orientação moral desenvolvida em seus trabalhos posteriores. Herbart
escreveu que, em vez de ser um acompanhante em todas as etapas, o educador deve
ser “um guia sábio de longe, que com palavras profundamente penetrantes e ação
firme” sabe quando proteger os alunos e quando deixá-los em seus próprios cuidados
(HERBART, 1896). Essa frase resume o que Herbart quis dizer com orientação moral
(Zucht). Em oposição ao modelo de Rousseau, Herbart acreditava que o professor
necessitava de certa distância do educando para observar e julgar criticamente as
escolhas do educando. Por conta disso, é somente através da distância educativa que
o professor pode entender como a criança é influenciada pelo mundo imediatamente
observado, com todos os seus limites, e assim reconhecer em que o pensamento e as
interações da criança com o mundo precisam de expansão ou modificação. O pro-
fessor como guia moral está sempre procurando descobrir em que medida o aluno
está considerando os outros em seus pensamentos e escolhas. Os professores podem
se perguntar: Até que ponto esse aluno percebe as consequências de suas ações? O
aluno consegue suspender a ação e contemplar suas escolhas? Ou o aluno está agin-
do caprichosa e instintivamente? O aluno está imitando o que os outros fazem ou
dizem, ou procurando encontrar e entender o que é bom por conta própria? A prática
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educativa que simplesmente diz ao educando o que fazer ou o que é bom e correto não
pode responder a essas difíceis questões éticas e pedagógicas. Como Herbart enfati-
zou, nenhuma quantidade de discursos unidirecionais ou advertências pode ajudar
os professores a entender os alunos, e sem entender o aluno como um indivíduo, os
professores não são capazes de julgar como orientar cada educando a se tornar cons-
ciente e aberto ao outro em um sentido moral. Por essa razão, a escuta crítica entra
em foco como aspecto essencial da orientação moral.
Escutando o educando
Herbart sustentou que o educando individual deve ser o “ponto de orientação”
para todas as decisões do professor (HERBART, 1902b, p. 113). Desse ponto de
vista, nem a experiência prática nem os princípios a priori podem nos dizer isolada-
mente como educar, porque cada educando individual é único e só pode ser enten-
dido pelo professor no momento, isto é, através de experiências vividas e interação
interpessoal. O indivíduo deve “ser encontrado, não deduzido” (HERBART, 1902b,
p. 83). Isso significa que o professor deve entender onde o aluno está começando em
seu processo de aprendizado e onde o aluno ainda precisa crescer.
Nas diversas salas de aula de hoje, é cada vez mais importante que os pro-
fessores compreendam como descobrir cada aluno como um indivíduo único, sem
impor preconceitos ou fazer suposições sobre os alunos. A noção de Herbart sobre
o professor ajuda a esclarecer como a escuta pode desempenhar um papel vital no
atendimento à singularidade de cada aluno individual. Em seu modelo, “descobrir”
o aluno implica que o professor escute criticamente o aluno, tanto independente
de quanto no contexto do diálogo. Nos escritos de Herbart, podemos diferenciar as
maneiras como o guia moral do professor é orientado para o educando individual
através da escuta crítica. No contexto atual, uso o termo “crítico” para descrever a
escuta do professor, a fim de referir-me ao fato de que o professor está escutando
maneiras de entender como o aluno está julgando a si mesmo e avaliando o que é
ouvido com base na distinção entre egoísmo e consideração pelos outros. Especi-
ficamente, ouvir criticamente é orientado para a compreensão do aluno em três
aspectos: ouvir para saber onde está o aluno; ouvir para saber em que direção
expandir o pensamento do educando; e ouvir para saber quando terminar a tarefa
da orientação moral. Aqui, explicarei cada um deles por sua vez.
No modelo de Herbart, a orientação moral envolve inicialmente descobrir
como o aluno pensa por si próprio. Herbart argumentou que o professor deve vir
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a entender o aluno sem preconceitos iniciais, porque considerou necessário que
o professor primeiro avaliasse como o aluno normalmente pensa. Afirmou que o
professor deve ouvir todos os “desejos inocentes” da criança sem “prematuramen-
te [procurar] corrigi-los”, pois estes podem estar ligados às “opiniões e visões” da
criança (HERBART, 1902b, p. 243). O professor está escutando aqui, o que eu estou
chamando de saber ouvir onde o aluno está, é uma maneira de ser orientado para
o aluno, a fim de entender como o aluno pensa, de modo a obter uma impressão
inicial de como os pensamentos do aluno podem influenciar as ações.
A ideia de Herbart de orientação moral não é simplesmente ouvir com neutra-
lidade as opiniões do educando, nem é afirmativamente levar o aluno a assumir as
opiniões do professor. Pelo contrário, envolve a problematização da visão do edu-
cando sobre si mesmo, na medida em que é informado pelo egoísmo e pelo interesse
próprio, e não pelo respeito e reconhecimento do outro. Por essa razão, o professor
como guia moral também deve se engajar em diálogo com o aluno para entender
ativamente como o aluno pensa e o que as escolhas do aluno estão informando. O
objetivo do diálogo é entender se o aluno está agindo inclinado meramente para o
interesse próprio, sem considerar cuidadosamente a situação em questão. Dessa
forma, o professor usa perguntas que procuram mediar entre o pensamento e a ação
do aluno, a fim de colocar o educando em conflito consigo mesmo, de modo que o alu-
no se posicione fora do seu self, a fim de ganhar distância sobre si ou suas intenções
iniciais, tornando-se autorreflexivo e formando juízos críticos sobre essas intenções.
Essa forma de diálogo tem como objetivo iniciar o pensamento reflexivo e autocrítico
do aluno, para que possamos reconhecer que a orientação do professor em relação
ao aluno envolva ouvir para saber em que direção expandir o pensamento do aluno.
Para entender esse sentido de escuta, podemos nos voltar para o exemplo de
Herbart de como um professor, como guia moral, reagiria de maneira diferente a
dois alunos distintos, cada um deles apanhado de uma mentira (HERBART, 1902b,
p. 240). Ele explicou que se um professor ouve uma criança dizendo uma “menti-
ra interesseira” pela primeira vez, então o professor deve corrigir o educando de
forma dura para que o aluno reconheça a gravidade e as consequências de seu ato
e queira se corrigir, a fim de não arriscar perder o respeito que ela havia vencido
anteriormente. No entanto, se o professor começar a reconhecer que uma criança se
tornou uma “mentirosa deliberada”, o professor deve abordar a situação de forma
diferente. Como Herbart observou, se o professor usasse palavras corretivas seve-
ras para a criança que já tinha o hábito de mentir, a criança só se tornaria “mais
enganosa e insidiosa” (HERBART, 1902b, p. 240). Essa criança sabe que o profes-
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sor desaprova, mas seus hábitos mostram que ele não está preocupado com essa
desaprovação. Herbart argumentou que a única maneira de lidar com tal situação
não é por reprimendas isoladas, mas expandindo o “círculo de pensamento” do edu-
cando para que ele possa descobrir e valorizar o significado de respeito e escolher
outras opções de ação (HERBART, 1902b, p. 240)12.
Em ambos os casos, o professor está olhando e ouvindo todo o indivíduo como
um ser histórico. Embora ambos os alunos estejam mentindo, o professor está ou-
vindo a mentira de maneira diferente. O professor ouve a cada aluno não apenas
em um momento isolado, mas como uma pessoa que está em processo de mudança
e crescimento. O professor nesse modelo deve fazer constantemente conexões entre
as escolhas presentes e passadas do educando individual e avaliar como elas se re-
lacionam com possibilidades futuras de mudança. Esse tipo de julgamento pedagó-
gico da pessoa como um todo requer um professor que possa expandir o “círculo de
pensamento” do educando em direções diversificadas, o que significa apresentar ao
aluno modos alternativos de ver o mundo, novas ideias e diferentes conhecimentos
ou experiências que apresentam diferentes opções para ação.
Em sua teoria da educação moral, Herbart desenvolveu quatro formas de in-
teração dialógica que visam cultivar a aprendizagem moral expandindo o pensa-
mento do educando de tal maneira que o aluno comece a entrar em uma relação
moral própria. Para Herbart, o professor procura entender como o educando está
julgando a si mesmo e tem a responsabilidade de regular a autocompreensão e
o autojulgamento do educando com base nas relações estéticas estabelecidas nas
ideias de “liberdade interior”, “bondade” e “retidão”. O professor está, assim, orien-
tando os alunos a compreender e problematizar a diferença entre o bem e o mal
e a se transformar nessa base. Através do processo de diálogo, o professor leva os
alunos a confrontarem a si mesmos e a suas próprias histórias de aprendizado,
julgando suas decisões passadas e entrando em uma autorrelação moral implícita
nessas ideias éticas. Essas formas de interação podem ser descritas como educação
moral que (1) “suspende” (halten ou anhalten) aos alunos, para que não ajam de
maneira caprichosa e lembrem-se de suas escolhas passadas, boas e más, se são
coerentes de acordo com decisões passadas na medida em que estas eram represen-
tativas do reconhecimento dos outros; (2) ajuda os alunos a “determinar” (bestim-
men) escolhas presentes compatíveis com um “calor para o bem”; (3) exige que os
aprendentes “criem regras” (regeln) para ações futuras com base em tais escolhas;
e (4) “apoia” (unterstützt) a luta interior dos aprendentes (Kampf), apoiando-os na
oposição ao seu interesse inicial de ocupação consigo mesmo e seguindo com ações
que são baseadas em sua nova compreensão da coisa boa ou certa a fazer13.
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Herbart não pretendia sugerir uma receita para a ação do educador. Ele deu,
no entanto, um exemplo que ajuda a esclarecer como o professor como guia moral
pode interagir com o aluno, a fim de fazer com que o aluno entenda e julgue a si
mesmo de acordo com uma ideia de retidão:
As crianças se associam umas às outras e trocam coisas e serviços a preços mais ou menos
fixos. A interferência dos adultos, e mesmo apenas a antecipação dessa possível interferência,
tornam a justiça entre as crianças incerta e priva-as de seu respeito. [...]. Nós podemos esta-
belecer como um princípio nunca perturbar o que existe entre crianças sem boas razões, nem
mudar suas interações em polidez forçada. Quando surgirem disputas, devemos primeiro de-
terminar o que foi estabelecido e acordado entre as próprias crianças, e devemos tomar o lado
da criança que de alguma forma foi privada de sua parte justa. Então devemos tentar ajudar
cada criança para o que ela merece, tanto quanto isso for possível sem ferimentos violentos
à justiça. E, finalmente, devemos apontar além de tudo isso para o que é melhor para o bem
comum [...] e qual será a principal medida para futuros acordos. [...]. Ao aluno [nunca deve
ser permitido] formar o hábito de fazer do seu direito o terreno determinante de suas ações; o
direito dos outros deve ser para ele uma lei estrita (HERBART, 1902b, p. 261).
Neste exemplo, o professor se envolve em diálogo com o aluno para ajudar o
aluno a entender o que significa manter-se em um acordo, mesmo quando isso é difí-
cil e pode entrar em conflito com interesses egoístas. O professor traz não apenas os
acordos que foram feitos entre as crianças, mas também ideias adicionais que, como
afirmou Herbart, apontam para o “bem comum”. O educando está sendo confronta-
do com um desafio aqui de seguir os seus próprios desejos ou para olhar além deles
e perguntar o que poderia significar reconhecer o outro. Isso marca o momento em
que o educando se encontra em uma “luta” (Kampf), que força o educando a ques-
tionar suas suposições e motivos de ação14. Nesse processo de diálogo, o educando
começa a entender a ideia de justiça e também a cultivar seu senso interior, o que
ajuda o educando a julgar as ações com base nesse novo entendimento. No entanto,
o modo como o educando decide atuar não depende apenas do sensor interno do
caráter subjetivo, dizendo ao educando o que não fazer, mas também se o caráter
objetivo do educando desenvolveu o que Herbart chamou de “um calor pelo bem”15.
A descrição de Herbart da interação professor-aluno em relação a educação
moral visa sugerir uma compreensão própria da natureza da relação educacional
entre professor e aluno que ainda é relevante hoje: a relação educacional envolve
um professor que mantém a orientação necessária sobre os alunos sem interferir
em sua liberdade para decidir por si mesmos a coisa boa e certa a fazer. Sobre esse
aspecto, é fundamental para a tarefa do professor, na orientação moral, que ele
apoie a luta interna dos alunos. Essa ideia contraria agudamente as noções auto-
ritárias de educação moral que se baseiam no julgamento autoritário do professor
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sobre o que está certo, de modo a liberar os alunos do conflito interno. Ele também
contraria os modelos centrados na criança, nos quais os alunos podem arbitraria-
mente ignorar conflitos de princípios e nunca decidir se envolver no desconforto
do conflito interno sobre as questões do bem. Opondo-se a essas visões, Herbart
ressaltou que essa experiência de luta e conflito interno é uma forma educativa de
experiência negativa que é parte constitutiva do aprendizado moral16.
O objetivo da escuta do professor em contextos em que o educando está enga-
jado em luta interior para enxergar além dos seus próprios desejos é “mostrar ao
aluno o seu eu melhor”, de tal modo que ele aprende a “sentir” e a ouvir sua própria
“reprovação interior” (HERBART, 1902b, p. 235). Através do processo de educação
moral, como Herbart imaginou, o educando “se encontra sob sua própria censura”
(HERBART, 1902b, p. 246). Esse momento de autorreprovação interior marca um
momento definitivo no processo educacional do educando. Marca “o início natural
da educação moral, que é fraca e incerta em si mesma” (HERBART, 1902b, p. 240).
Em um dilema moral, o educando fica preso em sua experiência entre o certo e o
errado, perdido em território desconhecido e enredado em uma situação que pode,
de fato, ter muitas saídas moralmente corretas e erradas. Ao interromper os modos
de ser do aluno no mundo, tomados como certos, o professor abre a possibilidade
para o educando experimentar o eu de forma diferente, entrar em conflito com o
self, sentir-se inseguro sobre o que fazer, ouvindo a voz do senso interior. Em últi-
ma análise, o aluno deve começar a sentir e ver a si mesmo escolhendo ações que
reconhecem o outro. Isto é o que Herbart quis dizer quando escreveu que a tarefa
da educação moral é criar possibilidades para a criança “se achar escolhendo o bem
e rejeitando o mal” (HERBART, 1902b, p. 61).
Herbart buscou um modelo de educação que trouxesse os alunos para uma
relação moral consigo mesmos, apresentando-lhes opções, ampliando seu círculo de
pensamento através da instrução e criando, assim, uma situação na qual o impe-
rativo categórico tem um significado para os educandos e os leve a julgar e agir de
acordo com isso. Em situações educacionais concretas, a luta interna do educando
configura um problema tanto para o professor quanto para o aluno e na relação
interpessoal formada e estabelecida. Enquanto o educando pode tentar evitar con-
flitos internos e seguir hábitos, o professor tem a difícil tarefa de cultivar a luta
interna do educando, trazendo diferentes pontos de vista e ideias que contradizem
os pontos de vista do educando. Somente assim os alunos podem começar a experi-
mentar o poder da liberdade interior que eles experimentam quando percebem que
podem se distanciar de suas inclinações iniciais e optar por não as seguir. Para Her-
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bart, esse tipo de experiência moral não é possível sem uma forma de instrução que
forneça uma base forte de visões variadas e plurais do mundo, visões que expandam
os pensamentos dos alunos para além de sua comunidade imediata e mostrem uma
multiplicidade de escolhas. Essa postura forma a base do argumento de Herbart de
que instrução e educação moral devem reciprocamente apoiar-se mutuamente.
Herbart também refletiu sobre o fim da tarefa da educação moral e, nesses
insights, podemos identificar a terceira maneira pela qual os professores podem
se orientar em relação aos alunos por meio da escuta. No momento em que os
alunos demonstram a capacidade de tomar suas próprias decisões esclarecidas e
autodeterminadas, o professor, como guia moral, tem a tarefa de acabar com a
orientação moral. Herbart ressaltou que a orientação moral é autoenfraquecedora
e deve procurar seu próprio término (HERBART, 1902b, p. 239, 249)17. Para fazer
isso, o professor deve ouvir e procurar saber quando terminar a tarefa de guia mo-
ral, porque o educando se tornou seu próprio guia. Ouvindo o educando, o professor
procura determinar se o educando aprendeu a suportar a luta e a recalcitrância de
experiências negativas constitutivas de processos de tomada de decisões morais e
a agir em reconhecimento ao outro. Herbart afirmou que quando o educando “pode
seguir seu caminho de forma independente”, então o professor deve abandonar “to-
das as reivindicações de orientação moral [Zucht]” e “limitar-se a observação sim-
pática, compreensiva, amigável e confiavelmente” (HERBART, 1902b, p. 239, 249).
A relação professor-aluno muda neste ponto, assim como o diálogo entre eles: todo
o conselho do professor ao aluno tem “o propósito de levar o aluno a pensar sobre
o assunto por si mesmo” (HERBART, 1902b, p. 239). À medida que o processo de
orientação moral termina, o aluno assume um papel mais forte de iniciar o diálogo
com o professor, pedindo conselhos sobre problemas e dilemas. O professor então
se engaja no diálogo, não tanto para liderar e orientar, mas para oferecer conselhos
que encorajem o aluno a pensar e investigar o problema por conta própria.
Escuta e a autocrítica no ensino
A teoria da orientação moral de Herbart demonstra que compreender e respon-
der aos alunos requer professores que escutem também atentamente a voz autocrítica
interna. Em todos os aspectos da educação, assim como na orientação moral, os pro-
fessores devem reconhecer os educandos como seres que estão mudando e aprenden-
do, capazes de transformar suas visões do mundo, fazendo perguntas e desenvolvendo
um sensor interno. Mas ouvir criticamente alguém que está em processo de mudança
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requer professores que possam mudar e alterar seus julgamentos de alunos em novas
situações. Requer professores capazes de se observar, de experimentar sua própria
alteridade e de escutar a voz de seu sensor interior, impedindo-os de agir de modo que
questionem seu julgamento do educando. A esse respeito, Herbart nos deu um insight
adicional sobre o que a escuta crítica no ensino implica: é autocrítica e exige que os
professores orientem sua escuta interiormente ouvindo seu próprio sensor interno.
Por analogia, Herbart deu uma ilustração dos aspectos sutis do que significa
escutar interiormente o professor:
Assim como um cantor pratica para descobrir o compasso e as melhores gradações de sua
voz, o professor deve, em pensamento, praticar subindo e descendo a escala do encontro
[com o educando] . . . de modo que ele possa banir com autocrítica afiada toda dissonância,
alcançar a certeza necessária em atingir cada nota, a flexibilidade necessária para mudar,
e o conhecimento indispensável dos limites de seu órgão (HERBART, 1902b, p. 237).
Para ampliar a analogia de Herbart, podemos dizer que o professor como guia
moral está tentando “atingir a nota certa” com cada educando. Essa é uma tarefa
difícil porque o que pode ter funcionado para um aluno pode não funcionar para
outro, e o que funcionou uma vez com uma criança pode não funcionar mais tarde
com essa mesma criança. Os professores estão sempre buscando aberturas para
o diálogo, de modo que suas palavras não “caiam em ouvidos surdos”, por assim
dizer. Uma professora pode perguntar a si mesma: estou dizendo ao aluno algo que
ele já conhece? Estou usando um tom muito severo para criticar um erro honesto?
Estou aceitando a explicação do educando sobre suas ações quando deveria fazer
mais perguntas? Em outras palavras, o professor está perguntando: O aluno está
me ouvindo? A teoria da orientação moral de Herbart demonstra que compreender
e responder aos alunos exige professores que escutem atentamente sua própria
voz autocrítica interna. Em todos os aspectos da educação, assim como na orien-
tação moral, os professores devem reconhecer os educandos como seres que estão
mudando e aprendendo, capazes de transformar suas visões de mundo, fazendo
perguntas e desenvolvendo um sensor interno. Mas ouvir criticamente alguém que
está em processo de mudança requer professores que possam mudar e alterar seus
julgamentos, considerando os alunos em novas situações. Requer professores ca-
pazes de se observar, de experimentar sua própria alteridade e de escutar a voz de
seu senso interno, impedindo-os de agir de modo que questionem seu julgamento
do educando. A esse respeito, Herbart nos deu um insight adicional sobre o que a
escuta crítica no ensino implica: é autocrítica e exige que os professores orientem
sua escuta interiormente ouvindo seu próprio censor interno.
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O professor, na visão de Herbart, deve ser uma pessoa moral, isto é, alguém
que é guiado por ideias éticas e pelo educando. Os professores devem cuidar de
como eles são ouvidos pelo aluno e procurar ser ouvidos como tendo preocupação
com a educação e a formação do aluno (Bildung) (HERBART, 1902b, p. 229, 243),
e não simplesmente por ter interesse em corrigir os erros do aluno ou concedendo
apreciações isoladas (HERBART, 1902b, p. 86, 241). Para Herbart, para criar o
tipo de relação educacional em que professor e aluno são ouvidos um pelo outro,
os professores devem estar abertos a coisas que não funcionam como planejadas
e capazes de aprender com seus erros (HERBART, 1902b, p. 239, 269). Aprender
a manter a abertura e flexibilidade em relação ao outro como educando é a arte
do que Herbart chamou de tato pedagógico, que se relaciona com o conceito de
phronesis de Aristóteles, ou a arte de tomar decisões sábias e esclarecidas a cada
momento18. O tato pedagógico exige que os professores julguem com base em olhar,
escutar e captar as perguntas, dificuldades, lutas e frustrações dos alunos em to-
dos os aspectos da aprendizagem19. Os insights de Herbart sobre ouvir no ensino
demonstram que a escuta crítica não é estática – pode e deve mudar, à medida que
o educando muda. Os professores devem orientar sua escuta de maneira diferente,
à medida que os seres humanos diante deles se tornam orientados de maneira
diversa em relação ao mundo. Para Herbart, a moralidade não é uma parte de uma
pessoa, nem simplesmente parte de momentos isolados da vida. Em vez disso, a
moralidade se conecta à pessoa inteira em todos os eixos da vida. Mas se tornar
moral não significa adquirir modos fixos de responder a situações difíceis, mas
envolver a capacidade de lidar com o inesperado da vida, o que nos desvia do curso.
Como Herbart observou, o ser humano é um “camaleão”, sempre mudando, e sem-
pre há uma chance de nos encontrarmos enredados em um dilema moral e em uma
luta com nós mesmos (HERBART, 1902b, p. 204).
Para Herbart, toda educação é educação moral, pois influencia as escolhas dos
alunos. O objetivo da educação deve ser o de iniciar o autojulgamento de cada edu-
cando, criando situações nas quais o aluno compara e julga as concepções individuais
e sociais do bem e do mal. Nesse objetivo Herbart via a educação também como au-
toeducação. O professor deve ouvir criticamente o aluno, a fim de encontrar manei-
ras de iniciar a desarmonia dentro do aluno em relação às suas escolhas potenciais,
de tal forma que o aluno seja colocado “em desacordo com ele mesmo, de maneira
que ele deva educar a si” (HERBART, 1851, p. 485). Com sua referência à autoeduca-
ção, Herbart não elogiou nem o autodidatismo nem uma forma radical de educação
centrada na criança. Em vez disso, ele estava colocando em foco uma forma de au-
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toformação que surge através do processo de relações educacionais intersubjetivas.
Neste modelo, a autoformação começa concretamente quando os alunos começam a
reconhecer que podem e devem avaliar e julgar suas próprias ações de acordo com
ideias éticas, fazer conexões entre circunstâncias e escolhas passadas e presentes e
saber quando precisam de mais orientação e aprendizado contínuo. De acordo com
esse conceito de educação, o aspecto moral do diálogo está no fato de que é uma forma
de interação intersubjetiva que apoia o processo de autoeducação do educando.
Reexões nais sobre as dimensões morais de uma sociedade que escuta e é plural
A teoria educacional de Herbart é limitada na medida em que limita a noção
da luta interior do educando em relação à aprendizagem moral, enquanto Dewey
posteriormente amplia a noção de luta – como dificuldade, perplexidade e dúvida
– para ser constitutiva de todos os campos da aprendizagem20. No entanto, a teoria
da orientação moral de Herbart ajuda a iluminar a dimensão moral transformadora
da escuta na relação professor-aluno: o professor deve ouvir-se criticamente a fim de
encontrar maneiras de cultivar a voz interior do educando como senso interno. Para
Herbart, isso ocorre somente quando os alunos possuem opções de escolha, caso con-
trário, eles se engajam em lutas e se tornam compelidos a contemplar o que é bom e a
escolher com base nisso. Por meio do diálogo, os professores podem criar espaço para
que os alunos se encontrem entre o certo e o errado, um espaço no qual os alunos se
abrem ao outro e aprendem a julgar-se a partir do reconhecimento do outro.
Ao entrarmos na segunda década do século XXI, pode parecer estranho olhar
para Herbart em busca de insights sobre educação em uma sociedade pluralista.
Escrevendo no início do século XIX, Herbart não havia experimentado as democra-
cias cada vez mais inclusivas do século XX, nem experimentara as atrocidades das
ditaduras do século XX. No entanto, ele fez uma observação à frente de seu tempo
que enfatiza a diferença entre a educação em sociedades pluralistas e autoritárias
de uma forma que ainda é vitalmente relevante hoje:
A educação desencoraja tudo. . . quando promove a vaidade e o egoísmo. . .. A criança, o me-
nino e o adolescente – em todas as idades, devem estar acostumados a suportar a censura
interna que põem em ação, desde que fale com justiça e seja compreensível. É um princí-
pio fundamental da orientação moral garantir que a voz geral do ambiente, assim como a
opinião pública, permita que o sensor interno seja ouvido corretamente... Se o professor
é o único que representa a voz geral, ou se ele deve contradizê-lo, ele terá dificuldade em
demonstrar o valor da censura (HERBART, 1902b, p. 247).
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Essa afirmação revela que o pensamento autocrítico do tipo requerido para a
ação moral pressupõe um público que permite a crítica. Os professores não podem
ser solicitados a ser o porta-voz das normas sociais, nem podem ser autorizados a
impor suas opiniões pessoais ao aluno. Ambas as situações reduzem a escuta dos
professores para uma escuta de conformidade dos alunos com uma autoridade ex-
terna. Para que os alunos possam realmente reconhecer seu próprio senso interno
como significativo, eles devem ser confrontados com diferenças de perspectiva e
autorizados a se engajar em crítica social em uma sociedade pluralista democrá-
tica. Somente em tais encontros com a alteridade e a diferença que os educandos
são interrompidos pelo outro de uma maneira educativa: o outro nos convoca a
responder de maneira que nos tornemos autocríticos em relação aos nossos modos
dados de ser no mundo.
Nas salas de aula de hoje, a educação moral corre o risco de ser incluída sob
termos do gerenciamento de sala de aula, e os professores correm o risco de perder
de vista o efeito educativo que podem ter sobre a compreensão moral e as expe-
riências dos alunos. A escuta do professor está se tornando desvalorizada como um
meio de entender os educandos e entender onde seus pensamentos e julgamentos
precisam de expansão e modificação. Tanto nos contextos de aprendizagem cogni-
tiva como a moral, a escuta corre o risco de ser reduzida a um meio de ouvir se o
aluno está certo ou errado de acordo com as regras e normas prescritas.
Em última análise, a tarefa do professor é encontrar uma maneira de falar e
ouvir o aluno de forma que rompa a conexão imediata do educando entre ouvir e
obedecer à autoridade externa. Ensino e educação moral baseados na obediência
cega do educando à autoridade funciona contra o fomento da escolha do educando
e, portanto, contradiz o critério central da noção de educação moral de Herbart.
Enquanto modelos de educação moral autoritários servem apenas como um meio
de silenciar a voz interior crítica do educando, afirmo que os insights de Herbart
formam uma base para a extensão de modelos de educação moral reflexivos e crí-
ticos que visam iniciar a transformação da voz interior de seu educando, de modo
que seja criticamente ouvido dentro do eu. Para cultivar compreensões morais e
experiências na sociedade democrática, os alunos precisam ser introduzidos a vá-
rias perspectivas e sistemas de valores conflitantes para que possam entender a
diferença entre as áreas boas, ruins e cinzas, e possam se envolver ativamente na
experimentação de entendimentos variados do bem21.
O tipo de moralidade da escuta interna requer poder ser entendida como pres-
tar atenção ao senso interno de alguém. Mas essa experiência de ouvir uma voz
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interior não é necessariamente discursiva, pode ser sentida como um momento
existencial de interrupção que nos impede de seguir. Waldenfels (1995) ressalta
que a voz interior do ser humano é sempre ao mesmo tempo sua e do outro. Se le-
varmos a sério o fato de que a educação tem a capacidade de afetar e cultivar a voz
interior de um indivíduo, então podemos começar a perceber que a voz interior de
cada pessoa é cultivada intersubjetivamente e representa um ser histórico, social e
educando que pode e deve ver o outro em si mesmo.
Notas
1 Partes deste ensaio foram apresentadas na conferência anual de 2009 da American Educational Research
Association e na conferência anual de 2010 da Philosophy of Education Society of Great Britain. Gostaria de
agradecer à Mount Saint Vincent University por uma doação interna que ajudou a apoiar a pesquisa sobre
este projeto. Também gostaria de agradecer aos editores do simpósio, Sophie Haroutunian-Gordon e Megan
Laverty, e também a Leonard Waks e Walter Okshevsky, por seus comentários úteis sobre rascunhos anterio-
res deste ensaio. Título original: Critical listening and the dialogic aspect of moral education: J. F. Herbart’s
concept of the teacher as moral guide. Tradução e revisão do Dr. Odair Neitzel e do Dr. Cláudio Almir Dalbosco.
2 A literatura recente ressaltou algumas das várias conexões entre escuta e educação, em particular como a
escuta é a maneira pela qual podemos aprender um do outro de maneira interativa e participativa. Veja,
por exemplo, Nicholas C. Burbules (1993), James Garrison (1996), Katherine Schultz (2003), Sophie Ha-
routunian-Gordon (2004, 2009), Leonard J. Waks (2007), e meu próprio trabalho e o trabalho de autores
que contribuem para este simpósio. Além disso, um ensaio anterior sobre a importância de ouvir na edu-
cação, intitulado de O ouvir tem tido uma escuta justa?, de William Hare’s (1975). Ademais, os trabalhos
de Emmanuel Levinas e sua conexão com a nossa compreensão da escuta também estão sendo tomados em
contextos educacionais; ver, por exemplo, Sharon Todd (2003).
3 Dewey foi influenciado de maneira importante por Herbart e foi membro da National Herbart Society in
America. Sua crítica central a Herbart foi que sua teoria era muito centrada no professor, de tal maneira
que tornava o método instrucional do professor muito metódico e inflexível. De acordo com Dewey, o método
de instrução de Herbart não permitia a flexibilidade necessária para engajar as experiências vividas dos
educandos, das quais surgem suas dificuldades e, assim, seu aprendizado. Veja, por exemplo, John Dewey
(1980), Democracy and Education (1916), no capítulo 6. No entanto, como os teóricos contemporâneos ob-
servaram, a crítica de Dewey se mostra mais relevante para os seguidores de Herbart, os herbartianos (que
enfatizavam uma adesão mais rígida ao cumprimento de etapas formais de instrução) do que para o próprio
Herbart. Veja, por exemplo, Johannes Bellman (2004, p. 467-488) e Nel Noddings (2006). Como argumentei
em outro lugar, a crítica de Dewey tem validade com referência à teoria de instrução de Herbart, mesmo
quando talvez não seja tão rígida quanto Dewey viu que seja. A teoria instrucional de Herbart não explica
totalmente as experiências de dificuldade e dúvida do aluno como pontos de partida para o aprendizado.
Contudo, Dewey ignorou um aspecto central da teoria da orientação moral de Herbart, a saber, a luta do
educando, que aponta para semelhanças no trabalho desses dois teóricos. Esse conceito será desenvolvido
no presente artigo. Sobre esse ponto, ver também Dietrich Benner e Andrea English (2004, p. 409-428) e
Andrea English (2007b, p. 133-142). Na filosofia do ouvir de Dewey, ver Leonard J. Waks (2007).
4 Para a discussão de Herbart sobre Kant, ver Herbart (1902a,1902b). Para uma crítica da visão de Herbart
sobre Kant, ver Dietrich Benner e Wolfdietrich Schmied-Kowarzik (1967).
5 Sobre essa ideia, ver Nigel Blake et al. (2000, p. 151); veja também Benner e English (2004, p. 409-428).
Sobre a filosofia do ouvir de Platão, veja Sophie Haroutunian-Gordon (2011).
6 Ver, em particular, Johann Friedrich Herbart (1851, p. 33-36); ver também Herbart (1902a, p. 263).
7 Herbart explicou as ideias éticas em sua Filosofia prática (1808), mas mencionou, em sua Pedagogia geral
(1806), três que são particularmente importantes para o educador no campo da orientação moral. Em sua
filosofia prática, Herbart explicou que as ideias representam as relações estéticas de uma pessoa consigo
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mesma, para os outros e para os objetos. Para ver mais sobre essas noções, ver Herbart (1902b, p. 210-259) e
Herbart (1851). Para uma discussão mais aprofundada dessa ideia, ver Dietrich Benner (2007, p. 146-167).
8 Ver Benner e English (2004).
9 É importante notar que neste ensaio estou fazendo uma mudança significativa na tradução padrão deste
termo. Traduzi o termo de Herbart, Zucht, como “orientação moral”, em vez de usar a tradução padrão de
Zucht como “disciplina”. Herbart referiu-se a formas de ação pedagógica que impedem uma criança de agre-
dir fisicamente a si mesma ou aos outros de governo (Regierung), que é vertido na tradução padrão como
“governo”, mas na minha opinião é mais apropriadamente traduzido como “disciplina”. Herbart diferencia
disciplina (Regierung) da educação moral. Enquanto a disciplina se concentra nos resultados das ações dos
alunos com o objetivo de impedir que os alunos prejudiquem a si mesmos ou aos outros, a educação moral se
concentra na compreensão do pensamento por trás das ações dos alunos, uma tarefa que podemos chamar
de orientação moral (Zucht) (HERBART, 1902b, p. 233). Herbart viu a disciplina como pré-condição indis-
pensável para a educação formativa; no entanto, ele observou que não faz parte da verdadeira educação
porque só funciona negativamente para evitar danos, e não deve ter uma influência formativa intencional.
Herbart se referiu à tarefa do professor no desenvolvimento do caráter moral como Zucht. O termo Zucht
vem do verbo alemão ziehen, que significa extrair. Essa ideia de prática educacional como Zucht descreve
uma forma de educação que tem um efeito formativo no desenvolvimento do caráter moral dos alunos, e é
por isso que afirmo que o conceito é melhor abordado em inglês como “orientação moral”.
10 Para estender a crítica de Herbart, podemos acrescentar que muitos dos exemplos de Rousseau são basea-
dos em situações planejadas e, até certo ponto, manipuladoras, destinadas a fazer com que Émile tenha a
experiência de aprendizado “correta”. Veja, por exemplo, como Émile é ensinado a não ter medo de másca-
ras e outros objetos assustadores. Para uma discussão sobre a concepção de medo de Rousseau, ver Andrea
English e Barbara Stengel (2010). A liberdade que Rousseau (1979, p. 63) imaginou para o educando é
mostrada em sua ideia de que na primeira infância a criança não deveria ter permissão para desenvolver
hábitos fixos: “o único hábito que a criança deve adquirir é nenhum hábito”. Esse ponto é importante
também para Herbart, que concordou com Rousseau que a criança não deveria ser habituada desde cedo a
pensar ou agir de certas maneiras, porque, segundo ele, isso limita os interesses da criança mais tarde, na
vida. Para uma análise da concepção de escuta de Rousseau na educação, ver Megan J. Laverty (2011).
11 Em um ensaio posterior, Herbart acrescentou que, enquanto a imagem de Rousseau do educador é muito
centrada na educação de uma única criança, professores que estão mais preocupados em ter muitos estu-
dantes ao seu redor do que em educá-los, perdem a nuance mais fina do relacionamento educacional. As
visões de Herbart são parte de sua crítica às escolas. Ele acreditava que as escolas estavam restringindo
as relações educativas que podem ser formadas entre professores e alunos e advertiu que, se os professo-
res não tiverem tempo e oportunidade adequados para formar esses relacionamentos, eles, por sua vez,
perderão o desejo de cultivar tais relacionamentos. Tal observação se aplica à situação escolar de hoje. Ver
Johann Friedrich Herbart (1964, p. 143-151).
12 Ver Herbart (1902b, p. 213) e o seu conceito sobre a instrução educativa diversificada.
13 Para a descrição completa dessas ideias, ver Herbart (1902b, p. 242-250).
14 Embora existam algumas semelhanças entre a ideia de diálogo de Herbart e a teoria da clarificação de
valores proposta por Louis Raths, Merrill Harmin e Sidney Simon (1966, p. 28, 47, 72) – como a impor-
tância de apresentar alternativas ao educando – existem também diferenças importantes. Uma análise
detalhada está para além do âmbito deste ensaio; no entanto, uma distinção central entre a teoria do diá-
logo professor-aluno de Herbart e a teoria da clarificação de valores é que esta última enfatiza o processo
de valorização sobre o seu produto. A teoria dos valores propõe que o professor não pretende que os alunos
vejam quaisquer valores particulares como importantes; pelo contrário, o professor é relativamente neutro
em termos de valores, apenas ajudando os alunos a “clarificar” aquilo em que acreditam e valorizam na
fase atual da sua vida, sem os ajudar a mudar valores problemáticos. (Se o professor permanece ou não
verdadeiramente neutro em termos de valor neste modelo é outra questão para deliberação). Este modelo
parece não ter o objetivo de engajar os alunos na crítica de seus próprios interesses de ocupação consigo
mesmo e de colocar os alunos em conflito consigo mesmos nessa base. Dessa forma, o esclarecimento de va-
lores pode ter por objetivo ajudar os alunos a compreenderem a si mesmos, mas não tenta explicitamente
ajudar os alunos a transformarem sua autocompreensão através da autocrítica de acordo com as relações
morais estabelecidas nas ideias éticas, que é o aspecto central da orientação moral aqui desenvolvida.
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15 Isto está relacionado com a tarefa da instrução que visa expandir os interesses dos alunos em múltiplas
direções e apresentar ideias tanto do bem como do mal, certo e errado, de modo a que os alunos possam dis-
tinguir entre estes e procurar novos significados para o bem. Herbart considerou a história e a literatura
como disciplinas particularmente importantes porque podem dar aos educandos a capacidade de aprender
com os acertos e erros dos seres humanos. O calor para o bem está ligado à “necessidade estética”, ou ao
“dever”, que nos obriga a agir de acordo com o imperativo moral nos dilemas morais. Sobre estas noções,
ver Herbart (1902a, 1902b).
16 Sobre este conceito de experiência negativa na teoria educacional de Herbart, ver English (2007a). Mais
discussões sobre este conceito podem ser encontradas em Hans-Georg Gadamer (1975), Gunther Buck
(1969), Dietrich Benner (2003), Benner e English (2004) e Fritz Oser (1998).
17 Ver também Nicholas C. Burbules (2007, p. 17-21). Nesse ensaio, Burbules sublinha que toda a autoridade
na educação deve ser autossuficiente.
18 Sobre a filosofia de escuta de Aristóteles, ver Suzanne Rice (2011).
19 Para mais sobre este conceito, ver Herbart (1896), Jakob Muth (1967) e Max van Manen (1991).
20 Sobre esse ponto, ver Andrea English (2005, 2007b).
21 Para autores que trabalham em projetos nas escolas nessa direção, ver, por exemplo, Fritz Oser (2005, 2006).
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Complexidade, instrução educativa e formação política
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Complexidade, instrução educativa e formação política1
Complexity, educational instruction and political formation
Complejidad, instrucción educativa y formación política
Thomas Rucker*
Resumo
O persente artigo resulta de pesquisa de revisão bibliográca, de perspectiva analítica e hermenêutica. Ocupa-
-se em reconstruir conceitos fundamentais da teoria pedagógica de Herbart, na tentativa de sinalizar para as
contribuições deste para a reexão sobre a formação política dos jovens para conviver, existir e participar das
modernas sociedades complexas e democráticas. As sociedades complexas são constituídas por sujeitos orien-
tados por uma pluralidade de perspectivas e formações de pensamento, em constante processo de confronto e
deliberação. Cabe à formação política não impor perspectivas aos jovens, mas desenvolver um olhar em múlti-
plas direções e mobilizar os educandos para que construam perspectivas próprias. Trata-se de pensar a formação
através da instrução educativa, principalmente pela formação do interesse múltiplo, como meio de formação
política dos jovens para conviverem com a diversidade de perspectivas sem serem subjugados ou restringidos
em sua liberdade de assumir posições diversas. O autor conclui que, apesar de Herbart não ter se ocupado siste-
maticamente com o tema da formação política, tal tema perpassa sua teoria, podendo ser rastreado em diversas
passagens e momentos de sua obra.
Palavras-chave: Herbart; interesse múltiplo; democracia; autogoverno.
Abstract
The persistent article is the result of bibliographical review research, from an analytical and hermeneutic per-
spective. It is concerned with reconstructing fundamental concepts of Herbart’s pedagogical theory in an at-
tempt to signal his contributions to the reection on the political formation of young people to live together,
exist and participate in modern complex and democratic societies. Complex societies are made up of subjects
guided by a plurality of perspectives and thought formation, in a constant process of confrontation and delibera-
tion. Political formation is not to impose perspectives on young people, but to develop an open, multidirectional
outlook and to guarantee and mobilize those educated who build their own perspectives. It is a question of
thinking about formation through educational instruction, especially formation in multiple interests, as a means
of political formation for young people to live with the diversity of perspectives without being subjugated or
restricted in their freedom to assume diverse positions. The self-concludes that, although Herbart did not deal
systematically with the theme of political formation, the theme of politics permeates his theory, and can be
traced in various passages and moments of his theory or work.
Keywords: Herbart; multiple interest; democracy; self-government.
* Doutor em Educação. Docente de Fundamentos das Ciências da Educação na Universidade de Berna, Suíça. Orcid:
https://orcid.org/0000-0003-3047-8745. E-mail: thomas.rucker@edu.unibe.ch
Recebidoem: 29/01/2021 – Aprovado em: 25/11/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i3.12236
930 ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Resumen
El persistente artículo es el resultado de una investigación de revisión bibliográca, desde una perspectiva ana-
lítica y hermenéutica. Se ocupa de reconstruir los conceptos fundamentales de la teoría pedagógica de Herbart
en un intento de señalar sus contribuciones a la reexión sobre la formación política de los jóvenes para vivir
juntos, existir y participar en las modernas sociedades complejas y democráticas. Las sociedades complejas es-
tán formadas por sujetos guiados por una pluralidad de perspectivas y formación de pensamiento, en un cons-
tante proceso de confrontación y deliberación. La formación política no consiste en imponer perspectivas a los
jóvenes, sino en desarrollar una mente abierta en múltiples direcciones y garantizar y movilizar a los educados
que construyen sus propias perspectivas. Se trata de pensar en la formación a través de la instrucción educativa,
especialmente a través de la formación a los múltiples intereses, como un medio de formación política de los
jóvenes para vivir con la diversidad de perspectivas sin ser subyugados o restringidos en su libertad de asumir
diversas posiciones. El autor concluye que aunque Herbart no trató sistemáticamente el tema de la formación
política, el tema de la política impregna su teoría y puede ser rastreado en varios pasajes y momentos de su
teoría o trabajo.
Palabras clave: Herbart; interés múltiple; democracia; autogobierno.
Introdução
Johann Friedrich Herbart geralmente é considerado fundador da pedagogia
como ciência. Sua exigência de que a pedagogia deve desenvolver seus próprios
conceitos e, associado a eles, um pensamento independente (HERBART, 1964a,
p. 8) determinou o estabelecimento da pedagogia como área científica no contexto
da língua alemã, mas em certa medida também, internacionalmente. O estatuto
clássico de Herbart permanece indiscutível até hoje, no entanto, também e sobre-
tudo, porque ele próprio deu importantes contribuições para vários problemas da
pedagogia como ciência, tais como dos pré-requisitos antropológicos da educação
(educabilidade), o problema da tarefa educacional (moralidade) ou o problema da
peculiaridade da atividade educacional (causalidade).
A contribuição de Herbart para a teoria da formação política, por outro lado, é
geralmente considerada de menor importância. Andreas Flitner (1957, p. 99), por
exemplo, considera que Herbart “contribuiu pouco” em relação ao “problema da
formação política” na pedagogia. O que não é mencionado na avaliação de Flitner
é que Herbart entendeu a formação política como importante tarefa da instrução
educativa. Isto deve ao fato de Herbart ter apenas formulado o problema da for-
mação política no contexto de uma instrução educativa e não o ter feito de forma
sistemática. Precisamente aqui que entra a presente contribuição: irei tentar mos-
trar que Herbart definiu a promoção da formação política como tarefa da instrução
educativa e, ligado a ela, apresentou importantes elementos para a construção de
uma teoria pedagógica da formação política. É possível deixar claro que o conceito
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Complexidade, instrução educativa e formação política
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de formação política de Herbart, visto sistematicamente, pode ser entendido como
resposta original à situação de complexidade típica das sociedades democráticas
modernas.
O artigo está dividido em cinco seções: Num primeiro momento, explicarei
as autossignificações atuais da sociedade moderna (1). Em seguida, me ocupo em
descrever o modo como são abordadas as formas básicas de formação distinguidas
por Herbart como governo, ensino e disciplina formativa (2). A partir disso foco
particularmente a definição das tarefas do ensino em Herbart, nomeadamente de
apoiar o desenvolvimento do interesse múltiplo (3). Numa quarta seção, discuto
a determinação do interesse político de Herbart ou a relação política entre o eu
e o mundo (4). Nesta base, é finalmente possível descrever a instrução educativa
como um meio da formação política. No centro está uma clarificação do conceito de
formação política no horizonte do pensamento pedagógico de Herbart (5).
Sociedade complexa
As sociedades democráticas modernas descrevem-se como sociedades comple-
xas. Como tal, confrontam-nos em quase todas as áreas com perspectivas irredutí-
veis e uma dinâmica aberta para o futuro. Nas sociedades democráticas modernas,
os fatos são descritos a partir de diferentes perspectivas, sem que uma perspectiva
experimente uma aceitação geral. Além disso, a interação de perspectivas não é
fixada em uma ordem específica, mas as ordens surgem, são atualizadas e modifi-
cadas e, nesse sentido, são sempre apenas temporariamente estáveis. A sociedade
democrática moderna é complexa porque não existe uma regra que permita trans-
formar a interação de perspectivas numa ordem que seja aceita por todos e estável
a longo prazo (Cf. ANHALT, 2012b; RUCKER, 2014b; RUCKER; ANHALT, 2017).
Nesse sentido, as sociedades complexas já não conhecem um ponto de vista a
partir de um Deus do qual tudo possa ser compreendido de imediato. Em vez disso,
descrevem-se como uma interação irredutível de perspectivas em que não há pos-
sibilidade de estabelecer uma perspectiva geralmente vinculativa2. Esta situação é
detalhada a partir da consideração: de que consiste numa multiplicidade de áreas
heterogêneas em que as pessoas vivem as suas vidas (1.1); de que estão em conflito
entre si (1.2); sendo por isso que as pessoas operam num estado de instabilidade
que, em última análise, requer a procura inconclusiva de orientação (1.3).
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Mundos de orientação
A sociedade democrática moderna é um contexto que consiste numa multi-
plicidade de áreas heterogêneas em que as pessoas julgam, agem e comunicam
direito, ciência, religião, arte, economia, moralidade, educação, política, etc. Cada
um desses contextos segue regras de orientação constitutivas e regulatórias. As
regras constitutivas do contexto determinam o que “é” um contexto social em que
as pessoas levam as suas vidas. Niklas Luhmann (1997) descreve esses tipos de
regras como diferenças. Segundo o autor, uma pessoa que se quer dar bem no con-
texto da ciência teria de se orientar na distinção entre verdade e mentira. Em
contraste, uma pessoa que opera no mundo da moralidade encontra orientação na
diferença entre bem e mal. Para o direito, outra distinção é constitutiva, nomeada-
mente a distinção entre direito e injustiça. Em contraste, as regras regulatórias de
contexto determinam como as pessoas julgam, agem e se comunicam em um dado
contexto. Por exemplo, um estilo de vida cristão não é constitutivo para o mundo
da religião ou um estilo de vida liberal não é constitutivo para o mundo da política.
Pelo contrário, ambos os casos envolvem orientações regulatórias dentro do mundo
da religião ou do mundo da política, para as quais existem posições religiosas ou
políticas alternativas.
Em sociedades complexas, estamos perante uma “diferença de perspectiva”
irredutível que anda de mãos dadas com uma “codificação múltipla da realidade”
(NASSEHI, 2017, p. 61) e torna impossível compreender o mundo como totalidade,
ou seja, o mundo como mundo. A referência a fatos nunca é possível como uma
“visão do nada” (Thomas Nagel) ou como uma visão de um “exílio cósmico” (Willard
Van Orman Quine), mas sempre apenas como uma perspectiva que é tomada sob
as condições de uma sociedade democrática moderna e, portanto, ao mesmo tempo
sob condições de complexidade.
Ao orientarem-se para regras específicas, as pessoas tomam posições e, asso-
ciadas a elas, perspectivas sobre fatos. Assim, uma pessoa que se orienta para as
regras constitutivas do contexto econômico leva em conta uma perspectiva econô-
mica dos fatos. Uma situação é assim constituída como uma situação econômica.
No entanto, os respectivos fatos também podem ser vistos a partir de uma pers-
pectiva alternativa, por exemplo, a partir de uma perspectiva estética, em que as-
pectos que não podem ser abordados a partir de outra perspectiva são capturados.
Em resumo: de outros pontos de vista, os fatos podem ser observados e descritos
de forma diferente. Esta é a experiência fundamental que todos os que crescem
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em sociedades complexas têm e que, portanto, deve ser refletida a partir de uma
perspectiva educativa.
O antagonismo
Nas sociedades democráticas modernas as pessoas não são prescritas de todas
as regras da sua orientação. Em vez disso, é-lhes dada a oportunidade de viverem
as suas vidas autodeterminadas, desde que cumpram as leis aplicáveis, que elas
próprias estão envolvidas em determinar. O fato de as pessoas aproveitarem a
oportunidade para adotarem seus próprios pontos de vista tem como consequência
que qualquer discussão pública de um assunto está dividida numa multiplicidade
de perspectivas.
Nesse contexto, as sociedades democráticas modernas já não conhecem um
“certo ideal forte de uma vida boa”, mas, antes, caracterizam-se pelo fato de ten-
tarem assegurar as condições prévias para que “os cidadãos possam seguir a sua
própria ideia de uma vida boa ou bem-sucedida” (WILDFEUER, 2004, p. 222). Por-
tanto, pode-se dizer que o “conceito moderno de vida boa ou bem-sucedida” é, em
última análise, o de “autonomia no sentido de uma vida autodeterminada” (WIL-
DFEUER, 2004, p. 233). As sociedades democráticas modernas deixam ao próprio
indivíduo a responsabilidade de decidir à luz de que ideias relacionadas com o con-
teúdo do bem ele quer levar a sua vida, o que não exclui, mas inclui planos de vida
que reduzem a autonomia. Nas democracias modernas, as pessoas podem decidir
por si próprias por suas preferências e pôr de lado nas suas vidas, o que, em última
análise, levanta a difícil questão de saber se, e em caso afirmativo, como é que a
vida e a coexistência bem-sucedidas podem ser alcançadas em conjunto.
Nas sociedades democráticas modernas, a fim de assegurar as condições pré-
vias para um modo de vida autodeterminado na coexistência humana, as pessoas
não confiam apenas na “auto-obrigação moral dos cidadãos” para “contribuir para
uma coexistência suportável” (WILDFEUER, 2004, p. 222), mas normas no senti-
do de expectativas de comportamento supraindividualmente válidas são também
levadas ao indivíduo, cuja observância é por vezes enfaticamente esperada. Depen-
dendo do grau em que as expectativas são vinculativas, as infrações às normas são
sancionadas em diferentes graus. Nesse sentido, as normas definem os limites do
que é permitido, dentro dos quais as pessoas têm a oportunidade de decidir por si
próprias o que preferem e o que adiam. Assim, tais limites determinam qual é a
margem de manobra de que as pessoas dispõem para agir de acordo com os seus
934 ESPAÇO PEDAGÓGICO
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próprios juízos de valor, sem terem de recear sanções. No entanto, não se deve
esquecer que as pessoas devem aceitar normas para que possam cumprir a sua
função de traçar limites. Isso significa que o consentimento às normas depende dos
juízos de valor das pessoas.
Nas sociedades democráticas modernas, a decisão sobre o que deve ser ante-
cipado e adiado não está sujeita à padronização. Isso porque essas sociedades são
guiadas pelo valor de um estilo de vida autodeterminado e, por sua vez, ancoram
esse valor como norma na lei. Para dizer sem rodeios: nas democracias modernas,
o consentimento às normas, mesmo na forma de leis, não pode ser forçado pelas
próprias normas. A consequência do direito de escolher os aspectos preferidos de
cada um é que as pessoas nas sociedades democráticas modernas também devem
ter a liberdade de rejeitar normas à luz dos seus próprios juízos de valor, com todas
as consequências (Cf. ANHALT, 2012a, p. 97ff, 128f, 131). Nesta perspectiva, as
sociedades democráticas modernas são, em última análise, dependentes de uma
orientação para obrigações supraindividuais através do autocompromisso indivi-
dual e, assim, assumem inevitavelmente o risco da sua própria existência contínua.
Não se pode assumir que um número suficiente de pessoas esteja preparado para
se comprometer com responsabilidades supraindividuais. Em resumo: “O Estado
liberal e secularizado vive de condições que não pode garantir a si mesmo. Essa é a
grande aventura que ele fez em nome da liberdade” (BÖCKENFÖRDE, 1976, p. 60).
A norma de vida autodeterminada tem como consequência que nas sociedades
democráticas modernas os fatos podem ser vistos à luz de diferentes perspectivas.
A interação de perspectivas é irredutível, uma vez que as sociedades abertas não
permitem que uma perspectiva seja universalmente vinculativa apenas como a
perspectiva supostamente “certa”. Em vez disso, as perspectivas constitutivas e
reguladoras dos contextos sociais estão em disputa entre si. Jean-François Lyotard
(1987, p. 9) descreve como “disputa” um “caso de conflito entre (pelo menos) duas
partes que não pode ser resolvido adequadamente por não existir uma regra de
direito aplicável a ambos os argumentos”. Para dissolver a teia de perspectivas,
seria necessária uma regra que permitisse determinar a ordem “correta” das pers-
pectivas. Cada regra para determinar a ordem “certa” das perspectivas pode, no
entanto, ser confrontada com alternativas na situação de perspectiva, o que leva a
que a questão da orientação da regra “certa” surja novamente. Qualquer tentativa
de pôr em ordem as várias perspectivas seria, ela própria, arrastada para a pers-
pectiva. Isso não pode ser negado, nem é possível para o indivíduo eliminá-lo por
seus próprios meios. É simplesmente um fato de crescer em sociedades modernas
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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e democraticamente constituídas que existem diferentes perspectivas ao mesmo
tempo.
Busca de orientação
Na situação de conflito, as pessoas levam suas vidas na possibilidade e ne-
cessidade de escolher entre perspectivas alternativas. Todas as decisões que as
pessoas tomam aqui excluem alternativas que também teriam sido possíveis (cf.
BERGER; LUCKMANN, 1996). A “agonia da escolha” é, por assim dizer, a expres-
são psicológica de um problema complexo. Este não se mostra único. O problema
também não pode ser resolvido com a “regra de um só”. Pelo contrário, o problema
exige uma decisão que precisa ser tomada e bem fundamentada para convencer
os outros. A escolha de uma opção de solução, no entanto, não resolve o problema,
sobretudo porque outros julgam de forma diferente, ou seja, podem propor soluções
alternativas. Precisamente porque é esse o caso, o problema que é processado e que
se tenta resolver continua a ser um problema.
Porque as decisões para certas regras são contingentes, ou seja, não são im-
possíveis nem necessárias, as pessoas em certa perspectiva operam num estado de
instabilidade. A falta de estabilidade não significa que as pessoas nas sociedades
modernas já não sejam guiadas por regras. Pelo contrário, são inúmeras as regras,
muitas das quais se contradizem entre si, mas que ao mesmo tempo são válidas
(cf. BAUMAN, 2003, p. 14). O lado negativo desta relativização dos sujeitos é um
problema de incerteza que se expressa no fato de cada vez mais temas estarem a
suspender o que em tempos anteriores parecia ser uma orientação dada inques-
tionavelmente. Dificilmente qualquer regra em sociedades complexas é dada “em
si mesma”, e a questão que se coloca é a de saber o que manter quando não há
alternativa à ordem. Pode dizer-se, portanto, que o homem moderno se tornou in-
sustentável, na medida em que em sociedades complexas já não existem regras que
cumpram a função de oferecer a todos os povos um seguro sustento simultanea-
mente a longo prazo. A questão das regras de orientação “corretas” constitui antes
um problema permanente, que é constantemente trabalhado de novo na vida e na
coexistência das pessoas, mas que não pode ser transferido para uma solução final.
Nesse sentido, o homem moderno está numa busca aberta de orientação para
o futuro (cf. RUCKER; ANHALT, 2017, p. 13ff). O que se quer dizer com isso é que
há uma busca constante de regras pelas quais as pessoas se orientam para julgar,
agir e comunicar, a fim de lidar com a situação de perspectiva de condições em
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constante mudança. Como não temos conhecimento certo sobre o que são as regras
“certas” para todos, as quais devem ser seguidas, a busca por orientação é um pro-
blema permanente, para o qual não existem regras finais e, portanto, um processo
basicamente inacabável, no qual cada um encontrou funções de “retenção” como
um ponto de partida contingente para a busca individual e coletiva por orientação.
Nesse sentido, ao homem moderno é negada a possibilidade de encontrar um lugar
que possa oferecer uma posição final, porque ela seria imune a ser questionada a
partir de outra perspectiva. Em condições de complexidade, devemos tomar uma
decisão sem poder justificar o pedido de validade feito com as nossas decisões com
a exclusão de um “ponto de paragem” externo, ou seja, sem decisão (cf. ANHALT;
WELTI, 2018, p. 13f).
Governo, educação e disciplina
A teoria de Herbart da instrução educativa faz uma distinção entre três for-
mas básicas de educação, ou seja, governo da infância, instrução e disciplina for-
mativa. As duas últimas são chamadas de “educação em geral” e são distinguidas
como tal do governo. De acordo com Herbart, o governo só tem a tarefa de preparar
a “educação em geral”, ou seja, assegurar que a instrução e a disciplina formativa
se tornem possíveis. A sua tarefa, por outro lado, é proporcionar educação ao in-
divíduo. “Educação e não educação, ou seja, a oposição contraditória que separa
a educação atual do governo” (cf. HERBART, 1964e, p. 166). Para Herbart, isto
significa que a educação deve iniciar e apoiar o desenvolvimento da moralidade do
lado daquele que deve ser educado, porque “a moralidade” é “a finalidade máxima
do homem e, consequentemente, da educação” (HERBART, 1964f, p. 259). A moral,
segundo Herbart, exprime-se “no fato de que o homem olha para o mundo com
olhos livres, e nele não faz o que os outros fazem; mas o que é bom e necessário, e
talvez precisamente porque os outros não o fazem, mais é necessário” (HERBART,
1919, p. 505).
Na teoria da instrução educativa, o governo tem a tarefa de prevenir os danos
que os indivíduos infligiriam a si próprios e/ou a outras pessoas devido à falta de
discernimento se não fossem dissuadidos de certas ações pelo educador. Pode-se
ver aqui um poder educacional negativo, cujo fim parece ser necessário quando o
indivíduo não aprendeu a agir moralmente à luz de percepções fatuais e de seus
próprios julgamentos. No entanto, prevenir danos sempre significa aplicar regras
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que não estão abertas ao debate no próprio governo (mas que podem ser discutidas
no contexto de outras formas básicas de educação).
Herbart associa a legitimidade do governo a dois critérios: Em primeiro lu-
gar, o governo deve apenas impedir ações impensadas. Assim, não se justificaria
tentar alcançar um “propósito na mente da criança” através de certas medidas
(por exemplo, através de punições) (HERBART, 1964a, p. 19). Em segundo lugar,
o governo deve terminar assim que “vestígios de uma vontade se tornem evidentes
na criança” (HERBART, 1964a, p. 18), ou seja, assim que a criança desenvolva a
capacidade de submeter a sua vontade ao seu próprio julgamento e de agir nesse
sentido. Vamos assumir que uma criança passeie com seu pai na calçada de uma
rua movimentada. Os pais podem certificar-se de que a criança caminha ao seu
lado ao longo de um caminho e longe da rua. A criança também pode ser conduzida
pela mão. As atividades governamentais podem, por um lado, ser interpretadas
como medidas para prevenir potenciais danos à criança; por outro, também podem
ser entendidas como uma aplicação das regras (“Se andarmos ao lado de uma rua
movimentada, então você deve andar ao meu lado, não estar nas imediações da
rua, segurando a minha mão”). Nesse sentido, o governo só seria legítimo se a
criança não estivesse ainda em condições de agir de acordo com a percepção dos
possíveis perigos do tráfego rodoviário, ou seja, de não andar na estrada mesmo
que esta não seja conduzida pela mão.
Herbart descreve a instrução como a forma básica de educação, na qual o edu-
cador pede ao educando para se ocupar de uma “terceira” pessoa (um objeto, um
sujeito), procurando assim permitir-lhe compreender as respectivas circunstâncias
da situação (cf. HERBART, 1964a, p. 110). Um aspecto desta tarefa é ajudar o
indivíduo a compreender as regras que o governo, aparentemente, inquestionavel-
mente pôs em prática.
Herbart assume que a instrução se destina a apoiar os adolescentes no desen-
volvimento de um “interesse múltiplo” (HERBART, 1964a, p. 37). Discutirei esse
termo separadamente na próxima secção, uma vez que ocupa uma posição-chave
na tentativa de clarificar o conceito de Herbart de formação política no contexto
da teoria da educação. Neste ponto, apenas ressalto: a instrução em Herbart visa
ajudar os adolescentes a desenvolver uma compreensão múltipla de si mesmos e do
mundo. O indivíduo deve aprender, olhar para os fatos à luz de diferentes perspec-
tivas e, desta forma, diferenciar a compreensão de si próprio e do mundo para além
dos processos de aprendizagem diários.
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A disciplina formativa difere estruturalmente da instrução na medida em que
o educador se refere diretamente ao adolescente para apoiar sua interação com
percepções objetivas da ação. Para Herbart, isto significa também e acima de tudo
que o indivíduo deve aprender a julgar seu próprio projeto de ação em termos de se
ele pode ser justificado à luz do princípio de tratar outras pessoas como um fim em
si mesmo. Herbart considera o juízo moral neste sentido como condição para que o
adolescente desenvolva uma “força de caráter moral” (HERBART, 1964a, p. 90). No
entanto, o seu desenvolvimento não resulta apenas do juízo moral, mas exige que o
indivíduo seja induzido a conformar-se ao seu próprio juízo em ação. Deve também
ter-se em conta que um determinado conhecimento não conduz já a uma determi-
nada ação. Por exemplo, o conhecimento do motivo pelo qual as calotas polares
estão derretendo não sugere, por si só, um compromisso com o meio ambiente. A
decisão de pedalar até ao trabalho implica um juízo de que as alterações climáticas
e as suas consequências devem ser abordadas. Nesse sentido, Jürgen Rekus (1993,
p. 105) chama a atenção para o fato de que a ligação entre conhecimento e ação não
é inquestionavelmente dada, mas deve ser estabelecida através da “atividade de
valor”.
Nesse contexto, a instrução educativa pode ser entendida como a combinação
de instrução e disciplina formativa: o adolescente deve ser conduzido ao conheci-
mento e, ao mesmo tempo, conduzido para situações em que se vê confrontado com
a tarefa de tomar a sua própria posição à luz dos conhecimentos fatuais e de cum-
prir o seu próprio juízo de valor (moral) na ação3. A instrução educativa coincide
com a “educação em geral” em Herbart4.
Herbart, como eu tinha tentado deixar claro, entende a instrução como uma
forma básica de educação. Neste ponto, pode-se ser tentado a interpretar o discurso
da instrução educativa como pleonasmo. Pode-se argumentar que o ensino que é
entendido como uma forma básica de educação deve necessariamente ser defini-
do coma instrução educativa. Tal interpretação pode certamente ser apoiada pelo
trabalho de Herbart, pois em alguns lugares ele fala de uma “educação através da
instrução” em vez de uma lição educacional (p. ex., HERBART, 1964a, p. 11). O
ensino deve, portanto, ser sempre entendido como instrução educativa se for com-
preendido como a forma básica de educação (cf. RAMSEGER, 1991).
Esta interpretação é contraposta por uma interpretação alternativa (e aqui
preferida por mim) dos escritos de Herbart. De acordo com esta abordagem in-
terpretativa, o termo “instrução educativa” é usado porque pretende-se enfatizar
que a educação para a moralidade só pode ser descrita de forma significativa como
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ligação entre a instrução e a disciplina. Instrução e disciplina formativa são enten-
didos como “partes recíprocas [...] da instrução educativa” (CORIAND, 2000, p. 68).
Nesse sentido, a instrução educativa representa uma tentativa de não reduzir a
instrução a um mero guia do conhecimento. A instrução educativa significa antes
conduzir o indivíduo ao conhecimento (instrução) e também ajudá-lo a fazer os seus
próprios julgamentos dentro do horizonte da ideia de autogoverno do ser humano e
a corresponder a eles em ação (disciplina). No entanto, a disciplina formativa não
pode ser equiparada à educação. Herbart também descreve como disciplina apenas
uma forma básica de educação entre outras, embora também aquela que, seguindo
Herbart, dá nome à educação: “A palavra alemã educação deriva de disciplina e a
sua parte principal, já de acordo com a sua designação, costuma pôr-se naquilo que
só agora, já na parte final deste meu estudo, começo por considerar” (HERBART,
1964a, p. 110). Nesse contexto, na minha opinião, também se pode tornar plausível
o discurso de uma instrução educativa se este se referir à unidade da diferença
entre instrução e disciplina e não, como se poderia supor inicialmente, à unidade
da diferença entre instrução e educação.
O interesse múltiplo
Qualquer que seja a leitura que se deseje dar preferência, é indiscutível que
é central para a instrução educativa o sentido de que o adolescente deve ser aju-
dado a desenvolver um “interesse múltiplo”. Herbart usa o termo interesse com o
significado original no latim, ou seja, de “estar entre”. Interesse refere-se ao facto
de uma pessoa se posicionar em relação aos assuntos da vida e da coexistência das
pessoas. Herbart antecipou que a vida e a convivência das pessoas nas sociedades
modernas aconteceriam numa multidão e variedade de mundos e orientações, e
chamou a esta circunstância de “divisão dos modos de vida” (HERBART, 1964g).
A tarefa da instrução educativa em Herbart é dar ao indivíduo a oportunidade
de desenvolver “Receptividade, acesso fácil com juízo e percepção, para tudo o que
pode ser chamado de assunto humano” (HERBART, 1919, p. 507). O adolescente
deve desenvolver-se em meio a instrução educativa como uma pessoa interessada
em muitas coisas, com pontos de vista próprios no horizonte da multiplicidade e
da variedade de orientações de mundos e capaz de julgar os fatos num jogo de
perspectivas.
Na instrução educativa, os fatos devem ser tematizados no horizonte de uma
multiplicidade e variedade de perspectivas. Na “multiplicidade”, disse Herbart, “a
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pessoa deve ser múltipla” (HERBART, 1913, p. 175). Dependendo da perspectiva,
é possível capturar diferentes aspectos dos fatos. Herbart chama isso de “multi-
plicidade de objetos” e a distingue de “quantidade” (HERBART, 1964h, p. 155).
“Multiplicidade”, segundo Herbart, descreve a riqueza de aspectos de um fato. Por
exemplo, no que diz respeito à questão do “aborto”, podem distinguir-se aspectos
morais, científicos, políticos ou religiosos. Assim, Herbart define inicialmente a
multiplicidade como uma característica dos fatos. “Tomado objetivamente”, o termo
multiplicidade descreve “um conteúdo múltiplo de nossa imaginação e sentimento”
(HERBART, 1913, p. 175)5.
O adolescente é desafiado nas instruções educativas a lidar com uma multipli-
cidade e variedade de perspectivas e a posicionar-se em relação a elas. “Interesse é
ocupar-se consigo mesmo” (Selbsthätigkeit). O interesse deve ser múltiplo; portanto,
exige-se uma ocupação consigo mesmo múltipla” (HERBART, 1964h, p. 145). A ideia
orientadora da ocupação consigo mesmo confrontada com aspectos específicos de uma
dada situação é do “ser humano múltiplo” (HERBART, 1913, p. 175), que é capaz de
fazer os seus próprios juízos no horizonte da multiplicidade e variedade de contextos
sociais e de os cumprir nas suas ações. Por esta razão, Herbart define a multiplicida-
de não só como uma característica dos fatos, mas também como uma característica
do ser humano educado. Segundo Herbart, “tomada subjetivamente”, o conceito de
multiplicidade refere-se à “qualidade da pessoa” (HERBART, 1913, p. 175).
Em meio à instrução educativa, os adolescentes desenvolvem regras de orien-
tação própria no horizonte de uma multiplicidade e variedade de perspectivas,
em que “partes do ser humano” surgem e a “personalidade” se desenvolve “numa
unidade composta de muitas coisas” (HERBART, 1913, p. 175). A esse respeito,
a elaboração de regras conduz a uma diferenciação da relação da pessoa consigo
mesma e com o mundo. Herbart chama esse processo de “formação do círculo de
pensamentos (Gedankenkreis)” (HERBART, 1964a, p. 21). O círculo de pensamen-
tos é o lugar no qual o indivíduo se refere reflexivamente a si mesmo e ao mundo e
cria regras de orientação.
Segundo Herbart, a tarefa da instrução educativa é apoiar o desenvolvimento
de um círculo multifacetado e diferenciado de pensamentos. Por esta razão, o ado-
lescente é encorajado, na instrução educativa, a lidar diretamente com os fatos à
luz da multiplicidade e da variedade, bem como numa interação de perspectivas, a
fim de “vaguear pela vastidão da esfera humano de pensamento em todas as dire-
ções” (HERBART, 1964a, p. 21) e “desenvolver um grande círculo de pensamentos
intimamente ligado nas suas partes” (HERBART, 1964a, p. 16).
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A “multiplicidade” pode ser interpretada como a categoria com a qual Her-
bart reage tanto à multiplicidade de perspectivas como à ignorância em “certa”
perspectiva nas sociedades complexas. Só a multiplicidade impede que o indivíduo
se comprometa com perspectivas específicas de orientação e, em vez disso, abre a
possibilidade de confrontar perspectivas sobre um fato com alternativas e determi-
nar-se em uma interação de perspectivas. Sem dúvida, a multiplicidade não conduz
à transformação da incerteza, característica das sociedades complexas referente
à “justeza” das próprias regras de orientação, em certeza. No entanto (ou talvez
precisamente por isso), um juízo adequado à complexidade baseia-se no facto de as
diferentes perspectivas serem tidas em conta e relacionadas entre si, na medida
em que cada uma delas se centra em ligações que não podem ser compreendidas de
outra perspectiva.
Política
De acordo com Herbart, uma forma específica de relacionamento consigo e
com o mundo é o interesse político. Para determinar isso, refiro-me a uma passa-
gem da Pedagogia geral de Herbart de 1806, na qual ele exprime sucintamente o
seu próprio conceito de política. Herbart descreve “participação para a sociedade”
em contraste com a forma de participação que ele chama de “simpatia”:
As exigências do encontro dos homens [conduz] o espírito sociável à ordem a partir da sim-
patia, diz Herbart. Se a participação simplesmente assume os estímulos que encontra nas
mentes humanas, segue o seu curso, envolve-se nas suas diferenças, colisões, contradições:
desta forma é meramente simpática. […]. Mas ela também pode separar as múltiplas emo-
ções de muitas pessoas dos indivíduos, tentar equilibrar suas contradições e se interessar
pelo bem-estar como um todo, que ela então distribui entre os indivíduos novamente em
pensamento. - Esta é a participação da sociedade. Dispõe do indivíduo para se apegar ao
geral; exige troca e sacrifício, resiste aos reais estímulos, e pensa em possíveis melhores no
seu lugar. Assim é o político (HERBART, 1964a, p. 45).
Herbart define interesse político aqui como “participação para a sociedade”. A
relação política consigo mesmo e com o mundo estão relacionadas com fatos que di-
zem respeito não só ao modo de vida dos indivíduos, mas também à coexistência das
pessoas. No entanto, não é a coexistência de pessoas em geral que é o ponto de orien-
tação da relação política consigo mesmo e com o mundo, mas apenas a coexistência
que se tornou problemática. É o caso, por exemplo, quando as regras de coexistência
estabelecidas são objeto de críticas e questionadas. Ao julgar, agir e comunicar em
relação à regulação de uma vida em conjunto que se tornou problemática, as pes-
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soas constituem o mundo da política. A política é, portanto, o mundo de orientação
no qual a convivência das pessoas é regulada porque se tornou problemática.
Segundo Herbart, a política não se limita ao Estado. O Estado é uma conexão
de instituições cuja função é regular a coexistência de pessoas que se tornaram pro-
blemáticas. “Embora o Estado seja um só, é uma unidade de interações do maior
número possível de elementos diferentes” (HERBART, 1964g). O julgamento e a
ação política são permanentes no Estado, porque a regulação da coexistência de
pessoas é um problema permanente na sociedade. No entanto, o mundo da política
não se limita ao Estado. A formação política, segundo Herbart, não é algo intrín-
seco à política, mas também se dá fora do Estado (cf. HERBART, 1964b, p. 387).
A necessidade da política surge do conflito sobre como a coexistência de pessoas
deve ser regulada. O conflito consiste no fato de que as pessoas tomam posições ou
perspectivas diferentes em relação à questão da ordem correta de sua convivência.
Por esta razão, faz-se necessário um juízo e uma ação relacionada a ele, segundo
Herbart, “para compensar as contradições que surgem das múltiplas emoções de
muitas pessoas” (HERBART, 1964a, p. 45).
Um “espírito de ordem” é decisivo para o mundo da política. Segundo Herbart,
este “propõe leis” (HERBART, 1964a, p. 45) e assim cumpre a função de estabele-
cer, pelo menos momentaneamente, uma ordem de coexistência humana. Chamo
ordem a um estado temporariamente estável de coexistência humana. Este estado
é baseado em regras de orientação coletivamente compartilhadas. Se se trata de
um estado desordenado, é necessário que as pessoas elaborem regras coletivas de
orientação, cuja observância cumpre a função de restaurar a ordem na coexistência
das pessoas. Uma vez que, numa sociedade complexa, regras únicas “corretas” de
convivência não são conhecidas, existe sempre a possibilidade de que elas voltem
a ser questionadas no futuro. Os fatos políticos são então, na expressão de Herbart
(1964c, p. 31), “objetos [...] que permanecerão sempre discutíveis”6.
No contexto desta descrição de interesse político, como se pode definir forma-
ção política e educação como sendo formação política capacitante?
Formação política
Quando o governo faz somente uma contribuição indireta à formação política,
fornecendo os pré-requisitos para a instrução educativa, ele opera como meio pró-
prio da formação política. Herbart define explicitamente o “propósito da educação”
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como o propósito de “instruir” e “disciplinar” (HERBART, 1964a, p. 111), enquanto,
como já explicado, ele meramente atribui ao governo a função de gerar condições.
As seguintes considerações servem para determinar o que significa formação
política por meio da instrução educativa. Minha proposta é chamar de formação
política, na perspectiva de Herbart, o processo em que o adolescente, sob influência
educativa, lida com fatos políticos e desenvolve uma capacidade de julgamento e
ação que lhe permite orientar-se no mundo da política, dentro do horizonte das
ideias políticas segundo regras proposta a si mesmo. Nesse sentido, segundo Her-
bart, o indivíduo não se forma isoladamente, mas, sim, sempre em condições edu-
cacionais. Nessa perspectiva, o adolescente de Herbart recebe, em princípio, um
estatuto de ator (cf. ANHALT, 1999).
A seguir, descreverei os componentes centrais da formação política no meio do
instrução educativa: (a) baseado no pressuposto antropológico da indeterminação
política da humanidade e, (b) do pré-requisito teórico societal da ignorância das
regras “certas” de orientação política em sociedades complexas, (c) a formação po-
lítica deve ser definida como um processo aberto no qual o adolescente (d) em uma
interação de aprofundamento e reflexão, por um lado, e no horizonte das ideias
políticas, por outro, determina por si mesmo as regras de orientação, tomando-as
como decisivas e aprendendo a corresponder-se a elas em ação.
Indeterminação
Uma descrição da formação política no contexto do pensamento pedagógico
de Herbart baseia-se no pressuposto antropológico da “indeterminação” política
(HERBART, 1964h, p. 69) do adolescente. A expressão indeterminação política refe-
re-se ao fato de que as regras de orientação política não são dadas ao indivíduo por
natureza, mas devem primeiro ser aprendidas por ele. É a faculdade do indivíduo
de desenvolver novas capacidades que o constitui como um ator não determinado.
O adolescente não está por natureza destinado a orientar-se no mundo da política
para regras específicas. Pelo contrário, a sua capacidade de aprender fornece-lhe
um horizonte de possibilidades que não pode ser sondado e que lhe permite de-
senvolver uma relação política entre si e o mundo. Inversamente, o indivíduo só
é capaz de desenvolver posições políticas porque elas não são fixas por natureza.
A indeterminação política e a capacidade natural de aprender formam assim dois
lados de uma medalha, que na obra de Herbart tem o nome de “educabilidade
(Bildsamkeit)” (HERBART, 1964g, p. 69).
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Conhecimento normativo
Com Herbart, uma descrição da formação política poderia ser baseada não só
numa hipótese antropológica, mas também numa hipótese teórica social, nomea-
damente no pré-requisito de uma ignorância fundamental das regras na situação
de complexidade típica das sociedades modernas. Esta ignorância aplica-se não
só à relação entre os diferentes contextos sociais, mas também dentro do contexto
político. Tendo em conta a multiplicidade e a diversidade de posições, tornou-se im-
possível justificar de forma convincente apenas as regras “corretas” da orientação
política individual. Qualquer tentativa de fazê-lo, nas condições de complexidade,
pode ser confrontada com alternativas, sem mostrar as razões do destino político
“real” do adolescente.
Tendo em conta que não conhecemos os pontos de vista políticos “certos” em
sociedades complexas, já não é convincente, segundo Herbart, determinar positi-
vamente o eu e as relações políticas mundanas de uma pessoa e desenvolver um
conceito de formação política nesta base. Considerando a indeterminação política do
adolescente e a ignorância das regras “corretas” de sua orientação, a formação po-
lítica segundo Herbart preferiria ser entendida como um processo aberto ao futuro.
Abertura de espírito
Em vista da impossibilidade de determinar os únicos pontos de vista políticos
“corretos” na situação de perspectiva, seria, segundo Herbart (1919, p. 515), uma
“imposição” para a instrução educativa “formar os jovens para a máquina dos nos-
sos Estados”. Pelo contrário, “educação reta” é aquela que “não se preocupa com
o Estado, que não é de modo algum entusiasta dos interesses políticos”, mas que
“quer educar cada um só para si mesmo” (HERBART, 1964g). As posições políticas
que são decisivas para um ser humano não são determinadas na descrição que Her-
bart faz, mas são confiadas ao adolescente como uma tarefa a ser realizada por ele
mesmo. Trabalhando nesta tarefa e sendo ajudado pelo educador, o indivíduo pode
desenvolver os seus próprios pontos de vista políticos para “olhar para o mundo,
para o futuro” e “lidar consigo mesmo e com o mundo” (HERBART, 1964a, p. 133).
O indivíduo não é obrigado a escolher apenas entre posições políticas que lhe são
apresentadas. Pelo contrário, ele também tem a possibilidade de não escolher entre
determinadas alternativas e, ao invés disso, desenhar outras alternativas às posi-
ções tomadas nos debates políticos atuais.
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Ao colocar a instrução educativa sob a pretensão de tornar possível a forma-
ção política, qualquer forma de educação afirmativa em que o indivíduo deva ser
definido em termos de posições políticas específicas é rejeitada. Pelo contrário, a
pretensão da instrução educativa é estimular uma “transformação do imaginá-
rio indefinido” do indivíduo em “determinações experimentais e autoescolhidas”
(BENNER, 2015, p. 171) e, assim, desencadear um desenvolvimento que não é
finalizado na preservação de uma dada ordem política nem na resistência a tal or-
dem. Pelo contrário, formação política significa um processo em que o adolescente
desenvolve a capacidade de determinar por si mesmo como se posiciona em relação
aos problemas políticos. Isto, por sua vez, tem como consequência, que a questão
de quais pontos de vista políticos devem ser apresentados ou postos de lado, não
é entendida no contexto de uma instrução educativa em si, que já foi respondida
antecipadamente, a fim de comprometer o indivíduo com uma determinada respec-
tiva de resposta. Em vez disso, a própria questão se torna tema da instrução edu-
cativa. A instrução educativa pode, portanto, ser reconhecida também e sobretudo
pelo fato do adolescente ser introduzido no mundo da política de tal modo que possa
aprender a relacionar-se com os problemas políticos e a determinar ele próprio a
sua posição autonomamente, para finalmente discutir com os outros o que deve
ser preferido ou adiado nos assuntos públicos. A esse respeito, pode-se dizer que a
instrução educativa sempre coloca posições políticas tradicionais em discussão. As
reivindicações de validade associadas a estas posições não são simplesmente apli-
cadas, mas sujeitas a escrutínio, o que permite a aceitação justificada, bem como a
rejeição ou transformação justificadas.
A formação política ganha assim uma dinâmica aberta ao futuro (cf. RUC-
KER, 2014a; RUCKER; GERÓNIMO, 2017). A abertura consiste no fato de que a
formação política não é finalizada com base em posições políticas predeterminadas.
As regras que uma pessoa determina como decisivas para si mesma são decididas
em uma interação entre o aprofundamento e a reflexão sobre os fatos políticos.
Interação
Herbart descreve o envolvimento formativo da pessoa com uma questão polí-
tica compreendida nos termos da interação entre “aprofundamento” e “reflexão”.
Segundo Herbart, o aprofundamento numa questão política é um pré-requisito
para a reflexão. Em contrapartida, a reflexão sobre uma questão específica serve
de ponto de partida para aprofundar outras questões políticas. Aprofundar signifi-
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ca “subtrair os pensamentos de tudo o resto durante algum tempo” e tematizar “o
próprio cuidado” (HERBART, 1964a, p. 38) para determinar os seus componentes
tanto individualmente como em contexto. Na contemplação, o adolescente coloca-
-se numa relação reflexiva com as respectivas circunstâncias. Herbart descreve a
reflexão como um “mundo interior” no qual uma pessoa “pode sair da engrenagem
do tempo e esquecer o momento” (HERBART, 1964d, p. 155f) para se posicionar
politicamente com base no conhecimento adquirido no aprofundamento.
O próprio posicionamento se dá por meio do esboço de regras de orientação
política e, nesse sentido, não é dado nem definitivo. O indivíduo determina regras
para si próprio como decisivas e, ao mesmo tempo, permanece aberto para futu-
ras transformações do seu próprio ponto de vista político. Para o ponto de partida
de tais transformações não são menos importantes outras posições políticas que
podem irritar as ordens do próprio círculo de pensamento. “A fim de se livrar de
preconceitos no círculo habitual de pensamentos, um entra na esfera de outras
opiniões opostas” (HERBART, 1964a, p. 139). As irritações confrontam o indivíduo
com a tarefa de procurar novas posições sem a perspectiva de uma ordem de pen-
samento político que seria protegida de se irritar novamente no futuro.
Bem-estar como um todo
O adolescente deve desenhar regras de orientação de ocupação consigo mesmo
no confronto com fatos políticos, por um lado, e no horizonte da diferença entre
“bem” e “mal”, por outro. Ele “resiste aos impulsos reais, e pensa em possíveis me-
lhores no seu lugar”, orientando-se para o “bem-estar no todo” (HERBART, 1964a,
p. 45). Herbart descreve a ordem de uma coexistência bem-sucedida de pessoas
como “bem-estar no todo” (Wohlseyn im ganze). Bem-estar no mundo é o horizonte
moral para julgar, agir e comunicar com as pessoas no mundo da política. Herbart
descreveu esse horizonte com base em cinco ideias ou juízos elementares de orien-
tação política, que ele denomina de ideias da “sociedade jurídica”, da “sociedade
remuneratória”, do “sistema administrativo”, do “sistema cultural” e da “sociedade
inspirada” (HERBART, 1964b).
Não vou entrar em pormenores sobre tais ideias neste momento, mas gostaria
simplesmente de chamar a atenção para o seu núcleo sistemático. Em conjunto,
estas ideias descrevem a forma da ordem da coexistência humana baseada no prin-
cípio do respeito pela dignidade humana7. Ao fazê-lo, não determinam em que con-
siste realmente o bem comum. Em vez disso, formulam a tarefa que o que consiste
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na “maior soma possível de bem-estar” (HERBART, 1964b) deve primeiro ser pro-
curado e encontrado no processo de aconselhamento mútuo das pessoas8. Por pes-
soas que julgam, agem e comunicam dentro do horizonte das ideias de orientação
política é o que Herbart chama de sociedade animada: Uma sociedade finalmente
criada a partir do coletivo e, portanto, sempre também a partir da busca pública
pela orientação de convivência à luz da ideia de dignidade humana.
A participação nessa busca requer pessoas que não só sejam capazes de fazer
julgamentos políticos, mas também tenham a capacidade de responder aos seus
próprios julgamentos em ação. Por esta razão, a instrução educativa visa também
ajudar o indivíduo a desenvolver uma “força de carácter moral” no mundo da políti-
ca. “O carácter é a forma constantemente determinada como o homem se relaciona
com o mundo exterior” (HERBART, 1919, p. 524). De acordo com Herbart, o caráter
moral é expresso no fato de que o indivíduo está realmente comprometido com um
“Bem-estar em geral”, o que não requer menos coragem de representar sua própria
posição política em contextos públicos, mesmo contra a resistência. Uma das tare-
fas da instrução educativa é, portanto, dar ao indivíduo a oportunidade de cumprir
seus próprios julgamentos em ação. Pois, “caráter” é definido, pelo fato de que “é
formado apenas pela ação da própria vontade” (HERBART, 1964a, p. 19).
