ESPAÇO
PEDAGÓGICO
ESPAÇO
PEDAGÓGICO
ISSN on-line 2238-0302
v. 29, n. 1, jan./abr. 2022
UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO
Bernadete Maria Dalmolin
Reitora
Edison Alencar Casagranda
Pró-Reitor Acadêmico
Antônio Thomé
Pró-Reitor de Planejamento e Desenvolvimento Institucional
INSTITUTO DE HUMANIDADES, CIÊNCIAS, EDUCAÇÃO
E CRIATIVIDADE
Luiz Marcelo Darroz
Diretor
MEMBROS NACIONAIS
Dr. Dermeval Saviani - Unicamp
Dr. Fernando Gonzalez ReyPUC-Campinas/UniCEUB/Iesb
Dr. Gaudêncio Frigotto - UFF
Dr. João Wanderley Geraldi - Unicamp
Dr. José Carlos Libâneo - Universidade Católica de Goiás
Dr. Lucídio Bianchetti - UFSC
Dr. Nicanor Palhares Sá - UFMT
Dr. Oswaldo Giacóia Júnior - Unicamp
Dr. Antônio Joaquim Severino - USP/Uninove
Dr. Nelson Pretto - UFBA
Dr. Pedro Ângelo Pagni - Unesp/Marília
Dr. Ângelo R. de Souza - UFPR
Dr. Bruno Pucci - Unimep/Piracicaba
MEMBROS INTERNACIONAIS
Dra. Rosa Maria Torres - Instituto Fronesis, Quito - Buenos Ai-
res/AR
Dr. Hans-Georg Flickinger - Universidade de Kassel/DE
Dr. Bernard Charlot - Universidade de Paris/FR
Dr. Heinz Eidam - Universidade Kassel/DE
Dra. Patricia B. Lerch - University of North Carolina/US
Dr. Aristeo Santos López - Universidad Autónoma del Estado de
México/MX
Dra. Isabel Sanches - Universidade Lusófona de Humanidades e
Tecnologias/PT
Dra. Nadja Maria Acioly - Régnier - IUFM/Université Claude Ber-
nard Lyon1/FR
Dra. Margarita Sgró - UNCPBA/AR
Dra. Norma González González - Universidad Autónoma del Es-
tado de México/MX
Dr. Cristian Perez Centeno - Universidad Nacional de Tres de Fe-
brero/AR
EDITOR-CHEFE
Dr. Telmo Marcon
ORGANIZADORES - v. 29, n. 1, jan./abr. 2022
Dra. Elisa Mainardi
Dr. Telmo Marcon
EDITORES ASSOCIADOS
Dr. Altair Alberto Fávero
Dr. Angelo Vitório Cenci
Dr. Cleci Werner da Rosa
Produção da capa
Agecom
UPF Editora
INDEXADORES:
DOAJ Directory of Open Acess Journals
Sumários.org Sumários de Revistas Brasileiras
Edubase SBUSistema de Bibliotecas da Unicamp
UrichsWeb Global Serials Directory
BASES DE DADOS:
Google Scholar
Ibict Instituto Brasileiro de Informação e Tecnologia
Portal de Periódicos da Capes/MEC
DIRETÓRIOS:
REBID - Red Iberoamericana de Innovación y Conocimiento Científico
Latindex - Sistema Regional de Información en Línea para
Revistas
Científicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal
Diadorim Diretório de políticas editoriais das revistas científicas
brasileiras
LivRe Revistas de livre acesso
A Revista Espaço Pedagógico é signatária do San Francisco Declara-
tion on Research Assessment (DORA)
EQUIPE DE APOIO TÉCNICO
Angélica Dalla Rizzarda
Chaiane Bukowski
Esther Almeida das Neves
Evânia Müller da Rosa
Flaiane Rodrigues Costa
Graziela Bergonsi Tussi
Larissa Morés Rigoni
Lisiane Ligia Mella
Luciana Maria Schmidt Rizzi
Manuela Zamprogna
Marcelo Ricardo Nolli
Marissandra Todero
Renata Maraschi
ESPAÇO
PEDAGÓGICO
Sumário
Editorial .................................................................................................................................... 7
Elisa Mainardi
Telmo Marcon
Dossiê
Deslizamentos nos modos de exclusão e a emergência do capacitismo ........................................ 15
Juliana Silveira Mörschbächer
Neusa Kern Hickel
Análisis de las políticas educativas desde la perspectiva de la inclusión en México, 1988-2021 ..... 43
Mónica del Carmen Reyes Verduzco
Karla Kae Kral
Diálogos entre inclusión educativa y educación en clave Derechos Humanos ............................. 70
Lorena Isabel Godoy Peña
Felip Gascón i Martín
Consuelo Dinamarca Noack
Inclusão no ensino superior: narrativas de estudantes com deficiência no contexto amazônico .... 85
Joab Grana Reis
Rosana Glat
Segregar as diferenças e agregar as semelhanças: o debate acerca da inclusão na qualificação da
aprendizagem e do convívio humano ...................................................................................... 110
Elisa Mainardi
Eldon Henrique Mühl
Escala infantil de atitudes sociais em relação à inclusão ............................................................ 132
Camila Mugnai Vieira
Sadao Omote
Luciana Ramos Baleotti
Maewa Martina Gomes da Silva e Souza
Política de identidade e de reconhecimento em Taylor e Honneth: fontes normativas no campo
educacional ........................................................................................................................... 149
Pedro Ângelo Pagni
Jonas Rangel Almeida
Fragmentos de uma narrativa em curso sobre o profissional de apoio pedagógico na educação
especial .................................................................................................................................. 177
Isabel Matos Nunes
Márcia Alessandra Souza Fernandes
Fluxo contínuo
Educação como fator de ressocialização de condenados: uma experiência no Método APAC ..... 197
Helenara Regina Sampaio Figueiredo
Gislaine de Oliveira Spínola
Diálogos entre educação não escolar e pedagogia: uma experiência de participação ................... 222
Simone Martiningui Onzi
Daianny Madalena Costa
A criança e a escola: da invisibilidade ao protagonismo ............................................................ 248
Hedi Maria Luft
Kátia Aparecida Dias Peroty
Educação e saúde: reflexões e possíveis olhares ao cuidado centrado no paciente em tempos de
pandemia .............................................................................................................................. 265
Nanci da Silva Teixeira Junqueira
Geraldo Antônio da Rosa
Terciane Ângela Luchese
A formação de professores no contexto da sociedade capitalista neoliberal brasileira: primeiras
(des)aproximações .................................................................................................................. 284
Andréia Aparecida Simão
Maria de Lourdes Pinto Almeida
Ocupações escolares em Francisco Beltrão-PR: contribuições para a formação dos jovens ......... 305
Franciele Maria David
Suely Aparecida Martins
Livros de ocorrências: características e contribuições para o desenvolvimento moral dos alunos . 331
Viviane Terezinha Koga
Ademir José Rosso
A organização de ensino em ciclo no município de Teixeira de Freitas ba .............................. 353
Maria Elizabete Souza Couto
Priscila Alves Pereira
Diálogo com educadores
Diálogo com a Dra. Tatiana Bolívar Lebedeff ......................................................................... 376
Rosimar Serena Siqueira Esquinsani
Resenha
Por uma ética da interdependência: reflexões sobre A força da não violência, de Judith Butler .... 385
Marcelo Ricardo Nolli
Mariana Motta Klein
Este artigo está licenciado com a licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
7
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 7-14, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
ESPAÇO
PEDAGÓGICO
Editorial
Elisa Mainardi
*
Telmo Marcon
**
Os debates e os embates sobre inclusão vêm ganhando, no Brasil, múltiplas di-
mensões e rumos. Há um debate sobre inclusão que é mais amplo do que a inclusão no
âmbito da educação especial. Mesmo ganhando configurações peculiares, o dossiê da
Revista Espaço Pedagógico insere-se nesse contexto amplo, mas tendo um conjunto de
artigos que focam a educação especial inclusiva.
Inclusão é um conceito polissêmico. Em si mesmo, não define nenhuma quali-
dade. É possível, por exemplo, a inclusão num grupo homofóbico e os que
compartilham de seus valores e pressupostos sentem-se confortáveis, mas, é possível,
também, uma inclusão cidadã. Podemos, aqui, pensar na inclusão por aquilo que ele
não pode produzir: exclusão. Em não podendo excluir, a inclusão tem de ser pensada
na perspectiva da qualidade de vida, do respeito à diversidade, da cidadania, da parti-
cipação democrática, da convivência com a diversidade e a integração.
Podemos problematizar a inclusão tomando como referência a obra: Reconhecer
para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural (2004), organizada por Boa-
ventura de Sousa Santos. Na apresentação dessa obra, Santos e João Ariscado Nunes
colocam em pauta o desafio de “ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e
da igualdade” (2004, p. 19-49). Não há como pautar a temática da inclusão sem uma
triangulação dialética entre esses três conceitos: reconhecimento, igualdade e diferença.
As perguntas que os autores propõem no início da introdução são extremamente pro-
vocadoras:
*
Licenciada em Pedagogia, Mestre em Educação e Doutora em Ensino de Ciências. Professora da Faculdade de Educação da
Universidade de Passo Fundo. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-3968-4839. E-mail: emainardi@upf.br.
**
Doutor em História Social pela PUC-SP, com pós-doutorado em Educação Intercultural pela UFSC. Professor e pesquisador
na Faculdade de Educação e no Programa de Pós-Graduação em Educação (mestrado e doutorado) da UPF.
Orcid: http://orcid.org/0000-0002-9110-3210. E-mail: telmomarcon@gmail.com.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
8
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 7-14, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
como é possível, ao mesmo tempo, exigir que seja reconhecida a diferença, tal como ela se cons-
tituiu através da história, e exigir que os ‘outros’ nos olhem como iguais e nos reconheçam os
mesmos direitos de que são titulares? Como compatibilizar a reivindicação de uma diferença
enquanto coletivo e, ao mesmo tempo, combater as relações de desigualdade e de opressão que
se constituíram acompanhando essa diferença? Como compatibilizar os direitos coletivos e os
direitos individuais? Como reinventar as cidadanias que sejam capazes, ao mesmo tempo, de ser
cosmopolitas e de ser locais? (2004, p. 19)
A primeira questão desafia a pensar a tensão entre a diferença, aqui compreendida
como tradução de diferentes modos de ser, e a igualdade entendida como valor univer-
sal de reconhecimento do outro. Parece uma questão de simples lógica, mas não é. Há
expressões que são próprias de sujeitos e grupos sociais, que, sem o reconhecimento de
suas peculiaridades, não há como pensar a inclusão. Por outro lado, há direitos huma-
nos fundamentais que transversalizam toda e qualquer relação humano-social e que
precisam de reconhecimento enquanto direito universal. Em outras palavras, coexistem
diferentes formas de traduzir as diferentes características humano-culturais existentes,
mas existe um ponto de convergência: os direitos humanos. O que isso significa?
As históricas lutas pelo reconhecimento das diferenças não podem ser silenciadas.
As formas clássicas de segregação dos portadores de certas doenças ou ‘deficiências’ até
os mais sofisticados processos de exclusão contemporâneos precisam ser duramente cri-
ticados. Por outro lado, as experiências de movimentos e organizações em defesa da
diversidade física, de gênero, de cor, de religião, de gerações etc., necessitam ganhar
mais visibilidade. Não por acaso, a Constituição de 1988 é taxativa: nenhuma forma
de preconceito e exclusão com base nessas diferentes dimensões é aceita, ou seja, tem
de ser coibida. O inciso IV, artigo primeiro da Constituição de 1988 é claro na defesa
da igualdade entre todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quais-
quer outras formas de discriminação”, ou seja, são inúmeros os direitos e deveres
individuais e coletivos que precisam ser respeitados. Neste sentido, temos um arca-
bouço jurídico que dá guarida para a proteção dos direitos humanos em suas múltiplas
dimensões. Como isso foi e vem sendo discutido em diferentes espaços sociais?
Certamente, a compreensão do que é inclusão em suas múltiplas manifestações,
assim como as formas de concretizá-la, ainda não é consensual. Existem muitas lutas
em defesa da inclusão levadas adiante por famílias, pessoas, grupos. Muitas lutas e ações
de combate às discriminações em vista da inclusão somente são asseguradas por decisões
judiciais. Isso significa que persistem práticas de exclusão e de negação de direitos para
determinados grupos sociais que ainda precisam ser asseguradas por decisões judiciais.
A segunda questão posta por Santos e Nunes trata sobre como compatibilizar as
lutas ancoradas nas diferenças e no enfrentamento das relações opressivas e excludentes
ESPAÇO PEDAGÓGICO
9
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 7-14, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
que se constituíram e legitimam-se com base na diferença. Impressionam os relatos de
práticas sociais vivenciadas em diferentes espaços, muito presentes nas escolas, de ex-
clusões motivadas por diferenças de altura, peso, cor, cultura, gênero, religião, as
múltiplas formas de ‘deficiências’, posicionamentos políticos etc. Neste sentido, a ex-
clusão precisa ser pensada em suas múltiplas formas, como é reproduzida e
materializada, assim como a necessidade de avançar na construção de políticas socioe-
ducativas inclusivas.
O desafio está em superar a terceira questão posta por Santos e Nunes, que trata
sobre como compatibilizar os direitos coletivos e os individuais, ou seja, como reinven-
tar cidadanias que deem conta dos valores universais e das particularidades locais. É
muito difícil pensar numa formulação teórica que consiga dar conta do reconheci-
mento, da igualdade e das diferenças. Ao longo da história, foram sendo forjadas
formulações que acentuaram ora um, ora outro, desses elementos. Santos e Nunes con-
seguem uma elaboração que dá conta de uma forma ampla, dialética e complexa dessa
relação, sem descuidar de nenhum dos elementos. A síntese que propõem é a seguinte:
“as pessoas e os grupos sociais têm o direito a ser iguais quando a diferença os inferio-
riza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza” (2004, p. 42).
Dessa formulação, decorre um conjunto de implicações que contribuem para
pensar o tema do dossiê: a educação especial inclusiva. O princípio da igualdade de
direitos tem de nortear toda prática socioeducativa inclusiva, ou seja, é preciso assegurar
as condições para que uma inclusão cidadã ocorra. Por outro lado, é necessário o reco-
nhecimento de que as pessoas, em geral, possuem características muito diferentes. Sem
esse reconhecimento, a inclusão não ocorre. Evidentemente, quando se trata da inclu-
são de pessoas com necessidades especiais, os desafios aumentam. As políticas
educativas desde a década de 1990, assim como a produção relativa a esses sujeitos e
aos processos de inclusão, avançaram substancialmente. No entanto, persistem desafios
elementares: a constituição de equipes profissionais qualificadas para acompanhar e dar
suporte aos processos educativos, especialmente os escolares; as condições físicas de es-
colas e dos espaços públicos adequados para uma mobilidade cidadã e o
reconhecimento social da importância da inclusão para os sujeitos com necessidades
especiais. Os avanços conquistados em relação à inclusão, entretanto, estão sendo ques-
tionados e confrontados por posições extremamente reacionárias que configuram
retrocessos claros. A fala do ex-ministro da Educação, Milton Ribeiro, sobre os ‘atra-
palhos’ que alunos com necessidades especiais estariam provocando em salas de aula
nas redes de ensino evidencia que a inclusão continua desafiando políticas, gestores e
instituições educativas.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
10
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 7-14, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Contribuem no aprofundamento dessa temática vários pesquisadores com textos
que compõem o dossiê. O primeiro deles de autoria de Juliana Silveira Mörschbächer
e Neusa Hickel, Deslizamentos nos modos de exclusão e a emergência do capacitismo, dis-
cute a construção das categorias de anormalidade/normalidade a partir das quais são
constituídas e legitimadas práticas segregacionistas. As autoras propõem um diálogo
entre Michel Foucault e Machado de Assis, no conto O alienista, e analisam como os
conceitos anormalidade/normalidade imbricam-se com a história da loucura e da edu-
cação especial. Analisam como as práticas classificatórias são compreendidas como um
modo de assinalar quem pode ou não circular socialmente. Nesse contexto, analisam o
‘capacitismo’ como preconceito contra as pessoas com deficiência, sendo produzido a
partir da comparação com os corpos considerados capazes de atender às demandas do
modo de produção capitalista. As autoras concluem, baseadas em Foucault, que é ne-
cessário criar brechas nos discursos dominantes para que a produção de diferença possa
emergir.
O texto Análisis de las políticas educativas desde la perspectiva de la inclusión en
México (1988-2021), de Mónica del Carmen Reyes Verduzco e Karla Kae Kral, põe
em pauta a evolução das políticas públicas de inclusão educativa no México, por meio
do estudo dos planos de governo e dos programas setoriais de educação, considerando
seus contextos, impactos e consequências para a gestão educativa, para o trabalho e a
consolidação da justiça social, tendo por referência os direitos humanos. Os dados re-
velam que, embora o México tenha um marco jurídico democrático, não há muita
clareza sobre como incorporar as consultas populares às políticas públicas e aos planos
de desenvolvimento e programas setoriais de educação. Há uma tensão entre a influên-
cia de organismos internacionais nas políticas com uma racionalidade econômica
neoliberal e a perspectiva dos direitos humanos. As autoras concluem que, mesmo com
os limites existentes, algum progresso na inclusão social com a incorporação da equi-
dade, da interculturalidade e das questões de gênero.
Lorena Isabel Godoy Peña, Felip Gascón i Martín e Consuelo Dinamarca Noack
contribuem com o artigo Diálogos entre inclusión educativa y educación en clave Derechos
Humanos. Nele, problematizam a categoria de inclusão a partir do debate teórico e da
pragmática das políticas educacionais, no que diz respeito à tensão ontológica e binária
exclusão/inclusão, ancorada no projeto da modernidade ocidental. Propõem uma aber-
tura para a complexidade dos significados em disputa em torno da Educação em
Direitos Humanos (EDH), considerando as contribuições das Epistemologias do Sul
e, especialmente, dos intelectuais latino-americanos Carlos Skliar e Ana María Rodino.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
11
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 7-14, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Partem da perspectiva de uma igualdade colonizada e sua consequente ordem de regu-
lação Estado-mercado, para pensar numa perspectiva de sociedade alicerçada num
horizonte ético, estético e político, que reconheça o pluriverso das diferenças e a possi-
bilidade de convivência das comunidades com base no reconhecimento,
corresponsabilidade, hospitalidade, alteridade e reciprocidade.
O artigo Inclusão no ensino superior: narrativas de estudantes com deficiência no
contexto amazônico, de autoria de Joab Grana Reis e Rosana Glat, aprofunda, com base
em narrativas de estudantes com deficiência, os desafios e as barreiras na inclusão no
ensino superior, tendo em vista a fragilidade da implementação de políticas públicas
que contemplem o ingresso, a permanência, a aprendizagem e o sucesso acadêmico. É
uma pesquisa qualitativa, ancorada na metodologia de História de Vida, e envolveu
estudantes com deficiência de uma universidade pública atuante em diferentes muni-
cípios no estado do Amazonas. As narrativas dos estudantes revelam as barreiras
enfrentadas durante todo o processo de escolarização e a necessidade de transformações
na cultura organizacional das instituições educacionais para possibilitar uma efetiva in-
clusão de alunos deficientes.
Elisa Mainardi e Eldon Henrique Mühl contribuem com o artigo Segregar as
diferenças e agregar as semelhanças: o debate acerca da inclusão na qualificação da
aprendizagem e do convívio humano. Analisam o tema da inclusão de pessoas com
deficiência na rede regular de ensino, em confronto com a tendência que defende a
manutenção de instituições próprias para o atendimento do deficiente e a sua educação.
Evidenciam, ademais, que a inclusão tem sido objeto de debates e lutas no decorrer da
história e apresenta-se como um desafio na formação de uma sociedade mais justa,
igualitária e democrática. Reconhecem, também, as conquistas dos deficientes, especi-
almente no final do século XX e início do XXI, mas alertam para proposições que
excluem e discriminam como é o caso do Decreto nº 10.502/2020, assinado pelo pre-
sidente Bolsonaro.
O artigo Fontes normativas da inclusão: política de identidade e de reconhecimento
em Taylor e Honneth, de Pedro Ângelo Pagni e Jonas Rangel Almeida, aborda as pres-
suposições filosóficas de caráter normativo em estudos de Charles Taylor e Axel
Honneth, especialmente os conceitos de identidade, política e gramática do reconheci-
mento. A partir daí, refletem sobre os fundamentos da inclusão social, particularmente,
no âmbito escolar e nas políticas educacionais. Concluem que tanto Taylor quanto
Honneth destacam a necessidade de um horizonte comum que valorize a intersubjeti-
vidade e o reconhecimento da identidade de cada um.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
12
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 7-14, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
O artigo de Isabel Matos Nunes e Márcia Alessandra Souza Fernandes, Fragmen-
tos de uma narrativa em curso sobre o profissional de apoio pedagógico na educação especial,
analisa a estrutura do “serviço de apoio pedagógico ao estudante público-alvo da edu-
cação especial, no que tange à regulamentação do cargo e da função desse profissional
que atua na sala de aula comum, com o professor regente”. Fazem esse estudo no mu-
nicípio de São Mateus, Espírito Santo, com destaque para a nomenclatura, a criação
do cargo e a especificação da função desse profissional no âmbito do serviço público.
Concluem que os governos, ao deixarem de instituir políticas de Estado, além de nor-
malizarem o desvio de função e impossibilitar um vínculo permanente do profissional
com o fazer pedagógico, ferem o direito do estudante e, no caso específico, da Educação
Especial.
O artigo de Camila Mugnai Vieira, Sadao Omote, Luciana Ramos Baleotti e
Maewa Martina Gomes da Silva e Souza, Escala infantil de atitudes sociais em relação à
inclusão, é resultante da aplicação de um teste com 1063 estudantes do Ensino Funda-
mental, Ciclos I e II, em quatro regiões brasileiras, sendo 500 do sexo masculino e 563
do sexo feminino. O trabalho desenvolvido resultou na construção de um instrumento
válido e confiável para medir as atitudes sociais de estudantes do Ensino Fundamental
em relação à inclusão.
Na sequência, seguem os textos de fluxo contínuo. O primeiro deles: A educação
como fator de ressocialização de condenados: uma experiência no Método APAC, de Hele-
nara Regina Sampaio Figueiredo Gislaine de Oliveira Spínola, que apresenta uma
experiência de ressocialização de apenados, destacando a importância do engajamento
do professor na reinserção social.
Segue o artigo de Simone Martiningui Onzi e Daianny Madalena: Diálogos entre
educação não escolar e pedagogia: uma experiência de participação. Nele, são apresentados
os resultados do Projeto Recriar, indicando que é possível pensar, de forma coletiva,
práticas pedagógicas significativas de formação, configurando objetivos, intencionali-
dades e modos de ação que promovam a formação integral do ser humano, principal
finalidade da educação não formal.
O artigo de Hedi Maria Luft Kátia Aparecida Dias Peroty: A criança e a escola:
da invisibilidade ao protagonismo, analisa as práticas que aferem invisibilidade ou o pro-
tagonismo da criança na escola. A conclusão aponta que a escola, para ser protagonista,
precisa oferecer uma educação de qualidade, centrada no sujeito e na participação de
todos.
O artigo: Educação e saúde: reflexões e possíveis olhares ao cuidado centrado no pa-
ciente em tempos de pandemia, de Nanci da Silva Teixeira Junqueira, Geraldo Antônio
ESPAÇO PEDAGÓGICO
13
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 7-14, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
da Rosa e Terciane Ângela Luchese, desenvolve uma reflexão sobre a importância da
formação sobre biopolítica, autonomia, saúde e espiritualidade no atendimento à sa-
úde. Concluem ser necessário qualificar os processos de formação permanente dos
profissionais da saúde como uma prática regular que permita pensar no cuidado cen-
trado no paciente.
Na sequência, temos o artigo de Andréia Aparecida Simão e Maria de Lourdes
Pinto Almeida: A formação de professores no contexto da sociedade capitalista neoliberal
brasileira. As autoras discutem a formação do professor no contexto neoliberal, desta-
cando as inúmeras implicações que o processo atual apresenta relativamente aos limites
e às possibilidades de uma formação integral e de qualidade.
O artigo de Franciele Maria David Suely Aparecida Martins: As ocupações escola-
res no município de Francisco Beltrão-PR: contribuições para a formação dos jovens analisa
as ocupações dos alunos secundaristas no Paraná, em 2016, especialmente no municí-
pio de Francisco Beltrão. Além de historicizar o movimento, destacam o seu caráter
formativo. Na conclusão, ressaltam a capacidade de auto-organização dos educandos,
a criação de mecanismos de participação mais horizontais, o tensionamento sobre o
modelo escolar capitalista e as influências sobre a reorganização do movimento estu-
dantil no município.
Viviane Terezinha Koga contribui com o artigo: Livros de Ocorrências: Caracte-
rísticas e Contribuições para o Desenvolvimento Moral dos Alunos. Nele, são analisados os
registros de quatro escolas estaduais de uma cidade do Paraná. Os resultados indicam
que os registros possuem um conteúdo moral relacionado à indisciplina, ao desinteresse
e ao desrespeito. A pesquisa conclui que os livros de ocorrências explicitam conflitos
escolares normativos e morais, dissociados do desenvolvimento de práticas educativas
promotoras da construção de valores e de uma moralidade autônoma.
Por fim, temos o artigo de Maria Elizabete Souza Couto e Priscila Alves Pereira:
A organização de ensino em ciclo no município de Teixeira de Freitas BA. Nele, as au-
toras analisam a organização de ensino em regime de ciclos no município de Teixeira
de Freitas e concluem que o ciclo de aprendizagem é a forma predominante de organi-
zação do ensino na rede pesquisada, tendo, como finalidade, garantir o fluxo escolar,
minimizar os índices de reprovação e promover a criação de vagas para as matrículas na
escola. As autoras consideram importante tais finalidades, mas ressaltam a falta de uma
referência sobre a valorização da infância e uma aprendizagem autônoma para uma
formação cidadã.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
14
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 7-14, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
A sessão diálogo com educadores conta com as contribuições da professora Tatiana
Lebedeff, professora na Universidade Federal de Pelotas, conhecedora dos complexos
desafios envolvendo a educação especial e a inclusão.
A revista Espaço Pedagógico soma-se a tantas pessoas, grupos de pesquisa, pro-
fessores, escolas, gestores públicos que lutam para tornar a inclusão, em suas múltiplas
dimensões, realidade. Para tanto, colocamos à disposição do público as contribuições
de vários pesquisadores do Brasil e de outros países.
Referência
SANTOS, Boaventura de Sousa; NUNES, João Ariscado. Introdução: para ampliar o
cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade. In: SANTOS, Boaventura de
Sousa (Org.). Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural.
Porto: Edições Afrontamento, 2004. p. 19-49.
Este artigo está licenciado com a licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
15
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 15-42, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Deslizamentos nos modos de excluo e a emergência do
capacitismo
Slippages in modes of exclusion and the emergence of capacitism
El deslizamiento en los modos de exclusión y la emergencia del
capacitismo
Juliana Silveira Mörschbächer
*
Neusa Kern Hickel
**
Resumo
Este ensaio discute a construção das categorias de anormalidade/normalidade a partir das quais se
constituem e se validam práticas segregacionistas. Utilizamos para tal análise o referencial teórico de
Michel Foucault em diálogo com o conto O alienista, de Machado de Assis. Tais conceitos se
imbricam com a história da loucura e da educação especial. As práticas classificatórias são
compreendidas como um modo de assinalar quem pode ou não circular socialmente. Nesse contexto,
evidencia-se o capacitismo como preconceito contra as pessoas com deficiência, sendo produzido a
partir da comparação com os corpos considerados capazes de atender aos atuais modos de produção
capitalista. Essa construção social da incapacidade é tomada como verdade e se presentifica no
contexto escolar através da exclusão de alunos com deficiência, encaminhados para espaços
segregados. Michel Foucault aponta para as estruturas sociais que se reiteram por deslizamento nos
modos e nas formas, sendo necessário que se criem brechas nesses discursos para que a produção de
diferença possa emergir.
Palavras-chave: capacitismo; segregação; produção de verdade.
Recebido em: 16/04/2022 Aprovado em: 07/06/2022
https://doi.org/10.5335/rep.v29i1.13442
ISSN on-line: 2238-0302
*
Mestra em Educação (UFRGS); pedagoga e educadora inclusiva (PUCRS); especialista em Psicopedagogia (UniRitter). E-
mail: hickeln@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-1100-0623.
**
Doutora em Psicologia Social e Institucional (UFRGS); psicóloga (PUCRS); psicopedagoga (EPSIBA). E-mail:
jsm.julianasilveira@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-9138-6847.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Juliana Silveira Mörschbächer, Neusa Kern Hickel
16
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 15-42, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Abstract
This essay discusses the construction of the abnormality/normality categories from which
segregationist practices are constituted and validated. For this analysis, we used Michel Foucault's
theoretical framework in dialogue with the short story O alienista by Machado de Assis. Such
concepts are intertwined with the history of madness and special education. Classification practices
are understood as a way of indicating who can or cannot circulate socially. In this context, ableism
is evidenced as a prejudice against people with disabilities, being produced from the comparison with
bodies considered capable of meeting the current modes of capitalist production. This social
construction of disability is taken for granted, and is present in the school context through the
exclusion of students with disabilities, sent to segregated spaces. Michel Foucault points to the social
structures that are reiterated by slipping in modes and forms, making it necessary to create gaps in
these discourses, so that the production of difference can emerge.
Keywords: ableism; secretion; real production.
Resumen
Este ensayo discute la construcción de las categorías de anormalidad/normalidad a partir de las cuales
se constituyen y validan las prácticas segregacionistas. Para este análisis se utilizó el marco teórico de
Michel Foucault en diálogo con el cuento O alienista de Machado de Assis. Tales conceptos están
entrelazados con la historia de la locura y la educación especial. Las prácticas clasificatorias se entien-
den como una forma de indicar quién puede o no circular socialmente. En este contexto, el
capacitismo se evidencia como un prejuicio contra las personas con discapacidad, siendo producido
a partir de la comparación con cuerpos considerados capaces de atender los modos de producción
capitalista vigentes. Esta construcción social de la discapacidad se da por supuesta y está presente en
el contexto escolar a través de la exclusión de los alumnos con discapacidad, enviados a espacios
segregados. Michel Foucault apunta a las estructuras sociales que se reiteran al deslizarse en modos y
formas, siendo necesario crear brechas en estos discursos, para que surja la producción de la diferen-
cia.
Palabras clave: capacitismo; segregación; producción real.
A Casa Verde foi o nome dado ao asilo, por alusão à cor das janelas, que pela primeira
vez apareciam verdes em Itaguaí. Inaugurou-se com imensa pompa; de todas as vilas
e povoações próximas, e até remotas, e da própria cidade do Rio de Janeiro, correu
gente para assistir às cerimônias, que duraram sete dias. Muitos dementes já estavam
recolhidos; e os parentes tiveram ocasião de ver o carinho paternal e a caridade cristã
com que eles iam ser tratados.
(ASSIS, 1994, p. 3)
Abertura
No campo da educação, as discussões sobre práticas segregacionistas estão pre-
sentes tanto nas questões que concernem aos processos inclusivos quanto nas variadas
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Deslizamentos nos modos de exclusão e a emergência do capacitismo
17
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 15-42, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
situações organizativas do sistema escolar. Correlatas a essas duas dimensões se apre-
sentam diferenças de todas as ordens, sobretudo aquelas reguladas pelos
comprometimentos orgânicos e/ou psíquicos, bem como as provocadas pelas circuns-
tâncias desfavoráveis em termos econômico-sociais. Ambas têm sido motivadoras de
argumentos segregacionistas e de lógicas lineares.
Veicula-se certo domínio de pensamentos e práticas em que estudantes são inse-
ridos em uma conjuntura organizativa preestabelecida, de pouca flexibilidade, cabendo
a eles apresentar as competências e habilidades compatíveis às expectativas escolares.
Geralmente, essas práticas pedagógicas são balizadas por uma lógica de pensamento
gerida pelas semelhanças daquilo que é conhecido: “encaixar, classificar o que quer que
seja em termos de algo conhecido, [...] operar pela lógica das classes, pela lógica dos
conceitos” (MACEDO, 2005, p. 11-12).
As ações permeadas pela classificação são predominantemente excludentes, pois,
enquanto se prestam às abstrações e às equivalências de objetos e objetivos, deixam sem
lugar as dimensões de singularidade dos entes participantes da escolaridade. Justamente
o que não tem lugar nessa operacionalidade é a diferença, por sua ligação ao imponde-
rável desconhecido. Segundo Lino de Macedo (2005, p. 13-14), a diferença
corresponderia a uma organização de coisas em “sua dimensão desconhecida”, podendo
resultar na constatação do vazio e do temor, visto que a “diferença é aquilo que não se
encaixa”. Continua o autor: “A diferença corresponde à ideia de que certas coisas só
podem ser conhecidas por fragmentos, por parte, pelas pistas, pelos vestígios [...] tudo
o que cai fora do controlável, do classificável são exemplos de coisas que fazem diferen-
ças” (MACEDO, 2005, p. 13-14).
O desafio de sistemas escolares mais abertos e, necessariamente, mais complexos
implica na compreensão da lógica da exclusão que atravessa os modos de pensar e agir
em todo o tecido social. A exclusão está ligada aos gestos que instalam uma cultura,
que para persistir se reproduzem indefinidamente, na qual as diferenças não podem
fazer parte.
A preocupação com os sistemas organizativos nem sempre considera a premência
da aprendizagem como função social da escola, embora se afirme isso nos discursos de
qualificação como mote para mudanças. É o caso, que aqui usamos, ocorrido na passa-
gem da seriação para ciclagem. Logo nos primeiros anos de sua implementação, pode-
se observar como ponto de estrangulamento do ensino ciclado a passagem entre um
ciclo e outro, quando os alunos, tal como no modelo de seriação, devem apresentar
resultados compatíveis com o conjunto de objetivos programados. Assim sendo, a ci-
clagem, ao mesmo tempo em que possibilita ganhos importantes, por meio da
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Juliana Silveira Mörschbächer, Neusa Kern Hickel
18
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 15-42, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
permanência dos alunos na escola, de uma maior e mais significativa ocupação com o
processo e da aparente ampliação da oportunidade de aprendizagem, apresenta-se sus-
cetível às mesmas armadilhas da seriação.
Como modelo organizativo do sistema escolar, a seriação mostrou-se como uma
grande produtora e reprodutora de mecanismos de exclusão, cuja visibilidade dá-se
através da repetência e da evasão. No entanto, repetência e evasão são dispositivos pelos
quais falam um padecimento muito mais intenso e duradouro a grande instituição
na escola
1
: não garantir acesso, ou seja, excluir o acesso à aprendizagem.
Essa escassez de acesso à aprendizagem aos ditos conhecimentos escolares está
aquém de qualquer modelo. Sob a seriação, costuma-se encobrir e escamotear as razões
da repetência e da evasão, com argumentos que atribuem ora ao aluno e à sua circuns-
tância de vida, ora ao professor e à sua circunstância profissional. Ao contrário, a
ciclagem põe a nu não a verdade, mas, sim, a localização desses mesmos nós.
A ciclagem, ao produzir a retenção dos alunos, expõe para os profissionais da
educação frágeis argumentos: ao final de um ciclo, lá estão os alunos que não corres-
pondem à sua promessa. Ali emergem os mesmos alunos que, pelo outro modelo,
seriam os trirrepetentes, com a ressalva de que, nessa mesmice, a evasão foi diminuída
ou anulada. Embora favorecedora, a elasticidade de tempo cronológico não garante a
aprendizagem. Então, assim como no modelo seriado, criaram-se variadas medidas
compensatórias, das quais a mais perversa foi a classe especial; tende-se, no modelo de
ciclos, à busca por recursos similares, embora mais atenuados e sob outras denomina-
ções.
Outro mecanismo de exclusão se caracteriza pelas turmas formadas por alunos
considerados com dificuldades de aprendizagem, pois a estrutura classificatória baseada
na capacidade individual permanece. Enquanto o Atendimento Educacional Especia-
lizado (AEE) se diferencia por oferecer suporte ao processo inclusivo, ainda é necessário
se atentar para as estruturas que ordenam a separação dos alunos que se “adaptam”
daqueles que “não se adaptam” à escola comum. Nesse caso, o professor do AEE ne-
cessita fazer um exercício para que o sistema não o vista de Simão Bacamartes, lhe
incumbindo de direcionar os escolhidos para as instituições especializadas.
A busca qualitativa, embora evidente, destaca um deslocamento dos mesmos me-
canismos e da possibilidade das mesmas práticas aniquiladoras da construção das
chamadas aprendizagens escolares. É esse efeito de exclusão, mostrado pelo não acesso
à aprendizagem e pelas medidas compensatórias, que paira como um sistema punitivo
próprio da escola. Do suplício da evasão e da repetência a um suplício mais atenuado
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Deslizamentos nos modos de exclusão e a emergência do capacitismo
19
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 15-42, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
que usa a elasticidade temporal se estabelece, é claro, estilos de punir, mantendo-se a
soberania da exclusão.
Referimo-nos à pergunta de Michel Foucault (1987, p. 14), em suas pesquisas
sobre o disciplinamento dos corpos:
Punições menos diretamente físicas, uma certa discrição na arte de fazer sofrer, um arranjo de
sofrimentos mais sutis, mais velados e despojados de ostentação, merecerá tudo isso acaso um
tratamento à parte, sendo apenas o efeito, sem dúvida, de novos arranjos com maior profundi-
dade?
Para o autor, esse movimento corresponde ao desaparecimento do corpo suplici-
ado. A questão que se colocaria de imediato é a do deslocamento propriamente dito,
ou seja, como os modos sociais de promover mudanças se instituem sem nada ou pouco
alterar
2
se sob a prática do ciclo não haver mais o espetáculo do corpo evadido, e sim
a sutilização de modalidade punitiva, em que espécie de redistribuição da luz se faz
agora a emergência do chamado capacitismo?
Cabe-nos ainda o dito de Michel Foucault (1987, p. 15) sobre a socialização da
infâmia:
No castigo-espetáculo, um horror confuso nascia do patíbulo; ele envolvia, ao mesmo tempo, o
carrasco e o condenado; e se, por um lado, sempre estava a ponto de transformar em piedade ou
em glória a vergonha infligida ao supliciado, por outro lado, ele fazia redundar geralmente em
infâmia a violência legal do executor.
Desse modo paradoxal, ao internalizar os processos de responsabilização social,
já que a exclusão não é um registro apenas encontrável na escola, essa socialização da
infâmia torna a recair sobre os mesmos personagens escolares. Nesse circuito, as medi-
das compensatórias passam a ser viabilizadas, assim como os discursos que possam
conter esses deslocamentos de práticas.
Percurso da Problematização
A exclusão, como acontecimento social, permanece. As relações de poder e de
saber em cada camada temporal, quando perspectivadas, desvelam as intensidades des-
ses movimentos. O poder só existe em ato, mesmo que, é claro, se inscreva num campo
de possibilidade esparso apoiado sobre estruturas permanentes. Assim, pode também
ser entendido como um modo de ação cujo exercício ocorre sobre as ações de outros,
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Juliana Silveira Mörschbächer, Neusa Kern Hickel
20
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 15-42, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
sempre em uma rede social, configurando-se como relacional e ligado a disposições,
estratégias, manobras e se efetuando no conjunto dessas posições.
O exercício de poder não é simplesmente uma relação entre parceiros individuais ou coletivos; é
um modo de ação de alguns sobre os outros. O que quer dizer que não há algo como o poder ou
do poder, [...] em estado difuso [...], concentrado ou distribuído (FOUCAULT, 1995, p. 242).
Vimos, sobretudo pelos estudos de Michel Foucault, que a exclusão é um modo,
tem funções e vai adotando formas para sustentar a hegemonia vinculada ao controle
social, estando, pois, sempre na dependência de suas características mais ou menos au-
toritárias. Nesse sentido, as mudanças, principalmente as que favorecem a inclusão,
raramente são radicais. Entendemos que as mudanças vão se fazendo por deslizamentos
através de tecnologias, estratégias e dispositivos os mais variados, uma vez que forças e
fluxos não são lineares. Ao contrário, por estes serem permeáveis, são constantemente
atravessados por contraposições, alterando modos de governabilidade e as relações so-
ciais.
Nossa busca se faz na direção de reunir argumentos conceituais que contribuam
para a compreensão de algumas mudanças, bem como oferecer certa visibilidade ao que
os deslizamentos vão tornando possível. Vimos, no breve recorrido sobre a mudança
de seriação para ciclagem, um caso na organização escolar, de que se trata de uma situ-
ação paradoxal uma mudança é anunciada, mas leva consigo um conjunto de
estratégias cuja novidade é duvidosa.
Desse modo, os argumentos aos quais recorremos se conduzem por um breve
estudo das concepções classificadoras, através de pesquisas e relatos que historiam as
práticas segregacionistas. Para tanto, percorremos produções conceituais e analisamos
aqueles que nos ajudam a pensar como isso se constituiu. Trata-se aqui de uma crítica
à ciência positivista, cujo teor avaliativo ordena, classifica, diagnostica e, muitas vezes,
medica a vida por não se enquadrar no que se nomeia como normal. A prática classifi-
cadora do humano, quando nomeada como propriedade de um campo científico, se
apresenta como a verdade comprovada e estabelecida, prática que se insere em um con-
texto histórico-social.
Apresentam-se à discussão certas construções dessas categorias de normalidade,
que nos propõem a pensar a implicação disso com a construção do capacitismo escolar
e sua reprodução na legislação
3
, no campo social e nas escolas de educação básica. O
capacitismo tem como premissa o preconceito contra pessoas com deficiência e é deri-
vado de uma construção social anterior que busca a padronização do corpo e dos afetos,
estando alinhado com as questões do capitalismo. Nesse sentido, pode-se compreender
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Deslizamentos nos modos de exclusão e a emergência do capacitismo
21
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 15-42, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
que a discriminação e o confinamento em espaços exclusivos são uma formação do
capitalismo aliada aos modos de controle pelo diagnóstico, em que a produção de di-
ferença recai sobre a improdutividade.
Recorremos, fortemente, a um diálogo com as obras de Michel Foucault sobre a
construção histórica e sempre provisória da verdade, assim como a seus estudos sobre
história da loucurae os anormais. Tais temas se refletem nos dias de hoje no modo
como nos relacionamos com a verdade, sempre contextual, nesse caso sobre a capaci-
dade de outrem, e a exigência de cuidados segregadores para aqueles considerados
incapazes’.
Lilia Lobo (2015), na perspectiva da arqueologia, recortando os conceitos de
anormalidade e normalidade em relação às práticas classificatórias, contribui com sua
pesquisa para tangenciarmos a criação de espaços de segregação no Brasil.
Seguimos com a análise sobre o estabelecimento do maior hospício brasileiro,
conhecido como Colônia, que foi uma tragédia planejada e consentida. Tornado um
campo de concentração, dito como um holocausto brasileiro, assassinou 70 mil pessoas
entre os anos 1903-1980 com o apoio de órgãos governamentais e da Igreja Católica,
conforme relatado pela jornalista e ensaísta Daniela Arbex (2013).
Na elaboração desse percurso conceitual, pontuamos como o contexto de segre-
gação, a ausência de políticas adequadas e o predomínio filantrópico, principalmente
no campo educacional, vigentes na primeira metade do século XX, no Brasil, tornaram
possível a criação da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE).
Embora não tenhamos trazido para a análise o importante movimento pela in-
clusão social e, neste, a inclusão escolar, ocorrida principalmente entre os anos de 1980-
2000, com sua consequente movimentação de alunos categorizados como deficientes
no ensino regular e os percalços dessas ações, compreendemos que esse tema oferece
condições de possibilidade para a ampliação da visibilidade e da discussão sobre o ca-
pacitismo. Dessa forma, contamos com a análise de autores que discutem o capacitismo
sob a ótica de que ele produz efeitos no campo escolar.
Ao compor este texto, partimos da literatura de Machado de Assis para discutir
os eventos históricos-sociais que nos levam enquanto sociedade a manter inúmeras “ca-
sas verdes” travestidas de espaços inclusivos. Trata-se de um ensaio tecido como uma
reflexão estética e científica. Buscamos um suporte em Theodor Adorno (2003), que
diz que o ensaio propõe uma crítica sobre o uso da técnica de modo exacerbado, tal
qual a ciência positivista considera indispensável. Essa forma de produzir pesquisa e de
construir conhecimento tem como intuito a separação do sujeito e do objeto. O autor
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Juliana Silveira Mörschbächer, Neusa Kern Hickel
22
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 15-42, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
pontua essa tentativa como absolutamente inviável, pois o modelo protocolar não im-
pede que a subjetividade esteja presente. O total controle é apenas ilusório, na medida
em que tal objetividade de conceitos se dá por arranjos subjetivos.
Nesse sentido, considerando a realidade sempre uma ficção, como espaços bor-
rados compondo verdades recortadas e contextuais, recorremos ao conto O alienista,
de Machado de Assis, aqui trazido como argumento potência da literatura que nos
ajuda a ler o campo social. O alienista vai tecendo a conversação entre os temas, de
modo que Simão Bacamartes, o médico, incorpora essa figura da ciência, que investiga
e categoriza conforme práticas científicas.
A verdade é contextual
De quando em quando tocava a matraca, reunia-se gente, e ele anunciava o que lhe
incumbiam um remédio para sezões, umas terras lavradias, um soneto, um
donativo eclesiástico, a melhor tesoura da vila, o mais belo discurso do ano, etc. O
sistema tinha inconvenientes para a paz pública; mas era conservado pela grande
energia de divulgação que possuía. Por exemplo, um dos vereadores aquele
justamente que mais se opusera à criação da Casa Verde desfrutava a reputação de
perfeito educador de cobras e macacos, e aliás nunca domesticara um só desses
bichos; mas tinha o cuidado de fazer trabalhar a matraca todos os meses. E dizem as
crônicas que algumas pessoas afirmavam ter visto cascavéis dançando no peito do
vereador; afirmação perfeitamente falsa, mas só devida à absoluta confiança no
sistema. Verdade, verdade, nem todas as instituições do antigo regímen mereciam o
desprezo do nosso século.
(ASSIS, 1994, p. 9)
O trecho acima de O alienista mostra como a verdade fora produzida nas comu-
nidades do entorno da vila. A disseminação das notícias, sejam elas verídicas ou não,
gerava formas de recortar a realidade. A partir do dito se estabelece uma verdade. Na
composição abaixo iniciamos com a afirmação de Michel Foucault (1979, p. 12) de
que “a verdade é deste mundo” e que “cada sociedade tem seu regime de verdade”, nos
inserindo na relação, por ele estabelecida, entre poder, saber e verdade. Não há uma
verdade isolada das dimensões de saber e de poder.
Na obra A verdade e as formas jurídicas, Michel Foucault (2005a) busca os modos
como as formas de enunciação se oferecem enquanto dispositivo analítico das mudan-
ças que possam ocorrer e em quais regimes de luz e sombra elas se efetivam. Em suma,
é o que se revela e o que permanece velado nos diversos acoplamentos e deslocamentos.
Tanto a produção de verdade como seus movimentos são analisados através de O Édipo,
de Sófocles, partindo das relações de poder aí narradas e em cujo desenrolar mostra-se
uma tipologia que emerge entre as instâncias de saber e poder, mais particularmente
entre poder político e conhecimento.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Deslizamentos nos modos de exclusão e a emergência do capacitismo
23
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 15-42, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
As características da história de Édipo, como narrada por Sófocles, formam o
cenário das práticas jurídicas da Grécia arcaica, cuja diversidade está no papel do tes-
temunhoe no conjunto formado por desafio, prova’ e juramento’. Todavia, diz
Michel Foucault (2005a, p. 34), as práticas se fundamentam em uma lei que se deno-
mina a lei das metades: “É por metades que se ajustam e se encaixam, que a descoberta
da verdade procede em Édipo”.
Observamos que ao consultar Apolo, deus de Delfos, Édipo recebe a resposta em
duas partes: “O país está atingido por uma conspurcação”. Quem e o que não estão
ditos, por isso é preciso uma segunda pergunta, que por sua vez também se desdobra
no momento da resposta: houve um assassinato, Laio foi assassinado. E quem matou
Laio? Ante a recusa de Apolo em responder, Édipo tem uma parte fechada, sendo pre-
ciso recorrer ao duplo de Apolo, o adivinho Tirésias. Este, como mortal e cego,
encontra-se mergulhado na escuridão em contraponto a Apolo, deus da luz. “Ele é a
metade de sombra da verdade divina, o duplo que o deus luz projeta em negro sobre a
superfície da terra”. Tirésias, então, dá a Édipo a outra metade: “Foste tu quem matou
Laio” (FOUCAULT, 2005a, p. 35).
Esse particular jogo das metades se segue com outros elementos que tomam parte
das formas jurídicas vigentes: a profecia’, a predição e a prescrição. Tirésias exige o
cumprimento das promessas de Édipo de banir o assassino, emitindo ditos proféticos
sobre a peste. Suas predições, próprias do oráculo, todavia, convocam a entrada de uma
dimensão do presente em confronto com o passado. É o lugar do testemunho, abrindo
outras partes Jocasta relata que Laio foi morto no “entroncamento de três caminhos”,
e essa fala ressoa na inquietude de Édipo: “matei no entroncamento de três caminhos”
(FOUCAULT, 2005a, p. 36).
A esse plano de verdade somam-se outras duplicações e conflitos na história de
Édipo, o que ocorre ao entrar em cena um escravo proveniente de Corinto, anunciando
a morte de seu pai. Édipo supõe a morte de Políbio, mas é contestado pelo escravo:
“Políbio não era teu pai”. É quando um relegado pastor de ovelhas toma seu lugar na
cena e revela como havia entregado “uma criança que vinha do palácio de Jocasta e que
me disseram que era seu filho” (FOUCAULT, 2005a, p. 37).
Todas essas duplicidades, as segmentações e os fragmentos que podem ou não se
acoplarem mais que de forma retórica guardam modos políticos e religiosos que
compunham uma técnica existente entre os gregos. Essa consiste em um instrumento
de poder, ou seja, permite a quem tem um segredo (que pode ser seu ou não) rompê-
lo em duas partes mediante um objeto, confiando uma das partes a outra pessoa, a qual,
dessa forma, será a testemunha da sua autenticidade. Esse procedimento sustenta a
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Juliana Silveira Mörschbächer, Neusa Kern Hickel
24
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 15-42, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
continuidade do poder exercido e “mantém sua unidade graças a este jogo de pequenos
fragmentos, separados uns dos outros de um mesmo conjunto, de um único objeto,
cuja configuração geral é a forma manifesta do poder” (FOUCAULT, 2005a, p. 36).
O que Michel Foucault (2005a) argumenta, utilizando-se da história de Édipo,
é o quanto a convicção da verdade única é ilusória. Estamos constantemente na imi-
nência de considerá-la pronta, completa, e eis que se apresenta um outro
desdobramento, cujos fragmentos recolocam os conflitos. Nós que vivenciamos aco-
plamentos e deslocamentos em relação aos espaços ditos especiais podemos nos
perguntar: é uma escola? Já foi uma escola? Continua sendo uma escola? É um lugar
especial que contém algo de irregular? Tem planos superpostos? O plano escola lugar
de ensino e aprendizagem; o plano especial lugar de guarda e assistência.
Em seu estudo, Michel Foucault (2005a) assinala a existência de um fluxo do
deslocamento em processo que atravessa pelo menos três níveis: o das divindades; o dos
soberanos, detentores do poder de Estado; e o do escravo e do pastor como testemunho
dos meramente humanos. São esses últimos que jogam suas metades pela lógica do
acontecimento descrito que, por um lado, não os envolve, mas, por outro, é a narrativa
de testemunha que garante a regularidade do acontecido. O movimento dos planos
desdobra-se no dito da profecia, reeditado pelos serviçais. Esses planos não são iguais,
não são os mesmos:
E assim como a peça passa dos deuses aos escravos, os mecanismos de enunciado da verdade ou
a forma na qual a verdade se enuncia mudam igualmente. Quando o deus e o adivinho falam, a
verdade se formula como prescrição e profecia, na forma de um olhar eterno e todo-poderoso
(FOUCAULT, 2005a, p. 38).
Dentre a diversidade de planos e temporalidades, podemos acompanhar o deslo-
camento da “enunciação da verdade de um discurso de tipo profético e prescritivo a
um outro discurso, de ordem retrospectiva, não mais da ordem da profecia, mas do
testemunho”, como explicita Michel Foucault (2005a, p. 39). São movimentos de vi-
sibilidade e de dizibilidade entre o profético e divino ao empírico e cotidiano dos
pastores. Entretanto, convém sublinhar, o poder que está em causa permite que Édipo
não se preocupe com culpa ou responsabilidade; ante todos os ditos e todos os fatos, o
que importa é sua soberania e realeza. Trata-se do poder político em soberania, que se
impõe à cidade, não com as leis comuns, mas com as próprias do soberano, isto é, a sua
vontade. “O tirano grego não era simplesmente o que tomava o poder” (FOUCAULT,
2005a, p. 46) e o mantinha, mas aquele que fazia valer um certo saber.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Deslizamentos nos modos de exclusão e a emergência do capacitismo
25
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 15-42, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Os diversos deslizamentos nos modos de segregar e excluir com as implicações
de campos da ciência, assim como as inúmeras formas de produzir os espaços especiais,
têm seu lugar de soberania. A forma asilar está marcada pelo saber sobre seres limitados
e anormais excepcionais que necessitam de um lugar para abrigá-los e atendê-los. De
certa forma, visam à salvação destes e de suas famílias, padecentes pelo pecado da gera-
ção. Ao mesmo tempo, trata-se de salvar a cidade: é necessário confiná-los, criar para
eles um manicômio. Dessa salvação impõe-se um saber especial, proveniente da questão
de como se cuida e o que se faz com esse deficiente: saber da experiência, saber solitário,
que encontra o acidente, o inesperado e, mesmo assim, continua difícil afirmá-lo. Re-
ferimo-nos àquelas experiências que em meio aos movimentos de deslizamento, nos
paradoxos entre a repetição e a diferença, são capazes de efetivamente produzir mudan-
ças.
4
Por outro lado, qual significação poderíamos atribuir aos enunciados sobre o ca-
pacitismo? Comecemos por mais uma contribuição de Foucault, agora sobre a
produção de verdade agregando o campo das ciências médicas. É na obra Os anormais
que Michel Foucault (2001) apresenta como se constitui o anormal a partir de três
figuras: o monstro humano, o indivíduo a ser corrigido e a criança masturbadora.
O monstro se define por aquele que irrompe com o processo natural da vida,
nasce à revelia das leis da natureza e encarna todas as irregularidades, discrepâncias e
pequenas anomalias: “Descobrir qual o fundo de monstruosidade que existe por trás
das pequenas anomalias, dos pequenos desvios, das pequenas irregularidades e o pro-
blema que vamos encontrar ao longo de todo o século XIX” (FOUCAULT, 2001, p.
71). As técnicas judiciárias e médicas se ocuparam dessa figura durante o século XIX.
Outra figura que aparece no contexto das anomalias é o indivíduo a ser corrigido e que
está em evidência na família e na relação com as instituições. Técnicas e recursos edu-
cativos e familiares são utilizados sem sucesso.
Esboça-se um eixo da corrigível incorrigibilidade em que vamos encontrar mais tarde, no século
XIX, o indivíduo anormal, precisamente. O eixo da corrigibilidade incorrigível vai servir de su-
porte a todas as instituições específicas para anormais que vão se desenvolver no século XIX
(FOUCAULT, 2001, p. 72).
O monstro e o incorrigível vão ser alvo na busca por correção, enquanto a criança
masturbadora aparece em um contexto ainda mais restrito, no quarto, na cama, dentro
de casa próximo aos cuidadores ou sob o domínio do médico como uma implicação
para o corpo. Michel Foucault (2001), ao mapear por onde se constituiu a figura do
anormal, situa que é descendente do monstro, do incorrigível e do masturbador, sendo
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Juliana Silveira Mörschbächer, Neusa Kern Hickel
26
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 15-42, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
que é nas práticas médicas e jurídicas que haverá um investimento para enquadrar e
corrigir.
Como se constitui a anormalidade?
Começou um estudo aturado e contínuo; analisava os hábitos de cada louco, as
horas de acesso, as aversões, as simpatias, as palavras, os gestos, as tendências;
inquiria da vida dos enfermos, profissão, costumes, circunstâncias da revelação
rbida, acidentes da infância e da mocidade, doenças de outra espécie,
antecedentes na família, uma devassa.
(ASSIS, 1994, p. 5)
Lilia Lobo (2015) apresenta uma pesquisa intitulada Os infames da história: po-
bres, escravos e deficientes no Brasil, cuja análise traz alguns aspectos das formações sociais
possibilitando um olhar desde a perspectiva de Foucault. A autora discute a deficiência
como ‘instituição’, ou seja, coleta e analisa elementos presentes nas formações sociais
que poderiam ter possibilitado a emergência de certo acontecimento, atendendo a ques-
tões como: o que tornou possível a categorização dos chamados infames? Como a
categoria de deficiência surgiu? Assim, a partir da análise dessa sua historicidade, con-
siderando desde seu surgimento, se expressam os sentidos de um acontecimento e seus
destinos.
Tomar a deficiência como acontecimento, do ponto de vista tanto coletivo quanto individual, é
assegurar-lhe a historicização. Isso não seria negar a existência de um tipo de efeito no corpo, as
marcas de um acontecimento [...] significa muito mais do que afirmar ou simplesmente observar
que seus conteúdos variam com o tempo e com as circunstâncias (LOBO, 2015, p. 16).
Segundo a genealogia formulada por Lilia Lobo (2015), observa-se que o surgi-
mento da criança anormal no Brasil, como ocupação discursiva e institucional, remonta
ao início do século XX. Antes desse período, as discriminações referentes à infância não
passavam das questões sobre o aleitamento e a higiene do recém-nascido. Nem mesmo
a Medicina debruçou-se sobre a especificidade de desvios à normalidade. Algumas clas-
sificações, como a idiotia e a surdo-mudez, eram atribuídas aos desregramentos morais
(onanismo, pederastia, alcoolismo, promiscuidade) e de casamentos consanguíneos.
A deficiência existe como tal porque um discurso a nomeou. Essa discussão re-
monta aos processos constitutivos do que se compreende como normalidade de
anormalidade. A autora aponta que a anormalidade foi condição de possibilidade para
a constituição da normalidade, na medida em que o normal se encaixava em todos os
perfis que não se enquadrassem nos diagnósticos da época. Ao longo do século XIX, a
avaliação foi ficando cada vez mais elaborada, e as condições físicas não eram mais o
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Deslizamentos nos modos de exclusão e a emergência do capacitismo
27
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 15-42, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
suficiente para dizer se a pessoa seria considerada normal. Essas características não visí-
veis no corpo constituíram o sujeito da psiquiatria, pois tais avaliações só poderiam ser
feitas por especialistas.
Interessa-nos analisar como aquilo tomado como normalidade se entrelaçou com
o que se nomeou como deficiência. Segundo Lilia Lobo (2015), a institucionalização
da idiotiapela psiquiatria, a alienaçãoe a doença mentalpassíveis de enclausura-
mento vão dando borda ao que no início do século XX nomeou-se de “criança
anormal”. As crianças foram separadas dos adultos, em alguns poucos asilos e hospícios
existentes, apenas entre o final do século XIX e o início do século XX. É nesse período
que se pode observar os momentos de instituição dos primeiros estabelecimentos espe-
cializados, como o Imperial Instituto dos Meninos Cegos e o Instituto dos Surdos-
mudos, bem como a emergência do Pavilhão-Escola Bourneville, seção destinada às
crianças internadas no Hospital Nacional de Alienados, importante espaço de instau-
ração da prática médico-pedagógica considerada um marco no processo de
psiquiatrização da infância.
Para efetuar essa análise histórica, a autora propõe reconstituir o processo das
institucionalizações médico-pedagógicas sobre a criança anormal, definindo-as como:
produção histórica de formas gerais que são as instituições uma vez constituídas, produzem e
reproduzem relações de força (dominações, lutas e resistências) com o que as engendraram, em
determinada época; se instrumentam nos estabelecimentos e nos dispositivos de poder que as
mantêm. Sob esse ponto de vista, o processo de institucionalização sustenta-se nas práticas mais
ou menos discursivas das separações, não apenas a exclusão do leproso ou o enclausuramento do
louco, por exemplo, mas também a validação que os saberes promovem através das classificações,
das especializações e suas verdades estabelecidas (LOBO, 2015, p. 37).
É sob a designação de idiota que surgiram as primeiras determinações de separar
partindo do biológico, o anormal do normal. Segue-se a essa categoria a classificação
debilidade mental e a de criança anormal à aprendizagem escolar, para ao mesmo
tempo relegar essas crianças à exclusão da rede de ensino; bem como a sua assimilação
à alienação e à doença mental, quer nos discursos, quer nas práticas de enclausura-
mento.
No Brasil, segundo a autora, é seguido o modelo francês de criação de espaços
junto aos hospícios destinados aos idiotas, sendo alguns deles voltados para a educabi-
lidade dessas crianças. Tratava-se de realizar uma higiene pedagógica’, psiquiatrizando
a infância e constituindo um saber médico-pedagógico extensivo às práticas de escola-
rização. Quanto à escolarização, observa-se que os critérios médicos vão se mesclando
aos critérios pedagógicos, pela via do submetimento, incidindo na escolarização. Os
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Juliana Silveira Mörschbächer, Neusa Kern Hickel
28
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 15-42, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
sintomas referidos pelas áreas médica e, posteriormente, psicológica passam a ser crité-
rios classificatórios, destinando os alunos para escolas regulares, classes especiais, escolas
especiais ou ainda em asilos para ineducáveis’.
As medidas classificatórias, no entanto, seguiam vinculadas a perspectivas morais,
com alertas para o perigo que representavam os anormais, para danos aos demais alu-
nos, pelo fardo das famílias e pela necessidade de assistência constante. Esses elementos
vão viabilizando a segregação em espaços especiais. As classificações e as defesas pela
segregação fazem com que os indivíduos sejam excluídos dos espaços escolares regula-
res, ou asilados e, algumas vezes, recolhidos em seções especiais de asilos e hospícios.
Há um esforço intensificado pelo uso de instrumentos de detecção dos anormais, pro-
cedimentos estes que faziam parte do movimento dos médicos nas escolas mediante a
criação do sistema de inspeção escolar. Na década de 1920, efetivou-se o uso de testes
psicológicos. Segundo Lilia Lobo (2015), havia uma verdadeira caçada aos anormais’.
Com o aceleramento industrial e sob o peso das questões econômicas, os argu-
mentos médicos e pedagógicos foram absorvidos, em parte, pelo Estado, com a criação
de escolas especiais e classes especiais, objetivando uma relação política em que os go-
vernantes provêm recursos físicos para guardar e assistir descapacitados em geral;
tomam para si, ou seja, de certo modo assumem uma prática, até então familiar, de
tirar de vista, esconder pessoas definidas como incapazes para a convivência social.
Esse deslocamento faz par com a criação das APAE, cujo lema foi: “Dê um amor
sem limites a um ser limitado”, ou “O excepcional nada espera, nada pode, ajude-o”.
Poderíamos supor que essa ação meritória faz jus à piedade necessária aos limitados, ao
fardo que suas famílias carregam ou ao pecado que expiam.
A criação tanto de escolas, das classes especiais como das APAE define um fluxo
de institucionalização que podemos analisar com a contribuição de Paul Veyne (1998,
p. 245) sobre o sentido da objetivação dos ditos anormais, pois é preciso buscar enten-
der “em que prática política as pessoas são objetivadas”. O autor refere que o estado e
os estabelecimentos filantrópicos funcionam como condutores de rebanhos. Ora, um
rebanho “desloca-se por conta própria, ou melhor, é o seu caminho que se desloca, pois
ele se encontra na grande estrada da história; cabe a nós assegurar a sua sobrevivência
como rebanho, apesar dos perigos do caminho, dos maus instintos dos animais, de sua
fraqueza, de sua covardia” (VEYNE, 1998, p. 245).
Quando são criados esses espaços, criam-se ou transpõem-se espaços similares,
regras de aprisionamento e de controle em uma franca ligação entre estados de defici-
ência aos estados de loucura. Essa posição faz jus às práticas de exclusão sustentadas
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Deslizamentos nos modos de exclusão e a emergência do capacitismo
29
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 15-42, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
pelas objetivações da medicina psiquiátrica, pois dela tem-se um longo recorrido histó-
rico. Foi assim, como conta Michel Foucault (2005b), para o sentido da exclusão, que
permaneceu aderido aos espaços dos lazarentos como formas subsistentes. Exclusão e
salvação passaram a fazer parte dos jogos de exclusão’, cama feita para outros excluídos.
O entrelaçamento de divisão, exclusão’ e purificação é, portanto, um forte atravessa-
dor de caráter moral, o qual, de certo modo, se une com o espírito cristão de doação
de amor.
Uma vez instituídos os espaçamentos dentro de uma concepção e de um contexto
político, espera-se que aqueles que tomam o encargo dos cuidados atendam às mesmas
demandas. Por tratar-se de espaço escolar, institui-se para condução do rebanho o lugar
de professor-condutor, que é subsidiário do governante, e o próprio governante de um
rebanho. Essa reservada prática deveria ter sido e foi caracterizada pela condução, pela
guarda, pela assistência, pela punição dos desvios: o rebanho anda em sua própria es-
trada, segue seu caminho; o pastor cuida para que não se desvie, ele o vigia. Se
necessário, pune com a exclusão os que provocam desordem, pois, com o tempo, foram
se criando graus para ordenar e classificar os rebanhos. Desse modo, para os que não se
dirigiam ao norte da estrada estava reservado um lugar mais especial ainda.
Podemos citar ainda, de acordo com Lima, Ferreira e Lopes (2020), como essa
conjuntura favoreceu na primeira metade do século XX a implantação dos Institutos
Pestalozzi, com consultórios médicos-pedagógicos para crianças com deficiência ou
identificadas como problemáticas. Os testes aplicados tinham como objetivo constituir
classes especiais homogêneas. Segundo as autoras, nesse período as classes especiais fo-
ram consolidadas.
O holocausto brasileiro: entre a loucura e a educação especial
Tudo era loucura. Os cultores de enigmas, os fabricantes de charadas, de anagramas,
os maldizentes, os curiosos da vida alheia, os que põem todo o seu cuidado na
tafularia, um ou outro almotacé enfunado, ninguém escapava aos emissários do
alienista. Ele respeitava as namoradas e não poupava as namoradeiras, dizendo que
as primeiras cediam a um impulso natural e as segundas a um vício. Se um homem
era avaro ou pródigo, ia do mesmo modo para a Casa Verde; daí a alegação de que
não havia regra para a completa sanidade mental.
(ASSIS, 1994, p. 27)
Foram cinco décadas cujo empreendimento político intentou classificar as pes-
soas entre a normalidade e a loucura. O trem só de ida levava as pessoas com a promessa
de tratamento e cura de quaisquer que fossem os sintomas ou as características que
pudessem ser qualificadas como ‘fora da norma’. Daniela Arbex (2013) afirma que não
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Juliana Silveira Mörschbächer, Neusa Kern Hickel
30
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 15-42, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
havia critérios para internar, e os diagnósticos eram padronizados desde o início do
século XX.
Pacientes foram encaminhados por apresentar sintomas como tristeza, alcoo-
lismo e timidez; também desafetos, inimigos políticos, jovens grávidas fruto de estupro
por seus patrões, esposas traídas; homossexuais, mendigos, negros, pobres, pessoas sem
documentos e aqueles nomeados como “doidos”. Daniela Arbex (2013, p. 21) explica:
“A teoria eugenista, que sustentava a ideia de limpeza social, fortalecia o hospital e
justificava seus abusos. [Era preciso] Livrar a sociedade da escória, desfazendo-se dela,
de preferência em local que a vista não pudesse alcançar”.
Como relata a autora, a recepção era feita com corte de cabelo e a troca de suas
roupas por um macacão azul. Deixava-se na entrada sonhos e desejos, usurpados de sua
dignidade, eram mantidos em situações sub-humanas, submetidos à eletrochoques, lo-
botomias, castigos. A administração dos choques e da medicação nem sempre tinham
objetivos terapêuticos, mas, sim, de controle e intimidação. Ignorados pela sociedade,
eram empurrados para a morte.
Os relatos de Daniela Arbex (2013) indicam situações e certas condições que não
diferem das relatadas por Michel Foucault (2005b), na sua obra A história da loucura
na Idade Clássica, senão pela distância temporal. A Colônia paira como uma grande
nau da salvação, justamente, onde “o abandono é a salvação; sua exclusão oferece-lhe[s]
uma outra forma de comunhão”, que, pela via do tratamento moral, é direcionada às
“cabeças alienadas”. Essa nau a Narrenschiffé proveniente de composição imaginá-
ria presente na literatura, nas artes plásticas e cênicas, mas que, em sua existência real,
portava o transporte de uma “carga insana” de uma cidade para outra.
5
Tal ritual coloca
a loucura em um lugar de passagem, dispõe os loucos à deriva, pois sua “exclusão deve
encerrá-los” (FOUCAULT, 2005b, p. 6-13) até que os antigos leprosários passem a ser
o lugar da exclusão.
Mais que o espaço físico dos leprosários, são os “valores e as imagens que tinham
aderido ao leproso; é o sentido dessa exclusão, a importância no grupo social dessa
figura insistente e temida” (FOUCAULT, 2005b, p. 6). Na Colônia se unem os mo-
vimentos de passagem, através de uma nau-trem, e a experiência do Hospital dos
Loucos em cujo espaçamento a loucura passa a ficar sob controle: “ela representa a
superfície das coisas à luz do dia, todos os jogos de aparência, a trama indefinida que
une e separa a verdade e o parecer” (FOUCAULT, 2005b, p. 43).
Com Daniela Arbex (2013) conhecemos o Hospital de Neuropsiquiatria Infan-
til, localizado em Oliveira, município de Minas Gerais, onde Ronaldo Simões Coelho,
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Deslizamentos nos modos de exclusão e a emergência do capacitismo
31
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 15-42, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
superintendente do serviço de psiquiatria da Fundação Educacional de Assistência Psi-
quiátrica, encontrou um menino com menos de 10 anos “crucificado” no pátio sob o
sol escaldante, amarrado com os braços abertos. Ao perguntar para a freira responsável
o motivo daquela situação, ela lhe respondeu: “Se soltar, ele arranca os olhos das outras
crianças. Tem mania”. O diálogo seguiu: “E quantos olhos ele já arrancou?” E a res-
posta da freira foi: “Nenhum”. Essa cena dá o tom dos cuidados estabelecidos naquela
época na instituição criada em 1924, que inicialmente atendia mulheres e indigentes,
mas em 1946 começou a acolher crianças com deficiência, a maioria abandonada pela
sua família.
Fechado em 1976, encaminhou 33 crianças para a Colônia, em Barbacena. Em-
bora houvesse a ala infantil, a única diferença era a existência de berços nos quais as
crianças com dificuldade de locomoção eram mantidas, sem expectativa de vida. No
mais, conviviam com os adultos recebendo o mesmo tratamento. Daniela Arbex (2013)
sinaliza que essa modalidade de atendimento se sustentou de 1903 a 1980.
A pergunta de como isso se constituiu e se perpetuou durante tanto tempo se
desdobra por um recorrido que implica essa história, mas também permeia as estruturas
sociais capazes de tais eventos. Uma rede complexa de relações estabelecidas manteve
mais de 70 mil pessoas, incluindo crianças com deficiência, sob tortura, em condições
sub-humanas até chegarem à morte. A política não se dá separada da esfera social, se
trata de uma continuidade, cujas crenças, apostas e desejo social são atendidos na pro-
liferação de instituições segregadoras. Um dos fios que sustentam essa noção que
classifica o humano e categoriza quem tem direito a viver em sociedade em liberdade e
quem não guarda em si os meandros de uma aposta social na capacidade de produção.
A exclusão de pessoas classificadas como incapazes de se sustentar economica-
mente é uma construção histórico-social que estende suas raízes para a escolarização.
Desde a primeira infância há uma captação embutida no sistema político, hoje não
mais localizado nos hospícios, e sim em instituições especializadas. A promessa se man-
tém ofertando cuidados especializados com estrutura física e recursos humanos
encontrados apenas nesses locais específicos.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Juliana Silveira Mörschbächer, Neusa Kern Hickel
32
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 15-42, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Capacitismo: do que estamos falando?
Uma vez, por exemplo, compôs uma ode à queda do Marquês de Pombal, em que
dizia que esse ministro era o ‘dragão aspérrimo do Nadaesmagado pelasgarras
vingadoras do Todo’; e assim outras mais ou menos fora do comum; gostava das
ideias sublimes e raras, das imagens grandes e nobres...Pobre moço! pensou o
alienista. E continuou consigo: – Trata-se de um caso de lesão cerebral: fenômeno
sem gravidade, mas digno de estudo...
(ASSIS, 1994, p. 15-16)
O capacitismo tem sido discutido como uma forma de nomear a opressão pro-
duzida socialmente contra as pessoas com deficiência. Os atuais modos de produção
induzem a uma eficiência e eficácia nas redes de trabalho, fazendo com que seja recor-
tada a categoria de quem é capaz de sustentar tal hegemonia e quem se destina à
categoria da incapacidade. As práticas capacitistas são apontadas por Gesser, Block e
Mello (2020, p. 18) como “produzidas com base nos discursos biomédicos que, sus-
tentados pelo binarismo norma/desvio, têm levado a uma busca de todos os corpos a
performá-los normativamente como ‘capazes’”. As autoras afirmam o capacitismo
como a prática derivada de um ideal de sujeito. Essas formas de se relacionar com os
corpos partem de uma construção social baseada em uma idealização, onde não só as
pessoas com deficiência são consideradas incapazes, mas também mulheres, indígenas,
idosos, pessoas negras e as pessoas cuja diversidade sexual não se enquadra no “ideal de
homem”.
O capacitismo é definido como o preconceito para com as pessoas com deficiên-
cia:
uma postura preconceituosa que hierarquiza as pessoas em função da adequação dos seus corpos
à corponormatividade. É uma categoria que define a forma como as pessoas com deficiência são
tratadas de modo generalizado como incapazes (incapazes de produzir, de trabalhar, de aprender,
de amar, de cuidar, de sentir desejo e ser desejada, de ter relações sexuais etc.), aproximando as
demandas dos movimentos de pessoas com deficiência a outras discriminações sociais, como o
sexismo, o racismo e a homofobia (MELLO, 2016, p. 3.272).
Como efeito de práticas capacitistas impõe-se o mito da superação, e para tanto
são colocados exemplos de pessoas que de alguma forma obtiveram destaque social,
anunciando que “é possível”.
6
Essa forma de considerar a deficiência como algo a ser
superado coloca a responsabilidade sobre o sujeito por sua condição, prática ampla-
mente vendida pelo capitalismo.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Deslizamentos nos modos de exclusão e a emergência do capacitismo
33
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 15-42, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Essa valorização do corpo sustenta a cultura da normatividade, a busca pela ree-
ducação, por práticas ortopédicas cujo objetivo é alcançar o mais próximo possível
daquilo que a sociedade promove como ideal. Essa prática perversa coloca as pessoas
com deficiência em um lugar de escuridão, apagamento. O capacitismo atravessa o
social e permanece enraizado na forma como as pessoas lidam com as deficiências, fa-
zendo com que essas pessoas fiquem sem voz, invisíveis. Trata-se, portanto, de colocar
essa discussão em pauta, pontuar os efeitos que essa invisibilidade produz, para então
descortinar alternativas de combate a tais práticas, ao mesmo tempo em que se propõe
o acesso e permanência à educação para todos os alunos.
Gesser, Block e Mello (2020) apontam a colocação de barreiras como um dos
entraves do capacitismo, exemplificado pelos pretensos diálogos que se estabelecem nas
relações de todas as ordens, em que a pessoa sem deficiência se posiciona como quem
sabe o melhor para a pessoa com deficiência. Nessas situações, o diálogo é suprimido,
e o que resta é a construção social dominante. É a existência de um saber que legitima
o saber sobre o outro, suas possibilidades e necessidades. Quando se trata de uma cri-
ança com deficiência, tal imposição se torna ainda mais incisiva, pois quem decide é o
adulto sem deficiência, e sem a possibilidade da pergunta e da escuta, o resultado é uma
relação social restrita e direcionada. Para as autoras, essas atitudes impeditivas aconte-
cem pela crença de que as pessoas com deficiências não teriam condições de agir por si,
e isso se dá pela falta de informação.
No caso dos processos inclusivos, há uma tendência ao encaminhamento para as
escolas especiais sob o argumento de que haverá profissionais especializados. Desconsi-
dera-se, porém, a necessidade de convívio em um espaço desafiante, rico em interações
sociais com os pares e a escola regular como o espaço legitimado para oferecer educação.
Inúmeros alunos, considerados incapazes para acompanhar o ensino regular, denun-
ciam as raízes capacitistas arraigadas nas construções sociais.
Para Lima, Ferreira e Lopes (2020), esse movimento de exclusão e isolamento
acontece a partir de um ideal de eugenia. A eugenia é o processo pelo qual se valoriza
o ser humano considerado capaz, sadio e com habilidades na mesma medida em que
oprime outros humanos, os qualificando como invisíveis ou improdutivos. As autoras
ainda destacam o uso das avaliações psicométricas como parte de um processo eugê-
nico, classificando seres capazes e incapazes, o normal e a anormalidade, sustentado por
uma compreensão científica que valida quem poderia ser educado e quem não poderia.
Ao analisarem o texto da Lei n. 4.024 (BRASIL, 1961), sublinham o avanço para as
pessoas com deficiência ao serem incluídas no texto orientador sobre educação, porém
ainda com um viés capacitista, cuja orientação mantém espaços educativos separados.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Juliana Silveira Mörschbächer, Neusa Kern Hickel
34
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 15-42, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Esse movimento abriu portas para a proliferação da iniciativa privada, filantropia
com subsídios do governo, propiciando “um posicionamento capacitista advindo desta
esfera, passando a ideia de apropriação destas pessoas pelo privado, tratando-as de
forma isolada como se a deficiência fosse desta pessoa e família” (LIMA; FERREIRA;
LOPES, 2020, p. 178). Dessa forma, as concepções sobre o capacitismo foram se esta-
belecendo e se fortalecendo com a manutenção de redes de atendimento educacional
que permanecem paralelas ao ensino comum, marcando um lugar de caridade e assis-
tência em detrimento do reconhecimento do direito à inclusão escolar e social.
Segundo Siqueira, Dornelles e Assunção (2020), tradicionalmente as pessoas
com deficiência não foram consideradas nas construções coletivas, e o fato de os maio-
res interessados terem estado à margem desses processos tem suas raízes na manutenção
de práticas caridosas e capacitistas. Nas palavras das autoras, “prestar auxílio de forma
caritativa é mais fácil do que perceber a si mesmo como parte do processo histórico de
exclusão experienciado pelas pessoas com deficiência e, portanto, parte da solução, por
meio da mudança das atitudes” (SIQUEIRA; DORNELLES; ASSUNÇÃO, 2020, p.
145).
O capacitismo se manifesta na suposição de que crianças e jovens com deficiência
não precisam de educação, mas, sim, de quem os cuide. Essas restrições, porém, pro-
duzem prejuízos no que diz respeito ao âmbito escolar, mas também social: “Esse
isolamento social e educacional privava-os das interações na cultura e participação efe-
tiva na sociedade” (LIMA; FERREIRA; LOPES, 2020, p. 178-179). Nesse contexto,
a estrutura capacitista se mantém respaldada por atos reconhecidos em nossa sociedade
como dignos de pessoas caridosas. Considerar o corpo do outro como incapaz e anor-
mal impede que a produção da diferença seja reconhecida como inerente ao humano e
à vida.
Quanto aos modelos de deficiência, contamos ainda com a contribuição de Dé-
bora Diniz (2012) quando propõe colocar em questão as linhas tão definidas entre o
normal e o anormal como uma postura ética. A autora narra as discussões que ocorre-
ram no Reino Unido na década de 1970 e que produziram um deslizamento do
conceito de deficiência como lesão e impedimento para colocar em jogo a responsabi-
lidade da sociedade na construção de barreiras impeditivas.
Deficiência é um conceito complexo que reconhece o corpo com lesão, mas que também denun-
cia a estrutura social que oprime a pessoa deficiente. Assim como outras formas de opressão pelo
corpo, como o sexismo ou o racismo, os estudos sobre deficiência descortinaram uma das ideo-
logias mais opressoras de nossa vida social: a que humilha e segrega o corpo deficiente (DINIZ,
2012, p. 5).
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Deslizamentos nos modos de exclusão e a emergência do capacitismo
35
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 15-42, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Nessa perspectiva, a deficiência deixa de ser objeto apenas da biomedicina e passa
a ser pensada no campo social. As primeiras manifestações públicas partiram de Paul
Hunt, em 1960, na escrita de uma carta ao jornal em 1972, na qual pontuava as con-
dições de isolamento e desconsideração com as pessoas com deficiência. Esse registro
produziu uma significativa repercussão, criando uma rede de comunicação. Assim, qua-
tro anos depois, a primeira organização fundada e gerenciada por pessoas com
deficiência recebeu o nome de União dos Deficientes Físicos Contra a Segregação
(Union of the Physically Impaired Against Segregation – UPIAS) (DINIZ, 2012).
Considerando que as primeiras instituições objetivavam isolar ou “normalizar”
as pessoas com deficiência, a UPIAS marca uma articulação política problematizando
a compreensão tradicional da deficiência, apontando o biológico como insuficiente e
discutindo a opressão sofrida como uma produção social.
Em defesa da deficiência como algo produzido no encontro com as barreiras, esse
grupo de pensadores deslocou a questão do campo da biomedicina para uma discussão
política e econômica. Não se trata de desconsiderar a existência de comprometimentos
e a necessidade de cuidados da medicina, e sim de pensar a deficiência como existente
a partir das relações sociais.
Historicamente, as pessoas com deficiência tiveram suas presenças omitidas na
sociedade, suas falas silenciadas e seus desejos ignorados. A construção de outras formas
de tomar a deficiência abriu um campo para pensar as relações estabelecidas com o
social. Desse modo, considerar a deficiência pelo modelo social “contribui para a eli-
minação de barreiras, [tanto] quanto a insuficiência nas adequações e na acessibilidade,
considerando que a experiência da deficiência reside no espaço relacional entre o sujeito
e os contextos vivenciados” (LIMA; FERREIRA; LOPES, 2020, p. 181). Esse argu-
mento ganhou força à medida que surgiram estudos pontuando a deficiência como
passível de se manifestar em corpos diversos, como no caso de pessoas idosas. O que se
destaca é a repetição do rótulo “insuficiente” sempre que se deixa de produzir mão de
obra ao que o sistema econômico exige.
Durante as décadas de 1970-1980, as construções conceituais e seus autores fo-
ram considerados como teóricos da primeira geração, por terem sido os primeiros a
registrarem os movimentos políticos e sociais questionando a exclusão. Como principal
objetivo, visavam à busca pela independência, “pois se pressupunha que o deficiente
seria uma pessoa tão potencialmente produtiva como o não deficiente, sendo apenas
necessária a retirada das barreiras para o desenvolvimento de suas capacidades
(DINIZ, 2012, p. 27).
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Juliana Silveira Mörschbächer, Neusa Kern Hickel
36
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 15-42, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
A contribuição do movimento feminista aconteceu a partir da década de 1990,
tendo como elemento disparador a experiência de mães de pessoas com deficiência.
Considerada a segunda geração de teóricas, se estabeleceu, a partir do movimento fe-
minista, o questionamento dos argumentos anteriores. As discussões reforçaram a
crítica ao capitalismo e acrescentaram outras pautas, apontando a necessidade de am-
pliar o conceito para além das questões de mercado de trabalho; propuseram pensar a
opressão considerando sexo, idade, raça e gênero: “Ser uma mulher deficiente ou ser
uma mulher cuidadora de uma criança ou adulto deficiente era uma experiência muito
diversa daquela descrita pelos homens com lesão medular que iniciaram o modelo social
da deficiência” (DINIZ, 2012, p. 27).
Nesse sentido, a interdependência como intrínseca às relações humanas tomou a
discussão como uma questão de justiça social para todas as pessoas, independentemente
da condição de deficiência. Siqueira, Dornelles e Assunção (2020, p. 159) reiteram
que, desde o início, o principal desse debate é “buscar demonstrar que as deficiências
são parte da grande e complexa gama de diferentes tipos de pessoas que compõem a
sociedade”.
Essas discussões são movimentos políticos, e, nesse contexto, as pessoas com de-
ficiência têm ampliado espaços. Uma das pessoas com deficiência que se propõem a
pensar a questão do capacitismo é Victor Di Marco (2020), ator, roteirista, diretor e
escritor. No seu livro sobre o tema, narra trechos de sua história e situa em sua obra o
conceito de capacitismo vivido por ele em inúmeras situações. Expõe o preconceito ao
mesmo tempo em que tece uma crítica fundamental para quem se ocupa de pensar
essas relações. O autor diz que foi colocado à margem de sua própria vida, sendo ex-
pectador de sua história, pois tudo o que esperavam dele era pautado no rótulo da
incapacidade. Afirma que a comparação gera o capacitismo, que, por sua vez, “se nutre
da lei do mais eficiente para domar e inviabilizar esses corpos que podem ter um ritmo
de eficiência diferente” (DI MARCO, 2020, p. 11).
Essa crença social se mostra sustentada ainda por um determinismo biológico, a
partir do qual as pessoas com deficiência são desinvestidas de enunciar sua própria pa-
lavra sob o risco de serem constantemente avaliadas e desconsideradas. O preconceito
inviabiliza o sujeito e todo e qualquer ato como próprio, sendo considerado ele mesmo
resultado da deficiência. O sujeito fica subsumido, restando apenas a impossibilidade.
Nas palavras do autor, se “nega a pluralidade de gestos e de não gestos, sufoca o desejo,
mata a vontade e retira, assim, a autonomia dos sujeitos que são lidos como deficientes”
(DI MARCO, 2020, p. 11).
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Deslizamentos nos modos de exclusão e a emergência do capacitismo
37
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 15-42, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Como estudante, Victor Di Marco (2020) aponta a escola como reprodutora
dessa estrutura. Nos momentos em que “atendia” à demanda escolar, era tomado como
um aluno “normal”, mas, quando manifestava alguma particularidade, o olhar sob a
deficiência se destacava. Mesmo com os entraves encontrados nesse processo, afirma
sua “sorte” por ter estudado em uma escola regular. Desse ponto de vista, contribui:
Criar espaços destinados a pessoas com deficiência, por exemplo, não é inclusão. Privar uma
convivência diversa é alimentar que a diferença é ruim e que deve ser escondida num lugar à parte
do resto da sociedade. Além disso, não nos fazer visíveis é ir contra a naturalização dos nossos
corpos em espaços. Se uma criança convive desde pequena com outras crianças com deficiência,
ela não vai achar estranho, quando adulta, uma pessoa com deficiência numa festa ou andando
na rua, por exemplo (DI MARCO, 2020, p. 18).