Segundo Herbart (1964a, p. 91), pode-se supor que o adolescente sempre ad-
quiriu “traços de caráter” específicos no decorrer dos processos de socialização. Por
um lado, tais processos determinam as ações de um ser humano, mas, de outro,
também podem ser perturbados na interação do aprofundamento e da reflexão. A
referida interação pode “roubar do homem a unidade consigo próprio e desorien-
tá-lo”, nomeadamente, quando as experiências “criam discórdia entre o subjetivo
e o objetivo” (HERBART, 1964a, p. 101). É o que acontece quando os indivíduos
experimentam que as suas próprias posições políticas já não podem ser considera-
das viáveis, pelo que é necessário elaborar novas posições e dar-lhes seguimento.
De acordo com Herbart, isso inevitavelmente leva a uma “luta” (HERBART, 1964a,
p. 123). Neste estado, as posições recém-projetadas atendem aos traços de caracte-
res que já qualificam uma pessoa.
Apoiar o indivíduo na contestação vitoriosa da luta em questão e no desen-
volvimento de novos traços é a tarefa da instrução educativa que não leva só ao
conhecimento, mas também inclui a disciplina formativa. Suas medidas, no entan-
to, não se destinam a educar os adolescentes a adotar uma atitude afirmativa em
relação a uma determinada ideologia. Sua pergunta metódica orientadora é: “Como
a ação deve ser limitada e encorajada de acordo com o próprio sentido?” (HER-
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BART, 1964a, p. 119). Esta é uma questão que é susceptível de desempenhar papel
importante na teoria e na prática da formação política a nível mundial ainda hoje.
A esse respeito, deve concluir-se que a declaração de Flitner, no início deste
ensaio, de que a contribuição de Herbart para a formação política deve ser conside-
rada menor, não pode ser aceita sem maiores reflexões. Embora o próprio Herbart
não tenha tratado sistematicamente do problema levantado por Flitner, seus escri-
tos, no entanto, revelam disposições importantes da instrução educativa como meio
de formação política. Se estas disposições forem reunidas, surge uma descrição
diferenciada da formação política em meio a instrução educativa, o que marca a
consciência do problema por detrás do qual a investigação na pedagogia e na ciên-
cia da educação não deve ficar para trás.
Notas
1 Este artigo é uma versão revista e consideravelmente alargada do artigo Erziehender Unterricht als Me-
dium der politischen Bildung, publicado em: RUCKER, T. Erziehender Unterricht als Medium der poli-
tischen Bildung. In: ANHALT, E.; STEPKOWSKI, D. (org.). Erziehung und Bildung in politischen
Systemen. Jena: Garamond, 2012. p. 73-94. Título original: Komplexität, erziehender unterricht und poli-
tische bildung. Tradução e revisão do Dr. Odair Neitzel e do Dr. Cláudio Almir Dalbosco.
2 Consequentemente, isso também se aplica às descrições da sociedade moderna. Falando com Luhmann
(1992, p. 42), o “resultado das condições estruturais a que a sociedade moderna se expõe” consiste na “au-
sência de uma descrição unificada do mundo”. Segundo Luhmann (1992, p. 42), a sociedade moderna “não
conhece quaisquer posições a partir das quais a sociedade em sociedade possa ser descrita de forma vincu-
lativa para outros” e, neste sentido, “não suporta” quaisquer “pensamentos finais”. Neste ponto, pode-se
argumentar que mesmo uma descrição da sociedade moderna como complexa é apenas uma possibilidade
de descrição entre outras. No entanto, tal objecção ignora a vantagem desta descrição, que consiste em
que o facto de existirem diferentes descrições da sociedade moderna (e nenhuma descrição da unidade)
ainda pode ser apanhado. Esta circunstância pode ser interpretada como expressão da complexidade da
sociedade moderna. O facto de existirem descrições alternativas da sociedade moderna, para além de uma
descrição da sociedade moderna como complexa, não prejudica essa descrição, antes a apoia.
3 A diferença entre juízos de valor em geral e juízos de valor moral em particular não se encontra com esta
clareza em Herbart. Em contribuições mais recentes para a teoria da instrução educativa, a diferença
entre “preferir” e “adiar” é resolvida a partir de seu enredo com a diferença entre “bom” e “mau”. Os juízos
de valor aos quais o indivíduo deve ser chamado na instrução educacional já não são necessariamente
entendidos como juízos de valor moral (p. ex., SCHILMÖLLER, 2009, p. 65f). Em geral, podemos dizer: “A
questão dos valores é mais ampla do que a questão moral”, porque “trata-se da nossa boa vida individual”,
que não significa necessariamente orientar-se moralmente, isto é, alinhar-se com o “reconhecimento do
imperativo categórico com a proibição da instrumentalização do outro”. Uma orientação moral implica a
“vontade de violar os próprios interesses numa emergência para não agir mal”, ou seja, para prejudicar
outras pessoas (cf. HELLEKAMPS, 2002, p. 45).
4 Sobre este conceito de ensino educacional, ver Schilmöller (1994); Benner (1995); Fees (1998); Rekus
(1993, 2010); Ladenthin (2008); Anhalt (2011); Rucker (2019).
5 Herbart parece já ter antecipado o que Ernst Cassirer mais tarde iria desenvolver numa filosofia de formas
simbólicas. Como aponta Cassirer (1956), a referência a um fato está sempre envolvida em pré-requisitos
que estruturam o horizonte no qual uma pessoa capta um fato. Dizendo de forma muito clara: “O mundo
tem para nós a forma que o Espírito lhe dá” (CASSIRER, 1956, p. 60). Mas o espírito é “uma multiplicida-
de concreta de direções diferentes”, que tem a consequência de que “o ser e suas classes, suas conexões e
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suas diferenças aparecem como outras, dependendo de como se vê através de diferentes meios espirituais”
(CASSIRER, 1956, p. 60).
6 O conceito de política de Herbart revela-se muito atual se o compararmos com as disposições atuais da políti-
ca. Böckenförde define o conceito de política com base nas seguintes características: 1. modo de auto e relação
mundial: “A política é [...] uma forma de pensamento e ação” (BÖCKENFÖRDE, 1995, p. 3). 2. regulação ou
ordem da coexistência de pessoas: “A política [...] tem a ver [...] com questões relativas à ordem da coexis-
tência (BÖCKENFÖRDE, 1995, p. 2). 3ª esfera pública: “A política e o comportamento político pertencem à
esfera pública, não à esfera privada. Isto decorre da sua relação com as questões de ordem e a formação da
coexistência de pessoas que são sempre questões públicas” (BÖCKENFÖRDE, 1995, p. 3). 4º conflito: “Um
confronto sobre uma questão de fato, sobre um problema a ser resolvido, torna-se político na medida em que
as pessoas se agrupam de acordo com diferentes visões e objetivos, semelhanças ou oposições emergem e
determinam a ação e a interação a partir daí (BÖCKENFÖRDE, 1995, p. 4) 5. Universalidade: “Potencial-
mente, cada questão pode tornar-se objeto de esforços e disputas sobre a ordem correta da coexistência de
pessoas e grupos de pessoas e, portanto, o objeto da política: Questões de fé, bem como questões de vestuário
(fatos de banho, lenços de cabeça de mulheres islâmicas), questões de segurança, tais como questões de lin-
guagem pública, educação infantil, tais como controle de natalidade e práticas sexuais. Também a questão de
saber até que ponto a coexistência de pessoas deve ser regulada de forma vinculativa e onde começa a esfera
privada e pessoal autônoma do indivíduo, é muitas vezes objeto de política e pode tornar a sê-lo novamente;
isso é em si mesma, portanto, uma questão política” (BÖCKENFÖRDE, 1995, p. 3).
7 Immanuel Kant (1781) formulou este princípio na fórmula de propósito próprio de seu Imperativo Categó-
rico da seguinte maneira: “Age de tal maneira que uses a humanidade tanto em tua pessoa como na pessoa
de todos os outros, sempre simultaneamente como um fim, nunca meramente como um meio”. Como Ben-
ner (1993, p. 167) mostrou, as ideias políticas de Herbart podem ser lidas como uma tentativa de formular
“juízos elementares de uma avaliação política das condições sociais”, “para concretizar o imperativo cate-
górico de Kant para os subsistemas sociais e assim desenvolver [...] princípios de uma boa ordem social em
que o reconhecimento mútuo dos indivíduos como um fim em si mesmo [...] é reconhecido como uma tarefa
de prática político-pública”.
8 Nesse sentido, Ernst Fraenkel (1964, p. 199ff) contrastou um bem comum a priori com um bem comum a
posteriori. De acordo com Fraenkel, nas sociedades democráticas modernas, o que significa bem comum
não pode ser considerado como já dado antecipadamente. Pelo contrário, o bem comum deve primeiro ser
determinado na discussão pública de diferentes posições.
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A faceta negativa na ação pedagógica e seu caráter formativo
v. 28, n. 3, Passo Fundo, p. 953-974, set./dez. 2021 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
A faceta negativa na ação pedagógica e seu caráter formativo
A faceta negativa en la acción pedagógica y su carácter formativo
The negative facet in pedagogical action and its formative character
Odair Neitzel*
Resumo
A presente investigação resulta de uma revisão bibliográca, de perspectiva epistemológica hermenêutica e
analítica. Aborda o tema da dimensão negativa nos processos de formação humana. Tem por objetivo reetir
e chamar a atenção para a importância da investigação e compreensão desta faceta da ação pedagógica, suas
implicações e presença de modo geral na constituição e existência humana. Pretende oferecer uma reexão
sobre o caráter ontoantropológico da negação no processo de constituição dos sujeitos e sinalizar em que me-
dida a presença da negação pode ser formativa ou prejudicial para o desenvolvimento humano. Para tanto, faz
aproximação com o conceito de disciplina formativa da Pedagogia Geral de Johann Friedrich Herbart, que pode
ser compreendida como suspensão do habitual, do já aceito, das crenças, proporcionando essencialmente um
momento de descontinuidade e abertura para o mundo, permitindo aos sujeitos se tomarem em reexão e re-
construção, visando o fortalecimento da capacidade de decisão moral. Constata-se assim, que a faceta negativa
da ação pedagógica, ao se caracterizar não como negação do sujeito, mas como descontinuidade e consequen-
te estranhamento e perplexidade, proporciona um momento de grande riqueza formativa fundamental para o
conhecimento e às práticas pedagógicas.
Palavras-chave: Herbart; disciplina formativa; ética; conhecimentos e práticas educacionais.
Resumen
Esta investigación es el resultado de una revisión de la literatura, desde una perspectiva hermenéutica y analítica
epistemológica. Trata de la dimensión negativa en los procesos de formación humana. Su objetivo es reexionar
y llamar la atención sobre la importancia de la investigación y la comprensión de esta faceta de la acción peda-
gógica, sus implicaciones y su presencia en general en la constitución y la existencia humana. Tiene por objeto
ofrecer una reexión sobre el carácter ontoantropológico de la negación en el proceso de constitución de los
sujetos y señalar en qué medida la presencia de la negación puede ser formativa o perjudicial para el desarrollo
humano. Para ello, se aproxima al concepto de disciplina formativa de la Pedagogía General de Johann Friedrich
Herbart, que puede entenderse como una suspensión de lo habitual, de lo ya aceptado, de las creencias, propor-
cionando esencialmente un momento de discontinuidad y de apertura al mundo, permitiendo a los sujetos que
se tomen a sí mismos en reexión y reconstrucción, con el n de reforzar la capacidad de decisión moral. Así, el
lado negativo de la acción pedagógica, al caracterizarse no como negación del sujeto, sino como discontinuidad
y consecuente alejamiento y perplejidad, proporciona un momento de gran riqueza formativa fundamental para
el conocimiento y las prácticas pedagógicas.
Palabras clave: Herbart; disciplina formativa; ética; conocimiento y prácticas educativas.
* Doutor em Educação (Universidade de Passo Fundo/Universität Kassel). Professor Adjunto na Universidade Federal Fron-
teira Sul – campus Chapecó. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-8121-1149. E-mail: odair.neitzel@us.edu.br
Recebido em: 29/01/2021 – Aprovado em: 25/11/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i3.12234
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Abstract
This research results from a literature review, from a hermeneutic and analytical epistemological perspective.
It deals with the negative dimension in human formation processes. It aims to reect and call attention to the
importance of research and understanding this facet of pedagogical action, its implications and presence in
general in the constitution and human existence. It intends to oer a reection on the ontoanthropological cha-
racter of denial in the process of the subjects’ constitution and to signal to what extent the presence of denial can
be formative or harmful to human development. To this end, it approaches the concept of formative discipline
of the General Pedagogy of Johann Friedrich Herbart, which can be understood as a suspension of the usual,
the already accepted, of beliefs, essentially providing a moment of discontinuity and openness to the world,
allowing subjects to take themselves in reection and reconstruction, aiming at strengthening the capacity of
moral decision. Thus, it can be seen that the negative side of the pedagogical action, by characterizing itself not
as a denial of the subject, but as discontinuity and consequent strangeness and perplexity, provides a moment
of great formative richness fundamental to knowledge and pedagogical practices.
Keywords: Herbart; formative discipline; ethics; knowledge and educational practices.
Introdução
Crianças necessitam da presença de outras crianças, principalmente na pri-
meira infância. Esta afirmativa poderia ser corroborada e justifica por inúmeros
argumentos, mas a apresentamos aqui como ponto de partida e provocação, para
que o leitor seja remetido em seus pensamentos, para alguma memória ou cenas de
crianças brincando em uma praça, talvez na beira da praia, na escola, em alguma
rua, mas sempre brincando com outras crianças. Crianças precisam estar com outras
crianças, atividade que é fundamental, desejada e salutar para o seu desenvolvimen-
to e aprendizado. Não é necessária muita coisa para que rapidamente as crianças
se coloquem a brincar. Geralmente saber o nome da outra criança é suficiente para
iniciar a interação. De forma quase mágica, as diferenças, suas dificuldades e neces-
sidades, classe ou status sociais são pausadas e sessam se assim for permitido pelos
adultos. A brincadeira é um mecanismo essencial em torno do qual as crianças se
ocupam com as coisas, descobrem-se mutuamente e fantasiam juntas1.
Diante dessa provocação inicial gostaríamos de levar o leitor à pergunta que
não é nova, mas que se repete de tempos em tempos no pensamento filosófico e na
tradição pedagógica: com esses seres recém-chegados ao mundo, a princípio tão
semelhantes em suas necessidades e condições, podem constituir-se em adultos tão
múltiplos – não em formas físicas –, mas em sonhos, objetivos, modos de ser, em
caráteres? Ademais, como crianças inocentes tornam-se adultos bons ou maus? É
mais desconcertante perguntar, quando observamos as crianças em tenra idade,
como tornar-se adultos capazes de praticar o mau, a desonestidade, o preconceito,
a xenofobia, a ganância, etc.? Por que se tornam egoístas e egocêntricas, incapazes
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de sensibilizar-se com os outros? Ou em uma outra perspectiva, como tornam-se
adultos capazes de ser solidários, sensíveis aos outros, sábios e capazes de decidir
com criticidade, inteligência, lógica, de fazer uso de boas razões, ou ainda, dedicar
suas vidas em favor das causas humanitárias, das pessoas que vivem em situações
de fragilidade, risco ou desamparo?
Independente das muitas possíveis repostas que se possa oferecer, certamente
é decisivo para as crianças e aquilo que virão a ser, o percurso formativo no desen-
volvimento de sua própria identidade e de seu caráter. Obviamente não é objetivo
deste ensaio dar conta de todas estas questões, mas pretende, de alguma forma,
refletir sobre alguns aspetos e contribuir com a investigação dos processos formati-
vos das novas gerações. Afinal, esses questionamentos não possuem uma resposta
única, simples e definitiva, pois são um problema constante do pensamento huma-
no. O que nos tornamos e continuamos a nos tornar mesmo como adultos, resulta de
um conjunto de ações formativas aos quais os sujeitos estão inscritos. São processos
interativos, comunicativos e sintéticos pelos quais um sujeito se constitui em um eu.
Esse tema sempre urgente, ganha força diante do desenvolvimento progres-
sivo de dispositivos de vigilância, enquadramento e sujeição na sociedade contem-
porânea, para o prejuízo da autonomia, da defesa da liberdade e do autogoverno
dos sujeitos, que são enfraquecidos e fragilizados em sua capacidade de decidir e
fazer juízos de modo autônomo. A impressão é que progressivamente as pessoas
têm pautado suas tomadas de decisão com base em mecanismos de controle e vi-
gilância. Enfraquece-se a capacidade de decidir moralmente com autonomia sobre
o que é mais acertado para si e para os outros. Ou seja, as pessoas passam a se
orientar em suas ações de acordo com o alcance dos dispositivos de policiamento e
vigilância, por medo da punição, da censura e de ser marginalizado pelo sistema. O
medo é sempre da punição imediata.
A capacidade de compreensão destes sujeitos é, consequentemente, mais res-
trita, inviabilizando a compreensão das implicações sociais e políticas em cada ação
tomada. Essa incapacidade de discernir se coloca na contramaré dos ideais clássi-
cos de formação como a Paideia grega e a Bildung alemã. Trata-se de um encurta-
mento ou atrofiamento do alcance da decisão moral, que não consegue escapar ao
encapsulamento egoísta de uma sociedade capitalista imediatista e consumista.
A sociedade contemporânea é marcada por uma potencialização de seus recursos
informativos e suas múltiplas formas de expressão e linguagens, em múltiplos
meios e canais de acesso à conteúdos, conhecimentos, jamais vistos e disponíveis
na história humana. Nos impressiona que, paradoxalmente, esse cenário não tem
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se vertido em qualificação do “senso comum” ou da capacidade crítica de avaliação
moral por parte da sociedade2.
Se a educação é dinâmica, sempre inscrita no contexto histórico e circunstan-
cial, é nesse espaço-tempo que o sujeito assume diferentes feições e perspectivas.
A história da educação humana se configura por correntes e perspectivas teóricas
diversas e divergentes entre si; mas também com temas e pontos de convergências.
Diante destas teorias e investigações corre-se o risco de abandonar apressadamen-
te temas por darem impressão de já resolvidos. Da mesma forma, poderíamos afir-
mar que há temas, conceitos, fundamentos que não deveriam ser negligenciados e
que sempre se encontram atravessados nas investigações do campo educacional,
por seu caráter fundamental e ontológico. Há ainda temas que ficam suspensos ou
assumem status de intocáveis, suspeitos e beirando a certos tabus.
Por esta razão é sempre vital que sempre retornemos à pergunta nuclear sobre o
qual se assentam as reflexões educacionais: qual é a característica ontoantropológica
do ser humano? Em um possível rol de conceitos que buscam definir as necessidades
e a condição humana, está o conceito basilar sob o qual se sustenta a pedagogia, a
saber: a educabilidade do educando; ela é a condição primordial de todo ser humano
que emerge neste mundo. A capacidade de ser educado é o fundamento da pedago-
gia. É sobre ela que funda e sustenta toda teoria educacional, permitindo pensar e
crer que seja possível educar e ser educado. Herbart afirmava, categoricamente, que
o “fundamento da pedagogia é a educabilidade do educando” (Der Grundbegriff de
Pädagogik ist die Bildsamkeit des Zöglings) (HERBART, 1902, p. 69).
Muitos pensadores se ocuparam com essa questão e, dentre eles, Johann Frie-
drich Herbart (1776-1841). Para o autor da Pedagogia geral – provavelmente o
maior clássico da pedagogia no século XIX –, a educabilidade do ser humano é o
fundamento da pedagogia e é sob ela que reside a dimensão ontológica que permi-
te a existência da ação pedagógica, do ato de educar e tudo que a ela se vincula.
Radicalizando essa afirmação, poder-se-ia dizer que não haveria mundo humano
sem essa propriedade humana. A educabilidade é a abertura ontológica pelo qual o
homem acessa o mundo e a si mesmo e realiza o processo de construção da biografia
de um eu.
Para defender essa tese, Herbart – que em certa medida segue os passos de
Kant – discorda de seu precursor na cátedra de Königsberg sobre o caráter trans-
cendental da liberdade. A liberdade do sujeito é algo que é educado nos sujeitos. É
a formação para uma vontade fortalecida. Em Herbart não se educa para o dever,
mas para o querer. Para ele, o caráter de transcendentalidade da liberdade nega a
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possibilidade de edificar qualquer proposta pedagógica, pois exclui a possibilidade
de conceber a educação como um processo de construção da liberdade moral. Sendo
caracterizado ontoantropologicamente como sujeito educável, a ação pedagógica
deve zelar pela formação, a partir do fomento da abertura humana, desenvolvida e
educada à medida que o homem se constitui como um ser no mundo.
Para tanto, deve desenvolver a liberdade interior através da ação pedagógica
e pelos processos formativos. A liberdade interior é que possibilita ao ser humano
a capacidade de moralidade ou a força do caráter moral3. É a formação consistente
do caráter do sujeito, esclarecido, que permite que se posicione criticamente contra
a barbárie e tudo que é destrutivo para a vida de modo geral.
É por esta razão, entre outras, que a pedagogia de Herbart ganha em atuali-
dade e se torna nuclear na tarefa de educar a liberdade interior do sujeito para que
se constitua em um sujeito moral (ENGLISH, 2013, p. 7). A compreensão adequada
da liberdade interior é que torna possível ao educador desenvolver uma ação peda-
gógica formativa para a liberdade moral. Cabe a este se perguntar como é possível
educar um sujeito para que se torne capaz de fazer escolhas a partir de si mesmo,
elegendo o bem para si e para os outros e refutando o mal? Nesse sentido, tal per-
gunta busca por aquilo que torna um sujeito capaz, a partir dos processos formati-
vos, de deliberar, realizar juízos morais, abandonar e resistir as inclinações egoístas
e perigosas à própria vida singular e coletiva, orientando-se para o bem de todos.
O fato é que a reflexão passa pelo tema da educabilidade (Bildsamkeit), ca-
racterística pela qual é facultado ao ser humano aprender todas as coisas e é a
condição pela qual é possível educar um ser humano em sua liberdade interior. A
educabilidade que em Rousseau é a faculdade das faculdades, é a capacidade de
aprendizagem livre e aberta ao mundo, que nos distingue das demais espécies de
animais4. É ela que permite ao ser humano educar-se e encontrar seu autogoverno
e autodomínio frente a sua natureza impetuosa e às necessidades próprias de sua
constituição e às necessidades resultantes de artifícios humanos.
A noção de Bildsamkeit de Herbart enfatiza essa capacidade humana de romper consigo
mesmo e ir contra inclinações egoístas como base para a capacidade humana de se tornar
moral. Esta ruptura consigo mesmo, a que podemos chamar uma forma de autoalienação,
relaciona-se com a forma como aprendemos através de encontros com coisas no mundo
que são desconhecidas, inesperadas e estranhas. Esse é um tipo de interação ou formação.
Ambos os termos, Bildung e Bildsamkeit, derivam da palavra raiz bild, que significa forma,
e o termo bildsam pode ser associado ao uso do termo Bildsamkeit por Herbart, que reflete
estes significados. O conceito capta a capacidade do indivíduo de se formar e ser formado
e, assim, se conecta ao movimento de Bildung (ENGLISH, 2013, p. 12, tradução nossa)5.
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Nisso se evidencia um aspecto fundamental do processo formativo do mundo
humano que é o encontro com o outro. Interessante notar, segundo Andrea English
(2013, p. 12-13), que essa concepção processual de formação de certo modo atraves-
sa a história das ideias pedagógicas, estando presente na tradição do pensamento
filosófico educacional como o alemão remontando até o pensamento clássico grego
nas enigmáticas figuras de Sócrates6. Nesta tradição do pensamento pedagógico é
nuclear a concepção de desenvolvimento interior do sujeito moral, circunscrito ao
encontro com os outros na alteridade.
Nesse sentido, pode-se afirmar que, se o sujeito se devolve na interação com
objetos no conhecimento do mundo, assim, na interação social humana, se desen-
volvem as capacidades éticas e políticas. Ou seja, no encontro com outros humanos
iguais a si e, paradoxalmente, diferentes. Iguais no caráter ontoantropológico de
seres dotados de capacidade de aprender e abertos ao mundo, mas diferente como
a outridade fora do “mim” e que, em sua presença, confronta e desafia o eu.
Esse encontro com o outro é transformador por vários aspectos, como carregar
potencialmente a negação e proporcionar um distanciamento do sujeito em relação a
si mesmo, ou seja, das próprias convicções, conceitos e valores assumidos habitual-
mente7. O encontro com o outro pode proporcionar a percepção dos limites e falhas,
qualidades e acertos e, permitir que no olhar do outro o sujeito encontre a si mesmo.
Importante ter clareza de que esse encontro como potencializador da negação, só é
formativo se não subjugar, excluir ou negar o outro da e na relação. O encontro não
pode nesse caso, negar ou afirmar o outro ou a si mesmo, mas causar suspensão de
uma percepção, valor ou algo habitual, provocando o estranhamento ou perplexida-
de. A alteridade proporciona o que Herbart denomina de luta interior (inerer Kampf).
Afirma que cada “individualidade é e permanece um camaleão; e a consequência
disto é que cada sujeito está por vezes em luta interior8 (HERBART, 1887, p. 93).
O encontro deve proporcionar um estado de reflexão pelo qual o sujeito põe à
prova suas perspectivas e modos de compreender as coisas, reafirmando/refutando
e, reconstruindo-se nesse embate. É nesse processo constante que desenvolvemos
um calor moral ou inclinação para o bem (HERBART, 1887) e que não pode ser
realizado de modo solipsista e autopoético; mas resulta de um processo comunica-
tivo e interativo, do sujeito que se vê defronte do outro e do mundo externo que o
confronta e, que de alguma forma, oferta resistências e, instaurando rupturas em
relação a si mesmo, desencadeia um processo reflexivo.
Isso nos permite visualizar que a educação em Herbart é, em última instân-
cia, um movimento de colocar o sujeito em autorrelação consigo mesmo. Exige-se
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dele distinguir entre aquilo que se apresenta como diferente, aquilo que é novo ou
habitual e, em um processo dialético, reconstruir-se a partir desses elementos. É
nesse sentido que se inscreve progressivamente o espaço do encontro das crianças
como brevemente sinalizado no início dessa nossa reflexão, no qual o sujeito re-
cém-chegado ao mundo debuta. É o espaço da alteridade em que a educabilidade
se põe em jogo e, nesse jogo, no encontro com o outro, se faz sentir e perceber, na
negação enquanto abertura para além de si mesmo e do mundo que lhe é familiar
e habitual. É um momento formativo pelo qual o sujeito aprende, sendo desafiado
a olhar o mundo para além de si mesmo e da sua circunscrição9.
É justamente esse momento negativo da ação pedagógica que coloca em jogo
a educabilidade ou Bildsamkeit e que nos interessa aqui. Neste conceito, que ocu-
pa lugar nuclear em pensadores como Herbart (1902), Rousseau (1988, 2014) e
John Dewey (1979, 2010), acreditamos encontrar um elemento negativo da ação
pedagógica enquanto formativa, distinta de propostas que tomam a negação como
objetificação do sujeito. Esses pensadores se distinguem de teorias tradicionais que
entendem os educandos como humanos incompletos e lacunares, pequenos adultos,
que carecem ser completados de algo, não enxergando na criança um outro.
Herbart (1887, 1902) concebe o educando como sujeito aberto ao mundo. Sua
condição ao nascer ou emergir neste mundo é de educável e através do processo
formativo será potencializado na capacidade e fortaleza de deliberação moral. É
através do processo formativo que se desenvolve a liberdade interior tornando pos-
sível a edificação de uma autêntica esfera ética e política humana. A Bildsamkeit
é a capacidade humana de aprender sem ser possível determinar exatamente os
limites e alcances de seu potencial, subscrita às circunstâncias dadas nas quais
somos inserimos e nos limites singulares de cada individualidade.
É a partir do estatuto humano de educável que Herbert edificou sua proposta
de uma Pedagogia geral (1806/1887). Para o pensador educar a liberdade interior
passa pela ação pedagógica do governo das crianças, da instrução educativa e, por
fim, da disciplina formativa. Esta estrutura tripartida da pedagogia de Herbart
têm um profundo cuidado com o fomento da liberdade interior e da preservação da
capacidade de desenvolvimento de uma individualidade autônoma. O fato é que a
manutenção dessa liberdade interior, essa abertura ao mundo, não se dá somente
pelo aspecto afirmativo, positivo, construtivo, propositivo da ação pedagógica, mas
também pela descontinuidade, pela interrupção e suspensão do habitual e daquilo
que é fluido10. Essa faceta da ação pedagógica e do processo formativo é o que se
pode denominar de caráter negativo da ação pedagógica ou negação.
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É com essa faceta da ação pedagógica e da educabilidade humana que nos
ocuparemos na sequência. Afinal, educar para a liberdade individual, desenvol-
ver uma ação pedagógica de fomento à liberdade interior, não pode ser realizada
adequadamente como ação somente positiva/propositiva de apresentar coisas pelo
ensino, de instruir, mas incorpora em si uma dimensão ontológica negativa, de
descontinuidade e que é de fundamental importância para o processo formativo.
A dimensão negativa da ação pedagógica
Para Koch (2005), o homem é o único ser que tem a possibilidade de realizar
um juízo negativo. Sustentado nos experimentos de Gehlen, afirma que a ação
ciente de negar algo dado, de remover um obstáculo, são caraterísticas exclusivas
do ser humano. A possibilidade de livre escolha pela negação é um elemento antro-
pológico exclusivo do ser humano. Segundo Koch (2005, p. 91), essa constatação é
de tal relevância que “a posição especial do homem, tantas vezes duvidado, poderia
ser determinada de forma mais crível do que de qualquer outra forma, consideran-
do que ele é o único que sabemos ser capaz de negatividade no reconhecimento e
na ação”11.
Koch defende a tese de que no aspecto negativo da ação pedagógica em suas
diferentes manifestações (Spielformen) é possível identificar algo fundamental
para o pensamento pedagógico mesmo que não tenha sido absorvida e incorpora-
do adequadamente pelas teorias educacionais. Exemplos clássicos da presença e
da consideração da faceta negativa da ação pedagógica podem ser rastreados em
Rousseau, em sua educação negativa do Emílio, ou em Herbart e sua concepção de
disciplina formativa12 (KOCH, 2005, p. 88).
Koch apresenta possíveis razões pelas quais a tradição pedagógica ignorou em
certa medida uma investigação mais atenta à dimensão negativa na ação pedagó-
gica, das quais cabe destacar: (1) a predicação apressada e equivocada da negação
como algo mau, vazio, dispensável, prejudicial e; (2) a associação, no contraponto,
de positivo com a ação edificante, propositiva, boa, propulsora de conhecimento e
do saber. Estas seriam, entre outras, duas razões que teriam levado a investigação
pedagógica a negligenciar a dimensão negativa também na ação pedagógica, im-
plicando também no modo como se pensa, prática e organiza a educação. O fato é
que este aspecto e seu lugar nos processos formativos não são claramente definidos
pelas teorias educacionais, principalmente, se levarmos em consideração a propor-
cionalidade da preocupação propositiva em relação à reflexão sobre o aspecto ne-
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gativo, tornando problemático a existência de um não ser (Nicht-Sein) pedagógico
(KOCH, 2005, p. 89).
Isso nos leva a crer que a dimensão negativa no ato pedagógico se encontra
obscurecida e precisa ser mais bem compreendida. Segundo Koch (2005), a rever-
são desse processo torna-se fundamental e pode ser operada através de ações que
inicialmente descortinem a presença irrefutável da dimensão ontológica da nega-
ção na vida, de modo geral. Ou seja, através de constatações por meio de premissas
lógicas elementares, como na expressão “A chuva não chegou”, ou ainda, “A perna
não está quebrada”. Essas sentenças evidenciam de modo simples o equívoco de
se associar a negação com o que é mau ou prejudicial e mostram que a dimensão
negativa proporciona possibilidades múltiplas de alternativas ou, ainda, de ser
algo bom.
A intenção é mostrar que a negação, num sentido de interrupção, descontinui-
dade e de um não-ser não pode ser tomada necessariamente como um ato falho,
equivocado ou prejudicial. Na medicina, por exemplo, o diagnóstico de um câncer
que se apresente negativo é uma boa notícia e é libertadora. Isso significa que
tanto a sentença positiva quanto a negativa precisam primeiramente ser contex-
tualizadas e tomadas em um sentido adequado para definir o que é e o que não
é. Nisso reside um primeiro aspecto pedagógico em relação à negatividade, e que
diz respeito a prudência em tomar a negatividade com algo mau ou ruim de modo
imediato e acrítico.
A partir disso, Koch pensa, de modo geral, que os princípios (Urteilen) negati-
vos implicam diretamente nos processos de conhecimento. Trata-se de compreen-
der a relação entre negatividade e conhecimento. Koch traz presente a afirmação
de Hegel Et determinatio negatio est (Toda afirmação repousa sobre uma negação).
Esse pressuposto pretende deixar claro que uma coisa só pode ser afirmada, deter-
minada ou distinguida a partir de um outro semelhante. Essas distinções são em
si juízos determinantes (Urteilen) negativos (KOCH, 2005, p. 89). Como exemplos
podemos tomar as sentenças-juízos “A negatividade não é maldade”, ou ainda “A
terra não é um disco”. Consequentemente, somos levados a afirmar que “sem juízos
negativos não podemos distinguir. Sem distinguir, tudo o que sustentamos conhe-
cer, submerge em indistinção”13 (KOCH, 2005, p. 90).
A negação é que permite que se distinga as coisas em uma multiplicidade
de elementos. A dimensão negativa assume uma função de extrema importância
para o nosso conhecimento, que não pode ser ignorado e, segundo Koch (2005), está
ligado à nossa capacidade de realizar abstrações. No caso da distinção, não seria
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possível conhecer/reconhecer a nós mesmos ou as outras coisas e pessoas sem nos
“separar de algo”. Dito de outro modo, não nos seria dado a possibilidade de nos
distanciar, de nos afastar e abstrair das coisas.
Esses argumentos nos levam de volta à ideia de uma antropologia negativa
e à afirmação de que somente o ser humano é capaz de realizar juízos negativos.
Um animal pode ser treinado para realizar certas escolhas e ações impeditivas,
mas não para justificar as opções pela negação. Ou seja, o ser humano é um ser
“capaz de dizer não”, oferecendo suas razões. Assim, a negatividade, como uma
característica antropológica humana se sustenta no argumento de que é facultado
ao ser humano estar em permanente protesto contra toda mera realidade14. Uma
antropologia negativa de alguma forma evidencia-se como desvio, diferença, mas
nuclearmente, como abertura.
É justamente esse aspecto de proporcionar abertura pelas características de
distinção, interrupção, da não associação apressada da negação com o que é mau,
que a negação se torna formativa. Cabe destacar que se trata de uma negação
relativa, já que não é facultado ao ser humano, em sua razoabilidade, a possibili-
dade de uma negação absoluta. Mas, de outra parte, não possibilita ao ser humano
esquivar-nos ou situar-se fora da dimensão negativa da existência.
Segundo Koch (2005, p. 91), sendo o ser humano antropologicamente capaz de
julgamento negativo, somente torna-se humano à medida que se dispor a causar a
“ontologia negativa” (negativern Ontologie). A negação como dimensão formativa é
sempre um ato espiritual do sujeito que opera a partir de si mesmo, provocado pelo
mundo; é uma negação ou um nada (eine Nichts) que está relacionado a algo. Esse
é o único nada, segundo Koch, possível de ser imaginado, pois o nada absoluto não
pode ser conceituado (KOCH, 2005, p. 91)15. Essa abertura ontológica para o nada
(Nichts), porém, permanece sempre interminável, fonte de especulação, levando o
ser humano a pensar a ausência, a privação, e, enquanto tal, reclamar e reivindi-
car aquilo que está ausente. Por outro lado, é esse caráter ontoantropológico que
permite trazer à presença o que foi negado.
Podemos, portanto, tornar presente ou ainda prolongar a ausência negando o
presente indesejado através de uma prática de negação. Assim afirma Koch (2005,
p. 92):
Pode-se classificar as ações negativas, que correspondem a um “nada” relativo, de forma
refinada, de três maneiras: como ação preventiva que evita o indesejável, como ação profi-
lática que atrapalha o indesejável ou como ação catártica que remove o indesejável e assim
proporciona um nihil privativum16.
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Mesmo as ações positivas carecem de um diagnóstico de ausência e, sem essa
percepção de que não há algo a ser preenchido, conhecido, apropriado, não po-
deriam ser. Assim, os julgamentos negativos nos tornam capazes de descriminar,
abstrair e agir de acordo com a percepção.
As ações ou práxis negativas, por outro lado e pelo seu caráter de suspensão,
nos asseguram e protegem de cometermos erros, preconceitos, equívocos e paixões
destrutivas. Dados esses argumentos sobre os aspectos da presença ontológica da
negação na existência humana e suas implicações para o processo formativo, como
poderia a ação pedagógica ignorar a negação na educação das novas gerações?
Em Herbart (1887), a dimensão negativa da ação pedagógica se mostra fun-
damental para a formação do caráter. Koch (2005, p. 93) identifica na disciplina
formativa de Herbart a presença dos aspectos negativo da ação pedagógica distinta
da parte positiva caracterizada pela oferta do ensino dos conhecimentos sobre o
mundo das coisas e dos homens. O momento negativo visa evitar erros, enquanto o
momento propositivo visa expandir o conhecimento e o interesse múltiplo.
A negação se apresenta como suspensão formativa do habitual, do fluido, pro-
movendo um momento de abertura para a deliberação do pensamento. Koch (2005,
p. 93) afirma com base em Herbart, que o aspecto formativo da negação pode ser
visto como momento de censura na ação pedagógica, porém, com efeito positivo,
construtivo e de grande valia para a ação pedagógica (höchst Schätzenswertes). É
importante ter claro que em hipótese alguma a dimensão negativa da ação pedagó-
gica implica a negação do sujeito educando. Isso seria a perversão da compreensão
do tema em pauta. A ação pedagógica da disciplina formativa e de qualquer ato
pedagógico só se justifica se sua pretensão for formativa. A censura ou momento
negativo se dá em relação a um saber, um conceito, ou uma ação, mas não repre-
senta em nenhuma hipótese a negação do sujeito em si.
E, nesse sentido, a educação não deve ignorar a dimensão da negação na ação
pedagógica e seu potencial formativo, assim como também não deve concentrar
seus esforços unicamente no ensino instrutivo. A negação com formação também é
corroborada pela percepção de Dietrich Benner (2005), que a percebe nas vivências
diárias como nos sentimentos de irritação e frustração, que são experiências nega-
tivas formativas e nos revelam o outro lado das coisas, das sociedades, da natureza,
de nós mesmos e daquilo que se apresenta de maneira diversa em relação às nossas
expectativas ou ao que estamos habituados.
Disso é possível reter que o momento negativo é um modo de relação com o
mundo, de agir, realizar juízos, de realizar a ação pedagógica formativa. A ação
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pedagógica é constituída pela faceta negativa da existência humana e não pode ne-
gligenciar tal existência. A negatividade é constitutiva do processo formativo, que
proporciona um distanciamento e abertura ao mundo. Diante disso, somos levados
a concordar com Dietrich Benner (2005, p. 7) que as “interações formativas entre
as pessoas e entre as pessoas e o mundo são mediadas por experiências negativas
e não podem ter êxito nem ser pensadas sem elas”17.
A negação como suspensão e abertura
Importante ressaltar que as dimensões ontológicas, tanto negativas como po-
sitiva, são constitutivas de qualquer ação humana. Em muitas situações e dentro
de certas perspectivas teóricas ignora-se que toda ação possui em si a tensão entre
afirmação e negação. E ignorar essas duas esferas pode ser desastroso, principal-
mente para a formação humana. Com isso não queremos subscrever nossa reflexão
em uma perspectiva maniqueísta ou algo do gênero. Mas é fato ser impossível pen-
sar a existência humana e, consequentemente, a própria formação humana sem
considerar a necessária relação e equilíbrio entre ambas. Se vivemos um momento
de excesso de positividade e fluidez no mundo contemporâneo, faz-se necessário um
reequilíbrio através de suspensão, distanciamento e negação da opinião e da ime-
diatidade. É importante que se suspenda e se ofereça rupturas ao que se tornara
usual e corriqueiro como o descortinamento de outras possibilidades. A suspensão
permite a renovação paradigmática do saber e do entendimento sobre o mundo,
permitindo drenar aquilo que se tornou insustentável ou também reafirmar aquilo
que se tornou nuclear e sustentável.
Disso podemos deduzir que toda ação humana repousa sobre o equilíbrio entre
a afirmação e a negação da natureza de algo. Dito de outro modo, pedagogicamen-
te, é preciso buscar o equilíbrio através de ações afirmativas quando se apresenta
a negação de algo ou um saber; em contrapartida, quando há um excesso de posi-
tividade, é necessário equilibrar ações através de momentos de descontinuidade e
suspensão do habitual e daquilo que se tornou corriqueiro. Precisa ser visto, por-
tanto, não como dissolução ou eliminação, mas como distanciamento para a refle-
xão crítica, assemelhando-se assim com o processo de colocar o juízo sob crítica, no
sentido kantiano da expressão.
A concepção de uma faceta ontológica negativa é potente para pensar a forma-
ção humana. A questão é brilhantemente abordada também por English (2013) com
base na concepção de disciplina formativa de Herbart18. Esse conceito de disciplina
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com o sentido de aconselhamento ou orientação moral (Zucht) de Herbart19, foi mal
compreendida, mal colocada e subentendida não só em relação à proposta de Her-
bart, mas também em relação as teorias pedagógicas em geral. O desconhecimento
dessa dimensão da formação humana em muitas situações levou a uma compressão
confusa da noção de disciplina em Herbart, identificando-a erroneamente com o au-
toritarismo e com ações pedagógicas repressivas. Herbart repudiava veementemen-
te as concepções perversas de disciplinamento justamente porque negam o sujeito,
a criança e a própria infância. São concepções e lugares distintos de negação.
Herbart tinha clareza de que a ação pedagógica é constituída por uma dimen-
são negativa fundante e que está presenta na ação pedagógica, principalmente na
disciplina formativa. Klafkowski (1982, p. 34) sinaliza para isso, afirmando que:
[...] a disciplina em especial deve ser considerada um meio de prevenir paixões e evitar a
formação de manifestações e efeitos nocivos. A tarefa da disciplina é garantir um estado
de espírito adequado do aluno em todos os momentos. A disciplina deve ajudar desde
cedo no desenvolvimento das melhores motivações do indivíduo e, portanto, a suportar
as dificuldades20.
Para tanto, cabe ao educador na ação pedagógica, nos processos formativos,
pela descontinuidade desafiar e provocar o educando para realizar novas experiên-
cias pedagógicas. Experiências que em Herbart (1806/1887) podem ser caracteri-
zadas em duas dimensões, como instrução para a formação do interesse múltiplo e
como aconselhamento ou disciplina formativa.
A instrução corresponde ao desenvolvimento da capacidade de orientar o espí-
rito e seu olhar em múltiplas direções e horizontes de saberes. Compete à instrução
desenvolver o círculo de pensamentos (Gedankenkreis) que subsidia a formação de
juízos próprios sobre as mais diversas coisas e fenômenos. Porém, somente pela ação
pedagógica da disciplina formativa é que os educandos desenvolvem e fortalecem seu
caráter moral, tornando-se capazes de realizar juízos morais. Ou seja, se a instrução
fortalece a capacidade de construir entendimento das coisas humanas e do mundo, a
disciplina visa desenvolver no educando sua capacidade de realizar juízos morais. É
importante observar também que ambas se complementam com o fim de fortalecer o
espírito, sendo que a instrução alimenta o pensamento com conhecimentos e a disci-
plina, por sua vez, converte estes em força moral, em fortaleza interior. A disciplina
opera sempre, nesse sentido, a partir da interioridade do sujeito, sobre o interesse
múltiplo, não se tratando, portanto, de uma força de coação externa21.
O objetivo é desenvolver um espírito capaz de orientar-se criticamente e de
modo autônomo. Se o tema for, por exemplo, o desemprego (Arbeitslosigkeit), os
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jovens apropriam-se dele a partir do saber constituído social e cientificamente e
desenvolve, pela disciplina, sua própria interpretação político-moral, como modo
de avaliar o tema, autorregulando-se a partir do tensionamento com a vida social
(RUCKER, 2014, p. 3).
A disciplina formativa (Zucht) assume, enquanto ação pedagógica, o papel
de fortalecer o caráter sob duas perspectivas: primeiramente, atuando para gerar
tensão ou situação de conflito interior diante de novas situações que se apresen-
tam. Isto é, não como força que se impõem incondicionalmente, mas que mobiliza,
colocando em movimento o espírito ao gerar a luta interior (innerlichen Kampfe)
(HERBART, 1887, p. 93). Em segundo lugar, opera sobre as memórias que cons-
tituem o interesse múltiplo para que o caráter ganhe em força nas tomadas de
decisão do sujeito.
É a partir deste lugar que a decisão e a vontade como ação se sustentam para
Herbart. Em relação a isso, é importante observar como Herbart se preocupa em
manter a integridade do educando, sensível em não comprometer o que é funda-
mental para a formação humana, ou seja, a liberdade interior do sujeito e, conse-
quentemente, a pretensão de formação para o autogoverno (NEITZEL, 2019a).
Em Herbart, a reflexão sobre a dimensão da negatividade da ação pedagógica
está presente principalmente no conceito de governo das crianças e na disciplina.
Nos concentraremos na dimensão da negatividade presente na ação pedagógica da
disciplina, ou no aconselhamento, como prefere interpretar Andrea English (2005,
2013), ou no assessoramento, como prefere Dietrich Benner (1993, 2007). Trata-se
duma censura da ação, do habitual, da crença ou representação. Se, no caso, a ação
pedagógica se coloca como censura e impõe um não-ser, ela somente se justifica
pelo efeito positivo ou formativo que causa, gerando a luta interior e a tensão li-
bertadora. Somente por suspender no sujeito os juízos apressados ou cristalizadas,
desencadeia um processo de reelaboração de si, potencializando sua capacidade de
emitir juízos acertados22. Essa ruptura provocada pelo momento de negação é com-
preendida por English (2013) como momento privilegiado de abertura ao mundo e a
si mesmo. Essa abertura é essencial para o processo formativo, sendo denominado
pela referida autora como discontinuity in learning (2013, p. 9). A descontinuidade
representa um momento importante para a aprendizagem moral.
Afirma English (2013, p. 9):
Esta forma de descontinuidade é significativa para a compreensão da ideia de educação em
direção a autodeterminação: a luta marca o ponto em que há uma abertura na experiência
do indivíduo, um espaço em que ele tem a escolha de romper com escolhas passadas e agir
diferentemente no futuro23.
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Pela ação pedagógica da disciplina formativa enquanto suspensão provoca-se
um conflito interior, uma crise moral que proporciona ao sujeito tomar-se em refle-
xão. Essa reflexão causada pela nova situação permite que o sujeito se ocupe consigo
mesmo e se reconstrua em suas percepções. Dito de outro modo, consiste em operar
sobre si mesmo e, nesse processo, é importante que o sujeito ouça a si mesmo, que
acesse as verdades que aqui são entendidas como memórias da vontade e, assim, seja
capaz de se ocupar com elas, reformulando as mesmas, quando necessário. Pois, não
é a refutação direta das crenças e valores do sujeito, mas a pretensão de provocar a
reflexão sobre esses valores, tanto para refutar quanto afirmar os mesmos.
A disciplina como negação e abertura torna-se empoderamento que confere
firmeza de caráter ao sujeito. Ou seja, a disciplina que se apresenta como uma
censura ou negação do hábito desencadeia o processo reflexivo pelo qual o sujeito
é levado a refrear sua ação, tomando-se em reflexão. Nessa censura, o sujeito pode
suspender princípios de ação, valores, entendimentos ou, ainda, reafirmar os mes-
mos. Essas novas decisões passam a tomar parte de suas memórias de vontade,
reorientando seus princípios, decisões, tomadas de ação, num constante processo
de subjetivação de si.
A disciplina se caracteriza por uma “atuação direta sobre a alma da juventude
com a intenção de formar”24 (HERBART, 2010, p. 180). A ação de aconselhamento/
assessoramento deve sempre pretender acionar as forças internas do próprio su-
jeito. Cabe ao mestre ofertar argumentos, subsídios, indicar situações e provocar o
contínuo processo de redobrar-se sobre si mesmo. Ou seja, provocar no educando o
estranhamento, não passageiro, mas constante, de modo extenso, contínuo, de len-
ta assimilação (HERBART, 2010, p. 184). Ou seja, a ação pedagógica da disciplina
pretender ser parte integrante da formação no sentido clássico da Bildung. Em todo
caso, a disciplina não pode se furtar da pretensão de educar e precisa deixar isso
claro em sua pretensão de querer ser “formativa” (HERBART, 2010, p. 186). Como
pano de fundo, está a necessidade da relação de sinceridade e cumplicidade entre
educador e educando, ou seja, a própria dimensão ética e política da ação pedagógica.
A condução da disciplina é, para Herbart, uma arte que se assemelha, de certa
forma com a arte ou com o tato/sensibilidade de governar os homens. Assim, a
“ductibilidade social há de ser uma condição importante do educador” (HERBART,
1983, p. 217). Ductibilidade (Geschmeidigkeit) pode ser entendida como capacidade
de gerir situações. Geschmeidigkeit é traduzida na edição portuguesa da Pedagogia
Geral por “flexibilidade” (HERBART, 2010, p. 187). Isso significa que o educador
de alguma forma deve afirmar, assegurar ou contrair sua posição de anteriorida-
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de pedagógica sobre o educando. Sua autoridade deve fazê-lo sentir como “força
educadora”, como um caminho “natural” de sua formação. A disciplina não possui
eficiência até que se consiga ressaltar no educando o seu “eu melhor” (HERBART,
1983, p. 217) ou “sein besserest Selbst” (HERBART, 1965, p. 130).
Sendo a censura uma ação sobre o espírito do sujeito, ela não terá efeito se não
for preparado no sujeito um “sentimento de si mesmo”, o que no original Herbart
denomina de “Selbstgefühl” (HERBART, 1965, p. 131). Ela se daria no vazio caso
não exista já uma percepção do eu. O processo educacional deve zelar para que a
ação da disciplina seja possível, desenvolvendo no aluno essa percepção de si en-
quanto um melhor de si, para que a disciplina possa se apoiar sobre a mesma. Ou
seja, a disciplina em Herbart não é uma negação do sujeito, mas é força definidora.
Mas é preciso também ter clareza em relação a essa avaliação profunda do eu me-
lhor, para que este seja coerente, de modo a não fomentar um eu no educando dife-
rente do que efetivamente pode ser. Segundo English (2013, p. 16), somente “desta
forma os alunos podem começar a experimentar o poder da liberdade interior que
ocorre quando eles veem que podem distanciar-se das suas inclinações iniciais e
optar por não as seguir”.
Os processos de formação humana não são incondicionados. Sempre partem de
um conjunto de representações construídas e a serem constituídas. Se apropriar do
saber e do conhecimento sempre acontece no espaço fronteiriço entre o conhecer e o
não conhecer, entre saber e não saber, um campo de tensão entre o que é conhecido
e ainda não conhecido. O educando vive nesse espaço entre aquilo que lhe é seguro
e inusitado ou como espaço potencial (GIDDENS, 2002). O sujeito tende à acomoda-
ção, tema amplamente discutido pela sociologia, pois na rotina está aquilo que ga-
rante certa estabilidade, regularidade e segurança. Porém, sem se lançar ao espaço
potencial das novas experiências, a educação e processo formativo serão limitados25.
Benner (2005) destaca as concepções temporais da aprendizagem geralmente
presentes nos discursos pedagógicos, onde a tensão entre conhecido e a conhecer
é relacionado e interpretado como o já conhecido e o ainda não conhecido. Afirma
que essa forma de compreender a aprendizagem é equivocada por compreender
a formação de forma linear. O momento da tensão é um momento entre dois, en-
tre o conhecido e o desconhecido. Conhecer o novo sempre se dá a partir do que
é conhecido, sendo que esse processo leva a perceber o conhecido como estranho
(BENNER, 2005, p. 9). Isso se dá com o sujeito dentro do mundo. É sempre sua
percepção e conhecimento do mundo a partir do mundo. Não pode ser nunca uma
negação do sujeito, mas uma suspensão daquilo que é fluido e habitual. Aquilo que
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é desconhecido sempre se coloca a partir do conhecido. Ou seja, o processo de trans-
formação do sujeito, de sua formação sempre se dá mais pelo processo pelo qual,
“algo desconhecido é experimentado por um conhecido e o desconhecido acaba por
ser parcialmente já conhecido em certos aspectos”26 (BENNER, 2005, p. 9).
Considerações nais
O que apresentamos neste ensaio é uma visão panorâmica de um aspecto do
processo formativo, que descortina um conjunto de elementos de investigação e
reflexão para as teorias educacionais. Afinal, como é possível tornar presente na
didática, na ação pedagógica do espaço escolar, a dimensão formativa da negação?
Trata-se de uma reflexão sobre a dimensão negativa do mundo humano e, conse-
quentemente, dos processos formativos, que não deixa de ser uma provocação.
As experiências negativas comuns ou presentes em nosso dia a dia nem sempre
são agradáveis e geralmente as pessoas buscam evitar as mesmas quando assim se
apresentam. Situações irritantes, a frustração com pessoas que nos são próximas,
doenças, a própria morte como negação da vida, a violência, ou ainda, catástrofes
naturais são elementos que compõem uma espécie de negação de marcos norma-
tivos existenciais. Porém, a negação como suspensão e descontinuidade é sempre
um elemento que descortina um mundo de possibilidades. A negação, portanto,
também é construtiva e edificante.
É preciso ter clareza de que a negação se sustenta fortemente em experiências
intersubjetivas, abarcando geralmente pessoas e mundo de coisas diferentes. Mas,
isso só se torna perceptível à medida que abandonamos a associação um tanto ma-
niqueísta de mundo dividido entre forças que negam e afirmam o cosmos. Do mesmo
modo, a dimensão formativa da negação só é perceptível ao superar a divisão entre
negação ou experiência negativa como algo necessariamente ruim e experiências
positivas como necessariamente propositivas. Superando essa associação ligeira
entre ambas, a experiência da negação nos mostra um aspecto extremamente re-
levante: sem a experiência da negação, não seria possível formação alguma, nem
para o trabalho, nem para a ética, política, religião, nem para a práxis pedagógica
e, menos ainda, para a ciência. Pois a negação proporciona a distinção entre as
coisas e torna possível o saber.
Aprender consiste em um processo de tornar conhecido aquilo que se apre-
senta como desconhecido. Esse processo inclui as experiências desconcertantes,
desconfortantes de negação de um saber e, nesse caso, de mobilização pela descons-
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trução da segurança do próprio sujeito em si mesmo. De acordo com a percepção
herbartiana sempre há a necessidade de um eu em torno do qual essas experiên-
cias devem ser firmadas e, por outro lado, todo esse processo não pode ser uma
negação do próprio sujeito. Então, o fato é que o lugar dessa aprendizagem, esse
lugar de tensão formativa, é delimitado como um campo aberto pela tensão entre
o aprendido e o não prendido, pelo o que se conhece e ainda não se conhece. Essa
delimitação é somente um campo fronteiriço, aberto para todas as interações.
Porém, esse lugar é mediano e precisa que o sujeito aja. É preciso que se ponha
a caminho. É o lugar daquilo que não é mais, mas também daquilo que ainda não o
é. Nesse sentido, o sujeito precisa retomar o que já se passou e que projeta ao mesmo
tempo para aquilo que ainda não é; para aquilo que se apresenta como horizonte e
como promessa; em síntese, para aquilo que se apresenta entre o passado e o futuro.
Tendo em vista o processo formativo, é preciso que o sujeito aja e, para tal,
precisa se fiar nas coisas que sabe, mas não dogmaticamente, permitindo associar-
-se sincreticamente à novas experiências ou permitindo confrontar-se por elas. Esse
processo amplia o horizonte de interesses e, nesse sentido, altera e desloca os limi-
tes e pressupostos aos quais está preso. Afirma Benner que o horizonte dessa busca
sempre se descola de modo que “o evento se desvia por sua própria vontade, torna-se
torcido, dobrado, meandroso”27 (BENNER, 2005, p. 8). O referido autor ainda que
as experiências que provocam a irritação formativa podem facilmente ser ignoradas
pelos agentes da ação pedagógica (BENNER, 2005, p. 9). No caso do educador, isso
acontece quando sua metodologia de ensino, o seu modo de ensinar, não mais dá
conta de sua tarefa pedagógica e, no caso do educando, quando aquilo que já conhece
e o modo como se apropria do saber, não mais é suficiente para aprender e resolver
os novos problemas e se apropriar daquilo que ainda não sabem.
O problema é quando o professor somente se dá conta de sua própria frustra-
ção. Isso porque geralmente o educador ou agente pedagógico já concebeu aquilo
que o estudante deve aprender. O educador ou o próprio sistema já apresenta de
antemão um conjunto de saberes dos quais o educando deve dar conta e a sua irri-
tação ou frustração está mais voltada para a percepção da negação de sua tarefa e
não tanto para a negatividade da experiência do educando.
Talvez aqui, para um processo eficiente de aprendizado, seja importante pen-
sar a conciliação entre as duas irritações. É preciso não somente pensar a irritação
do professor quando algo não se desenvolve conforme o esperado, nem também
somente pensar na irritação do aprendiz ao se defrontar com algo que se apresenta
como estranha. É preciso compreender a irritação do insucesso da pretensão do
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educador pode estar relacionada a irritação do aprendiz diante daquilo para o qual
é lançado em uma nova situação formativa.
O fato é que as novas experiências sempre são feitas a partir daquilo que já é
conhecido e daquilo que já sou capaz. Aquilo que serei capaz de fazer e aquilo que irei
conhecer só pode ser tomado pelo que já sou. Mas, à medida que o sujeito se apropria
já deixa de ser e, da mesma forma, aquilo que não era também já não é mais.
Os atores do processo educativo deveriam ver, então, as experiências de ne-
gação como um escopo espaço temporal do processo de aprendizagem. Se durante
a instrução, crianças e jovens são levadas a desenvolver a capacidade de fundar,
a desenvolver sua opinião sobre as coisas e fenômenos, desenvolvendo sua opinião
própria, eles são estimulados pela disciplina a regular suas fundamentações e so-
bre determinado tema. Ou seja, se a instrução fortalece a capacidade de entendi-
mento de determinado tema ou coisa, a disciplina é a ação que permite o educando
a balizar sua capacidade de julgar.
Notas
1 Destacamos aqui o importante estudo de Winnicott (1975) ressaltando a importância das atividades de
jogos e do brincar para o desenvolvimento psicoafetivo das crianças.
2 Sobre isso, pode-se destacar o texto de Konrad Paul Liessmann (2011) e sua tese de que a sociedade da
informação tem arrastado as pessoas para a deformação (Unbildung).
3 Importante destacar a distinção entre liberdade interior e liberdade moral. A liberdade interior é a con-
dição educável, que pelo processo pedagógico é educada (transformada) em liberdade moral. Portanto, a
perspectiva da liberdade transcendental nega a possibilidade de ser um produto do processo formativo.
4 Sobre isso, ver Dalbosco (2016), mais precisamente o Terceiro Ensaio, que trata da perfectibilidade e da
formação humana. Ver, também, o primeiro capítulo de Neitzel (2019a).
5 Cf. “Herbart’s notion of Bildsamkeit emphasizes this human ability to break with oneself and go against
self-interested inclinatios as the basis for the human capacity to become moral. This break with oneself,
whitch we can call a form of self-alienation, relates to how we learn through encounters with things in the
world that are unfamiliar, unexpected, and strange. This type of interaction or formation. Both terms, Bil-
dung and Bildsamkeit, stem from the root word bld, which means form, and the term bildsam can be conne-
ted to Herbart’s use of the term Bildsamkeit reflects these meanings. The concept captures the individual’s
capacity to form and to be formed and thereby connects to the motion of Bildung” (ENGLISH, 2013, p. 12).
6 Pierre Hadot (2010), no capítulo terceiro de sua obra O que é filosofia antiga?, faz uma análise das diversas
figuras de Sócrates nos diálogos platônicos. Também ver o texto de Oliveira (2016).
7 Sobre esse tema, da suspensão do mundo como processos formativo numa aproximação entre Herbart e
Arendt, ver Schütz e Neitzel (2020).
8 Cf. “Jede Individualität ist und bleibt ein Chamäleon; und die Folge davon ist, dafs jeder Charakter man-
chmal in innerlichem Kampfe begriffen seyn wird” (HERBART, 1987, p. 93).
9 Aqui é fundamental ter em mente a proposta pedagógica tripartida da pedagogia de Herbart e a distinção
entre aquilo que antecede a educação geral – o governo da infância – e a educação propriamente dita da
instrução educativa. A educação no interesse múltiplo e enquanto fortalecimento do caráter só deve iniciar
à medida que é possível perceber indícios de uma vontade ou de uma personalidade na criança.
10 Byung-Chul Han (2015, 2017) afirma que a sociedade contemporânea é acometida de um excesso de posi-
tividade, de fluidez, o que acarreta a incapacidade de crítica e real percepção da vida.
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11 Cf. “Nach allem ließe sich die so oft bezweifelte Sonderstellung des Menschen glaubhafter als auf je-de
andere Art so bestimmen: Er ist das einzige der Negativität im Erkennen und Han-deln fähige Wesen, von
dem wir wissen” (KOCH, 2005, p. 91).
12 Cf. Apesar de: „Rousseuas Begriff der ‘negativen Erziehung’, troz Schleimachers Systematic abwehrender,
verhütender und gegenwirkender pädagogischer Handlungsformen, trotz Herbarts Theorie der negativen
Zucht, trotz Waitz Annahmen über negative Gemütsbildung oder Cohns Theorie der negativen Wirkungs
nicht in systematische Bemühungen aufgenommen worden“ (KOCH, 2005, p. 88).
13 Cf. “Ohne negative Urteile könnten wir nicht unterscheiden. Ohne Unterscheidung würde alles, was zu
erkennen streben, im Unbestimmten verscwimmen” (KOCH, 2005, p. 90).
14 Kohl em seu experimento com macacos destaca, que o maior e mais importante saber humano e que falta
para toda espécie de animal é do “sentido para a negatividade”, de tal modo que ignorância, deficiência e
vazio são nos animais associados a essa perspectiva, ou seja, a ausência da capacidade de dizer não. Gehler
conclui que os animais são capazes até de remover objetos que lhe impõem limites e são negações, mas é o
homem que cabe estabelecer fundamentos, juízos negativos sobre a razão para remover os obstáculos.
15 Cf. “Wir wissen um das Nichtsein als Fehlen, Mangel, Abwesenheit oder auch als Privation (wenn das
Fehlende zuvor da war, aber entfernt bzw. „geraubt“ wurde). Es kann Schatten herrschen, weil die Sonne
untergegangen ist oder weil jemand in die Sonne getreten ist. Die Abwesenheit von etwas kann als solche
anwesend sein” (KOCH, 2005, p. 91)
16 Cf. “Man kann die auf ein relatives ‘Nichts’ hinauslaufenden negativen Handlungen in verfeinerter Form
dreifach klassifizieren: als präventives Handeln, das dem Unerwünschten aus dem Weg geht, als prophyla-
ktisches Handeln, das ihm in den Weg tritt oder als kathartisches Handeln, welches das Unerwünschte aus
dem Weg räumt und so für ein nihil privativum sorgt” (KOCH, 2005, p. 92).
17 Cf. “Bildende Wechselwirkungen zwischen den Menschen sowie zwischen Mensch und Welt sind nämlich
über negative Erfahrungen vermittelt und können ohne diese weder gelingen noch gedacht werden” (BEN-
NER, 2005, p. 7).
18 O conceito de disciplina deve ser tomado como uma ação de aconselhamento segundo Benner. Sobre isso,
ver Neitzel (2019b).
19 Veja, também, o ensaio de English, neste volume.
20 Cf. “Die Zucht ist insbesondere als ein Mittel anzusehen, durch das Leidenschaften verhütet und Schä-
dliche Ausbrüche und Affekte vermeiden werden. Aufgabe de Zucht ist es, für eine angemessene Gemüt-
sstimmung des Zöglings dauernd zu sorgen. Die Zucht soll den besseren Regungen des Individuums zur
frühzeitigen Entwicklung und dadurch zum Übergewicht verhelfen” (KLAFKOWSKI, 1982, p. 34).
21 Disciplina e governo se distinguem entre outras coisas, pelo efeito da censura. O governo é tão somente
uma força externa ao sujeito, enquanto que a disciplina é uma ação de censura que visa desencadear no
espírito do próprio sujeito a reflexão sobre si mesmo. Para conhecer melhor o tema do governo da infância,
sugiro meu próprio livro sobre Herbart (NEITZEL, 2019b) e, também, o ensaio de Dalbosco (2018).
22 Herbart concebe o caráter ou o espírito do sujeito constituído por um lado objetivo e outro subjetivo. Não
como um espírito dual, mas como duas esferas da mesma alma. O lado objetivo corresponde a parte do
Selbst ou do si mesmo, constituído pelas memórias tomadas de decisões anteriores, pela historicidade do
sujeito, e que constitui a estrutura de pensamento e os padrões de tomada de decisão, e, portanto, base das
tomadas de decisão rotineiras e habituais.
23 Cf. “This form of discontinuity is significant for unterstanding the idea of education toward self-determi-
nation: the stuggle marks the point at which she has the choice to break with her past choices and act
differently in the future” (ENGLISH, 2013, p. 9).
24 Cf. “Unmittelbare Wirkung auf das Gemüt der Jugend, in der Absicht zu bilden, ist Zucht” (HOFMANN;
EBERT, 1976, p. 192). Ainda: “Alle Wechsel der Empfindungen, welche der Zögling erleiden muβ, sind nur
notwendige Durchgänge zu Bestimmungen des Gedankenkreises oder Charakters”(HOFMANN; EBERT,
1976, p. 193).
25 Para a continuidade da reflexão sobre esse tema, remeto o leitor para meu próprio trabalho (NEITZEL,
2019a).
26 Cf. “[…] einem Bekannten etwas Unbekanntes erfahren wird und Unbekanntes sich in bestimmten As-
pekten als zum Teil schon bekannten erweist” (BENNER, 2005, p. 9).
27 Cf. “[…] das Ereignis von sich aus abweicht, sich verschibt, sich faltet, sich schlängelt” (BENNER, 2005, p. 8).
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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A faceta negativa na ação pedagógica e seu caráter formativo
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Possui a disciplina papel formativo? Um ponto controverso das teorias educacionais
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* Doutor em Filosoa pela Universidade de Kassel. Professor e pesquisador no Programa de Pós-Graduação em Educa-
ção da Universidade de Passo Fundo. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3408-2975. E-mail: vcdalbosco@hotmail.com
Recebido em: 01/03/2021 – Aprovado em: 26/11/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i3.12315
Possui a disciplina papel formativo? Um ponto controverso das teorias
educacionais
Does discipline have an educational role? A controversial point of educational theories
¿Tiene la disciplina un papel formativo? Un punto controvertido de las teorías educativas
Cláudio Almir Dalbosco*
Resumo
O ensaio investiga o papel formativo atribuído pelas teorias educacionais à disciplina. Contrariamente à con-
cepção oferecida por Michel Foucault à disciplina, em Vigiar e punir, concebendo-a como dispositivo de poder
controlador e vigilante, procura mostrar que ela possui, para Immanuel Kant e Johann Friedrich Herbart, papel
indispensável na busca inesgotável pela formação do autogoverno humano. Deixando-se inspirar pela instructio
latina, estes dois autores concebem a disciplina como principal forma de exercício de si sobre si mesmo, em-
preendida pelo sujeito educacional visando alcançar o domínio ético de si mesmo. Interpretados nessa pers-
pectiva, Kant e Herbart antecipam, desse modo, traços nucleares da formação humana como exercício de si,
desenvolvida mais tarde pelo próprio Foucault, em A hermenêutica do sujeito, com recurso ao estoicismo antigo.
Palavras-chave: instructio; formação humana; disciplina; autogoverno; exercício de si.
Abstract
This essay examines the educational role attributed to discipline by educational theories. Contrary to the con-
ception of discipline oered by Michel Foucault, in Discipline and punish, and conceiving it as a controlling and
vigilant power apparatus, it seeks to show that discipline plays, for Immanuel Kant and Johann Friedrich Herbart,
an indispensable role in the inexhaustible quest for the education of human self-government. Inspired by ins-
tructio latina, these two authors conceive of discipline as the main form of exercise of the self over itself, under-
taken by the educational subject in order to reach the ethical domain of the self. Interpreted in this perspective,
Kant and Herbart thus anticipate the nuclear traits of human education as an exercise of the self, developed later
by Foucault, in The hermeneutics of the subject, with recourse to ancient stoicism.
Keywords: instructio; human education; discipline; self-government; exercise of the self.
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Cláudio Almir Dalbosco
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Resumen
El ensayo investiga el papel formativo que las teorías educativas atribuyen a la disciplina. En contra de la con-
cepción que ofrece Michel Foucault a la disciplina, en Vigilar y castigar, concibiéndola como un dispositivo de
poder controlador y vigilante, intenta mostrar que, para Immanuel Kant y Johann Friedrich Herbart, la disciplina
tiene un papel indispensable en la búsqueda inagotable de la formación del autogobierno humano. Inspirados
en la instructio latina, estos dos autores conciben la disciplina como la principal forma de ejercicio del yo sobre
el yo, emprendida por el sujeto educativo para lograr el control ético de sí mismo. Interpretados en esta pers-
pectiva, Kant y Herbart anticipan, de este modo, rasgos centrales de la formación humana como ejercicio del yo,
desarrollados más tarde por el propio Foucault, en La hermenéutica del sujeto, recurriendo al estoicismo antiguo.
Palabras clave: instrucción; formación humana; disciplina; el autogobierno; autoejercicio.
Introdução
A necessidade da educação surge devido à vulnerabilidade da condição huma-
na, a qual se mostra de maneira acentuada na infância, quando a criança se move
pelo ímpeto instintivo, deixando-se orientar predominantemente por seus desejos,
inclinações e caprichos. Por isso, sua condição frágil necessita da proteção adulta,
sem a qual a própria criança não sobreviveria. Mas, a vulnerabilidade humana
também se mostra na fase adulta, quando o ser humano convive diretamente com o
problema da corrupção humana e social. Como enfrentar a fragilidade da condição
humana e como evitar que a ação humana não se deixe corromper pelos caprichos
humanos e pela ordem social e política corrupta foi historicamente um dos grandes
problemas das teorias educacionais clássicas.
Tais teorias apostaram no cultivo moral permanente do espírito humano como
forma de enfrentar a corrupção humana e social. Sem educação, o ser humano
vê-se dominado pelos seus instintos selvagens, afundando-se inescrupulosamente
na ordem social corrupta. Na Pedagogia ocidental antiga, como mostrou Michel
Foucault, eruditamente, no curso proferido no Collège de France, em 1982 (FOU-
CAULT, 2004), o cultivo virtuoso do espírito humano assume a forma de cuidado
de si em Sócrates e de exercício de si na tradição do estoicismo, especialmente
em Lúcio Aneu Sêneca. Desse modo, as variantes do cuidado de si e do exercício
de si fundam as bases das grandes teorias educacionais ocidentais, desaguando
no Emílio de Jean-Jacques Rousseau e na Pedagogia geral de Johann Friedrich
Herbart. Se Emílio é a grande obra pedagógica do século XVIII, Pedagogia geral o
é do século XIX.
No presente ensaio, procuro investigar o modo como Herbart concebe o cultivo
pedagógico do espírito humano, visando fortalecer moralmente o caráter contra o
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risco permanente dos vícios e da corrupção humana. Defendo a hipótese de que ele,
ao tomar a disciplina (Zucht)1 como principal forma de exercício virtuoso do espírito
humano, insere-se na tradição da instructio latina, diferenciando-se pontualmente
da concepção pedagógica kantiana de disciplina. Herbart recorre, nos dois últimos
capítulos do livro terceiro da Pedagogia geral, à noção de disciplina, atribuindo-
-lhe, por influência estoica, papel formativo. Tal papel insere-se na sua convicção
pedagógico-política mais ampla, segundo a qual não há como enfrentar a corrupção
do indivíduo e da sociedade sem a pedagogia do autogoverno. Ora, a disciplina é o
principal exercício espiritual que torna o ser humano capaz de governar a si mesmo
(sich zu regieren), habilitando-o também ao governo dos outros.
Devido à forte influência negativa que as investigações realizadas por Michel
Foucault em Vigiar e punir exerceram no conceito de disciplina, fazendo-o quase
desaparecer das teorias educacionais contemporâneas, começo o ensaio com uma
breve reconstrução da posição foucaultiana. Na sequência, trato da herança peda-
gógica que pesou na formulação herbartiana da noção de disciplina, concentrando-
-nos na influência de Kant. Este filósofo atribui em suas preleções Über Pädagogik
(Sobre Pedagogia) papel pedagógico destacado à disciplina. Por fim, dedico a últi-
ma parte do ensaio para reconstruir a posição de Herbart, mostrando, ao mesmo
tempo, que foi justamente a influência estoica que o permitiu não só se tornar
original em relação a Kant, como também compreender a disciplina como principal
exercício de formação espiritual do sujeito educacional, quer seja como educando
ou educador.
O sentido negativo da disciplina
A disciplina tornou-se, não só nas teorias educacionais contemporâneas, senão
também nas práticas educacionais formais e não formais, uma noção malvista.
Cercada de preconceitos, é rapidamente excluída do vocabulário educacional. Esta
concepção negativa de disciplina deve-se ao menos a quatro razões bem distintas
e interligadas entre si: a) ela é identificada imediatamente com a força repres-
siva que conduz à violência; b) tal força assume, no contexto educativo, a forma
clássica do castigo físico, o qual, embora já tenha sido rejeitado ainda em séculos
anteriores, como, por exemplo, no século XVII, por John Locke (2003), em seus Pen-
samentos acerca da educação, continua sendo empregado hoje em dia, ainda que
veladamente; c) como castigo físico, baseado na violência, a disciplina opõe-se ao
diálogo e, ao fazer valer a lei do mais forte pelo uso da força, exclui a possibilidade
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da busca pelo entendimento; d) por fim, o sentido negativo de disciplina bloqueia o
desenvolvimento das disposições intelectuais do sujeito educacional. Sob esta ótica,
a disciplina estaria então na contramão da formação espiritual múltipla do edu-
cando, além de representar a adoção da postura autoritária no âmbito da educação.
Portanto, predomina, na atualidade, também no contexto educativo, o sen-
tido negativo de disciplina, vinculado diretamente ao procedimento autoritário e
opressivo imposto por um ser humano ao outro.2 Basta falar de disciplina que logo
se pensa em violência, dominação, ausência de diálogo e liberdade. Empregar a
disciplina em sala de aula significa, então, segundo este ponto de vista, legitimar
a autoridade autoritária do professor e suas formas de dominação das relações
pedagógicas. Ou seja, como mecanismo de dominação, a disciplina representa a
subjugação do educando pelo educador, significando em última instância a vontade
dominante do professor ou da própria escola sobre os alunos. Este sentido negativo
de disciplina não é exclusividade apenas das práticas educacionais e pedagógicas
atuais.
No âmbito teórico (e histórico), Michel Foucault investigou cuidadosamen-
te o poder disciplinar exercido, na Modernidade, por instituições sociais de forte
influência, como exército, hospital, prisão, Estado e escola. A disciplina torna-se,
segundo este autor, o mecanismo poderoso de “controle dos corpos e das forças indi-
viduais” (FOUCAULT, 2007, p. 142). Como poder vigilante opressivo, a disciplina
se transforma na grande “fábrica de indivíduos”, constituindo-se na “técnica espe-
cífica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como
instrumentos de seu exercício” (FOUCAULT, 2007, p. 143). Deste modo, a discipli-
na é a técnica opressiva do poder que domina e manipula os indivíduos, tornando-
-os objeto e instrumento de seus interesses. Refere-se, em seu sentido negativo, ao
poder como dominação e as técnicas surgidas daí conduzem ao assujeitamento de
seres humanos, uns em relação aos outros.
Embora a obra Vigiar e punir não investigue somente o dispositivo escolar,
quando se reporta à instituição escola, especialmente à escola na forma de interna-
to, atribui-lhe a vigilância hierárquica que é própria de outras instituições, como o
exército. É sugestivo que Foucault trate deste tema no segundo capítulo da terceira
parte da referida obra, intitulado precisamente de “Os recursos para o Bom Ades-
tramento”. Ou seja, segundo ele, no contexto escolar a disciplina assume a forma
autoritária da vigilância hierarquizada que conduz ao adestramento dos educan-
dos, colocando-se no polo exatamente oposto da noção iluminista de educação. Em
vez de ser uma das principais formas para o ser humano alcançar progressivamen-
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te a maioridade, a educação, sobretudo a escolar, torna-se um poderoso mecanismo
de dominação e subjugação da vontade do sujeito educacional e o faz por meio do
poder disciplinar rigoroso e vigilante que exerce sobre seus membros. Em síntese,
cerceando a liberdade individual, a educação escolar conduz à obediência servil e,
ao contrário de formar os indivíduos para a vontade própria, deforma-os.
O núcleo da obra Vigiar e punir que influenciou as teorias educacionais con-
temporâneas, materializando-se nas práticas educacionais cotidianas, consistiu-
-se, portanto, na redução da disciplina ao poder disciplinar, compreendido como
forma de controle vigilante, de adestramento do ser humano. Para o Foucault de
Vigiar e punir a disciplina é um exercício de adestramento e docilização dos cor-
pos, bloqueando o exercício de autogoverno humano.3 Esta compreensão teórica
tornou-se a principal aliada, certamente contra a própria vontade de Foucault, da
flexibilização desregrada da liberdade individual, trazendo, como contrapartida,
o enfraquecimento cada vez maior da liberdade social.4 A defesa sem limites da
liberdade individual conduz à consciência segura dos direitos individuais, sem que
tal consciência venha acompanhada, na mesma proporção, pela noção da respon-
sabilidade dos deveres de cada um e da importância dos vínculos solidários como
constitutivo da convivência humana e social. A defesa excessiva das liberdades in-
dividuais conduz, então, ao individualismo egoísta, sem reponsabilidade pelo bem
público (DARDOT; LAVAL, 2016).
De outra parte, a exclusão da disciplina das práticas educacionais cotidianas
– porque se a compreendeu tão somente como forma de adestramento – conduz, em
última instância, para a ausência de limites. Porque a disciplina passou a ser com-
preendida geralmente como imposição de regras e a noção de limite tem a ver com
regras, então, tornou-se necessário encontrar formas pedagógicas que pudessem
educar sem o recurso à disciplina, dispensando também com isso própria noção de
limites. Ora, esta cultura crescente de ausência de limites fortalece formas narci-
sistas de liberdade individual, tornando irrelevantes as formas de vida solidárias
e cooperativas.
Não há dúvida de que, do ponto de vista educacional, Vigiar e punir assume
uma concepção reducionista de disciplina, empobrecendo demasiadamente a teoria
educacional subjacente à referida obra. O procedimento arqueológico que sustenta
a analítica do poder disciplinar, com base no qual Foucault identifica o aparato es-
colar com o “bom adestramento”, ignora a maioridade e o autogoverno pedagógico
como problema educacional chave da tradição pedagógica ocidental. Tal tradição
encontra sua culminância nos séculos XVIII e XIX com a concepção formativa de
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disciplina formulada por autores como Rousseau, Kant e Herbart. Ao reduzir a
disciplina à forma de controle autoritário e vigilante, que conduz ao adestramento,
Foucault cega-se da possibilidade de compreender a própria disciplina como forma
genuína de exercício humano que está na base do trabalho intenso que o sujeito
precisa fazer sobre si mesmo para alcançar sua própria transformação.
Contudo, a ideia de formação humana como exercício de si mesmo tem sua
origem, na própria evolução intelectual de Foucault, na passagem da analítica do
poder para a intensa reflexão sobre o problema da governamentalidade.5 São os
últimos cursos proferidos no Collège de France que tomam o problema do governo
como ferramenta conceitual para compreender as formas contemporâneas de cons-
tituição do sujeito. Isto traz profundas modificações na noção de educação, diferen-
ciando-a da teoria educacional inerente ao sentido negativo de disciplina. O exercí-
cio intelectual empreendido em A hermenêutica do sujeito é um caso elucidativo da
ampla problemática do governo de si mesmo como postura ético-estética de forma-
ção do si mesmo. Encontra-se aqui, neste movimento intelectual, um Foucault dis-
tante tanto das preocupações epistemológicas de inspiração estruturalista como da
analítica arqueológica que reduz a disciplina ao controle rigoroso e vigilante. Por
isso, baseando-se na genealogia do sujeito, A hermenêutica do sujeito reinterpreta
as questões do saber e do poder sob outra ótica, também abrindo a possibilidade
para pensar a formação ético-estética do sujeito de maneira ampliada.
No referido curso, proferido em 1982, Foucault investiga minuciosamente
duas formas clássicas de governo de si, o cuidado de si e o exercício de si. Na pri-
meira, tomando como referência o Alcibíades de Platão, mostra como a pretensão
de governar bem os outros exige o governo ético de si mesmo. A conclusão lapidar
que extrai do trabalho pedagógico exercido por Sócrates sobre o jovem Alcibíades
torna-se referência ética indispensável para qualquer teoria educacional que se de-
bruça sobre o problema da relação pedagógica entre educador e educando: só pode
governar bem os outros aquele que for capaz de governar bem a si mesmo. Ora, o
governo ético de si exige o permanente domínio de si mesmo, o qual é alcançado
pelo diálogo aberto e franco com os outros. O domínio de si exige, portanto, este du-
plo movimento: saída de si mesmo, levando a sério o parceiro do diálogo e; retorno
a si, para refletir o significado da saída de si mesmo e o encontro dialógico com o
mundo. Diálogo e autorreflexão são então marcas características do cuidado de si
como uma das expressões do governo de si.
A segunda forma de governo de si, o exercício de si, Foucault investiga no es-
toicismo antigo. Esta investigação ocupa a maior parte do curso proferido em 1982.
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Esbanjando erudição, Foucault trabalha com vários autores e textos, interpretan-
do as diferentes formas de exercício de si e detendo-se nas implicações formativas
que estão vinculadas às diferentes formas de práticas de si. Embora muitos auto-
res o tenham influenciado, não há dúvida que Sêneca permanece como a grande
sombra intelectual de seu processo reflexivo. E isto não é de modo algum fortuito,
sobretudo, porque as Cartas a Lucílio resume bem, como grande obra filosófica e
pedagógica, o ideal educacional antigo, de tradição greco-romana. Subjacente a
esta obra está a noção de educação como preparação para enfrentar o mundo e
não só como formação para uma determinada profissão. Desse modo, a instructio
é a reatualização latina da paraskheué grega: “Esta formação, esta armadura se
quisermos, armadura protetora em relação ao resto do mundo, a todos os acidentes
ou acontecimentos que possam produzir-se, é o que os gregos chamavam de pa-
raskheué, aproximadamente traduzido por Sêneca como instructio” (FOUCAULT,
2004, p. 115).
Sêneca desenvolve a metáfora da educação como armadura em muitas cartas
dirigidas a Lucílio. Todas elas contêm a preocupação em construir a fortaleza inte-
rior, por meio do cultivo virtuoso do caráter, para fazer frente aos perigos constan-
tes que os vícios representam à ação humana. Paradigmática é, neste sentido, a
carta 113, na qual Sêneca, depois de procurar se distanciar das sutilezas nas quais
seus próprios mestres estoicos se perdiam, ao discutirem problemas relacionados
às virtudes humanas, põe a questão decisiva, do ponto de vista da formação moral:
“de que modo nos é possível atingir as virtudes, ou seja, qual a via que conduz até
elas?” (SÊNECA, 2014, p. 626). A resposta que oferece para esta questão permite
perceber o núcleo da metáfora da educação como armadura. Seu argumento, diri-
gindo-se especificamente à coragem, consiste resumidamente no seguinte: não é a
fortuna, mas sim a coragem que constitui “a barreira inexpugnável a defender a
fraqueza humana; quem dela se rodeia pode resistir em segurança a este violento
cerco que é a vida” (SÊNECA, 2014, p. 626).
A metáfora da armadura tem sentido primeiramente devido à fraqueza huma-
na. Porque a condição humana é frágil e a vida impõe obstáculos severos, amea-
çando-a permanentemente por meio de paixões violentas e agressivas, a virtude é a
arma que fortalece a condição humana para resistir ao cerco violento. Em síntese, a
virtude como armadura é o poder que conduz o ser humano a dominar a si mesmo,
uma vez que sem este domínio de si, ele (o ser humano) perde para suas próprias
fraquezas. Ora, fortalecer o caráter significa, neste contexto, dominar as fraquezas
por meio da virtude.
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Em síntese, a evolução, no pensamento de Foucault, da analítica do poder
para a interpretação das formas antigas de subjetivação, compreendidas como
cuidado de si e exercício de si, permitiu-lhe compreender não só negativamente o
problema da formação do si mesmo, dominado pelo poder disciplinar, mas também
positivamente, por meio de diferentes exercícios que transformam formativamente
o sujeito. Ora, se a formação do si mesmo depende de diferentes exercícios, a dis-
ciplina também precisa ser compreendida, neste novo contexto teórico, como fonte
genuína de formação. Este é justamente o passo dado por Johann F. Herbart em
sua Pedagogia geral e o faz intuitivamente com base na herança estoica. Embora
Foucault não trate do pensamento pedagógico de Herbart, o caminho teórico aberto
por A hermenêutica do sujeito nos permite interpretar a ação pedagógica da disci-
plina como exercício genuíno de formação do si mesmo. Ou seja, o procedimento
metódico adotado por Foucault para interpretar a formação humana como exercí-
cio de si, quando projetado sobre a Pedagogia geral, possibilita pôr em evidência
o sentido formativo da disciplina, como exercício espiritual de formação do sujeito
educacional.
De outra parte, Johann F. Herbart também tem em mente, na Pedagogia ge-
ral, o sentido autoritário de disciplina, embora não seja este o sentido que, do ponto
de vista pedagógico, efetivamente lhe interessa. No âmbito do “Governo das crian-
ças”, o referido autor condena a noção de governo como controle rigoroso e vigilan-
te do educador sobre o educando. Tal controle tem origem, na ótica foucaultiana,
como tratamos acima, exatamente no poder disciplinar que a instituição escolar
exerce sobre seus integrantes. Deste modo, o poder disciplinar vigilante torna-se a
prática pedagógica adotada sem restrições nos internatos escolares daquela época.
Considerando seu efeito destrutivo na formação da criança, Herbart, por sua vez,
o descarta com veemência. Estava seguro, neste sentido, de que o educador, ao
orientar-se pelo poder rigoroso e vigilante, joga o educando (a criança) nos bra-
ços da obediência servil, privando-lhe a possibilidade de formação progressiva da
vontade própria.6 Portanto, havia claramente em sua recusa do poder disciplinar
rigoroso a convicção moral com desdobramentos políticos: o exercício autoritário
do poder conduz inevitavelmente à obediência passiva, incompatível com o ideal
do autogoverno humano. Ora, tal obediência significa a negação do autodomínio
como condição da ação moral, resultando disso a impossibilidade de construção do
convívio humano autônomo e independente. Ou seja, para Herbart estava claro,
como o estará mais tarde também para Foucault, que o controle rigoroso e vigilan-
te nega por completo a capacidade humana de autogoverno. Desse modo, o poder
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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disciplinar vigilante e rigoroso impede o bom governo de si mesmo e, com isso, a
possibilidade de bem governar os outros.
A recusa decidida do sentido negativo de disciplina é feita por Herbart com
o intuito de preservar seu sentido formativo, o qual ele identifica com o exercício
humano de armamento do espírito contra os vícios de caráter e a corrupção hu-
mana e social. Vê-se ressoar aqui, em seu pensamento pedagógico, a longínqua
herança educacional estoica. Contudo, para melhor compreender o papel formativo
que Herbart atribui à disciplina, faz-se necessário recorrer, antes e brevemente,
ao conceito kantiano de disciplina, o qual é a fonte de influência filosófica mais
imediata do próprio Herbart.
A noção de disciplina em Kant
Herbart publica a Pedagogia geral dois anos depois da morte de Immanuel
Kant e assume, logo depois, a cátedra de Lógica e Metafísica ministrada pelo fa-
moso filósofo de Königsberg, na Universidade Albertina. O vínculo intelectual de
Herbart com Kant é profundo e seu pensamento pedagógico foi muito influenciado
pela filosofia prática kantiana. Se o primeiro livro da Pedagogia geral possui uma
influência marcante do pensamento de Jean-Jacques Rousseau, no terceiro livro,
intitulado de “Fortalecimento moral do caráter”, a herança kantiana é visível. A
ideia de formação moral que sustenta a teoria educacional herbartiana tem forte
inspiração em Kant, embora, como deixarei claro abaixo, as diferenças com o pen-
sador de Königsberg são grandes.
Com a publicação da Crítica da Razão Pura, em 1781, Kant delimita os con-
tornos do emprego teórico da razão pura, deixando o espaço aberto para o emprego
prático da mesma. Na Crítica da razão prática, publicada em 1788, ele não só leva
adiante a tarefa de justificação do emprego prático da razão pura, como defenderá
o primado desta última em relação ao emprego teórico. No intervalo destas duas
obras Kant escreve a Fundamentação da Metafísica dos Costumes (FMC), na qual
oferece, na terceira e última seção, uma teoria da obrigação moral que está na base
do sentido pedagógico que atribui à disciplina em suas preleções Über Pädagogik
(Sobre Pedagogia).
A teoria da obrigação moral é justificada na terceira secção da FMC por meio
da dedução da lei moral como imperativo categórico e tal dedução é feita com base
na pressuposição da liberdade como ideia da razão pura. A dedução, que é reali-
zada aí está livre do “círculo vicioso” (“geheimer Zirkel”) constatado anteriormente
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(GMS, IV, 450),7 porque não se trata mais de derivar analiticamente a lei moral da
liberdade da vontade de um ser racional puro, mas sim, mostrar que para um ser
racional sensível a lei moral não é uma consequência analítica da liberdade de sua
vontade. Justamente por isso é preciso mostrar porque para este ser (sensível) a
lei moral só pode valer enquanto dever, ou seja, na forma de um imperativo cate-
górico. De qualquer sorte, o fundamental desta argumentação consiste em mostrar
como o imperativo categórico é possível e responder esta questão não é outra coisa
senão procurar mostrar “de onde a lei moral obriga” (“woher das moralische Gesetz
verbinde”, GMS, IV, 450).
Este difícil e profundo problema de filosofia moral pressupõe o primado da
razão prática sobre a razão teórica, sendo justamente neste contexto que a Pedago-
gia, ou seja, a teoria educacional, é tomada por Kant como uma das formas de rea-
lização de sua filosofia prática. Isto quer dizer, em outros termos, que uma teoria
da formação moral do sujeito humano não pode efetivar-se sem a força pedagógica
da disciplina, pois o adulto que se sente livremente obrigado a agir de acordo com
a exigência do imperativo moral é a mesma criança que se habituou desde cedo,
orientado pela disciplina, a agir conforme o poder de regras menores. Sendo assim,
o sentido pedagógico da disciplina cumpre o papel propedêutico para a futura obri-
gação moral adulta. A criança que não teve a oportunidade de sentir a força peda-
gógica da disciplina, certamente encontrará maiores dificuldades, quando adulta,
de se deixar obrigar livremente pelo conteúdo da ação moral. Ou seja, na prática,
estará mais propensa a instrumentalizar os outros e a si mesma do que a sentir a
humanidade na ação dos outros e em sua própria ação.
Considerando este peso arquitetônico desempenhado pela teoria educacional,
como uma das formas de realização da filosofia prática, torna-se necessário esclare-
cer onde repousa, segundo Kant, o poder formativo da disciplina. É digno de nota,
em primeiro lugar, que este pensador também vê o risco imanente à disciplina, pois
seu sentido negativo conduz ao adestramento. Deste modo, tomado em seu sentido
negativo, como uma prática de controle autoritário e rigoroso do educador sobre o
educando, a disciplina adestra o educando, tornando-o obediente passivo do proces-
so pedagógico. Kant é enfático: “O ser humano pode ser treinado, disciplinado, ins-
truído mecanicamente, ou também ser ilustrado. Treinam-se cães e cavalos; mas
também se pode treinar seres humanos. [...]. Entretanto, não é suficiente treinar as
crianças; é necessário que aprendam a pensar” (Päd, IX, 450). Quando a disciplina
se identifica com adestramento, ela deixa de ser formativa; de outra parte, torna-se
formativa quando conduz ao pensamento.
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Kant extrai o sentido formativo da disciplina da teoria educacional de inspi-
ração rousseauniana, a qual também exercerá influência em Herbart. Segundo tal
teoria, o sujeito educacional aprende quando for capaz de realizar suas próprias ex-
periências. Sempre acompanhado de perto pelo preceptor, de cuja responsabilidade
é a invenção adequada dos cenários pedagógicos, o aluno fictício possui a liberdade
(bem regrada) de fazer suas próprias descobertas, formando-se a si mesmo como
sujeito humano. O aspecto importante, filosófica e pedagogicamente, é que a ideia
de fazer suas próprias experiências pressupõe a concepção ativa da condição huma-
na, a qual está na base da maioridade, em todas as suas dimensões, educacional,
jurídica, estética e política. Sem levar a sério a capacidade agente do ser humano,
não há como formar o sujeito capaz de pensar por si mesmo. Portanto, capacidade
agente e capacidade de pensar por conta própria são dois aspectos da maioridade
humana que se implicam mutuamente.
A teoria educacional kantiana pressupõe, portanto, a condição humana agen-
te e pensante. Considerando isto, compete à Pedagogia, como teoria educacional,
investir no desenvolvimento das “disposições naturais” (Naturanlagen) do sujeito
educacional. Todo o ser humano é um ser de possibilidades, sendo que a noção de
disposição reúne o conjunto destas possibilidades. Como elas não se desenvolvem
por si mesmas, a educação torna-se o principal mecanismo de desenvolvimento de
tais disposições. Mas, como adverte Kant, nem toda a educação, ou seja, nem toda
a Pedagogia, se presta para esta finalidade. Somente a “arte de educação racioci-
nada” é que consegue potencializar o desenvolvimento das capacidades humanas,
conduzindo o sujeito educacional para sua autodeterminação. De outra parte, Kant
vê na “arte de educação mecânica” o oposto do desenvolvimento humano, porque
tal arte trata de maneira reduzida das próprias capacidades humanas.
Portanto, a autodeterminação do sujeito educacional pressupõe o sentido de
maioridade duplamente constituído, como capacidade de agir e como capacidade de
pensar. Na base de ambos está o sentido de liberdade que não é de modo algum o li-
vre arbítrio, considerado como fazer o que bem entender em qualquer hora e lugar.
Este é o sentido de liberdade selvagem que impede a sociabilidade moral e política
do ser humano. A este sentido bárbaro de liberdade Kant, por influência de Rous-
seau, opõe a liberdade bem regrada, a qual não significa seguir servilmente a lei,
mais construí-la com base nos ideais de humanidade, visando o bem público. Ora,
é neste contexto mais amplo da Aufklärung moderna que Kant pensa a educação
como exercício de lapidação da selvageria que está em cada um dos seres humanos
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e como domínio dos caprichos e desejos mesquinhos que impedem o desenvolvimen-
to moral (espiritual e cultural) do ser humano.
Também é baseando-se na ideia mais ampla de educação como exercício per-
manente de lapidação da barbárie que reside em cada ser humano que Kant con-
cebe o papel formativo da disciplina. A condição selvagem significa querer levar
uma vida totalmente livre, sem a presença de leis. Como tal condição é contraria
a sociabilidade humana, ela precisa ser educada e a disciplina exerce precisamen-
te este papel de conformar a ação humana às leis, leis da moral e, portanto, da
humanidade. Assim afirma Kant: “A disciplina submete o ser humano às leis da
humanidade, começando por fazê-lo sentir a força das próprias leis” (Päd, IX, 442).
Ora, “fazê-lo” sem “sentir a força das próprias leis” caracteriza bem o sentido for-
mativo que está inerente à noção kantiana de disciplina que será assumido, poste-
riormente por Herbart: trata-se do exercício democrático da autoridade adulta que
se torna presente em sua relação com a criança, sem que a mesma note que está
sendo orientada pela ação educativa adulta. Este ponto já me conduz ao próximo
tópico do ensaio.
Disciplina como fortalecimento do caráter
Herbart possui como pano de fundo a noção kantiana de disciplina, mas a
modifica significativamente. O fato de conceber a Pedagogia como um estudo in-
dependente, ele também pôde tratar a ação pedagógica da disciplina de maneira
autônoma em relação à própria filosofia prática. Isso significa dizer que Herbart
independiza sua teoria educacional do sentido transcendental de liberdade, não
deduzindo o sentido da ação pedagógica da disciplina do conteúdo do imperativo
categórico. Sua recusa do sistema filosófico é feita em nome da ação humana, sendo
justamente esta guinada para a ação, tomando-a não mais no sentido transcenden-
tal, que o permite compreender a disciplina como principal exercício pedagógico-
-moral de formação da interioridade humana.
Não faltam passagens do terceiro livro da Pedagogia geral, nas quais é referido
este sentido formativo da disciplina. Antes de desenvolver este aspecto, o próprio
Herbart apressa-se em esclarecer que a noção de disciplina não é de modo algum
estranha ao campo educacional, uma vez que a noção de educação (Erziehung) se
origina do radical que significa propriamente disciplina (Zucht). O problema é que
o substantivo Zucht é por si mesmo ambíguo, contendo dupla possibilidade. Pode
significar, por um lado, adestramento, no sentido de “puxar” um animal pela corda
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amarrada em suas aspas ou em seu pescoço. Mesmo nesta circunstância, o animal
deixa ser puxado somente depois de muito treino e quando estiver devidamente
domado. Ainda assim, ele pode resistir e, virando uma fera, pode avançar no que
vê pela frente.
Mas Zucht tem, por outro lado, o sentido pedagógico de conduzir ou orientar
o educando visando seu autogoverno. Kant foi enfático em suas preleções Sobre
Pedagogia, como mostrei acima, ao afirmar que se adestra animais, mas que tam-
bém se pode adestrar seres humanos. Ao assumir esta posição, coloca a disciplina
no âmbito educativo – de não adestramento –, visando à formação do ser humano
capaz de governar-se a si mesmo. Ao segui-lo de perto, neste aspecto, Herbart tam-
bém toma a disciplina como preparo da capacidade do ser humano de se dirigir a si
mesmo. Contudo, de modo mais específico do que Kant, concebe a disciplina como
principal exercício de formação da experiência humana interior indispensável ao
fortalecimento moral do caráter. A grande diferença entre os dois pensadores é que
para Kant a disciplina é tomada como uma forma de pressão que o adulto exerce
sobre a criança, enquanto para Herbart ela é o exercício de cultivo do jovem sobre si
mesmo, visando alcançar a segurança interior indispensável à ação moral. Se para
Kant ela ainda é uma pressão que vem de fora, para Herbart torna-se uma espécie
de auto coação ou auto pressão (Selbstzwang) que o sujeito se põe a si mesmo visan-
do dominar os vícios que o rodam permanentemente.
Deste modo, exercício e experiência interior são duas noções importantes para
o esclarecimento do sentido pedagógico e moral que Herbart atribui à disciplina.
Para que a noção de disciplina como principal forma de exercício espiritual hu-
mano ganhe sentido, é preciso compreender de que experiência interior se trata.
Herbart sofre a influência estoica, mais forte talvez do que o próprio Kant, que
lhe chega, entre outras fontes, por meio do Emílio de Rousseau. Sendo assim, o
principal aspecto da experiência interior que precisa ser enfrentada é a vaidade
do amor próprio e isto desde muito cedo, já na própria infância. O autor adverte,
neste contexto, que a Pedagogia, como estudo independente, não deve realçar o eu
próprio que é movido pelos desejos e prazeres que são alheios à vontade própria.
A Pedagogia não deve realçar, portanto, “tudo aquilo que ocupa os desejos sem
benefício, o que antecipa desejos que são próprios aos anos mais tardios, tudo o que
alimenta a vaidade e o amor próprio (Eigenliebe)” (HERBART, 1965, p. 139).8
Portanto, inserindo-se na tradição estoica da qual Emílio de Rousseau é o
principal portador moderno, Herbart concebe o amor próprio como aspecto consti-
tutivo da interioridade humana, sobre o qual precisa incidir o processo formativo.
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A maior luta do ser humano é, neste sentido, primeiramente consigo mesmo, com
seus desejos e paixões ardentes, que podem distanciá-lo do caráter moral. Sem
que este enfrentamento consigo mesmo seja feito, não há como pensar no convívio
humano virtuoso. Com isto fica clara a primazia do trabalho de si sobre si mesmo
como condição de possibilidade do convívio humano moralmente orientado. O eixo
predominante é então a formação da interioridade, a qual resulta do autodomínio
do aspecto destrutivo do amor próprio. Quanto mais determinado for tal autodo-
mínio, mais fortalecido moralmente fica o caráter e, em última instância, o próprio
convívio social. Fortalecimento do caráter tem a ver, por influência da tradição
estoico-rousseauniana, com o trabalho intenso que o sujeito precisa fazer sobre os
aspectos destrutivo de seu amor próprio.
Neste contexto, a própria noção de educação geral (Allgemeine Erziehung)
ganha contornos bem definidos. Se o propósito maior é a formação da fortaleza
interior para que o sujeito educacional possa dominar os desvarios de seu amor
próprio e, com isso, estar fortalecido para enfrentar com serenidade as adversida-
des do mundo exterior, então a educação possui a tarefa de preparar o indivíduo
para enfrentar a si mesmo e o mundo em que vive. Tal preparação, que é um longo
e inesgotável processo formativo, assume metaforicamente a forma de armadura.
A noção de educação como armadura está subentendida na argumentação de
Herbart, sobretudo, quando ele trata do papel das ideias (círculo de pensamentos)
na formação do caráter. Neste âmbito, ele se refere à segurança interior que brota
do espírito armado (bewaffneter Geist), afirmando que tal segurança, ao se reunir
com um interesse puramente egoísta, corrompe imediatamente o caráter (HER-
BART, 1965, p. 113). Encontra-se aqui, deste modo, a metáfora da educação como
armadura, proporcionando o vínculo entre espírito armado e segurança interior.
Para onde sinaliza propriamente tal vínculo?
Ele é indicativo de duas ideias importantes, que interferem diretamente no
modo de formação do caráter. A primeira ideia refere-se ao fato de que quanto mais
armado for o espírito, mais segurança possui a interioridade humana. A armadu-
ra refere-se fundamentalmente ao intenso trabalho que o educando, com auxílio
pedagógico do educador, precisa fazer sobre si mesmo, visando conquistar seu au-
todomínio. Até aqui há uma compreensão tão somente neutra da armadura do
espírito, visando sua proteção interior. Porém, a segunda ideia indica que nem todo
o espírito armado é sinônimo de formação moral do caráter, pois, como mostra a
passagem acima, quando a segurança interior que brota do espírito armado se unir
com interesses egoístas, tal segurança conduz à corrupção do caráter. Ora, como
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o amor próprio desregrado é a principal fonte de egoísmo, a armadura do espírito
como metáfora da formação moral significa o trabalho ético do sujeito educacional
sobre si mesmo, visando a educação de seu amor próprio. Neste contexto, a dis-
ciplina é o exercício pedagógico por excelência capaz de armar formativamente o
espírito, possibilitando que dele brote o caráter moral. De que natureza pedagógica
se constitui o exercício disciplinar?
No quinto capítulo do livro terceiro da Pedagogia geral, Herbart atribui duas
dimensões à disciplina como exercício de armadura da interioridade humana: uma
dimensão externa, conduzida pelo educador e, outra, interna, assumida pelo próprio
educando. Sem uma não há a outra e são as duas atuando simultânea e reciprocamen-
te que formam a armadura moral do espírito. O fato é que o sentido formativo da disci-
plina não acontece somente pelo trabalho do educador ou do educando, exigindo sim o
“pegar junto” e a reciprocidade de ambos. Tanto um como outro repousam no trabalho
intenso e continuado que o sujeito educacional precisa fazer sobre si mesmo, visando a
formação de um “ser humano naturalmente sereno” (HERBART, 1965, p. 136).
Estas duas dimensões da ação pedagógica da disciplina deixam-se esclarecer
melhor no âmbito da diferença da própria disciplina em relação à ação pedagógica
do governo e da ação pedagógica do ensino.9 Do ponto de vista da arquitetônica
da Pedagogia geral, Herbart esclarece que a disciplina possui em comum com o
“Governo das crianças” o fato de atuar diretamente sobre a alma do educando. De
outra parte, ela possui em comum com o ensino a formação como finalidade. Por-
tanto, atuar formativamente sobre a alma do educando é o ponto em comum que a
disciplina possui com o governo e o ensino. Mas, este ponto não elimina a diferença
dela com os outros dois tipos de ação pedagógica.
A ação pedagógica de governo possui algo que a ação pedagógica da disciplina
não pode mais aceitar. O governo emprega a pressão como poder exercido pelo
adulto sobre a criança. Mesmo que seja baseada na autoridade amorosa, a pressão
só acontece pela condução direta do adulto. Há momentos em que o adulto pre-
cisa ser firme com a criança, colocando-a limites sem recuar. Mas, como adverte
Herbart, precisa fazê-lo de maneira breve e sem perder a amabilidade. Ora, uma
pressão desta natureza, que vem de fora para dentro, que pressupõe o trabalho
diretivo intenso do adulto já não deve mais fazer parte da disciplina como ação
pedagógica. Na verdade, a disciplina já pressupõe o efeito pedagógico construtivo
de tal pressão na formação do jovem e por isso deve atuar nele de outra maneira, ou
seja, como destaca Herbart (HERBART, 1965, p. 129), atuando com outro acento.
Como o jovem está em melhores condições de se dirigir a si mesmo em comparação
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com a criança, o tipo de concordância que o educador precisa obter dele (do jovem)
é manifestamente participativo. Aqui, nesta faze, o Zwang não funciona mais e o
cultivo almejado da experiência interior do educando precisa ser provocado pelo
educador de outro modo. Quanto mais o educador estimular o desenvolvimento da
experiência interior do educando, de todas as suas disposições nas mais diferentes
direções, menos deve fazer sentir sua autoridade sobre ele. Em síntese, o jovem,
diferentemente da criança, pode assumir com maior independência seu próprio
processo formativo, exigindo do adulto e dos outros jovens que lhe acompanham
outra postura, menos diretiva e mais orientadora.
No que se refere ao ensino, a disciplina não precisa mais tratar de um terceiro,
no caso, do objeto (conteúdo) de ensino, que mediava a relação pedagógica entre
educador e educando. Não se trata, como alerta Dietrich Benner (1993, p. 125),
exclusivamente da mediação e apropriação dos objetos de aprendizagem, ou seja,
dos princípios da instrução educativa. Esta natureza específica do ensino cede lu-
gar à interação direta entre educador e educando. O que está em jogo aqui são os
princípios internos à interação entre eles, os quais se referem, em última instância,
à própria ação entre seres humanos. O tipo de ação pedagógica no âmbito da disci-
plina refere-se então predominantemente ao autorrelacionamento do sujeito edu-
cacional consigo mesmo. Por isso que a disciplina como formação implica sempre
autoformação. Ora, não é nada fortuito, neste contexto, a recorrência herbartiana
a todas aquelas expressões que dão conta do exercício humano disciplinar como
autoformação, principalmente, da observação de si mesmo.
O objetivo maior da ação pedagógica da disciplina consiste em propiciar as
condições para que o sujeito educacional possa governar a si mesmo, pois a forma-
ção moral do caráter exige a capacidade de autogoverno. Contudo, tal objetivo não
se esgota e nem pode se realizar somente no autogoverno individual. Herbart tem
claro que a disciplina não se forma por meio do aglomerado que resulta de padrões
e medidas nem de atos isolados, “mas antes do convívio contínuo” (HERBART,
1965, p. 130). Como arte ou como tecnologia educacional, a disciplina só pode ser
a modificação da arte do convívio entre seres humanos. Sendo assim, este cará-
ter eminentemente social da disciplina também exige do educador a “flexibilidade
social”, com a qual pode cultivar a formação da autoestima do educando. Como
exercício interior que contém esta dimensão social, a disciplina possui o poder de
conduzir o sujeito educacional ao respeito de si próprio, o qual é condição indis-
pensável à censura interior (autocoação), que está na base da formação moral do
caráter e, por conseguinte, do respeito pelos outros e pelo mundo.
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Em síntese, ao criticar o sentido negativo de disciplina como controle rigoroso
e vigilante, Herbart acentua seu aspecto formativo como trabalho intenso do sujei-
to sobre si mesmo. Contudo, tal trabalho de maneira alguma é feito isoladamente,
pois depende sempre do convívio social e do encontro formativo com o educador. De
qualquer modo, tal trabalho é condição necessária para que o sujeito educacional
alcance progressiva e indefinidamente o fortalecimento moral de seu caráter.
Considerações nais
Resumo agora os três passos argumentativos que empreendi no presente
ensaio. Meu propósito maior foi reatualizar teoricamente o sentido formativo da
disciplina, o qual se encontra desaparecido das teorias e práticas educacionais
contemporâneas. Procurei mostrar, no primeiro passo argumentativo, que tal de-
saparecimento deve-se em parte à influência exercida pela obra Vigiar e punir de
Michel Foucault e de interpretações parciais que são feitas por parte da pesquisa
educacional brasileira. Seguindo a perspectiva de uma sociedade totalmente admi-
nistrada Foucault reduz o sentido da disciplina ao poder rigoroso e vigilante que
adestra o sujeito educacional no ambiente escolar, tornando-o dócil e passivo ao
ordenamento social. Ora, reduzir o papel da escola a uma “maquinaria disciplinar”
de docilização dos corpos significa, certamente contra a vontade de quem o faz,
trazer água para o moinho do empreendedorismo neoliberal que domina o cenário
educacional contemporâneo. Na sequência, ainda no primeiro passo argumentati-
vo, busquei deixar claro que as investigações empreendidas nos cursos proferidos
no Collège de France a partir de 1982, centradas na problemática do governo de
si, permitiram Foucault ampliar sua própria compreensão de poder. Tal ampliação
abre espaço, embora o próprio Foucault não tenha seguido nesta direção, para com-
preender o sentido formativo, e não só repressivo, inerente à disciplina.
Deste modo, pensando com Foucault e contra Foucault foi possível resgatar o
sentido formativo atribuído à disciplina pela modernidade filosófico-pedagógica e
pelo neo-humanismo, respectivamente por Kant e Herbart. No que se refere a Kant,
ele limita o papel pedagógico da disciplina à infância. Parte da premissa de que a
condição infantil é marcada pelo estado de rudeza, no qual a criança age orientada
pelos seus instintos primários. Neste estado, ela se guia predominantemente pelos
desejos, querendo viver a liberdade radical, caracterizada pela ausência completa
de leis. Cabe ao adulto limitar por meio da disciplina a voracidade intempestiva
dos caprichos infantis. A disciplina exerce, deste modo, o papel propedêutico de
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preparar o pequeno educando para o agir moral adulto. Neste sentido, ela ocupa
lugar propedêutico indispensável na arquitetônica do pensamento de Kant, pois,
como exercício formativo, a disciplina é uma das principais formas de realização
da filosofia prática. Se a criança não se habituar a viver mediante pequenas re-
gras, jamais conseguirá, quando adulta, viver livremente obrigada de acordo com o
imperativo moral. O papel formativo da disciplina consiste, portanto, em criar no
educando o senso mínimo de respeito à lei que o próprio sujeito, quando educado
no espírito da maioridade, constrói progressivamente para si mesmo na companhia
mediadora do educador. Sob este aspecto, e este talvez seja o maior alcance político
do papel formativo da disciplina, ela é propedêutica importante para a formação
ética do espírito republicano indispensável ao convívio dialógico na esfera pública.
No que diz respeito a Herbart, fica nítido, de acordo com a Pedagogia geral, o
quanto o pensamento filosófico e pedagógico de Kant o influenciou. Dele Herbart
herdou principalmente o sentido formativo de disciplina, localizando inclusive o
sentido da educação no próprio radical linguístico da disciplina (Zucht). Contudo,
por defender a autonomia da Pedagogia em relação à Filosofia, foi-lhe possível
abandonar o malfadado sonho kantiano de querer deduzir a teoria educacional e
o próprio sentido formativo da disciplina da ordenação prescrita pelo imperativo
categórico. Deste modo, ao conceber que a experiência interior se forma na ação
constituída socialmente, Herbart consegue preservar uma dimensão mais aberta
à educação geral em comparação com muitos pensadores iluministas que o antece-
deram. Sua metáfora da educação como armadura, que ele toma de empréstimo da
tradição pedagógica, cuja origem remonta à instructio latina, permite-lhe conceber
o papel formativo da disciplina nos termos do trabalho intenso que o sujeito educa-
cional precisa fazer sobre si mesmo, visando sua própria transformação.
O percurso realizado no ensaio deixa-me a impressão de que a redução fei-
ta por Foucault da noção de disciplina, limitando-a ao poder vigilante e rigoroso,
ocorre em nome do conceito radical de liberdade humana como ausência total de
regras. Foi motivado por este espírito que Foucault cegou-se, em Vigiar e punir,
da tradição pedagógica, fortemente enraizada nos séculos XVIII e XIX, segundo
a qual a disciplina possui sentido formativo indispensável à teoria educacional e,
em última instância, à ideia plural e aberta de sociedade. Como consentimento da
lei que o sujeito dá a si mesmo ou como armadura do espírito, a disciplina possibi-
lita o trabalho intenso do sujeito sobre si mesmo, visando conquistar seu próprio
autodomínio, ou seja, seu autogoverno pedagógico e moral, limitando com isso sua
própria liberdade. Neste sentido, longe de ser somente poder vigilante opressor, a
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Possui a disciplina papel formativo? Um ponto controverso das teorias educacionais
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disciplina é um dispositivo de poder a serviço do autogoverno humano, que se tra-
duz em diferentes práticas de si visando a própria transformação ética do sujeito.
Se a disciplina não possui só o sentido negativo, como poder coercitivo opressor,
mas também positivo, manifestando-se pedagogicamente como diferentes formas
de exercício visando o fortalecimento ético do sujeito educacional, há bons motivos
para revigora-la nos meios educacionais atuais. O sentido formativo da disciplina
pode servir como contraponto não só às práticas como também às teorias educacio-
nais que a reduzem à força dominadora opressiva. O recurso ao sentido formativo
de disciplina, enquanto trabalho ético de si sobre si mesmo, torna-se indispensável
para enfrentar a crescente e descontrolada corrupção do atual mundo social e polí-
tico. Em síntese, a investigação sobre o seu sentido formativo presente na tradição
clássica do pensamento filosófico e pedagógico também constitui referência teórica
importante para a crítica necessária do conservadorismo autoritário que toma con-
ta do cenária cultural, educacional e político, contemporâneo.
Notas
1 Contrariamente à sugestão feita por Andreas English, no ensaio publicado neste volume da Espaço Peda-
gógico, prefiro manter o termo disciplina como forma mais adequada de tradução da palavra alemão Zucht,
e não como orientação moral, embora ao empregar Zucht Herbart certamente tem em mente o problema da
orientação como aspecto constitutivo nuclear da formação humana na perspectiva moral.
2 Rara exceção é o trabalho de Jan Masschelein e Maarten Simons (2013, p. 52-65), os quais atribuem
sentido formativo à disciplina na medida em que a concebem como tecnologia escolar a favor do cultivo
espiritual do educando.
3 É preciso considerar, contudo, que leituras recentes da obra Vigiar e punir, confrontando-a com o pensa-
mento do Foucault tardio, procuram relativizar a redução da disciplina ao poder controlador e vigilante.
Veja, a este respeito, no campo pedagógico, o ensaio „Foucault revisitado: uma releitura da disciplina
através do conceito de antropotécnica“, de Carlos Ernesto Noguera-Ramírez e Ana Cristina León-Palencia
(2015, p. 209-239).
4 Tenho em mente aqui a distinção entre liberdade individual e liberdade social feita por Axel Honneth
(2011).
5 Foucault (1989, p. 277-293) trata primeiramente do tema da governamentaalidade na aula de 1 de feverei-
ro de 1978, no curso proferido no Collège de France.
6 No primeiro livro da Pedagogia Geral Herbart opõe o amor e a autoridade ao castigo físico e à aplicação
abusiva do manual de ensino. Ocupo-me em interpretar o problema do “Governo das Crianças“ em dois
ensaios recentemente publicados (DALBOSCO, 2018a e 2018b). Também, sobre o mesmo tema, ver o livro
sobre Herbart de Odair Neitzel (2019).
7 Utilizaremos as siglas usuais para as seguintes obras: GMS: Grundlegung zur Metaphysik der Sitten
(Fundamentação da Metafísica dos Costumes); Päd: Über Pädagogik (Sobre Pedagogia). Estes escritos
serão citados segundo a Akademie-Ausgabe (AA), indicando-se primeiro a abreviatura da obra, seguida do
número do volume em romano e da respectiva paginação em arábico.
8 Para uma reflexão sobre o aspecto destrutivo do amor próprio e anecessidade de sua educação especifica-
mente no pensamento de Rousseau, consultar Dalbosco (2016).
9 Enquanto a ação pedagógica do governo constitui o fio condutor da exposição do livro primeiro da Pedago-
gia geral, a ação pedagógica do ensino é fio condutor do livro segundo.
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Cláudio Almir Dalbosco
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Instrução educativa e interesse múltiplo em Herbart: aproximações com a formação do sujeito ético em Foucault
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* Graduado em Estudos Sociais e em Filosoa e especialista em Educação pelo Instituto Educacional Dom Bosco. Mes-
tre em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria e doutor em Educação pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul. Professor Adjunto da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Tem
experiência na área de Educação, com ênfase em Fundamentos da Educação, atuando principalmente nos seguintes
temas: pedagogia, losoa da educação, Habermas, ação comunicativa, paradigma da comunicação e agir comuni-
cativo. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3926-5164. E-mail: jospebou@unijui.edu.br
** Mestre em Educação nas Ciências pela Unijuí; doutoranda em Educação nas Ciências na Unijuí; bolsista da Capes.
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-5575-2248. E-mail: fran.anjos@hotmail.com
Recebido em: 27/01/2021 – Aprovado em: 26/11/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i3.12223
Instrução educativa e interesse múltiplo em Herbart: aproximações com a
formação do sujeito ético em Foucault
Instrucción educativa e interés múltiple en Herbart: aproximaciones con la formación del sujeto
ético en Foucault
Educational instruction and multiple interest in Herbart: approaches with the formation of the
ethical subject in Foucault
José Pedro Boueuer*
Franciele da Silva dos Anjos Strohhecker**
Resumo
Este artigo retoma de Johann Friedrich Herbart as noções de instrução educativa e de multiplicidade do interes-
se, em um esforço de releitura do seu potencial pedagógico pela sua articulação com o caráter hermenêutico
da condição humana. Tal caráter leva ao entendimento de que há uma dimensão ética e formativa presente nos
saberes/conhecimentos escolares e que tornam possível a constituição de um modo ético de existir. De Herbart,
pela via da reexão hermenêutica, o artigo estabelece aproximações com Michel Foucault, de cuja obra recu-
pera o sentido formativo do cuidado de si e do saber da espiritualidade a ele vinculado. Assim, compreende-se
que o saber/verdade pode trazer ao sujeito uma transformação de si, à medida que se constitui para ele como
modalização espiritual. Tem-se, assim, algo muito próximo da noção espiritual de interesse de Herbart e do ob-
jetivo de sua instrução educativa, que é forjar uma disposição espiritual, um interesse múltiplo no sujeito pelo
mundo e pelas relações humanas. A formação para a multiplicidade do interesse amplia o universo simbólico
do sujeito, permitindo-lhe compreender a si, ao outro e ao mundo de modo alargado, o que é fundamental para
uma vida ética.
Palavras-chave: educação; conhecimento; condição hermenêutica; ética.
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José Pedro Boueuer, Franciele da Silva dos Anjos Strohhecker
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Resumen
Este artículo retoma de Johann Friedrich Herbart las nociones de instrucción educativa y multiplicidad del inte-
rés, en un esfuerzo por releer su potencial pedagógico a través de su articulación con el carácter hermenéutico
de la condición humana. Tal carácter lleva a entender que existe una dimensión ética y formativa presente en
los saberes/ conocimiento escolar y que posibilitan la constitución de una forma ética de existir. Desde Herbart,
mediante la reexión hermenéutica, el artículo establece similitudes con Michel Foucault, cuya obra recupera
el sentido formativo del autocuidado y el conocimiento de la espiritualidad ligado a él. Así, se entiende que el
conocimiento / verdad puede traer al sujeto una transformación de sí mismo, ya que se constituye para él como
modalización espiritual. Así, hay algo muy cerca de la noción espiritual de interés de Herbart y al objetivo de
su instrucción educativa, que es forjar una disposición espiritual, un interés múltiple en el sujeto por el mundo
y por las relaciones humanas. La formación para la multiplicidad del interés expande el universo simbólico del
sujeto, permitiéndole comprenderse a sí mismo, al otro y al mundo de una manera más amplia, fundamental
para una vida ética.
Palabras clave: educación; saber/conocimiento; condición hermenéutica; ética.
Abstract
This article takes up Johann Friedrich Herbarts notions of educational instruction and multiplicity of interest,
in an eort to re-read their pedagogical potential through their articulation with the hermeneutic character
of the human condition. Such character leads to the understanding that there is an ethical and formative di-
mension present in school knowledges/learnings and that they make it possible the constitution of an ethical
way of existing. From Herbart, through hermeneutic reection, the article establishes approaches with Michel
Foucault, recovering, from his work, the formative sense of self-care and the knowledge of spirituality linked to
it. Thus, it is understood that the knowledge/truth can bring the subject a transformation of himself insofar as
it is constituted for him as spiritual modalization. Therefore, there is something very close to Herbart’s spiritual
notion of interest and to the goal of his educational instruction, which is to forge a spiritual disposition in the
subject, a multiple interest in the world and human relations. Formation to the multiplicity of interest enlarges
the subjects symbolic universe, allowing him/her to understand him/herself, the other and the world in a broad
way, which is fundamental to an ethical life.
Keywords: education; learning/knowledge; hermeneutic condition; ethics.
Introdução
Eis o que queríamos dizer sobre o modo da disposição do espírito que o ensino múltiplo
ambiciona preparar – na medida em que o saber do tempo o torne possível. Nela se reúne o
prazer de viver com a elevação da alma (HERBART, 2003, p. 141, grifo do autor).
A quais finalidades a educação se orienta? E no caso da educação escolar, o seu
caráter formativo pressupõe alguma especificidade do saber que nela se comunica
ou nela se constrói? Tais perguntas têm levado a respostas as mais diversas ao lon-
go de nossa tradição pedagógica. Por óbvio, a educação é um tema da humanidade,
anterior e que transcende à escola como instituição social. Mas é em torno dessa
instituição que o debate sobre a formação humana tem assumido uma importância
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toda especial, haja vista o caráter sistemático e intencional do seu fazer, o que pres-
supõe uma explicitação e uma sustentação de seus processos e de suas finalidades.
Considerando o tempo escolar como um tempo destinado ao cuidado formativo
para com as novas gerações, nosso foco de discussão será a dimensão ética e subje-
tivadora do saber aí mobilizado. Nesse sentido, tomamos a escola como um tempo
em que o “eu” dos sujeitos se torna objetivo formativo, algo com que se ocupam
os professores e também os próprios alunos – mesmo que, por certo tempo, não
tenham consciência disso. Assim, é na escola que se apresenta uma oportunidade
ímpar de o sujeito se ocupar consigo mesmo, com a sua subjetivação. Esse tempo,
porém, tem se tornado cada vez mais funcional, cada vez mais produtivo e ajustado
às demandas de uma ordem social e econômica estabelecida. E é justamente nessa
direção que ganham força diversos discursos sobre a escola que entendem como
sendo tarefa sua a capacitação e a habilitação das novas gerações para que possam
ingressar de forma qualificada no mercado de trabalho e, com isso, virem a se inse-
rir com “eficiência” na ordem de um mundo e de um sistema vigentes. Nesse viés,
também entram em cena disputas político-ideológicas quanto ao que é digno ou não
de ser ensinado, ou melhor, quanto ao que é útil ou não de ser aprendido.
Subjaz ao desejo de tornar a escola funcional à ordem estabelecida o entendi-
mento do conhecimento como ferramenta, como meio necessário para se chegar a
determinado fim, em regra, consubstanciado em alguma forma de produtividade
no sistema de mercado. Como consequência disso, temos o esvanecimento e até
mesmo o esquecimento – intencional, como projeto político-educacional – do sen-
tido formativo da educação escolar. Frente a isso, a dimensão ética da formação
humana e a preocupação com as formas de subjetivação acabam sendo relegadas
a segundo plano – na melhor das hipóteses. O nosso intento, aqui, é justamente
colocar em primeiro plano a dimensão formativa da escola – e da educação em
geral –, que consiste na tarefa de constituir subjetividades autônomas, éticas e
comprometidas com o mundo comum e com as relações humanas. Nessa direção, e
já numa perspectiva assinalada por Herbart, o saber que na escola se comunica e
se constrói assume um lugar extremamente importante como fundamento de uma
compreensão de si, do outro e do mundo.
Para a realização deste nosso intento, tomaremos como referência, num pri-
meiro momento, a obra de Johann Friedrich Herbart (1776-1841)1 e as noções, por
ele cunhadas, de instrução educativa e de multiplicidade do interesse. Como her-
deiro da mais alta cultura pedagógica da Aufklärung, o pedagogo e filósofo alemão
possui uma obra que acreditamos ter muito a contribuir para pensar sentidos da
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formação ainda, e especialmente, para os dias de hoje. Isso porque, ao desenvolver
uma Pedagogia geral (2003) que tem como finalidade primeira a constituição do
caráter moral, Herbart coloca em questão o compromisso ético para com a formação
das individualidades, o que implica oportunizar uma experiência em que o sujeito
vai constituindo para si um modo autônomo, livre e interessado de se situar diante
do mundo, do outro e de si. Mesmo que soe estranho esse “situar-se diante de si”,
é possível, conforme o autor, o sujeito construir uma espécie de senso interior, que
o torne capaz de voltar o olhar para si, para seus pensamentos, para suas ações, o
que assume o caráter de uma reflexão ética.
A formação ética em Herbart tem como objetivo maior a consolidação de uma
vontade moral por parte do educando, entendida esta como o exercício ético de
escolha, de tomada de decisão consciente sobre as questões que dizem de como se
deve viver junto aos outros. A consecução desse objetivo, conforme o autor, torna-se
possível mediante a formação de uma individualidade multiplamente interessada.
Assim, cabe ao ensino (à instrução), como sua tarefa primeira, fundamentar esses
interesses. A questão que se põe, portanto, é ver de que forma o ensino é capaz de
produzir uma vontade moral através da formação do interesse múltiplo. Conforme
Herbart, é o próprio conteúdo do ensino que permite a criação desse interesse que,
por sua vez, possibilita uma existência assentada em pressupostos éticos.2
Faremos nosso esforço de releitura das contribuições de Herbart para a educa-
ção em sua dimensão formativa na recorrência à reflexão hermenêutica acerca da
condição humana, situando-nos, para isso, na esteira das contribuições de Heidegger
e Gadamer e que, em nosso entender, confluem para a compreensão de um mundo
humano simbolicamente estruturado. Esse aporte da hermenêutica permitirá, como
pretendemos mostrar, aproximações com autores contemporâneos, dentre os quais
destacamos Michel Foucault. Assim, veremos que as noções de instrução educativa
e de constituição de uma vontade moral através do desenvolvimento do interesse
múltiplo remetem a uma compreensão de formação em que o conteúdo da educação,
ou o saber que nela é comunicado ou construído, já não se separa de sua finalidade
formativa de constituição de uma subjetividade eticamente orientada. Ou seja, tais
noções remetem àquilo que se tem compreendido como articulação íntima, e já não
separada, entre saber e ser. Essas tematizações nos levam a questões específicas do
modo humano de ser, da nossa condição hermenêutica de seres que existem e se for-
mam a partir da experiência da compreensão e das aprendizagens singularizantes.
Especificamente na aproximação para com Foucault veremos como as noções
herbartianas destacadas convergem com suas reflexões sobre o saber da espiritua-
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lidade, que traz ao sujeito uma espécie de retorno, de devolutiva ou “recompensa”,
resultando na transformação de seu modo de ser. Trata-se, aqui, das reflexões fei-
tas pelo filósofo francês durante os cursos dos anos de 1981 e 1982 no Collège de
France, publicadas na obra A hermenêutica do sujeito (2010). A noção de saber da
espiritualidade e sua relação com a dimensão formativa do cuidado de si e a pa-
raskheué (preparação ou instructio) tem tudo a ver, em nosso entender, com o sen-
tido de instrução formativa tal como proposto por Herbart. Assim, tanto Herbart
como Foucault nos levam a pensar como os saberes escolares podem se tornar pro-
fícuos e interessantes para o ser mesmo do sujeito, para a formação do seu ethos.
Assim, nosso primeiro movimento teórico será destinado à interpretação da no-
ção formativa e ética de instrução educativa e da multiplicidade do interesse como
finalidade da pedagogia e, também, como seu caminho (método), o que faremos,
basicamente, a partir, da obra Pedagogia geral (2003) de Herbart. Em seguida, tra-
remos alguns elementos acerca da nossa condição hermenêutica, que imaginamos
uma via teórica que nos permite pensar o lugar fundante do saber nos processos
de formação das subjetividades e de configuração do mundo humano comum. Essa
reflexão será o fio condutor para as aproximações que buscaremos estabelecer, na
sequência, de Herbart para com Foucault, acerca da dimensão formativa, ética e
interessante do conhecimento escolar. Com esse percurso buscaremos sustentar
o que entendemos ser uma dimensão formativa do saber escolar que permite a
ampliação dos horizontes interpretativos, culturais, éticos e estéticos dos sujeitos.
Esta é uma pesquisa bibliográfica que, sob inspiração e condução da herme-
nêutica filosófica, busca produzir uma compreensão acerca do fenômeno da forma-
ção humana através da interpretação da tradição de dois grandes pensadores do
humano e de sua constituição/formação.
A dimensão ética da pedagogia de Herbart: a instrução educativa e a
multiplicidade do interesse
Herbart desenvolve as noções de instrução educativa e de multiplicidade do
interesse em sua obra Pedagogia geral deduzida da finalidade da educação (2003),
publicada inicialmente no ano de 1806. Este escrito representa o esforço do peda-
gogo e filósofo em construir um caminho pedagógico com vistas a alcançar aquelas
que seriam as duas finalidades da pedagogia, a saber, a formação do sujeito dotado
de vontade moral (ou de um modo ético de existir) e multiplamente interessado.
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Esta segunda finalidade formativa era considerada pré-requisito para a consolida-
ção da primeira, por isso foi considerada um fim imediato atribuído ao processo de
instrução educativa.
A noção de instrução educativa merece uma atenção especial, pois se trata de
um novo paradigma do pensamento e da ação pedagógica inaugurado por Herbart,
baseado na sua experiência como preceptor e professor e numa reflexão filosófica
em que “a educação preocupa-se em formar e aprimorar o ser humano” e a “instru-
ção veicula uma representação do mundo, transmite conhecimentos novos, aperfei-
çoa aptidões pré-existentes e faz despontar capacidades” (HILGENHEGER, 2010,
p. 14, grifos do autor). Assim, o sucesso da educação depende de uma adequada
instrução, sendo esta condição para a educação e um potente elemento formativo.
Em Herbart a instrução educa, forma um modo de ser ético do indivíduo,
porque é assentada na multiplicidade do interesse. Multiplicidade que permite
ao sujeito escolher com maior liberdade como agir. No fundo, trata-se da possível
dependência da formação moral em relação à instrução, aos saberes, ou aos inte-
resses, como se refere Herbart. “Importante notar como a formação moral se liga
com as restantes partes da formação, ou seja, como ela pressupõe estas mesmas
como condições, e só com elas, pode ser criada com segurança” (HERBART, 2003,
p. 45). Disso deriva a Pedagogia Geral, conforme a qual esses outros elementos da
educação, dentre os quais o conhecimento, são condições para a moralidade. Perce-
bemos aí o vínculo potente entre saber e ser, entre conhecimento e ética, em acordo
com o sentido de instrução educativa de Herbart. “A ideia mestra da pedagogia de
Herbart é que o único fundamento de toda a educação é a instrução. Não existem
mais, portanto, duas educações distintas: uma educação intelectual e uma moral....
Instruir a mente é, julga ele, construí-la” (EBY, 1978, p. 414).
Herbart define o interesse como caminho pedagógico para a realização dos
objetivos da instrução educativa. Isso porque “o interesse cria as primeiras liga-
ções entre o sujeito e o objeto e determina, assim, o ‘horizonte’ do homem como
campo daquilo que ele percebe ou não do mundo” (HILGENHEGER, 2010, p. 20).
Desse modo, o interesse assume na pedagogia de Herbart um duplo movimento,
ou melhor, ocupa dois lugares: como objetivo formativo, expresso pela noção de
multiplicidade do interesse, e como meio pedagógico que possibilita alcançar esta
finalidade, isto é, o interesse como caminho pedagógico.
À instrução cabe a construção de interesses pela humanidade e pelo mundo. A
pluralidade desses interesses forja, por sua vez, uma multiplicidade de interesses
na alma dos sujeitos, o que lhes possibilita escolher com maior clareza como agir
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Instrução educativa e interesse múltiplo em Herbart: aproximações com a formação do sujeito ético em Foucault
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no mundo, tornando possível uma ação ética. Diferentemente dos ideais de educa-
ção difundidos em sua época – e também de um certo ideário pedagógico atual –,
Herbart propõe uma inversão do sentido de interesse, considerado até então como
motivação para o estudo. Defende, por isso, que os estudos é que devem servir para
fazer surgir o interesse para seu objeto, porque “os estudos só devem durar um cer-
to tempo, enquanto que o interesse deve subsistir durante toda a vida” (HERBART
apud HILGENHEGER, 2010, p. 24).
Vejamos, agora, de forma mais específica, como o conceito de multiplicidade
de interesse aparece na obra Pedagogia geral. Esse conceito aparece no momento
em que Herbart (2003, p. 47) considera os objetivos da educação, que se repartem
pelos objetivos do livre arbítrio do educando e pelos objetivos da moral. Com isso,
Herbart imagina que a educação deva oferecer ao educando as possibilidades para
este livre arbítrio, ou, em outras palavras, as condições para que, em sua vida
adulta, consiga se ocupar daquilo que for de sua vontade. Ele reconhece a necessi-
dade de a educação tratar da “múltipla receptividade”, que “só pode existir a partir
de múltiplas tentativas da própria aspiração” (2003, p. 48). Entendemos que aqui
Herbart se refere às possibilidades de se ocupar de algo, para o que a educação
deve se preocupar em oferecer um “quantum”, uma quantidade significativa de in-
teresses que permitam ao sujeito escolher com liberdade aquele ou aqueles que são
de sua vontade. Trata-se da formação de uma multiplicidade de forças espirituais,
designada pelo termo multiplicidade do interesse, e que deve ser formada harmo-
niosamente. Põem-se, assim, os “objetivos possíveis” da educação que o educando
possa, um dia, querer seguir numa maior ou menor extensão.
Herbart (2003) também aponta os “objetivos necessários” da educação, que é a
formação da moralidade. Para ele, a moralidade tem sua sede na vontade própria,
o que o leva a entender que a educação moral não tem que produzir uma exterio-
rização das ações, “mas sim a compreensão, juntamente com a respectiva vontade,
na alma do educando” (2003, p. 48). Diz ele que:
O objetivo da formação moral não pretende outra coisa senão que as ideias de justiça e bem,
em todo o seu rigor e pureza, se tornem os verdadeiros objetos da vontade, e que, de acordo
com elas, se determine o conteúdo íntimo e real do caráter, bem como o cerne profundo da
personalidade, relegando para último lugar qualquer outra arbitrariedade (2003, p. 50).
É de se destacar que Herbart considera a multiplicidade de interesses como
condição para a moralidade, como núcleo onde residem as possibilidades éticas da
existência. Cabe, por isso, à educação permitir o alargamento da multiplicidade
em cada sujeito. Isso leva Herbart a concluir e a afirmar que a moralidade – Her-
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bart também a chama de caráter moral – tem que ter raízes na multiplicidade,
derivando disso a primordialidade do ensino para sua pedagogia, bem como a de-
finição de um método pedagógico para alcançar tal objetivo formativo3. A partir de
tais exposições, Herbart elege as categorias de aprofundamento e reflexão como
procedimentos pedagógicos necessários para a construção dessa individualidade
multiplamente formada.
A atividade de aprofundamento cria condições para o surgimento do interesse.
E por interesse se entende a atividade espiritual que forja o horizonte – simbólico,
diríamos nós – do sujeito, seu gosto por este ou aquele assunto, por este ou aquele
modo de agir. O aprofundamento é, assim, o movimento de pausa, de meditação, de
entrega a algum assunto humano, de debruçar-se sobre algo. Herbart (2003, p. 63)
também o define como penetração, e compara o aprofundamento à experiência es-
tética, pois,
Assim como cada quadro necessita de luz própria, assim como os críticos do bom gosto
exigem de cada observador de uma obra de arte uma disposição própria – assim tudo o que
é digno de ser observado, pensado e sentido, exige um cuidado próprio para que se capte de
forma exata e integral, ou seja, para que se penetre no seu íntimo.
O autor ainda indica que quem alguma vez se entregou com amor a um objeto
da arte humana sabe o significado de aprofundamento, e vê nela, na pausa, no
debruçar-se sobre algo, a vantagem da formação. Com isso, percebemos a aposta
no conhecimento como algo interessante por si, como algo que merece atenção,
que é digno do nosso tempo, da nossa experiência. Assim, aprofundar-se em algo,
permitir-se penetrar por algum assunto que diz do nosso mundo, ou das relações
humanas, é uma espécie de cuidado que temos para conosco mesmos e um exer-
cício ético em relação à tradição que nos constitui. É como se, ao nos entregarmos
ao aprofundamento em algo, estivéssemos reconhecendo nossa dívida para com a
tradição, para com a cultura, ao mesmo passo que reconhecendo nosso direito em
compreender esse passado a partir do qual fomos forjados.
Herbart compreende que somos orientados moralmente pelo conjunto de in-
teresses que compõem o nosso círculo de pensamentos.4 Por isso, ressalta a impor-
tância de que a instrução educativa nunca perca de vista a necessidade de reunir
os múltiplos interesses construídos através do o ensino, para que a alma não fique
fragmentada e, por isso, dispersa. Trata-se de pensar em uma formação que não
restrinja os sujeitos ao universo dos desejos momentâneos, mas que amplie a sua
concepção de mundo e do outro, daí a necessidade de estar “fundida” em uma mul-
tiplicidade de interesses.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Instrução educativa e interesse múltiplo em Herbart: aproximações com a formação do sujeito ético em Foucault
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Ainda que as múltiplas orientações do interesse se devam dividir de forma tão variada quan-
to nos pareçam variados e múltiplos os seus objetos, todos se devem dispersar a partir de
um ponto. Ou então as múltiplas facetas devem representar os lados da mesma pessoa, tal
como as diversas superfícies de um corpo. O facto é que na pessoa todos os interesses têm de
pertencer a uma consciência e nunca devemos perder essa unidade (HERBART, 2003, p. 62).
Para o autor, essa unidade da pessoa é mantida através de um processo de re-
flexão em que os aprofundamentos se articulam. A partir da reflexão, esses interes-
ses podem relacionar-se com outros já existentes, formando um sujeito multipla-
mente interessado. Com isso, podemos entender as razões de os aprofundamentos
e a reflexão criarem o interesse, visto que este nasce justamente da possibilidade
criada pelos estudos, pelos aprofundamentos, pela atenção, pela reflexão, o que é
radicalmente diferente de algumas teorias do interesse que permeiam o ideário
pedagógico atual e que apostam que o interesse é algo que a criança já possui sobre
algum tema, algo quase que espontâneo ou, ainda, que é preciso muita inovação
pedagógica, muito “brilho” nas aulas, para que o interesse seja criado.
A multiplicidade do interesse é composta por dois grupos de interesses, a
saber, os “interesses do conhecimento” e os “interesses da simpatia” que, para
Herbart, são estados de espírito. A simpatia é justamente o interesse acerca das
relações, que compreende os interesses na humanidade, na sociedade, na relação
entre ambas e para com o ser supremo. Os interesses do conhecimento, por sua vez,
também são indispensáveis para a formação de individualidades multiplamente
interessadas, dotadas de senso crítico e de liberdade interior. Isso porque esses
interesses do conhecimento – quais sejam, da variedade, da sua regularidade e das
suas relações estéticas – permitem compreender a dinâmica em que percebemos e
representamos o mundo. Em outras palavras, trata-se de conhecer a estrutura do
conhecimento acerca das objetivações humanas, seja no que se refere aos fenôme-
nos da natureza, à constituição da matéria das coisas, aos conceitos, aos contrastes,
às interligações das ideias que estruturam o mundo, ou, então, no que se refere à
construção para si de um juízo estético das coisas humanas, o que requer um mer-
gulho ou um aprofundamento nos objetos do conhecimento.
Para Herbart, esses interesses do conhecimento e da simpatia são indispen-
sáveis para formar o bom cidadão, uma vez que, para o autor, os sujeitos precisam
também se ocupar com as dinâmicas da vida em sociedade, mesmo que o compro-
misso da instrução seja primeiramente a individualidade e suas possibilidades de
liberdade e de autoformação. Nesse sentido, Herbart condena o ensino que pretende
roubar a individualidade dos educandos pela inculcação de saberes funcionais, in-
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teresses restritos, conhecimentos meramente instrumentais, o que evidencia ainda
mais a importância e atualidade de sua obra para a temática da formação humana.
Em síntese, em Herbart percebemos uma aposta na instrução educativa como
caminho para a construção de um existir ético, algo que pode ser realizado mediante
a formação para a multiplicidade do interesse. A relação da multiplicidade do inte-
resse com a moralidade, ou seja, do ensino (instrução) com a finalidade da educação,
está no fato de que são os interesses que guiam a vontade do sujeito. Daí a impor-
tância de uma formação em interesses múltiplos, já que “só o que é suficientemente
forte e com uma interligação múltipla é que se apresenta frequentemente à alma
e o que mais se salienta é que conduz à ação” (HERBART, 2003, p. 25). Herbart
(2003, p. 81) acredita que o ensino consegue “penetrar mais fundo na oficina das
ideias” e que sua multiplicidade permite aos sujeitos escolher com maior liberdade
com que se ocupar. A respeito disso, Eby (1978, p. 412) pontua que “somente aquele
indivíduo que tenha a mais ampla ordem de experiências e interesses, que tenha
estudado a vida sob maior número de aspectos, pode fazer, com confiança, as me-
lhores escolhas”. Trata-se de uma aposta na educabilidade dos sujeitos, ou melhor,
na sua autoeducação mediante o alargamento do círculo de pensamentos, o que se
dá a partir da criação de múltiplos interesses possibilitados pela instrução (ensino).
Por fim, essa instrução que é educativa em Herbart permite o reconhecimento
da unidade entre ser e conhecer, no sentido de que aquilo que sei, aquilo que me in-
teressa, aqueles saberes que constituem o meu modo de pensar, impactam o modo
como existo e o modo como tomo minhas decisões. Esse é um ponto a ser destacado,
pois se relaciona com o sentido de saber da espiritualidade de Foucault, que será
abordado mais adiante.
O caráter formativo da instrução educativa de Herbart à luz da compreensão
hermenêutica da condição humana
Uma visualização mais evidente da potencialidade reflexiva e normativa da
noção de instrução educativa de Herbart – especialmente, do ensino como fun-
damento do interesse e desse como disposição do espírito capaz de orientar uma
existência ética – pensamos ser possível com base no reconhecimento do caráter
hermenêutico da condição humana. Isso porque entendemos que tal caráter nos
convoca a pensar sentidos para a formação humana e para os conhecimentos mo-
bilizados em espaços como a escola, sentidos esses que demandam compreensão, o
que é próprio dos seres de nossa espécie.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Instrução educativa e interesse múltiplo em Herbart: aproximações com a formação do sujeito ético em Foucault
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A hermenêutica (filosófica de Gadamer e da facticidade de Heidegger) enten-
de que a compreensão é a experiência do/de ser no mundo, do ser-aí, “é o modo
originário da vida humana mesma” (GADAMER, 2006, p. 40). Tudo o que sabe-
mos sobre o mundo é compreensão e tudo o que somos deriva dessa compreensão
que nós e os outros fizemos/fazemos de nós mesmos, pois “o compreender é o modo
de ser do ser-aí que o constitui como ‘saber-ser’ (savoir-être) e ‘possibilidade’”
(2006, p. 40). Esse é o peso ontológico que Heidegger atribui à compreensão, dirá
Gadamer. Com isso, pode-se entender por compreensão a experiência de compri-
mir/internalizar em si uma verdade – ou um discurso com pretensão de verdade.
Internalizar um entendimento a tal ponto que o sujeito consiga operar com ele,
pensar com/a partir dele, ao modo de uma construção/internalização que pos-
sibilite existir de um modo diferente, como um “saber-fazer”, um “poder”, uma
“capacidade para”, como indica Gadamer (2006, p. 41) ao pensar os sentidos do
verbo “compreender”. Gadamer (2006, p. 41) também entende que “quem ‘com-
preende’ um texto, para não dizer uma lei, não apenas se projeta, no esforço da
compreensão, em direção a um significado, mas adquire pela compreensão uma
nova liberdade de espírito”.
Dada essa nossa condição hermenêutica, estar no mundo já é sempre um “es-
tar compreendendo”, o que é possibilitado, por sua vez, por um “estar interpretan-
do”. A condição hermenêutica, por sua vez, se vincula à nossa condição de seres de
linguagem que, por sua vez, permite a interpretação e a compreensão, fazendo de
nós uma espécie simbólica. Nosso mundo enquanto realidade significada se torna
a base sob a qual realizamos nossas vidas. Acrescente-se a isso que nós só temos
mundo (humano) porque temos os signos (o simbólico) que operam ao modo de re-
des (de significados) que nos permitem alguma visão das coisas, já não uma visão
do que as coisas são em si, mas como elas se nos apresentam pela mediação desses
signos que criamos e compartilhamos uns com os outros.5 Disso resulta que o mun-
do não se nos dá, mas que nós o interpretamos em conformidade com o potencial de
nossa capacidade de significá-lo.
Para todos os efeitos, e conforme esse modo hermenêutico de pensar, nós hu-
manos inventamos um mundo não natural, um mundo constituído por signos da
cultura, da civilização, das sociedades e que necessitam ser aprendidos por cada
novo ser que aqui chega. Dessa forma, cada um de nós, para se tornar humano,
necessita da experiência de compreender esses signos que estruturam o mundo, ao
modo de um aprendizado que constitui determinada forma de ser sujeito através da
construção de significados acerca dessas “realidades” mundanas. Com isso, pode-se
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inferir que a compreensão alcança toda experiência humana de mundo – designada
pela noção de hermenêutica –, sobretudo se entendida em seu sentido ontológico.
Assume-se, com isso, o entendimento de que nosso modo de ser e compreender
a nós mesmos, o outro e o mundo é possibilitado por uma compreensão em senti-
do ontológico, por uma espécie de aprendizagem singularizante, indispensável a
nossa espécie pelo fato de termos estruturado um mundo simbolicamente. É um
sentido de aprendizagem que, de acordo com Mario Osorio Marques (1995, p. 10),
deve ser “entendida não como simples adaptação ao que existe, ou mero acréscimo
de conhecimentos e habilidades, mas posta na ótica de concreta configuração, re-
construção autotranscendente do ser do homem singularizado entre os homens”.
A aprendizagem singularizante pode ser pensada como uma espécie de disposição
humana, sem a qual o humano não se realiza. Uma compreensão, para todos os
efeitos, já não assentada em pressupostos metafísicos, como se o humano fosse
obra de alguma força sobrenatural, mas em que ele é percebido em meio às suas
possibilidades imanentes que se lhe colocam como ser de linguagem e que lhe fa-
culta ter um mundo. Assim, humano e mundo existem como realidade mental, ou
seja, existem por que estão inscritos em cada um de nós. Inscrição que se dá pela
aprendizagem. Recorrendo novamente a Marques (1995, p. 15), temos um humano
cuja existência:
[...] não é por inteiro dada ou fixa; ele a constrói a partir de uma imensa gama de possibi-
lidades em aberto. Nasce no seio de uma cultura viva, que só é tal à medida que assumida
como desafio de permanente reconstrução pela atribuição dos sentidos que imprime a seu
convívio em sociedade e na estruturação da própria personalidade.
Dentre as possibilidades de “existir” que a nossa condição humana nos faculta
temos a singularização, isto é, a possibilidade de nos tornarmos sujeitos median-
te automodelagem e pela criação de mundo, o que se dá a partir de um processo
disruptor em que o sujeito se torna capaz de sustentar eticamente e argumenta-
tivamente os seus desejos e as suas ações, em um movimento de autonomia, de
maioridade em relação a sua existência e sua relação com o outro e com o mundo.
Em uma linha de aproximações possíveis, em Herbart, os interesses possibi-
litados pelo ensino dão ao espírito novas disposições, ampliando o círculo de pen-
samentos e os horizontes compreensivos dos alunos. Conforme o autor, ainda, os
interesses permitem uma nova forma de se ocupar com o mundo, consigo, e, de-
pendendo do interesse que compõe essa nova ocupação, é possível que possibilitem
uma forma diferente de sentir e se relacionar com o outro – o que tem a ver com os
interesses do conhecimento e da simpatia. De alguma forma, isso que visualizamos
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Instrução educativa e interesse múltiplo em Herbart: aproximações com a formação do sujeito ético em Foucault
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como perspectiva comum entre a concepção de formação de Herbart e o modo como
ela é compreendida pela hermenêutica confere com o modo como Marques (1993,
p. 108) conceitua a educação, isto é, como “alargamento do horizonte cultural, rela-
cional e expressivo, na dinâmica das experiências vividas e na totalidade da apren-
dizagem da humanidade pelos homens”.
Também podemos ver aproximações da concepção herbartiana com o enten-
dimento acerca da formação expresso por José Sérgio Fonseca de Carvalho (2017,
p. 26-27), para quem uma experiência se torna formativa através de sua dimensão
afetiva, quando vivê-la transforma algo em nós e inaugura uma nova forma de nos re-
lacionarmos com o mundo. Ainda, o que se espera como resultado da formação é “uma
forma de se relacionar com o saber” (LEFORT apud CARVALHO, 2017, p. 27), sendo
que a relação com o saber é necessariamente uma forma de relação com o mundo,
com seus objetos culturais e com as relações que estabelecemos como humanos. Nessa
linha de aproximações indicadas, pode-se dizer que a formação precisa produzir uma
forma de ser, o que se dá mediante a compreensão do modo humano de ser que, por
sua vez, está expresso nos signos que construímos intersubjetivamente ao longo da
tradição histórica e cultural, o que também designamos por conhecimento/saber.
A instrução educativa e a constituição de um modo ético de ser: aproximações
entre Herbart e Foucault
Para nos ajudar a pensar a constituição da subjetividade e de um modo ético
de ser a partir do desenvolvimento de um interesse múltiplo pelos diferentes temas
que configuram o mundo humano – os conteúdos do ensino – recorremos a Fou-
cault, porque ele se ocupou em investigar as relações entre o sujeito e a verdade, ou
de como nos subjetivamos a partir da verdade/saber/conhecimento. É importante
justificar a plausibilidade do recurso ao pensamento de Foucault para pensar o sen-
tido ético da formação humana, e o fazemos com base no entendimento de que ele
se ocupou notoriamente em compreender de que modo nos tornamos o que somos,
realizando uma hermenêutica do sujeito. Os esforços desse autor em compreender
como nos subjetivamos e, em especial, os estudos dos últimos anos de sua vida
acerca da ética da existência – em que o cuidado de si aparece como possibilidade
de uma “ética do eu” – são indiscutivelmente relevantes para a educação, conside-
rando que o seu esforço consistiu em criar possibilidades para a (trans)formação da
subjetividade em subjetivação de si.
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A recuperação da noção de cuidado de si nos permite conceber o conhecimento
em sua dimensão espiritual, isto é, não em sentido puramente racional e instru-
mental, como meio para fins de poder e dominação sobre o mundo e sobre os outros,
mas como tendo um fim em si mesmo à medida que possibilita uma transformação
do sujeito sobre si ao buscá-lo. A compreensão de Pedro Angelo Pagni (2015, p. 24)
sintetiza muito bem a amplitude existencial e ética do cuidado de si na concepção
de Foucault, destacando que o cuidado de si se configura como uma atitude para
consigo, para com os outros e para com o mundo; como forma de olhar para si que
demanda atenção ao que se pensa; como práticas espirituais de meditação e exercí-
cios espirituais sobre si que nos purificam, transformam configuram.
A temática da formação humana aparece justamente no momento em que Fou-
cault (2010, p. 43) mostra como a questão do cuidado de si, no diálogo platônico
Alcibíades, relaciona-se com a noção de paideia. Para o autor, a paideia é uma outra
forma de cultura “que gira em torno do que se poderia chamar de cultura de si, for-
mação de si, selbstbildung, como diriam os alemães”. Jaeger (2013) nos permite com-
preender a paideia como uma concepção alargada de cultura e, por isso, de formação
humana, que orientava a totalidade das manifestações de vida do cidadão da polis.
Era um princípio formativo do homem grego da antiguidade que buscava formar “um
elevado tipo de homem” (JAEGER, 2013, p. 5). Com isso, a formação representava
o sentido de todo o esforço humano. Resguardadas as devidas proporções, podemos
dizer que Herbart também se relaciona com esse ideal formativo, pois, como neo-hu-
manista6, cultiva uma imagem ideal de humano virtuoso e capaz de autoformar-se.
A alusão aos gregos se torna pertinente uma vez que eles se dedicaram a pensar
as suas próprias existências, o que os fez acreditar na necessidade de a educação se
constituir em um processo de construção consciente. Assim, a formação adequada
do homem grego deveria estar centrada no conhecimento de si mesmo, sobre/para
o corpo e o espírito. Ou seja, ao tomar a si como objeto de conhecimento e formação,
a paideia representava o esforço de cuidar de si, para o que o conhecimento ou a
verdade eram indispensáveis como uma forma de transformar-se, de praticar-se.
Isso diz de um modo específico de os sujeitos daquele tempo se relacionarem
com a verdade, com o conhecimento, dado que na Antiguidade não estiveram se-
paradas as questões de como ter acesso à verdade e a prática da espiritualidade.
Foucault (2010, p. 17) indica que também em Sócrates e Platão essas esferas não
estiveram separadas: “a epiméleia heautoû (cuidado de si) designa precisamente o
conjunto das condições de espiritualidade, o conjunto das transformações de si que
constituem a condição necessária para que se possa ter acesso à verdade”. Ou seja,
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a verdade/conhecimento era constitutiva do modo de ser dos sujeitos, mas que foi
transformado/esquecido/desvalorizado pela modernidade, junto com a desvaloriza-
ção da noção de cuidado de si. Perdemos, com isso, o sentido ético do conhecimento,
sua constituição como verdade que forma o modo de ser do sujeito.7 Como efeito
dessa perda, aquilo que o sujeito sabe, aquilo que ele diz, e, infelizmente, aquilo
que muitas vezes ensina, não se constitui para ele como uma verdade capaz de
produzir coesão entre ser, pensar e agir.
Pelo fato de Herbart e Foucault terem essa raiz grega em comum, torna-se
possível interpretar algumas das noções herbartianas a partir da hermenêutica
do sujeito de Foucault.8 Em Herbart, por exemplo, pode-se perceber o esforço em
pensar uma instrução que possibilite ao sujeito criar interesses múltiplos ao modo
de uma autoformação, dispondo aos jovens múltiplas formas de aprofundamento,
de afetação, de ocupação para consigo, com o outro, com o mundo. É nítido o desejo
desse pedagogo em possibilitar uma instrução educativa em que os sujeitos possam
ir construindo, como uma espécie de dispositivo, um senso crítico sobre si mesmos
e uma unidade entre aquilo que compõe o universo do sujeito e seu modo de ação.
Há, portanto, uma dimensão espiritual no interesse que o ensino é capaz de criar,
capaz de operar como condutor de sua reflexão ética.
Foucault acena para a noção de instructio no momento em que pensa o ele-
mento formador presente na ideia de prática de si, uma das dimensões do cuidado
de si. Esse elemento formador da prática de si aparece de forma mais marcante no
período helenístico e romano (séculos I e II) como desejo de preparar os jovens para
enfrentarem as intempéries da vida. Uma preparação que não visa a dotar o indi-
víduo de saberes para que se torne um “técnico em algo”, ou um bom governante,
como era o caso retratado no diálogo Alcebíades, mas um sentido de preparação que
se vincula ao ser do sujeito.
Esse outro sentido de preparação que se liga à prática de si é de interesse
primordial se quisermos pensar uma formação que se queira ética, pois se trata
de montar um mecanismo de segurança, como alegou Foucault (2010), e não de
inculcar um saber técnico e profissional ligado a uma atividade específica. Essa ar-
madura protetora capaz de armar os sujeitos para se defenderem das dificuldades
impostas pela vida em sociedade, pelos acidentes ou acontecimentos que possam
ocorrer ou se produzir, era chamada pelos gregos de paraskheué, traduzido por
Sêneca pelo termo instructio (FOUCAULT, 2010, p. 86).
Com Herbart podemos pensar uma instrução-preparação de si que se dá pelo
estudo, pela atenção, com o que se cria interesse, ou melhor, a disposição para
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um espírito multiplamente interessado. Interesse que designa “o tipo de atividade
espiritual que a instrução deve produzir...pois ela não deve se contentar com o
simples saber” (HERBART, 1985, p. 51). Em Herbart, o saber/conhecimento não é
para a instrumentalização do sujeito para um fim isolado, nem para doutriná-lo em
crenças, mas algo que lhe possibilita mover-se no mundo de modo autônomo, livre,
capaz de vontade moral. Algo muito próximo ao que Foucault concebe como saber
da espiritualidade.
A noção de saber da espiritualidade compreende, nas palavras do próprio Fou-
cault (2010, p. 16), a “necessidade de que o sujeito se modifique, se transforme, se
desloque, torne-se, em certa medida e até certo ponto, outro que não ele mesmo
para ter o acesso à verdade. A verdade só é dada ao sujeito a um preço que põe em
jogo o ser mesmo do sujeito”. Disso deriva que não pode haver verdade sem uma
espécie de conversão, sem uma espécie de retorno da verdade sobre o sujeito. E o
trabalho do sujeito sobre si mesmo é um dos movimentos que permite tal acesso
à verdade, um trabalho de transformação de si, de cuidado de si sobre si mesmo,
portanto, uma experiência ética de si.
A questão da verdade do sujeito exige uma relação do sujeito para consigo mesmo, a qual
implica, por sua vez, um tipo de “conversão a si” que não pode ser pensada nos moldes da
constituição do si mesmo como objeto do conhecimento, mas sim como modalização espiri-
tual do saber” (DALBOSCO, 2010, p. 199).
Conceber o conhecimento como modalização espiritual remete ao fato de que
possuímos uma condição humana hermenêutica, de que nossas subjetividades são
forjadas por compreensões próprias e necessárias aos sujeitos que vivem nesse mun-
do estruturado/criado por saberes, por crenças, por verdades. A tematização sobre a
nossa subjetivação pelo saber, pela verdade, como compreende Foucault, é próxima,
ressalvadas as particularidades, daquilo que Herbart imaginou como tarefa forma-
tiva da instrução. Algo que se torna evidente ao querer fundamentar o interesse dos
sujeitos pelo mundo e pelo humano através do ensino. Herbart entende que o ensino
opera no sujeito, age sobre seu modo de ser, porque, tal como Foucault, concebe a
dimensão formativa, transformadora e ética da verdade sobre o sujeito. E vai além.
Herbart ousa defender a potencialidade da instrução de criar interesses múltiplos,
capazes, por sua vez, de guiar o modo de decisão e ação dos sujeitos, ou seja, capazes
de formar um modo de ser ético. Assim, podemos dizer que a instrução ao modo de
uma preparação em Herbart é uma espécie de trabalho do sujeito sobre si mesmo. O
tempo dedicado ao aprofundamento, ao estudo, traz ao sujeito um novo modo de com-
preensão que, na perspectiva de Gadamer (2006), aparece como uma nova forma de
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o sujeito se ocupar, como uma nova liberdade. Este retorno da instrução-preparação-
-do estudo é, poderíamos dizer, uma experiência de cuidado de si. Tal é a dimensão
ética e formativa possibilitada pelo saber/conhecimento.
Esse tempo de preparação/cuidado de si poderia ser capaz de preservar algu-
mas dimensões do mundo que acreditamos serem necessárias de preservação, como
as conquistas civilizatórias. Isso porque “as conquistas civilizatórias só se mantêm
ou conseguem ser aprimoradas se forem objeto de aprendizagem e de cultivo por
parte das novas gerações” (BOUFLEUER, 2019, p. 6). Ou, ainda, se puderem se
tornar objeto de interesse para as novas gerações. Para Herbart (2003, p. 25), vale
repetir, tudo o que a nós alguma vez se apresentou como interessante continuará
ocupando lugar em nossa mente, mas somente aquilo que é “suficientemente forte
e com uma interligação múltipla é que se apresenta frequentemente à alma e o que
mais se salienta é que conduz à ação”.
O verdadeiro âmago da nossa existência intelectual não pode ser formado com êxito seguro
através da experiência e do convívio. Certamente que o ensino penetra mais fundo na ofici-
na das ideias. Pense-se no poder de todas as doutrinas religiosas! Pense-se no domínio que
exerce tão facilmente e quase subitamente sobre um ouvinte atento uma palestra filosófica!
Junte-se a força fértil da leitura de romances, porque tudo isso faz parte do ensino, seja ele
bom ou mau (HERBART, 2003, p. 81).
Disso deriva que o ensino/instrução/preparação é o meio pelo qual a educação,
ou a formação integral do humano, pode ser possível. Isso implica reconhecer a
dimensão formativa do conhecimento, ou, ainda, o fato de que nos humanizamos
através de processos de compreensão. Para Hilgenheger (2010, p. 19), a instrução
de Herbart:
[...] visa, antes de tudo, a fazer convenientemente “compreender” o mundo e os homens.
Esta “compreensão do mundo” guiada pelo ensino, no entanto, não serve apenas à trans-
missão de conhecimentos e à formação de aptidões e qualificações; ela está, prioritariamen-
te, a serviço da “tomada de consciência moral” e do “reforço do caráter”. Pela instrução se
exerce uma influência na formação do caráter.
Isso nos leva a interpretar a instrução educativa como processo de compreen-
são e, por isso, de apropriação de si e do mundo. De si, porque Herbart está de-
masiadamente preocupado com a autoformação da individualidade, com a possi-
bilidade de os sujeitos tomarem a si como ponto de reflexão e ação, de guiarem
autonomamente e eticamente seus pensamentos e suas ações. E do mundo, porque
o caráter ético da instrução educativa, ou melhor, o fato de a formação da morali-
dade ser um objetivo necessário a ser alcançado pela instrução educativa já indica
o reconhecimento de que, como humanos, precisamos encontrar modos razoáveis,
1012 ESPAÇO PEDAGÓGICO
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justos, solidários, éticos, que guiem o modo como compartilhamos o mundo. Isso
significa que a compreensão do mundo é um pré-requisito para a formação do “ser
ético”, porque é com base no que sabemos, acreditamos e sentimos que tomamos
nossas decisões e agimos. Enfim, “[...] as ideias se transformam em emoções que,
por sua vez, se transformam em princípios e modos de agir” (HERBART apud HIL-
GENHEGER, 2010, p. 19).
Considerações nais
O navio, cuja construção está feita com toda a arte para ceder às ondas e ao vento, espera
pelo piloto para lhe indicar o seu destino e conduzir o seu curso de acordo com as circuns-
tâncias (HERBART, 2003, p. 75).
De tudo o que aqui apresentamos, destaca-se o entendimento de que a dimen-
são formativa do saber deriva do fato de ele ser um dos fundamentos da subjeti-
vidade. Isso se articula com o reconhecimento de nossa condição hermenêutica,
de seres que “se fazem” através da experiência da compreensão, maculada pela
história e pelas relações humanas. Ou seja, aquilo que somos é, em boa medida, o
que sabemos sobre nós, sobre o outro, sobre o mundo.
Isso nos leva a compreender que, dada a nossa condição humana aberta, sem
sentidos naturalmente postos sobre como viver, somos compelidos a eleger ideais
que nos guiem na permanente reconstrução do mundo comum e de nossas subje-
tividades. A educação representa nossos esforços em continuar alimentando um
ideal de mundo e de humanidade. Resta sabermos se queremos que esses ideais
sejam éticos, assentados na liberdade dos sujeitos de construírem autonomamente
o ser que desejam para si, ou se queremos apenas conformar as novas gerações à
realidade que já está posta. E se a nossa resposta for em direção à primeira opção,
não restam dúvidas de que há muito a ser aprendido com a tradição grega, com a
tradição moderna da Aufklärung que se expressa em Herbart (2003), com os estu-
dos de Foucault (2010), e de outros tantos que se importaram com a ética da vida,
com as subjetividades e, por isso, com o mundo.
Com Herbart aprendemos que somos orientados/movidos/interessados e agi-
mos a partir do nosso círculo de pensamentos, ou do nosso horizonte de pensamen-
to, forjados pela experiência de sermos sujeitos no mundo, pelas aprendizagens
acerca desse mundo e das relações humanas nele estabelecidas. Aquilo que nos
interessa, que ocupa nosso espírito de forma mais significativa, é o que estará pre-
sente de forma mais constante no nosso pensamento, e por isso irá impactar no
1013
ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Instrução educativa e interesse múltiplo em Herbart: aproximações com a formação do sujeito ético em Foucault
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modo como decidimos agir. Dito de modo bastante simples, os saberes que mais
nos interessam irão se sobressair no momento em que somos convocados a decidir
sobre algo. Tal é a importância da instrução educativa de Herbart e daquilo que
é sua finalidade prática mais urgente, que é a multiplicidade do interesse, pois o
sujeito que foi instruído e educado com base na multiplicidade do interesse dispõe
de maior liberdade interior. Por isso a noção de multiplicidade do interesse de Her-
bart carrega o sentido ético de sua pedagogia, porque é uma noção espiritual, que
se liga à aposta no conhecimento como caminho para a formação do sujeito dotado
de vontade moral: um interesse que mobiliza no sujeito uma conduta ética. Ao
recuperar em Foucault as noções do cuidado de si, das práticas de si, da espiritua-
lidade como caminho para a transformação de si pela verdade, encontramos modos
de existir que inspiram a pensar os objetivos da formação humana. Afinal, só nos
dedicamos a essa tarefa porque acreditamos que não há um instinto que determi-
ne, pelo menos de todo, como devemos ser, sentir, agir. Logo, é preciso trabalhar
com ideias humanas sobre como formar humanos em humanos. E essas ideias não
nascem espontaneamente, tal qual toda e qualquer teorização acerca da educação.
Elas nascem da tradição histórica, cultural e social que nos constitui. Por essas
razões é que o esforço de Foucault em recuperar os movimentos desse modo de
vida – que marca o cuidado de si – é tão importante para quem pensa a formação.
Importante porque os sentidos formativos inerentes ao cuidado de si nos levam ao
reconhecimento do caráter de modalização espiritual que as compreensões acer-
ca das objetividades do mundo (ou das pretensões de verdades) nos possibilitam.
Compreensões que podem se materializar nos saberes/conhecimentos escolares e
criar condições para a formação ética das novas gerações, principalmente se sus-
tentadas pelos objetivos formativos da instrução educativa de Herbart, balizadas
pela multiplicidade do interesse.
Notas
1 Herbart nasceu na cidade de Oldenburg, situada ao norte da Alemanha, em 4 de maio de 1776, e morreu
em 11 de agosto de 1841em Göttingen. Aos 16 anos iniciou seus estudos acerca da moral kantiana, uma
inquietude que o seguiu durante toda a sua vida. De 1794 até 1797, foi aluno de Fichte, na Universidade
de Iena. Atuou como preceptor de uma família da Suíça durante dois anos, experiência que o levou a dedi-
car-se ao estudo da pedagogia. Nesse período contou com a influência de Pestalozzi, de quem também foi
amigo. Foi professor nas universidades de Göttingen e de Königsberg, onde sucedeu a Kant. Dedicou-se à
experimentação pedagógica criando, com a ajuda de Humboldt, um seminário pedagógico para a formação
de professores do ensino secundário, bem como uma escola modelo.
2 O caráter formativo da instrução educativa insere Herbart na tradição alemã da Bilgung, como indicam
Vilanou, Farrero e Arada (2018). Os mesmos autores também destacam que Herbart é conhecido por fun-
1014 ESPAÇO PEDAGÓGICO
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damentar a pedagogia como ciência e por dedicar-se a pensar a formação da individualidade, propondo
uma solução estética para o problema da moral, “uma espécie de estética da sensibilidade estimativa que
nos faz aceitar ou rejeitar uma determinada ação moral” (2018, p. 226, tradução nossa).
3 Quanto ao método, Hilgenheger (2010, p. 20) explica que: “Herbart resolveu o problema do método peda-
gógico baseando-se em sua doutrina psicológica do ‘Interesse’. [...]. Ao contrário do desejo, que pode ser
aumentado pelo interesse, o interesse não dispõe ainda de seus objetos. Herbart define a estrutura ideal
do interesse pelo termo ‘multiplicidade’. O interesse se forma assim que o sujeito apreende uma ‘multipli-
cidade’ de objetos ‘em profundidade’ e liga os traços que estes aprofundamentos deixaram em sua memória
por meio de uma ’rememoração global’”.
4 Conforme Odair Neitzel (2019, p.21), o círculo de pensamentos é base da fortaleza do caráter ético.
5 Como já vimos anteriormente, para Herbart, na interpretação de Hilgenheger, é o interesse que estabelece
as primeiras ligações entre o sujeito e o objeto, determinando o horizonte no qual ele é capaz de perceber
ou não o mundo. Se para a hermenêutica o processo de significação equivale a trazer algo para o mundo
ou ampliar o mundo do sujeito, a ampliação do interesse, em Herbart, opera da mesma forma, permitindo
perceber ou não algo no mundo.
6 Conforme Thomas Ransom Giles (1983, p. 80-81, os neo-humanistas: “Admiram a Grécia e Roma antigas,
mas apenas como modelos que deverão servir para a criação de um novo ímpeto cultural, incorporando-o
aos novos quadros criados pelos avanços nas Ciências Naturais, bem como pelas contribuições do Iluminis-
mo. Em termos do processo educativo, tratava-se de criar o grego moderno”).
7 Com Dalbosco (2010) percebemos que essa separação entre o que poderíamos chamar de “ser e saber”
aparece de modo mais acentuado a partir daquilo que Foucault denomina de “momento cartesiano” da
filosofia, iniciado no século XVII, e que desqualifica a noção de cuidado de si ao transformar o acesso à ver-
dade na única questão importante do conhecimento. “Ao fazer isso, ela [a filosofia] considerou como insig-
nificante a questão das modificações sobre si mesmo que o sujeito deveria fazer para ter acesso à verdade”
(2010, p. 197). “O que Foucault reclama, contra o momento cartesiano, é que o problema da verdade não se
coloca só no âmbito da representação mental que o sujeito faz daquilo que está a sua volta. Tal problema
é algo mais abrangente, uma vez que, além da questão do domínio representacional de objetos, tem a ver,
também, com um tipo de saber voltado à pergunta ‘como fazer para viver como se deve?’” (2010, p. 197).