A construção das categorias “anormal” e “normal” remete à necessidade de man-
ter o controle. A biopolítica nomeia quem pode, o que pode e quando. A permanência
de espaços segregados denuncia a dificuldade da sociedade em lidar com a singulari-
dade, a multiplicidade. Essa construção de categorias, portanto, serve para reafirmar
quem está dentro e quem está fora da regra. Em última instância, o que está em jogo é
a exigência de um modelo econômico cujo valor é estabelecido pela produtividade. Esse
circuito manifesto mantém a busca pelos testes que investigam as possíveis disfunções
que justificam o “não acompanhamento” no ritmo de aprendizagem dos “outros”.
A instituição escolar se ampara nos diagnósticos como a explicação científica do
fracasso escolar. Vejamos que tal perversidade recai sobre o aluno, carimbando seu per-
curso escolar como insuficiente, quando é a organização educacional quem deve
oferecer os recursos necessários para a aprendizagem ocorrer. O processo inclusivo se
constitui nas relações estabelecidas com os sujeitos, e não com os diagnósticos. A res-
ponsabilização pela ensinagem independe da condição do aluno.
Desse modo, se faz urgente pesquisar a implicação de todos e cada um no pro-
cesso. A permanência de espaços segregados contribui para a manutenção da exclusão
certamente, mas se trata, sobretudo, de colocar esses conceitos nas práticas escolares.
Cada movimento produzido em prol de considerar a multiplicidade é importante para
desnaturalizar essas construções que delimitam e impedem o exercício da experiência
coletiva com a diversidade.
Alfredo Veiga-Neto (2001), inspirado em Michel Foucault, atenta-se para como
as construções históricas produzem efeitos na atualidade e, mais especificamente, no
campo da educação, apontando a necessidade de problematizar para desnaturalizar tais
relações:
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Juliana Silveira Mörschbächer, Neusa Kern Hickel
38
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 15-42, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Se parece mais difícil ensinar em classes inclusivas, classes nas quais os (chamados) normais estão
misturados com os (chamados) anormais, não é tanto porque seus (assim chamados) níveis cog-
nitivos são diferentes, mas, antes, porque a própria lógica de dividir os estudantes em classes
por níveis cognitivos, por aptidões, por gênero, por idades etc. foi um arranjo inventado para,
justamente, colocar em ação a norma, através de um crescente e persistente movimento de, sepa-
rando o normal do anormal, marcar a distinção entre normalidade e anormalidade (VEIGA-
NETO, 2001, p. 25).
Nesse sentido, a busca por compreender os processos históricos pode colaborar
na criação de formas de entendimento dos processos de exclusão, bem como os desli-
zamentos que dão conta de seus movimentos.
Considerações de encerramento
O alienista coloca sua vida a serviço de formular a teoria sobre a loucura. Toma
como missão o diagnóstico, cuidado e tratamento dos chamados loucos da Vila de Ita-
guaí, onde reside. Formula a proposta e, após o apoio da Câmara Municipal da cidade,
inicia a construção da Casa Verde.
Tal conto apresenta inúmeras facetas histórico-social-políticas que circundam a
realidade e as produções de verdade. As reflexões partiram de recortes sobre o que se
constituiu como loucura e educação especial, com o intuito de analisar caminhos pelos
quais percorrem tais conceitos. Compreende-se as repetições imbricadas com uma
forma socialmente construída e cuja estrutura precisa ser discutida.
A Casa Verde abriga todos aqueles investigados pelo alienista, dr. Simão Baca-
martes, sob o argumento de disfunções cerebrais sempre evidenciadas pelo rígido
controle de comportamento. Cada gesto, olhar, sentimento avaliado como inapropri-
ado serve para o recolhimento. A ciência nesse caso organiza, seleciona e medica com
o intuito de adequar aqueles indivíduos considerados desviantes.
Esse movimento acontece em relação aos corpos, comportamentos e desejos tra-
duzidos por Michel Foucault (2001) na figura do monstro, o indivíduo a ser corrigido
e o masturbador, de modo a delinear o que mais tarde se nomearia como anormal. As
contribuições de Lilia Lobo (2015) foram fundamentais para resgatar a construção das
categorias de normalidade e seus entrelaçamentos com a busca pela identificação dos
nomeados como anormais, sobretudo nas instituições escolares sob alegação de prejuízo
aos demais alunos.
Tais efeitos foram reiterados nos hospícios como lugares aprovados socialmente
para o destino de pessoas consideradas inaptas para o convívio social, cujos critérios
incidem nada além da busca pela eugenia social. No conto O alienista, Machado de
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Deslizamentos nos modos de exclusão e a emergência do capacitismo
39
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 15-42, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Assis (1994) sublinha uma forma de fazer ciência que anseia por indicar através do
diagnóstico quem pode e quem não pode circular socialmente. As classes especiais e,
mais tarde, as organizações não governamentais se encarregaram de manter a continui-
dade desse movimento, com a diferença de estar sob o signo do amor e cuidado para
com as pessoas com deficiência. O alienista destaca essa característica no rol de entrada
da Casa Verde, fortalecida pela certeza de contribuir de modo caridoso.
As pessoas com deficiência, vistas como incapazes de construir uma vida social,
historicamente colocadas à margem, ignoradas, têm sua palavra em suspenso. É neces-
sário que as articulações sociais irrompam com diferentes formas de abordagem, outros
argumentos e experiências que contextualizam a discussão de outra perspectiva. Des-
taca-se estes como rupturas que vão produzindo certos furos nesses discursos.
O alienista, em determinada altura do enredo, descreve a revolta dos cidadãos ao
se perceberem enganados. Movimentam-se e, em coletivo, se dirigem à Casa Verde.
Novas alianças são feitas, assim como conchavos políticos são estabelecidos. A história
e o conto apresentam as conceses nas quais as narrativas se repetem, mesmo sendo
diferentes.
Os meandros dessas construções sociais que classificam e excluem estão o tempo
todo em relação com movimentos contrários: discursos que comem as bordas, riscam
o texto impresso, borram as verdades, costuram ideias e articulam outros pontos de
vista. O modelo social de deficiência vem nesse sentido reordenar as verdades até então
estabelecidas como únicas, dirimindo o poder da medicina sobre os corpos com defici-
ência. O modelo biomédico é questionado por todo um contexto que insurge nessa
arena de disputas conceituais e práticas sociais. A questão a que chegamos após esse
recorte é o como essas formulações impactam os processos escolares e, de forma mais
específica, os alunos com deficiência.
Discute-se o capacitismo como o preconceito sofrido pelas pessoas com deficiên-
cia, na medida em que os discursos sociais são impregnados pelo mito da capacidade.
A discriminação ocorre na comparação com corpos categorizados como sem deficiên-
cia. A perpetuação dessas cristalizações implica em formas parcializadas de enxergar o
humano. De modo mais sutil ainda se manifestam a normalidade e a anormalidade.
Essa continuidade tem profundas ligações com os modos de produção, registrando-se,
desse modo, quem pode oferecer mão de obra e quem deve ser mantido em lugares
separados do restante da sociedade, sejam instituições, classes ou escolas especiais.
O alienista propõe diferentes categorias, seleciona e recolhe as pessoas de acordo
com sua compreensão de normalidade. Ao fim, percebe que o perfeito funcionamento
cerebral é apenas aquele que não é perfeito. Machado de Assis (1994) nos brinda com
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Juliana Silveira Mörschbächer, Neusa Kern Hickel
40
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 15-42, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
tal arquitetura crítica ao mesmo tempo em que nos leva a refletir sobre o poder, saber
e a verdade presente em cada volta da narrativa.
Por fim, a aposta é a de que este ensaio possa contribuir para pensar o capacitismo
e seus efeitos no contexto escolar, de modo a fazer emergir novas formas de relação. Os
processos inclusivos estão em interdependência com a produção de pesquisas e discus-
sões sobre o tema. Portanto, para que a repetição das mesmas modalidades seja
rasuradas, é necessário analisar o contexto e sua implicação com ele como forma de
produzir diferença.
Notas
1
A discussão poderia ainda ter o suporte da pesquisa arqueológica da escola (VARELA; ÁLVAREZ-
URÍA, 1991). Trata-se das formas destinadas a transmitir às novas gerações os valores, as regras de
conduta e as formas de classificação que sustentam a vida social. No caso,
observa-se que, desde o
século XVI até a atualidade, ocorreram muitas mudanças nos modos ocidentais de educação, porém
as regras de constituição da escola e seus fundamentos delimitaram as possíveis transformações. Ou
seja, aquelas que preconizam a escola nascida no interior de sociedades estratificadas e hierarquizadas,
pouco adequando-se ao chamado de justiça e igualdade. O acesso à aprendizagem é prisioneiro desse
mandato e está intimamente ligado ao dilema de manter a função originária de controle e dominação
ou favorecer ideais democráticos.
2
É como o paradoxal aforismo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1997, p. 42): “Se quisermos que
tudo continue como está, é preciso que tudo mude. Fui claro?”
3
A proposta e tentativa de aprovação do Decreto n. 10.502, de 30 de setembro de 2020, que visava
regulamentar as classes especiais como alternativas de escolarização, é um exemplo atual do sistema
capacitista que segrega e exclui baseado na crença social da capacidade (BRASIL, 2020).
4
Conforme relata Neusa Kern Hickel (2001), entre 1989 e 2000, desenvolveu-se na rede municipal de
Educação de Porto Alegre um movimento de inserção de padrões pedagógicos independentes dos
mandatos psicomédicos nas escolas especiais, criando estratégias de convivência com a comunidade e
outros programas inclusivos. As classes especiais foram extintas como efeito do intensivo trabalho do-
cente pela inclusão dos alunos nas classes regulares.
5
No capítulo inicial de A história da loucura, Michel Foucault (2005b) destaca dois acontecimentos
marcantes: o fechamento, na Europa ocidental, dos leprosários lugar de exclusão por excelência e
a sua ocupação por variados segmentos sociais até se tornarem hospícios. O segundo foi o surgimento
das naus, ou seja, embarcações cujas denominações estavam ligadas aos modos de vida, como, por
exemplo, a nau dos príncipes, a nau dos artistas. Em comum eram referidas nas artes em geral, sem
existência real. A que realmente existiu foi a chamada “nau dos loucos”, ou narrenschiff ou stultífera
navis. Efetivamente aqueles considerados desviantes daquilo que se concebia então como loucura eram
transportados de uma cidade para outra, e desta para outra, sempre em péssimas condições.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Deslizamentos nos modos de exclusão e a emergência do capacitismo
41
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 15-42, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
6
Não confundir esse “é possível” com a ação afirmativa que considera a aprendizagem uma possibilidade
sempre presente para todos, desde que haja um adequado investimento pedagógico.
Referências
ADORNO, Theodor. Notas de literatura: o ensaio como forma. São Paulo: 34, 2003.
ARBEX, Daniela. Holocausto brasileiro. São Paulo: Geração Editorial, 2013.
ASSIS, Machado de. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v. II.
BRASIL. Decreto n. 10.502, de 30 de setembro de 2020. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10502.htm. Acesso
em: 2 abr. 2022.
BRASIL. Lei n. 4.024, de 20 de dezembro de 1961. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4024.htm. Acesso em: 2 abr. 2022.
DI MARCO, Victor. Capacitismo: o mito da capacidade. Belo Horizonte: Letramento, 2020.
DINIZ, Débora. O que é deficiência. São Paulo: Brasiliense, 2012.
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU, 2005a.
FOUCAULT, Michel. História da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 2005b.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
FOUCAULT, Michel. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). São Paulo:
Martins Fontes, 2001.
FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: RABINOW, Paul; DREYFUS, Hubert.
Michel Foucault: uma trajetória filosófica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. p.
231-249.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Rio de Janeiro: Vozes, 1987.
GESSER, Marivete; BLOCK, Pamela; MELLO, Anahí Guedes de. Estudos da deficiência:
interseccionalidade, incapacitismo e emancipação social. In: GESSER, Marivete; BÖCK,
Geisa Letícia Kempfer; LOPES, Paula Helena (orgs.). Estudos da deficiência: anticapacitismo
e emancipação social. Curitiba: CRV, 2020. p. 17-36.
HICKEL, Neusa Kern. Viragens da diferença escola especial e produção de verdade. 2001.
Dissertação (Mestrado em Psicologia Social e Institucional) Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, 2001.
JANNUZZI, Gilberta de Martino; CAIADO, Kátia Regina Moreno. APAE: 1954 a 2011.
São Paulo: Autores Associados, 2013.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Juliana Silveira Mörschbächer, Neusa Kern Hickel
42
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 15-42, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
LAMPEDUSA, Giuseppe Tomasi di. O leopardo. São Paulo: TAG; Cia. das Letras, 1997.
LIMA, Eloisa Barcellos de; FERREIRA, Simone De Mamann; LOPES, Paula Helena.
Influências da eugenia na legislação educacional brasileira: as produções capacitistas na
educação especial. In: GESSER, Marivete; BÖCK, Geisa Letícia Kempfer; LOPES, Paula
Helena (orgs.). Estudos da deficiência: anticapacitismo e emancipação social. Curitiba: CRV,
2020. p. 165-188.
LOBO, Lilia. Os infames da história: pobres, escravos e deficientes no Brasil. Rio de Janeiro:
Lamparina, 2015.
MACEDO, Lino de. Ensaios pedagógicos: como construir uma escola para todos? Porto
Alegre: Artmed, 2005.
MELLO, Anahi Guedes de. Deficiência, incapacidade e vulnerabilidade: do capacitismo ou a
proeminência capacitista e biomédica do Comitê de Ética em Pesquisa da UFSC. Ciência &
Saúde Coletiva, v. 21, n. 10, p. 3.265-3.276, 2016. Doi: https://doi.org/10.1590/1413-
812320152110.07792016.
SIQUEIRA, Denise; DORNELLES, Tarso Germany; ASSUNÇÃO, Sabrina Mangrich de.
Experenciando capacitismo: a vivência de três pessoas com deficiência. In: GESSER,
Marivete; BÖCK, Geisa Letícia Kempfer; LOPES, Paula Helena (orgs.). Estudos da
deficiência: anticapacitismo e emancipação social. Curitiba: CRV, 2020. p. 145-164.
VARELA, Julia; ÁLVAREZ-URÍA, Fernando. Arqueologia de la escuela. Madrid: Piqueta,
1991.
VEIGA-NETO, Alfredo. Incluir para saber. Saber para excluir. Pro-posições, Campinas, v. 12,
n. 2-3, p. 35-36, 2001.
VEYNE, Paul. Como se escreve a história. Brasília: EdUnB, 1998.
Este artigo está licenciado com a licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
43
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 43-69, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Análisis de las políticas educativas desde la perspectiva de la
inclusión en México, 1988-2021
Analysis of educational policies from the perspective of inclusion in
Mexico, 1988-2021
Análise das políticas educacionais na perspectiva da inclusão no México,
1988-2021
Mónica del Carmen Reyes Verduzco
*
Karla Kae Kral
**
Resumen
El presente estudio exploratorio analiza la evolución de las políticas educativas en materia de inclu-
sión en México en los últimos seis sexenios gubernamentales, a través de la metodología de análisis
de contenido cuantitativo y cualitativo. La investigación permite valorar las políticas públicas en
materia de inclusión educativa en ese país, en términos de los planes y programas sectoriales de edu-
cación, su contexto y su impacto o consecuencias, tanto para la gestión educativa como para el trabajo
y consolidación de una justicia social, dentro de un marco amplio de derechos humanos. Los resul-
tados preliminares muestran que México tiene un marco jurídico para la planeación democrática,
pero hay poca claridad en la manera en que se incorpora la consulta pública en la política pública y
los Planes Nacionales de Desarrollo y Programas Sectoriales de Educación se fundamentan en la
racionalidad económica neoliberal, pero paulatinamente se han incorporado elementos de la inclu-
sión social a partir de los marcos de la equidad, la inclusión, la interculturalidad y el género.
Palabras clave: educación especial; educación inclusiva; políticas educativas; México.
Recebido em: 11/01/2022 Aprovado em: 21/02/2022
https://doi.org/10.5335/rep.v29i1.13116
ISSN on-line: 2238-0302
*
Doctora en Educación por el Instituto Tecnológico y de Estudios Superiores de Occidente (ITESO/Becaria CONACyT).
Maestra en Pedagogía por la Universidad de Colima (Becaria CONACyT). Actualmente es profesora de pregrado y posgrado
en educación en la Universidad Multitécnica Profesional y la Universidad UNIVER Colima.
E-mail:
monicarv0711@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-3529-792X.
**
Doctora en antropología sociocultural por la Universidad de Kansas. Desde 2005 es profesora-investigadora de tiempo
completo, titular B, en la Universidad de Colima, Facultad de Pedagogía, donde realiza y asesora trabajos sobre género,
migración, educación e inclusión. E-mail: kkral@ucol.mx. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-7711-1388.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Mónica del Carmen Reyes Verduzco, Karla Kae Kral
44
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 43-69, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Abstract
This exploratory study analyzes the evolution of educational policies on inclusion in Mexico in the
last six government terms, through the methodology of quantitative and qualitative content analysis.
The research makes it possible to assess public policies on educational inclusion, in terms of educa-
tion sector plans and programs, their context and their impact or consequences, both for educational
management and the consolidation of social justice, within a broad framework of human rights.
Preliminary results show that Mexico has a legal framework for democratic planning, but there is
limited clarity in the way in which public consultation is incorporated into public policy and the
National Development Plans and Sectoral Education Programs are based on economic rationality.
neoliberal, but elements of social inclusion have been gradually incorporated based on the frame-
works of equity, inclusion, interculturality and gender.
Keywords: special education; inclusive education; educational policies; México.
Resumo
Este estudo exploratório analisa a evolução das políticas educacionais de inclusão no México nos
últimos seis anos de governo, por meio da metodologia de análise de conteúdo quantitativa e quali-
tativa. A pesquisa permite avaliar as políticas públicas de inclusão educacional naquele país, em
termos de planos e programas setoriais de educação, seu contexto e seus impactos ou consequências,
tanto para a gestão educacional quanto para o trabalho e a consolidação da justiça social, marco dos
direitos humanos. Os resultados preliminares mostram que o México possui um marco legal para o
planejamento democrático, mas há pouca clareza na forma como a consulta pública é incorporada
às políticas públicas e os Planos Nacionais de Desenvolvimento e Programas Setoriais de Educação
são baseados na racionalidade econômica neoliberal, mas gradativamente elementos de inclusão so-
cial foram incorporados a partir de marcos de equidade, inclusão, interculturalidade e gênero.
Palavras-chave: educação especial; educação inclusiva; políticas educacionais; México.
Introducción
El estudio que ahora se presenta es exploratorio y tiene como objetivo analizar la
evolución de la política mexicana en materia de inclusión educativa, bajo una perspec-
tiva amplia del concepto. Desarrolla, en un primer momento, una breve reseña
histórica de la educación especial y su tránsito hacia la educación inclusiva en México,
con énfasis en los beneficios, retos y obstáculos que ha enfrentado ese tipo de educación
en su búsqueda de programas y políticas educativas inclusivas. Enseguida, se discute la
perspectiva de los derechos humanos en esas políticas y su impacto para una inclusión
social plena, como marco conceptual y de referencia. Se analizan también los planes y
programas de los últimos seis sexenios (1988 a la fecha), respecto de sus propósitos,
alcances, orientaciones y limitaciones, retomando para ello el modelo de Cardno
(2018), el cual permite valorar el texto, el contexto y las consecuencias de la política.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Análisis de las políticas educativas desde la perspectiva de la inclusión en México, 1988-2021
45
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 43-69, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
La metodología empleada en esta investigación es el análisis de contenido cuan-
titativo y cualitativo, con la revisión de 12 textos estratégicos para la política educativa
nacional: los Planes Nacionales de Desarrollo (PND) (6) y los Programas Sectoriales
de Educación (6), que especifican los objetivos, las estrategias y las líneas de acción
educativa a seguir. Los resultados se presentan a partir de tres ejes de análisis: 1) Pro-
ducción, autoría y público de la política educativa, 2) Contexto de la política, y 3)
Contenidos destacados desde la perspectiva de inclusión.
Para el primer apartado se detalla que en México, por decreto, el Ejecutivo define
las políticas públicas en cada sexenio con base en una consulta previa a los sectores y
actores interesados y presenta sus planes y programas al público. En cuanto al contexto
en el que se desarrolla esa política educativa, se refiere la fuerte influencia de los orga-
nismos internacionales en los PND de los sexenios estudiados, así como la
incorporación paulatina de la perspectiva de los derechos humanos, la justicia social y
la equidad/igualdad en los planes y programas de educación. Para el tercer eje, se des-
tacan los contenidos explícitos de la política educativa analizada, encontrando la
presencia de conceptos y nociones relativos al modelo de inclusión social en los 12
documentos revisados, tales como “calidad,” “equidad,” “inclusión,” “diversidad,” y
“mujeres/género”, los que evidencian el tránsito hacia la inclusión como una prioridad
en las directrices federales. La interculturalidad y la pedagogía intercultural aparecen
también en los planes y programas del último sexenio, junto a los rasgos de una educa-
ción equitativa, inclusiva e integral.
Enseguida se presenta un breve recorrido histórico por las políticas de educación
especial, integración e inclusión que se han implementado en México para la atención
de las personas que presentan Barreras para el Aprendizaje y la Participación Social
(BAPS, antes Necesidades Educativas Especiales -NEE) y/o discapacidad, haciendo én-
fasis en sus aportes, limitantes y eventuales impactos.
Políticas de educación especial, integración e inclusión en México
En México la atención educativa a las personas que presentan BAPS asociadas o
no a una discapacidad, ha sido lenta, intermitente y, por momentos, confusa.
En 1970 se crea la Dirección General de Educación Especial, como resultado de
una larga experiencia en la atención y trabajo con las personas con discapacidad, que
se remonta a la creación, en 1870, de la Escuela Nacional para Ciegos (MÉXICO,
Secretaría de Educación Pública SEP, 2010). Con esa dirección general a nivel na-
cional, se pretendía asegurar educación para los niños, niñas y jóvenes que por sus
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Mónica del Carmen Reyes Verduzco, Karla Kae Kral
46
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 43-69, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
características o limitaciones quedaban al margen del sistema regular. La educación,
entonces, era remedial y diferenciada.
El Plan Nacional de Desarrollo 1983-1988 estableció la primera pauta para rea-
lizar acciones que impulsaran la protección social a los menores y ancianos en estado
total o parcial de abandono, a los minusválidos [sic] y a la familia en general
(MÉXICO, Instituto Nacional de Estadística y Geografía INEGI, 2013). Derivado
de ello, el Sistema para el Desarrollo Integral de la Familia (DIF) estableció el Programa
de Rehabilitación que atendía a las personas necesitadas en las áreas del sistema neuro-
musculoesquelético, comunicación humana, ceguera y salud mental, y dispuso varios
centros importantes que funcionan a la fecha; entre ellos, los Centros de Rehabilita-
ción, el Centro de Adaptación Laboral, los Centros de Rehabilitación y Educación
Especial (CREE) y, en coordinación con la SEP, los Centros Psicopedagógicos
(CAPEP), aunque todavía bajo la tutela del modelo clínico: las dificultades seguían
centradas en el/la estudiante y no en las barreras para el aprendizaje. Los niños y niñas
tenían que “adaptarse” a la escuela, de ello dependía su éxito (REYES, 2013).
Durante el sexenio de Carlos Salinas de Gortari se implementó el Programa de
Modernización Educativa (1989-1994), el cual buscaba un cambio hacia la equidad y
la eficacia educativas, planteando como retos la descentralización de los servicios, la
atención al rezago, la cobertura universal y la ampliación de la oferta educativa
(MÉXICO, 1990).
Este Programa constituyó el primer paso gubernamental más o menos decidido
a promover un cambio para la atención educativa en el ámbito de los derechos huma-
nos fundamentales: el derecho a una educación de calidad. Sin embargo, “las políticas
educativas del sexenio salinista no resolvieron los viejos problemas educativos, como
los de calidad y equidad; los defectos estructurales del sistema, en especial la imbrica-
ción del sindicato y las autoridades en la toma de decisiones, siguieron intactos
(MARTÍNEZ, 2001, p. 42), lo que dificultó que los cambios se volvieran transforma-
cionales en favor de las personas con BAPS y/o discapacidad; antes bien, estas vieron
afectados sus derechos con la descentralización, en 1993, de los servicios de educación
especial, con sólo una dirección operativa para el Distrito Federal (ahora Ciudad de
México), dejando a los estados en una situación de indefensión respecto a cómo ofrecer
los servicios educativos, bajo qué premisas y con qué recursos, pues los hacía responsa-
bles de los procesos de capacitación y actualización, y pasaba por alto gran parte de la
normatividad, con todas las implicaciones políticas, económicas, sociales y educativas
que esto trajo consigo.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Análisis de las políticas educativas desde la perspectiva de la inclusión en México, 1988-2021
47
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 43-69, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Estrada (1992) refiere que dicho Programa de Modernización Educativa, tra-
tando de poner el acento en una educación más relevante, enfatiza la urgencia de elevar
la calidad de la educación básica, partiendo de las necesidades de aprendizaje señaladas
en la Declaración de Educación para Todos (1990), de ahí la estrategia fundamental
de modificar los planes y programas de estudio, que se concretarían en la Reforma de
1993. La necesidad de cambio parecía provenir más bien de las presiones internacio-
nales por agregarnos a la era de la modernidad, que por un auténtico interés en mejorar
la calidad de la educación que se ofrecía.
Con las modificaciones realizadas a la nueva Ley General de Educación (1993),
se fomentaba una nueva política de educación especial a través de la reorganización de
los servicios, quedando de la siguiente manera:
a) Los servicios escolarizados de educación especial se transformaron en CAM
(Centros de Atención Múltiple), instituciones que todavía ofrecen educación básica
para alumnos y alumnas que presentan NEE, con o sin discapacidad y formación para
el trabajo (CAM laboral).
b) Establecimiento de las Unidades de Servicios de Apoyo a la Educación Regular
(USAER), con el propósito de promover la integración de las niñas y niños con NEE
a las escuelas y aulas de educación regular.
c) Creación de los Centros de Recursos e Información para la Integración Edu-
cativa (CRIE) y las Unidades de Orientación al Público (UOP), para brindar
información y orientación a padres y madres de familia y docentes (SEP, 2002).
Con la reorientación de los servicios y la descentralización operativa, la SEP se
propuso eliminar el estatuto de sistema paralelo de la educación especial sin mayor
éxito, pues la Reforma resultó «fallida», según García et al. (2009, p. 16), entre otras
cuestiones, porque las autoridades educativas que propusieron los cambios no conocían
la realidad de estos CAM, y los cambios resultaron más políticos que técnicos.
Para el sexenio siguiente, el presidente Ernesto Zedillo conforma el Programa de
Desarrollo Educativo 1995-2000. Con él se pretendía consolidar la descentralización,
haciendo a los estados y municipios responsables de la erogación de recursos para la
educación e incluir a México en los movimientos internacionales de integración-inclu-
sión que ya se estaban dando con la UNESCO, la OCDE y el Banco Mundial a la
cabeza. Sin embargo, esta integración inicial de estudiantes con BAPS y/o discapacidad,
observaron algunos investigadores del Consejo Mexicano de Investigación Educativa,
“parece constituir una meta a alcanzar en un plazo relativamente largo…” (COMIE,
1996, p. 14).
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Mónica del Carmen Reyes Verduzco, Karla Kae Kral
48
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 43-69, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
En este programa se expresaron también los retos educativos de lograr que la
escuela llegara a todos los mexicanos; que hubiera una equidad en las oportunidades
educativas y que los conocimientos adquiridos fueran de calidad y pertinentes. En ese
sentido, el sexenio fue de consolidación de lo emprendido por el gobierno de Salinas
respecto de la educación básica. Sin embargo, esto no fue suficiente para cumplir con
la meta de que el 90% de los niños en edad escolar (6 a 14 años) estuvieran en las aulas:
el censo de 2000 evidenció que alrededor de un millón seguían fuera de ella y que la
eficiencia terminal en primaria era de apenas el 87% (INEGI, 2001, p.14). Aunado a
ello, en estos años de pretendida modernización, Juárez, Comboni y Garnique (2010,
p. 69) aseveran que la integración fue un fracaso, “ya que no logró integrar a los niños
y niñas con NEE, no permitió fortalecer el subsistema de educación especial, no logró
alcanzar la meta de ofrecer educación para todos, no promovió la equidad ni suprimió
la marginación”.
Para la administración de Vicente Fox (2000-2006), hubo un replanteamiento
de la política de estado establecida en el sexenio anterior y se buscó integrar en el desa-
rrollo de las políticas públicas las Normas Uniformes sobre la Equiparación de
Oportunidades para las Personas con Discapacidad, de las Naciones Unidas, como do-
cumento rector. Este documento reconoce el derecho de estas personas a una vida
digna, plena y en igualdad de condiciones que el resto de la población, buscando dina-
mizar sus esferas escolares, familiares, comunitarias y laborales. A efecto de que ello
fuera posible, se instrumentó el Programa Nacional de Fortalecimiento de la Educación
Especial y de la Integración Educativa (PFEEIE), el cual englobaba a los modelos de
educación especial y regular, pretendiendo garantizar la justicia educativa y la equidad
como primer objetivo estratégico (SEP, 2002). Se constituyó también, en ese mismo
periodo, la Coordinación General de Educación Intercultural y Bilingüe, dependiente
de la Secretaría de Educación Pública, como proyecto para atender a la población in-
dígena e impulsar su incorporación a la dinámica educativa, a través de una adecuada
política de educación intercultural que persiste hasta nuestros días.
Sin embargo, como expresan Juárez et al. (2010, p. 54)
[…] en el sexenio 2000-2006 fue poca la atención que se le brindó a la educación inclusiva. Se
limitó a recomendar a los profesores poner atención a las diferencias sociales y culturales de niños
y niñas, respetar el ritmo y las necesidades de aprendizajes particulares de cada uno, pero no se
indica apertura alguna para la educación inclusiva.
Enseguida, el Plan Nacional de Desarrollo 2007-2012 definió el desarrollo hu-
mano sustentable como premisa básica para el avance integral del país y consideraba a
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Análisis de las políticas educativas desde la perspectiva de la inclusión en México, 1988-2021
49
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 43-69, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
la persona, sus derechos y la potenciación de sus capacidades, como la columna verte-
bral para la definición de políticas públicas. Así, el objetivo 17, eje 3 del citado Plan,
estaba enfocado a abatir la marginación y el rezago de los “grupos prioritarios”, donde
cataloga, entre otros, a la población indígena y a los grupos vulnerables, a fin de “pro-
veer igualdad de oportunidades que les permitiera desarrollarse con independencia y
plenitud” (MÉXICO, PODER EJECUTIVO FEDERAL PND 2007-2012, p. 214)
y hacía referencia a la calidad educativa, comprendiendo los rubros de cobertura, equi-
dad, eficacia, eficiencia y pertinencia.
Los ánimos de este nuevo Plan Nacional se materializaban en el Programa Na-
cional para el Desarrollo de las Personas con Discapacidad, 2009-2012
(PRONADDIS), pues retomaba disposiciones de la Convención de Naciones Unidas
sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad, la cual instaba a los estados a
adoptar medidas de carácter legislativo, social y educativo, necesarias para eliminar la
discriminación contra las personas con discapacidad y propiciar su integración a la so-
ciedad (NACIONES UNIDAS, s. f.).
Para el sexenio de Enrique Peña Nieto, las políticas del Plan Nacional de Desa-
rrollo 2013-2018, orientaron su actuación en torno a cinco metas: México en Paz,
México Incluyente, México con Educación de Calidad, México Próspero y México con
Responsabilidad Global.
La meta México Incluyentetenía como objetivo, entre otros, transitar hacia una
sociedad equitativa e incluyente, por lo que estableció como política de estado garanti-
zar la vigencia efectiva de los derechos de las personas con discapacidad y/o en situación
de exclusión (grupos indígenas, poblaciones migrantes, etc.), y contribuir a su desarro-
llo integral a través de una inclusión social amplia. Así, en su objetivo 3.2. México con
Educación de Calidad, el citado Plan estableció como meta “garantizar la inclusión y
la equidad en el Sistema Educativo” (MÉXICO, DOF, 20/05/2013, p. 6), en un afán
de complementariedad de acciones y de transversalidad de estrategias.
Al respecto, y en concordancia con la Reforma Educativa del 2013, se modificó
el Artículo 3° de la Constitución Mexicana, para garantizar que todo individuo pudiera
tener el derecho a la educación de calidad. En este contexto, y tratando de dar atención
al problema de desigualdad y exclusión educativa, la SEP estableció el Programa para
la Inclusión y la Equidad Educativa (PIEE), el cual fusiona otros siete programas que
ya venían operando y que representan los componentes del denominado Programa
S244 (PIEE); entre otros: de fortalecimiento de la educación especial y la integración
educativa, de atención a migrantes, de fortalecimiento de la telesecundaria, de atención
a grupos vulnerables y de educación para personas con discapacidad (SEP, 2014); busca
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Mónica del Carmen Reyes Verduzco, Karla Kae Kral
50
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 43-69, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
también apoyar a las entidades federativas, a las escuelas y servicios educativos, en la
construcción de condiciones que permitan mejorar la inclusión y equidad educativa,
con énfasis en la retención y egreso oportuno.
Desde su creación, el PIEE ha tenido algunos aciertos en cuanto a accesibilidad
a la educación, ingreso y hasta permanencia, pero la retención y egreso oportuno con
la calidad educativa esperada, todavía no se ha logrado.
En México, aunque las políticas educativas de educación especial e integracionis-
tas han venido cambiando, el camino hacia la inclusión se vislumbra todavía largo y
arduo. Las actuales políticas del sexenio del presidente López Obrador (2018-2024),
continúan con el Programa para la Inclusión y la Equidad Educativa (PIEE), y lo reto-
man como estrategia para la impulsar la Reforma Educativa de 2019, en su apartado
de fortalecimiento de la equidad e inclusión, donde subrayan la gratuidad de la educa-
ción para lograr la equidad, y el trabajo y desarrollo de la educación inclusiva como
facilitador de la inclusión social. Para ello, se impulsan los siguientes programas: Es-
cuela Digna, Escuelas de Excelencia para Abatir el Rezago Educativo; Escuelas de
Tiempo Completo, Inclusión y Alfabetización Digital, e Inclusión y Equidad Educa-
tiva. (GOBIERNO DE LA REPÚBLICA, 2019).
Las estrategias y directrices educativas del presente gobierno son de continuidad
y desarrollo de lo hasta ahora logrado, pero ponen en duda la pertinencia de algunos
aspectos claves en que se venía avanzando, como la evaluación docente en su ingreso,
promoción y permanencia, con la derogación de la Reforma Educativa de 2013 y la
desaparición del INEE, o el desmantelamiento de las Escuelas de Tiempo Completo y
Escuelas de Calidad. En ese sentido, habrá que esperar a ver los impactos de esas deci-
siones.
Por otra parte, la necesidad de una reorientación o reordenamiento de la educa-
ción especial que actúa como sistema paralelo al modelo de inclusión pretendido, sigue
estando presente en México, para lo cual es imperativa una transformación completa
del sistema, que asegure la inclusión educativa necesaria para las poblaciones en des-
ventaja.
Todas estas leyes, planes y programas rectores del Estado, pretenden dar cuenta
de un esfuerzo coordinado por reconocer el derecho pleno a una vida justa y equitativa
en igualdad de oportunidades que el resto de las personas que no presentan discapaci-
dad o BAPS. Si bien el tránsito y desarrollo de la educación especial hacia la educación
inclusiva en México ha estado determinado por los tiempos políticos y sociales, la pers-
pectiva de los derechos humanos y la justicia como elementos clave para la inclusión
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Análisis de las políticas educativas desde la perspectiva de la inclusión en México, 1988-2021
51
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 43-69, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
de estas poblaciones, se han convertido en un arma de batalla. Enseguida, algunas ideas
orientadoras al respecto.
Perspectiva de los derechos humanos para la justicia social en las
políticas de educación inclusiva
En la actualidad, la inclusión educativa se entiende como una cuestión de dere-
chos humanos que hace referencia a un amplio grupo de alumnado, entre los que se
encuentran la población indígena, el estudiantado con aptitudes sobresalientes y otros
colectivos en riesgo de exclusión (niños y niñas jornaleros y agrícolas migrantes, de
zonas urbano-marginales, indígenas, entre otros), además de las y los estudiantes que
presentan BAPS y/o discapacidad.
Tradicionalmente, estos grupos de población han sido excluidos de los beneficios
que trae consigo la inclusión social, entendida como
… algo más que la reducción de la pobreza y la desigualdad. Es un concepto que abarca factores
que contribuyen a la capacidad de un individuo de disfrutar de una vida segura y productiva,
independientemente de su raza, origen étnico, género, orientación sexual, o discapacidad física o
mental (AMERICAS QUARTERLY, 2015, p. 3).
En ese sentido, la inclusión social es un concepto abarcativo relacionado con un
proceso creciente de integración, de cohesión y de justicia social que se evidencia en
redes de carácter afectivo, familiar, vecinal o comunitario que buscan la participación
equitativa y en igualdad de condiciones de todas las personas en sus diferentes dimen-
siones sociales: económica, legal, política, cultural, educativa.
La inclusión busca evitar la exclusión, que es el estado o situación de una persona
o grupo poblacional que no participa plenamente de las oportunidades y recursos dis-
ponibles para el disfrute de condiciones de una vida digna, con sus derechos y
responsabilidades.
Una de las esferas de la inclusión social más importantes lo constituye el espacio
educativo. En él, la persona se encuentra en continuo proceso de formación y desarrollo
y, al ir concretando niveles de escolaridad, va también consolidando su inclusión en
otros ámbitos de la vida, pues es en la escuela donde se dinamizan preferentemente los
procesos de inclusión y se promocionan los derechos y libertades que favorecen la iden-
tidad y participación ciudadana.
La UNESCO (2005, p. 14) conceptualiza la educación inclusiva como “el pro-
ceso de identificar y responder a la diversidad de la necesidad de todos los estudiantes
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Mónica del Carmen Reyes Verduzco, Karla Kae Kral
52
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 43-69, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
a través de la mayor participación en el aprendizaje, las culturas y las comunidades y
reduciendo la exclusión en la educación”.
Entendida así, la educación inclusiva se observa como un paradigma en cons-
trucción, como un modo de hacer y de entender la educación en un esquema pleno de
derechos y libertades, de responsabilidades y colaboración, de aceptación, integración
e inclusión del otro; como la capacidad de respuesta de una escuela o aula inclusiva
para acoger a todo su alumnado, independientemente de sus limitaciones y posibilida-
des.
La educación inclusiva supone, además, la atención y trabajo con otros grupos
que, por sus características demográficas, poblacionales, de origen étnico o racial, eco-
nómicas o de género, no han sido incluidos a la dinámica de vida de las comunidades
educativas, y difícilmente podrán constituirse en las comunidades de aprendizaje y so-
cialización deseadas, como el caso de las poblaciones indígenas o el de las personas con
discapacidad, quienes constituyen los dos colectivos minoritarios más amplios y exclui-
dos de los beneficios que supone la inclusión social y por ello se consideran los grupos
poblacionales más segregados.
Pero estos procesos de inclusión y de exclusión no se han caracterizado de igual
manera todo el tiempo y constituyen periodos más o menos definidos: desde antes de
1980 con el modelo clínico o del déficit, pasando por los modelos asimilacionista (dé-
cada de los 80´s), integracionista (años 90´s), hasta llegar al modelo de inclusión social
(año 2000 en adelante) (REYES, 2013), donde se presenta una valoración positiva de
la diversidad que busca construir un sistema que incluya y esté estructurado para hacer
frente a las necesidades de todo el alumnado, dentro de un marco de derechos huma-
nos.
Sin embargo, para el caso de México, en la actualidad hay una persistencia del
enfoque médico-asistencial que trae consigo discriminación, rechazo y desatención de
las necesidades más elementales de estos colectivos. Las prácticas y dinámicas en las
escuelas y aulas son todavía integracionistas en muchos de los casos, no inclusivas. Bas-
ten dos ejemplos: 1) la Estadística 911, plataforma electrónica que concentra la
información respecto a los alumnos, el personal docente y directivo e inmuebles de los
sistemas educativos estatales y nacional presenta dificultades para la detección, ubica-
ción y atención de niños, niñas y adolescentes con BAPS y/o discapacidad en las
escuelas regulares; y 2) aunque los criterios para la equidad y la inclusión están garan-
tizados en la norma, la participación social y la calidad de los aprendizajes en la pctica
son escasos.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Análisis de las políticas educativas desde la perspectiva de la inclusión en México, 1988-2021
53
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 43-69, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
La inclusión educativa comprende así un proceso vinculado a la defensa de la
dignidad e igualdad de las personas en la tarea de mejorar las condiciones de los centros
educativos, para que estos ofrezcan una mayor participación y calidad en los aprendi-
zajes y en las actividades culturales y comunitarias para todos los alumnos, mientras se
reduce de este modo la exclusión educativa (ECHEITA, 2009).
Este cambio de paradigma trajo consigo la urgencia de colocar a los derechos
humanos como centro del debate sobre la participación y democracia de la vida de las
comunidades. De este modo, nadie puede negar el valor del derecho a la educación, a
la salud, al trabajo, a la calidad de vida; y el valor del reconocimiento y la diferencia
como categoría para identificar al otro, que es diferente, pero que nos complementa.
En ese sentido, Tedesco (2011, p. 22) refiere que “La justicia social, hoy, pasa por la
educación. Para estar incluido hay que estar educado, para participar como ciudadano,
para participar en el mercado de trabajo como trabajador, como productor, hay que
estar educado”. Por ello, privar a las y los estudiantes con discapacidad y/o BAPS de
los beneficios que supone la educación formal, se traduce en un claro elemento exclusor
de una justicia social distributiva, donde los recursos, apoyos y esfuerzos estén orienta-
dos a que todo el estudiantado se encuentre incluido, aprendiendo juntos y socializando
sus conocimientos. Las personas con discapacidad y BAPS, representan el más serio
reto para la inclusión exitosa; de allí la importancia y trascendencia de estudios como
este.
Metodología
La metodología empleada en esta investigación es el análisis de contenido cuan-
titativo y cualitativo. En su esencia, el análisis de contenido implica examinar “el
contenido manifiesto y latente de un cuerpo de material comunicado (como un libro
o una película) a través de una clasificación, tabulación y evaluación de sus símbolos y
temas clave para determinar su significado y efecto probable” (MERRIAM-
WEBSTER, s.f.). Su uso ha sido aplicado para analizar artefactos audiovisuales y textos
escritos. Se considera que los textos escritos poseen información valiosa sobre un fenó-
meno particular (KLEINHEKSEL et al., 2020).
En la investigación educativa hay una larga trayectoria del análisis documental,
particularmente respecto a las políticas educativas y los documentos curriculares
(BALL, 1994; COBB; JACKSON, 2012; JAMIL et al., 2020). Una política “es un
intento intencionado por parte de miembros de un grupo para influir en las prácticas
de los miembros de otro grupo” (COBB; JACKSON, 2012, p. 488), por tanto, la
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Mónica del Carmen Reyes Verduzco, Karla Kae Kral
54
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 43-69, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
política educativa nacional influye en los valores y las directrices para la organización
escolar, los contenidos curriculares, la cultura escolar y la práctica educativa.
Para el caso de esta investigación, se analizaron 12 documentos rectores que de-
finen la política educativa federal durante los últimos seis sexenios en México (ver
Cuadro 2): 1) los Planes Nacionales de Desarrollo (PND), que explican los objetivos y
estrategias prioritarias durante el periodo gubernamental, y 2) los Programas Sectoriales
de Educación (PSE), que especifican los objetivos, las estrategias y las líneas de acción
para todos los niveles educativos del país. La selección de estos documentos se realizó
considerando el parteaguas nacional que constituyó la Reforma de 1993, en relación
con la educación especial y los servicios educativos que de ella se desprenden.
El análisis del contenido de la política educativa conlleva a la indagación de “lo
que hay detrás y dentro de” ella (CARDNO, 2018, p. 625); es decir, el contenido
latente. Así, se han identificado cinco aspectos claves a analizar en los textos de política
pública: 1) la producción y ubicación del documento (por qué, cuándo y dónde fue
producido, la facilidad del acceso al documento); 2) autoría y público (quién escribió
el documento y a quién está dirigido); 3) el contexto de la política (el propósito del
documento, los valores que subyacen a la política); 4) el texto (la estructura del texto,
los contenidos y sus elementos claves), y las 5) consecuencias de la política (el impacto
esperado, su implementación, monitoreo y evaluación) (CARDNO, 2018, p. 631).
Adicionalmente, se pueden incorporar aspectos cuantitativos en el análisis del conte-
nido de la política pública (el contenido manifiesto), a través del conteo de palabras,
para obtener una visión general del documento al aislar la frecuencia con la que se
utilizan algunos términos (CARDNO, 2018, p. 632).
En el siguiente cuadro se enlistan los sexenios gubernamentales desde 1988 a la
fecha (2021) y los documentos rectores en política educativa valorados en este estudio:
Cuadro 2 Directrices Federales Analizadas
Sexenio
Documentos Estratégicos
1988 1994
Presidente:
Carlos Salinas de
Gortari
Plan Nacional de Desarrollo 1989-1994 (152 páginas)
Programa Nacional para la Modernización Educativa 1990-1994 (57 páginas)
1994-2000
Presidente:
Ernesto Zedillo Ponce
de León
Plan Nacional de Desarrollo 1995-2000 (91 páginas)
Programa de Desarrollo Educativo 1995-2000 (60 páginas)
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Análisis de las políticas educativas desde la perspectiva de la inclusión en México, 1988-2021
55
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 43-69, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
2000-2006
Presidente:
Vicente Fox Quesada
Plan Nacional de Desarrollo 2001-2006 (116 páginas)
Programa Nacional de Educación 2001-2006, “Por una educación de buena calidad para todos.
Un enfoque educativo para el siglo XXI” (264 páginas)
2006-2012
Presidente:
Felipe Calderón
Hinojosa
Plan Nacional de Desarrollo 2007-2012 (131 páginas)
Programa Sectorial de Educación 2001-2006 (64 páginas)
2012-2018
Presidente:
Enrique Peña Nieto
Plan Nacional de Desarrollo 2013-2018 (118 páginas)
Programa Sectorial de Educación 2013-2018 (117 páginas)
2018-2024
Presidente:
Andrés Manuel López
Obrador
Plan Nacional de Desarrollo 2019-2024 (24 páginas)
Programa Sectorial de Educación 2019-2024 (127 páginas)
Fuente: elaboración de las autoras.
A partir del modelo presentado por Cardno (2018), se elaboró una matriz de
análisis para valorar aspectos claves de cada documento, como fundamentos, objetivos,
demandas prioritarias y estrategias. Se diseñó una segunda matriz para recuperar frag-
mentos de texto ligados con los conceptos de equidad/calidad, inclusión/diversidad y
mujer/mujeres/género, dimensiones de interés para las autoras, a fin de valorar la am-
plitud de la perspectiva incluyente del gobierno mexicano. Debido a la gran cantidad
de texto del que se dispuso, el análisis se enfocó exclusivamente en la educación básica.
Enseguida, se realizó un conteo a través de la función “buscar palabras” en archivos
tipo “pdf” en Adobe Acrobat, para determinar la presencia de ocho palabras clave en
cada documento de la muestra: calidad, equidad, igualdad, educación especial, inclu-
sión-inclusivo-incluyente, diversidad, intercultural-interculturalidad y mujer-mujeres-
género.
Resultados preliminares
Los resultados que se presentan corresponden al análisis preliminar de la infor-
mación recabada, por lo que el proceso de revisión continúa. La discusión se organiza
según cuatro de los cinco aspectos fundamentales para el análisis documental de la po-
lítica pública mencionado por Cardno (2018) y descrito en el apartado metodológico.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Mónica del Carmen Reyes Verduzco, Karla Kae Kral
56
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 43-69, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Producción, autoría y público de la política educativa mexicana analizada
Desde 1983, con la publicación de la Ley de Planeación en México (MÉXICO,
DIARIO OFICIAL DE LA FEDERACIÓN DOF. 05/01/1983), se estableció el
Sistema Nacional de Planeación Democrática, con el propósito de involucrar a dife-
rentes dependencias del gobierno y la sociedad civil en la orientación de las acciones
que rigen el ejercicio de las actividades económicas, sociales, políticas y culturales del
país (COQUIS, 2015). Desde entonces, el gobierno de cada sexenio ha realizado con-
sultas públicas para definir las directrices, metas y líneas de acción para los Programas
Nacionales de Desarrollo (PND) y los Programas Sectoriales, institucionales, regionales
y especiales. En ese sentido, el presidente de la República envía el PND a la Cámara de
Diputados del Congreso de la Unión para su aprobación hacia el mes de febrero, al
inicio del periodo sexenal, para ser publicado en el Diario Oficial de la Federación
(OBSERVATORIO REGIONAL DE PLANIFICACIÓN PARA EL
DESARROLLO DE AMÉRICA LATINA Y EL CARIBE, s. f). Así, en México:
[L]a planeación se concibe como el medio para el desempeño eficaz de la responsabilidad del
Estado sobre el desarrollo integral del país, corresponde al Ejecutivo Federal la conducción de la
planeación nacional del desarrollo, entendida como la ordenación racional y sistemática de ac-
ciones que tiene como propósito la transformación de la realidad nacional, de conformidad con
las normas, principios, y objetivos que la Constitución y las leyes establecen (COQUIS, 2015,
p. 204).
Los PND y Programas Sectoriales revisados para este estudio (1989 2018),
hacen referencia a la Ley de Planeación y se incluye en la parte introductoria una ex-
plicación de los sectores públicos consultados para su elaboración. Enseguida se
presenta la información recuperada en cada sexenio, en relación con los procesos de
consulta mencionados:
1989 1994: Consulta Nacional para la Modernización de la Educación, en la cual participaron
consejos estatales y municipales, docentes, madres/padres de familia, profesionistas, intelectuales
y empresarios. Además, se conformaron comisiones de trabajo con especialistas (MÉXICO,
DOF, 29/01/1990, párrafo. 12).
1995 2000: Diez Foros de Consulta Popular del sector educativo, con la participación de do-
centes, madres/padres de familia, autoridades educativas de los estados, universidades, la
Asociación Nacional de Universidades e Instituciones de Educación Superior (ANUIES), escue-
las particulares, académicos e investigadores. Temas: justicia educativa, educación básica,
educación media superior y superior, organización del sistema educativo, participación social,
formación de docentes, educación para adultos vinculada con las necesidades sociales y produc-
tivas y educación y sociedad. Se consideraron diez Propuestas para Asegurar la Calidad de la
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Análisis de las políticas educativas desde la perspectiva de la inclusión en México, 1988-2021
57
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 43-69, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Educación Básica presentadas por el Sindicato Nacional de Trabajadores de la Educación
(SNTE) (XICO, DOF, 19/02/1996, párrafo. 2).
2001 2006: Consultas con las comisiones de educación del Poder Legislativo, autoridades edu-
cativas de todas las entidades, el SNTE, la ANUIES, la Federación de Instituciones Mexicanas
Particulares de Educación Superior (FIMPES), organizaciones de madres/padres de familia, la
Comisión de Educación del Sector Empresarial (CESE) y otras instancias del sector privado.
Encuesta ciudadana (2,398 cuestionarios recibidos); 64 reuniones y 32 foros organizados por la
SEP. (MÉXICO, SECRETARÍA DE EDUCACIÓN PÚBLICA SEP, 2001, p. 19-20).
2007 2012: Consulta con más de 23 organismos sectorizados, incluyendo el Consejo Nacional
de Fomento Educativo (CONAFE), Colegio Nacional de Educación Profesional Técnica
(CONALEP), Instituto Nacional para la Educación de los Adultos (INEA), Instituto Politécnico
Nacional (IPN), Universidad Pedagógica Nacional (UPN), Instituto Nacional de Evaluación
Educativa (INEE) (MÉXICO, SECRETARÍA DE EDUCACIÓN PÚBLICA SEP, 2007, p.
10).
2013 2018: Únicamente se menciona que la planeación está sustentada en procesos de consulta
amplios que permitieron la participación de diversos sectores de la sociedad, pero no refiere a los
sectores específicos consultados. (MÉXICO, SECRETARÍA DE EDUCACIÓN PÚBLICA
SEP, 2013, p. 19).
2019 2024: Se fundamenta en la Ley de Planeación, pero no explica el proceso de consulta
(MÉXICO, DOF, 06/07/2020, párr. 2).
En resumen, México cuenta con legislación federal que obliga al Ejecutivo Fede-
ral a
… definir las políticas públicas en cada sexenio con base en las necesidades, demandas y opiniones
de distintos sectores gubernamentales y civiles. Con respecto a los planes y programas sectoriales
de educación, en el periodo estudiado, se nota una variedad de estrategias y sectores involucrados.
Por lo que se refiere a la difusión de las políticas públicas, la Ley del Diario Oficial de la Federa-
ción y Gacetas Gubernamentales reglamenta las bases para la creación y difusión de las gacetas
gubernamentales, mismas que se editan en la Ciudad de México y se distribuyan de manera
gratuita en todos los estados del país (JUSTIA, s. f).
Finalmente, el público particularmente interesado en los planes y Programas Sec-
toriales de Educación son los organismos públicos y privados de los diferentes niveles
educativos, el liderazgo en cada institución educativa y el profesorado, aunque impacta
a toda la comunidad educativa.
Contexto de la política educativa mexicana analizada
Las políticas referentes al desarrollo nacional buscan transformar las condiciones
económicas, políticas, sociales y culturales del país. Si bien en México hay un Sistema
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Mónica del Carmen Reyes Verduzco, Karla Kae Kral
58
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 43-69, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Nacional de Planeación Democrática, lo cual permite la participación de diversos ac-
tores en la definición de las acciones prioritarias para mejorar la vida nacional, es
necesario reconocer la influencia de los organismos internacionales en orientar las po-
líticas públicas de los Estados. Algunos de estos organismos son la Organización para
la Cooperación y el Desarrollo Económico (OCDE), el Banco Mundial (BM), las Na-
ciones Unidas (ONU) y la Organización de las Naciones Unidas para la Educación, la
Ciencia, y la Cultura (UNESCO). En ese sentido, se evidencia la fuerte influencia de
las políticas económicas internacionales en los PND de los sexenios estudiados (ver
Cuadro 3), pues un punto de partida durante el sexenio de Salinas de Gortari (1988
1994) lo fue la modernización económica como fundamento principal del PND y el
Programa para la Modernización Educativa 1990 1994, donde la noción del cambio
económico como motor para la estabilidad y equidad, aparece como un principio in-
tegrador.
La continuidad de la racionalidad económica neoliberal y empresarial es evidente
en los marcos de la globalización económica y política que fundamentan los PND en
los subsecuentes sexenios, como se puede notar en el Cuadro 3. El sexenio actual (2018
2024) es una excepción, dado que el modelo económico “para el bienestar” propone
tomar decisiones autónomas y desafiar “la mano invisible del mercado” para lograr una
separación entre el poder político y el poder económico, y, así, “no dejar a nadie atrás,
no dejar a nadie fuera” (MÉXICO, DOF, 12/07/2019, párrs. 18 - 21).
De esta manera, es posible observar la evolución de los conceptos del desarrollo
humano con base en el desarrollo sustentable y sostenible, especialmente a partir del
sexenio de Calderón (2006 2012), con el desarrollo como principio rector del PND,
y el énfasis en “crear una atmósfera en que todos puedan aumentar su capacidad y las
oportunidades puedan ampliarse para las generaciones presentes y futuras” (MÉXICO,
DOF, 31/05/2007, párr. 14). Para el sexenio actual se evidencia un cambio del con-
cepto de desarrollo sustentable al de desarrollo sostenible, reflejando la adopción, por
parte del gobierno mexicano, de la Agenda 2030 y sus 17 Objetivos de Desarrollo Sos-
tenible (ODS) desde 2015. El PND 2019 – 2024 estipula que:
El gobierno de México está comprometido a impulsar el desarrollo sostenible, que en la época
presente se ha evidenciado como un factor indispensable del bienestar. Se le define como la sa-
tisfacción de las necesidades de la generación presente sin comprometer la capacidad de las
generaciones futuras para satisfacer sus propias necesidades (XICO, DOF, 12/07/2019, párr.
104).
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Análisis de las políticas educativas desde la perspectiva de la inclusión en México, 1988-2021
59
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 43-69, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Cuadro 3 Fundamentos y Objetivos en los PND y Programas Sectoriales Educati-
vos Relacionados con la Inclusión
Sexenio
Fundamentos relevantes
Objetivos en el PND
relacionados con
equidad/igualdad/
inclusión/género
Objetivos en los Programas
Sectoriales de Educación
relacionados con
equidad/igualdad/inclusión/
género
1988-1994
Salinas de Gortari
Modernización; Cambio e
identidad; Acuerdo para la
Ampliación de Nuestra
Vida Democrática.
Acuerdo para la
Recuperación Económica
con Estabilidad de Precios.
Acuerdo para el
Mejoramiento Productivo
del Nivel de Vida.
- Objetivo II: La ampliación
de la vida democrática.
- Ofrecer los tres niveles de la
educación básica a la población en
edad escolar, buscando abatir las
disparidades e inequidades en la
prestación del servicio educativo
entre regiones e individuos.
- Elevar el rendimiento escolar en
los ciclos de educación primaria y
secundaria, con especial énfasis en
las zonas marginadas del medio
urbano, rural e indígena.
- Fortalecer la educación especial
como servicio complementario de la
educación básica destinada a niños
y jóvenes con algún trastorno o
deficiencia que comprometa su
normal desenvolvimiento, así como
a aquellos con capacidades
sobresalientes.
1994-2000
Zedillo Ponce de León
Modernización;
Globalización;
Internacionalización;
Multilateralismo.
- III. Construir un pleno
desarrollo democrático con
el que se identifiquen todos
los mexicanos y sea base de
certidumbre y confianza para
una vida política pacífica y
una intensa participación
ciudadana.
- IV. Avanzar a un desarrollo
social que propicie y
extienda en todo el país, las
oportunidades de superación
individual y comunitaria,
bajo los principios de
equidad y justicia.
- Propósitos fundamentales: La
equidad, la calidad y la pertinencia
de la educación.
-
Educación básica: Cobertura,
equidad y calidad.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Mónica del Carmen Reyes Verduzco, Karla Kae Kral
60
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 43-69, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
2000-2006
Fox Quesada
Inclusión;
Sustentabilidad;
Competitividad;
Desarrollo Regional;
Educación para todos;
Revolución educativa
- Objetivo Rector 1: Mejorar
los niveles de educación y
bienestar de los mexicanos.
- Objetivo Rector 2;
Acrecentar la equidad y la
igualdad de oportunidades.
Objetivo estratégico 1: Avanzar
hacia la equidad en educación.
Objetivo estratégico 2:
Proporcionar una educación de
calidad adecuada a las necesidades
de todos los mexicanos.
2006-2012
Calderón Hinojosa
Desarrollo humano
sustentable;
Modernización integral de
México
- Objetivo 5: Reducir la
pobreza extrema y asegurar la
igualdad de oportunidades y
la ampliación de capacidades
para que todos los mexicanos
mejoren significativamente
su calidad de vida y tengan
garantizados alimentación,
salud, educación, vivienda
digna y un medio ambiente
adecuado para su desarrollo
tal y como lo establece la
Constitución.
-
Objetivo 6: Reducir
significativamente las
brechas sociales, económicas
y culturales persistentes en la
sociedad, y que esto se
trad
uzca en que los
mexicanos sean tratados con
equidad y justicia en todas
las esferas de su vida, de tal
manera que no exista forma
alguna de discriminación.
- Objetivo 1: Elevar la calidad de la
educación para que los estudiantes
mejoren su nivel de logro educativo,
cuenten con medios para tener
acceso a un mayor bienestar y
contribuyan al desarrollo nacional.
-
Objetivo 2: Ampliar las
oportunidades educativas para
reducir desigualdades entre grupos
sociales, cerrar brechas e impulsar la
equidad.
- Objetivo
4: Ofrecer una
educación integral que equilibre la
formación en valores ciudadanos, el
desarrollo de competencias y la
adquisición de conocimientos, a
través de actividades regulares del
aula, la práctica docente y el
ambiente institucional, para
fortalec
er la convivencia
democrática e intercultural.
2012-2018
Peña Nieto
Globalización; Sociedad
del conocimiento;
Derechos humanos;
Desarrollo sustentable
- Meta Nacional II: Un
México Incluyente
-
Meta Nacional III: Un
México con Educación de
Calidad
- Eje
transversal III: Una
Perspectiva de Género en
todos los programas de la
Administración Pública
Federal.
- Objetivo 1: Asegurar la calidad de
los aprendizajes en la educación
básica y la formación integral de
todos los grupos de la población.
- Estrategia transversal 3: Igualdad
de oportunidades y no
discriminación contra las mujeres.
-
Objetivo 3: Asegurar mayor
cobertura, inclusión y equidad
educativa entre todos los grupos de
la población para la construcción de
una sociedad más justa.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Análisis de las políticas educativas desde la perspectiva de la inclusión en México, 1988-2021
61
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 43-69, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
2018-2024
López Obrador
Cuarta Transformación;
Economía para el
bienestar;
Erradicar la corrupción;
Desarrollo sostenible;
Justicia social; Derechos
humanos; Regeneración
ética de las instituciones y
la sociedad
- Objetivo 2 (Política
Social): Construir un país
con
bienestar y desarrollo
sostenible.
- Objetivo Prioritario 1: Garantizar
el derecho de la población en
México a una educación equitativa,
inclusiva, intercultural e integral,
que tenga como eje principal el
interés superior de las niñas, niños,
adolescentes y jóvenes.
- Objetivo Prioritario 2: Garantizar
el derecho de la población en
México a una educación de
excelencia, pertinente y relevante en
los diferentes tipos, niveles y
modalidades del Sistema Educativo
Nacional.
Fuente: Elaboración de las autoras, con base en los PND y PSE de cada sexenio.
La revisión de los PND y PSE de los últimos seis sexenios en México, de-
muestra que la educación está considerada como “la palanca”, “el factor de
progreso”, y el motor para la transformación del país. Incluso, en el sexenio de Fox
(2000 2006) se habla de “una revolución educativa” que “permita el desarrollo
del país y una alta calidad de vida para toda la población” (MÉXICO, DOF,
30/05/2001, p. 25). Se aprecia la incorporación paulatina de los marcos interna-
cionales educativos de la ONU y la UNESCO (por ejemplo, Educación Para
Todos y Educación Inclusiva) y los fundamentos de los derechos humanos, la jus-
ticia social y la equidad/igualdad en los objetivos de los planes y programas de
educación. Además, se percibe la creciente importancia de vincular la calidad edu-
cativa con la equidad y la inclusión, de modo que el Programa Sectorial de
Educación 20202024 adopta la perspectiva intercultural y de género, así como el
ODS #4 “Educación de Calidad”, como compromiso para “Garantizar una educa-
ción inclusiva y equitativa de calidad” (MÉXICO, DOF, 06/07/2020, párr. 10).
Contenidos destacados de la política educativa mexicana analizada
desde la perspectiva de la inclusión
La estructura general de los PND y los PSE incluye una parte introductoria;
la fundamentación y el marco normativo del plan; un diagnóstico de la situación
histórica y actual del país; la explicación de los objetivos y las estrategias y líneas de
acción y conclusiones. En general, tienden a ser documentos extensos: los PND
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Mónica del Carmen Reyes Verduzco, Karla Kae Kral
62
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 43-69, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
revisados tienen un promedio de 105 páginas (rango de 24 a 152), mientras que
los Programas Sectoriales de Educación tienen un promedio de 115 (rango de 57
a 264 páginas). Cabe destacar que el PND del sexenio actual se compone de sólo
24 páginas y contiene una estructura diferente a los otros planes de la muestra. En
cambio, el Programa Nacional de Educación 2001 2006, “Por una educación de
buena calidad para todos. Un enfoque educativo para el siglo XXI”, es el Plan Sec-
torial con el mayor número de páginas (264).
Para el propósito de este estudio, el análisis de contenidos se enfocó en textos
relacionados con la inclusión educativa (en un sentido amplio que considera todas
las diferencias) para valorar la presencia de conceptos y nociones pertinentes en los
12 documentos revisados. El conteo de palabras claves como “calidad,” “equidad,”
“inclusión,” “diversidad,” y “mujeres/género”, evidencia el tránsito hacia la inclu-
sión social como una prioridad en las directrices federales (ver Cuadro 4).
La palabra “calidad” persiste en todos los documentos de los sexenios estu-
diados (rango de 69 a 489 menciones), con una notable disminución en el actual
sexenio. La calidad y la excelencia educativa asociadas con la eficiencia, la eficacia
y los procesos de evaluación, forman parte del paradigma dominante de la política
educativa internacional (FERNÁNDEZ-GONZÁLEZ; MONARCA, 2018;
GARCÍA; HERVÁS, 2020), por lo que se espera su presencia en la política educa-
tiva nacional. Se observa también el cambio gradual de una noción económica del
concepto de equidad, hacia el de equidad vinculada con una mayor inclusión social.
Respecto a la equidad educativa, la orientación en los planes y programas progresa
de una preocupación por términos de cobertura, hacia la equidad como un ele-
mento inherente de la calidad educativa (“una educación de calidad con equidad”)
haciendo hincapié en los métodos pedagógicos, los contenidos curriculares, la per-
manencia y los resultados del aprendizaje.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Análisis de las políticas educativas desde la perspectiva de la inclusión en México, 1988-2021
63
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 43-69, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Cuadro 4 Frecuencia de palabras claves en los documentos federales analizados
Sexenio y Frecuencia
Palabra
1989-1994
1995-2000
2001-2006
2007-2012
2013-2018
2019-2024
Calidad
205
246
489
234
211
69
Equidad
15
64
216
49
33
35
Igualdad
20
44
86
55
69
31
Educación especial
25
14
4
2
3
11
Inclusión/Inclusivo/Incluyente
0
0
71
17
120
99
Diversidad
11
41
75
36
22
15
Intercultural/Interculturalidad
0
0
47
18
9
39
Mujer/Mujeres/Género
13
79
142
98
277
111
Fuente: elaboración de las autoras.
1
Hay una relación inversa entre las frecuencias de las palabras “educación especial”
e “inclusión/inclusivo/incluyente”; es decir, la frecuencia del uso de la palabra “educa-
ción especial” disminuye con el tiempo, mientras “inclusión/inclusivo/incluyente”,
aumenta. Este dato refleja los cambios paradigmáticos mencionados respecto de la con-
ceptualización de la atención de la diversidad y las necesidades específicas del
estudiantado hacia una atención integral. La interculturalidad y la pedagogía intercul-
tural están en consonancia con la inclusión educativa, de manera tal que el Objetivo
Prioritario 1 del Programa Sectorial de Educación 2020 2024 es: “Garantizar el de-
recho de la población en México a una educación equitativa, inclusiva, intercultural e
integral, que tenga como eje principal el interés superior de las niñas, niños, adolescen-
tes y jóvenes” (MÉXICO, DOF, 06/07/2020, p. 213).
Un factor primordial para lograr este objetivo, es contar con profesionistas capa-
citados/as con las competencias adecuadas para implementar estrategias didácticas
incluyentes e interculturales, por lo cual el Programa Sectorial de Educación 2020
2024 (MÉXICO, DOF, 06/07/2020, p. 220-221) nombra como estrategias priorita-
rias la formación del futuro profesorado en “conocimientos, capacidades, aptitudes y
valores necesarios para la educación integral” (Estrategia Prioritaria 3.1) y, también,
“Asegurar una formación docente con enfoque de derechos humanos, perspectiva de
género, interculturalidad y cultura de la paz” (Estrategia Prioritaria 3.1.7).
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Mónica del Carmen Reyes Verduzco, Karla Kae Kral
64
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 43-69, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Al examinar la presencia de las palabras “mujer”, “mujeres” y “género” en los 12
documentos estudiados, se percata un aumento significativo entre 1989 y 2019. Por
ejemplo, en el sexenio de Salinas (1989 1994) hay una frecuencia de 13, en el de Fox
de 142 y un auge notorio en el sexenio de Peña (n=277) (rango de 13 a 277).
El progresivo reconocimiento de las condiciones desiguales de las mujeres y la
necesidad de incorporar una perspectiva de género desde la definición de las políticas
públicas es resultado, por una parte, de las declaraciones y convenciones internacionales
emitidas por organismos como la ONU y la Organización de los Estados Americanos
(OEA) para fomentar la igualdad de género, en las cuales México está inscrito; por
ejemplo, la Convención sobre la Eliminación de Todas Formas de Violencia contra la
Mujer (CEDAW), la Convención Interamericana para Prevenir, Sancionar y Erradicar
la Violencia contra la Mujer (Convención de Belém do Pará, 1994) y la Declaración y
la Plataforma de Beijing (1995), entre otras. Por otra parte, es imprescindible reconocer
la influencia del activismo feminista en la política nacional. En cuanto a las políticas y
los avances en materia de género durante los sexenios estudiados, cabe destacar lo si-
guiente:
Creación del Instituto Nacional de las Mujeres (2001): para garantizar la aten-
ción a las desigualdades de género, el respeto a los derechos sociales, políticos y cívicos
de las mujeres, sin importar origen étnico, edad, estado civil, idioma, cultura, condición
social, discapacidad o religión (MÉXICO, DOF, 30/05/2001, p. 55).
Ley General de Acceso de las Mujeres a una Vida Libre de Violencia
(LGAMVLV, 2007): garantizar el acceso a una vida libre de violencia que favorezca su
desarrollo y bienestar conforme a los principios de igualdad y de no discriminación, así
como para garantizar la democracia, el desarrollo integral y sustentable que fortalezca
la soberanía y el régimen democrático establecidos en la Constitución Política de los
Estados Unidos Mexicanos (MÉXICO, DOF, 01/02/2007, p. 2).
PND 2013 2018, Eje transversal III, Una Perspectiva de Género en todos los
programas de la Administración Pública Federal: garantizar la igualdad sustantiva de
oportunidades entre mujeres y hombres realizar acciones especiales orientadas a garan-
tizar los derechos de las mujeres y evitar que las diferencias de género sean causa de
desigualdad, exclusión o discriminación (MÉXICO, DOF, 20/05/2013, p. 11).
Programa Sectorial de Educación 2019 2024: Objetivos y estrategias priori-
tarias para impulsar medidas en las instituciones educativas para la igualdad de género.
Por ejemplo, favorecer el ingreso, la permanencia y el desarrollo de trayectorias com-
pletas de niñas, niños, adolescentes y jóvenes provenientes de grupos históricamente
discriminados (Estrategia Prioritaria 1.2) (MÉXICO, DOF, 06/07/2020, p. 213-214).
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Análisis de las políticas educativas desde la perspectiva de la inclusión en México, 1988-2021
65
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 43-69, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Reflexiones finales
Este artículo inició con un esbozo de la evolución de la política educativa mexi-
cana en materia de educación especial y su tránsito hacia la inclusión educativa,
demostrando que el desarrollo ha sido complicado e incierto, y que es necesario aban-
donar el estatuto de un sistema paralelo al de la educación regular si se quiere avanzar
más rápido y mejor hacia un sistema educativo único, amplio y propositivo que brinde
a todos y todas las posibilidades de una justicia social, en un marco de derechos. Des-
pués se realizó un análisis de contenido preliminar de 12 documentos rectores que
marcan la política nacional de desarrollo y educación en los últimos seis sexenios en
México. El comprender la política pública como texto y discurso, permite identificar
los valores y principios subyacentes. En el caso examinado se puede observar el entre-
tejido entre la política económica internacional y las demandas de la sociedad civil para
una mayor justicia e inclusión social. Respecto a la política educativa en México, en
cada sexenio ha habido una progresión hacia una educación equitativa, inclusiva, inte-
gral e intercultural. Son los y las actores educativos/as quienes tienen la responsabilidad
de hacer de esta visión una realidad. En este sentido es esencial conocer los contenidos
de las políticas educativas, analizarlos en su texto, contexto y eventuales consecuencias,
así como facilitar su implementación real y efectiva, para que no se queden en buenas
intenciones.
Notas
1
La suma de cada palabra clave toma en cuenta las frecuencias presentes tanto en el Plan Nacional de
Desarrollo como en el Programa Sectorial de Educación de cada sexenio.
Referencias
AMERICAS QUARTERLY. Índice de inclusión social 2015. Americas Quarterly, vol. 9, n.3,
2015. Disponível em: https://www.americasquarterly.org/charticles/social-inclusion-index-
2015/social_inclusion_index_2015-spanish.pdf. Acesso em:: 11 oct. 2021.
BALL, Stephen. Education Reform: A Critical and Post-Estructural Approach. Open University
Press. 1994.
CARDNO, Carol. Policy Document Analysis: A Practical Educational Leadership Tool and
a Qualitative Research Method. Educational Administration: Theory and Practice, v. 24, n. 4,
p. 623-640, 2018.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Mónica del Carmen Reyes Verduzco, Karla Kae Kral
66
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 43-69, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
COBB, Paul; JACKSON, Kara. Analyzing Educational Policies: A Learning Design Perspec-
tive. The Journal of the Learning Sciences, n. 21, p. 487-521, 2012.
CONSEJO MEXICANO DE INVESTIGACIÓN EDUCATIVA COMIE. Comentarios
al Programa de Desarrollo Educativo. Revista Mexicana de Investigación Educativa, v. 1, n.1,
p. 181-245, 1996.
COQUIS, Javier. Sistema Nacional de Planeación. In: FERNÁNDEZ, Jorge (ed.). La Cons-
titución y el Derecho Administrativo. México: UNAM, Instituto de Investigaciones Jurídicas,
CONACYT, p. 187-206, 2015. Disponível em: https://archivos.juridi-
cas.unam.mx/www/bjv/libros/9/4034/16.pdf. Acesso em: 30 oct. 2021.
ECHEITA, Gerardo; SIMÓN, Cecilia; VERDUGO, Miguel Ángel. Paradojas y dilemas en
el proceso de inclusión educativa en España. Revista de Educación, n. 349, p. 153-178, 2009.
ESTRADA, Samuel. Programa para la Modernización Educativa en México: Prueba Opera-
tiva y Nuevo Modelo Educativo. Revista Tecnología y Comunicación Educativa, n. 19, 1992.
Disponível em: http://investigacion.ilce.edu.mx/stx.asp?id=2519. Acesso em: 13 oct. 2021.
FERNÁNDEZ-GONZÁLEZ, Noelia; MONARCA, Héctor. Política educativa y discursos
sobre calidad: usos y resignificaciones en el caso español. In: MONARCA, Héctor. (Coord.).
Calidad de la educación en Iberoamérica: discursos, políticas y prácticas, Madrid: Dykinson,
2018. p. 12-44.
GARCÍA, César; HERVÁS, Mirian. Los sistemas de evaluación de la Educación Superior en
México y España. Un estudio comparativo. Revista de la Educación Superior, v. 49, p. 113-
134, 2020. Disponível em: http://resu.anuies.mx/ojs/index.php/resu/article/view/1127/433.
Acceso: 30 oct. 21.
GARCÍA, Ismael; ROMERO, Silvia; MOTILLA, Carla; ZAPATA, Isabel. La reforma fallida
de los centros de atención múltiple en México, Revista Electrónica Actualidades Investigativas
en Educación, v. 9, n. 2, p. 1-21, 2009.
GOBIERNO DE LA REPÚBLICA. Reforma Educativa: Resumen Ejecutivo. México, 2019.
Disponível em: https://www.gob.mx/cms/uploads/attachment/file/2924/Resumen_Ejecu-
tivo_de_la_Reforma_Educativa.pdf. Acesso em: 17 oct. 2021.
INSTITUTO NACIONAL DE ESTADÍSTICA Y GEOGRAFÍA (INEGI). Presencia del
Tema de Discapacidad en la Información Estadística: Marco Teórico-Metodológico México,
2001. Disponível em: https://www.inegi.org.mx/contenidos/productos/prod_serv/conteni-
dos/espanol/bvinegi/productos/historicos/1329/702825000012/702825000012.pdf
INSTITUTO NACIONAL DE ESTADÍSTICA Y GEOGRAFÍA. Las personas con discapa-
cidad en México: una visión al 2010. México, D.F.: INEGI. 2013.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Análisis de las políticas educativas desde la perspectiva de la inclusión en México, 1988-2021
67
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 43-69, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
JAMIL, Muhammad; MUHAMMAD, Yaar; MASOOD, Sajid & HABIB, Zahida. Critical
Thinking: A Qualitative Content Analysis of Education Policy and Secondary School Science
Curriculum Documents. Journal of Research and Reflections in Education, v. 14, n. 2, p. 249-
258, 2020.
JUÁREZ, José Manuel; COMBONI, Sonia y GARNIQUE, Fely. De la educación especial a
la educación inclusiva. Argumentos, v. 23, n. 62, p. 41-83, 2010.
JUSTIA. Ley del Diario Oficial de la Federación y Gacetas Gubernamentales. México, s/f.
Disponível em: https://mexico.justia.com/federales/leyes/ley-del-diario-oficial-de-la-federa-
cion-y-gacetas-gubernamentales/capitulo-primero/. Acesso em: 30 oct. 2021.
KLEINHEKSEL, A. J; ROCKICH-WINSTON, Nicole; TAWFIK, Huda; WYATT, Tasha.
Demystifying Content Analysis. American Journal of Pharmaceutical Education, v. 84, n. 1, p.
127-137, 2020.
MARTÍNEZ, Felipe. Las políticas educativas mexicanas antes y después del 2001. Revista
Iberoamericana de Educación, n. 27, p. 35-56, 2001.
MERRIAM-WEBSTER. Content Analysis. En: Merriam-Webster.com dictionary.
Disponível
em: https://www.merriam-webster.com/dictionary/content%20analysis. Acesso em: 29 oct.
2021.
MÉXICO. Decreto por el que se aprueba el Plan Nacional de Desarrollo 2013-2018, de 20
de mayo de 2013. Diario Oficial de la Federación. Disponível em:
https://www.dof.gob.mx/nota_detalle.php?codigo=5299464&fecha=20/05/2013#gsc.tab=0.
Acceso: 30 oct. 2021.
MÉXICO. Decreto por el que se reforman, adicionan y derogan diversas disposiciones de los
artículos 3o., 31 y 73 de la Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos, en mate-
ria educativa, de 15 de mayo de 2019. Diario Oficial de la Federación. Disponível em:
https://www.dof.gob.mx/nota_detalle.php?codigo=5560457&fecha=15/05/2019. Acesso em:
30 oct. 2021.
MÉXICO. Ley de Planeación, de 5 de enero de 1983. Diario Oficial de la Federación. Dispo-
nível em http://dof.gob.mx/nota_detalle.php?codigo=4791123&fecha=05/01/1983. Acesso
em: 21 oct. 2021.
MÉXICO. Ley General de Acceso de las Mujeres a una Vida Libre de Violencia, de 01 de fe-
brero de 2007. Diario Oficial de la Federación. Disponível em:
http://www.dof.gob.mx/nota_detalle.php?codigo=4961209&fecha=01/02/2007. Acesso em:
30 oct. 2021.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Mónica del Carmen Reyes Verduzco, Karla Kae Kral
68
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 43-69, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
MÉXICO. Plan Nacional de Desarrollo 1989-1994, de 31 de mayo de 1989. Diario Oficial
de la Federación. Disponível em: http://dof.gob.mx/in-
dex.php?year=1989&month=05&day=31. Acesso em: 30 oct. 2021.
MÉXICO. Plan Nacional de Desarrollo 2001-2006, de 30 de mayo de 2001. Diario Oficial
de la Federación. Disponível em: http://dof.gob.mx/nota_detalle.php?codigo=766335&fe-
cha=30/05/2001. Acesso em: 30 oct. 2021.
MÉXICO. Plan Nacional de Desarrollo 2019-2024, de 12 de julio de 2019. Diario Oficial de
la Federación. Disponível em: https://www.dof.gob.mx/nota_detalle.php?co-
digo=5565599&fecha=12/07/2019. Acesso em: 30 oct. 2021.
MÉXICO. Programa de Desarrollo Educativo 1995-2000, de 19 de febrero de 1996. Diario
Oficial de la Federación. Disponível em: http://dof.gob.mx/nota_to_imagen_fs.php?co-
dnota=4871357&fecha=19/02/1996&cod_diario=209045. Acesso em: 19 oct. 2021.
MÉXICO. Programa Nacional para la Modernización Educativa 1990-1994, de 29 de enero
de 1990. Diario Oficial de la Federación. Disponível em: http://dof.gob.mx/nota_to_ima-
gen_fs.php?codnota=4642789&fecha=29/01/1990&cod_diario=199819. Acesso em en: 17
oct. 2021.
MÉXICO. Programa Sectorial de Educación 2021-2024, de 06 de julio de 2020. Diario Ofi-
cial de la Federación. Disponível em:
https://www.dof.gob.mx/nota_detalle.php?codigo=5596202&fecha=06/07/2020. Acesso em:
19 oct. 2021.
NACIONES UNIDAS (s.f). Medidas legislativas para la aplicación de la Convención de Nacio-
nes Unidas sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad. Disponível em:
www.un.org/disabilities/documents/COP/Mexico.doc. Acesso em: 11 oct.2021.
OBSERVATORIO REGIONAL DE PLANIFICACIÓN PARA EL DESARROLLO DE
AMÉRICA LATINA Y EL CARIBE. Ley de Planeación en México. Chile, s.f. Disponível
em: https://observatorioplanificacion.cepal.org/es/marcos-regulatorios/ley-de-planeacion-de-
mexico. Acesso em: 30 oct. 2021.
PODER EJECUTIVO FEDERAL. Plan Nacional de Desarrollo (PND 2007-2012). México,
2007. Disponível em: http://www.paot.org.mx/centro/programas/federal/07/pnd07-12.pdf.
Acesso em: 18 oct. 2021.
REYES, Mónica. La historia de vida de Irving: una investigación biográfico-narrativa sobre ex-
clusión-inclusión, a partir de la Voz del Alumnado. 247 p. Tesis (Maestría en Pedagogía)
Facultad de Pedagogía, Universidad de Colima, Colima, 2013.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Análisis de las políticas educativas desde la perspectiva de la inclusión en México, 1988-2021
69
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 43-69, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
SECRETARÍA DE EDUCACIÓN PÚBLICA SEP. Programa Nacional de Educación
2001-2006. México, D.F: SEP, 2001. Disponível em: http://planeacion.uaemex.mx/InfBas-
Con/2001-2006.pdf. Acesso em: 19 oct. 2021.
SEP. Diagnóstico del Programa S244: Inclusión y Equidad Educativa. México, D.F.: SEP,
2014. Disponível em: https://www.sep.gob.mx/work/models/sep1/Resource/5009/1/ima-
ges/diagnostico_del_programa_s244.pdf. Acesso em: 18 oct. 2021.
SEP. Memorias y actualidad en la educación especial de México: una visión histórica de sus mo-
delos de atención. México, D.F.: SEP, 2010.
SEP. Programa Nacional de Fortalecimiento de la Educación Especial y de la Integración Educa-
tiva (PFEEIE). México, D.F.: SEP, 2002. Disponível em:
http://www.educacionespecial.sep.gob.mx/pdf/publicaciones/ProgNal.pdf. Acesso em: 22
oct. 2021.
SEP. Programa Sectorial de Educación 2007-2012. México, D.F.: SEP, 2007. Disponível em:
https://catedraunescodh.unam.mx/catedra/pronaledh/pdfs/ProSeEd_2007_2012.pdf. Acesso
em: 19 oct. 2021.
SEP. Programa Sectorial de Educación 2013-2018. México, D.F.; SEP, 2013. Disponível:
https://www.sep.gob.mx/work/models/sep1/Resource/4479/4/ima-
ges/PROGRAMA_SECTORIAL_DE_EDUCACION_2013_2018_WEB.pdf. Acesso em:
17 oct. 2021.
TEDESCO, Juan Carlos. La escuela justa. En ZÚÑIGA, Víctor (comp.). La escuela inclu-
yente y justa: Antología comentada al servicio de los maestros de México. Monterrey: Fondo
Editorial de Nuevo León-UDEM, 2011. p. 22- 27.
UNESCO. Guidelines for inclusion. Ensuring access to education for all. París: UNESCO,
2005.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Este artigo está licenciado com a licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
70
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 70-84, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Diálogos entre inclusión educativa y educación en clave
Derechos Humanos
Diálogos entre inclusão educativa e educação em perspectiva de Direitos
Humanos
Inclusive education and human rights education dialogues
Lorena Isabel Godoy Peña
*
Felip Gascón i Martín
**
Consuelo Dinamarca Noack
***
Resumen
El presente artículo problematiza la categoría de inclusión desde el debate teórico y la pragmática de
las políticas educativas, a propósito de la tensión ontológica y binaria exclusión/inclusión, anclada
en el proyecto de modernidad occidental. Se propone una apertura hacia la complejidad de los sen-
tidos en disputa en torno a la Educación en clave de Derechos Humanos (EDH), considerando los
aportes de las Epistemologías del Sur y, especialmente, de los intelectuales latinoamericanos Carlos
Skliar y Ana María Rodino. La controversia con el asimilacionismo propio de una igualdad coloni-
zada y su consecuente orden de regulación Estado-mercado, interroga a otros posibles
emplazamientos con un horizonte ético, estético y político en la construcción del pluriverso de las
diferencias, como posibilidad de convivencia emancipatoria de las comunidades, convocando a ca-
tegorías descentradas en torno al reconocimiento, corresponsabilidad, hospitalidad, alteridad y
reciprocidad. Búsqueda de vital importancia para la mediación y agenciamiento de una Educación
en clave de Derechos Humanos, que irradia su influencia transformadora más allá incluso de las
políticas educativas, considerando los contemporáneos procesos constituyentes latinoamericanos,
desde un enfoque interdependiente entre derechos de la humanidad y de la naturaleza, para impulsar
una convivencia reparatoria y solidaria en el cuidado de la vida y su dignidad.
Palabras clave: educación inclusiva; diversidad; Derechos Humanos; educación en clave de Derechos
Humanos.
Recebido em: 23/11/2021 Aprovado em: 21/02/2022
https://doi.org/10.5335/rep.v29i1.13185
ISSN on-line: 2238-0302
*
Doctora en Estudios Americanos, Área Pensamiento y Cultura por la Universidad de Santiago de Chile. Profesora en
Educación Diferencial/Especial por la Universidad de Playa Ancha. E-mail: lgodoy@upla.cl. Orcid: https://orcid.org/0000-
0002-3186-5897.
**
Periodista y Doctor en Ciencias de la Comunicación por la Universidad Autónoma de Barcelona. Académico Titular del
Departamento de Estudios Territoriales y Diálogos Interculturales. E-mail: fgascon@upla.cl. Orcid: http://orcid.org/0000-
0002-3421-3309.