Trata-se aqui da recorrência ao sentido ético do conhecimento, sentido que se perdeu especialmente a par-
tir de uma filosofia da consciência que passou a tomar o conhecimento como algo diante do qual o sujeito
se encontra, algo que o sujeito domina e manipula com vistas a objetivos que venha a se colocar.
8 Odair Neitzel (2019, p. 77ss) entende que, possivelmente também inspirado na mesma noção latina de
instructio, recuperada por Foucault, Herbart formula a ideia de que não há educação sem instrução, nem
instrução sem educação, acenando para uma formação que reconhece a necessidade de preparar os jovens
para o mundo, não como prescrição metódica e doutrina absoluta, mas como condição de possibilidade
para que consigam tomar as suas vidas nas próprias mãos, para que consigam construir para si uma vida
afetada pelas relações humanas e com o mundo.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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A pedagogia herbartiana e a sua inserção no cenário brasileiro:
uma leitura histórica
Herbatian pedagogy and its insertion in the Brazilian scenery: a historical reading
La pedagogía herbartiana y su inserción en el escenario brasileño: una lectura histórica
Geise Kelly Alves de Morais*
Aparecida Favoreto**
Resumo
Na historiograa educacional brasileira, não há unidade na análise sobre a pedagogia herbartiana. Nesse senti-
do, na primeira parte deste artigo, apresenta-se como ela foi sendo referenciada de forma controversa no Brasil,
sendo ora citada como um modelo que deveria ser incorporado ao ensino, ora como exemplo de uma pedago-
gia conservadora e de um psicologismo e didatismo não recomendáveis. Diante desse impasse e observando
a complexidade do debate presente nas obras de Herbart, na segunda parte deste artigo, em uma perspectiva
histórica e dialética, procura-se analisar os fundamentos dos princípios pedagógicos herbartianos. No geral, bus-
ca-se expor o caráter histórico do debate pedagógico e, nesse sentido, destaca-se que a obra de Herbart é um
documento extraordinário para pensar a pedagogia, o qual, lido para além de sua margem, é um testemunho de
como a pedagogia representa uma tomada de posição perante o processo histórico.
Palavras-chave: historiograa educacional brasileira; pedagogia de Herbart; instrução educativa.
Abstract
In Brazilian educational historiography there is no unity in the analysis of Herbartian pedagogy. In this sense,
the rst part of this article presents how it was controversially referenced in Brazil, being sometimes cited as a
model that should be incorporated into teaching, sometimes as an example of a conservative pedagogy and a
psychologism and didacticism not recommendable. Faced with this impasse and observing the complexity of
the debate present in Herbart’s works, the second part of this article, from a historical and dialectical perspective,
seeks to analyze the foundations of Herbart’s pedagogical principles. In general, it seeks to expose the historical
character of the pedagogical debate and, in this sense, it is highlighted that Herbarts work is an extraordinary
document for thinking about pedagogy, which, read beyond its margin, is a testimony of how the Pedagogy
represents taking a stand in the face of the historical process.
Keywords: Brazilian educational historiography; Herbart pedagogy; educational instruction.
* Mestra em Educação pela Unioeste. Especialista em Neuropedagogia pela Univale. Graduada em Pedagogia pela
Unioeste. Membro do Grupo de Pesquisa História e Historiograa na Educação da Unioeste, campus de Cascavel, PR.
Orcid: http://orcid.org/0000-0002-4708-0015. E-mail: geise.morais@yahoo.com.br
** Doutora em Educação pela UFPR. Mestre em Educação pela UEM. Graduada em História pela UEM. Docente Associa-
da e Pesquisadora do Mestrado e do Doutorado em Educação e do Colegiado de Pedagogia da Universidade Estadual
do Oeste do Paraná. Membro do Grupo de Pesquisa História e Historiograa na Educação da Unioeste, campus de
Cascavel, PR. Orcid: http://orcid.org/0000-0003-3883-5604. E-mail: cidafavoreto20@gmail.com
Recebido em: 22/02/2021 – Aprovado em: 26/11/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i3.12213
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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A pedagogia herbartiana e a sua inserção no cenário brasileiro: uma leitura histórica
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Resumen
En la historiografía educativa brasileña no hay unidad en el análisis de la pedagogía herbartiana. En este sentido,
la primera parte de este artículo presenta cómo fue referenciado polémicamente en Brasil, siendo citado a veces
como un modelo que debe incorporarse a la enseñanza, a veces como ejemplo de una pedagogía conservadora
y un psicologismo y didactismo no recomendable. Ante este impasse y observando la complejidad del debate
presente en las obras de Herbart, la segunda parte de este artículo, desde una perspectiva histórica y dialéctica,
busca analizar los fundamentos de los principios pedagógicos de Herbart. En general, se busca exponer el carác-
ter histórico del debate pedagógico y, en este sentido, se destaca que la obra de Herbart es un documento ex-
traordinario para pensar la pedagogía, que, leído más allá de su margen, es un testimonio de cómo la Pedagogía
representa posicionarse frente al proceso histórico.
Palabras clave: historiografía educativa brasileña; pedagogía de Herbart; instrucción educativa.
Introdução
A historiografia educacional brasileira, principalmente a direcionada à for-
mação inicial de professores, comumente costuma chamar a atenção para alguns
teóricos, situando-os em uma ou em outra tendência pedagógica. Se, por um lado,
isso possibilita que os estudantes se familiarizem com o debate pedagógico, por ou-
tro, conforme o lugar em que são situados, alguns teóricos são postos na berlinda,
desmotivando um estudo mais aprofundado sobre seus escritos.
Nesse sentido, cita-se Johann Friedrich Herbart (1776-1841)1, que, situado
como representante da Pedagogia Tradicional2, não tem atraído muitos estudos no
Brasil, ficando mais conhecido pelos quadros comparativos dos passos pedagógicos,
do que por suas produções. Desse modo, apesar de ser um teórico reconhecido e ci-
tado com frequência, “sempre foi lido de modo recortado, picotado [...], e por muitas
vezes, de modo parcial e equivocado” (NEITZEL, 2018, 15).
A exemplo da historiografia educacional brasileira, como veremos a seguir,
poucas vezes é diretamente citado e, quando mencionado, são observadas algumas
análises controversas. Enquanto alguns estudiosos apontam que sua pedagogia
poderia contribuir para com a educação e a sociedade3, outros afirmam ser defensor
de uma educação autoritária e de um psicologismo e didatismo não recomendáveis4.
Diante deste impasse e considerando a riqueza teórica de Herbart, na primei-
ra parte deste artigo, apresentamos como se dá a sua inserção no Brasil, em segui-
da são exibidas as linhas fundamentais de sua Instrução Educativa5. Entretanto,
longe de pretender classificar Herbart e/ou refutar ou defender seus intérpretes,
objetivamos refletir sobre o caráter histórico do debate pedagógico.
Para isto, numa perspectiva histórica e dialética, com base em alguns intér-
pretes do pensamento herbartiano no Brasil, busca-se apontar como a sua teoria
1018 ESPAÇO PEDAGÓGICO
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v. 28, n. 3, Passo Fundo, p. 1016-1035, maio/ago. 2021 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
foi adquirindo significados diferentes no decorrer do processo de constituição do
sistema educacional brasileiro. No mesmo sentido, com base nos escritos de Her-
bart e de outros estudiosos do seu pensamento, buscou-se analisar sua concepção
de Instrução. Porém, não de forma isolada, mas como uma perspectiva educacional
defendida frente aos embates sociais de uma Alemanha que transitava de um regi-
me feudal para a constituição do capitalismo.
Assim sendo, as questões aqui denominadas como sendo de Herbart e/ou de
seus intérpretes, mais do que questões de ordem individuais, normativas e/ou téc-
nicas, são vistas como tomadas de posições perante as necessidades e diversidades
do processo histórico. Para a educação, esta análise visa contribuir com a formação
de professores, visto que busca ampliar a visão sobre os debates pedagógicos.
A inserção de Herbart no debate educacional brasileiro
No final do século XIX, o Brasil passou por mudanças de grande impacto na
vida social, principalmente com a abolição dos escravizados (1888) e com a procla-
mação da I República (1889). No processo, para além da necessidade de reorgani-
zação política e econômica, em termos culturais, duas necessidades eram urgentes:
encontrar novas forças de trabalho e construir o sentimento nacional. Em ambos
os casos, a escola popular passa a ser apontada como um importante apoio na pos-
sibilidade de solução de tais necessidades, na mesma medida em que cresceram as
críticas quanto ao descaso dos governantes brasileiros com a causa educacional6.
Na urgência de buscar nova mão de obra, enquanto o Brasil não atraía imi-
grantes suficientes para o trabalho nas lavouras de café, a exemplo de Bastos
(1996, p. 273), o pensamento era “escola para todos, para o filho do negro, para o
próprio negro adulto, eis tudo! Emancipar e instruir são duas operações intima-
mente ligadas”.
A falta de instrução do povo também foi vista como uma barreira ao processo
de consolidação da nova nação7. Aproximando-se do final do século XIX, a escola
passou a ser “concebida como a instituição responsável pela formação do sentimen-
to de cidadania necessário para colocar o país rumo ao progresso e à consolidação
da democracia, nos moldes dos países civilizados” (MORMUL; MACHADO, 2011,
p. 264). Conforme Favoreto (1998, p. 4), naquele contexto, o sistema capitalista
passou “a impulsionar com mais força a produção brasileira, exigindo uma nova ci-
vilização, mais integrada ao ritmo e ao modo de produção capitalista”, o que impul-
sionou o debate sobre a necessidade de construir um sistema nacional de educação
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pública. Entretanto, se os debates se intensificaram na defesa da escola pública,
por outro lado, tal como destaca Xavier (1990), o ensino permaneceu enciclopédico
e acessível apenas a uma elite.
No final do século XIX, Rui Barbosa (1849-1923), preocupado com os rumos do
Brasil e imbuído da ideia de que a educação escolar poderia contribuir para o de-
senvolvimento do país, produziu um amplo material de análise e de projeção para
a educação brasileira. Nesse sentido, nos seus Pareceres (1882) e Annais Parlamen-
tares (1883)8, pontuou que no Brasil, além da carência de escolas e de um sistema
nacional de educação, o ensino realizado estava no limite do possível de uma nação
que se presumia livre e civilizada, pois o número de analfabetos era grande e os
poucos que tinham acesso à escola, recebiam um ensino longe do nível científico
necessário. Para ele, o ensino brasileiro, antes de “usar um método de ensinar; é
pelo contrário, o método de inabilitar para aprender” (BARBOSA, 1946, p. 33, v. X,
tomo II). Assim sendo, ainda afirmou:
Desacostumam-se, porém, de pensar, ao ponto de não discernirem, nas expressões mais
frequentes e comezinhas no uso diário das lições, o nexo que as prende aos fatos e às coisas
mais triviais e ordinárias da vida. ‘Lembro-me’, diz um grande escritor americano [Henry
George], ‘de uma menina, perfeitamente desenvolvida no estudo escolar da geografia e as-
tronomia, que ficou espantada um dia, ao saber que chão do pátio da casa de sua mãe fazia
realmente parte da superfície da terra’ (BARBOSA, 1946, p. 44, v. X, tomo II).
Esse intelectual, fundamentado nas experiências e reflexões acerca da ins-
trução que estava ocorrendo em diversos países das Américas e da Europa, buscou
analisar a situação do ensino brasileiro da época e, com base em dados e números
defendeu a necessidade de o Estado investir na oferta e na organização da educa-
ção popular.
No que se refere à pedagogia, Barbosa (1946), citando filósofos e pedagogos,
tais como Johann Fichte, Friedrich Fröbel, Johann Heinrich Pestalozzi, Herbart
Spencer, John Stuart Mill, Thomas Henry Huxley, entre muitos outros, fundamen-
tou a necessidade de reformas no ensino, inclusive como forma de elevação moral.
Nesse aspecto, baseando-se nos princípios da chamada “pedagogia contemporânea”
e/ou “método intuitivo” e as “Lições de coisas9, defendeu que deveria haver “a uni-
dade e a harmonia entre todos os conhecimentos”, bem como a “ordem a disciplina”
em todos os níveis e matérias (BARBOSA, 1946, p. 369-370, v. X, tomo II), o que,
em termos filosóficos, aproximava-se dos princípios herbartianos. Conforme expli-
cam Santos e Alves (2019, p. 282):
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[...] partir da intuição das coisas, do concreto para o abstrato do simples ao complexo, tor-
nou o método intuitivo proposto inicialmente por Pestalozzi e seguido por Herbart, uma
das metodologias mais importantes presentes nas reformas educacionais de vários países,
colocando no centro do problema pedagógico o papel do professor, do educando e da instru-
ção em sua totalidade.
No processo histórico brasileiro, a demanda por escola foi ampliada com a
chegada dos imigrantes, visto que esse anseio já fazia parte de sua cultura, além
de que era preciso avançar na construção do sentimento nacional. Nas primeiras
décadas do século XX, semelhante ao que ocorria em alguns países da América e
da Europa10, o Brasil vivia um momento de reorganização política e econômica,
influenciando o debate educacional11. Segundo Favoreto (2015, p. 76),
Naquele período, o debate educacional brasileiro se intensificou, e assim, cresceram as
defesas de formação geral e técnica, condizentes com o desenvolvimento da industrialização
e da democracia. Defendia-se também, a construção de uma política nacional de educação,
a qual, além de integrar todas as regiões em um único sistema de ensino, possibilitasse
a efetivação da educação pública e gratuita. Desse debate, vários setores da sociedade se
posicionaram. Aliás, tal período foi marcado por reformas educacionais realizadas em al-
guns Estados da União, um processo que ganhou maior vigor com a criação da Associação
Brasileira de Educação (ABE) em 1924, a qual promoveu diversas Conferências Nacionais
de Educação, que registraram importantes contribuições sobre o debate escolar e políticas
educacionais.
Nesse processo, Lourenço Filho (1897-1970), estudioso do pensamento peda-
gógico de Rui Barbosa, aproximou-se de algumas de suas perspectivas educacio-
nais. No caso, de forma semelhante, em 1929, em sua obra Introdução ao estudo da
escola nova, Lourenço Filho (1978) afirmou que a educação poderia ser promotora
da civilidade, da construção do sentimento nacional e da organização da sociedade,
ao passo em que aprofundou algumas reflexões sobre a psicologia infantil. Nisso,
Lourenço Filho (1978) apoiou-se nas discussões de Herbart e apontou a necessida-
de da psicologia na educação infantil.
José Eustáquio Romão, na introdução da obra de Hilgenheger (2010, p. 36), ao
discorrer sobre o pensamento de Herbart no Brasil, afirma que Lourenço Filho refe-
riu-se a “Herbart como ‘um grande sistematizador’ da obra de Fröbel e Pestalozzi”.
Também destaca que Lourenço Filho foi um importante divulgador do conceito de
Instrução Educativa e dos chamados passos formais. Nesse sentido, Romão (2010),
transcrevendo uma parte da obra em que Lourenço Filho cita Speyer, o apresenta
como um divulgador dos passos pedagógicos de Herbart:
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Seriam eles: o de clareza da apresentação dos elementos sensíveis de cada assunto; o de
associação; o de sistematização e. por fim, o de aplicação. No primeiro, o principal cuidado
deveria ser o de fundar o trabalho na intuição do discípulo, levado a ver, ouvir, sentir direta-
mente as realidades de seu ambiente. No segundo, o de relacionar as noções assim obtidas
com as que porventura já existissem em sua mente, desenvolvendo-lhe a capacidade a que
Herbart deu o nome de apercepção. No terceiro, dever-se-ia levar o aluno das imagens iso-
ladas à organização de conceitos, por generalização crescente. Notando por si semelhanças
e diferenças, lograria ele atingir os princípios gerais, regras, leis e definições. Por fim, seria
necessário aplicar tais conhecimentos a situações práticas. As regras de linguagem de arit-
mética ou outra disciplina qualquer, bem como as normas de boa conduta seriam ensaiadas
em casos concretos (LOURENÇO FILHO, 2002, p. 229-230 apud ROMÃO, 2010, p. 37).
Concordando com o pensamento de Herbart, Lourenço Filho (1978, p. 200)
compreendia que o espaço escolar poderia contribuir para “[...] controlar os impul-
sos da ação e, mais que isso, a das intenções, propósitos ou fins da ação, segundo
os quais a experiência individual e social logra a organização”. Ainda seguindo os
pressupostos pedagógicos herbartianos, Lourenço Filho defendeu que o ensino de-
veria se constituir pautado no interesse da criança, bem como deveria se fazer com-
preendendo as seguintes etapas: observação, associação e expressão, com destaque
aos exercícios de observação. Nesse aspecto, destacou também que a observação se-
ria a raiz daquilo que ele conhecia como Ensino Intuitivo. Assim, o autor esclarece:
Os exercícios de observação são para mim o meio de pôr em movimento as demais ativida-
des mentais; formam a base racional de todos os exercícios. Compreende tudo que tenho por
fim pôr diretamente a criança em contato com os objetos, os seres, os fenômenos, os acon-
tecimentos. As lições chamadas de coisas são as que mais se aproximam desses exercícios.
Contudo, preferimos o termo observação, porque mais significativo da operação mental que
desejamos favorecer. (LOURENÇO FILHO, 1978, p. 193).
Entretanto, com o desenvolvimento do debate escolanovista, tal como ficou
conhecido no Brasil, as discussões educacionais de Herbart foram sendo substituí-
das, principalmente pelos princípios pedagógicos de Dewey (1859-1952), o qual se
posicionou criticamente contra a chamada Escola Tradicional.
Segundo Neitzel (2018), Dewey, antes de opor-se a Herbart, em dado momento
teve proximidade com o seu pensamento, tanto que reconheceu alguns de seus
méritos. Como exemplo, cita a negação da existência das faculdades inatas, a in-
serção da Psicologia no processo educativo e, principalmente, o mérito de Herbart
ter inovado o processo de ensino, tornando-o algo consciente e planejado, frente aos
métodos do treino, baseados no acaso.
Contudo, Gomes (2003) adverte que o formalismo e a rigidez da pedagogia
herbartiana foram alguns dos motivos que atraíram críticas. Nesse sentido, escre-
ve que “esse formalismo e essa rigidez explicam, ao menos em parte, os ataques
1022 ESPAÇO PEDAGÓGICO
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que lhe dirigiam um John Dewey – que, aliás, durante algum tempo, pertenceu a
grupos herbartianos” (GOMES, 2003, p. XXV). De fato, apesar de Dewey (1979) ter
reconhecido os méritos da pedagogia herbartiana, ele destacou alguns problemas.
Assim, ao discorrer sobre a educação conservadora e a progressista, apontou que a
pedagogia herbartiana se centrava em um movimento educativo que viria de fora
para dentro, focando em uma direção e uma combinação da apresentação do mate-
rial educativo, acreditando que com isso pudesse despertar arranjos e reações no
educando. Dewey (1979, p. 77) também criticou a perspectiva educativa que focava
“no dever do professor em instruir”, sendo “quase silenciosa sobre seu privilégio
de aprender”. Para o filósofo norte-americano, Herbart não dava o devido apreço à
participação, às atitudes e às disposições inconscientes do educando, mas insistia
no ensino de “coisas anteriores, sobre o passado” (DEWEY, 1979, p. 77). Ainda
salientou que a pedagogia herbartiana se atinha na “formação de atividades”, não
observando que estas eram apenas meios educativos e, logo em seguida, comple-
menta que a educação seria “um processo de reconstrução e de reorganização” (DE-
WEY, 1979, p. 78).
Entretanto, apesar das críticas ao formalismo herbartiano, com base em Neit-
zel (2018, p. 123), destaca-se que é muito difícil saber de quanto desse “formalismo
realmente é pensamento de Herbart e quanto é uma interpretação das correntes
que se seguiram a ele”12. Neste sentido, independente do fundamento da crítica, ad-
verte-se que, de modo geral, a pedagogia herbartiana passou a ser mais lembrada
pelo modo extremamente formal, cientificista e logicista do que pela sua contribui-
ção com a educação de sua época.
A propósito de tais críticas, vale lembrar que no Brasil, na medida em que
o movimento escolanovista se posicionou contra a herança da cultura jesuítica e
o ensino baseado na repetição de generalizações, a condenação de Dewey (1979)
à escola tradicional e às críticas de Durkheim (2012) à concepção educacional de
Herbart13, traduziram-se em um distanciamento da pedagogia herbartiana. Nesse
caso, a psicologia herbartiana foi deixando de ser referenciada como inovadora,
bem como sua defesa da instrução dos conceitos científicos e da formação do dever
ético, foi sendo substituída pela defesa da ciência experimental e da formação de
uma atitude experimental e participativa.
Anísio Teixeira (1900-1971), um dos maiores defensores da pedagogia de De-
wey no Brasil, sem se referir a Herbart, ao escrever, em 1935, a Educação para
a democracia, pontuou com firmeza que a nova situação social exigia um intenso
movimento de reajuste educativo. Desse modo, criticando a lógica puramente de-
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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dutiva, bem como os princípios evolutivos da natureza humana de Spencer e os fins
educacionais baseados em um ideal rígido de moral, escreveu que a educação não
poderia ser “simplesmente preparação para a vida, mas a própria vida em perma-
nente desenvolvimento” (TEIXEIRA, 1997, p. 89).
Entretanto, sem desconsiderar o valor do embate educacional promovido pelos
precursores do escolanovismo, é necessário ressaltar que eles, ao exaltarem a pe-
dagogia experimental em contraposição ao “formalismo” e “rigidez” da Pedagogia
Tradicional, induziram a historiografia ao esquecimento sobre o quanto as duas
teorias possuem proximidades. Conforme o comentário de Neitzel (2018, p. 123),
Vale sinalizar também para a proximidade das duas teorias, tanto a progressiva como a
proposta de instrução-educativa de Herbart, sendo que ambas consideram a experiência
sensível e empírica como ponto de partida, mas ambas exigem uma dose de formalismo,
organização e sistematização.
No Brasil, na medida em que o debate educacional foi se constituindo, diver-
sos estudiosos brasileiros, propondo esclarecer as distinções entre as principais
correntes pedagógicas, elaboraram e divulgaram um quadro comparativo entre as
tendências. Por exemplo, Libâneo (2002), Saviani (2012), Ghiraldelli Jr. (2006),
entre outros, remetem o método pedagógico de Herbart aos cinco passos formais14
da Pedagogia Tradicional. Nesse sentido, cita-se Ghiraldelli Jr. (2006, p. 20, grifos
nossos):
O processo de ensino a aula —, derivado de uma didática herbartiana, seguiria cinco pas-
sos: preparação, apresentação, associação, generalização e aplicação. A aula começa, então,
com o professor recordando o assunto da aula anterior (preparação). O assunto antes
exposto deve encaminhar para a necessidade de novos estudos, o que convoca a nova lição
(apresentação). Baseando-se em analogia, o professor recorre aos procedimentos utili-
zados na resolução dos problemas da lição anterior para solucionar os novos problemas
(associação). Em seguida, mostra como as regras recém aprendidas podem servir para
diversos casos (generalização). Por fim, coloca os alunos no trabalho de resolução de pro-
blemas semelhantes ao da aula dada (aplicação), inclusive com o objetivo de verificar o
conhecimento aprendido.
Todavia, outros autores têm apontado a necessidade de retomar a leitura das
obras de Herbart. Desse modo, influenciados teoricamente ou pelo contexto atual
que força repensar as doutrinas pedagógicas15, mesmo que timidamente, Herbart
tem sido retomado nas pesquisas acadêmicas. Nesse aspecto, cita-se o estudo de
Zanatta (2012, p. 112), a qual reconhece o pioneirismo do pedagogo alemão ao
propor a Pedagogia como uma área do saber “com fins e método de ensino bem
definidos”.
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Favoreto e Galter (2018), na esteira do debate sobre os fundamentos da peda-
gogia, voltam-se para Herbart no intuito de compreender como ele pensou a edu-
cação de acordo com os problemas sociais de sua época. Nesse aspecto, destacam
como o pedagogo alemão se baseou na psicologia para buscar uma instrução para
promover o esforço do aluno, ao passo que buscou na filosofia os fins educacionais,
objetivando, assim, desenvolver adultos com autodisciplina, livre arbítrio e senti-
mento de dever. Para as autoras, estes propósitos de Herbart correspondiam aos
valores divulgados pela sociedade capitalista, atendendo ao interesse em formar
os jovens para os princípios burgueses que se consolidavam na época. Analisando
Herbart em relação ao contexto histórico da época, as autoras afirmam:
[...] em contraposição à historiografia que pontua Herbart como defensor de uma pedagogia
autoritária, conservadora, disciplinar, grifa-se que ele apresentou uma perspectiva educa-
cional que buscava responder aos anseios da sociedade capitalista que se configura como a
nova ordem mundial (FAVORETO; GALTER, 2018, p. 141).
Neitzel (2018, p. 141), ao buscar compreender a sua teoria herbartiana sobre
a Instrução Educativa, ressalta que a sua proposta educacional tem por finalidade
a moralidade, sendo que “esse fim está presente na multiplicidade de interesses e é
comum a todos os sujeitos”. Também aponta a importância do pensamento de Her-
bart para educação, principalmente no que se refere à sua perspectiva de formar
indivíduos mais ativos e autônomos.
Engajado na desconstrução de ser Herbart um exemplar da Pedagogia Tra-
dicional, Cláudio A. Dalbosco (2018, p. 2) tem procurado desmistificar o que a
história da pedagogia convencionou caracterizá-lo como “conservador, que teria
menosprezado, em nome da defesa intransigente dos conteúdos e do papel diretivo
do professor, a posição ativa do aluno no processo de ensino-aprendizagem”. Nesse
intento, busca apresentá-lo como “precursor moderno dos métodos ativos sem que
com isso tenha destituído a autoridade legítima do educador, como diretor intelec-
tual, do processo pedagógico” (DALBOSCO, 2018, p. 3). O mesmo autor afirma que
Herbart buscou:
Propiciar que o aluno faça os próprios aprofundamentos e que passe deles à reflexão é um
dos principais desafios metodológicos do ensino. Desse modo, aprofundamento e reflexão
estão na base da formação intelectual múltipla, pois estimulam o professor e aluno a des-
cobrirem suas disposições (capacidades), desenvolvendo-as nas mais diferentes direções
(DALBOSCO, 2018, p. 13).
Contrapondo-se às teses que afiançam que a pedagogia herbartiana é auto-
ritária, o autor supracitado afirma que a teoria pedagógica de Herbart objetiva
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colocar o educando “em posição ativa, mantendo a centralidade formadora do edu-
cador” (DALBOSCO, 2018, p. 3). Nesse mesmo sentido, ainda destaca que a trí-
plice ação pedagógica (ação de governo, ensino e disciplina) defendida por ele não
seria limitadora. Ao contrário, seu sistema educacional almejava uma formação
múltipla, tanto no sentido de criar disposição para aprender quanto fornecendo
os conhecimentos necessários para compreender as coisas e preparar para a vida.
Pressupostos gerais da pedagogia herbartiana
No que se refere às reflexões educacionais de Herbart, é importante men-
cionarmos que elas foram sendo constituídas paulatinamente, por intermédio de
um conjunto de aproximações e distanciamento de outros teóricos. Com base em
Hilgenheger (2010), destaca-se que Fichte (1762-1814), professor de Herbart na
Universidade de Iena, foi inspirador na constituição do seu “rigor intelectual” e na
configuração das suas reflexões, ou seja, pela “forma de deduções”. Porém, logo em
seguida, acabou se distanciando da “‘teoria da ciência’ e da filosofia prática de seu
mestre”, resguardando dele a crítica ao “pensamento idealista”, o que lhe possibili-
tou desenvolver “sua própria filosofia realista” (HILGENHEGER, 2010, p. 12). Do
mesmo modo, em um conjunto de estudos sobre a metafísica, a lógica matemática e
a psicologia, Herbart foi adquirindo autonomia intelectual e produzindo sua teoria.
Nas palavras de Hilgenheger (2010, p. 12):
Em sua metafísica, Herbart retoma a doutrina das mônadas de Gottfried Willhelm Leib-
niz. Levando em consideração os problemas levantados por Immanuel Kant na Crítica da
razão pura, Herbart busca em suas deduções metafísicas apreender o real pelos conceitos.
A metafísica de Herbart compreende, especialmente, uma psicologia minuciosamente ela-
borada, que se tornou um marco na história desta disciplina. Herbart foi o primeiro a uti-
lizar com uma lógica implacável os métodos do cálculo infinitesimal moderno para resolver
problemas da pesquisa filosófica. Segundo ele, a psicologia tem suas raízes na experiência,
na metafísica e nas matemáticas.
Seguindo os princípios neo-humanistas16 de Kant, Herbart herdou o ideal de
ética e de Schiller o ideal de uma formação “intelectual, ética e estética”, esta-
belecendo uma relação entre a moral social e o processo cognitivo desenvolvido
pela escola. Já baseado na racionalidade filosófica de Fichte, defendeu que seria
fundamental a constituição de um processo educativo, de modo a experienciar a
essência das coisas por intermédio da aproximação do sujeito com o objeto (PATRÍ-
CIO, 2003, p. VIII).
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No que se refere ao seu pensamento pedagógico, as suas experiências como
preceptor na Suíça permitiram-lhe aproximar seus estudos filosóficos com a educa-
ção, em especial com “suas teorias psicológicas e éticas” (EBY, 1976, p. 409). Nesse
mesmo sentido, sua amizade com Pestalozzi (1746-1827)17 foi um fator importante,
pois contribuiu com o avanço na sistematização de sua teoria pedagógica.
Ainda sobre o processo de constituição de sua teoria, é necessário considerar
o contexto histórico-social alemão vivido por ele, o qual, segundo Zanatta (2012),
tinha um povo que considerava a educação um elemento essencial na constituição
da nação e do cidadão alemão. Nessa perspectiva, mesmo estando a Alemanha
aquém no processo de constituição do Estado moderno18, em termos educacionais,
as discussões aproximavam-se das ocorridas na Europa Ocidental.
A esse ideal intelectual acrescentam-se o crescimento do pensamento protestan-
te, as invasões napoleônicas (1804-1815) e os primeiros sinais de desenvolvimento da
indústria, que, de forma diversa, impuseram a necessidade dos povos germânicos se
unificarem em uma nova ética social19. Desse modo, não se tratava apenas de uma
nova força unificadora, mas todo um modelo de vida social estava em transição.
Nos decênios que se seguiram à Revolução Francesa, os povos germânicos ne-
cessitaram de uma nova formação que atendesse às exigências da vida moderna.
Nesse aspecto, não poderiam se manter distribuídos em feudos isolados, mas ne-
cessitavam estar interligados em uma nova consciência e comportamento. Para
tanto, a escolarização foi pensada como elemento social que poderia associar o co-
nhecimento científico à autonomia e ao dever ético (KITCHEN, 2013; FAVORETO;
GALTER, 2018).
Naquele contexto, Herbart dedicou-se ao estudo de um projeto educacional.
Ele acreditava que a educação poderia contribuir de maneira útil no desenvolvi-
mento de cada um, possibilitando constituir um comportamento ético, ou seja, uma
nova “força moral do caráter”. Conhecendo o debate filosófico em torno da questão
educacional, Herbart avança trazendo as contribuições da psicologia na condução
pedagógica. Assim, aponta como a educação poderia mudar o indivíduo. Aliando os
princípios da filosofia (ética) aos da psicologia20, ele compõe os princípios da peda-
gogia. Conforme ressalta Patrício (2003, p. VI), no antelóquio da obra Pedagogia
geral de Herbart:
A psicologia dá-nos o homem no seu ser; a ética dá-no-lo no seu dever – ser. Assente na
psicologia – que lhe dá o que é – e com os olhos colocados na ética – que lhe dá o ideal do
homem –, à pedagogia cumpre realizar o itinerário da educação, ou seja, do aperfeiçoamen-
to moral do homem.
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Disso resultou a inserção da sistematização consciente da pedagogia, bem
como determinou o rigor quanto aos “meios” (psicologia) e aos “fins” (filosofia ética)
da educação. Então, para Herbart, a arte de educar deveria ser ancorada pela ciên-
cia, de modo que o educador tivesse um guia seguro no instruir e no educar. Nesse
sentido, escreveu Herbart (2003, p. 16, grifo do autor):
A Pedagogia é a ciência que o educador necessita para si. Deve, no entanto, possuir também a
ciência para a comunicar. E, devo confessá-lo aqui, não posso conceber a educação sem instru-
ção e, inversamente, não reconheço, ao menos nesta obra, instrução alguma que não eduque.
E acrescentou afirmando que, “para a educação através da instrução, exigi
ciência e capacidade intelectual tais, que sejam capazes de considerar e de repre-
sentar a realidade próxima como um fragmento do grande todo” (HERBART, 2003,
p. 19, grifo do autor).
Não obstante, para Herbart (2003, p. 14-15), o educador deveria ter “ciência e
capacidade intelectual”, de modo que “a primeira ciência do educador seria a psi-
cologia”, meio pelo qual se compreenderia “as emoções humanas”. Nesse sentido,
o “indivíduo só pode ser encontrado, jamais inferido”. Então, a psicologia e a ética
convergir-se-iam para um ponto único, ou seja, a Instrução Educativa. Tal como
afirmou Hilgenheger (2010, p. 18), para Herbart, a educação só seria “possível
como formação de um espírito passível de ser formado, ou seja, por meio de uma
instrução adequada”.
Assim, Herbart postulou que o ato de educar e instruir se constituiriam por
três ações pedagógicas: o governo, a instrução e a disciplina, que, de forma
distinta e combinada, perpassariam pelos três pilares da educação: “o liceu (giná-
sio), a escola primária superior (chamada também de escola principal) e a escola
elementar (também chamada pequena escola)”, os quais contribuiriam para a ma-
nutenção “de um sistema unificado porque em cada um dos três ramos se pratica a
instrução educativa” (HILGENHEGER, 2010, p. 28).
No que se refere ao governo, a primeira ação pedagógica e predominante
na primeira infância se faria pela coerção externa, em que o adulto, certo dos fins
educacionais e da capacidade do educando, “através do poder” e de um poder “su-
ficientemente forte” e por “repetidas vezes”, tanto quanto “forem necessárias”,
formariam a criança antes que se manifestasse nela “os traços de uma vontade
própria”, preparando-a para a instrução (HERBART, 2003, p. 30-31).
A instrução cuidaria do alargamento do círculo de ideias e de interesses,
fornecendo os conhecimentos e os conceitos necessários para formar as habilida-
des necessárias no exercício das funções. A instrução, por intermédio das repre-
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sentações estéticas, literárias e mais os conhecimentos matemáticos e científicos,
possibilitaria a compreensão do mundo e dos homens, transmitindo novos conheci-
mentos, aperfeiçoando “aptidões preexistentes” e fazendo “despontar capacidades
úteis” (HILGENHEGER, 2010, p. 14).
A disciplina, com base nas experiências anteriores, buscaria a autodisciplina,
tornando o educando capaz de agir com autonomia e ética. Assim, atuaria “sobre
a alma da juventude com a intenção de formar” e atribuir “realidade a conceitos
construídos logicamente a partir de características” (HERBART, 2003, p. 180-181).
Por intermédio desse conjunto de elementos, sem distinguir instrução de edu-
cação, Herbart acreditava que poderia realizar a educação geral. Para ele, por vá-
rios arranjos e conteúdos, paulatinamente, seria possível desenvolver a atenção, a
memória, os pensamentos, a percepção, a capacidade de estabelecer relações e até
os sentimentos e os comportamentos dos educandos. Desse modo, o referido teórico
buscava contribuir com “a formação harmônica de todas as potencialidades”, de
modo a preparar os homens para viverem harmoniosamente em uma sociedade
que já apresentava uma “multiplicidade de interesse” em meio a uma “multiplici-
dade de ocupações” (HERBART, 2003, p. 47-48). Assim, tal como afirmou Hilgenhe-
ger (2010, p. 14), “nasce um novo paradigma do pensamento e da ação pedagógica”.
De forma geral, pode-se afirmar que a Instrução Educativa de Herbart con-
grega um amplo plano de educação, o qual pressupunha que, por intermédio de
sucessivas situações previamente organizadas pelo educador, poderia fortalecer a
inteligência, formar a vontade21 e o caráter22 do educando. Desde modo, por inter-
médio de sua pedagogia, Herbart acreditava que poderia formar a moral. Segundo
Hilgenheger (2010, p. 19), para o pedagogo alemão,
A instrução visa, antes de tudo, a fazer convenientemente ‘compreender’ o mundo e os
homens. Esta ‘compreensão do mundo’ guiada pelo ensino, no entanto, não serve apenas à
transmissão de conhecimentos e à formação de aptidões e qualificações; ela está, priorita-
riamente, a serviço da ‘tomada de consciência moral’ e do ‘reforço do caráter’. Pela instrução
se exerce uma influência na formação do caráter.
Concebendo uma inseparabilidade entre instrução e educação, Herbart tam-
bém engendra uma inseparabilidade entre educação e a metodologia da instrução.
Em suas palavras,
A reflexão, quando passiva, percebe as relações das várias coisas entre si. Vê também cada
coisa como elo das relações no seu devido lugar. A ordem exata de uma reflexão rica tem o
nome de sistema. Não pode, porém, haver sistema, nem ordem, nem relação, sem clareza
de cada elemento, uma vez que a relação não consiste na mistura, existindo apenas entre
os elos isolados e de novo ligados (HERBART, 2003, p. 66, grifo do autor).
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Nesse sentido, para ele, a educação não poderia se constituir por tradição ou
por acasos, mas o educador deveria dominar “metodicamente o próprio pensamen-
to” (HERBART, 2003, p. 66). Igualmente, o educador deveria estar atento ao ato
educativo, de modo a perceber cada elemento e os elos de interação entre eles.
Assim, entendendo a educação como um sistema, adverte que o educador deveria
planejar e executar sua ação, tendo em consideração o desenvolvimento do educan-
do e os propósitos finais da formação.
Desse modo, tal como esclarece Hilgenheger (2010, p. 20), a Instrução Educa-
tiva de Herbart se fundamentava na “doutrina psicológica do Interesse”. Ou seja,
o interesse seria fundamental para o bom êxito da educação, pois, pelo interesse,
criaria “as primeiras ligações entre o sujeito e o objeto e determina, assim, o ‘hori-
zonte’ do homem como campo daquilo que ele percebe ou não do mundo” (HILGE-
NHEGER, 2010, p. 20). Destarte, o interesse seria a força motriz na instrução, po-
rém, não poderia ser confundido como algo que se deseja. Segundo Herbart (2003,
p. 69, grifos do autor),
O objeto do interesse nunca se pode identificar com o que é desejado, porque o desejo (ao
querer apropriar-se de algo) aspira algo de futuro que ainda não possui. O interesse, pelo
contrário, desenvolve-se com a observação e prende-se ao presente observado. O interesse
só transcende a simples percepção, pelo fato de nele a coisa observada conquistar de prefe-
rência o espírito e se impor mediante uma certa causalidade entre as outras representações.
Para o referido teórico, nenhum desejo momentâneo deveria ocupar toda a
alma, mas a educação deveria tratar de um interesse social, ou seja, deveria voltar-
-se para a formação do caráter do ser humano que se relaciona com outros huma-
nos. Nesse mesmo aspecto, pressupondo que o interesse individual é mais irregular
e inconsistente, afirmou que a instrução educativa deveria assentar na “multiplici-
dade” de interesses, visto que, em longo prazo, apresenta maior consistência e har-
monia. Em outros termos, afirma que “existem muitas individualidades. A ideia de
multiplicidade é apenas uma” e nela estão contidas as individualidades e por ela
se pode medir as individualidades (HERBART, 2003, p. 58 apud HILGENHEGER,
2010, p. 94). Nesse sentido, no processo educativo,
O interesse parte de objetos e de ocupações interessantes. É da riqueza destes que re-
sulta o interesse múltiplo. Criá-lo e apresenta-lo devidamente é questão do ensino, que
apenas continua e completa o trabalho prévio resultante da experiência e das relações
(HERBART, 2003, p. 59, grifos do autor).
No caso, as representações23, fruto da doutrina psicológica do interesse, sur-
gem como mecanismos de desenvolvimento das potencialidades do educando. Nessa
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lógica, caberia ao educador no exercício da instrução educativa, apoiando-se nas
representações que já foram “trazidas à consciência” do educando, avançar do senso
comum ao conhecimento científico. Tal ação, por sua vez, desencadeia o que Herbart
denomina de massa perceptiva, ou seja, “a realidade psíquica do ser humano, um
agregado estruturado e vivo de representações” (PATRÍCIO, 2003, p. IX).
De fato, o projeto pedagógico de Herbart inovou ao instituir a pedagogia como
área do saber. Conforme argumenta Neitzel (2015, p. 130), Herbart, ao amparar
sua pedagogia nas áreas complementares da ética e da psicologia, solidificou sua
defesa que “o fim da educação é a formação do caráter dos sujeitos” e que se faz
necessário “considerar os processos psicológicos de constituição de si”.
Para Favoreto e Galter (2018, p. 134), de forma distinta e sucessiva, Herbart
entendia a instrução educativa como um processo, por intermédio do qual “o ensino
progrediria do descritivo para o analítico e sintético, os quais se combinariam e
se fortificariam”. Para tanto, se iniciaria com as experiências sensoriais e, pau-
latinamente, de forma consciente, o educador conduziria a criança no desenvol-
vimento da capacidade de “abstrair, fazer generalizações e dominar os conceitos
que resistiram à prova do tempo”. Igualmente, seriam multiplicados os interesses,
a capacidade de compreender as coisas e de estabelecer relações. Nesse processo,
não só seriam ampliados os conhecimentos, mas também seriam formados adultos
com livre-arbítrio, ou seja, com autonomia e responsabilidade ética. Desse modo,
a educação poderia levar o educando a “aprender para a vida e não para a escola”
(HERBART, 2003, p. 137). Nesse caso, o ensino poderia formar indivíduos capazes
de se posicionarem de acordo com as novas exigências que estavam surgindo com o
crescimento da industrialização e formação do Estado moderno.
Considerações nais
Antes de chegar a qualquer afirmação conclusiva sobre Herbart e/ou sobre as
interpretações historiográficas, destacamos que as controvérsias da historiografia
educacional brasileira em torno de sua pedagogia expressam influências do pro-
cesso histórico. No caso, diante do crescimento das análises escolanovistas e suas
críticas ao formalismo e rigidez do Ensino Tradicional, Herbart não recebeu devida
atenção, sendo mais conhecido pelos cinco passos formais que foram atribuídos à
sua autoria.
Entretanto, ao ler sua obra, verifica-se uma imensa riqueza teórica em suas
ponderações sobre a pedagogia e sua função perante a sociedade. Herbart inseriu
1031
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a educação escolar em um lugar de destaque e de forma magistral marcou o valor
da Pedagogia como ciência, inclusive apontando-a como meio adequado na forma-
ção geral do educando. Nessa perspectiva, também pensou a Instrução Educativa
como fim educacional necessário na condução social daquele período de transição
histórica. Cabe registrar que, vivendo um momento conturbado da história alemã,
Herbart produziu um projeto pedagógico fundamentado em um duplo alicerce, o da
ética e da psicologia e, a esse respeito, pensou a educação em relação à transforma-
ção social e ao desenvolvimento do indivíduo.
Assim, distinguir Herbart apenas pelos passos formais da Pedagogia Tradicio-
nal ou, de forma mais geral, estudar a pedagogia pelos rótulos pedagógicos, mesmo
que seja esclarecedor no primeiro momento, não contribui para compreender o sig-
nificado do debate pedagógico. É necessário ir além. No caso, o que distingui Her-
bart e faz dele um clássico é o fato de perceber a crise social do momento e trazer o
problema para o debate educacional. Desse modo, relacionado àquele contexto, ele
tomou uma posição, principalmente ao levar às últimas consequências sua ideia de
Instrução Educativa. Nesse sentido, destaca-se a sua defesa em formar indivíduos
mais éticos e autônomos, atendendo às novas necessidades que se despontavam
com o desenvolvimento do capitalismo na Europa.
Por fim, destaca-se que é preciso retomar sua obra, pois a sua luta e a defesa
da Instrução educativa muito nos ensinam.
Notas
1 Herbart nasceu em Oldenburg, Alemanha. O pai era advogado e a mãe se destacava na cultura literária,
sendo ela a sua educadora até os 12 anos. Ele estudou filosofia e educação na universidade de Iena e de-
senvolveu atividades de preceptor na Suíça e na Alemanha. Sobre a vida e formação de Herbart, consultar:
Herbart (2003) e Hilgenheger (2010).
2 Dentro do verbete elaborado por Dermeval Saviani (2006, não paginado), “a denominação ‘concepção pe-
dagógica tradicional’ ou ‘pedagogia tradicional’ foi introduzida no final do século XIX com o advento do
movimento renovador que, para marcar a novidade das propostas que começaram a ser veiculadas, clas-
sificaram como ‘tradicional’ a concepção até então dominante”. Para Saviani (2012), no decorrer de sua
existência, a Pedagogia Tradicional acumulou muitas críticas, principalmente por centrar o ensino no pro-
fessor, que por meio de um método expositivo transmite o conteúdo e valores acumulados pela sociedade.
Grifa também que sua “matriz teórica pode ser identificada nos cinco passos formais de Herbart” (2012, p.
42-43). Para maiores análises sobre a Pedagogia Tradicional e a pedagogia herbartiana, consultar: Libâ-
neo (1987), Ghiraldelli Jr. (2006), Hilgenheger (2010) e Zanatta (2012).
3 Sem especificar as distinções nas formas de análises, quanto às possíveis contribuições e inovação da edu-
cação preconizada por Herbart, pode-se citar: Lourenço Filho (1978), Dalbosco (2018), Favoreto e Galter
(2018), Neitzel (2018) e Zanatta (2012).
4 Sobre as críticas dirigidas ao psicologismo e didatismo de Herbart, consultar: Libâneo (1987), Saviani
(2012), entre outros.
5 Para expor a instrução educativa de Herbart, para além de contar com as análises de alguns de seus in-
térpretes, neste artigo, foca-se em duas de suas obras: Pedagogia geral (2003), publicada em Portugal pela
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fundação Calouste Gulbenkian; e uma antologia organizada por Norbert Hilgenheger, a qual foi traduzida
por José Eustáquio Romão e publicada no Brasil em 2010.
6 Com base em Alves (2001), destaca-se que já no final do século XIX, muitos países da Europa e alguns da
América, principalmente naqueles que a industrialização estava mais desenvolvida, a defesa da escola
pública crescia no poder público. No Brasil, conforme afirma Favoreto (1998), diversos intelectuais defen-
deram que a escola pública seria necessária para formar o novo quadro de trabalhadores e adequar o povo
a nova ordem política.
7 Diante da herança social deixada com a invasão das terras indígenas, escravização dos povos africanos e
indígenas, necessidades criadas com a Proclamação da República e com a crise do liberalismo internacio-
nal, a formação da consciência nacional foi anunciada, segundo Abud (1998), como um problema educacio-
nal, o qual tinha como interesse manter a unidade nacional e a ordem social da elite.
8 Para maiores informações sobre os Pareceres e Annais Parlamentares, consultar Barbosa (1946) e Macha-
do (2010).
9 “Lição de coisas”, base do método intuitivo preconizado por Pestalozzi (1746-1827), caracterizava-se “por
oferecer dados sensíveis à observação, indo do particular ao geral”, do racional ao abstrato (ZANATTA,
2012, p. 107). Foi justamente, quando teve acesso ao manual “Lições de Coisas” (1861), de autoria de
Norman Alisson Calkins, que Rui Barbosa aproximou-se e interessou-se por este método, o qual naquele
contexto revolucionou a educação e os currículos de diversos países. A tradução e publicação do referido
manual foram realizadas por Rui Barbosa em 1883 e 1886, respectivamente. Sobre o tema, consultar:
Zanatta (2012) e Santos e Alves (2019).
10 Segundo Favoreto (2015), no início do século XX, o mundo foi marcado por alguns acontecimentos signifi-
cativos, entre os quais, destacando-se a Primeira Guerra Mundial e o prenúncio de uma Segunda; a queda
da bolsa de Nova York; a Revolução Operária na Rússia; o crescimento do sistema de comunicação (rádio,
telefone, automóvel e o avião) e a implementação do trabalho racional, de forma diversa, contribuíram
para aumentar a crença nos poderes da ciência e do Estado na intervenção econômica e na centralização
educacional.
11 No Brasil, juntamente com os inúmeros acontecimentos interacionais, outros específicos marcaram a épo-
ca, tais como: a crise da economia cafeeira; fim da “política café com leite”; constituição do Estado Novo;
imigração e crescimento urbano/industrial e dos Movimentos Sociais, que aceleraram a reorganização
política e econômica, bem como o processo de discussões sobre a reforma educacional. Sobre isso, consultar
Favoreto (2015).
12 Mesmo após sua morte, Herbart e o herbartismo tiveram adeptos e simpatizantes em muitos países além
da própria Alemanha. Sobre as especificidades destes grupos, consultar o prefácio à edição portuguesa da
obra Pedagogia geral (GOMES, 2003).
13 A crítica de Durkheim (2012) à educação herbartiana se fundamenta na hipótese de que sua proposta
buscava mais desenvolver a moral individual do que a sociedade.
14 Wilhem Rein (1847-1929), nome pertencente ao grupo de neo-herbartianos, foi quem introduziu algumas
modificações no sistema herbartiano, especificamente nas etapas da instrução, comumente propagadas pela
historiografia educacional brasileira como os cinco passos formais, mas que originalmente Herbart as orga-
nizou em dois momentos que se desdobram em quatro etapas. O primeiro momento, nomeado de “aprofunda-
mento”, desdobra-se nas etapas de “clareza” e “associação”. O segundo, nomeado de “reflexão”, perpassa pela
etapa do “sistema” e “método”. Para mais informações, consultar: Larroyo (1974) e Herbart (2003).
15 Os números de matrículas e de anos em que os alunos permanecem no ensino têm crescido no Brasil,
entretanto, os resultados atingidos nos sistemas de avaliações mostram que o rendimento dos alunos tem
sido baixo, trazendo à tona discussões sobre o currículo, as políticas públicas e a pedagogia, inclusive sobre
a ação reflexiva e a disciplina escolar. Para ampliar as discussões, consultar: Dalbosco (2018) e Favoreto,
Figueiredo e Deitos (2019).
16 O neo-humanismo caracteriza-se, principalmente, por pensar na formação humana (educação geral) com o
objetivo de “propiciar o desenvolvimento de todas as disposições (capacidades) humanas nas mais diferen-
tes direções” (DALBOSCO, 2018, p. 1132). Segundo Hilgenheger (2010), Herbart partilha deste princípio
como resultado da apropriação das ideias de Rousseau (1712-1778) e, principalmente, Immanuel Kant
(1724-1804).
17 O pedagogo suíço Johann Heinrich Pestalozzi, autor da pedagogia intuitiva fundamentada na psicologia
sensualista, afirmou que a vida mental se estrutura pautada nos sentidos, ou, valendo-se do concreto. De
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acordo com Patrício (2003, p. VIII), no antelóquio da obra Pedagogia geral, “o destino dominantemente
pedagógico” de Herbart, “deve relacionar-se com o seu encontro com Pestalozzi, na Suíça”.
18 Próximo ao início do século XIX, o declínio do Antigo Regime e o advento do desenvolvimento Industrial
eram realidades em países como a França e a Inglaterra, contudo, na Alemanha os passos eram mais
lentos. No final do século XIX, a Alemanha ainda era “organizada por diversos e fragmentados principa-
dos e reinados com destaques à Prússia e a Áustria”. Seu “processo de unificação foi lento e difícil. Entre
diversos acordos e desacordos, por uma manobra da elite política, em que, cita-se o papel importante de
Otto Von Bismarck (1815-1898), a unificação do Estado Nacional Alemão foi formalizada em 1871” (FAVO-
RETO; GALTER, 2018, p. 132).
19 Segundo Favoreto e Galter (2018, p. 132), na época, para além das contradições impostas pelo declínio
do Antigo Regime e constituição de um Novo, os povos germânicos também conviviam com as invasões
napoleônicas e os crescentes “protestos contra a Igreja Católica”, principalmente por intermédio das ideias
de Lutero (1483-1546). Com as reformas protestantes, a Igreja Católica passou a perder “seu poder centra-
lizador” e logo, as relações sociais tornaram-se mais individualistas, “pondo em risco os ideais de unidade
nacional”.
20 Sobre a psicologia, a posição metafísica de Herbart radica-o na corrente do associacionismo de David
Hume. A psicologia herbartiana é algo como uma física do mundo da psique. Para mais informações, con-
sultar Herbart (2003) e Hilgenheger (2010).
21 De acordo com Herbart (2003, p. 145), a “vontade” é definida “como sede do caráter”, assemelhando-se a
um ideal constante. Para ele, a vontade se diferencia do desejo que se caracteriza como impulsos constituí-
dos pelo humor.
22 Herbart (2003, p. 145) designa por caráter o modo de decisão do sujeito. Ou seja, “aquilo que o homem quer,
comparado com o que não quer”. Sendo assim, “o caráter é a forma da vontade e, só pode ser compreendido
no contraste entre aquilo que ele decide e o que exclui”.
23 Conforme Favoreto e Galter (2018, p. 134), as representações consistem em objetos de pensamento que, ao
serem percebidos e trazidos à consciência, “poderiam contribuir para que o indivíduo pudesse interpretar
melhor seu mundo real, de modo a direcionar sua conduta para a vida social”. Neitzel (2020, p. 189) afirma
que as representações correspondem ao processo no qual a mente do indivíduo “estabelece certas diretrizes
e pressupostos que se tornam o equipamento pelo qual o sujeito faz a leitura da realidade e busca avaliar
o que é crível”.
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1036 ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Vânia Lisa Fischer Cossetin
v. 28, n. 3, Passo Fundo, p. 1036-1054, set./dez. 2021 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Solitude e isolamento: o caráter formativo do encontro consigo mesmo
Solitude and isolation: the formative character of the meeting with yourself
Soledad y aislamiento: el carácter formativo del encuentro con usted mismo
Vânia Lisa Fischer Cossetin*
Resumo
O presente artigo reete sobre um dos impactos causados pela pandemia da Covid-19 na saúde mental da po-
pulação, a saber, o sofrimento psíquico resultante do distanciamento físico. A hipótese defendida é a de que a
pandemia acabou induzindo a uma introspecção que poucos estavam dispostos ou aptos a fazer, intensicando
o sentimento de solidão e o sofrimento dele advindo. Todavia, por colocá-lo em evidência, acabou permitindo
que fosse pensado não apenas como um efeito traumático ou patologia, mas como inerente à condição huma-
na, inclusive como uma experiência de teor formativo. Em diálogo com autores do campo losóco e psicana-
lítico e a partir de uma abordagem hermenêutico-fenomenológica, estes escritos foram concebidos no interior
de três movimentos: o primeiro apresenta alguns impactos da experiência pandêmica na saúde mental, com
destaque para o sentimento de solidão decorrente do isolamento; o segundo problematiza a noção de solitude
como a versão positiva da solidão; e o último discute a possibilidade de extrair um sentido formativo da capaci-
dade e da expe
riência de se car só.
Palavras-chave
: saúde mental; pandemia; formação; subjetividade; solidão.
Abstract
Thi
s article reects on one of the impacts caused by the Covid-19 pandemic on the mental health of the popu-
lation, namely, the psychological suering resulting from physical distance. The hypothesis defended is that
the pandemic ended up inducing an introspection that few were willing or able to do, intensifying the feeling
of loneliness and the suering that came with it. However, by putting it in evidence, it ended up allowing it to
be thought of not just as a traumatic eect or pathology, but as inherent to the human condition, even as an
experience of formative content. In dialogue with authors from the philosophical and psychoanalytic eld and
from a hermeneutic-phenomenological approach, these writings were conceived within three movements: the
rst presents some impacts of this pandemic experience on mental health, with emphasis on the feeling of lo-
neliness resulting from the isolation; the second problematizes the notion of aloneness as the positive version of
solitude; and the latter discusses the possibility of extracting a formative sense from the capacity and experience
o
f being alone.
Keywords: mental health; pandemic; formation; subjectivity; loneliness.
* Mestra e doutora em Filosoa pela PUCRS. Atuou como professora da educação básica da rede pública estadual. É
líder do Grupo de Pesquisa Interdisciplinar de Humanidades no Ensino Médio; coordenou o Grupo de Estudos Pai-
deia: educação e formação humanas na interface do ensino, pesquisa e extensão e o Grupo de Estudos Hermenêuti-
cos. Professora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação nas Ciências da Unijuí. Orcid: http://orcid.
org/0000-0001-8722-9235. E-mail: vania.cossetin@unijui.edu.br
Recebido: 30/10/2020 – Aprovado: 27/11/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i3.11810
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Resumen
Este artícu
lo reexiona sobre uno de los impactos que provocó la pandemia Covid-19 en la salud mental de la
población, a saber, el sufrimiento psicológico derivado de la distancia física. La hipótesis que se deende es
que la pandemia terminó por inducir una introspección que pocos quisieron o pudieron hacer, intensicando
el sentimiento de soledad y el sufrimiento que la acompañaba. Sin embargo, al ponerlo en evidencia, terminó
permitiendo pensar en él no solo como un efecto traumático o patología, sino como inherente a la condición
humana, incluso como una experiencia de contenido formativo. En diálogo con autores del campo losóco y
psicoanalítico y desde un enfoque hermenéutico-fenomenológico, estos escritos fueron concebidos dentro de
tres movimientos: el primero presenta algunos impactos de esta experiencia pandémica en la salud mental, con
énfasis en el sentimiento de soledad derivado del aislamiento; el segundo problematiza la noción de soledad
como la versión positiva de la soledad; y el segundo discute la posibilidad de extraer un sentido formativo de la
c
apacidad y experiencia de estar solo.
Palabras llave:
salud mental; pandemia; formación; subjetividad; soledad.
Notas introdutórias
Quando nos dispomos a escrever sobre o tempo presente, é sempre numa expe-
riência de aventura que o fazemos. A expressão oracular hegeliana segundo a qual
a coruja de minerva só alça voo ao entardecer (HEGEL, 1995) é uma advertência a
todo aquele que se precipita em dizer o que está em acontecimento, simplesmente
porque o decurso temporal é inapreensível. Quando tentamos dizer o instante, ele
já deixou de ser (HEGEL, 1996). O filósofo alemão nos ensina, portanto, que só
temos o que já foi, por isso só podemos olhar para trás para dizer o presente e, pelo
mesmo motivo, também o futuro.
Não poderia ser, então, sem dificuldades que escrevemos sobre o que estamos
vivendo relativamente à pandemia da Covid-19, sobretudo pelo fato de nossa gera-
ção não ter vivido nada parecido com isso antes – ao menos não nestas proporções.
Pouco adianta olharmos para trás, como sugeriu Hegel. Além disso, encontramo-
-nos diante do intangível e do incontrolável, o que nos torna mais vulneráveis e
nossos pensamentos e ações, muitas vezes, mais desproporcionais.
Assim, ainda que nossos antepassados tenham vivenciado outras pandemias,
deixando seu legado de ensinamentos e advertências, e ainda que, enquanto so-
ciedade humana globalizada, tenhamos desenvolvido ciências suficientemente
avançadas para identificarmos as razões e os efeitos ambientais, econômicos, po-
líticos, sociais, culturais dessa pandemia – inclusive a ponto de compreendermos
e até mesmo de assumirmos nossa total ou relativa responsabilidade por ela –, tal
fenômeno se apresenta para nós como uma situação absolutamente adversa. Indi-
vidualmente não escolhemos, nem cogitávamos vivê-la, e tudo o que sabemos e já
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vivemos não tem sido suficiente para assimilá-la, tampouco controlá-la. Chegamos
ao ponto de negá-la, criando subterfúgios para ignorar sua letalidade. Portanto,
como não poderia deixar de ser, esta pandemia tem sido experimentada com muita
dor e sofrimento, sentimentos que têm atingido proporções exponenciais devido
à perda de milhares de vidas humanas e entes queridos, ao medo de contrair o
vírus, à própria experiência da contaminação e suas sequelas, à precarização das
condições de trabalho e sobrevivência, aos sentimentos de abandono e de solidão
produzidos pela exigência de distanciamento de outras pessoas.
É precisamente sobre as consequências na saúde psíquica advindas do isola-
mento físico exigido como medida cautelar contra o contágio que as reflexões são
aqui encetadas. Consequências estas que têm se apresentado como um desafio para
todos nós, sujeitos em confinamento e, principalmente, profissionais dos campos da
saúde e da educação. Nunca é demais advertirmos que os fatores que conduzem ao
sofrimento psíquico são inúmeros, condicionados pelas situações as mais diversas e
indiscutivelmente a serem observados caso a caso, dentro do conjunto de elementos
que definem o sujeito em sofrimento como um sujeito singular. Assim, faz muita
diferença se quem está em confinamento é um bebê, uma criança, um adolescente,
um adulto ou um idoso, se mora em uma casa com amplo espaço externo ou em
um pequenino apartamento, se tem conforto e acesso a bens culturais, se tem ou
não plano de saúde e estabilidade financeira, se tem ou não família, se vive num
ambiente hostil ou de acolhida, se tem ou não recursos emocionais próprios para
enfrentar as perdas, o isolamento, o luto ou, então, o medo deles. Poderíamos dis-
correr longamente a respeito, por óbvio não o faremos e por uma razão simples:
porque o intuito deste ensaio não é acentuar o sentido negativo da experiência do
confinamento, que, em boa medida, é sentido e admitido por todos nós. Ao invés
disso, o propósito é discutir um possível aspecto tácito que estaria superestimando
os seus efeitos, a saber, a dificuldade de ficarmos sós e, nesta linha interpretativa,
buscarmos, muito mais que entender suas razões, identificar bons motivos para
intencionalmente experienciarmos a solitude.
Trata-se de uma hipótese que, a princípio, dispensa demonstração empírica. A
abordagem hermenêutico-fenomenológica que orienta estas reflexões autoriza-nos
a inferi-la de nossas próprias experiências e percepções, com base no que temos ou-
vido, assistido, lido, enfim, das impressões que temos recolhido desses tempos pan-
dêmicos. Não é difícil percebermos, por exemplo, que, por trás da queixa de muitas
pessoas no que tange às restrições de circulação e de contato físico, algo se oculta,
porque curiosamente elas independem das condições – favoráveis ou não – para
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o confinamento domiciliar. Muitas delas têm visto o isolamento como um castigo
e suas casas como uma prisão, sentindo-se injustamente punidas e percebendo a
experiência de ficar só como algo insuportável.
Apesar de estudos já estarem prevendo pandemias com esta magnitude (HA-
RARI, 2020), a Covid-19 nos surpreendeu e acabou escancarando problemas laten-
tes do nosso cotidiano ou, senão isso, superdimensionando problemas antes con-
tornáveis. Inúmeros deles poderiam ser elencados, tanto relativos à vida pública,
à impossibilidade do amplo e qualificado acesso à saúde, à educação, à moradia,
ao transporte público, quanto relativos à vida privada e à dificuldade de lidarmos
com as relações familiares, amorosas e com a própria intimidade. A questão de
fundo é que a pandemia acabou nos conduzindo a um enfrentamento que não está-
vamos preparados nem dispostos a fazer: obrigou-nos à introspecção. Mostrou-nos
que o sofrimento que eventualmente experimentamos devido ao distanciamento
ultrapassa a nossa necessidade de estarmos com alguém, mas revela a nossa ina-
bilidade de suportarmos o tédio que a companhia de nós mesmos pode nos causar,
inclusive, para pensar com Freud (1920/2020), de adiarmos ou negociarmos o pra-
zer em nome da preservação de nós mesmos e, no caso da pandemia, também de
quem amamos ou de quem sequer conhecemos.
Estruturalmente, estes escritos estão organizados em três momentos. Inicial-
mente, são apresentados alguns impactos da pandemia na saúde mental, particu-
larmente quanto aos efeitos produzidos pelo distanciamento físico. Num segundo
momento, a noção de solitude é tematizada a partir de duas perspectivas: uma
filosófica, em que tal conceito aparece como uma dimensão inerente à condição
humana; e uma psicanalítica, em que, inicialmente, a capacidade de ficar só surge
como indispensável para o amadurecimento emocional do sujeito e, posteriormente,
como condição para a sustentação e a ampliação da subjetividade, sobretudo diante
dos desafios da contemporaneidade. Por fim, é destacada a dimensão formativa da
capacidade e da experiência de ficarmos sós, ou seja, da solitude.
Connamento e saúde mental
Em sua gênese, a epidemia produziu impactos em todas as dimensões de nos-
sa existência. Além de atingir todo o tecido social, evidenciando e aprofundando
as históricas contradições dos campos político e econômico1, trouxe para a superfí-
cie questões próprias de nossa condição humana e subjetiva, além de desencadear
efeitos e/ou sublinhar aspectos importantes relativos à nossa saúde mental. Espe-
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cialistas chegam a anunciar uma espécie de “quarta onda” sanitária: a primeira
causada pelos contaminados hospitalizados; a segunda e a terceira, pelos pacientes
de outras patologias exigentes de cuidados médicos e que acabaram sendo adiados
pela própria pandemia; e a quarta, causada pelos transtornos mentais (PORTI-
NARI, 2020). Estudos também demonstram que quase a metade da população não
diretamente contaminada tende a apresentar quadros de sofrimento psíquico de-
correntes da pandemia (CEPEDES; FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ, 2020). Além
disso, documentos da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Inter-Agency
Standing Committee (IASC)2 destacam os efeitos na saúde mental devido ao isola-
mento físico prolongado, tanto de grupos vulneráveis, quanto de profissionais da
área da saúde, um contexto que acabou exigindo até mesmo a criação de guias de
orientação3 destinados especialmente a profissionais que atuam diretamente com
a população.
Na análise do médico, filósofo e psicanalista Joel Birman (2020), a pandemia
acabou gerando um sentimento de desproteção, despertando angústias primordiais
e causando sofrimentos e sintomas psicopatológicos, sobretudo pela ausência de
uma percepção objetiva do vírus. Birman observa que, por ser uma entidade mi-
croscópica, nosso aparelho psíquico encontra muita dificuldade de lidar com ele,
razão pela qual tenta transformá-lo em algo visível e tangível para que possa dele
se proteger, converte angústia em medo, visto que contra o medo é possível criar
defesas psíquicas. Quadro de angústia que, segundo ele, tende a se agravar pelo
descrédito na política pública, que acaba sublinhando o sofrimento naturalmente
decorrente da pandemia, como a impossibilidade de acompanhar os familiares nas
unidades hospitalares, ter que deixá-los morrerem sozinhos, deixar de efetuar ri-
tuais funerários, perder emprego, etc.
Clinicamente, Birman (2020) destaca alguns sintomas decorrentes desse con-
texto: a neurose de angústia, que provoca falta de ar e suores frios diante do temor
de morte iminente; a angústia hipocondríaca, que leva à perda da medida na inter-
pretação dos signos corporais e ao excesso de sua percepção devido à necessidade
de tornar o vírus tangível, produzindo sintomas psicossomáticos; depressões e me-
lancolia decorrentes do isolamento social e que são agravadas para quem já apre-
sentava insegurança psíquica; transtornos obsessivos compulsivos, que conduzem à
intensificação das rotinas de higiene. Tais sintomas revelam um quadro denomina-
do de neurose traumática, cuja angústia, segundo o autor, o sujeito procura regular
com o aumento do consumo de álcool, drogas lícitas ou ilícitas e ingestão alimentar.
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O fenômeno do adoecimento psíquico, como vemos, se apresenta dentro de um
quadro complexo, com expressões e características variadas desencadeadas de uma
gênese comum, neste caso, da experiência pandêmica. Contudo, quando falamos de
saúde mental e sofrimento psíquico, em que pese toda a sorte de transtornos que
um quadro de sofrimento agudo pode apresentar, tais sintomas não podem sim-
plesmente ser classificados em normais ou patológicos. Até porque o sintoma não
“[...] é a consequência imediata daquilo que indica” (GADAMER, 2001, p. 97), não
implica uma conexão causal, objetivamente observável como ocorre com o signo.
O sintoma é um fenômeno subjetivo, de modo que a complexidade da constituição
dessa subjetividade, enlaçada que está com fatores históricos, culturais, sociais,
afetivos, com a ambivalência de nossas emoções e sentimentos, com a estrutura
cindida de nosso psiquismo, com a consciência de nossa própria finitude, tende a
tornar o binômio normal e patológico duas faces de uma mesma moeda.
Dessa vista, uma dimensão considerável do nosso sofrimento – talvez a maior
parte dela – diz de algo que constitui e, inclusive, estrutura nossa subjetividade.
Significa que obrigatoriamente não requerem – embora em certos casos, sim – tra-
tamentos médicos ou pretensamente terapêuticos, a menos que eles mesmos nos
convoquem ao enfrentamento das nossas questões existenciais e se ofereçam como
um modo possível de melhor lidarmos com a nossa angústia. Se isso pode ser con-
siderado, então podemos inferir que muito provavelmente quadros de sofrimento
psíquico agravados pelo isolamento físico e, no pior dos casos, patologizados, encon-
tram sua causa não exatamente na pandemia, mas na dificuldade de admitirmos e
lidarmos com o fato inconteste de que somos e não simplesmente estamos sós.
Da solitude
Convém esclarecer, antes de tudo, algumas premissas fundamentais a partir
das quais o que segue será problematizado, segundo as perspectivas filosófica e psi-
canalítica que orientam estes escritos. Em primeiro lugar, que estar só não implica
necessariamente em se sentir solitário, mas em estar consigo, e estar consigo, por
sua vez, não implica desconsiderar a indiscutível importância do outro em nossas
vidas, inclusive na estruturação de nossas subjetividades. Em segundo lugar, a
intenção de ficar consigo não é obrigatoriamente um sintoma de sofrimento psí-
quico do tipo que conduz à ruptura das relações sociais, embora, por óbvio, possa
apresentar-se como tal. Assim, dado o estigma semântico que a palavra solidão
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carrega, passamos a denominar, com Bauman (2011) e Dunker (2017), a pertinente
e voluntária inclinação de ficarmos sós de solitude.
Recorrências losócas: solitude e condição humana
No texto “Isolamento como sintoma de auto-alienação”, Gadamer (2001) faz
questão de frisar a diferença entre isolamento e solidão, afirmando que o isola-
mento seria uma experiência relativa a uma perda que se sofre, já a solidão seria
uma experiência de renúncia que se procura. Perda da proximidade com os outros,
de ter tido a experiência de participar e de ser sustentado por uma esfera comum
e vê-la desaparecer, e solidão referente a uma demanda experiencial de “deter-
-se” em algo, de “querer-perseverar em algo”, sem perturbação. Embora Gadamer
(2001) não o expresse, o sentido de solidão que ele invoca é o de solitude, que traz
em seu bojo a ideia grego-socrática da contemplação, isto é, de uma experiência de
aprofundamento na própria atividade pensante. É também esse o sentido que Han-
nah Arendt (1995, p. 8) tem em mente quando se pergunta sobre: “o que estamos
‘fazendo’ quando nada fazemos a não ser pensar?”. Para ela, interrompemos nossa
atividade e, por um momento, distanciamo-nos do mundo para nos relacionarmos
conosco mesmos, refletindo sobre nossas experiências e buscando compreendê-las.
Esse esforço compreensivo “é uma atividade sem fim”, define Arendt (1995, p. 39),
“por meio da qual apreendemos a realidade [...] e nos reconciliamos com ela, isto
é, tentamos estar em casa no mundo”. Tanto para Gadamer quanto para Arendt,
é uma experiência que inexiste sem sofrimento e que nem por isso deixa de ser
intencional. Dispomo-nos a ela, ainda que com muitas resistências, visto que ela
nos expõe aos nossos próprios limites. É, portanto, a antítese de uma atividade
espontânea e, nos termos de Gadamer, de recusa da experiência da realidade que o
isolamento e o sofrimento implicam.
Do sentimento de solitude, próprio de quem se detém no próprio pensamento
ou de quem simplesmente está consigo, Luc Ferry (2012) afirma que ninguém está
privado, mesmo quem se encontra supostamente em plena saúde psíquica. Isso
porque ninguém está livre de enfrentar as questões existenciais intrínsecas à con-
dição humana. O filósofo francês refere-se à finitude, à consciência e aos sentimen-
tos acerca da própria morte, da perda de um ente querido, até mesmo do sofrimento
que é amar e não ser correspondido. É um tipo de angústia filosófica que entra em
cena quando nos permitimos, voluntariamente, pensar em nós mesmos. Ainda que
venha acompanhada de uma sensação de nada, de vazio, de tédio, de melancolia,
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trata-se de uma “[...] angústia existencial, por assim dizer, ‘normal’, ligada, não im-
porta o que se faça, com ou sem saúde, à condição humana enquanto tal” (FERRY,
2012, p. 252, grifo do autor).
Historicamente, da filosofia à literatura, das artes em geral à música, a expe-
riência de ficar só foi concebida e amplamente cultivada como sinônimo de autocon-
templação e de autoconhecimento. No auge do romantismo alemão, essa experiên-
cia apresentou-se como a propulsora de toda aquela produção cultural, alimentada
que era justamente pela ideia de finitude. Não por acaso, a morte era um dos seus
temas centrais. À época, na filosofia, Hegel (1967) fez da metáfora da morte o ponto
arquimediano de seu pensamento, o motor da dialética e o ingrediente vital do
devir humano4. Do ponto de vista existencial, considerou que a sua presença em
nossas vidas é monolítica, pois obriga-nos a uma experiência radical da nossa pró-
pria humanidade, com todas as suas contradições.
O quadro pandêmico que nos assola tem nos colocado exatamente em contato
com a morte e com os sentimentos ambivalentes que ela nos desperta. Diante dela,
expressamos nosso lado mais fraterno, mas também o mais bestial. De um lado, nos
solidarizamos com a dor alheia, lamentamos as mortes, choramos os entes que se
foram; de outro, expomos nosso egoísmo e nossa perversidade, saindo em público
mesmo sabendo que estamos contaminados, concebendo a morte alheia como uma
morte merecida, ou defendendo o acesso a tratamento especializado e intensivo des-
de que os critérios me incluam. Isso tudo apresenta a morte como a medida de nosso
ser, precisamente de nossa humanidade. Quando nos damos conta de que estamos
realmente sujeitos a morrer e impossibilitados de contornar essa situação, percebe-
mo-nos diminutos, falíveis e, ao mesmo tempo, profundamente humanos. Reconhe-
cemos, afinal, a precariedade de nossa condição, desnaturada e sem destino.
A proposição heideggeriana em Ser e tempo (HEIDEGGER, 1998) não é outra
se não a de que estar só é a condição original de todo ser humano. Quando nasce-
mos, observa ele, somos simplesmente lançados no mundo, distinguindo-nos dos
outros pelo modo como operamos justamente diante do fato de estarmos sós, por
conseguinte do sentimento de liberdade e ao mesmo tempo de abandono que dele
decorrem. Nossa autenticidade, assim, depende do modo como compreendemos e
lidamos com a nossa ex-sistência (estar fora de si), preferencialmente respondendo
e arquitetando a nossa própria vida. Por isso, estar só, nessa perspectiva, jamais
poderia ser uma escolha, tampouco um distúrbio, desajuste ou patologia experi-
mentado pelo sujeito, mas simplesmente uma condição. Rejeitá-la seria o mesmo
que negar a nossa própria humanidade. E como ela inclui nossas mazelas e nossos
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limites, não é sem ressalvas que sentimentos como os de abandono, desamparo,
solidão, mal-estar e angústia podem ser patologizados e, então, medicados, a fim
de serem suplantados.
Para a filosofia, a admissão dessa precariedade de nossa condição constitui
o gatilho que nos põe a pensar. Seu ponto de partida encontra-se nessa espécie
de sensação de desajuste existencial que inevitavelmente experimentamos quando
olhamos bem de perto para nós mesmos e nos pensamos. A isso os gregos deno-
minaram de krisis (JAPIASSU, 2008). Tem a ver com a necessidade de fazermos
escolhas e de tomarmos decisões importantes a respeito de situações nas quais es-
tamos profundamente implicados. Daí a razão de dizermos que o pensar filosófico
é radical, porque ele produz uma cisão, uma fenda em nosso ser, colocando-nos em
desequilíbrio. Essa fissura nos leva às profundezas de nossa existência, para então
nos darmos conta de que, nela, sentido último não há, ao menos não metafísico.
Dessa experiência radical, nunca saímos como entramos. Não por acaso, a crise é
sempre paradoxal, pois, assim como é causadora de angústia, ela também surge
como uma grande oportunidade: a de sairmos transformados. Por óbvio que nada
disso realizamos sem alguma resistência. No fundo, algo nos diz que essa travessia
anuncia perdas e desilusões.
Quando fazemos a experiência de ficarmos e de permanecermos sós, tirando
dela um proveito formativo, então finalmente experimentamos a solitude. Daí po-
dermos dizer que este vírus teria uma espécie de vocação pedagógica: porque nos
infligiu dor e sofrimento, ao lançar-nos para onde não queríamos ir ou estar, ao ex-
por-nos, consoante Gadamer (2001), a uma experiência de “limites e de resistências”,
mas, em contrapartida, oportunizou-nos o tão necessário encontro com nós mesmos.
Recorrências psicanalíticas: solitude e subjetividade
Os temam do mal-estar, da solidão, da melancolia, da angústia e, também, da
solitude estão na base das proposições psicanalíticas desde Freud. Em razão disso,
eleger dentre os escritos disponíveis aqueles que se prestam à presente discussão
torna-se um dilema, a menos que elejamos critérios. Assim, ganharam destaque
algumas abordagens que ajudam a compreender a nossa dificuldade de ficarmos
sós e que privilegiam a face positiva dessa experiência.
Já em seus primeiros esboços, Freud apresenta uma premissa de impacto
decisivo não apenas para a sua teoria psicanalítica, mas também para o campo
dos estudos filosóficos e educacionais. Segundo ele, nós, humanos, desde o nosso
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nascimento, encontramo-nos numa incontornável situação de desamparo (Hiflösig-
keit) (1895-1990). A afirmação freudiana indica a precariedade instintual da nossa
condição humana e, por conta disso, a nossa absoluta dependência do semelhante
já humanizado, lançando-nos numa experiência já sempre simbólica, linguística,
significante (SAFOUAN, 1988). Isso implica admitir a ausência total de determina-
ção inata de nossa espécie, consequentemente, a constituição (corpórea e psíquica)
singular e solitária à qual estamos condenados, ainda que acolhidos por outrem.
Seguindo o rastro freudiano, Donald Winnicott (2020) vai denominar de de-
pendência absoluta a condição do neonato humano. Nessa perspectiva, além de
surgir como uma experiência inevitável desde estágios muito arcaicos do desenvol-
vimento psíquico infantil, estar só passa a ser por ele concebida como uma expe-
riência desejável. Em A capacidade de estar só (The capacity to be alone), Winnicott
(1958) faz duas importantes afirmações a partir das quais podemos inferir o lugar
da solitude no conjunto de sua teoria. A primeira delas, alegando que a “[...] capa-
cidade de estar só constitui um dos sinais mais importantes da maturidade dentro
do desenvolvimento emocional”; e a segunda, acusando os estudos psicanalíticos de
terem dedicado mais “[...] atenção ao temor do desejo de estar só do que à aptidão
para isso” (WINNICOTT, 1958, p. 415).
O ponto de partida winnicottiano ancora-se numa espécie de subversão da
relação triangular dominante no complexo de Édipo, indicando que não só haveria
relações entre duas pessoas apenas – enquanto remontam à relação primordial da
criança com a mãe (ou sua substituta) –, mas elas acenariam para relações unipes-
soais, quer dizer, do sujeito consigo mesmo, ainda que mediadas pela presença-au-
sência dessa mãe. Assim, para Winnicott (1958), não se trata de estar efetivamente
só, mas de ser capaz de; implica em a criança aprender a ficar só na presença do
outro e, mais, a gozar da solidão, condição para o “refinamento” dessa habilidade
em fases subsequentes de seu desenvolvimento, a ponto de, em ela não ocorrendo
suficientemente na infância, ficar comprometida a sua efetivação futura.
Ser capaz de ficar só, para Winnicott (1958), configura-se um “indício de saú-
de”, por isso mesmo uma experiência à qual a criança deve ser necessariamente
exposta. É da possibilidade de integração e conservação do Eu em formação no
decurso do tempo que se trata, ou seja, de a criança conseguir “relaxar”, “alienar-
-se”, “encontrar-se em um estado de desorientação”, “existir durante um tempo sem
reagir aos estímulos do exterior” (1958, p. 419). Situação que depende da interio-
rização dos objetos e das relações externas, constituindo a “cena”, como Winnicott
(1958) denomina, para uma experiência pessoal e, segundo podemos inferir, a base
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para uma ulterior e legítima experiência de solitude. Acompanhando Winnicott,
chegaríamos, então, às condições de possibilidade para que o indivíduo adulto pos-
sa, ele mesmo, ser capaz de ficar só e desejar a solitude, este modo especial, segundo
Christian Dunker (2017, p. 21-23), de compreender a solidão como uma experiência
“[...] boa e necessária”, além de “[...] escolhida, intencional e deliberada”.
Para Dunker (2017), o modo como interpretamos, nomeamos e narramos nos-
sa experiência de sofrimento transforma sua natureza, extensão e intensidade, a
ponto de podermos ter uma experiência produtiva de estarmos sós e um grande
prejuízo psíquico caso estejamos privados ou indispostos a ela. Consoante Winni-
cott, Dunker (2017) ressalta que ficar só traz consigo um conjunto de sentimentos
necessários para a saúde psíquica. Ocorre quando nos estranhamos, espantamo-
-nos com o mundo, percebemo-nos contraditórios, fragmentados, múltiplos, frágeis,
vulneráveis.
Birman (2014) lembra, contudo, que a pressa, a incerteza e a transitoriedade,
que marcam o contemporâneo, têm nos impedido de ter essa experiência, exorci-
zando as possibilidades de referência dentro ou mesmo fora de si do sujeito, produ-
zindo mal-estar. Ele chega, inclusive, a interrogar se podemos ainda denominá-lo
de “sujeito”, por se tratar de um termo moderno cujo sentido passa pela ideia de
interioridade, reflexividade e de relação com o objeto. O psicanalista ressalta que
o referido mal-estar contemporâneo se daria em três registros: do corpo, da ação e
da intensidade, todos efeitos da perda do registro do pensamento e da linguagem,
eixos característicos da modernidade. O registro do corpo se expressaria na ten-
dência contemporânea de tomá-lo como um bem maior, aumentando a procura por
fórmulas e recursos que prometem contornar sua precarização e sua debilidade
naturais, além do uso irrestrito de drogas para amenizar o estresse, a fadiga e o
pânico que essa busca intermitente conduz. No registro da ação, a hiperatividade,
a irritabilidade e a violência surgiriam como comportamentos indicativos da inca-
pacidade do sujeito de suportar o excesso em seu interior, razão pela qual leva ao
ato ao invés da atuação, ou seja, prefere deixar-se levar pela espacialidade do aqui
e agora e pela circunscrição no somático ao invés de simbolizar, transformando o
excesso numa ação específica e intencional, dando, assim, abertura para outras
possibilidades de existência. Já a intensidade é justamente aquilo que, em função
de sua grandeza, a subjetividade não consegue dar conta, razão pela qual vem
acompanhada da despossessão de si, que é, para o autor, a “[...] problemática cru-
cial no mal-estar contemporâneo” (BIRMAN, 2014, p. 117). Diferentemente da ex-
periência de solitude, que exige um voluntário aprofundamento de e em si mesmo
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do sujeito, a fim de que retorne subjetivamente mais fortalecido; na despossessão
de si, o sujeito esforça-se para agarrar-se a si mesmo, devido ao medo de se perder.
Todos os três registros supracitados apresentam-se como uma inversão da
ideia moderna de que o pensamento era a condição de existência do sujeito, uma
inversão, aliás, protagonizada pela própria psicanálise ao criticar o alcance da
consciência e a onipotência da razão e ao conceder lugar especial à pulsão e ao in-
consciente. Birman (2014) lembra, porém, que rebaixada de posto a razão, com ela
foi também o pensamento. Passamos de um extremo a outro, esquecendo-nos que o
pensamento não perde, nem pode perder, sua “[...] posição decisiva na descrição da
subjetividade” (BIRMAN, 2014, p. 130), uma vez que ele permanece como marca
indelével da condição humana, só que, agora, marcado pelo limite, pela fragmenta-
ção, pela ambivalência e pelo conflito.
Segundo Birman (2014, p. 132), a perda de referência ao pensamento seria
justamente a causa do mal-estar contemporâneo, prova disso é que:
[...] as pessoas se queixam de que algo as incomoda no corpo e que são tomadas por inten-
sidades que as esvaziam, mas de maneira passiva e não implicada no que lhes acontece.
Tudo se passa como se o que lhes ocorresse fossem coisas estranhas a elas mesmas, que não
poderiam ter qualquer acesso ao que lhes acontece. Por isso mesmo, não levantam qualquer
questão a respeito. Nessa inexistência de indagação, o registro do pensamento se evidencia
na sua ausência e suspensão.
Eventos como a pandemia ilustram exatamente o aludido por Birman, atingin-
do-nos como algo estranho e, enquanto tal, pronto a ser negado. Evitamos pensá-lo
em seus pormenores, principalmente quanto aos seus impactos em nossa própria
subjetividade. Por isso, é uma experiência acompanhada de muitas queixas, que
não fazem senão expressar certa desistência e espera de que o outro faça algo por
e em nosso lugar, incapazes que somos de saber algo sobre nós e de fazer alguma
coisa por nós mesmos (BIRMAN, 2014, p. 132).
No caso específico da pandemia, parte da queixa mostraria o quanto ficamos
reféns de orientações alheias que pouco nos exigem, de fórmulas salvacionistas
destituídas de qualquer credibilidade científica ou, ainda, do quanto a reclamação
pela convivência social pode ser apenas uma desculpa para a dificuldade que temos
de nos autorregularmos e uma fuga do verdadeiro incômodo que é ser exposto à
introspecção. Isso explica porque a pergunta que geralmente acompanha a queixa,
segundo Birman (2014), é “o que devo fazer?”. Ela revela justamente o quanto so-
mos carentes da tutela alheia e o quanto permitimos a anulação do nosso pensar,
substituindo-o pelo fazer, inclusive, sugerido pelo outro.
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Decorrem daí inúmeras consequências, dentre elas o “empobrecimento da
linguagem, que marca de maneira indelével as subjetividades contemporâneas”
(BIRMAN, 2014, p. 133). O que opera é uma discursividade marcada pela espacia-
lidade, pela horizontalidade e centrada no aqui e no agora, e não pela temporalida-
de e pela verticalidade, portanto, pelo metafórico e pela criação. O predomínio é de
uma linguagem sem rupturas, porque é de um sujeito ensimesmado que se trata,
antítese do sujeito do inconsciente marcado que é pela inconsistência e pela diacro-
nia, como bem definiu Lacan (1992). O sujeito contemporâneo é o sujeito de uma
linguagem simbolicamente precarizada, que se fixa numa retórica instrumental,
porque privada de qualquer dimensão criativa (BIRMAN, 2014). Em vista disso,
o que sobra, numa possível relação consigo mesmo do sujeito, não é a solitude,
enquanto momento propício para nutrir o pensamento e ampliar a subjetividade,
estranhando-se e refazendo-se, mas apenas o sofrimento.
Do sentido formativo de estar só
O modo como temos vivido não tem sido nada favorável para a solitude, nem
mesmo quando somos induzidos a ela. A nossa resistência para ficarmos sós e o so-
frimento daí decorrente já é um sintoma do nosso tempo presente, tão bem descrito
em detalhes por Bauman (2009), Safatle (2018), Sennett (2012), Lipovetsky (2007),
só para listar alguns. Um tempo que insiste em nos manter sempre muito ocupados,
conectados, “socializados”. Apesar de paradoxal, nosso contexto contemporâneo
tem sido providencial para desviarmos do encontro com nós mesmos, constituindo-
-nos em subjetividades cujos sujeitos estão ausentes. Sem recursos psíquicos, sem
intimidade, sem interioridade, ficamos à mercê das contingências e circunstâncias
externas, a maioria delas perversamente criada para nos alienar de nós mesmos,
fazendo-nos trabalhar em favor de tudo aquilo que tem nos objetificado.
Não é de estranhar, então, que o nosso mundo contemporâneo – globalizado,
consumista, virtualizado, digitalizado – não tenha resguardado qualquer espaço
para a experiência da solitude, lamentavelmente, nem mesmo a educação, que tem
sido cada vez mais aliciada pelo sistema e já opera na mesma lógica objetificante
da competitividade, da eficiência e dos resultados. A pandemia, nesse contexto, só
trouxe à superfície o que já operava implicitamente, a exemplo do sentimento de
solidão, o que nem mesmo os ambientes virtuais e as redes sociais têm conseguido
dar conta. Nunca pudemos estar virtualmente tão próximos das pessoas, em con-
trapartida, nunca reclamamos tanto de solidão e de sensação de vazio. Vazio que
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buscamos preencher, amiúde, novamente com grupos virtualmente arranjados. O
tempo todo, segundo observa Bauman (2011), nossas tentativas de ficarmos sós,
insuportável para muitos, são contornadas pelas redes sociais, as quais nos prome-
teram que nunca mais sentiríamos solidão ou seríamos excluídos. Nesse universo
on-line, todos nós podemos “estar” e “estar com”, além de podermos excluir, des-
conectar, mudar de grupo, caso o outro, presencial ou virtualmente, nos exija em
demasia. De qualquer forma, permanecemos “plugados” pelo medo de ficarmos sós
e de enfrentarmos o contraditório, seja ele vindo do outro, seja produzido por nós
mesmos quando pensamos. Ao fazermos isso, alerta Bauman (2011, p. 11), deixa-
mos “[...] escapar a chance da solitude: dessa sublime condição na qual a pessoa
pode ‘juntar pensamentos’, ponderar, refletir sobre eles, criar [...]”; o pensador po-
lonês então sentencia: “[...] quem nunca saboreou o gosto da solitude, talvez nunca
venha a saber o que deixou escapar, jogou fora e perdeu”.
Bauman (2011) lembra que as promessas feitas pelas tecnologias nos foram
oferecidas sem quaisquer advertências. Nunca nos disseram, por exemplo, que, ao
invés da incontornável condenação à solidão, estaríamos condenados a uma socia-
lização eterna, a estarmos sempre com alguém, disponíveis, conectados, midiatica-
mente agrupados, pertencentes, convocados, a qualquer hora, em qualquer lugar.
Também não nos alertaram que tudo isso seria ineficaz contra o nosso vazio exis-
tencial, razão pela qual, obstinada e ilusoriamente, continuamos a dar as costas a
nós mesmos e a visar apenas o que está do lado de fora. Neste fora, situamos tudo,
inclusive o outro, como um ser a serviço, um objeto para o nosso consumo, um cura-
tivo para nossa ferida narcísica ou uma fonte de lisonjas virtuais a funcionar como
“suprimentos” para alimentar nossa autoestima. Sentimos, mas evitamos pensar
o sentido. Percebemo-nos sós, mas não nos reconhecemos sós. Orgulhamo-nos de
sermos singulares, mas sequer admitimos que, em sendo assim, somos únicos, in-
dividuais, moleculares, em última instância, solitários. E mais: que essa solidão é
de um tipo radical, porque a vivemos dentro de um corpo ao qual somos condenados
desde o nosso nascimento. Tão radical é nossa solidão que só temos vida enquanto
colados a este corpo impossível de ser emprestado, trocado ou dividido, seja com
quem for. Estar só, portanto, é estar só neste locus indiviso e inabitável por outrem,
a não ser por nós mesmos.
Faz uma diferença enorme bem compreendermos isso, visto que a experiência
de cada um a respeito de si mesmo e do mundo, por ser absolutamente singular, é
sempre desigual relativamente à experiência alheia. Destarte, se existe algo que
nos permite a aproximação com o outro é justamente o fato de não sobrevivermos
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sem o outro e de presumirmos que este outro faz a mesma experiência de ser e
estar, incontornavelmente, só. Fazemos, então, ao lado dele, a experiência da so-
litude. Entendemos, assim, por que carecemos tanto de falar sobre nós mesmos e
de estarmos sempre com alguém. Trata-se de uma forma, quase delirante, de nos
fundirmos com o outro, como quem quer livrar-se do desamparo fundamental ou da
dependência absoluta, respectivamente nominados por Freud (1895/1990) e Winni-
cott (2020). Tão corriqueira e até mesmo “natural” se apresenta esta necessidade
de nos evadirmos de nós mesmos e nos associarmos aos outros que, quando não
atendemos a esta demanda, quando ousamos gozar da solidão, surge a suspeita –
nossa mesma ou alheia – de que estamos em adoecimento ou em desiquilíbrio emo-
cional. E, se de fato sofremos, deixamo-nos regular pelo social, que diz se podemos
ou não experienciá-lo, por quanto tempo e quais os melhores métodos de aplacá-lo.
Pensar a solitude, nesse sentido, implica não somente reconhecer o estar só
como condição estrutural de nossa existência e enquanto tal inevitável, senão como
algo desejável, já que pensar, conforme advertido por Birman (2014), é uma expe-
riência radicalmente solitária. Decerto que é possível e até mesmo conveniente ex-
pressarmos nosso pensamento, compartilhando-o com os outros, inclusive porque
é mediante processos de identificação e diferenciação, no laço e na convivência,
que encontramos a base de constituição, desenvolvimento e sustentação de nossa
subjetividade. Todavia, para pensarmos a solitude, convém considerarmos que os
processos de identificação, sobretudo aqueles que se dão no agrupamento, podem
apresentar um potencial altamente alienante e tolhidor das subjetividades, sobre-
tudo quando operam dentro de uma lógica linear e padronizante, que não acolhe o
contraditório, como bem detalhou Freud (1921/2011) em Psicologia das massas e
análise do eu.5 Nesses termos, a disposição para o agrupamento social funcionaria
como um recurso de defesa do eu, a fim de evitar, dentre outras coisas, a solidão.
Podemos, agora, nos perguntar o que todo este debate em torno da solitude
tem a ver com formação humana, principalmente quando sabemos que os processos
formativos, institucionalizados ou não, fazem-se em interação? Sem dúvida algu-
ma, toda dinâmica educativa se faz junto, se faz com e se faz entre adultos e crian-
ças, velhos e novos, iguais e diferentes, singulares e plurais, sozinhos e em grupo.
Há, contudo, uma dimensão que se faz só. Tem a ver com um momento do processo
que precisamos elaborar subjetivamente o que transita na relação pedagógica, aco-
lhendo, tensionando, registrando e acomodando o transmitido, a fim de constituir
sentidos. É algo que ninguém pode fazer para nem por ninguém.
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Solitude e isolamento: o caráter formativo do encontro consigo mesmo
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Se é assim, devemos nos questionar se não temos descuidado de nossa própria
formação e deixado de reservar momentos para ficarmos sós. Ou, então, se como
pais e educadores não temos incorrido no mesmo descuido relativamente às crian-
ças e aos adolescentes e deixado de criar e preservar espaços para que desenvolvam
uma vida interior. Devemos nos perguntar se não temos reforçado esta espécie de
tendência para a evasão subjetiva, na busca obstinada por tudo aquilo que está do
lado de fora e disponível para o consumo, ainda que seja outra subjetividade. Se
não temos exigido socialização e ocupação intermitentes, impedindo-os de even-
tualmente se ensimesmarem, pensando, criando e sentindo a si mesmos, ainda
que isso possa entediá-los. Se não temos assumido uma posição demasiadamente
subserviente com relação às demandas de felicidade, de prazer, de realização, que
nós mesmos neles projetivamente colocamos, de preferência respondendo imedia-
tamente para não produzir frustração.
Pode, afinal, alguma formação advir sem resistência e deslocamento? Do am-
plo sentido formativo legado pela Bildung, uma coisa é certa, temos ignorado uma
de suas principais lições. Dentre elas, a de que não há experiência formativa que
não produza, em termos hegelianos, dilaceramento, em outras palavras, que se
faça sem violentar o ser. Não há formação sem contradição interna, sem desilu-
são ou angústia. Seria insuportável viver constantemente assim, é verdade. Mas é
também verdade, como nos ensinou Hegel (1996) e também a psicanálise, que, para
nos encontrarmos, é antes preciso nos perdermos.
Considerações nais
Mesmo reconhecendo todos os efeitos altamente danosos que a pandemia da
Covid-19 tem produzido, o intuito destes escritos foi buscar compreender os seus
impactos na saúde mental e encontrar, em meio a essa experiência, um sentido for-
mativo através de uma ótica relativamente inversa. A pandemia, assim, foi tomada
não apenas como objeto, mas também como um pretexto. Ao invés de tentarmos
encontrar nela as justificativas para o sofrimento provocado pela exigência de dis-
tanciamento físico, a tese aqui defendida foi a de que a pandemia acabou atua-
lizando questões subjetivas latentes, mostrando, por exemplo, que a dificuldade
de cumprirmos com as prescrições de isolamento ocultaria outros fatores, como a
dificuldade de ficarmos sós e nos havermos com nós mesmos.
Em termos gerais, experiências que nos levam a ficar sós tendem a ser evi-
tadas, pois sugerem o sofrimento como seu produto ou mesmo como sua causa.
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Nesses casos, não por outra razão, empregamos o termo solidão. Todavia, quando
a compreendemos e a reconhecemos como algo inerente à nossa condição humana,
convertemos solidão em solitude, ou seja, na capacidade e no desejo de ficarmos
sós, de nos pensarmos, de estabelecermos uma relação mais próxima com nosso
próprio ser, que, em tese, nos é tão familiar, mas, ao mesmo tempo, tão pouco co-
nhecido, chegando por vezes a nos parecer impróprio.
Constatamos, enfim, que o nosso modo de vida tem sido providencial para
quem sempre desviou do encontro consigo, afinal, passamos a maior parte do tem-
po do lado de fora, desconectados de nós mesmos e conectados com o mundo, con-
sumindo-o. A nossa vida de demandas sociais (ou pseudossociais), comunicativa,
interativa, participante, ativa, produtiva, consumista, tem nos privado da grande
experiência de nos cultivarmos. Quem sabe não estejamos conseguindo porque,
de fato, pouco temos a cultivar. É comum acontecer quando estamos esvaziados:
de pensamentos, de imaginação, de cultura, de desejos, ou simplesmente quando
já não há mais sujeito, o que nos impede de refletirmos, literalmente de olharmos
para nós mesmos como diante de um espelho. E, havendo sujeito, sabemos que é
preciso coragem para enfrentar o desafio de eventualmente não nos reconhecer-
mos. Hegel (1996) diria que este é o preço a pagar se, depois de nos estranharmos,
desejarmos a reconciliação com nós mesmos, para finalmente nos sentirmos em
casa. Algo impossível para quem evita encontrar-se, insistindo em permanecer
sempre do lado de fora.
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O bem-estar subjetivo de professores: uma investigação em tempos de pandemia
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O bem-estar subjetivo de professores: uma investigação em tempos de pandemia
The subjective well-being of teachers: an investigation in times of pandemic
El bienestar subjetivo de los docentes: una investigación en tiempos de pandemia
Luiz Gonzaga Lapa Junior*
Resumo
As pandemias, como a da Covid-19, afetam uma quantidade relativamente grande de pessoas e impõem novas
regras e novos hábitos sociais para a população mundial. O distanciamento social e o fechamento de escolas,
bem como a nova forma de o docente trabalhar, podem promover mudanças no sistema emocional. O objetivo
deste estudo foi investigar o bem-estar subjetivo (BES) em docentes de três municípios de Goiás. Participaram
481 docentes, com idades entre 25 e 64 anos, sendo 319 do gênero feminino (66,3%). Utilizou-se a escala de
bem-estar subjetivo (EBES) de Albuquerque e Tróccoli (2004). Apesar dos momentos de pandemia, os resultados
apontam a predominância de afetos positivos e uma indenição quanto à satisfação com a vida. Destacam-se
os afetos negativos apresentando uma correlação direta com satisfação com a vida (r=0,206, ρ< 0,01), e o fator
geral do BES teve uma forte correlação positiva com os afetos negativos (r=0,721, ρ< 0,01). Investigar o BES de
docentes é importante no campo da Educação, para o planejamento de ações e políticas públicas referentes à
saúde coletiva e à felicidade desses sujeitos.
Palavras-chave: bem-estar subjetivo; docentes; afetividade; satisfação com a vida.
Abstract
Pandemics, like that of Covid-19, aect a relatively large number of people and impose new social rules and
habits on the world population.Social distanceand school closings, as well as the new way for teachers to work,
can promote changes in their emotional system.The objective of this study was to investigate the subjective
well-being (BES) in teachers from three municipalities in Goiás. 481 teachers participated, aged between 25 and
64 years, in which 319 are female (66.3%).The Subjective Well-Being Scale (EBES) of Albuquerque and Tróccoli
(2004) was used. Despite the pandemic moments, the results point to the predominance of positive aects and
an uncertainty regarding satisfaction with life. Negative aects stand out, presenting a direct correlation with life
satisfaction (r= 0.721,ρ <0.01) and the general BES factor had a strong positive correlation with negative aects
(r= 0.721,ρ <0.01).Investigating the subjective well-being of teachers is important in the eld of Education for
planning public actions and policies regarding the collective healthand happiness of these subjects.
Keywords: subjective well-being; teachers; aection; satisfaction with life.
* Mestre e doutor em Educação pela Universidade de Brasília (UnB), participante de grupos de pesquisa pela UnB e
pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Tem experiências docentes nas redes pública e particular de educação
básica pela Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal, bem como no ensino superior dessa localidade.
Orcid: https://orcid.org/000-0003-3488-947X. E-mail: lapalipe@gmail.com
Recebido em: 30/10/2020 – Aprovado em: 27/11/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i3.11808
1056 ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Luiz Gonzaga Lapa Junior
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Resumen
Las pandemias, como la Covid-19, afectan a un número relativamente grande de personas e imponen nuevas
reglas y hábitos sociales para la población mundial.El distanciamiento social y el cierre de escuelas, así como la
nueva forma de trabajar de los docentes, pueden promover cambios en su sistema emocional.El objetivo de este
estudio fue investigar el bienestar subjetivo (BES) de docentes de tres ciudades de Goiás, participaron un total
de 481 docentes, con edades comprendidas entre los 25 y los 64 años, de los cuales 319 eran mujeres (66,3%).Se
utilizó la Escala de Bienestar Subjetivo (EBES) de Albuquerque y Tróccoli (2004). A pesar de los momentos de La
pandemia, los resultados muestran el predomínio de afectos positivos y una indenición sobre La satisfacción
con la vida. Se destacan los afectos negativos, que muestran una correlación directa con la satisfacción con la
vida (r= 0,206,ρ <0,01) y el factor general de la BES tuvo una fuerte correlación positiva con los afectos negativos
(r= 0,721,ρ <0,01).Investigar el bienestar subjetivo de los docentes es importante en el campo de la Educación
para planicar acciones y políticas públicas en torno a la salud y felicidad colectiva de estos sujetos.
Palabras clave: bienestar subjetivo;maestros;afecto;satisfacción con la vida.
Introdução
Vivenciamos momentos de fragilidade e possível perda de identidade com o
confinamento imposto pela Covid-19. Muitos indivíduos afloraram sentimentos e
ações como cooperação, solidariedade, medo, ansiedade, solidão, companheirismo,
entre outros. Independentemente das funções desempenhadas, as pessoas reduzi-
ram drasticamente o contato físico com o próximo. A repercussão da Covid-19 teve
impactos sociais, econômicos, políticos, culturais e históricos para a humanidade.
Possivelmente, muitas pessoas podem vir a desenvolver algum tipo de problema
de saúde mental durante a pandemia. Situações como isolamento social, medo do
contágio, luto pela perda de pessoas conhecidas, restrições de mobilidade, falta
de trabalho, perdas financeiras relacionadas ao desemprego e novos desafios nas
atividades diárias apontam possíveis sequelas na saúde mental e no bem-estar
psicossocial dos indivíduos.
No cenário pré-pandemia a saúde docente chamava a atenção da sociedade
para o sofrimento e o mal-estar decorrentes do trabalho. A análise da atividade
docente revelou um processo de intensificação do trabalho (ARAÚJO et al., 2019).
Nessa ótica, Araújo et al. (2019, p. 5) comentam:
Tal característica relaciona-se ao processo de precarização social do trabalho, que envolve
precarização econômica (condições salariais, jornada de trabalho, contrato) e precarização das
condições de trabalho (mudanças na organização e processo produtivo com o uso de novas fer-
ramentas e modelos de gestão flexível que alteram as rotinas laborais e as formas de controle).
A fragilização emocional dos docentes ficou mais evidenciada no processo de
pandemia da Covid-19. A rotina alterou o modo como as aulas são preparadas, bem
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como evidenciamos uma grande cobrança por produtividade. Em paralelo, há a rea-
lidade em lidar com diferentes recursos tecnológicos para a produção de aulas, re-
uniões online com gestores, elaboração e correção de inúmeras atividades, pensar e
descobrir novas metodologias, manter o maior quantitativo de alunos concentrados
em um ambiente virtual por turma, e todo esse processo tem que ser incorporado às
novas práticas docentes. Os trabalhos domésticos e os cuidados com a família são
ações incorporadas às outras exigências. Vivenciar essas demandas e manter a saú-
de mental satisfatória é o desafio para os docentes. Assim, no atual panorama so-
cial, torna-se significativo analisar o bem-estar afetivo dos docentes e compará-lo ao
estado emocional, para implantar projetos interventivos nas instituições de ensino.
Diversos estudos buscam compreender o bem-estar dos indivíduos, seja como
sinônimo de saúde, felicidade ou por conceitos que “buscam dar conta de uma mul-
tiplicidade de dimensões discutidas nas chamadas abordagens gerais ou holísticas”
(TEIXEIRA; PEREIRA; SANTOS, 2012). No sentido de saúde, Diener e Chan (2011)
confirmam que o bem-estar influencia tanto a saúde como a longevidade. Pesquisas
apontam que o bem-estar positivo relaciona-se às baixas taxas de mortalidade em pa-
cientes com HIV e insuficiência renal (CHIDA; STEPTOE, 2008). De forma inversa, as
emoções negativas podem fortalecer doenças cardiovasculares (SULS; BUNDE, 2005).
Como sinônimo de felicidade, Siqueira e Padovam (2008), entre outros, usam o concei-
to de bem-estar subjetivo (BES). A felicidade também é definida como emoção positiva
duradoura revestida de estabilidade (CONTRERAS; ESGUERRA, 2006), como um
estado emocional, subjetivamente definido por uma pessoa (SNYDER; LOPEZ, 2009).
Neste trabalho, o estudo do BES busca compreender a avaliação que as pes-
soas fazem de suas vidas (ALBUQUERQUE; TRÓCCOLI, 2004). O alto nível de
BES é um estado que muitos indivíduos desejam, alguns alcançam e poucos des-
prezam como sendo um luxo desnecessário para si (DIENER; CHAN, 2011). Dada
a estreita relação do BES como algo desejável e benéfico à saúde e à felicidade,
torna-se importante analisar a afetividade dos docentes, prioritariamente neste
momento de doença coletiva.
Para compreender como estão as emoções de professores e professoras nos as-
pectos pessoais durante o isolamento social, foi realizada uma pesquisa com docen-
tes da rede pública de ensino da educação básica em municípios de Goiás. O obje-
tivo desta pesquisa visou compreender o estado emocional do corpo docente desses
municípios, para a implantação de projetos interventivos intentando melhorias no
processo de acolhimento e auxílio para a produção de metodologias diferenciadas
nas diversas áreas do conhecimento.
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Estudos do bem-estar subjetivo
Continuamente, os indivíduos fazem avaliações acerca de suas vidas e geram
emoções prazerosas ou desgostosas. Essas emoções afetam atitudes e comportamen-
tos, e estes podem ser indicadores do bem-estar das pessoas. Diversos autores citam
o bem-estar como o funcionamento positivo ou a experiência e o funcionamento psico-
lógico positivo (RYFF, 1989; RYAN; DECI, 2001; DECI; RYAN, 2008; WATERMAN,
1993). Outros o descrevem como experiências de prazer e desprazer construídas pelas
pessoas para julgar sobre o que é bom ou mau em suas vidas (RYAN; DECI, 2001).
O bem-estar subjetivo (BES) tem um amplo conceito e inclui duas dimensões cor-
relacionadas entre si: uma cognitiva (satisfação com a vida) e outra afetiva (positivos e
negativos). É uma área que integra conceitos como a qualidade de vida e o afeto. O BES
vem sendo pesquisado e mensurado em diversas culturas no mundo. As investigações
sobre o tema o coloca sob os olhares de várias áreas da Psicologia, como Psicologia
Social, Psicologia da Saúde e Psicologia Clínica (GALINHA, 2008), além da Educação.
Para Nascimento, Taissun e Martins (2019, p. 245), o BES engloba amplas
avaliações, “como julgamentos de satisfação consigo mesmo, com a própria saúde
e com sentimentos específicos que refletem como as pessoas estão reagindo aos
eventos e circunstâncias correspondentes”. Os autores também comentam:
Em síntese, a dimensão cognitiva refere-se ao julgamento da satisfação global com a vida e
da satisfação com seus diferentes domínios, como trabalho e família. A dimensão afetiva se
refere às reações emocionais aos eventos e circunstâncias e são compostas por afetos posi-
tivos (alegria, contentamento), bem como por afetos negativos (culpa, vergonha, tristeza).
Nesse sentido, um bom nível de bem-estar subjetivo ocorre quando o indivíduo reconhece
um elevado nível de satisfação global com a vida, assim como um balanço positivo da vivên-
cia de afetos positivos e negativos.
O termo felicidade é utilizado na área de estudo sobre o bem-estar como sinôni-
mo de BES, pois enfatiza a felicidade como busca pelo prazer – aquilo que minimiza
o sofrimento, proporciona uma vida prazerosa e favorece a satisfação com a vida
(SNYDER; LOPEZ, 2009). O bem-estar subjetivo satisfatório é definido pela pre-
dominância de experiências de afetos positivos, baixos índices de afetos negativos
e elevada satisfação com a vida. Assim, o BES não somente é influenciado pela au-
sência dos afetos negativos, como também necessita da vivência de afetos positivos.
Com relação ao bem-estar e à saúde, Ryff, Singer e Love (2004) demonstra-
ram que níveis altos de bem-estar estão associados positivamente às melhorias em
doenças, como cardiovasculares e processos inflamatórios crônicos, por exemplo.
O olhar sobre a saúde se remete à relação entre indivíduo e trabalho, cujos resul-
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tados buscam a satisfação nas atividades desenvolvidas. Quando os indivíduos se
encontram desmotivados na sua profissão, sentem-se desvalorizados por contínuos
acréscimos de exigências profissionais, constante contato com violência e indisci-
plina, os níveis de bem-estar reduzem. Surgem o esgotamento, a fadiga, o descon-
tentamento e o desencanto pelo trabalho (ARAÚJO et al., 2019).
Gill e Feinstein (1994) explicam que a qualidade de vida não se relaciona
somente aos fatores relacionados à saúde, mas também a trabalho, família, cir-
cunstância de vida, entre outros. Dessa forma, “o elemento subjetivo é essencial
na avaliação da qualidade de vida de um indivíduo ou de um grupo (ALBUQUER-
QUE; TRÓCCOLI, 2004, p. 154). Estudos envolvendo o BES englobam indicadores
afetivos de felicidade e de qualidade de vida. Assim, diversos estudiosos concordam
que o BES engloba três dimensões: satisfação com a vida, afetos positivos e afetos
negativos (RYAN; DECI, 2001; DECI; RYAN, 2008; RYFF; KEYES; SHMOTKIN,
2002; ALBUQUERQUE; TRÓCCOLI, 2004).
Albuquerque e Tróccoli (2004, p. 154) comentam que o afeto positivo “é um con-
tentamento hedônico puro experimentado em um determinado momento como um
estado de alerta, de entusiasmo e de atividade”, como um estado emocional, um sen-
timento transitório de prazer ativo. Os autores citam que o afeto negativo refere-se “a
um estado de distração e engajamento desprazível que também é transitório, mas que
inclui emoções desagradáveis como ansiedade, depressão, agitação, aborrecimento”
(2004, p. 154). A dimensão satisfação com a vida é um processo de avaliação da pró-
pria vida do indivíduo de acordo com critérios próprios. Dessa forma, “o julgamento da
satisfação depende de uma comparação entre as circunstâncias de vida do indivíduo e
um padrão por ele escolhido” (ALBUQUERQUE; TRÓCCOLI, 2004, p. 154).
Para a mensuração do BES, utilizam-se diversas escalas, geralmente com uso
de autorrelato, em que o indivíduo julga a satisfação que possui com relação à
sua vida e relata a frequência de recentes emoções afetivas de prazer e desprazer
(DIENER; OISHI; LUCAS, 2003 apud ALBUQUERQUE; TRÓCCOLI, 2004). Esta
pesquisa utilizou uma escala brasileira de mensuração, a escala de bem-estar sub-
jetivo (EBES), de Albuquerque e Tróccoli (2004), composta de itens representativos
dos fatores satisfação com a vida e afeto positivo e negativo.
Metodologia
Trata-se de uma investigação quantitativa de pesquisa survey para a coleta
de dados e informações sobre o bem-estar de docentes da educação básica em mu-
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nicípios de Goiás durante o período de pandemia. A participação foi voluntária,
mantendo o anonimato dos participantes.
Participantes
A amostra consistiu de 481 docentes (319 do gênero feminino, 66,3% do to-
tal), com idades entre 25 e 64 anos, a maioria apresentou estado civil casado(a)
(54,9%), 42,8% pertencem à religião católica, 62,8% possuem pós-graduação com
especialização, 62,4% atuam no ensino médio. A descrição demográfica detalhada
da amostra se encontra na Tabela 1.
Tabela 1 – Dados demográficos da amostra (N = 481)
Variável Descrição Frequência Porcentagem
Gênero Feminino 319 66,3
Masculino 162 33,7
Estado civil
solteiro(a) 145 30,1
casado(a) 264 54,9
separado(a) 10 2,1
divorciado(a) 54 11,2
viúvo(a) 8 1,7
Faixa etária
20 a 29 59 12,3
30 a 39 144 29,9
40 a 49 183 38,0
50 a 59 81 16,8
60 a 69 14 2,9
Religião
Católica 206 42,8
Budista 1 0,2
Espírita 21 4,4
Evangélica 167 34,7
Umbanda 8 1,7
Candomblé 0 0,0
Outra 78 16,2
Escolaridade
Curso superior completo 141 29,3
Pós-graduação (especialização) 302 62,8
Mestrado (em andamento) 18 3,7
Mestrado 15 3,1
Doutorado (em andamento) 3 0,6
Doutorado 2 0,45
Nível de ensino
Ensino fund. (anos iniciais) 9 1,9
Ensino fund. (anos finais) 136 28,3
Ensino médio 300 62,4
EJA* 36 7,5
Formação acadêmica
Pedagogia 33 6,8
Humanas e Sociais 103 21,4
Ciências da Natureza 86 17,9
Linguagens e Códigos 150 31,2
Matemática 95 19,8
Outra 14 2,9
Fonte: elaboração do autor.
* Educação de Jovens e Adultos.
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Instrumentos
Foram utilizados a EBES (ALBUQUERQUE; TRÓCCOLI, 2004) e um ques-
tionário sociodemográfico, para caracterizar o perfil dos docentes e identificar suas
relações com o BES. O EBES é composto por duas subescalas tipo Likert de cinco
pontos com 62 itens distribuídos nas três dimensões – afetos positivos, afetos ne-
gativos e satisfação com a vida. A primeira subescala trata dos afetos positivos e
negativos, contendo 47 itens, em que a tarefa do docente é responder como tem se
sentido ultimamente, variando de 1 (nem um pouco) a 5 (extremamente). Exem-
plifica-se como variáveis: “entusiasmado” ou “incomodado”. Na segunda subescala,
a dimensão da qualidade de vida é constituída por 15 itens com assertivas sobre
a vida atual dos docentes. Exemplificam-se como variáveis: “estou satisfeito com
minha vida” e “minha vida poderia estar melhor”, com uma escala que varia de 1
(discordo plenamente) a 5 (concordo plenamente).
Procedimentos
O formulário foi elaborado no Google Forms e distribuído ao corpo docente dos
municípios, sob a coordenação das respectivas equipes pedagógicas. Inicialmente,
deu-se o prazo de duas semanas para o preenchimento do instrumento, sendo pror-
rogado por mais uma semana. Os dados foram analisados pelo programa Statisti-
cal Package for the Social Sciences (SPSS), versão 23.
A EBES mostrou-se um instrumento válido e preciso para o uso e a avaliação
do BES em docentes, atendendo à recomendação dos autores Diener et al. (1999)
sobre a construção de instrumentos de medida de BES que avaliem separadamente
seus componentes (SANTOS, 2012; MEDEIROS, 2019).
Resultados
Os resultados indicam que os docentes apresentaram maiores médias (M)
para os aspectos afetivos positivos (M=3,18) do que os negativos (M=2,34). Os três
afetos positivos que apresentaram maior intensidade foram: ativo (M=3,59), aten-
to (M=3,51) e amável (M=3,44); enquanto os de menor intensidade foram: esti-
mulado (M=2,84), empolgado (M=2,83) e vigoroso (M=2,79). De forma inversa, os
três afetos negativos com maior presença foram: preocupado (M=3,25), apreensivo
(M=2,93) e aflito (M=2,84); e os com menor presença foram: transtornado (M=1,73),
envergonhado (M=1,63) e agressivo (M=1,54).
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Relações entre afetividade, satisfação com a vida e variáveis sociodemográcas
Encontramos diferenças nas médias dos afetos positivos entre os gêneros, in-
dicados na Tabela 2, contendo os três afetos com as maiores intensidades. O estudo
apontou que os três principais afetos negativos demonstrados pelos docentes foram
os mesmos entre os gêneros, diferenciando apenas no índice geral da média.
Tabela 2 – Os três principais afetos positivos e negativos entre os gêneros
Gênero Afeto positivo (M) Afeto negativo (M)
Feminino
amável (3,46) preocupado(a) (3,31)
decidido(a) (3,39) apreensivo(a) (2,98)
determinado(a) (3,38) aflito(a) (2,94)
Masculino
ativo(a) (3,65) preocupado(a) (3,12)
atento(a) (3,63) apreensivo(a) (2,82)
interessado(a) (3,57 aflito(a) (2,64)
Fonte: elaboração do autor.
Demonstra-se, pelas técnicas de ANOVA e Teste-t, que o gênero masculino
apresentou predominância nos aspectos afetivos positivos [t(479)= -3,56, p<0,01], ou
seja, os homens demonstraram maior afetividade positiva que as mulheres. Pelas
estatísticas, há indícios de que os participantes das faixas etárias de 20 a 29 anos e
40 a 49 anos possuem maior satisfação com a vida do que os da faixa etária de 50 a
59 anos. Da mesma forma, docentes com mestrado ou doutorado e os que atuam no
ensino fundamental (anos iniciais) indicam expressar maior satisfação com a vida.
É interessante relatar os afetos prioritários entre as faixas etárias, indicando
possíveis características de suas emoções nestes momentos de pandemia. Enquanto
os docentes mais jovens demonstram preocupação, os de maior idade demonstram
priorizar a atenção. A crise gerada pelo novo coronavírus tem um forte impacto na
vida de jovens pela perda da intensa rotina diária, desde a vida profissional até os
momentos de lazer com amigos e família. Para os de maior idade, provavelmente
a intensa divulgação da fragilidade e consequências práticas da Covid-19, desde o
início da pandemia, tenha promovida emoções de cautela. O Quadro 1 apresenta os
afetos mais frequentes e prioritários indicados por faixas etárias.
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Quadro 1 – Afetos prioritários dos docentes por faixa etária
Faixa etária Afetos percebidos
(ordem de prioridade por médias)
20 a 29 anos preocupado(a), atento(a), ativo(a), produtivo(a), ansioso(a)
30 a 39 anos ativo(a), decidido(a), atento(a), interessado(a), preocupado(a)
40 a 49 anos ativo(a), atento(a), decidido(a), amável, preocupado(a)
50 a 59 anos amável, ativo(a), decidido(a), determinado(a), preocupado(a)
60 a 69 anos atento(a), determinado(a), interessado(a), disposto(a), preocupado(a)
Fonte: elaboração do autor.
Avaliaram-se os aspectos descritivos das dimensões da EBES, sendo os re-
sultados apresentados na Tabela 3. A maior média foi obtida pelo fator dos afetos
positivos seguido pelo fator da satisfação com a vida. A menor média foi obtida
pelo fator dos afetos negativos. Em geral, os docentes apresentaram um bem-estar
subjetivo moderado.
Tabela 3 – Estatística descritiva das dimensões da EBES
Dimensões Média Desvio-padrão Mínimo Máximo
EBES – fator geral 2,80 0,34 1,77 4,00
Afetos positivos 3,18 0,71 1,10 5,00
Afetos negativos 2,34 0,80 1,00 4,77
Satisfação com a vida 3,07 0,26 2,33 4,13
Fonte: elaboração do autor.
A avaliação de fidedignidade da EBES foi analisada pelo Coeficiente de Alpha
de Cronbach, obtendo o valor de 0,963, o teste de esfericidade de Bartlett com um
Qui-Quadrado de 22442,353 (sig.<0,000), sendo considerado alto e adequado para
as análises. Para medir o grau de relacionamento entre as variáveis da EBES, uti-
lizou-se a técnica estatística de correlação com aplicação do índice de correlação
de Pearson (r), conforme Tabela 4. As correlações, na maioria, foram positivas e
significativas (ρ< 0,01), apenas a correlação entre afetos positivos e satisfação com a
vida não obteve significância (ρ> 0,05). O fator geral da EBES teve uma forte corre-
lação positiva com os afetos negativos (r=0,721, ρ< 0,01), e, como esperado, os afetos
positivos e negativos obtiveram correlação moderada negativa (r= -0,424, ρ< 0,01).
Tabela 4 – Correlações entre as dimensões da EBES
Dimensões 1 2 3 4
1 EBES – fator geral 1
2 Afetos positivos 0,301** 1
3 Afetos negativos 0,721** -0,424** 1
4 Satisfação com a vida 0,437** 0,072 0,206** 1
Fonte: elaboração do autor.
** ρ< 0,01.
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Para verificar as relações entre os itens da dimensão da EBES, realizou-se
uma análise de escalonamento multidimensional (MDS). Foram usadas transfor-
mações intervalares, com medida de dissimilaridade por distância euclidiana e a
transformação de dados em escores-Z. A Figura 1 apresenta a projeção bidimen-
sional do MDS para os 62 itens da EBES, com o índice de Stress-1 de 0,157, com
índice de dispersão (DAF) de 0,975 e o coeficiente de congruência de Tucker (TCC)
de 0,987. Esses resultados indicam que a projeção representa bem o ordenamento
dos itens decorrentes da EBES.
Figura 1 – MDS dos itens da EBES
Fonte: SPSS, v. 23.
P = afetos positivos; N = afetos negativos; Q = satisfação com a vida.
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Em termos gerais, o MDS corrobora a distribuição dos itens da EBES, exceto
alguns itens de satisfação com a vida terem se aproximado dos afetos negativos,
corroborando os resultados de correlação entre essas duas dimensões. Essa apro-
ximação é um indicativo do estado emocional dos docentes, qual seja que, nestes
momentos vivenciados na pandemia, o sistema emocional encontra-se fragilizado
por preocupações e medos, colocando os estados de apreensão e aflição, entre ou-
tros, presentes no cotidiano.
Relações entre afetividade e satisfação com a vida
A satisfação com a vida é um julgamento cognitivo de alguns domínios espe-
cíficos na vida, como saúde, trabalho, condições de moradia, relações socais, auto-
nomia, ou seja, um processo de juízo e avaliação geral da própria vida de acordo
com critérios próprios (SILVEIRA et al., 2015). Para Albuquerque e Tróccoli (2004),
satisfação reflete, em parte, o BES individual, ou seja, o modo e os motivos que
levam as pessoas a viverem suas experiências de vida de maneira positiva.
Dessa forma, foram efetuadas as correlações entre os itens de satisfação com
a vida e afetos. Por questão de espaço, consideram-se as duas maiores correlações
entre as variáveis, conforme no Quadro 2.
Quadro 2 – Correlações entre os itens de satisfação com a vida e os afetos da EBES
(continua...)
Descrição Afeto Correlação
Estou satisfeito com minha vida bem 0,342**
entusiasmado(a) 0,289**
Tenho aproveitado as oportunidades da vida decidido(a) 0,323**
determinado(a) 0,364**
Avalio minha vida de forma positiva empolgado(a) 0,380**
entusiasmado(a) 0,386**
Sob quase todos os aspectos minha vida está longe do meu ideal
de vida
desanimado(a) 0,289**
nervoso(a) 0,285**
Mudaria meu passado se eu pudesse chateado(a) 0,275**
agressivo(a) 0,307**
Tenho conseguido tudo o que esperava da vida contente 0,315**
entusiasmado(a) 0,285**
A minha vida está de acordo com o que desejo para mim contente 0,316**
bem 0,310**
Gosto da minha vida inspirado(a) 0,314**
bem 0,404**
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Minha vida está ruim deprimido(a) 0,422**
aborrecido(a) 0,411**
Estou insatisfeito com minha vida bem - 0,354**
nervoso(a) 0,358**
Minha vida poderia estar melhor ansioso(a) 0,227**
irritado(a) 0,233**
Tenho mais momentos de tristeza do que de alegria na minha vida deprimido(a) 0,526**
triste 0,503**
Minha vida é “sem graça” deprimido(a) 0,467**
triste 0,470**
Minhas condições de vida são muito boas bem 0,225**
agressivo(a) - 0,157**
Considero-me uma pessoa feliz alegre 0,427**
bem 0,461**
Fonte: elaboração do autor.
** Nível de significância de 0,01.
Considerações nais
O objetivo deste estudo foi compreender o estado emocional de professoras e
professores de municípios de Goiás, nos momentos da pandemia da Covid-19, uti-
lizando a escala de bem-estar subjetivo (EBES) de Albuquerque e Tróccoli (2004).
Muitos são os olhares para esses profissionais, mas poucos são os estudos englo-
bando a afetividade e a satisfação com a vida. A EBES mostrou atender satisfato-
riamente aos interesses da pesquisa, composta pelas duas dimensões: afetividade
(afetos positivos e negativos) e satisfação com a vida.
Os resultados apontaram que, em geral, o(a) professor(a) tem dúvida sobre
sua qualidade de vida. Os participantes demonstraram nem discordar, nem con-
cordar com as opções da pesquisa sobre o nível de satisfação ou insatisfação sobre a
própria vida. Esse particular é uma indicação de que, nos momentos de pandemia,
os docentes não têm certeza nem segurança do porvir. Incluem-se, possivelmente,
o uso compulsório dos novos recursos tecnológicos e a brusca mudança nas ativida-
des diárias.
A fragilidade da saúde mental dos docentes durante o isolamento social e a
pandemia é evidenciada por meio dos frequentes resultados apontando momentos
de infelicidade e insatisfação na qualidade de vida. As adversidades na saúde men-
tal podem causar a sensação de pânico, evidenciando aborrecimentos e desprazeres
na vida. Torna-se prudente ponderar as possíveis consequências decorrentes desse
(conclusão)
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estado emocional dos docentes no momento de retorno às atividades escolares pre-
senciais. No retorno presencial, é fundamental que os docentes estejam em condi-
ções satisfatórias, aceitáveis e adequadas de saúde, para manterem o contato com
os estudantes e promoverem a continuidade da formação acadêmica e a preparação
para a vida.
Diante disso, verifica-se a contribuição desta pesquisa para a construção de
uma percepção mais complexa acerca do bem-estar subjetivo dos docentes, desta-
cando-se a relação entre os aspectos positivos e negativos do funcionamento psí-
quico, como também trazendo uma discussão interdisciplinar sobre a saúde mental
coletiva, considerando-se a relevância de aspectos psicológicos, sociais, cognitivos e
institucionais sobre a situação investigada.
Acerca da realização de novos estudos, ressalta-se a importância de abranger-
-se tal pesquisa também para os docentes de outras regiões do país, bem como de
discentes. Fato este que possibilitaria uma avaliação global acerca dos indicadores
do bem-estar de profissionais da educação e alunos das instituições e, assim, pro-
porcionaria o desenvolvimento de ações de promoção de saúde mental e bem-estar
para toda a comunidade educacional. Em paralelo, recomenda-se a construção de
projetos interventivos com o corpo docente, visando, entre outros aspectos, o aco-
lhimento coletivo (autoestima e confiança) e orientações para produção de aulas
mais criativas, por meio de metodologias diferenciadas para todas as áreas do co-
nhecimento.
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Falta de empatia ao trabalho docente: os dissabores vivenciados pelo professor
durante a pandemia
Lack of empathy to teaching work: the disables experienced by the teacher during the pandemic
Falta de empatía al trabajo docente: las discapacidades experimentadas por el maestro durante
la pandemia
Sônia da Cunha Urt*
Silvia Segovia Araujo Freire**
Adaline Franco Rodrigues***
Resumo
Este trabalho destaca a importância do desenvolvimento das funções psicológicas superiores, que são primor-
diais para possibilitar ao homem a percepção de si e de suas atitudes na relação com o outro na sociedade.
Também explora e denuncia a falta de empatia ao trabalho docente emergido durante a pandemia, além de
evidenciar a particularidade da educação escolar para o processo de constituição humana. Em contraposição,
oferece um recorte bibliográco de pesquisas que abarcam a empatia como fator preponderante para o en-
frentamento ao adoecimento do professor em épocas de crises e inseguranças pessoais e prossionais. Estas,
próprias do cenário atual, denunciaram o desapreço por esse prossional e apresentaram de forma explícita a
desigualdade social nos moldes do trabalho remoto. Os pressupostos teóricos da psicologia histórico-cultural
fundamentam as análises realizadas no artigo. O interesse no assunto abordado está relacionado a pesquisas
desenvolvidas pelo Programa de Doutorado em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e pelo
Grupo de Estudo e
Pesquisas em Psicologia e Educação dessa instituição.
Palavras-chave:
funções psicológicas superiores; educação; psicologia histórico-cultural; pandemia; empatia.
* Doutora em Educação (Unicamp). Mestre em Educação (PUC-SP), Brasil. Professora Pesquisadora Sênior dos Programas
de Pós-Graduação em Educação e em Psicologia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Coordenadora
do Grupo de Estudo e Pesquisas em Psicologia e Educação (GEPPE) da UFMS. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-0309-
3498. E-mail: surt@terra.com.br
** Doutoranda do Programa de Doutorado em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - PPGEdu UFMS
- Campus Campo Grande, MS. Mestre em Saúde e Desenvolvimento na Região Centro-Oeste – Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul (UFMS), Brasil. Graduada em Psicologia (UFMS). Membro do GEPPE – Grupo de Estudo e Pesquisas
em Psicologia e Educação da UFMS. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-0196-6945. E-mail: ssafsm@gmail.com
*** Doutoranda do Programa de Doutorado em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - PPGEdu UFMS -
Campus Campo Grande, MS. Mestre em Ciências aplicadas à Saúde pela Universidade Federal de Goiás - UFG - Campus
Jataí, GO. Graduada em Fisioterapia pela Faculdade Mineirense FAMA, Mineiros, GO. Membro do GEPPE – Grupo de
Estudo e Pesquisas em Psicologia e Educação da UFMS. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-1605-5391. E-mail: adaline-
franco@gmail.com
Recebido em: 29/10/2020 – Aprovado em: 12/08/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i3.11797
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Abstract
This work highlights the importance of developing higher psychological functions, which are essential to enable
humans to perceive themselves and their attitudes in relation to others in society. It also explores and denou-
nces the lack of empathy for the teaching work that emerged during the pandemic, in addition to highlighting
the particularity of school education for the process of human constitution. In contrast, it oers a bibliographic
excerpt of research that includes empathy as a preponderant factor for coping with the illness of the teacher
in times of crises and personal and professional insecurities. These, typical of the current scenario, denounced
the lack of appreciation for this professional and explicitly presented social inequality along the lines of remote
work. The theoretical assumptions of Historical-Cultural Psychology underlie the analyzes carried out in the arti-
cle. The interest in the subject addressed is related to research developed by the Doctoral Program in Education
at the Federal University of Mato Grosso do Sul and the Study and Research Group in Psycho
logy and Education
of that institution.
Keywords:
higher psychological functions; education; historical-cultural psychology; pandemic; empathy.
Resumen
Este trabajo destaca la importancia de desarrollar funciones psicológicas superiores, que son fundamentales
para que los hombres puedan percibirse a sí mismos y sus actitudes en relación con los demás en la sociedad.
También explora y denuncia la falta de empatía por la labor docente surgida durante la pandemia, además de
resaltar la particularidad de la educación escolar para el proceso de constitución humana. Por el contrario, ofrece
un extracto bibliográco de investigación que incluye la empatía como factor preponderante para el afronta-
miento de la enfermedad del docente en tiempos de crisis e inseguridades personales y profesionales. Estos,
propios del escenario actual, denunciaron la falta de valoración de este profesional y explicitaron la desigualdad
social en la línea del trabajo a distancia. Los supuestos teóricos de la Psicología Histórico-Cultural subyacen a los
análisis realizados en el artículo. El interés en el tema mencionado está relacionado con la investigación desar-
rollada por el Programa de Doctorado en Educación de la Universidad Federal de Mato Grosso do Sul y el Grupo
de Estudios e In
vestigación en Psicología y Educación de esa institución.
Palabras-clave: funciones psicológicas superiores; educación; psicología histórico-cultural; pandemia; empatía.
Introdução
Estudar o desenvolvimento e as ações do sujeito implica considerar a mediação,
os valores, os comportamentos cristalizados presentes nas relações e sua condição
social e histórica. As funções mentais superiores e especificamente os processos de
desenvolvimento das emoções e sentimentos vão sendo constituídos à medida que
o indivíduo se desenvolve e vivencia as experiências da vida social e cultural, o que
envolve a integração de múltiplos elementos: consciência, linguagem, pensamento,
percepção, atenção e comportamento.
Entender o comportamento humano e especialmente as falhas no desenvolvi-
mento ou nas habilidades emocionais sugere apreendê-lo mediante a compreensão
de sua inserção sociocultural, como Vygotsky1 sugere ao afirmar que, dessa forma,
a cultura torna-se parte da natureza humana, em um processo histórico e social.
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Isso significa que o ser humano é parte de uma espécie biológica, que só se forma
e se desenvolve no interior de um grupo pertencente a uma cultura. O sujeito re-
presenta a capacidade de posicionamento de indivíduos e de grupos, de forma que
todas as relações interpessoais interferem em sua constituição, na formação dos
sistemas psicológicos e na construção da própria consciência.
Ao considerar um contexto de adversidades, como de uma pandemia, por
exemplo, pode-se verificar que o homem ainda precisa alavancar-se enquanto es-
pécie humana e ser social. Nesse momento, comportamentos diante de situações
dessemelhantes e de profissionais que atuam centrados em suas especialidades
têm denunciado a desmoralização por meio dos discursos chocantes por parte dessa
sociedade, especificamente aos trabalhadores da educação. São esses discursos que
expedem indagações como: quais as falhas no desenvolvimento humano? Quanto a
privação à educação contribui para a formação de sujeitos incapazes de se coloca-
rem no lugar do outro em momentos como o do cenário atual em que vive o mundo?
Dessa forma, este artigo pretende discutir as condições impostas ao trabalho e
à saúde dos docentes em tempo de pandemia e, em tempo, discorrer sobre a impor-
tância do desenvolvimento humano e de suas funções psicológicas superiores, para
que possamos viver em sociedade exercendo a empatia e o respeito.
O desenvolvimento das funções psicológicas superiores e sua imprescindibilidade
para as relações humanas
Vygotsky fundamentou sua teoria no materialismo histórico-dialético, consi-
derando que o homem se desenvolve de forma quantitativa e qualitativa, combina-
do às transformações históricas e culturais, de acordo com a sociedade na qual está
inserido. Seu desenvolvimento ocorre por meio da mediação, com uso de instrumen-
tos e signos que fazem parte de um processo complexo e culturalmente estabelecido
por intermédio das relações sociais. Esse ser humano é histórico, estabelece-se em
função de suas necessidades e das transformações realizadas na natureza, e suas
ações modificam a si e a própria natureza. Trata se de uma relação dialética, ho-
mem e natureza, história e cultura, processos psicológicos elementares e processos
psicológicos superiores, portanto, a natureza do homem é histórica.
Vygotsky (2007) atribui diferença entre as funções elementares e as funções
superiores, afirmando que as primeiras se dão por meio de estímulos no ambiente,
enquanto as segundas são autogeradas, criadas, e se tornam a causa imediata do
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comportamento. Ele considera que o desenvolvimento advém da junção de duas
linhas: os processos elementares, de antecedentes biológicos, e as funções psicoló-
gicas superiores, de origem sociocultural.
A história do desenvolvimento das funções psicológicas superiores seria impos-
sível sem um estudo de sua pré-história, de suas raízes orgânicas e de seu arranjo
orgânico. A junção da ação da fala, dos olhos e das mãos provoca a internalização
do campo visual, tornando-se percepção. Esse processo dá origem às formas carac-
teristicamente humanas de comportamento (VYGOTSKY, 2007).
Por compreender o sujeito em sua totalidade, Vygotsky não separa o biológico
do cultural e o intelecto do afeto. Ao contrário, ele almeja compreender o proces-
so de desenvolvimento humano e apontar as formas de modificação e maturação
de suas funções, entre elas as funções psicológicas superiores, que caracterizam a
espécie humana (REGO, 2014). As necessidades humanas, como as emoções, os de-
sejos, os interesses e as motivações, compreendem todo esse processo, que também
resulta no desenvolvimento do pensamento, da fala social, da escrita e, logo, torna-
-se abstrata. Percebe-se, dessa forma, a importância do ensino escolar, descrevendo
que a maturação ocorre de forma plena quando o acesso à educação é possibilitado
ao homem. Portanto, a educação escolar pode unir as funções elementares e as fun-
ções superiores em uma única direção, permitindo as relações entre pensamento e
linguagem, a apreensão dos elementos culturais e sociais desenvolvidos ao longo da
historicidade e a internalização de conhecimentos e significados.
Um importante fato ressaltado por Vygotsky (2007) é a articulação do conheci-
mento espontâneo ou adquirido ao conhecimento científico. O conhecimento espon-
tâneo refere-se ao que a criança adquire por pertencer a um grupo social, as expe-
riências que traz consigo, vivências culturalmente estabelecidas; e o conhecimento
científico é o aprendizado sistemático, organizado, os conteúdos escolares.
A psicologia histórico-cultural apregoa uma compreensão de que o homem se
constitui nas relações com o mundo, por meio das experiências acumuladas histori-
camente, e, dessa forma, desenvolve-se e interage socialmente. Tais constituição e
interação ocorrem por meio do processo ensino-aprendizagem que se concretiza na
educação. Na concepção de Urt e Morettini (2005), a educação, por se constituir em
um procedimento organizado de transmissão da experiência social, desempenha
um papel determinante no processo de desenvolvimento psíquico da criança.
Martins (2015, p. 271) descreve que o processo de aquisição das particulari-
dades humanas, no caso os comportamentos complexos culturalmente formados,
ocorre por meio da prática histórico-social e afirma ainda que:
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Os processos de internalização, por sua vez, se interpõem entre os planos das relações
interpessoais (interpsíquicas) e das relações intrapessoais (intrapsíquicas); o que significa
dizer que instituem-se a partir do universo de objetivações humanas disponibilizadas para
cada indivíduo singular pela mediação de outros indivíduos, ou seja, por meio de processos
educativos.
A educação é, sem dúvida, o meio para que o homem possa aprimorar-se como
espécie e desenvolver-se de maneira auspiciosa, para relações conscientes, afetivas,
de respeito e humanizadas. Vygotsky (2007) e Smirnov (1969) avigoram o valor da
afetividade na constituição do humano, ao apresentarem o sujeito como composto
por corpo, afeto, cognição e meio social de modo indissociável, em que um é causa
e efeito do outro, produto e produtor do outro, cuja fragmentação torna-se impossí-
vel, o que justifica o método dialético para se estudar o desenvolvimento humano.
Assim, a historicidade provoca o desenvolvimento emocional em função do
tempo e pelo meio em que se desenvolve, visto que, no percurso histórico de desen-
volvimento da humanidade, modificam-se os significados e sentidos dos sentimen-
tos e emoções de outrora, o que, em uma época histórica, provoca sentimentos es-
peciais nos membros de uma classe social determinada, pode provocar sentimentos
opostos nos membros de outra classe social e em outra época histórica (SMIRNOV,
1969). Isso reflete no modo como a sociedade se constitui e ascende também aos
sentimentos morais, às normas e aos sentimentos estéticos dos seres humanos,
que, da mesma forma, dependem das relações estabelecidas pelo desenvolvimento
emocional ocorrido desde a infância.
É nesse sentido que se ressalta a importância do desenvolvimento das funções
psicológicas superiores e confere atenção à peculiaridade dos sentimentos e o quan-
to a educação complementa esse processo. O homem é um ser social, que necessita
de outros homens, as suas relações lhe permitem desenvolver e aprender de forma
que possa estabelecer e manter suas relações com o mundo e permitem ampla com-
preensão do outro, de cada função e sua contribuição para a história e a cultura de
uma sociedade. Logo, envolvê-lo em toda circunstância que envolve a sociedade que
pertence, no seu tempo e em sua história, favorece o seu posicionamento consciente
e compreensivo frente às adversidades, por exemplo, uma pandemia, frente às pes-
soas e às atividades humanas nesse contexto, atividade descrita aqui no sentido do
trabalho, que requerem respeito e empatia.
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A empatia como fruto da relação consciente e hominizada
Segundo Goleman (1995, p.136), a palavra empatia tem origem grega – empa-
theia, que significa tendência para sentir o que se sentiria caso estivesse no lugar
de outra pessoa. Já Brolezzi (2014, p. 155) aponta que o termo empatia teria nas-
cido da palavra alemã Einfühlung, que significa “sentir dentro”, “sentir em”, atri-
buída ao filósofo alemão Robert Vischer (1847-1933), usada por ele em 1873, para
delinear a experiência estética da simples contemplação de uma pintura artística,
que poderia provocar uma simpatia (sentir com) estética. O autor salienta ainda
que o conceito de empatia é relativamente recente e passou por um processo de
ampliação, metamorfose e diversificação no decorrer dos anos. Assim, atualmente,
empatia é um conceito designado para elucidar uma cadeia de manifestações hu-
manas que indicam o conhecimento do outro, abrangendo suas ideias e seus senti-
mentos. Tais manifestações ocorrem cotidianamente, de várias formas, e propiciam
ao sujeito “colocar-se no lugar do outro”; “sentir o que o outro sente, na perspectiva
do outro”; ou então, são apresentadas como “uma resposta de uma pessoa ao estado
afetivo de outra” (BASTOS; CARVALHO, 1992, p. 114).
Ao passo que a empatia não é uma conduta observável por si, mas uma cir-
cunstância induzida e vivenciada a partir de evidências indiretas, como a orienta-
ção de um comportamento para um objetivo, suas consequências, a coerência de
certas relações estabelecidas em um intervalo de tempo e o caráter das reações de
um ser humano ao comportamento do outro, conforme afirmam Bussab, Pedrosa
e Carvalho (2007), não é uma atitude somente, tampouco só uma emoção, mas um
conjunto de sentimentos, valores e ações frente ao universo do outro.
Vygotsky (1999) também se apropriou do conceito de empatia vinculado à estéti-
ca e destacou a importância da arte, sua compreensão, interpretação e participação,
no desenvolvimento das funções psicológicas superiores, pois, lado a lado à educação,
expande a cultura, o conhecimento, as características de uma sociedade. Além dis-
so, por meio da arte, o homem pode sentir-se, expressar-se e colocar-se no lugar do
outro, a partir do momento que compreende e interpreta uma obra, seja literária,
uma pintura ou peças teatrais, músicas, entre outras. Arte é cultura, é educação, é
possibilidade de desenvolvimento humano e de um dos sentimentos essenciais para
a vida em sociedade: a empatia (BARROCO; SUPERTI, 2014; BROLEZZI, 2014).
O termo apareceu nas produções de Vygotsky, especialmente nas obras da
fase produtiva inicial, como no livro Psicologia da arte (1925/1999), na tentativa
de elucidar a afinidade entre a imitação interior e a habilidade de compreensão
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dos outros, conferindo a eles sentimentos, emoções e pensamentos. Tais elementos
podem ser encontrados nos conceitos mais explorados pelo autor, como catarse e
vivência. Seus conceitos de empatia podem convir a diversos ramos da Filosofia,
como a fenomenologia, e da Psicologia. Em particular da psicologia social, da edu-
cação e da neurociência, resultando em importante contribuição para compreender
os fenômenos educativos (BROLEZZI, 2014; PRESTES; TUNES, 2012).
Brolezzi (2014) analisa a interligação dos conceitos empatia e catarse apli-
cados à estética e à arte, e tais considerações podem ser transcendidas a todos os
aspectos das relações sociais, visto que se compreende que, para Vygotsky, o que
produz a catarse é o elemento social subconsciente no indivíduo. A transformação
na catarse conjugaria a elevação das emoções com outras funções mentais, aos
níveis consciente, social e universal, de forma a envolver os aspectos cognitivos, so-
ciais e culturais. Esse pressuposto está relacionado ao desenvolvimento do conceito
de empatia – sem empatia, não há catarse.
Adentra-se, aí, ao conceito de vivência, imprescindível aos processos de desen-
volvimento das funções mentais superiores e das relações humanas. Vygotsky (1999)
percebe que, a partir da empatia pela arte, há a superação do sentimento individual,
e seu aspecto criativo está no fato de ela possibilitar a transferência de uma vivên-
cia comum. Não obstante, as emoções e os sentimentos são fenômenos inteligentes,
muito além de meros reflexos sensoriais de predisposições biológicas, e a empatia se
faz nessa interação entre o que se experimenta, o que se pensa e o que se sente. Che-
ga-se, então, ao termo vivência, utilizado pelo autor para representar a ideia de que
uma situação objetiva pode ser interpretada, vivida, percebida ou experimentada
diferentemente por diversos sujeitos (BROLEZZI, 2014; PRESTES; TUNES, 2012).
Vê-se, assim, que a capacidade de promover empatia nos relacionamentos com
as pessoas com as quais convivemos, seja em casa ou no trabalho, é uma das parti-
cularidades da inteligência interpessoal e basilar para quem quer se tornar emocio-
nalmente eficaz (TAKAKI; SANT’ANA, 2004), ou seja, esse processo ocorre a partir
das relações sociais e do desenvolvimento das funções psicológicas superiores.
Percalços e dissabores vividos pelos docentes durante a pandemia
As relações, especialmente no campo educacional, foram transformadas com-
pletamente frente à pandemia da Covid-19, que exigiu das instituições de ensino,
públicas e privadas, o repensar de novas formas de organização pedagógica. Essa
realidade fez com que a precarização do trabalho docente fosse ainda mais inten-
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sificada, fazendo vir à tona a necessidade de olhar de perto a saúde mental dos
professores, de tecer considerações e até mesmo delatar os falsos paradigmas e as
falsas concepções populares acerca do trabalho docente nessa nova estruturação do
espaço e da forma de ensino.
Pereira, Santos e Manenti (2020), em artigo publicado em maio de 2020, que
trata da saúde mental de docentes em tempos de pandemia, relatam que no Bra-
sil a pandemia teve seus primeiros efeitos em 03 de fevereiro de 2020, segundo
publicação da Portaria n. 188, do Ministério da Saúde, que declarou Emergência
em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN). Em 26 de fevereiro de 2020,
ocorreu o primeiro caso confirmado de paciente infectado no país e, a partir de
então, instaurou-se um momento de tensão que atingiu a estruturação da educação
brasileira. Inicialmente, o calendário letivo foi suspenso, acreditando-se que as ati-
vidades logo retornariam, mas, com o passar dos dias e os números de infectados e
óbitos cada vez maiores, percebeu-se que o retorno deveria ser postergado. Median-
te essa situação, as escolas privadas, prejudicadas e pressionadas por seus clientes,
iniciaram atividades remotas como estratégia didático-pedagógica. Tal panorama
se estendeu rapidamente às escolas públicas. Frente ao aumento desse tipo de
atividade, o Conselho Nacional de Educação emitiu o Parecer 05/2020, reorgani-
zando o calendário escolar e permitindo atividades não presenciais. Esse momento
evidenciou e agravou a precarização do trabalho docente. Mais que isso, expôs o
perfil alienante, excludente e explorador do capital diante das formas que o traba-
lho assume. Nesse cenário, evidenciaram-se, ainda, as concepções cristalizadas de
organização da sociedade, que as forças conservadoras trazem arraigadas, no que
tange à carga-horária, à mão de obra e à (des)valorização profissional.
Zaidan e Galvão (2020) corroboram esse apontamento e observam que essa
situação não se instalou com a pandemia, mas é consequência da exasperação de
forças conservadoras e neoliberais na política brasileira, que fortalece a exploração
da mão de obra, uma vez que o trabalho toma todos os momentos e espaços do
ambiente de descanso, do lar das professoras e dos professores, sem que sejam res-
sarcidos(as) por isso. Essa situação nem é percebida ou valorizada, e muitas vezes
o trabalho docente é subestimado. Além disso, em diversas situações, os docentes
não são preparados para utilização das ferramentas de aula remota.
Essa conjuntura acarreta muitos elementos corrosivos para o sistema edu-
cacional, como o árduo trabalho da reinvenção e da resiliência, a proatividade e a
perspicácia em manter uma educação remota que se faça ativa, presente e mini-
mamente acessível, associada às lacunas das condições trabalhistas, estruturais e
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formativas desses profissionais da educação (ZAIDAN; GALVÃO, 2020; PEREIRA;
SANTOS; MANENTI, 2020).
Durante os meses de mudanças na formatação do espaço de ensino e das rela-
ções de trabalho, distintos relatos, desabafos, postagens e notícias foram publica-
dos, confirmando os obstáculos e os sofrimentos vividos pelos profissionais da edu-
cação. Alguns recortes dessas publicações foram feitos e são descritos a seguir, na
tentativa de elucidar o que foi vivenciado pelos professores durante esse período.
Em reportagem publicada em junho de 2020, Hashizume (2020) relatou a
realidade de uma aula pública virtual realizada por professoras da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Universidade Federal de Ciências
da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), destacando os efeitos da pandemia sobre a
saúde mental. Nessa ocasião, a professora Mayte Amazarray, do departamento de
Psicologia da UFCSPA, apresentou uma síntese das consequências da pandemia
para os profissionais da educação, como a mudança abrupta da rotina de vida sem
a possibilidade de um preparo; a sobreposição de papéis e atividades (maternidade,
trabalho, questões domésticas etc.); o excesso de notícias sobre a pandemia e, por
fim, as consequências econômicas e sociais ligadas a esse cenário.
Idemar Vanderlei Beki (2020), dirigente de um núcleo Sindical em Londrina,
PR, publicou, em julho daquele ano, um artigo de opinião no site da Associação
dos Professores do Paraná do Sindicato de Londrina, relatando as dificuldades dos
professores no uso de plataformas online, com a burocratização do serviço, o au-
mento da carga horária e a dificuldade de acesso dos alunos. O texto apresenta
também uma pesquisa com 270 professores(as) da rede estadual de ensino do Para-
ná, realizada por esse mesmo sindicato, que aponta que quase 30% dos professores
entrevistados apresentavam alguma queixa de sofrimento mental e sobrecarga de
trabalho em virtude do momento vivido. A ansiedade e o estresse foram os fatores
mais preocupantes (16,4%), seguidos do sentimento de cobrança (por colegas de
trabalho, alunos e familiares) e de demandas que geram angústias, cansaço e dores
(10,2%), além de muito tempo em frente ao computador, com excesso de cansaço
audiovisual e dores corporais (13,3%).
Anna Rachel Ferreira (2020) publicou, em agosto de 2020, pela Revista Brasil
Escola, um texto intitulado “Teste: professor, como anda a sua saúde mental?”,
no qual apresenta alguns dados de pesquisa realizada em maio de 2020 por esse
mesmo site, a fim de verificar a situação dos docentes durante a pandemia. Os
dados apontam que, dos 8.121 profissionais da educação básica que responderam
às perguntas, 28% avaliaram tal situação como péssima ou ruim e 30%, como ra-
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zoável. Apenas 8% afirmaram que se sentem ótimos ao comparar a própria saúde
emocional antes e depois da quarentena. Na sequência, a autora apresentou al-
guns quesitos para o enfrentamento desse período e do sofrimento psíquico, como a
necessidade de escutar, entender e apoiar o outro.
Também em agosto, Janaína Junqueira Valaci Cruvinel e Karina Klinke
(2020) publicaram, no site “Pensar a Educação”, as dificuldades e a precarização
do trabalho docente em Minas Gerais. Nessa reportagem, as autoras relataram
que os profissionais da educação sequer participaram de qualquer decisão para a
estruturação da educação de forma remota. As autoras finalizam a reportagem re-
fletindo que é nesse contexto autoritário que o papel dos profissionais da educação
é precarizado, em um novo modelo de ensino – enquanto docentes se desdobram
em suas tarefas diárias, outros atores sociais são convocados a pensar a educação.
No mesmo mês, Lucas Santana (2020) publicou, na Revista Nova Escola, os
relatos da dificuldade cotidiana do ensino a distância e a esperança de dias melhores
para três professoras. A primeira, moradora de Piraí, no interior do Rio de Janeiro,
professora do primeiro ano do ensino fundamental, relatou a sensação de impotência
frente à nova realidade, ao mesmo tempo em que se referiu ao medo de voltar às ati-
vidades presenciais e ao risco de contaminação. Observou ainda que menos de 25%
dos alunos acessam a plataforma online, e os que não têm acesso à internet podem
buscar as atividades elaboradas por ela e impressas na escola. A segunda professora,
moradora de Porto Alegre, RS, que leciona para os anos iniciais do ensino fundamen-
tal e do ensino médio, na rede estadual de ensino do Rio Grande do Sul, desabafou
afirmando que: “de repente, suas vidas mudaram da água para o vinho”. Relatou
que sentiu medo e insegurança diante de um vírus desconhecido que transformou
seu cotidiano e mencionou o receio de retorno às atividades com aglomeração. Por
fim, a terceira professora, educadora do quinto ano da rede municipal e moradora de
Campinas, SP, explicou que imaginava que tudo ocorreria bem rápido e logo voltaria
ao normal. Confessou que já passou por situações de ficar deprimida e angustiada e
que chorou ao ver os alunos em uma videochamada pela primeira vez.
A (des)empatia frente aos dissabores vivenciados pelo professor em tempos de
pandemia
O mundo todo vive uma situação atípica, em função da pandemia instaurada
pela doença infecciosa causada pelo SARS-CoV-2. A Covid-19 carrega, além das
incertezas, o medo, a dor, a fadiga e o desespero para todos, inclusive para os docen-
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tes. Ao considerar o sujeito um ser histórico e social, pode-se compreender o quanto
esse momento tem apresentado dificuldades para que este mantenha as relações
necessárias para o seu desenvolvimento, especificamente no que tange à educação.
Urt e Morettini (2005, p. 105) descrevem que a natureza do desenvolvimento psí-
quico do homem é socio-histórico, “visto que o indivíduo assimila experiências das
gerações passadas e as transmite, e isto se processa por meio da educação”. É na
educação escolar que o homem pode ter a oportunidade de desenvolver, aprender
e apropriar-se de conhecimentos que favorecerão sua constituição e suas relações.
O ser humano precisa das relações sociais, porque é a partir delas que se
constitui, desenvolve suas funções psicológicas superiores, perpetua a história e a
sociedade. A empatia, como resposta afetiva desenvolvida e produto do desenvolvi-
mento das funções mentais superiores, faz parte desse processo de constituição e
torna-se fundamental para a compreensão e o respeito ao outro.
Em se tratando do trabalho docente, pesquisas recentes apontam um quadro
de exaustão dos professores, que passaram a relatar sintomas de ansiedade e esgo-
tamento mental frente às cobranças e às pressões de diferentes ordens relacionadas
às novas formas assumidas pelo trabalho (OLIVEIRA, J., 2020; PRAUN, 2020).
Nesse momento, percebe-se também uma crescente desvalorização desse profissio-
nal e uma enxurrada de críticas indevidas pelos mais diversos motivos. Facilmen-
te, pode-se deparar com comentários pejorativos que se dirigem ao professor como
alguém que hoje “recebe o salário sem trabalhar” ou “ganha para ficar em casa”.
Esses comentários apontam a falta de reconhecimento, de empatia e informação
em relação ao trabalho docente. A negação ou a falta de empatia frente ao trabalho
desse profissional ignora as elevadas horas e os esforços dispensados na elaboração
de atividades, aulas, provas, reuniões online, bem como a falta de facilidade com as
plataformas digitais, além de outras atividades burocráticas cuja finalidade é im-
pulsionar o processo de aprendizagem mesmo em um momento atípico da sociedade.
Essa constatação remete às observações de diferentes situações explicitadas
no âmbito da educação brasileira. Mariano e Muniz (2006), por exemplo, descre-
veram que o cenário educativo brasileiro apresenta um quadro deficiente no que
se refere às questões relacionadas à saúde dos professores, às condições de tra-
balho, à formação e à prática profissional docente do ensino público. O panorama
descrito pelos autores foi observado em tempos comuns, mas o que pensar sobre
as condições de trabalho e a carga física e emocional em tempos de pandemia? A
pormenorização do trabalho do sujeito professor em um momento de pandemia
escancara a falta da educação. Atenção! Estamos falando da educação e não de
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educação. A educação é a forma de construir o caráter social e material do homem,
sua subjetividade e aquisição de saberes primordiais para sua vida, pois é por meio
da organização da educação que a cultura é historicamente transmitida.
Entende-se que Vygotsky atribuiu à educação escolar um papel indispensável
no desenvolvimento humano, caracterizando-a como fator imprescindível para a
aprendizagem de conteúdos historicamente organizados e possíveis de contribuir
para o desenvolvimento das funções mentais das crianças, tornando-as posterior-
mente homens ou mulheres críticos, humanos e conscientes de suas atitudes para
a vida em sociedade. Essa concepção da educação é descrita por Rego (2014, p. 104),
que reforça a compreensão de que o espaço escolar possibilita as transformações na
vida do ser humano:
Na escola as atividades educativas, diferentes daquelas que ocorrem no cotidiano extraes-
colar, são sistemáticas, têm uma intencionalidade deliberada e compromisso explicito (le-
gitimado historicamente) em tornar acessível o conhecimento formalmente organizado.
Nesse contexto, as crianças são desafiadas a entender as bases dos sistemas de concepções
cientificas e a tomar consciência de seus próprios processos mentais.
Dessa forma, percebe-se como a falta da educação influencia na formação do
sujeito, na sua subjetividade e na capacidade de abstração, para ter uma com-
preensão de diferentes circunstâncias de forma ampla e precisa, como no caso
de uma pandemia. Não colaborar com o distanciamento social, não ter empatia,
não compreender a dimensão das consequências, desconsiderar todo o trabalho
dos docentes, entre outras atitudes, podem ser resumidas por uma sociedade cujo
desenvolvimento cultural e educacional se demonstra corrompido. É importante
ressaltar que esse fator, percebido durante a pandemia, soma-se a inúmeros outros
que favorecem o adoecimento docente.
Apesar do distanciamento social, as atividades docentes têm sido desempe-
nhadas perante inúmeras dificuldades, com o intuito de colaborar com o aprendi-
zado e contribuir para o desenvolvimento das crianças. Dados descritos no relatório
sobre o trabalho docente em tempos de pandemia, organizado por Dalila Andrade
Oliveira (2020), apontam que grande parte (84%) dos(as) professores(as) de todo o
país continua a desenvolver atividades de trabalho de forma remota; quase meta-
de (46%) desses(as) docentes continua interagindo com os estudantes; e mais da
metade (53,6%) não possui preparo para ministrar aulas não presenciais. Os dados
considerados nesse relatório, a partir de pesquisa realizada em todos os estados
brasileiros, confirmam por si só a excessiva carga física e psíquica carregada pelos
docentes durante o período de pandemia.
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Em meio à turbulência da Covid-19, torna-se imperativo pensar em medidas
necessárias para evitar a disseminação do vírus, em novas formas de trabalho, no
desrespeito ao docente e em medidas que possam colaborar para a saúde mental
desses profissionais ainda durante esse momento. Silva et al. (2020) indicam a
necessidade de instrumentalizar os docentes para o uso de tecnologias, a criação de
espaços virtuais compostos de equipes multiprofissionais, para propiciar cuidado à
saúde mental desses trabalhadores por meio da compreensão das angústias e dos
sentimentos que envolvem suas vidas no contexto de pandemia.
Jackson Filho et al. (2020) ressaltam a importância de se dar visibilidade ao
aspecto do adoecimento durante o período de pandemia, para que não implique em
sua pouca valorização nas políticas públicas. O campo do trabalho de forma inte-
gral deve ser considerado nesse momento de enfrentamento da Covid-19. Conside-
ra-se, porém, que poucos compreendem a dimensão e as forças dispensadas para a
contenção do vírus SARS-CoV-2. Por meio das pesquisas, da ciência e da educação,
estão sendo empenhados esforços possíveis e impossíveis para que a vida humana
não seja dizimada por esse vírus. Pois bem, soa como escárnio quando se fala que a
continuidade da vida humana depende justamente do setor que se encontra em ta-
manha difamação, desvalorização e empobrecimento por essa sociedade neoliberal.
Dias e Pinto (2020) enfatizam a importância da educação quando descrevem
que, com inteligência, integridade, competência e planejamento, essa crise pode
ensinar e, em tempo futuro, contribuir para formar cidadãos conscientes e me-
lhorar a educação no Brasil e no mundo. Assim como Pessoa (2020) descreve que,
apesar de todo obscurantismo e negacionismo, é preciso entender a importância da
educação, para que se pense em uma transformação social pós-pandemia, e adverte
sobre a necessidade de formar jovens com valores éticos, altruístas, colaborativos,
propondo uma sociedade mais justa, baseada na igualdade democrática e inclusiva.
A educação coopera com a conexão do conhecimento adquirido por meio das
experiências ao conhecimento científico, organizado, eleva o pensamento e a ca-
pacidade crítica do homem e faz com que ele perceba seu papel na sociedade e as
condições favoráveis para o seu crescimento pessoal. Inegavelmente, a educação
pode favorecer e contribuir para a transformação da sociedade, desde que todos
possam ter acesso a ela, em seus mais profundos e verdadeiros sentidos, signifi-
cados e recursos necessários para o aprendizado. Uma sociedade que considera a
educação como principal mecanismo de desenvolvimento pessoal, cultural, histó-
rico e econômico torna-se um coletivo de pessoas com valores éticos e morais que,
em momentos atípicos, como em uma pandemia, disseminam respeito, cooperação,
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responsabilidades mútuas e empatia. Também não difamam a ciência, não abatem
a dor do outro, não desvalorizam o trabalho alheio, não contribuem para o adoeci-
mento do próximo, não realizam discursos vulgares, do tipo “ir passando a boiada”,
como forma de se dar seus jeitos.
É na luta por uma sociedade mais justa, pela valorização dos profissionais,
mesmo diante das imensuráveis dificuldades e limitações, que este trabalho se
refere aos docentes, à educação, à pesquisa e à ciência, que não cedem e não se
curvam perante as tentativas tenebrosas dessa sociedade capitalista.
Considerações nais
A pandemia denunciou, de forma transparente, sem qualquer artifício, a ne-
cessidade de se pensar a educação como processo de formação, constituição e trans-
formação do homem, pelo fato de ter expressado a desigualdade sem subterfúgios
como a máxima dessa sociedade. A escola, com sua peculiaridade, como instituição
social e de direito de todos, escancara nesse momento a falta de respeito e inves-
timento na educação brasileira. Os comportamentos e os discursos direcionados
ao docente apresentam total falta de respeito e conhecimento sobre sua função
singular na sociedade e sua contribuição na formação do homem.
O homem se relaciona com o mundo, e esse mundo precisa estar preparado
para contribuir com a constituição de cada ser singular. O desenvolvimento das
funções psicológicas superiores é fundamental para que o sujeito possa se relacio-
nar, se desenvolver, aprender e colaborar com a formação de outros sujeitos, por
meio da internalização e da compreensão dos processos mentais que se pode per-
mitir viver como sujeito participativo e consciente, e não meramente repetidor de
comportamentos e conceitos impostos por uma sociedade desagregadora e desigual.
Não resta dúvidas sobre a necessidade de novos estudos acerca do processo
de trabalho e adoecimento docente, porém, a pandemia expôs, de forma cristalina,
como o professor é percebido pela sociedade. Percebe-se, em suma, que a sociedade
organizada sob ideais capitalistas, de legado neoliberal, reforçados pelo cenário
político brasileiro, cuja prioridade é a estabilização econômica “custe o que cus-
tar e a vida que custar”, é a grande fomentadora desta falta da educação e, por
consequência, da falta da empatia promulgada. Aqui, os pais e/ou responsáveis
percebem o professor como o cuidador, alguém que tem dia e hora marcados para
cuidar de seus filhos por determinado período, ao mesmo tempo em que desvalo-
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rizam a sobrecarga e o trabalho desempenhado pelo sujeito professor durante sua
atividade e sua peculiaridade.
Por fim, ressalta-se como a pandemia, de forma explícita, tem delatado essa
(des)empatia ao trabalho docente e nas relações sociais como um todo, por isso, re-
força-se o quanto a educação voltada para o desenvolvimento afetivo, humanizador
e empático é imprescindível ao sujeito e à sua constituição, para que se possa viver
em uma sociedade que objetive a formação e a emancipação humana.
Nota
1 Nas referências ao psicólogo soviético, a grafia de seu nome é registrada de diversas formas, como Vigotski,
Vigotsky, Vygotsky. No entanto, neste trabalho, aparece na forma Vygotsky, preservando a grafia adotada
por diferentes autores, quando citado nas indicações bibliográficas.
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Práticas de cuidado de si no isolamento social
Practises of self care in the social isolation
Prácticas autocuidado en aislamiento social
Fernanda Antônia Barbosa da Mota*
Heraldo Aparecido Silva**
Resumo
Este artigo tem como objetivo reetir sobre a contribuição do cuidado de si para a ressignicação da prática
docente no panorama atual de isolamento social ocasionado pela pandemia do coronavírus. Traremos algumas
noções acerca das práticas do cuidado de si dos períodos helenístico e romano dos séculos I e II d.C., para reetir
sobre o isolamento social e explicitar como as referidas práticas podem contribuir para a saúde de si, mesmo no
momento em que a biopolítica age sobre os corpos docentes como se fossem máquinas, para ampliar as suas
aptidões e extorquir suas forças. Para reetir sobre a estética da existência e o cuidado de si como um modo de
dar contornos éticos à existência de uma forma bela, utilizamos Foucault (2011, 2018), Veiga-Neto (2003, 2016),
Hadot (2004), Gallo (2008, 2013), Pagni (2011, 2012), entre outros. As práticas de si podem contribuir para lidar
melhor com a situação pandêmica, pois somente com o cuidado de si podemos cuidar do outro, ao proporcionar
melhores condições físicas e mentais para o enfrentamento de um contexto adverso no qual as novas metodolo-
gias educacionais foram subitamente inseridas na vida dos docentes, que tiveram que se reinventar no cenário
contemporâneo de crise.
Palavras-chave: cuidado de si; isolamento social; estética da existência.
* Graduada em Pedagogia. Mestrado em Educação e doutorado em Educação pela Universidade Federal do Piauí
(UFPI). Atualmente é professora efetiva da UFPI, atuando principalmente nos seguintes temas: Formação de Profes-
sores, Prática Pedagógica, Formação Humana, Filosoa da Educação e Infância, Educação e Filosoa, Filosoa France-
sa Contemporânea (Deleuze e Foucault), Filosoa da Diferença, Estética da existência, Subjetivação e Práticas de si.
Orcid: http://orcid.org/0000-0001-5991-100X. E-mail: fabmota13@yahoo.com.br
** Professor Associado na UFPI, vinculado ao Departamento de Fundamentos da Educação - DEFE/CCE e ao Programa
de Pós-Graduação em Filosoa - PPGFIL/CCHL (UFPI). Doutor em Filosoa pela Universidade Federal de São Carlos
(UFSCAR). Temas de pesquisa: losoa da educação; losoa prática; história da losoa; pragmatismo; neopragma-
tismo; losoa contemporânea, losoa e literatura; histórias em quadrinhos; cultura pop; desenhos animados; do-
cumentários; seriados; lmes; experiência e cultura (Walter Benjamin); subjetivação e práticas de si (Michel Foucault);
linhas de segmentaridade e literatura menor (Gilles Deleuze e Félix Guattari); narrativa e redescrição (Richard Rorty);
desleitura e literatura sapiencial (Harold Bloom); arte do romance, estética, cultura e existência (Milan Kundera); Ri-
chard Shusterman (somaestética e cultura pop). Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5533-0726. E-mail: heraldokf@
yahoo.com.br
Recebido: 26/10/2020 – Aprovado: 12/08/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i3.11784
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Abstract
This article aims to reect on the contribution of self-care to the reframing of teaching practice in the current pa-
norama of social isolation caused by the coronavirus pandemic. We will bring some notions about the self-care
practices of the Hellenistic and Roman period of the 1st and 2nd centurys d.C., to reect on the social isolation
and to explain how these practices can contribute to the subjects’ health of themselves at the moment when
biopolitics acts on teaching sta as if they were machines, to expand their skills and extort their strength. To re-
ect on the aesthetics of existence and self-care as a way of giving ethical outlines to existence in a beautiful way,
we used Foucault (2011, 2018), Veiga-Neto (2003, 2016), Hadot (2004), Gallo (2008, 2013), Pagni (2011, 2012),
among others. Self-practices can contribute to better deal with the pandemic situation, since only with self-care
can we take care of the other, by providing better physical and mental conditions to face an adverse context in
which the new educational methodologies they were suddenly inserted into the lives of teachers who had to
reinvent themselves in the contemporary crisis scenario.
Keywords: self care; social isolation; aesthetics of existence.
Resumen
Este artículo tiene como objetivo reexionar sobre la contribución del autocuidado al replanteamiento de la
práctica docente en el panorama actual de aislamiento social provocado por la pandemia de coronavirus. Apor-
taremos algunas nociones sobre las prácticas de autocuidado del período helenístico y romano de los siglos I y
II d.C., para reexionar sobre el aislamiento social y explicar cómo estas prácticas pueden contribuir a la salud de
los sujetos en el momento en que la biopolítica actúa sobre el profesorado como si fuera una máquina, para am-
pliar sus habilidades y extorsionar su fuerza. Para reexionar sobre la estética de la existencia y el autocuidado
como una forma de dar trazos éticos a la existencia de una manera hermosa, utilizamos a Foucault (2011, 2018),
Veiga-Neto (2003, 2016), Hadot (2004), Gallo (2008, 2013), Pagni (2011, 2012), entre otros. Las autoprácticas pue-
den contribuir a enfrentar mejor la situación pandémica, ya que solo con el autocuidado podemos cuidar al
otro, al brindar mejores condiciones físicas y mentales para enfrentar un contexto adverso en el que las nuevas
metodologías educativas se insertaron repentinamente en la vida de los docentes que tuvieron que reinventarse
en el escenario de crisis contemporáneo.
Palabras-clave: autocuidado; aislamiento social; estética de la existencia.
Introdução
O novo cenário de pandemia assola o mundo inteiro, inclusive o Brasil. É pre-
ciso ressaltar que não fomos preparados para o enfrentamento do isolamento so-
cial, o qual nos arrancou de nossas rotinas diárias, de convívio com a coletividade,
seja em casa, no trabalho ou em qualquer âmbito social, ou seja, um convívio que
nos constitui e que dá contornos à nossa existência. A importância do momento se
dá não somente no âmbito pessoal, mas sobretudo no profissional, de modo que
o cuidado com nossa saúde física e mental se torna imperioso para o desenvolvi-
mento de atividades diárias, mas que tiveram uma reconfiguração para atender as
necessidades do momento.