***
Socióloga por la Universidad de Playa Ancha, Magíster en Estudios de Género y Cultura, Mención Ciencias Sociales,
Universidad de Chile. E-mail: consuelodinamarcanoack@gmail.com. Orcid: http://orcid.org/0000-0001-7206-7085.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Lorena Isabel Godoy Peña, Felip Gascón i Martín, Consuelo Dinamarca Noack
71
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 70-84, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Resumo
Este artigo problematiza a categoria de inclusão a partir do debate teórico e da pragmática das polí-
ticas educacionais, no que diz respeito à tensão ontológica e binária exclusão/inclusão, ancorada no
projeto da modernidade ocidental. Propõe uma abertura para a complexidade dos significados em
disputa em torno da Educação em Direitos Humanos (EDH), considerando as contribuições das
Epistemologias do Sul e, especialmente, dos intelectuais latino-americanos Carlos Skliar e Ana María
Rodino. A controvérsia com a assimilação de uma igualdade colonizada e sua conseqüente ordem de
regulação Estado-mercado, questiona outras localizações possíveis com um horizonte ético, estético
e político na construção do pluriverso das diferenças, como possibilidade de convivência emancipa-
tória das comunidades, convocando categorias fora do centro em torno do reconhecimento, co-
responsabilidade, hospitalidade, alteridade e reciprocidade. Esta é uma busca de vital importância
para a mediação e a agência de Educação em Direitos Humanos, que irradia sua influência transfor-
madora além mesmo das políticas educacionais, considerando os processos constituintes
contemporâneos da América Latina, a partir de uma abordagem interdependente entre os direitos da
humanidade e os da natureza, a fim de promover uma coexistência reparadora e solidária no cuidado
da vida e de sua dignidade.
Palavras-chave: educação inclusiva. diversidade. Direitos Humanos; educação na chave dos Direitos
Humanos.
Abstract
This article problematizes the category of inclusion from the theoretical debate and the pragmatics
of educational politics, about the ontological tension and binary exclusion/inclusion, anchored in
the project of western modernity. An opening towards the complexity of the senses in dispute around
Education in the key of Human Rights is proposed. Considering the contributions of the
Epistemologies of the South and especially, of the Latin American intellectuals Carlos Skliar and
Ana María Rodino. The controversy with assimilationism characteristic of a colonized equality and
its consequent order of State-market regulation, question other possible sites with an ethical,
aesthetic and political horizon in the construction of the pluriverse off differences, as a possibility of
emancipatory coexistence of the communities, summoning off-centered around recognition, co-
responsibility, hospitality, otherness and reciprocity. Search of vital importance for the mediation
and agency of an Education in the key of Human Rights, that radiates its transformative influence
beyond even educational politics, considering contemporary Latin American constituent process,
from an interdependent approach between the rights of humanity and nature, to promote a
reparative and supportive coexistence in the care of life and its dignity.
Keywords: inclusive education; diversity. Human Rights; Human Rights education.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Diálogos entre inclusión educativa y educación en clave Derechos Humanos
72
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 70-84, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Educación, una tensión ontológica
El propósito de este artículo es dar a conocer los diferentes relatos críticos sobre
la categoría de inclusión y la suerte de mandato autoimpuesto respecto de su capacidad
de atención a la diversidad, problematización que se plantea desde el fragoso diálogo
que instala la Educación en clave Derechos Humanos, con el propósito de evidenciar
que ese deseo de la Educación Inclusiva no puede presentarse sino siempre acompañado
de otras lenguas técnicas; normativas encriptadas en lenguajes jurídicos instituidos que,
poco o nada, responden a aquella interrogante sobre ¿quién necesita inclusión? Semio-
sis social que secuestra de su tríada ontológica a la propia lengua y sentido de la
Educación, en el acto mismo de incluir. Esta última, como la define irreductiblemente
la literatura contemporánea, un Derecho Humano transversal y, por lo tanto, fuente
de garantía y concientización de otros Derechos Humanos.
La complejidad de este escenario en la disputa de los sentidos en torno a la Edu-
cación, se abordará revisando y poniendo en diálogo el pensar situado de intelectuales
latinoamericanos, especialmente de Carlos Skliar y Ana María Rodino. En este itinera-
rio se comenzará con la búsqueda del sentido etiológico de la inclusión, desde su
deseada y controvertida Educación para la Diversidad.
Como punto de partida de ese itinerario, cabe sostener que la inclusión no se
puede pensar sin contextualizarla en los pliegues de su inscripción, es decir en su propia
tensión ontológica, la exclusión. Dicho de otra forma, no se podría abordar esa ten-
sión desde un pensar políticamente correcto, que normalizara históricamente la
marginalidad y la invisibilidad desde el reconocimiento de la consabida igualdad de los
iguales, excluyendo todo aquello que viniera a perturbar la filosofía del orden estable-
cido. Pero, además, se debe hacer aquí presente el propio significado etimológico de
inclusión, que en su acción dispone “poner una cosa dentro de otra, o dentro de sus
límites” (RAE); “cosa incluida o encerrada entre otras o dentro de otra” (MOLINER,
1987, p. 109). En consecuencia, y siguiendo a Cecilia Assael (2015, p. 199) “El mismo
nombre de educación inclusiva remite entonces a un modelo asimilacionista, desde una
hegemonía dominante”.
Es por eso mismo que el debate sobre esa tensión planteada debiera emanciparse
de su reclusión hegemónica y asimilacionista, que reproduce la simplicidad binaria ex-
clusión/inclusión, abriendo el debate hacia su complejidad, como lo sostienen
múltiples autores a propósito de la pertinencia de otras categorías descentradas respecto
de aquella igualdad colonizada: reconocimiento, corresponsabilidad, hospitalidad, al-
teridad y reciprocidad (LÉVINAS, 2003; RICOUER, 2006; SKLIAR; TÉLLEZ,
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Lorena Isabel Godoy Peña, Felip Gascón i Martín, Consuelo Dinamarca Noack
73
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 70-84, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
2008; SKLIAR, 2017). Porque a pesar del dramatismo emocional que se imprime a los
discursos igualitaristas y se inviste a la educación inclusiva, como una auténtica política
de justicia social, no se puede desconocer su clausura en torno a la mismidad; por el
contrario, reconocer la otredad reclama como respuesta la responsabilidad de la acción
educativa, precediendo incluso al sujeto individual. Por ello, la construcción de un et-
hos educativo no puede estar disociado de un horizonte de eticidad en la educación
(MORIN, 1999; LÉVINAS, 2003; RODINO, 2014, 2015; SKLIAR, 2017; SKLIAR,
GENTILI; STUBRIN, 2008; SKLIAR; TÉLLEZ, 2008), que convoca al reconoci-
miento de la intersubjetividad colectiva, de la comunalización de su sentido pluriversal,
abierto y dinámico a los cambios en el devenir de las relaciones entre sujetos, memorias,
tiempos, espacios territoriales y narrativas encapsuladas o latentes, desde donde es per-
tinente pensar en otros mundos posibles hacia la justicia del sistema educativo, en el
camino de la emancipación social.
Porque a diferencia del menosprecio, el reconocimiento designa una relación recíproca en la que
cada uno ve al otro como su igual y también como separado de sí, constituyendo la subjetividad
al reconocer al otro y ser reconocido por él (GUERRERO, 2013, p. 6).
Cómo no liberarse de tanta adjetivación contenida y sujetada por el orden de
clasificación esencialista de la mismidad y la totalidad clausurada, que incluso justifica
desde perspectivas biologicistas a la niñez, juventud y adultez bajo la sospecha de anor-
malidades: diferentes, diversos, excluidos/as, marginales, vulnerables, pobres,
migrantes, carenciados, ignorantes, discapacitados… adjetivaciones consustanciales
que finalmente responden a
...las matrices del pensamiento colonial que, subsumidas por las políticas públicas de educación
de cada país, contribuyen a la reproducción de un orden hegemónico del discurso sobre la nor-
malidad-anormalidad que, asociado a las estructuras de reproducción simbólica y sociocultural
de los modelos educativos nacionales, refuerzan la invisibilidad y/o la exclusión de las diferencias
(GODOY, 2016, p. 2).
Educación Inclusiva y Diversidad: supuestos de un relato polifó-
nico
Como se sabe, desde hace más de tres décadas se vienen debatiendo y generando
escenarios políticos y normativos en torno a la educación inclusiva, con diferentes len-
guas, ontologías, matices y múltiples dimensiones.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Diálogos entre inclusión educativa y educación en clave Derechos Humanos
74
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 70-84, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Carlos Skliar (2017) plantea que si bien es cierto en su origen era necesaria una
visibilidad extrema del problema de la exclusión y de la inequidad, y se hacía impres-
cindible un sistema de derecho revulsivo, que tendiera a modificar de raíz la condición
existencial de ciertos grupos sociales abandonados, desprotegidos o ignorados históri-
camente, ahora en el actual contexto, los retos son otros:
…que se abran de verdad, incondicionalmente, las puertas de las escuelas públicas a niñas, niños
y jóvenes mal entendidos como ‘diferentes’; que el lenguaje del derecho no se enquiste en una
estructura político formal sino en una ética de las relaciones una ética singular, una ética de la
responsabilidad, de la afección-; que la organización de las escuelas modifique sus espacios y sus
tiempos no ya en virtud de las pautas evaluativas externas sino en las particularidades de la vida
interna de las comunidades escolares y que las prácticas educativas se concentren en una idea del
enseñar a ‘cualquiera’, desprendiéndose de cualquier idea de ‘normalidad y ‘control’ sobre el
aprendizaje (SKLIAR, 2017, p. 45).
De las palabras del autor se desprende que la inclusión expresa un deseo incum-
plido, una falta, un vacío. Su reiterada pronunciación no indicaría sino su ausencia de
vitalidad, su inexistencia, una apelación a veces desesperada por una presencia fantas-
magórica. En aquellas prácticas educativas más centradas en la búsqueda de
experiencias y el lenguaje narrativo, la inclusión supone “una categoría que sobra, que
no necesita ser enunciada: la relación -así como las prácticas- está presente o no lo está,
existe o no existe” (SKLIAR, 2017, p. 45).
Paul Ricoeur (2006), desde el giro hermenéutico, abre un itinerario filosófico
posible a propósito de superar esa vacuidad de sentido, la tensión que provoca no sólo
la exclusión, sino también los olvidos históricos, desconsideraciones, malentendidos o
incomunicación. Y lo hace desde su fenomenología del reconocimiento, ensayando
como propósito en su obra el sentido de una ética de la gratuidad, de la solidaridad y
de la hospitalidad que se fundamenta en:
reconocer lo esencial o común; de ahí la importancia de saber leer e interpretar
la experiencia;
el reconocimiento es reconocernos en la relación con los otros, en el “entre”
como espacio esencial de comunicación y entendimiento para la construcción de
una comunidad de sentido desde la convivencia;
reconocernos a nosotros mismos como otros/otras, planteándonos el problema
de la identidad personal;
reconocernos es apropiarnos de nosotros mismos en el tiempo, narrativo e his-
tórico; y,
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Lorena Isabel Godoy Peña, Felip Gascón i Martín, Consuelo Dinamarca Noack
75
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 70-84, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
reconocernos y reconocer un mundo ampliado más allá de la descripción obje-
tiva del mundo. (RICOEUR, 2006; MORATALLA, 2006)
En ese contexto, Ricoeur entiende la reciprocidadcomo una relación que siem-
pre precisa de la mediación del otro/la otra, como eje articulador en la discusión sobre
identidad, alteridad y la dialéctica entre reconocimiento y desconocimiento. “Ser reco-
nocido, si alguna vez acontece, sería para cada uno recibir la plena garantía de su
identidad gracias al reconocimiento por parte de otro de su dominio de capacidades”
(RICOEUR, 2006, p. 312). El poder hablar, narrar y el poder-hacer como capacidades
de obrar para que los acontecimientos ocurran en el mundo físico y social, va acompa-
ñado siempre de una presuposición y expectativa de poder-ser-visto-oído-escuchado-
recibido(que ponen en juego, a su vez, una dialéctica estética y semiótica entre emi-
sión-recepción-significación), contexto desde el cual resultaría imposible aislar la
contribución de determinados roles obstaculizadores, de conflictualidad, facilitadores
o cooperantes; considerando, además, que la intersubjetividad no ocuparía aquí una
posición de fundamento, como sí lo hace el propio poder de obrar (agency): “Pero las
capas superpuestas de interacción en el decir, el obrar y el narrar no deberían anular la
referencia primera al poder de obrar del que el reconocimiento de sí constituye la ates-
tación” (RICOEUR, 2006, p. 316).
En ese itinerario, Ricoeur, al interrogarse por la dialéctica reconocimiento/des-
conocimiento como problemática no superada por las disputas fenomenológicas de
Edmund Husserl (desde el yo como referencia) y Emmanuel Lévinas (del otro hacia el
yo), propone considerar el sentido de las relaciones “entre protagonistas del intercam-
bio”, donde se concentra la disimetría originaria entre el yo y el otro, a menudo
olvidada, considerando que el otro/la otra resulta inaccesible en su alteridad en cuanto
tal.
Desconocido, reconocido, el otro sigue siendo el ignoto en términos de aprehensión originaria
del carácter “mío” del sí mismo. Este desconocimiento no es el de alguien, sino de la disimetría
en la relación entre yo y el otro (RICOEUR, 2006, p. 322).
Evidenciar esa disimetría desde su propio olvido y borradura, implica recordar el
carácter irremplazable del lugar que ocupa cada una de las personas sujetadas en el
proceso del intercambio, la distancia en el reconocimiento mutuo (mutualidad), que
involucra el respeto en la intimidad, y la gratitud como una forma de acrecencia de
sentido.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Diálogos entre inclusión educativa y educación en clave Derechos Humanos
76
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 70-84, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Vimos en el recibir el término de unión entre el dar y el devolver; en el recibir, lugar de gratitud,
se afirma dos veces la disimetría entre el donante y el donatario; uno es el que da y otro el que
recibe; uno el que recibe y otro el que devuelve. Esta doble alteridad se preserva precisamente en
el acto de recibir y en la gratitud que él suscita (RICOEUR, 2006, p. 326).
Las problemáticas asociadas a la exclusión, desigualdad, asimetría o disimetría,
constituyen uno de los principales propósitos de las políticas públicas, sin duda, en
tanto es deber del Estado garantizar el derecho a la educación para todos y todas, co-
rrigiendo la reproducción de dichas problemáticas estructurales. En ese sentido, las
propias orientaciones de UNESCO respecto del reconocimiento por parte de los Esta-
dos miembro de Sistemas de Educación Inclusivos, apela a la transformación
organizativa y curricular de los centros y de la formación docente, en principio
(ARNAIZ, 2000), lo que implica identificar y superar las barreras que persisten en las
oportunidades de acceso a la educación, como asimismo los recursos y escalamientos
socio-territoriales necesarios para superar dichas barreras (ROSSELLÓ, 2010;
AINSCOW & MILES, 2009; GARCÍA SIERRA, 2009; BLANCO, 2006; UNESCO,
2004).
Aunque mayoritariamente las lógicas paradigmáticas funcional-desarrollistas pa-
recieran ser la principal causa de la reproducción estructural de las desigualdades, al
continuar ancladas en la medición de la progresión cuantitativa respecto de la pobla-
ción y sectorialización inclusiva de los sistemas nacionales de educación. Inclusión
misional y prometeica que cabe poner en sospecha, de acuerdo con Skliar, cuando no
se interroga el para qni el cómode ese convivir educativo supuestamente iguali-
tario; “qué haremos juntos y, sobre todo, cómo lo haremos bajo condiciones de
igualdad” (2017, p. 45).
Los Derechos Humanos como piedra Rosetta
Poner en sospecha las políticas de Educación Inclusiva desde una perspectiva crí-
tica, considerando los procesos constituyentes contemporáneos que está viviendo
Latinoamérica, y muy contextualmente en el caso chileno, significa asumir la centrali-
dad de los Derechos Humanos en el debate. Cual piedra Rosetta, capaz de descifrar e
interpretar los crípticos lenguajes técnicos, expertos y normativos, el abordaje de otro
mundo posible para cualquierizarla educación desde su reconocimiento como dere-
cho fundamental inalienable para todos y todas, supone entender las dimensiones
complejas, multidimensionales, semióticas y dinámicas de los Derechos Humanos.
Para ello, se considera en el presente apartado alguna de las inspiraciones dialógicas que
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Lorena Isabel Godoy Peña, Felip Gascón i Martín, Consuelo Dinamarca Noack
77
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 70-84, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
emanan de la intelectual argentino-costarricense Ana María Rodino, al proponer la
Educación en y para los Derechos Humanos (2014, 2015) como la perspectiva más
necesaria y poderosa para impulsar una racionalidad práctica, que ponga en movi-
miento, no sólo el reconocimiento político-jurídico de los DD.HH., sino su
materialización práctica y multidimensional en los diferentes ámbitos de la vida social,
dando sentido a su interseccionalidad y transversalidad, superando así las fronteras que
históricamente han enhebrado límites, no siempre explícitos, entre la vida íntima, pri-
vada y pública; derribando así las barreras que expresara aquella vieja máxima: virtudes
públicas, vicios privados. Porque de lo que se trata es del reconocimiento, alcance e
interdependencia entre los derechos básicos a la vida digna de las personas, a su inte-
gridad física y emocional, como asimismo a su relación con las condiciones de vida, los
derechos a la salud y previsión social, vivienda, educación, trabajo, etc.
Pero también y, especialmente, la Educación en y para los Derechos Humanos
(EDH) supone un propósito ético, estético y político de la vida en comunidad, de la
corresponsabilidad y de la afección, que implica mucho más que su mera regulación y
transmisión. De lo que se trata es de poner en movimiento el conocimiento y los saberes
para ejercer y defender los derechos de otros y otras, mediante una práctica mediadora
y transformadora que, a través de prácticas educativas efectivas y afectivas, aseguradas
tanto por los agentes del Estado como por los agentes sociales, generen una toma de
conciencia sobre el significado, alcance y aplicación de los DD.HH. De esta forma, la
educación en clave de derechos humanos resulta una perspectiva que pone en tensión
buena parte de las categorías instrumentales de la educación para la ¿inclusión/integra-
ción/igualdad/diferencias? Desde la urgencia y amplitud de su propósito, Ana María
Rodino considera la valoración y los riesgos impensados que reclaman la presencia ac-
tiva de la EDH en cualquier ámbito de la vida social.
Abarca a todas las personas, sin importar sus muchas diferencias, ni hacer distinciones a partir de
cualquiera de esas diferencias (raza o etnia, nacionalidad, sexo, orientación sexual, identidad de
género, creencias religiosas o políticas, cultura, situación económica, edad, capacidades, entre
otras). En un enfoque de derechos humanos nadie queda afuera. Y así debe entenderse la educa-
ción, como un derecho de todas las personas y que a todas debe serles garantizado. Estoy
convencida que cualquier política pública educativa, programa de estudio o metodología de en-
señanza que no se piense con enfoque de derechos humanos, corre el riesgo real de violar derechos
humanos (RODINO, 2015, p. 202-203).
En consecuencia, pensar la educación desde la racionalidad práctica de los dere-
chos obliga a entenderla, en primera instancia, en una doble e interdependiente
dimensión, “como el ejercicio de un derecho humano: el derecho a la educación” y
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Diálogos entre inclusión educativa y educación en clave Derechos Humanos
78
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 70-84, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
como “un vehículo para formar en y ejercer derechos humanos: la educación en dere-
chos humanos” (RODINO, 2015, p. 203).
La primera dimensión, el derecho a la educación, refuerza el sentido indivisible
e interdependiente de los denominados derechos económicos, sociales y culturales,
junto con los derechos civiles y políticos, entendidos todos ellos como soportes básicos
del sistema de derechos fundamentales, en tanto encarnan valores esenciales de digni-
dad, igualdad y de solidaridad humana, tal como se establece en el preámbulo de la
Declaración de Quito, del 24 de julio de 1998:
Los derechos económicos, sociales y culturales (DESC), al igual que los civiles y políticos, son
parte indisoluble de los derechos humanos y del derecho internacional de los derechos humanos,
tal como constan en la Declaración Universal, el Pacto Internacional de los Derechos Económi-
cos, Sociales y Culturales, la Declaración Americana de los Deberes y Derechos del Hombre, la
Declaración sobre garantías sociales, la Convención Americana sobre Derechos Humanos y el
protocolo Facultativo de San Salvador (apud NOGUEIRA ALCALÁ, 2009, p. 152).
Son rasgos constitutivos del derecho a la educación y responsabilidad garantista
del Estado, de acuerdo a la primera Relatoría Especial de la ONU sobre el Derecho a
la Educación (TOMASEVSKY, 2003 apud RODINO, 2015, p. 207-208):
Asequibilidad o disponibilidad, existencia de instituciones, programas educati-
vos, personal docente capacitado y bien remunerado, infraestructuras y
materiales adecuados.
Accesibilidad, escuelas y programas de enseñanza pública accesibles para todos
y todas, sin discriminación de ningún tipo.
Aceptabilidad, el sistema de educación, en su forma y fondo, sus programas de
estudio y métodos de enseñanza, deben ser aceptables, relevantes, culturalmente
apropiados y con estándares de calidad regulados por el Estado en todas las co-
munidades educativas.
Adaptabilidad, flexibilidad para adaptarse a las necesidades cambiantes de la
sociedad y responder a los diversos contextos sociales y culturales del estudian-
tado.
La segunda dimensión convoca al derecho a ser educados en nuestros derechos,
campo en el que se desarrolla la EDH, como “condición necesaria para el ejercicio
activo de todos los derechos humanos y la ciudadanía democrática” (RODINO, 2015,
p. 212). Sus metas tienen carácter preventivo, para evitar violaciones de los derechos
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Lorena Isabel Godoy Peña, Felip Gascón i Martín, Consuelo Dinamarca Noack
79
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 70-84, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
humanos; y, constructivas o positivas, ya que debe inspirar a la construcción filosófica
e ideológica de una cultura de los DD.HH., a una cosmovisión o visión de mundo, en
donde éstos no solo sean entendidos, sino también respetados y ejercidos como pautas
reguladoras de los valores y conductas personales y colectivas de la convivencia en co-
munidad.
Si una cultura, según la definición clásica, es el “conjunto de modos de vida y costumbres de una
época o grupo social” [RAE], se trata de lograr que las personas internalicen los derechos huma-
nos y los pongan en práctica hasta que lleguen a formar parte de esos modos de vida y costumbres
compartidos y valorados, esa argamasa que une a los miembros de una comunidad por encima
de sus muchas y legítimas diferencias. Se trata aquí de una comunidad enorme, la más grande
concebible y, a la vez, la más básica: la de la especie humana (RODINO, 2015, p. 213).
EDH: ¿agencia descolonizadora de la inclusión?
La Educación en y para los Derechos Humanos, al poner como centro de su
problematización el agenciamiento del sistema y las políticas educativas como escenario
de inclusión social y convivencia en comunidad, viene a gatillar sentidos conflictos
epistémicos en las ciencias sociales contemporáneas, en general, y en las ciencias de la
educación, en particular, que nos retrotraen a la crítica de la modernidad occidental,
como singularidad epistémica universalista y la emergencia de las denominadas Episte-
mologías del Sur.
A ese respecto, Boaventura de Sousa Santos (2021) sitúa históricamente la triá-
dica tensión entre Estado-mercado-comunidad, que instituye el saber-poder en los
países subalternos, bajo una racionalidad cognitivo-instrumental mediante la cual la
ciencia moderna colonizó el principio de regulación por encima del principio de la
emancipación. Episteme reguladora al servicio del Estado y del mercado, que implanta
y reproduce el status quo colonial como norma, las leyes inmutables del orden univer-
sal, basadas en las perspectivas ideológicas de la modernidad, progreso e igualdad.
Perspectivas hegemónicas que impusieron su impronta de marginación y colonización
epistémica de la comunidad y de la convivencia, a partir de estrategias de simulación
de regímenes de verdad y políticas de igualdad en la vida social (inclusión, participa-
ción, solidaridad, placer) respecto de las que cabría cuestionar como sospecha ¿respecto
de quién? ¿para qué? y ¿cómo?, con el propósito de poder interrogar a la EDH respecto
de su poder de agenciamiento emancipatorio.
La EDH se define desde el reconocimiento de que toda persona es sujeto de
derechos y se orienta a la conformación de agentes transformadores de la vida propia y
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Diálogos entre inclusión educativa y educación en clave Derechos Humanos
80
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 70-84, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
la vida en común, desde una nueva cosmovisión, cuyo deber ser tendría como impera-
tivo ético, estético y político la relación, el reconocimiento y la reciprocidad,
transformadora de las prácticas sociales y la vida cotidiana. Imperativo emancipador de
las matrices de pensamiento antropo-andro-etno-céntrico, que supone situar el enclave
interdependiente de reconocimiento de los derechos de la comunidad humana, como
también de todas las comunidades de seres vivos, de la naturaleza y sus ecosistemas,
como soportes de la convivencia y sostenibilidad de la biodiversidad. Reconocimiento
que implica también un horizonte ético de corresponsabilidad y reciprocidad, más que
preocupado sólo por la preservación, ocupado en y para la reparación y restauración de
esos bienes comunes materiales e inmateriales que están asociados al cuidado de la vida
y al buen vivir o vida buena de las comunidades socio-territoriales.
Para ello la EDH debe incidir en una doble dimensión, histórica y política. Pri-
mero para poder juzgar la realidad con valores, principios y normas con perspectivas
altermundistas, poniendo en perspectiva dialógica lo nacional con lo mundial (pensar
en lo local para influir en lo mundial) para promover la vida en común, desde donde
la proximidad pone en juego la propia soberanía constituyente de todo acuerdo social
para el buen convivir en comunidad, incorporando los espacios íntimos, privados y
públicos.
La dimensión política, desafía a generar prácticas sociales transformadoras en el
ágora pública, que partan de una toma de conciencia sobre la riqueza contenida en las
diversas formas de ser, saber y hacer. Se trata de impulsar una ecología social que ponga
en movimiento una ética de la alteridad, desplegando habilidades y capacidades de re-
lación y acción en la defensa y práctica de los DD.HH., orientadas a transformar los
contextos y procesos que impidan su ejercicio efectivo y afectivo, tanto en el orden
individual como en el colectivo, respecto de conductas tanto simbólico-discursivas
como pragmáticas reproductoras de prejuicios, estereotipos, negacionismos, discursos
de odio, violentismo, exclusión, minorización o instrumentalismo en la concepción y
práctica de los DD.HH.
La educabilidad y comunicabilidad de ambas dimensiones tienen su síntesis en
la necesidad de desplegar y multiplicar procesos educomunicativos, que puedan am-
pliar las oportunidades, lugares y tiempos de diálogo y convivencia en y para la
diversidad, más allá del propio sistema educativo y de las políticas que lo ordenan,
enriqueciéndose de las experiencias latinoamericanas desarrolladas por la pedagogía de
la liberación y la educación popular.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Lorena Isabel Godoy Peña, Felip Gascón i Martín, Consuelo Dinamarca Noack
81
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 70-84, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Conclusiones, a modo de apertura
La misión descolonizadora y emancipatoria de la EDH debería, en consecuencia,
agregar a sus fines éticos, estéticos y políticos la dimensión ecológico-política para ga-
rantizar su integralidad y multidimensionalidad como fundamento en la prevención,
defensa y reparación de la dignidad humana, de la restauración de valores y principios
sobre la seguridad humana, basada en la sostenibilidad de los soportes de la biodiversi-
dad.
El diálogo entre la educación inclusiva y la educación en clave de Derechos Hu-
manos tiene muchos lugares de (des)encuentro. Tal vez uno de los más importantes sea
el concerniente a la ética de la alteridad en el ser y el quehacer docente, al introducir
en sus prácticas e interacciones brechas, paradojas, orificios, contradicciones. Como lo
sostiene Carlos Skliar, la tarea del docente siempre será la de ser y provocar alteridad.
Alteridad de vidas y de mundos, alteridad de tiempos e instantes, alteridad de ficción y realidad.
Alteridad, aquí, no es oposición ni rechazo; más bien se trata de un arte de la multiplicidad y de
sus pliegues. Perturbar, sí, aquello que en cierto momento es considerado como normal y natural,
ofrecer un borde que no se ha tocado, una rugosidad que no se ha percibido, una potencia que
aún no ha sido definida (SKLIAR, 2017, p. 160).
La propuesta-apertura aquí esbozada aspira, por tanto, a una indagatoria más
profunda sobre la historización de saberes/prácticas pedagógicas del Sur, subalternas y
liberadoras, que logren articularse con otros saberes/prácticas en la configuración de un
posicionamiento epistemológico del Sur. Esta potencia emancipatoria de relaciona-
miento conocimientos/prácticas permitiría rescatar lo excluido y ampliar simbólica-
materialmente lo que entendemos por realidad social”, cuyo efecto puede contribuir
a generar un movimiento de crítica y apertura respecto de los metadiscursos sobre las
diferencias y los anudamientos instituidos históricamente entre saber, poder y estrate-
gias micropolíticas de normalización, cuya instalación ontológica desde el campo
biomédico y biopolítico atraviesa y se re-produce en forma dinámica y constante en los
campos de la pedagogía, la didáctica y las metodologías de enseñanza.
La meta de la educación en derechos humanos es forjar sociedades donde no se atropelle la dig-
nidad humana. No basta con denunciar o castigar los abusos después que han ocurrido. Hay que
evitarlos y para ello, es necesario que las personas conozcan sus derechos, los defiendan y, a la
vez, respeten y defiendan su ejercicio por parte de los demás. La educación en derechos humanos
es un medio para promover ese conocimiento y respeto y, de esta manera, se convierte en un
instrumento concreto de prevención de violaciones a los derechos humanos (RODINO, 1999,
n. p.).
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Diálogos entre inclusión educativa y educación en clave Derechos Humanos
82
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 70-84, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Educar en DD.HH. enriquece, sin duda, la doctrina y la enseñanza de los dere-
chos en general, como pautas que regulan la convivencia social (RODINO, 2015),
enfrentando tensiones y conflictos entre derechos, que vienen a muchas veces a enre-
darse y confundirse respecto a sus urgencias y prioridades en la vida cotidiana y en la
alteridad de la convivencia. No solo en la dimensión intelectual y teórica que se cons-
truye desde la filosofía política, sino también, y especialmente, desde la matriz
simbólico-dramática y emocional que moviliza los afectos, los sentimientos y los deseos
en y para la convivencia, la sostenibilidad de las comunidades, tanto la humana como
las del resto de comunidades bióticas de las cuales depende la propia supervivencia de
nuestra especie.
Referências
AINSCOW, Mel; MILES, Susi. Desarrollando sistemas de educación inclusiva. ¿Cómo
podemos hacer progresar las políticas? In: GINÉ, Climent (org.). La educación inclusiva: de la
exclusión a la plena participación de todo el alumnado. Barcelona: Horsor, 2009. p. 161-
170.
ARNAIZ, Pilar. Educar en y para la diversidad. En SOTO, F.J. y LÓPEZ, J.A. (Coords.):
Nuevas Tecnologías, Viejas Esperanzas: Las Nuevas Tecnologías en el Ámbito de las Necesidades
Especiales y la Discapacidad, p. 29-37. Murcia, España: Consejería de Educación y
Universidades, 2000.
ASSAEL, Cecilia. La construcción del otro desde los discursos e interacciones de docentes de
Educación Básica, trabajando en aulas regulares con diversidad cognitiva y diversidad étnica:
búsqueda de conexiones entre la denominada educación inclusiva y la educación
intercultural. Tesis de Doctorado en Ciencias de la Educación. Santiago: Universidad de
Santiago de Chile, 2015.
BLANCO, Rosa. La equidad y la inclusión social: uno de los desafíos de la educación y la
escuela hoy. Revista Electrónica Iberoamericana sobre Calidad, Eficacia y Cambio en Educación,
v. 4, n. 3, 2006. Disponível em: http://www.rinace.net/arts/vol4num3/art1.html.
GARCÍA SIERRA, Alicia Elena. Educar en y para la diversidad en educación primaria.
Innovación y experiencias educativas n. 16, p. 1-9, 2009. Disponível em:
http://www.csicsif.es/andalucia/modules/mod_ense/revista/pdf/Numero_16/ALICIA%20EL
ENA_GARCIA _1.pdf.
GODOY, Lorena. La diferencia en educación. Imaginarios instituidos y su reproducción en
la formación pedagógica de Chile y Argentina. Tesis Doctoral en Estudios Americanos, Área
Pensamiento y Cultura. Santiago: Universidad de Santiago de Chile, 2016.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Lorena Isabel Godoy Peña, Felip Gascón i Martín, Consuelo Dinamarca Noack
83
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 70-84, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
GUERRERO, María Mercedes. Por un ethos educativo de re-conocimiento y
responsabilidad que garantice inclusión y justicia educativa, 2013. Disponível em:
https://trabajos.pedagogiacuba.com/trabajos/35Guerrero.%20Ethos%20educativo%20inclus
ivo.pdf.
LÉVINAS, Emmanuele. De otro modo que ser o más allá de la esencia. Salamanca: Sígueme, 4ª
edic., 2003.
MOLINER, María. Diccionario de uso del español. Madrid: Gredos, Tomo II, 1987.
MORATALLA, Tomás Domingo. Del sí mismo reconocido a los estados de paz. Paul
Ricoeur: caminos de hospitalidad. Pensamiento, v. 62, n. 233, p. 203-230, 2006. Disponível
em: https://revistas.comillas.edu/index.php/pensamiento/article/view/4620.
MORIN, Edgar. Los siete saberes necesarios para la educación del futuro. París: UNESCO,
1999. Disponível em http://www.unmsm.edu.pe/occaa/articulos/saberes7.pdf.
NOGUEIRA ALCALÁ, Humberto. Los Derechos Económicos, Sociales y Culturales como
derechos fundamentales efectivos en el constitucionalismo democrático latinoamericano.
Estudios constitucionales, año 7, n. 2, p. 143-205, 2009. Disponível em:
https://dx.doi.org/10.4067/S0718-52002009000200007
RICOEUR, Paul. Caminos del reconocimiento: tres estudios. México: Fondo de Cultura
Económica, 2006.
RODINO, Ana María. La educación con enfoque de derechos humanos como práctica
constructora de inclusión social. Revista del Instituto Interamericano de Derechos Humanos, n.
61, p. 201222, 2015. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/tablas/r34228.pdf.
RODINO, Ana María. Pensar la Educación en Derechos Humanos como Política Pública.
Revista de Ciencias Sociales v. 6 n. 25, p. 129-139, 2014. Disponível em:
http://ridaa.unq.edu.ar/handle/20.500.11807/1594.
RODINO, Ana María. La educación en valores entendida como educación en derechos
humanos. Sus desafíos contemporáneos en América Latina. Revista IIDH, n. 29, 1999.
Disponível em: http://www.derechoshumanos.unlp.edu.ar/assets/files/documentos/la-
educacion-en-valores-entendida-como-educacion-en-derechos-humanos-sus-desafios-
contemporaneos-en-america-latina-ana-maria-rodino.pdf.
ROSSELLÓ, María Rosa. El reto de planificar para la diversidad en una escuela inclusiva.
Revista Iberoamericana de Educación, n. 51, p. 2-10, 2010. Disponível em:
https://doi.org/10.35362/rie5141825.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Descolonizar la Universidad: el desafío de la justicia
cognitiva global. Buenos Aires: CLACSO, 2021.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Diálogos entre inclusión educativa y educación en clave Derechos Humanos
84
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 70-84, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
SKLIAR, Carlos. Pedagogía de las diferencias: notas, fragmentos, incertidumbres. Buenos
Aires: Noveduc, 2017.
SKLIAR, Carlos, GENTILI, Pablo y STUBRIN, Florencia. El derecho a la educación de
niños, niñas y adolescentes con discapacidades. Revista Novedades Educativas, v. 20, n. 210, p.
4-14, 2008.
SKLIAR, Carlos y TÉLLEZ, M. Conmover la educación: ensayos para una pedagogía de la
diferencia. Buenos Aires: Noveduc, 2008.
UNESCO. Temario Abierto Sobre Educación Inclusiva. Santiago de Chile:
OREALC/UNESCO, 2004.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Este artigo está licenciado com a licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
85
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 85-109, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Inclusão no ensino superior: narrativas de estudantes com
deficiência no contexto amazônico
Inclusion in higher education: narratives of students with disabilities in
the amazon context
Inclusión en la educación superior: narrativas de estudiantes con
discapacidad en el contexto amazónico
Joab Grana Reis
*
Rosana Glat
**
Resumo
O presente artigo tem por objetivo evidenciar, a partir de narrativas de estudantes com deficiência,
os desafios e barreiras enfrentadas no processo inclusão no ensino superior, tendo em vista, a fragili-
dade da implementação das políticas públicas que contemplem seu ingresso, permanência,
aprendizagem e sucesso acadêmico. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, ancorada na metodologia
de História de Vida. Para tal utilizou-se de entrevistas abertas, envolvendo estudantes com deficiência
de uma universidade pública, que vivenciam suas experiências acadêmicas em diferentes municípios
no estado do Amazonas. A partir das narrativas emergiram categorias temáticas que retratam a traje-
tória educacional para ingresso no ensino superior e questões envolvendo acessibilidade, inclusive a
mobilidade e deslocamento atrelados à dinâmica das enchentes e vazantes dos rios, que constituem
as estradas na Amazônia. Diante das narrativas dos próprios estudantes, pode-se evidenciar as barrei-
ras enfrentadas durante todo o processo de escolarização. Ficou evidente nos dados produzidos a
necessidade de transformações na cultura organizacional das instituições educacionais. Pois, apesar
do arsenal de documentos orientadores e legais, a luta pela implementação do direito a uma educação
inclusiva é uma realidade que acompanha o percurso formativo dos estudantes com deficiência, tam-
bém no ensino superior.
Palavras-chave: estudantes com deficiência; inclusão no ensino superior; metodologia de história de
vida.
Recebido em: 04/12/2021 Aprovado em: 21/02/2022
https://doi.org/10.5335/rep.v29i1.13223
ISSN on-line: 2238-0302
*
Doutorado em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Atualmente atua como membro na Co-
missão da Política de Articulação Institucional de Inclusão na Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Professora
Adjunta da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). E-mail: jgreis@uea.edu.br. Orcid https://orcid.org/0000-0001-
8560-1830.
**
Doutorado em Psicologia Social e da Cultura pela Fundação Getúlio Vargas-RJ (1988). Professora Titular da Faculdade de
Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), professora no Programa de Pós-Graduação em Educação
(PROPEd) e no Curso de Pedagogia. E-mail: rosanaglat@gmail.com Orcid: https://orcid.org/0000-0002-0186-1342.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Joab Grana Reis, Rosana Glat
86
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 110-131, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Abstract
This article aims to highlight, from narratives of students with disabilities, the challenges and barriers
faced in the inclusion process in higher education, in view of the fragility of the implementation of
public policies that address their entry, permanence, learning and academic success. This is
qualitative research, anchored in the History of Life methodology. It was used open interviews,
involving students with disabilities from a public university, who live their academic experiences in
different cities in the state of Amazonas. From the narratives emerged thematic categories that
portray the educational trajectory for entry into higher education and questions related to
accessibility, including mobility and displacement linked to the dynamics of the floods and ebbs of
rivers that constitute the roads in the Amazon. Given the narratives of the students themselves, it
was possible to show the barriers faced during the process of schooling, up to entry in the university.
It became evident in the data produced the need for changes in the organizational culture of
educational institutions. Because, despite the arsenal of guiding and legal documents, the struggle to
implement the right to inclusive education is a reality that accompanies the schooling path of
students with disabilities, in higher education as well.
Keywords: students with disabilities; inclusion in higher education; life history methodology.
Resumen
Este artículo tiene como objetivo resaltar, a partir de las narrativas de los estudiantes con discapaci-
dad, los desafíos y barreras enfrentadas en el proceso de inclusión en la educación superior,
considerando la fragilidad de la implementación de políticas públicas que aborden su ingreso, per-
manencia, aprendizaje y éxito académico. Es una investigación cualitativa, anclada en la metodología
de Historia de Vida. Para ello, se utilizaron entrevistas abiertas, involucrando a estudiantes con dis-
capacidad de una universidad pública, quienes viven sus experiencias académicas en diferentes
municipios del estado de Amazonas. De las narrativas surgieron categorías temáticas que retratan la
trayectoria educativa para el ingreso a la educación superior y temas de accesibilidad, incluida la
movilidad y el desplazamiento vinculados a la dinámica de las crecidas y reflujos de los ríos que
constituyen los caminos en la Amazonía. Dadas las narrativas de los propios estudiantes, se pueden
ver las barreras enfrentadas durante el proceso de escolarización, hasta el ingreso a la universidad. Se
evidenció en los datos producidos la necesidad de cambios en la cultura organizacional de las insti-
tuciones educativas. Aunque hay un arsenal de documentos rectores y legales, la lucha por
implementar el derecho a la educación inclusiva es una realidad que acompaña la trayectoria forma-
tiva de los estudiantes con discapacidad, también en la educación superior con discapacidad.
Palabras clave: estudiantes con discapacidad; inclusión en la educación superior; metodología de his-
toria de vida.
Introdução
O presente texto é um recorte da pesquisa “Vozes dos Rios da Amazônia: história
de vida de estudantes universitários com deficiência” (REIS, 2019), a qual teve por
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Inclusão no ensino superior: narrativas de estudantes com deficiência no contexto amazônico
87
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 85-109, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
objetivo evidenciar, a partir das narrativas de estudantes com deficiência, os desafios e
barreiras por eles enfrentadas, tendo em vista, a fragilidade da implementação das po-
líticas públicas que contemplem o ingresso, permanência, aprendizagem e sucesso
acadêmico deste público neste nível de ensino.
Discutir a educação inclusiva em nosso país, demanda considerar o protago-
nismo de grupos historicamente excluídos do espaço educacional, seja em razão de
fatores sociais, econômicos, culturais, linguísticos ou pela condição de deficiência. Im-
plica engajar-se na luta permanente para que seja garantido a todos oportunidades e
condições equitativas de desenvolvimento e aprendizagem. Segundo Castel (1997, p.
19), “a exclusão se dá efetivamente pelo estado de todos os que se encontram fora dos
circuitos vivos das trocas sociais”, ou seja, independente do foco específico, faz-se ne-
cessário analisar diferentes fenômenos sociais, nos quais as exclusões são produzidas.
Nas últimas décadas tem havido um significativo movimento internacional
(UNESCO, 1990; 1994) e nacional (BRASIL, 1996; 2008; 2015) em prol da garantia
do direito à educação para todos. Observa-se dessa forma, no cenário educacional bra-
sileiro um arsenal de documentos, orientadores e legais, que têm contribuído para a
construção de ações para a inclusão em todos os níveis de ensino de estudantes com
deficiências e outras condições atípicas de desenvolvimento, ou seja, o público-alvo da
Educação Especial (BRASIL, 2008).
1
Essas políticas vêm transformando a própria concepção de deficiência, tradicio-
nalmente fortemente marcada pelo viés médico/biológico/terapêutico, para uma
discussão pautada nos direitos humanos, com base no modelo social da deficiência.
Assim, “habitar um corpo com impedimentos físicos, intelectuais ou sensoriais é uma
das muitas formas de estar no mundo” (DINIZ; BARBOSA; SANTOS, 2009, p. 1).
De acordo com o preâmbulo da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência, estabelece:
Reconhecendo que a deficiência é um conceito em evolução e que a deficiência resulta da inte-
ração entre pessoas com deficiência e as barreiras devido às atitudes e ao ambiente que impedem
a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades com
as demais pessoas (BRASIL, 2009, p. 1, grifo nosso).
Sob esta visão, o foco do olhar desloca-se exclusivamente da condição orgânica
do sujeito (deficiência sensorial, física, intelectual, etc.,) para as condições do meio so-
cial. Em outras palavras, há o reconhecimento da existência do corpo como uma forma
diversa de ser e estar no mundo, entendendo-se que as barreiras impeditivas do pleno
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Joab Grana Reis, Rosana Glat
88
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 110-131, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
desenvolvimento do indivíduo são decorrentes do processo de interação nas diferentes
dinâmicas sociais, ambientais, educacionais, tecnológicas, profissionais, entre outras.
Neste sentido, a discussão sobre inclusão no ensino superior perpassa por uma
nova conceituação de deficiência, pela trajetória educacional desses sujeitos na educa-
ção básica, bem como pelos documentos orientadores e legais que provocaram
mudanças no cenário educacional. Destaca-se, ainda, que a implementação desta polí-
tica representa uma luta constante para garantia dos direitos em um país constituído
por realidades econômicas, educacionais, culturais e geográficas tão distintas.
Com base neste contexto, as reflexões e análises apresentadas neste artigo se ba-
seiam nas tessituras de narrativas de estudantes com deficiência, de uma universidade
pública do estado do Amazonas. A discussão pauta-se em dois eixos
2
temáticos, a saber:
O que dizem os estudantes com deficiência sobre o ingresso no ensino superior? E o
que relatam os estudantes com deficiência sobre a acessibilidade na universidade?
2. Percurso metodológico
A pesquisa caracterizou-se por uma abordagem qualitativa, tendo como finali-
dade perceber, a partir das vozes de estudantes com deficiência, “aquilo que eles
experimentam, o modo como eles interpretam as suas experiências e o modo como eles
próprios estruturam os mundos sociais em que vivem” (PSATHAS,1973 apud
BOGDAN; BIKLEN, 1991, p. 51). Para atender este objetivo foi empregado o método
História de Vida que:
[...] consiste na história de uma vida ou acontecimento tal qual a pessoa ou pessoas que vivenci-
aram (ou estão presentemente vivenciando) narram ao entrevistador. [...] O objetivo desse tipo
de estudo é justamente apreender e compreender a vida conforme ela é relata e interpretada pelo
próprio ator (GLAT, 2009, p. 30).
Destaca-se, a nível metodológico, a técnica da escuta, pois “permite a instauração
de uma relação de confiança, a criação de uma situação dialógica aberta [..] trata-se de
uma dialética relacional” (FERRAROTTI, 2014, p. 34). Ou seja, a escuta ativa é fun-
damental para permitir que o entrevistado tenha a liberdade de narrar e atribuir
significados às suas experiências e vivências numa relação de diálogo.
Para a escuta das vozes dos estudantes foram realizadas entrevistas abertas, que
iniciavam com solicitação: ‘fale de sua vivência como estudante no ensino superior’.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Inclusão no ensino superior: narrativas de estudantes com deficiência no contexto amazônico
89
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 85-109, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Participaram do estudo 16 alunos com deficiência matriculados em unidades acadêmi-
cas de campi localizados na capital, Manaus, e nos municípios de Parintins, Tefé e
Tabatinga.
Quadro 1 Caracterização dos estudantes com deficiência
3
Município do Campus
Estudante
Deficiência
Curso
Manaus
Rio Negro
Deficiência Visual (DV)
Pedagogia
Manaus
Rio Amazonas
Deficiência Visual (DV)
Pedagogia
Manaus
Rio Juruá
Deficiência Física (DF)
Medicina
Parintins
Rio Nhamundá
Deficiência Física (DF)
Letras
Parintins
Rio Tracajá
Deficiência visual (DV)
Letras
Tabatinga
Rio Purus
Deficiência Física (DF)
Pedagogia
Tabatinga
Rio Javari
Deficiência Visual (DV)
Direito
Tefé
Rio Tefé
Deficiência Intelectual (DI)
Ciências
Biológicas
Fonte: Reis, 2019.
3. Caracterizando o lugar/cenário da produção das narrativas
Conforme mencionado, a pesquisa desenvolveu-se na Universidade do Estado
do Amazonas (UEA), instituição multicampi que tem ampliado sua abrangência no
interior do Estado, através de unidades acadêmicas localizadas em pontos estratégicos
na região.
A maioria dos municípios que formam o universo amazônico, teve sua “origem
às margens dos rios e as comunidades ribeirinhas, como o próprio nome as designa,
localizam-se às margens dos rios e deles muitas famílias sobrevivem e convivem com o
ciclo das águas: enchente e vazante” (MATOS, 2009, p. 3). Esse dado geográfico do
contexto investigado é fundamental para se compreender os relatos dos entrevistados,
matriculados nos diferentes campi da universidade.
Pode-se dizer que no estado do Amazonas os rios são as ruas e estradas, demar-
cando, portanto, uma realidade de mobilidade e deslocamento que se diferencia dos
demais estados brasileiros. De acordo com Nogueira (1997, p. 81-82, grifo nosso):
[...] apenas duas cidades, das sessenta e duas sedes de municípios, surgiram em torno das rodovias,
e ambas estão envolvidas por projetos: a cidade de Presidente Figueiredo as margens da BR
174, que liga Manaus a Boa vista, é suporte para a mineração de cassiterita da empresa Parana-
panema. Apuí, que é sede de um projeto de colonização agrícola e possível palco de possíveis
conflitos. Grande parte da calha central do rio Amazonas-Solimões não foi afetada por rodovia
é aí que está a outra Amazônia.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Joab Grana Reis, Rosana Glat
90
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 110-131, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
O autor sinaliza a dependência da rede fluvial para a mobilidade da população,
pois o rio faz parte da vida do amazonense. O deslocamento para alguns lugares pode
ser realizado por avião, no entanto, os barcos e voadeiras(lanchas rápidas) são os prin-
cipais meios de transporte utilizado para se chegar aos diferentes municípios. Esse
contexto amazônico emergiu nas vozes dos estudantes durante as entrevistas. Assim,
como forma de garantir seu anonimato, identificou-se os participantes do estudo pelo
nome de diferentes rios.
Bertaux (2010, p. 147) chama atenção para o cuidado que se deve ter no recorte
de cada texto, de forma a “[...] extrair de seu contexto discursivo sem perda sensível”.
Ou seja, o sentido do que foi dito deve estar preservado. Para organização do registro
das narrativas, utilizou-se dois tipos de critério: [...] representando que houve cortes na
fala e // representando deslocamento de frases.
4. O que dizem os estudantes com deficiência sobre o ingresso
no ensino superior?
Na entrevista aberta do método de História de Vida, as narrativas dos sujeitos
representam um mergulho na memória. Na medida em que é livre para se expressar,
recordações das experiências (no caso deste estudo, educacionais) vão emergindo gra-
dativamente como um filme, que resgata parte de sua história de vida, com cenas
significativas, que fazem com que a voz e o corpo expressem diferentes sentimentos e
emoções (alegria, tristeza, sofrimento, indignação, resistência e motivação).
Assim, ao discorrer sobre seu ingresso no ensino superior, a maioria dos entrevis-
tados relatou muito da trajetória vivenciada na educação básica. De modo geral, suas
experiências escolares, demarcadas por um contexto educacional não inclusivo, foram
representativas de um cotidiano permeado de inúmeras barreiras e desafios.
A minha vivência no ensino superior, ela não é diferente da minha vivência nas outras, outras
etapas da minha vida. Tanto no Ensino Fundamental, tanto no Médio sempre tive algumas di-
ficuldades, né? Até chegar na universidade [...] (RIO JURUÁ, DF, MANAUS).
[...]. Eu nasci aqui. Mas, quando ela (a mãe) passou no concurso, a gente foi para São Paulo até
os seis anos e depois a gente veio para cá. Então, tipo quando eu cheguei aqui, como eu já sabia
ler e escrever, eu não passei muito tempo na [nome da escola especial estadual que atende
estudantes cegos], porque eu era muito à frente das outras crianças. Então, eles decidiram me
incluir e dessa inclusão eu pude perceber que os professores não sabiam como lidar. E a partir
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Inclusão no ensino superior: narrativas de estudantes com deficiência no contexto amazônico
91
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 85-109, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
disso eu fiquei no sétimo ano, eu estudei numa escola batista. E aí, eu decidi fazer Pedagogia [...]
(RIO AMAZONAS, DV, MANAUS, grifo nosso).
[...]. Porque quando eu terminei o ensino fundamental e o médio, eu terminei numa escola, tipo
assim, segregado, uma escola voltada para o deficiente visual. A pessoa já saia de lá com o ensino
fundamental completo e aí ia para o ensino regular, que era o ensino médio, e os professores iam
acompanhar o aluno lá no ensino médio, no ensino regular, e eram professores capacitados. E
aqui na faculdade, quando eu cheguei ao curso superior, não vi essa capacitação desses professores
[...] (RIO NEGRO, DV, TEFÉ).
[...]. Aos 15 perdi a visão, sem explicação, uma atrofia do nervo ótico, constatada um ano depois
que perdi e não foi fácil ter que me adaptar, ter que aceitar a perda da visão. [...] Só que eu tive
que aprender o braile para poder entrar na escola regular para continuar a partir da quinta
série. Aí, foi bem difícil porque eu...teve escola que me negou vaga, eu não sabia dos meus
direitos...corre para outra, a outra me aceita. Aí, eu tive que estudar numa escola cheia de bar-
reiras que foi, era uma escola que funcionava aqui nas dependências do Bumbódromo
4
, com
muitos ferros pelas salas [...] eu passei dois anos convivendo com adolescente, eu tinha 21, eu
tinha 20 anos. E convivendo com adolescentes de 14, 15 anos e o preconceito e a discriminação
foram bem acentuados. Mas eu fui superando isso. Depois fui fazer o sétimo e o oitavo só em
um ano na EJA.
Eu tive dificuldade para encontrar vaga, a própria Coordenação da EJA: “Não, não sei se pode-
mos matricular, não estamos preparados”, sempre aquele discurso. Falei com a direção, fui e falei
com a Direção “A gente vai te matricular sim, a gente vai dar um jeito, a gente busca os meios
de como te ajudar”. Lá eu estudei. Quando foi para o ensino médio, novamente vou para outra
escola, a mesma situação: “E agora, como é que eu vou trabalhar contigo? É melhor você ir para
outra escola que está mais preparada para te ajudar”. “Não, eu quero estudar aqui mais perto de
casa”.
Aí, foi que me matricularam, e essa escola hoje tem uma sala de recursos tipo dois, foi o legado
que ficou por conta da minha passagem, porque eu passei a constar como aluno cego, e a escola
ganhou uma sala de recursos tipo dois. Hoje, serve a escola, serve outros alunos com deficiência.
// E assim que eu tive a oportunidade, eu vim para a cidade para continuar os estudos. // Então,
eu estou há 19 anos sem a visão e já vivi muitas experiências ao longo desses 19 anos sem a visão,
principalmente, no ensino superior, já cursei uma faculdade na UFAM em comunicação social,
e atualmente estou cursando Letras na UEA, primeiro período. Então, ao longo desse tempo,
principalmente de UFAM, sempre enfrentei a mesma dificuldade por onde passei em várias es-
colas. Aquele discurso de “E agora, o que eu vou fazer contigo? Como é que eu vou trabalhar
contigo?” [...] (RIO TRACAJÁ, DV, PARINTINS, grifo nosso).
Bom, comecei na APAE, a estudar na APAE no ano de 1998. No ano de 98 eu ingressei na
APAE. A APAE já tinha três anos de funcionamento aqui dentro do município de Tefé. Aí, a
minha mãe percebeu que eu tinha algo a mais, meus familiares logo perceberam, porque uma
delas era médica e ela estudou para isso. Desde então, eu entrei na APAE desde idade de seis
anos, eu entrei na APAE. Aí, desde aí, eu fui continuando, fui continuando e evoluindo, fui
evoluindo. [...], eu voltei para o Corinto, que foi a minha segunda escola, peguei, terminei o
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Joab Grana Reis, Rosana Glat
92
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 110-131, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
ensino médio e logo os professores disseram, assim: “Meu filho, tu é muito aplicado naquilo que
tu quer, então eu quero que tu faça o vestibular ou o ENEM”. Aí, eu peguei e fiz. Passei [...]
(RIO TEFÉ, DI, TE, grifo nosso).
Eu estudei lá, também porque era fronteira, aí eu estudei lá. Aí, eu peguei os meus documentos
que estudei lá e me matriculou aqui. Na década de 80, que eu estudei, não tinha muito problema
colombiano estudar lá e brasileiro estudar aqui, como é fronteira e um país depende do outro...
não tem para onde fugir, foge para lá ou foge para cá. Eu acabei o meu médio aqui e o funda-
mental também. No GM3 que eu estudei, depois fui para UEA. Porque a lei era essa, que eu
estudasse para me especializar como professor para depois ter futuros alunos cegos, deficientes
visuais que aparecer. Eu estou nessa caminhada aí. Estou chegando no final (RIO IÇA, DV,
TABATINGA, grifo nosso).
Como estudante da UEA de Tabatinga, eu me sinto contente e feliz. Seria algo que eu nunca
teria alcançado, tendo em vista que a minha família, todos eles não passaram da sexta série do
ensino fundamental, e eu apesar de ter essa dificuldade, eu consegui chegar até aqui, um pouco
tarde, mas consegui e eu estou aqui. E para chegar até aqui não foi fácil para mim, foi muito
difícil. Eu tive que parar de estudar na sexta série para ajudar em casa, trabalhando. [...]. Eu
terminei o meu ensino médio em 2008 pela EJA e durante todo esse tempo, eu não fiquei parado,
eu continuei a exercer outras atividades para ajudar na renda de casa [...] (RIO PURUS, DF,
TABATINGA).
Bertaux (2010, p. 93) pontua, que as narrativas são demarcadas por uma diacro-
nia, ou seja, “[...] uma sucessão temporal de acontecimentos, suas relações
antes/depois”. Esse movimento gradativamente ganha forma ao resgatar na memória
os acontecimentos que tiveram fortes repercussões nas experiências vividas, como o
percurso educacional na educação básica.
As experiências narradas pelos entrevistados denominados Rio Amazonas, Rio
Tefé e Rio Negro correspondem ao modelo de educação pautado no paradigma da
integração, que de acordo com Glat e Blanco (2011, p. 24) “[...] previa a escolarização
de alunos com deficiências (geralmente oriundos do ensino especial) em classes co-
muns, porém eles só eram integrados na medida em que demonstrassem condições de
acompanhar a turma, recebendo apoio especializado paralelo”.
Já outros estudantes relatam experiência respaldada no princípio da educação
inclusiva, que se fundamenta na concepção de direitos humanos, exigindo uma nova
compreensão e prática social, pois “[...] conjuga igualdade e diferença como valores
indissociáveis, e que avança em relação à ideia de equidade formal ao contextualizar as
circunstâncias históricas da produção da exclusão dentro e fora da escola” (BRASIL,
2008, p. 1). Portanto, cabe às instituições de educação formal, em todos os níveis de
ensino, acolher todos os estudantes, garantindo o acesso, permanência e condições
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Inclusão no ensino superior: narrativas de estudantes com deficiência no contexto amazônico
93
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 85-109, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
equitativa de aprendizagem. Para tanto, são necessárias, como já exaustivamente apon-
tado, transformações na organização pedagógica, arquitetônica, comunicacional e
rupturas nas barreiras atitudinais (GLAT; BLANCO, 2011; GLAT; PLETSCH, 2012;
REIS, 2019; COSTA; PIECZKOWSKI, 2020, entre outros).
Apesar dos discursos dos participantes retratarem percursos de escolarização di-
ferenciados, constata-se que as barreiras arquitetônicas, pedagógicas e atitudinais se
constituem como um ponto comum nas vivências educacionais, as quais passam a ser
enfrentadas também na universidade. Atualmente, há diversas peças de legislação
(BRASIL, 2003, 2004, 2008; 2011, 2015) que tratam do direito de oportunidade em
todos os níveis de ensino. Porém, a promulgação de leis por si só não garante mudanças
na realidade social quando a diversidade humana é ainda desvalorizada. Essa questão
reflete, inclusive no ambiente educacional que predomina a homogeneidade, a seleção
e a exclusão de muitos estudantes considerados desviantes dos padrões de exigências
estabelecidas nas instituições escolares.
A história de vida da estudante Rio Javari, por exemplo, evidencia um contexto
de barreiras enfrentadas por pessoas com deficiência residentes em municípios mais
distantes geograficamente da cidade de Manaus. Entre os diversos obstáculos emergidos
em seu relato, destaca-se a incipiência na oferta do Atendimento Educacional Especia-
lizado (AEE) e recursos pedagógicos acessíveis, carência de professores com formação
especializada, além da barreira atitudinal forjada pela visão estigmatizada da deficiência.
[...] A gente mora no interior do Amazonas, então não é toda família que incentiva um filho
deficiente visual a estudar. [...] Mas, assim, claro que houve muito esforço por parte da minha
família, houve muito esforço por parte dos professores que me davam aula, porque era interior,
ninguém tinha acesso ao braile. Eu consegui aprender braile porque uma professora, que mora
na frente da minha casa, ela foi para Manaus fazer uma especialização. Mas, na verdade, ela
não sabia nem o que era o braile, ela foi mandada pela escola. [...] E lá ela aprendeu alguma
coisa. Não foi o suficiente, mas ela voltou e começou a aprender sozinha. Ela disse: “Olha, eu
vou te ensinar” e eu dizia “Tá bom, então eu vou aprender” [...] Nós fomos aprendendo juntas.
No início não tinha reglete, que é aquela prancheta que a gente usa. Eu acho que a senhora já
viu. [...]. Pois é, a gente não tinha aquilo. Aí é que tá. Ela já tinha visto uma reglete. Então, ela
fez um modelo da reglete no emborrachado, ela e o marido dela. Fizeram as seis celas, que é os
pontos que a gente vai marcando. [...]. Em seguida já vieram as regletes, porque fizeram uma
sala de recursos numa escola aqui, que não era a escola que eu estudava, mas aí eles permitiram
que eu fosse, eu tinha acesso a sala [...] participação da família, no meu caso, se eu tive essa
vontade de estudar, se eu me esforcei para que tudo acontecesse, teve a grande participação do
meu pai e da minha mãe [...] Sempre com a maior dedicação. Eu tenho essa opinião que é extre-
mamente fundamental a participação da família. O que me preocupa aqui em Benjamim é isso,
porque têm pessoas deficientes visuais tem, mas não tem... Essa minha amiga que é deficiente
visual não tem o incentivo da família, não tem essa ideia de “Olha, você tem que estudar, você
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Joab Grana Reis, Rosana Glat
94
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 110-131, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
pode estudar, você pode aprender” Ela fez até uma série, eu não lembro se foi até o oitavo ano,
alguma coisa assim. E ela desistiu. Cadê o incentivo? Eu pensei em desistir, mas eu pensei naquilo
que os meus pais fazem por mim para que eu esteja na faculdade e é isso que me motiva a conti-
nuar. Então, eu acho que não é uma questão da pessoa querer sozinha, é necessário que tenha
um incentivo, é necessário que tenha a participação familiar (RIO JAVARI, DV, TABATINGA,
grifo nosso).
Para além de sua história pessoal, o relato da estudante denuncia o direito à edu-
cação violado, na medida em que as condições de aprendizagem são negadas pelo
sistema que deveria, por lei, atender às suas necessidades. Também fica evidente o apoio
incondicional de sua família e da professora que buscou construir os recursos e estraté-
gias pedagógicas que vieram colaborar para o avanço de sua trajetória acadêmica.
Oliveira (2013) problematiza as diferentes realidades que constituem o país
apontando que:
Uma das mais visíveis e significativas embora ainda não investigadas sob o escopo das políticas
inclusivas - problemáticas relativas à construção do Estado Nacional no Brasil diz respeito às
profundas desigualdades e assimetrias regionais e inter-regionais. Não me refiro aqui às diferenças
e diversidades culturais ou mesmo a pluralidade étnica que tornam o Brasil um país singular, mas
às desigualdades econômicas e sociais que vem criando polos de progresso e desenvolvimento em
certas partes do país enquanto mantém outras regiões em patamares de subdesenvolvimento. O
cenário de desigualdades regionais tem sido apontado como fator de suma importância para a
exclusão de grande parte da população brasileira a direitos como educação, saúde e moradia;
em suma, do direito à vida digna (2013, p. 114, grifo nosso).
Outra questão a destacar, diz respeito ao lugar onde as experiências são constru-
ídas. Como fica evidente nas narrativas dos estudantes, discutir a educação inclusiva no
nosso país, e especificadamente em um estado tão extenso e diversificado como o Ama-
zonas, é atentar-se para contextos e realidades bastante heterogêneas, que demandam
atenção e ação local diferenciada.
Quanto ao ingresso no ensino superior, os estudantes relataram os desafios vi-
venciados desde a inscrição até o momento de realização das provas de seleção.
Bom, então, eu entrei na UEA pelo SIS
5
que a gente faz três provas no primeiro, no segundo e
no terceiro ano. Então, somam-se esses pontos e dependendo do resultado.... Aí, eu consegui
entrar através disso. Só que no último ano, [...] já tinha redação e eu tive muita dificuldade,
porque na hora da redação, as folhas que eu recebi para fazer a prova não eram as folhas de
escrever braile, porque é uma folha especial, e chegaram folhas comuns. [...] A terceira prova
do SIS eu fiz. Bom, para começar eu não fui colocada numa sala sozinha e eu precisava porque
eu precisava de alguém para marcar para mim, já que a prova vinha em braile, mas era necessário
que alguém marcasse as questões objetivas para mim no cartão resposta. E aí, eu fui colocada
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Inclusão no ensino superior: narrativas de estudantes com deficiência no contexto amazônico
95
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 85-109, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
numa sala com outros alunos, então eu tive que pedir para ser tirada de lá. Aí, eles disseram que
não tinham sido comunicados disso e tal, mas no final acabaram me tirando. Em seguida, chegou
a hora da redação e não tinha máquina para eu escrever. Aí, eu tive que ligar para alguém aqui
em casa para levarem para mim.
[...] Tenho uma máquina de datilografia. Aí, nós tivemos que levar, aí eu aproveitei e pedi folhas
também para não ter que passar por outra dificuldade. Enquanto isso, o tempo ia passando,
mas... Então, foi uma prova cheia de dificuldades para mim, porque foram várias interrupções,
depois eles não sabiam que eu não assinava, aí não sabiam o que fazer, eu tive que explicar que
eu ia usar a minha digital, enfim. Depois dessas dificuldades eu não imaginava que eu fosse passar,
porque não tinha cota para deficiente e com uma série de dificuldades, eu não imaginava que eu
tinha feito uma prova boa o suficiente para passar. [...]
No ENEM eu fui muito bem auxiliada, eu cheguei lá já tinha outra sala, foi feito em outra
escola, eu cheguei lá já tinha uma sala, já tinha máquina para eu escrever, tinha as folhas, tinha
tudo. Aí, tinha alguém para marcar as questões objetivas para mim, tinha um ledor, por exem-
plo, quando eu cansava de ler... O braile a gente consegue ler até um determinado tempo, mas
aí a gente vai perdendo a sensibilidade e a sensibilidade a gente perde quando fica lendo muito.
Cansa, o dedo cansa. Aí, lá tinha um ledor para mim, eu dava uma parada e dizia “Cansei”, aí a
pessoa começava a ler para mim. Foi uma forma mais fácil de fazer a prova, apesar de ser bastante
demorado, porque o ENEM é cansativo, e eu, por ser deficiente visual, eu tive direito a uma hora
a mais do que os outros alunos. Então, é bem cansativo. Mas, é bem confortável para fazer.
Pesquisadora: E no SIS você teve esse acréscimo de hora para fazer a prova?
Eu tive que ter porque como eu já tinha perdido muito tempo com essas questões de faltar a
máquina, então eu já tinha passado por interrupções.... Se eu tinha direito, eu não sei, mas foi
necessário (RIO JAVARI, DV, TABATINGA, grifo nosso).
[...] Aí, quando foi em 2014, eu fiz, paguei a inscrição e graças a Deus eu fiz e passei em décimo
sétimo lugar na classificação geral para Pedagogia. Aí, isso já me deu mais um ânimo, mais uma
vontade de continuar e desse tempo para lá, para cá, eu me sinto, assim, uma outra pessoa, eu
me sinto até melhor na minha própria casa, com os meus filhos, como tratar eles, como entender
eles. [...] Depois de oito anos sem estudar, eu fiz o vestibular e eu ainda passei. Inclusive quando
saiu o resultado eu não estava nem aqui, eu estava em Santo Antônio de Sá. Aí, o meu irmão me
ligou “Vem para fazer a tua matrícula, porque você passou no vestibular”, “você leu direito meu
nome”. Aí, eu vim embora e realmente eu tinha passado. Eu mesmo não tinha acreditado, oito
anos parado, eu não estudei, mas as perguntas que estavam lá, eu respondi, na redação eu também
fiz bem.
[...] O primeiro vestibular não deu certo, mas o segundo deu certíssimo. Está sendo muito im-
portante para mim esse momento que eu estou aqui na UEA (RIO PURUS, DF, TABATINGA,
grifo nosso).
[...] fiz aqui mesmo na sala de recursos onde estamos e me mandaram a atendente que solici-
tamos, as provas vieram em braile, eu lia e ela colocava no cartão resposta o que eu dizia se era
o a, o b, o c... Eu lia, sabia qual era a resposta. Eu passei na segunda chamada da UEA (RIO
IÇA, DV, TABATINGA, grifo nosso).
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Joab Grana Reis, Rosana Glat
96
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 110-131, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Como visto, as experiências do processo seletivo para o ingresso na universidade
retrataram uma realidade de barreiras no que tange às condições de acessibilidade. No
entanto, as providências necessárias para garantir acessibilidade para as pessoas com
deficiência em exames têm sido contempladas em diferentes documentos legais, inclu-
sive na Lei n°13. 146/2015 (BRASIL, 2015) Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com
Deficiência -- que coaduna com diretrizes anteriores, ao regulamentar diversas provi-
dências para a garantia de acessibilidade aos estudantes com deficiência, nas instituições
de ensino superior, a saber:
Art. 30. Nos processos seletivos para ingresso e permanência nos cursos oferecidos pelas institui-
ções de ensino superior e de educação profissional e tecnológica, públicas e privadas, devem ser
adotadas as seguintes medidas:
I atendimento preferencial à pessoa com deficiência nas dependências das Instituições de Ensino
superior (IES) e nos serviços;
II disponibilização de formulário de inscrição de exames com campos específicos para que o can-
didato com deficiência informe os recursos de acessibilidade e de tecnologia assistiva necessários
para sua participação;
III disponibilização de provas em formatos acessíveis para atendimento às necessidades específicas
do candidato com deficiência;
IV disponibilização de recursos de acessibilidade e de tecnologia assistiva adequados, previamente
solicitados e escolhidos pelo candidato com deficiência;
V dilação de tempo, conforme demanda apresentada pelo candidato com deficiência, tanto na
realização de exame para seleção quanto nas atividades acadêmicas, mediante prévia solicitação e
comprovação da necessidade;
VI adoção de critérios de avaliação das provas escritas, discursivas ou de redação que considerem
a singularidade linguística da pessoa com deficiência, no domínio da modalidade escrita da língua
portuguesa;
VII tradução completa do edital e de suas retificações em Libras (BRASIL, 2015, p. 8).
Logo, a acessibilidade é uma garantia legal que deve ser prevista na construção
dos editais e estar disponível no momento de aplicação das provas, de acordo com as
necessidades específicas de cada candidato com deficiência. No entanto, como consta-
tado, nem sempre essas diretrizes são devidamente cumpridas, prejudicando o
desempenho de candidatos com deficiência. Sobretudo em cidades do interior do
Amazonas, como em outros estados, é necessário que sejam previstos os recursos e o
apoio especializado com bastante antecedência, para garantir a equidade do processo
seletivo, haja vista as distâncias geográficas dos grandes centros que constituem a loca-
lização de muitos desses lugares.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Inclusão no ensino superior: narrativas de estudantes com deficiência no contexto amazônico
97
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 85-109, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Outrossim, os desafios em garantir a presença de profissionais especializados,
como ledor para um candidato cego, o tradutor e intérprete de Libras (TIL), recursos
tecnológicos acessíveis, são alguns fatores que devem ser previstos, além da logística
geral, para que esse direito seja assegurado no momento da prova de seleção (Vestibu-
lar/SIS / Exame Nacional do Ensino Médio).
Em síntese, as vozes dos estudantes com deficiência revelam uma trajetória mar-
cada pela desigualdade de oportunidades e pela estigmatização sofrida na educação
básica que prossegue para o ensino superior. Paralelamente, ressaltam a luta pela pre-
sença nesse espaço acadêmico, pelo movimento de resistência e pela criatividade para
superar os entraves imposto ao acesso, à permanência, à aprendizagem e à conclusão
das diferentes etapas de ensino. No caso da realidade pesquisada, essas questões são
potencializadas frente às diversidades que emergem no contexto amazônico.
5. O que relatam os estudantes com deficiência sobre a acessibi-
lidade na universidade
O quesito da acessibilidade tem sido uma discussão presente em estudos sobre
inclusão na educação superior, evidenciando as barreiras arquitetônicas e os recursos
(humanos, de equipamentos, de comunicação e informação) como obstáculos que têm
comprometido e dificultado a permanência e a aprendizagem de estudantes com defi-
ciências neste nível de ensino (MOREIRA; BOLSANELLO; SEGER, 2011;
CASTRO, 2011; OLIVEIRA, 2013; ANACHE, CAVALCANTE, 2018; REIS,
2019).
Há um arsenal de documentos legais que estabelecem a acessibilidade em insti-
tuições de ensino (BRASIL, 2003, 2008, 2011), tal como sintetizado na Lei de Inclusão
da Pessoa com Deficiência, no Art. 3°, Inciso I:
Acessibilidade: possibilidade e condição de alcance para utilização, com segurança e autonomia,
de espaços, mobiliários, equipamentos urbanos, edificações, transportes, informação e comuni-
cação, inclusive seus sistemas e tecnologias, bem como de outros serviços e instalações abertos ao
público, de uso público ou privados de uso coletivo, tanto na zona urbana como na rural, por
pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida (BRASIL, 2015, p. 1).
Vale ressaltar que acessibilidade é requisito para autorização, reconhecimento e
credenciamento de cursos, como previsto na Portaria n°3.284/2003 (BRASIL, 2003).
Ou seja, a instituição de ensino superior tem a responsabilidade de implementar polí-
ticas institucionais que garantam o direito de acesso, permanência, aprendizagem em
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Joab Grana Reis, Rosana Glat
98
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 110-131, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
condições de equidade aos estudantes com deficiência, as quais devem ser parte inte-
grante de seu projeto político pedagógico.
A pesquisa realizada constatou claramente as barreiras impostas pela ausência de
acessibilidade, uma vez, que emergiu em diferentes relatos a respeito de situações vi-
venciadas no dia a dia da instituição, pois os estudantes com deficiência que ingressam
na universidade, acabam tendo seus direitos negados, na medida em que os espaços
físicos, equipamentos, mobiliários, currículo, práticas pedagógicas e o acesso a comu-
nicação etc., desconsideram suas necessidades de acessibilidade.
As condições de acessibilidade na estrutura física e arquitetônica são fundamen-
tais para que os estudantes com deficiência possam exercer o direito de ir e vir em
diferentes espaços da instituição, exercendo sua autonomia com segurança e indepen-
dência (BRASIL, 2004). No entanto, apesar de inegáveis avanços em inúmeras
instituições, essa condição permanece sendo uma pauta de luta, como elucidam as nar-
rativas dos estudantes participantes desta pesquisa.
Um entrevistado, por exemplo, assinalou que a estrutura física da universidade é
um fator complexo que dificulta o dia a dia. Porém, segundo ele, o grande entrave para
inclusão está na ‘inconsciência’ das pessoas, ou seja, nas barreiras atitudinais. Segundo
a Lei de Inclusão, barreiras se referem a “qualquer entrave, obstáculo, atitude ou com-
portamento que limite ou impeça a participação social da pessoa, bem como o gozo, a
fruição e o exercício de seus direitos [...] (BRASIL, 2015, p. 2).
A questão física é a parte mais, mais complicada de se resolver. Porque não é tão fácil você,
tipo... O professor, o professor podem decidir entre receber um texto meu digitado ou caligrafado
né? Mas ele não pode tirar a parede de lugar de uma hora pra outra, mudar aquela parede, por
exemplo. Então a questão física é bastante complicada ainda, né?
E, mas o que complica mesmo essa questão é a inconsciência das pessoas. A inconsciência de
que, se existe uma rampa, é porque alguém precisa usar aquela rampa. Se existe uma via rebaixada,
é porque, se ela está ali, ela tem um objetivo de estar ali. [...].
Olha, atualmente, atualmente, o prédio da ESA não está 100%, mas está uns 75%, e isso é muito,
isso é muito. É, comparando com quando eu cheguei aqui tá muito melhor. Muito melhor. Eu
creio que o que falte de fato seja a colaboração dos outros. Porque aquilo que foi posto pra
melhorar a minha situação acaba sendo inutilizado pela falta de consciência dos outros. Que
estacionam no meio da rampa, que colocam uma caçamba de entulho bem na rampa do estaci-
onamento, né? Que fecham o estacionamento todo, colocando um monte de carro do lado do
outro e não deixam lugar pra passar a cadeira de rodas, e eu tenho que dar uma volta enorme pra
poder entrar na instituição, no prédio da instituição.
Eu acho que o que tá faltando aqui, que seria interessante que fosse feito é uma conscientização
sim. Imagina (risos): eu gostaria que um dia alguns colegas fossem convidados a passar um dia
na cadeira de rodas na, aqui na Universidade. Pra ver como realmente seria, como realmente
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Inclusão no ensino superior: narrativas de estudantes com deficiência no contexto amazônico
99
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 85-109, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
é, ele teria que fazer pra poder chegar nos lugares que ele quer chegar (RIO JURUÁ, DF,
MANAUS, grifo nosso).
Esta fala é bastante significativa pois revelou uma situação em que a instituição
fez um esforço para melhorar a acessibilidade arquitetônica, no entanto ele não pode
usufruir plenamente desta facilidade por conta de comportamentos e atitudes inade-
quadas praticadas pelas pessoas no cotidiano da universidade. Essa situação dificulta ou
por vezes impede a locomoção de uma pessoa com deficiência com física, pelo fato de
não poder acessar uma rampa em decorrência de um obstáculo imposto. Diante disso,
há um sentimento de indignação frente à vivência da visibilidade das barreiras atitudi-
nais e de sua consequência, diante de práticas sociais demarcadas pela discriminação e
exclusão.
A sugestão do aluno para a realização de atividades com “vivência de simulação
da deficiência” pelos colegas é uma estratégia bastante profícua que possibilita se colo-
car no lugar do outro. Oliveira e Rezende (2017, p. 300) desenvolveram um estudo
com oficina nessa perspectiva, e os estudantes “relataram o quanto chamaram a aten-
ção, enquanto realizavam o percurso, pela diferença explícita que se fazia ver e sentir
naquele momento, passando pelos mesmos estigmas das pessoas com deficiência [...]”.
Não resta dúvida de que barreiras arquitetônicas constituem, ainda, um entrave
vivenciado no cotidiano da universidade, interferindo no acesso à sala de aula e ao
restaurante universitário e no próprio deslocamento para outros espaços, como comen-
tam estudantes de diferentes unidades acadêmicas:
E um problema bem sério aqui na nossa instituição, aqui da nossa unidade, são os elevadores. A
gente tem no prédio anexo dois que funcionam, mas tem dias que só um funciona. Tem dia que
nenhum funciona. Já aconteceu de eu perder aula porque não conseguia chegar na sala porque o
elevador não funcionou, né? Um dia eu estava muito chateado, eu não sei se eu agi certo nesse
dia, mas eu me recusei a ser carregado pelos meus colegas. Eles me carregam quando o elevador
falha sempre tem alguém que me carrega pra eu chegar aonde eu não consigo chegar.
Uma vez até o funcionário, os funcionários aqui da universidade já me ajudaram com relação a
isso. Mas teve um dia que eu me recusei a fazer isso, ser carregado porque eu tinha o direito que
o elevador funcionasse. E eu falei “Eu não vou porque, se eu ficar sendo carregado, eles não vão
fazer nada”. E eu me recusei, entrei com uma reclamação, perdi aula por conta disso, né. Fui
prejudicado porque eu perdi uma aula (riso). E, é um problema sério, não só meu, mas como de
todo mundo que estuda aqui. Eles costumam parar no meio do andar assim e abrir a porta do
nada, isso acontece. É um risco, é um risco. É a dificuldade, hum, acho que de maior negligência,
são os elevadores. (RIO JURUÁ, DF, MANAUS, grifo nosso).
[...] tem um restaurante aqui na universidade, que não tem acessibilidade nem para cadeirante
nem para deficiente visual. Tem que rever essa situação de acessibilidade, principalmente agora
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Joab Grana Reis, Rosana Glat
100
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 110-131, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
com essas obras novas, elas têm que ter um padrão de qualidade para atender a pessoa com
deficiência, deficiente visual, cadeirante. Isso é fundamental na vida da pessoa que tem deficiên-
cia visual (RIO NEGRO, DV, MANAUS, grifo nosso).
A falta de acessibilidade ilustrada pelos elevadores que não funcionam ou não
existem, ou na ausência de rampas são problemas cotidianos em inúmeras instituições
de ensino superior, que justamente ferem o princípio de autonomia, mobilidade e se-
gurança, colocando os alunos com deficiências em situação constrangedora, ao precisar
ser carregado por colegas ou funcionários.
Outras considerações foram feitas sobre acessibilidade, como, por exemplo, uma
aluna com deficiência visual que mencionou o piso tátil:
[...] E o piso tátil às vezes ajuda, às vezes não ajuda.
Pesquisadora: Por que não ajuda?
Assim, principalmente ali do meio da pracinha, eu acho que deveria ser modificado por cores
mais fortes, porque às vezes não é muito perceptível (RIO AMAZONAS, DV, MANAUS, grifo
nosso).
Essa unidade está localizada na capital, sendo importante dizer que, no mo-
mento, é o único campus da UEA que dispõe deste recurso de sinalização para
estudantes com deficiência visual. O piso tátil possibilita orientação, segurança e auto-
nomia desses alunos, porém, a textura e a cor, no caso de pessoas com baixa visão, são
fundamentais para atender a essa necessidade.
Acessibilidade na universidade, e demais contextos educacionais, tem a função
não só de proporcionar as condições objetivas de permanência, participação e aprendi-
zagem de estudantes com deficiências, mas também representa, subjetivamente, uma
indicação de pertencimento. As ‘ausências’ transformam-se em ‘presenças, na medida
em que as condições acessibilidade são proporcionadas de acordo com as necessidades
educacionais específicas de cada sujeito. Ribas (2007, p. 73) reforça a importância do
uso de equipamentos pelas pessoas com deficiência.
Os equipamentos usados pelas pessoas com deficiência têm vários significados positivos. São ex-
tensão do próprio corpo, a mediação com o mundo, o recurso que leva ao contato com outras
pessoas, o meio que possibilita a convivência e a interação. As cadeiras de rodas nos levam para
estudar, para trabalhar, para namorar, nos conduzem para o teatro e para o cinema.
Um estudante do curso de Física falou de sua dificuldade em realizar as atividades
de laboratório:
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Inclusão no ensino superior: narrativas de estudantes com deficiência no contexto amazônico
101
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 85-109, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
[...] eu tive uma certa dificuldade em um experimento no laboratório, por-
que os equipamentos de lá não são feitos para quem tem deficiência,
como a minha deficiência é na mão, têm certos movimentos que eu tenho
uma limitação. Mas, graças a Deus como eu sou acostumado eu consigo
contornar essas dificuldades e realizar as atividades propostas pelo profes-
sor. [...] era um experimento de dilatação térmica, a gente tinha que usar
luvas de proteção para manusear os equipamentos, então eu contei com a
ajuda dos meus colegas. Eles estavam vendo que eu não estava conse-
guindo muito realizar o experimento, aí eu pedi o auxílio deles para poder
fazer o experimento[...]. [...]. Como lá no laboratório mesmo tem certos
experimentos que algumas pessoas não conseguiram fazer. Tinha uma
pessoa que é deficiente aqui na universidade, eu não sei se ela está hoje, e
claramente dava para ver que ela tinha limitações. Então, eu não sei, mas
acho que poderia ter mais iniciativas em prol da inclusão desses alunos,
para facilitar as aprendizagens deles (RIO TAPAJÓS, DF, MANAUS,
grifo nosso).
Dados semelhantes foram obtidos no estudo de Anache e Cavalcante (2018, p.
121) que também constataram que “[...] a questão da adequação dos laboratórios
de ensino, pois a maioria não é acessível e não possuí recursos adaptados para viabilizar
a aprendizagem de estudantes com deficiências".
As barreiras de mobiliário estão presentes em outros espaços da instituição, como,
por exemplo, no restaurante universitário, trazendo constrangimento e impedimentos
para a autonomia de estudantes com deficiência, conforme a narrativa do aluno:
[...] porque as mesas do RU elas são aquelas de plástico baixas e eu preciso
pedir a ajuda de alguém para eu comer, para dar na minha boca. Eu sinto
vergonha quando eu vou merendar lá, por essa questão. Acho que preci-
saria melhorar isso, poderia colocar uma mesa mais alta, que não
escorregasse também quando apoiar nela, porque para mim assim é meio
que como se tivesse passando uma vergonha ter que pedir para alguém que
dê na minha boca e tipo assim é olhar para aquelas pessoas e elas me veem
assim, dando comida na minha boca. Eu acho isso meio que embaraçoso...
Essa questão (RIO NHAMUNDÁ, DF, PARINTINS, grifo nosso).
Essa é uma realidade vivenciada por muitos estudantes com deficiência no dia a
dia da universidade, pois a visão da deficiência enquanto ‘incapacidade’, ainda, predo-
mina nas práticas sociais. O rótulo de ‘desvantagem’ contribui para justificar e
perpetuar uma estigmatização negativa acerca da deficiência, visto que as condições
externas (ambiente, equipamento, mobiliário, recurso etc.,) acabam não sendo vistas
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Joab Grana Reis, Rosana Glat
102
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 110-131, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
como uma barreira física imposta ao aluno, e sim apenas como dificuldades inerentes
a sua condição orgânica.
A esse respeito Piccolo e Mendes (2012, p. 62) pontuam que é necessário “[...]
deslocar o foco do corpo para a sociedade, do individual para o coletivo, uma vez que
a deficiência é interpretada relacionalmente mediante uma interação não harmoniosa
entre o ter uma lesão e viver em uma sociedade não pensada para acolher a mesma
[...]”.
Em vista deste quadro, destaca-se a importância do uso dos recursos da Tecno-
logia Assistiva para atender às necessidades de cada estudante, como, por exemplo, a
aquisição de uma cadeira motorizada, adaptada para o estudante com deficiência física.
Estes e outros recursos possibilitam a ruptura de barreiras que impedem a pessoa com
deficiência exercer sua autonomia e independência para realizar as suas atividades no
dia a dia (BERSCH, 2009).
Já na história de vida do estudante, aqui denominado de Rio Juruá, emergiu a
situação de deslocamento e mobilidade em dois contextos geográficos diferentes. A pri-
meira, ao falar de sua experiência como estudante no curso de bacharelado em
Economia no município de Eirunepé, no interior do Estado. A segunda, ao chegar à
cidade de Manaus para cursar Medicina:
[...]. Os meus amigos se revezavam, me davam carona, me deixavam em casa, me pegavam em
casa. Na universidade também os funcionários me conheciam e eu não precisava muito dizer o
que eu precisava porque eles já sabiam por me conhecer desde sempre. Já sabiam que eu precisava
de adaptação e tudo, então era mais fácil. Né? Agora, vindo pra cá pra Manaus, ingressando no
curso de Medicina, tendo que estudar na, na ESA, novos desafios vieram aparecendo, né?
[...] eu precisei vir embora pra cá e não pude concluir o curso de Economia. Mas por ser na
minha cidade que tem dimensões menores, onde eu conheço mais pessoas, a dificuldade que
eu tinha no curso de Economia lá eram menores do que o que eu tenho aqui. Né? Mobilidade,
era bem mais fácil eu poder chegar na faculdade e tudo [...].