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Em meados de março de 2020, fomos submetidos ao isolamento social como
uma medida de enfrentamento em relação ao problema da disseminação do vírus.
Tal medida foi considerada necessária, inclusive para não colapsar o sistema de
saúde. A determinação, amplamente divulgada nos meios de comunicação e nas
redes sociais, era “fique em casa”, subentendendo-se para cuidar de si e do outro.
No entanto, esse cuidado se referia ao distanciamento para o não contágio, no en-
tanto, o cuidado a que nos referimos aqui é de nos mantermos no distanciamento,
mas com a mente sã.
Desse modo, buscamos refletir o atual momento em que vários professores se en-
contram com dificuldades de se adaptarem às novas exigências de ter que trabalhar
em ensino remoto sem treinamento adequado, com aulas improvisadas e tendo que
manter vida pessoal e profissional em um mesmo ambiente, algo preocupante para a
saúde mental. Assim, apontamos aqui as técnicas do cuidado de si, para o auxílio das
necessidades do momento. Recorremos às referidas práticas do cuidado de si dos pe-
ríodos helenístico e romano dos séculos I e II d.C., para compreensão de tais práticas,
traremos os ensinamentos do “Foucault professor”, assim denominado porque os tex-
tos do seu último domínio teórico, da chamada estética da existência, são constituídos
predominantemente pelas aulas ministradas pelo notório filósofo francês. Nessa pers-
pectiva, Muchail (2011, p. 10) observa que: “Ao pronunciar as aulas, Foucault-profes-
sor faz muitos outros falarem”. Essa miríade de outros autores engloba os filósofos da
antiguidade greco-romana, cujos ditos e escritos são reatualizados incessantemente
através de Foucault, como um convite para pensarmos nossas atitudes, práticas, re-
lações pessoais e interpessoais, além da própria provisoriedade da vida.
Diferentemente da filosofia moderna, que enfatiza a racionalidade científica,
a filosofia antiga se caracterizava pela ênfase nos ensinamentos sapienciais, vol-
tados para nortear a conduta de modo ético. Na contemporaneidade, em virtude
da excepcionalidade pandêmica, acreditamos que um retorno ao cultivo de hábitos
edificantes da espiritualidade filosófica antiga proporcionaria mais benefícios às
pessoas individual e coletivamente do que uma imersão ainda maior no mundo
claustrofóbico e densamente administrado das relações fugazes, hiperativas e tec-
nológicas. Nesse sentido, as práticas de si podem representar uma forma de gover-
no contrária aos preceitos políticos e biopolíticos de disciplina e controle dos nossos
corpos, que sujeita, dociliza e exaure as forças, causando exaustão e adoecimento.
Nas vertentes estoica e cínica, sob a forma de técnicas ou práticas de si, tais
ensinamentos acessíveis indistintamente a todas as pessoas podem ser definidos
como uma filosofia de vida, cujas relevância e utilidade podem ser corroboradas nos
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dias atuais. A retomada das práticas de si filosóficas faz-se necessária porque, no
momento atual de crise, acarretada pela pandemia mundial de coronavírus, torna-
-se ainda mais nítido o fato de que aquilo que afeta a saúde dos indivíduos também
afeta o desenvolvimento dos processos educativos com os quais os docentes estão
diretamente envolvidos. Desse modo, o caráter interdisciplinar da filosofia clássica
pode ser bastante útil para mediar algumas reflexões em torno da delicada relação
entre educação e saúde.
A biopolítica e o governo sobre o corpo
A partir da análise foucaultiana sobre o advento da noção de biopolítica no
final do século XVIII, podemos explicitar que o problema priorizado na presente
discussão não é especificamente sobre os efeitos deletérios de vida e morte acar-
retados pela pandemia. Trata-se, não obstante, de um problema mais abrangente
e sistemático, porque, conforme argumentamos, a crise pandêmica conferiu mais
visibilidade aos mecanismos de controle social sobre a vida, uma vez que as tênues
barreiras entre o espaço coletivo e o espaço individualizado foram transgredidas,
hibridizando lar e trabalho em um único ambiente de clausura. A percepção de uma
suposta proteção que muitos indivíduos encontravam no conforto de seus respec-
tivos lares, considerados como refúgios pessoais para amealhar novas forças para
a retomada laboral dos dias (ou tardes e noites) seguintes, foi solapada com uma
intrusão de sobrecarga de trabalho em casa. Este rompante na rotina cotidiana dos
sujeitos foi amenizada midiaticamente pela simpática expressão home office, que
induz ao equívoco de que todos os sujeitos protagonistas do trabalho docente têm
as condições ideais de um escritório em casa: acesso estável à internet, com pacote
de dados compatível ao seu efetivo uso laboral, estrutura e recursos materiais pró-
prios, treinamento específico para o uso eficaz de aplicativos compatíveis com seus
computadores, celulares ou notebooks e domínio das tecnologias de informação e
comunicação, para o decorrer exitoso das atividades remotas ou híbridas. Como po-
demos notar, não se trata de uma descrição compatível com a realidade brasileira e,
especificamente, no que concerne ao segmento educacional, parte considerável dos
docentes e discentes está inserida na situação de vulnerabilidade socioeconômica.
Inicialmente, quando acompanhamos a argumentação foucaultiana, depara-
mo-nos com a constatação de que, de tempos em tempos, a humanidade é afligida
por eventos letais e extemporâneos que modificam a tessitura das relações pessoais
e sociais, visto que as pandemias introduzem com imprevisibilidade milhares de
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mortes no sistema ordenado do maquinário das sociedades. Esse impacto é descrito
nos seguintes termos foucaultianos:
Doenças mais ou menos difíceis de extirpar, e que não são encaradas como as epidemias, a
título de causas de morte mais frequente, mas como fatores permanentes – e é assim que
as tratam – de subtração das forças, diminuição do tempo de trabalho, baixa de energias,
custos econômicos, tanto por causa da produção não realizada quanto dos tratamentos que
podem custar. Em suma, a doença como fenômeno da população; não mais como a morte
que se abate brutalmente sobre a vida – é a epidemia – mas como a morte permanente,
que se introduz sorrateiramente na vida, a corrói perpetuamente, a diminui e a enfraquece
(FOUCAULT, 2005, p. 290-291).
Nessa perspectiva, podemos afirmar também que o modus operandi a partir
do qual rotineiramente vivemos é consideravelmente afetado, porque grande parte
da população, desnorteada pelo medo da morte, suspende indefinidamente suas
atividades nos diversos setores produtivos. Em termos ligeiramente coloquiais, po-
demos descrever a referida situação como um descontrole de corpos, um frenesi de
corpos ou uma generalizada apatia de corpos. O uso proposital de tais expressões
pode ser elucidado a partir do prisma foucaultiano.
Desse modo, a partir da distinção estabelecida originalmente pela análise de
Foucault (1988) acerca do poder político exercido sobre a vida, temos uma anáto-
mo-política e uma biopolítica.
Concretamente, esse poder sobre a vida desenvolveu-se a partir do século XVII, em duas
formas principais; que não são antitéticas e constituem, ao contrário, dois polos de de-
senvolvimento interligados por todo um feixe intermediário de relações. Um dos polos, o
primeiro a ser formado, ao que parece, centrou-se no corpo como máquina: no seu adestra-
mento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo
de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controle eficazes e econô-
micos — tudo isso assegurado por procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas:
anátomo-política do corpo humano. O segundo, que se formou um pouco mais tarde, por
volta da metade do século XVIII, centrou-se no corpo-espécie, no corpo transpassado pela
mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos
e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade, com todas as condições
que podem fazê-los variar; tais processos são assumidos mediante toda uma série de inter-
venções e de controles reguladores: uma biopolítica da população. As disciplinas do corpo
e as regulações da população constituem os dois polos em torno dos quais se desenvolveu a
organização do poder sobre a vida (FOUCAULT, 1988, p. 131).
Em ambos os conceitos, de anátomo-política e de biopolítica, podemos verificar
que a centralidade da noção de corpo serve para compreender de modo mais apro-
fundado as sutilezas e as crueldades das sociedades modernas e contemporâneas,
bem como de suas políticas para o governo dos corpos. Assim, em linhas gerais, o
poder sobre a vida é exercido em duas vertentes interligadas: em um primeiro mo-
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mento, o corpo é disciplinado para desempenhar funções socialmente produtivas,
através de técnicas criadas para a docilização dos corpos; em um segundo momen-
to, o corpo é controlado biologicamente tanto para durar mais ou menos quanto
para gerar mais ou menos outros corpos ou, inversamente, para não gerar de modo
algum. O poder disciplinar da anátomo-política se certifica de preparar os corpos
para serem adequadamente integrados ao maquinário do sistema econômico ca-
pitalista, exercendo a dupla função de trabalhador e consumidor. Já a biopolítica
exerce um controle biológico sobre os corpos, determinando os limites e a qualidade
de vida, o controle de natalidade e a longevidade populacional.
Este bio-poder, sem a menor dúvida, foi elemento indispensável ao desenvolvimento do ca-
pitalismo, que só pôde ser garantido à custa da inserção dos corpos no aparelho de produção
e por meio de um ajustamento dos fenômenos da população aos processos econômicos. Mas,
o capitalismo exigiu mais do que isso, foi-lhe necessário o crescimento tanto de seu reforço
quanto de sua utilizabilidade e sua docilidade; foram-lhe necessários métodos de poder capa-
zes de majorar as forças, as aptidões, a vida em geral, sem por isto torná-las mais difíceis de
sujeitar; se o desenvolvimento dos grandes aparelhos de Estado como instituições de poder,
garantiu a manutenção das relações de produção, os rudimentos de anátomo e de biopolítica,
inventados no século XVIII como técnicas de poder presentes em todos os níveis do corpo
social e utilizadas por instituições bem diversas (a família, o Exército, a escola, a polícia, a
medicina individual ou a administração das coletividades), agiram no nível dos processos
econômicos, do seu desenrolar, das forças que estão em ação em tais processos e os sustentam;
operaram também, como fatores de segregação e de hierarquização social, agindo sobre as
forças respectivas tanto de uns como de outros, garantindo relações de dominação e efeitos
de hegemonia; o ajustamento da acumulação dos homens à do capital, a articulação do cres-
cimento dos grupos humanos à expansão das forças produtivas e a repartição diferencial do
lucro, foram, em parte, tornados possíveis pelo exercício do bio-poder com suas formas e pro-
cedimentos múltiplos. O investimento sobre o corpo vivo, sua valorização e a gestão distribu-
tiva de suas forças foram indispensáveis naquele momento (FOUCAULT, 1988, p. 132-133).
Como argumentamos anteriormente, a provisória saída dos sujeitos da comple-
xa engrenagem social, propiciada à revelia de nossos desejos e vontades pela situação
pandêmica atual, possibilita um olhar diferenciado sobre muitos aspectos da vida.
Nesse sentido, as práticas de si podem representar uma forma de governo contrária
aos preceitos políticos e biopolíticos de disciplina e controle dos nossos corpos.
Governar é agir sobre si mesmo, em vistas de se posicionar criticamente diante de quais-
quer ações de condução. Inexistem relações de governo que não sejam aquelas exercidas
sobre sujeitos livres, que dispõem de um campo plural de possibilidades e alternativas.
Essas alternativas se estendem, desde a aceitação de uma determinada condução até a
constituição de contracondutas ao modo como ela é exercida. As contracondutas são eleva-
das a novo ponto de partida, diante das diferentes relações de governo; elas designam um
cuidado político de si, porque o sujeito é constituído como tal em virtude da relação política
do governo de si mesmo em face do governo dos outros (CANDIOTTO, 2010, p. 161).
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Nessa perspectiva, a noção de governo engloba não somente nossas ações e
relações diretamente ligadas ao efetivo exercício político, mas também tudo aquilo
que nos afeta e que afetamos: família, estudos, trabalho, afetividade, etc. Isso por-
que, no seu aspecto político, o conjunto das técnicas do cuidado de si encerra uma
medida alternativa no âmbito do jogo estratégico de forças entre indivíduos livres,
ao proporcionar modelos diferentes de constituição e governo de si, denominadas
por Foucault (1995) como contracondutas ou formas de resistência do sujeito. No
âmbito especificamente educacional, é importante destacar a relevância da inser-
ção de práticas docentes heterodoxas ou inovadoras, como a retomada das práticas
de si na contemporaneidade, pois, embora tal proposta não seja vista com serenida-
de, é necessário “[...] pensar práticas de liberdades nos meios escolares e fora deles,
em um tempo em que os mecanismos da biopolítica exercem um controle quase
absoluto” (GALLO, 2013, p. 356).
A prática docente no contexto da pandemia
O isolamento social causado pela pandemia do novo coronavírus trouxe para
o centro do debate educacional o ensino por meio de plataformas virtuais. As ati-
vidades docentes, durante a pandemia, tiveram que ter continuidade, só que de
modo remoto. Diante da excepcionalidade da situação, considerada calamitosa em
virtude do sistemático agravamento e da abrangência verificados em escala mun-
dial, o Ministério da Educação (MEC) publicou, no Diário Oficial da União, na data
de 17 de março de 2020, a Portaria n. 343, que dispunha sobre a substituição das
aulas presenciais por aulas em meios digitais, com período de duração indefinido,
pois estabelecia que a substituição perduraria enquanto persistisse a pandemia de
Covid-19. Assim, em conformidade com o artigo 1º, o MEC resolveu:
Autorizar, em caráter excepcional, a substituição das disciplinas presenciais, em andamen-
to, por aulas que utilizem meios e tecnologias de informação e comunicação, nos limites
estabelecidos pela legislação em vigor, por instituição de educação superior integrante do
sistema federal de ensino, de que trata o art. 2º do Decreto nº 9.235, de 15 de dezembro de
2017 (BRASIL, 2020, p. 01).
Dessa forma, os professores tiveram que se adaptar ao momento com habi-
lidades e demandas totalmente novas que não faziam parte da sua rotina diária.
Tudo isso para efetivar o estabelecimento da comunicação com seus alunos através
de plataformas, redes sociais e aplicativos, a fim de continuar o processo educativo
e minimizar os impactos da suspensão das aulas. Em muitos casos, tais medidas
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paliativas foram feitas de modo improvisado, com recursos pessoais, materiais es-
cassos e estrutura física precária, já que os professores tiveram que fazer adapta-
ções em suas residências para o estabelecimento das aulas online. De repente, os
professores tiveram que aprender a lidar com tecnologias que antes estavam no
âmbito da vida pessoal, nada profissional, gerando uma sobrecarga de trabalho.
Essas novas demandas, que mesclaram os âmbitos profissional, social e pessoal,
trouxeram novas exigências ao sobrecarregado contexto do trabalho docente.
Muitas vezes os trabalhadores docentes são obrigados a desempenharem funções de agente
público, assistente social, enfermeiro, psicólogo, entre outras. Tais exigências contribuem
para um sentimento de desprofissionalização, de perda de identidade, da constatação de
que ensinar às vezes não é o mais importante. Tal situação contribui ainda para a desvalo-
rização e suspeita por parte da população de que o mais importante na atividade educativa
está por fazer ou não é realizado com a competência esperada (OLIVEIRA, 2010, p. 24).
Com essa nova configuração do trabalho docente, surgiram também as cobran-
ças da escola para adaptação do currículo às novas metodologias, ao atendimento
do aluno com dificuldades ou com poucos recursos. Além disso, somaram-se novas
sobrecargas laborais, como a responsabilidade de preparar as aulas, gravar vídeos,
adaptar atividades e avaliações. Enfim, uma inédita e súbita reconfiguração do
trabalho docente para o atendimento das diversas e novas dificuldades que se apre-
sentaram nesse momento de crise, cuja complexidade torna-se ainda mais aguda
se adicionarmos ao contexto outros fatores, tais como: a cobrança dos pais para o
cumprimento da carga horária, para um melhor atendimento aos filhos, as deman-
das da sociedade para uma performance de excelência, além de outras exigências.
Nesse contexto, a despeito da excepcionalidade da situação, naturalmente, há
quem defenda com entusiasmo este súbito advento das ferramentas tecnológicas
no âmbito do ensino sem considerar devidamente outras nuances, relacionadas aos
aspectos mais humanos da situação.
[...] o ensino presencial físico (mesmos cursos, currículo, metodologias e práticas pedagógi-
cas) é transposto para os meios digitais, em rede. O processo é centrado no conteúdo, que
é ministrado pelo mesmo professor da aula presencial física. Embora haja um distancia-
mento geográfico, privilegia-se o compartilhamento de um mesmo tempo, ou seja, a aula
ocorre num tempo síncrono, seguindo princípios do ensino presencial. A comunicação é
predominantemente bidirecional, do tipo um para muitos, no qual o professor protagoniza
vídeo-aula ou realiza uma aula expositiva por meio de sistemas de webconferência. Dessa
forma, a presença física do professor e do aluno no espaço da sala de aula geográfica são
substituídas por uma presença digital numa sala de aula digital. No ensino remoto ou aula
remota o foco está nas informações e nas formas de transmissão dessas informações (MO-
REIRA; SCHLEMMER, 2020, p. 9).
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Como é possível perceber, mesmo se o momento fosse outro, a transição do
ensino presencial mediado por práticas e metodologias conhecidas para o ensino re-
moto mediado por práticas e metodologias desconhecidas dificilmente poderia ser
efetuada com êxito, em decorrência da falta de investimento apropriado em termos
de: disponibilização de recursos materiais tecnológicos necessários para o ensino
remoto; de organização institucional para que escolas e universidades pudessem
se adequar paulatinamente ao novo contexto; e, principalmente, de preparação
formativa em longo prazo, com planejamento e oferta de cursos de formação con-
tinuada adequados para o uso de tecnologias digitais, plataformas virtuais, apli-
cativos pedagógicos e outros recursos voltados para as diversificadas necessidades
educacionais que compõem o amplo espectro do ensino e da aprendizagem nas suas
várias instâncias.
Todavia, após sete meses da publicação da Portaria n. 343 do MEC, constata-
-se que as demandas necessárias para o exercício do ensino remoto, permeado por
meios e tecnologias informacionais e comunicacionais, constituem uma distante
idealização num cenário político em que tanto a educação quanto a saúde, a despei-
to das propagandas oficiais veiculadas, não são consideradas como áreas prioritá-
rias. Nesse sentido, longe da concepção ingênua segundo a qual o espaço escolar é
meramente um local consagrado ao ensino, à aprendizagem e ao compartilhamento
de saberes e experiências, é relevante lembrar “[...] que pensar qualquer mudança
no âmbito da escola implica pensar como as coisas estão se passando no âmbito da
sociedade” (VEIGA-NETO, 2003, p. 109). A partir dessa constatação, não devemos
descartar a ideia de que, embora o ensino remoto tenha sido adotado, em caráter
emergencial, como medida paliativa de enfrentamento à pandemia, especifica-
mente para minimizar eventuais perdas relativas ao aprendizado dos conteúdos
curriculares no ensino presencial, os efeitos de tal flexibilização não se restringem
meramente ao âmbito escolar. Isso porque, metaforicamente, como o espaço escolar
e seus agentes se materializaram de forma súbita nas residências dos docentes e
discentes, consequentemente, tal ocorrência acabou nublando a distinção entre os
aspectos públicos e privados das vidas das pessoas.
Tal constatação é relevante porque as instituições escolares são tradicional-
mente projetadas como parte fundamental de “[...] uma maquinaria capaz de mol-
dar nossas subjetividades para algumas formas muito particulares de viver o tem-
po e o espaço” (VEIGA-NETO, 2003, p. 107). Como parte das funções atribuídas ao
denso maquinário institucional de docilização de corpos, conformação de emoções e
homogeneização de pensamentos, está a sistemática e ampla regulação social pro-
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porcionada a partir dos processos educativos ainda norteados pela racionalidade
moderna e inspirados pelo modelo capitalista fabril, ambos voltados para a produ-
ção de sujeitos normatizados, aptos a exercerem funções específicas e produtivas
na sociedade. Em tempos considerados normais, o fato de sermos condicionados no
espaço escolar para o futuro exercício de funções sociais consideradas essenciais e
produtivas, conforme o cronograma do sistema capitalista e a lógica cientificista,
tende a ser contestado muito pouco fora do âmbito da crítica especializada e dos
segmentos político-culturais organizados da sociedade.
Todavia, nos tempos hodiernos de adoecimento coletivo, a imprevista mudan-
ça de cenário que hibridizou os espaços público e privado pode ter contribuído para
explicitar o fato de que as práticas docentes tradicionais não nos auxiliam a viver
melhor, pois estão inseridas num processo mais amplo de produção de subjetivida-
des homogeneizadas. Tal como compreendemos esse aspecto da delicada situação
pandêmica que vivenciamos, o impacto da transformação em nossas rotinas habi-
tuais serviu para dar mais visibilidade ao referido processo: “Na medida em que
a educação nos molda precoce e amplamente, passamos a ver como naturais os
moldes que ela impõe a todos nós” (VEIGA-NETO, 2003, p. 107).
Da forma como compreendemos esse determinado aspecto problemático, essa
nova percepção da realidade e das relações interpessoais, acarretada pela mudança
do cenário escolar, pode ser descrita como um efeito de desterritorialização. Para De-
leuze e Guattari (2010), o ato de pensar deve ser entendido como sinônimo do movi-
mento de se desterritorializar, visto que o pensamento genuíno só acontece mediante a
eclosão de algo novo. Em outros termos, diferentemente da recognição, que é somente
uma das funções do pensamento, o pensamento novo somente pode ocorrer na medida
em que nos afastamos de territórios previamente conhecidos, isto é, os pensamentos
habituais que são considerados como territórios fixos. Então, é quando saímos de
forma voluntária ou involuntária de um território familiar em direção a um território
desconhecido, que nosso pensamento efetivamente cria e não apenas reproduz.
Nessa perspectiva, segundo Gallo (2008), podemos descrever a nossa leitura
filosófica da realidade pandêmica, considerando os polos da saúde e da educação,
como um procedimento de deslocamento conceitual do pensamento, visto que o
movimento que fazemos translada noções filosóficas antigas (desterritorialização)
para pensar criticamente problemas educacionais presentes (reterritorialização).
Assim, tanto as lições foucaultianas quanto as práticas de si dos filósofos antigos
são vistas como contribuições de intercessores tanto para auxiliar na saúde física e
mental dos professores quanto para inspirar práticas docentes alternativas.
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Diante do exposto, quando mencionamos previamente o aspecto humano da
situação dramática acarretada pela pandemia, referimo-nos especificamente à fi-
gura docente e ao seu papel formativo singular. Isso porque o que quase ninguém
fora do contexto da docência pergunta é como está a saúde do professor para o en-
frentamento dessas situações novas e dramáticas que lhe foram apresentadas? O
que os professores têm feito para resolver esses problemas urgentes, considerando
que a nova metodologia de trabalho adentrou o espaço pessoal, ou seja, a casa, o
lugar de descanso do professor?
Neste novo cenário, todo o trabalho invadiu o pequeno espaço da vida pessoal
do docente, acarretando um considerável prejuízo para o equilíbrio emocional, o
bem-estar físico e a saúde mental. O distanciamento que antes se fazia necessário,
no momento atual de pandemia, não foi mais possível manter e, como consequência,
a vida pessoal e a profissional se misturaram. Assim é que vem à tona problemas
que estão além do plano físico, trazendo, segundo a definição dos filósofos gregos e
romanos antigos, o adoecimento da alma. As transformações bruscas trazidas pelo
ensino remoto, que exigiram o desenvolvimento de habilidades e competências em
grande velocidade, desencadearam sintomas de estresse, angústia e exaustão; um
conjunto de fatores que geram as sensações de fracasso, impotência e frustação,
emoções negativas que levam ao adoecimento emocional, físico e mental.
É nessa perspectiva que, seguindo os passos do filósofo e professor Michel Fou-
cault, buscamos, nos ensinamentos dos filósofos gregos e romanos, recursos ou téc-
nicas acessíveis para a nossa prática cotidiana contemporânea. Tais práticas de si
são exercícios acessíveis e necessários para, em tempos atribulados, tentar manter
o equilíbrio e cuidar de nós mesmos. Esse cuidado de si não deve ser confundido com
o egoísmo, visto que se tratam de conceitos diferentes. As práticas de si se baseiam
no princípio filosófico-pedagógico que enfatiza a necessidade de cuidarmos de nós
mesmos, para podermos cuidar dos outros. Para quem atua na docência, uma ativi-
dade distintivamente caracterizada desde os primórdios pela relação entre mestres
e discípulos, esse primado continua bastante atual, porque o inverso também é ver-
dadeiro: descuidar de si é descuidar do outro. Em seguida, discorreremos acerca do
cuidado de si, para refletirmos sobre sua contribuição na prática docente.
Foucault e o legado losóco helenístico-romano
Segundo o filósofo francês Michel Foucault (2018), o tema do cuidado de si é
tratado em vários momentos da história da humanidade. É importante ressaltar
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que esse tópico do cuidado de si é abordado na parte de sua produção teórica que
é considerada como o legado tardio da vasta obra foucaultiana (FREITAS, 2012).
Nesses últimos escritos, temos a figura de Foucault como professor, ministrando
aulas nas quais a articulação temática entre a filosofia e a educação é mais explíci-
ta do que nas obras anteriores (VEIGA-NETO, 2016). Assim, para trabalharmos o
tema das práticas de si no contexto do isolamento social pandêmico, reportar-nos-
-emos aos escritos foucaultianos que tratam do período denominado de “Idade de
Ouro” do cuidado de si e que se deu nos séculos I e II d.C., nas culturas helenística
e romana, especificamente entre estoicos e epicuristas (MUCHAIL, 2011).
As práticas de cuidado de si desses períodos se tornam de grande relevância,
no contexto do momento atual, tanto para refletirmos sobre os novos rumos que
nossas vidas tomaram quanto para buscarmos práticas que nos auxiliem na convi-
vência com os outros e no fortalecimento pessoal. Tais práticas são úteis porque nos
capacitam para o enfrentamento do isolamento e de suas consequências, algo que
tem trazido sentimentos negativos para muitas pessoas, justamente por elas não
saberem como lidar com as situações novas, visto que se trata de uma necessidade
de se reinventar em um cenário que não tem data para acabar.
Os povos dos períodos helenístico e romano apontavam práticas como a me-
ditação, a escuta, a escrita de si e a parrhesía (falar franco) como técnicas que
auxiliam na vida, para que o indivíduo se constitua de um modo ético (FOUCAULT,
2018). As práticas do cuidado de si desses períodos são denominadas de estética da
existência, por constituírem um modo de vida que dá contornos à própria existên-
cia de uma maneira bela. Para isso, era necessário que o indivíduo efetuasse uma
inflexão sobre si mesmo, de modo a tentar construir sua vida buscando “modos de
existência cada vez mais livres” (PAGNI, 2012, p. 47).
No contexto filosófico da cultura greco-romana, fazer uso das técnicas espirituais
das práticas de si implicava problematizar os próprios modos atuais de existência,
principalmente, para combater os estados de dominação aos quais somos sujeitados e
buscar novos modos éticos de vida. É importante notar que as referidas práticas eram
atribuídas à toda a vida do indivíduo e não a uma única época; também, eram práti-
cas acessíveis a todos os indivíduos, independentemente de seu status social. Assim,
a constante prática ou cultivo de nós mesmos nos conduzia a um novo modo de vida,
no qual nossos antigos medos e preconceitos seriam desarmados, para darem lugar a
uma bem-vinda “transformação de si na relação com o outro” (PAGNI, 2011, p. 165).
Apresentaremos as práticas de cuidado de si que podem ser incorporadas à
rotina dos docentes como auxílio para um olhar para dentro de si mesmo, uma res-
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tauração de forças no momento atual, pois não requererem profissionais ou lugares
específicos, além de não terem nenhum custo financeiro. Os requisitos necessários
para qualquer pessoa são: vontade, disciplina e um pouco de tempo. A junção des-
ses elementos é necessária porque leva um pouco de tempo para que os exercícios
recomendados pelos filósofos antigos possibilitem que a pessoa adquira o fortaleci-
mento de si e, principalmente, o cuidado de si (GROS, 2006).
As práticas de si: meditação, escuta, escrita de si e parrhesía
Conforme Foucault (2018), existem três formas principais de exercícios filosó-
ficos de pensamento: a memória, a meditação e o método. Embora estejam inter-re-
lacionados, tais exercícios cumprem funções distintas. Respectivamente, enquanto
a memória propicia um acesso à verdade na forma de um reconhecimento, o método
serve para sistematizar e organizar um conhecimento objetivo e, por sua vez, a
meditação opera como “prova daquilo que se pensa, prova de si mesmo como sujeito
que pensa efetivamente o que pensa e age como pensa, tendo, como objetivo, uma
certa transformação do sujeito [...]” (FOUCAULT, 2018, p. 413).
Assim, como forma de reflexividade, meditar é buscar o silêncio em si mesmo,
sem as distrações da mente. Trata-se de um retiro em si mesmo, um momento em que
a consciência se encontra livre de condicionamentos. Como seres humanos, nossa ca-
racterística distintiva é a racionalidade, a consciência que temos sobre nós mesmos
e sobre o mundo. No entanto, vivemos assoberbados de tarefas que exigem que este-
jamos o tempo todo ligados, pensando em como resolver as atividades diárias e suas
atribulações. Ou seja, nosso pensamento está sempre voltado para a exterioridade.
É bem mais fácil pensar em algo que não nos faz bem do que não pensar em nada.
Assim, a meditação como um esforço de interiorização é relevante porque constitui
uma prática de encontro consigo. Como dispositivo de transformação, a meditação
equivale a um olhar sobre o próprio íntimo, sendo, por isso, considerada como a prova
constitutiva de si como sujeito ético da verdade (FOUCAULT, 2018).
Para os estoicos, a escuta se torna um dos sentidos de maior atenção, visto
que deve estar em permanente vigilância e porque é através dela que temos acesso
aos discursos verdadeiros e falsos. Assim, devemos cultivar o hábito de perscrutar
o dia, realizando o exame de nós mesmos, advertindo-nos e observando-nos, a fim
de adquirirmos a governabilidade de nossos movimentos. Como prática de si, a es-
cuta era considerada “um exercício de atenção (prosokhé) e de vigilância” (HADOT,
2004, p. 277).
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Na filosofia antiga, filósofos como Marco Aurélio e Epicteto sustentavam que a
escuta interior (vigilância) consistia em uma atenção constante do tempo presente,
como retorno para dentro de si e que funcionaria como defesa e reestabelecimento
das energias. O filósofo estoico Marco Aurélio coloca a necessidade de estar atento
ao momento presente, ao que se passa nesse momento, às realizações, colocando
toda atenção ao que se vai realizar com clareza e consciência de seus atos e controle
de seus pensamentos. A escuta passa a ser um elemento privilegiado, pois, a partir
dela, o indivíduo pode efetuar o olhar para si mesmo, a fim de perceber como se
encontra sua relação com a verdade (HADOT, 2004). Como afirma Foucault (2018,
p. 312), trata-se de um: “[...] olhar sobre si mesmo, em que memorizando o que se
acabou de ouvir, vê-se-o incrustar-se e aos poucos fazer-se tema no interior da alma
que acabou de escutar”.
A escrita de si, também chamada de hypomnémata, constitui uma recompo-
sição do logos fragmentado, de memórias passadas, de momentos vividos e que,
através do exercício de autoauscultar, visita a si pela busca de respostas sobre o
que se está fazendo de si mesmo (FOUCAULT, 2018). Isso pode ser feito para si
mesmo ou para outrem. A técnica da escrita nos possibilita uma investigação sobre
nós mesmos e, de certo modo, é também um desabafo ensimesmado sobre o que
estamos passando. Trata-se de buscar, no fundo de nós mesmos, os sentimentos,
as inquietações ocultas de nossa alma, de modo a libertar-nos. A escrita de si como
técnica tem um poder transformador, pois liberta o indivíduo e confere a este o con-
trole sobre o seu próprio pensamento como forma de cuidado de si. E isso pode ser
feito em um caderno de anotações, sob a forma de cartas a um amigo ou familiar,
ou através de qualquer outro dispositivo que permita essa prática que requer certo
grau de concentração e sensibilidade. Desse modo, a escrita de si se constitui como
uma ferramenta bastante útil nas situações mais diversas, em que a presença de
um outro não seja possível ou, ainda, como uma forma de dirigir-se e advertir-se,
com atenção acerca dos momentos vividos.
O dizer veraz, a fala franca e o discurso verdadeiro são expressões que podem
ser consideradas como sinônimas da prática de si conhecida como parrhesía. A
franqueza, nesse sentido, não significa apenas falar a verdade para o outro, mas
também para si mesmo. A disposição moral para falar para si mesmo e para os
outros aquilo que se considera como verdadeiro é, sem dúvidas, uma atividade
complexa e que requer coragem (FOUCAULT, 2011). Isso porque a sociedade não
costuma considerar opiniões alternativas e perspectivas dissonantes com tolerân-
cia e respeito. Muitas pessoas preferem ocultar seus verdadeiros pensamentos e
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sentimentos para não serem obliterados e marginalizados socialmente. É mais
fácil e menos problemático sustentar opiniões amplamente aceitas e perspectivas
previamente validadas consensualmente. Desse modo, estar atento ao que se diz
para si mesmo e para os outros se configura como uma atitude ética daquilo que se
pensa e se faz, é não negar para si mesmo os seus próprios sentimentos, é reconhe-
cer em si a sua verdade e se subjetivar a partir dela, torná-la elemento primordial
para a constituição de sua subjetividade. Entendido desse modo, em suas ativi-
dades diárias, o docente se depara com retóricas que tentam lhe convencer sobre
verdades que estão além de suas atribuições; assim, torna-se imprescindível que
ele tenha coragem para desmistificar as ideologias que subjazem tais discursos,
para não cair nas falácias de convencimento de poderes instituídos como forma de
autopreservação da saúde mental.
As técnicas ou práticas de cuidado de si, tais como a meditação, a escuta, a
parrhesía e a escrita de si, tomadas em seu conjunto, articulam-se e atravessam-se
de modo a contribuir na elaboração e na transfiguração do sujeito, através de seus
pensamentos e de suas ações. A partir do momento em que o indivíduo “[...] adquire
tais técnicas, o seu modo de ser é transformado, e este torna-se melhor e consciente
dos seus atos. Isso porque a soberania que o indivíduo exerce sobre si mesmo, está
situada sobre si mesmo, numa relação de si para consigo” (FOUCAULT, 2018). Ou
seja, o sujeito passa a cuidar de si, estando apto também a cuidar dos outros.
Considerações nais
Ter o governo de si mesmo e se posicionar criticamente diante das ações de
governamentalidade impostas constituem um modo de se proteger das políticas
que docilizam os corpos e os mantêm em estado de sujeição. Considerando que o
isolamento social acarretado pela pandemia foi um acontecimento que surpreendeu
os docentes, modificando suas condições de trabalho de modo negativo, podemos
dimensionar melhor a utilidade das práticas de si para o enfrentamento do isola-
mento, se atentarmos para o seguinte significado do referido conceito: um aconte-
cimento não é um fato isolado, pois ele sempre tem duas partes complementares:
a efetuação e a contraefetuação. Assim, o acontecimento não é apenas a ocorrência
do evento em relação a nós, mas também a nossa reação pessoal em relação ao
referido evento (DELEUZE, 2011).
Por definição, em virtude da contingência da vida, existem certos acontecimen-
tos que não podem ser previstos. E se não sabemos que certas coisas vão acontecer,
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não podemos nos preparar devidamente para o seu enfrentamento. Cientes disso,
os filósofos gregos e romanos ensinaram que podemos nos preparar para momentos
fortuitos. Ou seja, para eles, era possível preparar-se a partir de práticas de si para
quando tais eventos ocorressem. Não havia a pretensão de superar os aconteci-
mentos difíceis, dolorosos ou trágicos dos quais, eventualmente, todo ser humano
padece. A intenção era diminuir o efeito devastador desses acontecimentos, prepa-
rando-se antecipadamente a eles. Aqui, apontamos as práticas do cuidado de si aos
docentes que se encontram assoberbados de tarefas e funções totalmente novas,
para as quais não tiveram preparo adequado, por uma lógica mercadológica que
impõe o que pode causar sentimento de angústia e frustação, desencadeando senti-
mentos negativos e causando adoecimento físico e mental. Através das práticas do
cuidado de si, o indivíduo poderia constituir um equipamento (paraskeué) similar
a uma armadura, para se proteger das intempéries da vida (FOUCAULT, 2018).
No atual momento de pandemia, o isolamento social tornou-se uma condição
necessária para cuidarmos de nós mesmos e dos outros. Nesse sentido, as referidas
práticas contribuem para a constituição de um sujeito ético, que esteja atento ao
que se passa consigo, no seu íntimo, buscando o equilíbrio para o enfrentamento
das situações inusitadas que o difícil momento atual impõe. O exercício de tais
práticas requer apenas poucos minutos diários, um momento de repouso para si
mesmo, para recompor as energias e ressignificar seus atos como uma continuida-
de de sua existência de maneira bela.
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Amanda Pires Chaves, Pedro L. Goergen
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* Professora efetiva na Prefeitura Municipal de Limeira. Tem experiência na área de Educação, com pesquisas realizadas
principalmente nos seguintes temas: Educação Superior, Docência Universitária, Educação a Distância, Formação de
Professores, Educação Física. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0334-8523. E-mail: amanda.pireschaves@gmail.com
** Professor titular (colaborador) da Universidade Estadual de Campinas. Tem experiência na área de Educação, com
ênfase em Filosoa da Educação, atuando e publicando principalmente nos seguintes temas: Educação, Universi-
dade, Ética, Formação de professores e Teoria Crítica. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9539-9752. E-mail: pedro.
goergen@hotmail.com
Recebido em: 25/10/2020 – Aprovado em: 28/12/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i3.11781
Ética da alteridade: implicações da não presencialidade na educação a distância
Ética de la alteridad: implicaciones de la no presencialidad en la educación a distancia
Ethics of alterity: implications of non-presentiality in distance education
Amanda Pires Chaves*
Pedro L. Goergen**
Resumo
O presente artigo tem por objetivo analisar as possíveis implicações da não presencialidade na constituição
da alteridade enquanto fundamento da ética nos processos de formação superior a distância. A teoria do ló-
sofo Emmanuel Levinas serve de ancoragem para esta pesquisa a partir da concepção de alteridade, innita e
transcendente, manifestada na epifania do Rosto. A relação face a face entre seres humanos rompe o caráter
totalizador da relação de indiferença e intolerância e abre caminho para uma nova relação eu-Outro que consi-
dera plenamente a alteridade, respeitando as diferenças. A metodologia utilizada é de natureza qualitativa e se
caracteriza como um estudo de cunho teórico, bibliográco, com abordagem interpretativa crítica. Foi possível
vericar que a não presencialidade traz implicações para a constituição da alteridade enquanto fundamento
ético dos processos de formação superior a distância, associados às relações intersubjetivas entre professores
e alunos. Dessa forma, considera-se que a relação originária corpórea, anterior à não presencialidade, é uma
possibilidade de propiciar alguma rostidade, mesmo sendo ela apenas inicial.
Palavras-chave: educação a distância; alteridade; não presencialidade.
Resumen
Este artículo tiene como objetivo analizar las posibles implicaciones de la no presencia en la constitución de la
alteridad como fundamento de la ética en los procesos de educación superior a distancia. La teoría del lósofo
Emmanuel Levinas sirve de ancla para esta investigación basada en el concepto de alteridad, innita y trascen-
dente, manifestada en la epifanía del Rostro. La relación cara a cara entre los seres humanos rompe el carácter
totalizador de la relación de indiferencia e intolerancia y abre el camino a una nueva relación Yo-Otro que consi-
dera plenamente la alteridad, respetando las diferencias. La metodología utilizada es de carácter cualitativo y se
caracteriza por ser un estudio teórico, bibliográco, con un enfoque interpretativo crítico. Se pudo constatar que
la no presencia, tiene implicaciones para la constitución de la alteridad como fundamento ético de los procesos
de educación superior a distancia, asociados a relaciones intersubjetivas, entre docentes y estudiantes. Así, se
considera que la relación corporal original, previa a la no presencia, es una posibilidad de proporcionar cierta
rostidad, aunque sea solo inicial.
Palavras claves: educación a distancia; alteridad; no presencia.
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Abstract
This article aims to analyze the possible implications of non-presence in the constitution of otherness as a foun-
dation of ethics in distance higher education processes. The theory of the philosopher Emmanuel Levinas serves
as an anchor for this research based on the concept of alterity, innite and transcendent, manifested in the
epiphany of the Face. The face-to-face relationship between human beings breaks the totalizing character of the
relationship of indierence and intolerance and opens the way for a new I-Other relationship that fully considers
alterity, respecting dierences. The methodology used is of a qualitative nature and is characterized as a theore-
tical, bibliographic study, with a critical interpretative approach. It was possible to verify that the non-presence,
has implications for the constitution of otherness as an ethical foundation of distance higher education proces-
ses, associated with intersubjective relationships, between teachers and students. Thus, it is considered that the
original bodily relationship, prior to non-presence, is a possibility to provide some rostity, even if it is only initial.
Keywords: distance education; alterity; non-presence.
Introdução
Neste artigo, analisam-se as implicações da não presencialidade nos processos
de formação a distância, tendo como fundamento a teoria de Emmanuel Levinas,
em busca de possibilidades de mudanças, a caminho da ética da alteridade. É im-
portante salientar que o autor se preocupa em explicar aspectos da constituição
do humano sem recorrer à moralização e/ou à indicação de um agir único, como
verdade absoluta. A partir da teoria da ética da alteridade, o filósofo propõe a re-
leitura do pensamento metafísico, não mais centralizado na ontologia – questão do
ser, na soberania do “Eu” e na “filosofia do Mesmo” –, mas, sim, na alteridade como
eixo principal e seu fundamento ético. Surge, assim, uma reflexão aprofundada e
de longo alcance sobre o tema das relações sociais na perspectiva de torná-las mais
humanas, mediante o fortalecimento do sentimento de responsabilidade, de um
pelo Outro, entre os seres humanos.
Com a instituição de um novo humanismo, Levinas (2009) propõe uma ética ins-
taurada a partir do respeito à alteridade, ao Outro, enquanto absolutamente Outro,
diferente do “Mesmo”, na epifania1 do Rosto2, como infinito e transcendente. Por isso,
a relação face a face3 é uma experiência ética cotidiana, de manifestação da huma-
nidade, ao ordenar o mandamento de ser um-para-o-Outro e não mais ser para si.
Para tanto, no face a face, a alteridade se revela no Rosto, resistente à totali-
zação, à assimilação, à representação e à compreensão ontológica, e se admite como
infinito e transcendência. Por meio do Rosto, da presença do Outro e da relação
face a face, Levinas (2009) inaugura um novo humanismo, a partir da relação me-
tafísica, em que a centralidade do “Eu” se rompe e o eu se torna responsável pelo
Outro, de forma infinita e irrecusável, movido por desejo metafísico e obsessão pela
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estrutura da subjetividade de um-para-o-Outro. Um mundo sem Rosto se configura
vazio de relações éticas, sem revelação da alteridade, somente aparência mimética,
redução do outro ao mesmo.
A metodologia utilizada é de natureza qualitativa, caracterizando um estu-
do de natureza teórica, bibliográfica, com abordagem interpretativa crítica. Dessa
maneira, à luz da teoria da ética da alteridade de Levinas, no primeiro tópico são
destacados indícios na educação a distância (EaD) como um mundo sem Rosto,
no qual se enaltecem as competências para o mercado de trabalho; a primazia da
racionalidade técnica e instrumental; a padronização dos cursos; o isolamento dos
indivíduos e suas necessárias e possíveis modificações.
Na sequência, são trabalhados os conceitos de presencialidade e não presen-
cialidade, destacando as implicações da não presencialidade nos cursos de EaD,
para a constituição da alteridade como fundamento ético. Por fim, propõem-se mu-
danças na relação eu-Outro, professor e aluno, nos processos de formação superior
a distância, no sentido da ética da alteridade.
Evidências de um mundo sem Rosto
A sociedade capitalista contemporânea vem passando por momentos de gran-
de complexidade e contradições. De um lado, vive-se o fascínio das múltiplas ca-
pacidades e facilidades, proporcionadas pelo avanço da ciência e da tecnologia; de
outro, aceita-se a frieza das relações sociais, marcadas por individualismo e egoís-
mo, competitividade e negação do Outro (GRUSCHKA, 2014). Com o incremento
do capitalismo e do progresso científico-tecnológico, novas necessidades e novos
anseios seduzem as pessoas, perpetuando-se na sociedade, em especial nos proces-
sos de formação.
Também se revela problemática a imposição do racionalismo exacerbado como
característica central do pensamento ocidental, em sua relação com as questões do
ser humano. Essa associação entre pensamento e ser reduziu o Outro ao “Mesmo”,
impossibilitando a abertura ao diferente, à alteridade. É nesse contexto de indi-
vidualismo, competitividade, frieza, indiferença e negação do Outro que Levinas
propõe um novo pensar ético, pautado no sentido humano, no respeito ao Outro e
à sua alteridade.
Especialmente no âmbito da EaD, evidenciam-se diversos impasses, emergentes
de um mundo sem Rosto e refletidos nos processos de formação superior a distância.
Destacam-se, nesse sentido, o enaltecimento das competências profissionais para o
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mercado de trabalho; a primazia da racionalidade técnica e instrumental; a padro-
nização de cursos/disciplinas; o individualismo exacerbado; a linguagem monológica;
a mediação automática e mecânica das atividades; o processo de ensino e aprendiza-
gem de caráter informativo e instrucional; o número elevado de alunos por turma; a
relação professor/aluno como sujeito/objeto; a transposição das práticas pedagógicas
do ensino presencial ao virtual; entre outros (PETERS, 2001; GOMES, 2004).
A priorização da racionalidade técnica e instrumental potencializa e assevera
a negação da alteridade e do Rosto nos processos de formação, especialmente no
modo EaD. Condicionadas pela competitividade no mercado de trabalho, as insti-
tuições de ensino superior (IES) priorizam a racionalidade técnica e instrumental
como elementos centrais do processo formativo. Nesse contexto, segundo observam
Síveres e Melo (2012, p. 36), a teoria da ética da alteridade de Levinas, enquanto
processo pedagógico, pode promover a “superação do predomínio de uma raciona-
lidade técnica e instrumental”, que, muitas vezes, limita a experiência educativa
pensada a partir do Outro. Da mesma forma, segundo complementa Dias Sobrinho
(2010, p. 19), “sempre que a razão se isola, se fecha em sua interioridade subjetiva,
institucional ou sistêmica, ela se distancia da alteridade, se torna absoluta e impe-
rial, dogmática e bárbara”.
No que se refere especialmente às novas tecnologias, relacionadas ou não à
EaD, Adorno (2003) destaca a tendência de fetichização da técnica, constituída a
partir do encobrimento da consciência enquanto característica predominante de
um tipo de subjetividade reificada ou coisificada, cujos sujeitos se tornam frios e
incapazes de amar, envoltos no processo de coisificação de si e dos Outros.
Um mundo em que a técnica ocupa uma posição tão decisiva como acontece atualmente,
gera pessoas tecnológicas, afinadas com a técnica. Isto tem sua racionalidade boa: em seu
plano mais restrito elas são menos influenciáveis, com as correspondentes consequências
no plano geral. Por outro lado, na relação atual com a técnica existe algo de exagerado,
irracional, patogênico. Isso se vincula ao ‘véu tecnológico’. Os seres humanos inclinam-se a
considerar a técnica como sendo algo em si mesma, um fim em si mesmo, uma força própria,
esquecendo que ela é uma extensão do braço do ser humano (ADORNO, 2003, p. 132).
Nesse mesmo sentido, Adorno (2003, p. 133-134) atribui à frieza e à indiferen-
ça técnica do eu para com o Outro a responsabilidade pela tragédia nazista:
Se ela não fosse um traço básico da antropologia, e, portanto, da constituição humana como
ela realmente é em nossa sociedade; se as pessoas não fossem profundamente indiferentes
em relação ao que acontece com todas as outras, executando o punhado com que mantém
vínculos estreitos e possivelmente por intermédio de alguns interesses concretos, então
Auschwitz não teria sido possível, as pessoas não o teriam aceito.
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O mais grave, conforme destaca o autor, é o fato de essa fetichização da téc-
nica e, consequentemente, da propagação da frieza estar associada ao conjunto da
civilização, portanto, oporem-se às manifestações seria o mesmo que ir contra a
“alma” do mundo, enquanto mecanismo de difusão e preservação dessa tendência
“civilizatória”, a educação encontra ali seu lado mais “sombrio”.
Andreas Gruschka (2014) aponta que a frieza (burguesa) não é apenas uma
questão de ordem pessoal, mas também social. A frieza é um mecanismo de au-
toproteção e autopreservação do sujeito na sociedade capitalista, como obrigação
social de adaptação e integração. O ser humano é “obrigado” a agir friamente para
permanecer socialmente “ativo”, sem possibilidade de escapar. Segundo o autor,
a frieza avança por meio das normatizações ajustadas aos princípios da socieda-
de burguesa, que submetem as relações educacionais (professor/aluno) à lógica do
lucro e da vantagem. Crescentemente destituída de reflexão e ajustada aos frios
princípios do capitalismo, a educação se amolda aos interesses econômicos, visan-
do desenvolver competências mercadológico-tecnicistas, em detrimento das dimen-
sões moral e ética da formação humana.
Em relação à ênfase dada à dimensão técnica, especificamente na EaD, as IES
parecem cada vez mais comprometidas com as atividades funcionais e econômicas,
relegando ao segundo plano as atividades propriamente pedagógicas relativas à
formação subjetiva dos estudantes. Agrega-se a isto o excesso de técnicas visando
a padronização dos cursos a distância, que, ao replicarem os modelos da educa-
ção presencial, prejudicam a experiência educativa realizada no novo cenário da
EaD. A priorização da dimensão técnica e o excesso de padronização dos cursos a
distância são aspectos prejudiciais à abertura ao Outro/diferente e ao respeito à
alteridade na formação superior a distância. Nesse novo contexto, na verdade, um
outro-modo-de-ser pedagógico, a alteridade precisa ser repensada e ressignificada.
Constata-se hoje que os processos de formação se tornam crescentemente in-
dividualizados, convertendo-se, paradoxalmente, em ensino de indivíduos isolados.
O termo ensino denota, exatamente, o caráter singular, individualizado do proces-
so educacional. A formação, ao contrário, acontece com o Outro e não sem o Outro,
pois, “onde há alteridade, há integridade física, moral e social de cada estudante”
(ABRAHÃO; ASINELLI-LUZ, 2010, p. 277). Nos processos de formação superior a
distância, verifica-se uma crescente incidência de isolamento dos estudantes, em
virtude de as categorias tempo e espaço serem distintas da educação presencial,
pelo fato de professores e estudantes ficarem a maior parte do tempo distantes
geograficamente. Não apenas a separação física nos cursos de EaD configura o
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processo de formação como forma de isolamento, mas também sua estrutura e sua
organização (PETERS, 2001; GOMES, 2004).
Atente-se, também, para o fato de que, muitas vezes, nos processos educa-
cionais, sejam eles a distância ou presenciais, na interlocução entre aluno e pro-
fessor, ao carecer da dinâmica do diálogo entre os agentes, a linguagem se torna
monológica. De acordo com Mill (2012), um dos principais problemas está ligado à
ausência do docente-tutor na concepção da disciplina e dos materiais didáticos. As
atividades se iniciam, diretamente, com a oferta da disciplina, já planejada, poden-
do afetar negativamente a qualidade da interação entre tutor e aluno.
Pode ocorrer que, em situações a distância, o próprio sistema forneça resposta
pronta ao aluno, colocando-o como instrumento, meio ou recurso, seja para capta-
ção de recursos ou funcionamento dos cursos (PETERS, 2001; GOMES, 2004). Não
raro, o aluno, como Outro, não é respeitado em sua condição de único, de alteridade
plena, como Rosto no sentido de Levinas, mas posto como idêntico a si e aos demais.
Trata-se de um modo de relação que fomenta a negação da alteridade e não condiz
com uma formação mais humana e ética. Com efeito, espera-se que o processo de
formação superior seja de fato um processo de humanização, de responsabilidade
e com implicações éticas, para além da “mediação” automática e mecânica de ati-
vidades e conteúdos.
Esse falseamento e essa não resposta do professor ao aluno podem acontecer
por diversos fatores, subjetivos e/ou institucionais. Subjetivos, porquanto se refe-
rem ao eu/professor como ser humano, com suas concepções, prioridades e necessi-
dades relativas à sua responsabilidade pelo Outro/aluno. Institucionais, na medida
em que correspondem às exigências e aos papéis atribuídos ao docente. De resto,
sabe-se que “a renovação que hoje se impõe à educação é excludente, pois, no seu
afã de lucro, o sistema econômico neoliberal faz evidente sua falta de responsabili-
dade face ao outro” (ALVA, 2010, p. 81).
Na relação professor/aluno, a responsabilidade formativa do professor na edu-
cação superior a distância é um aspecto merecedor de muita atenção e cuidado,
visto que o número de alunos por professor/tutor extrapola em muito o recomenda-
do. Inviabiliza-se, assim, um atendimento adequado e dialógico ao aluno (GOMES,
2004). O número excessivo de alunos (por docente) na EaD também pode trans-
formar a relação eu-Outro, professor/aluno, em relação sujeito/objeto, deixando,
de um lado, o aluno de ser sujeito de aprendizagem para se tornar um cliente
e, de outro, convertendo-se os espaços educacionais em shopping centers virtuais,
embasados na lógica do consumo e do lucro (ALVA, 2010). Efetivamente, para al-
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gumas IES, as estratégias de oferta de cursos em EaD mais parecem operações
econômicas visando rendimentos monetários que relacionamentos pedagógicos de
formação humana. Souza (2012, p. 80) observa criticamente que:
[...] na relação sujeito-objeto, acontece necessariamente a objetivação do outro e sua redu-
ção ao mesmo identificador e nivelador de toda diferença. O outro é radicalmente diferente
em relação aos objetos do mundo, em relação a mim e aos outros e, portanto, não pode ser
objetificado, a não ser numa envergadura violenta.
Ao permitir o ingresso de um número elevado de alunos, a EaD assume prá-
ticas pedagógicas que reduzem o Outro ao “Mesmo/Idêntico” e operam conforme
um sistema mercadológico que, focado no lucro, desconsidera as diferenças e as
particularidades dos alunos e nega a alteridade, fundamento ético do processo for-
mativo. Nesse contexto, impõem-se as perguntas: como é possível um professor
se responsabilizar e responder ao apelo de tantos alunos/Outros? De que forma
acontece a constituição da alteridade enquanto fundamento ético, num processo de
educação cujo objetivo principal é a obtenção de rendimentos econômicos?
Para Boff (2005, p. 33), “o humano só se oferece a uma relação que não é poder”,
ressaltando que o diálogo pode e deve transformar a relação de poder entre sujeito
e objeto, numa relação ética entre sujeitos. De acordo com Peters (2001), o diálogo é
uma possibilidade pedagógica e didática do processo de ensino e aprendizagem e um
elemento do agir ético. Nesse mesmo sentido, Leitão Neto (2012, p. 46) lembra que:
[...] é importante salientar os aspectos didático-científicos, didático-universitários, didáti-
co-teleducativos, pedagógicos, filosóficos, antropológicos e sociológicos que influenciam o
ensino a distância. Quem leva em consideração a aprendizagem dialógica, na EaD, e não re-
duz o estudo e o ensino somente a materiais de ensino pré-preparados, mas reconhece seus
objetivos mais amplos, confere-lhes adicionalmente substância e relevância pedagógica.
Isso posto, conclui-se que restringir o processo de ensino e aprendizagem ao uso
de materiais impressos ou, como dito anteriormente, à mera transposição das práti-
cas pedagógicas da educação presencial à virtual prejudica o processo de formação a
distância. É imprescindível que o diálogo seja inerente à EaD, pois fomenta o esta-
belecimento das relações entre o Eu e o Outro, entre professor e aluno, nas quais as
particularidades e as alteridades se encontram e devem ser eticamente respeitadas.
Para Levinas (2009), o diálogo tem função importante, seja na relação peda-
gógica ou em qualquer outra relação social. No entanto, o filósofo considera que a
linguagem, antes de ser diálogo, é expressão do Rosto, é significado ético do Rosto.
“Isso quer dizer que, anteriormente à pergunta, a linguagem expressa uma respos-
ta à interpelação ética do rosto” (MIRANDA, 2008, p. 143). Por isso, a dimensão da
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relação face a face representa, para o filósofo, um elemento essencial na constitui-
ção da alteridade em termos de fundamento ético. Então, levando em conta a real
não presencialidade na EaD, como poderia se estabelecer o diálogo entre professor
e aluno na formação superior a distância, tendo em vista que a linguagem é, pri-
meiramente, expressão do Rosto na relação face a face? Nos cursos a distância, de-
nominados semipresenciais, nos quais os encontros presenciais acontecem apenas
periodicamente, como seria possível, com base na teoria de Levinas, estabelecer
relações de diálogo entre professores e alunos?
Para Levinas (2000, 2010), após a saída do eu de si mesmo e de sua abertura
ao Rosto do Outro, a linguagem se estabelece, primeiramente, na relação face a
face, entre eu e Outro, como expressão do Rosto que apela e chama. No contexto
educacional, o Outro/aluno, faz um apelo e/ou um chamado ao professor. A resposta
do docente representa o início do diálogo e da orientação educativa. Nesse sentido,
no dizer de Alves (2013, p. 36), “falar, como sinônimo de educar, é expor-se, é res-
ponder ao Outro. Portanto, ao falar, um indivíduo pode organizar o mundo para
um interlocutor, mas a condição desse processo é uma saída de seu mundo e da
sua cultura”. Na formação superior a distância, o apelo e o chamado do aluno, bem
como a resposta do professor, ocorrem virtualmente, mediante o uso das tecnolo-
gias digitais de informação e comunicação (TDICs) (MILL, 2012) e dos ambientes
virtuais de aprendizagem (AVAs). Como função e responsabilidade docente, a saída
de si, a abertura ao Rosto e a resposta ao chamado do Outro/aluno são primordiais
e fundamentalmente éticas.
Portanto, faz-se necessário repensar os processos de formação superior a dis-
tância para além de práticas de ensino padronizadas, isoladas, mecanizadas, re-
plicadas ou instrutivas. Nesse sentido, é preciso vislumbrar a abertura ao Rosto,
em nome da ética da alteridade na formação humana. Ficam, então, as seguintes
perguntas: quais seriam as implicações da não presencialidade para pensar a ética
da alteridade na EaD? Como aproximar a EaD de uma perspectiva ética da alte-
ridade? Quais mudanças seriam necessárias nos processos de formação superior a
distância na educação para alteridade? Seria possível e produtivo pensar a teoria
da ética da alteridade de Emmanuel Levinas relacionada à EaD?
Implicações da não presencialidade
Os conceitos de presença e distância estão em processo de reconfiguração. As
novas TDICs existentes na formação superior a distância são as principais respon-
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sáveis pelas modificações desses conceitos. As noções de “presença” e “distância”
não se ligam mais exclusivamente aos aspectos geográficos de distanciamento físi-
co, visto que alguns autores já reconhecem o potencial das TDICs como potenciali-
zadoras de presença, percepção e experiência e redutoras de distâncias (MOORE,
2002; SCHLEMMER, 2010; TORI, 2010). Nesse sentido, Schlemmer (2010) con-
ceitua a presença na EaD como presença digital virtual, que pode ser manifestada
em diversos tipos e níveis, dependendo das TDICs utilizadas. Para a autora, a
presença na EaD possui natureza digital/virtual e é puramente relacional, ou seja,
propicia o “estar junto” digital/virtual e minimiza a falta de presença física, bem
como o sentimento de distância.
Em contrapartida, Levinas (2000) não considera a presença como inscrita no
universo do “Mesmo”, mas como transcendente, revelando-se na relação face a face,
enquanto manifestação do Rosto do Outro. Assim, o Outro se manifesta como pre-
sença na epifania do Rosto do Outro, respeitado em sua alteridade, absolutamente
Outro. Nesses termos, a presença também se liga ao conceito de distância, pois,
para o Outro ser presença, exige-se uma relação face a face na qual o eu esteja
separado/distante do Outro, de sorte que o Outro não se vincule ao “Mesmo”, mas o
transcenda como alteridade plena. Nesse sentido, a relação eu/Outro é, ao mesmo
tempo, presença (revelada na epifania do Rosto, face a face) e distância metafísica
(transcendência) como relação sem relação.
Mas, e a presencialidade? Estaria ela associada ao conceito de presença? De
acordo com o Dicionário Michaelis4, presencialidade é qualidade ou condição de
presencial. Desse modo, pode-se afirmar que a presencialidade está relacionada ao
conceito de presença. Embora a presencialidade não seja conceituada por Levinas
(2000), ela se expressa na situação do encontro face a face com o Outro, enquanto
epifania do Rosto como alteridade absoluta, transcendente. Assim sendo, para o
autor, a não presencialidade pode ser conceituada pela situação do não encontro,
da impossibilidade do encontro face a face com o Rosto do Outro.
Na teoria de Levinas, a relação face a face revela o Outro enquanto Rosto.
Nesse sentido, Rosto é expressão, linguagem. O Rosto “fala” a linguagem da ética,
não como constituição do pensamento, mas do próprio ser que se institui “de outro
modo que ser”, “para além ser”. Dessa forma, a linguagem, antes de ser diálogo, é
expressão do Rosto, da alteridade; é relação ética com o Outro, relação de proximi-
dade (LEVINAS, 2000). Essa proximidade requer a presencialidade no encontro
entre o eu e o Outro, para que se manifeste a linguagem ética do Rosto do Outro,
como expressão original da alteridade.
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Além disso, o Rosto inaugura o acontecimento da linguagem, ao fazer um cha-
mado, uma interpelação. Com a resposta ao chamado do Outro, inicia-se a relação
ética de proximidade. Assim, é por meio da linguagem enquanto relação de proxi-
midade entre indivíduos que a educação é resposta ética ao chamado do Outro. Em
sentido oposto, a não presencialidade impossibilita ou, pelo menos, limita a efetiva
relação ética com o alter.
Desse modo, deve-se considerar urgente a incorporação da presencialidade
no processo de formação, especialmente, no modo a distância comprometido com
a alteridade. Ainda há muito por fazer, mas é preciso fazer algo. Nesse sentido,
propõe-se pensar, a partir da teoria da ética da alteridade, as implicações da não
presencialidade na formação superior a distância, sinalizando como um mundo
sem Rosto e tentando apontar novos e possíveis caminhos para uma educação su-
perior a distância comprometida com a ética da alteridade.
É oportuno lembrar que Levinas, mesmo não sendo especialista em Educação,
fez importantes reflexões específicas sobre a educação judaica em três capítulos de
sua obra Difícil libertad: y otros ensayos sobre judaísmo (2008b), denominados, na
versão espanhola, como “Reflexiones acerca de la educación judia”, “Educación y
plegaria” e “Antihumanismo y educación”. Nesse sentido, estabelecer uma relação
direta entre o filósofo e a Educação, especialmente no modo EaD, como aqui se
sugere, é tarefa complexa e, de algum modo, arriscada de desvio com relação à pro-
posta do pensamento de Levinas. Todavia, parece produtivo argumentar que sua
teoria pode contribuir efetivamente para a ressignificação da EaD, no que concerne
à não presencialidade do Outro em sua alteridade.
Na perspectiva do filósofo, a Educação pode ser entendida como “ensinamento
ético que se manifesta no acolhimento e na responsabilidade pelo Outro, situan-
do-se contra a totalidade” (ALVES, 2013, p. 27). Com relação à Filosofia, propõe-
-se um modelo abraâmico, distinto do modelo epopeico dominante. “O eu, como
Abraão, é total escuta, é completa atenção à convocação do outro; abandono de si
mesmo, interpelação para partir, sabendo que o itinerário é sem volta” (MELO,
2003, p. 57). Nesse sentido, Educação e Filosofia, no entendimento de Levinas,
podem potencializar vivências éticas mais humanas, rompendo com as práticas pe-
dagógicas adaptadas ao sistema totalizante da razão e do isolamento do ser, preso
à mesmidade. Alves e Ghiggi (2012, p. 581) explicam:
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O ensinamento levinasiano se constitui como descrição fenomenológica da resistência de
Outrem aos poderes dominadores do Mesmo. Tal questionamento se dirige à própria razão
ocidental, caracterizada como uma forma astuciosa de dominação e tirania. Pois a razão,
ao apelar para uma ordem conceitual, acaba por violentar e desrespeitar a resistência que
o Outro apresenta, colocando-o no âmbito do ser em geral. Na educação tradicional, pelo
recurso ao conceito universal, a razão desrespeita as singularidades e, inevitavelmente,
constrói uma totalidade. Ou seja, neste modelo de educação formal, pelo qual o singular
passa ao universal, o Outro fica como que suspenso e privado de permanecer em sua alteri-
dade, e acaba fazendo parte de um sistema total, ditando todas as regras, não lhe restando
alternativa senão agir de acordo com as normas propostas pelo sistema.
Observa-se, então, que, historicamente, a Educação esteve (e ainda está) pau-
tada no pensamento da ontologia ocidental, tendo em vista a priorização do “Eu”,
na busca da satisfação das necessidades individuais, com base em mecanismos de
dominação e doutrinação (GRUSCHKA, 2014). Por essa via, consolidou-se uma
pedagogia do “Idêntico”, na qual o Outro foi reduzido ao “Mesmo”, a partir de um
ideal de ensino universal destituído das múltiplas alteridades e singularidades.
Assim entendido, o pensamento levinasiano se apresenta como possibilidade de
uma pedagogia aberta ao Outro, em movimento para-o-Outro, na qual o eu consi-
dera as necessidades do diferente, como forma de superação da Educação pautada
no individualismo e no totalitarismo.
Tendo em vista que, na teoria da ética da alteridade, a relação com o Outro
se dá face a face mediante a revelação do Outro como Rosto, a Educação se confi-
gura centrada no Rosto do Outro, ou seja, na alteridade e na transcendência. Essa
relação com o Outro, como Rosto, não se estabelece na ordem do conhecimento,
mas enquanto princípio ético. “Trata-se de uma relação que não é meramente cog-
nitiva, senão de uma relação de tipo ético, no sentido de que o outro me afeta e me
importa, o qual exige que me faça responsável dele” (ALVA, 2010, p. 81). Nesse
sentido, a epifania do Rosto agrega ao eu uma perspectiva ética: o Outro o convoca
à responsabilidade.
[...] responsabilidade esta que não contraí em nenhuma ‘experiência’, mas da qual o rosto
de outrem, por sua alteridade, por sua própria estranheza, fala o mandamento vindo não
se sabe de onde. Não se sabe de onde: não como se este rosto fosse uma imagem que reme-
tesse a uma fonte desconhecida, a um original inacessível, resíduo e testemunho de uma
dissimulação [...] (LEVINAS, 2008a, p. 15).
O eu, livre e autônomo, é confrontado com a epifania do Rosto do Outro e
convocado à responsabilidade, a “não-deixar-o-outro-homem-só” e a responder “eis-
-me-aqui”, diante da súplica do Outro (LEVINAS, 2010, p. 158). Nesse sentido, a
educação como encontro com o Rosto do Outro é também ensinamento ético, de
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Ética da alteridade: implicações da não presencialidade na educação a distância
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responsabilidade infinita e irrecusável, aberto à transcendência infinita, não mais
restrito ao “Mesmo”, à totalidade, ao doutrinamento e à domesticação. Nessa pers-
pectiva, a responsabilidade é resultado do face a face com o Outro, sendo a presen-
ça do Rosto a revelação da humanidade do homem: “a epifania do rosto como rosto
abre a humanidade” (LEVINAS, 2000, p. 190); “o rosto apresenta a significação do
humano, que é ser para o outro” (SOUZA, 2012, p. 89). A educação, em Levinas,
implica abertura ao Outro/diferente por meio da saída de si, sem retorno e sem
objetivar satisfações individuais; é acolhimento do Rosto no encontro face a face; é
humanização do homem.
[...] o Ensino, para Levinas, é um choque, um traumatismo, uma afecção no mais profundo
da subjetividade. É uma atração abismal que puxa o Eu para além do que se faz saber-se
como Eu, para além de sua atividade de identificação na propriedade do próximo. O Ensi-
namento abre um mundo que se faz bondade, para além das lutas e posses encarniçadas
dos indivíduos, é um acolhimento da Alteridade de Outrem que é maior e me precede (AL-
VES; GHIGGI, 2012, p. 586).
Nesses termos, para que o eu seja convocado à responsabilidade e o Outro
respeitado em sua alteridade, é imprescindível o encontro face a face, a presença
do Rosto. “Não olhei no rosto, não encontrei seu rosto. A tentação da negação total,
medindo o infinito desta tentativa e sua impossibilidade, é a presença do rosto.
Estar em relação com outrem face a face” (LEVINAS, 2010, p. 30-31). A pergunta
posta é, pois, quais seriam as possíveis implicações da não presencialidade para
a constituição da alteridade como fundamento da ética na formação superior a
distância, configurado como um mundo sem Rosto?
A partir dessas considerações, pode-se inferir que as principais implicações
da não presencialidade para a constituição da alteridade, enquanto fundamento
ético dos processos de formação superior a distância, estão associadas às relações
intersubjetivas, principalmente, entre professor e aluno. Sabe-se que essa relação
na EaD acontece no modo “distante”, visto que, usualmente, professor e aluno es-
tão separados física e geograficamente e, ademais, nem sempre estão conectados
sincronicamente, ou seja, o espaço e o tempo na EaD são distintos dos processos
de formação presenciais. Isso permite entender que a situação de ensino e apren-
dizagem pressupõe a relação face a face entre o eu e o Outro, entre imanência
e transcendência, sem assimilação ao “Idêntico” ou renúncia à alteridade. É na
transcendência que o gesto ético se estabelece e estimula a abertura do eu ao Ou-
tro. Assim, “o infinito surge na exterioridade do outro e provoca uma ideia que não
pode ser retida. O Eu deixa de ser um sujeito fechado no Mesmo e passa a perceber
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o outro” (GOMES, 2008, p. 54, grifo do autor). Na relação professor e aluno, o Outro
é aquele que, ao mesmo tempo, sensibiliza, desequilibra e questiona o eu. Para
Alves e Ghiggi (2012, p. 588), “nenhum sistema teórico-conceitual ou regime sócio-
-político podem abarcar e neutralizar, de modo fechado, esta relação”. No entanto,
parece certo que os processos de formação superior a distância, com a estrutura e a
organização em vigência, com situações de não presencialidade, abarcam e neutra-
lizam essa relação, induzindo o Outro a abdicar de sua alteridade.
Conforme mencionado anteriormente, a responsabilidade irrecusável pelo
Outro (LEVINAS, 2008a, 2010) pressupõe a relação face a face, a epifania do Ros-
to habitualmente ausente do contexto da educação superior a distância. Segundo
pesquisa de Cardoso e Isse (2010), alguns professores manifestam a necessidade
do “corpo” do Outro, ou seja, a presença física do Outro. Olhar, tocar e ouvir o Ou-
tro são considerados mecanismos de comunicação e formação imprescindíveis ao
processo de ensino, aprendizagem e, por suposto, da formação humana. De outro
modo, ressalta-se que, “para que o contato entre o Eu e o outro, face a face, ocorra,
não basta, entretanto, apenas a consciência da presença do outro – esta ainda é
domínio do Eu –, é preciso que haja desejo” (GOMES, 2008, p. 54). A presença do
Outro é importante, mas é o desejo metafísico o responsável por mobilizar a saída
do eu-Mesmo em direção ao Outro, face a face.
O Desejo metafísico que impulsionará o Eu a se relacionar com o outro e realizar sua alteri-
dade, na medida em que ele se revela como abertura ao desconhecido, ao novo, ao diferente,
ao mistério (GOMES, 2008, p. 55).
Para Levinas (2010, p. 29), “o Desejo Metafísico seria a essência da teoria”, ad-
mitindo a anterioridade da alteridade do Outro. Em situação de ensino e aprendi-
zagem, o desejo metafísico também seria a essência, de acordo com Alves e Ghiggi
(2012, p. 584), “uma vez que o ensinamento não parte do eu, mas vem do Outro”,
como abertura e transcendência na formação humana. É preciso muito cuidado
para que o processo de ensino e aprendizagem na EaD não se limite à sua dimensão
informativa e instrucional, mas assuma sua função essencial de formação humana
e ética.
A partir dessas considerações, pode-se concluir que, nas questões do ser hu-
mano discutidas a partir das relações intersubjetivas, a dimensão da alteridade
se torna central. Para Levinas, a relação entre o eu e o Outro não se estabelece na
filosofia do “Mesmo/Idêntico”, mas acontece na relação face a face, na qual o Outro
se revela como Rosto. Atendendo ao chamado do Outro, o eu se externaliza num
gesto constituinte de sua própria identidade e, portanto, assume responsabilidade
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Ética da alteridade: implicações da não presencialidade na educação a distância
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irrecusável pelo Outro. Dessa forma, conclui-se que, de acordo com a teoria do
filósofo, a não presencialidade na formação superior a distância pode prejudicar a
constituição da identidade/alteridade como fundamento da ética no contexto das
relações intersubjetivas.
Na sequência, analisa-se a possibilidade de pensar a relação eu-Outro (relação
professor e aluno) nos processos de formação a distância, nos quais a não presen-
cialidade é incontornável, de modo a promover práticas educativas favoráveis à
ética da alteridade.
A educação superior a distância à luz da ética da alteridade de Levinas
A evolução das TDICs e a promoção de sua utilização desmedida e, algumas
vezes, equivocada têm repercutido de diversas maneiras nas transformações das
relações sociais. A cada nova descoberta e inovação, surgem múltiplas formas de
convivência e interação entre as pessoas, especialmente no contexto educacional.
Assim sendo, os espaços de formação, sobretudo na educação superior a distância,
constituem territórios de relações sociais com variadas possibilidades, de presença
e não presença, mas também de fragilidades e desafios que afetam o processo de
ensino e aprendizagem entre professores e alunos e a formação humana.
Há, sem dúvida, muito espaço para uso das TDICs no âmbito educacional
como instrumento modernizador de atividades. No entanto, corriqueiramente, essa
“modernização” dos instrumentos não implica grandes mudanças, em razão de ape-
nas ocorrer a substituição de recursos cujo sentido, na verdade, não se altera. Essa
substituição de um recurso convencional por um instrumento modernizador modi-
fica somente o objeto em si, deixando as práticas inalteradas.
É como se as tecnologias digitais substituíssem os livros didáticos. Ou seja, a escola incor-
pora outros recursos, mas os processos de ensino e aprendizagem continuam os mesmos,
pautados na repetição, na prática da memorização, o que impede que o aluno reflita, faça
intervenções. Neste contexto, é possível afirmar que modernizamos o recurso, mas não
nos desprendemos das práticas pedagógicas convencionais. [...]. Isto implica dizer que em
muitas situações o uso das tecnologias digitais pode servir apenas para fazer o que já vinha
se fazendo anteriormente à presença (FRIZON; RICHIT, 2017, p. 485-486).
Em algumas situações, é possível constatar a transferência das práticas da
educação presencial para a EaD, sem muitas alterações, podendo fragilizar os pro-
cessos de formação a distância, tanto na estrutura e na organização dos progra-
mas, quanto na relação professor/aluno, realizada, majoritariamente, em situações
de não presencialidade.
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A não presencialidade, conforme assinalado, merece atenção e cuidado, para
que a educação superior a distância atenda aos princípios da ética da alterida-
de como dimensão essencial ao processo formativo. Entre os diversos aspectos e
elementos da EaD, carentes de cuidado e atenção especial, destaca-se o diálogo,
que, no entender de Levinas, é posterior à primeira linguagem da expressão do
Rosto, a qual, efetivamente, não pode acontecer em situação da não presenciali-
dade, própria dos processos de educação a distância. Nesse sentido, na tentativa
de encontrar respostas, mesmo que provisórias, suscitam-se as seguintes indaga-
ções: a) levando em conta a inegável não presencialidade na EaD, como poderia
ser realizado o diálogo entre professor e aluno, considerando que a linguagem é,
primeiramente, expressão do Rosto na relação face a face? b) Como seria possível,
com base na teoria de Levinas, estabelecer relações de diálogo entre professores e
alunos nos cursos a distância, denominados semipresenciais, sendo que tais encon-
tros (presenciais) apenas ocorrem periodicamente?
Em Levinas, a linguagem, como expressão do Rosto, é anterior ao diálogo,
dessa forma, defende-se o ponto de vista segundo o qual uma das possibilidades
de estabelecê-la nos processos de formação a distância é por meio de uma relação
originária física anterior à não presencialidade. Os processos de formação a distân-
cia, inicialmente, necessitam oportunizar uma afecção física primeira, anterior à
relação intersubjetiva não presencial. Para tanto, a linguagem, expressão do Rosto
e, consequentemente, manifestação da alteridade por meio do face a face, deve
ser estabelecida presencialmente no início do processo de formação a distância,
propiciando um conjunto de experiências subjetivas e intersubjetivas anteriores
aos subsequentes diálogos a distância entre eu/Outro, entre professores e alunos,
já com Rosto. Com esse procedimento, o Rosto do Outro adquire a condição de
alteridade tangível, conferindo caráter social mais real às posteriores relações a
distância. Em conclusão, os cursos predominantemente a distância se aproximam
dos cursos denominados semipresenciais, nos quais os encontros presenciais acon-
tecem de forma contínua, durante todo o processo de formação. Observadas essas
condições, o diálogo virtual posterior vivifica a relação pedagógica como a efetiva-
ção da relação originária corpórea anterior.
Portanto, entende-se a relação originária corpórea como uma possibilidade na
formação superior a distância, considerada um mundo sem Rosto, de modo a pro-
piciar alguma rostidade inicial. Por mais limitado e precário que seja esse recurso
pedagógico, ele representa uma forma de aproximar a EaD de uma perspectiva
ética de presencialidade. No entanto, isso não permite esquecer que a educação
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Ética da alteridade: implicações da não presencialidade na educação a distância
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enquanto especificidade humana possui inúmeras variáveis que conferem à for-
mação na educação superior a distância dimensões diversas, condicionadas tanto
pelo contexto socio-histórico, quanto pelos sujeitos envolvidos com seu imaginário
e suas histórias.
Ressalta-se, também, que um processo formativo constituído a partir de exi-
gências de controle de resultados, sejam elas com fins econômicos, funcionais ou
pedagógicos, como, por exemplo, a padronização dos cursos e a lucratividade na
EaD, entre outros fatores, é uma ação educativa precária, a qual desrespeita e des-
considera a alteridade e, precisamente por isso, requer mudanças. A antropologia
filosófica de Levinas se oferece como possibilidade factível de mudança a partir da
presença inicial, ao oportunizar a ressignificação da relação eu-Outro (relação pro-
fessor e aluno) nos processos de formação a distância, de modo a promover práticas
educativas que, além da inovação tecnológica, preservem a ética da alteridade.
Conclusões provisórias
Em virtude da globalização e do sistema econômico capitalista, considera-se
que a sociedade se configura como um modelo racional, em que o ser humano está
recluso em-si-mesmo e as relações sociais estão permeadas de ações de frieza, com-
petitividade, indiferença e intolerância. Os processos educacionais de formação,
dos quais a EaD faz parte, tendem a privilegiar, como ideal pedagógico, a sub-
serviência dos educandos aos interesses do sistema econômico, cujas principais
estratégias operacionais são a otimização da produtividade, a redução dos custos e
o aumento dos lucros.
No contexto da sociedade contemporânea, os avanços tecnológicos e científicos,
especialmente as TDICs, vêm influenciando crescentemente as diversas dimensões
da vida, em particular, no campo da educação. Nesse cenário, os processos de for-
mação a distância vêm se difundindo em âmbito tanto nacional quanto mundial,
facilitando o acesso à educação nos diversos contextos regionais e mundiais. Essa
ampliação, é preciso não esquecer, está sendo dinamizada por interesses econômi-
cos que tratam a educação como produto disponibilizado e posto à venda no mer-
cado como outro produto qualquer. Por essa razão, é preciso atentar para o fato de
que muitos cursos a distância realizam um simulacro de formação, de rápido e fácil
acesso à certificação, menosprezando aspectos fundamentais da formação humana,
relativos à essencial dimensão da alteridade na convivência social. Considerando
a incontornável realidade da EaD na sociedade contemporânea, o intento do pre-
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sente trabalho foi buscar alternativas visando mitigar os efeitos negativos da edu-
cação a distância, mediante o recurso à teoria da ética da alteridade de Emmanuel
Levinas. O intuito foi analisar a formação superior no modo EaD e as possíveis
implicações da não presencialidade na constituição da alteridade.
Nesse sentido, procurou-se argumentar, com base na teoria do filósofo Emma-
nuel Levinas, que a não presencialidade, conceituada como situação do não en-
contro, ou seja, da impossibilidade do encontro face a face com o Rosto do Outro,
traz implicações para a constituição da alteridade enquanto fundamento ético nos
processos de formação superior a distância, associadas às relações intersubjetivas
entre professor e aluno. A teoria crítica de Levinas nos ajuda a entender que a
estrutura, a organização e o funcionamento dos cursos de formação superior a dis-
tância, tal como vêm sendo praticados, tendem a desfocar o Rosto humano da edu-
cação com o enaltecimento das competências para o mercado de trabalho. Assim,
a primazia da racionalidade técnica e instrumental; a padronização dos cursos; o
isolamento dos indivíduos; a linguagem como monólogo; a mediação automática e
mecânica das atividades; o processo de ensino e aprendizagem com sentido infor-
mativo e instrucional; o número elevado de alunos por turma; a relação professor/
aluno como sujeito/objeto e a transposição das práticas pedagógicas do ensino pre-
sencial ao virtual podem ser, no seu conjunto, aspectos endêmicos à modalidade
EaD, quando praticada sem o devido senso crítico.
Conclui-se que, entre os diversos aspectos e elementos educacionais que me-
recem especial atenção e, por isso, precisam ser repensados na EaD, está a pre-
sencialidade dialógica/crítica, embasada na teoria da alteridade. Nesse contexto,
a imagem do rosto, presente na filosofia de Levinas, pode oferecer uma primeira
e fundamental linguagem indispensável para a realização do processo educativo
que visa a formação da pessoa humana na educação a distância. Propiciar alguma
rostidade, mesmo que apenas inicial, é uma forma de oportunizar uma ressignifi-
cação da relação eu-Outro (relação professor e aluno) nos processos de formação a
distância, de modo a promover práticas educativas voltadas à ética da alteridade.
Notas
1 Epifania é o termo de origem grega que pode ser traduzido por “manifestação ou aparição”. Uma mani-
festação de algo inesperado, uma súbita sensação de entendimento ou compreensão da essência de algo.
Destaca o caráter de revelação que expressa o Rosto do Outro.
2 O conceito de Rosto empregado por Levinas não se refere na perspectiva da face, algo puramente estético e
plástico, mas no modo com que o outro se apresenta a mim. “O modo como o Outro se apresenta, ultrapas-
sando a ideia do Outro em mim, chamamo-lo, de facto, rosto” (LEVINAS, 2000, p. 38).
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3 O face a face (frente a frente) é descrito por Levinas como a estrutura primeira da socialidade ou, ainda,
relação ética.
4 Disponível em: http://michaelis.uol.com.br/busca?id=YkAMb. Acesso em: 06 fev. 2018.
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ensino e aprendizagem. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2010.
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* Doutora em Educação pela Unesp. Professora Adjunta do Instituto Federal de Ciência e Tecnologia de São Paulo. Mem-
bro do GT de Psicologia da Moralidade da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (Anpepp).
Desenvolve pesquisas sobre violência escolar, convivência ética, clima escolar, clima universitário e formação docente.
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6053-589X. E-mail: juzechi@gmail.com
** Doutora em Educação pela UNESP. Professora Adjunta na Universidade Federal do Paraná, no Departamento de Teoria
e Fundamentos da Educação. Membro do GT Psicologia da Moralidade da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-gra-
duação em Psicologia (ANPEPP). Desenvolve pesquisa sobre bullying, estratégias antibullying, conitos interpessoais,
clima universitário e convivência ética na escola e universidade. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4151-4329. E-mail:
loriane.trombini.frick@gmail.com
*** Professora Titular aposentada do Departamento de Educação da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Unesp, campus
Presidente Prudente. Livre docente e titular pela Unesp, Doutora pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São
Paulo. Membro do GT de Psicologia da Moralidade da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia
(ANPEPP). Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0752-2760. E-mail: sumenin@gmail.com.
Recebido em: 30/10/2020 – Aprovado em: 18/08/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i3.
Educação para a convivência ética: uma emergência
Educación para la convivencia ética: una emergencia
Education for ethical coexistence: an emergency
Juliana Aparecida Matias Zechi*
Loriane Trombini Frick**
Maria Suzana De Stefano Menin***
Resumo
Em tempos de crises em vários campos da vida contemporânea, é urgente armar a função da escola em favo-
recer a construção de valores na constituição de indivíduos solidários, cooperativos, empáticos e justos. O pre-
sente texto tem como objetivo apresentar princípios da educação para a convivência ética, mostrando algumas
experiências educacionais inspiradoras. Para tanto, descreve relatos de projetos escolares brasileiros e espanhóis
levantados a partir de dois estudos descritivos. Os relatos foram coletados por meio de visitas a escolas que
desenvolviam práticas de melhoria da convivência e realização de entrevistas semiestruturadas com professores
ou equipe diretiva. As ações descritas envolvem o diagnóstico das necessidades escolares com envolvimento
das comunidades interna e externa, a sistematização e institucionalização das ações, o desenvolvimento de
práticas morais pautadas na gestão democrática e na valorização do protagonismo e a formação inicial e conti-
nuada de docentes e demais membros da comunidade educativa. Mesmo considerando as especicidades de
cada instituição citada, sua região ou país de origem, espera-se que as ilustrações trazidas, com destaque para
seus princípios e práticas, inspirem reexões frutíferas sobre a urgência da educação para a convivência ética e
modos de organizá-la.
Palavras-chave: ética; valores; educação; práticas pedagógicas; formação docente.