[...]. Eu moro na casa do estudante e venho pra universidade de ônibus. Venho e volto pra casa
de ônibus, eu só ando de ônibus. O que é, e é inviável andar com essa cadeira de ônibus, os
ônibus nem sempre comportam a cadeira dentro dos carros, né? [...]. Uma vez eu peguei ônibus
com um colega aqui da universidade e agente mal entrou no ônibus o cara arrancou. E a cadeira
de rodas, ela roda, o ônibus arrancando ela vai rodar pro final do ônibus, né. E ele ficou muito
chateado, meu colega ficou muito chateado, ele me colocou lá no lugar da cadeira de rodas, me
prendeu e foi lá falar com o motorista [...] (RIO JURUÁ, DF, MANAUS, grifo nosso).
Este relato evidencia que as dificuldades de mobilidade e locomoção não se res-
tringem ao espaço da universidade. As barreiras se estendem ao uso do transporte
público para chegar à instituição, bem como às acesso às demais atividades acadêmicas
que ocorrem fora do campus, como o estágio nos hospitais.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Inclusão no ensino superior: narrativas de estudantes com deficiência no contexto amazônico
103
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 85-109, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Assim, uma outra coisa que dificulta bastante a minha vivência no ensino superior, principal-
mente no curso que eu escolhi, Medicina, que é um curso integral e você tem que viver pra isso
[...] A partir do quinto período, a partir do quarto período a gente passa bastante tempo nos
hospitais e infelizmente a universidade não tem um Hospital Universitário, a gente tem que
revezar por quase todos os hospitais de Manaus, né? E como eu falei antes, eu não tenho um
veículo próprio, eu ando de ônibus. Os colegas dão carona, dão muito, mas nem sempre eles
podem. Então é bem complicado fazer todo esse trajeto, mas graças a Deus eu tenho conseguido
fazer. Eu tenho aula, nesse período eu tenho aula no Hospital Francisca Mendes, eu tenho aula
no Hospital Tropical (riso), só nesse período. Eu tenho aula no Hospital Adriano Jorge, eu tenho
aula na Policlínica Codajás que é aqui pertinho, eu vou na cadeira de rodas motorizada quando
ela está perfeita. E também tenho aula no Alfredo da Matta (RIO JURUÁ, DF, MANAUS, grifo
nosso).
A história de vida deste estudante, que é representativa de muitos outros, retrata
o esforço hercúleo em realizar um curso como o Medicina, que uma vez que demanda
uma grande dedicação de horas de estudos e de atividades práticas, além das aulas.
Moreira e Dutra (2013) destacam o sofrimento psíquico que os estudantes universitá-
rios do curso de Medicina enfrentam pela dinâmica e exigência acadêmica. Além dessas
exigências, comuns a todos, é necessário destacar as diversas barreiras enfrentadas na
acessibilidade na instituição, como já evidenciado.
Também para a estudante, chamada de Rio Javari, com deficiência visual, a mo-
bilidade e o deslocamento foram um desafio experienciado no seu cotidiano, mesmo
antes de ingressar na universidade. Sua história de vida é demarcada pela peculiaridade
da cidade ribeirinha construída à margem dos rios e o deslocamento é realizado pelo
transporte fluvial. Esse cenário da realidade amazônica aparece no seu relato ao descre-
ver o percurso efetuado da cidade de Benjamin Constant para Tabatinga, onde fica a
universidade:
A minha dificuldade também é em relação à locomoção, porque eu moro aqui em Benjamim e
a faculdade é em Tabatinga.
Pesquisadora: Me fala dessa experiência de deslocamento, como acontece?
Então, o que acontece, quando o rio está cheio, eu acho maravilhoso, eu vou e volto perfeita-
mente. Mas, a senhora veio aqui, a senhora viu o porto, as condições daquele porto, a ponte é
bem frágil, ela é bem estreita e eu tenho essa dificuldade. Eu vim hoje porque é feriado e dava
para eu vim na quinta e voltar na segunda, mas quando é fim de semana normalmente eu fico
em Tabatinga para vir no sábado e andar tudo aquilo é muito cansativo e voltar dois dias depois,
eu acabo voltando mais cansada do que quando eu venho, porque é muito difícil as pontes, o rio
está seco, as pontes são grandes e estreitas. Quando eu venho, normalmente tem gente indo e
vindo, eu ando devagar ainda mais em pontes e isso se torna muito difícil para mim. [...] Fora
que é cheia de obstáculos. Eu me machuco muito naquilo ali porque tem vários obstáculos, e
por mais que a pessoa esteja me guiando bem, falando “Aqui tem um obstáculo, aqui tem um
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Joab Grana Reis, Rosana Glat
104
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 110-131, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
obstáculo”. Normalmente até eu já estou com pressa, porque eu já estou cansada de estar ali
andando no sol, aí eu acabo me acelerando e às vezes eu digo para a pessoa “Anda, não me
avisa, só anda. Mesmo que eu me machuque, anda” porque é muito difícil, se eu for parar a cada
obstáculo, não tem condições.
Pesquisadora: E o acesso ao barco?
Olha, os catraieiros sempre me ajudam, eu já até fiz amizade com eles. Os motoristas lá sempre
me ajudam. Então, eu já estou até acostumada a entrar numa balheira, só colocam a minha mão
no lado direito e a outra no esquerdo e pode me soltar que eu me viro e entro. Eu consigo entrar.
Pesquisadora: A dificuldade é mais em chegar, né?
É. Exatamente. A dificuldade são as pontes no trajeto (RIO JAVARI, DV, TABATINGA, grifo
nosso).
Esse cenário materializado no relato apresentado retrata as condições de mobili-
dade e deslocamento em locais onde a enchente e a vazante dos rios constituem-se
como demarcadores das condições de acesso ao próprio município. Isso representa para
as pessoas com deficiência uma maior dificuldade no período da seca, devido ao deslo-
camento ocorrer nas pequenas pontes de madeira improvisadas, pois somente durante
a enchente o transporte fluvial (barco/balheira) consegue ancorar no porto da cidade.
Para além da questão de acessibilidade propriamente dita, esses dados suscitam
reflexões sobre a diversidade das diferentes realidades brasileiras. De fato, falar de mo-
bilidade e deslocamento de estudantes com deficiência no contexto amazônico é tratar
de uma peculiaridade local que diverge de muitas regiões do nosso país.
As dificuldades no deslocamento e na mobilidade nesse contexto, presentes para
qualquer estudante, são potencializadas para os que apresentam uma deficiência. Esta
situação acaba, frequentemente, gerando um fator de exclusão, isolamento e desistên-
cia, queso que também necessita ser considerada ao tratar da inclusão escolar de
estudante com deficiência na região amazônica.
Os estudantes denominados Rio Purus e Rio Nhamundá, de diferentes unidades
acadêmicas, também relataram os obstáculos que precisam enfrentar para chegar à ins-
tituição:
Eu tenho a dificuldade de vir da minha casa para cá, porque é muito longe. Quando eu tenho
dinheiro, eu venho de mototáxi. Quando eu não tenho, eu saio de casa às seis horas da manhã
para chegar aqui a pé andando de muleta. Essa é a única dificuldade que eu tenho, mas aqui
dentro da sala mesmo, eu não tenho nenhuma dificuldade, não. O banheiro é acessível, o RU
para onde a gente vai é acessível, não tenho nenhuma dificuldade aqui no Centro (RIO PURUS,
DF, TABATINGA, grifo nosso).
A questão do transporte é que praticamente sai do meu bolso para pagar o mesmo taxista para
eu poder ir para a faculdade. E eu acho que a faculdade tem que me dá o transporte para eu ir e
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Inclusão no ensino superior: narrativas de estudantes com deficiência no contexto amazônico
105
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 85-109, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
fica menos pesado para mim por conta da condição financeira que não é lá essas coisas. E também
às vezes me falta dinheiro devido a isso. // [...] É... Mas vai da prática da pessoa com a cadeira de
rodas, tipo se for alguém inexperiente é... conduzir a cadeira de rodas é meio perigoso, porque às
vezes tem uns obstáculos lá e a roda da cadeira pode, pode acontecer alguma coisa. Isso é perigoso.
Ando sempre acompanhado da monitora (RIO NHAMUNDÁ, DF, PARINTINS, grifo nosso).
Conforme mencionado, em razão da própria característica geográfica da região,
o transporte fluvial é o principal meio utilizado. Em grande parte das cidades do Estado
do Amazonas, o deslocamento concentra-se no uso de mototáxi ou táxi. Portanto, a
inexistência de transporte público acaba ocasionando para o estudante um custo alto
para chegar à universidade, pois, devido às dificuldades motoras, há necessidade de um
transporte que garanta o direito de ir e vir para o referido espaço institucional. Diante
das questões discutidas, destaca-se a necessidade de políticas públicas articuladas, de
forma que a intersetorialidade se constitua como elo para as ações, tendo em vista, a
garantia de direitos humanos para estudantes com deficiência, em todo seu percurso
formativo.
Reflexões finais
O presente estudo, ao evidenciar e privilegiar as vozes de estudantes universitários
com deficiência, de uma instituição pública do Estado do Amazonas, possibilitou pro-
blematizar como o processo de inclusão educacional nos diferentes níveis de ensino se
materializa nesta região do país.
Neste sentido, a discussão em âmbito nacional da política de inclusão de estu-
dantes com deficiências deve se atentar para as peculiaridades regionais. Como visto,
na Amazônia as estradas são os percursos dos rios e o principal meio de transporte no
interior é fluvial. Assim, o deslocamento para estudar nos municípios que oferecem
curso superior exige, logísticas diferenciadas (transporte, tempo de viagem, recurso fi-
nanceiro etc.), que impactam sobremaneira no cotidiano de estudantes com
deficiências, por vezes, inviabilizando seu percurso educacional neste nível de ensino.
No entanto, apesar das peculiaridades locais, que, como discutido, tornam mais
complexos os quesitos de acessibilidade, os dados obtidos vão de encontro com pesqui-
sas realizadas em outros contextos (CASTRO, 2011; MOREIRA et al., 2011;
MOREIRA; DUTRA, 2013; COSTA; PIECZKOWSKI, 2020, entre outros). Nos
relatos dos estudantes fica notório os desafios e barreiras que permeiam suas vivências,
não só na universidade, mas em todo seu processo de escolarização, em razão da fragi-
lidade na implementação de ações que que lhes garantam condições de ingresso,
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Joab Grana Reis, Rosana Glat
106
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 110-131, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
permanência, aprendizagem e sucesso acadêmico, conforme assegurados pelos disposi-
tivos legais. Por todo seu discurso vislumbra-se um sentimento de angústia, indignação,
mas também de resistência e criatividade, proclamado pelos próprios estudantes ao su-
perarem os obstáculos no dia a dia da universidade.
Para além das questões levantadas, destaca-se a importância de privilegiar pers-
pectiva dos próprios estudantes na análise de sua realidade educacional. Partindo do
lema dos movimentos de defesa das pessoas com deficiência ‘nada sobre nós, sem nós,
as vozes e a escuta destes sujeitos precisam estar presente na construção e implementa-
ção de propostas de ações que tornem nossas universidades espaços, de fato, inclusivos.
E isso só acontecerá na medida em que eles rompam com o padrão de invisibili-
dade e ausência, de forma a atuarem como protagonistas, e não como meros
expectadores das diferentes esferas de suas vidas. Nas palavras de Shakespeare (2000
apud PICCOLO, 2015, p. 156) trata-se “nada mais, nada menos, do que o principiar
de uma tarefa radical em que seres anteriormente passivos se tornam agentes de sua
própria história e criativos na composição de caminhos para a mudança social”.
Finalmente, vale pontuar que as narrativas dos estudantes participantes da pre-
sente pesquisa e a análise dos delas nela produzidos, foram socializados no âmbito
institucional e têm contribuído como parâmetros para fortificar ações visando estabe-
lecer e implementar a política de inclusão na universidade.
Notas
1
Definido neste e em outros documentos oficiais como alunos com deficiência, transtorno global do
desenvolvimento e altas habilidades / superdotação.
2
Na pesquisa original (REIS, 2019) emergiram outras temáticas, que não serão tratadas no escopo deste
artigo.
3
O recorte feito para o presente artigo utilizou dados produzidos em oito entrevistas, nas quais foram
abordados os eixos temáticos selecionados para esta análise.
4
Local onde ocorre o Festival Folclórico de Parintins, evento cultural que acontece no final de junho,
com a disputa entre duas agremiações: Boi Garantido que representa a cor vermelha e o Boi Caprichoso
com a cor azul.
5
Sistema de Ingresso Seriado para acesso ao curso de graduação da UEA, o estudante do ensino Médio
realiza três etapas de seleção (1⁰, 2⁰ e 3⁰ ano do ensino Médio).
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Inclusão no ensino superior: narrativas de estudantes com deficiência no contexto amazônico
107
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 85-109, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Referências
ANACHE, Alexandra Ayach; CAVALCANTE, Lysa Duarte. Análise das condições de
permanência do estudante com deficiência na Educação Superior. Psicologia Escolar e
Educacional, São Paulo, Número Especial, p. 115-125, 2018. Disponibilizado em:
http://www.scielo.br/pdf/pee/v22nspe/2175-3539-pee-22-spe-115.pdf. Acesso em 31 de
outubro de 2018.
BERSCH, Rita de Cássia Reckziegel. Design de um serviço de tecnologia assistiva em escolas
públicas. Tese (Doutorado em Design), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, 2009.
BERTAUX, Daniel. Narrativas de vida: a pesquisa e seus métodos. Natal: EDUFRN / São
Paulo: Paulus, 2010.
BOGDAN, Robert; BIKLEN, Sari. Investigação qualitativa em educação: introdução, à teoria
e aos métodos. Portugal: Porto Editora, 1991.
BRASIL. Decreto n° 5.296, de 2 de dezembro de 2004. Regulamenta as Leis n⁰ 10.048, de 8
de novembro de 2000, que dá prioridade de atendimento às pessoas que especifica, e 10.098,
de 19 de dezembro de 2000, que estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção
da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, e dá
outras providências. Brasília: MEC, 2004.
BRASIL. Decreto n° 6.949, de 25 de agosto de 2009. Promulga a Convenção Internacional
sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em
Nova York, em 30 de março de 2007. Brasília: MEC, 2009.
BRASIL. Decreto n⁰ 7.611 de 17 de novembro de 2011. Dispõe sobre a Educação Especial, o
atendimento educacional especializado e dá outras providências. Brasília: MEC, 2011.
BRASIL. Lei n⁰ 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da
Educação Nacional. Brasília: MEC, 1996.
BRASIL. Lei n°13.146, de 06 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa
com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Brasília: Casa Civil, 2015.
BRASIL. Política Nacional de Educação Especial na perspectiva inclusiva. Brasília. MEC, 2008.
BRASIL. Portaria nº 3.284, de 7 de novembro de 2003. Dispõe sobre requisitos de
acessibilidade de pessoas portadoras de deficiências, para instruir os processos de autorização e
de reconhecimento de cursos, e de credenciamento de instituições. Brasília: MEC, 2003.
CASTEL, Robert. As armadilhas da exclusão. In: CASTEL, Robert; WANDERLEY, Luiz
Eduardo; BELFIORE-WANDERLEY, Mariangela (Org.). Desigualdade e questão social. São
Paulo: EDUC, 1997. p. 15- p. 48.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Joab Grana Reis, Rosana Glat
108
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 110-131, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
CASTRO, Sabrina Fernandes. Ingresso e Permanência de alunos com deficiência em
universidades públicas brasileiras. Tese (Doutorado em Educação Especial) - Universidade
Federal de São Carlos, São Carlos, 2011.
COSTA, Joana Maria de Moraes; PIECZKOWSKITANIA, Mara Zancanaro. Inclusão de
estudantes com deficiência na educação superior na perspectiva da gestão universitário. In:
Educação em Revista, Belo Horizonte, v.36, p.1-21, 2020
DINIZ, Debora; BARBOSA, Lívia; SANTOS, Wederson Rufino dos. Deficiência, Direitos
Humanos e Justiça. Sur, Revista Internacional de Direitos Humano. vol. 6, n.11, São Paulo, p.
64-77, Dez, 2009.
FERRAROTTI, Franco. História e histórias de vida. Natal, RN: EDUFRN, 2014.
GLAT, Rosana. “Somos iguais a vocês”: depoimento de mulheres com deficiência. Rio de
Janeiro: 7 Letras, 2009.
GLAT, Rosana; BLANCO, Leila de Macedo Varela. Educação Especial no contexto de uma
Educação Inclusiva. In: GLAT, Rosana (Org.) Educação Inclusiva: cultura e cotidiano escolar.
Rio de Janeiro: 7 Letras, 2011. p. 15-35.
GLAT, Rosana; PLETSCH, Marcia Denise. Inclusão escolar de alunos com necessidades
especiais. Rio de Janeiro: Eduerj, 2012.
MATOS, Gláucio Campos Gomes de. Amazonas: a marca da água e o uso dos rios. In: XII
Simpósio Internacional Processo Civilizador. Civilização e Contemporaneidade, Recife, p.1-22,
nov., 2009.
MOREIRA, Laura Ceretta. BOLSANELLO, Maria Augusta; SEGER, Rosângela Gehrke.
Ingresso e permanência na Universidade: alunos com deficiências em foco. Educar em revista.
[Online], Curitiba, n. 41. p.125-143. Jul./set., 2011. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/er/n41/09.pdf. Acesso em: 28 de setembro de 2014.
MOREIRA, Simone da Nóbrega Thomaz; DUTRA, Elza. As implicações existenciais do
sofrimento psíquico na vida acadêmica do estudante. In: MELO, Francisco Ricardo Lins
Vieira de (Org.). Inclusão no Ensino superior: docência e necessidades educacionais especiais.
Natal: EDURN, p. 233- 246, 2013.
NOGUEIRA, José Ricardo. Amazônia: uma visão que emerge das águas. In: Revista Geousp,
n. 2, p.79-82, 1997.
OLIVEIRA, Ana Luiza de Mendonça; REZENDE, Marineia Crosara de. Oficinas vivenciais:
reflexões sobre direitos humanos de pessoas com deficiências. In: Psicologia Escolar e
Educacional, São Paulo, v. 21, n. 2, p. 295-301, maio/agost., 2017. Disponibilizado em:
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Inclusão no ensino superior: narrativas de estudantes com deficiência no contexto amazônico
109
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 85-109, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
˂http://www.scielo.br/pdf/pee/v21n2/2175-3539-pee-21-02-00295.pdf ˃. Acesso em: 20 de
novembro de 2018.
OLIVEIRA, Cristina Borges de. Educação superior e ações afirmativas para pessoas com
deficiência: Caminho para reflexão sobre desigualdade regional e as políticas públicas
inclusivas. In: ZIMERMAN, Artur (Org.) Ações afirmativas e a educação para pessoas com
deficiência. Santo André: Universidade Federal do ABC, p. 100- 130, 2013.
PICCOLO, Gustavo Martins. Por um Pensar Sociológico sobre a deficiência. Curitiba: Appris,
2015.
PICCOLO, Gustavo Martins; MENDES, Enicéia Gonçalves. Para além do natural:
contribuições sociológicas a um pensar sobre a deficiência. In: MENDES, Enicéia Gonçalves,
ALMEIDA, Maria Amélia. A pesquisa sobre inclusão escolar em suas múltiplas dimensões: teoria,
política e formação (Orgs.). Marília: ABPEE, 2012. p. 53-90.
REIS, Joab Grana. Vozes dos Rios da Amazônia: história de vida de estudantes no Ensino
Superior com Deficiência. Tese (Doutorado em Educação). Faculdade de Educação,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2019.
RIBAS, João. Preconceito contra as pessoas com deficiência: as relações que travamos com o
mundo. São Paulo: Cortez, 2007.
UNESCO. Declaração de Salamanca sobre princípios, políticas e práticas na área das
necessidades educativas especiais. UNESCO, 1994.
UNESCO. Declaração Mundial sobre Educação para todos: UNESCO, 1990.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Este artigo está licenciado com a licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
110
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 110-131, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Segregar as diferenças e agregar as semelhanças: o debate
acerca da inclusão na qualificação da aprendizagem e do
convívio humano
Segregate the differences and aggregate the similarities: the debate about
the inclusion in the qualification of learning and human conviviation
Segregar las diferencias y agregar las similitudes: el debate sobre la
inclusión en la calificación del aprendizaje y la convivencia humana
Elisa Mainardi
*
Eldon Henrique Mühl
**
Resumo
Este texto analisa o tema da inclusão de pessoas com deficiência na rede regular de ensino, em con-
fronto com a tendência que defende a manutenção de instituições próprias para o atendimento do
deficiente e a sua educação. A inclusão tem sido questão de debates e lutas no decorrer da história e
se apresenta como um desafio fundamental para a formação de uma sociedade mais justa, igualitária
e democrática. Muitas foram as conquistas da inclusão, especialmente a partir do final do século XX
e início do XXI, mas proposições que apontam para a interrupção dos avanços e o retorno para visões
excludentes e discriminadoras têm sido apresentadas de forma recorrente. No caso do Brasil, a pro-
posição retrógada mais recente foi o Decreto Presidencial nº 10.502/2020, que embora julgado
inconstitucional pelo STF, precisa ser avaliado com criticidade quanto suas justificativas e conse-
quências.
Palavras-chave: inclusão; deficiência; educação; escola.
Recebido em: 10/07/2022 Aprovado em: 11/07/2022
https://doi.org/10.5335/rep.v29i1.13719
ISSN on-line: 2238-0302
*
Doutora em Educação e professora da Faculdade de Educação da Universidade de Passo Fundo. E-mail: emainardi@upf.br.
Orcid: http://orcid.org/0000-0002-3968-4839.
**
Doutor em Educação e professor da Faculdade de Educação da Universidade de Passo Fundo. E-mail: eldon@upf.br. Orcid:
http://orcid.org/0000-0002-8025-1680.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Elisa Mainardi, Eldon Henrique Mühl
111
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 110-131, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Abstract
This text analyses the theme of inclusion of people with deficiency in the regular school system, in
confrontation with the trend that defends the maintenance of own institution for the care of the
deficient and their education. Inclusion has been questions of debates and struggles throughout
history and presents itself as a fundamental challenge for the formation of a more just, egalitarian
and democratic society. Many were the achievements of inclusion, especially from the end of the
20th century and the beginning of the 21st, but propositions that point to the interruption of
advances and the return to excluding and discriminating views have been presented repeatedly. In
the case of Brazil, the most recent proposal retroceded was Presidential Dec. n.10.502/2020, which,
although judged unconstitutional by the STF, needs to be critically evaluated as to its justifications
and consequences.
Keywords: inclusion; deficiency; education; School.
Resumen
Este texto analiza el tema de la inclusión de las personas con deficiencia en la red de educación
regular, en confrontación con la tendencia que defiende el mantenimiento de instituciones especiales
para la atención de los deficientes y su educación. La inclusión ha sido tema de debates y luchas a lo
largo de la historia y se presenta como un desafío fundamental para la formación de una sociedad
más justa, igualitaria y democrática. Muchos fueron los logros de la inclusión, especialmente desde
finales del siglo XX y principios del XXI, pero se han presentado reiteradamente proposiciones que
apuntan a la interrupción de los avances y al retorno a miradas excluyentes y discriminatorias. En el
caso de Brasil, la propuesta más reciente retrocedida fue el Decreto Presidencial n. 10.502/2020,
que, aunque juzgado inconstitucional por el STF, necesita ser evaluado críticamente en cuanto a sus
justificaciones y consecuencias.
Palabras clave: inclusión; deficiencia; educación; escuela.
1 Introdução
As políticas de educação especial na perspectiva do paradigma da inclusão têm
recebido a atenção de inúmeros educadores e pesquisadores que, em sua maior parte,
apontam a importância e a necessidade da inclusão sob a orientação dos princípios
definidos na Conferência Mundial sobre Necessidades Educacionais Especiais: acesso e qua-
lidade, denominada Declaração de Salamanca, de 1994. A Declaração reconhece a
necessidade e a urgência de ser o ensino ministrado no sistema comum de educação a
todas as pessoas com necessidades educativas especiais, sejam elas crianças, jovens ou
adultas. Em suas disposições e recomendações, declara que tal exigência deve orientar
todas as políticas e ações dos governos e de suas instituições, especialmente do sistema
de ensino. Em síntese, as instituições escolares regulares devem acolher todas as crian-
ças, independentemente de suas condições físicas, intelectuais, sociais, emocionais,
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Segregar as diferenças e agregar as semelhanças
112
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 110-131, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
linguísticas ou outras. Todas as diferenças humanas são consideradas normais e a apren-
dizagem deve, portanto, ajustar-se às necessidades de cada aluno, não o contrário.
Trata-se de desenvolver uma pedagogia centrada no educando e suas necessidades.
Tal proposição, no entanto, nunca foi unânime e recebeu inúmeras críticas jus-
tificadas pela incapacidade de a escola regular encontrar formas de efetivar a inclusão,
especialmente de alguns tipos de deficientes. No Brasil essa polêmica tem sido cons-
tante mas recebeu um novo embate recentemente com a publicação do Decreto
Presidencial nº 10.502 de 30 de setembro de 2020. Embora o Decreto tenha sido de-
clarado inconstitucional pelo Superior Tribunal Federal em 2021, ele reacendeu a
aprofundou o conflito entre os que defendem a inclusão e os que buscam restabelecer
a segregação e o atendimento dos deficientes em espaços especializados. Num só golpe
o Decreto feriu diversos artigos constitucionais e restabeleceu a possibilidade de segre-
gação de pessoas com deficiência, sob a alegação de que a inclusão de pessoas especiais
deve ser realizada em ambientes especiais, a escolha dos pais ou responsáveis.
Considerando o processo histórico, social e cultural que promoveu a política de
inclusão, buscamos compreender, através deste ensaio, as justificativas que sustentam a
segregação e a não inclusão de pessoas com deficiência nas redes regulares de ensino.
De outra parte, destacamos os argumentos que explicitam a necessidade de tal inclusão
e o direito que todo o deficiente tem de receber uma educação adequada, considerando
sua condição, seja ela qual for. Ressaltamos, por fim, que para a inclusão ocorra, a
reeducação dos considerados “normais” torna-se um grande desafio, pois são exata-
mente estes que produzem a discriminação, a exclusão e a invisibilidade dos que não
são considerados iguais. Nosso propósito é apontar as razões que tornam a inclusão não
apenas um problema pedagógico da escola e do sistema de ensino, mas um desafio de
formação social, ideológica, ética e política de toda a sociedade.
2 A (des)construção da identidade das pessoas com deficiências
ao longo da história
A exclusão como prática social sempre esteve presente desde os primórdios da
humanidade, mas continua atual e se apresenta ainda hoje como um dos maiores desa-
fios da educação. Historicamente a visão de igualdade e diferença vem associada à
concepção dicotômica entre a normalidade e anormalidade, recebendo uma maior ou
menor intensidade conforme o contexto, os valores, a cultura e a estrutura social de
cada tempo. O que podemos constatar é que a condição de ser diferente, anormal, tem-
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Elisa Mainardi, Eldon Henrique Mühl
113
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 110-131, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
se pautado de forma recorrente por um padrão ou modelo de normalidade reconhecido
pela sociedade que tende a agregar os iguais e excluir os diferentes. (Cf. SILVA, 1987)
A eliminação ou exclusão de alguém pode ocorrer, conforme Carvalho, em razão
de diferentes fatores: “[...] características físicas, sensoriais, mentais, psíquicas, que não
correspondem fielmente ao modelo idealizado, dele desviando-se acentuadamente”
(2006, p. 39). Diante da concepção de normalidade instituído, o processo de exclusão
vem se consolidando historicamente, fazendo surgir diferenças, deficiências e dificul-
dades diversas de adaptação ao modelo instituído, resultando em um processo
formativo desigual, discriminatório e desumano.
Se observarmos a trajetória da humanidade, é possível perceber que, em menor
ou maior intensidade, três têm sido os fatores predominantes no tratamento dispensado
aos indivíduos identificados como anormais: os físicos, os psicológicos e os de inade-
quação cultural. Vamos analisar como historicamente a discriminação da anormalidade
relativa a estes aspectos se fez presente conforme as análises de algumas literaturas.
2.1 Ocultamento, eliminação, exploração ou acolhimento caritativo dos
deficientes
A história humana vem marcada por constantes práticas de exclusão dos defici-
entes. Embora não se tenha registros acerca da relação das pessoas com deficiência na
pré-história, alguns pesquisadores trabalham com a ideia da teoria da seleção natural,
uma vez que diante de um ambiente hostil, em que a luta pela a sobrevivência é diária,
a visão dominante era que cada um devia ter a capacidade de se bastar a si mesmo. Isso
fez com que os inaptos, especialmente as crianças nascidas com deficiência, fossem
abandonadas ou eliminadas. A falta de aptidão para sobreviver de forma autônoma
justificava a eliminação e a exclusão da vida grupal.
No período que compreende a antiguidade histórica, a forma como a pessoa com
deficiência é tratada começa a apresentar algumas diversificações. Em algumas culturas
deste período, por razões mitológicas, religiosas ou em decorrência das novas formas de
organização dos grupos, a deficiência passa a ser vista como um sinal de determinação
transcendental, por vezes benigna, outras vezes maligna. Na cultura egípcia, por exem-
plo, a deficiência deixou de ser um fator de exclusão e existem registros que revelam
que, em muitos casos, pessoas de todas as classes eram atendidas conforme a necessi-
dade que apresentavam, tendo uma vida comum aos demais. Já na Grécia Antiga, onde
a cultura do corpo era venerada, as pessoas “disformes” eram abandonadas ou jogadas
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Segregar as diferenças e agregar as semelhanças
114
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 110-131, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
em abismos, mortas. Os atenienses, que priorizavam a formação do homem belo, per-
feito, racional, útil ao Estado, consideravam o deficiente uma ameaça ao ideal
propagado e, por isso, deveria ser excluído da convivência social. Uma comprovação
desta posição podemos encontrar em Platão, que em sua obra “A República”, propõe
o seguinte procedimento: “Pegarão então os filhos dos homens superiores, e levá-los-
ão para o aprisco, para junto de amas que moram à parte num bairro da cidade; os dos
homens inferiores, e qualquer dos outros que seja disforme, escondê-los-ão num lugar
interdito e oculto, como convém” (PLATÃO, 1976, p. 460). Aristóteles não é menos
cruel em sua proposição quando, na obra “A Política”, recomenda: “Quanto a rejeitar
ou criar os recém-nascidos, terá de haver uma lei segundo a qual nenhuma criança
disforme será criada; com vistas a evitar o excesso de crianças, se os costumes das cidades
impedem o abandono de recém-nascidos deve haver um dispositivo legal limitando a
procriação se alguém tiver um filho. (ARISTÓTELES, 1985, p. 1335). Conforme o
costume vigente, cabia ao pai a responsabilidade dar sumiço ou de matar a criança que
possuísse alguma deformidade (Cf. CORRÊA, 2004).
Os romanos, muito a semelhança dos gregos, também praticavam o abandono e
a eliminação das crianças deficientes, por entenderem que tal condição representava
uma ameaça à normalidade, já que consideravam que tal condição tinha origem ma-
ligna (AMARAL, 1994, p. 14). A exclusão ou eliminação era vista como uma
necessidade decorrente da ideia de evitar a maldade e a corrupção dos demais seres
humanos. Isto pode ser confirmado pelo que é expresso na Lei das XII Tábuas: “O pai
de imediato matará o filho monstruoso e contra a forma do gênero humano, que lhe
tenha nascido recentemente(Tábua IV, sobre o Direito do Pai e do Casamento, Lei
III).
Esta visão é reforçada pelo próprio Sêneca quando propõe:
Eliminai, então, do número dos vivos a todo o culpado que ultrapasse os limites dos demais,
terminai com seus crimes do único modo viável [...] mas fazei-o sem ódio [...]. Não se sente ira
contra um membro gangrenado que se manda amputar; não o cortamos por ressentimento, pois,
trata-se de um rigor salutar. Matam-se os cães que estão com raiva; exterminam-se touros bravios;
cortam-se as cabeças das ovelhas enfermas para que as demais não sejam contaminadas. Matamos
os fetos e os recém-nascidos monstruosos. Se nascerem defeituosos ou monstruosos, afogamo-
los. Não é devido ao ódio, mas à razão, para distinguirmos as coisas inúteis das saudáveis
(SÊNECA, 2014, I, XV).
A concepção hebraica não é muito diferente, pois são muitas as passagens bí-
blicas que manifestam desprezo ou abominam os deficientes. Destacamos uma delas
do livro do Levítico:
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Elisa Mainardi, Eldon Henrique Mühl
115
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 110-131, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
O Senhor disse a Moisés: dize à Arão o seguinte: homem algum de tua linhagem, por todas as
gerações, que tiver um defeito corporal, oferecerá o pão de Deus. Desse modo, serão excluídos
todos aqueles que tiverem uma deformidade: cegos, coxos, mutilados, pessoas de membros des-
proporcionados (BIBLIA, Lv., cap. 21, vs. 16-19).
No ideário cristão, mesmo com o surgimento da virtude da compaixão, aos de-
ficientes, também predomina a concepção de que eles são portadores do mal ou
dominados por um espírito maligno, o que justifica sua exclusão da convivência pú-
blica, embora as recomendações que sejam ajudados por caridade. Existem passagens
bíblicas do Novo Testamento que referendam essa compreensão, como esta passagem
do evangelho de Marcos: "E Jesus, vendo que a multidão, correndo, se aglomerava,
repreendeu o espírito imundo, dizendo: Espírito mudo e surdo, eu te ordeno: sai dele,
e nunca mais entres nele"(BÍBLIA, Mc., cap. 9, vs. 25). E conclui o evangelista: "E se
maravilhavam sobremaneira, dizendo: Tudo tem feito bem; faz até os surdos ouvir e os
mudos falar" (BÍBLIA, Mc., cap. 9, vs. 25). Como podemos perceber, a concepção que
se mantém é que a deficiência é fruto de um espírito maligno de que o deficiente é
portador, ainda que não seja considerado culpado pela sua situação. Mantém-se, assim,
a noção de uma culpa coletiva causadora do mal da deficiência.
Na Idade Média, sob a forte influência da concepção religiosa hebraico-cristã,
continua predominando a visão de que deficientes, loucos, criminosos, hereges e os
considerados “possuídos pelo demônio” e “amaldiçoados por deus” deveriam ser afas-
tados do convívio social, desprezados ou, até mesmo, eliminados. Sob o comando da
igreja católica, milhares de pessoas com deficiência foram sacrificadas pela Inquisição,
julgados como seres malignos ou hereges. Sob a predominância de dogmas religiosos,
pessoas com deficiência eram consideradas seres “a margem da condição humana”, não
feitos à imagem e semelhança de Deus (MAZZOTTA, 1996, p. 16).
No início do período do Renascimento alguns pensadores e religiosos começam
argumentar que a deficiência não pode servir de motivo de castigo ou condenação, uma
vez que todo o deficiente é uma criatura criado por Deus e não tem culpa da sua con-
dição. Os deficientes, como “criaturas de Deus”, são merecedores da compaixão
humana e da caridade cristã. Surgem, então, diversas iniciativas voltadas ao atendi-
mento dos deficientes, como as casas de acolhimento, escolas especiais, manicômios,
hospitais, etc. Sabe-se, no entanto, que tais acolhimentos implicavam, muitas vezes, em
nova forma de exclusão e ocultamento, com a reclusão em espaços inapropriados onde
sofriam tratamentos inadequados, reclusões em celas, violência e maus tratos. Poucos
tiveram a sorte de serem bem acolhidos e tratados com alguma dignidade. Ademais,
alguns deficientes passaram a ser acolhidos por comerciantes, pessoas pobres e escravos
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Segregar as diferenças e agregar as semelhanças
116
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 110-131, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
libertos, sob a perspectiva de serem exploradas como serviçais, esmoleiros, trabalhado-
res manuais, auxiliares em tarefas domesticas e em ofícios mais simples. A iniciativa era
tornar o deficiente útil e adaptado à sociedade vigente, ideia que vai orientar a política
posterior.
2.2 A institucionalização de espaços de acolhimento e a proposição da
“normalização” do deficiente
No final da Idade Média, ainda que a deficiência continue sendo considerada
problema de ordem moral, ela passa a ser considerada pela igreja católica como uma
forma de advertir as pessoas sobre a necessidade de seguirem os desígnios cristãos. A
presença de deficientes passa a ser vista como uma oportunidade de o cristão exercitar
sua caridade e realizar exercícios de expiação, acolhendo ou ajudando no atendimento
aos deficientes. A igreja passa a promover uma moralidade religiosa voltada ao atendi-
mento assistencial, abrigando pessoas com determinadas doenças e com alguma
deficiência em salões de igrejas, conventos, hospitais e casas de acolhimento. Não havia,
porém, nestas instituições uma preocupação com a promoção do convívio social, com
a consideração da identidade do indivíduo e com sua liberdade. Ao contrário, sob a
justificativa da necessidade de algum atendimento especializado, os deficientes são iso-
lados, segregados e recolhidos em selas. Um exemplo desta prática são os asilos e os
hospitais psiquiátricos, cuja análise do papel normalizador que eles passaram a ter foi
feita com muita propriedade por Foucault, especialmente na obra Microfísica do poder
(1979).
Sob a influência do movimento renascentista, gradativamente, o lugar da defici-
ência vai sendo alterado substancialmente diante os esclarecimentos advindos do
racionalismo e da ciência moderna, em que ocorre um deslocamento da explicação so-
bre as causas dos males das deficiências da prerrogativa transcendental, especialmente
divina, para uma compreensão que as passam a considerar decorrências de fatores na-
turais, físicos ou mentais. Fundado nessas premissas, desenvolvem-se algumas
experiências significativas no tratamento clínico e pedagógico da deficiência. O surgi-
mento de hospitais, de clínicas, de manicômios e casas de acolhimento indicam uma
nova perspectiva para os deficientes. Do ponto de vista pedagógico surgem as primeiras
experiências de desenvolvimento de educação de deficientes, como é o caso da proposta
de Gerolamo Cardomo (1501 a 1576), que inventou um código para ensinar pessoas
surdas a ler e escrever e a iniciativa de Pedro Ponce de Leon (1520-1584), que desen-
volveu um método de educação por meio de sinais.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Elisa Mainardi, Eldon Henrique Mühl
117
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 110-131, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Na Idade Moderna, período fundado em valores antropocêntricos e nas concep-
ções iluministas, fase de grandes transformações sociais, econômicas e culturais, novas
concepções e práticas educativas surgem relativamente a deficientes e marginalizadas.
Com o avanço das ciências médicas e o início da psicologia, a deficiência passa a ser
compreendida como fenômeno biológico individual, uma patologia de ordem clínica,
sem interferência de fatores externos ou transcendentais. Daí decorre o conceito do
tratamento como busca da cura dos indivíduos inaptos ou deficientes. Ignorando as
estruturas sociais que impedem sua participação na vida social, a visão clínica compre-
ende o deficiente como alguém que precisa ser corrigido, seja física ou
psicologicamente, com a finalidade de torná-lo um ser “normal”, adequado ao contexto
social em que vive. A solução indicada por especialistas é o isolamento e o tratamento
em instituições apropriadas para atender as demandas psicológicas e físicas de cada de-
ficiente. No século XIX, surgem diversos movimentos que defendem a proposição de
que o deficiente deve passar a ser analisado e tratado clinicamente, através de diferentes
processos de diagnóstico e terapia. Surgem os reformatórios em que são desenvolvidos
tratamentos com a finalidade de tornar o indivíduo deficiente um “ente normal”, capaz
de se adaptar à sociedade, de não perturbar a ordem social e de realizar algumas ativi-
dades produtivas. Enquanto não atingir tal condição, deverá ser mantido em
isolamento e em tratamento clínico.
Esta posição, porém, nunca foi unânime. Com o surgimento do pensamento
contemporâneo, marcado pelo desenvolvimento da urbanização, de novas concepções
sociais e políticas, de inovações e transformações científicas profundas, de diferentes
teorias e concepções sobre a condição humana, de questionamentos inovadores sobre
o sentido e a destinação da existência, a questão sobre o que é normalidade e o que é
patológico começa a apresentar-se como um tema problemático em todos os campos
do conhecimento. As transformações produzidas pelos avanços e fracassos da raciona-
lidade positivista, instrumental, começa a expor a fragilidade do conhecimento humano
e as limitações de todas as ideologias que surgiram nestes últimos séculos. Como resul-
tado representativo desta época podemos indicar o descobrimento de que a
humanidade se revela e realiza em todo e qualquer ser humano, seja ele quem for. Por
isso, o desafio passa a ser o de buscar compreender a presença do outro e de cada um
no mundo aí constituído. De modo especial, cabe destacar uma dimensão da humani-
dade que decorre dos deficientes, excluídos, invisibilizados, sem reconhecimento.
No entanto, apesar do surgimento de iniciativas de projetos pedagógicos mais
adequados para as pessoas com deficiências, até meados do século XX continua predo-
minando a ideia da deficiência como doença. As informações sobre procedimentos e
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Segregar as diferenças e agregar as semelhanças
118
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 110-131, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
formas de relacionamento com os deficientes ainda são pouco consistentes e acessíveis
a uma pequena parte da população. Poucos são os educadores e especialistas disponíveis
e as instituições especializadas são de acesso limitado, restritas a algumas iniciativas iso-
ladas.
Isso não implica em negar as importantes iniciativas que surgiram entre os sécu-
los XVIII e meados do século XX, como os feitos de Charles Eppée (1770), que criou
a primeira instituição para a educação de surdo-mudo e desenvolveu um método de
ensino por sinais, que foi expandido para outros países, dando origem à linguagem de
sinais; a criação do Instituto para Cegos, criado por Valentin Haüy (1784), em Paris,
que utilizou letras em alto relevo para a realização de leitura dos cegos, dando origem
à criação do método Braille de leitura; os trabalhos de Jean Marc Gaspard Itard (1800),
que desenvolveu estudos e metodologias de educação para deficiências de fala, de au-
dição, de deficiência mental; os estudos de Esquirol (1818), que se dedicou a pesquisar
acerca da deficiência mental, diferenciando a demência (doença mental) e amência (de-
ficiência); os estudos de Edouard Seguin (1846), que reconheceu a importância do
treino sensório-motor para o desenvolvimento dos deficientes mentais, elaborando me-
todologias próprias para ensino especial de deficientes mentais; as investigações de
Langdon Down (1866), em Londres, que desenvolveu estudos acerca do mongolismo,
descrevendo as características e identificando-a como Síndrome de Down, motivando,
com seu trabalho a pesquisa biomédica.
Dentre as iniciativas surgidas neste período, não podemos deixar de ressaltar a
contribuição de Maria Montessori (1870-1952), que inspirada nos estudos de Séguim
e Itard, desenvolveu uma pedagogia da educação especial, defendendo a ideia de que as
crianças deficientes deveriam ser ensinadas em instituições próprias com professores
especializados para essa função. Com base os estudos clínicos, ela desenvolveu um mé-
todo pedagógico destinado a desenvolver a aprendizagem das crianças com deficiência,
pois acreditava que estas mantinham a capacidade de aprender, embora em ritmos di-
ferentes. Em sua pedagogia são levados em consideração os componentes emocionais e
a principal proposição é desenvolver a totalidade da personalidade da criança nas rela-
ções criativas e lúdicas com os objetos e a própria arte. A criança dever ser desafiada a
expressar-se livremente, desenvolvendo a ousadia de uma “pesquisadora”, experimen-
tando e percebendo novas capacidades de aprender e agir com as coisas e interagir com
as pessoas. Sua filosofia de educação e visão de escola são abertas para a percepção de
diferentes raciocínios, culturas e ritmos de aprendizagem. A proposta de educação de
Montessori alcançou grande notoriedade e o governo italiano, sob sua orientação, aca-
bou por criar a Liga Nacional pela Educação da Criança Deficiente, que passou a
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Elisa Mainardi, Eldon Henrique Mühl
119
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 110-131, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
organizar novas instituições destinadas ao atendimento dessas crianças deficientes. (Cf.
TRILLA, 2001)
O final do século XIX e meados do XX é um período em que, mesmo que espar-
sas e restritas, surgem as primeiras escolas públicas para crianças com deficiência: escolas
para crianças cegas, surdas, deficientes mentais e deficientes físicos. São escolas criadas,
primeiramente na Europa, Estados Unidos e Canadá, expandindo-se, posteriormente,
para outros países, inclusive para o Brasil. Neste mesmo período observam-se alguns
outros avanços significativos, com o surgimento de diversas tendências no campo pe-
dagógicos: Pedagogia dos anormais, pedagogia teratológica (estudo das
monstruosidades), pedagogia curativa ou terapêutica, pedagogia da assistência social e
pedagogia ementativa (Cf. MAZZOTTA, 1996). Todas estas pedagogias apresentam,
no entanto, muitas compreensões limitadoras da deficiência, mantendo, de modo geral,
uma visão integrativa e adaptativa do deficiente, desconsiderando, por vezes, a necessi-
dade de sua efetiva inclusão social.
2.3 Os avanços na luta pela educação inclusiva: da prática da integração à
prática da inclusão do deficiente.
O Século XX inicia marcado por iniciativas e ações de atendimento a pessoas
com deficiência, sendo na maioria das vezes, iniciativas individuais ou processos pro-
movidos por alguns grupos organizados como forma a sensibilizar a sociedade para os
problemas e desafios enfrentados pelas pessoas com deficiência. São iniciativas que ex-
põem a injusta discriminação e alertam para a necessidade de uma nova concepção de
educação e de inserção social destas pessoas. Progressivamente tais proposições atingem
instituições, organismos e setores governamentais, que acabam produzindo movimen-
tos, orientações, diretrizes e legislações que transformam significativamente a percepção
de muitas pessoas sobre os deficientes.
Uma demonstração deste avanço é que aconteceu em meados deste século XX,
em que um movimentos de pais começou a constatar e a questionar o fato de crianças
que apresentavam alguma característica de desenvolvimento mental diferenciado da sua
idade ou classe escolar, classificada como crianças com desenvolvimento mental retar-
dado, não conseguirem ingressar na escola, pois ou sua matrícula não era aceita ou, em
caso de conseguirem ingressar, tinham dificuldades em permanecer na escola, pois não
havia preocupação em atender suas necessidades de aprendizagem. Inquietadas e in-
conformadas com tal situação, um grupo de pais estadunidenses se mobilizou e criou,
em 1953, uma instituição chamada National Association For Retarded Children, com o
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Segregar as diferenças e agregar as semelhanças
120
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 110-131, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
objetivo de defender as pessoas com deficiência e promover a cidadania, buscando for-
mas de mediar a inclusão destas pessoas na escola e na sociedade. Tal organização
inspirou no Brasil, a Associação dos Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE), criada
em 1954.
Fato semelhante aconteceu em 1972 em que, sob a iniciativa do britânico Paul
Hunt, nasceu a União das Pessoas com Deficiência Física Contra a Segregação
(UPIAS). Deste movimento surge um novo e revolucionário conceito: a compreensão
da deficiência a partir da relação entre a pessoa e o contexto social, superando a visão
que entendia a deficiência como um problema do indivíduo e como um mero problema
biológico ou físico.
O final do século XX e início do século XXI a humanidade produziu acordos
importantíssimos e significativos acerca do reconhecimento e afirmação dos direitos
das pessoas com deficiência, destacamos, com fundamental importância, a Declaração
Universal dos Direitos Humanos, em 1948, que aponta os direitos básicos de todos os
seres humanos, independente de raça, gênero, nacionalidade, etnia, religião, idade, ní-
vel mental, condições emocionais, antecedentes culturais; a Convenção sobre os
Direitos da criança, em 1989, que assegura à criança mental e fisicamente deficiente o
direito de desfrutar de uma vida plena e decente, em condições que garantam sua dig-
nidade, favoreçam sua autonomia e facilitem sua participação ativa na comunidade; a
Conferência Mundial de Educação Para Todos, em 1990, que propõe a inclusão de
todos os estudantes com deficiência na escola e o atendimento as suas necessidades
educacionais de aprendizagem; a Conferência Mundial sobre Necessidades Educacio-
nais Especiais: acesso e qualidade, em 1994, da qual resultou a Declaração de
Salamanca, que propõe a revisão e atualização das políticas públicas de inclusão, des-
tacando a necessidade de respeitar a individualidade de cada pessoa deficiente, as
especificidades de cada deficiência e a necessidade da inclusão de cada deficiente na
escola regular, exigindo a adaptação da escola ao deficiente, não o contrário; a Carta
para o Terceiro Milênio, em 1999, que destaca o reconhecimento e à proteção da
vivência em sociedade das pessoas com deficiências; a Declaração de Washington e
o Movimento de Vida Independente e dos Direitos das Pessoas Portadoras de
Deficiência, em 1999, que busca promover a participação de todas as pessoas com de-
ficiência do Movimento de Direitos das Pessoas com Deficiência e de Vida
Independente; a Convenção da Guatemala, em 1999, que se opõe a toda e qualquer
forma de discriminação e defende a integração social como ideia diretriz das práticas
sociais de inclusão; a Declaração de Montreal, em 2004, que busca, reafirma e fortalecer
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Elisa Mainardi, Eldon Henrique Mühl
121
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 110-131, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
os direitos das pessoas com deficiência intelectual, defendendo a sua inclusão na socie-
dade.
Como grande diferencial destas iniciativas, deve-se destacar a ideia da compre-
ensão da deficiência não como uma limitação ou um fator de discriminação, mas como
uma condição humana que traduz a diversidade de possibilidades da própria existência
humana, cabendo a cada um considerar o outro como um ser com direitos iguais e com
potencialidades.
Deve-se considerar, no entanto, que apesar de todas estas iniciativas inovadoras
produzidas historicamente, continuamos a estar diante de uma situação ideológica, po-
lítica, econômica e social marcadamente excludente, discriminadora, violenta e
indiferente diante da situação inúmeras pessoas, especialmente dos deficientes, seja de
que natureza for tal deficiência. A partir da premissa que impera no atual contexto no
capitalismo neoliberal, a produtividade, toda pessoa precisava tornar-se produtiva para
a sociedade, seja ela normal ou deficiente. Assim, intensifica-se a necessidade de que a
pessoa com deficiência seja “normalizada” ou treinada para executar algumas atividades
no mercado de trabalho.
Não podemos deixar de lembrar, porém, que o século XX, apesar de ter produ-
zido novas concepções e novas práticas voltadas a inclusão dos deficientes, foi o período
que promoveu as maiores violações e matanças de deficientes promovidas pelos piores
regimes totalitários de toda a história da humanidade: nazismo, fascismo e diferentes
regimes autoritários promoveram as piores e as maiores experiências de exploração e
matança de deficientes.
3 As concepções e as políticas públicas de educação especial no
Brasil
Observando esta trajetória formativa da humanidade, percebe-se, conforme ma-
nifesta Sassaki, que “a forma como a sociedade foi percebendo e entendendo a
deficiência, assim como outras diversidades, passou pela exclusão, atendimento segre-
gado, integração social e recentemente, inclusão social” (1999, p.16). Dessa trajetória
concluímos que os processos de constituição do pensamento, produzidos na relação
com o outro, aquele que consideramos diferentes de nós (MOREIRA, 2007), em cada
tempo e contexto, produziram conhecimentos que nos possibilitam compreender e vi-
venciar uma nova e rica experiência acerca da diferença, igualdade, deficiência e
dificuldade. Nesse contexto, destaca-se o reconhecimento e a importância dos proces-
sos educativos e pedagógicos como fundamentais para o desenvolvimento das pessoas
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Segregar as diferenças e agregar as semelhanças
122
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 110-131, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
com qualquer deficiência. Cabe-nos avaliar agora o quanto tais concepções se fazem
presentes na educação brasileira, em suas políticas e em seus processos socioculturais.
Até o século XIX, no Brasil prevaleceu a ideia de deficiência como invalidez e
incapacidade do próprio indivíduo, nada tendo haver com a sociedade e suas exclusões.
Com esta posição, as pessoas deficientes eram privadas da participação social e do exer-
cício da cidadania. Esta discriminação aparece, inclusive, na Constituição Federal de
1824, no artigo 8º, que diz: “suspende-se o exercício dos direitos políticos: por incapa-
cidade física ou moral” (BRASIL, 1824).
Foi somente após três décadas que a educação das pessoas com deficiência passa
a ter alguma atenção, e isso se deve a chegada ao Brasil das experiências de tratamento
e de educação das pessoas com deficiência realizadas na Europa e nos Estados Unidos.
A primeira instituição de educação para pessoas deficientes, foi criada no Rio de Ja-
neiro, em 1854, o Imperial Instituto de Meninos Cegos - o atual Instituto Benjamin
Constant. Tal feito se deveu, principalmente, aos estudos e propostas de José Álvares
de Azevedo, um cego brasileiro, filho de família abastada do Rio de Janeiro, que pode
estudar em escola especializada em Paris, na única escola especializadas para cegos no
mundo. Aos 10 anos de idade teve contato com o sistema Braille de leitura, criado pelo
francês Louis Braille, em 1825. Ao retornar ao Brasil, dedicou-se a divulgar a proposta
de escolarização assumindo, com êxito, a educação da filha de um médico da família
imperial, o dr. Francisco Xavier Sigaud, que mediou o contato com o Imperador Pedro
II, o qual ficou impressionado com o método Braille e com a proposta de Azevedo de
criar uma escola semelhante no Brasil. Após 4 anos, criou-se a escola.
Outra instituição que também se caracteriza como um marco importante da edu-
cação especial, foi a criação do Imperial Instituto de Surdos-Mudos - atual Instituto
Nacional de Educação de Surdosem 1857, no Rio de Janeiro, por proposição do
educador francês Ernest Huet, que tendo sido diretor de uma instituição para crianças
surdas na França, apresentou um projeto de criação de uma instituição para crianças
surdas ao imperador D. Pedro II. Uma década e meia após a criação das duas institui-
ções, percebe-se que o impacto na população com deficiência foi pouco satisfatório.
Conforme expressam os estudos de Mazzotta, acerca do atendimento das pessoas cegas
e surdas nestas instituições, elas “se constituíram em uma medida precária em termos
nacionais, pois em 1872, com uma população de 15.848 cegos e 11.595 surdos, no
país eram atendidos apenas 35 cegos e 17 surdos” (1996, p.29).
Até meados do século XX, as ações e projetos de educação das pessoas com defi-
ciência desenvolvidos no Brasil foram limitadas e, na grande maioria, referentes a
deficiência visual e auditiva. É somente a partir da década de 1950, que gradativamente,
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Elisa Mainardi, Eldon Henrique Mühl
123
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 110-131, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
foram aumentando as escolas de educação especial, sendo a maioria, no ensino regular
e público. Neste período iniciativas importantes foram sendo criadas como a Associa-
ção de Assistência à Criança DefeituosaAACD, em 1950 e a Associação de Pais e
Amigos dos Excepcionais-RJ (APAE), em 1954.
No âmbito nacional, no final dos anos 1950 e início dos anos 1960, surgiram
outras iniciativas federais importantes, caracterizadas como um marco inicial para o
desenvolvimento das políticas que seguiram, pois mobilizaram as políticas públicas de
educação especial no país, como a Campanha para a Educação do Surdo Brasileiro,
em 1957; a Campanha Nacional de Educação e Reabilitação de deficientes da Visão,
em 1958, A campanha Nacional de Educação e Reabilitação de Deficientes Mentais,
em 1960; e a primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - Lei 4.024/61,
que apresenta um capítulo específico acerca da Educação de Excepcionais, destacando
que o Estado tem a obrigação de fornecer recursos indispensáveis para que todos te-
nham direito à educação, garantindo oportunidades iguais a todos.
Uma década após, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 5.692/71,
propõe a possibilidade da inserção da criança excepcional no ensino regular e em seu
Art. 9º, determina que os alunos que apresentem deficiências físicas ou mentais e os
que se encontrem em atraso considerável quanto à idade regular de matrícula e os su-
perdotados, deverão receber tratamento especial, de acordo com as normas fixadas pelos
competentes Conselhos de Educação.
Em 1972 é criado o Grupo-Tarefa de Educação Especial. Segue-se a criação do
Centro Nacional de Educação Especial (CENESP) em 1973, que foi um marco im-
portante para a institucionalização da Educação Especial em termos de planejamento
de políticas públicas. Posteriormente o Centro foi recebendo outras denominações
como secretaria, departamento (MAZZOTTA, 1996, p. 36) e atualmente, passou a ser
denominada Secretaria de Educação Especial (Seesp) a qual desenvolve programas, pro-
jetos e ações a fim de implementar no país a Política Nacional de Educação Especial.
A década de 1980 é marcada por movimentos de luta em defesa dos direitos dos
diversos grupos sociais, dentre os quais, os direitos dos deficientes. Esses movimentos
e suas lutas conseguem incluir na Constituição Federal de 1988, um artigo, Art. 208,
que no inciso “III” assegura como direito o “atendimento educacional especializado aos
portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino” (BRASIL,
1988), estabelecendo, assim, a sua integração na educação nacional. No ano seguinte,
a Lei n.7.853/1989, estabelece normas gerais para assegurar os direitos das pessoas com
deficiências e sua efetiva integração social. Destacamos em seu art. 4º, inciso IV, a
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Segregar as diferenças e agregar as semelhanças
124
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 110-131, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
definição de deficiência intelectual como “[...] funcionamento intelectual significativa-
mente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações
associadas as duas ou mais áreas tais como: comunicação, cuidado pessoal” (BRASIL,
1989).
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, lei 9394/96, amplia e especi-
fica significativamente a organização e oferta da educação especial, propõe a formação
de educadores a oferta de recursos adequados ao professor para que possa compreender
e desenvolver com qualidade o processo de ensino e aprendizagem, considerando as
necessidades a as diversidades dos alunos.
Com a nova LDB, começa a tomar corpo a ideia da superação da mera integração
e impulsiona-se as discussões acerca da inclusão escolar, referendando a importância de
saber conviver com a diversidade. Diversas reflexões e estudos expressam a importância
do convívio entre as crianças deficientes e não deficientes na rede regular de ensino,
para a construção do conhecimento e comportamentos cooperativos, solidários, de re-
conhecimento, respeito e valorização pela condição de cada um e cada uma,
aprendizagens que só são possíveis através das interações humanas. A legislação passa a
ser definida na perspectiva de legalizar e normatizar as políticas de inclusão, exigindo
que novas concepções, práticas e estruturas educacionais e escolares fossem sendo cons-
truídas, buscando superar as práticas da exclusão. Seguindo princípios, diretrizes e
normatizações internacionais, o Brasil inicia uma lenta e progressiva mudança nas le-
gislações, nas diretrizes educacionais, na gestão das políticas públicas, nas práticas
pedagógicas, buscando desenvolver a inclusão dos deficientes, superando a ideia da
mera integração, em consonância com a política internacional de inclusão.
Em 1998 são lançados os Parâmetros Curriculares Nacionais: Adaptações Curri-
culares estratégias para a educação de alunos com necessidades educacionais
especiais. A partir de então são aprofundadas as diretrizes que envolvem as questões
referentes a educação especial, com a definição de políticas, diretrizes, metodologias e
estratégias de ensino adequadas a educação especial.
A Resolução nº 02/2001 do Conselho Nacional de Educação, estabeleceu as Di-
retrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica, as quais determinavam
a obrigatoriedade de matricular todos os alunos com deficiências, ficando a cargo das
escolas a organização para o atendimento a essa nova realidade. Em 2008, é divulgado
a Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva, defi-
nindo que todos os alunos tenham acesso à escola, independentemente de suas
diferenças sociais, culturais, étnicas, raciais, sexuais, físicas, intelectuais, emocionais,
linguísticas e outras. No ano seguinte, a Resolução n.º 42/2009, institui as Diretrizes
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Elisa Mainardi, Eldon Henrique Mühl
125
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 110-131, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Operacionais para o Atendimento Educacional Especializado na Educação Básica, Mo-
dalidade Educação Especial. Outras normatizações que a seguiram detalham e buscam
apresentar, cada vez mais, estratégias que promovam a inclusão escolar. Neste mesmo
ano, o Decreto nº 6.949/2009, promulgado a partir da Convenção Internacional sobre
os Direitos das Pessoas com Deficiência, realizada em 2006, estabelece em seu artigo
24, alínea “a”, que: “As pessoas com deficiência não sejam excluídas do sistema educa-
cional geral sob alegação de deficiência” (BRASIL, 2009). O Atendimento Educacional
Especializado na Educação Básica (AEE), instituído por meio da Resolução nº 04/2009
do Conselho Nacional de Educação, preconizou a oferta, no turno inverso da escolari-
zação, o atendimento a alunos com deficiência.
Um importante referencial da legislação brasileira foi a Lei nº 13.146, de 06 de
julho de 2015, também conhecida por Estatuto da Pessoa com Deficiência e instituiu
a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI). O Estatuto destina-se a
assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liber-
dades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e
cidadania.
Em 2020, na contramão do que se apresentava nas proposições anteriores e nas
discussões em desenvolvimento, foi lançada pelo Decreto nº 10.502/2020, uma estra-
nha proposição de Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com
Aprendizado ao Longo da Vida- PNEE. Tal documento vem gerando polêmicas e mo-
bilização dos educadores e estudiosos do campo da educação especial e inclusiva, por
representar, no entendimento da maioria dos educadores e investigadores, um retro-
cesso ao processo de inclusão que as políticas de educação especial têm buscado
promover.
Ainda que suspensa pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por sua inconstituci-
onalidade, percebemos que existem professores, pais e especialistas favoráveis e essa
política, mesmo evidenciando um retorno à visão de exclusão e segregação do aluno
especial. Quais são as argumentações e a justificativa que motivam tal concordância?
Por que ainda é tão difícil a construção de uma cultura de inclusão? Vamos tentar
levantar algumas explicações que esclarecem estas questões.
4 O caso do decreto 10.502/2020: A aprendizagem entre iguais?
Por que nos deparamos ainda com essa ideia excludente?
O decreto nº 10.502/2020, que institui a Política Nacional de Educação Espe-
cial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida - PNEE, reafirma a
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Segregar as diferenças e agregar as semelhanças
126
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 110-131, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
garantia do acesso das crianças com deficiência na rede regular de ensino, mas afirma
também o direito a frequentar as instituições especializadas quando “estas forem con-
sideradas, por eles mesmos, como a melhor opção” (BRASIL, 2020). É possível que ao
se fazer uma rápida leitura sobre a justificativa do decreto, muitos pais ou responsáveis,
tendo ou não filhos com qualquer deficiência, podem intuir que este decreto é demo-
crático e favorece a aprendizagem das crianças, por incentivar o atendimento
pedagógico dos deficientes em escolas especializadas, supostamente constituídas por
professores e recursos mais adequados. Da mesma forma, muitos professores, diante
dos inúmeros desafios que a educação inclusiva apresenta, sustentam que a escola re-
gular não está preparada para incluir e que o quadro docente não apresenta uma
formação adequada para promover a aprendizagem das crianças com deficiência. Por
isso, concordam que a retomada da formação da criança deficiente em escola especial é
a mais indicada. A mesma proposição é defendida por alguns especialistas e por repre-
sentantes da mídia.
Quando se analisa texto do Decreto, percebe-se que a justificativa retoma a pro-
posição de isolar o deficiente sob a prerrogativa de um melhor atendimento humano e
pedagógico. Esta visão, além de excludente, fere princípios constitucionais e estabelece
uma nova política educacional nacional. A liminar concedida pelo STF deixa claro esta
proposição, afirmando que o decreto “tem por objetivo regulamentar a Lei de Diretri-
zes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/1996), inova no ordenamento jurídico,
porque não se limita a pormenorizar os termos da lei regulamentada, mas promove a
introdução de uma nova política educacional nacional, com o estabelecimento de ins-
titutos, serviços e obrigações que, até então, não estavam inseridos na disciplina da
educação do país” (BRASIL/PORTAL do STF, 2021).
Ao analisarem o documento, Brígida e Limeira (2021), alertam para o risco desta
iniciativa:
O Decreto 10.502 (2020) afirma que além da garantia do acesso à escola comum, essas pessoas
precisam ter o direito a escolas especializadas “sempre que estas forem consideradas, por eles
mesmos, como a melhor opção” (BRASIL, 2020, p. 7). Diniz (2012) adverte que o novo desafio
dos estudos sobre deficiência será o de não permitir que se perca a força conceitual e política da
categoria “deficiência”. Aponta ainda que o ponto de partida das negociações políticas deve ser o
conceito de deficiência como instrumento de justiça social, e não somente enquanto questão
familiar ou individual. Termos empregados nos documentos oficias assumem tom de apelos atra-
entes para incentivar/privilegiar uma educação em classes ou escolas especializadas. Esses verbos
empregados são tão perigosos quanto impor, uma vez que dão margem à segregação de pessoas
com deficiência travestidos numa proposta de liberdade de uso de espaços específicos, de acordo
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Elisa Mainardi, Eldon Henrique Mühl
127
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 110-131, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
com o interesse da família. Essas escolas nos parecem menos especializadas e mais excludentes,
incentivando o retorno à uma escola de uso exclusivo de estudantes com deficiência (2021, p. 5).
Sob a justificativa da liberdade de escolha da “família” e das limitações da escola
regular, retoma-se a visão de uma escola segregadora e integradora. É uma proposição
que representa um grande risco de retorno à segregação e do entendimento da escola
regular como um lugar dos normais. Esta é a percepção que as autoras acima citadas
apresentam ao analisarem o documento:
O Decreto nº 10.502 deixa evidente o caráter segregacionista amparado no modelo médico da
deficiência, sob a justificativa da ineficiência do atendimento a esses alunos em classe comum; a
Política defende a retirada das crianças das classes em detrimento de um atendimento individu-
alizado e outros benefícios educacionais que não seriam possíveis nesse formato (BRIGIDA;
LIMEIRA, 2021, p. 6).
O documento parece desconhecer os avanços da política educacional entre 1990
e 2015, em que a inclusão crescente dos deficientes em escolas regulares se mostrou
possível e necessária, apesar dos desafios que ela possou a representar para a escola tra-
dicional excludente. O decreto desconhece todo o processo já desenvolvido, com suas
potencialidades e dificuldades, simplificando a solução com a retomada da ideia da
escola especial para aluno especial. A consequência imediata de tal proposição é que a
criança especial passará a ter um espaço, um tempo e um professor adequados às suas
necessidades, de acordo com uma visão restrita de formação e aprendizagem (Cf.
MATTOS, 2017).
A pergunta que cabe ser feita é a seguinte: Porque o governo atual e alguns espe-
cialistas querem restabelecer uma política de educação especial em escola especial?
Quais são os argumentos que sustentam tal proposta? Que consequência tal proposta
traz para as crianças, para as escolas e para os educadores? Por fim: Por que não é ad-
missível voltar a oferecer uma escola específica de educação especial para os deficientes?
Para esclarecer estas questões podemos nos socorrer de algumas análises realiza-
dos em um passado recente que, em certo sentido, esclarecem a argumentação utilizadas
na decretação da lei e, de outra parte, as razões para resistir à legislação proposta.
Skliar desenvolve algumas ponderações esclarecedoras a respeito dos argumentos
apresentados. Ele inicia afirmando que considera que uma escola que só admite alunos
especiais não é uma escola, mas um hospital. Se, por outro lado, as instituições são
especiais porque pretendem desenvolver uma didática especial para os sujeitos defici-
entes, então pode ocorrer que, em vez de processos interativos da educação, aconteça
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Segregar as diferenças e agregar as semelhanças
128
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 110-131, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
uma aplicação sistemática de recursos, de práticas e de metodologias neutras e deside-
ologizadas. Sob esta perspectiva, a educação volta a ser um mero treinamento de
habilidades e competências, e não um exercício de convivência socializadora e aprendi-
zagem interativa. Ademais, ao isolar a criança especial em uma escola especial, volta-se
a conceber o deficiente como alguém considerado menor pela deficiência que tem, um
incômodo aos considerados normais, aos seres maiores, mais perfeitos. Isso nos leva a
uma discussão embaraçosa e improdutiva acerca do significado do oposto, isto é, acerca
do que significa uma educação maior para supostos sujeitos maiores, uma educação
completa, relevante, absoluta, em oposição a uma educação parcial, limitada, restrita
(Cf. SKLIAR, 2013, p. 7).
O que podemos constatar é que a ideia de educação especial ainda não é um
conceito suficientemente esclarecido e a deficiência é ainda compreendida por muitos
como uma limitação ou doença humana, não uma condição humana. A deficiência,
como um fenômeno humano, precisa ser analisada como uma condição socialmente
produzida e, por isso, pode ser revista e concebida sob a ótica de um ser humano dife-
rente, mas não desigual. As diferenças devem ser levadas em consideração apenas no
aspecto do atendimento de suas necessidades específicas, mas não como fatores de pro-
moção da desigualdade e do isolamento social e cultural. Isso exige que a inclusão do
deficiente em escola regular seja priorizada e realizada de maneira crítica por parte dos
professores, das instituições formadoras, dos gestores e das políticas governamentais.
As exposições feitas acima revelam que o Brasil vinha avançando em sua política
de inclusão escolar dos deficientes e na qualificação do processo formativo que ela exige.
A proposição do Decreto Lei 10.502/2020 não reconhece tal processo e representa uma
tentativa de retroceder a uma situação que não é referendada nem pelos organismos
internacionais e nem pelos estudiosos do assunto. Por isso, resistir e esclarecer a visão
retrógrada presente na proposição do Decreto Lei é uma tarefa a todos os educadores,
pais e responsáveis de todos as instâncias.
Conclusão
A proposição que defendemos da inclusão do deficiente na escola regular encon-
tra sustentação em diversos documentos e análises de autores que refletem sobre a
situação. Nossa compreensão é que diante dos desafios que as deficiências trazem, a
solução baseada na criação de alternativas que isolam e se especializam no atendimento
da especificidade de cada deficiência, parece a mais óbvia e mais eficaz. Ledo engano.
As experiências históricas revelam que a segregação dos deficientes e seu atendimento
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Elisa Mainardi, Eldon Henrique Mühl
129
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 110-131, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
em espaços restritos não contribuem para a sua educação e sua aprendizagem. A con-
vivência em espaços públicos, em contextos coletivos e em interações cotidianas, são as
experiências que se revelam as mais eficazes no desenvolvimento integral do deficiente.
A questão que é mais desafiadora, portanto, é a que envolve a capacidade de a
sociedade se transformar para incluir os deficientes e compreender a deficiência não
como uma doença, como um castigo ou uma maldição, mas somente como uma con-
dição humana que se revela de forma diferenciada em cada indivíduo. O atendimento
especializado precisa ser incluído na escola regular como parte da formação de toda a
sociedade para uma convivência com todos os seres humanos, incluindo os deficientes.
O Brasil vinha avançando significativamente neste processo atingindo o status
de pais que estava promovendo o maior número de deficientes incluídos na escola re-
gular. Este processo passou a ser ameaçado pela proposição de um decreto lei retrógrado
e excludente que precisa ser denunciado quanto sua insensatez diante das possibilidades
que a escola tem de assumir a tarefa da prática da inclusão de todos os deficientes. Cabe
à sociedade e, de modo especial ao Estado, oferecer as condições para que todos possam
ser incluídos, seja na escola, no trabalho, na vida social, na vida cultural. Afinal, en-
quanto não formos capazes de tornarmos anjos ou demônios, continuamos todos
humanos.
Referências
AMARAL, Ligia Assumpção. Pensar a diferença/deficiência. Brasília: Coordenadoria Nacional
para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, 1994.
ARISTOTELES. Política. 2. ed. Brasília: Editora UnB, 1985.
BÍBLIA. Bíblia Sagrada. São Paulo: Edições Paulinas, 1978.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988.
BRASIL/ IMPÉRIO. Constituição de 1824. Rio de Janeiro: Casa Cívil, 1824.
BRASIL/GOVERNO FEDERAL. Decreto Lei nº 10.502/2020: Estabelece a Política Nacio-
nal de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida-
PNEE. Brasília: DOU, 2020.
BRASIL/GOVERNO FEDERAL. Decreto nº 6.949/2009: Promulga a Convenção Interna-
cional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo. Brasília:
DOU, 2009.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Segregar as diferenças e agregar as semelhanças
130
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 110-131, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
BRASIL/GOVERNO FEDERAL. Lei nº 13.146/2015: Institui o Estatuto da Pessoa com
Deficiência e instituiu a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência. Brasília: DOU,
2015.
BRASIL/MEC. Lei nº. 4024/1961. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília:
Mec, 1961.
BRASIL/MEC. Lei nº. 5692/1971. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília:
Mec, 1971.
BRASIL/MEC. Lei nº. 7.853/1989. Dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiên-
cia, sua integração social, sobre a Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa
Portadora de Deficiência - Corde, institui a tutela jurisdicional de interesses coletivos ou di-
fusos dessas pessoas, disciplina a atuação do Ministério Público, define crimes, e dá outras
providências. Brasília: MEC, 1989.
BRASIL/MEC. Lei nº. 9.394/1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília:
Mec, 1996.
BRASIL/MEC/CNE. Resolução 2/2001: Estabelece as Diretrizes Nacionais para a Educação
Especial na Educação Básica. Brasília: CNE, 2001.
BRASIL/MEC/SEE. Declaração de Salamanca: sobre princípios, políticas e práticas na área
das necessidades educativas especiais. Brasília: MEC, 1994.
BRASIL/MEC/SEE. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclu-
siva. Brasília: SEE, 2008.
BRASIL/STF. Portal do STF. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDe-
talhe.asp?idConteudo=456419&tip=UN. Acesso em: 20 jun. 2022.
BRIGIDA, Izane F.S.; LIMEIRA, Carolline S. Educação inclusiva: dos avanços à legalização
do retrocesso. Revista Diálogos e Diversidade, Jacobina-Bahia, v. 1, n. e12436, p. 01-12, 2021.
CARVALHO, Maria de Fátima. Conhecimento e vida na escola: convivendo com as diferen-
ças. Campinas: Autores Associados; Ijuí: Unijuí, 2006.
CORRÊA, Maria Ângela Monteiro. A. M. Educação Especial. Volume 1 Módulos 1 a 4. Rio
de Janeiro: Fundação CECIERJ, 2004.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1992.
MATTOS, Nicoleta. A política de Educação Especial na perspectiva da Inclusão: Ambigui-
dades conceituais e suas consequências para a efetivação de uma escola inclusiva.
Revista Psicologia, Diversidade e Saúde, v.6, p. 37-43, fev. 2017.
MAZZOTTA, Marcos José da Silveira. Educação especial no Brasil: história e políticas públi-
cas. São Paulo: Cortez, 1996.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Elisa Mainardi, Eldon Henrique Mühl
131
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 110-131, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
MOREIRA, Antônio Flávio. CANDAU, Vera Maria. Indagações sobre currículo: currículo,
conhecimento e cultura. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica,
2007.
PLATÃO. A República. Curitiba: Ed. UFPR, 1976.
SASSAKI, Romeu K. Inclusão: construindo uma sociedade para todos. 3. ed. Rio de Janeiro:
WVA, 1999.
SÊNECA, Lúcio. Sobre a ira. In: SÊNECA, Lúcio. Diálogos. Tradução, introdução e notas de
José Eduardo S. Lohner. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
SILVA, Otto Marques. da. A epopeia ignorada: a pessoa deficiente na história do mundo de
ontem e de hoje. São Paulo: CEDA, 1987.
SKLIAR, Carlos. Educação & Exclusão: abordagens socioantropológicas em educação especial.
7. ed. Porto Alegre: Mediação, 2013.
TRILLA, Jaume et al. El legado pedagógico del siglo XX para la escuela del siglo XXI. Barcelona:
Editorial Graó, 2001.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Este artigo está licenciado com a licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
132
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 132-148, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Escala infantil de atitudes sociais em relação à inclusão
1
Child Scale of Social Attitudes toward Inclusion
Escala infantil de actitudes sociales hacia la inclusión
Camila Mugnai Vieira
*
Sadao Omote
**
Luciana Ramos Baleotti
***
Maewa Martina Gomes da Silva e Souza
****
Resumo
O presente estudo descreve o processo de validação de uma escala denominada Atitudes Sociais em
Relação a Inclusão Escala Infantil (ASI-EI). Participaram 1063 estudantes do Ensino Fundamental,
Ciclos I e II, de quatro regiões brasileiras, sendo 500 do sexo masculino e 563 do sexo feminino.
Para a coleta de dados utilizou-se a ASI-EI, constituída por 20 itens, dos quais 10 expressam atitudes
sociais favoráveis em relação à inclusão e outros 10, atitudes desfavoráveis. A ASI-EI foi aplicada
coletivamente em salas de aula. O Test de Student e o de Qui-quadrado evidenciaram a adequação
dos itens. A fidedignidade da escala também foi evidenciada pelo procedimento de split half. A análise
da validade produziu inequívoca evidência de que a ASI-EI mede o fenômeno a cuja mensuração se
destina. O trabalho desenvolvido resultou na construção de um instrumento válido e confiável para
medir as atitudes sociais de estudantes do Ensino Fundamental em relação à inclusão.
Palavras-chave: atitudes sociais; inclusão; ensino fundamental.
Recebido em: 21/02/2022 Aprovado em: 21/06/2022
https://doi.org/10.5335/rep.v29i1.13072
ISSN on-line: 2238-0302
*
Doutora e pós-doutoranda em Educação pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Docente da Disciplina de
Psicologia e do Mestrado Profissional Ensino em Saúde da Faculdade de Medicina de Marília (FAMEMA). E-mail:
camilamugnai@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7564-6218.
**
Livre-Docente. Professor Titular aposentado do Departamento de Educação Especial da Faculdade de Filosofia e Ciências.
Universidade Estadual Paulista (UNESP). Orcid: https://orcid.org/0000-0003-2455-4529. E-mail: somote@uol.com.br.
***
Professora Assistente Doutora, nível II, Curso de Graduação em Terapia Ocupacional, Faculdade de Filosofia e Ciências,
UNESP, campus de Marília. Vinculado ao Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Humano e Tecnologias,
Instituto de Biociências, Unesp, campus de Rio Claro. Co-orientadora junto ao Programa de Pós-graduação em Design,
UNESP, campus de Bauru. E-mail: luciana.r.baleotti@unesp.br. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-3300-2075.
****
Doutora e mestra em educação, na linha da Educação Especial pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade
de Filosofia e Ciências (FFC), Campus de Marília/SP. Professora na Faculdade de Ensino Superior e Formação Integral.
E-mail: maewa.martina@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-4322-3100.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Sadao Omote, Camila Mugnai Vieira, Luciana Ramos Baleotti, Maewa Martina Gomes da Silva e Souza
133
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 132-148, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Abstract
This paper describes the validation process of a scale called Social Attitudes toward Inclusion Child
Scale (ASI-EI). The study included 1063 Elementary School students, 500 males and 563 females,
from four Brazilian regions. For data collection, the ASI-EI was used, consisting of 20 items, 10 of
which expressing favorable social attitudes toward inclusion and another 10 unfavorable ones. ASI-
EI was applied collectively in classrooms. Student t test and Chi-square test evidenced the adequacy
of the items. The reliability of the scale was evidenced by the split half procedure. The validity
analysis produced unequivocal evidence that the ASI-EI measures the phenomenon it is intended to
measure. The study developed resulted in the construction of a valid and reliable scale to measure
the social attitudes of elementary school students toward inclusion.
Keywords: social attitudes; inclusion; elementary school.
Resumen
Este estudio describe el proceso de validación de una escala denominada Actitudes Sociales hacia la
Inclusión - Escala Infantil (ASI-EI). Participaron 1063 estudiantes de Educación Primaria, 500 niños
y 563 niñas, de cuatro regiones brasileñas. Para la recogida de datos se utilizó el ASI-EI, compuesto
por 20 ítems, 10 de los cuales expresan actitudes sociales favorables hacia la inclusión y otros 10
desfavorables. ASI-EI se aplicó colectivamente en las aulas. La prueba t de Student y la prueba de
Chi-cuadrado evidenciaron la adecuación de los ítems. La confiabilidad de la escala también fue
evidenciada por el procedimiento de split half. El análisis de validez arrojó evidencia inequívoca de
que el ASI-EI mide el fenómeno que se pretende medir. El trabajo desarrollado resultó en la
construcción de un instrumento válido y confiable para medir las actitudes sociales de los estudiantes
de Educación Primaria en relación a la inclusión.
Palabras clave: actitudes sociales; inclusión; educación primaria.
Introdução
As mais variadas diferenças entre as pessoas e grupos de pessoas fazem parte in-
tegrante da vida normal de qualquer comunidade. No seu processo evolutivo e de
socialização, as pessoas aprendem a respeito dessas diferenças e a lidar com elas, de tal
sorte que se tornam familiares e são percebidas como fatos corriqueiros e normais da
sua comunidade (VIEIRA; VIEIRA, 2020). Algumas diferenças, entretanto, chamam
a atenção especial das pessoas, ocasionando reações que podem variar de curiosidade e
atração até de temor e rejeição. As reações de temor e rejeição podem consolidar-se na
forma de construção de um estigma e de exclusão das pessoas que apresentam essas
diferenças.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Escala infantil de atitudes sociais em relação à inclusão
134
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 132-148, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Essa forma de tratamento de pessoas que apresentam diferenças consideradas
abomináveis pode institucionalizar-se com tempo e ser aceita como procedimento ri-
gorosamente normal, e talvez até correto. As crianças aprendem os diferentes padrões
utilizados pela sua comunidade para lidar com essas diferenças, por meio de informa-
ções obtidas dos adultos com os quais convivem e daquelas veiculadas pelos meios de
comunicação em geral, além de eventuais experiências de observação direta.
A curiosidade infantil com relação às diferenças humanas é imensa e frequente-
mente as crianças indagam os pais ou professores, mais por curiosidade que por medo.
Dependendo do contexto, contudo, podem aprender a evitar as diferenças
(COLEMAN, 1986). Os adultos podem não falar sobre o tema, não responder às per-
guntas das crianças e desviar o assunto quando questionados ou ainda transmitir
concepções equivocadas, reproduzindo estereótipos e preconceitos. Por conseguinte, as
crianças podem aprender que a diferença é motivo de constrangimento e que tem uma
conotação negativa. Particularmente com relação à deficiência, aprende-se comumente
que é algo “estranho”, do qual se deve afastar e sobre o que não se deve perguntar ou
falar (VIEIRA, 2006; VIEIRA; DENARI, 2007; SOUZA, 2014; VIEIRA, 2014;
VIEIRA; VIEIRA, 2020).
Várias pesquisas têm se ocupado da investigação de concepções e atitudes de cri-
anças sem deficiência em relação às deficiências e à inclusão, especialmente relacionadas
ao contexto escolar. Em síntese, elas indicam um desconhecimento das deficiências por
parte das crianças e, de modo geral, há assimilação de informações equivocadas ou falta
de acesso a elas, possibilitando a criação de explicações fantasiosas e muitas vezes carre-
gadas de estereótipos e preconceitos (VIEIRA; DENARI, 2007, 2014; SOUZA, 2014,
2019; CONCEIÇÃO, 2018).
A inclusão de pessoas com diferentes características historicamente excluídas vem
ocupando posição de destaque nos debates em diferentes contextos sociais. Dentro
dessa tendência, vem sendo realizadas pesquisas acerca da inclusão educacional de cri-
anças e jovens, pertencentes à categoria do assim chamado público-alvo da Educação
Especial (PAEE). Esta categoria se constitui de pessoas com diferentes deficiências, com
transtorno do espectro autista (TEA) e com altas habilidades e superdotação (AH/SD).
Na Educação Básica brasileira, dados do censo escolar realizado em 2019
pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP)
revelam que o percentual de alunos com deficiência, TEA ou AH/SD matriculados em
classes comuns tem aumentado gradualmente para todas as etapas de ensino (BRASIL,
2020).
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Sadao Omote, Camila Mugnai Vieira, Luciana Ramos Baleotti, Maewa Martina Gomes da Silva e Souza
135
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 132-148, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Do ponto de vista da prática educacional, o aumento no percentual desses alunos
em escolas regulares deve ser abordado de forma a priorizar a necessidade de vencer
uma série de barreiras como a pedagógica, a arquitetônica e a de formação de recursos
humanos. Diante disso, o governo brasileiro vem investindo na ampliação de políticas
públicas que visam a remoção de barreiras arquitetônicas, acesso a tecnologia assistiva,
professores intérpretes, Atendimento Educacional Especializado, Sala de Recursos
Multifuncionais, entre outras alternativas. Todas as adequações visam incorporar as
diferenças e devem ser previstas e planejadas no projeto político-pedagógico de cada
escola, e ser entendidas como elementos fundamentais para garantir o acesso aos bens
educacionais, que, de outra forma, não seria possível para alguns dos alunos PAEE.
Nas pesquisas sobre a inclusão educacional, além das questões relacionadas dire-
tamente à aprendizagem escolar dos estudantes que requerem intervenção diferenciada,
como as suas características e os recursos e procedimentos de ensino destinados a eles,
o seu entorno social tem merecido especial atenção. Nessa perspectiva, o entorno social
particularmente importante é representado pelas classes frequentadas pelos estudantes
com necessidades educacionais especiais (NEE). Portanto, os professores e colegas de
classe constituem personagens importantes a serem consideradas nessa discussão.
O processo de construção da educação inclusiva não decorre automaticamente
das adequações consideradas necessárias. As variáveis pessoais e sociais de todas as pes-
soas que compõem a comunidade escolar desempenham papel importante nesse
processo. Uma dessas variáveis que vem sendo estudada para a compreensão de com-
portamentos sociais são as atitudes sociais em relação à inclusão (OMOTE, 2005,
2016, 2018).
As atitudes sociais se definem em relação a um determinado alvo, referido por objeto atitudinal
e constituído por algum objeto social, como uma categoria de pessoas ou uma instituição social.
Assim, pode-se falar em atitudes sociais em relação a pessoas com uma determinada deficiência
ou em relação à inclusão (OMOTE, 2016, p. 1).
O estudo das atitudes sociais possibilita verificar o direcionamento das ações das
pessoas em relação a determinados objetos sociais e permite que se façam inferências
acerca de seu comportamento (RODRIGUES; ASSMAR; JABLONSKI, 2007).
A compreensão das atitudes sociais em relação à inclusão escolar de crianças com
deficiência é considerada um aspecto relevante na literatura da área (BALEOTTI,
2006; DE BOER; PIJL; MINNAERT, 2011; SOUZA, 2014; VIEIRA, 2014), uma
vez que as atitudes podem influenciar a cooperação e o clima social em uma escola
inclusiva (BURGE; OUELLETTE-KUNTZ; HUTCHINSON; BOX, 2008;
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Escala infantil de atitudes sociais em relação à inclusão
136
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 132-148, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
SIPERSTEIN et al, 2011). A inclusão escolar bem sucedida depende, em grande parte,
das atitudes sociais e da cooperação de todos os envolvidos: pais, alunos, professores,
gestores escolares e aqueles responsáveis pelas políticas públicas (SIPERSTEIN et al.,
2011). Dentre estes, seguramente os professores e os alunos que compõem a classe
representam personagens centrais no processo inclusivo no cotidiano escolar. Os
estudantes com e sem NEE passam grande parte do tempo juntos, participando de
atividades acadêmicas, sociais, culturais e de lazer, que ocorrem no contexto escolar.
Mas, compartilhar o ambiente físico não significa que estejam ocorrendo interações
sociais positivas entre eles.
Os professores têm papel especialmente importante nesse contexto,
particularmente nas classes constituídas por crianças e adolescentes. Compreendendo
que a formação desses professores se constitui em um importante determinante do su-
cesso para a construção da Educação Inclusiva, tem sido feitos investimentos na sua
capacitação. Nessa capacitação, vêm sendo realizados estudos das atitudes sociais de
professores em relação à inclusão, considerando que elas podem influenciar direta-
mente as ações docentes com relação à presença de estudante PAEE na sua classe, seja
na formação inicial (MARINHO, 2016) seja na formação continuada (MENINO-
MENCIA, 2020).
De fato, esses apontamentos foram evidenciados em estudos realizados em esco-
las brasileiras, cujos resultados apontam que as atitudes sociais de estudantes com
experiência de convívio com colegas PAEE não se diferenciam das atitudes sociais da-
queles sem essa experiência (BALEOTTI, 2006; SOUZA, 2014). Estudos realizados
na Alemanha, sugerem que o risco de crianças com deficiência serem rejeitadas por seus
colegas é três vezes maior do que para crianças sem deficiência (HUBER, 2008 apud
GERULLIS; HUBER, 2018; HUBER; WILBERT, 2012 apud GERULLIS; HUBER,
2018).
Estudar as atitudes sociais que as crianças sem deficiência têm em relação às
crianças PAEE representa um elemento importante para a compreensão de fenômenos
ligados a um ambiente acolhedor, incluindo a predisposição para a interação e para a
aprendizagem conjunta em ambientes inclusivos (BUNCH; VALEO, 2004; LAWS;
KELLY, 2005).
Para tanto, é necessária a utilização de instrumentos confiáveis de mensuração de
atitudes sociais para a população infantil. Para Omote,
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Sadao Omote, Camila Mugnai Vieira, Luciana Ramos Baleotti, Maewa Martina Gomes da Silva e Souza
137
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 132-148, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
[...] a utilização de instrumento de mensuração confiável certamente poderá contribuir para o
desenvolvimento de pesquisas empíricas, altamente necessárias hoje para ultrapassar as discussões
meramente opinativas ou baseadas em alguns dogmas, e produzir conhecimentos científicos
acerca da realidade social da inclusão (OMOTE, 2005, p. 37).
No Brasil, há carência de instrumentos dessa natureza. A disponibilidade de um
instrumento consistente, culturalmente apropriado e confiável pode contribuir signifi-
cativamente para os avanços na pesquisa acerca das atitudes sociais da população
infantil frente à educação inclusiva. A construção de um instrumento de mensuração
de fenômenos como atitudes sociais requer uma série de cuidados metodológicos para
assegurar a confiabilidade dos dados coletados. Esse processo não é rápido, nem tam-
pouco simples, e deve seguir diretrizes sólidas para que o instrumento seja validado para
uso.
O grupo de pesquisa Diferença, Desvio e Estigma
2
vem realizando pesquisas so-
bre as atitudes sociais de estudantes do Ensino Fundamental em relação à inclusão já
há algum tempo, considerando que estudos a seu respeito não têm acompanhado o
crescente interesse pelas atitudes sociais de professores em relação à inclusão. Assim,
foi iniciada a construção de um instrumento de mensuração destinado à avaliação das
atitudes sociais de estudantes do Ensino Fundamental em relação à inclusão, o qual
convencionou-se chamar de Escala Infantil de Atitudes Sociais em relação à Inclusão
(ASI-EI), há quase duas décadas (BALEOTTI; OMOTE, 2003; BALEOTTI, 2020).
Esta escala vem sendo utilizada em alguns estudos (BALEOTTI, 2006; VIEIRA,
2006, 2014; CONCEIÇÃO, 2018; SOUZA, 2014, 2019) e, no decorrer do seu uso,
sofreu algumas alterações, sempre em busca do seu aprimoramento. A escala, original-
mente constituída de 27 itens, passou a ter 20 itens, dos quais 10 são favoráveis e 10
desfavoráveis à inclusão. Para uma avaliação e eventual alteração em busca de um ins-
trumento confiável de avaliação das atitudes sociais de estudantes do Ensino
Fundamental em relação à inclusão, o presente estudo retoma os dados de Vieira
(2014) e Souza (2019) para a análise de propriedades psicométricas da ASI-EI, com a
possibilidade de novas coletas de dados.
Sendo assim, foi propósito deste estudo analisar detalhadamente os dados da úl-
tima etapa dessa trajetória de construção da ASI-EI para verificar a sua confiabilidade.
Os objetivos específicos foram: 1. Proceder a análise de item com os dados coletados
junto a estudantes do Ensino Fundamental; 2. Verificar a fidedignidade da escala e
3. Verificar a validade da escala.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Escala infantil de atitudes sociais em relação à inclusão
138
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 132-148, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Método
3
São analisados os dados coletados junto a três amostras: A, B e C. Da amostra A
participaram 516 estudantes do Ciclo I do Ensino Fundamental de uma cidade de
médio porte da região Centro-Oeste do Estado de São Paulo, sendo 268 do sexo mas-
culino e 248 do sexo feminino. A amostra B foi constituída por 426 estudantes do
Ensino Fundamental, sendo 222 do Ciclo I e 204 do Ciclo II, pertencentes a escolas
de quatro regiões do Brasil
4
. Desse total, 198 eram do sexo masculino e 228, do sexo
feminino. Da amostra C participaram 121 estudantes do Ensino Fundamental, do 3º
ao 5º ano do EF, sendo 34 do sexo masculino e 87 do sexo feminino.
Foi utilizada a ASI-EI, constituída por 20 itens, sendo 10 positivos e 10 negati-
vos. Cada item é constituído de um enunciado, acompanhado de três alternativas de
resposta: “Sim”, “Não” e “Não Sei”. O participante da pesquisa precisa assinalar uma
dessas alternativas com relação ao conteúdo do enunciado, que expressa alguma afir-
mação sobre deficiência, ensino de estudante com deficiência, convívio com colega com
deficiência, etc. Um item é considerado positivo, se a concordância com a afirmação
expressa atitudes sociais favoráveis, e considerado negativo, se a concordância expressa
atitudes sociais desfavoráveis. A resposta “Não Sei” é assinalada quando o participante
não compreender o enunciado ou não tiver opinião formada a respeito do assunto tra-
tado. A ASI-EI é apresentada na Figura 1.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Sadao Omote, Camila Mugnai Vieira, Luciana Ramos Baleotti, Maewa Martina Gomes da Silva e Souza
139
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 132-148, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Figura 1 - Atitudes Sociais em relação à inclusão – Escala Infantil (ASI-EI)
Fonte: Elaborada pelos autores
Os dados foram coletados por meio da ASI-EI, aplicada coletivamente em salas
de aula, com a necessária supervisão direta à turma, sempre que necessário em vista de
alguma dificuldade apresentada por estudantes, especialmente dos anos iniciais.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Escala infantil de atitudes sociais em relação à inclusão
140
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 132-148, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Preliminarmente, foram calculados os escores individuais, os quais foram utiliza-
dos para todas as análises realizadas. No cálculo dos escores individuais, à resposta a
cada um dos 20 itens foi atribuída uma nota, sendo 1, 2 ou 3. A nota 1 foi atribuída
para a resposta “Não” diante do item positivo e resposta “Sim” para o item negativo; a
nota 3 foi atribuída para a resposta “Sim” diante do item positivo e resposta “Não”
para o item negativo; a nota 2 foi atribuída para a resposta “Não Sei”, independente-
mente da valência do item. O escore foi calculado mediante a soma das notas atribuídas
aos 20 itens. Portanto, o escopo da escala pode variar de escore 20 a 60.
Inicialmente, foi realizada a análise de item para identificar possíveis itens que
não são suficientemente sensíveis para mensurar atitudes sociais diferentes na sua mag-
nitude ou valência. Na análise de item, tradicionalmente tem sido utilizado o test t de
Student, o que foi feito no presente estudo, mas, adicionalmente, foi também utilizado
o teste de qui-quadrado, que se revelou ser mais sensível em estudo anterior (OMOTE,
2005).
Para descrever as características psicométricas da ASI-EI, foram feitos cálculos
para verificar a fidedignidade e validade da escala para cada uma das amostras separa-
damente. Para o estudo da fidedignidade, foi utilizado o procedimento de split half, no
qual são comparados escores das duas metades da escala. Tradicionalmente, comparam-
se a primeira metade dos itens e a segunda metade. Entretanto, considerando a possi-
bilidade de, no decorrer dos itens da escala, ocorrer alterações no modo de responder
dos participantes, em decorrência de variáveis como cansaço, aprendizagem ou outras
tendências que se podem estabelecer, foi também comparada uma metade constituída
por itens ímpares e outra metade constituída por itens pares (OMOTE, 2005).
No estudo da validade da escala, diferentes grupos foram comparados nas cir-
cunstâncias nas quais havia forte indício de diferenças nas atitudes sociais. Foram
utilizados os testes de Kruskal-Wallis e Mann-Whitney nas comparações de grupos in-
dependentes e o teste de Wilcoxon nas comparações de grupos dependentes.
Resultados e discussão
Calculados os escores individuais da ASI-EI, inicialmente foram realizadas algu-
mas comparações entre diferentes agrupamentos para verificar a possibilidade de reuni-
los em grupos maiores.
Os participantes da amostra A eram alunos do 1º ao 5º ano do Ensino Funda-
mental de duas escolas. Assim, foram comparados os escores de participantes de
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Sadao Omote, Camila Mugnai Vieira, Luciana Ramos Baleotti, Maewa Martina Gomes da Silva e Souza
141
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 132-148, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
diferentes anos escolares, obtendo-se resultado que sugere a equivalência estatística en-
tre os diferentes anos nas duas escolas. Foram reunidos os alunos dos cinco anos
escolares para cada escola e foram comparados os escores de estudantes de uma escola
com os da outra escola. Nesta comparação também foi obtida a evidência da equiva-
lência estatística entre os grupos. Diante desses resultados, todos os participantes da
amostra A compuseram um único grupo para fins de todas as análises realizadas para o
estudo das propriedades psicométricas.
A amostra B era constituída por estudantes do 1º ao 9º ano do Ensino Funda-
mental, pertencentes a várias escolas de algumas cidades representativas das cinco
regiões do Brasil. Comparando os escores dos estudantes de diferentes anos escolares,
diferenças estatisticamente significantes foram encontradas, sobretudo entre os do Ci-
clo I e os do Ciclo II, razão pela qual a amostra foi subdividida em dois grupos, o G1
constituído por estudantes do 1º ao 5º ano e o G2 constituído por estudantes do 6º ao
9º ano. Comparando os escores dos estudantes provenientes de diferentes regiões do
País, diferenças expressivas foram identificadas entre os da Região Centro-Oeste e os
das demais regiões.
A coleta de dados realizada em algumas escolas da Região Centro-Oeste foi es-
pecialmente complicada, com recusas e suspeitas da parte dos gestores e professores de
algumas escolas, bem como resistência da parte de muitos responsáveis pelos estudantes
para assinarem o termo de consentimento livre e esclarecido. Decidiu-se, portanto, pela
exclusão dos dados desta região na presente análise. As outras quatro regiões, uma vez
que foi evidenciada a equivalência estatística, foram reunidas, formando dois grupos, o
G1 e o G2.
A amostra C eram estudantes do 3º ao 5ºano do Ensino Fundamental. A análise
preliminar indicou haver equivalência estatística entre os escores obtidos por estudantes
dos diferentes anos, o que permitiu reuni-los num único grupo para fins de análise.
Para uma visualização geral e sintética dos escores de atitudes sociais obtidos por
esses grupos de participantes, a Tabela 1 apresenta valores relativos ao tamanho dos
grupos, a variação, representada pelo valor mínimo e valor máximo, mediana e disper-
são, indicada pelos valores de quartil 1 e quartil 3. Considerando que os dados foram
coletados em momentos diferentes, em diferentes escolas de diferentes regiões, para os
propósitos do presente texto, não há interesse em proceder a comparação dos escores
de diferentes grupos.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Escala infantil de atitudes sociais em relação à inclusão
142
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 132-148, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Tabela 1. Parâmetros estatísticos dos escores de ASI-EI.
Fonte: elaborada pelos autores
*
em alguns grupos a nota mínima foi menor do que 20 porque não foram excluídas crianças que deixa-
ram alguns itens em branco.
No estudo da confiabilidade de uma escala, é preciso verificar inicialmente se
cada um dos itens que compõem o instrumento mede adequadamente o fenômeno sob
mensuração. Para tanto, foi feita a análise de item com os resultados obtidos de dife-
rentes grupos, seguindo a sequência em que o instrumento foi aplicado a novos grupos
em função do resultado encontrado nessa análise de item. Esse processo foi realizado
até que todos os itens tivessem a sua capacidade discriminativa evidenciada.
Para a análise de item, o grupo é dividido em duas metades em função do valor
mediano dos escores: grupo abaixo da mediana e grupo acima da mediana. As notas
obtidas em cada um dos itens pelo grupo abaixo da mediana são comparadas com as
notas do grupo acima da mediana. Se o item avalia bem, deve haver diferença estatisti-
camente significante entre esses grupos, com a predominância de nota alta no grupo
acima da mediana e de nota baixa no grupo abaixo da mediana. Tradicionalmente, essa
comparação é realizada por meio do t de Student. Adicionalmente, foi também utili-
zado o teste de qui-quadrado, o qual se mostrou mais sensível que o t de Student
(OMOTE, 2005).
Analisando os resultados do grupo A, não foi encontrada diferença significante
entre os grupos para os itens 5, 10 e 11, isto é, os enunciados não possuem sensibilidade
suficiente para diferenciar quem tem atitudes sociais favoráveis daqueles cujas atitudes
são desfavoráveis. Os enunciados originais eram: “O aluno com deficiência sempre pre-
cisa de ajuda na sala de aula” para o item 5, “As classes só para alunos deficientes
deveriam acabar” para o item 10 e “A professora deve dar mais atenção para o aluno
que é deficiente” para o item 11. Foi alterada a redação desses itens para “O aluno com
deficiência não consegue fazer nada sozinho na sala de aula”, “Todos os alunos defici-
entes devem estudar na mesma classe que os alunos normais” e “Os alunos normais
Amostra/grupo
n
Variação
(min-max)
*
Mediana
Dispersão
(Quartil1- Quartil3)
A
516
22-58
38
34-42
B1
222
13-60
45
40-51
B2
204
14-60
50,5
44-54
C
121
30-60
53
48-56
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Sadao Omote, Camila Mugnai Vieira, Luciana Ramos Baleotti, Maewa Martina Gomes da Silva e Souza
143
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 132-148, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
devem reclamar se a professora der mais atenção para o aluno deficiente”, respectiva-
mente.
Com a nova redação desses três itens, a escala foi aplicada para o grupo B1 e
grupo B2. Procedendo ao competente cálculo, verificou-se que, nos itens 10 e 11, foi
evidenciada diferença altamente significante entre o grupo abaixo da mediana e o grupo
acima da mediana (p<0,0001 para o grupo B1, tanto no teste t de Student quanto no
de qui-quadrado, e p<0,0001 para o grupo B2, tanto no teste t de Student quanto no
de qui-quadrado, em ambos os itens). Já no item 5, não foi verificada diferença signi-
ficante entre o grupo abaixo da mediana e grupo acima da mediana no grupo B1 e no
grupo B2 em ambos os testes estatísticos (p>0,05).
Em vista disto, a redação do enunciado do item 5 foi alterada paraO aluno com
deficiência tem dificuldades para fazer atividade sozinho na sala de aula”. A escala foi
aplicada, com essa nova redação do enunciado do item 5, para o grupo C. A análise
indicou que, com a nova redação, o item 5 apresentou sensibilidade suficiente para
diferenciar o grupo abaixo da mediana do grupo acima de mediana. A diferença entre
os grupos é significante, conforme test t de Student (p = 0,0046). No teste de qui-
quadrado a diferença não chegou a alcançar o nível de significância (p = 0,0937), po-
rém, em vista dos valores de p obtidos nos dois testes e considerando que o qui-
quadrado se mostrou ser mais rigoroso nesse tipo de análise que o t de Student
(OMOTE, 2005), habitualmente empregado em análise de itens, o item 5 foi consi-
derado adequado.
Uma importante propriedade de um instrumento de mensuração é a sua fidedig-
nidade, isto é, a sua consistência interna e replicabilidade. Um procedimento comum
para a análise da fidedignidade é conhecido como split half, no qual habitualmente se
comparam os escores da primeira metade com a segunda metade da escala. Conside-
rando a possibilidade de haver alguma alteração no modo de resposta, decorrente de
alguma ocorrência como a aprendizagem, fadiga ou viés próprio do respondente com
tendência a concordar ou a discordar, além do procedimento de split half, foi utilizado
adicionalmente um outro procedimento, que consiste em comparar os itens pares com
os itens ímpares (OMOTE, 2005).
Foram utilizados os escores dos grupos B1 e B2, por abrangerem todo o Ensino
Fundamental, do 1º ao 9º ano. No grupo B1, de estudantes do 1º ao 5º ano, foi evi-
denciada a equivalência da primeira metade com a segunda metade (p = 0,0001), bem
como a equivalência entre os itens pares e ímpares (p = 0,0008). Semelhantemente, no
grupo B2, de estudantes do 6º ao 9º ano, foi evidenciada a equivalência entre a primeira
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Escala infantil de atitudes sociais em relação à inclusão
144
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 132-148, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
metade e a segunda metade (p = 0,0001), assim como a equivalência entre os itens pares
e ímpares (p = 0,0001).
Além de assegurar a fidedignidade da escala, é preciso verificar se ela mede de
fato o que se pretende mensurar. Para tanto, podem ser utilizados dois procedimentos:
aplicar a escala a dois grupos que, com base em outras evidências, apresentam fortes
indícios de que se diferenciam em atitudes sociais. Isso foi amplamente evidenciado em
alguns estudos que vêm utilizando a ASI-EI.
Brito (2011) investigou o meio atitudinal e interacional de quatro classes do 5º
ano do Ensino Fundamental, sendo uma com aluno com síndrome de Asperger com
pouco comprometimento, uma com aluno com síndrome de Asperger com maior com-
prometimento, inclusive com episódios de incontinência vesical, e duas classes sem
aluno com qualquer tipo de comprometimento. Os resultados evidenciaram atitudes
sociais em relação à inclusão significantemente mais favoráveis na classe, cujo aluno
com síndrome de Asperger tinha pouco comprometimento. As demais classes não se
diferenciaram entre si.
Nos estudos de Vieira (2006, 2014), foram utilizados procedimentos para mu-
dança de atitudes sociais de estudantes do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental. A
escala infantil foi capaz de detectar mudança nas atitudes sociais como resultado da
intervenção. Souza (2014, 2019) encontrou diferenças significantes nas atitudes sociais
de estudantes do Ciclo I em relação a seus pares do Ciclo II do Ensino Fundamental.
Conceição (2018) encontrou diferenças significantes nas atitudes sociais de estudantes
do Ciclo I do Ensino Fundamental após a aplicação de programa informativo sobre
inclusão. Assim, os estudos de Brito (2011), Vieira (2006, 2014), Conceição (2018) e
Souza (2014, 2019) deixam inequívoca evidência de que a ASI- EI mede o fenômeno
a cuja mensuração se destina.
Conclusão
A ASI-EI, escala destinada à mensuração de atitudes sociais de estudantes do
Ensino Fundamental em relação à inclusão, na sua última versão, anexa ao presente
texto, apresenta itens suficientemente sensíveis para, no conjunto, estabelecer distinção
entre atitudes sociais favoráveis e as desfavoráveis. Nos dois procedimentos de split half
empregados, comparação da primeira metade dos itens com a segunda metade e com-
paração dos itens pares com os ímpares, a escala mostrou fidedignidade e estabilidade.
Por fim, a comparação dos escores de grupos suficientemente distintos e a comparação
dos escores do mesmo grupo antes e após uma intervenção feita com o propósito de
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Sadao Omote, Camila Mugnai Vieira, Luciana Ramos Baleotti, Maewa Martina Gomes da Silva e Souza
145
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 132-148, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
mudar as atitudes sociais evidenciaram diferenças significantes, revelando que a escala
mede aquilo que se pretende medir.
Apesar da relevância das atitudes sociais da classe em relação à inclusão, ampla-
mente discutida, os estudos se referem principalmente às atitudes sociais dos
professores. Esses estudos tiveram início e expressivo avanço na medida em que foi
disponibilizada a Escala Likert de Atitudes Sociais em relação à Inclusão/ELASI, devi-
damente validada e padronizada, destinada para a mensuração de atitudes sociais de
adultos. Semelhantemente, com a versão final da ASI-EI validada e padronizada, es-
pera-se um avanço expressivo nas investigações sobre as atitudes sociais de colegas de
classe no processo de construção da Educação Inclusiva.
Notas
1
Projeto financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, processo nº
2018/24734-7. Os autores agradecem a colaboração de Adriana Alonso Pereira e Laura Rodrigues
Yonemotu, que auxiliaram na organização das planilhas e nos cálculos estatísticos.
2
Este grupo de pesquisa foi constituído em 1995 e encontra-se cadastrado nos Diretório dos Grupos de
Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
3
Os projetos de pesquisa foram, na oportunidade, aprovados por Comitês de Ética em Pesquisa
(processo 2.070.235 da Faculdade de Filosofia e Ciências, UNESP, e processo 101/12 da Faculdade
de Medicina de Marília).
4
Por razões que serão expostas adiante, os participantes da região Centro Oeste foram excluídos desta
análise.
Referências
BALEOTTI, Luciana Ramos; OMOTE, Sadao. Atitudes sociais de alunos do ciclo I do
Ensino Fundamental em relação à inclusão: construção de uma escala infantil. In: Simpósio
em Filosofia e Ciência, 5Trabalho e conhecimento: desafios e responsabilidades das ciências,
2003, Marília. Anais eletrônicos… Marília: UNESP Marília Publicações, 2003. 1 CD-ROM.
BALEOTTI, Luciana Ramos. Um Estudo do ambiente educacional inclusivo: descrição das
atitudes sociais em relação à inclusão e das relações interpessoais. 2006. 183f. Tese (Doutorado
em Educação). Universidade Estadual Paulista, Marília, SP.
BALEOTTI, Luciana Ramos. Escala infantil de atitudes sociais em relação à inclusão:
trajetórias metodológicas. In: SOUZA, Maewa Martina Gomes da Silva e; CONCEIÇÃO,
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Escala infantil de atitudes sociais em relação à inclusão
146
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 132-148, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Aline de Novaes; PEREIRA, Adriana Alonso (Orgs.) Atitudes Sociais em relação à Inclusão: da
Educação Infantil ao Ensino Superior. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2020, p. 5564.
BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
Censo da Educação Básica 2019: Resumo Técnico. Brasília, 2020 Disponível em:
https://download.inep.gov.br/publicacoes/institucionais/estatisticas_e_indicadores/resumo_te
cnico_censo_da_educacao_basica_2019.pdf. Acesso em: 21 out.2021.
BRITO, Maria Cláudia. Síndrome de Asperger na Educação Inclusiva: análise de atitudes
sociais e interações sociais. Tese. 2011. 168f. (Doutorado em Educação). Faculdade de
Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília, SP.
BUNCH, Gary.; VALEO, Angela. Student’s attitudes toward peers with disabilities in
inclusive and special education schools. Disability & Society, 19, pp. 6176, 2004.
BURGE, Philip; OUELLETTE-KUNTZE, Helene; HUTCHINSO, Nancy; BOX, Hugh.
A quarter century of inclusive education for children with intellectual disabilities in Ontario:
Public perceptions. Canadian Journal of Educational Administration and Policy, 87, n. 3: 1
22, 2008.
COLEMAN, Lerita. Stigma: an enigma demystified. In: AINLAY, Stephen Charles.;
BECKER, Gaylene.; COLEMAN, Lerita (Eds.). The Dilemma of difference: a
multidisciplinary view of stigma. New York: Plenumm Press, 1986. p. 211-231.
CONCEIÇÃO, Aline de Novaes. Construindo um ambiente inclusivo: estudo sobre mudanças
de concepções de deficiências e atitudes sociais de crianças em relação à inclusão. 2018. 65 f.
Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em Formação de professores em Educação
Especial e Inclusiva). Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Filosofia e Ciências,
Marília, SP.
DE BOER, Anke.; PIJL, Sip Jan; MINNAERT, Alexander. Regular primary schoolteachers’
attitudes towards inclusive education: A review of the literature. International Journal of
Inclusive Education, 15, n. 3: 33153, 2011.
GERULLIS, Anita; HUBER, Christian. I agree to sit next to you. Does that mean I like you?
Measuring using the wrong tapeline the lack of ‘Social Distance’ measures for inclusive
school development and research a review of the literature. Journal of Research in Special
Educational Needs, v.18, n. 2, p.124135, 2018.
LAWS, Glynis.; KELLY, Elaine. The attitudes and friendship intentions of children in
United Kingdom mainstream schools toward peers with physical or intellectual disabilities.
International Journal of Disability, Development and Education, 52, pp. 7999, 2005.
MARINHO, Carla Cristina. Concepções de estudantes de Pedagogia sobre Educação Inclusiva e
Educação Especial e suas atitudes sociais em relação à Inclusão. Dissertação. 2016. 127f .
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Sadao Omote, Camila Mugnai Vieira, Luciana Ramos Baleotti, Maewa Martina Gomes da Silva e Souza
147
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 132-148, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Dissertação (Mestrado em Educação). Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade
Estadual Paulista, Marília, SP.
MENINO-MENCIA, Gislaine Ferreira. Influência de um programa de formação continuada
sobre crenças e atitudes dos professores em relação a Educação Inclusiva. Tese. 2020. 143f.
(Doutorado em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem). Faculdade de Ciências,
Universidade Estadual Paulista, Bauru, SP.
OMOTE, Sadao. A construção de uma escala de atitudes sociais em relação à inclusão: notas
preliminares. Rev. Bras. Ed. Esp., Marília, v.11, n.1, p.33-48, 2005.
OMOTE, Sadao. Escala de Atitudes Sociais em relação à inclusão. Journal of Research in
Special Educational Needs, v. 16, n s1, 470473, 2016.
OMOTE, Sadao. Atitudes sociais em relação à inclusão: recentes avanços em pesquisa.
Revista Brasileira de Educação Especial, v. 24, p. 21-32, 2018.
RODRIGUES, Aroldo; ASSMAR, Eveline Maria Leal; JABLONSKY, Bernardo. Psicologia
social. 25. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
SIPERSTEIN, Gary; PARKER, Robin; BARDON, Jennifer Norins; WIDAMAN, Keith. A
national study of Chinese youths’ attitudes towards students with intellectual disabilities.
Journal of Intellectual Disability Research, 55, n. 4: 37084, 2011.
SOUZA, Maewa Martina Gomes da Silva e. Estudo evolutivo de concepções de crianças e
adolescentes sem deficiência sobre as deficiências e suas atitudes sociais em relação à inclusão.
2014. 132f. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Estadual Paulista, Faculdade
de Filosofia e Ciências, Marília, SP.
SOUZA, Maewa Martina Gomes da Silva e. Concepções de deficiência e atitudes sociais de
crianças e adolescentes sem deficiência pertencentes a contextos sociais diferentes. 2019. Tese
(Doutorado em Educação). Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Filosofia e
Ciências, Marília, SP.
VIEIRA, Camila Mugnai. Programa informativo sobre deficiência mental e inclusão: efeitos nas
atitudes e concepções de crianças não-deficientes. 2006. 208 f. Dissertação (Mestrado em
Educação Especial). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP.
VIEIRA, Camila Mugnai; DENARI, Fátima Elisabeth. O que pensam e sentem crianças
não-deficientes em relação às deficiências e à inclusão: revisão bibliográfica. Revista FAEEBA,
v. 16, p. 31-40, 2007.
VIEIRA, Camila Mugnai. Atitudes sociais em relação à inclusão: efeitos da capacitação de
professores para ministrar programa informativo aos alunos. 2014. 183 f. Tese (Doutorado
em Educação). Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília,
SP.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Escala infantil de atitudes sociais em relação à inclusão
148
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 132-148, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
VIEIRA, Camila Mugnai; VIEIRA, Priscila Mugnai. Crianças e inclusão: mudanças de
atitudes sociais por meio de estratégias educativas lúdicas. In: SOUZA, Maewa Martina
Gomes da Silva e; CONCEIÇÃO, Aline de Novaes; PEREIRA, Adriana Alonso (Orgs.)
Atitudes Sociais em relação à Inclusão: da Educação Infantil ao Ensino Superior. Porto Alegre,
RS: Editora Fi, 2020, p. 1229.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Este artigo está licenciado com a licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
149
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 149-176, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Política de identidade e de reconhecimento em Taylor e
Honneth: fontes normativas no campo educacional
Identity policy and recognition in Taylor and Honneth: normative
sources in the educational field
Política de identidad y reconocimiento en Taylor y Honneth: fuentes
normativas en el campo educativo
Jonas Rangel de Almeida
*
Pedro Ângelo Pagni
**
Resumo
O objetivo deste artigo é analisar as pressuposições filosóficas de caráter normativo, indexadas à mo-
derna teoria do reconhecimento presente nos pensamentos de Charles Taylor e Axel Honneth. Esta
reflexão orienta-se a partir da acentuada entrada da teoria do reconhecimento, por intermédio dos
círculos de leitura da teoria crítica e da hermenêutica, no campo da filosofia da educação no Brasil.
Subdividido em duas partes, a primeira ocupa-se das relações entre a identidade e a política do reco-
nhecimento em Taylor, enquanto a segunda procura reconstituir desde a crítica de Honneth ao
déficit sociológico da primeira geração da teoria crítica, passando por Foucault chegando à concei-
tualização da gramática moral do reconhecimento. Com isso, esperou-se produzir uma reflexão sobre
os fundamentos da inclusão social, particularmente, no que se refere ao âmbito escolar e às políticas
educacionais. Concluiu-se que, embora haja diferenças de abordagens entre esses filósofos, por um
lado, existe um horizonte comum de valorização da intersubjetividade à formação do sujeito, garan-
tindo uma normatividade do reconhecimento como expectativa de respeito próprio e, por outro, a
ausência de reconhecimento ou seu falseamento produzirão uma base motivacional, justamente, pela
privação e degradação que promovem, para engendrar novas lutas por reconhecimento.
Palavras-chave: educação; Filosofia da Educação; teoria do reconhecimento; inclusão; diferenças.
Recebido em: 20/05/2020 Aprovado em: 05/03/2022
https://doi.org/10.5335/rep.v29i1.11063
ISSN on-line: 2238-0302
*
Doutor em educação pela UNESP de Marília, SP. Atualmente trabalha como professor da rede pública de ensino do estado
de São Paulo. E-mail: jradavisao@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-8698-6082.
**
Professor Livre-Docente do Departamento de Administração Escolar da Faculdade de Filosofia e Ciências de Marília, Unesp-
Marília. E-mail: pedropagni@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7505-4896.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Jonas Rangel de Almeida, Pedro Ângelo Pagni
150
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 149-176, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Abstract
The objective of this article is to analyze the philosophical presuppositions of normative character,
indexed to the modern theory of the present recognition in Charles Taylor thoughts and Axel
Honneth. This reflection is guided starting from the field of the philosophy of education in Brazil
which if you can observe that the entrance of the theory of the recognition felt, for the most part,
through the circles of reading of the critical theory and of the hermeneutics. Subdivided in two parts,
the first is in charge of the relationships between the identity and the politics of the recognition in
Taylor, while, second tries to reconstitute from the critic of Honneth to the sociological deficit of
the first generation of the critical theory, going by Foucault arriving to the conceitualização of the
moral grammar of the recognition. With that, it was expected to produce a reflection on the
foundations of social inclusion, particularly, in what if you mean to the school extent and the
education politics. Stand out that weigh the differences of approaches among the authors in what,
first, a horizon common of valorization exists from the intersubjectivity to the subject's formation
that guarantees a normatividade of the recognition as expectation of own respect, second, in the
limit, the false or the recognition absence they will produce a base motivacional, exactly, for the
privation and degradation that promote, to engender new fights for recognition.
Keywords: education; Philosophy of Education; theory of recognition; inclusion; differences.
Resumen
El objetivo de este artículo es analizar las presuposiciones filosóficas de carácter normativo, indexadas
a la teoría moderna del reconocimiento presente en los pensamientos de Charles Taylor y Axel
Honneth. Esta reflexión se guía por la entrada acentuada de la teoría del reconocimiento, a través de
círculos de lectura de teoría crítica y hermenéutica, en el campo de la filosofía de la educación en
Brasil. Subdividido en dos partes, el primero trata de la relación entre la identidad y la política de
reconocimiento en Taylor, mientras que el segundo trata de reconstruir desde la crítica de Honneth
hasta el déficit sociológico de la primera generación de teoría crítica, pasando por Foucault para
conceptualizar el gramática moral del reconocimiento. Con esto, se esperaba producir una reflexión
sobre los fundamentos de la inclusión social, particularmente con respecto al ambiente escolar y las
políticas educativas. Se concluyó que, aunque existen diferencias en los enfoques entre estos filósofos,
por un lado, hay un horizonte común de valorar la intersubjetividad en la formación del sujeto,
asegurando una normatividad de reconocimiento como expectativa de autoestima y, por otro lado,
la ausencia de reconocimiento o su distorsión producirá una base motivadora, precisamente debido
a la privación y degradación que promueven, para generar nuevas luchas por el reconocimiento.
Palabras clave: educación; Filosofía de la Educación; teoría del reconocimiento; inclusión; diferen-
cias.
Introdução
De acordo com Safatle (2013; 2015b) a recuperação da categoria do reconheci-
mento no século XX ocorreu em dois momentos fundamentais. O primeiro deve-se às
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Política de identidade e de reconhecimento em Taylor e Honneth
151
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 149-176, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
lições da filosofia de Hegel por Alexandre Kojève na década de 1930 que marcou a
geração de pensadores como Lacan, Bataille, Merleau-Ponty e Hyppolite; o segundo
surge entre o debate liberal-comunitário e os membros da terceira geração da Escola de
Frankfurt. A seguir nos concentramos em tratar desse segundo momento. Essa escolha
deve-se ao fato de que a grande maioria das reflexões do campo da Filosofia da Educa-
ção possui o compromisso teórico nessa chave.
Na Filosofia da Educação, essa ideia de que os indivíduos e os grupos buscam,
sobretudo, por reconhecimento se articula com as correntes que têm afinidade com a
teoria crítica e com a hermenêutica, justamente pela importância da dialogicidade, da
comunicação e de uma experiência que pretende conduzir o sujeito à autonomia. A
ideia de que o sujeito se forma estritamente ao passo que se reconhece a si mesmo nos
outros ocupa um lugar importante nas investigações atuais. No campo da Filosofia da
Educação, pode-se localizar a entrada da teoria do reconhecimento no alvorecer dos
anos 2000 (FLICKINGER, 2000). Em sua maioria, esses estudos ora se concentram
sobre a interpretação hegeliana da dialética do senhor e do escravo, que trata da origem
da consciência de si (FLICKINGER 2004, 2011a, 2011b; TREVISAN, 2011), ora
provém, principalmente, de matrizes da teoria crítica da sociedade presentes no pensa-
mento de Habermas e Honneth; da hermenêutica filosófica de Gadamer; e de Taylor
(CENCI; DALBOSCO; MÜHL, 2013). Também, há estudos sobre a filosofia social
de Rousseau (DALBOSCO 2011; 2014). Pode-se dizer que tais visões têm um com-
promisso fortíssimo com o estabelecimento de normas sociais capazes de regular a vida
social, ou, pretendem estabelecer a reconstrução de um tipo de conhecimento emanci-
patório aqueles capazes de salvar o sujeito. Nessas questões ressoam os estudos que se
debruçam sobre a formação do sujeito, especialmente depois do crescimento e fortale-
cimento de temáticas voltadas à ética, alteridade, diferenças e diversidade cultural.
Desse modo, o reconhecimento foi elevado a uma categoria fundamental para a forma-
ção humana.
Autonomia e reconhecimento, segundo Flickinger (2011a) são categorias chaves
no ideário de formação moderna, sendo uma responsável por sedimentar a autodeter-
minação e a outra a solidariedade. Oriundas do arcabouço iluminista esses conceitos
ressoam as vozes de Kant e Hegel, do primeiro desprende-se a ideia do ato corajoso de
“ousar saber”, do “fazer uso da própria razão”; e do segundo, a famosa fórmula da
“consciência-de-si” como algo reconhecido. O sujeito legislador de si mesmo é aquele
que chegou a maturidade e reconhece que sua existência só adquire significado conjun-
tamente com a dos outros. A formação iluminista arregimenta uma arte de governo
que repousa sobre o consequente domínio racional sobre as paixões infantis, pois é a
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Jonas Rangel de Almeida, Pedro Ângelo Pagni
152
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 149-176, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
constituição de uma sociedade adulta. Implica, em termos foucaultianos, adentrar a
ordem do discurso, assumir um papel social e representar o drama da cidadania.
Doravante, a seguir pretendemos analisar as pressuposições filosóficas de caráter
normativo, indexadas à moderna teoria do reconhecimento nos pensamentos de Taylor
e Honneth. Cremos que guardadas as devidas distinções que essa via projeta sua teoria
do reconhecimento com base na ideia de que nos reconhecemos como sujeitos dotados
de identidade, moralidade e dignidade conforme vivenciamos a família, o mercado e
nossa própria interioridade de forma confiante, respeitosa e estimada. Quando isso não
ocorre somos violentados, humilhados e desprezados. E quando isso ocorre temos o
impulso quase que natural por buscar formas de cuidado, respeito e estima. Essa se-
mântica de que fala Honneth (2003) constitui um dispositivo no sentido do jovem
Hegel que quando acionada leva-nos a luta por reconhecimento.
Essas reflexões serão acompanhadas pelo campo da filosofia da educação, parti-
cularmente, os estudos dedicados à formação do sujeito moderno. Destarte, será
necessário seguir de perto os argumentos apresentados pelos autores. Com isso, espera-
se sumarizar uma primeira entrada em direção crítica filosófica dos dispositivos norma-
tivos no que se refere ao âmbito escolar e as políticas educacionais. Concomitantemente
pretendemos mostrar o compromisso dessas perspectivas com a criação de normas ca-
pazes de gerir a vida social. Chama-se de matriz, ou, de fontes normativas tais teorias
que repousam na explicitação de arranjos sociais que são orientados para encontrar
assentimento entre os indivíduos que compõem uma determinada sociedade.
Identidades e políticas de reconhecimento
Considerado o proponente contemporâneo da teoria do reconhecimento e do
liberal-comunitarismo, o filósofo quebequense Charles Taylor tem contribuído há al-
gumas décadas para pensar o destino das políticas de identidade, os conflitos culturais
e religiosos do cenário atual. Para Taylor (1996), as atividades políticas devem levar em
consideração a contraposição e rivalidade cultural existente que marcam determinado
país, ou grupo. De acordo com esse autor, a democracia introduziu a plataforma polí-
tica multicultural que doravante deve ser centrada nas reivindicações de
reconhecimento igualitário da identidade de grupos considerados minoritários diante
daqueles que são maiorias culturais, políticas e econômicas.
A noção de reconhecimento como um movimento que põe em jogo complexos
mecanismos atuantes na produção de um sujeito que, por sua vez, só pode alcançar
consciência de si mesmo na sua dependência constitutiva com os outros. No entanto,
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Política de identidade e de reconhecimento em Taylor e Honneth
153
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 149-176, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
nem sempre esse processo resulta em aceitação da diferença do outro, para Taylor
(1998) existe também, algo como um falso-reconhecimento, a imposição de uma ima-
gem depreciativa e até a exclusão do diverso do espaço moral.
Na obra As fontes do Self, seguindo a tradição filosófica interpretativa, Taylor
(2005), propõe uma genealogia da interioridade, autonomia e individualidade mo-
derna. Argumenta o autor que o longo desenvolvimento da consciência moderna dos
homens nos levou à ideia de falar sobre direitos humanos universais, naturais, incluindo
o respeito pela vida e integridade humana à noção de autonomia. Nesse nível foi preciso
uma lenta construção da ideia de Self
1
para concebermos as pessoas como colaborado-
res ativos no estabelecimento e garantia do respeito que lhes é devido. Isso exprime
uma das características centrais de nossa perspectiva moral moderna. Essa mudança fez-
se na forma de uma alteração de conteúdo, da concepção do que é respeitar alguém e
do que é ser alguém.
Quando isso não ocorre, quando não guardamos aquele sentimento da existência
que nos impele a seguir nossa consciência, então deixamos de lado a conciliação moral
conosco mesmo, perdemos a capacidade de ouvir essa voz interior e assumimos uma
postura instrumental.
A autenticidade, o respeito e a autonomia tornam-se agora central para estabele-
cermos nossa própria identidade. Para Taylor (2005), o respeito à personalidade
envolve como elemento fundamental o zelo pela autonomia moral da pessoa. Com o
desenvolvimento da noção pós-romântica de diferença individual, isso se amplia até a
exigência de darmos às pessoas a liberdade de desenvolver sua personalidade à sua pró-
pria maneira. Esse processo culminou no desenvolvimento cultural de relações com
espaço no qual as possibilidades de cada um poderiam florescer, justamente pela crença
no seu potencial liberador do desenvolvimento da autonomia individual. Num movi-
mento amplo da cultura, vemos surgir novas ideias e entendimentos do que é bem
viver, como, por exemplo, no século XIX, o da família amorosa e íntima.
De acordo com Taylor (2005, p. 396), em uma cultura individualista são
valorizados três sentidos para construção da identidade: primeiro, valoriza a autonomia;
segundo, atribui um papel importante à auto-exploração, em particular dos
sentimentos; terceiro, ela possui uma visão de que o bem viver implica envolvimento
pessoal. Essa cultura atribui importância ao trabalho produtivo e também à família,
que é idealmente uma comunidade fechada baseada no amor, em que os membros
encontram uma parte significativa de sua realização humana.
Segundo Taylor (2005, p. 70) para entendermos minimamente nossa vida e para
termos uma identidade faz-se preciso de uma orientação para o bem. Isso significa em
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Jonas Rangel de Almeida, Pedro Ângelo Pagni
154
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 149-176, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
algum sentido operar a partir de padrões fixos, discriminando aqueles valores que são
incomparavelmente superiores daqueles considerados qualitativamente inferiores as
chamadas avaliações fortes. Esse sentido do bem tem que ser incorporado como uma
história em andamento. Isso supõe afirmar uma condição básica do processo de encon-
trar sentido em nós mesmos, de compreender nossa vida numa narrativa.
No texto Identidad y reconocimiento, Taylor (1996) oferece-nos ainda maiores
subsídios para discutir a complexa trama que envolve as políticas de identidade. De
acordo com Taylor (1996), a identidade costuma ser evocada, tanto no plano indivi-
dual (minha identidade pessoal), quanto no plano do grupo (a identidade quebequense,
canadense, brasileira). Sem identidade nos sentimos em crise, perdemos as referências
e nada em absoluto possui importância alguma. Continua o autor, “[...] minha identi-
dade define de alguma maneira meu mundo moral” (TAYLOR, 1996, p. 10), ela é o
que eu sou.
Com efeito, o caso é diferente se pensarmos a identidade dos povos pré-moder-
nos porque dependiam antes da estrutura hierárquica entre castas. O horizonte moral
não era o indivíduo, mas, seu grupo, sua posição social as préférences de Rousseau. Os
horizontes no Antigo Regime estavam estabelecidos e inteiramente dados. Contra essa
sociedade fortemente hierarquizada, baseada no modelo da honra e nas relações de fa-
mílias surge a noção moderna de dignidade. Isso abriu o caminho para que a identidade
moderna fosse pensada como uma noção assumida pelo indivíduo.
Nesse registro a marca da identidade moderna repousa sobre o igualitarismo.
Todavia, para que a desenvolvêssemos em sua plenitude, segundo Taylor, foi preciso
algo mais que a revolução igualitarista, necessitou também, de uma revolução expres-
siva que reconhece que em cada indivíduo, em seu próprio modo de ser humano, que
existe uma originalidade que não pode ser imposta desde o exterior. Isso outorga um
novo sentido à identidade moderna e, ao mesmo tempo, um ideal de autenticidade e
fidelidade a si mesmo. (TAYLOR, 1996, p. 12). Graças a esse novo expressivismo o
indivíduo assume um papel em sua autodefinição. Isso quer dizer que, por exemplo, se
participo por direito dessa invenção, todas as soluções propostas devem antes me satis-
fazer do que me obriga a aceitá-las. Enquanto não reconheço certas características
próprias a minha originalidade, não posso aceitá-las como minha. A identidade deve
ser assumida. Desse modo, para o autor, a época da revolução expressiva vê o nasci-
mento de outro discurso, o do reconhecimento.
O reconhecimento do outro é a condição para realizar a identidade. Escreve Tay-
lor (1996), atribui-se a Hegel com frequência a origem do discurso de reconhecimento,
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Política de identidade e de reconhecimento em Taylor e Honneth
155
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 149-176, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
no entanto, o fato é que Fichte o precedeu, e, antes dele, o filósofo Rousseau. Come-
çou-se a falar sobre reconhecimento no momento em que se colocaram as bases
expressivas da concepção de identidade moderna. Este fato dá testemunho da radical
falta de autossuficiência do ser humano nesse terreno. Não podemos nos definir a nós
mesmos, temos a necessidade de construir nosso espaço moral com vista a ser reconhe-
cido pelos outros (TAYLOR, 1996). A partir do momento em que se aspira a definir-
se, reconhecer-se, sobretudo de forma original se abre uma falha (ou, talvez uma bre-
cha) possível entre o que pretendemos e o que os demais estão dispostos a nos outorgar
(entregar, dar, oferecer). É o espaço do reconhecimento exigido, porém, suscetível de
ser rejeitado.
Segundo Taylor (1998), para compreender a relação entre identidade e reconhe-
cimento, é preciso observar o aspecto distintivo da condição humana: o papel da
linguagem na constituição da intersubjetividade. Nessa visão, só nos tornamos agentes
verdadeiramente humanos, configuramos nosso espaço moral, compreendemos bem
nossa identidade e reconhecemos os outros à proporção que adquirimos linguagens
ricas em significado e somos introduzidos no mundo das representações. A subjetivi-
dade repousa sob caráter essencialmente dialógico. Por essa dimensão Taylor entende:
[...] defino linguagem no sentido lato, abarcando não só as palavras que proferimos, mas também
outros modos de expressão, através dos quais nos definimos, incluindo ‘linguagens’ da arte, do
gesto, do amor, e outras do género. As pessoas não aprendem sozinhas as linguagens necessárias
à autodefinição. Pelo contrário, elas são-nos dadas a conhecer através da interacção com aqueles
que são importantes para nós os ‘outros-importantes’, como George Herbert Mead lhes cha-
mou. A formação da mente humana é, neste sentido, não monológica, não algo que se consiga
sozinho, mas dialógica (TAYLOR, 1998, p. 53).
Apoiando-se na contribuição de autores como Mead, Gadamer e Bakhtin, Taylor
(1998) aposta em uma noção dialógica da identidade, argumentando que a formação
humana não pode ser entendida como uma entidade homogênea e monológica. A con-
tribuição dos outros-importantes que começa quando nascemos no mundo prolonga-
se durante toda nossa vida. Nossos pais ou tutores com os quais aprendemos a negociar
nossa identidade nos acompanham mesmo depois de nos terem deixado. Por isso, a
identidade não é algo que nos dedicamos sozinhos, mas um ideal, por vezes, comparti-
lhado, dialogado e negociado.
A identidade constitui horizonte moral, sendo, simultaneamente, uma forma as-
sumida voluntariamente pelo indivíduo e um objeto de busca por reconhecimento.
Para Taylor (1996), o ideal de reconhecimento como objeto da identidade pertence,
ao mesmo tempo, ao indivíduo e à coletividade, pois ambos são inseparáveis, só temos
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Jonas Rangel de Almeida, Pedro Ângelo Pagni
156
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 149-176, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
uma identidade histórica, situada dentro de uma cultura. As identidades coletivas guar-
dam a dimensão do Volk, do povo como entidade formada por um ethos. Os Volker,
assim como os indivíduos, são chamados para reconhecer-se mutuamente em suas di-
ferenças irredutíveis, porém complementares, formando juntos uma coletividade
inteira. A identidade coletiva se converte em uma espécie de ficção permeada pelas
tradições, linhagens e convívio comum (TAYLOR, 1996). Portanto, existe um jogo de
reciprocidade entre a identidade nos dois planos. Pertencer ao grupo proporciona de-
talhes importantes da identidade dos indivíduos. Ao mesmo tempo, quando há
indivíduos suficientes que se identificam de modo sólido com o grupo, este adquire
uma identidade coletiva que ressalta uma ação comum na história.
Para Taylor (1996) o funcionamento dos modernos Estados-Nações, assentados
na ideia de soberania popular, de consenso e do governo da maioria pode conter alguns
equívocos que conduzem ao seu contrário. Isso ocorre quando um subgrupo, ou, uma
minoria não é escutado pelo conjunto da sociedade política, não tem voz, participação
nas deliberações da nação. O drama do reconhecimento ocorre tanto no plano indivi-
dual quanto no coletivo, pois assim como os indivíduos carecem de reconhecimento,
certos grupos minoritários também. E não ser reconhecido é um obstáculo para cons-
trução autêntica da identidade, visto que impede o pertencimento e fidelidade a si
mesmo dos indivíduos e grupos. A lógica desenvolvida por Taylor (1998) aplica-se
eficazmente quando se tem em mente a resolução do conflito em Quebeque, Canadá,
especificamente a situação dos falantes de língua francesa de maioria católica.
No entanto, não se pode deixar de notar certa admissão por parte de Taylor de
um ideal transcendente de comunidade. A abordagem de Taylor (1996) sem dúvida
lança luz sobre as lutas por direitos sociais e culturais, porém, o tipo de complementa-
ridade que supõe é perigoso na medida em que admite a priori a comunidade como
fonte da identidade.
Por necessidade ou exigência, aspectos da política atual estimulam as políticas
por reconhecimento. Necessidade à medida que o reconhecimento é vital para o de-
senvolvimento humano; e, exigência, ao passo que, tanto o ideal de autenticidade
individual, quanto, a vontade de certos grupos de escaparem às opressões sofridas his-
toricamente ou de preservar as tradições culturais. É justamente para evitar o
esmagamento das minorias, ou, a tendência ao particularismo que Taylor (1998) nos
mostra em A política do reconhecimento, um dos textos mais brilhantes já escritos sobre
a questão do multiculturalismo. O não reconhecimento marca suas vítimas, subju-
gando-as ao sentimento de ódio contra elas mesmas. Esses aspectos podem ser
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Política de identidade e de reconhecimento em Taylor e Honneth
157
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 149-176, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
observados nas lutas feministas, que denunciam como sociedades patriarcais e que nu-
trem uma imagem de inferioridade para a mulher; também, nas relações raciais, na qual
a sociedade branca projeta a imagem de inferioridade sobre a raça negra que acaba
sendo adotada pelos indivíduos vulneráveis; e, na questão indígena e dos povos coloni-
zados em geral à medida que se tem a projeção de uma cultura superior sobre outra
considerada inferior e primitiva. Portanto, a política de reconhecimento envolve uma
superação ao nível da auto-imagem danificada e degradada por outrem.
A subjugação das minorias, diz Taylor (1998), faz-nos lembrar a dialética hege-
liana do senhor e do escravo. Lutar para ser reconhecido é envolver-se em um embate
pelo direito de determinação da própria identidade. Como mencionado a pouco, a
ideia de dignidade universal e de igualdade são valores fundamentais na era moderna.
O reconhecimento então se passa em dois níveis: primeiro, na esfera íntima, em diálo-
gos e conflitos incessantes com outros-importantes; e, na esfera pública, com a
exigência de igualdade. Desse modo, as lutas por reconhecimento envolvem, tanto,
políticas de igual dignidade ideia de que todos os seres humanos são dignos de res-
peito bem como, políticas de diferença direito de formar e definir sua própria
identidade.
Em conformidade com esse caráter, a exigência por reconhecimento passa assu-
mir um papel central no projeto das sociedades atuais que estão se tornando cada vez
mais multiculturais e permeáveis. Escreve o autor:
[o] principal locus desse debate é o mundo da educação (no sentido amplo). Um foco são os
departamentos de humanidades das universidades, em que se fazem exigências para que se alte-
rem, se ampliem ou se excluam os cânones de autores acreditados com base na idéia de que os
cânones atualmente favorecidos consistem quase inteiramente em "brancos machos mortos".
Deve-se dar um lugar maior às mulheres e às pessoas de raças e culturas não-europeias. Um se-
gundo foco são as escolas secundárias, em que se faz, por exemplo, a tentativa de desenvolver
currículos afrocêntricos para alunos em escolas preponderantemente negras (TAYLOR, 1998, p.
86).
E completa o raciocínio o autor:
[a] razão dessas mudanças propostas não é a de que, ou não é principalmente a de que, todos os
alunos possam estar perdendo alguma coisa importante com a exclusão de um certo gênero ou
de certas raças ou culturas, mas a de que as mulheres e os alunos dos grupos excluídos estão
recebendo, diretamente ou por omissão, um quadro desfavorável de si mesmos, como se toda a
criatividade e todo o valor fossem inerentes aos homens de origem europeia. Aumentar e modi-
ficar o currículo é essencial não tanto em nome de uma cultura mais ampla para todos quanto
para dar o devido reconhecimento aos até agora excluídos. A premissa de base dessas exigências
é a de que o reconhecimento forja a identidade, em particular na aplicação fanonista: os grupos
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Jonas Rangel de Almeida, Pedro Ângelo Pagni
158
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 149-176, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
dominantes tendem a consolidar sua hegemonia ao inculcar no subjugado uma imagem de infe-
rioridade. A luta pela liberdade e pela igualdade tem, portanto, de passar por uma revisão dessas
imagens. Os currículos multiculturais pretendem ajudar nesse processo de revisão (TAYLOR,
1998, p. 86).
Apesar de Hegel ser considerado o grande proponente da doutrina do reconhe-
cimento na modernidade, quando se trata dessas lutas multiculturais mostradas por
Taylor (1998), os intelectuais favoráveis a política da diferença denunciam esse tipo de
racionalidade totalizante por relegar a África a um continente sem História. Entre os
principais autores dessa estirpe está Franz Fanon, filósofo e psiquiatra argelino que de-
fendia que a maior arma que os colonizadores usam contra os povos locais era a
imposição de uma imagem distorcida de si mesmo.
Nessa altura do seu argumento, Taylor (1998) identifica o paradoxo que os dis-
cursos de reconhecimento podem levar. Primeiro, as políticas de igual dignidade
exigem que as pessoas sejam tratadas sem distinção; por sua vez, as políticas que obje-
tivam o respeito às diferenças necessita que se encoraje a particularidade e a
singularidade de determinado grupo, ou, indivíduo. Ou seja, o problema reside nessa
dinâmica entre igualdade e diferença, pois, certas estratégias ao serem implementadas,
por exemplo, ao nível da redefinição de políticas socioeconômicas, as políticas de ação
afirmativas, geram conflitos na sociedade que passa a ver essas medidas como favoreci-
mento para determinado grupo.
[...] a redefinição socioeconômica justificou a elaboração de programas sociais que deram azo a
grandes polémicas. Isto porque, para aqueles que não concordam com esta definição alterada de
estatuto igual, os diversos programas de compensação social e as oportunidades especiais conce-
didas a determinadas populações eram considerados como uma forma de favoritismo não
merecido (TAYLOR, 1998, p. 59)
Para criar uma ponte com nossa realidade, no Brasil, esse paradoxo ressoa quando
as acusações de favoritismo e de parasitismo formam o corolário das disputas pelo sen-
tido das políticas públicas. Parcelas das classes médias que nutrem preconceito histórico
contra segmentos marginalizados e populações do norte acusam os governos democrá-
ticos de manter domínio cabresto sobre as classes subalternas através de programas
sociais. Talvez, a sedimentação de um imenso depósito formado por sentimentos de
repugnância em relação à ralé brasileira seja a alma de uma parte dos revoltados de
junho 2013 que após isso se ergueram em um engajamento reativo a tudo o que possa
ser chamado justiça social.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Política de identidade e de reconhecimento em Taylor e Honneth
159
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 149-176, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Para Taylor (1998), as formulações das políticas de reconhecimento, ao nível da
ação cultural podem gerar uma série de complicações danosas se ao invés de garantir
respeito criarem seu oposto: a condescendência. Apesar disso, a política de diferença
tem espaço na moderna cultura de revisão jurídica desde que coexistem no escopo das
culturas que formam o liberalismo. O fato é que as sociedades estão se tornando cada
vez mais multiculturais. É necessário encontrar um meio-termo entre uma exigência
inautêntica e homogeneizante de reconhecimento e o auto-isolamento em padrões eu-
rocêntricos do outro. A existência de inúmeras culturas nos força a viver juntos e em
escala mundial. Portanto, a crítica é endereçada às diversas situações de inferiorização
sociais geradas em contextos nos quais grupos culturais dominantes impõem seus mo-
dos de ver o mundo, seus modos de vida sobre minorias culturais coesas.
Por fim, Taylor (1998) encerra seu ensaio criticando aquilo que designa como
“teorias subjetivistas” pretensamente inspiradas em Foucault e Derrida que reduzem
todos os “juízos de valor” à questão de estruturas de poder. A crítica que Taylor (1998)
faz em relação à política de diferença não é nova, pois, em As fontes do Self, o autor já
direcionava críticas similares ao que chamava de naturalismo moral. Taylor (2014) ar-
gumenta muitas vezes em defesa do chamado liberal comunitarismo. Porém, há uma
denúncia em particular, aliás, muito mais sutil que Taylor (1998) insinua quando re-
traça as origens da política de dignidade em Rousseau. Na visão de Taylor (1998, p.
65), se de uma parte, Rousseau pode ser considerado o precursor do discurso de reco-
nhecimento porque produziu “[...] as primeiras reflexões sobre a importância do
respeito igual”; de outra, o filósofo genebrino em virtude de sua defesa radical da igual-
dade suscitou, desde terror jacobino estendendo-se em direção outros movimentos
políticos, o desprezo pelo orgulho e pela diferenciação dos cidadãos. De modo sub-
reptício Taylor (1998) sugere que essa homogeneização continua a ser um gênero ten-
tador no pensamento político, podendo, inclusive, converter a aspiração das políticas
de diferença no seu contrário. Esse apontamento me parece digno de atenção, já que,
Taylor procura harmonizar os conflitos que surgem dessa tensão horizontal da política
de reconhecimento apelando à comunidade, a cultura liberal, como fonte moral capaz
de mobilizar uma força vertical de diferenciação que permite com que façamos certos
juízos na ordem dos valores morais. Assim, a teoria do reconhecimento de Taylor apóia-
se na presumida natureza dialógica do self, identificando, tanto, a comunidade, como,
o ideal de autenticidade como instâncias de mediação intersubjetiva que sustentam a
ideia de complementaridade das diferenças. Contudo, há uma verdadeira aporia no que
diz respeito às possibilidades de diferenciação ética, pois essas não podem se reduzir a
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Jonas Rangel de Almeida, Pedro Ângelo Pagni
160
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 149-176, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
acordos, diálogos, comunicação, já que se trata propriamente de atitudes que exigem
uma tensão vertical.
A moral do reconhecimento de Honneth
Ressoante com proposta comunitarista de Taylor, o sociólogo alemão Axel
Honneth, um herdeiro das bases da teoria crítica da sociedade, possui uma obra em
construção, porém, bem consolidada, gozando de boa reputação entre os filósofos e
sociólogos. Dentre seus escritos de maior destaque pode-se sublinhar a importância de
Kampf um Anerkennung - Luta por reconhecimento, publicado originalmente em alemão
no ano de 1992. Além desse livro, destacam-se outras obras como Kritik der Macht -
Critique of power, publicado originalmente em 1984, como resultado de sua tese de
doutoramento, bem como, seus recentes trabalhos, o Das Recht der Freiheit - O Direito
da liberdade, publicado em 2011, além das conferências publicadas sob o título
Verdinglichung ou Reificação.
Consoante com a reconstrução teórica realizada por Teixeira (2016), entendo a
obra de Honneth como uma expressão própria aos embates vividos pela tradição de-
mocrática da esquerda alemã. Honneth é um defensor das potencialidades
emancipatórias das instituições e um crítico do capitalismo tardio. Em seus últimos
textos, notoriamente em O direito à liberdade, o autor argumenta com veemência con-
tra a ideia de uma liberdade negativa preconizada pelo mercado, opondo o conceito de
liberdade social oriunda da intersubjetividade própria à gramática do reconhecimento
(HONNETH, 2015). No entanto, não constitui pretensão desta pesquisa esgotar as
possibilidades do pensamento honnethiano, um empreendimento vastíssimo e que se
encontra em constante processo de reconstrução. Ao invés disso, o intento que nos
move baseia-se na operação de uma livre interpretação, uma leitura receptiva, aberta,
experimental e imaginária com vistas à criação de uma ficção capaz de responder à ânsia
das práticas de liberdade e da constituição ética do sujeito. Digo isso, pois, desde a
publicação no início da década de 1990 o conceito de reconhecimento passou por de-
zenas de reformulações, adições teoréticas e complementações necessárias realizadas
pelo próprio autor e materializadas com a publicação de centenas de páginas escritas.
Com frequência Honneth passa a fio suas teorias, procura estender seu escopo ao âm-
bito de questões da antropologia filosófica, da justiça (HONNETH, 2007; 2009a;
2015) e do trabalho (HONNETH, 2008). Perante isso, este trabalho circunscreve-se
ao âmbito da moral do reconhecimento’.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Política de identidade e de reconhecimento em Taylor e Honneth
161
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 149-176, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Para acessar tal ética esta exposição divide-se em dois momentos fundamentais:
o primeiro tem o objetivo de reportar como ocorreu a necessidade de revisão da teoria
crítica em Crítica ao poder em direção a reconstrução das semânticas do respeito base-
ado nos padrões de reconhecimento em Luta por reconhecimento; e, o segundo
momento decorre da revisão desses padrões de reconhecimento no qual Honneth ex-
pressa à necessidade de reconstrução da liberdade social partir do diagnóstico das
patologias da razão. Com isso, pode-se passar a um terceiro momento e penetrar o
núcleo da moral de reconhecimento.
Em Critique of power, Honneth (1991), teve como objetivo reavaliar a tradição
da teoria crítica de modo a reconstruir todo o programa da Escola de Frankfurt, desde
a primeira geração com Adorno e Horkheimer até seus desenvolvimentos recentes.
Honneth baseia-se principalmente, pela tinta de Max Horkheimer, particularmente,
explorando os textos “Teoria tradicional e teoria crítica” (1937) e “A situação atual da
Filosofia social e a tarefa de um Instituto de Investigação Social”. A principal crítica de
Honneth à Horkheimer é seu modelo de “dominação da natureza” que não permite
uma crítica ordinária do cotidiano. Além disso, Honneth também avalia as contribui-
ções de Foucault à teoria crítica, dizendo que este ao lado de Habermas constitui dois
desenvolvimentos rivais dentro do âmbito de questões que foram abertos pela teoria
crítica.
A grande contribuição de Critique of power deve-se à elaboração da noção de
déficit sociológico sobre o qual repousaria a primeira geração da escola de Frankfurt. Isto
é, para Honneth (1991) havia algo de incongruente no programa da teoria crítica, ori-
ginalmente interdisciplinar e que tinha como objetivo a fundamentação de uma ciência
social que explicasse a subjetividade dos homens no capitalismo. Tal programa, deveria
necessariamente crivar as três dimensões da existência humana, a saber: uma crítica à
economia política (Economia), uma crítica a constituição da vida psíquica (Psicologia),
e uma crítica às formas culturais (Cultura). Contudo, o projeto ficou inacabado, nunca
se concretizou inteiramente, particularmente, em relação aos aspectos atinentes à ação
cultural. Apesar disso, inúmeros colaboradores menores desenvolveram suas pesquisas
sobre os mais diversos aspectos da existência humana.
Honneth (1991) destaca o diálogo profícuo entre psicanálise e marxismo. Inici-
almente o marco conceitual psicológico teve como finalidade analisar a integração
social do sujeito ao modo de produção capitalista, contraditório em si mesmo. Tal eixo
psicológico estava organizado e disposto de tal forma que fosse capaz de permitir con-
templar a vida impulsiva dos seres humanos como um acontecimento pulsional
fundamentalmente plástico, suscetível de ser transformado, modelado sob exigências
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Jonas Rangel de Almeida, Pedro Ângelo Pagni
162
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 149-176, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
práticas sociais e, continuamente, dispostos a formações psíquicas substitutivas. Sob
esse ponto de vista, abria-se uma via de compreensão acerca do porq as experiências
de dependência e submissão social são, por assim dizer, reprimidas e bloqueadas por
uma dinâmica pulsional que falseia a consciência, antes inclusive que alcance um pos-
sível objeto de reconhecimento. A abertura cognitiva à realidade social que o Eu trataria
de reparar se observasse alguma injustiça, acabava sendo frustrada por um processo
dinâmico pulsional de renegação e repressão que substitui a impotência percebida com
uma experiência imaginária de poder pessoal ou coletivo. A projeção e a identificação
traduzem com perfeição os meios psicológicos que fazem com que esta inversão fantas-
mática, ligada a uma situação real de dominação, seja de fato possível.
Após esse diagnóstico inicial, Honneth (1991) concentra seus esforços em re-
constituir, atentamente, as novidades conceituais desenvolvidas por Adorno e
Horkheimer, na Dialética do Esclarecimento, publicada originalmente em 1942. Um
escrito notório, por descortinar, entre outras coisas, os processos barbarizantes no inte-
rior da racionalidade do iluminismo e as dinâmicas de produção massiva da consciência
padronizada pela indústria cultural. Sob os efeitos da aliança entre psicanálise e mar-
xismo, a dialética do iluminismo demonstra como se assentam as operações históricas
de domínio da natureza externa e interna.
Na interpretação de Honneth (1991), a primeira geração acabou criando uma
filosofia reducionista da história que lhe impediu de desenvolver outra possível catego-
ria de ação que não fosse a do trabalho social. Na visão de Honneth (1991), essa
concepção de teoria crítica da sociedade estritamente vinculada tão somente à econo-
mia-política e à psicanálise assume o risco de perder de vista a ação cultural cotidiana
dos grupos sociais. A ideia originária do projeto de Horkheimer e a teoria social tardia
de Adorno marcam, dessa forma, de algum modo o começo e o final de uma época
clássica da Teoria Crítica que nunca pôde encontrar um acesso produtivo nas Ciências
Sociais, posto que, sob o pressuposto dominante de uma filosofia da história simplifi-
cadamente unilateral, não podia deixar espaço algum para uma possível análise da ação
social.
A armadilha conceitual que a ideia de “dominação da natureza” implicou um
dualismo estéril entre psicologia e economia atando a Escola de Frankfurt em todas as
fases do seu desenvolvimento. De acordo com Honneth (1991), esse problema não
pode ser superado do ponto de vista de uma análise imanente, mas partindo para um
novo marco teórico de orientação que prometa ser justo com a “peculiaridade do so-
cial”. Nesse sentido, Honneth acredita que entre as décadas de 1960 e 1980 autores
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Política de identidade e de reconhecimento em Taylor e Honneth
163
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 149-176, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
como Habermas e Foucault desenvolveram suas teorias para superar os impasses gera-
dos pelo modelo de dominação da natureza.
Segundo Honneth (1991), a teoria social de Foucault nasce a princípio no con-
texto de crítica estruturalista às ciências humanas assentado na filosofia do sujeito. A
princípio os objetivos da arqueologia de Foucault era decifrar as formas sociais do saber
como figuras textuais discursos que existiam independentemente do sujeito. Para
Honneth, a contribuição original do filósofo francês ocorreu somente à medida que
esse se tornou capaz de superar os paradoxos de tal programa. Com as investigações
genealógicas pode-se dizer que se abre um âmbito de fenômenos na esfera social, en-
tendido agora como uma rede de ações estratégicas. A nova rede de ações estratégicas
deu forma ao núcleo teórico da segunda fase do pensamento de Foucault, que se ocu-
pou de uma teoria do poder (CUNHA; HILÁRIO, 2012).
O conceito de poder se desenvolve partindo do fato da intersubjetividade prática
da luta social, sem poder explicar suficientemente os processos de estabilização das re-
lações de poder, e, as técnicas de poder norma, corpo, saber fazem o uso descuidado
de uma ideia de instituição de poder sem fazer referências aos processos relativos à sua
fundação social. Assim, conclui Honneth (1991), dizendo que ao utilizar o conceito de
luta como marco exclusivo de uma teoria social, Foucault não está isento em absoluto
de contradições. Qualquer estabilização social de uma posição de poder pressupõe uma
interrupção da luta sob a forma de um acordo normativamente motivado, ou, de um
compromisso de orientação final pragmática.
Essa mesma crítica que Honneth (1991) chama de déficit sociológico, também
recai sobre o autor da teoria da ação comunicativa, Jürgen Habermas. Em sua análise,
apesar dos seus esforços intelectuais bem sucedidos para fundamentar uma teoria da
ação intersubjetiva, Habermas oblitera as dimensões de conflito inerentes ao mundo
da vida. Tudo se passa na proposta de como se não houvesse dimensão conflituosa
inerente a reprodução do mundo da vida.
A revisão sociológica das teorias críticas do poder culmina com a necessidade de
explicitação de bases normativas para a ação cotidiana das lutas sociais. Portanto, o
diálogo honnethiano com as pesquisas do instituto de investigação social se manteve
contínuo, se estendeu e se modificou. Em seu estudo, Bressiani (2015) relata
minuciosamente como desse contato surge o diagnóstico das patologias sociais,
materializado em obras como Patologías de la razón (2009); e La sociedad del desprecio
(2011) entre outras.
Na obra Luta por reconhecimento, Honneth (2003) atualiza a intuição hegeliana
de luta por reconhecimento, procurando revelar uma gramática moral dos conflitos
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Jonas Rangel de Almeida, Pedro Ângelo Pagni
164
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 149-176, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
sociais da modernidade. Ressoando sua revisão crítica das teorias do poder, a questão
doravante premente é mostrar as bases motivacionais que impelem os indivíduos à luta.
A dimensão mais fundamental, a chave para compreender os embates da modernidade
é a conflitualidade intramundana. Para construir essa teoria o sociólogo alemão preci-
sou se lançar em um profundo diálogo com toda a tradição já constituída e revisar as
próprias bases da teoria crítica da sociedade, levando-o a reconstruir uma propositura
filosófica muito distinta de seus precursores. Desse modo, Honneth aproxima-se da
teoria da ação comunicativa do filósofo alemão Habermas e da teoria do reconheci-
mento de Taylor, mas incorpora a um só tempo as contribuições de Foucault e da
primeira geração da teoria crítica.
No prefácio de Luta por reconhecimento, originalmente publicado em 1992,
Honneth (2003), ao desenvolver os fundamentos de uma teoria social, não deixa de
mencionar que seus resultados de pesquisa vinculam-se à investigação de Critique of
power. Explicitamente, o autor diz
[...] quem procura integrar os avanços da teoria social representados pelos escritos históricos de
Michel Foucault se vê dependente do conceito de uma luta moralmente motivada, para o qual
os escritos hegelianos do período de Jena continuam a oferecer, com sua ideia de uma ampla
“luta por reconhecimento”, o maior potencial de inspiração (HONNETH, 2003, p.23).
Para suprir esse déficit, Honneth (2003) vai propor uma nova teoria do reconhe-
cimento que tem por base a ideia que os conflitos da modernidade são moralmente
motivados por uma gramática que é acionada pelas expectativas frustradas de reconhe-
cimento intersubjetivo. Por esse motivo o desrespeito está na base de toda teoria social
verdadeiramente emancipatória. Com efeito, Honneth (2003) busca em primeiro lugar
atualizar a teoria da intersubjetividade do jovem Hegel, por intermédio da semântica
coletiva presente na psicologia social de George Herbert Mead. Interações reguladas
normativamente, mediadas linguisticamente possibilitam o aprendizado, a socialização
e o desenvolvimento pessoal. Segundo Mead (1992), tornamo-nos pessoas ou persona-
lidades (self e selves) à medida que somos entrelaçados por interações simbólicas.
Lutar por reconhecimento para Honneth significa: engajar-se em um conflito
social, no qual estão em jogo as próprias expectativas de autorrealização dos indivíduos.
Como seres humanos, somos marcados por uma gramática moral, na qual a violação,
o desrespeito, a injustiça e a humilhação afligem nossas expectativas motivacionais de
constituição de uma identidade positiva. Inspirado em Hegel, o autor escreve:
[...] a formação do Eu prático está ligada à pressuposição do reconhecimento recíproco entre dois
sujeitos: só quando dois indivíduos se vêem confirmados em sua autonomia por seu respectivo
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Política de identidade e de reconhecimento em Taylor e Honneth
165
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 149-176, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
defrontante, eles podem chegar de maneira complementária a uma compreensão de si mesmos
como um Eu autonomamente agente e individuado (HONNETH, 2003, p. 119‐ 120).
Na presentificação histórica, Honneth parte da intuição originária do jovem
Hegel, primeiramente no Sistema de Eticidade para mostrar que Hegel vê na Grécia
“[...] os costumes e os usos comunicativamente exercidos no interior de uma coletivi-
dade como medium social no qual deve se efetuar a integração de liberdade geral e
individual [...]” (HONNETH, 2003, p.41). Desse ponto de vista, salienta o autor que
Hegel “[...] acaba dando um passo decisivo além de Platão e Aristóteles, ao incluir na
organização institucional da eticidade absoluta uma esfera que ele define provisoria-
mente como um sistema de propriedade e direito” (HONNETH, 2003, p. 41). Sob
esse registro, a intuição do jovem Hegel, sustentava que o movimento de reconheci-
mento refere-se “[...] aquele passo cognitivo que uma consciência já constituída
‘idealmente’ em totalidade efetua no momento em que ela se reconhece a si mesma em
outra totalidade, em uma outra consciência [...]” (HONNETH, 2003, p. 63).
Depois na fase da Realphilosophie, Hegel retoma a luta por reconhecimento como
categoria fundante à formação do sujeito. De acordo com Honneth, Hegel invoca a
doutrina do estado de natureza, primeiramente porque ela contém um modelo social
que reproduz de maneira correta a situação social que ele procurou introduzir, sistema-
ticamente, no campo da experiência individual como uma luta por reconhecimento.
Dessa maneira, Hegel na interpretação de Honneth, acerta o alvo de sua crítica
- a tradição do contrato social- e, apesar de valorizar a ideia de um conflito originário
hobbesiano, substitui a noção de contrato social pela intuição do reconhecimento.
Contudo, Honneth não deixa Hegel ileso em sua reconstrução, ao contrário, segundo
esse autor, Hegel, não consegue oferecer uma resposta satisfatória sobre quais devem
ser as qualidades especiais dessa experiência que conferem à luta uma força prático-
moral (HONNETH, 2003 p. 92). Da mesma forma, nem mesmo seus intérpretes,
como Alexandre Kovèje, que acreditavam que a antecipação da própria morte, ou, de
outrem devem levar ao reconhecimento das pretensões individuais, conseguem respon-
der satisfatoriamente a questão (2003, p. 93). Honneth crê que uma atualização
filosófica do reconhecimento intersubjetivo deva passar por uma reconstrução crítica
pós-metafísica.
Nesse ponto, inicia-se a segunda parte da obra, isto é, uma atualização sistemática
da estrutura de relações sociais de reconhecimento. Portanto, partindo dessa ideia ori-
ginal de Hegel, Honneth encontra na psicologia social de George Herbert Mead os
subsídios necessários que permitem traduzir a teoria hegeliana em uma linguagem pós-
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Jonas Rangel de Almeida, Pedro Ângelo Pagni
166
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 149-176, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
metafísica, preparando o caminho para uma nova teoria do reconhecimento mais pró-
xima das ciências humanas e de suas aplicações empíricas. Diz esse autor:
[c]om referências aos vários Mes, que se formam no processo de reação contínuo, Mead já dá a
conhecer a direção que devem tomar na sequência suas investigações acerca do desenvolvimento
humano da identidade humana. [...] Essa tese representa um primeiro passo para uma funda-
mentação naturalista da teoria do reconhecimento de Hegel, no sentido de que pode indicar o
mecanismo psíquico que torna o desenvolvimento da autoconsciência dependente da existência
de um parceiro de interação que reagisse, um indivíduo não estaria em condições de influir sobre
si mesmo com base em manifestações autopercepctíveis, de modo que aprendesse a entender aí
suas reações como produções da própria pessoa. [...] (HONNETH, 2003, p. 131).
Com isso, Honneth (2003) procura, graças aos meios construtivos de Mead, uma
inflexão materialista da teoria do reconhecimento do jovem Hegel. De acordo com
Honneth (2003, 158), os dois pensadores, Mead e Hegel, coincidem na tentativa de
localizar os diversos modos de reconhecimento nas esferas de reprodução social a
família, a sociedade civil e o Estado , distinguindo amor, solidariedade e direitos como
formas elementares das autorrelações fundamentais: confiança, respeito e estima. Desse
modo, a estrutura das relações sociais desvela-se em três formas fundamentais de reco-
nhecimento amor, solidariedade e direitos mas, também, em três autorrelações
correspondentes autoconfiança, autorrespeito e autoestima que afetam as três di-
mensões de formação da personalidade a natureza afetiva, a imputabilidade moral e
a dimensão das capacidades e propriedades bem como seus componentes ameaçados
a integridade física, social e a dignidade. No dizer de Honneth:
[...] as formas de reconhecimento do amor, do direito e da solidariedade formam dispositivos de
proteção intersubjetivos que asseguram as condições da liberdade externa e interna, das quais
depende o processo de uma articulação e de uma realização espontânea de metas individuais de
vida; além disso, visto que não representam absolutamente determinados conjuntos institucio-
nais, mas somente padrões comportamentais universais, elas se distinguem da totalidade concreta
de todas as formas particulares de vida na qualidade de elementos estruturais (HONNETH,
2003, p. 274).
Para Honneth (2003) esses modos de reconhecimento são acionados em virtude
da formação e compartilhamento de uma semântica coletiva que se forma à medida
que ocorrem as situações de desrespeito, violação, humilhação e ataques à dignidade da
pessoa humana. Isto é, Honneth considera que as violações das esferas do respeito e da
estima podem se constituir como forças motrizes capazes de levarem os movimentos
sociais à luta e ao desenvolvimento de uma semântica coletiva de reconhecimento.
Como a primeira esfera de reconhecimento que nos havemos é amor o qual somos
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Política de identidade e de reconhecimento em Taylor e Honneth
167
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 149-176, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
nutridos desde o útero de nossa genitora, passando pelos cuidados que recebemos du-
rante a infância; então a primeira forma de desrespeito inscreve-se em maus-tratos
corporais, formas de privação básica que destroem a autoconfiança elementar que o
sujeito poderia adquirir intersubjetivamente na fusão íntima e amorosa com outros. A
segunda esfera que diz respeito aos direitos, quer seja, o modo como esperamos ser
tratado pelos outros no mundo social, como parceiro de interação em pé de igualdade,
como sujeito capaz de entrar em sociedade, contribuir positivamente para a comuni-
dade; em contrapartida, a forma de desrespeito ocorre ao passo que lhe é negado
justamente esse status de igualdade, assim, fracassa sua expectativa intersubjetiva de ser
reconhecido como um sujeito capaz de formar um juízo moral. A última forma de
ofensa moral diz respeito à estima do próprio sujeito em seu horizonte comunitário e
cultural. Honneth (2003, p. 218) aloca em três grupos as experiências de desrespeito:
a morte psíquica; a morte social; e a vexação (Kränkung análogo a expressão latina ve-
xatio). No cerne, a tese honnethiana consiste em mobilizar essas reações emocionais
negativas de vergonha, de ira, de vexação e de desprezo, ou seja, os sintomas psíquicos
de um reconhecimento negado e injustificado que atingem o ideal de ego, a base mo-
tivacional capaz de mover o sujeito para a luta social.
Os sujeitos humanos não podem reagir de modo emocionalmente neutro às
ofensas sociais, representadas pelos maus-tratos físicos, pela privação de direitos e pela
degradação. Os padrões normativos do reconhecimento recíproco têm a possibilidade
de realização no interior do mundo da vida social em geral formando o horizonte de
expectativas para a autorrealização individual. Toda experiência que, desrespeite as pre-
tensões de reconhecimento, contém em si a possibilidade de fazer com que a injustiça
infligida ao sujeito se lhe revele em termos cognitivos e se torne o motivo da resistência
política. Por isso, “[...] uma análise das experiências morais instrui acerca da lógica que
segue o surgimento desses movimentos coletivos” (HONNETH, 2003, p. 224).
Todavia, é preciso dizer que Honneth chega a essa conclusão com certas dificul-
dades teóricas. Existe algo de meandroso nessa passagem da teoria dos padrões morais
de (des)respeito à luta política. Isso porque não há elementos suficientes no pensamento
de Mead que permitam Honneth (2003, p. 214) dar o passo necessário em direção ao
conflito moralmente motivado, pois não oferecem as bases empíricas para isso. Para
ultrapassar esse problema o autor opera toda uma reconstrução social das lutas sociais
revisando parte importante da tradição revolucionária que irrompe com os escritos de
juventude de Marx, passando por Sorel, Sartre até chegar a Fanon e as lutas anticolo-
niais. Como expressa o autor:
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Jonas Rangel de Almeida, Pedro Ângelo Pagni
168
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 149-176, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
[c]om a distinção, ainda muito provisória, de violação, privação de direitos e degradação, foram
dados a nós os meios conceituais que nos permitem agora tornar um pouco mais plausível a tese
[...] que é uma luta por reconhecimento que, como força moral, promove desenvolvimentos e
progressos na realidade da vida social do ser humano. Para dar a essa ideia forte, soando às vezes
filosofia da história, uma forma teoricamente defensável, seria preciso conduzir a demonstração
empírica de que a experiência de desrespeito é a fonte emotiva e cognitiva de resistência social e
de levantes coletivos; mas isso eu tampouco posso fazer aqui de moro direito e tendo de conten-
tar-me com a vida indireta de uma aproximação histórica e ilustrativa de uma tal demonstração
(HONNETH, 2003, p. 227).
Nesse ponto de vista, as diversas lutas históricas que eclodiram na modernidade
podem ser relidas como tentativas de superação de situações de inferiorização social e
desrespeito. Por si só, quer dizer, vividas isoladamente no horizonte da experiência in-
dividual as formas elementares de reconhecimento não impelem a luta. Mas, quando
as esferas passam a se tornar base de um movimento coletivo, essas geram um processo
prático de interpretação das ofensas morais como sendo as de grupo inteiro de pessoas
que as catalisam para certos objetivos sociais e exigências coletivas de relações ampliadas
de reconhecimento. Com base nos trabalhos de Thompson e Barrington Moore, entre
outros, Honneth (2003) procura distinguir esse modelo de lutas moralmente motiva-
das daqueles baseados em interesses econômicos, ou, estratégicos, pois, apesar de ser
um desafio empírico precisam de complementação e correção para constituir uma des-
crição justificada para reação moral. Escreve:
[...] as lutas e os conflitos históricos, sempre ímpares, só desvelam sua posição na evolução social
quando se torna apreensível a função que eles desempenham para o estabelecimento de um pro-
gresso moral na dimensão do reconhecimento. [...] os sentimentos de injustiça e as experiências
de desrespeito, pelos quais pode começar a explicitação das lutas sociais, já não entram mais no
campo de visão somente como motivos de ação, mas também são estudados com vista ao papel
moral que lhes deve competir em cada caso no desdobramento de relações de reconhecimento
(HONNETH, 2003, 265).
Na visão de Honneth (2003), os padrões de reconhecimento intersubjetivo que
atuam na construção de uma imagem e uma atitude positiva diante de si mesmo por
parte do sujeito expressa de alguma maneira o progresso moral. As chaves para com-
preender esse processo encontram-se nas já mencionadas relações entre autonomia e
reconhecimento, a soma que realiza os ideais de respeito moral kantiano e a concepção
formal de eticidade hegeliana (FLICKINGER, 2011a). Cabe dizer que a tripartição
dos padrões autoconfiança baseada no amor, autorrespeito na igualdade e autoestima
pela solidariedade alcança condições de êxito sob as condições sociais modernas. Pois
somente sob certas condições que se tornou possível submeter concomitantemente às
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Política de identidade e de reconhecimento em Taylor e Honneth
169
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 149-176, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
relações jurídicas as pretensões de uma moral pós-convencional, a programação de uma
política democrática e a uma estrutura normativa igualitária de individualização. Pe-
rante isso se pode reconstituir o núcleo da ética do reconhecimento a começar pela
ideia uma reação emocional diante de ofensa moral que fere as expectativas de reco-
nhecimento. A noção de progresso também participa desse núcleo ao passo que desvela
para nós o sentido moral dos conflitos por reconhecimento na modernidade
(HONNETH, 2006; 2009c). De acordo com Cenci (2013) em Luta por reconheci-
mento, Honneth já esboçava uma clara concepção de progresso sem recorrer à filosofia
da história, como fizeram Kant e Hegel. Segundo esse autor:
[...] a sociedade moderna é concebida honnethianamente como resultado de um processo de
diferenciação das esferas de reconhecimento amor, direito e estima social e de seus princípios
amor, igualdade e êxito [...] tal processo pode ser vinculada uma ideia de progresso moral.
Sob um ponto de vista normativo, essa concepção de progresso moral é possibilitada, sobretudo,
pelo fato de que cada uma das esferas comporta um excedente de validez que proporciona o
desenvolvimento de potenciais internos capazes de levar a novos desenvolvimentos no plano in-
dividual e social. [...] para Honneth, o progresso moral caracteriza-se como uma ampliação no
âmbito do reconhecimento mediante a socialização dos sujeitos e da inclusão social (CENCI,
2013, p. 282).
Embora a noção de progressão moral provenha do solo de debates próprio ao
idealismo alemão, como sublinha Nobre (2012, p. 23) não se trata de uma volta a Kant
e a Hegel, mas, de pensar os pontos de vistas um contra o outro em um diálogo inces-
sante. Nesse sentido, Honneth (2003) mostra-se um autêntico teórico crítico, esboça
confiança em um diagnóstico preciso das patologias sociais, disposição para reconstruir
um conhecimento emancipatório e crença justificada no uso da razão para construir a
normatividade e uma esfera pública democrática. Segundo Cenci (2013, p. 278):
Com o advento da modernidade, a ordem hierárquica da estima social passa por uma mudança
estrutural. A compreensão da ordem social de valores deixa de dar-se mediante um sistema refe-
rencial objetivo e tal ordem perde tanto o fundamento metafísico de sua validade quanto a
capacidade de normatizar o comportamento e, pois, também de determinar a escala de prestígio
social. O sujeito converte-se numa grandeza biograficamente individuada. Parte considerável do
que os princípios de honra asseguravam ao indivíduo migra para o âmbito da relação jurídica,
alcançando validade com o conceito de dignidade humana.