Recebido em: 29/07/2020 – Aprovado em: 26/11/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i3.11411
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Abstract
In times of crisis in various elds of contemporary life, it is urgent to arm the role of the school in favoring the
construction of values in the constitution of solidary, cooperative, empathic, and just individuals. The purpose
of this work is to present principles of education for ethical coexistence, showing some inspiring educational
experiences. To this end, it describes reports of Brazilian and Spanish school projects raised from two descriptive
studies. We collected the reports through visits to schools that developed practices to improve living, and we
conduct semi-structured interviews with teachers or the management team. The actions described involving:
the diagnosis of school needs with the involvement of the internal and external community; the systematization
and institutionalization of actions; the development of moral practices based on democratic management and
the enhancement of protagonism; the initial and continuing training of teachers and other members of the edu-
cational community. Even considering the specicities of each institution mentioned here, its region, or country
of origin, we hope that the illustrations brought, with emphasis on its principles and practices, will inspire fruitful
reections on the urgency of education for ethical coexistence and ways of organizing it.
Keywords: ethical; values; education; pedagogical practices; teacher training.
Resumen
En tiempos de crisis en diversos campos de la vida contemporánea, es urgente armar el papel de la escuela para
favorecer la construcción de valores en la constitución de individuos solidarios, cooperativos, empáticos y justos.
Este texto tiene como objetivo presentar los principios de la educación para la convivencia ética, mostrando
algunas experiencias educativas inspiradoras. Con este n, describe informes de proyectos escolares brasileños
y españoles a partir de dos estudios descriptivos. Los informes se recopilaron a través de visitas a escuelas que
desarrollaron prácticas para mejorar la convivencia y por entrevistas semiestructuradas con los maestros o el
equipo directivo. Las acciones descritas implican el diagnóstico de las necesidades escolares con la participa-
ción de la comunidad interna y externa, la sistematización e institucionalización de las acciones, el desarrollo de
prácticas morales basadas en la gestión democrática y la valorización del protagonismo, y la formación inicial y
continua de docentes y otros miembros de la comunidad educativa. Incluso considerando las especicidades de
cada institución mencionada aquí, su región o país de origen, se espera que las ilustraciones presentadas, con
énfasis en sus principios y prácticas, puedan inspirar reexiones fructíferas sobre la urgencia de la educación
para la convivencia ética y las formas de organizarla.
Palabras clave: ética; valores; escuela; práctica pedagógica; formación docente.
Introdução
Vive-se um momento, no Brasil e no mundo, de enfrentamento a uma crise
de saúde ocasionada pela Covid-19, a qual agrava crises econômicas, políticas e
sociais já existentes. Além das respostas das ações governamentais, estão as de
ordem civil. Especialistas apontam que seu enfrentamento exige ações coletivas,
cooperativas, solidárias, responsabilidade social, cuidado de si e do outro (BAVEL
et al., 2020). No entanto, a imprensa divulga, quase que diariamente, ações de
desrespeito às normas, individualidade, egoísmo e falta de empatia. As notícias1
mencionam pessoas que provocam aglomerações como festas clandestinas, saem
às ruas para fazer compras não urgentes, visitam famílias para comemorações
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sem os mínimos cuidados, negam-se a seguir a orientação obrigatória do uso de
máscaras, manifestando, muitas vezes, não se importar com as consequências dos
seus comportamentos na vida das outras pessoas. Tal situação é um alerta para a
qualidade das relações sociais e para a não adesão a valores morais pelos indiví-
duos. Bauman e Donskis (2014, p. 21-22), ao falarem sobre a insensibilidade para
o mal, discorrem que:
A não percepção dos primeiros sinais de que algo pode dar ou já está dando errado com nos-
sa capacidade de conviver e com a viabilidade da comunidade humana, e que, se nada for
feito, as coisas poderão piorar, significa que o perigo saiu de nossa vista e tem sido subesti-
mado por tempo suficiente para desabilitar as interações humanas como fatores potenciais
de autodefesa comunal – tornando-as superficiais, frágeis e fissíparas.
A situação atual mostra que algo não está bem nas relações sociais. Evidencia-
-se a predominância da individualidade e da superficialidade nas relações sociais
(BAUMAN, 2007). Percebe-se a crescente busca pelo prazer individual e momen-
tâneo, em detrimento de interesses coletivos, a chamada cultura hedonista (LA
TAILLE; MENIN, 2009), e o aumento do desengajamento moral. Esse conceito foi
inicialmente proposto por Bandura na Teoria Cognitiva Social (década de 1990), tal
como explicado por Azzi (2011), e se refere ao fato de as pessoas encontrarem jus-
tificativas para cometer atos antissociais sem se sentirem culpadas ou censuradas
por isso. Quando isso ocorre, é possível se desprender ou desengajar dos próprios
padrões morais para cometer atos antissociais deliberadamente, sem autoconde-
nação (BANDURA, 2002). O desengajamento moral é antecedido e intermediado
pelo desengajamento gradual da autocensura, no qual as pessoas nem sequer re-
conhecem que vão ocorrendo modificações em suas referências: lentamente, cenas
e contextos frente aos quais deveríamos manter a indignação e a indagação per-
manente quanto às suas causas determinantes vão se naturalizando (BANDURA,
1999, 2002).
Além disso, a dificuldade de indivíduos agirem em prol do bem coletivo e con-
forme valores morais internalizados pode ser justificada, também, pela falta de
autonomia moral. Inspirados em Piaget (1932/1994), entendemos que essa forma
de autonomia ocorre quando uma pessoa concorda racionalmente e por vontade
própria em seguir regras que considera válidas para si e para todos simultanea-
mente, ou seja, universalizáveis. Ao contrário, sujeitos heterônomos moralmente
agem conforme ordens externas, são guiados pelos outros e tomam decisões com
base em interesses individuais (para se beneficiar, por exemplo) ou para evitar pu-
nições. Agir moralmente bem não se trata, apenas, de seguir regras ou leis sociais,
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mas também de agir conforme princípios que sejam bons para o maior número de
pessoas (MENIN, 1996).
Nesse sentido, estudos mostram que boa parte dos indivíduos, mesmo adultos,
age de forma heterônoma, tendo dificuldade em considerar valores morais em si,
como princípios necessários, bons e justos, para qualquer ser humano, o que cha-
mamos de perspectiva moral propriamente dita e que pode estar além de conven-
ções da sociedade. Isso significa que, frente a diversas situações, muitos indivíduos
heterônomos tomam decisões de como agir em perspectivas anteriores à moral,
considerando, por exemplo, suas necessidades e seus pontos de vista – perspectiva
egocêntrica –, ou atendendo necessidades de pessoas afetivamente próximas, como
família, amigos; ou ainda, obedecendo autoridades, regras e leis – perspectiva so-
ciocêntrica (KOHLBERG, 1992; TAVARES; MENIN, 2015).
Assim, apresenta-se a questão: enquanto educadores, como reagir perante
essa situação? Puig et al. (2000), ao discutir a função socializadora da escola, de-
fende que esta deve ser regida por princípios de igualdade, liberdade, participação
e justiça, configurando-se em uma sociedade democrática. Ortega Ruiz (2020), ao
refletir sobre os desafios da educação para os próximos anos frente às agendas
internacionais de desenvolvimento, afirma ser necessária uma educação para além
do instrumental, que incida em atitudes e valores, que forme para a ética e para
a convivência. Para a autora, a educação precisa investir em práticas que fomen-
tem a experimentação da vida enquanto se aprende, possibilitando a construção de
identidades moralmente responsáveis.
Estudos de Menin (2002), Menin, Bataglia e Zechi (2013) e Tognetta e Vinha
(2007) têm mostrado que as relações estabelecidas na escola podem, ou não, levar
a uma maior adesão a valores morais, como o respeito mútuo, a justiça, a solida-
riedade, entre outros. Contudo, é preciso reconhecer que a educação tradicional
(MENIN, 2002), da forma como está organizada e sendo desenvolvida, dá sinais de
que tem falhado na tarefa de formar para a autonomia e a cidadania (GOERGEN,
2007; LA TAILLE; MENIN, 2009).
Em pesquisa que buscou analisar projetos realizados em escolas públicas
brasileiras no campo da educação em valores, verificou-se que, embora o banco
de dados constasse de 1.062 relatos de instituições de diferentes estados brasi-
leiros, poucos (menos de 5%) poderiam ser considerados bem-sucedidos (MENIN;
BATAGLIA; ZECHI, 2013). O estudo evidencia que não há um consenso entre os
educadores sobre sua responsabilidade quanto à formação em valores sociomorais
dos alunos, sendo esta ainda muito deficitária em nossas escolas. Também permeia
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entre os agentes escolares uma diversidade de concepções sobre a natureza dessa
educação e como trabalhá-la.
Tavares e Menin coordenaram, durante os anos de 2012 a 2016, uma pesqui-
sa com alunos e seus professores de educação básica sobre a construção de uma
escala de avaliação de modos de adesão2 a valores sociomorais – justiça, solidarie-
dade, respeito e convivência democrática (TAVARES; MENIN, 2015; MARQUES;
TAVARES; MENIN, 2017). No estudo, evidenciou-se que a adesão aos valores de
solidariedade, respeito, justiça e convivência democrática é, na maioria das vezes,
sociocêntrica, ou seja, ao escolherem como agir ou pensar, levam em consideração
as perspectivas de certas pessoas ou referências normativas específicas (pessoas
afetivamente importantes, autoridades, regras e convenções), pouco alcançando
um nível moral. Houve uma adesão menor aos valores de justiça e convivência
democrática. As autoras explicam que tais valores com menor adesão são pouco
vivenciados em nossa cultura e nas instituições sociais, tais como escola e família,
enquanto que a solidariedade é mais vista como uma característica de nosso modo
de relação, mesmo que ela se limite aos círculos sociais mais próximos. A pesquisa
constatou ainda que aqueles que vivem em ambientes escolares com maior quali-
dade social nas relações têm adesão maior a todos os valores.
A transformação necessária no comportamento humano e nas relações sociais
para o enfrentamento de certas situações, como a pandemia de Covid-19, não se
dará repentinamente. É um processo educacional que leva tempo, mas o alerta
está ligado (BAUMAN; DONSKIS, 2014). A educação precisa olhar para o futuro
pós-pandemia e se transformar, a fim de contribuir para a superação de processos
que somente fortalecem o individualismo e a superficialidade, ou seja, contribuir
para a formação em valores sociomorais favoráveis à promoção de indivíduos mais
solidários, cooperativos, empáticos e justos, ou seja, que aderem a valores em suas
personalidades.
Nesse sentido, o objetivo deste texto é apresentar os princípios da educação
para a convivência ética e resgatar experiências educacionais inspiradoras, rela-
cionando-as aos princípios de tal modelo educativo. Para tanto, apresenta relatos
de experiências escolares brasileiras e espanholas3 coletadas por duas pesquisas4
(ZECHI, 2014; FRICK, 2016). Tratam-se de dois estudos descritivos frutos de pes-
quisas qualitativas. Os relatos de experiências foram coletados por meio de visitas
a escolas5 escolhidas seguindo critérios específicos de cada pesquisa, mas que ti-
nham em comum conhecer práticas escolares de melhora da convivência escolar.
No total, foram realizadas visitas em cinco escolas brasileiras e oito espanholas.
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Para este artigo, fez-se um recorte nos relatos das entrevistas semiestrutu-
radas com professores ou equipe diretiva das escolas, as quais foram realizadas
nas duas investigações, a fim de apresentar as percepções desses sujeitos sobre o
desenvolvimento de ações de melhoria da convivência e educação em valores, as
quais se considera que estão em consonância com os princípios de uma educação
para a convivência ética. As entrevistas, em ambos os estudos, foram analisadas
por meio da técnica de análise de conteúdo (BARDIN, 2011), a qual possibilitou
compreendermos o sentido da fala dos participantes por meio de categorias teori-
camente relevantes.
Educação para a convivência ética
A superação da concepção de escola como espaço restrito ao ensino e à trans-
missão de conteúdos, para uma ideia de um local onde se aprende também a viver
com os outros e a respeitá-los (SERRANO, 2002), é a defesa de teóricos que com-
preendem a necessidade de uma educação para a convivência (DEL REY; CASAS;
ORTEGA RUIZ, 2017; DÍAZ-AGUADO, 2015; VINHA et al., 2016, 2017).
Compreende-se convivência escolar como uma rede de relações interpessoais
que ocorre entre todos os membros da comunidade escolar, e é nessa rede que se
configuram processos de comunicação, sentimentos, valores, atitudes, papéis, sta-
tus e poder (ORTEGA RUIZ; DEL REY; CASAS, 2013). Nesse sentido, as relações
estabelecidas na escola podem ou não contribuir para a adesão a valores sociomo-
rais como o respeito mútuo, a justiça, a solidariedade, o diálogo, a autorregulação
e a convivência democrática (MENIN, 2000; MENIN; BATAGLIA; ZECHI, 2013),
promovendo uma educação para a convivência ética.
A educação para a convivência ética tem como objetivo o desenvolvimento de
um clima educacional positivo (MORO; VINHA; MORAES, 2019; VINHA et al.,
2016), contribuindo para a melhora nas relações sociais entre os atores da comu-
nidade escolar, a qualidade do ensino e o estabelecimento das bases da educação
para a formação cidadã. Compreende-se, então, que a escola deve permitir aos
alunos uma convivência democrática, suscitando a sensibilidade ética e educando
os indivíduos enquanto cidadãos que respeitam os demais e se fazem respeitar
(ZECHI, 2014). Essa forma de educação, portanto, contribui para a formação de
personalidades éticas, isto é, sujeitos capazes de pensar em valores, de forma re-
fletida e autônoma, para orientar as escolhas na constituição dos sentidos dados à
vida, pensada com e para o outro (LA TAILLE, 2006, 2009).
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Ao assumir essa forma de educação, a escola passa a considerar que proble-
mas importantes da humanidade não são resolvidos, unicamente, pelas vias técni-
co-científicas, mas, também, pela reorientação ética e de valores (CORTINA, 2003).
Educar para a convivência ética implica organizar o ambiente de tal forma que os
valores sejam vivenciados nas relações (PIAGET, 1930/1998). Isso significa que a
formação para a cooperação, a solidariedade, a justiça, a responsabilidade social e
o respeito mútuo, por exemplo, não se dá por verbalismos, mas, sim, pela possibi-
lidade de experienciar relações em que esses valores estejam presentes (MENIN,
2002).
A cooperação, segundo Piaget (1930/1998), é um dos procedimentos mais fe-
cundos de educação sociomoral. Ambientes cooperativos possibilitam que os estu-
dantes sejam ativos no processo de construção do conhecimento, tenham oportuni-
dades de expressar-se, tomar decisões e refletir sobre ações, valores e sentimentos,
além de contribuir para o aumento do sentimento de responsabilidade dos estudan-
tes com relação ao seu próprio processo de aprendizagem (DÍAZ-AGUADO, 2015).
Ao relacionar-se com os demais, podem conhecer seus pares, desenvolver sentimen-
tos de simpatia e se solidarizar.
Outro aspecto importante da educação para a convivência ética é a apresen-
tação da escola como uma “comunidade justa” (KOHLBERG; POWER; HIGGINS,
1997), em que o princípio de justiça rege das mais simples regras escolares às
formas de relação social entre os agentes escolares, garantindo um sentimento de
pertença ao grupo e o compartilhamento de responsabilidades. Para que isso de
fato ocorra, a escola deve, verdadeiramente, constituir-se como ambiente demo-
crático. Destaca-se que um ambiente democrático é aquele em que se prioriza o
diálogo como forma principal de resolução de conflitos e tomada de decisões; diá-
logo que leve à participação coletiva e à troca de diferentes pontos de vista com a
finalidade de se chegar a um entendimento que vise o bem comum. Nesse sentido,
são repudiadas imposições de arbitrariedades, individualismos e autoritarismos
(MARQUES; TAVARES; MENIN, 2017).
Segundo Marques, Tavares e Menin (2017), a adesão a valores sociomorais
ocorre em sociedade a partir da apropriação de regras, valores, normas e formas de
pensar que são parte da cultura do grupo social ao qual pertence. Assim, a escola,
além da família, é uma das principais instituições para a construção de valores nas
crianças.
Considerados os princípios da educação para a convivência ética, cabe desta-
car que a formação para a construção de valores sociomorais está presente nas nor-
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mativas orientadoras de nosso sistema educacional em várias de nossas leis, como
a Constituição federal (BRASIL, 1988), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (BRASIL, 1996), os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997),
os Planos Nacionais de Educação (BRASIL, 2014, 2016) e, finalmente, a Base Na-
cional Comum Curricular (BNCC) (BRASIL, 2017), assim como a grande maioria
dos projetos políticos pedagógicos das escolas. Todos indicam a formação integral
do indivíduo como cidadão que privilegia a democracia e que adere a valores como
o respeito, a justiça e a solidariedade.
A formação para a adesão a valores sociomorais foi incluída, recentemente,
num conceito mais amplo de competência, e este, por sua vez, é compreendido
como “a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades
(práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas
complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do traba-
lho” (BRASIL, 2017, p. 8). A BNCC indica que o desenvolvimento das habilidades
socioemocionais deve ser pensado a partir de princípios éticos necessários para a
garantia de uma sociedade democrática inclusiva e defende a importância de uma
visão plural, singular e integral do aluno, com a valorização do seu protagonismo.
Nesse contexto, para possibilitar a reflexão sobre como desenvolver uma edu-
cação para a convivência ética, elucidando, inclusive, dificuldades para tal, apre-
sentam-se, a seguir, experiências de instituições escolares, as quais são relatadas
considerando-se os princípios da convivência ética. Os projetos exemplificados
coadunam com iniciativas que tinham por finalidade a construção de valores uni-
versalizáveis, indicavam adotar métodos democráticos, com longa duração e am-
pla participação da comunidade escolar, resultando numa melhora da convivência
escolar.
Experiências inspiradoras para a promoção da convivência ética
A partir da fundamentação apresentada, como seria possível colocar em prá-
tica a educação para a convivência ética? Em meio a tantas demandas e dificulda-
des escolares, como se reorganizar? Eis alguns princípios que tentam responder a
tais perguntas e inspirar práticas. Eles são apresentados considerando categorias
amplas de princípios de uma educação para a convivência ética. Note-se que a
separação em categorias é meramente didática, pois algumas ações se relacionam
a mais de um princípio.
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Identicar necessidades com envolvimento das comunidades escolar e externa
O desenho de um projeto que vise a promoção de uma convivência ética deve
considerar a análise do contexto e a avaliação das necessidades reais da escola,
envolvendo o maior número de espaços e membros da comunidade escolar. Uma
forma de iniciar é por meio de avaliação do clima escolar e de diagnósticos reali-
zados com os professores, os funcionários, os alunos e seus familiares (CUNHA;
AMARAL, MACEDO, 2019; DEL REY; CASAS; ORTEGA RUIZ, 2017; MORO; VI-
NHA; MORAES, 2019). Avaliações sobre formas específicas de violências, como o
bullying, também são relevantes e podem ser inseridas nesse processo de análise.
Em se tratando de percepção sobre as relações interpessoais, é relevante que tais
análises sejam feitas com regularidade, para avaliar o que tem sido desenvolvido
e replanejar as ações.
Como ilustração, destacamos o projeto “Esperança no futuro”, desenvolvido
em uma escola municipal de ensino fundamental (ciclos I e II) e Educação de Jo-
vens e Adultos (EJA) em uma cidade do estado de Minas Gerais, Brasil. Nessa
escola, a proposta surge de um levantamento realizado pela equipe diretiva sobre
as expectativas e as necessidades da escola. Para tal, realizou-se um questionário
diagnóstico junto aos professores e funcionários. Foi aplicado, também, um ques-
tionário de sondagem com pais e alunos. Os dados do questionário dos professores
revelaram que suas dificuldades se referiam ao comportamento dos alunos, como a
indisciplina e a falta de interesse, o que, segundo os docentes, comprometia as re-
lações interpessoais na escola e a produtividade discente. O diagnóstico, segundo o
relato da coordenadora da escola, levantou a necessidade de se investir “na dimen-
são afetiva e moral” do desenvolvimento do alunado, dando início à sistematização
das ações desenvolvidas.
Além disso, torna-se relevante a organização de espaços e tempos sistemá-
ticos e frequentes, em que diferentes membros da comunidade se reúnam para
pensar as questões relacionadas à convivência escolar. Nesse sentido, destaca-se o
exemplo de outra escola da região de Andaluzia, Espanha, que promovia reuniões
semanais com um grupo de trabalho composto por equipe diretiva, coordenação e
professores, para debater e diagnosticar problemas entre estudantes e professores
e buscar alternativas de atuação. Nessa escola, a diretora relatou que, embora
houvesse muitos problemas com relação aos professores, os quais eram resistentes
a mudar sua postura ou seu modo de perceber e de atuar em sala de aula, esses
momentos de discussão em grupo possibilitavam a autoavaliação e a reflexão sobre
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as posturas e atitudes pessoais gerais ou em sala de aula, os modos de expressão e
transmissão de conhecimentos, sentimentos e valores.
Outra possibilidade é instituir, na organização escolar, departamentos de con-
vivência. Embora o trabalho de educação para a convivência ética não seja restrito
a algumas pessoas, é significativo ter pessoas representantes que coordenam as
ações com os diferentes membros da comunidade. Na Espanha, as administrações
públicas, desde meados dos anos de 1990, criaram em cada centro escolar uma Co-
missão de Convivência, prevista em um decreto nacional – Real Decreto n. 732 (ES-
PANHA, 1995). Todas as escolas visitadas nesse país tinham um Departamento de
Convivência no qual se instituía uma Comissão de Convivência, a qual trabalhava
na identificação, na prevenção e no tratamento de situações conflitivas como meio
para os discentes aprenderem a conviver. A comissão era composta pelo orientador
pedagógico, pelos professores e pela coordenadora de convivência; em algumas es-
colas, ainda tinham representantes de pais. As Comissões de Convivência tinham
como objetivo, segundo relato dos entrevistados, elaborar e difundir, juntamente
com todos os setores da comunidade educativa, um projeto de trabalho que visasse
à melhora da convivência, aos processos de mediação de conflitos, assim como à
elaboração de diferentes materiais e espaços de trabalho com os alunos, para a pro-
moção da convivência positiva. Nas reuniões de departamento, eram discutidos os
problemas ocorridos na escola e se buscavam soluções conjuntas para os problemas.
Com relação à participação dos diferentes membros da comunidade nesse pro-
cesso, destacam-se aqueles projetos que conseguem envolver as famílias tanto na
análise e na decisão das ações como naqueles que são formativos. Isso possibilita
maior conexão entre o que é feito na escola e nas famílias. Numa escola da região
de Andaluzia, Espanha, por exemplo, realizavam-se reuniões trimestrais com re-
presentantes de pais/responsáveis, professores tutores e equipe diretiva, em que
se apresentavam as ideias de projetos anuais da escola (metodologia adotada pela
instituição) e, assim, todos podiam participar da elaboração. A escola também ins-
tituiu um canal de comunicação com as famílias via representantes, e estes repas-
savam as informações aos outros familiares.
No Brasil, exemplificamos com as ações do projeto “Conviver”, realizado em
uma escola de ensinos fundamental e médio na cidade de Osasco, SP. A partir do
envolvimento dos pais nas ações da escola, criou-se o projeto “Participais”, consti-
tuído por um grupo de pais de alunos, que visava à integração da família à escola
para a resolução de problemas e passou a funcionar como um órgão colegiado na
escola. Todos os familiares foram convidados a participar, com o objetivo de criar
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vínculos entre a escola e a comunidade, no sentido de facilitar a comunicação entre
os representantes da escola e os familiares dos alunos, para divulgar as atividades
e a proposta da instituição e reunir toda a comunidade escolar (alunos, professores,
gestores e pais), para a discussão dos problemas detectados em sala de aula, na
escola e em seu entorno.
Sistematizar ações em planos inseridos ou articulados ao projeto pedagógico escolar
Após o levantamento das necessidades, deve-se iniciar uma discussão coletiva
e o planejamento das ações de educação para a convivência ética a serem desenvol-
vidas de acordo com as necessidades próprias de cada instituição. É desejável que
tais ações sejam sistematizadas num plano de convivência, inserido ou articulado
ao projeto pedagógico escolar (MENIN; BATAGLIA; ZECHI, 2013; VINHA; NU-
NES; MORO, 2019). Esse processo foi observado em parte das escolas visitadas,
principalmente na Espanha, e é importante para inserir a educação para a convi-
vência ética no “DNA” da escola. Ações para este fim que não realizadas de forma
sistemática, continuada e envolvendo a maior parte possível da comunidade esco-
lar podem ter frutos positivos, mas correm o risco de serem pontuais e facilmente
deixadas de lado, em função de outras demandas escolares.
O plano deve conter os valores que serão trabalhados pela escola nas suas
práticas, de forma intencional, a metodologia de prática pedagógica, a postura das
relações interpessoais e os modos de avaliação. Além disso, pode envolver a in-
serção de momentos específicos para abordar as questões de convivência, como as
assembleias escolares, no currículo escolar. É importante que conteúdos relacio-
nados à convivência sejam intencionalmente trabalhados e inseridos no currículo,
como bullying (FRICK, 2019), cyberbullying, preconceito, respeito à diversidade
étnico-racial, gênero (CÁRCAMO; MORENO; DEL BARRIO, 2020), entre outros.
A análise da realidade escolar também permitirá que a instituição identifique
problemas que afetam a convivência ética, como incivilidades e violências. Nesse
sentido, é necessário que as propostas de educação para a convivência ética con-
templem ações preventivas, de evitação de risco e de contenção (para situações
em curso), buscando investir na melhoria da qualidade das relações interpessoais,
possibilitando à comunidade escolar formas claras de atuação perante diferentes
situações (FRICK et al., 2019).
Na escola brasileira em que se realizou o projeto “Esperanças no Futuro”,
houve mudança no projeto curricular da escola, a qual foi aprovada pela Secretaria
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Municipal de Educação, no ano de 2009. A escola passou a contar com seis aulas
diárias de 45 minutos, introduzindo ao currículo as áreas de Ambiente e Meio Am-
biente com duas aulas semanais, para os sextos e sétimos anos, e Ética, para os
oitavos e nonos anos. Houve ainda uma ampliação das aulas de Educação Religiosa
para duas aulas semanais e estenderam-se as aulas de Artes para todos os anos,
também com duas aulas semanais. Também foram adotadas mudanças nas dinâ-
micas das aulas e salas ambientes. Essa mudança intensificou a possibilidade de
ampliar práticas favoráveis ao desenvolvimento moral dos alunos, equilibrando as
aulas das matérias tradicionais e trazendo para a reflexão as situações reais do
cotidiano dos alunos, buscando uma metodologia baseada no diálogo e na resolução
de conflitos.
A escola também passou a adotar novos processos avaliativos, contemplando
dimensões atitudinais, procedimentais e cognitivas. Paralelo a isso, foram adota-
dos relatórios diários para que os professores registrassem as experiências viven-
ciadas em sala de aula com o objetivo de acompanhamento dos alunos em relação
ao cumprimento das atividades, aos relacionamentos interpessoais e ao comporta-
mento. A partir do relatório, a coordenação intervinha abordando as situações de
conflitos ocorridas nas salas, buscando, com alunos e professores, outras formas
de agir. Destaca-se que todas as práticas foram inseridas no plano pedagógico,
institucionalizando as ações.
Na Espanha, a criação de Planos de Convivência é uma exigência estabelecida
em Normativa Estatal, desde o ano de 2006 (ESPANHA, 2006). A referida legis-
lação indica que todas as escolas públicas do país tenham, também, normativas
relacionadas à convivência atreladas ao Projeto Educativo Escolar. Na região da
Andaluzia, Espanha, por exemplo, a Ordem de 20 de junho de 2011 regulamentou a
organização e o funcionamento de cada instituição em relação à convivência e esta-
beleceu os passos necessários para a elaboração de tal plano, os objetivos e normas
que o regulam e as ações para o alcance de suas metas (ANDALUCÍA, 2011). O
documento propõe ações relativas à convivência: a elaboração de um diagnóstico da
realidade escolar; a definição das normas; a criação e o funcionamento da comissão
de convivência e das aulas específicas para a temática; a promoção da convivência
e de medidas de prevenção, detecção e resolução de problemas nas relações inter-
pessoais; o funcionamento da mediação de conflitos; a definição do grupo de repre-
sentantes de pais e mães; as necessidades formativas dos discentes e dos docentes
para a promoção da convivência; estratégias, procedimentos e avaliação do plano;
e as entidades colaborativas.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Pautar práticas na gestão democrática e na valorização do protagonismo
Toda convivência implica um conjunto de normas e regras que regulamentam
as relações estabelecidas. Se a atividade educativa tem como objetivo a melho-
ria da qualidade do clima escolar e a convivência ética, é necessário que o marco
normativo da instituição escolar se realize de forma democrática, a partir de uma
gestão participativa dos alunos (DEL REY; CASAS; ORTEGA RUIZ, 2017; ORTE-
GA RUIZ, 2020; VINHA et al., 2017). Assim, as práticas devem ser pautadas no
trabalho cooperativo e participativo, na promoção do sentimento de pertencimento
à escola, na valorização do protagonismo dos alunos, e as regras de convivência
precisam ser construídas coletivamente e embasadas em princípios de justiça.
A construção de regras de forma colaborativa e reflexiva é parte do processo
de gestão democrática. Numa das escolas da região de Andaluzia, Espanha, por
exemplo, a cada início de ano letivo, a escola se organizava para trabalhar o que
denominavam de “currículo zero”. Nesse período, destinado à convivência, realiza-
vam-se atividades para conhecimento de si, dos colegas e das normas da escola (as
quais poderiam ser revisadas). Outro exemplo é o identificado na escola brasileira
que desenvolveu o projeto “Conviver”, em Osasco, na região metropolitana de São
Paulo. Nesta instituição, todos os segmentos da escola (grupo gestor, professores,
pais e alunos) tinham normas, que eram construídas ou revistas no início do ano
juntamente com professores, grupo gestor, funcionários, alunos e pais. Os profes-
sores eram orientados a discutir as normas com os alunos, que, por sua vez, eram
instigados a rever essas normas e a fazer modificações, se necessário.
Além disso, as instituições citadas e outras escolas espanholas dispunham de
momentos instituídos para reflexão e deliberação sobre questões relativas à orga-
nização da rotina e à convivência: rodas de conversa ou assembleias escolares (ou
aulas de tutoria). Com os estudantes pequenos, o indicado e utilizado pelas escolas
era a organização de rodas de avaliação do dia. Com crianças maiores e adolescen-
tes, é possível organizar esse momento de outra forma. Por exemplo, em outra es-
cola da região de Andaluzia, Espanha, os professores promoviam rodas diárias com
os alunos de educação infantil, com os demais ocorriam aulas de tutoria semanais,
em que eram trabalhados temas mais concretos, como aprender a ser, a conviver,
expressar sentimentos e resolver conflitos. Em outra escola da região de Castela
e Leão, Espanha, durante as aulas de tutoria, eram trabalhadas atividades que
envolviam empatia, autoconhecimento, assertividade, distensão (atividades para
baixar a tensão), conhecimento do outro, autoestima, confiança e emoções, além
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da abordagem de temas como riscos de internet, bullying, cyberbullying, trânsi-
to, sensibilização sobre deficiência, anorexia e bulimia, educação afetiva e sexual,
hábitos e práticas para igualdade e para a paz, manifestações sociais de violência,
interculturalidade e tolerância.
Outra possibilidade de promover a gestão democrática e a participação estu-
dantil é a escolha de representantes de turma. Em uma das escolas visitadas na
região de Andaluzia, Espanha, realizavam-se eleições já com alunos de 4 anos de
idade. Eram momentos formais, com candidaturas e campanhas, nas quais os alu-
nos defendiam as atuações que realizariam para o bom desenvolvimento da classe.
Cada delegado eleito ganhava um diploma e sua foto ficava exposta na porta da
sala de aula. Os representantes de turma tinham a função de participar de reu-
niões com a sua turma e todos com os representantes do seu nível de ensino e com
os coordenadores/supervisores da escola.
Essa prática também foi observada na escola brasileira que desenvolveu o
projeto “Conviver”, localizada na região metropolitana de São Paulo. Cada sala
de aula escolhia, por meio de eleição semestral, dois alunos coordenadores e um
professor coordenador, responsáveis por ajudar a desenvolver o projeto em sala.
Esses representantes, com os demais alunos da classe, planejavam, primeiramen-
te, ações a serem desenvolvidas em sala de aula, para sanar as dificuldades do
grupo, posteriormente, os alunos de cada sala elaboravam projetos para a escola e,
por fim, projetos a serem desenvolvidos na comunidade.
Para promover o sentimento de pertencimento, uma escola de Andaluzia, Es-
panha, procurava deixar a instituição bonita, limpa, acolhedora e com a exposição
de trabalhos realizados pelos alunos, como a criação de um mural de pertencimento
à escola, composto por pedras que levavam o nome de cada estudante ao deixar a
escola, fixadas com cimento. A ideia, segundo o diretor da escola, foi de que os es-
tudantes criassem um vínculo positivo com a escola, como um local onde passaram
anos de suas vidas e que, quando mais velhos, pudessem voltar para recordar.
Outras experiências envolvem o protagonismo dos estudantes no acolhimento
e na prestação de ajuda entre pares e necessitam de formação. Tratam-se dos “Sis-
temas de Ajuda entre Iguais” (DEL BARRIO; VAN DER MEULEN, 2017). Numa
escola da região de Madri, Espanha, por exemplo, os “alunos ajudantes” atuavam
nos dois primeiros anos do ensino médio. A função deles era a de se aproximar
daqueles alunos mais isolados, como acompanhantes ou para relativizar situações
que logo pudessem gerar um conflito mais grave e para ajudar. Em casos de con-
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flitos, também eram os alunos ajudantes que poderiam propor a intervenção de
mediação de conflitos pelos adultos.
Diferentemente, em uma escola da região de Castela e Leão, Espanha, foram
implementadas as Equipes de Ajuda (prestação de ajuda em equipes) (TOGNETTA;
SOUZA; LAPA, 2019). Os alunos ajudantes, eleitos pelos colegas, passavam por
formação especial, durante uma semana. Durante a formação, os alunos partici-
pavam de atividades relacionadas a: qualidades que cada um tem e que podem
ser úteis para os demais; funções das equipes de ajuda, como ouvir e ajudar a
encontrar o caminho, não aconselhar; sensibilização aos problemas dos outros e
disposição para escuta; liderança de grupos; como auxiliar colegas que têm difi-
culdades em algum conteúdo; identificação de conflitos e as diferentes formas de
resolvê-los; como colocar em prática o protocolo de ajuda composto por várias fases
(observação, abordagem de ajuda, obtenção da informação “conta-me”, busca de
alternativas e prática dos acordos e acompanhamento dos resultados); como tra-
balhar em equipe; as diferentes habilidades sociais, como escuta ativa, empatia,
coordenação de diferentes perspectivas. Nessa escola, as equipes de ajuda presta-
vam ajuda aos colegas de turma e de anos anteriores, com apoio e supervisão de
professores tutores.
Ainda na escola da região de Castela e Leão, Espanha, havia outras possibi-
lidades de protagonismo estudantil, como os alunos mediadores de conflitos e os
cibermentores (AVILÉS MARTÍNEZ, 2017). A função dos mediadores entre pares
era atuar em conflitos, de forma a mediar de forma assertiva a sua resolução. Já
os cibermentores eram formados para trabalhar com os professores tutores, auxi-
liando-os com estudantes mais novos, sobre o uso seguro da internet e questões de
cyberbullying.
Voltando aos exemplos de escolas brasileiras, citamos o projeto “Jovens Cons-
truindo Cidadania”, realizado em duas escolas estaduais do interior de São Paulo,
em que o protagonismo juvenil foi incentivado ao possibilitar espaços de partici-
pação discente em práticas escolares, como a elaboração de atividades extraclasse
(reuniões de pais, jogos, campeonatos) e atividades na comunidade (eventos, pales-
tras, entre outras). Nessas ações, os alunos tiveram oportunidade de exercer lide-
rança e trabalhar coletivamente no planejamento e/ou implemento de atividades,
contribuindo para o desenvolvimento de um sentimento de pertencimento à escola
e a criação de vínculos com a comunidade externa.
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Desenvolver práticas procedimentais e práticas substantivas de educação em
valores sociomorais
A educação para a convivência ética pressupõe que a adesão a valores morais
se construa, ou se fortaleça, em grande parte, pela vivência de relações em que
valores como respeito mútuo, justiça, solidariedade, diálogo, convivência democrá-
tica, entre outros, estejam presentes e sejam a base. A vivência desses valores deve
dar-se de forma refletida e autônoma, de modo a contribuir para a formação da
personalidade ética de seus alunos.
Cabe pensar sobre a qualidade das relações interpessoais que estão sendo pro-
movidas no ambiente escolar. Além disso, é preciso desenvolver práticas favoráveis
à formação em valores sociomorais para a construção da autonomia. Nesse sentido,
Puig (2004) propõe a realização de práticas de valor, como as práticas procedi-
mentais e práticas substantivas, entendidas como formas de vivenciar situações
moralmente relevantes que expressam, de forma intencional, valores e virtudes.
As práticas procedimentais, conforme define Puig (2004), estabelecem condu-
tas permitindo a busca ou a criação de algo moralmente valioso ou correto e pos-
sibilitam espaço para a criatividade moral dos sujeitos. São classificadas em dois
tipos: os procedimentos de reflexividade, que proporcionam meios para o autoco-
nhecimento e o cuidado de si; como exemplo, têm-se as atividades em que os alunos
possam falar de si, refletindo sobre suas ações e seus sentimentos, repensando sua
própria moral (VAN DER MEULEN et al., 2019), tais como realização de autobio-
grafia, narrativa moral e jogos de expressão dos sentimentos (TOGNETTA, 2015;
VINHA; TOGNETTA, 2012); e os procedimentos de deliberação, que são situações
que convidam ao diálogo, à compreensão e ao intercâmbio construtivo de razões,
como assembleias de classe (ARAÚJO, 2004); resolução de conflitos (FRICK; ME-
NIN; TOGNETTA, 2013) e mediação escolar; sessões de debate; discussão de dile-
mas; role playing (dramatização); entre outros (FRICK, 2019).
As práticas substantivas, segundo Puig (2004), estabelecem ações que expres-
sam valores reconhecidos e desejados pela comunidade e indicam finalidades mo-
rais; entretanto, não há espaço de criatividade moral. Também são classificadas
em dois tipos: as de virtude, que envolvem todos os acontecimentos que cristalizam
valores em uma forma social estabelecida – modos de conduzirem-se os rituais e
as rotinas de uma determinada tradição cultural considerada desejável; e as nor-
mativas, que são ações realizadas numa escola para transmitir as normas básicas
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de funcionamento. As práticas de virtude exigem uma tarefa cooperativa, visando
atender as necessidades relacionadas à convivência; assim, o protagonista deve
ser um coletivo formado por uma parte ou a totalidade da classe. Os exemplos de
prática de virtude presentes na escola são: métodos de aprendizagem cooperativa,
realização e revisão de tarefas de classe, festas e celebrações, realização de proje-
tos, formação de grupos de trabalho. Como exemplo de prática de virtude, têm-se os
programas de “alunos ajudantes”, mencionados anteriormente. As práticas subs-
tantivas normativas estão presentes no interior das demais práticas de valor, isso
porque as normas constituem uma questão central no pensamento moral e também
no âmbito da educação em valores. A escola aborda as normas trabalhando em dois
planos: o ensino de normas mediante seu uso e a aprendizagem de normas me-
diante os processos de deliberação e de reflexividade. Autores como Araújo (2012),
Menin (2019), Vinha, Nunes e Moro (2019) têm mostrado a importância de um
ambiente cooperativo na educação moral, caracterizado pela maior participação
dos alunos na construção de regras de convivência escolar.
Tais práticas podem ser inseridas no cotidiano de qualquer disciplina esco-
lar, pois referem-se à adoção de metodologias cooperativas, formas de resolução
de conflitos assertivas, expressão de sentimentos, discussão de dilemas morais ou
trabalho com temas relacionados aos direitos humanos (FRICK, 2019). Exempli-
ficando, na escola em que se realizou o projeto “Esperança no futuro”, o relato dos
entrevistados revelou uma finalidade ampla na escola de educar em valores para
a formação da autonomia. Nesse sentido, o caminho trilhado pela escola passa,
primeiramente, pela intervenção de conflitos. Os professores e a coordenação bus-
caram abordar, juntamente com os alunos, outras formas de resolver os conflitos,
não adotando a violência, e sim práticas pautadas no respeito. Em segundo lugar,
a escola realizou um trabalho voltado para o protagonismo estudantil por meio de
atividades que buscavam o diálogo e espaços para os alunos se posicionarem sobre
a vida escolar. Nessa perspectiva, a escola iniciou o trabalho com assembleias de
sala com os alunos, realizadas quinzenalmente durante as disciplinas introduzi-
das no novo currículo, com duração de duas aulas. A pauta das assembleias era
construída pelos alunos, a reunião era coordenada pelos professores responsáveis
pelas novas disciplinas e todos os alunos tinham o direito de se manifestarem.
Em terceiro lugar, a escola adotou o trabalho com práticas morais, tais como jogos
de expressão de sentimentos e discussão de dilemas morais, realizados nas novas
disciplinas implantadas no currículo. A coordenação iniciou também, em todas as
turmas da escola, um trabalho de informação e conscientização sobre o bullying es-
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colar. Essa atividade tinha como objetivo conscientizar alunos e professores sobre
essa forma de violência presente na convivência entre os pares. Além dessas ações,
também eram realizados diversos projetos buscando atender as necessidades da
escola. Esses projetos buscaram trabalhar as relações interpessoais pautadas no
respeito mútuo e favorecer um ambiente cooperativo na escola. Outro exemplo é a
proposta das experiências morais e éticas vivenciadas pelos alunos participantes
do projeto “Jovens Construindo Cidadania”, ao serem motivados a trabalhos vo-
luntários, como arrecadação de alimentos, visitas a asilos e abrigos, entre outros.
Investir na formação inicial e continuada de docentes e outros membros da
comunidade educativa
Todas as ações descritas promotoras de uma educação para a convivência ética
só são possíveis via formação docente, discente (como o caso dos sistemas de apoio
entre iguais) e/ou de outros membros da comunidade escolar, incluindo as famílias.
As escolas devem garantir um processo de formação continuada, sendo esse um
espaço (e tempo) para reflexão coletiva a respeito das necessidades da instituição,
um momento de estudos que embasarão a elaboração de soluções sistematizadas.
Também, é preciso estabelecer parcerias entre escolas e universidades, de modo a
fortalecer teoricamente as ações concretizadas (ZECHI, 2014).
A formação inicial é fundamental. No entanto, a formação continuada, que deve
ocorrer a partir das necessidades da escola, em tempos e espaços garantidos, é de
extrema relevância para a sensibilização dos docentes para as problemáticas e para
a construção de ações coletivas (TOGNETTA et al., 2010; DEL REY; ORTEGA; 2007).
É nesses espaços que os professores podem se engajar na tentativa de analisar sua
realidade, fazer as relações com as teorias e buscar alternativas para o trabalho com
a convivência ética. Destaca-se que a educação para a convivência e a formação ética,
para efetivamente ter êxito, não pode se restringir a iniciativas isoladas de um pro-
fessor, mas deve ser considerada como parte da função pedagógica da instituição. Por
isso, é relevante investir na formação inicial e continuada de professores, de modo a
garantir um conhecimento teórico que embase as práticas docentes.
A melhora da convivência tem se tornado um tema prioritário dentro da for-
mação permanente dos professores na Espanha, sendo que essa formação tem se
desenvolvido ao longo de todo o país, tendo como temas centrais a resolução de
conflitos, habilidades sociais, convivência, tolerância, disciplina, e prevenção à vio-
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lência com propostas de intervenção (ORTEGA; DEL REY; CASAS, 2013). Nesse
país, por exemplo, em parte das escolas visitadas, havia horários institucionali-
zados para os professores trabalharem com a convivência, como dito, espaços que
poderiam funcionar também para formação continuada.
É preciso destacar o papel da formação centrada na escola realizada pela equipe
gestora do projeto “Esperança no futuro”, realizado em uma escola no Brasil. Na insti-
tuição, as ações educativas adotadas, em sua maioria, revelaram práticas fundamen-
tadas em conhecimentos científicos. De fato, a proposta implantada na instituição foi
viável a partir da formação buscada pela coordenadora diante da dificuldade viven-
ciada no contexto escolar. Na escola, a coordenadora iniciou um processo de formação
continuada com os professores, através de estudos aprofundados sobre o tema, o que,
segundo o relato dos entrevistados, foi fundamental para o fortalecimento das ações
propostas e do grupo docente. Além da coordenadora, outros professores buscaram,
fora da escola, realizar estudos sobre a temática, objetivando sustentar teoricamente
sua prática. A formação realizada nessa escola criou um discurso coerente entre a
maioria dos docentes quanto ao que eles consideraram ser o papel da escola frente à
formação para a convivência, quais valores deveriam formar, quais estratégias ado-
tariam frente aos problemas disciplinares e conflitos vivenciados no contexto escolar.
Embora encontrassem dificuldades, tais como a resistência de alguns docentes, o
trabalho na escola transformou-se em uma prática intencional e sistematizada, com
longo tempo de duração e ampla participação da comunidade escolar, envolvendo
docentes, alunos, equipe gestora e demais funcionários.
Ainda, envolver as famílias em processos formativos pode ter um ganho signifi-
cativo no desenvolvimento de ações para a convivência ética, de forma compartilhada
e colaborativa. Assim, uma possibilidade pode ser vista em algumas escolas espanho-
las que desenvolvem e denominam de “Escolas para famílias”. Tais espaços destina-
vam-se a promover, de forma sistematizada e institucionalizada, momentos de estu-
do, planejamento e avaliação de temáticas importantes, como resolução de conflitos,
formas de violência e possibilidades de enfrentamento. Tais ações eram desenvolvidas
em escolas das regiões de Andaluzia e Castela e Leão, Espanha, por exemplo.
Sobre a formação dos estudantes, retoma-se a realizada nas escolas espanho-
las especificamente para o trabalho com os Sistemas de Apoio entre Pares (AVILÉS
MARTÍNEZ, 2017). Essa é uma prática que exige a capacitação dos estudantes
que prestarão ajuda aos colegas, nas diferentes formas. Numa escola da região de
Castela e Leão, Espanha, esse trabalho tinha uma semana especial para realiza-
1142 ESPAÇO PEDAGÓGICO
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ção. Toda a escola organizava-se, para que os professores tutores de convivência
realizassem esse trabalho formativo com os estudantes.
Considerações nais
O presente texto pretendeu mostrar que a educação para a convivência ética é
uma função das escolas e tão necessária quanto o ensino de conteúdos tradicional-
mente valorizados; além disso, premente na contemporaneidade caracterizada por
inúmeras crises, entre elas, a do enfraquecimento de modos solidários, respeitosos
ou justos de vida em sociedade. Como um fato reconhecido por inúmeros teóricos,
mostrou-se que, em nossos dias, entre outros problemas, há, por um lado, uma cri-
se de valores caracterizada pelo predomínio do individualismo, cuja mentalidade
competitiva básica é a do “cada um por si”; por outro, há a acentuação da hetero-
nomia, na qual as pessoas se submetem de forma acrítica a normas de autoridades
que se impõem por diferentes motivos e interesses muitas vezes voltados ao bene-
fício de apenas uma parte restrita da sociedade.
Ora, a educação, em seu compromisso histórico e legalmente assumido com
o desenvolvimento integral do cidadão em várias de suas potencialidades e como
futuro membro ativo de uma sociedade, busca por uma formação para a autonomia
intelectual e moral, e essa meta exige intenção, princípios orientadores, compro-
misso, planejamento e práticas específicas.
Autonomia, como já nos dizia Piaget, na década de 1930, apresenta-se como
meio e fim da educação. Ou seja, deve estar presente como modo de relação, vi-
vência e tomada de decisões na escola e, em suas práticas, ir se consolidando nos
indivíduos de forma a fazer parte de sua personalidade. Envolve, portanto, um
processo de construção que se faz, o tempo todo, com o outro, em processos de inte-
ração e na própria convivência. Porém, não se trata de qualquer convivência, mas
daquela orientada por valores sociomorais. Valores, como diz Cortina (2003), que
nos auxiliam a arrumar o mundo de modo a torná-lo cada vez melhor para todos.
Esses valores são, assim, humanizadores. Assumindo esse caminho, defende-se a
convivência ética e democrática como meio e finalidade das mais importantes na
educação. Dizemos ética, porque é orientada por valores humanizadores e univer-
salizáveis, e democrática, porque é baseada essencialmente por práticas coletivas e
participativas de diálogo em busca do entendimento e do bem comum.
Evidenciou-se, neste trabalho, que tal educação para a convivência é possível
e já existe em várias instituições, embora seja difícil executá-la, porque ainda há
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aqueles que não acreditam em sua relevância ou pensam que não é papel da escola
se ocupar desses campos, ou por falta de apoio e condições das instituições adminis-
trativas educacionais. Há, também, iniciativas individuais mais baseadas na boa
vontade de alguns professores do que no seu preparo, ou o uso de métodos apenas
transmissivos mais voltados ao disciplinamento de alunos do que a mudanças de
modos de convivência na escola como um todo.
Com a finalidade de mostrar aos leitores que exemplos de educação para a
convivência ética são possíveis de acontecer e bem executados nas escolas, apre-
sentou-se, então, ilustrações de algumas instituições na Espanha e no Brasil. São
experiências que têm por base princípios e métodos que procuramos destacar. Os
exemplos trazidos enfatizam que a educação para a convivência ética deve respon-
der a problemas reais que vários membros da escola identificam como relevan-
tes e cujas soluções devem ser buscadas pela própria instituição, e não questões
artificialmente criadas, temporárias ou impostas por órgãos externos. As ações,
assim destacadas como relevantes, devem ser incluídas em planos de convivência
e nos projetos político-pedagógicos das escolas. Dessa forma, um compromisso cla-
ro, comum e objetivo entre todos é explicitado, assim como os procedimentos para
seu alcance. Esses procedimentos devem ser caracterizados por valores e práticas
democráticos, no sentido de envolver de forma participativa a maioria dos mem-
bros da escola, o protagonismo dos alunos, o uso do diálogo como a forma básica de
interação entre todos. Finalmente, a formação dos profissionais das instituições é
essencial para que todas essas iniciativas passem a ocorrer de modo consciente, ou
seja, intencional e planejado.
Mesmo considerando as especificidades de cada instituição citada, da região
ou do país de origem, espera-se que as ilustrações apresentadas, com destaque
para seus princípios e suas práticas, inspirem reflexões frutíferas sobre a urgência
da educação para a convivência ética e os modos de organizá-la.
Agradecimentos
As autoras agradecem o apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de São Paulo (Fapesp) e da Coordenação de Aperfeiçoamento do Ensino
Superior (Capes) para o desenvolvimento das pesquisas apresentadas.
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Notas
1 Para maiores informações, consultar G1 (11 de maio de 2020), Terra (11 de junho de 2020), El País (30 de
março de 2020), BBC (23 de abril de 2020) e G1 (29 de abril de 2020).
2 As autoras compreendem a adesão a valores quando uma pessoa, ao escolher como agir em determinada
situação, opta por respostas que coadunam com valores sociomorais e não contra eles. Valores sociomorais
são definidos como aqueles ligados ao dever moral, que vão além da obediência às leis e que orientam como
devemos ser e viver com nós mesmos e com os outros.
3 A realização dos estudos na Espanha se justifica porque esse país tem histórico de desenvolvimento de
pesquisa e ações que visam a melhora da convivência.
4 As pesquisas são frutos de teses de doutoramento das autoras e podem ser consultadas na íntegra em
Zechi (2014) e Frick (2016).
5 Considera-se que os relatos de exemplos de práticas observadas podem servir de reflexão do momento pre-
sente. Para maiores informações sobre a realização dos projetos citados, consultar as teses supracitadas.
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O ensino como atividade mediadora no processo de apropriação de conceitos
Teaching as a mediating activity in the process of appropriating of concepts
La enseñanza como actividad mediadora en el proceso de apropiación de conceptos
Sandro Roberto Cossetin*
Marli Dallagnol Frison**
Resumo
Este artigo socializa resultados de um estudo que teve como objetivo analisar e discutir questões relacionadas
à atividade de ensino e ao processo de formação de conceitos nos ambientes de estudo e às implicações desses
processos no desenvolvimento humano. Faz-se a análise, também, com pressupostos marxistas em relação à
formação escolar e acadêmica quanto ao ensino e à aprendizagem e seus direcionamentos para o mundo do
trabalho. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, que buscou apoio em teóricos da linha histórico-cultural. Os re-
sultados indicam a necessidade de mudanças quanto às concepções referentes à formação de conceitos, desde
a organização curricular, na direção da apropriação do conhecimento pelos sujeitos a partir da coletividade
pelos pressupostos das mediações e da formação docente para atuar na educação básica e superior.
Palavras-chave: aprendizagem; atividade; conceito; ensino; formação de conceitos.
Abstract
The present article socializes understandings regarding the process of formation of concepts from the pers-
pective of historical-cultural psychology. This production is a section from a Doctoral research in Education in
Sciences under development, and it aims to analyze and discuss issues related to the process of formation of
concepts in the study environments, and the implications of these processes in human development. There is
also an analysis, with Marxist assumptions in relation to the school and academic formation, of the teaching and
the learning, and their directions to the job market. It is a qualitative research that sought support from theorists
of the historical-cultural line. Results indict the need for changes in the conceptions regarding the formation of
concepts, from the curricular organization towards the construction of knowledge by the subjects with basis on
the collectivity by the assumptions of the mediations and the formation of teachers to work in basic and higher
education.
Keywords: learning; activity; concept; teaching; formation of concepts.
* Professor da Escola Técnica Estadual 25 de Julho. Doutor e Mestre em Educação nas Ciências pela Universidade Regio-
nal do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí). Especialista em Gestão e organização da escola pela Unopar.
Licenciado em Física pela Unijuí. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1763-0178. E-mail: scossetin@gmail.com
** Pós-doutora pela Unesp. Professora do Departamento de Ciências da Vida e do Programa de Pós-graduação em Educa-
ção nas Ciências da Unijuí. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-4985-1992. E-mail: marlif@unijui.edu.br
Recebido em: 09/09/2019 – Aprovado em: 28/04/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i3.9905
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Resumen
El presente artículo socializa las comprensiones sobre el proceso de formación de conceptos desde la perspecti-
va de la psicología histórico-cultural. Esta producción es un recorte de una investigación de Doctorado en Edu-
cación en las Ciencias en desarrollo, cuyo objetivo es analizar y debatir cuestiones relacionadas con el proceso de
formación de conceptos en entornos de estudio y las implicaciones de estos procesos en el desarrollo humano.
También, se hace un análisis, con presupuestos marxistas en relación con la formación escolar y académica, la
enseñanza y el aprendizaje, y sus direccionamientos hacia el mundo del trabajo. Se trata de una investigación
cualitativa que buscó el apoyo de los teóricos de la línea histórico-cultural. Los resultados indican la necesidad
de cambios en los conceptos relacionados con la formación de conceptos, desde la organización curricular hacia
la construcción del conocimiento por parte de los sujetos a partir de la colectividad por los presupuestos de
mediación y de la formación docente para actuar en la educación básica y superior.
Palabras clave: aprendizaje; actividad; concepto; enseñanza; formación de conceptos.
Introdução
O desenvolvimento humano é, com recorrência, debatido em diversos âmbitos,
como nos da educação, da sociologia, das ciências, da religião, da política e da psico-
logia, entre outros. Os debates pelo viés da educação, da mesma forma, referentes
ao desenvolvimento dos sujeitos e à sua formação possibilitam diversas percepções
e proposições para que participem do mundo contemporâneo, bem como sejam in-
seridos no mundo do trabalho.
Se, de um lado, percebemos tendências por uma formação racional e técnica,
cuja preocupação principal é desenvolver nas pessoas habilidades e capacidade
produtiva condizentes com as expectativas do empregador e do mercado, por outro,
observamos preocupações na direção de uma formação mais ampla e humanista,
cuja intencionalidade é desenvolver sujeitos capazes de estabelecer relações diver-
sas a partir do conhecimento científico. Há, portanto, entendimentos distintos, com
alguns pontos antagônicos para a formação e o desenvolvimento humano percebi-
dos ao longo dos anos.
O mundo contemporâneo é resultado da criação da humanidade. O que vive-
mos e o que adquirimos são produtos das criações do homem, via transformação
da natureza que o circunda, processo pelo qual o próprio homem é transformado.
Segundo Leontiev (2004), essas criações produzem o mundo objetivo, os bens tan-
gíveis e, também, o mundo das relações, da convivência e da cultura, portanto, um
mundo complexo e diverso. O conhecimento, formal ou não, possibilita que ocorram
as relações do homem com este mundo criado por ele e, desse modo, ele próprio é
constituído por este mundo.
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O ensino como atividade mediadora no processo de apropriação de conceitos
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O desenvolvimento humano é um processo dependente dos aspectos cognitivos
e afetivos do indivíduo e de como estes são desenvolvidos. Na Revista Superinte-
ressante de outubro de 2018, edição 394, a capa apresenta a matéria “A era da
burrice”, desenvolvida por Eduardo Szklarz (repórter) e Bruno Garattani (jornalis-
ta e editor). A temática abordada, anunciada no título da matéria, convoca-nos à
reflexão sobre discursos que circulam em nossa sociedade e que estão relacionados
à constituição do intelecto humano. A indagação é acerca da diminuição da inteli-
gência humana em âmbito mundial, inclusive em países como Dinamarca, Finlân-
dia, Inglaterra, França e outros. Os indicadores considerados foram os testes de
quociente de inteligência (QI) elaborados em 1905, originalmente, pelos psicólogos
Alfred Binet e Thédore Simon, na França, e aperfeiçoados em 1916, pelo ameri-
cano Lewis Terman. Apenas em 1955, porém, foram estruturados para avaliar a
inteligência de adultos, pelo psicólogo David Wechsler, nos Estados Unidos, sendo
mundialmente utilizados pelos profissionais da psicologia e da psiquiatria.
Nos últimos anos, segundo a matéria, foi verificada uma significativa redução
dos índices de QI em diversos países, inclusive nos desenvolvidos, o que levou espe-
cialistas a buscarem respostas para essa realidade. O psicólogo sueco Michael Woo-
dley (apud SZKLARZ; GARATTANI, 2018, p. 28) afirmou que “a capacidade cogni-
tiva é fortemente influenciada pela genética”, atribuindo que parte da inteligência
seria um atributo hereditário. No entendimento desses autores, a hereditariedade
seria determinante para a constituição do potencial intelectual do indivíduo. Con-
trapondo essas ideias, defendemos, com base em Vigotski (2007, 2008, 2010) e Leon-
tiev (1960, 2004, 2005), que o homem herda características biológicas da sua espécie
(filogenética), porém, a sua constituição humana, ou seja, a sua humanização só é
possível pela apropriação da cultura humana. Para Leontiev (2004, p. 170),
[...] apropriação é um processo que tem por resultado a reprodução pelo indivíduo de ca-
racteres, faculdades e modos de comportamento humanos formados historicamente. Por
outros termos, é o processo graças ao qual se produz na criança o que, no animal, é devido a
hereditariedade: a transmissão ao indivíduo das aquisições do desenvolvimento da espécie.
Podemos herdar a inteligência ou a “burrice”? Como nos constituímos mais
inteligentes? Como o ser humano se desenvolve cognitivamente? Essas questões
nos levam a pensar acerca da constituição humana – cognitiva e afetiva – e do de-
sempenho dos sujeitos no mundo do trabalho a partir da formação escolar e acadê-
mica. As possibilidades do desenvolvimento cognitivo humano foram pesquisadas
e analisadas pelo pesquisador russo Lev Semyonovich Vigotski1, que contribuiu
profunda e significativamente no entendimento do funcionamento da mente hu-
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mana. À luz da sua teoria, denominada histórico-cultural, Vigotski descreveu que
o ser humano é potencialmente capaz de se desenvolver intelectualmente diante
das possibilidades de constituição da sua estrutura mental e do ambiente social e
cultural em que está inserido. Assim, é constituído como homem, pois “é o ser me-
nos pronto ao nascer”, posto que o desenvolvimento do seu intelecto está totalmen-
te em aberto, apesar das características biológicas do seu cérebro. Nessa mesma
perspectiva, outro pesquisador russo, Alexis Nikolaevich Leontiev (2004, p. 267),
defende que “cada indivíduo aprende a ser homem. O que a natureza lhe dá quando
nasce não lhe basta para viver em sociedade. É-lhe ainda preciso adquirir o que foi
alcançado no decurso do desenvolvimento histórico da sociedade humana”.
Assumimos e defendemos, com os autores citados, que a constituição huma-
na só é possível por intermédio das relações sociais que ocorrem entre pessoas e
entre elas e o meio social, histórico e cultural que as circunda, relações mediadas
por instrumentos e signos. Sendo assim, o ser humano atinge diferentes níveis de
desenvolvimento, a depender do seu processo de apropriação da cultura humana,
pois, como refere Leontiev (2004, p. 171),
[...] o processo principal que caracteriza o desenvolvimento psíquico da criança é um pro-
cesso específico de apropriação das aquisições do desenvolvimento das gerações humanas
precedentes; estes conhecimentos adquiridos, diferentemente do desenvolvimento filogené-
tico dos animais, não se fixam morfologicamente e não se transmitem por hereditariedade.
As pesquisas desenvolvidas acerca do psiquismo humano revelam a comple-
xidade do funcionamento da mente humana e a importância de oferecer às pes-
soas as condições necessárias para a apropriação de sua cultura, para que elas se
desenvolvam humanas nas suas máximas potencialidades. Nesse contexto, é de
responsabilidade das instituições de ensino, sejam de educação básica ou de ensino
superior, apresentar a cultura humana, ou seja, os conhecimentos científicos histo-
ricamente produzidos e selecionados para serem ensinados.
A organização das instituições de ensino, situada e fortemente influenciada
por um mundo de relações sociais, pessoais e de trabalho, também é complexa,
dinâmica e elaborada pelo homem que interage socialmente. Essa condição coloca
as instituições de ensino no centro de muitos debates diante das demandas con-
temporâneas do mundo do trabalho e da inserção social pelo conhecimento. Para
Leontiev (2004), o trabalho, compreendido como atividade, é essencial ao ser hu-
mano, uma vez que, por seu intermédio, o homem transforma a natureza, relacio-
na-se, transforma-se e humaniza-se. Por meio do trabalho alienado, característico
do atual sistema capitalista, contudo, o homem se desumaniza.
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Nesses debates, surgem tensionamentos nos entendimentos da formação dos
sujeitos (MARTINS, 2015; REHEM, 2009; REGO, 1995), em particular nas pró-
prias instituições de ensino, desafiando os profissionais da educação a contraporem
diversas políticas para a educação a partir de reflexões e, também, a proporem
ações para tais processos formativos. Esses momentos enfrentam, constantemente,
interesses externos às escolas e às universidades advindos de concepções de siste-
mas produtivos da nossa sociedade.
Alguns encaminhamentos dos processos educativos, no entanto, tendem, por
um lado, a nos potencializar como profissionais e especialistas (CUNHA, 2000;
FRIGOTTO, 2004), mas, por outro, a nos enfraquecer como cidadãos, em virtude de
processos educativos realizados de forma descontextualizada e fragmentada. Essa
realidade é percebível e debatida, nos últimos anos, em momentos de estudos acer-
ca da formação (BAZZO, 2011). Tal realidade remete ao distanciamento entre os
saberes e parece estar naturalmente aceita desde a educação básica. Percebem-se
uma demarcação e uma compartimentalização de disciplinas com separação entre
os saberes, à medida que o ensino avança em níveis de escolarização, que, segundo
Santomé (1998), pode ser visualizada por meio do currículo organizado por discipli-
nas específicas oferecidas pelas instituições de ensino, do nível básico ao superior, o
que leva à “incompreensão daquilo que é estudado”, pois a “fragmentação dificulta
a compreensão” (SANTOMÉ, 1998, p. 104).
No ensino médio, de maneira geral, evidencia-se a disciplinariedade, resultan-
do num maior distanciamento entre os diversos saberes e dificultando a sua inter-
locução e, consequentemente, a aprendizagem dos conceitos trabalhados. No ensino
superior, tais distanciamentos acentuam-se, uma vez que o foco está centrado na
formação profissional. Nesse espaço-tempo formativo, as atenções voltam-se para
os conhecimentos requeridos conforme a escolha profissional. Tradicionalmente,
a concepção de uma eficiente preparação para o exercício da profissão, por vezes,
fragmenta, ao mesmo tempo em que fragiliza o desenvolvimento de conceitos de
algumas áreas do conhecimento que são, culturalmente, entendidas como “desne-
cessárias”, tendo em vista a necessidade da formação profissional.
Esses processos educativos nas áreas das ciências exatas são frequentemente
concebidos pelo viés do domínio de técnicas para obtenção de resultados condizentes
com as expectativas de parâmetros para uma eficiente formação profissional, uma
característica pertinente em virtude das necessidades de resultados precisos em
projetos e processos concebidos nas engenharias; é uma peculiaridade necessária e
intrínseca à área, porém não exclusiva e suficiente. Os conhecimentos específicos
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da formação dos engenheiros, por exemplo, pressupõem exatidão e objetividade em
cada etapa. A Matemática, a Física e a Química, exemplarmente, possuem funções
específicas e bem definidas na formação dos alunos em futuros engenheiros, cujo
objetivo é a apropriação de conhecimentos científicos, com o domínio de técnicas
e a obtenção de resultados exatos. Destaca-se, porém, que, antes do profissional
engenheiro, tem-se a formação humana e integral da pessoa. Tal preocupação é
pertinente, pois é também necessária a obtenção de resultados exatos e isentos
de falhas para um eficiente exercício da profissão. Essa condição coloca os alunos
diante da dureza das ciências exatas e, de alguma forma, das ciências da natureza,
pela exigência de racionalidade na condução dos processos de produção (como obje-
to e com preço), que primam por técnicas e métodos que atendam as expectativas
de um sistema produtivo.
Diante desses entendimentos da formação, os alunos necessitam aprender
determinados conhecimentos científicos e técnicas de aplicação de maneira mais
marcante nas ciências exatas. Precisam aprender para corresponder, de forma re-
flexiva e contextualizada ou não. Nessa perspectiva, o processo de ensino é conce-
bido pelo viés da racionalidade técnica e de decoreba dos conhecimentos ensinados,
em detrimento de uma formação com amplitude e com desenvolvimento pessoal,
proporcionando apropriação de conceitos científicos.
Nessas circunstâncias, o motivo pelo qual o estudante realiza sua atividade
de estudo é o domínio de técnicas para corresponder às demandas da profissão de
engenheiro que está inserida no mundo do trabalho, fragilizando, assim, consequen-
temente, o processo de apropriação de conceitos científicos. Para Leontiev (2004, p.
97), o motivo é “aquilo em que a necessidade se concretiza de objetivo nas condições
consideradas e para as quais a atividade se orienta, o que a estimula”, e, também,
“aquilo que se refletindo no cérebro do homem excita-o a atuar e dirige essa atuação
à satisfação de uma necessidade determinada” (LEONTIEV, 1960, p. 346).
Nesse contexto, Duarte e Eidt (2007, p. 56) ressaltam que a atividade de ensi-
no não deve ser “limitada” ou “reduzida” à “decoreba” e às técnicas de aplicação de
conceitos científicos, mas, sobretudo, deve “visar o desenvolvimento do pensamento
dos alunos, sua capacidade de analisar e generalizar os fenômenos da realidade
material, bem como de raciocinar corretamente”. Esses pesquisadores afirmam,
também, que, no exercício da docência, a “atividade de ensino” deve vislumbrar
a “ampliação dos horizontes culturais dos alunos, mediante a apropriação dos co-
nhecimentos científicos [...]” (2007, p. 55), condição que permitirá, nesse processo
formativo, que o aluno tenha “consciência de qual seja o objeto de conhecimento
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para o qual se dirige sua atividade de estudo, bem como da consciência dos motivos
e dos fins dessa atividade [...]” (2007, p. 60). Para Rego (1995, p. 78):
O processo de formação de conceitos, fundamental no desenvolvimento dos processos psico-
lógicos superiores, é longo e complexo, pois envolve operações intelectuais dirigidas pelo uso
das palavras. [...]. Para aprender um conceito é necessário, além das informações recebidas
do exterior, uma intensa atividade mental por parte da criança. Portanto, um conceito não
é aprendido por meio de um treinamento mecânico, nem tampouco pode ser meramente
transmitido pelo professor ao aluno: o ensino direto de conceitos é impossível e infrutífero.
As palavras de Rego (1995) alertam para a complexidade do processo de forma-
ção de conceitos pela necessidade de o sujeito se colocar em atividade de estudo, o
que requer sua implicação ativa no referido processo. Diante dessas considerações,
este estudo foi orientado pela seguinte questão de pesquisa: quais as implicações
da atividade de ensino e do processo de formação de conceitos nos ambientes de
estudo para o percurso de desenvolvimento humano? Tais considerações teóricas
são referenciadas com autores da linha histórico-cultural, com destaque para os
estudos de Vigotski e a Teoria da Atividade, a partir das pesquisas de Leontiev.
Em buscas no Portal Banco de Teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (Capes) e na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dis-
sertações (BDTD), não foi encontrado trabalho nesta linha de pesquisa. De Lara
(2014), na sua dissertação fundamentada na metodologia de ensino baseada em
um projeto de investigação do consumo de energia elétrica, apresenta uma forma
alternativa de ensino de conceitos de eletricidade com alunos do ensino médio.
Silva Júnior (2015), na sua tese, analisa o processo de construção de conceitos cien-
tíficos em aulas de Física no ensino médio com suporte no ensino por investigação.
Os trabalhos descobertos e analisados, portanto, são referentes a estudos quanto à
formação de conceitos no ensino fundamental e médio, o que justifica a importância
da pesquisa aqui apresentada.
Também, a partir da experiência de um dos autores desta pesquisa, que, na
condição de docente em Física nos cursos de Engenharia e na Educação Profis-
sional, observou dificuldades de os alunos se apropriarem efetivamente de diver-
sos conceitos requeridos na atuação profissional, em razão de o aprendizado estar
acontecendo de maneira fragmentada, mecanizada e descontextualizada. Nesse
sentido, apresentamos, na sequência, a análise de possibilidades de formação de
conceitos na perspectiva histórico-cultural, considerando a problemática desta
pesquisa, que se apoia em autores como Vigotski (2008, 2010), Leontiev (1960,
1983, 1994, 2004), Leontiev et al. (2005) e em outros pesquisadores com a mesma
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perspectiva, como Bernardes e Moura (2009), Duarte e Eidt (2007), Duarte (2016),
Martins (2015), Rehem (2009), Rego (1995) e Saviani (2008).
Processos de formação/apropriação de conceitos na perspectiva histórico-cultural
O desafio para os professores, nas mais distintas áreas do conhecimento, para
que propiciem a efetivação do aprendizado por parte dos alunos é enorme, o que
convoca educadores e pesquisadores comprometidos com a educação como um todo,
para que reflitam e busquem entendimentos para o enfrentamento de tal proble-
mática e que proponham diretrizes para que se pense uma formação profissional
e humana.
Pelos anos de experiência docente proporcionados no trabalho com o ensino
superior e a educação profissional, pode-se inferir que há, em grande parte das
instituições de ensino, uma tendência para uma formação racional e técnica dos
sujeitos, para o desenvolvimento de habilidades e capacidades produtivas condi-
zentes com as expectativas do empregador e do mercado de trabalho.
As demandas oriundas do mundo do trabalho, espaço a ser futuramente ocu-
pado pelos profissionais das mais distintas áreas, são fortemente pautadas por
resultados imediatos para atender os interesses do capital. Esta análise também
se faz necessária e é referenciada nos pressupostos marxistas, referendada na pe-
dagogia histórico-crítica. De acordo com Duarte (2016, p. 16):
Este tipo de imediatismo é aceitável nas pedagogias do aprender a aprender como, por
exemplo, a pedagogia das competências, que postula uma relação imediata entre as ativi-
dades escolares e as demandas da vida cotidiana dos alunos. Mas essas relações imediatas
limitam-se ao plano da adaptação à lógica do capitalismo, o que é coerente com a visão de
mundo que fundamenta a pedagogia das competências.
Duarte (2016, p. 26) enaltece, ainda, que atualmente é denotada a “dispo-
nibilidade para aprender de acordo com as exigências do momento, sejam elas
determinadas pelo mercado de trabalho ou pelas mudanças na cotidianidade”.
Nessa perspectiva, Rehem (2009, p. 31) destaca que “antigamente os conhecimen-
tos adquiridos tinham utilidade para solucionar as situações para o resto da vida,
em virtude de situações previsíveis e duráveis”. A análise dessas percepções com
os pressupostos de Marx é “natural”, bem como necessária, tendo em vista que
a psicologia histórico-cultural e a pedagogia histórico-crítica são fundamentadas
fortemente nas suas ideias, criticando tais relações dos sujeitos com o mundo sem
consciência dos ditames do capital.
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Entendermos as influências históricas e contemporâneas do mundo do traba-
lho é fundamental, pois estas impactam fortemente nas instituições de ensino, tan-
to em nível médio quanto no superior. Diante do contexto em que as instituições de
ensino se encontram para perceber interferências, entraves e fatores condicionan-
tes, é imprescindível refletir para que, na condição de educadores, sejamos críticos
e propositivos nos espaços de estudos, pesquisas e atividades em prol da melhoria
da educação como um todo.
Nessa conjuntura, as necessidades dos homens também possuem um cunho
imediatista, ou seja, a atividade que o sujeito desempenha é condicionada externa-
mente por demandas que induzem a ações meramente reprodutivistas, mecanicis-
tas, imediatistas, fragmentadas e de entendimentos superficiais, para atender os
interesses do capital, motivos pelos quais os sujeitos se colocam em atividade (ou
não, conforme as concepções da Teoria da Atividade) no desenvolvimento do pro-
cesso formativo pelo estudo escolar e acadêmico. Na atualidade, a mera aquisição
de conhecimentos para comprovação da formação, com o objetivo de conquistar
um espaço no mundo do trabalho, resulta em um processo formativo com alguns
limites e lacunas. Para Duarte (2016, p. 26):
Assim como o que se valoriza hoje não é o emprego, mas a empregabilidade, também no
campo escolar o que se valoriza não é o conhecimento que tenha sido adquirido, mas a for-
mação da educabilidade, isto é, da disponibilidade para aprender de acordo com as exigên-
cias do momento, sejam elas determinadas pelo mercado de trabalho ou pelas mudanças
na cotidianidade.
Essa condição relativiza o processo educativo, no sentido de os fatores motiva-
dores serem restritos a aprender a fazer e a adquirir “competências” para o exercí-
cio de uma função específica no mundo do trabalho. Duarte (2016, p. 26) enfatiza
tal situação ao descrever: “quando a seletividade precisa ser atenuada por alguma
razão, acionam-se os mecanismos de precarização”.
Segundo Saviani (2008, p. 25), “[...] a escola sofre a determinação do conflito
de interesses que caracteriza a sociedade”, no entanto, há que se produzir um mo-
vimento na tentativa de romper com o que já vem sendo imposto historicamente
pelo sistema capitalista, objetivando a alienação dos sujeitos que vendem o seu
trabalho. Contrapondo essa alienação, Leontiev (2004, p. 122) assim se refere: a
“vida do homem tem por consequência a discordância entre o resultado objectivo
da actividade humana e o seu motivo”.
Nesse sentido, a seguir, expomos acerca do conceito de atividade no contex-
to histórico-cultural com contribuições da pedagogia histórico-crítica, com o olhar
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para as atividades de ensino e de aprendizagem no que se refere à formação de
conceitos ou à ausência desta.
A atividade no processo de formação dos conceitos cientícos
No processo formativo dos alunos, nas atividades de ensino e de estudo, a
formação de conceitos é necessária para proporcionar condições ao estabelecimento
de relações com outros conceitos da futura atividade profissional. Nessa linha de
pensamento, identificar e atribuir sentidos, apresentando motivos para nortear
quanto à formação dos conceitos intrínsecos da atividade profissional, é impor-
tante para o processo de aprendizagem. Nas diferentes áreas do conhecimento, é
fundamental a apropriação de conceitos, para que as relações desses contribuam,
de fato, para uma formação profissional eficiente, possibilitando, ainda, a evolução
científica em prol do desenvolvimento humano.
Os conceitos e as suas devidas compreensões e apropriações são indispen-
sáveis nas distintas áreas do saber, como o conceito de vetor na Matemática, de
substância na Química, de isonomia no Direito e de gestão na Administração. A
apropriação conceitual é indispensável para a formação profissional e humana,
evitando o ato de “decorar” e a reprodução mecânica e descontextualizada do co-
nhecimento, situações que não oferecem as condições mínimas necessárias para a
aprendizagem conceitual. Debates recorrentes nos espaços destinados às reflexões
quanto aos processos de aprendizagem buscam identificar e compreender fatores
que potencializam e/ou dificultam o desenvolvimento de atividades de ensino e de
estudo nos ambientes escolares e acadêmicos.
Neste estudo, portanto, consideramos a perspectiva histórico-cultural como base
teórica na análise dos dados diante das evidências verificadas. Assim, é necessário
discorrermos acerca da definição de atividade2 sob o prisma da psicologia soviética,
pois é essencial o entendimento do termo nos estudos sobre o psiquismo humano com
foco para as atividades de ensino e de estudo no contexto do ensino superior.
Em seus estudos, o pesquisador russo Vigotski aborda e destaca a importân-
cia da atividade como constituidora da consciência a partir da significação social
e da sua construção pela mediação e pelo uso de instrumentos e signos. Pelo viés
histórico-cultural, a necessidade é reguladora e norteadora dos sujeitos no mundo
real e objetivo. Diferentemente dos animais, os homens idealizam e constroem seus
objetos para auxiliá-los na superação de suas necessidades. Ao superá-las, surgem
novas necessidades e, logo, novas atividades.
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O pesquisador russo Leontiev (2004, p. 296) define por atividade “os processos
que são psicologicamente caracterizados pelo fato de aquilo para que tendem no
seu conjunto (o seu objeto) coincidir sempre com o elemento objetivo que incita o
sujeito a uma dada atividade, isto é, com o motivo”. Para esse autor, nem todo o
processo, portanto, é uma atividade; para ser atividade, precisa responder a uma
necessidade particular. A partir da atividade, podem ser determinados processos
que possibilitam que necessidades específicas do ser humano possam ser supridas
pela relação (ou relações) que o homem estabelece com o mundo (BERNARDES;
MOURA, 2009).
Leontiev (1994, p. 68), considerando os motivos, descreve a atividade como
um processo que coincide “com o objetivo que estimula o sujeito a executar esta
atividade, isto é, o motivo”. Bernardes e Moura (2009) asseveram que a atividade
também pressupõe objetividade e intencionalidade das ações humanas na direção
do(s) motivo(s) que a origina, bem como a necessidade da realização desta ativida-
de em ação(ões) consciente(s). Nessa linha de pensamento, Leontiev (1994, p. 83)
menciona que “o conceito de atividade está necessariamente relacionado ao concei-
to de motivo. A atividade não pode existir sem um motivo [...]”, para que as ações
dos sujeitos sejam conscientes na direção dos objetivos advindos da atividade.
Bernardes e Moura (2009, p. 468), então, destacam:
Em síntese, a atividade definida pelo seu objeto fundamenta-se numa necessidade humana
representada pelo motivo que excita a execução da ação. Esta, por sua vez, vincula-se ao
objetivo da atividade que se liga diretamente ao objeto da própria atividade e que por isso
é estável. Diante das condições de execução das ações, as operações estabelecem-se como
funções automatizadas, que concretizam o objetivo da atividade.
O conceito de atividade é marcantemente referenciado com ações e operações
potenciais que possibilitem aos sujeitos o desenvolvimento humano na interação
com o mundo diante do seu contexto real (social, cultural e histórico), no qual in-
terage e age. A partir da atividade desencadeada pelos motivos é que o processo
de estudo se efetiva, sendo esse possível pela intermediação do outro, para que
apresente a realidade objetiva (aparência e essência) para a apropriação do conhe-
cimento, portanto, um processo educativo.
O papel das instituições de ensino é determinante e está intencionalmente
organizado para a efetivação deste processo que é educativo, para que as ações e as
operações aconteçam pela intermediação do professor via saberes sistematizados
do mundo, sendo eles adequadamente apropriados pela humanidade, e, consequen-
temente, sejam efetivados a hominização e o desenvolvimento humano. Assim, “[...]
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o trabalho educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada in-
divíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo
conjunto dos homens” (SAVIANI, 2008, p. 13) e é uma atividade intencionalmente
organizada e conduzida por fins (DUARTE, 2016).
Leontiev (2004) avança nos estudos a partir de ideias de Vigotski (2007, 2008)
no tocante a “ações individuais e atividades coletivas”, definindo três níveis de aná-
lise: operação, ação e atividade. A operação é característica das rotinas do sujeito,
provindas da inconsciência e de hábitos, ou seja, resulta em ações que acontecem
automaticamente; a ação, em um grau superior ao da operação, já em nível de
consciência, é vinculada a uma meta e composta por operações. Por fim, a ativida-
de, no âmbito superior, pressupõe realização coletiva, mais durável e norteada por
motivo(s) e meta(s). Para Leontiev (2004, p. 303-304), operação significa:
[...] o modo de execução de uma ação. A operação é o conteúdo indispensável de toda a
ação, mas não se identifica com a ação. Uma só e mesma ação pode realizar-se por meio de
operações diferentes, e, inversamente, ações diferentes podem ser realizadas pelas mesmas
operações. Isto explica-se pelo fato de que enquanto uma ação é determinada pelo seu fim,
uma operação depende das condições em que é dado este fim.
Considerando os níveis elencados por Leontiev, os processos educativos de-
veriam ser conduzidos na dimensão de proporcionar ao sujeito condições de es-
tar em atividade, operando e agindo, estando ele (sujeito) orientado por motivo(s)
que possibilite(m) estabelecer compreensões consistentes e sólidas, para significar
os conhecimentos envolvidos na formação dos sujeitos. Consoante, Duarte (2016,
p. 43) assevera que:
Os seres humanos agem a partir de circunstâncias com as quais se deparam; estabelecem
objetivos, fazem planos, traçam estratégias e põem em movimento os recursos disponíveis
para transformar a realidade, atingindo algo diferente do que antes existia. Isso desenca-
deia novos processos que estabelecem novas necessidades, novos desafios, para cujo enfren-
tamento os seres humanos constroem novos planos e assim por diante, num processo que
não tem fim enquanto exista a humanidade.
As ideias citadas nos levam ao entendimento de que as condições ideais para
que aconteça a apropriação de conceitos são aquelas que possuem motivos claros,
que emergiram de necessidades humanas. Dessa forma, o ensino intencionalmente
organizado deve atentar para os motivos que sustentam o processo educativo e
possibilitam o efetivo aprendizado dos saberes pertinentes às áreas de formação
das instituições de ensino. Conforme Martins (2015, p. 56), “a atividade é uma
manifestação em atos pela qual o homem se firma na realidade objetiva ao mesmo
tempo em que a transforma em realidade subjetiva”.
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Assim, a clareza dessas condições pelos sujeitos que fazem a (inter)media-
ção dos conhecimentos da humanidade com os sujeitos em situações de estudo e
de aprendizagem – os professores – é fundamental para a organização de suas
atividades de ensino. Nessa perspectiva, a atenção se volta para as condições da
formação de conceitos e da constituição dos sujeitos nas ações de ensino, discussão
que apresentamos na sequência.
Dizeres de pesquisadores sobre as atividades de ensino e estudo no processo de
formação de conceitos e constituição do sujeito
Os sujeitos constituem-se humanos diante das relações caracteristicamente
humanas que estabelecem com o mundo e os outros humanos (VIGOTSKI, 2008);
são relações que não acontecem pela ação direta com o mundo, mas de forma me-
diada por instrumentos e signos e por intermediações por outro humano e, espe-
cialmente, quando o sujeito entra em atividade (LEONTIEV, 2004), sendo esse um
processo de aprendizagem. Para aprender, segundo Vigotski, o homem necessita
entender a organização e o direcionamento do seu comportamento, situação em que
acontece a mediação por instrumentos e signos, que pode ser a palavra, por exem-
plo, que o auxiliará na formação de conceitos. Assim, é referenciada a relação com o
outro para a efetivação das apropriações dos conceitos e da história da humanidade
por um processo que é educativo (SAVIANI, 2008).
Os processos educativos intencionais são concebidos para o efetivo aprendi-
zado dos sujeitos como condição para a apropriação de conhecimentos produzidos
pela humanidade. É fundamental, portanto, a compreensão de como acontece esse
aprendizado, bem como a própria organização da atividade de ensino para a sua
efetivação; é condição que remete à busca pelo entendimento de como acontece o
processo de formação de conceitos, pela complexidade que ele apresenta, sendo ne-
cessária a atenção para uma adequada compreensão acerca da atividade de ensino
e de estudo que proporcione aprendizagem e promova o desenvolvimento humano
nas suas máximas potencialidades (DUARTE, 2016).
Na atividade de ensino, a intenção é a de proporcionar a apropriação do conhe-
cimento, realizando-a com consistentes motivos para a efetiva assimilação dos con-
ceitos pelos sujeitos. Esse processo é organizado sistematicamente nas instituições
de ensino, atentando para a vivência de cada sujeito, sendo necessário considerar o
processo de formação de conceitos, a distinta diferenciação e a implicação dos concei-
tos cotidianos e científicos no processo de constituição humana (VIGOTSKI, 2010).
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Considerando as vivências cotidianas, os conceitos espontâneos são apro-
priados pelo sujeito de maneira informal e sem rigor metodológico ou sistêmico,
bem como o senso comum, que parametriza diversos “saberes”. Esses conceitos
são apropriados pela pessoa sem a necessidade de estabelecer relações conceituais.
Os conceitos científicos, no entanto, são concebidos e construídos no contexto de
ambientes das instituições de ensino, organizados de maneira formal, intencio-
nal e sistêmica; condições importantes, pois, segundo Vigotski (2007), a formação
de conceitos científicos pela mediação de outros conceitos forma, assim, uma rede
conceitual. A organização desse processo é fundamental para a efetiva apropriação
pelos sujeitos em atividade de estudo.