No cerne da moral do reconhecimento encontra-se o conceito de integridade
pessoal capaz de ser motivo para uma reconstrução normativa e que só pode ser efeti-
vada na relação intersubjetiva forte (HONNETH, 2010). A integridade é o anverso da
relação que se tem no desrespeito, pois, os seres humanos são incapazes de reagir às
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Jonas Rangel de Almeida, Pedro Ângelo Pagni
170
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 149-176, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
ofensas sociais com sentimentos neutros. As reações emocionais são decorrentes das
experiências de desrespeito ante as demandas de reconhecimento negadas, ou, frustra-
das.
Todavia, o debate de Honneth em torno do húmus das lutas sociais não estaciona
nesse ponto. Desde a publicação de Luta por reconhecimento o sociólogo alemão não
cessou de oferecer novos contornos para sua teoria, inclusive travando intensos diálogos
a respeito das críticas que lhes foram endereçadas e dificuldades geradas na recepção de
seu trabalho. O livro Redistribuicíon o reconocimiento registra uma parte fundamental
desse momento. Diante do perigo de redução dos problemas sociais do poder a uma
psicologia moral e do risco de minimizar os conflitos das classes econômicas e dos li-
mites da noção liberal de justiça, apontados por Nancy Fraser (2006), o autor alemão
mostra-se receptivo e atento aos limites de sua teoria. Reconhece inclusive que existem
outros modos mais elementares de reconhecer, anteriores aos padrões intersubjetivos
expressos na gramática do reconhecimento. Em acordo com Bressiane (2015) e Tei-
xeira (2016), pode-se observar dois desenvolvimentos posteriores de Honneth em
relação a sua teoria. O primeiro consiste em uma espécie de remodelagem crítica da
revisão sociológica em direção a um diagnóstico das patologias sociais. Desse modo, a
análise passa a enfocar os sintomas sociais, as patologias do contemporâneo em virtude
de um sofrimento que advém sobre o sujeito em razão da indeterminação no qual está
submetido. Tais fenômenos estão descritos em textos como Sofrimentos por indetermi-
nação, A sociedade do desprezo e Reificação. Em segundo lugar, com obras como O direito
à liberdade tem procurado reconstruir a ideia de liberdade social concomitante a uma
crítica das instituições, dos limites da justiça e da liberdade negativa apregoada pelo
mercado.
Educação na esfera do reconhecimento
Ao atualizar as intuições do jovem Hegel, Honneth propõe uma teoria das lutas
sociais moralmente motivadas pela busca de reconhecimento intersubjetivo. Na confe-
rência publicada como: Educação e a esfera pública democrática, Honneth (2013b)
argumento que a aspiração por uma educação universal, que possibilite a todos o exer-
cício pleno da cidadania e do uso da autonomia é impulsionada pela superação das
situações de inferiorização social, de injustiça e desrespeito. A escola, sendo uma das
instituições da sociedade é responsável por promover a ordem democrática e equitativa
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Política de identidade e de reconhecimento em Taylor e Honneth
171
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 149-176, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
aos indivíduos. A boa educação, por sua vez, seja por parte da família, como dos pró-
prios indivíduos, tornou-se modernamente um lugar onde as expectativas morais de
autorrespeito podem ser reconhecidas ou negadas.
Se, retomarmos Taylor, essas políticas podem ser definidas como aquelas que são
orientadas para o fomento das particularidades individuais e de grupos. Em contrapo-
sição, às políticas de igual dignidade são herdeiras da tradição dos direitos naturais,
dirigem-se assim, a todos os indivíduos, abstraindo suas condições singulares. A pista
que Taylor nos oferece é que as diferenças, ao entrarem em conflito com o princípio
da igualdade, desencadeiam em determinadas camadas sociais a acusação de favoritismo
em prol das minorias. De certo modo, isso pode ser observado nas críticas que foram
dirigidas aos programas sociais propugnados pelos governos pós-redemocratização.
Apesar de existir uma articulação nítida entre os discursos de reconhecimento de
Taylor e Honneth, é necessário ressaltar que os autores possuem projetos muito dife-
rentes. E, como estão vivos e escrevendo, pode-se dizer que os projetos estão
inacabados. Enquanto Taylor propõe uma espécie de hermenêutica filosófica mais vin-
culada à ideia de um amplo diagnóstico cultural, cujos aspectos da política atual
suscitam exigências de reconhecimento; Honneth procura lançar as bases intersubjeti-
vas para uma reconstrução empírica da gramática do reconhecimento. Todavia,
interessa-me salientar alguns pontos que confluem, pois ambos os autores assentam
seus projetos na ideia de uma intersubjetividade fundamental. A comunidade linguís-
tica é valorizada como uma dimensão indispensável à formação do sujeito, seja à
medida que decorre da negação de uma estrutura monológica da subjetividade, seja
como o canal por meio dos quais os indivíduos compartilham uma semântica de des-
respeito.
O diagnóstico de Taylor toca em características imprescindíveis da situação or-
dinária, principalmente, no que diz respeito às políticas engendradas após anos de
1990, tanto, em nível de políticas de igual dignidade, como no caso das políticas de
inclusão de pessoas com deficiência que atravessa todas as classes sociais, gênero e
raça; quanto demonstra uma crescente valorização das políticas de diferença: as ques-
tões feministas; a cultura afro-brasileira; e a sobrevivência cultural dos povos indígenas
e das águas. Já Honneth oferece uma teoria mostrando as bases motivacionais e morais
que fizeram com que, historicamente, os grupos desenvolvessem uma gramática cole-
tiva contra as situações de desrespeito. Elucidando assim, os pressupostos normativos
para discutirmos as políticas de proteção à infância, de igualdade no mercado de traba-
lho e de promoção do bem estar geral dos indivíduos consigo mesmos.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Jonas Rangel de Almeida, Pedro Ângelo Pagni
172
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 149-176, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Certamente, se pode dizer que apesar da teoria do reconhecimento não contar
com mais de duas décadas de penetração na filosofia da educação brasileira, seu impacto
sobre a produção nacional é relevante. Deve-se levar em consideração, que a esteira do
ideário iluminista propugnado por filósofos como Anísio Teixeira e sua leitura de-
weyana da democracia como modo de vida, o terreno de uma experiência reflexiva
estava sendo preparado. Também, soma-se nesse âmbito às contribuições das reflexões
marxistas e fenomenológicas de autores como Dumerval Trigueiro Mendes. No en-
tanto, a entrada da teoria do reconhecimento no campo filosófico educacional ocorreu
graças aos círculos intelectuais ligados à teoria crítica e hermenêutica. A teoria da ação
comunicativa de Habermas e a hermenêutica de Gadamer são antecedentes fundamen-
tais para entender essa recepção da obra honnethiana. Em sua grande maioria, os
estudos que recorrem às reflexões sobre reconhecimento versam sobre a formação hu-
mana. Nesse registro, a gramática do reconhecimento aparece, justamente, no
momento em que se verifica uma espécie de lacuna na ética do discurso e na situação
ideal de fala da ordem da conflitualidade inerente ao mundo da vida.
O conceito de formação encontra-se no centro das preocupações da filosofia da
educação. Complexo, polissêmico e de alcance longuíssimo formar o humano ressoa
de diversas maneiras na história. É possível, por exemplo, tomar a ideia de uma tradição
judaico-cristã e verificar a recorrência do conceito de formação em, pelo menos, três
momentos distintos. O primeiro, com a paidéia grega e o ideal de formação do homem
grego que passa por Homero, Platão e Aristóteles chegando às escolas helenísticas. A
segunda, expresso na ideia latina de humanitas que percorre todo o humanismo Oci-
dental e seu ideal de formação do homem virtuoso. Por fim, uma terceira noção
formulada nos termos de uma Bildung, uma formação concebida na esteira dos ideais
iluministas e românticos, presentes no século XVIII e XIX (GOERGEN, 2009).
Sem dúvida, a teoria do reconhecimento contribui de diversas formas para pôr
em evidência experiências de formação que colocam em jogo às expectativas de uma
constituição de si, autônoma, positiva e solidária. Que dizer: a reconstrução de conhe-
cimentos emancipatórios capaz de dar um giro em direção ao reconhecimento do
outro, isto é:
[...] um deslocamento do eixo de gravidade da discussão da história e, principalmente, da filosofia
da história para o ângulo de compreensão dos processos sociais como sistema normativo capaz
de revelar novas possibilidades para a teoria crítica. Ela deixa de acontecer em torno da relação
sujeito conhecedor e objeto a ser conhecido, em favor das relações intersubjetivas dos sujeitos
que buscam se entender sobre algo no mundo (TREVISAN; DEVECHI; ROSA; FAGUNDES,
2015, p. 863).
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Política de identidade e de reconhecimento em Taylor e Honneth
173
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 149-176, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Certamente, deve-se observar que os autores desse giro ante o reconhecimento
dão ênfase ao entendimento, à abertura para alteridade e ao florescer das identidades.
Sob esse ponto de vista, Trevisan et al (2015, p. 863) “[...] o escravo se submete ao seu
senhor não apenas pelas relações de dominação e servilismo, mas também de estima,
consideração e reverência...”. Reinterpretada, a dialética da servidão alcança sua supres-
são no entendimento e valorização do outro
Notas
1
Na primeira parte da obra intitulada “A identidade e o bem”, Taylor (2005) argumenta que para
compreendermos o agente humano, ou seja, a pessoa, ou, o self é indispensável pensar em configurações
incontornáveis no qual a identidade estrutura-se a partir de um eixo atitudinal, distinguindo, diversos
graus nas esferas de valores sobre o que é o bem a dignidade da pessoa humana, o direito à vida e a
liberdade. Desse modo, o self aparece no espaço moral como uma categoria que existe em extrema
dependência em relação à identidade. Não basta ser um self, é necessário ter um self, assim, Taylor
argumenta que o self como categoria pertence tanto à psicologia quanto à sociologia, quer dizer, diz
respeito ao Ego e a maneira como organizamos as relações sociais. Segundo Taylor (2005, p.52) “[...]
somos um self na medida em que nos movemos num certo espaço de indagações, em que buscamos e
encontramos uma orientação para o bem”. Desse ponto de vista conclui Taylor que: as configurações
do self só se tornam possíveis de serem constituídas ao passo que compreendemos o agente humano
como ser dotado de complexidade e profundidade, no interior de uma determinada comunidade lin-
guística.
Referências
BRESSIANI, Nathalie de Almeida. Crítica e poder? Crítica social e diagnóstico das patologias
em Axel Honneth. Tese (doutorado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo. São Paulo, 2015.
CENCI, Ângelo Vitório; DALBOSCO, Cláudio Almir; MÜHL, Eldon Henrique. (orgs).
Sobre filosofia e educação: racionalidade, diversidade e formação pedagógica. Passo Fundo:
Editora Universidade Passo Fundo, 2013.
CENCI, Ângelo, Vitório. Reconhecimento e progresso moral: aportes da concepção de
modernidade de Honneth para a ideia de formação humana. Linhas Críticas, Brasília, DF,
v.19, n.39, p. 271-288, mai./ago 2013.
CUNHA, Eduardo Leal; HILÁRIO Leomir Cardoso. Michel Foucault e a escola de
Frankfurt: reflexões a partir da obra Crítica do Poder, de Axel Honneth. Trans/Form/Ação,
Marília, v. 35, n. 3, p. 157-188, set./dez., 2012.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Jonas Rangel de Almeida, Pedro Ângelo Pagni
174
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 149-176, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
DALBOSCO, Cláudio Almir. Aspiração por reconhecimento e educação do amor-próprio
em Jean-Jacques Rousseau. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 3, p. 481-496, Dec.
2011.
DALBOSCO, Cláudio Almir. Condição humana e formação virtuosa da vontade:
profundezas do reconhecimento em Honneth e Rousseau. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.
40, n. 3, p. 799-812, jul./set. 2014.
FLICKINGER, Hans-Georg. Autonomia e reconhecimento: dois conceitos-chave na
formação. Educação, Porto Alegre, v. 34, p. 7-12, jan./abr. 2011a.
FLICKINGER, Hans-Georg. A teoria do reconhecimento na práxis pedagógica: a exemplo
de conflitos entre diretrizes ético-morais. Revista Espaço Pedagógico, v. 18, n. 2, Passo Fundo,
p. 220-233, jul./dez. 2011b.
FLICKINGER, Hans-Georg. Senhor e escravo: uma metáfora pedagógica. Revista de
Educação AEC. Brasília, v. 29, n. 114, p. 9-20, jan.-mar. 2000.
FLICKINGER, Hans-Georg. Subjetividade e intersubjetividade na perspectiva hegeliana. In:
DALBOSCO, Claudio A.; TROMBETTA, Gerson L.; LONGHI, Solange M. (Orgs.). Sobre
filosofia e educação: subjetividade e intersubjetividade na fundamentação da prática
pedagógica. Passo Fundo: Ed. da UPF, 2004, p. 26-39.
FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa era “pós-
socialista”. São Paulo: Cadernos de Campo, n. 14-15, p. 231-239, 2006.
FRASER, Nancy. Nuevas reflexiones sobre el reconocimiento. New Left Review: Madrid, n.
4, p. 55-68, set/out 2000.
GOERGEN, Pedro. "Formação ontem e hoje". In: CENCI, Ângelo Vitório; DALBOSCO,
Cláudio Almir; MÜHL, Eldon Henrique (orgs). Sobre filosofia e educação: racionalidade,
diversidade e formação pedagógica. Passo Fundo: Ed. da UPF, 2013.
HONNETH, Axel. Critique of power: reflective stages in a critical social theory.
Massachusetts: MIT Press, 1991.
HONNETH, Axel. Reconocimiento y obligación moral. Areté Revista de Filosofia. v.IX, n.
2, p. 235-252, 1997.
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática dos conflitos sociais. São Paulo:
Editora 34, 2003.
HONNETH, Axel. El reconocimiento como ideología. Isegoría, n. 35, p. 129-150, jul-dez,
2006.
HONNETH, Axel. Sofrimento por indeterminação: uma reatualização da Filosofia do direito
de Hegel. São Paulo: Editora Singular, Esfera Pública, 2007.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Política de identidade e de reconhecimento em Taylor e Honneth
175
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 149-176, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
HONNETH, Axel. Trabalho e reconhecimento: tentativa de uma redefinição. Civitas, Porto
Alegre v. 8 n. 1 p. 46-67 jan.-abr. 2008.
HONNETH, Axel. A textura da justiça: sobre os limites do procedimentalismo
contemporâneo. Civitas, Porto Alegre v. 9 n. 3 p. 345-368 set.-dez, 2009a.
HONNETH, Axel. Patologías de la razón: historia y actualidad de la teoría crítica. Buenos
Aires: Katz Editores, 2009b.
HONNETH, Axel. “La ineludibilidad del progreso: la definición kantiana de la relación
entre moral e historia”. In: HONNETH, A. Patologías de la razón: historia y actualidad de la
teoría crítica. Buenos Aires: Katz Editores, p. 159-170, 2009c.
HONNETH, Axel. “Integridade e desrespeito: princípios para uma concepção de moralidade
baseada na teoria do reconhecimento”. In: TEIXEIRA, Anderson Vichinkeski; OLIVEIRA,
Elton Somensi (orgs). Correntes contemporâneas do pensamento jurídico. Barueri, SP: Manole,
p. 115-133, 2010.
HONNETH, Axel. La sociedad del desprecio. Madrid: Editorial Trotta, 2011.
HONNETH, Axel. Abismos do reconhecimento: o legado sociofilosófico de Jean-Jacques
Rousseau. Civitas, Porto Alegre v. 13 n. 3 p. 563-585 set.-dez. 2013.
HONNETH, Axel. Educação e esfera pública democrática: um capítulo negligenciado da
filosofia política. Civitas, Porto Alegre v. 13 n. 3 p. 544-562 set.-dez. 2013b.
HONNETH, Axel. O direito à liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015.
HONNETH, Axel. Reificação: um estudo de teoria do reconhecimento. São Paulo: Editora
Unesp, 2018.
MEAD, George Herbert. Mind, self, and society: from the standpoint of a social behaviorist.
Chicago: The Universityof Chicago Press, 1992.
NOBRE, Marcos. Teoria crítica: uma nova geração. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.
93, p. 2327, jul. 2012.
SAFATLE, Vladimir. A esquerda que não teme dizer seu nome. São Paulo: Três Estrelas, 2013.
SAFATLE, Vladimir. Por um conceito ‘antipredicativo’ de reconhecimento. Lua Nova, São
Paulo, 94, p. 79-116, 2015.
TAYLOR, C. Identidad y reconocimiento. RIFP - Revista internacional de filosofia política,
Ciudad de México, n.7. p. 10-19, 1996.
TAYLOR, Charles. “A Política de Reconhecimento”. In: TAYLOR, C. et al.
Multiculturalismo: examinando a política de reconhecimento. Lisboa: Piaget, 1998.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Jonas Rangel de Almeida, Pedro Ângelo Pagni
176
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 149-176, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
TAYLOR, Charles. As fontes do Self: a construção da identidade moderna. São Paulo: Loyola,
2005.
TAYLOR, Charles. Hegel: sistema, método e estrutura. São Paulo: É Realizações, 2014.
TEIXEIRA, Mariana Oliveira do Nascimento. Patologias Sociais, Sofrimento e Resistência:
Reconstrução da Negatividade Latente na Teoria Crítica de Axel Honneth. Tese de
doutorado, Universidade Estadual de Campinas, 2016.
TREVISAN, Amarildo Luiz. Dois rapazes teimosos: a formação nas figuras do espírito.
Revista Educação, Porto Alegre, v. 34, n. 1, p. 42-48, jan./abr. 2011.
TREVISAN, Amarildo Luiz; DEVECHI, Catia Piccolo Viero; ROSA, Geraldo Antonio da;
FAGUNDES, André Luiz de Oliveira. A filosofia da educação no giro do reconhecimento
do outro. Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 29, n. 58, p. 861 - 887, jul-dez. 2015.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Este artigo está licenciado com a licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
177
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 177-196, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Fragmentos de uma narrativa em curso sobre o profissional de
apoio pedagógico na Educação Especial
Fragments of an ongoing narrative about the pedagogical support
professional in Special Education
Fragmentos de una narrativa continua sobre el apoyo pedagógico
profesional en Educación Especial
Isabel Matos Nunes
*
Márcia Alessandra de Souza Fernandes
**
Resumo
Apresenta reflexões sobre como está estruturado o serviço de apoio pedagógico ao estudante público-
alvo da Educação Especial, no que tange à regulamentação do cargo e da função desse profissional
que atua na sala de aula comum, com o professor regente. Para tanto, questiona sobre aspectos rela-
cionados a nomenclatura, criação do cargo e especificação da função desse profissional no quadro de
vagas do serviço público. Parte da rede municipal de educação de São Mateus, Espírito Santo, e
utiliza dados da pesquisa qualitativa realizada por Fernandes (2016) em que analisou a definição de
diretrizes para a oferta da Educação Especial no Sistema e outra que investigou as tensões da gestão
municipal na garantia da escolarização de alunos com deficiência múltipla (NUNES, 2016), desta-
cando trechos de entrevistas e números sobre matrícula de estudantes e profissionais da modalidade.
As reflexões elaboradas consideram que os governos, ao deixarem de instituir políticas de Estado
(OLIVEIRA, 2011), além de normalizar o desvio de função, de impossibilitar o vínculo permanente
do profissional com o fazer pedagógico, fere o direito do estudante e, no caso específico da Educação
Especial, reforça e perpetua o estigma outsider (ELIAS; SCOTSON, 2000) da modalidade.
Palavras-chave: educação especial; profissional de apoio pedagógico; bidocente.
Recebido em: 19/09/2021 Aprovado em: 29/08/2022
https://doi.org/10.5335/rep.v29i1.12979
ISSN on-line: 2238-0302
*
Professora do Departamento de Educação e Ciências Humanas e do Programa de Pós Graduação em Ensino na Educação
Básica da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). E-mail: isabel.nunes@ufes.br. Orcid: https://orcid.org/0000-
0001-9127-6384.
**
Mestra em educação, PPGE/Ufes, professora da Rede Municipal de São Mateus e da Rede Estadual do ES. E-mail:
marciaalessandra.sou@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6280-7991.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Isabel Matos Nunes, Márcia Alessandra de Souza Fernandes
178
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 177-196, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Abstract
It presents reflections on how the pedagogical support service to the target public student of special
education is structured, regarding the regulation of the position and the function of this professional
who works in the common classroom, with the regent teacher. Therefore, it questions about aspects
related to the nomenclature, creation of the position and specification of the role of this professional
in the public service vacancy framework. Part of the municipal education network of São Mateus,
Espírito Santo, and uses data from the qualitative research carried out by Fernandes (2016) in which
he analyzed the definition of guidelines for the provision of Special Education in the System and the
other that investigated the tensions of municipal management in ensuring the schooling of students
with multiple disabilities (NUNES, 2016), highlighting excerpts from interviews and numbers on
enrollment of students and professionals in the modality. The reflections elaborated consider that
governments, by failing to institute State policies (OLIVEIRA, 2011), in addition to normalizing
the deviation of function, preventing the professional's permanent link with the pedagogical practice,
violates the student's right and, in this case specific to Special Education, reinforces and perpetuates
the outsider stigma (ELIAS; SCOTSON, 2000) of the modality.
Keywords: special education; pedagogical support professional; bidocente.
Resumen
Presenta reflexiones sobre cómo se estructura el servicio de apoyo pedagógico al público destinatario
alumno de educación especial, en cuanto a la regulación del puesto y la función de este profesional
que trabaja en el aula común, con el docente regente. Por tanto, cuestiona aspectos relacionados con
la nomenclatura, la creación del puesto y la especificación de la función de este profesional en el
marco de la vacante del servicio público. Forma parte de la red de educación municipal de São Ma-
teus, Espírito Santo, y utiliza datos de la investigación cualitativa realizada por Fernandes(2016) en
la que analiza la definición de lineamientos para la provisión de Educación Especial en el Sistema y
la otra que investiga la tensiones de la gestión municipal en asegurar la escolarización de estudiantes
con discapacidad múltiple (NUNES, 2016), destacando extractos de entrevistas y cifras sobre matrí-
cula de estudiantes y profesionales en la modalidad. Las reflexiones elaboradas consideran que los
gobiernos, al no instituir políticas de Estado (OLIVEIRA, 2011), además de normalizar la desviación
de función, impidiendo el vínculo permanente del profesional con la práctica pedagógica, viola el
derecho del estudiante y, en este caso específico de Especialidades. La educación refuerza y perpetúa
el estigma del outsider (ELIAS; SCOTSON, 2000) de la modalidad.
Palabras clave: educación especial; profesional de apoyo pedagógico; bidocente.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Fragmentos de uma narrativa em curso sobre o profissional de apoio pedagógico na Educação Especial
179
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 177-196, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Apresentação para uma narrativa em andamento
Partindo do pressuposto de que qualquer fenômeno social compõe o que Nor-
bert Elias (1897-1990) compreendeu como parte do processo civilizador que a todos
envolve e que a todos escapa, buscamos neste texto refletir sobre como está estruturado
o serviço de apoio pedagógico ao estudante público-alvo da educação especial, no que
tange à regulamentação do cargo e da função desse profissional que atua na sala de aula
comum, com o professor regente.
As questões que apresentamos neste texto vieram à tona a partir de duas pesquisas
de natureza qualitativa, que tiveram a mesma rede de ensino como campo empírico,
sendo que uma analisou as figurações do Conselho Municipal de Educação (CME) na
definição de diretrizes para a oferta da Educação Especial no Sistema de São Mateus,
estado do Espírito Santo (FERNANDES, 2016), e a outra que investigou as tensões da
gestão municipal na garantia da escolarização de alunos com deficiência múltipla
(NUNES, 2016). Para as reflexões aqui apresentadas, utilizaremos os dados empíricos
dos dois estudos, destacando trechos de entrevistas e números sobre matrícula de estu-
dantes e profissionais da modalidade.
Sob a perspectiva eliasiana de que o processo civilizador segue um fluxo contínuo
e gradual, os dados apresentados neste texto foram conjugados e atualizados a partir
das constantes convocações que o trabalho docente, cotidiano e atual nos confere sobre
o fazer da Educação Especial na interlocução com a escola regular. Nesta seara, algumas
questões nos inquietam, das quais destacamos: de que maneira acontece o apoio peda-
gógico na sala de aula regular aos estudantes que requerem maior intervenção
pedagógica? Como são e onde estão estabelecidas as atribuições dos profissionais en-
volvidos nesta ação pedagógica? Quais as normas que regulamentam e determinam a
contratação desse profissional nos sistemas de ensino?
Sob o convite que as questões nos alcançam, o lócus do estudo é a Rede Municipal
de Educação de São Mateus, município da região Norte do Espírito Santo, com 476
anos de colonização, população estimada em 132.642 (IBGE, 2020) e 16.939 matrí-
culas, das quais, 468 são da Educação Especial (INEP, 2019).
Para nos ajudar a refletir sobre as questões em pauta, recorremos às elaborações
de Norbert Elias, no trabalho empreendido por ele e John L. Scotson na obra “Os
estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena
comunidade” (2000). Com base nas análises do microcosmo da referida obra, compre-
endemos que as relações de poder entre indivíduos e seus grupos, ainda que
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Isabel Matos Nunes, Márcia Alessandra de Souza Fernandes
180
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 177-196, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
aparentemente homogêneas, apresentam em seus interiores gradientes de poder tão di-
versos quanto sejam as inter-relações estabelecidas entre eles. Sob tal compreensão, um
aspecto que a obra eliasiana nos provoca, considerando a trajetória do segundo profis-
sional de apoio pedagógico aqui analisada, dá-se com relação a uma possível
estigmatização da Educação Especial como modalidade outsider.
Sobre esse aspecto, consideramos o fato de a modalidade passar a compor o ar-
cabouço das diretrizes e bases da educação nacional a partir de 1996 e, desde então,
ainda estar sendo organizada nos sistemas, como é o caso apresentado na rede munici-
pal de São Mateus, em que inexiste definição em lei acerca do segundo profissional
pedagógico que atua na sala de aula comum com os estudantes da modalidade que
necessitam da atuação desse profissional. Vários estudos (MARTINS, 2011; VAZ,
2013; ARAÚJO, 2015; LOPES, 2015) apontam indefinições que a modalidade carrega
em relação à formação, atuação e condições de trabalho do professor de Educação Es-
pecial, evidenciando que a situação não é exclusiva na rede aqui apresentada.
Para organizar nossas reflexões, estruturamos o texto em cinco partes: a primeira
trata das mudanças que, de modo geral, a Educação Especial desencadeou na escola
regular; a segunda, da chegada da modalidade nas escolas da rede municipal; a terceira,
ocupa-se da chegada do profissional de apoio pedagógico na sala de aula comum e os
subsequentes processos de definição da função em normativas do CME Conselho
Municipal de Educação; a quarta parte destaca como a organização federativa do Brasil
e a ausência de um sistema nacional articulado de educação possibilitam a ocorrência
de situações como a destacada no texto; a quinta e última parte traz as reflexões e con-
siderações das autoras.
Fragmento 1: A Educação Especial mudou a escola
Neste trecho, destacamos algumas das mudanças ocorridas na escola a partir da
chegada da Educação Especial e, em seguida, focalizamos as questões referentes ao ser-
viço de apoio pedagógico ao estudante público-alvo da modalidade, no que tange ao
segundo profissional que atua na sala de aula comum, com o professor regente, na rede
pesquisada.
Por compreender, a partir de Elias (1993), que os fenômenos sociais acontecem
seguindo um processo que se constrói lenta e gradualmente, temos a compreensão de
que as mudanças que a Educação Especial desencadeou no interior da instituição edu-
cacional seguem acontecendo e, como um processo lento, ainda não equacionaram
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Fragmentos de uma narrativa em curso sobre o profissional de apoio pedagógico na Educação Especial
181
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 177-196, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
todos os desafios da escola. Mesmo assim, são mudanças que demarcam importantes
passos na instituição de uma escola mais inclusiva.
Como marca constituinte do processo civilizador, o campo da Educação Especial
vem imprimindo na história educacional os acontecimentos que resultam da “[...] di-
nâmica do entrelaçamento, com seus numerosos altos e baixos, representando a
continuação, no mesmo rumo, de movimentos e contra movimentos de mudanças an-
tigas” (ELIAS, 1993, p. 263). Sobre esse aspecto, compreendemos que a modalidade
de Educação Especial vem transformando a instituição regular de ensino, em decorrên-
cia do público atendido e da natureza do serviço realizado.
Garcia (2013) contribui com nossa reflexão ao analisar a década anterior a da
chegada da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva PNEEPI
(BRASIL, 2008) ao destacar as mudanças que, paulatinamente, contribuíram para a
transformação das práticas escolares. Ela observa que a modalidade de Educação Espe-
cial, “[...] se desenvolvia mediante uma série de modalidades de AEE, na perspectiva
inclusiva passou a ter uma modalidade de atendimento privilegiada, qual seja, aquela
referenciada no AEE na SRM” (GARCIA, 2013, p. 108). Destaca também o redimen-
sionamento do público-alvo das políticas de Educação Especial “[…] tornando-se mais
específico e mais dependente de diagnósticos clínicos, centrados em causas relacionadas
a condições orgânicas” (GARCIA, 2013, p. 108). Para a autora, há duas características
que a modalidade assume: a complementaridade para os sujeitos em idade escolar obri-
gatória e a transversalidade que insere a modalidade da educação básica à superior; a
formação de professores que passa a reconhecer o professor do Atendimento Educaci-
onal Especializado como profissional docente, com formação específica, não mais
definido como “especializado” (GARCIA, 2013).
Importa observar, entretanto, que essa autora destaca a não superação de sentidos
que a modalidade carrega “[...] apesar de passar por um momento de investimentos em
torno de sua divulgação, da presunção de uma ‘nova’ perspectiva e da suposta amplia-
ção do atendimento público de educação especial nas redes de ensino” (GARCIA,
2013, p. 107). As mudanças apontadas, embora sejam específicas da modalidade, elas
repercutem na escola, como um todo. É possível constatar que a escola dos dias atuais
já não é a mesma da escola dos anos iniciais em que chegaram as determinações da
PNEEPI (BRASIL, 2008), muito menos da LDB, nos anos de 1996.
No âmbito da rede pesquisada, uma mudança bastante perceptível que a moda-
lidade de Educação Especial desencadeou na educação geral, como um todo, diz
respeito à composição do quadro de servidores das escolas. A partir dos estudos em
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Isabel Matos Nunes, Márcia Alessandra de Souza Fernandes
182
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 177-196, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
tela (NUNES, 2016; FERNANDES, 2016), é possível afirmar que o quadro de servi-
dores das escolas do município no início dos anos dois mil era composto, basicamente
pelo diretor educacional, professores, coordenador de turno, pedagogo, auxiliares de
secretaria e de serviços gerais. No decurso dos últimos 15 anos, com a ampliação do
leque de serviços educacionais, muitos destes vinculados à Educação Especial, novos
profissionais passaram a compor o quadro de servidores da escola. Nos dias de hoje,
além dos profissionais que atuavam no passado, invariavelmente, as escolas de São Ma-
teus possuem cuidador, mãe social, professor de Apoio Educacional Especializado
(AEE), intérprete de Libras e auxiliar de Educação Especial, ainda que este último sem
regulamentação e criação do cargo.
E, em decorrência da chegada dos diferentes profissionais que passam a atuar nas
escolas, em função dos estudantes da modalidade que passaram a frequentá-la, surge a
necessidade de novos redimensionamentos, a fim de garantir o direito à educação desse
público estudantil, de acordo com o que prescreve a Política de Educação Especial na
perspectiva da inclusão escolar (BRASIL, 2008). Deste modo, é preciso rever além da
estrutura arquitetônica da instituição, sua estrutura de pessoal, serviços e sua organiza-
ção curricular.
As questões que discutimos neste texto revelam que ainda há muito a ser, de fato,
efetivado. Sobre esse aspecto, é oportuno valermo-nos, mais uma vez, da perspectiva de
Elias (1993) que descreve o processo civilizador como um processo que se move cons-
tante e incessantemente, envolvendo a todos. Sob tal acepção, é possível compreender
que todos compõem o processo mais amplo e que são impelidos a avançar, ainda que
seguindo e constituindo um fluxo sem saltos abruptos nem grandes rupturas processu-
ais. Isso significa que a escola não se transformará sozinha, muito menos o fato de a
Educação Especial ter reconhecimento de modalidade educacional, por si só, não re-
solverá os desafios enfrentados cotidianamente no interior dos estabelecimentos
educacionais.
Na sequência, apresentamos no segundo fragmento, uma breve contextualização
histórica em torno da modalidade de Educação Especial na rede municipal de São Ma-
teus, Espírito Santo.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Fragmentos de uma narrativa em curso sobre o profissional de apoio pedagógico na Educação Especial
183
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 177-196, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Fragmento 2: A chegada da Educação Especial na Rede Munici-
pal
A Resolução nº 2, de 11 de setembro de 2001, que instituiu as Diretrizes Naci-
onais para a Educação Especial na Educação Básica (BRASIL, 2001), provocou que as
redes municipais de Educação organizassem a gestão dos serviços da Educação Especial.
Em torno disso, aconteceram entre os anos 2001 e 2004, as primeiras experiências que
buscaram considerar as especificidades dos estudantes com alguma deficiência, dentro
de uma instituição de ensino regular da rede municipal de São Mateus.
Fernandes (2016) observa que nesse período a rede municipal não dispunha de
experiência com os estudantes público da Educação Especial nas escolas comuns e que
em 2005 foi implementado o Núcleo de Educação Inclusiva Municipal (NEIM), que
mesmo sem regulamentação, funcionou até o ano de 2008. O NEIM funcionava como
um centro especializado, com psicólogo, fonoaudiólogo, professor de Libras, de Braille,
para atender aos estudantes e professores, uma vez que as escolas careciam de todo tipo
de apoio para fazerem o atendimento à nova demanda que começava a chegar à escola.
Atendendo aos preceitos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - Lei
9.394/96 (BRASIL, 1996), a qual rege que “os municípios incumbir-se-ão de: I - or-
ganizar, manter e desenvolver os órgãos e instituições oficiais dos seus sistemas de
ensino, integrando-os às políticas e planos educacionais da União e dos Estados” (Art,
11), na primeira década dos anos 2000, o município de São Mateus, instituiu seu Sis-
tema Municipal de Educação (SME). A opção pelo SME, segundo Fernandes (2016),
baseou-se na busca de autonomia para elaborar políticas de educação contando com a
participação da comunidade escolar na definição de suas prioridades.
Em 2008, com a aprovação da Política Nacional de Educação Especial na pers-
pectiva inclusiva (BRASIL, 2008), o município em questão passa por grandes
transformações na organização da modalidade de Educação Especial em âmbito local.
Foi publicada a primeira diretriz no âmbito do sistema municipal que estabeleceu nor-
mas para atendimento aos estudantes da Educação Especial a Resolução CME/SM
04/2008. No ano seguinte o governo local determinou o fechamento do NEIM e ins-
tituiu o AEE nas Salas de Recursos Multifuncionais (SRM), (FERNANDES, 2016).
Naquele período, tudo era novo para a Escola, principalmente para o professor
regente que passou a receber o estudante público da educação especial na sala de aula
comum. Tais mudanças podem ser visualizadas na tabela 1, na qual demonstramos o
movimento das matrículas da educação especial na educação infantil e no ensino fun-
damental no município, nos anos de 2008 a 2014
1
.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Isabel Matos Nunes, Márcia Alessandra de Souza Fernandes
184
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 177-196, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Tabela 1 – Matrículas da Educação Especial na Educação Infantil e no Ensino Fun-
damental em São Mateus
Ano
Educação Especial por
Dependência Administrativa
Estadual Municipal Privada Total
2008
81
201
198
480
2009
34
110
213
357
2010
57
178
16
251
2011
123
240
16
379
2012
101
271
16
388
2013
130
259
28
417
2014
112
272
22
406
Fonte: FERNANDES, 2016.
2
O número das matrículas é bastante irregular: o ano de 2008 foi o ano da publi-
cação do texto da Política Nacional de Educação Especial na perspectiva inclusiva em
nível nacional e da aprovação da Resolução da Educação Especial em nível local e tam-
bém do ápice das matrículas na modalidade. Em 2009, segundo ano da Resolução da
Educação Especial, apresenta queda de matrícula, exceto nas escolas privadas que apre-
sentam crescimento em relação às outras dependências administrativas tanto naquele
ano como no anterior. Nos anos seguintes, no entanto, as instituições da iniciativa
privada apresentam redução no número de matriculados.
Em 2014 ano base do estudo de Fernandes (2016) do total de 406 estudantes
matriculados na modalidade, 272 estavam vinculados à rede municipal, equivalendo a
mais de 66% do total. Naquele ano, havia dezessete salas de recursos multifuncionais
equipadas, sendo que apenas 14 estavam em funcionamento na rede municipal; 52
cuidadores e nenhum profissional para a intervenção pedagógica com o estudante que
demandasse maior atenção na sala de aula, além do regente (FERNANDES, 2016).
Na sequência, apresentamos a narrativa sobre a chegada do profissional pedagó-
gico nas salas de aula das escolas comuns para a atuação conjunta com o professor.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Fragmentos de uma narrativa em curso sobre o profissional de apoio pedagógico na Educação Especial
185
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 177-196, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Fragmento 3: Bidocente, profissional de apoio, auxiliar de edu-
cação especial
Com relação ao profissional de apoio pedagógico para atuar na sala de aula co-
mum, com o professor regente, junto ao estudante da Educação Especial, a história da
modalidade na rede de São Mateus está marcada por três tentativas de “criação” de um
termo para nomear o profissional que assumiria o serviço, sendo eles: bidocente em
2010; profissional de apoio em 2012 e auxiliar de Educação Especial em 2014. As três
tentativas são apresentadas nos subtópicos que seguem.
O bidocente
De acordo com Fernandes (2016) e Nunes (2016), a chegada do profissional
denominado bidocente nas escolas da rede de São Mateus tem início no ano de 2010,
quando as escolas começaram a receber estudantes com necessidade de intervenção pe-
dagógica mais direta e constante. As autoras observam que nenhuma providência legal,
a fim de normatizar a função foi tomada pela gestão municipal. Conforme surgia a
demanda em uma escola, a secretaria de educação encaminhava o segundo professor
para atuar na sala de aula comum com o regente. Para melhor explicitar a situação,
apresentamos duas descrições feitas por entrevistados no trabalho de Fernandes (2016).
Na primeira, o conselheiro Altamiro
3
afirma:
A experiência do bidocente começa em 2010 com algumas experiências muito pontuais.
A ideia não era um professor para o aluno, e sim a bidocência, ou seja, estamos eu e você na sala
de aula, enquanto eu estou cuidando do aluno você está cuidando da sala; ou, enquanto você está
cuidando do aluno, eu estou cuidando da sala... [...] essas experiências foram pensadas para casos
mais complexos [...]. Quando se colocava o segundo professor, era para se garantir a acessibilidade
do sujeito àquilo que sozinho ele não conseguia [...] (CONSELHEIRO ALTAMIRO, p. 168).
A conselheira Cristina informa que
[...] O bidocente nunca existiu regulamentado, mas na prática, sim. Aquela prática: eles colocam
um profissional pra trabalhar e depois... sem existir o cargo. [...] Qual era o entendimento do
bidocente? Que ele era o profissional daquele aluno... Na verdade, era para ele ser o coopera-
dor do professor regente: dois professores na mesma sala. Houve uma interpretação
equivocada sobre o bidocente. “Ó, seu aluno faltou hoje, então você poderia ajudar na coorde-
nação, ou você poderia ajudar a imprimir.” Assim, acabava fazendo outras coisas, substituir um
professor que faltava... Não havia o entendimento da colaboração entre o professor regente e o
bidocente [...] (CONSELHEIRA CRISTIANA, p. 169).
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Isabel Matos Nunes, Márcia Alessandra de Souza Fernandes
186
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 177-196, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
De acordo com as declarações acima, a chegada do segundo professor evidenciou
a falta de entendimento sobre a atuação do profissional regente, do bidocente e demais
envolvidos no processo pedagógico, no que diz respeito ao trabalho colaborativo, como
evidenciou também a ausência de definição da atuação e competência de cada profissi-
onal. O termo “bidocência” adotado não trouxe a ideia da colaboração; pelo contrário,
vigorou a concepção de que havia um professor exclusivo para o estudante público da
Educação Especial. Tal concepção reforçava-se a partir da compreensão de que “[...]
o era justo que os dois profissionais tivessem a mesma condição salarial”, como
registrou Fernandes (2016, p. 167).
A situação do segundo professor na sala de aula comum adentrou o CME/SM
nos trabalhos de revisão da Resolução 04/2008, nos anos 2011 e 2012, como apresen-
tamos no próximo tópico.
O profissional de apoio (pedagógico)
Com discussões em torno da nomenclatura do segundo professor em sala de aula,
a nova normativa do CME/SM empregou o termo “profissional de apoio” no lugar de
“bidocente”. Fernandes (2016) apresenta a situação, a partir da narrativa em que a en-
trevistada afirma:
[...] a não aceitação desse profissional foi mesmo a questão financeira. O professor regente era o
responsável por manter o diário em dia e as atividades cotidianas, como planejamento, correção
das atividades e demais coisas atribuídas ao regente, enquanto o bidocente só ficava com aquele
aluno e tinha lá a pasta de acompanhamento das atividades (CONSELHEIRA CRISTIANA, p.
169).
Como relatado acima, as atas do CME têm registrado que muitos docentes
4
con-
sideravam que o bidocente não deveria ter o mesmo status do professor regente, por
entenderem que sobre este último recaía a maior responsabilidade. O argumento era
de que o regente trabalhava com maior número de estudantes, diferente do outro pro-
fissional, que tinha o trabalho com apenas um (FERNANDES, 2016; NUNES, 2016).
Vale observar que a Nota Técnica MEC/SEESP/GAB 19/2010 (BRASIL, 2010)
que trata dos profissionais de apoio para alunos com deficiência e transtornos globais
do desenvolvimento matriculados nas escolas comuns da Rede Pública de Ensino, des-
taca que é aquele profissional indicado para os trabalhos de “[...] promoção da
acessibilidade e para atendimento a necessidades específicas dos estudantes no âmbito
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Fragmentos de uma narrativa em curso sobre o profissional de apoio pedagógico na Educação Especial
187
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 177-196, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
da acessibilidade às comunicações e da atenção aos cuidados pessoais de alimentação,
higiene e locomoção” (BRASIL, 2010).
Independente da orientação da Nota Técnica, a nova normativa, a Resolução
CME/SM 11/2012, inaugurou o termo profissional de apoio” no lugar do conhecido
bidocente.
Esta nova resolução, mesmo homologada pelo secretário de educação, não foi
publicada, permanecendo sem nenhum poder (FERNANDES, 2016; NUNES, 2016).
Ainda assim, a secretaria de educação manteve a oferta do segundo profissional até o
final do ano letivo de 2013 (FERNANDES, 2016; NUNES, 2016). No ano seguinte,
não mais autorizou o segundo profissional (com função pedagógica) e as escolas rece-
beram apenas o cuidador profissional de ensino médio para atuar nas atividades de
higiene, alimentação e locomoção.
Naquele ano (2013), diante da situação, um grupo de pais acionou o Ministério
Público e este, além de determinar a oferta imediata do segundo profissional, recomen-
dou que o Executivo encaminhasse à Câmara Municipal, projeto de lei para
regulamentar o cargo e estabelecer as normatizações necessárias. Sob tais circunstâncias,
é elaborada a Resolução 12/2014 que traz à tinta o termo “auxiliar de educação espe-
cial” no lugar do profissional de apoio. Essa normativa do CME/SM foi transformada
na Lei Municipal 1.517/2015 que repete todo o texto da resolução sem, contudo, pos-
suir nenhuma outra lei que regulamente os cargos e funções que a diretriz do CME
menciona (FERNANDES, 2016)
O auxiliar de educação especial
Na normativa de 2014, a Resolução 12/2014 (SÃO MATEUS, 2014), mais uma
vez, o serviço ganhou outra denominação e o “profissional de apoio” que tinha entrado
na história para substituir o controverso “bidocente” também foi substituído pelo
termo “auxiliar de educação especial”. Na Tabela 2 trazemos os parágrafos das duas
normativas que descrevem o perfil desses dois profissionais, sendo adotado na primeira
o termo profissional de apoio e na segunda, auxiliar de educação especial.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Isabel Matos Nunes, Márcia Alessandra de Souza Fernandes
188
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 177-196, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Tabela 2 – Perfil do professor de apoio e do auxiliar de educação especial
Resolução CME/SM 11/2012
Resolução CME/SM 12/2014
DA FORMAÇÃO DOS PROFISSIONAIS
Art. 28. A formação de profissionais para a edu-
cação especial processar-se-
á em conformidade
com o estabelecido pela lei 9.394/96, artigo 59,
incisos i e iii, artigo 62, e com as diretrizes curri-
culares nacionais para a formação de docentes.
[...]
§ 8º. Entende-se por professor(a) de apoio, o/a
profissional com licenciatura plena em pedago-
gia e curso de formação na área da deficiência
intelectual e/ou surdocegueira, de no mínimo
120 horas, que atuará na sala de aula, junto aos/às
professores/as de ensino comum, garantindo a
permanência na escola e a apropriação de conhe-
cimentos aos/às alunos/a
s em situação de
deficiência, cujas condições de aprendizagem de-
mandam intervenções pedagógicas mais
específicas, intensivas e sistemáticas. (SÃO
MATEUS/CME, 2012, grifo nosso)
DA FORMAÇÃO DOS PROFISSIONAIS
Art. 26. A formação de profissionais para a edu-
cação especial processar-se-á em conformidade
com o estabelecido pela lei 9.394/96, artigo 59,
incisos i e iii, artigo 62, e com as diretrizes curri-
culares nacionais para a formação de docentes.
[...]
§ 8º. Entende-se por auxiliar de educação espe-
cial, o/a profissional com licenciatura plena e
curso de formação na área da deficiência intelec-
tual, de no mínimo 120 horas, que atuará na sala
de aula, junto aos professores e às professoras de
ensino comum, garantindo a permanência na es-
cola e a apropriação de
conhecimentos aos/às
alunos/as em situação de deficiência, cujas condi-
ções de aprendizagem demandam intervenções
pedagógicas mais específicas, intensivas e sistemá-
ticas, a saber: a) deficiência múltipla; b)
deficiência intelectual severa; c) autismo infantil
(SÃO MATEUS/CME, 2014, grifo nosso).
Elaborado pelas autoras
Os dois parágrafos das duas normativas, embora apresentem pequenas alterações,
não diferem muito em seu teor; em uma, traz como requisito a formação em pedagogia
na outra, amplia a possibilidade de formação, desde que seja uma licenciatura plena.
Isto significa que de uma forma ou de outra, havia o entendimento que o profissional
deveria ter conhecimento pedagógico. Sobre ser exigido que o auxiliar de educação
especial tenha licenciatura plena, ainda que sem o status de professor, uma vez que está
na condição de auxiliar, destacamos as palavras de outra entrevistada de Fernandes
(2016, p. 174) que afirma:
A discussão na [Resolução] 12 partiu do seguinte: primeiro, se você colocar um professor para
aquele aluno, isso não é inclusão. Não justifica você colocar um professor para aquele aluno por-
que ele fica isolado, ele não vai participar da sala, o professor regente não vai se sentir professor
dele, não vai sentir o peso da responsabilidade que tem sobre ele. Precisava tirar a figura de um
professor para aquele aluno. Mas não se discutia a necessidade de alguém dentro da sala auxili-
ando; esse foi o consenso (CONSELHEIRA JAQUELINE).
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Fragmentos de uma narrativa em curso sobre o profissional de apoio pedagógico na Educação Especial
189
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 177-196, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Pelo visto, as discussões tentaram conciliar a necessidade do segundo profissional
na sala de aula, com a garantia do processo inclusivo e a responsabilização do professor
regente por tal processo.
Fernandes (2016) observa que a referida resolução determina sobre a atuação do
auxiliar de educação especial na rede municipal, no entanto, destaca que o mesmo con-
tinua sendo contratado temporariamente. Observa também que concursos públicos
foram realizados para contratação para outros cargos, mas não houve nenhuma vaga
para esse profissional, apesar da demanda, visto que ainda não fora criado o cargo na
lei que o estabeleceria no quadro de vagas e estrutura da prefeitura.
No item seguinte, refletimos sobre o que torna possível que fenômenos como os
apresentados acima aconteçam.
Fragmento 4: O contexto que facilita
Sobre a narrativa acima, destacamos alguns elementos que tornam tais fenôme-
nos possíveis. Um deles relaciona-se à dinâmica da organização federativa do Brasil
(ARAÚJO, 2013) em que estados e municípios possuem alguma liberdade para orga-
nizar os seus sistemas de ensino, dentro dos limites determinados pela Constituição
Federal (BRASIL, 1988). O fato de os entes disporem de certa autonomia para defini-
rem as ações políticas no âmbito de suas atuações, pressupõe a constituição de um
Sistema Nacional de Educação (SNE) que articule “unidade da variedade”, mas que o
país ainda não conseguiu organizar. A autonomia dos entes federados, desarticulada de
uma instância que os integre, no caso o SNE, tende a isolá-los, deixando-os entregues
à própria sorte (SAVIANI, 2010, p. 381).
No caso específico de nossa discussão, vemos como a ausência de uma política
articulada oportuniza ações de governo em detrimento a políticas de Estado. No que
diz respeito ao profissional de apoio pedagógico que atua junto aos estudantes público-
alvo da educação especial, com o professor regente, na sala de aula comum, observamos
que a falta de orientação em torno da nomenclatura para o mesmo, permite que redes
e sistemas públicos de educação, a partir de iniciativas e experiências próprias “criem”
termos e definam funções para esses profissionais.
Implicados com a situação do profissional de apoio pedagógico na sala, na rede
pesquisada, a fim de ter uma visão sobre a forma como esse profissional tem figurado
em outros trabalhos acadêmicos, realizamos duas buscas no Portal da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES, 2020), entre os meses de se-
tembro a dezembro de 2020, com os descritores “educação especial” AND “profissional
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Isabel Matos Nunes, Márcia Alessandra de Souza Fernandes
190
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 177-196, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
de apoio pedagógico” OR “ensino colaborativo” OR “bidocente” OR “trabalho do-
cente”, sendo uma no Portal de Periódicos e a outra no Catálogo de Teses e
Dissertações. Na primeira, procuramos artigos de periódicos que adotam a revisão por
pares. Definimos as seguintes perguntas para nos orientar na seleção dos textos: Como
a temática acerca do profissional de apoio pedagógico da educação especial figura nos
trabalhos? Quais são os objetivos dos trabalhos? Qual a perspectiva que as discussões
assumem: o didático-pedagógico ou das relações trabalhistas?
Na busca por artigos, apareceram 40 trabalhos dos quais 6 foram selecionados.
Os textos, embora correspondam aos pontos definidos para guiar a seleção, não apre-
sentam a discussão sob a perspectiva das condições de trabalho e da vida trabalhista
desse profissional. De modo geral, os trabalhos tangenciam a temática, mas não a apro-
fundam; abordam limites e dificuldades da prática colaborativa, evidenciando que as
dificuldades estão relacionadas, em grande medida, às imprecisões que circundam o
profissional.
Os trabalhos selecionados possuem algumas aproximações: seus objetivos bus-
cam refletir sobre processos de inclusão escolar a partir do estudo sobre práticas de
colaboração entre docentes e a formação para essas práticas; assinalam a necessidade de
formação e outros aspectos da vida escolar (currículo, acessibilidade arquitetônica, ser-
viços de apoio e colaboração, participação da família e da comunidade) como
indispensáveis à constituição da escola inclusiva, relacionando práticas, profissionais e
ensino colaborativo; apontam o ensino colaborativo como estratégia promissora para a
realização da educação inclusiva, mesmo assim, apresentam situações que desafiam a
colaboração, como a falta de tempo para o planejamento comum entre os professores
da sala (VILARONGA; MENDES, 2014; PINHEIRO; MASCARO, 2016;
CASTRO; MENEZES; BRIDI, 2016; VILARONGA; MENDES; ZERBATO, 2016;
FRANCO; NERES, 2017; SANTOS et al., 2019).
Da busca por dissertações e teses, apareceram 22 trabalhos, sendo selecionados 3
dissertações e 1 tese. Suas questões de análise estão relacionadas à falta de clareza sobre
quem é esse profissional. Cabe ressaltar, entretanto, que o único estudo que discute as
condições de trabalho e emprego desse profissional é a dissertação de Martins (2011)
que analisa como está organizada a atuação dos profissionais de apoio nas classes co-
muns, tendo como campo empírico 9 municípios que constituem a Regional Grande
Florianópolis, em Santa Catarina. Esse estudo identifica sinais de precarização das con-
dições de trabalho a partir da falta de formação, de regulamentação do cargo, baixos
salários, sobrecarga, intensificação e condições inadequadas de trabalho.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Fragmentos de uma narrativa em curso sobre o profissional de apoio pedagógico na Educação Especial
191
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 177-196, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Dentre os achados, apresentamos na Tabela 3 os termos que nomeiam o profis-
sional pedagógico, conforme identificados nos artigos selecionados.
Tabela 3 – Termos utilizados para nomear o profissional
de apoio pedagógico da educação especial
Termo
Onde é adotado
Professor Mediador
Rede Estadual do Acre
(LIMA, 2016)
Segundo Professor de Turma
Rede Estadual de Santa Catarina
(ARAÚJO, 2015)
Auxiliar Pedagógico Especializado
(APE)
Escola pública de Campo Grande,
MS
(FRANCO;
NERES, 2017)
Elaborada pelas autoras
Os termos adjetivados já anunciam que são profissionais de segunda ordem: é
professor, mas é auxiliar, ou é apoio, ou mediador, ou ainda, segundo professor. Vaz
(2019, p. 106) observa que mais importante do que as denominações, são as definições
que eles carregam. Ela questiona se essa situação reflete a dificuldade que o trabalho da
Educação Especial, enquanto campo específico tem em ser compreendido enquanto
trabalho docente.
Além da dinâmica da organização federativa do país, apontado linhas acima, ou-
tra situação a ser considerada dá-se com relação à orientação da Nova Gestão Pública
(NGP), que sob o argumento da racionalidade técnica e maior eficiência do setor pú-
blico, introduziu na organização e gestão escolar, mecanismos que comprometem as
condições de trabalho, carreira e remuneração docente (OLIVEIRA, 2004). De acordo
com essa autora, muitos dos mecanismos caracterizam-se por medidas de flexibilização
da legislação trabalhista, facultando a contratação temporária dos professores, além de
apresentar grande variedade salarial (OLIVEIRA, 2004).
Assim, em um cenário onde os sistemas de educação operam isolados, criando
suas próprias regras para os novos cargos, sob a égide da eficiência e da eficácia do
serviço público, inferimos que, mesmo dentro do Magistério, com as condições de tra-
balho já muito deterioradas, os “novos” profissionais da Educação Especial são
atingidos de maneira muito mais severa, visto que suas ocupações não possuem tradição
no mundo do trabalho. Como apresentado nos estudos mencionados na Tabela 3, via
de regra, são profissionais contratados temporariamente ou, em outros casos, são pro-
fessores que migraram para a “nova” função, demonstrando que não há concurso e que
o serviço é executado por profissional sem estabilidade no cargo.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Isabel Matos Nunes, Márcia Alessandra de Souza Fernandes
192
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 177-196, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Faltam-nos estudos para atualizar os dados dos trabalhos de Fernandes e Nunes
(2016). Mesmo assim, a partir de nossa vivência e atuação profissional na rede pesqui-
sada, sabemos que a situação continua a mesma: o cargo ainda não foi criado na lei de
estrutura, os profissionais são contratados temporariamente, como professores e em
desvio de função.
Considerações sobre uma narrativa em curso
Sob o desafio de refletir sobre como está estruturada a vida do profissional de
apoio pedagógico que atua na sala de aula comum, com o professor regente, observa-
mos que a ausência de uma política de Estado (OLIVEIRA, 2011) oportuniza o desvio
de função, compromete a oferta do serviço e negligencia direitos.
Os dados analisados apontam que a chegada do profissional pedagógico na sala
de aula dá-se pela via do improviso, ainda que na tentativa de minimizar o impacto
ocasionado pela inadiável chegada dos estudantes da Educação Especial, até então, fora
da escola comum.
De acordo com Fernandes (2016), a história da Educação Especial na rede pes-
quisada está marcada por projetos que existiram por um tempo sem nenhuma
regulamentação e, com a mudança dos gestores, deixam de existir, como é o caso do
NEIM que funcionou por 3 anos sem nenhuma regulamentação. Há também o oposto:
leis municipais e normativas do CME que determinam a oferta de um serviço, mas que
necessitam de outras normas para existirem de fato (como é o caso do cargo do atual
auxiliar de educação especial), que mesmo desenhado na lei e na resolução, ainda não
existe na estrutura dos serviços do município.
A situação do profissional de apoio pedagógico na sala de aula está a nos revelar
muito da fragilidade do serviço prestado e da opção dos gestores públicos, que ao assu-
mirem implementar as políticas públicas, também reforçam estratégias de controle na
correlação de forças entre profissionais de carreira e os contratados temporariamente.
Tal situação evidencia o que Elias e Scotson (2000, p. 23) denominam de sociodinâ-
mica da estigmatização, definida como, “[...] a condição em que um grupo consegue
lançar um estigma sobre outro”, fazendo com que eles não mais se identifiquem nas
suas batalhas comuns. Sem se identificarem coletivamente, se dividem, e divididos,
mais frágeis se tornam.
Assim argumentamos por compreender que muitas das transformações na edu-
cação decorrem das lutas assumidas pelos profissionais, seja em defesa de melhores
condições de trabalho, seja em defesa de um serviço específico. De um modo ou de
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Fragmentos de uma narrativa em curso sobre o profissional de apoio pedagógico na Educação Especial
193
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 177-196, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
outro, entendemos serem os tensionamentos assumidos pelos profissionais junto às ad-
ministrações que têm impulsionado avanço na garantia do direito à educação, ao
instituírem um “equilíbrio instável de poder” (ELIAS; SCOTSON, 2000). Sobre esse
aspecto, compreendemos que a negativa por parte da administração em organizar a
situação do profissional de apoio pedagógico do estudante público-alvo da Educação
Especial faz parte de um conjunto de intenções a fim de manter demarcado, numa
correlação de forças, o limite e o controle dos outsiders (ELIAS; SCOTSON, 2000).
Para Oliveira (2004, p. 1138), o aumento dos contratos temporários; salários
abaixo da média equivalente a outras profissões; desrespeito ao piso da categoria; planos
de cargos e carreias inexistentes ou inadequados; perda de direitos e garantias trabalhis-
tas e previdenciários são alguns dos sintomas que evidenciam os efeitos da flexibilização
das leis trabalhistas, agudizando a instabilidade e a precariedade do emprego no magis-
tério público. Para nós, todos esses sintomas recaem sobre o profissional de apoio
pedagógico da Educação Especial que ainda não possui nem mesmo um termo para
nomeá-lo, tornando-se quase imperceptível.
Notas
1
Os números apresentados circunscrevem-se a 2014 porque este é o ano de alcance pesquisa e por estes
dados serem suficientes para as reflexões que pretendemos elaborar.
2
Dados adaptados pelas autoras.
3
Para manter o sigilo sobre os conselheiros entrevistados, optamos por nomes fictícios, sem descrever
função ou segmento ocupado no colegiado.
4
Nos trabalhos de revisão da Resolução 4, o CME realizou plenárias abertas à comunidade escolar.
Referências
ARAÚJO, Bárbara Karolina. A formação do Segundo Professor de Turma do Estado de Santa
Catarina. 2015. 344 f. Dissertação (Mestrado em Educação) Programa de Pós-Graduação
em Educação, Universidade Federal de Santa Maria, Florianópolis, 2015. Disponível em:
https://repositorio.ufsc.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/158780/337029.pdf?se-
quence=1&isAllowed=y. Acesso em: 07 dez. 2020.
ARAÚJO, Gilda Cardoso. Políticas educacionais e estado federativo: conceitos e debates sobre a
relação entre município, federação e educação no Brasil. Curitiba: Appris, 2013.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Isabel Matos Nunes, Márcia Alessandra de Souza Fernandes
194
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 177-196, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
BRASIL. Lei 9394/96 Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Disponível em:
www.planalto.gov.br. Acesso em: 10/09/2021.
BRASIL. Ministério da Educação. Nota técnica 19/2010. Brasília: SEESP, 2010.
BRASIL. Política Nacional da Educação Especial na Perspectiva de Educação Inclusiva. Brasília,
DF: MEC/SEESP, 2008.
BRASIL. Resolução CNE/CEB n.º 2, de 11 de setembro de 2001. Institui diretrizes nacio-
nais para a educação especial da educação básica. Diário Oficial [da] República Federativa do
Brasil, Brasília, 14 set. 2001a. Seção 1E, p. 34-40.
BRASIL. Constituição Federal 1988 Brasília: Senado, 1988.
CASTRO, Sabrina Fernandes; MENEZES, Eliana da Costa Pereira; BRIDI, Fabiane Ro-
mano de Souza. Iniciação à docência na educação especial. Journal of Research in Special
Educational Needs, Staffordshire, UK, v.16, pp.658-661, ago. 2016. Disponível em:
https://nasenjournals.onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1111/1471-3802.12326. Acesso
em: 11 set. 2020.
CONSELHO MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO (São Mateus). Resolução n.º 11 de 2012 [sem
publicação].
CONSELHO MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO (São Mateus). Resolução n.º 12, de 15 de de-
zembro de 2014. São Mateus, ES: Folha Acadêmica, 2014.
ELIAS, Norbert. O processo civilizador: formação do Estado e civilização. Rio de Janeiro:
Zahar, 1993. v. 2.
ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de
poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: WVA Ed., 2000.
FERNANDES, Márcia Alessandra de Souza. Conselho Municipal de Educação: figurações, in-
terdependências e políticas de Educação Especial. 2016. 200 f. Dissertação (Mestrado em
Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Espírito
Santo, Vitória, 2016.
FRANCO, Lucimar de Lima; NERES Celi Corrêa. As (re)ações dos professores regentes e o
auxiliar pedagógico especializado (ape) na escolarização do estudante com deficiência. Revista
Periferia, v. 9, n. 1, jan./jun. 2017 - Dossiê: Educação Especial e Inclusiva.
GARCIA, Rosalba Martins. C. Política de educação especial na perspectiva inclusiva e a forma-
ção docente no Brasil. Revista Brasileira de Educação v. 18 n. 52 jan-mar. 2013.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA IBGE. Cidades@. Rio
de Janeiro, 2020. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/es/sao-mateus/panorama.
Acesso em: 30 abr. 2020.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Fragmentos de uma narrativa em curso sobre o profissional de apoio pedagógico na Educação Especial
195
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 177-196, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO
TEIXEIRA. Censo escolar 2019. Disponível em: http://portal.inep.gov.br/web/guest/resulta-
dos-e-resumos. Acesso em: 3 abr. 2020.
LIMA, Kátia Soares Bezerra de. O trabalho docente e suas repercussões face à inclusão. 2016,
159 f. Dissertação (Mestrado em Educação) Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação,
Universidade Federal do Acre, Rio Branco, 2016. Disponível em:
http://www2.ufac.br/ppge/banco-de-dissertacoes/dissertacoes-2016-1/dissertacao-katia-soa-
res.pdf. Acesso em: 12 out 2020.
LOPES, Mara Aparecida de Castilho. Ensinar: “então é função de quem?” Atuação do professor
interlocutor na educação de surdos da rede estadua paulista. 208 f. Tese (Doutorado em Educa-
ção) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo,
2015.
MARTINS, Sílvia Maria. O profissional de apoio na rede regular de ensino: a precarização do
trabalho com os alunos da Educação Especial. 2011. 168 f. Dissertação (Mestrado) Curso
de Mestrado em Educação, Centro de Ciências da Educação, Universidade Federal de Santa
Catarina, Florianópolis, SC, 2011. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/xmlui/han-
dle/123456789/95218. Acesso em: 07 dez. 2020.
NUNES, Isabel Matos. Política de escolarização de sujeitos com diagnóstico de Deficiência Múl-
tipla: Tensões e Desafios. 240 f. Tese (Doutorado em Educação) Programa de Pós-
Graduação em Educação, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2016.
OLIVEIRA, Dalila Andrade de. A Reestruturação do Trabalho: precarização e flexibilização.
Educação e Sociedade. Campinas, vol. 25, n. 89, p. 1127-1144, set./dez. 2004. Disponível
em: http://www.cedes.unicamp.br. Acesso em: 29 set. 2020.
OLIVEIRA, Dalila. Das Políticas de Governo à Política de Estado: Reflexões Sobre a Atual
Agenda Educacional Brasileira. Educ. Soc., Campinas, v. 32, n. 115, p. 323-337, abr.-jun.
2011. Disponivel em: http://www.cedes.unicamp.br
PINHEIRO, Vanessa Cabral da Silva; MASCARO, Cristina Angélica de Aquino Carvalho.
A bidocência como uma proposta inclusiva. Journal of Research in Special Educational Needs,
Staffordshire, UK, v.16, pp.37-40, ago. 2016. Disponível em: https://nasenjournals.onlineli-
brary.wiley.com/doi/epdf/10.1111/1471-3802.12123. Acesso em: 11 set. 2020.
SANTOS, Danielle Aparecida Nascimento; LANUTI, José Eduardo de Oliveira Evangelista;
ROCHA, Naiara Chierici da; BARROS, Denner Dias. Educação matemática: a articula-
ção de concepções e práticas inclusivas e colaborativas. Educação Matemática Pesquisa, São
Paulo, v.21, n1, pp 254-276, 2019. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/in-
dex.php/emp/article/view/38783/pdf. Acesso em: 11 set. 2020.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Isabel Matos Nunes, Márcia Alessandra de Souza Fernandes
196
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 177-196, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
SAVIANI, Dermeval; Sistema nacional de educação articulado ao plano nacional de educação.
Revista Brasileira de Educação v. 15 n. 44 maio/ago. 2010.
VAZ, Kamille. O professor de educação especial nas políticas de perspectiva inclusiva no Brasil:
concepções em disputa. 2013. 231 f. Dissertação (Mestrado em Educação)Programa de
Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Santa Maria, Florianópolis, 2013.
Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/xmlui/bitstream/han-
dle/123456789/123143/322561.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 07 dez. 2020.
VILARONGA, Carla Ariela Rios; MENDES, Enicéia Gonçalves. Ensino colaborativo para o
apoio à inclusão escolar: práticas colaborativas entre os professores. Revista Brasileira de Estu-
dos Pedagógicos, Brasília, DF, v. 95, p. 139-151, 2014. Disponível em:
https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S2176-66812014000100008&script=sci_abs-
tract&tlng=pt. Acesso em: 11 set. 2020.
VILARONGA, Carla Ariela Rios; MENDES, Eniceia Gonçalves; ZERBATO, Ana Paula. O
trabalho em colaboração para apoio da inclusão escolar: da teoria à prática docente
. Revista
Interfaces da Educação, Paranaíba, v.7(19), pp.66-87, Jun. 2016. Disponível em: https://peri-
odicosonline.uems.br/index.php/interfaces/article/view/1029. Acesso em: 11 set. 2020.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Este artigo está licenciado com a licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
197
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 197-221, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Educação como fator de ressocialização de condenados: uma
experiência no Método APAC
Education as a factor for the resocialization of convicted: an experience
in the APAC Method
La Educación como factor de resocialización de los condenados: una
experiencia en el Método APAC
Helenara Regina Sampaio Figueiredo
*
Gislaine de Oliveira Spínola
**
Resumo
Este artigo é parte do recorte de uma dissertação, que apresenta uma pesquisa qualitativa realizada
em uma unidade prisional modelo a qual adota a metodologia da Associação de Assistência e Prote-
ção aos Condenados (APAC), na cidade de Itaúna/MG. A pesquisa foi realizada com 7 professores
que lecionam no estabelecimento prisional na modalidade Educação para Jovens e Adultos (EJA).
Os dados foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas e analisados segundo a categori-
zação de Bardin (2016). A pesquisa contou com 2 categorias: “O Professor da APAC e o Eixo
Transversal Trabalho e Consumo” e “O Trabalho do Professor e o Método APAC”, estas categorias
foram divididas em 7 subcategorias. Neste artigo foi abordada a sexta subcategoria “O professor e a
importância da educação para a cidadania” com o objetivo de evidenciar a compreensão do docente
acerca de seu papel na ressocialização de condenados para a promoção da pacificação social. Conclui-
se que o engajamento do professor e a sua atuação em consonância com os documentos oficiais de
ensino são fundamentais para a reinserção social.
Palavras-chave: ensino e educação; sistema prisional; APAC; EJA.
Recebido em: 12/02/2019 Aprovado em: 09/06/2022
https://doi.org/10.5335/rep.v29i1.9102
ISSN on-line: 2238-0302
*
Doutora em Educação para a Ciência e a Matemática, Licenciada em Pedagogia, Matemática e Ciência, docente do Programa
de Pós- Graduação em Metodologias para o Ensino de Linguagens e suas Tecnologias, Universidade Pitágoras Unopar. E-
mail: helenara@kroton.com.br. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7974-0818.
**
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Metodologias para o Ensino de Linguagens e suas Tecnologias, especialista em
Direito Público, advogada, docente do curso de Direito da Faculdade Pitágoras. E-mail: gisaspinola@gmail.com. Orcid:
https://orcid.org/0000-0003-4530-8458.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Helenara Regina Sampaio Figueiredo, Gislaine de Oliveira Spínola
198
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 197-221, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Abstract
This study is part of a dissertation that presented qualitative research carried out in a model prison
unit that adopts the methodology of the Association of Assistance and Protection to the Convicted
(APAC) in the city of Itaúna / MG. The research was carried out with 7 lecturers who teach in the
juvenile and adult education prison (EJA). The data were collected through semi-structured
interviews and analyzed according to Bardin's categorization (2016). The research consisted of 2
categories: "The APAC Professor and the Transversal Work and Consumption Axis" and "The
Professor’s Work and the APAC Method", these categories were divided into 7 subcategories. This
work focusses in the sixth subcategory "The professor and the importance of education for
citizenship" was approached with the goal of demonstrating the professor' understanding of their
role in the resocialization of convicted persons in order to promote social pacification. It was
concluded that the professor engagement and its acting in accordance with official teaching
documents are fundamental for social reintegration.
Keywords: teaching and education; prison system; APAC; EJA.
Resumen
Este artículo forma parte de una disertación, que presenta una investigación cualitativa realizado en
una unidad penitenciaria modelo que adopta la metodología de la Asociación para Asistencia y Pro-
tección al Convicto (APAC), en la ciudad de Itaúna/MG. La investigación fue realizado con 7
profesores que imparten clases en la cárcel en la modalidad Educación para Jóvenes Adultos (EJA).
Los datos se recogieron mediante entrevistas semiestructuradas entrevistas semiestructuradas y ana-
lizadas según la categorización de Bardin (2016). La investigación incluyó con 2 categorías: "El
profesor de APAC y el eje transversal de trabajo y consumo" y "El El trabajo del profesor y el método
APAC", estas categorías se dividieron en 7 subcategorías. En este artículo, la sexta subcategoría "El
profesor y la importancia de educación para la ciudadanía" con el fin de destacar la comprensión del
profesor sobre su papel en la resocialización de los convictos para promover la paz social. Se concluye
que la contratación del profesor y su actuación se ajusten a los documentos oficiales de la enseñanza
son fundamentales para la reinserción social.
Palabras clave: enseñanza y educación; sistema penitenciario; APAC; EJA.
Introdução
A desigualdade social proporciona a exclusão, a segregação e a vulnerabilidade
que, muitas vezes, faz com que o indivíduo destituído do status de cidadão entregue-se
à criminalidade.
Relatórios do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias
(INFOPEN), do Ministério da Justiça, divulgados em 2017, apontam que o Brasil tem
a terceira maior população carcerária do mundo. Aliado a este dado verifica-se o índice
de reincidência próximo a 90%, segundo levantamento de 2014.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Educação como fator de ressocialização de condenados: uma experiência no Método APAC
199
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 197-221, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Embora a Lei de Execução Penal (LEP) traga expressamente os direitos e deveres
dos condenados, estes dados comprovam a ineficácia do sistema carcerário brasileiro,
isto é, prende-se cada vez mais e ressocializa-se cada vez menos. Os noticiários exibem
todos os dias estabelecimentos superlotados, em condições insalubres, abusos de todas
as naturezas e um flagrante desrespeito aos Direitos Humanos.
No Brasil, a pena privativa de liberdade limita apenas o direito de locomoção e
os direitos políticos do condenado, mantendo-se todos os demais direitos constitucio-
nais, inclusive o direito à educação. (BRASIL, 1988)
Considerando que a educação é ferramenta de transformação social e o ensino,
principalmente de condenados, deve ser pautado pela formação para a cidadania, a
discussão desse tema é de suma importância para que a pena cumpra seu objetivo res-
socializador.
Faz-se necessário o entendimento do termo “ressocializar” segundo o viés do di-
reito penal e uma compreensão exata perpassa pela etimologia da palavra: reabilitação,
recuperação, readaptação, reinserção, entre outros léxicos correlatos, segundo Bechara
(2004).
O cidadão privado de liberdade precisa novamente inserir-se na sociedade, sentir-
se parte do corpo social e ser mais uma vez educado para o respeito às normas destinadas
à pacificação social. Neste sentido, ressocialização, reinserção e reeducação podem ser
tratadas como sinônimos uma vez que são imprescindíveis para a não reincidência.
(ROSA, 2019)
Para que haja justiça social é preciso que todos os direitos sejam respeitados, tanto
por parte do cidadão quanto por parte do Estado. Aquele que infringe as leis deve ser
punido, entretanto essa punição deve ocorrer em consonância com o Princípio da Dig-
nidade Humana. Pautando-se por esta afirmação, estabeleceu-se o estudo acerca de
uma metodologia alternativa de cumprimento de pena e o ensino dos apenados nela
inseridos.
Este artigo é parte de uma dissertação de mestrado apresentada em dezembro
de 2018, intitulada “Abordagem sobre a temática trabalho e consumo na Educação de
Jovens e Adultos na APAC de Itaúna/MG”.
Tem-se, aqui, por objetivo evidenciar a compreensão do professor acerca de seu
papel na ressocialização de condenados para a promoção da pacificação social. Pre-
tende-se ainda demonstrar a possibilidade de efetivação dos Direitos Humanos e do
cumprimento integral da Lei de Execução Penal em um estabelecimento prisional al-
ternativo, assim como apresentar a metodologia APAC no intuito de obtenção da
Justiça Social.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Helenara Regina Sampaio Figueiredo, Gislaine de Oliveira Spínola
200
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 197-221, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Para que este objetivo possa ser alcançado, utilizou-se do arcabouço teórico da
Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Lei de Execução Penal, da Metodologia
APAC e os documentos oficiais de ensino, dentre os quais merece destaque os Parâme-
tros Curriculares Nacionais (PCNs). Os dados utilizados referem-se apenas a uma
subcategoria da pesquisa, qual seja: o professor e a importância da educação para a
cidadania.
Ao fim, pretende-se apresentar os resultados da pesquisa, analisados de forma
sistemática, envolvendo questões educacionais, carcerárias e humanitárias, com o in-
tuito de colaborar com a discussão em termos sociais.
Dispositivos internacionais que versam sobre o cidadão privado
de liberdade
Em 1945, com o fim da Segunda Guerra Mundial, a publicação das atrocidades
cometidas pelo Nazismo e o elevado número de mortes em todos os países envolvidos
fez-se necessária a criação de um organismo internacional destinado a manter a paz
mundial. Assim, foi criada a Organização das Nações Unidas (ONU), nome sugerido
pelo então presidente americano Roosevelt, destinada a manter a segurança coletiva, os
direitos fundamentais, o progresso social e a paz entre os povos, tendo como signatários
cinquenta e um países na data de constituição (CLAUDE, 2005).
A ONU aprovou, em 1948, a resolução 217 na qual institui a Declaração Uni-
versal dos Direitos Humanos. O documento que passa a ter vigência em todos os países
integrantes das Nações Unidas, inclusive o Brasil, possui 30 artigos e estabelece direitos
fundamentais e irrenunciáveis de todo ser humano (TASCA, 2016).
Os Direitos Humanos passam a influenciar a legislação de todos os países que os
ratificaram, tendo como fundamento o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.
Neste contexto, estão instituídos os seguintes direitos fundamentais: direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança, à propriedade e à educação, dentre outros
(CLAUDE, 2005).
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, que completou 70 anos, nada
mais fez do que positivar os direitos naturais defendidos por John Locke, em 1681. A
resolução, deu roupagem nova a uma teoria já concebida há 250 anos antes, por meio
do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. No entanto, o Brasil enquanto sig-
natário da ONU só incorporou esse princípio ao seu ordenamento jurídico, em 1988,
pela Constituição Federal vigente e ainda assim, trinta anos depois, não conseguiu efe-
tivá-lo.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Educação como fator de ressocialização de condenados: uma experiência no Método APAC
201
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 197-221, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Os Direitos Humanos são vistos de forma pejorativa, “o direito dos mano”, por
ignorância e desinteresse coletivo atribui-se a eles a função exclusiva de defender ban-
dido. Ouve-se cada dia mais, independente do ambiente, vulgar ou acadêmico,
“Direitos Humanos para humanos direitos”, principalmente em relação aos presos, ex-
cluídos e pessoas em risco social e é esse pensamento que legitima a “criminalização da
pobreza” defendida por Wacquant (1999, p. 15). Pessoas socialmente inseridas e de-
tentoras de cidadania raramente buscarão respaldo para defender seu direito à vida, à
liberdade, à saúde, à educação e a existir de forma digna.
Por outro lado, a cidadania é alcançada por meio da educação, das relações de
trabalho protegidas, da assistência previdenciária, da estabilidade jurídica, da segurança
provida pelo Estado, das relações comerciais livres, da liberdade ideológica e religiosa,
da igualdade enquanto premissa e tudo isso está contido na Declaração Universal do
Direito do Homem. (ONU, 1948).
Esse diploma legal foi bem aceito no âmbito civil, comercial, trabalhista, previ-
denciário, entretanto, é rechaçado quando o assunto é Direito Carcerário e políticas
públicas, devido ao público a que se destinam. Muitos são os desdobramentos possíveis
no que se refere a esta questão, mas por questões didáticas serão analisados apenas os
aspectos educacionais e carcerários.
O caráter educacional do qual estão revestidos os Direitos Humanos é inegável,
a educação não é neutra e ensinar aos jovens sobre os ideais fraternos é a única forma
de evitar conflitos sociais e bélicos. Ao estabelecer a educação como direito do cidadão,
a impõe como dever do Estado, conforme descrito no artigo 26:
1. Toda a pessoa tem direito à educação. A educação deve ser gratuita, pelo menos a correspon-
dente ao ensino elementar fundamental. O ensino elementar é obrigatório. O ensino técnico e
profissional deve ser generalizado; o acesso aos estudos superiores deve estar aberto a todos em
plena igualdade, em função do seu mérito.
2. A educação deve visar à plena expansão da personalidade humana e ao reforço dos direitos do
Homem e das liberdades fundamentais e deve favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade
entre todas as nações e todos os grupos raciais ou religiosos, bem como o desenvolvimento das
atividades das Nações Unidas para a manutenção da paz.
3. Aos pais pertence a prioridade do direito de escolher o gênero de educação a dar aos filhos
(ONU, 1948).
No intuito de garantir a efetivação dos Direitos Humanos, a ONU reuniu-se em
Genebra, em 1955, no “Primeiro Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do
Crime e o Tratamento dos Delinquentes” e deste encontro resultam as “Regras Míni-
mas para o Tratamento dos Reclusos” (ALMEIDA, 2014).
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Helenara Regina Sampaio Figueiredo, Gislaine de Oliveira Spínola
202
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 197-221, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
O Brasil, enquanto membro fundador da ONU, ratifica esse tratado internacio-
nal comprometendo-se a incorporá-lo à legislação pátria. Deste documento merecem
destaque os seguintes artigos:
Art. 40 Cada estabelecimento deverá dispor de uma biblioteca para uso de todas as categorias de
reclusos, devidamente provida com livros recreativos e educativos, e os reclusos serão incentiva-
dos a utilizá-la plenamente.
(...)
Art. 77 (1). Deverão ser tomadas medidas no sentido de melhorar a educação de todos os reclusos
que daí tirem proveito, incluindo a instrução religiosa nos países em que tal seja possível. A edu-
cação de analfabetos e jovens reclusos será obrigatória, e a administração deverá prestar-lhe
especial atenção.
(2). Tanto quanto possível, a educação dos reclusos deverá estar integrada no sistema educativo
do país, para que após a libertação possam prosseguir os seus estudos sem dificuldade (ONU,
1955).
No entanto, a Constituição vigente no Brasil é a de 1946, anterior à declaração
Universal dos Direitos do Homem (ONU, 1948), por isso ainda não havia incorpo-
rando-a plenamente. O Código Penal de 1940 traz alguns aspectos da execução penal,
mas, ainda, existem lacunas legislativas neste sentido (ALMEIDA, 2014).
Sob forte influência dos tratados internacionais, principalmente o que estipula
“Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos” (ONU, 1955), é sancionado no
Brasil o Projeto de Lei nº 636 que dá origem à Lei n º 3.274/57 Normas Gerais de
Regime Penitenciário. Entretanto, este diploma legal não contemplava o Princípio da
Dignidade da Pessoa Humana, incluindo a educação no regime de cumprimento de
pena, apenas de maneira formal (ALMEIDA, 2014).
Há que se considerar que a Lei nº 3.274/57 é o primeiro dispositivo legal a nor-
matizar a execução da pena, que até então era negligenciada pela legislação pátria e
tratada como apêndice do Direito Penal ou Processual Penal (ALMEIDA, 2014).
Como dito anteriormente, o Brasil passa a ter normatização carcerária, mas,
ainda, esta não compreendia o caráter humanitário estabelecido pelos tratados interna-
cionais. Muitos fatores importantes como a educação e as especificidades da execução
não tinham aplicabilidade. Posto isto, os direitos inerentes ao preso ainda são vagos,
com muitas brechas e omissões na lei (ALMEIDA, 2014).
Infelizmente, essa lacuna jurídica não será preenchida nos próximos anos, dado
ao Golpe Militar de 1964. A ditadura militar mancha as “páginas da história brasileira
com todo o tipo de arbitrariedades, presos políticos, torturas, estupros, sequestros, de-
saparecimentos misteriosos e morte de civis” (LIMA, 2012, p. 12).
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Educação como fator de ressocialização de condenados: uma experiência no Método APAC
203
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 197-221, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Houve muitas “prisões por divergências político-ideológicas e não interessava ao
governo regulamentar direitos carcerários. Nos “porões da ditadura” há todo o tipo de
desrespeito aos Direitos Humanos” (LIMA, 2012, p. 13).
O poder executivo sobrepõe o legislativo e o judiciário, passando o país a ser
governado através dos Atos Institucionais (AIs), paralelos à Constituição, dentre os
quais merece destaque o AI5 decretado em dezembro de 1968 e vigente por dez anos
(LIMA, 2012).
Este período de exceção enfrentado pelo país é o responsável pelo atraso na ela-
boração de leis que regulamentem a execução penal.
A LEP e demais dispositivos legais pátrios que versam sobre o
cidadão privado de liberdade e seu acesso à educação
Em 1984, sanciona-se a Lei de Execução Penal (LEP), que contempla a huma-
nização da pena, especifica todos os direitos e deveres do preso, assim como o alcance
da pena privativa de liberdade. O artigo 3º traz a seguinte redação: [...] ao condenado
e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela
lei. Parágrafo único. Não haverá qualquer distinção de natureza racial, social, religiosa
ou política”. Assim sendo, a pena privativa de liberdade restringe apenas o direito de
locomoção do condenado e seus direitos políticos, mantendo-se todos os demais direi-
tos e garantias fundamentais. (BRASIL, 1984)
Um aspecto importante para este artigo é o direito à educação que passa a ser
garantido de forma expressa no artigo 17 e seguintes:
Art. 17. A assistência educacional compreenderá a instrução escolar e a formação profissional do
preso e do internado.
Art. 18. O ensino de 1º grau será obrigatório, integrando-se no sistema escolar da Unidade Fe-
derativa.
Art. 19. O ensino profissional será ministrado em nível de iniciação ou de aperfeiçoamento téc-
nico.
Parágrafo único. A mulher condenada terá ensino profissional adequado à sua condição.
Art. 20. As atividades educacionais podem ser objeto de convênio com entidades públicas ou
particulares, que instalem escolas ou ofereçam cursos especializados.
Art. 21. Em atendimento às condições locais, dotar-se-á cada estabelecimento de uma biblioteca,
para uso de todas as categorias de reclusos, provida de livros instrutivos, recreativos e didáticos.
Em 1988, promulga-se a Constituição Federal sob a égide da recém conquistada
democracia que, ainda hoje, é tida como modelo Constitucional, e, assim, considerada
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Helenara Regina Sampaio Figueiredo, Gislaine de Oliveira Spínola
204
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 197-221, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
um documento de vanguarda, que abrange todas as garantias fundamentais e sociais do
cidadão. Todos os tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário estão recepci-
onados na Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB), destacando-se a
Declaração dos Direitos Humanos e as Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclu-
sos (ALMEIDA, 2014).
Valendo-se dos preceitos constitucionais é editada a Lei de Diretrizes Básicas
LDB/1996, substituindo a versão de 1961, reformada em 1971. As principais inova-
ções foram: inclusão da Educação Infantil na Educação Básica, duzentos dias letivos
anuais, criação do Plano Nacional de Educação (PNE), regulamentação das verbas fe-
derais, estaduais e municipais destinadas à educação, exigência de curso superior para
atuar na docência, educação à distância, e uma seção destinada à Educação de Jovens e
Adultos – EJA (BRASIL, 1996).
Esses dois dispositivos legais conferem universalidade à educação. Entretanto,
estender este direito a toda população brasileira, inclusive à privada de liberdade, não é
tarefa fácil.
Em 2001, o Plano Nacional de Educação (PNE) inclui o preso na modalidade
EJA, por meio da meta 17 que estabelece:
Implantar, em todas as unidades prisionais e nos estabelecimentos que atendam adolescentes e
jovens infratores, programas de educação de jovens e adultos de nível fundamental e médio, assim
como de formação profissional, contemplando para esta clientela as metas n° 5 e nº 14 (BRASIL,
2001).
Embora o cidadão privado de liberdade, conste em vários dispositivos legais re-
ferentes à educação, a aplicabilidade destes ainda é muito pequena, o que motiva o
projeto “Educando para a Liberdade”. Este projeto foi executado entre os anos de 2005
e 2006, em parceria com o Ministério da Educação, Ministério da Justiça, UNESCO
e o governo do Japão (UNESCO, 2006).
Além de ampliar a oferta do ensino carcerário, a intenção do projeto é propiciar
uma educação libertadora, crítica, no intuito de formar cidadãos aptos para a cidadania
e sujeitos de sua própria história. Os Estados participantes do projeto são Ceará, Para-
íba, Goiás e Rio Grande do Sul. A escolha dos participantes deu-se mediante o
comprometimento desses governos com a causa da inclusão por meio da educação
(UNESCO, 2006).
Este projeto deu origem a vários seminários nos quais outros estados brasileiros
são chamados à participação. Alguns teóricos internacionais compõem os eventos que
sempre contam com a participação de representantes do Ministério da Educação, da
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Educação como fator de ressocialização de condenados: uma experiência no Método APAC
205
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 197-221, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Justiça, da UNESCO e, por fim, passam a contar com representantes dos presos, que
contribuem através de peças teatrais. As discussões giram em torno dos principais pro-
blemas enfrentados pelo sistema prisional brasileiro e possíveis soluções (UNESCO,
2006).
Por meio do projeto “Educando para a Liberdade”, os problemas e as dificulda-
des enfrentados pela educação intramuros ganham corpo e podem ser analisados à luz
da efetividade. As discussões concentram-se em temas como: material didático, espaço
para as aulas, a evasão da escola em função da abertura de postos de trabalho, a possi-
bilidade de remição pelo estudo, o despreparo dos docentes, as condições de violência
diária enfrentadas pelos presos, superlotação, a falta de condições básicas de higiene e
a destinação dos recursos públicos (UNESCO, 2006).
A relevância deste projeto culmina, entre outras ações, na edição da Resolução
03/2009 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da
Justiça, que estabelece as Diretrizes da Educação Carcerária e na edição da Resolução
02/2010 do Ministério da Educação, estabelecendo a EJA como modalidade oficial de
ensino para os cidadãos privados de liberdade.
Ainda sob influência do projeto “Educando para Liberdade”, é estabelecida a
remição pelo estudo, a cada doze horas de estudo formal o condenado tem direito a
remir um dia de pena, direito concedido pela Lei nº 12.433/11 (BRASIL, 2011).
A remição pelo estudo é um grande passo para a efetivação da educação no sis-
tema carcerário, posto que, confere um incentivo a mais ao detento para aderir aos
projetos educacionais. Ainda que ele não tenha a educação como valor, a liberdade é o
fim que se pretende.
Em 2013, o Conselho Nacional de Justiça por meio da Recomendação 44/2013,
preenche uma lacuna deixada pela Lei 12.433/11, que traz a expressão “atividades
educacionais complementares”, com a possibilidade de remição pela leitura. O preso
tem entre vinte e dois a trinta dias para ler uma obra literária e apresentar uma resenha
sobre o texto lido. Este trabalho efetuado pelo condenado é avaliado pela direção do
estabelecimento prisional, juntamente com o responsável pedagógico e, enviado para o
juiz de execução penal, o que confere ao apenado quatro dias de remição, limitados a
quarenta e oito anuais, isto é, sendo doze livros por ano (BRASIL, 2013).
Em 2015 a Lei 13.163/15 insere o Ensino Médio nos presídios em atendi-
mento ao princípio de Universalização da Educação.
Embora tenha ocorrido um avanço normativo no intuito de efetivar o direito do
cidadão privado de liberdade à educação, os obstáculos de ordem prática ainda são
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Helenara Regina Sampaio Figueiredo, Gislaine de Oliveira Spínola
206
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 197-221, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
muitos. Falta estrutura física e investimento nas instituições prisionais, além do caráter
retributivo da pena ainda estar muito arraigado no corpo social.
Documentos orientadores do ensino
O Ministério da Educação, por meio da Secretaria de Educação Fundamental,
alterou a forma e o conteúdo do Ensino Fundamental, no intuito de contextualizar as
matérias ministradas e preparar os adolescentes para a vida. Atendendo a este propósito,
assim como à melhor capacitação dos docentes foi elaborado o documento intitulado
Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN (BRASIL, 1998).
O PCN tem como fundamento a Lei de Diretrizes Básicas LDB de 1996 e visa
uma formação geral, opondo-se à formação específica que tinha como foco a capaci-
dade de memorização. O objetivo agora é a capacidade de pesquisa, o desenvolvimento
de competências para a compreensão e aplicabilidade das informações que se multipli-
cam cada vez mais rápido dada a globalização e a internet (BRASIL, 1998).
Com o advento da Constituição de 1988, houve uma reforma no pensamento
nacional e esta mudança de paradigmas não poderia deixar de afetar a educação. Pro-
mulgada e concebida sobre o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, em um
período pós-ditadura militar, a essência constitucional é garantista e cidadã.
A nação precisa de cidadãos e é com esse pensamento que o PCN traz objetivos
educacionais muito específicos que estão amparados no Princípio da Dignidade da Pes-
soa Humana, na Igualdade de Direitos, na Participação e na co-responsabilidade pela
vida social (BRASIL, 1998).
Focar na educação para cidadania implica discutir temas como política, distri-
buição de renda, exploração do trabalho, meio ambiente sustentável, preconceito,
discriminação, responsabilidade social e muitos outros capazes de propiciar reflexões
profundas, que conduzem ao pensamento crítico. Posicionar-se frente ao mundo é con-
dição essencial para a autonomia e proporcionar essa postura é também função da
escola (BRASIL, 1998).
• posicionar-se em relação às questões sociais e interpretar a tarefa educativa como uma interven-
ção na realidade no momento presente;
• não tratar os valores apenas como conceitos ideais;
incluir essa perspectiva no ensino dos conteúdos das áreas de conhecimento escolar [...]
(BRASIL, 1998, p. 55).
As orientações contidas no PCN almejam a formação humana pautada pela ca-
pacidade de escolha, pela convivência ética e por um profundo comprometimento
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Educação como fator de ressocialização de condenados: uma experiência no Método APAC
207
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 197-221, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
docente. Os desafios para as práticas educacionais que se pretende são inúmeros, as
propostas de mudança nem sempre são bem vistas. Entretanto, o Estado realmente
Democrático de Direito não será alcançado sem compromisso com a educação.
O PCN, enquanto direcionamento para o docente, visa flexibilizar o currículo
atendendo às particularidades regionais e às demandas sociais mais urgentes. Foram
escolhidos alguns temas de grande relevância social para serem trabalhados transversal-
mente em todas as matérias, com respaldo ético e crítico (BRASIL, 1998).
A UNESCO em parceria com o Ministério da Educação, por meio da Secretaria
de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade SECAD, editou uma coleção
de livros didáticos voltados para a EJA tendo como foco a questão do Trabalho e Con-
sumo. Propiciar a inclusão dessa parcela social que não teve acesso à escolarização na
idade certa não se resume à oferta de vagas, mostra-se necessário contextualizar o apren-
dizado e conferir-lhe aplicabilidade cotidiana no mundo do trabalho (UNESCO,
2005).
O material foi elaborado como base em textos publicitários ou jornalísticos, tra-
zendo temas voltados para a formação cidadã, possibilitando a compreensão e a busca
de direitos. Para isso, abordam-se as questões de preço, marca, consumismo, direitos
do consumidor, transações bancárias, pirataria, tributos, direitos do trabalhador, ali-
mentação saudável e escolha de alimentos; enfim, existe aplicabilidade cotidiana do
ensino.
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica (2013) dedicam
uma seção para estabelecer e justificar a implantação da EJA como modalidade de en-
sino dedicada aos cidadãos privados de liberdade e os assegura o mesmo conteúdo,
metodologia e didática, guardada as devidas proporções, ministrados nas escolas públi-
cas.
A mudança trazida pelo PCN, assim como a globalização, alterou o perfil do
aluno. Lidar com discentes cada vez mais conectados tornou-se um desafio para o pro-
fessor. A geração pós Constituição de 1988 funciona de forma diferente, prender-lhes
a atenção e despertar-lhes o interesse é tarefa dificultosa e a sala de aula torna-se uma
zona de conflitos diários. “A impressão que se tem é que alunos e professores falam
línguas diferentes e culpam-se mutuamente pelas dificuldades vivenciadas no ambiente
escolar” (BRASIL, 2013, p. 9).
O conteúdo programático mudou, a didática foi reformulada, o perfil do aluno
também não é mais o mesmo, faz-se necessário capacitar o professor para que ele con-
siga adequar-se a esta nova engrenagem do saber. Formação e capacitação de professores
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Helenara Regina Sampaio Figueiredo, Gislaine de Oliveira Spínola
208
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 197-221, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
é o objetivo do Pacto Nacional pelo Fortalecimento do Ensino Médio, criado pelo
Ministério da Educação, por meio da Secretaria de Educação Básica, no ano de 2013.
Este documento orienta o professor a rever o conceito de juventude, dar voz ao
aluno, trabalhar e discutir conteúdos com base em suas vivências e, principalmente,
utilizar a tecnologia em favor do processo de ensino e aprendizagem. O que antes fora
idealizado no PCN, “hoje é demanda constante dos alunos, eles só aprendem de forma
significativa e contextualizada” (BRASIL, 2013, p. 21).
O aluno precisa ter um projeto de vida e, para que isso aconteça, muitas escolhas
são necessárias e, por conseguinte, a responsabilização por elas. A adolescência é uma
fase conturbada na qual surgem muitas perguntas de cunho existencial: Em que rede
de relacionamentos estou inserido? Com quem devo me relacionar? Quais as minhas
habilidades? Que profissão devo escolher? Serei um adulto bem sucedido? O que é ser
um adulto bem sucedido? (BRASIL, 2013).
Para responder a estes questionamentos, faz-se imprescindível o conhecimento
de si e do mundo, assim como dos fatores de inclusão e exclusão social. Afinal, um
projeto de vida viável é aquele que parte do possível, dos recursos disponíveis e é tarefa
da escola conscientizar e discutir possibilidades. Logo, a formação para cidadania pro-
porciona a capacidade de discernimento para escolhas socialmente saudáveis (BRASIL,
2013).
APAC: Conciliando execução penal, dignidade e educação em
prol da ressocialização
A APAC é um método de ressocialização idealizado por Mário Ottoboni, base-
ado na valorização do ser humano que se contrapõe à realidade vivida pelo cidadão
privado de liberdade, no sistema comum, e tem como objetivo diminuir os altos índices
de reincidência, próximos a 80% ((INFOPEN, 2017). O sistema prisional é, e, sempre
foi falho por distanciar-se dos objetivos primeiros da pena, quais sejam: ressocialização
e prevenção de crimes futuros. (WACQUANT, 1999).
Em 1972, na cidade paulista de São José dos Campos, um grupo católico lide-
rado pelo advogado e jornalista Mário Ottoboni constituiu uma Pastoral Carcerária,
objetivando amenizar os sofrimentos impostos aos presidiários de Humaitá. A pastoral
foi intitulada Amando o Próximo, Amarás a Cristo (APAC) e todos os integrantes tra-
balhavam de forma voluntária no intuito de amparar de forma material, moral e
espiritual os cidadãos reclusos (OTTOBONI, 2001).
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Educação como fator de ressocialização de condenados: uma experiência no Método APAC
209
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 197-221, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Os trabalhos não eram organizados de forma metodológica, as ações eram empí-
ricas objetivando a dignidade e a ressocialização dos apenados. Neste contexto, o grupo
não tinha a menor experiência com cadeias, presos, drogas ou violência, mas, tinham
muita fé em Deus e no ser humano (OTTOBONI, 2001).
No intuito de adquirir maior autonomia e titularidade de direitos, criou-se a
pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, Associação de Proteção e Assis-
tência aos Condenados (APAC) no ano de 1974. Vale ressalvar que, embora detentora
de personalidade jurídica, a sigla manteve-se com nova denominação no intuito de que
fossem preservados os ideais cristãos que deram origem à pastoral (OTTOBONI,
2001).
Em 1979, o único presídio de São José dos Campos, Humaitá, foi desativado
por falta de condições físicas para abrigar os presos do regime fechado, o juiz da Vara
de Execução Penal após uma reforma parcial no prédio onde funcionava Humaitá, o
entregou totalmente à APAC para administração sem o concurso de nenhuma força
policial. Há que se considerar que o presídio passou a funcionar apenas com 5 celas e
que entregá-lo à APAC foi uma saída emergencial porque as duas polícias se recusaram
a administrá-lo (OTTOBONI, 2001).
A experiência de Humaitá deu certo, assistindo aos três regimes foi possível es-
truturar o método, aperfeiç-lo, revisá-lo e difundi-lo. Após funcionar sem o auxílio
de força policial ou qualquer tipo de armas, a experiência bem sucedida da APAC, veio
a público, e, Mário Ottoboni escreveu livros, bem como realizou seminários e congres-
sos, tanto nacionais quanto internacionais e seu método passou a ser objeto de pesquisa
em várias áreas do conhecimento (OTTOBONI, 2001).
Valdeci Antônio Ferreira, morador da cidade de Itaúna, em Minas Gerais, era
um desses inconformados com a realidade do sistema prisional. Em 1984, fundou uma
pastoral carcerária na cidade e passou a corresponder-se com Mário Ottoboni. Empol-
gado com as notícias, Valdeci foi conhecer de perto o método APAC e o presídio sem
guardas.
A pastoral liderada por Valdeci adquire personalidade jurídica, é o surgimento
da primeira APAC de Minas Gerais, em 1986. Assim, seguindo seu trabalho ampa-
rando de forma mais efetiva, os presos do regime semiaberto e aberto no intuito de
conseguirem apoio social e jurídico para fundar um Centro de Reintegração Social na
cidade.
Após uma rebelião na cadeia pública de Itaúna, que a destruiu, anos depois, os
presos precisaram ser transferidos provisoriamente para cidades vizinhas, sendo neces-
sário a construção de um espaço para novamente abri-los. Nesse sentido, um espaço
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Helenara Regina Sampaio Figueiredo, Gislaine de Oliveira Spínola
210
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 197-221, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
modesto que seria o Centro de Reintegração Social foi construído, em 1995, mas, ainda
sob os cuidados da polícia (OTTOBONI, 2001).
Em janeiro de 1996, a APAC de Itaúna com sede própriapassa a abrigar os
três regimes, sendo administrada sem o concurso de armas ou policiais, sob a presidên-
cia de Valdeci Antônio Ferreira.
Um ano depois a entidade sem fins lucrativos ganha um terreno maior e com o
apoio da comunidade, passa a ser construído o Centro de Reintegração Social CRS,
no qual funciona a APAC masculina que é o lócus de estudo/objeto deste artigo.
Hoje, a APAC masculina de Itaúna abriga 170 (cento e setenta) recuperandos,
divididos em três regimes. O CRS conta com padaria, marcenaria, oficinas para mon-
tagem de peças automotivas, fábrica de blocos, produção de mudas e oficinas de
laborterapia.
A APAC não é um lugar, e sim “um método de valorização humana para oferecer
ao condenado condições de recuperar-se e com o propósito de proteger a sociedade,
socorrer as vítimas e promover a justiça” (OTTOBONI, 2001 p. 10).
Inicialmente, percebe-se duas grandes diferenças entre a metodologia e o sistema
comum de cumprimento de pena: o local onde a pena é cumprida diferencia-se dos
demais estabelecimentos prisionais por não ter vigilância armada, nem agentes policiais
e a denominação dada ao cidadão privado de liberdade não é preso e sim recuperando.
Parece utópico um presídio sem armas, sem intervenção policial, onde os conde-
nados não estão uniformizados e são chamados pelo nome de registro. Entretanto, para
que esse lugar exista são necessários os seguintes critérios: acolhimento social, senti-
mento de pertencimento ao grupo, trabalho adequado, religiosidade, assistência
jurídica, assistência à saúde, autovalorização, amparo familiar, educação, bons exem-
plos, progressão de regime, meritocracia e reconciliação.
O autor do método o dividiu em doze passos e afirma que a ausência de qualquer
deles compromete todo o trabalho, assim sendo, faz-se necessário apresentá-los na or-
dem de implementação.
O primeiro passo que compõe o método é a “Participação da Comunidade, sem
a aceitação social não é possível iniciar um processo de ressocialização. Mostra-se ne-
cessário que a sociedade entenda ser ela a maior beneficiária da recuperação do
delinquente, pois diminuindo a reincidência, diminui também a violência.
O segundo passo do método “Recuperando Ajudando Recuperando” visa resga-
tar o sentimento de respeito ao próximo, de cooperação e trabalho em equipe, no qual
os recuperando são estimulados a todo momento a unirem-se, a funcionarem como um
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Educação como fator de ressocialização de condenados: uma experiência no Método APAC
211
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 197-221, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
microcosmo social harmônico. “Quando a cela vai bem, todo o presídio vai bem”
(OTTOBONI, 2001, p. 43).
O terceiro passo é o “Trabalho”, aqui, faz-se necessário considerar a condição
psíquica e moral do recuperando, por este motivo o trabalho é classificado conforme o
regime de cumprimento de pena.
O quarto passo é “A Religião e a Importância da Experiência de Deus”, em que
não existe a imposição de uma religião, mas, sim, a presença em todos os atos religiosos
que devem ser ecumênicos. Tais atos têm por finalidade a valorização humana por meio
da evangelização. Os representantes religiosos são voluntários e pregam a imagem do
Deus pai, que ama seus filhos de forma justa e igualitária e assim sendo “ninguém é
irrecuperável” (OTTOBONI, 2001, p. 37).
A “Assistência Jurídica” é o quinto passo do método que estabelece que haja de
forma muito acessível pelo menos um voluntário, advogado ou estagiário, para esclare-
cer e requerer todos os benefícios a que o recuperando fizer jus. Outrossim, recomenda-
se muita cautela para que a finalidade do método não seja vista tão somente como a
liberdade do recuperando.
Ressalta-se que a pena privativa de liberdade não retira do condenado o direito à
saúde, preconizado no artigo 5º da Constituição Federal, por isso o sexto passo é “As-
sistência à Saúde”. Logo, um ambiente limpo apresenta-se fundamental para evitar a
proliferação de doenças.
Sendo assim, o CRS deve ser limpo, pintado, ter fornecimento de água potável,
cuja caixa d’água deve ser lavada pelo menos uma vez por ano, a comida deve estar bem
acondicionada e deve haver dedetização periódica. A prevenção é sempre mais fácil e
barata, se comparada ao tratamento, no entanto, precisa-se que haja a atuação de pro-
fissionais da saúde dentro do CRS, médicos, dentistas, enfermeiros, psicólogos e
psiquiatras.
A base do método é a “Valorização Humana” que, também, constituiu o sétimo
passo idealizado por Mário Ottoboni. Dessa forma, ao adentrar no sistema prisional, o
condenado é despido de toda e qualquer dignidade, a primeira coisa que lhe é tirada é
o seu nome, ele passa a ser tratado por um número, depois tiram-lhe as roupas e todos
os seus pertences, ocorre a massificação do sujeito pela uniformização.
O recuperando precisa ver-se como protagonista de sua história, mostra-se ne-
cessário chamá-lo pelo nome, conhecer seus sonhos, sua família, sua história e,
principalmente, fazer com que ele entenda que a mudança é possível, que apesar de ter
errado ele continua sendo um ser humano valoroso, merecedor do perdão, do amor e
da confiança social. Há que se restituir ao cidadão privado de liberdade sua condição
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Helenara Regina Sampaio Figueiredo, Gislaine de Oliveira Spínola
212
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 197-221, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
de ser único, com identidade própria. A construção de uma autoimagem positiva é
condição essencial para a ressocialização.
“A família” é de suma importância para a ressocialização do recuperando, mas
para isso é preciso que ela esteja estruturada, harmoniosa e bem assistida. E, conside-
rando que no seio familiar encontra-se a origem da maioria dos fatores que geraram a
delinquência, é preciso modificar esse ambiente. Assim, são oferecidos cursos e realiza-
dos trabalhos psicológicos e assistenciais no intuito de melhor estruturar o grupo
familiar, constituindo-se o oitavo passo.
O nono passo é: “O voluntariado e o Curso para sua Formação”, considerando
que a base sobre a qual se ampara o método APAC é a comunidade e, para que ela
esteja totalmente engajada, faz-se necessário que todo o trabalho, com exceção do ad-
ministrativo, seja voluntário. Essa gratuidade inibe o oferecimento de propina, impede
a corrupção e comove o recuperando para que o trabalho seja realizado de forma
adequada são oferecidos cursos de capacitação.
O “Centro de Reintegração Social” consiste no décimo passo e existe para que a
LEP seja cumprida, porque embora exista previsão legal de progressão de pena, na prá-
tica, muitas vezes o preso não usufrui deste benefício, pois existem pouquíssimas
colônias agrícolas ou industriais onde deveriam ser cumpridas as penas do regime se-
miaberto. A progressão penal funciona como estímulo para que o recuperando se
esforce, pois ela o aproxima de seu objetivo maior que é a liberdade.
O “Méritoé o caminho pelo qual o recuperando alcançará a ressocialização. Na
APAC não é requisito para a obtenção de benefícios penitenciários a obediência. Cum-
prir as normas simplesmente não caracteriza o valor do recuperando. Nada lhe será
concedido sem que haja a sua cota de comprometimento com o método. O homem
novo e integrado socialmente é uma conquista! Eis o décimo primeiro passo do mé-
todo.
A metodologia é finalizada com a “Jornada de Libertação com Cristo”. Esse passo
consiste em três dias de retiro espiritual, destinados à reflexão e ao autoconhecimento.
A parábola do Filho Pródigo é o norte da experiência religiosa que é destinada apenas
aos recuperandos. Finalizando a jornada, o recuperando encontra-se com seus parentes
simbolizando a volta para casa do filho e a acolhida do pai que o recebe em júbilo.
Eis uma síntese do método APAC e seus doze passos para que a pena privativa
de liberdade alcance de fato seus objetivos, quais sejam: ressocialização e prevenção de
crimes futuros.
A escrita desta seção foi baseada no livro Vamos Matar o Criminoso? No qual
Mário Ottoboni (2001) explica o método APAC.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Educação como fator de ressocialização de condenados: uma experiência no Método APAC
213
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 197-221, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Descrição do local de pesquisa
O estudo aconteceu na Associação de Proteção e Assistência aos Condenados
(APAC) na cidade de Itaúna, em Minas Gerais. A escolha do lócus de pesquisa se deu
em função de ser o único local onde a metodologia criada por Ottoboni foi totalmente
implementada, além de ser um estabelecimento prisional em que a LEP é cumprida. A
unidade de ressocialização contava, em agosto de 2018, com 170 recuperandos
1
, todos
do sexo masculino e a maioria participante da educação formal na modalidade Educa-
ção de Jovens e Adultos (EJA).
A APAC funciona em um prédio próprio e abriga diferentes regimes prisionais,
quais sejam: fechado, semiaberto e semiaberto com trabalho externo. Conforme deter-
mina a LEP, os recuperandos de regimes diferentes não têm contato. Na comarca de
Itaúna, os presos do regime aberto o cumprem de forma domiciliar.
O Regime fechado possui 17 celas e comporta 87 recuperandos, todos têm cama
de alvenaria e armário individual. O pavilhão do regime fechado conta com farmácia,
consultório médico e odontológico, refeitório, pátio fechado, auditório, biblioteca e
oficinas de terapia ocupacional, e laborterapia.
No período noturno, a biblioteca e o auditório funcionam como salas de aula,
os espaços são divididos entre séries diferentes. Os recursos didáticos disponíveis são
quadro, computadores, projetor, aparelho de TV, aparelho de DVD e livros.
No regime semiaberto, existem 6 celas com 55 recuperandos, todas com camas
em alvenaria, armário individual. Este regime possui refeitório, cozinha, padaria, mar-
cenaria, olaria, horta, oficinas terceirizadas, quadra, playground, quiosque, suítes para
visita íntima, auditório e a sede administrativa.
Neste regime as aulas acontecem no auditório, também com várias séries divi-
dindo o mesmo espaço, são improvisadas aulas no quiosque. Os recursos didáticos
disponíveis são os mesmos do regime fechado. Todos os recuperandos do regime fe-
chado e semiaberto são obrigados ao estudo formal e existem turmas do Ensino
Fundamental e do Ensino Médio.
Existem ainda recuperandos que fazem cursos técnicos e, 2 cursam o ensino su-
perior, na modalidade de Ensino à Distância. Os recuperandos do regime semiaberto
com direito ao trabalho externo são 28, divididos em 2 celas, todas estruturadas como
as demais, e para estes não há a obrigatoriedade do estudo formal.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Helenara Regina Sampaio Figueiredo, Gislaine de Oliveira Spínola
214
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 197-221, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Procedimentos metodológicos
A pesquisa foi autorizada pelo Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) sob o número
2.893.204.
Para alcançar o objetivo foram entrevistados 7 professores voluntários, que
atenderam aos critérios de inclusão da pesquisa: lecionarem na modalidade Educação
para Jovens e Adultos (EJA) na APAC de Itaúna. Para coleta de dados utilizou-se de
uma entrevista composta por questões semiestruturadas.
Os professores entrevistados têm entre 30 e 47 anos de idade, todos possuem
licenciatura e pós-graduação lato sensu. O tempo de docência varia entre 5 e 26 anos e
o tempo de ensino dentro da APAC varia de 8 meses a 5 anos. Foram ouvidos partici-
pantes de ambos os gêneros e disciplinas distintas.
Todos os participantes são designados, ou seja, contratados por um ano letivo e
estes contratos podem ou não serem prorrogados posteriormente. Não lecionam na
APAC professores concursados pelo Estado de Minas Gerais. Sendo esta a política ado-
tada para o projeto de fornecimento de educação formal, por meio da EJA no
estabelecimento prisional.
Esta pesquisa foi realizada em cinco etapas, as quais seguem descritas:
1ª etapa Elaborou-se o instrumento de coleta de dados;
2ª etapa Validou-se o instrumento de coleta de dados, submetendo-o a uma
validação por pares, com professores que participam de um grupo de pesquisa e de
professores que lecionam em outras unidades prisionais, a fim de avaliar se as questões
foram redigidas com clareza e se são pertinentes à temática. O pré-teste pode evidenciar
se ele apresenta, como descrito por Marconi e Lakatos (2003, p. 230) fidedignidade,
(serão obtidos os mesmos resultados por quem o aplicar) validade(os dados são ne-
cessários a pesquisa) e operatividade(o vocabulário é acessível aos participantes).
3ª etapa Submeteu-se o projeto ao Comitê de Ética em Pesquisa;
4ª etapa Após aprovação do projeto pelo comitê de ética, coletou-se e tabulou-
se os dados;
5ª etapa Realizou-se a análise dos dados. A análise dos dados proveniente das
questões semiestruturadas foi realizada qualitativamente por meio da análise do conte-
údo, baseando-se em Bardin (2016).
Em acatamento aos princípios que norteiam as pesquisas realizadas com seres
humanos, nenhum participante será identificado. Assim sendo, os entrevistados foram
identificados como P1, P2, P3, P4, P5, P6 e P7.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Educação como fator de ressocialização de condenados: uma experiência no Método APAC
215
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 197-221, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Para analisar os dados obtidos por meio das entrevistas, optou-se pela Análise de
Conteúdo (AC), e tomou-se por referência Bardin (2016). Para a aplicação desta téc-
nica foram necessárias 3 etapas: P-análise, Exploração do material e Tratamento dos
resultados inferência e interpretação (BARDIN, 2016).
Na “Pré-análise”, estão compreendidos 7 passos, quais sejam: “Leitura Flutu-
ante”, que consistiu na audição das entrevistas; “Escolha dos Documentos” e foi a
transcrição das entrevistas, “Regra de Exaustividade” caracterizada pela conferência mi-
nuciosa entre os áudios. E, as transcrições por permitir a integralidade do material,
“Regra da Representatividade” garantia de que a amostra representaria um universo de
pesquisa, “Regra de Homogeneidade” a conferência de que foram feitas as mesmas per-
guntas a todos os entrevistados, “Regra de Pertinência” caracterizada pela certeza de
que o material atendia aos objetivos da pesquisa e por último a “Regra de Exclusivi-
dade”, em que cada elemento deveria constar em apenas uma categoria.
Na segunda etapa, “Exploração do Material” foram definidos os recortes, anali-
sadas as unidades de repetição, a objetividade e estabelecidas as categorias.
Optou-se por 2 categorias pela pertinência das falas e similaridade de conteúdo,
observando critérios de exclusão mútua, ou seja, cada recorte pertence a uma única
categoria e subcategoria. A primeira categoria referiu-se ao professor e o eixo transversal
Trabalho e Consumo, sendo dividida em 4 subcategorias, a saber: Conhecimento da
Temática Trabalho e Consumo, Participação em Cursos de Formação Continuada,
Efetivação da Abordagem do Eixo Trabalho e Consumo e Interdisciplinaridade. A se-
gunda categoria foi estabelecida com base no trabalho do professor frente o método
APAC e suas implicações, compreendendo 3 subcategorias: Dificuldades Enfrentadas
Pelos Docentes, O professor e a Importância da Educação para a Cidadania e Conhe-
cimento e Credibilidade do Método APAC.
Na terceira etapa da Análise de Conteúdo, realizou-se o “Tratamento dos Dados
Inferência e Interpretação, que consistiu em conferir significado indutivo e proposi-
tivo ao material coletado.
Como explicado anteriormente, o objetivo deste artigo consistiu em demonstrar
a compreensão docente acerca da importância do papel do professor na ressocialização
dos condenados que cumprem pena na APAC. Assim sendo, a análise dos dados versará
sobre a segunda categoria e segunda subcategoria da pesquisa: O professor e a Impor-
tância da Educação para a Cidadania.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Helenara Regina Sampaio Figueiredo, Gislaine de Oliveira Spínola
216
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 197-221, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Os resultados obtidos no método APAC: ressocializar mostra-se
possível?
A proposta de formação cidadã vai ao encontro das necessidades dos indivíduos
que infringiram as leis por não se ajustarem às normas de conduta, ou ainda, não as
perceberem como tal. Muitas vezes o termo correto seria socialização do condenado,
porque a ressocialização presume que em algum momento ele possuiu o status de cida-
dão, o que nem sempre ocorre. (ROSA, 2019)
Cidadania pressupõe acesso aos direitos fundamentais e sociais: inclusão, acesso
às políticas públicas, direitos trabalhistas, previdenciários, saúde, educação, moradia e
lazer (BRASIL, 1988). Neste viés, a maioria dos condenados sempre esteve à margem
da condição de cidadão.
O papel do professor vai além da didática e da transmissão de conteúdo acadê-
mico, espera-se que o docente tenha um pensamento consoante com a reforma do
conhecimento trazida pelas diretrizes da educação pós Constituição de 1988, e com a
chamada revolução do conhecimento.
A fala dos professores que lecionam na modalidade EJA na APAC de Itaúna re-
produz os princípios contidos nos documentos oficiais de ensino e mostram o
comprometimento com a formação do sujeito que voltará ao convívio social. “P1: [...]
Eu acredito que a educação tem um papel muito importante nessa reintegração, nessa
ressocialização, sim [...] (SPÍNOLA, 2018, p. 94).
Ao conferir importância à educação, esta importância também é conferida ao
professor que se apresenta como o veículo que conduz o discente pelos caminhos do
saber. A educação formal passa pela mediação docente que percebe-se como parte in-
tegrante em um processo de transformação proporcionado pela educação, condição
essencial para o exercício desta função.
P2: [...] muitos entram lá (na APAC) com 30, 40, 50 anos com fundamental incompleto, sem
saber ler e escrever, e lá a escola oferece desde a alfabetização até a conclusão do ensino médio.
Então, com certeza o cidadão que sai da APAC com o diploma na mão, ele tem muito mais
possibilidade de conseguir né? Muito mais possibilidade de conseguir um emprego, uma experi-
ência, saber ler e até uma formação, a visão crítica de mundo mesmo né? (SPÍNOLA, 2018, p.
94).
A fala, acima, revela além da preocupação em transmitir o conteúdo, uma preo-
cupação em despertar o entendimento do mundo. Para que haja inserção é preciso que
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Educação como fator de ressocialização de condenados: uma experiência no Método APAC
217
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 197-221, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
o processo social seja compreendido, mostra-se preciso que se reflita sobre os aconteci-
mentos. Neste caso, não há protagonismo sem visão crítica.P3: [...] Mas eu acho que
a educação ela transforma sim, transforma mais é muito, principalmente se ela for bem
aplicada, entendeu? [...]” (SPÍNOLA, 2018, p. 95).
Esta concepção transformadora, conferida à educação e aliada à aplicabilidade,
nada mais é do que o fundamento sob o qual o PCN e os demais documentos oficiais
de ensino foram concebidos.
P4: [...] eu acho que a gente tem duas formas de ascensão social hoje, você ficar rico ou você
estudar, a primeira é muito mais difícil que a segunda. E eu acho que você pode ficar rico por
uma sorte do destino, por um trabalho muito duro e aí tem que ser muito mesmo, nós estamos
falando da realidade de um país ainda de terceiro mundo, e eu acho que o fato de estudar de
passar por essa oportunidade te dá mais, eu vou repetir, te dá maiores oportunidades você tem
um leque maior pra buscar quando você faz isso, quando você estuda, não só lá, não só lá no
sistema prisional, na vida cotidiana [...] (SPÍNOLA, 2018, p. 95).
Conferir valor à educação e compreendê-la como meio de mobilidade social é a
orientação trazida pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversi-
dade para o trabalho na modalidade EJA. O docente mostra que comunga com o
arcabouço teórico sobre o qual os documentos de ensino foram elaborados.
P7: [...] Você vê a alegria quando você está formando uma turma, você vê assim, a sensação para
eles tem quando eles formam no ensino fundamental é a mesma coisa quando eu formei na fa-
culdade. A relação daquele dever cumprido e a família chora. [...] O caminho é esse, são os
estudos fazer com que eles entendam que talvez esse caminho é mais demorado, mas esse que vai
ter uma luz no fim do túnel. [...] é cada dia um degrauzinho (SPÍNOLA, 2018, p. 95).
A fala deste professor mostra sua convicção no trabalho realizado, a conscienti-
zação para si, bem como para os alunos, sobre a importância da educação para a
reintegração social. Pode-se auferir, aqui, a formação integralizada como via de acesso
à cidadania.
Considerações finais
A pena privativa de liberdade traz em si acessórios sem previsão legal, violência
institucionalizada, abusos sexuais, doenças em virtude das condições de higiene precá-
rias, que culminam na impossibilidade de uma existência digna. (FOUCAULT, 2004)
Embora exista legislação pertinente à execução da pena, garantindo-lhe o cará-
ter educacional e ressocializador, essa ainda não é efetiva. A superlotação e o
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Helenara Regina Sampaio Figueiredo, Gislaine de Oliveira Spínola
218
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 197-221, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
desinteresse por políticas carcerárias inviabilizam o acesso aos direitos penitenciários,
principalmente ao direito à educação. (ROSA, 2019)
A metodologia APAC é uma opção para o cumprimento do que preconiza a
LEP e as normas internacionais de caráter humanitário, uma vez que são cumpridos os
direitos à progressão de regime, à educação e ao trabalho. Ao respeitar os dispositivos
da execução penal, o método contribui para a efetiva ressocialização, assim, tendo me-
nor reincidência comprovada por várias pesquisas. (SPÍNOLA, 2018)
Evidenciou-se que é possível que cidadãos condenados cumpram sua pena de
forma digna e em conformidade com o que preconizam as normas nacionais e interna-
cionais no que se refere a direitos carcerários e humanitários.
A APAC provê a educação formal, que é direito do cidadão privado de liber-
dade e este ensino é pautado pelo que determina os documentos oficiais de ensino,
estando em harmonia com todo o sistema de ensino público. Os princípios norteadores
da formação integralizada com vias à cidadania estão sendo aplicados em prol da resso-
cialização.
Os professores que lecionam na unidade prisional compreendem a importância
do seu papel enquanto agentes de transformação social. Os docentes são profissionais
comprometidos com o caráter ressocializador da pena e de sua obtenção por meio da
educação.
Além de ministrarem os conteúdos estabelecidos na grade curricular, os profes-
sores têm a preocupação de formar sujeitos críticos, socialmente inclusos e capazes de
mudarem o rumo da própria história. A cada cidadão ressocializado, acredita-se que a
educação tenha cumprido seu papel de instrumento de transformação e que mais um
passo tenha sido dado em direção à obtenção da Justiça Social.
Sim, é possível ressocializar o cidadão privado de liberdade por meio da educa-
ção!
Notas
1
Termo utilizado para designar o condenado que cumpre pena na APAC.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Educação como fator de ressocialização de condenados: uma experiência no Método APAC
219
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 197-221, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Referências
ALMEIDA, F. L. de. Reflexões acerca do Direito de Execução Penal. 2014. Disponível:
<http://www.revistaliberdades.org.br/site/outrasEdicoes/outrasEdicoesExibir.php?rcon_id=21
0>. Acesso em: 14 de mar. 2018.
BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2016, p. 229.
BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004.
BRASIL. Congresso. Senado. Constituição Federal do Brasil. Brasília, 05 out. 1988.
Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em:
10 de maio 2018.
BRASIL. Congresso. Senado. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Lei de Execução Penal.
Brasília, DF, 13 jul. 1984. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7210compilado.htm. Acesso em: 10 de nov.
2017.
BRASIL. Lei nº 12.433/11, de 29 de junho de 2011. Altera A Lei no 7.210, de 11 de Julho
de 1984 (lei de Execução Penal), Para Dispor Sobre A Remição. Brasília, DF, 30 jun. 2011.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12433.htm.
Acesso em: 10 de abr. 2018.
BRASIL. Lei nº 13.163/15, de 09 de setembro de 2015. Modifica A Lei no 7.210, de 11 de
Julho de 1984 - Lei de Execução Penal, Para Instituir O Ensino Médio nas Penitenciárias.
Brasília, DF, 10 set. 2015. Disponível em:
https://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/229993272/lei-13163-15. Acesso em: 20 de
maio 2018.
BRASIL. Lei nº 9394/96, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece As Diretrizes e Bases da
Educação Nacional. Brasília, DF, 23 dez. 1996. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm. Acesso em: 28 de nov. 2017.
BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Secretaria de Educação Fundamental.
Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental. 1998.
Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/introducao.pdf>. Acesso em: 20
jul. 2018.
BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Secretaria de Educação Fundamental.
Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino.
<http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/introducao.pdf>. Acesso em: 20 jul. 2018.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Helenara Regina Sampaio Figueiredo, Gislaine de Oliveira Spínola
220
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 197-221, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
BRASIL. Ministério da Justiça. Departamento Penitenciário Nacional (Ed.). Levantamento
Nacional de Informações Penitenciárias: INFOPEN. 2014. Disponível em:
http://www.justica.gov.br/news/mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-nesta-terca-
feira/relatorio-depen-versao-web.pdf. Acesso em: 10 de jul. 2018.
BRASIL. Ministério da Justiça. Departamento Penitenciário Nacional (Ed.). Levantamento
Nacional de Informações Penitenciárias: INFOPEN. 2016. Disponível em:
http://www.jhttp://depen.gov.br/DEPEN/noticias-1/noticias/infopen-levantamento-
nacional-de-informacoes-penitenciarias-
2016/relatorio_2016_22111.pdfustica.gov.br/news/mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-
nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.pdf. Acesso em: 10 de jul. 2018.
BRASIL. Portaria nº 1.140, de 22 de novembro de 2013. Pacto Nacional Pelo Fortalecimento
do Ensino Médio. Brasília, DF, 25 nov. 2013. Disponível em:
http://www.lex.com.br/legis_25110626_PORTARIA_N_1140_DE_22_DE_NOVEMBRO
_DE_2013.aspx. Acesso em: 15 de abr. 2018.
BRASIL. Unesco. Senado Federal. Plano Nacional de Educação. 2001. Disponível em:
http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001324/132452porb.pdf. Acesso em: 15 de mar.
2018.
CLAUDE, Richard Pierre. Direito à Educação e Educação para os Direitos Humanos. Sur:
Revista Internacional de Direitos Humanos, França, v. 2, n. 2, p.01-06, jun. 2004. Semestral.
Disponível em: http://dhnet.org.br/dados/revistas/sur/revista_sur_02.pdf#page=37. Acesso
em: 16 de mar. 2018.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Tradução de Raquel
Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2004.
LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Fundamentos de Metodologia
Científica. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2003
LIMA, D. de. A Ditadura Militar, A Redemocratização e A Democracia Representativa no
Brasil, Blumenau, 2012. Disponível em:
file:///C:/Users/User/Documents/Daniela%20Lima%20redemocratiza%C3%A7%C3%A3o.
pdf. Acesso em: 23 de mar. 2018.
ONU. Conselho Econômico e Social das Nações Unidas. Regras Mínimas para o Tratamento
dos Reclusos. 1955. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/atuacao-
tematica/pfdc/institucional/legislacao2/sistema-prisional/docs/sistema-
prisional/regras_minimas.pdf. Acesso em: 6 de mar. 2018.
ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Paris, FRANÇA, 10 dez. 1948.
Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/pt/resources_10133.htm. Acesso em: 6 de fev.
2018.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Educação como fator de ressocialização de condenados: uma experiência no Método APAC
221
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 197-221, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
OTTOBONI, M. Vamos Matar o Criminoso? São Paulo: Paulinas, 2001.
ROSA, Paula Nunes Mamede. A função ressocializadora de acordo com o Poder Judiciário:
encarceramento em massa e responsabilidade estatal. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019.
SPÍNOLA, Gislaine Oliveira. Abordagem Sobre a Temática Trabalho e Consumo na Educação
de Jovens e Adultos na APAC de Itaúna/MG. 2018. 109 f. Dissertação (Mestrado em
Metodologias para o Ensino de Linguagens e suas Tecnologias) Universidade Norte do
Paraná, Londrina, 2018. Disponível em
https://repositorio.pgsskroton.com//handle/123456789/22641. Acesso em 21 de abril de
2020.
TASCA, F. A. Sobre o contexto histórico da Declaração Universal dos Direitos Humanos. 2016.
Disponível em: https://fatasca.jusbrasil.com.br/artigos/295276361/sobre-o-contexto-
historico-da-declaracao-universal-dos-direitos-humanos. Acesso em: 7 de mar. 2018.
UNESCO. Construção Coletiva: contribuições à educação de jovens e adultos. Unesdoc
Biblioteca Digital. Brasília, 2005. 324 p. Disponível em:
https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000143238. Acesso em: 15 mar. 2018.
UNESCO. Educando para a Liberdade. 2006. Disponível em:
http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/eja_prisao/educando_liberdade_unes
co.pdf. Acesso em: 16 de mar. 2018.
WACQUANT, L. As Prisões da Miséria. Rio de Janeiro: Digitalização Coletivo Sabotagem,
1999. Tradução André Teles. Disponível em: http://files.femadireito102.web-
node.com.br/200000039-62f056357d/As%20Prisoes_da_Miseria%20Loic_Wacquant.pdf.
Acesso em: 8 de fev. 2018.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Este artigo está licenciado com a licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
222
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 222-247, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Diálogos entre educação não escolar e pedagogia: uma
experiência de participação
Dialogues between non-school education and pedagogy: an experience of
participation
Diálogos entre la educación y la pedagogía no escolar: una experiencia de
participación
Simone Martiningui Onzi
*
Daianny Madalena Costa
**
Resumo
Este artigo é resultado de uma pesquisa que objetivou investigar a possibilidade de, por meio de uma
gestão pedagógica participativa, articular a construção de práticas pedagógicas significativas em um
espaço de educação não formal, que traduzissem a construção coletiva de um projeto pedagógico
para o espaço educacional em que se realizava o Programa Recriar campo empírico do estudo. A
metodologia utilizada caracterizou-se por uma abordagem qualitativa, tendo em vista o caráter par-
ticipativo e propositivo da investigação. Logo, para sua condução, adotou-se o método da pesquisa
ação, pois oferece as condições necessárias para uma construção coletiva. Os sujeitos da pesquisa
formaram um grupo de pessoas, que foi denominado “Comitê do Programa Recriar”, que se reuni-
ram para dialogar participativamente e construir o projeto pedagógico para o estabelecimento. Nesse
processo, foi percebido que diálogo sofre suas contradições entre silêncios e empoderamento que
se verificam a partir dos diversos lugares ocupados pelo conjunto dos membros que compõem o
Recriar. Por fim, como resultado, o estudo indicou que é possível pensar, de forma coletiva, práticas
pedagógicas significativas para o Programa Recriar, configurando objetivos, intencionalidades e mo-
dos de ação que busquem promover a formação integral do ser humano, uma das finalidades da
educação não formal.
Palavras-chave: gestão participativa; práticas pedagógicas; educação não formal.
Recebido em: 10/01/2020 Aprovado em: 07/06/2022
https://doi.org/10.5335/rep.v29i1.10542
ISSN on-line: 2238-0302
*
Mestra em Gestão Educacional. Especialista em Gestão do Social. MBA em Marketing. Especialista em Gestão Estratégica
em Educação. Docente do Curso de Pedagogia na modalidade Presencial e Semi-Presencial e coordenadora do espaço de
Brinquedoteca do Centro Universitário da Serra Gaúcha. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1040-5189. E-mail:
simoneonzi@gmail.com
**
Doutora em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Professora do Programa de Pós-Graduação
em Gestão Educacional (Unisinos). Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7045-0259. E-mail: daiannycosta@hotmail.com.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Simone Martiningui Onzi, Daianny Madalena Costa
223
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 222-247, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Abstract
This article is the result of a research that aims to investigate the possibility of, through participatory
pedagogical management, articulate the construction of meaningful pedagogical practices in a non-
school education space, which translate the collective construction of a pedagogical project for the
educational space in which the Recreate Program takes place - the empirical field of study. The
methodology used was characterized by a qualitative approach, in view of the participatory and prop-
ositional character of the research. Therefore, for its conduct, the action research method was
adopted, as it offers the necessary conditions for a collective construction. The research subjects
formed a group of people, which was called the “Recreate Program Committee”, who met to engage
in a participatory dialogue and build the pedagogical project for the establishment. In this process,
it was noticed that dialogue suffers its contradictions between silences and empowerment - which
are verified from the various places occupied by the set of members that make up the Recreate.
Finally, as a result, the study indicated that it is possible to think, collectively, significant pedagogical
practices for the Recreate Program, setting objectives, intentionalities and modes of action that seek
to promote the integral formation of human beings, one of the purposes of non-formal education.
Keywords: participatory management; pedagogical practices; non formal education.
Resumen
Este artículo es el resultado de una investigación que tuvo como objetivo investigar la posibilidad de,
a través de la gestión pedagógica participativa, articular la construcción de prácticas pedagógicas sig-
nificativas en un espacio educativo no formal, que se traducen la construcción colectiva de un
proyecto pedagógico para el espacio educativo en que tiene lugar el Programa Recreate - el campo
de estudio empírico. La metodología utilizada se caracterizó por un enfoque cualitativo, en vista del
carácter participativo y proposicional de la investigación. Por lo tanto, para su conducta, se adoptó
el método de investigación de acción, ya que ofrece las condiciones necesarias para una construcción
colectiva. Los sujetos de investigación formaron un grupo de personas, llamado "Comité del Pro-
grama Recreate", que se reunieron para entablar un diálogo participativo y construir el proyecto
pedagógico para el establecimiento. En este proceso, se observó que el diálogo sufre sus contradic-
ciones entre los silencios y el empoderamiento, que se verifican en los diversos lugares ocupados por
el conjunto de miembros que componen el Recreate. Finalmente, como resultado, el estudio indicó
que es posible pensar, colectivamente, prácticas pedagógicas significativas para el Programa Recreate,
estableciendo objetivos, intencionalidades y modos de acción que buscan promover la formación
integral de los seres humanos, uno de los propósitos de la educación no formal.
Palabras clave: gestión participativa; prácticas pedagógicas; educación no formal.
Introdução
Consideramos que há, na educação uma intencionalidade na ação, no ato de
participar, de aprender e de compartilhar saberes e, no que diz respeito às suas finali-
dades e objetivos. Defendemos, por isso, a viabilidade de potencializar fazeres para que
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Diálogos entre educação não escolar e pedagogia: uma experiência de participação
224
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 222-247, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
os indivíduos, inconclusos, façam-se e tornem-se cidadãos - do, com e no mundo; por
meio da educação, homens e mulheres fazem-se e refazem-se (FREIRE, 2000). E, é
nesse sentido, que compreendemos que tais “processos intencionais de aprendizagem
deixa de ser uma responsabilidade exclusiva dos sistemas escolares, passando a ser equa-
cionada em função de uma pluralidade de tempos, lugares e de exigências de
conhecimento” (BAPTISTA, 2008, p. 8). Ademais, confirmamos a importância de ha-
ver uma articulação em seu caráter proposital, propositivo, a partir da participação. Por
isso, nossa pesquisa, manifestou-se como aporte acerca da alternativa viável da educação
não formal, ancorada nos princípios da pedagogia social, tornar sua intencionalidade e
seus objetivos pedagógicos a partir de práticas educativas construídas coletivamente.
Práticas essas que se apresentaram como práxis, porque partiram não de um mero
exercício de influências, mas pelo contrário, de um fazer comprometido, ético e inten-
cional (FRANCO, 2003). Assim, é pela práxis que compreendemos todo ato educativo,
quando atrelado à inexorável potência de “ser mais”, de ir e ser além, de transformar-
se (ROSSATO, 2008).
Dessa forma, o presente artigo se origina de um recorte da pesquisa realizada para
a conclusão do curso de mestrado, na modalidade profissional, e teve como principal
objetivo, elaborar um plano de ensino baseado em vivências de participação sobre as
questões que envolviam o cotidiano de um empreendimento social que se fundava no
propósito de contribuir para a formação de cidadãos e cidadãs conscientes de seu tempo
- cidadãos ativos na sociedade. Portanto, justificou-se uma gestão pedagógica voltada
para a participação, que iria pensar essas práticas de forma coletiva, levando em consi-
deração a mobilização de ideias e ideais de todos os sujeitos que ali eram parte
interessada e que contribuíam para o desenvolvimento do espaço não formal de educa-
ção, escopo desta pesquisa.
É no processo de construção coletiva que acontece o repensar sobre a prática,
com a oportunidade de combinar o fazer pedagógico com a reflexão. E pensar sobre ela
implica buscar alternativas para a mudança e tomar decisões, consolidando a ação pe-
dagógica numa práxis transformadora e significativa (DALBERIO, 2008). Logo, esses
momentos de discussão, ao serem organizados e planejados, possibilitaram a escuta do
ponto de vista de cada sujeito e suas concepções frente às práticas pedagógicas que eram
desenvolvidas, bem como objetivos e metas que se pretenderam alcançar, e como ocor-
reria um processo de avaliação.
Assim, se a educação não formal é “um modo de educar construído como resul-
tado do processo voltado para os interesses e necessidades dos que dela participam”
(GOHN, 2010, p. 19), torna-se fundamental que a gestão pedagógica se efetive de
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Simone Martiningui Onzi, Daianny Madalena Costa
225
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 222-247, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
forma participativa, ou seja, que todos os atores implicados com a instituição possam
se envolver, colaborar e partilhar do processo de construção do plano de ensino.
A educação não formal como práxis educativa: caminhos partici-
pativos
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), em seu primeiro
artigo (BRASIL, 1996), define o conceito de educação como aquele que abrange “pro-
cessos formativos que se desenvolvem na vida familiar, nas convivências humanas, no
trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações
da sociedade civil e nas manifestações culturais”, abrindo, assim, um caminho institu-
cional aos processos educativos que ocorrem em espaços não formais de educação
(GOHN, 2010).
Assim, nesse estudo, conceituamos educação não formal como um,
processo sociopolítico, cultural e pedagógico de formação para a cidadania, entendendo o político
como a formação do indivíduo para interagir com o outro em sociedade. Ela designa um con-
junto de práticas socioculturais de aprendizagem e produção de saberes, que envolve
organizações/instituições, atividades, meios e formas variadas, assim como uma multiplicidade
de programas e projetos sociais (GOHN, 2010, p. 33).
Dessa forma, os espaços não formais de educação possibilitam o desenvolvimento
de alguns objetivos que lhes são específicos, voltados para as singularidades das práticas
desenvolvidas nesses locais, ressaltando que o “aprendizado gerado e compartilhado da
educação não formal o é espontâneo porque os processos que o produz têm intenci-
onalidade e propostas” (GOHN, 2010, p. 16).
Posto isso, é importante ressaltar que a conceituação de educação é um fenômeno
complexo e heterogêneo, com uma diversidade de práticas e processos formativos. Por
isso, buscando romper o paradigma de setorização da educação, em que o “ensino for-
mal é o momento em que a educação se sujeita à pedagogia” (BRANDÃO, 2007, p.
26), é que, neste estudo, abordamos as diferentes modalidades de educação não como
gêneros díspares, mas sim que se complementam dentro da multiplicidade educativa.
Além disso, perguntamos sobre quem são os autores(as) e protagonistas das trans-
formações pedagógicas que ocorrem no interior da educação não formalem especial
do programa Recriar (objeto de estudo dessa pesquisa)? Noutras palavras, procuramos
analisar se os espaços de participação existentes no contexto do Recriar podem viabilizar
as mudanças necessárias para aprofundar-se como um instituído, no qual aposta sua
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Diálogos entre educação não escolar e pedagogia: uma experiência de participação
226
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 222-247, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
comunidade, desenvolvendo-se e tornando-se cada vez mais coletivo, a favor de quem
se destina.
Logo, sabendo-se da importância da educação não formal torna-se relevante para
modificar esse cenário, superar o desafio de, nessa era globalizada, construir e imple-
mentar processos educativos no interior de grupos, associações, movimentos sociais etc,
os quais contemplem a autonomia, que explicitem as diferenças entre ocupar espaços
públicos somente, e ocupá-los com visão crítica de mundo (GOHN, 2010).
Dessa forma, ao abordarmos a construção e implementação de processos educa-
tivos, falamos inevitavelmente da intencionalidade pedagógica e da Pedagogia por trás
das ações que serão realizadas nos espaços de educação não formal. Segundo Libâneo
(1998, p. 28),
o pedagógico perpassa toda a sociedade, extrapolando o âmbito escolar formal, abrangendo esfe-
ras mais amplas da educação informal e não formal. Apesar disso, não deixa de ser surpreendente
que as instituições e profissionais cuja atividade está permeada de ações pedagógicas desconheçam
a teoria pedagógica.
Portanto, “pode-se dizer que a Pedagogia inventa as práticas educativas e seus
processos. Isso significa que onde houver educação intencional devidamente plane-
jada - os conhecimentos pedagógicos serão acionados” (FABRIS; DAL´LGNA;
KLAUS, 2013, p. 12).
Congruente às ideias defendidas por Fabris, Dal´lgna e Klaus (2013), Libâneo
(1996, p. 117) afirma que
em todo o lugar onde houver uma prática educativa com caráter de intencionalidade há aí uma
pedagogia [...]. Pedagogia é uma área de conhecimento que investiga a realidade educativa, no
geral e no particular [...]. Pedagogo é o profissional que atua em várias instâncias da prática edu-
cativa, direta ou indiretamente ligadas à organização e aos processos de transmissão e assimilação
ativa de saberes e modos de ação [...]. Em outras palavras, pedagogo é o profissional que lida com
fatos, estruturas, contextos, situações, referentes à prática educativa em suas várias modalidades
e manifestações.
Assim, uma vez que os espaços não formais de educação desenvolvem práxis edu-
cativas com intencionalidade, pode-se compreender que também são espaços de
Pedagogia e que por consequência necessitam de pedagogos para, junto aos demais
sujeitos que atuam ou participam dessas práxis, pensar as ações pedagógicas que ali
serão desenvolvidas. Conforme Libâneo (1996, p. 128),
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Simone Martiningui Onzi, Daianny Madalena Costa
227
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 222-247, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
o pedagogo entra naquelas situações em que a atividade docente extrapola o âmbito específico da
matéria de ensino: na definição de objetivos educativos, nas implicações psicológicas, sociais,
culturais de ensino, nas peculiaridades do processo de ensino e aprendizagem, na detecção de
problemas de aprendizagem entre alunos, na avaliação etc. O pedagogo entra, também, na coor-
denação do plano pedagógico e planos de ensino, da articulação horizontal e vertical dos
conteúdos, da composição das turmas, das reuniões de estudo, conselho de classe etc.
Logo, o pedagogo é quem “lida com os meios intelectuais e técnicos que possi-
bilitam o ensino e a aprendizagem de modo ótimo” (GHIRALDELLI JR, 2007, p. 12).
Nesse cenário educativo e pedagógico, para a educação não formal cabem os processos
educativos que ocorrem fora das escolas, em situações organizacionais da sociedade ci-
vil, ações coletivas referentes ao terceiro setor da sociedade, abrangendo movimentos
sociais, organizações não governamentais e entidades sem fins lucrativos da área social
e ainda projetos comunitários e sociais (GOHN, 2011).
Por isso, nesses espaços é fundamental delinear práticas educativas que conside-
rem o “mundo em que vivem”, os sujeitos que dali participam, ou seja,
qualquer que seja o caminho metodológico construído ou reconstruído, é de suma importância
atentar para o papel dos agentes mediadores no processo: os educadores, os mediadores, assesso-
res, facilitadores, monitores, referências, apoios ou qualquer outra denominação que se dê para
os indivíduos que trabalham com grupos organizados ou não. Eles são fundamentais na marcação
de referenciais no ato de aprendizagem, eles carregam visões de mundo, projetos societários, ide-
ologias, propostas, conhecimentos acumulados etc. Eles se confrontarão com outros participantes
do processo educativo, estabelecerão diálogos, conflitos, ações solidárias etc. [...] Por meio deles
podemos conhecer a visão de mundo que estão construindo [...] (GOHN, 2010, p. 47).
Assim, as inquietações iniciais têm a ver, primeiramente, com os espaços de par-
ticipação - o que os caracteriza? E o que vem a ser participação? Por isso, compreendida
muitas vezes, por conceituar como consentimento, - atribuição da autoridade em con-
sultar sobre um assunto determinado, não significando decisão na execução final, mas
somente uma prerrogativa que compete à autoridade hierarquicamente superior. A essa
forma designamos como “pseudoparticipação”. Aqui estaremos nos filiando, ao con-
trário, à concepção pretendida por Gohn (2001), denominada “democrático-radical”
que postula a participação para fortalecer a sociedade civil a partir de seu caráter plural
e da criação de uma nova cultura de dividir responsabilidades (GOHN, 2001). Essa
participação apontará uma nova realidade social e terá a comunidade como parceira,
pois será coautora na transformação social. Participação aqui, portanto, se articula com
cidadania.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Diálogos entre educação não escolar e pedagogia: uma experiência de participação
228
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 222-247, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
A educação, por sua vez, pode nos remeter à possibilidade efetiva de homens e
mulheres refletirem sobre si e seus contextos, e construírem uma experiência que pro-
mova a cidadania, por isso, a participação possibilita a compreensão de que quanto
mais se exercita a discussão coletiva, mais se capacitam seus diversos segmentos para a
busca de respostas à própria práxis educativa.
Assim, torna-se possível “dar um significado a vida dos sujeitos” quando sugere-
se a transformação da realidade desses, que, segundo Garcia (2005), é uma das inten-
ções da educação não formal, a qual tem o compromisso de favorecer e oferecer
diferentes possibilidades de exercício de diálogos e vivências. Assim, identificando quais
dimensões que farão parte da construção de uma proposta de aprendizagem não formal,
elas podem, segundo Severo (2015a, p. 573), adquirir caráter de prática pedagógica
quando
suas intencionalidades são explicitadas e configuram modos de ação sistematizados com base
numa concepção pedagógica que relaciona finalidades e metodologias educativas, atuando como
elemento mediador da sua realização como atividade humana inserida em múltiplos contextos.
Dessa forma, nos espaços de educação o formal a elaboração de uma metodo-
logia que leve em conta seu desenvolvimento por meio das práticas pedagógicas e suas
intencionalidades, dependerá, segundo Gohn (2011), “da capacidade de sistematizar
os processos de interação e aprendizagem, compreendendo os sujeitos pensantes/falan-
tes no interior dos processos sociais em movimento dentro das instituições”.
Logo, a prática pedagógica realiza-se por meio de sua ação científica sobre a práxis
educativa (metodologia), “visando compreendê-la, explicitá-la a seus protagonistas,
dar-lhe suporte teórico, teorizar com os atores, transformá-la mediante um processo de
conscientização de seus participantes” (FRANCO, 2012, p. 169). Por isso, para Xavier
e Fernandes (2008, p. 258), é possível “afirmar que a aula em espaços o formais é
um movimento de reflexão e ação que permeia todos os momentos interativos do su-
jeito ao longo de sua vida, nos quais as ações de educar, ensinar e aprender são
inseparáveis”. Em outras palavras, é possível dizer que na educação não formal
o trabalho pedagógico ocorre de forma colaborativa e mais orientada por valores humanos do
que por valores econômicos, respeita a diversidade e a pluralidade de ideias, valoriza os conheci-
mentos prévios dos sujeitos envolvidos no processo educativo, preocupa-se com o que é
significativo para eles, respeita o tempo e as possibilidades de cada um e prima pelo cuidado nas
relações de ensino (XAVIER; FERNANDES, 2008, p. 260).
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Simone Martiningui Onzi, Daianny Madalena Costa
229
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 222-247, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Nesse cenário, o conhecimento pedagógico é construído e aplicado em diálogo
com as demandas da prática, buscando produzir a reflexidade, consistindo assim em
um modo de intervenção, que é organizado e fundado baseado nos princípios que nor-
teiam os espaços não formais de educação (SEVERO, 2015b). Refere-se, dessa forma,
a um processo sociocultural e histórico que ocorre de modos distintos e por meio de
pedagogias próprias de cada cultura e local (GOHN, 2014).
Diante disso, segundo Severo (2015b, p. 229),
o potencial transformador das práticas pedagógicas em espaços não formais não se limita ao es-
paço/tempo imediato que a restringe. Quando uma prática consegue alcançar um significado
formativo para seus autores, os objetivos de desempenho individual, grupal, institucional ou so-
cial que a informam se conectam mais efetivamente entre si, configurando uma rede de
combinação de resultados que produzem transformações em cadeia e em movimento mútuo. Ou
seja, as pessoas se desenvolvem e desenvolvem o meio em que estão inseridas reciprocamente,
fazendo com que os resultados obtidos em um primeiro momento sejam tomados estrategica-
mente como base para a conquista de novos resultados que podem se reproduzir em escala
institucional, comunitária e social.
Percebe-se, assim, que, para uma prática pedagógica ser transformadora e signi-
ficativa, precisa ter sentido para os sujeitos participantes do processo, desde sua
elaboração até sua execução. Dessa forma, quando o educador leva em conta os saberes
da experiência de mundo dos educandos, de suas experiências de vida, o educando é
capaz de estruturar a própria aprendizagem, posto que o novo conhecimento teve sen-
tido para ele (FREIRE, 2008).
Isso posto, descortina-se o vínculo entre a prática pedagógica e a realidade social:
conjugar o verbo aprender a aprender com o aprender a viver. Aprende-se ensinando,
participando, vivenciando sentimentos, tomando atitudes, escolhendo procedimentos.
Ensina-se aprendendo pelas experiências proporcionadas, pelos problemas criados, pela
ação desencadeada. O processo da aprendizagem é um processo global (ARROYO,
1994). Sendo assim, “a aprendizagem torna-se significativa porque os conteúdos, pro-
cedimentos e recursos são selecionados cuidadosamente e os participantes estão
interessados, colaboram e se mostram felizes” (XAVIER; FERNANDES, 2008, p.
249).
Por isso, entendemos que a educação não formal, quando desenvolve práticas
pedagógicas significativas, está propondo uma dinâmica educativa ampliada, em que
as pessoas tenham oportunidade de aprender para se situarem de forma melhor quanto
aos seus objetivos e para que a socialização de saberes e práticas pedagógicas, políticas
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Diálogos entre educação não escolar e pedagogia: uma experiência de participação
230
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 222-247, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
e culturais implique um contexto de maior participação e conscientização social
(SEVERO, 2015b).
Em suma, compreende-se que, para dar significado às práticas pedagógicas em
espaços não formais de educação, é preciso identificar suas intencionalidades e propó-
sitos, por meio dos conhecimentos e das experiências das partes envolvidas nesses
espaços. Para isso, se faz necessário potencializar a gestão, para que saiba ouvir, de forma
a suscitar um processo reflexivo, que busque, por meio da participação e construção
conjunta, a transformação da realidade.
Nesse cenário, é pelo compromisso e em nome da construção de uma sociedade
democrática e da promoção de maior envolvimento das pessoas nas organizações sociais
em que atuam, com as quais se relacionam, e das quais dependem, que se favorece a
realização de atividades que possibilitam e condicionam a participação (LÜCK, 2011).
Essa participação, segundo Lück et al. (2012, p. 18-19), caracteriza-se
por uma força de atuação consciente, pela qual membros de uma unidade social se reconhecem
e assumem seu poder de exercer influência social, de sua cultura, e de seus resultados, poder esse
resultando de suas competências e vontade de compreender, decidir e agir em torno de questões
que lhe são feitas.
Assim, para colocar em prática esse processo participativo, segundo Gandin
(1994, p. 136), “não é suficiente pedir sugestões e aproveitar aquelas que pareçam sim-
páticas ou que coincidam com pensamentos ou expectativas dos que coordenam: é
necessário que o plano se construa com o saber, com o querer e com o fazer de todos”.
Nessa perspectiva, ainda vale ressaltar que, segundo Libâneo (2004, p. 328), “a
participação proporciona melhor conhecimento dos objetivos e das metas, da sua es-
trutura organizacional e da dinâmica, de suas relações com a comunidade, e propicia
um clima de trabalho favorável à maior aproximação entre os sujeitos”. Ou seja, uma
vez que se assume o compromisso de participar, a possibilidade de uma ação na pers-
pectiva de construção coletiva exige a presença de toda a comunidade escolar nas
decisões do processo educativo, resultando na democratização das relações e interven-
ções que acontecem na escola, contribuindo para o aperfeiçoamento administrativo-
pedagógico (HORA, 1994). Todavia, essa democratização dependerá do engajamento
das partes interessadas no desenvolvimento de um espaço “pensado por todos e para
todos”. Para Lück (2011, p. 47),
o engajamento representa o nível mais pleno de participação. Sua prática envolve o estar presente,
o oferecer ideias e opiniões, o expressar o pensamento, o analisar de forma interativa as situações,
o tomar decisões sobre o encaminhamento de questões, com base em análises compartilhadas e
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Simone Martiningui Onzi, Daianny Madalena Costa
231
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 222-247, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
envolver-se de forma comprometida no encaminhamento e nas ações necessárias e adequadas
para a efetivação das decisões tomadas. Em suma, participação como engajamento implica en-
volver-se dinamicamente nos processos sociais e assumir a responsabilidade por agir com
empenho, competência e dedicação visando promover os resultados propostos desejados.
Logo, diante do engajamento dos sujeitos envolvidos em um ambiente educaci-
onal que promove participação, torna-se possível construir conhecimentos a partir de
práticas escolares coletivas, fomentando essa concepção como processo fundamental,
que sustenta e faz avançar a gestão da escola e a qualidade do trabalho educacional
(LÜCK, 2011).
Nesse sentido, para Freire (1985, p. 14), é preciso “pensar como as ideias se con-
cretizam nas ações e na mente dos indivíduos ou dos grupos, para interpretar a realidade
e decidir transformá-la, ou não transformá-la”. Além disso, para Streck e Adams (2006,
p. 115), “os lugares de participação são também - e quem sabe, sobretudo espaços de
aprendizagem da cidadania”.
O homem não pode participar ativamente na história, na sociedade, na transformação da reali-
dade se não for ajudado a tomar consciência da realidade e da sua própria capacidade para
transformar [...]. Ninguém luta contra forças que não entende, cuja importância não meça, cujas
formas e contornos não discirna; [...] Isto é verdade se se refere às forças da natureza [...] isto
também é assim nas forças sociais [...]. A realidade não pode ser modificada senão quando o
homem descobre que é modificável e que ele o pode fazer (FREIRE, 1977, p. 48).
No que diz respeito à gestão pedagógica participativa em um espaço não formal
de educação, é preciso pensar a construção de suas práticas educativas baseada na rela-
ção de que a teoria advém não só, mas também, dos sujeitos que desse local participam,
de suas experiências e realidade. Dito de outro modo, é conceber uma educação como
objeto dos movimentos e dos processos participativos, do mesmo modo como um con-
junto sistemático de concepções, imagens e comportamentos que se desenvolvem no
interior de um grupo social determinado, revelando a compreensão dos significados
estabelecidos pelos sujeitos e a maneira como isso é incorporado nas práticas pedagógi-
cas desses espaços (PEREIRA, 2015). Em suma, para Freire (1985, p. 31),
[...] é preciso estabelecer um diálogo entre nossas diferenças e nos enriquecermos nesse diálogo.
Assim, [...] não podemos julgar a cultura do outro através dos nossos valores, mas sim aceitar que
existem outros valores, aceitar que existem as diferenças e aceitar que, no fundo, essas diferenças
nos ajudam a compreender a nós mesmos.
Diante disso, a gestão, ao desenvolver uma cultura participativa nova, implica a
criação de coletivos compartilhados de diferentes formas e que desenvolvem saberes
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Diálogos entre educação não escolar e pedagogia: uma experiência de participação
232
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 222-247, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
não apenas normativos, mas saberes que orientam as práticas sociais, que constroem
novos valores, a partir de um grupo de pessoas diferentes com metas iguais. Isso tudo
está no campo da educação não formal (GOHN, 2006). Assim, compreende-se que a
gestão pedagógica participativa é fundamental, “pois é assim que todos os envolvidos
no processo educacional da instituição estarão presentes nas decisões e construções pro-
postas (planos, projetos, programas e ações) como no processo de implementação,
acompanhamento e avaliação” (LIBNEO, 2004, p. 316).
Metodologia
Neste momento, traremos o caminho metodológico percorrido. Aqui estará di-
vidido em duas subseções: a contextualização do campo empírico e o Delineamento da
Pesquisa.
Contextualização do Campo Empírico
O Instituto Adelino Miotti (IAM) é uma associação sem fins lucrativos que atua
como espaço de educação o formal e desenvolve ações sociais educativas desde sua
inauguração, em outubro de 2011. O IAM é mantido pelo Grupo Soprano, sendo o
alicerce no desenvolvimento das ações de responsabilidade social das empresas. Loca-
liza-se na cidade de Farroupilha, interior do Rio Grande do Sul. Entre as ações que a
instituição desenvolve, destaca-se o Programa Recriar, que objetiva oportunizar uma
formação pessoal e profissional para jovens de 16 a 18 anos, qualificando-os para o
mundo do trabalho e para a vida, possibilitando assim que se tornem profissionais bem-
sucedidos no mercado atual e cidadãos ativos na sociedade. Em 2016, ano que o Insti-
tuto completou cinco anos de atividades, o Recriar ganhou um prêmio como uma das
melhores práticas de responsabilidade social, entre cases nacionais e internacionais que
participaram do Encontro Sul-Americano de Recursos Humanos (ESARH).
O Programa atende jovens em situação de vulnerabilidade social da comunidade
de Farroupilha (RS), sendo o único programa na cidade que oferece atividades nos
turnos da manhã e da tarde e oferece como práticas pedagógicas as seguintes atividades:
Curso técnico profissionalizante no Sistema Nacional de Aprendizagem Industrial
(SENAI) (turno da manhã); Formação para a Vida; Português Instrumental; Inglês;
Informática; Educação para a Saúde e Atendimento às tarefas escolares (turno da tarde).
No turno da noite, os jovens frequentam o Ensino Médio Regular. Todas as atividades
oportunizadas pelo Recriar são gratuitas, bem como transporte, alimentação e uni-
forme.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Simone Martiningui Onzi, Daianny Madalena Costa
233
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 222-247, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
O Recriar desenvolve sua metodologia pedagógica contando com a duração de
dois anos para a realização das atividades. Porém, a partir de 2018, atendendo às exi-
gências de readequação de sua carga horária, o Recriar passou a ter somente um ano de
extensão. Como consequência disso, a metodologia pedagógica, estrutura e funciona-
mento do programa precisaram ser reconstruídos e reformulados para atender essa nova
realidade. Surgiu assim, a oportunidade (necessidade) de escrever um novo plano de
ensino, que pode ser realizado de forma participativa, gerando significado, pois contou
com todos os sujeitos envolvidos no programa (alunos, participantes egressos, gestão
da instituição, representante da mantenedora, pais de alunos...), tanto no processo de
construção, como de implementação do plano de ensino.
Delineamento da Pesquisa
A pesquisa realizada caracteriza-se como uma abordagem qualitativa, tendo em
vista seu caráter participativo e propositivo no que tange à construção coletiva de prá-
ticas pedagógicas significativas para o Programa Recriar campo empírico deste
estudo. Para Gil (2008, p. 272), por meio do método qualitativo, o investigador entra
em contato direto e prolongado com o indivíduo ou grupos humanos, com o ambiente
e a situação que está sendo investigada, permitindo um contato de perto com os infor-
mantes.
Assim, a metodologia qualitativa possibilita uma maior aproximação entre pes-
quisador e sujeitos participantes do estudo. Para Creswell (2014, p. 52), “conduzimos
pesquisa qualitativa quando desejamos dar poder aos indivíduos para compartilharem
suas histórias, ouvir suas vozes [...]”. Essa aproximação torna possível a compreensão e
significação de diferentes ideias e visões elencadas pelos partícipes da pesquisa.
Para a condução da investigação, utilizaremos o método da pesquisa-ação. Thi-
ollent (2011, p. 14) define pesquisa-ação como:
[...] um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e realizada em estreita associ-
ação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo e no qual os pesquisadores e os
participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo
e participativo.
Isso evidencia que a escolha deste método permite a construção do conhecimento
com a participação de todas as partes interessadas, porque compreende a “pesquisa”
como apropriação dos próprios sujeitos envolvidos e a “ação” como aplicação desta,
com intuito de modificar a situação atual. Dessa forma, “a pesquisa-ação é uma técnica
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Diálogos entre educação não escolar e pedagogia: uma experiência de participação
234
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 222-247, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
de intervenção coletiva e, portanto, uma técnica de mudança social” (DIONNE, 2007,
p. 75).
Neste estudo, o espaço de educação não formal foi o Programa Recriar, a gestão
pedagógica participativa foi compreendida pela articulação entre a coordenação peda-
gógica e pelos representantes de todas as partes interessadas do programa, que, juntos,
colaboraram na elaboração de um novo “plano de ensino”, visando o desenvolvimento
de práticas pedagógicas significativas. Esses sujeitos, que julgamos terem relevância para
este estudo, foram aqueles reconhecidos como pessoas que valorizam o programa e de
alguma forma o influenciam. A este grupo denominamos de Comitê do Programa Re-
criar (CPR), composto pelos seguintes atores: presidente e vice-presidente do Instituto
Adelino Miotti, coordenadora pedagógica da instituição, coordenadora de recursos hu-
manos da empresa Soprano (mantenedora do Instituto), dois alunos egressos do
programa, um aluno representante da turma que atualmente participa do Recriar, res-
ponsáveis (pai e mãe) de um aluno egresso do programa e professores que ministram
as demais atividades ofertadas pelo programa.
Assim sendo, a pesquisa efetivou-se através de reuniões quinzenais, com carga
horária de duas horas por encontro e iniciou-se em março de 2017, estendendo-se até
setembro do mesmo ano. Dessa forma, a intervenção coletiva aqui proposta ocorreu na
medida em que as reuniões aconteceram e novos conhecimentos foram elaborados pe-
los participantes, mediante a dialogicidade e estudos realizados nos encontros. Com o
registro destes novos conhecimentos, a gestão pedagógica delineou o novo plano para
o programa, validando-o com os partícipes, em todas as suas etapas e, quando foi con-
cluído, propôs a mudança na prática com os jovens que participavam do Recriar, em
2018.
Diante disso, a abordagem qualitativa como metodologia que compôs este es-
tudo, objetivou construir, por meio da pesquisa-ação, um movimento que reconheceu
a importância da participação, mediante as percepções do que cada sujeito tinha a dizer
e contribuir, fortalecendo o processo de construção de práticas pedagógicas significati-
vas a partir da experiência, da escuta, de conhecimentos empíricos e epistemológicos.
Na coleta de dados, foram utilizadas as técnicas de observação participante e a
criação de um diário de pesquisa para registro das ideias mais significativas de cada
encontro. Para a análise de dados, foi adotada a técnica de análise de conteúdo.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Simone Martiningui Onzi, Daianny Madalena Costa
235
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 222-247, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Caminhos da Gestão Pedagógica Participativa
A presente pesquisa buscou investigar, por meio de uma gestão pedagógica par-
ticipativa, a possibilidade de articular a construção de práticas pedagógicas significativas
para o Programa Recriar, que traduzissem a visão coletiva do CPR. Diante dessa pro-
posta e analisando também o problema apresentado, bem como os objetivos específicos
desse estudo, consideramos importante abordar o percurso percorrido pelo Comitê nas
reuniões que proporcionaram as “descobertas” que realizamos nessa pesquisa.
Assim, a partir do momento em que foram efetuados os convites para a partici-
pação no CPR, houve um grande engajamento dos sujeitos em todas as etapas do
processo e foi perceptível o interesse do coletivo para que tivéssemos sucesso ao longo
do desenvolvimento do percurso estabelecido para o estudo. Dito isso, consideramos
importante ressaltar também que, durante o itinerário foi necessário superar diferentes
desafios que fizeram parte da construção de uma relação sólida de respeito e confiança
entre os participantes. Por isso, consideramos relevante explicitarmos neste momento
o crescimento e desenvolvimento do grupo e sua contribuição para o Programa Recriar
com o resultado desse trabalho, pois, conforme afirma Lück (2011) formas e pensa-
mentos distintos direcionados aos mesmos fins cumprem um papel essencial na
formulação de metas, formas de ação e opções de desenvolvimento futuro.
Dessa forma, após os convites individuais para participação, iniciamos as reuni-
ões coletivas em 01/03/2017. Nesse primeiro momento, os sujeitos apresentaram-se
para o grupo e relataram suas expectativas em relação ao CPR,
Espero ver o processo como um todo e o resultado final (Sujeito 4).
Oferecer meu máximo e acreditar, aprendendo com as atitudes diferentes (Sujeito 3).
Sinto-me emocionada em poder continuar fazendo parte de algo tão importante como foi para
o meu filho ter participado do Programa Recriar (Sujeito 9).
Quero poder ajudar outras pessoas, assim como fui ajudado (Sujeito 8).
Quero ajudar a transformar o Recriar, para dar oportunidade a outros jovens (Sujeito 7).
Quero ver a reescrita a várias mãos e pensamentos, enriquecer o trabalho, sei que não vai ser fácil
(Sujeito 2).
Nesse mesmo encontro, abordamos as expectativas e receios do grupo e constru-
ímos de forma coletiva o conceito de participação para os integrantes do CPR. Além
disso, foi explicitado o objetivo do Comitê ter sido formado e o percurso que o grupo
teria pela frente. Ao final do encontro, um dos participantes trouxe a seguinte fala: “o
que vamos fazer aqui é quase como escrever um projeto pedagógico de uma escola
(Sujeito 5). A fala desse sujeito é ancorada por Freire (1985, p. 38) quando afirma que
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Diálogos entre educação não escolar e pedagogia: uma experiência de participação
236
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 222-247, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
“o ponto de partida de um Projeto Político-Pedagógico, tem de estar exatamente nos
níveis de aspiração, nos níveis dos sonhos, nos níveis de compreensão da realidade e
nas formas de ação dos grupos”.
Além disso, como o estudo proposto dependia de uma participação efetiva do
CPR, logo no primeiro encontro, consideramos necessário e importante que fossem
apresentados os conceitos de participação abordados na fundamentação teórica deste
estudo oportunizando um momento de reflexão individual aos participantes e de diá-
logo coletivo sobre as percepções em relação aos conceitos apresentados. Com essa
perspectiva, apresentamos excertos dos conceitos de participação de Lück et. al (2012)
1
;
Gandin (1994)
2
; Silva (2006)
3
e Bordenave (1994)
4
, que foram entregues aos partici-
pantes em um pedaço de papel para que fizessem uma leitura e reflexão individual e
depois, de forma voluntária, realizamos a leitura coletiva de todos os conceitos, sociali-
zando as opiniões formadas pelos indivíduos. Foi um momento que ocorreu a
participação de todos, gerando a oportunidade de os sujeitos da pesquisa relatarem o
que consideram, baseado nos conceitos teóricos, ideias debatidas e percepções indivi-
duais, que para eles seria o “participar” necessário para o Comitê do Programa Recriar.
Participação de todos, de quem faz parte, de quem trabalha (Sujeito 1).
Participar de algo novo, coletivo com visões diferentes e pessoas diferentes (Sujeito 8).
Intensidade para que o trabalho ocorre de forma harmoniosa, tem que ser feito por todos para
ser participação (Sujeito 9).
Participar é atuação consciente, compreender, decidir, agir, influenciar (Sujeito 4).
Expor minhas ideias, contribuir, respeitar (Sujeito 5).
Participar é contribuir com a ideia de todos, formando um coletivo de experiência que podem
ser traduzidas, posteriormente, como conhecimento (Sujeito 4).
Trazer o meu conhecimento e o de cada um para o coletivo (Sujeito 6).
Coletivo com muitas cabeças pensando, buscar algo, é ir além de estar apenas presente (Sujeito
2).
Nesse cenário de troca coletiva, cada relato dos sujeitos, elucida o olhar de Gan-
din (1994), ao afirmar que ao relacionarmos fundamentos teóricos e ideias
transformadoras de ordem pessoal, estamos gerando uma dinâmica de participação, na
medida em que os sujeitos sentem que sua contribuição é um procedimento normal
adotado pelo grupo.
Dessa maneira, objetivando que todos os participantes pensassem o processo de
construção coletiva que viria nos próximos encontros, o CPR construiu, unindo as falas
de todos e concepções teóricas, o seguinte conceito para participação:
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Simone Martiningui Onzi, Daianny Madalena Costa
237
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 222-247, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Participação, para o CPR é, apoiar e contribuir na construção do conhecimento coletivo de forma
consciente, dialogando, analisando, influenciando, produzindo e atuando na elaboração de uma
proposta de ensino que esteja alinhada com as expectativas de todas as partes interessadas. (CPR)
Nessa fala coletiva, percebe-se que o CPR se comprometeu a exercer a tolerância,
que para FREIRE (1985, p. 27), não significa de maneira nenhuma a abdicação do
que te parece justo, do que te parece bom e do que te parece certo. [...] O tolerante não
abdica dos seus sonhos pelo qual luta intransigentemente, mas respeita o que tem sonho
diferente do dele”.
Durante todo o período em que foram realizadas as reuniões, foi perceptível por
meio da observação participante e das falas dos sujeitos, que o diálogo respeitoso e
tolerante foi utilizado durante os encontros, mesmo quando as ideias apresentadas não
eram convergentes. Ou seja, o CPR utilizou-se do diálogo para olhar o mundo (na
perspectiva da pesquisa, o mundo do Recriar) e a própria existência em sociedade como
processo, algo em construção, como realidade inacabada e em constante transformação
(FREIRE, 1993). Vejamos abaixo, um exemplo desses momentos dialógicos,
Para mim, a vivência de maior significado foram os funcionários que vieram contar suas histórias
de vida, que começaram como a gente, acho que isso teria que ter mais, palestras com histórias
de vida vencedoras. (Sujeito 7).
Eu concordo, também achei importante, só que eu penso o seguinte, só visto histórias de sucesso,
‘cara’, nos deixa sem ver o outro lado, de quem ‘pena’ para conseguir as coisas. (Sujeito 8).
Mas peraí, o cara que teve sucesso também passou por dificuldades, deve ter ‘penado’ para muitas
coisas. (Sujeito 7).
Pois é, pode ser que tu tenha razão, então acho importante anotar para quando esses ‘caras’ virem
aqui, falar também das dificuldades, para que os alunos vejam que eles são serem humanos (risos).
(Sujeito 8).
Além desse cenário, explorando outros momentos participativos em que foi in-
dispensável o respeito pela “ideia diferente” se faz necessário destacar uma das reuniões
de grande importância para o CPR e por consequência para o nosso estudo: o encontro
em que tivemos a participação dos parceiros e professores convidados, que ministravam
algumas das atividades ofertadas anteriormente pelo Programa Recriar. Aqui destaca-
mos duas situações importantes: a participação efetiva das organizações parceiras que
estão ligadas ao setor da indústria (assim como a mantenedora do IAM) que sugeriram
uma interface de atividades voltadas às necessidades do “mercado de trabalho” para
aplicarmos no Programa Recriar e a preocupação dessas em manter a parceria e a reali-
zação das atividades, visto que a mantenedora do programa é uma indústria de grande
porte que auxilia financeiramente também a manutenção desses parceiros.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Diálogos entre educação não escolar e pedagogia: uma experiência de participação
238
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 222-247, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Em relação a estas situações, evidenciamos as seguintes falas,
Nós, enquanto instituição, devido a nossa parceria de anos, sabemos que o Recriar muda e resgata
a vida do jovem, que oportuniza coisas que não percebemos em outros programas socioeducaci-
onais. [...] Já que vamos formar alunos todos os anos, precisamos pensar em um processo mais
dinâmico e profissionalizado, que desenvolva postura, disciplina, comportamentos adequados
nos ambientes da empresa, com estratégias de planejamento e meta de vida, quem sabe até um
coaching? Nisso, podemos ajudar vocês (Sujeito 10).
Até no processo seletivo, quem sabe ao invés de fazer entrevista individual para conhecer o can-
didato, fazer uma dinâmica coletiva, com uma estratégia, ali já saberíamos quem teria melhor
desempenho em algumas atividades (Sujeito 11).
[...] Também poderiam elencar metas para irem alcançando durante o ano, planejar bem o que
deverá fazer nesses 10 meses (Sujeito 10).
O posicionamento do restante do grupo foi um silêncio contemplativo e de res-
peito à opinião mencionada. Não houve comentários imediatos que concordassem ou
discordassem das temáticas abordadas por esses parceiros, cabendo ressaltar também
que, os demais convidados externos ao Comitê, se mantiveram pensativos-observado-
res. A pesquisadora anotou a sugestão da mesma forma que fez com todos os outros
participantes e questionou se alguém gostaria de complementar ou comentar sobre as
ideias levantadas. Também não houve resposta do grupo. Assim, percebemos um “es-
tranhamento” entre o conceito de participação elaborado pelo CPR e a sua prática,
revelando que existe um caminho a percorrer entre conceituar a “participação” e viven-
ciar a “participação” de acordo com o conceito estabelecido.
Contudo, compreendemos também que o silêncio, se observado com um olhar
singularizado, não deixa de ser uma forma de participação. É o que afirma Orlandi
(1993), quando retrata que há um modo de estar em silêncio que corresponde a um
modo de estar em sentido, que já não é o silêncio, mas “pôr em silêncio” e nos mostra
que há um processo de produção de sentidos silenciados que nos faz entender a dimen-
são do não dito. Ou seja, na situação que relatamos, o silêncio foi uma forma de não
mostrar abertamente o descontentamento imediato dos sujeitos em relação à proposta
elencada pelo parceiro. Essa percepção fica clara, pois, no encontro subsequente, a reu-
nião foi aberta com as sugestões trazidas anteriormente pelos parceiros, e ao resgatar o
relato daqueles ligados ao setor da indústria, o retorno do CPR foi
Eu não concordo com isso de colocar metas, se teve uma coisa que aprendi no Recriar é que
somos todos diferentes e se tivermos as mesmas metas como vamos perceber as individualidades
de cada um? (Sujeito 6).