O processo de formação dos conceitos, na concepção vigotskiana, acontece pela
formação dos complexos, que é referente à análise de fatores de uma situação com
características semelhantes e por conceitos potenciais qualificados pela associação
de características comuns diante de uma situação de análise (VIGOTSKI, 2010).
Esses processos são possíveis pela palavra, signo presente na mediação proporcio-
nada pelo outro mais experiente, especialmente durante a atividade de ensino e de
estudo. Para Vigotski (2008, p. 67), “[...] um conceito não é uma formação isolada,
fossilizada e imutável, mas sim uma parte ativa do processo intelectual, constan-
temente a serviço da comunicação, do entendimento e da solução de problemas”.
O processo de apropriação de conceitos possibilita o desenvolvimento do sujei-
to no contexto escolar que, em atividade de estudo, desenvolverá potencialidades
para estabelecer relações com o mundo com consciência reflexiva. Tal processo é
pertinente à escola bem como às instituições de ensino superior, que organizam e
desenvolvem atividade de ensino; um processo complexo que carece de compreen-
são pelos sujeitos diante do conhecimento construído pela humanidade, pois, como
advertem Leontiev et al. (2005, p. 13-14),
[...] os conceitos não se assimilam passivamente, mas têm de ser “construídos”. A tarefa do
docente não é apresentar conceitos novos já construídos; tarefa e dever do docente é, em
primeiro lugar, demonstrar como a utilização de um conceito velho – ou a não utilização
de um conceito novo – cria contradições e incertezas, para facilitar depois o processo de
“construção”, permitindo assim superar as contradições e reduzir a incerteza.
Entendemos ser fundamental que o processo de apropriação de conceitos cien-
tíficos no contexto do ensino e do estudo seja compreendido pelos sujeitos interme-
diadores do conhecimento – os docentes –, porque “[...] os conceitos são entendidos
como um sistema de relações e generalização contido nas palavras e determinado
por um processo histórico cultural” (REGO, 1995, p. 39). Ter clareza e consciência
acerca desse processo, portanto, é necessário, uma vez que:
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[...] a formação de conceitos é um processo criativo, e não um processo mecânico e passivo;
que um conceito surge e se configura no curso de uma operação complexa, voltada para a
solução de algum problema; e que só a presença de condições externas favoráveis a uma
ligação mecânica entre a palavra e o objeto não é suficiente para a criação de um conceito.
[...], o fator decisivo para a formação de conceitos é a chamada tendência determinante
(VIGOTSKI, 2008, p. 67-68).
Esse processo, definido como criativo, acontece via educação escolar, promovi-
da pela atividade de ensino, a qual envolve relações entre sujeitos, mediadas por
instrumentos e signos, dentre os quais o conhecimento historicamente produzido.
Para Vygotsky (2010, p. 247):
A experiência pedagógica nos ensina que o ensino direto de conceitos sempre se mostra
impossível e pedagogicamente estéril. O professor que envereda por esse caminho costuma
não conseguir senão uma assimilação vazia de palavras, um verbalismo puro e simples que
estimula e imita a existência dos respectivos conceitos na criança, mas, na prática, esconde
o vazio. Em tais casos, a criança não assimila o conceito, mas a palavra, capta mais de
memória que de pensamento e sente-se impotente diante de qualquer tentativa de emprego
consciente do conhecimento assimilado.
Tais conclusões contrapõem o ensino conduzido pela predominante, senão ex-
clusiva, maneira de conduzir o ensino e o estudo, cuja aprendizagem se dá pelo viés
de ações de decorar palavras sem a devida estruturação de uma rede conceitual.
Nas ciências exatas, por exemplo, é possível verificar entendimentos com defini-
ções conceituais pela linguagem matemática como predominante e até mesmo sufi-
ciente, conforme Paty (1995, p. 234), ao descrever que a “Matemática era concebida
como um conhecimento que permitia uma leitura direta da natureza [...]”. Vigotski
(2008, p. 72-73), em seus estudos, dedicou significativo tempo e esforços em pes-
quisas acerca da formação dos conceitos, nos quais enaltece o quão complexa é essa
atividade, levando em conta que:
[...] o processo não pode ser reduzido à associação, à atenção, à formação de imagens, à in-
ferência ou às tendências dominantes. Todas são indispensáveis, porém insuficientes sem o
uso do signo, ou palavra, como o meio pelo qual conduzimos as nossas operações mentais,
controlamos o seu curso e as canalizamos em direção à solução do problema que enfrentamos.
Tais considerações colocam os processos de ensino e de aprendizagem no cen-
tro dos debates quando o assunto é a efetiva aprendizagem para as relações com o
mundo, ou seja, para além da reprodução de palavras e termos em momentos de
verificação do que foi aprendido ou, simplesmente, decorado. Entendemos que esse
é um processo que demanda tempo, reflexão, vivência e reelaboração. Duarte (2016,
p. 16) descreve que “as relações entre o ensino dos conteúdos escolares e a formação/
transformação da concepção de mundo são mediadas e complexas”. Desse modo,
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[...] o domínio de um material perfeitamente determinado não leva sempre imediatamente
a um progresso no desenvolvimento mental do aluno, ao aparecimento de novas caracterís-
ticas, ou seja, a um desenvolvimento real. Tudo isto, depende do que se adquire e de como
se adquire (LEONTIEV et al., 2005, p. 48).
Pensamos que, na organização curricular, é importante considerar que os re-
sultados satisfatórios quanto a uma efetiva aprendizagem no campo da educação
não são instantâneos, pois necessitam de assimilações, reflexões e ressignificações
constantes, o que nos leva a concordar que “é um erro e uma ingenuidade esperar
mudanças imediatas e facilmente visíveis da visão de mundo dos alunos a partir de
cada tópico dos conteúdos escolares” (DUARTE, 2016, p. 16).
Há a concepção de que a formação de conceitos segue um caminho definido e
fossilizado como modelo ou receita e com suposta garantia da efetiva apropriação
do conhecimento. A apropriação de conceitos acontecerá a partir de operações na
presença de uma problemática que possibilitará ações e reflexões acerca do foco
de análise e de estudo. Vigotski (2008, p. 68) adverte que “a memorização de pala-
vras e a sua associação com os objetos não leva, por si só, à formação de conceitos;
para que o processo se inicie, deve surgir um problema que só possa ser resolvido
pela formação de novos conceitos”. Isso implica a necessidade de o aluno atribuir
sentidos para a atividade de estudo. Nas palavras de Leontiev et al. (2005, p. 57),
“a educação alcança o seu objetivo imediato (particular) e definitivo (geral) quando
põe em ação as capacidades potenciais do aluno, e, em conformidade, dirige a sua
utilização”.
Nessa perspectiva, é importante frisarmos o quão necessário é pensar e orga-
nizar os processos de ensino nas instituições escolares e acadêmicas, vislumbrando
que se efetive o aprendizado dos sujeitos, pois, como ensinam Leontiev et al. (2005,
p. 14),
A “construção” dos novos conceitos, com as suas correspondentes consequências [...] cons-
titui a motivação, o “reforço” do próprio processo, o processo de “construção” é um processo
automotivado; para assegurar o seu prosseguimento, uma vez iniciado, não é necessário um
“reforço externo”; é necessário e suficiente que subsistam as condições adequadas para que
o processo continue a desenvolver-se.
Essas condições dizem respeito à qualidade e à intencionalidade das ativida-
des de ensino e estudo mediante o entendimento do professor, uma vez que “os con-
ceitos não se assimilam passivamente, mas tem de ser ‘construídos’” (LEONTIEV
et al., 2005, p. 13), como também afirmam Leontiev et al. (2005, p. 31):
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Estudos demonstram que o intelecto não é precisamente a reunião de determinado número
de capacidades gerais – observação, atenção, memória, juízo, etc. – mas sim a soma de
muitas capacidades diferentes, cada uma das quais, em certa medida, é independente das
outras e portanto tem de ser desenvolvida mediante um exercício específico. A tarefa do
docente consiste em desenvolver não uma única capacidade de pensar, mas muitas capa-
cidades particulares de pensar em campos diferentes; não em reforçar a nossa capacidade
geral de prestar atenção, mas em desenvolver diferentes faculdades de concentrar a aten-
ção sobre diferentes matérias.
Quanto ao papel do professor, Vigotski (2008, p. 104) argumenta “que o ensi-
no direto de conceitos é impossível e infrutífero”, sendo, então, improdutivo e na
crença de uma suposta aprendizagem, pois há somente a retenção de termos no
sentido de uma mera reprodução, sem estabelecer relações mais amplas, reduzindo
o processo a uma simples “repetição de palavras pela criança, semelhante à de
um papagaio, [...] que na realidade oculta um vácuo”. Nessa linha de pensamento,
Vigotski (2008, p. 104) ressalta que:
[...] um conceito é mais do que a soma de certas conexões associativas formadas pela me-
mória, é mais do que um simples hábito mental; é um ato real e complexo de pensamento
que não pode ser ensinado por meio de treinamento, só podendo ser realizado quando o
próprio desenvolvimento mental da criança já tiver atingido o nível necessário. [...] o desen-
volvimento dos conceitos, ou dos significados das palavras, pressupõe o desenvolvimento
de muitas funções intelectuais: atenção deliberada, memória lógica, abstração, capacidade
para comparar e diferenciar.
Com base em Leontiev et al. (2005), percebemos que a atividade de ensino
deve ser organizada com a intencionalidade de oferecer a todos os alunos condições
adequadas e permanentes para a apropriação e a sociabilização daqueles conheci-
mentos científicos que promovam o desenvolvimento cognitivo e afetivo dos alunos.
Nesse processo sistematizado:
O domínio de conceitos cada vez mais complexos favorece o desenvolvimento da abstração
e da generalização, conduz à formação e ao aperfeiçoamento de operações lógicas, ao desen-
volvimento da curiosidade, à iniciativa e à independência na assimilação de conhecimentos
(LEONTIEV et al., 2005, p. 46-47).
Na proposição de situações-problema que requerem pesquisa, o professor pro-
porciona a atividade de estudo com novas possibilidades de apropriação do conheci-
mento, com incentivo ao uso e ao desenvolvimento das funções superiores mentais
por intermédio do planejamento intencional e sistemático da atividade de ensino,
que se contrapõe ao modelo tradicional, no qual predomina a simples decoreba e a
apropriação da informação pronta, acabada. Segundo Rego (1995, p. 39), ao apos-
tar na possibilidade formativa, pautada pela real formação dos conceitos, opta-se
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por uma condição em que “estes processos mentais são considerados sofisticados e
‘superiores’, porque se referem a mecanismos intencionais, ações conscientemente
controladas [...]”.
Para Duarte (2016, p. 140), a sistematização e a organização dos processos
que proporcionam tais situações poderiam ser pensadas e viabilizadas nas escolas
e também nas universidades, uma vez que:
O conhecimento organiza-se em sistemas conceituais cujo domínio é adquirido por meio de
processos que só raramente ocorrem na vida cotidiana. Cabe à escola a produção deliberada
desses processos e a condução dos alunos pelas sendas do saber sistematizado. Somente
assim as pessoas estarão em condições de se apropriar constantemente do conhecimento,
disponível em qualquer tipo de fonte.
O ensino, sistemático e intencionalmente organizado para a apropriação de
conhecimentos científicos das diferentes áreas do saber, necessita acontecer na di-
reção de razões que possibilitem motivação para agir visando esse objetivo, ou seja,
realizar a atividade para a construção do conhecimento mediado por instrumentos
e signos e intermediado pelo professor nas instituições de ensino, na perspectiva
de produzir a necessidade de estudo. Nesse sentido, Leontiev (2004, p. 108-109)
assevera que:
A primeira condição de toda a actividade é uma necessidade. Todavia, em si, a necessidade
não pode determinar a orientação concreta de uma actividade, pois é apenas no objecto da
actividade que ela encontra sua determinação: deve, por assim dizer, encontrar-se nele.
Uma vez que a necessidade encontra a sua determinação no objecto (se “objectiva” nele), o
dito objecto torna-se motivo da actividade, aquilo que o estimula.
As palavras desse autor nos permitem afirmar que a produção de necessi-
dades, no sujeito, desenvolve motivos para a realização de ações e operações com
vistas a supri-las. Assim, se a escola e seus professores empenharem-se no sentido
de produzir em seus alunos necessidades do conhecimento, estes se sentirão mo-
tivados para a atividade de estudo e, nesse caso, o processo de aprendizagem é
favorecido. Produzir tais necessidades é um dos maiores desafios dos docentes e
das instituições de ensino.
Considerações nais
Diante dos desafios impostos aos professores para o enfrentamento de ques-
tões relacionadas aos processos de apropriação de conhecimentos científicos, con-
cisos e frutíferos, verificamos diversas manifestações quanto aos limites do de-
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senvolvimento humano a partir da formação escolar e acadêmica. Conhecimentos
supostamente elementares são considerados insuficientemente construídos pelos
sujeitos diante dos resultados nos espaços de trabalho e no desempenho escolar,
que são ínfimos. Logo, há o entendimento de que o conhecimento é superficial-
mente construído pelos discentes, que a inteligência está diminuindo, e indaga-se
quanto ao que é mais importante entre o saber-fazer como potencial produtivo e
mercantil e o saber-saber amplo e reflexivo; entendimentos dicotômicos e polariza-
dos no horizonte histórico do mundo capitalista. Esta análise, de cunho marxista,
é necessária e pertinente ao desenvolvimento humano nas concepções advindas da
teoria histórico-cultural, bem como na pedagogia histórico-crítica, dada a função
de construção da autonomia do sujeito enquanto integrante do mundo como ser
humano e ser produtivo.
Diante da problemática da apropriação de conceitos e o fundamental entendi-
mento do professor nesse processo, destacam-se as valorosas contribuições da psi-
cologia russa e seus seguidores para tais entendimentos e reflexões. Essas possibi-
lidades de análises e reflexões nem sempre foram consideradas nos estudos acerca
do funcionamento da mente humana na direção da construção do conhecimento, na
constituição do ser humano e de suas relações com o mundo e, também, na própria
formação de professores.
Os estudos aqui analisados e considerados constituem consistente base da
formação, em especial com Leontiev, ao desenvolver o que chamou de Teoria da
Atividade, com contribuições fundamentais para o entendimento dos processos
educativos de crianças, jovens e adultos. Essa teoria proporciona entendimentos
do complexo processo de funcionamento da mente humana, que resulta em ativi-
dades especificamente do homem diante da realidade dos sujeitos. As atividades
humanas referenciadas nesses estudos são possíveis a partir da compreensão do
contexto histórico e cultural no qual os sujeitos se encontram. Compreende-se,
com Rego (1995, p. 39), que os processos referentes ao desenvolvimento humano,
à aprendizagem e à hominização dos sujeitos “[...] não são inatos, eles se originam
nas relações entre indivíduos humanos e se desenvolvem ao longo do processo de
internalização de formas culturais de comportamento”.
Esse comportamento essencialmente humano é possível pela relação que
estabelece com o mundo e com o conhecimento produzido historicamente, sendo
igualmente possíveis apropriações desse conhecimento pela intermediação propor-
cionada pelos homens. Essa intermediação, a partir de ações humanas, também
acontece por instrumentos oriundos das criações humanas e, no direcionamento a
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um objeto, possibilita que sujeitos se coloquem em “atividade”, que, na concepção
de Leontiev, possibilitará a apropriação do conhecimento, desde que orientado por
motivos.
Por esse viés, o processo educativo é fundamentado pela “atividade” que inclui
operações e ações na intencionalidade de despertar motivos para a efetiva reali-
zação da aprendizagem, ou seja, de apropriação do conhecimento. No ambiente de
ensino e de estudo, portanto, é fundamental a organização intencional dos proces-
sos pedagógicos, vislumbrando efetivos aprendizado e desenvolvimento humanos.
Para Leontiev (1983, p. 83), “o objeto da atividade é seu motivo real”, sendo o mo-
tivo alimentado pela necessidade de encontrar um objeto. Nesse foco de análise, o
objeto é o termo usado como referência a um processo de construção e apropriação
de conhecimento e/ou conceito; logo, não como a materialidade física de um objeto.
Com o olhar docente, há, com recorrência, a utopia de encontrar, descobrir ou
criar “a forma” adequada e eficiente de ensinar, dada a complexidade do processo.
Para Duarte (2016, p. 109),
[...] a decisão pelo emprego de uma estratégia, uma técnica ou um procedimento didático
dependerá sempre de uma avaliação que relacione, no mínimo, quatro elementos: quem
está ensinando, quem está aprendendo, o que está sendo ensinado e em que circunstâncias
a atividade educativa se realiza.
Há um contraponto marcante aos entendimentos contemporâneos citados na
introdução desta escrita no que se refere ao suposto “emburrecimento” do sujeito,
inclusive pela carga hereditária.
Não há a menor dúvida, segundo os psicólogos soviéticos – salvo em casos de lesões fisioló-
gicas diagnosticáveis com segurança –, de que qualquer “estudante” é capaz de construir
novos conceitos, desde que se encontre em uma etapa suficientemente avançada do desen-
volvimento ontogênico (LEONTIEV et al., 2005, p. 14).
A conclusão é contundente quando contrapõe fortemente o senso comum quan-
to aos entendimentos de “nascer inteligente”, “não tem jeito de aprender”, “esse
não serve para estudar, para nada”. Tratam-se de afirmações fortes, pesadas, mas,
infelizmente, reais; entendimento que, possivelmente, transcende o senso comum
e chega a pertencer aos comentários no meio docente.
O entendimento profundo do termo atividade, composto por ações e operações
(conforme o conceito de Leontiev) como conceito fundamental de processos educati-
vos nas instituições, é determinante para que, ao realizarem a atividade de estudo,
os estudantes se apropriem dos conceitos científicos ensinados, desenvolvendo as
funções psicológicas superiores. De acordo com Leontiev (2004), são realizações
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possíveis mediante uma prática pedagógica pensada e organizada pelos educado-
res na direção da satisfação da necessidade de estudo e de aprendizagem pelos
sujeitos, mas satisfazendo essa necessidade com sentidos atribuídos pelo professor
que realiza a intermediação.
O processo de memorização, essencialmente humano, é o que possibilita e
potencializa a capacidade dos sujeitos de se apropriarem das informações e dos
conhecimentos sociabilizados por outros sujeitos e com o uso dos signos (VIGOT-
SKI, 2007), quando acontece a apropriação de conceitos. Destaca-se que o termo
“memorização” é dissociado da “decoreba”, anteriormente referenciada como uma
ação limitadora na atividade de estudo, dado o infrutífero resultado do aprender,
ou seja, de realizar efetivamente a apropriação dos conceitos e conferir significados
do conhecimento nas relações do homem com o mundo. Segundo Vigotski (2008,
p. 116), é fundamental a consideração dos conceitos para o aprendizado escolar e
acadêmico, “pois com eles o sujeito categoriza o real e lhe conforma significados”.
Ainda acerca dos conceitos, Vigotski (2008, p. 116) afirma:
Nos conceitos científicos que a criança adquire na escola, a relação com um objeto é media-
da, desde o início, por algum outro conceito. Assim, a própria noção de conceito científico
implica certa posição em relação a outros conceitos, isto é, um lugar dentro de um sistema
de conceitos.
A partir da construção do conhecimento, há um sentido vivo na alma dos edu-
cadores e sonhadores com um mundo melhor pelo caminho da educação, quando as
transformações das pessoas são reais e possíveis.
Se o conhecimento não transformasse as pessoas e não transformasse a sociedade, ele não
passaria de uma massa morta de informações, palavras e ideias. Mas o conhecimento é a
atividade humana condensada e sua socialização traz à vida a atividade que ali se encontra
em estado latente. Essa atividade, no processo de sua apropriação pelos indivíduos, produz
nestes o movimento do intelecto, dos sentimentos e da corporeidade, em outras palavras,
põe em movimento o humano (DUARTE, 2016, p. 34).
Os estudos desenvolvidos na psicologia russa, bem como seus seguidores, ob-
servam a formação dos indivíduos com atenção aos impactos sociais no âmbito
em que se encontram e influenciam esta realidade. Logo, as concepções dos pro-
cessos formativos, desde a escola até o ensino superior, precisam de significação e
contextualização para, de fato, interferir positivamente na realidade social. Logo,
a organização do ensino e o efetivo envolvimento e entendimento por parte dos
docentes é determinante nesta caminhada em prol da formação dos sujeitos, pois,
como afirma Duarte (2016, p. 59):
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O ensino dos conteúdos escolares em nada se assemelha, portanto, a um deslocamento
mecânico de conhecimentos dos livros ou da mente do professor para a mente do aluno,
como se esta fosse um recipiente com espaços vazios a serem preenchidos por conteúdos
inertes. O ensino é transmissão de conhecimento, mas tal transmissão está longe de ser
uma transferência mecânica, um mero deslocamento de uma posição (o livro, a mente do
professor) para outra (a mente do aluno). O ensino é o encontro de várias formas de ativi-
dade humana: a atividade de conhecimento do mundo sintetizada nos conteúdos escolares,
a atividade de organização das condições necessárias ao trabalho educativo, a atividade de
ensino pelo professor e a atividade de estudo pelos alunos.
As contribuições da psicologia histórico-cultural são fundamentais para o en-
tendimento, a organização e a transformação dos processos educativos, bem como
dos processos formativos dos docentes. Na concepção de Duarte (2016, p. 37), en-
tretanto, ela “não é e não pode ser uma pedagogia, o que ela pode ser é um dos
fundamentos de uma pedagogia”, o que contribui para a qualificação dos processos
formativos de docentes e estudantes.
Ao longo desta escrita, foi possível fazer uma reflexão acerca do desenvolvi-
mento humano e da aprendizagem escolar e acadêmica, considerando a importân-
cia da formação de conceitos e a mediação que possibilita a efetivação da aprendi-
zagem e do próprio desenvolvimento humano. O trabalho educativo como sociali-
zação do conhecimento construído pela humanidade (DUARTE, 2016), todavia, é
a possibilidade de desenvolvimento da autonomia e de constituição dos indivíduos
vislumbrando uma vida justa e digna. Essas condições remetem à organização dos
processos educativos pelas mãos e pelos olhares dos profissionais da educação com
as considerações vigotskianas a respeito da apropriação dos conceitos científicos.
Na perspectiva histórico-cultural, os conhecimentos espontâneos, apropria-
dos pelos sujeitos, são determinantes para que esses processos educativos levem à
apropriação do conhecimento pelo indivíduo a partir do coletivo e das mediações;
processos que nunca são conclusos, estão sempre sendo revistos e reconstruídos,
pois o mundo real transforma-se constantemente, e nós estamos continuamente
na busca pelo entendimento deste mundo. Com o conceito de atividade elucidado
por Leontiev e os demais pesquisadores da escola russa, portanto, espera-se que as
ações e operações possibilitem, efetivamente, a partir da apropriação desse concei-
to por docentes, a assimilação do conhecimento descoberto, produzido e sociabiliza-
do pela humanidade.
1171
ESPAÇO PEDAGÓGICO
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O ensino como atividade mediadora no processo de apropriação de conceitos
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Notas
1 Ao longo do texto, foi adotada a grafia Vigotski, com exceção das citações, que serão apresentadas de acordo
com a obra consultada.
2 Grifo nosso para o termo atividade quando na referência específica da perspectiva da psicologia russa
(Leontiev).
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1172 ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Sandro Roberto Cossetin, Marli Dallagnol Frison
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ESPAÇO
PEDAGÓGICO
DIÁLOGO COM
EDUCADORES
1174 ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Cláudio Almir Dalbosco, Odair Neitzel
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Os clássicos e a educação atual: entrevista com Rainer Bolle
Cláudio Almir Dalbosco*
Odair Neitzel**
Introdução
A Revista Espaço Pedagógico (REP), no presente dossiê sobre o pedagogo ale-
mão Johann Friedrich Herbart, oferece aos leitores uma entrevista com o prof. dr.
Reiner Bolle, o qual é nada mais nada menos do que o atual presidente da presti-
giosa Sociedade Internacional Herbart (Internationale Herbart Gesellschaft). Com
sede na Alemanha, a referida sociedade desenvolve amplas atividades acadêmicas
e científicas sobre esse autor clássico da pedagogia alemã.1
Reiner Bolle estudou teologia católica, pedagogia e filosofia para professor gi-
nasial na Universidade de Münster, onde também se doutorou em 1988. Na condi-
ção de professor assistente na Universidade de Hamburgo, escreveu seu trabalho
de habilitação sobre Jean-Jacques Rousseau, do qual resultou o livro Jean-Jac-
ques Rousseau. O princípio da perfectibilidade do ser humano pela Edukation e
a pergunta pela conexão entre liberdade, felicidade e identidade (Jean-Jacques
Rousseau. Das Prinzip der Vervollkommnung des Menschen durch Edukation und
die Frage nach dem Zusammenhang von Freiheit, Glück und Identität). Depois de
muitos anos de atividade como professor na escola Sophie-Barat (Sophie-Barat-S-
chule), assume vaga de concurso em 2002 na Pädagogische Hochschule Karlsruhe,
como professor de Pedagogia Geral, disciplina que ainda ministra até hoje. Além de
presidir a Sociedade Internacional Herbart, o prof. Bolle possui uma vasta publica-
ção acadêmica em livros, capítulos de livros e ensaios em periódicos nacionais e in-
ternacionais. Cabe destaque, dentre sua produção científica, além do referido livro
sobre Rousseau, também para a obra por ele organizada em parceria com Gabriele
* Doutor em Filosoa pela Universidade de Kassel. Professor e pesquisador no Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade de Passo Fundo (UPF). Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3408-2975. E-mail: vcdalbosco@hotmail.com
** Doutor em Educação (UPF/Universität Kassel). Professor Adjunto na Universidade Federal Fronteira Sul (UFFS) – Cam-
pus Chapecó. Docente nos Programas de Pós-Graduação em Educação e Filosoa (PPGE/PPGFIL). Líder do Grupo de
Pesquisa Educação, Filosoa e Sociedade (GPEFS). Orcid: https://orcid.org/0000-0001-8121-1149. E-mail: odair.neitzel@
us.edu.br
Recebido em: 13/12/2021 – Aprovado em: 13/12/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i3.13254
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Diálogo com educadores
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Weigang, intitulada Johann Friedrich Herbart 1806-2006. 200 anos da Pedagogia
Geral. Impulsos histórico-efetuais (Johann Friedrich Herbart – 1806-2006. 200
Jahre Allgemeine Pädagogik. Wirkungsgeschichtliche Impulse). Participam desta
coletânea, como autores de capítulo, grandes especialistas internacionais do pensa-
mento de Herbart, entre os quais, Klaus Prange e Rotraud Coriand.2
Elaboramos as perguntas inicialmente em alemão e as enviamos ao prof. Bol-
le, via correio eletrônico, no dia 26 de janeiro de 2021, o qual nos retornou, também
eletronicamente, em 7 de abril de 2021. Na sequência, procedemos com a tradução
da entrevista e, posteriormente, fizemos-lhe novas consultas de esclarecimento.
É preciso salientar, contudo, que o primeiro contato com o referido entrevistado
ocorreu pessoalmente, ainda em janeiro de 2015, quando um dos entrevistado-
res, Cláudio Almir Dalbosco, proferiu conferência sobre Jean-Jacques Rousseau
na Pädagogische Hochschule Karlsruhe (Alemanha), contando com a prestigiosa
presença do próprio prof. Bolle. Depois disso, os vínculos continuaram por meio da
Internationale Herbart Gesellschaft, com acesso frequente à sua vasta produção
científica.3
A entrevista abre um leque de temas educacionais, revelando ao leitor alguns
aspectos da cultura pedagógica alemã, e mostra o perfil de um professor pesquisa-
dor que consegue traduzir formativamente, para as novas gerações de estudantes,
a importância de estudar os clássicos. De sua ocupação de décadas com dois gran-
des pensadores da tradição pedagógica ocidental, resulta uma visão aprofundada
de aspectos nucleares da educação. Sua interpretação de Rousseau permite res-
gatar o sentido originário emancipador inerente à Bildung alemã, uma vez que o
genebrino apresentou a compreensão crítica da condição humana em sua histori-
cidade e sua sociabilidade, que influenciaram, entre outros, autores como Kant,
Herder, Humboldt e o próprio Herbart. De outra parte, os estudos minuciosos que
Bolle faz de Herbart revelam o sentido formativo inerente ao ensino que serve
como crítica ao reducionismo cada vez mais crescente das questões educacionais
amplas à linguagem da aprendizagem dominada por competências e habilidades.
Em síntese, educandos e educadores encontrarão nesta entrevista muitos impul-
sos teóricos para continuar pensado questões formativas indispensáveis para um
mundo melhor.
1176 ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Entrevista
REP: Prof. Dr. Rainer Bolle, poderia nos falar sobre alguns aspectos de sua
biografia: sobre sua infância e seus primeiros estudos? Por que você escolheu a
pedagogia sistemática e a educação como campos de investigação e ocupação pro-
fissional? Quais foram suas influências intelectuais mais importantes?
Prof. Dr. Rainer Bolle: Acredito que sempre tive curiosidade. Eu queria sa-
ber tudo o que era possível. Muitas vezes, coisas que as pessoas preferiam não me
contar, de modo que minha curiosidade não era raramente julgada como irritante.
Subjetivamente, percebo que a minha educação foi bastante rigorosa e sustentada
na obediência e no funcionamento ordenado. Não se tratava de autonomia, pen-
samento independente, questionamento crítico. Eu também não vivenciei isso na
escola. Eu não era um mau aluno e por muito tempo respondi “sim” à pergunta se
eu gostava de ir à escola. Isso pode ter sido o caso no início, mas, já nas 7ª a 10ª
classes, esse não era mais o caso. Isto, no entanto, se alterou novamente devido ao
fato de que, na escola secundária, na 11ª classe, dois anos e meio antes da conclusão
no ensino médio (Abitur), eu mudei novamente de curso e encontrei professores
que, a meu ver, eram de alguma forma mais “humanos”, mais acessíveis e, em
alguns aspectos, também mais “críticos”. Associo minhas mais belas experiências
escolares a este tempo antes da conclusão do ensino médio.
Nessa época, eu queria realmente entrar para a polícia, depois de me formar
no ensino médio. Quem sabe, então, o que teria sido de mim?! Que não tenha che-
gado a isso, devo, na verdade, mais a um amigo que conheci durante esse tempo no
ensino médio, mas que não frequentava a escola. Nos conhecemos porque ele havia
reprovado de ano na escola técnica em sua cidade natal e, portanto, fez um curso
como mecânico de precisão em minha cidade natal. O que meus pais e doze anos
de escola foram menos capazes de fazer, eu experimentei em muitas conversas
sobre Deus e o mundo com ele. Por sugestão dele, comecei a questionar as coisas,
a acertar contas com várias coisas que eu tinha tomado como certas, a reorganizar
completamente minha vida. É claro que isto não aconteceu de um dia para o outro,
mas certamente foi muito mais rápido então do que se tivesse que acontecer hoje,
em uma idade avançada. Um dos resultados deste enfrentamento na época, auxi-
liado por outros eventos, foi que eu não entrei para a polícia e, em vez disso, me
formei como professor.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Diálogo com educadores
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No início, a reivindicação pedagógica associada a ela ainda não estava tanto
em primeiro plano. Eu havia escolhido as disciplinas de “Teologia Católica” e “Fi-
losofia”, e, acima de tudo, a teologia era meu principal interesse. Eu poderia ter
acabado me tornando um padre se não tivesse encontrado uma namorada pouco
tempo depois, que não gostou nada da ideia e me convenceu a casar e ter filhos.
Tudo isso foi então ainda durante o tempo da universidade, onde houve um grande
ceticismo, pelo menos na casa de meus pais, de que aqui provavelmente a ordem
correta não foi mantida. Porque se determinava: primeiro estudar, depois garantir
um emprego e finalmente seria a hora de começar uma família. Talvez não seja sem
importância mencionar que não cumpri esta ordem, ainda mais em um momento
em que foi feito o anúncio claro de que, após a formatura, ainda seria possível fazer
um estágio, mas não mais na profissão de professor. Houve um congelamento das
admissões nas escolas. Hoje, com tal perspectiva, quase todos provavelmente inter-
romperiam seu curso de formação de professor e fariam outra coisa, porque estudar
como mero meio não pode mais cumprir seu propósito. Comigo foi diferente! Mas de
longe não só comigo. Naquela época, não houve êxodo em massa do curso de forma-
ção de professores. O estudo foi também um fim em si mesmo, um lugar de debate,
de liberdade, como eu nunca havia experimentado antes, uma oportunidade para
uma verdadeira formação.
É assim que eu classificaria isso hoje. Minha nova situação familiar – tornei-
-me pai pela primeira vez aos 20 anos e pela segunda vez aos 22 – até encorajou-me
a me concentrar mais na pedagogia. Porque aqui, também, havia muito “trabalho”.
Escolhi então a pedagogia como um segundo tema. A filosofia tornou-se, assim,
o terceiro tema. Mas, de alguma forma, essa inclinação se alargou junto com a
necessidade de olhar para as conexões entre as áreas de conhecimento. No final –
depois de conhecer, nesse caminho, Dietrich Benner –, isto levou ao tema da minha
dissertação sobre Educação Religiosa e Ética na Prússia, que era principalmente
sobre o processamento de conexões e tensões entre teologia, educação, ética e po-
lítica. O doutorado também me deu a oportunidade de conciliar pelo menos dois
anos de licença da profissão docente. Depois disso, tive a sorte de conseguir ime-
diatamente um cargo de assistente universitário na Universidade de Hamburgo.
A posição estava focada na educação religiosa, mas ao mesmo tempo me ofereceu
a oportunidade de me habilitar na educação geral. Esse foi então meu trabalho em
J. J. Rousseau. E, após meu tempo como assistente, a situação de contratação na
escola encontrou um período mais favorável, e nesse meio fui para Hamburgo, para
participar da seleção, e imediatamente assumi como professor. Minha escola era
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uma escola particular católica em Hamburgo. Lá, é claro, eu ensinava principal-
mente religião, mas eu também tive a oportunidade de ensinar filosofia e até peda-
gogia no ensino médio, que normalmente não é uma disciplina no ensino médio, de
uma escola geral em Hamburgo. Com a chamada para a Pädagogische Hochschule
Karlsruhe, em julho de 2002, terminou meu tempo na Escola Sophie Barat, em
Hamburgo.
REP: Um interesse de sua variada e ampla trajetória intelectual é sempre a
educação em uma perspectiva clássica. Nesse contexto, você já lidou com vários au-
tores. O que você pensa sobre o papel dos clássicos na educação das novas gerações?
Prof. Dr. Rainer Bolle: Já apresentei sobre os antecedentes biográficos que
me levaram à pedagogia. O fato de os clássicos terem sido capazes de assumir
um papel particularmente importante do meu interesse pela pedagogia se deve,
naturalmente, a vários fatores. Pessoalmente, a impressão que Dietrich Benner e
Herwig Blankertz deixaram em mim, durante meus estudos, certamente desem-
penhou um papel importante. Os clássicos puderam ganhar importância crescente
para mim, quando ficou claro que, na fase decisiva da transição para a sociedade
burguesa do século XVIII para o XIX, eles fizeram a seguinte pergunta e a res-
ponderam de forma construtiva e bastante coerente: o que significa, para o modo
como nos ocupamos com as novas gerações, se elas não devem ser simplesmente
treinadas para atender padrões sociais pré-definidos, mas ser educadas para a
autonomia, para a livre, auto e codeterminação e para a responsabilidade social?
Enquanto a pesquisa empírico-analítica, que hoje domina a ciência educacio-
nal, tem a tendência de querer apenas determinar o que parece estar acontecendo
na educação, sem poder esclarecer teórica e coerentemente a partir da mera prá-
tica o que deve ser feito em seu lugar, a pedagogia clássica criou pelo menos bases
importantes para isso, para poder pensar sobre essas questões repetidamente, no
sentido de uma solução construtiva. Os clássicos não nos dizem simplesmente, em
termos concretos, o que devemos fazer, mas nos encorajam a sermos capazes de
perceber o que é pedagogicamente decisivo e, com base nisso, obter uma orientação
em termos de teoria da ação quando assumimos responsabilidade pedagógica.
REP: Você trabalhou intensamente com o pensamento de Jean-Jacques Rous-
seau e também escreveu um livro importante sobre ele. Qual é o seu interesse nes-
te autor? O que você considera central no conceito de educação de Rousseau? Como
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você interpreta o princípio da perfectibilidade humana através da educação de
Rousseau?
Prof. Dr. Rainer Bolle: Tenho dedicado bastante tempo de minha vida aos
escritos de Rousseau. Originalmente, o tema da perfectibilidade humana através
da Educação era mais amplo. Vários rascunhos clássicos deveriam ser discutidos
aqui. Eu queria começar com Rousseau, mas depois quanto mais eu olhava para
suas obras completas, mais ele ficava comigo. Fiquei fascinado acima de tudo pela
imensidão de seu círculo de pensamento. Muitos têm considerado Rousseau como
um autor contraditório, mas a maioria dessas contradições poderia ser bem trata-
das histórica e hermeneuticamente - se fosse possível classificá-las em termos de
história de vida e colocá-la em conexão com o respectivo círculo de destinatários.
Na terceira edição de meu escrito de habilitação (BOLLE, 2002), que não foi
publicada por acaso no ano de Rousseau 2012 (300º aniversário, 250 anos do Emile
e Contrato Social), substituí o termo Erziehungsbegriff no título pelo termo Edu-
ktion. Este termo não deve ser confundido com o conceito de educação, que tem
seu equivalente em inglês, francês, espanhol e português, que é sempre traduzido
para o alemão como Erziehung. A Eduktion, por outro lado, é em princípio um novo
termo e deve ser distinguida da educação (Erziehung). O pano de fundo disto é que
os dois termos pedagógicos básicos tradicionais em alemão, Bildung e Erziehung,
desempenham um papel diferente na história da emancipação burguesa. Embora
o conceito de formação (Bildung) em sua tradição do neo-humanismo não possa ser
traduzido de forma adequada para outra língua, por outro lado, sua orientação é
fundamentalmente emancipatória. A formação liberta o homem para si mesmo e o
conecta com a “humanidade”.
O conceito de educação, por outro lado, tem uma história mais longa, que é
bastante ambivalente. O termo educação tem sido frequentemente mal utiliza-
do e continua a ser mal utilizado diariamente, com o sentido de treinar pessoas,
para “puxá-las” para caminhos pré-determinados, para, simplesmente, adaptá-las
acriticamente às diretrizes da sociedade, para transformar adolescentes em meros
objetos de educação. E, em minha percepção, o próprio conceito de educação não
se defende o suficiente contra este abuso, parece justificar aqueles que o utilizam
desta forma. Consequentemente, a “educação” é usada com tanta frequência e em
quase todos os lugares. Parece que não se pode evitar...
Os clássicos da pedagogia têm uma compreensão diferente da educação, uma
compreensão que inclui o adolescente em seu desenvolvimento, leva-o à responsa-
1180 ESPAÇO PEDAGÓGICO
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bilidade e não simplesmente exerce uma determinação sobre ele. Mas os clássicos
não mudaram o termo e, portanto, deve-se ter um interesse quase filosófico na
questão da educação, deve-se ser capaz de lidar de forma muito crítica com a prá-
tica educacional convencional, para poder detectar as diferenças – com o mesmo
conceito – com precisão.
Meu orientador de doutorado, Dietrich Benner, fala aqui da distinção entre
educação “afirmativa” e “não afirmativa”. Preferi, então, falar de Eduktion ao invés
de “educação não afirmativa” e deixar o termo Erziehung para aqueles que querem
“puxar” seus filhos em uma direção muito específica, de acordo com determinadas
normas, que não levam a criança à autonomia, mas praticam a tutela permanente.
A Eduktion, por outro lado, não deriva da palavra latina educare, mas de edu-
cere ou exducere, que significa conduzir para fora. Aqui, estou preocupado com um
“ato de libertação” ou “caminho de libertação” dos “grilhões da infância” para a edu-
cação. A educação está, portanto, “levando à educação”, à educação no sentido mais
abrangente possível. A associação de “liderança” está orientada para a alegoria de
Platão sobre a caverna, que enfatiza particularmente o aspecto da libertação.
É precisamente este tipo de compreensão de educação que tenho notado nos
clássicos da pedagogia, embora, como eu disse, eles não falavam de Eduktion, mas,
precisamente, de Erziehung; Rousseau falou então de éducation. Até agora, porém,
ainda não consegui me afirmar com meu novo conceito.
É claro que, apesar de toda a diferenciação conceitual, tenho o problema que
meus colegas muitas vezes chamam a si mesmos de pesquisadores da educação e,
ao fazerem isso – e que também é o que eles de fato fazem! – estão mais preocupa-
dos academicamente com a problemática da má condução da ação pedagógica do
que com as possibilidades e perspectivas alternativas da pedagogia clássica.
Meu livro de Rousseau, em sua terceira edição, ofereceu-me assim a oportuni-
dade de incorporar meu entendimento sobre educação na interpretação da pedago-
gia de Rousseau.
Com relação ao problema da perfectibilidade, é digno de nota que Rousseau,
como autor do pensamento francês, não possui o termo alemão Bildung, mas ele
usa, em vez disso, de forma muito específica, o conceito de capacidade de perfecti-
bilidade, que em alemão pode ser traduzido como Vervollkommnungsfähigkeit, que
em certos aspectos também está muito próximo do conceito alemão de formação.
E o ponto aqui é que Rousseau, no seu Segundo Discurso, identifica esta perfecti-
bilidade, juntamente com a liberdade, como características essenciais da natureza
humana. Assim, a supressão não só da liberdade, mas também da capacidade de
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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se aperfeiçoar é, ao mesmo tempo, a supressão do humano. Esta supressão des-
creve assim um caminho de autoalienação. E isto poderia ter, ao mesmo tempo,
o possível efeito colateral de mostrar também que é contra a natureza humana
deixar-se reprimir. E só por esta razão não devemos ficar tão surpresos se os cha-
mados representantes e especialistas da “educação” falham tão frequentemente
com exatamente esta educação, alcançando exatamente algo diferente do que eles
realmente queriam alcançar.
REP: Você também trabalhou intensamente com o pensamento de Johann
Friedrich Herbart, que também é um clássico no campo da teoria e filosofia da
educação. No momento, você é o presidente da Sociedade Internacional Herbart e
está no processo de organização da conferência sobre Herbart, que será realizada
na Universidade de Budapeste. Por que Herbart se tornou um clássico e qual seria
sua atualidade? O que significa ensino educativo (erziende Unterricht) em Herbart
e de que forma é um conceito crítico contra a pedagogia da competência? Você pode
nos dizer algo sobre a Sociedade Internacional Herbart e suas publicações?
Prof. Dr. Rainer Bolle: Estou envolvido com Rousseau desde aproximada-
mente 1980 e com Herbart desde 1983. Embora eu estivesse entusiasmado com
Rousseau desde o início, demorou um pouco mais com Herbart. Meu primeiro ponto
de contato foi a psicologia de Herbart, depois a pedagogia e a filosofia prática. Ape-
sar de minha participação na publicação de uma edição resumida da pedagogia do
jovem Herbart por Dietrich Benner, Herbart ainda não era de interesse principal
durante a época de minha tese (1985-1988). Na fase da habilitação, ele no mínimo
ajudou a me levar a um outro pensamento de Rousseau, a trazer este para um
ponto melhor.
Há uma expressão proferida pelo neokantiano Paul Natorp afirmando que
Herbart foi o melhor pedagogo entre os filósofos e o maior filósofo entre os pedago-
gos. Isto diz muito e não quero contradizê-lo, como se eu pudesse apresentar um
contraexemplo. Talvez outros possam. Meu entusiasmo por Herbart basicamente
só começou com a fase de docência na universidade, na qual eu retomei a maior
parte de seus escritos de forma ainda mais completa e abrangente. Em 2006 – 200
anos da pedagogia geral de Herbart –, tentei abrir um simpósio de Herbart em
Karlsruhe, mas tive que o cancelar devido à falta de inscrições. Um efeito colateral
desta ação foi, no entanto, porque havia um grande número de oradores, que a
publicação planejada ainda pode ter lugar (BOLLE; WEIGAND, 2007). Um segun-
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do efeito colateral importante foi o contato que fiz com a Sociedade Internacional
Herbart (Internationale Herbart Gesellschaft). No mesmo ano, tornei-me membro.
Em 2015, consegui trazer a conferência bienal da sociedade para a Pädagogische
Hochschule Karlsruhe. Desde então, fiz parte da diretoria e, em 2017, fui eleito
presidente em Paris.
Este ano, a reunião está programada para acontecer em Budapeste. Na ver-
dade, já deveria ter acontecido lá em março, mas teve que ser adiada para o outono
por causa da crise da pandemia da Covid-19. Talvez tenhamos que adiar nova-
mente até a primavera de 2022. A própria diretoria é, grosso modo, responsável
pela coordenação geral dos membros da associação. Mas o trabalho de organização
decisivo é feito pelos responsáveis no local, que também são sempre membros da
associação.
A resposta à pergunta por que Herbart pode ser corretamente chamado de
um clássico da pedagogia, já indiquei em um primeiro passo com minha referência
ao julgamento de Natorp. Herbart está entre os que cumprem os critérios de ter
concebido uma pedagogia não afirmativa, conseguindo fazer isso muito sistemati-
camente. Também é bem-sucedido na integração da ética e da psicologia, que, ao
contrário de muitas outras psicologias, já foi desenvolvida em um contexto educa-
cional e, portanto, pode justificadamente ser chamada de psicologia educacional.
O campo geral de sua pedagogia do tato pedagógico à instrução educativa e sua
formação de caráter orientado à moral são tão versáteis que respondem à maioria
dos problemas e questões pedagógicas atuais e que podem ser extraídos de sua pe-
dagogia. Uma característica especial de sua pedagogia, para a qual existem poucos
pontos de referência na pedagogia cotidiana de hoje, desde a família até a escola, é
seu conceito de instrução educativa (Erziehenden Unterrichts).
No pensamento empírico-analítico dominante da pesquisa em ciências edu-
cacionais, descobriu-se que os professores nas escolas de hoje têm cinco tarefas:
planejar, ensinar, aconselhar, educar, inovar. Não há muito a ser dito contra estas
tarefas, exceto que sua inter-relação parece ser completamente obscura, parecendo
refletir também que não há coerência para os praticantes. Isto é bem diferente em
Herbart. Ele só queria reconhecer o ensino que, ao mesmo tempo, educa, ou seja,
de um ensino que é formativo. Isto é concebível quando os processos educacionais
podem ser relacionados à instrução, porque a instrução não apenas forma um cír-
culo de pensamento, mas, dentro da estrutura deste círculo de pensamento, que
segue um interesse multifacetado, forma o poder crítico de julgamento, ao qual a
educação pode então responder em forma e conteúdo. No pensamento analítico, ao
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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invés disso, tais processos são isolados uns dos outros, não têm nada a ver uns com
os outros, e cada ato pedagógico isolado começa assim aproximadamente do zero,
porque não pode pressupor nada.
Este pensamento analítico, no qual as partes individuais são isoladas e enu-
meradas, mas não podem mais ser reunidas, também inclui a lógica da competên-
cia. Qualquer classicista poderia ter entendido o conceito de competência com base
em sua competência linguística com conhecimentos latinos. Mas ninguém usou
este termo. A principal razão pode ser que a lógica da competência isola tudo que
se supõe ser capaz de fazer e saber – e o faz com a intenção de poder avaliar os
detalhes isolados. As competências são formuladas de tal forma que são, acima
de tudo, verificáveis. Isto não corresponde às prioridades do conceito de educação.
A educação quer, acima de tudo, levar a pessoa educadora a si mesma e além de
si mesma. A educação serve ao ser humano, as competências devem atender aos
padrões estabelecidos.
Eu já mencionei que a Sociedade Internacional Herbart se reúne a cada dois
anos em um local diferente para um simpósio. Há um tema de conferência. O tema
da conferência para Budapeste, por exemplo, é “Personalidade – Caráter – Mo-
ralidade”. A partir deste tema, a conferência e o foco são estruturados, a partir
daqui são convidados os palestrantes, os quais são, muitas vezes, mas nem sempre,
seus próprios membros. A principal publicação da Sociedade Internacional Herbart
neste contexto é o volume bienal do simpósio, que em princípio documenta as con-
tribuições dos conferencistas.4
REP: Você é professor na universidade há muito tempo, trabalhando com a
disciplina Pedagogia Geral. O que significa ser um professor em uma universidade
alemã? O que significa Pedagogia Geral e por que tal disciplina é parte especial da
tradição pedagógica alemã? Por que a pedagogia e a teoria educacional precisam
de Pedagogia Geral? Como professor no ensino superior, como você julga a sempre
nova geração de estudantes? Em que estão interessados os estudantes alemães e o
que eles pensam dos clássicos e das humanidades?
Prof. Dr. Rainer Bolle: A questão sobre o que significa ser professor em uma
universidade alemã não é tão fácil de responder quanto é colocada. No mínimo,
ser professor em uma universidade alemã é uma profissão bastante livre, embora
exatamente o que distinguiu esta profissão por muitos anos pareça estar gradual-
mente evaporando, especialmente nos últimos anos e décadas. A burocratização
1184 ESPAÇO PEDAGÓGICO
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está avançando e a liberdade de ensino e pesquisa está sendo cada vez mais res-
trita ou regulamentada. Entre todos os funcionários da universidade, entretanto,
o professor ainda é o mais livre, pois ainda lhe é permitido tomar muitas decisões
em relação ao seu trabalho, decisões que de outra forma são ainda mais fortemente
regulamentadas.
O que na verdade é a Pedagogia Geral também deve ser tratado com um pouco
mais de detalhe. A Pedagogia Geral difere das pedagogias especiais, que se referem
a uma área específica, antes de tudo, porque a Pedagogia Geral é geral em um
triplo sentido: 1) refere-se a todas as pessoas; 2) refere-se a todas as áreas da vida
para todas as pessoas; 3) neste sentido, combina a educação humana geral com o
objetivo comum a todos: autonomia com independência e responsabilidade social.
Neste sentido, a Pedagogia Geral também é pedagogia no verdadeiro sentido
da palavra, porque leva em conta, simultaneamente, o que é realmente a pedago-
gia. Com todas as pedagogias parciais, não seria apenas necessário ver se elas são
coerentes em si mesmas e, sobretudo, se têm alguma coisa a ver com a pedagogia
no sentido descrito acima.
Aqueles que se distanciam do contexto geral através do pensamento analítico,
como as pedagogias da área às vezes fazem, naturalmente também têm maiores
dificuldades não apenas em encontrar seu próprio centro, mas também em iden-
tificar seu próprio pensamento e agir como pedagogos em primeiro lugar, pois isto
é fundamentalmente caracterizado como pensamento e atuação holística. Como já
mostrei por meio de várias sinalizações, o pensamento pedagógico geral está em
muitos aspectos em desacordo com a corrente dominante das prioridades atuais,
também em termos pedagógicos.
Portanto, não é evidente que os estudantes desenvolvam uma grande afeição
pela pedagogia clássica. Uma vez que dei uma palestra introdutória aos professo-
res do primeiro ano do último semestre de inverno pela primeira vez desde 2011,
tenho pelo menos a este respeito uma melhor visão do último semestre dos estudos,
que confrontei com vários textos de pedagogia clássica. A resposta foi bastante sa-
tisfatória, embora provavelmente sejam os melhores estudantes os que são os mais
beneficiados por este confronto.
REP: Você também examina intensivamente os problemas escolares e a for-
mação como investigação e tarefas da vida. Como é a escola alemã após a Decla-
ração de Bolonha? O que você considera serem os problemas centrais nas escolas
de hoje? Quais são as principais dificuldades para o trabalho dos professores na
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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escola? O que você considera crucial para os professores formadores? Ainda existe
uma orientação crítica em relação aos professores formadores a ser mantida? O que
poderia ser criticado neste contexto?
Prof. Dr. Rainer Bolle: Escrevi alguns ensaios críticos sobre a falta de apoio
aos processos formativos nas escolas. O conteúdo do argumento, ou seja, o conteúdo
das aulas tem um papel muito subordinado. Eles são tratados a curto prazo, são
importantes até o próximo teste, até o próximo exame, e depois são esquecidos
novamente. Entretanto, este fenômeno tem sido denunciado desde o século XVII,
na medida em que, do ponto de vista da teoria educacional, a escola pública não
cumpre a tarefa que lhe é realmente destinada. Este não é, portanto, um problema
específico da Declaração de Bolonha. É também o resultado de uma contradição na
sociedade burguesa, que a escola não só tem uma tarefa educacional, mas também
é um instrumento de qualificação social. E esta última tarefa é mais bem com-
preendida pelos estudantes, pelos pais e, em última instância, infelizmente, pelos
pais do que a atividade educacional. Para a maioria, a escola e o ensino são um
meio para atingir um fim. O final são os certificados, o diploma escolar, que é um
pré-requisito para certas posições sociais.
Tenho certeza de que a maioria dos professores percebe que algo está errado
com a relação entre a escola e os alunos, mas não acho que eles a analisem da
maneira como se poderia analisar. Porque assim eles poderiam notar ainda melhor
que responsabilidade eles mesmos têm no problema e, talvez, soubessem em que
estrutura e em que medida eles mesmos poderiam contribuir para resolver o pro-
blema, pelo menos mitigar o efeito.
REP: É preocupante como o conservadorismo autoritário e o obscurantismo
estão gradualmente ganhando espaço. Como você entende esses fenômenos e por
que isso está acontecendo? Qual seria o papel da educação pública e da pedagogia
contra o autoritarismo crescente?
Prof. Dr. Rainer Bolle: Tais fenômenos, estruturas autoritárias e efeitos an-
tiesclarecedores não chegaram ao meu conhecimento tão claramente quanto desde o
início da crise da Covid-19, apesar das minhas críticas expressas às escolas até 2019.
Com algumas pinceladas de caneta, as portarias estão sendo usadas aqui para
anular não apenas as leis, mas os direitos fundamentais. A imprensa, o rádio e a
televisão parecem ter conhecido quase apenas um tema durante anos e anos, vo-
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zes críticas são imediatamente abafadas e interditadas com um rigor não visto há
muito tempo. A responsabilidade pessoal, que até há pouco tempo era considerada
garantida, pelo menos em termos de saúde, não parece mais desempenhar um
papel importante. O fato de que no passado as pessoas, com sua responsabilidade
pessoal, às vezes tomavam decisões erradas que eram aceitas sem mais sanções,
agora não é mais tolerado.
Portanto, tudo isso mudou muito significativamente em um curto espaço de
tempo. E a questão da exatidão com que isso acontece, a facilidade com que gran-
des massas de pessoas se deixam levar à sua própria ruína por um medo sistema-
ticamente fomentado – isso é bastante assustador! E, infelizmente, pelo menos
para mim, não é reconhecível o que poderia parar este processo a partir de dentro
de forma tão simples. Os vírus já existem desde antes do início da humanidade. A
humanidade sempre viveu com isso e sobreviveu. Os seres humanos sempre mor-
reram, mas alguns sempre morreram como resultado de uma infecção pelo vírus.
Os vírus sempre sofreram mutações...
A falta de história com a qual as pessoas se percebem e o mundo é certamente
favorecida pelo progresso científico e técnico, que distrai a história, obscurece as
conexões históricas ou as faz esquecer, mas é também um problema educacional.
E também o problema raramente se mostra tão claramente como na crise da Co-
vid-19, cujo fim – assim parece no momento – provavelmente só pode ser esperado
com o fim das mutações do vírus.
REP: O diagnóstico dos tempos: qual é sua avaliação dos principais proble-
mas mundiais atuais, tais como Covid-19, pobreza, miséria, fome, insalubridade,
injustiça social, etc.? Qual é o papel da democracia e da educação pública neste
contexto?
Prof. Dr. Rainer Bolle: O que também é surpreendente em toda a crise da
Covid-19 é que quase todos os Estados do mundo não pararam ou interromperam
o efeito dominó da crise, como se apertasse um botão, e que os mecanismos que
fomentaram e continuam a fomentar isto ainda não foram desvendados. Desta
forma, a maior parte das pessoas, ou seja, a maioria da humanidade ainda está
convencida, ou pelo menos parece estar, de que o preço horrendo pago até agora
pela pandemia nos planos social, econômico, psicológico, dos direitos de liberdade,
etc., ainda evitou um mal muito maior e deve, portanto, continuar até que os vírus
sejam finalmente “derrotados”.
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As escolas estão sendo intimidadas de semana a semana com novas medidas
e regulamentos. Todos concordam de alguma forma com isso. Aqueles que desis-
tem colhem sanções, mas estas só são aceitas porque não são as sanções de um
sistema injusto, mas porque são as sanções de um sistema legal que tem o bem
da humanidade em mente para sua justificação e, portanto, é claro, deve proteger
a humanidade de seus ameaçadores. A humanidade pode estar sendo salva neste
momento, mas as pessoas estão presas.
REP: Em conclusão, o que você sugeriria para professores e alunos (professo-
res e alunos também) em termos de educação humana em relação a este diagnós-
tico de época?
Prof. Dr. Rainer Bolle: A estas últimas palavras, um pouco amargas, ca-
beria também uma amarga conclusão. E isso certamente se encaixa na crise da
Covid-19, mas não me convence em absoluto. Talvez haja vida após a crise, e talvez
tudo o que foi possível e aceito por tantas pessoas com alguns golpes de mão, em
sua óbvia desvantagem, acabe levando à reflexão e à autorreflexão crítica. Isto
poderia então ser também um começo da educação, cuja necessidade a crise revelou
mais uma vez...
Notas
1 Os interessados que desejarem maiores informações sobre a referida sociedade poderão fazê-lo por meio do
seguinte site: https://www.herbart-gesellschaft.de
2 Enquanto Klaus Prange organizou o volume Herbart und Dewey (2014), Rotraud Coriand e Alexandra
Schotte (2014) organizaram o volume “Einheimische Begriff” und Disziplinentwicklung, ambos inseridos
na Coleção Herbartstudien, publicada pela Edition Paideia.
3 Cabe referenciar aqui os vários volumes da Coleção Herbartstudien, da qual também fazem parte os dois
volumes citados na nota anterior.
4 Os volumes são publicados na Coleção Herbartstudien, conforme já referido em nota anterior.
Referências
BOLLE, Reiner. Jean-Jacques Rousseau: Das Prinzip der Vervollkommnung des Menschen
durch Erziehung und die Frage nach dem Zusammenhang von Freiheit, Glück und Identität. 3.
ed. Münster: Waxmann Verlag Gmbh, 2002.
BOLLE, Reiner; WEIGAND, Gabriele (Hrgs.). Johann Friedrich Herbart 1806-2006: 200 Jah-
ren Allgemeiner Pädagogik Wirkungsgeschitliche Impulse. Münster; New York; München; Ber-
lin: Waxmann, 2007.
1188 ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Cláudio Almir Dalbosco, Odair Neitzel
v. 28, n. 3, Passo Fundo, p. 1174-1188, set./dez. 2021 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
CORIAND, Rotraud; SCHOTTE, Alexandra (Hrsg.). “Eiheimische Begriffe” und Disziplinent-
wicklung. Jena: Garamond Verlag – Edition Paideia, 2014.
INTERNATIONALE HERBART GESSELLSCHAFT. Disponível em: https://www.herbart-ge-
sellschaft.de/. Acesso em: 24 ago. 2021.
PRANGE, Klaus (Hg.). Herbart und Dewey. Pädagogische Paradigmen im Vergleich. Jena: Ga-
ramond Verlag – Edition Paideia, 2014.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os
homens. Tradução de Lourdes Santos Machado. 4. ed. São Paulo: Nova Cultura, 1988. v. 2. (Os
Pensadores).
ESPAÇO
PEDAGÓGICO
RESENHA
1190 ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Francisco Carlos dos Santos Filho, Luciana Oltramari Cezar
v. 28, n. 3, Passo Fundo, p. 1190-1196, set./dez. 2021 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Um lósofo que caminha: sobre educação e formação humana
na sociedade atual”1
Francisco Carlos dos Santos Filho*
Luciana Oltramari Cezar**
Ao fechar a última página desta “simples coletânea”, como o autor costuma
chamá-la, é possível sentir o frescor do campo. É como se, terminada a leitura e
fechado livro, de pronto se abrisse uma fresca manhã de setembro, dessas que a nós
se oferecem pouco antes da primavera, aqui, no interior do Rio Grande do Sul. Um
ar fino dá início ao dia ensolarado e luminoso, a lagoa ainda recoberta por um véu
de bruma branca a guardar-lhe o pudor da nudez que se aproxima. Ali, por entre
ipês e pinheiros, o filósofo caminha. Ousamos dizer que a diferença no modo de
exercer a prática intelectual de Cláudio se dá justamente pelo fato de que ele é um
filósofo que caminha, que se desloca e que se move pelos caminhos que lhe tocam
andar. Enquanto caminha, transmuta cada passo de sua meditação – quase pode-
mos vê-lo andar ao longe – em uma compreensão profunda do mundo e do lugar
que nele tem a educação, entendimento que, generosamente, compartilha com seus
alunos e colegas. A prova está nesta “simples coletânea”, cujos textos transportam
em seu interior um mundo de complexidades que fazem desse livro uma caminhada
em meio à natureza, recheada de reflexões rigorosamente fundamentadas. Aqui,
a filosofia da educação contemporânea mostra sua musculatura e sua delicadeza,
materializando o que nos disse certa vez, numa conversa pessoal, Silvia Bleichmar,
de que o primeiro mundo está, mesmo, no interior do terceiro.
* Psicólogo, psicanalista, doutor em Psicologia Clínica com concentração em método psicanalítico e formações da cultura
pela PUC-SP. Professor titular da Universidade de Passo Fundo, atuando na clínica psicanalítica e no ensino da psicaná-
lise, principalmente nos campos psicanálise, cultura, formação acadêmica em psicologia, psicanálise, clínica, método
psicanalítico e intervenções psicanalíticas. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7868-2003. E-mail: santos@upf.br
** Mestre e doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Passo Fundo.
Diretora do Projeto Associação Cientíca de Psicanálise, exercendo também as funções de Coordenação de semi-
nários para psicanalistas em formação, Coordenação do Núcleo de Infância e Educação, supervisão sistemática dos
alunos que estão em formação em psicanálise e participação na Comissão de Ensino. Atua principalmente na área da
clínica infantil e pesquisa nos temas: infância, intervenção precoce com bebês e crianças pequenas, educação infan-
til, psicologia do desenvolvimento, constituição psíquica, processos de subjetivação na primeira infância, detecção
precoce, estimulação e intervenção precoce, intervenção pais-bebês. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5170-0830.
E-mail: lucianacezar@me.com
Recebido em: 10/10/2021– Aprovado em: 13/12/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i3.13043
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Um lósofo que caminha: sobre “educação e formação humana na sociedade atual”
v. 28, n. 3, Passo Fundo, p. 1190-1196, maio/ago. 2021 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Resenhar esse livro é dar um passeio que nos leva desde um diagnóstico de
época da educação, do papel dos clássicos e sua atualização na formação humana
até propostas para os problemas da educação na sociedade atual. Desde a intro-
dução, o livro de Cláudio Dalbosco (2021) é um convite a trilhar o caminho que,
partindo das inquietações educacionais atuais, chega à tradição intelectual dos
clássicos. Já na apresentação, que oferece um panorama dos nove capítulos do li-
vro, o autor revela sua intenção de desenvolver uma posição crítica fundamentada
que amplia no leitor a visão de mundo e o papel da educação. É uma leitura de
caráter formativo, que trabalha na fronteira entre a filosofia e a educação através
do diálogo crítico com os clássicos e enfatiza o papel das humanidades na formação
ética do sujeito.
Os nove textos que compõem a obra, originários de conferências proferidas
pelo autor em distintas universidades brasileiras, estão articulados em torno dos
eixos comuns da educação, da condição e da formação humana em sociedades plu-
rais e complexas. O fio que perpassa os capítulos não desvia do caminho da comple-
xidade nem se perde em reducionismo ou relativismo para pensar o problema da
ética, da formação humana e da educação. O livro oferece recursos robustos para
fazer frente aos problemas educacionais atuais, como a mercantilização utilitarista
da educação, o produtivismo acadêmico, o imediatismo da pressão por resultados
e os desafios da educação no mundo digital. A obra torna acessível ao público em
geral saberes por vezes restritos a discussões acadêmicas e serve como material de
reflexão crítica para professores de escolas públicas ou privadas. É um ato de resis-
tência e um convite para estudar os clássicos e combater a racionalidade simplista
e imediatista que ameaça a formação das novas gerações.
O primeiro capítulo, “Educação em sociedades tradicionais e sociedades com-
plexas: o problema da crise de autoridade”, trata “da relação entre educação e
sociedade tomando como referência dois diferentes contextos sociais, um fechado
e outro complexo, profundamente diferentes entre si” (DALBOSCO, 2021, p. 32).
Apresenta, por um lado, através de um relato autobiográfico, um diagnóstico so-
cial, cultural e econômico de um momento histórico da Região Sul do Brasil, de
colonização italiana, que oferece um modelo de sociedade conservadora fechada e
uma educação tradicional. Essa educação tradicional e conservadora apoia-se na
“relação autoritária e hierárquica entre professor e aluno, entre adulto e criança,
entre educador e educando” (DALBOSCO, 2021, p. 40); por outro lado, apresenta
uma sociedade complexa e a necessidade de uma pedagogia nova, de olhar amplia-
do para a diversidade. Os efeitos da passagem de um contexto a outro apontam
1192 ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Francisco Carlos dos Santos Filho, Luciana Oltramari Cezar
v. 28, n. 3, Passo Fundo, p. 1190-1196, set./dez. 2021 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
para um aprofundamento da crise de autoridade e revelam que, muitas vezes, “a
educação escolar se enreda em um conflito entre formas tradicionais e atuais de
vida, e isso repercute diretamente na maneira como a autoridade é compreendida
e exercida no interior da escola” (DALBOSCO, 2021, p. 44).
A complexidade social desencadeada pela tecnologia digital acentua a crise
das formas tradicionais de autoridade. Na companhia de Rousseau, Kant e Piaget,
Cláudio enfrenta criticamente o sentido autoritário de educação, propondo um diá-
logo vitalizado com a tradição que enfatiza o que ela tem a dizer às gerações mais
novas, evitando o relativismo radical que esfacela a noção de autoridade. O que
é recusado é o conservadorismo hierárquico e autoritário; os pensadores citados,
mesmo criticando a educação tradicional, não perderam de vista a força formativa
vinda da tradição.
Em íntima relação com o primeiro capítulo e seu diagnóstico de época, está
o segundo, “Espiritualidade e formas urbanas de vida”, que trata do cultivo da
espiritualidade no modo de vida de uma sociedade urbanizada, complexa, já trans-
formada e arrancada de seu estado de organização agrário, simples e tradicional.
Como sobrevive o cultivo da interioridade num meio social urbano contrastante
com as formas tradicionais de vida? O autor nos faz ver o risco da progressiva
perda da interioridade ou o declínio da subjetividade. São profundas as transfor-
mações que a subjetividade humana sofre pela ação de novas formas de subjetiva-
ção desse moderno modo urbano de viver. Num mundo de saberes fragmentados,
não mais centralizados na figura absoluta da autoridade encarnada e claramente
definida, o lugar que detém o saber torna-se cada vez mais vago e representado por
um intangível Grande Outro digital e anônimo, cujo semblante desfigura-se numa
forma abstrata, inacessível e não humana. Assim, indaga Dalbosco (2021, p. 69):
Se vivemos num mundo que se caracteriza pela passagem de formas metafísico-teológicas
de pensamento e de vida para formas pós-metafísicas que desembocam, em grande medida,
na cultura egoísta e na tirania da aparência e da intimidade, que tipo de espiritualidade
ainda é possível sustentar?
Se esse deslocamento na direção de um pensamento falibilista conduz a for-
mas de vida mais democráticas do que aquelas da autoridade inquestionável, qual
é o papel da educação nesse novo contexto? A proposição que nos é feita é de que a
espiritualidade preserva seu sentido clássico de questionamento sobre as formas e
viver, convertendo-se em uma prática que tem repercussões concretas na vida do
sujeito e de seu meio e que deve ser concebida de forma ampliada, como cuidado de
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Um lósofo que caminha: sobre “educação e formação humana na sociedade atual”
v. 28, n. 3, Passo Fundo, p. 1190-1196, maio/ago. 2021 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
si, busca da verdade, reconhecimento da verdade de si, escuta do outro e solidarie-
dade, sendo o grupo o espaço genuíno para sua manifestação.
O capítulo três problematiza o tema da tecnologia na sociedade atual, com o
título “Formação humana e sociedade digital”, e “busca compreender as novidades
da sociedade digital e o conjunto de dispositivos tecnológicos a ela vinculado sem,
por outro lado, abrir mão de alguns dos principais ideais de formação humana
formulados no século XVIII” (DALBOSCO, 2021, p. 75). Nessa parte, são debatidas
questões atuais de alta relevância, como o desafio de saber se os ideais iluministas
podem oferecer reflexões indispensáveis para os educadores enfrentarem o desafio
de uma formação humana ética, sólida e ampla, no contexto das inovações tecno-
lógicas que dominam a sociedade e a educação das novas gerações na sociedade
digital. Nesse sentido, um dos desafios atuais é a possibilidade do diálogo vivo
entre gerações, exigindo um esforço das gerações mais velhas para compreender e
se abrir ao mundo das crianças e dos adolescentes nascidos na sociedade digital.
Ressalta-se a importância de se desfazer tanto dos preconceitos com a tecnologia
como das idealizações, citando estudiosos de ambas as vertentes e guiando o leitor
em uma postura crítica, ampla e profunda sobre a questão da formação humana na
sociedade digital, sem ingenuidades ou oportunismos.
“Educação e formas de conhecimento: do inatismo antigo (Platão) e da edu-
cação natural moderna (Rousseau)” é o quarto capítulo, que inicia pautando a
relação entre educação e formas de conhecimento. Dentre a variedade de teorias
educacionais que descrevem como ocorre o processo de ensino e aprendizagem, Dal-
bosco apresenta duas que são contrastantes e que exibem modos antagônicos de
pensar questões fundamentais da relação pedagógica: o modelo inatista, tomando
como referência o modelo clássico esboçado por Platão, e o modelo socionaturalista,
que tem no pensador suíço-francês Jean-Jacques Rousseau sua maior influência.
O inatismo defende que o “sujeito já traz pronto em sua bagagem hereditária a
estrutura conceitual necessária para compreender o mundo” (DALBOSCO, 2021,
p. 93). Nesse modelo, as ideias nascem com o sujeito e são anteriores à experiên-
cia, competindo ao mestre tão somente fazer o conhecimento brotar de dentro do
educando. Essa concepção contrasta com o segundo modelo – que representa, na
modernidade, a ruptura com a tradição inatista e lhe dirige as principais críticas
– e propõe uma educação diferente, apoiada na experiência dos sentidos através
de uma educação natural e social, conforme demonstra Rousseau em seus livros
do Emílio. Ao ir às origens dos conceitos filosófico-pedagógicos de cada uma dessas
grandes teorias educacionais, as reflexões propostas criam condições para que o
1194 ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Francisco Carlos dos Santos Filho, Luciana Oltramari Cezar
v. 28, n. 3, Passo Fundo, p. 1190-1196, set./dez. 2021 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
leitor compreenda como as formas de pensamento influenciam decisivamente a
maneira como se concebe a realidade da relação de ensino e aprendizagem.
O quinto capítulo traz como ideia central o problema do individualismo exa-
cerbado como obstáculo para a construção de um relacionamento cooperativo e
solidário no processo formativo humano. Nesse contexto, que é o modo de vida
contemporâneo, o autor propõe o grupo como recurso formativo indispensável para
o desenvolvimento do convívio recíproco, uma das maneiras de fazer frente à de-
composição das relações horizontais, igualitárias e fraternas, provocada pelo neo-
liberalismo e, sobretudo, pela vertente que funde liberalismo, conservadorismo e
autoritarismo, que grassa atualmente em nosso país. Esse confuso e perigoso amál-
gama impulsiona a mercantilização de toda a vida, bens culturais, saúde, educação
e política, transformando-nos a todos em consumidores. Com isso, o cenário público
se reduz, confundindo-se com os interesses privados, e a política se espetaculariza,
fenômenos que exigem um antídoto eficaz, que nos é apresentado na forma da
reflexão filosófica e na justificação do grupo como recurso filosófico-formativo. O
capítulo apresenta o diagnóstico e o antídoto, apontando as ferramentas concei-
tuais para levar a cabo o trabalho formativo. Além do grupo e, mais amiúde, dentro
dele, o reconhecimento é uma ferramenta conceitual potente. O reconhecimento é
um bem de valor estruturante que o sujeito que busca desde os primeiros tempos
de vida, daí o lugar destacado do grupo no processo formativo. Para que possa de-
senvolver-se autonomamente, o sujeito necessita do reconhecimento de seus pares,
que o fazem sentir-se aceito. Assim, embora constitua um aparente paradoxo, exis-
te uma imbricação entre o processo de autonomia e a socialização, entre a vontade
própria e a força constitutiva e continente do vínculo social de interdependência
oferecido pelo grupo.
O capítulo seis apresenta um título pleno de força simbólica: “A patologia da
repugnância e o respeito pela diferença”. Os autores que servem de apoio à Cláudio
são Martha Nussbaum, Rousseau e Kant. A condição humana se constitui sobre
uma tensão permanente, na qual a fragilidade primordial pode seguir duas dire-
ções, uma construtiva e outra destrutiva. Aqui entram em jogo, conforme Rousseau,
o amor de si – de cunho instrumental-narcisista – e amor próprio, cujo fundamento,
ainda que narcísico, é de um cunho amoroso, que passa pelo reconhecimento do
outro. Nessa tensão, desenvolve-se o ser humano em sua estruturação pessoal e
em sua inserção no laço social. É nessa possibilidade de conversão do amor de
si em amor próprio, via reconhecimento do semelhante, que o papel da educação
ganha relevo. Conforme Dalbosco (2021, p. 132), “o recurso a esses autores permite
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Um lósofo que caminha: sobre “educação e formação humana na sociedade atual”
v. 28, n. 3, Passo Fundo, p. 1190-1196, maio/ago. 2021 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
concluir que o ser humano está muito longe de ser uma essência pronta que se
desabrocha a partir do movimento que vai do interior para o exterior”. Nada mais
copernicano e psicanalítico. É o que também ocorre com Nussbaum, que se baseia
fortemente em Winnicott para tratar do decisivo modo como os pais lidam com o
desenvolvimento precoce dos filhos e também a forma como facilitam sua inserção
no estranho que são o mundo e a realidade. Esse estranho pode ser abordado com
mais ou menos fomento da ojeriza. Assim, “quando dinamizada socialmente” – e
nisso a conformação familiar e posição subjetiva, ideológica e política dos pais con-
ta muito – “a repugnância pode tornar-se uma crença irracional, constituindo-se
em mecanismo eficiente de discriminação social” (DALBOSCO, 2021, p. 133).
Nos dois capítulos finais, a arguição se volta para o ensino superior, apon-
tando os “desafios postos à educação superior no contexto das sociedades plurais,
marcadas pelo mercado globalizado e por formas pós-metafísicas de pensamento”
(DALBOSCO, 2021, p. 157), e a tendência da formação de profissionais voltada
apenas para atender às demandas do mercado global e do lucro maximizado, com o
risco de formar sujeitos cada vez mais individualistas. No capítulo oito, “Educação
superior e os desafios da formação para a cidadania democrática”, Dalbosco de-
fende a ideia de que uma formação cultural ampla (Bildung) e uma universidade
pública e democrática é que poderão dar condições aos sujeitos de dialogarem com
a diversidade cultural e terem respeito pelo outro, consolidando formas democrá-
ticas de vida e de organização social e política. Para tanto, é necessário incluir,
no olhar dirigido para a universidade, o viés da filosofia e dos fundamentos da
educação, apesar da crise que enfrenta o ensino das humanidades no mundo acadê-
mico, com reiteradas tentativas de apagamento. Não resta dúvida de que é preciso
desenvolver humanitariamente os alunos e que isso se dá por “dimensões mais
amplas da cultura, como os aspectos artísticos, literários, pedagógicos e filosóficos”
(DALBOSCO, 2021, p. 163), num compromisso irrenunciável com a formação das
novas gerações, que deve vir atrelado ao conhecimento técnico especializado que a
universidade oferece para o exercício profissional. A ciência somente emancipa e
humaniza quando associada a processos dialógicos, solidários e cooperativos, tare-
fa primordial da educação.
No último capítulo, o autor se ocupa da realidade da universidade e recupera
a necessidade do ensino das humanidades para que o acadêmico tenha acesso à
formação alargada que lhe permite – além do desenvolvimento das competências
que preparam para exercício profissional – a aquisição do pensamento crítico. Dal-
bosco sustenta que, para enfrentar a pecha comum de que a defesa do ensino das
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Francisco Carlos dos Santos Filho, Luciana Oltramari Cezar
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humanidades é uma prática corporativista, a preocupação deve recair sobre a qua-
lificação do professor que vai assumir essa tarefa e para as condições de trabalho
que ele vai ter para desenvolver seu ensino. Para tanto, é necessário um amplo co-
nhecimento de sua disciplina; uma postura indagativa apoiada na sólida formação
como pesquisador; o reconhecimento da falibilidade de todo o saber, traduzida na
posição de abertura ao diálogo, que permite reconhecer as necessidades da outra
área e de seus estudantes; uma continuidade temporal desse contato, possibilitan-
do estreitar laços e aprofundar as questões oriundas desse diálogo.
Existe uma tendência mundial de encurtamento e ataque ao ensino das hu-
manidades na universidade. Isso ocorre em países díspares, como Brasil, Estados
Unidos e Alemanha, por exemplo. Em todos, o mesmo diagnóstico: a universidade
deixa-se curvar às exigências do mercado global, acumulando riscos para a forma-
ção do pensamento crítico e para a possibilidade de pensar por si. Segundo Dalbos-
co (2021, p. 184):
As humanidades devem assegurar, em primeiro lugar, a enorme diferença que existe entre
conhecimento e informação e, em segundo lugar, mostrar, formativamente, em que termos
o próprio conhecimento tem a ver, em seu sentido legítimo e originário, com o ato de dar
razões e de levar os envolvidos no processo formativo, tanto professor como aluno, a pensar
por conta própria.
Afinal, se o reducionismo na formação acadêmica representa o risco constante
do encolhimento das mentes, o encurtamento das humanidades significa o encur-
ralamento do sujeito.
Nota
1 Resenha da obra Educação e condição humana na sociedade atual: formação humana, formas de reconhe-
cimento e intersubjetividade de grupo, de Dalbosco (2021).
Referência
DALBOSCO, C. A. Educação e condição humana na sociedade atual: formação humana, formas
de reconhecimento e intersubjetividade de grupo. Curitiba: Appris, 2021.
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Manifesto em defesa do legado de Paulo Freire à educão no ano do centenário de seu nascimento
v. 28, n. 3, Passo Fundo, p. 1197-1199, set./dez. 2021 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Manifesto em defesa do legado de Paulo Freire à educação no ano
do centenário de seu nascimento1
Eldon Henrique Mühl*
O Programa de Pós-Graduação em Educação, o Nupefe, o Gepes, os grupos de
pesquisa vinculados ao Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEdu) da
Universidade de Passo Fundo (UPF) e a revista Espaço Pedagógico manifestam
seu reconhecimento ao legado à educação do educador Paulo Reglus Neves Frei-
re, por ocasião do centenário de seu nascimento.
Paulo Freire nasceu em 19 de setembro de 1921, em Recife, PE, e faleceu em
02 de maio de 1997, em São Paulo.
É considerado um dos principais educadores de toda a história da educação
mundial e o educador brasileiro de maior reconhecimento internacional do século
XX. Sua obra, conhecida em mais de cem países e traduzida para mais de vinte
línguas, foi construída com muito esforço em contextos com inúmeras adversidades
provenientes da pobreza, da exploração, da violência, do exílio, de culturas e popu-
lações devastadas por guerras e por diferentes formas de opressão, de colonialismo,
de racismo e de todas as formas de exploração capitalista.
Ao propor uma pedagogia libertadora, Freire manifesta sua confiança no ser
humano e acredita que todas as vidas merecem ser vividas com dignidade e liberda-
de. É um testemunho de fé na humanidade e de esperança no poder transformador
da educação. Para que isso ocorra, a educação tem um papel indispensável, embora
não exclusivo. Como ele mesmo declara, “se a educação sozinha não transforma a
sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”.
Freire foi declarado Patrono da Educação Brasileira em 2013, homenageado
com o título honoris causa por universidades de mais de 40 países, condecorado
pela Unesco pelo seu trabalho em prol da educação e em defesa da paz e dos direi-
tos humanos e por títulos de cidadão honorário em cidades de diferentes partes do
mundo.
* Cursou licenciatura em Filosoa na Universidade de Passo Fundo, mestrado e doutorado em Educação pela Univer-
sidade Estadual de Campinas. Professor e pesquisador na Faculdade de Educação e no Programa de Pós-graduação
em Educação (mestrado e doutorado) na Universidade de Passo Fundo.
Recebido em: 10/10/2021– Aprovado em: 13/12/2021
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v28i3.13716
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Eldon Henrique Mühl
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Após seu retorno do exílio, que se deu entre 1964 e 1979, participou intensa-
mente no debate sobre a educação brasileira, mas, ao contrário do que seus críticos
dizem, nunca conseguiu implementar nem servir de referência a um projeto de
educação nacional sustentado em suas ideias pedagógicas e políticas. Algumas ini-
ciativas pontuais foram ou estão sendo realizadas por algumas escolas e por alguns
municípios, mas nunca chegaram a extrapolar fronteiras locais.
Em alguns meios, Paulo Freire é responsabilizado pelas limitações que a
educação brasileira apresenta. No entanto, tratam-se de reações decorrentes de
preconceitos e distorções teóricas, sustentadas em visões elitistas sobre educação
e teorias educacionais e que expressam uma visão obscurantista daqueles que pre-
tendem desqualificar toda a manifestação que se apresenta como problematizado-
ra das concepções autoritárias que possuem. Atacam sua obra e questionam seus
títulos e o reconhecimento que teve em muitos países e instituições, alimentando
o ódio e o desprezo à sua luta por liberdade, democracia e justiça social. Podemos
imaginar, diante desse quadro, que, se vivo fosse, ele estaria sofrendo intensamen-
te diante da sofisticação dos modernos meios de opressão e com a crescente malda-
de presente na crítica dos opressores. Entretanto, não ficaria calado e se ocuparia
de mobilizar os oprimidos na luta contra os opressores, buscando pela educação o
fortalecimento da resistência e da luta pela emancipação. O que menos o ocuparia
seria, certamente, a defesa dos seus títulos e de suas comendas.
Uma das preocupações mais importantes da pedagogia de Freire é a formação
de professores e de educadores populares. Tal formação implica na capacidade de
voltar-se para a especificidade cultural de cada indivíduo, de cada grupo e de cada
povo. A compreensão da realidade vivenciada e do universo em que cada educando
se encontra é imprescindível para a formação de novos educadores. Os professores
não são meros técnicos e administradores de um sistema ou de um conjunto de sa-
beres, mas mediadores entre a cultura de cada povo e a cultura humana universal.
Tal mediação não pode ser a imposição de uma cultura sobre outra, a dominação
dos saberes de uns sobre os saberes de outros, mas uma síntese cultural. Todos são
produtores de saberes que precisam ser valorizados no diálogo com os saberes de
outros povos, de outras culturas, de outros indivíduos.
A escola que Freire propõe é a de ser um círculo de cultura, um círculo de
investigação e de formação de indivíduos, de grupos, do povo em luta pela emanci-
pação. É uma escola de práticas concretas sobre o mundo real em que os indivíduos
vivem. A escola deve ser um espaço e tempo de pensar coletivo, de fazer participa-
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Manifesto em defesa do legado de Paulo Freire à educação no ano do centenário de seu nascimento
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tivo, possibilitando o surgimento da responsabilidade comum e de práticas trans-
formadoras coletivas.
Paulo Freire não quer seguidores de sua pedagogia, mas inventores de novas
formas educativas que promovam a liberdade e a autonomia dos educandos. Como
ele mesmo afirma, “para seguir-me, o fundamental é não me seguir”. Ele não quer
que o repitam, mas que cada um aprenda a reinventar-se no confronto com as
situações opressoras que limitam o viver.
O pensamento de Paulo Freire e suas práticas, desenvolvidas em diferentes
contextos e com diferentes sujeitos, são estímulos a quem acredita que a escola e
a educação devem se constituir em práticas de emancipação e de libertação das vi-
sões opressoras e discriminadoras e que o saber de cada povo e de cada indivíduo é
ponto de partida do processo de conscientização e transformação da realidade, algo
que ele provou não só ser possível, mas necessário. Sua luta por uma educação hu-
manitária e sua defesa intransigente da escola pública de qualidade, da democra-
cia, da justiça social, dos direitos humanos e da dignidade de todo ser humano são
apelos que nos conclamam a continuar a sua pedagogia do oprimido, da esperança,
da autonomia. Diante de Freire, não é possível ficar indiferente. Como educadores,
podemos estar com Freire ou contra Freire, mas dificilmente poderemos estar sem
Freire.
Nossa homenagem a um educador que colocou a humanização e a libertação
como princípios fundamentais de sua pedagogia. Depois de Freire, a educação bra-
sileira e mundial assumiu uma nova perspectiva como luta pela libertação. Trata-
-se de uma pedagogia radical em todas as dimensões, uma pedagogia da descoloni-
zação das mentes, e sua prática é permanentemente revolucionária.
Nota
1 Este manifesto foi organizado pelo professor doutor Eldon Henrique Mühl, traduzindo o posicionamento
do PPGEdu-UPF, da revista Espaço Pedagógico, do Nupefe, do Grupo de Pesquisa Teoria e Prática Pedagó-
gica na Formação de Educadores, do Nupepp e do Gepes. O documento foi apresentado durante o encontro
virtual: “100 Anos de Paulo Freire: conversas sobre seu legado”, realizado em 1 de outubro de 2021, trans-
mitido pelo YouTube.