Mas aquilo que foi dito de ter um planejamento de vida acho importante, pois fará os educandos
pensarem no futuro, eles não precisam definir um planejamento de vida fechado, a exemplo de
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Simone Martiningui Onzi, Daianny Madalena Costa
239
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 222-247, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
vou me formar em engenharia de produção daqui a 5 anos, mas poderíamos contar com a ideia
de quero ter uma graduação completa daqui a 7 anos e pensar como fará para chegar lá. Isso, na
minha opinião, é de muita valia para os jovens que virão (Sujeito 1).
Outra coisa, eu nunca teria passado na seleção do Recriar se tivesse essa tal de dinâmica de grupo,
lembram como eu era tímido? Às vezes ainda sou e o que perdi de timidez aprendi aqui... Não
acho justo isso de dinâmica não, é ‘tipo’, querer ficar só com os melhores? (Sujeito 8).
Na sequência destas falas a pesquisadora questionou o porquê não terem se ma-
nifestado no dia em que foram colocadas a sugestões pelos parceiros. A resposta do
grupo foi por meio da fala do Sujeito 4, aceita por todos os participantes, “acho deli-
cado nos posicionarmos em desfavor de um parceiro que nos auxilia de forma gratuita
no IAM, talvez entendam de forma errônea e percamos a parceria”. Aqui, mais uma
vez, fica em evidência a limitação do diálogo tão relevante para o processo participa-
tivo mediante o receio dos demais participantes, que não se sentiram à vontade para
participar, optando por não se posicionarem, imediatamente, em momentos impor-
tantes. Sobre a limitação da participação, Benello e Roussopoulos (1971, p. 280),
afirmam que
talvez seja necessário ver a democracia participativa como uma utopia, no sentido de que ela não
é completamente realizável, dadas as várias limitações sociológicas e psicológicas, mas em vez
disso realizável apenas em passos, e certamente valiosa como instrumento para lidar com proble-
mas como educação [...].
Outro fato presente no encontro com os parceiros que merece nossa análise é a
predisposição neoliberal e visão corporativista do parceiro relacionado anteriormente,
tendo em vista a busca pela inclusão de práticas pedagógicas voltadas para a formação
profissional. Para Streck e Adams (2006, p. 108), em função da cultura política, as
organizações como o Instituto Adelino Miotti são permeadas por contradições e que,
encontrar um equilíbrio entre os diferentes interesses é uma tarefa árdua, pois
as organizações da sociedade civil vivem, em geral, a tensão entre certa tendência ao corporati-
vismo e a relação pública, tendo presente os interesses maiores do conjunto da sociedade. Como
garantir uma mínima equidade, que não deixe de fora os setores desorganizados e contribua para
privilegiar certos setores mais organizados?
Além disso, em algumas situações a educação (no sentindo de formação) perde
espaço para a intenção neoliberal de individualização dos sujeitos e da extensão de suas
ações, de forma a responsabilizá-los, individualmente, pela sua própria formação. Dessa
maneira, valoriza-se somente a formação que contribui para a inserção e manutenção
no mercado de trabalho (indivíduo produtivo e consumidor), mas não para a formação
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Diálogos entre educação não escolar e pedagogia: uma experiência de participação
240
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 222-247, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
cidadã e para a constituição de um pensamento crítico (AFONSO, 2001). Entretanto,
o posicionamento reflexivo do Comitê, demonstra uma postura ponderativa, ao anali-
sar que sugestões realmente vincular-se-iam ao objetivo a que se propõe o Programa
Recriar, a partir de 2018.
Em relação aos momentos participativos, entendemos que é significativo destacar
também a participação que ocorreu de forma externa às reuniões, nos momentos de
estudo dirigido fora dos encontros presenciais. Nesse cenário, exigiu-se um engaja-
mento, num primeiro momento individual, ao realizarem as leituras prévias e
posteriormente coletivas, pois, para apresentação do que foi compreendido nos estudos,
os participantes o fizeram em duplas, ou seja, foram necessários encontros além das
nossas reuniões para preparação das informações que seriam apontadas ao grupo.
Seguindo o nosso percurso, estudamos e elaboramos os valores, princípios e ob-
jetivos que o Programa Recriar começou a fomentar em 2018. Dando sequência aos
encontros, os participantes debateram sobre o que consideram práticas pedagógicas sig-
nificativas com estudos dirigidos abordando alguns conceitos teóricos.
Na sequência, dialogaram sobre as possibilidades de construção dessas práticas e
de que forma propõem que isso seria efetivado, elaborando de forma espontânea e co-
letiva, um conceito para prática pedagógica significativa que foi utilizado para pensar
essas ações para o Programa Recriar. Esse processo foi o mais longo e por consequência
o mais produtivo, com um grande número de opiniões colaborativas. Dionne (2007,
p.34), ressalta a importância desses momentos de troca, as contribuições dos sujeitos é
que fomentam a pesquisa, pois
a elaboração e a partilha dos conhecimentos ocorrem em relações de convivência que incitam, ao
mesmo tempo, o pesquisador a coletar os conhecimentos derivados da ação e o ator a contribuir
diretamente para a produção de conhecimento. A divisão social do trabalho profissional entre o
pesquisador e o participante-ator tende a desvanecer-se, tornando-se um coletivo engajado em
uma mesma intervenção.
Dessa forma, a intervenção coletiva aqui proposta se deu na medida em que as
reuniões foram avançando e novos conhecimentos foram elaborados pelos participan-
tes, mediante a dialogicidade, o debate e os estudos dirigidos, realizados nos encontros,
delineando assim, as práticas pedagógicas significativas que foram propostas para serem
desenvolvidas pelo Programa Recriar a partir de 2018 conforme proposta desta pes-
quisa. Com o registro desses novos conhecimentos, o CPR, ao longo dos encontros,
desenhou e concebeu o novo projeto pedagógico para o Programa Recriar, sendo este
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Simone Martiningui Onzi, Daianny Madalena Costa
241
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 222-247, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
validado pelos partícipes em todas as suas etapas, bem como aprovado em sua versão
final no último encontro do CPR. O quadro a seguir, resume as práticas pedagógicas
definidas pelo Comitê:
Quadro 1 Práticas Pedagógicas do Programa Recriar
Eixo Temático
Objetivo
Carga
Horária
Formação para a
Vida
Oportunizar momentos de reflexão, construção e/ou reconstrução
acerca dos valores morais e éticos que nos formam enquanto ser hu-
mano, propiciando o desenvolvimento humano dos educandos para
a formação de um cidadão ativo na sociedade, praticando os apren-
dizados adquiridos no Programa Recriar, também na escola, família
e na sociedade.
430h
Estratégias de
Comunicação
Oral e Escrita
Aplicar adequadamente estratégias de comunicação oral e escrita, em
diferentes situações em que se exerce o uso da linguagem.
80h
Língua
Estrangeira:
Inglês
Propiciar aos educandos a oportunidade de aprender e exercitar no-
ções básicas em idiomas de abrangência universal, despertando a
motivação e a curiosidade por línguas e culturas estrangeiras.
80h
Informática e
suas Tecnologias
Desenvolver e estimular as potencialidades e habilidades dos educan-
dos perante a prática informatizada, ampliando os conhecimentos no
uso de ferramentas tecnológicas.
60h
Educação para a
Saúde
Proporcionar a reflexão sobre a saúde física e mental, a cooperação e
a convivência, respeito a limites, regras e normas, contribuindo para
o desenvolvimento das relações inter e intrapessoal e para obtenção
de uma maior qualidade de vida.
70h
Hora do Estudo
Oportunizar um momento destinado ao estudo do conteúdo da es-
cola formal, buscando estratégias que auxiliem os educandos na
aprendizagem, sanando as dificuldades encontradas na construção do
conhecimento.
80h
Total de Carga Horária Anual: 800h
Fonte: Elaborado pelas autoras, com base nas contribuições do Comitê do Programa Recriar
Em nenhuma das etapas, o CPR demonstrou perder o foco, compreendendo que
era necessário qualificar-se para tomar algumas decisões e que “se aceitamos fazer parte
desse grupo, temos que abraçar a causa, assim aprendemos mais também” (Sujeito 4),
o que representa o compromisso do Comitê com a proposta. Portanto, a ação partici-
pativa hábil em educação é orientada pela promoção solidária da participação por todos
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Diálogos entre educação não escolar e pedagogia: uma experiência de participação
242
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 222-247, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
[...] tomando decisões em conjunto orientadas por esse compromisso [...](LÜCK,
2011, p. 51). Enfim, o CPR demonstrou maturidade em compreender que, como nos
assegura Lück (2011, p. 17), “a ideia de gestão participativa é um trabalho associado
de pessoas analisando situações, decidindo sobre seu encaminhamento e agindo sobre
elas em conjunto”.
Assim, com o passar das reuniões, o CPR foi criando uma sintonia, que ocorreu
por meio da troca de diferentes experiências e ideias, em que o grupo “sentiu-se à von-
tade para falar e escutar (Sujeito 1)”, exercitando a “aprendizagem do escutar e não
apenas ouvir” (Sujeito 5), conhecendo “a essência dos credos individuais e como isso
se transforma quando ocorre a intervenção do coletivo” (Sujeito 4) e percebendo assim,
a “importância e contribuição do conhecimento e do pensamento de cada um” (Sujeito
9) em busca da construção das práticas pedagógicas do Recriar vista como “a oportu-
nidade de fazer a diferença na vida desses educandos, mesmo que eles não saibam
(Sujeito 2). Essas contribuições dos participantes do Comitê refletem que o processo
participativo, é decisivo para que o grupo se constitua e se mantenha como tal.
Ou definitivamente se aposta na responsabilidade coletiva, fazendo com que o grupo responda
como um todo pelas ideias e resoluções em que acredita e endossa, ou se permanecerá nas soluções
intermediárias, em que certa esfera de poder mantém-se inatingível (HORA, 1994, p. 91).
Por fim, pode-se concluir que o Comitê do Programa Recriar foi um grupo que
buscou utilizar, sempre que possível, o diálogo como posicionamento participativo,
oportunizando a pesquisadora a possibilidade de observar a participação dos sujeitos
integrantes desse estudo, gerando um sentimento de objetivo atingido no que diz res-
peito à participação do grupo em sua totalidade, em que cada indivíduo teve sua parcela
de poder e a soma dessas parcelas formou o coletivo das práticas pedagógicas significa-
tivas.
Considerações finais
No presente estudo afirmou-se o diferencial de uma gestão pedagógica participa-
tiva em espaços não formais, que fomentem os objetivos específicos e intencionalidades
nas ações educativas que se propõem desenvolver. Nesse cenário, os sujeitos da pesquisa
delinearam as práticas pedagógicas para o Programa Recriar com uma visão de “reali-
dade que pode ser transformada”, porém que demanda constante reflexão de suas
intencionalidades. Pode-se dizer então que os conhecimentos pedagógicos foram acio-
nados nesse estudo como elemento motivador de uma gestão e de uma práxis,
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Simone Martiningui Onzi, Daianny Madalena Costa
243
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 222-247, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
conduzindo-a e instigando-a por meio do aprofundamento teórico e da intervenção
reflexiva (PIMENTA, 2012).
Contudo, as organizações que atuam com educação não formal ainda galgam o
reconhecimento do seu espaço como uma modalidade educativa que produz um con-
junto de saberes variáveis e flexíveis, objetivando o desenvolvimento de processos
pedagógicos e de formação para a cidadania, nos aspectos culturais, políticos e sociais.
Segundo Severo (2015b, p. 95) são esses processos pedagógicos “que vão imprimir sen-
tido aos processos educativos não formais, organizando-os através de uma abordagem
complexa que compreende um amplo espectro de variáveis [...]”.
Dessa forma, tratando-se de um estudo qualitativo, no qual o método de inves-
tigação utilizado foi a pesquisa-ação e sua premissa de intervenção coletiva, foi
fundamental para o resultado conquistado com esse trabalho, a participação ativa dos
sujeitos, que juntos, formaram o Comitê do Programa Recriar, no intuito de oportu-
nizar o pensar pedagógico de forma cooperativa.
Em relação à gestão participativa, destaca-se a partilha de vivências, estudos diri-
gidos e escuta qualificada que o CPR empreendeu durante os encontros. Isso foi
possível, pois o grupo promoveu dialógicos engajados, buscando sempre o interesse
comum para a construção de um trabalho coletivo. Aqui cabe destacar também a for-
mação heterogênea do grupo, com uma faixa etária entre 16 e 70 anos, homens e
mulheres com diferentes níveis de escolaridade e experiências pessoais e profissionais.
Esse caráter diverso do Comitê oportunizou o compartilhamento de responsabilidades,
numa articulação dinâmica e ativa dos sujeitos em que foi possível reconhecer, inclu-
sive, os momentos que o próprio grupo percebeu como necessário e importante ampliar
seus conhecimentos científicos para posteriormente seguir com o desenvolvimento dos
princípios, valores e objetivos do Recriar. É importante ressaltar também que o silêncio
também fez parte de alguns momentos de participação, trazendo diferentes sentidos ao
“não dito”, mas de alguma forma, houve sempre a retomada daquilo que necessitava
ser trazido novamente e discutido.
Consoante ao compromisso participativo do grupo somaram-se as reflexões ema-
nadas dos encontros e das necessidades evidenciadas pela troca coletiva, possibilitando,
por meio da flexibilidade existente na educação não formal, o encontro de diferentes
saberes e a proposição, em conjunto, do delineamento fundamentado do projeto peda-
gógico do Programa Recriar. Nesse cenário, fortaleceu-se a importância de tornar clara
e entendida em seus desdobramentos as intencionalidades pedagógicas apresentadas,
bem como os seus rumos, os seus objetivos, a sua abrangência e as perspectivas de sua
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Diálogos entre educação não escolar e pedagogia: uma experiência de participação
244
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 222-247, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
atuação, além de organizar, de forma articulada, todos os aspectos necessários para a
sua efetivação.
Enfim, é importante destacar também o papel humanizador da proposta peda-
gógica que o CPR delineou para o Recriar, pois compreendeu a formação humana no
âmbito dos valores éticos e de solidariedade, no respeito às diferentes opiniões, e às
formas de ser, pensar e estar na sociedade. Buscou-se assim, oportunizar momentos de
aprendizagem significativa para os sujeitos participaram do Recriar e aos que virão.
Em suma, esse trabalho retrata que é possível pensar, de forma coletiva, práticas
pedagógicas significativas para espaços de educação não formal, configurando objeti-
vos, intencionalidades explicitadas e modos de ação que busquem promover a missão
para a organização que busca concretizar-se como espaço de transformação social.
Notas
1
Participação caracteriza-se por uma força de atuação consciente, pela qual membros de uma unidade
social se reconhecem e assumem seu poder de exercer influência social, de sua cultura, e de seus resul-
tados, poder esse resultando de suas competências e vontade de compreender, decidir e agir em torno
de questões que lhe são feitas (LÜCK, 2012, p. 18-19).
2
Participação significa não apenas contribuir com uma proposta preparada por algumas pessoas, mas
representa a construção conjunta (GANDIN, 1994, p. 28).
3
Participação é uma modalidade de produção de conhecimento coletivo a partir de um trabalho que
recria, de dentro para fora, formas concretas de pessoas, grupos e classes populares participarem do
direito e do poder de pensar, produzir e dirigir os usos do saber a respeito de si próprios (SILVA, 2006,
p. 129).
4
Participação significa objetivamente estar incluído na criação do conhecimento, de um novo conheci-
mento, participação na determinação de necessidades essenciais da comunidade, participação na busca
de soluções e, sobretudo, na transformação da realidade. Participação de todos aqueles que tomam
parte no processo de educação e desenvolvimento. (BORDENAVE, 1994, p. 32)
Referências
AFONSO, Almerindo Janela Os lugares da educação. In: SIMSON, Olga Rodrigues de
Morais; PARK, Margareth; FERNANDES, Renata (Orgs.). Educação não formal: cenários da
criação. Campinas: Editora Unicamp, 2001. p. 29-38.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Simone Martiningui Onzi, Daianny Madalena Costa
245
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 222-247, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
ARROYO, Miguel. Escola Plural. Proposta pedagógica Rede Municipal de Educação de Belo
Horizonte, SMED. 1994.
BAPTISTA, Isabel. Pedagogia Social: Uma ciência, um saber profissional, uma filosofia de
acção. Cadernos de Pedagogia Social. Universidade Católica Editora, Faculdade de Educação e
Psicologia: Lisboa/Portugal. Ano II, vol. 2, 2008. p. 07-30.
BENELLO, C. George; ROUSSOPOULOS, Dimitrios (orgs.). The case for participatory de-
mocracy: some prospects for a radical society. New York: Grossmann Publishers, 1971.
BORDENAVE, Juan. O que é participação. Coleção Primeiros Passos. São Paulo: Brasiliense,
1994.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação. São Paulo: Braziliense, 2007.
BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDBEN): Lei nº 9.394/9624 de dez. 1996.
Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, 1998.
CRESWELL, John W. Investigação qualitativa e projeto de pesquisa: escolhendo entre cinco
abordagens. 3 ed. Porto Alegre: Penso, 2014.
DALBERIO, Maria Célia. Gestão democrática e participação na escola pública popular.
Revista Iberoamericana de Educacion. N.º 47/3, p. 1-12, 25 de outubro de 2008. Disponível
em: <https://rieoei.org/deloslectores/2420Borges.pdf>. Acesso em: 22 dez. 2016.
DIONNE, Hugues. A pesquisa-ação para o desenvolvimento local. Brasília: Liber Livro, 2007.
FABRIS, Eli Henn; DAL´LGNA, Maria Cláudia; KLAUS, Viviane. Pedagogia: Cenários da
Carreira. Unisinos: São Leopoldo, 2013.
FRANCO, Maria Amélia Santoro. Pedagogia como ciência da educação. Campinas, SP:
Papirus. 2003. (Coleção Entre Nós Professores).
FRANCO, Maria Amélia Santoro. Pedagogia e Prática Docente. São Paulo: Cortez, 2012.
FREIRE, Paulo. Cartas a Guiné-Bissau: registros de uma experiência em processo. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1977.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários a práticas educativa. 37 ed. São
Paulo: Paz e Terra, 2008.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo:
Editora UNESP, 2000.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Pergunta. São Paulo: Paz e Terra, 1985.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1993.
GANDIN, Danilo. A Prática do Planejamento Participativo. São Paulo: Vozes, 1994.
GARCIA, Valéria. Um sobrevoo: o conceito de educação não formal. In: PARK, Margareth.
FERNANDES, Renata. Educação não formal: contextos, percursos e sujeitos. São Paulo: Editora
Setembro, 2005.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Diálogos entre educação não escolar e pedagogia: uma experiência de participação
246
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 222-247, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
GHIRALDELLI JR, Paulo. O que é Pedagogia. São Paulo: Brasiliense, 2007.
GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6 ed. São Paulo: Atlas, 2008.
GOHN, Maria da Glória. Conselhos gestores e participação sociopolítica. São Paulo: Cortez,
2001. (Coleção questões da nossa época, v.84).
GOHN, Maria da Glória. Educação não formal e cultura política: impactos sobre o
associativismo do terceiro setor. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2011.
GOHN, Maria da Glória. Educação Não Formal e o Educador Social: atuação no
desenvolvimento de projetos sociais. São Paulo: Cortez, 2010.
GOHN, Maria da Glória. Educação Não Formal na Pedagogia Social. Ano 1 Congresso Inter-
nacional de Pedagogia Social, Mar. 2006. Disponível em:
<http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_art-
text&pid=MSC0000000092006000100034&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 15/05/2016.
GOHN, Maria da Glória. Educação não formal, aprendizagens e saberes em processos
participativos. Revista Investigar em Educação. Portugal, IIª Série, nº 1, p. 35-50, 2014.
Disponível em: <http://pages.ie.uminho.pt/inved/index.php/ie/article/view/4
>. Acesso em
26/01/2017.
HORA, Dinair. L. Gestão democrática na escola: artes e ofícios da gestão colegiada. Campinas:
Papirus, 1994.
LIBNEO, José Carlos. Organização e Gestão da Escola: Teoria e Prática. Goiânia, GO:
Alternativa, 2004.
LIBNEO, José Carlos. Pedagogia e pedagogos, para quê?. São Paulo: Cortez, 1998.
LIBNEO, José Carlos. Que destino os educadores darão a pedagogia? In: PIMENTA,
Selma Garrido. Pedagogia, ciência da educação? São Paulo: Cortez, 1996.
LÜCK, Heloísa. A gestão participativa na escola. Rio de Janeiro: Vozes, 2011.
LÜCK, Heloísa. et al. A escola participativa: o trabalho do gestor escolar. Rio de Janeiro:
Vozes, 2012.
ORLANDI, Eni. P. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas, SP: Uni-
camp, 1993.
PARO, Vitor Henrique. Administração escolar: Introdução crítica. 11 ed. São Paulo: Cortez,
2002.
PEREIRA, Rodrigo. School and participation: a study of the School Councils in Aracaju-SE.
2015. 372 f. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal de Sergipe, São
Cristóvão, 2015. Disponível em: <http://bdtd.ufs.br/handle/tede/1545>. Acesso em: 22 dez.
2016.
PIMENTA, Selma Garrido. O estágio na formação de professores: unidade teoria e prática? 11.
ed. São Paulo: Cortez, 2012.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Simone Martiningui Onzi, Daianny Madalena Costa
247
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 222-247, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
PIMENTA, Selma Garrido. Pedagogia, ciência da educação? São Paulo: Cortez, 1996.
ROSSATO, Ricardo. Práxis. (Verbete). In: STRECK, Danilo R.; REDIN, Euclides:
ZITKOSKI, Jaime José. Dicionário Paulo Freire. Belo Horizonte: Autêntica. 2008. p. 331-
333.
SEVERO, José Leonardo Rolim de Lima. Educação não formal como campo de práticas
pedagógicas. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 96, n. 244, p. 561-576, dec.
2015a. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2176-
66812015000300561&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 06 mar. 2017.
SEVERO, José Leonardo Rolim de Lima. Pedagogia e educação não formal no Brasil: crítica
epistemológica, formativa e profissional. 2015, 266 f. Tese (Doutorado em Educação)
Universidade Federal da Paraíba, João Pessoas PB, 2015b. Disponível em:
<http://tede.biblioteca.ufpb.br/bitstream/tede/8217/2/arquivo%20total.pdf>. Acesso em: 22
dez 2016.
STRECK, Danilo. ADAMS, Telmo. Lugares de Participação e Formação da Cidadania.
Civitas – Revista de Ciências Sociais, v. 6, n. 1, jan-jun. 2006.
THIOLLENT, Jaume. A educação não formal. In: ARANTES, Valéria (org). Educação
formal e não formal: pontos e contrapontos. São Paulo: Summus, 2008.
THIOLLENT, Michel. Metodologia da pesquisa-ação. 18 ed. São Paulo: Cortez, 2011.
XAVIER, Odiva. FERNANDES, Rosana. A aula em espaços não-convencionais. In: VEIGA,
Ilma Passos. Aula: gênese, dimensões, princípios e práticas. Campinas, SP: Papirus, 2008.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Este artigo está licenciado com a licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
248
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 248-264, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
A criança e a escola: da invisibilidade ao protagonismo
Children and school: from invisibility to protagonism
El niño y la escuela: de la invisibilidad al protagonismo
Hedi Maria Luft
*
Kátia Aparecida Dias Peroty
**
Resumo
O presente estudo é uma reflexão sobre crianças-alunos de uma turma dos Anos Iniciais do Ensino
Fundamental de uma escola pública de tempo integral da rede municipal de ensino do município de
Santa Rosa/RS, e analisa as práticas que aferem a invisibilidade e/ou o protagonismo. O objetivo
principal é compreender, que situações do espaço escolar, favorecem a construção da autonomia da
criança. Os dados foram elaborados a partir da pesquisa qualitativa, de cunho etnográfico, mediante
a observação participante, com registro em diário de campo que converge, posteriormente, para re-
latos das anotações e momentos vividos com o grupo de cinco sujeitos da pesquisa, os quais foram
também entrevistados por intermédio de questões semidirigidas. A pesquisa se insere nas concepções
da pedagogia crítica com referência em: Freire (1996), Sirota (1994), Sarmento (2002, 2005, 2015),
entre outros. Concluiu-se, portanto, que, embora a escola tenha a função de ser espaço de promoção
do desenvolvimento do protagonismo, a oferta de uma educação de qualidade, centrada no sujeito,
demanda o comprometimento e a participação de todos para concretizar o seu papel.
Palavras-chave: Autonomia. Infância. Invisibilidade. Protagonismo.
Recebido em: 09/06/2020 Aprovado em: 09/07/2022
https://doi.org/10.5335/rep.v29i1.11119
ISSN on-line: 2238-0302
*
Mestre em Educação nas Ciências pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí).
Doutora em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Professora do Departamento de
Humanidades e Educação e do Programa de Mestrado e Doutorado em Educação nas Ciências da Unijuí. Orcid:
https://orcid.org/0000-0002-9691-1268. E-mail: hedim@unijui.edu.br
**
Graduada em Letras Língua Portuguesa e Respectivas Literaturas. Professora da Rede Municipal de Ensino de Santa Rosa
(RS). Mestre em Educação nas Ciências pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí).
Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0341-6194. E-mail: perotykatia@gmail.com.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Hedi Maria Luft, Kátia Aparecida Dias Peroty
249
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 248-264, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Abstract
The present study is a reflection on children-students of a group of the Early Years of Elementary
Education of a public full-time school in the municipal education network of the municipality of
Santa Rosa / RS, and analyzes the practices that measure invisibility and / or the protagonism. The
main objective is to understand which situations in the school space favor the construction of the
child's autonomy. The data were prepared based on qualitative research, of an ethnographic nature,
through participant observation, recorded in a field diary that later converges to reports of notes and
moments lived with the group of five research subjects, who were also interviewed through semi-
directed questions. The research is part of the concepts of critical pedagogy with reference to: Freire
(1996), Sirota (1994), Sarmento (2002, 2005, 2015), among others. It was concluded, therefore,
that although the school has the function of being a space to promote the development of protago-
nism, the offer of a quality education, centered on the subject, demands the commitment and
participation of all to fulfill its role.
Keywords: Autonomy. Childhood. Invisibility. Protagonism.
Resumen
El presente estudio es una reflexión sobre niños-estudiantes de una clase de los Años Iniciales (pri-
marios) de la Enseñanza Fundamental de una escuela pública de tiempo completo de la red
municipal de educación del municipio de Santa Rosa/RS, y analiza las prácticas que miden la invisi-
bilidad y/ o el protagonismo. El objetivo principal es comprender qué situaciones en el espacio
escolar favorecen la construcción de la autonomía del niño. Los datos fueron elaborados a partir de
una investigación cualitativa, de carácter etnográfico, a través de la observación participante, con
registro en un diario de campo que luego converge a relatos de apuntes y momentos vividos con el
grupo de cinco sujetos de investigación, quienes también fueron entrevistados a través de preguntas
semiestructuradas. La investigación se enmarca en las concepciones de la pedagogía crítica con refe-
rencia a: Freire (1996), Sirota (1994), Sarmento (2002, 2005, 2015), entre otros. Se concluyó, por
tanto, que, si bien la escuela tiene la función de ser un espacio para promover el desarrollo del pro-
tagonismo, la provisión de una educación de calidad, centrada en el sujeto, exige el compromiso y la
participación de todos para cumplir su función.
Palabras clave: Autonomía. Infancia. Invisibilidad. Protagonismo.
Introdução
Apresentamos, neste artigo, como a criança é percebida dentro da instituição es-
colar que oferta tempo integral, no espaço da escola pública. Destacamos formas que
dizem respeito à sua presença e participação, e, especialmente, sua invisibilidade, a qual
possivelmente é resultado do mundo contemporâneo. Reconhecemos, o protagonismo
infantil como relevante para construção da autonomia e, na sequência, algumas refle-
xões oportunas para a mudança da escola e da sociedade.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
A criança e a escola: da invisibilidade ao protagonismo
250
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 248-264, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
A escola é espaço de construção de conhecimento tanto do aluno quanto do pro-
fessor. Na escola se estabelecem relações significativas que afetam o processo de ensino-
aprendizagem, assim como existem outros elementos que influenciam este processo e,
nem sempre são adequados. Aqui, escolhemos para a investigação, como categorias de
análise, a invisibilidade e o protagonismo infantil na escola. O lócus da investigação se
refere à rede municipal de ensino de Santa Rosa (RS), a qual possui 13 escolas de En-
sino Fundamental, quando observamos uma turma do 2º ano a partir de 2018 até
meados do 3º ano, em 2019. Esta escola atende, majoritariamente, crianças em risco
de vulnerabilidade social de diferentes bairros da cidade.
Questiona-se: A criança deixa de ser criança para se tornar aluno? A criança-
aluno
1
teria as suas necessidades atendidas na escola? Como se constrói a sua infância
dos 6 aos 10 anos dentro de uma instituição de ensino? Será a criança vista e conside-
rada dentro deste espaço ou invisível? A criança tem direito à participação ou é submissa
às ordens dos adultos? Para nos aproximarmos de uma educação de qualidade é preciso
voltarmos os ouvidos e os olhares, também, para as crianças, pois a voz destas é rele-
vante neste processo, e é nesse sentido que se faz o presente estudo.
Além disso, questionamos se a criança, ao ser compreendida como protagonista
da escola, percebe esse tempo dentro deste estabelecimento como produtivo e interes-
sante para si ou sente-se abandonada dentro de uma instituição na qual os adultos
responsáveis somente cuidam, alimentam, vigiam e não permitem sua saída. Ao obser-
varmos, previamente, as crianças neste espaço, não há clareza quanto ao que pensam,
sentem ou esperam durante o tempo que passam na escola. É pela criança, por uma
infância digna e saudável, portanto, que justificamos a importância deste estudo.
A escola tende a transformar-se num espaço de empoderamento do indivíduo e,
por isso, assume uma grande responsabilidade com a aprendizagem, que pode garantir,
principalmente, a dignidade a todos os sujeitos. A razão de existir das escolas são as
crianças-alunos.
2
A escola é feita por causa delas e para elas. Uma escola considerada de
qualidade carrega consigo, entre outras coisas, o ideal de desenvolver a autonomia dos
sujeitos ali implicados. Isto posto, precisamos pensar na sociedade que queremos diante
de toda a sua pluralidade e nos avanços que já tivemos e aqueles que ainda esperamos
alcançar; percebendo os alunos como sujeitos e também atores capazes de transformar
os espaços coletivos.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Hedi Maria Luft, Kátia Aparecida Dias Peroty
251
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 248-264, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Percursos Metodológicos
Para pensarmos a educação escolar é fundamental nos envolvermos com a pes-
quisa, pois ela está intimamente relacionada com o ensino e, segundo Freire (1996, p.
32)
Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Esses que-fazeres se encontram um no corpo
do outro. Enquanto ensino continuo buscando, reprocurando. Ensino porque busco, porque
indaguei, porque indago e me indago. Pesquiso para constatar, constatando, intervenho, inter-
vindo educo e me educo. Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou
anunciar a novidade.
Neste sentido, apresentamos o caminho percorrido durante a investigação, des-
tacando que o método de pesquisa se vincula à experiência vivida nos espaços escolares
e apoia-se na etnografia para definir como foi realizada, salientando o percurso de in-
vestigação. O estudo proposto, então, traz as crianças, e, nesta perspectiva, Bolle (1984,
p. 11 apud Quinteiro, 2004, p. 19) afirma que a intenção ao investigarmos este público
é [...] compreender como a criança pensa e concebe o mundo e, particularmente, a
escola, como ela representa seu próprio universo”. Desse modo, direcionando o olhar
para a criança, ela torna-se o centro do estudo e passamos a enxergá-la por inteiro, com
suas singularidades e encantos, ouvindo o que diz e o que deixa de ser dito. Da mesma
forma, os próprios alunos, atores que são do processo educativo, revelam elementos
fundamentais sobre si mesmos, desde que sejam considerados como tal por meio de
uma escuta sensível, capaz de perceber nos detalhes suas angústias, medos, conflitos,
potencialidades, desejos, vontades. É necessário, pois, diminuirmos as distâncias entre
o adulto e a criança com real interesse por elas. Assim, como propõe Soares (2016, p.
772),
O nosso posicionamento enquanto pesquisadores adultos deverá considerar que as crianças pos-
suem informações importantes, que não será possível alcançar de outro modo que não seja por
meio de sua voz e ações, sendo fundamental criar espaços e tempos para que tal possa ocorrer.
Para esta investigação, portanto, a etnografia foi escolhida como o recurso meto-
dológico mais apropriado. Neste sentido, Sarmento (2000, p. 247) citado por
(Quinteiro, 2009, p. 29), sintetiza seis passos para esta orientação:
ESPAÇO PEDAGÓGICO
A criança e a escola: da invisibilidade ao protagonismo
252
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 248-264, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
1. Permanência prolongada do investigador no contexto estudado, de forma que possa pessoal-
mente recolher as suas informações, por intermédio da observação participante e da entrevista
aos membros que lá residem, trabalham ou atuam.
2. O interesse por todos os traços e pormenores que fazem o quotidiano, tanto quanto pelos
acontecimentos importantes que ocorrem nos contextos investigados.
3. O interesse dirigido tanto para os comportamentos e atitudes dos atores sociais, quanto para
as interpretações que eles fazem desses comportamentos e para os processos e conteúdos de sim-
bolizações do real.
4. O esforço para produzir um relato bem enraizado nos aspectos significativos da vida dos con-
textos estudados, de maneira que se recrie de forma vivida os fenômenos estudados.
5. O esforço para ir progressivamente estruturando o conhecimento obtido, de tal modo que o
processo hermenêutico resulte da construção dialógica [...].
6. Uma apresentação final que seja capaz de casar criativamente a narração/descrição dos contex-
tos com a conceptualização teórica.
Assim, constatamos que o processo etnográfico merece um olhar atento pelo pes-
quisador e pode ser feito mediante três procedimentos: a observação participante, as
entrevistas e a análise documental. A presente investigação estabeleceu-se, principal-
mente, pela observação participante, a qual possibilita o contato pessoal entre o
pesquisador e o sujeito pesquisado, em que, ao mesmo tempo, se tem o envolvimento
e o necessário distanciamento de um trabalho científico, sem que se perca a esponta-
neidade dos fatos dentro da sala de aula. As observações implicam um diário de campo
que converge, posteriormente, para relatos das anotações e momentos vividos com o
grupo de sujeitos pesquisados.
A interação com os sujeitos de pesquisa, no caso, aqui, as crianças, dentro de um
período, é que torna possível desvendarmos a constituição das suas rotinas, caracteri-
zando, assim, uma pesquisa etnográfica, conforme a descrição de etnografia por Sirota
(1994, p. 33): tomar como ponto de partida interacções face-a-face que as crianças
desenvolvem umas com as outras durante um ano letivo [...] descrever as suas vidas tal
como são vividas nos mais diferentes espaços, atividades, situações e relações”.
Nesta dimensão, o pesquisador pode e deve voltar a sua atenção à criança, obser-
vando-a como um ser integral, sendo capaz de enxergá-la na sua plenitude,
reconhecendo a importância do que ela traz consigo e que sua voz traz o seu mundo.
Sarti (2010, p. 31) compara o olhar/ouvir com o pensar/escrever na pesquisa: “se o
olhar e o ouvir constituem a nossa percepção da realidade focalizada na pesquisa empí-
rica, o escrever passa a ser parte quase indissociável do nosso pensamento, uma vez que
o ato de escrever é simultâneo ao ato de pensar”. Isso nos mostra o quanto estes ele-
mentos estão intrínsecos na pesquisa.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Hedi Maria Luft, Kátia Aparecida Dias Peroty
253
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 248-264, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Diante do que foi percebido por meio dos sentidos, relatamos situações observa-
das dentro da escola de tempo integral, aproximando, assim, teoria e prática,
desvelando os fatos pela aproximação com as crianças e com a realidade de seu cotidi-
ano. Nem tudo foi possível ver, ouvir, sentir ou descrever. Trazemos na pesquisa,
porém, um recorte do olhar pesquisador que está também se constituindo durante o
caminho percorrido. Pretendemos, aqui, desvelar, modestamente, o que observamos
ao longo desta trajetória, com o intuito de revelarmos parte do universo infantil diante
do complexo processo de efetivação do tempo integral na escola.
A fim de mantermos o anonimato das crianças na pesquisa, elas são representadas
por personagens das histórias de Monteiro Lobato: Narizinho, Pedrinho, Quindim,
Emília e Cuca. A pesquisa participante, portanto, é de cunho qualitativo, posto que
analisou os relatos das crianças bem como fotos e falas transcritas.
Inicialmente, o ponto de partida foi formalizarmos o acesso junto a direção da
escola e respectiva Secretaria Municipal de Educação, pois, na concepção de Viégas
(2007, p. 111), “sem dúvida, a entrada em campo requer do pesquisador delicadeza no
trato com a escola”. Em seguida, foi a vez do contato mais formal com os alunos e suas
famílias. Viégas (2007, p. 110-111) aponta essa necessidade:
[...] se a pesquisa envolve a participação de alunos, é fundamental apresentá-la a eles e às suas
famílias, partindo do princípio ético de que é imprescindível fazer-se claro para todos os envol-
vidos no estudo. No caso de crianças, a apresentação formal da pesquisa (muitas vezes em frente
à sala de aula) deve ser temperada com ludicidade. Para suas famílias, a apresentação da pesquisa
pode ser tanto presencial quanto por escrito.
A pesquisa referiu-se à inserção da criança dentro da escola de tempo integral,
sua perspectiva quanto à organização do tempo escolar, e, em especial, ao contraturno
e ao que é feito com ela neste período. Por isso, a partir da observação dos alunos
iniciamos um estudo etnográfico.
3
Como forma de registro, utilizamos um diário de
campo, com registros de cenas cotidianas e gravações de falas das crianças. Quanto ao
objeto e o olhar do pesquisador, Sarti (2010, p. 19) destaca:
Talvez a primeira experiência do pesquisador de campoou no campo esteja na domesticação
teórica de seu olhar. Isso porque, a partir do momento em que nos sentimos preparados para a
investigação empírica, o objeto, sobre o qual dirigimos nosso olhar, já foi previamente alterado
pelo próprio modo de visualizá-lo.
É condição fundamental na etnografia estar presente e observar, em tempo real,
o que acontece na sala de aula sem intervir sobre a realidade, apenas tentando captá-la
tal qual ela é, conforme concebe Sirota (1994, p. 39): “observar já é estruturar nossa
ESPAÇO PEDAGÓGICO
A criança e a escola: da invisibilidade ao protagonismo
254
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 248-264, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
percepção em função de critérios mais ou menos estabelecidos. Observar práticas na
situação concreta da sala de aula é observar sem intermediações, ao vivo, é codificar no
próprio local uma situação dinâmica [...]”. Por outro lado, foi necessário permitir-nos
também nos surpreender pelo que a criança traz por meio do desenho, num misto de
expectativa e encantamento, e deixar-nos levar pela beleza da infância com toda a sua
leveza e delicadeza próprias do infante. Tornar-nos receptivos ao que a criança tem a
nos mostrar e dizer requer desprendimento do adultocentrismo
4
que rege nossas vidas.
Na visão de Martins Filho e Prado (2011, p. 54):
Ouvir a voz das crianças através do desenho é convite para esse acto sinestésico de apreensão de
uma realidade que tanto nos encanta como por vezes nos deixa perplexos, ante o modo frequen-
temente inesperado com que o real surge transfigurado pelos traços inscritos no papel.
A pesquisa, portanto, foi realizada com os 25 alunos das turmas do 2º (2018) e
do 3º anos (2019), sendo a amostra aleatória, realizada mediante o sorteio de 5 alunos.
A pesquisa almejou desvelar a realidade por trás das vozes das crianças da escola de
tempo integral, a fim de captar elementos constitutivos da infância que podem também
contribuir para que a criança tenha uma infância mais saudável, sendo respeitada como
um ser pleno de direitos e não como um adulto em miniatura, num vir a ser.
A criança “invisível” e a criança protagonista no ambiente esco-
lar
A invisibilidade da criança é uma herança do período colonial e, mesmo depois
de 500 anos, ainda há necessidade de provar sua capacidade e competência diante da
sociedade. A partir da década de 90 do século 20, com a instituição do Estatuto da
Criança e do AdolescenteLei 8069/1990, há um reconhecimento que vem se am-
pliando na direção da participação maior da criança na sociedade. A distância entre a
legislação e a realidade, no entanto, ainda persiste:
[...] havendo um hiato acentuado entre a teoria e a prática no que concerne aos direitos de par-
ticipação das crianças, explicado pela herança sócio-cultural da invisibilidade e “afonia” das
crianças, que é muitas vezes perpetuada em função dos próprios interesses dos adultos (SOARES;
TOMÁS, 2004, p. 151-152).
A criança, geralmente, ainda é considerada pelas condições biológicas como frágil
e dependente da proteção do adulto. Ao procurarmos no dicionário uma definição,
criança é “a pessoa sem experiência, quem é ingênuo, inocente”; alguém vulnerável,
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Hedi Maria Luft, Kátia Aparecida Dias Peroty
255
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 248-264, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
suscetível aos outros. Assim, Soares e Tomás (2004, p. 149) dispõem sobre a vulnera-
bilidade infantil:
[...] dois tipos de vulnerabilidade: a vulnerabilidade inerente e a vulnerabilidade estrutural. A
vulnerabilidade inerente tem que ver com a debilidade física, a imaturidade, a falta de conheci-
mento e experiência das crianças que as torna dependentes da protecção do adulto este aspecto
permanece como inquestionável e tão mais visível quanto mais pequena for a criança. A vulnera-
bilidade estrutural das crianças relaciona-se com a sua falta de poder político e econômico e de
direitos civis. A vulnerabilidade estrutural é uma construção social e política, que deriva de ati-
tudes históricas e das presunções acerca da natureza da infância e da própria sociedade.
De fato, a criança necessita da proteção adulta durante a infância, pois ainda não
consegue nem se prover tampouco discernir sozinha entre o que é certo e errado. É
com o passar dos anos, convivendo com os outros, principalmente com pares mais
experientes, que ela aprende como a sociedade funciona e vai adquirindo conhecimen-
tos para a vida, até se tornar um sujeito capaz de cuidar de si mesmo e tomar suas
próprias decisões. Por outro lado, numa vivência autoritária com os adultos que a cer-
cam, ela não pode reconhecer e compreender a sua própria importância de estar no
mundo de maneira única e responsável.
O que percebemos é uma tentativa de manter uma visão conservadora em que a
criança não pode nada, enquanto o adulto pode tudo, e este conceito também se es-
tende às demais minorias, numa imposição de reforçar o poder do homem, adulto,
branco, heterossexual, bem-sucedido, ainda na sociedade contemporânea. Desse modo,
as relações de poder acentuam-se do adulto em relação à criança, e, mesmo na escola,
do professor sobre o aluno, numa concepção que exalta de um lado o professor como
o único detentor de todo o conhecimento e da razão absoluta, enquanto a criança-
aluno não sabe nada e chega à escola para ser domesticada pelos seres superiores os
adultos, na tentativa de algum dia vir a ser alguém.
Alves (1999, p. 257) lamenta esta concepção de criança como um vir a ser, e um
vir a ser não apenas quando crescer, mas depois de passar pela escola,O que é que
você vai ser quando crescer? No fundo, a mesma coisa. Agora, você nada é. Será, depois
de passar pela escola”. Assim sendo, a criança é vista como se não tivesse nada a oferecer,
tampouco a contribuir com o mundo adulto. A ideia de que a criança tornar-se por
meio da escola, portanto, é questionável, uma vez que ela traz consigo conhecimentos
importantes e não pode ser considerada uma mera folha em branco.
Por muitos séculos a criança viveu na marginalidade, como alguém sem impor-
tância, que servia apenas para mão de obra barata, que não possuía direitos, à mercê
das intempéries, das vontades alheias (PRIORE, 2009). Por outro lado, um campo
ESPAÇO PEDAGÓGICO
A criança e a escola: da invisibilidade ao protagonismo
256
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 248-264, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
recente que estuda a infância como uma etapa de vida relevante é a Sociologia da In-
fância:
Para a sociologia da infância, as crianças são atores sociais ativos; por isso, torna-se prudente dar
visibilidade aos processos de socialização com base no que as crianças fazem e como fazem. Em
outros termos, alertam para a importância de os pesquisadores captarem situações relacionais das
crianças quando estão entre elas, no intuito de desvelar os jeitos de ser criança (MARTINS
FILHO; PRADO, 2011, p. 88-89).
A Sociologia da Infância apresenta o conceito de protagonismo infantil, o que
nos remete a três aspectos básicos para efetivar esse protagonismo: os direitos, a autoria
e a participação. Para se tornar protagonista a criança precisa ter seus direitos reconhe-
cidos diante do grupo ao qual faz parte, assim como sua capacidade de ser autora do
seu desenvolvimento, por meio de uma participação real e efetiva em todos os momen-
tos e lugares onde esteja inserida e que seja permitida a sua intervenção nestes mesmos
lugares, no seu cotidiano. Assim, protagonismo infantil é
o processo social mediante o qual se pretende que crianças e adolescentes desempenhem um papel
principal no seu desenvolvimento e no de sua comunidade para alcançar a realização plena dos
seus direitos atendendo ao seu interesse superior. É tornar real a visão da criança como sujeito de
direitos e, portanto, deve dar-se uma redefinição de papéis nos diferentes sectores da sociedade;
infância e juventude, autoridades, família, sectores não organizados, sociedade civil, entidades,
etc (SOARES; TOMÁS, 2004, p. 153).
Como importante contribuição neste sentido, destaca-se a Pedagogia da Infância
do século 20, com uma nova percepção de criança:
[...] observar a criança, ouvir sua voz, sondar suas intenções, para incorporá-la no processo
educativo, é o caminho que a Pedagogia da Infância do século XX deixou como herança para os
tempos atuais. [...] concepção de criança que vive e tece a própria história, tem competência e é
sensível aos diferentes contextos educativos, que necessita de cuidados especiais dos adultos, mas
está em franco processo de conquista de sua autonomia (PINAZZA; KISHIMOTO, 2008, p. 7-
8).
Neste caminho urge, então, uma mudança de olhar para a infância e seus direitos
dentro da escola; não somente pelos adultos responsáveis por elas, mas também por
elas próprias. A escola é, portanto, um dos lugares que pode debater essas questões com
o corpo docente e também com o corpo discente. Os professores podem promover um
espaço de maior autoria para as crianças, enquanto estas tomariam consciência de sua
capacidade de ação e participação dentro e fora da escola. Logo:
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Hedi Maria Luft, Kátia Aparecida Dias Peroty
257
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 248-264, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Será necessário incluir na sua formação a questão da infância e dos seus direitos, promovendo
nas escolas a informação e o debate sobre os direitos das crianças e a forma de os traduzir na
prática, no quotidiano das crianças, dos pais, da escola e da comunidade. Será igualmente
necessário e importante incluir no debate da globalização as questões associadas à infância,
porque, no contexto actual, enquanto cidadãos do mundo, deparamo-nos com um dos maiores
desafios a serem enfrentados pelas nossas sociedades, a garantia de uma dupla conscientização;
das crianças enquanto sujeitos de direitos activos e participativos; e dos adultos, enquanto
promotores da necessidade de incentivar e construir espaços onde as crianças se desenvolvam
nessa perspectiva (SOARES; TOMÁS, 2004 apud MARTINS FILHO; PRADO, 2011, p. 145).
Além disso, desde o final do século 19 e início do 20, alguns pedagogos apresen-
taram a ideia de competência já na infância, que não foi bem-aceita na época por todos.
Atualmente vem sendo construída essa concepção de criança competente com direito
à participação (CRUZ, 2008, p. 77). É, contudo, a perspectiva do adulto em relação à
criança e ao seu trabalho que é capaz de efetivar a escuta das vozes das crianças e rede-
finir o seu papel em qualquer ambiente do qual faça parte. Ou seja,
vale sublinhar, portanto, que a efetivação da escuta das crianças acontece em contextos pedagó-
gicos concretos, com suas características peculiares. As motivações para aprender seus pontos de
vista e os usos que disso se possa fazer dependem das reais perspectivas dos adultos que aí traba-
lham acerca da criança e do seu papel como educadores e, em última instância, do projeto
educativo que é aí desenvolvido. E, como já foi assinalado, assumir, de fato, as crianças enquanto
possuidoras de vozes próprias que devem ser consideradas nas decisões a serem tomadas não é a
prática mais comum (CRUZ, 2008, p. 78).
A forma como o professor desenvolve o seu trabalho mostra muito como ele
enxerga a criança-aluno. Um professor mais autoritário, que não permite que a criança
fale, exponha suas ideias, principalmente as que forem diferentes das dele, limita a par-
ticipação desta em qualquer situação. Quando o adulto tem uma posição somente de
imposição, ele revela o medo de perder o controle sobre a criança e sobre toda a turma
para a qual ministra aulas. As relações de poder acentuam-se. Há um equívoco entre
despertar a autonomia e promover a anarquia. Os professores cobram uns dos outros o
tal “domínio de turma”. Ter domínio de turma equivale mais a conseguir manter a
turma em silêncio durante toda a aula do que a ter uma boa didática em sala de aula,
que contemple as necessidades dos alunos e efetive o processo de ensino-aprendizagem
com sucesso e de maneira gratificante a eles.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
A criança e a escola: da invisibilidade ao protagonismo
258
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 248-264, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Nesse caso, invisibilidade ou protagonismo?
Considerando a escola lócus da pesquisa, nesse momento, percebemos que pre-
valecem as marcas da invisibilidade dentro da sala de aula em algumas situações
pontuais; por exemplo, quando numa atividade subjetiva, de interpretação de texto,
apenas uma resposta é considerada correta e não se aceitam ideias ou respostas diferen-
tes. Nesta situação, constatamos que a rejeição ao que não corresponde às expectativas
provoca um movimento de invisibilidade, porque acentua que o correto, adequado,
“normal”, é pensar de acordo com o pensamento do professor, e divergir é feio, errado,
“anormal”.
Essa conduta do professor impondo verdades absolutas, reforçará ainda mais o
silêncio das crianças-alunos, as quais aprendem desde cedo a calar o que pensam e sen-
tem e a imitar incondicionalmente o que os outros fazem e valorizam. As crianças
querem ser aceitas, reconhecidas como importantes, agradar aos professores, pertencer
ao grupo e, por isso, são capazes de anularem-se dentro da sala de aula se os seus pen-
samentos e opiniões não forem considerados positivamente.
Da mesma forma, quando permitimos que colegas zombem de um indivíduo e,
assim, o bullying é visto e ignorado porque o normal é seguir modelos “normais” de
comportamento, contribuímos para a manutenção da invisibilidade. Por exemplo: Pe-
drinho apresenta, ainda muito jovem, traços bem femininos, o que provoca, em alguns
momentos, deboches de alguns colegas e preconceito, inclusive por ser mais gordinho
e fora dos padrões aceitos socialmente. Em seu relato assim se expressou: não quero
mais vir na escola. Vou falar com minha mãe. Ficam rindo de mim”. Sente-se descon-
fortável com o comportamento dos colegas e pensa que seria aceito se fosse diferente,
ou seja, se, como menino, se comportasse com os padrões aceitos e normatizados pela
sociedade para este gênero. Tal comportamento dos colegas, quando negligenciado pela
professora, talvez por não saber exatamente como agir nesta situação e, até mesmo, por
não saber lidar com seu próprio preconceito, pode interferir na conduta da criança.
Esta, então, pode acabar se isolando e não querer mais participar das brincadeiras com
os colegas por se sentir diferente dos demais, e, desde cedo, aprende a usar máscaras e
a se automutilar para conviver em sociedade.
Além disso, quando exigimos de todos os alunos o mesmo desempenho, estamos
tentando forçar a homogeneização da turma, o que não é real. Mediante as “testagens”
realizadas pela equipe diretiva mede-se o grau de aprendizagem da turma, para definir
em que nível está a alfabetização dos alunos e quem está ou não acompanhando as
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Hedi Maria Luft, Kátia Aparecida Dias Peroty
259
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 248-264, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
expectativas da professora e do currículo escolar. Mesmo que a avaliação seja impor-
tante e faça parte do processo, peca quando é a mesma para todos, e verificamos quem
apresenta os resultados esperados para esta série/ano e quem não alcança a meta para
determinado período do ano letivo.
Percebemos aqui a invisibilidade quando a avaliação é a mesma para todos, sem
levar em conta a individualidade de cada um. Este tipo de teste é realizado em todas as
turmas do 1º ao 3º ano das escolas da Rede Municipal de Ensino de Santa Rosa, desde
a criação do Pacto Nacional de Alfabetização na idade certa em 2013. Cada professor,
juntamente com a equipe diretiva de sua escola, define como será realizado o teste para
cada ano/série, o que demonstra a expectativa de homogeneização dos resultados para
todos os alunos em cada período, e quem não alcança o resultado esperado é conside-
rado com “problemas de aprendizagem”. Cada criança, mesmo tendo a mesma idade,
professora e espaço, pode ter um tempo de aprendizagem diferente dos demais e, mui-
tas vezes, bem diferente do tempo pedagógico estipulado pela professora como dentro
da normalidade. Termos este olhar e buscarmos estratégias dentro do tempo integral,
portanto, pode ser crucial tanto para o sucesso quanto para o fracasso escolar.
Não estamos aqui nos opondo aos testes, uma vez que valorizamos a sua existên-
cia como um valoroso diagnóstico. A implicação se dá quanto a usar a mesma estratégia
para seres diferentes e ainda rotulá-los, quantificando o seu valor como pessoa. Reco-
nhecemos a importância de saber onde se está para planejar aonde se quer chegar,
conforme ensinam Weisz e Sanchez (2003, p. 42):
Se o professor não sabe nada sobre o que o aluno pensa a respeito do conteúdo que quer que ele
aprenda, o ensino que oferece, não tem “com o que dialogar”. Restará a ele atuar como numa
brincadeira de cabra-cega, tateando e fazendo sua parte, na esperança de que o outro faça a dele:
aprenda.
Do mesmo modo, outra situação recorrente, talvez pela grande quantidade de
alunos por sala, é ignorarmos o lado emocional e o que acontece fora da escola, sem
reconhecer que isso afeta o comportamento e a aprendizagem neste espaço, invisibili-
zando, assim, os alunos, ignorando importantes fatores externos que são decisivos para
alcançar o seu sucesso escolar. Quando tratamos uma atitude agressiva reincidente no
recreio apenas como malcriação e não investigamos a causa deste comportamento, ig-
noramos que a criança é um ser que tem uma vida fora da escola e é afetada também
no espaço escolar. Por exemplo, “Emília”, novamente, brigou na hora do recreio com
um colega e, por isso, perdeu a aula de Educação Física. Depois, quando perdeu o
recreio e foi encaminhada para a Orientação, como punição, verificou-se que a criança
ESPAÇO PEDAGÓGICO
A criança e a escola: da invisibilidade ao protagonismo
260
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 248-264, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
presenciou uma briga dos pais em casa e, por essa razão, estava muito nervosa e preo-
cupada, imaginando a possível separação dos pais. Neste caso, a punição não resolveu
o problema, mas a deixou mais revoltada. Crianças têm dificuldade em expressar suas
emoções e gerenciar seus conflitos e, assim, precisam da mediação dos adultos a partir
de um olhar fraterno sobre suas vulnerabilidades. Precisamos ouvi-las, mas sem puni-
las, desconsiderando o contexto.
Ao analisarmos a escola, lócus da pesquisa, a partir da observação participante,
que é um dos procedimentos da etnografia, reconhecemos os direitos das crianças vali-
dados dentro da escola quanto ao que compete a este espaço. Dentro da sala de aula
todos têm o seu lugar, são ouvidos e respeitados. Aqueles que precisam de atendimento
educacional especializado têm um tempo e espaço próprios para atividades que permi-
tam a sua inclusão no ambiente escolar de forma adequada. Quanto aos direitos de
participação, os alunos não podem decidir sobre o currículo, o funcionamento da escola
e de várias atividades, porque estas são questões pertinentes aos adultos. Por exemplo,
o que vai ser servido de merenda é definido pela nutricionista da Secretaria Municipal
de Educação, mas as crianças podem optar por comer ou não e não obrigadas; os ho-
rários estão definidos para cada atividade sem interferência de escolha dos alunos, mas,
no tempo livre no pátio, cada um pode descansar ou brincar a sua maneira, desde que
seja de forma saudável; há atividades que devem ser realizadas por todos e ninguém
pode recusar-se sob pena de ser punido. Algumas vezes, no entanto, há mais de uma
opção de atividade ao ar livre; na hora do descanso, conhecido como “soninho”, há a
opção de assistir um filme escolhido por vezes pela professora e outras pelos alunos ou
dormir, mas não se pode sair do espaço estipulado; quanto aos projetos que a escola
desenvolve, algumas vezes aos alunos é permitida a sugestão do tema e/ou das atividades
desenvolvidas, tentando sempre levar em conta as suas necessidades para cada mo-
mento. Durante as aulas de Orientação Educacional os alunos são ouvidos quanto à
impressão/avaliação da escola e dos professores, mas orientados conforme a visão dos
adultos. Caso haja reclamações dirigidas a colegas ou professores, é feita uma acareação,
pois todos têm direito de expressar suas opiniões, mas poderíamos afirmar que é uma
participação limitada e controlada; ela existe, mas não pode fugir do controle do pro-
fessor/ adulto presente naquele momento.
Todos os direitos citados integram a Lei nº 8.069/90 e verificamos que estão
assegurados dentro da escola pela direção, professores e funcionários. Dessa forma, ob-
servamos uma preocupação com a infância e seus direitos no que se refere ao ambiente
escolar e ao tempo despendido neste espaço, considerando-se que, muitas vezes, este
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Hedi Maria Luft, Kátia Aparecida Dias Peroty
261
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 248-264, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
seja a referência de ambiente mais saudável para muitas das crianças que nele estão
inseridas.
Além disso, a criança pode vir a ser protagonista quando sua cultura for relevante
dentro da escola e não substituída pela cultura dominante, como forma de opressão e
de dominação. Por isso a importância de ouvir a criança, reconhecer e valorizar o que
ela sabe, o que diz. Muito se faz porque sempre se fez do mesmo jeito, seguindo os
modelos dos séculos passados. Muito se decide em razão do que é melhor para os adul-
tos, os pais, os professores e os gestores, como sempre se fez. O mundo, assim como a
infância, mudou, as crianças mudaram e os professores insistem em continuar sendo os
mesmos. A criança, porém, carrega consigo elementos que podem agregar qualidade ao
trabalho educativo. Devemos, pois, priorizá-la. A voz da criança está pedindo para ser
ouvida.
O universo infantil pode explorar outros caminhos, diferentes de uma vida adulta
em miniatura, conformada com a realidade que a cerca. A criança é um ser questiona-
dor por natureza, e deve ser instigada para isso e a pensar, a refletir sobre o que acontece
e a escolher por si própria. Um único caminho é limitante. A escola é mais do que
seguir rotinas impostas e limitadas. A escola é um espaço de descobertas, de escolhas,
desde que haja “permissão” para isso. Uma permissão corajosa, de adultos corajosos e
sensíveis, seres que desejam uma infância melhor e mais saudável, que prezam por uma
sociedade mais humanizada.
Considerações Finais
O que percebemos na escola, lócus da pesquisa, é que, progressivamente, tem se
dado mais oportunidades de participação às crianças, permitindo-se um protagonismo
maior dentro da instituição. São iniciativas tímidas, no entanto, diante de todo o ce-
nário educativo. A invisibilidade ainda persiste, por ser mais cômodo manter tudo da
mesma maneira como sempre foi. Fazer diferente, mudar, é moroso, quiçá doloroso.
Ainda o “estar no controle” é mais seguro, enquanto “dar a voz ao outro” é um processo
desconhecido, temeroso. Ninguém quer ser controlado, mas ensinamos nossas crianças
a serem obedientes. Parece-nos que os professores da escola temem as consequências
das mudanças e preferem caminhar por trilhos já conhecidos, temendo, inclusive, ter
de arcar com ainda mais responsabilidades, pois já há muitas exigências de todos os
lados: da mantenedora, da gestão da escola, das famílias e da comunidade em geral.
Para ser protagonista, então, a criança precisa ser vista como um sujeito de direi-
tos e ter espaço dentro da escola para uma efetiva participação. Os adultos implicados
ESPAÇO PEDAGÓGICO
A criança e a escola: da invisibilidade ao protagonismo
262
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 248-264, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
no processo, ao autorizarem essa participação, serão capazes de construir com as crian-
ças, colaborativamente, um espaço de reciprocidade, de vínculos, de afeto, de
humanização dos sujeitos. Da mesma forma, ao olharem para as crianças e as enxerga-
rem como crianças, promoverão um espaço mais acolhedor, mais suscetível às suas
necessidades, o que vai muito além da aprendizagem.
Por isso, instigamos, inicialmente, a mudança de postura do professor ante o
processo educativo, bem como seu olhar sobre a criança, a fim de transformar a escola
em um lugar de desenvolvimento pleno da autonomia, do protagonismo, da luta por
direitos e, consequentemente, da igualdade entre todos. Da mesma forma, o contrário
também pode acontecer, se nada mudar e a invisibilidade permanecer. A reflexão sobre
a prática, portanto, deve ser uma constante dentro da instituição, a fim de que possa-
mos reconhecer e comemorarmos os avanços e também rever algumas ações/distorções
e posturas educacionais.
Não poucas vezes, no contexto da escola, o protagonismo resume-se a contem-
plar a organização da vida profissional do docente e dos funcionários da escola.
Elementos que no contexto do mundo do trabalho são relevantes, porém, não pode-
riam estar acima das necessidades de atendimento e formação da vida infantil, pois no
universo da infância há necessidades que, se bem-atendidas, contribuem para a forma-
ção de sujeitos capazes de protagonizar novas realidades sociais, mais justas e humanas.
Notas
1
Dados retirados do site da Secretaria de Desenvolvimento Educacional do município lócus da pesquisa
(2019).
2
Criança-aluno: para Narodowski (1999), se a infância, para a pedagogia, é um fato dado ou um pres-
suposto indiscutível a partir do qual se constrói, teórica e praticamente, o aluno, as escolas são
instituições especializadas em produzir adultos. Disponível em: http://www.redalyc.org/arti-
culo.oa?id=37417089009
3
Após a aprovação do projeto de pesquisa pelo Comitê de Ética foi realizada uma pesquisa bibliográfica
articulada ao campo empírico e de cunho etnográfico.
4
Adultocentrismo: é uma prática social que estabelece poder aos adultos deixando os jovens e crianças
com menos liberdade em razão de alguma carência de formação.
Referências
ALVES, Rubem. A escola: fragmento do futuro. In: GADOTTI, Moacir. História das Ideias
Pedagógicas. São Paulo: Ática, 1999. p. 256-260.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Hedi Maria Luft, Kátia Aparecida Dias Peroty
263
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 248-264, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
CRUZ, Silvia H. V. A qualidade da Educação Infantil, na perspectiva das crianças. In:
OLIVEIRA-FORMOSINHO, Julia (org.). A escola vista pelas crianças. Portugal: Porto
Editora, 2008.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo:
Paz e Terra, 1996.
MARTINS FILHO, Altino J.; PRADO, Patricia D. (orgs.). Das pesquisas com crianças à
complexidade da infância. Campinas, SP: Autores Associados, 2011.
NARODOWSKI, Mariano. Adeus à Infância (e à escola que a educava). In: SILVA, Luiz. H.
A Escola Cidadã no Contexto da Globalização. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 172-177.
PINAZZA, Monica A.; KISHIMOTO, Tizuko M. Prefácio. In: OLIVEIRA-
FORMOSINHO, Julia (org.). A escola vista pelas crianças. Portugal: Porto Editora, 2008. p.
7-8.
PRADO, Patrícia D. Educação e cultura infantil em creche: um estudo sobre as brincadeiras de
crianças pequenininhas em um Cemei de Campinas/SP. 1998. 188f. Dissertação (Mestrado)
Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação, Campinas, SP. 1988.
PRIORE, Mary Del (org.). A história das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2009.
QUINTEIRO, Jucirema. O direito à infância na escola: por uma educação contra a barbárie.
In: SARMENTO, Manuel J.; CERISARA, Ana B. Crianças e miúdos: perspectivas
sociopedagógicas da infância e educação. Porto: Asa, 2004. p. 163-179.
QUINTEIRO, J. Infância e Educação no Brasil: um campo de estudos em construção. In:
FARIA, Ana. L. G. de; DEMARTINI, Zeila. de B. F.; PRADO, Patrícia. D. (orgs.). Por uma
cultura da infância: metodologias de pesquisa com crianças. 3ª ed. Campinas, SP: Autores
Associados, 2009. p. 23-56.
SARMENTO, Manuel J. Infância, exclusão social e educação como uma utopia realizável.
Educação & Sociedade, ano XXIII, n. 78, p. 265-283, abr. 2002.
SARMENTO, Manuel J. Gerações e alteridade: interrogações a partir da Sociologia da
Infância. Educação & Sociedade, Campinas, vol. 26, n.91, p. 361-378, maio/ago. 2005.
SARMENTO, Manuel J. Uma agenda crítica para os estudos da criança. Currículo sem
Fronteiras, Universidade do Minho, Braga, Portugal, v. 15, n. 1, p. 31-49, jan./abr. 2015.
SARTI, Cynthia. Famílias enredadas. In: ACOSTA, Ana Rojas; VITALE, Maria Amalia
Faller (org). Família: redes, laços e políticas públicas. 5.ed. São Paulo: Cortez/ Instituto de
Estudos Especiais/ PUC-SP, 2010, p.16-28.
SIROTA, RÉGINE. A escola primária no cotidiano. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
A criança e a escola: da invisibilidade ao protagonismo
264
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 248-264, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
SOARES, Natália F.; TOMÁS, C. Da emergência da participação à necessidade de
consolidação da cidadania da infância. In: SARMENTO, Manuel J.; CERISARA, Ana B.
Crianças e miúdos: perspectivas sociopedagógicas da infância e educação. Porto, Portugal: Asa
Editores, 2004, p.135-162.
SOARES, Natália F. Ética na pesquisa com crianças: ausências e desafios. Revista Brasileira de
Educação, Universidade do Minho, Braga, Portugal, v. 21, n. 66, p.34- 43, jul./set. 2016.
VIÉGAS, Lygia de S. Reflexões sobre a pesquisa etnográfica em Psicologia e Educação.
Revista Diálogos Possíveis, Salvador, v. 6, n. 1, p. 103-123, jan-jun., 2007.
WEISZ, Telma. SANCHEZ, Ana. O diálogo entre o ensino e a aprendizagem. São Paulo:
Ática, 2003
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Este artigo está licenciado com a licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
265
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 265-283, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Educação e saúde: reflexões e possíveis olhares ao cuidado
centrado no paciente em tempos de pandemia
Education and healthcare: reflections regarding views on patient centered
care during times of pandemic
Educación y salud: reflexiones y posibles miradas hacia el cuidado
centrado en el paciente en tiempos de pandemia
Nanci da Silva Teixeira Junqueira
*
Geraldo Antônio da Rosa
**
Terciane Ângela Luchese
***
Resumo
Presenciam-se, a cada momento, descobertas de novas doenças e, ao mesmo tempo, uma fragilidade
na manutenção da saúde da população. O mundo encontra-se perplexo diante da pandemia de
COVID-19 que assola o planeta. Esses são aspectos importantes no cenário em que pacientes estão
cada vez mais questionadores. É imperativo salientar que os pacientes possuem o direito de conhecer
e participar do planejamento, do cuidado, desde a identificação da doença, promovendo o envolvi-
mento na promoção e manutenção da saúde e, até mesmo, nas internações se essas forem necessárias.
Este artigo é resultado de atividades de pesquisa de natureza conceitual a partir de elementos empí-
ricos vivenciados em relação ao contexto da saúde e espiritualidade dos autores. Compreender os
aspectos da biopolítica e das reflexões de sujeito e autonomia em Paulo Freire se faz necessário para
conduzir uma reflexão sobre como os profissionais da saúde poderão estreitar os laços de comunica-
ção com os pacientes. Esse tema torna-se de grande relevância para discussão frente ao processo do
cuidado da saúde e a importância do respeito da opinião do sujeito valorizando sua singularidade.
Qualificar os processos de formação permanente dos profissionais da saúde como uma prática regular
permite pensar no aprofundamento do cuidado centrado no paciente.
Palavras-chave: cuidado centrado no paciente; saúde; educação permanente; biopolítica.
Recebido em: 24/09/2020 Aprovado em: 05/03/2022
https://doi.org/10.5335/rep.v29i1.11667
ISSN on-line: 2238-0302
*
Graduação em Licenciatura em Enfermagem e Obstetrícia pela Universidade Federal de Pelotas (1999). Doutoranda em
Educação pela Universidade de Caxias do Sul (2019). E-mail: nsteixeira@ucs.br. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-9757-
5104.
**
Mestrado em Educação pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (2000) e Doutorado em Teologia pela Escola Superior
de Teologia (2007).
Atualmente é docente pesquisador do PPGEdu-UCS. E-mail: garosa6@ucs.br. Orcid:
https://orcid.org/0000-0002-1193-7910
***
Possui graduação em Licenciatura Plena em História pela Universidade de Caxias do Sul (1997), mestrado em História pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2001) e doutorado em Educação (2008). É professora da
Universidade de Caxias do Sul. E-mail: taluches@ucs.br. Orcid: http://orcid.org/0000-0002-6608-9728
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Nanci da Silva Teixeira Junqueira, Geraldo Antônio da Rosa, Terciane Ângela Luchese
266
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 265-283, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Abstract
At any given moment, it is witnessed both the discovery of new diseases, and, simultaneously, a
frailty in maintaining the population´s health. The world is stunned before the COVID-19 pan-
demic which scourges the planet. These are important aspects since patients are asking more and
more questions. It is paramount to underscore that patients have the right of knowing and partici-
pating of the planning and care, from identifying the disease - which fosters an engagement to
promote and maintain health - up to the admittances, whenever necessary. This paper is the result
of research activities based upon empirical elements experienced by the authors, within the context
of health and spirituality. It is necessary to understand the aspects of both biopolitics and the reflec-
tions of self and autonomy by Paulo Freire, in order to lead to pondering about how to bridge
communication gaps between healthcare professionals and patients. Such topic takes great relevance
in the discussion of maintaining healthcare and the importance of respecting one´s uniqueness in an
opinion. Qualifying the processes of permanent training of health professionals as a regular practice
allows thinking about the deepening of patient-centered care.
Keywords: Patient-centered care. Healthcare. Permanent education. Biopolitics.
Resumen
Continuamente, somos testigos de descubrimientos de nuevas enfermedades y, al mismo tiempo, de
una fragilidad en el mantenimiento de la salud de la población. El mundo se encuentra perplejo ante
la pandemia de COVID-19 que asola al planeta. Estos son aspectos importantes en el escenario en
que pacientes están cada vez más cuestionadores. Es imperativo destacar que los pacientes tienen el
derecho de conocer y participar del planeamiento del cuidado, desde la identificación de la enferme-
dad, promoviendo el desarrollo en la promoción y mantenimiento de la salud y aun de las
internaciones, cuando son necesarias. Este artículo es resultado de actividades de investigación de
naturaleza conceptual a partir de elementos empíricos vividos con relación al contexto de la salud y
espiritualidad de los autores. Es necesario comprender los aspectos de la biopolítica y de las reflexio-
nes del sujeto y autonomía en Paulo Freire para conducir una reflexión sobre cómo los profesionales
de la salud podrán estrechar vínculos de comunicación con los pacientes. Este tema se vuelve muy
relevante para la discusión ante el proceso del cuidado de la salud y la importancia del respeto de la
opinión del sujeto valorizando su singularidad. Cualificar procesos de formación permanente de los
profesionales de la salud como una práctica regular permite pensar en la profundización del cuidado
centrado en el paciente.
Palabras clave: Cuidado centrado en el paciente. Salud. Educación permanente. Biopolítica.
Introdução
Frente à complexidade do mundo contemporâneo, podemos constatar cenários
com pessoas extremamente agitadas e solitárias, mergulhadas nas responsabilidades que
as cercam diariamente. Vivem o tempo imediato, apressadas por agendas lotadas e por
muito a fazer constantemente. A presença de inúmeras tecnologias faz os seres humanos
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Educação e saúde: reflexões e possíveis olhares ao cuidado centrado no paciente em tempos de pandemia
267
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 265-283, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
sagazes no que diz respeito ao ato profissional, mas deixa dúvidas sobre o cuidado com
a própria saúde. O cuidar de si tornou-se um desafio constante para os seres humanos
deste século. Presenciamos a descoberta de várias doenças, de novos vírus, bactérias
multirresistentes e, ao mesmo tempo, a constatação iminente de uma saúde questioná-
vel. O mundo encontra-se perplexo diante da pandemia de COVID-19 que assola o
planeta, momento em que se torna palpável a importância da ciência: os privilégios
sociais desaparecem e o cenário político vai além da luta dicotômica do bem contra o
mal. A grande luta é pela sobrevivência. Ao mesmo tempo em que nos encontrávamos
em isolamento social, mantínhamo-nos conectados com toda a realidade planetária.
Este artigo é resultado de atividades de pesquisa de natureza conceitual a partir de ele-
mentos empíricos vivenciados em relação ao contexto da saúde e da espiritualidade dos
autores neste tempo pandêmico.
O artigo resulta de uma pesquisa qualitativa em que “responder ao desafio da
compreensão dos aspectos formadores/formantes do humano, de suas relações e cons-
truções culturais” (GATTI; ANDRÉ, 2013, p. 30) se coloca como princípio da
condução metodológica, pois faz sentido que os pesquisadores compreendam “a não
neutralidade, a integração contextual e a compreensão de significados nas dinâmicas
histórico-relacionais” (GATTI; ANDRÉ, 2013, p. 31) como perspectivas orientadoras
da investigação. A pesquisa, pelo seu objetivo, é exploratória e com relação aos proce-
dimentos é bibliográfica e conceitual.
Melo (2013), considera que as práticas discursivas recaem sobre a vida e as formas
de conduzi-la. Estas produzem tecnologias reguladoras, normas e padrões para a popu-
lação e sua multiplicidade de processos vitais. Podemos questionar se todas as diretrizes
estão próximas do entendimento das pessoas. Presenciamos números absurdos de casos
de emergências clínicas da população, sendo que o estilo de vida, como alimentação
não saudável, estresse diário, jornada de trabalho duplicada e acúmulo de compromis-
sos são alguns exemplos que provocam o adoecimento. Dentro desse contexto, o
cenário de uma pandemia, ao mesmo tempo em que desperta um profundo sentimento
comunitário, nos defronta com a angústia de superar os revezes do atual momento, do
acirramento das desigualdades socioeconômicas e das disputas geopolíticas. Os países
do norte, denominados de Primeiro Mundo, não possuíram a sensibilidade para en-
tender que precisavam de humildade para lidar com o possível caos na saúde que se
instalaria em todo mundo. O ser humano precisa de ajuda: temos que ter empatia com
a dor, preocupação com o outro e sermos abertos para aceitar que somos frágeis em
muitos fatores. Precisamos de ajuda das outras pessoas e de uma ação efetiva do Estado,
afinal, como aponta Boaventura de Souza Santos:
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Nanci da Silva Teixeira Junqueira, Geraldo Antônio da Rosa, Terciane Ângela Luchese
268
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 265-283, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
As pandemias mostram de maneira cruel como o capitalismo neoliberal incapacitou o Estado
para responder às emergências. As respostas que os Estados estão a dar à crise variam de Estado
para Estado, mas nenhum pode disfarçar a sua incapacidade, a sua falta de previsibilidade em
relação a emergências que têm vindo a ser anunciadas como de ocorncia próxima e muito pro-
vável (SANTOS, 2020, p. 28).
Diante do exposto até o momento, sabemos que existem várias diretrizes elabo-
radas pelo Ministério da Saúde brasileiro, mesmo que sem uma ação mais efetiva.
Porém, teremos que refletir imediatamente acerca dos protocolos de prevenção instau-
rados para evitar os números que se apresentam ainda hoje em relação às doenças e às
mortes na comunidade: por que esses números ainda aparecem em grande proporção
se temos a nosso alcance protocolos assistenciais? Será que a maneira em que estão
construídas essas diretrizes é compreendida pela maior parte da população? Será que
não precisaríamos usar linguagem facilitadora, por meio da qual os cidadãos possam
compreender melhor as orientações? Segundo Melo (2013), a educação em saúde se
mostra como uma governança de outros e uma solicitação de autogoverno e autodisci-
plina, ou seja, uma estratégia biopolítica. A pandemia do COVID-19 trouxe o alerta
de que precisamos refletir sobre práticas assistenciais, investir em educação, esclarecer
e aproximar a ciência da sociedade.
Nesse contexto, várias dúvidas se fazem presentes, dentre elas: como os aspectos
da biopolítica poderão auxiliar na compreensão das condutas e ações ainda observadas
nos cenários assistenciais de cuidado? Como ocorre o diálogo entre equipes de médicos
e enfermeiros com seus pacientes? Como ocorre a compreensão do cuidado e do
autocuidado por esses pacientes? E, não menos importante: como incentivar uma
mudança de paradigma assistencial no sentido de respeitar o sujeito? Sem o intuito de
responder a todos esses questionamentos, o objetivo do artigo é estimular a reflexão a
partir das leituras das obras de Paulo Freire e dos questionamentos supra mencionados.
Sugere-se que a revisão bibliográfica poderá auxiliar a compreensão epistemológica do
sujeito como ser oprimido, promovendo, nos profissionais da saúde, uma reflexão
acerca de como poderão estreitar os laços de comunicação com os pacientes. Esse tema
torna-se de grande relevância para discussão frente ao processo do cuidado da saúde e
da importância do respeito da opinião do sujeito, valorizando sua singularidade.
Sujeito como partícipe no planejamento do cuidado
Torna-se imperativo salientar que os pacientes possuem o direito de conhecer e
participar do planejamento do cuidado, desde a identificação da doença, promovendo
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Educação e saúde: reflexões e possíveis olhares ao cuidado centrado no paciente em tempos de pandemia
269
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 265-283, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
o envolvimento na promoção e manutenção da saúde e, até mesmo, nas internações se
forem necessárias. Percebe-se que essa situação permeia este evento denominado pan-
demia do COVID-19, quando pacientes não possuem condições de participar do
planejamento terapêutico devido à agressividade do vírus. Além disso, presenciamos a
falta de recursos clínicos que gera uma insegurança em um bom prognóstico. Essas
práticas de envolvimento do sujeito como partícipe no planejamento assistencial são
realmente práticas desafiadoras para os profissionais de saúde. Ainda não encontramos
esses cuidados nos cenários assistenciais ofertados no Brasil. Percebemos que os paci-
entes não estão habituados (em sua grande maioria) a questionar o planejamento de
assistência a ser aplicado. Por outro lado, em termos de momento de uma pandemia,
observa-se, sob pena de consequências efetivamente catastróficas, a necessidade de a
sociedade, numa perspectiva de cidadania, estar envolvida no planejamento de assis-
tência: ser esclarecida, estar ciente das descobertas científicas, ter capacidade de seguir
protocolos, compreender o cuidado de si e do outro, como algo maior do que uma
escolha embasada em informações sem base científica.
Presenciamos repetidas internações com o mesmo diagnóstico. Isso pode ocorrer
devido às falhas de orientações durante o período de consultas. Essa falta de comuni-
cação clara, por vezes informação não significativa, poderá acarretar internações
hospitalares e, até mesmo, o prolongamento dessas internações. Esses pacientes, por
sua vez, não questionam o planejamento das condutas, pois acreditam fielmente nas
equipes assistenciais. Martins (2004) corrobora dizendo que é preciso que haja um en-
tendimento entre as partes, no qual o médico ou profissional da saúde espera do
paciente que este confie nele, para que o profissional possa ajudá-lo, mas não espera
que essa confiança seja cega. Ou seja, o paciente tem que ter autonomia para questionar
sempre que não entender ou não aceitar o planejamento do cuidado. De nada adianta
uma imposição de tratamento se os pacientes voltarem, tempo depois, com as mesmas
patologias.
Entretanto, presenciamos, também, duas classificações de usuários: os que são
pacientes ativos e demonstram conhecimentos prévios durante uma consulta em saúde
e os que são pacientes passivos e aguardam as consultas para diagnosticarem suas doen-
ças. Cabe aqui ressaltar que o comportamento do último grupo pode se dar por falta
de recursos tecnológicos ou mesmo por questões culturais. A importância do diálogo,
do esclarecimento e de uma conduta cuidadosa da equipe de profissionais, no sentido
de acolher e demonstrar os protocolos a serem seguidos, ganha relevância.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Nanci da Silva Teixeira Junqueira, Geraldo Antônio da Rosa, Terciane Ângela Luchese
270
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 265-283, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Os usuários/pacientes ativos utilizam a tecnologia digital para pesquisarem as
dúvidas acerca das possíveis patologias que afetam a si ou aos seus familiares. Seguida-
mente percebemos, durante as consultas, que muitas pessoas já possuem quase um
diagnóstico fornecido pela busca de informações na internet em sites, por vezes pouco
confiáveis. Frente a esse contexto, alguns dos pacientes tornaram-se cada vez mais ques-
tionadores e cientes de seus direitos. Viana et al. (2011) reforçam que os pacientes estão
cada vez mais conscientes em relação aos seus direitos e atentos às constantes mudanças
e avanços do mercado da saúde. Diante disso, as políticas e ações em qualidade são hoje
utilizadas com o objetivo de serem competitivas no mercado e garantirem a segurança
assistencial.
O avanço tecnológico na área da saúde trouxe importantes progressos para o
diagnóstico e tratamento de várias doenças, criando novas possibilidades para o
controle de enfermidades crônicas e contribuindo para o aumento da expectativa de
vida da população (GOMES, 2016). Por outro lado, deparamo-nos com um momento
caótico, jamais imaginado em termos sanitários, decorrente de doenças novas que
causam estranheza e caos. Vivenciamos um momento de desafio à ciência, aos
profissionais, bem como às políticas públicas relacionadas à saúde. São tempos
paradoxais, em que a ciência, a pesquisa e os profissionais de saúde são intensamente
demandados. Em contrapartida, são atacados, agredidos, desprezados por seus
diagnósticos, suas posições ou seu conhecimento. Ao mesmo tempo em que esse avanço
da tecnologia auxilia a medicina nas inovações de tratamento, presencia-se o culto de
consultas e tratamentos em sites. Diante disso,muitos profissionais da saúde se
preocupam, pois há clareza de que a maioria dessas informações são questionáveis e
levam pessoas a uma piora clínica.
Nesse contexto, foi publicada a Resolução 2.227/2018 do CFM que tinha por
intenção regular os atendimentos online no Brasil. Porém, ela foi revogada em 2019
diante das inúmeras contribuições encaminhadas pelos profissionais médicos sugerindo
modificações e tempo para analisar os documentos que constam nos termos da
Resolução 2.227/2018. É importante destacar que a telemedicina tem por objetivo
levar a saúde de qualidade a cidades do interior do Brasil que, por vezes, não conseguem
atrair médicos e equipes de saúde. Também auxilia nas grandes cidades no intuito de
criar outra alternativa de consultas, evitando grandes demandas nas portas de entrada
de instituições de saúde. Outro objetivo importante da telemedicina é a construção de
linhas de cuidado através de plataforma digitais (CFM, 2020). Desse modo, diante do
atual cenário que vivenciamos com a pandemia da COVID-19, o Ministério da Saúde,
por meio da Portaria 467, de 20 de março de 2020, em caráter excepcional,
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Educação e saúde: reflexões e possíveis olhares ao cuidado centrado no paciente em tempos de pandemia
271
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 265-283, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
regulamentou a telemedicina como ferramenta de ajuda ao enfrentamento da
emergência de saúde pública que vivenciamos (BRASIL, 2020).
Cabe ressaltar que ainda restam grandes desafios para a garantia da qualidade dos
cuidados em saúde. Problemas de comunicação e relacionamento entre os profissionais
e o paciente, que ocorrem com frequência, interferem na percepção do paciente sobre
a qualidade do cuidado. Vários estudos constataram que muitos pacientes estão
insatisfeitos com a qualidade da interação com o profissional de saúde (DWAMENA
et al., 2012). Sabe-se que a principal queixa feita nas ouvidorias das instituições de
saúde é em relação à postura autoritária e pouco empática de alguns profissionais da
saúde para com os próprios pacientes ou até mesmo com os familiares deles. É comum
ocorrer falta de informação sobre o estado de saúde, planejamento e atualização de
prognósticos, e essa situação gera descontentamento e angústia em todos os envolvidos.
Martins (2004) lembra que a hipótese de Foucault (2014) é a falta de autonomia im-
pingida aos pacientes na medicina oficial, seu discurso e sua postura de detentora da
verdade do outro e sobre ele. No atual momento, observamos, diante das práticas de
condutas assistenciais do COVID-19, uma falta e uma demora dos resultados nos di-
agnósticos da doença que, por vezes, podem resultar em óbitos sem que as famílias
conheçam realmente o fator causal dessa perda, gerando angústias, incertezas e tristeza.
Não é possível banalizar a morte. A barbárie que se coloca em certos discursos sobre a
doença, a contaminação e mesmo as reações relacionadas ao processo de vacinação são
pontos de debate e enfrentamento para a ciência.
Numa perspectiva de mudança desse cenário, emergem alguns termos
semelhantes como “cuidado centrado no paciente”, que estão sendo empregados na
literatura com ênfase na ideia de parceria e colaboração entre o paciente e o profissional
de saúde. Deve-se respeitar a opinião do paciente e familiares, tendo em vista o cuidado
da responsabilidade técnica. The Picker Institute, organização não-governamental
(ONG) que promove pesquisas sobre os interesses dos pacientes nos Estados Unidos e
na Europa, define o cuidado centrado no paciente como uma abordagem em que os
profissionais desenvolvem parceria com pacientes e familiares para identificar e
satisfazer a gama de necessidades e preferências destes em relação ao seu tratamento
(GOMES, 2016).
Dessa forma, faz-se necessário aliar o entendimento dos aspectos da biopolítica
às reflexões de sujeito e autonomia de Paulo Freire, pois elas vêm ao encontro da pro-
posta que pretende compreender por que pacientes ainda não têm o domínio do seu
próprio corpo quando hospitalizados. O corpo é o alvo do investimento biopolítico,
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Nanci da Silva Teixeira Junqueira, Geraldo Antônio da Rosa, Terciane Ângela Luchese
272
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 265-283, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
pois é nele que se investe para que se torne funcional e produtivo no contexto do capi-
talismo: “a lógica de mercado sujeita o corpo a um uso instrumental, quer como meio
de produção, quer como alvo de consumo” (GOMES, 2013, p. 63). Para pensar a
relação corpo, biopolítica e cuidado centrado no paciente, tecemos o tópico a seguir.
Aspectos da biopolítica em relação ao sujeito/paciente
Deve-se levar em consideração os aspectos da biopolítica, importantes para que
possamos entender posturas assistenciais observadas nos atuais cenários, tais como pro-
fissionais que não se preocupam com os desejos e opiniões do próprio paciente/sujeito.
Também é necessário entender por que ainda presenciamos a insatisfação desses mes-
mos pacientes com o tratamento e sem voz para sugerir ou expressar o seu desejo.
Claramente observamos, nas práticas assistenciais, um entendimento de que pa-
cientes não têm qualificação técnica para opinar quanto ao plano terapêutico. Nesse
contexto, Martins (2004) menciona que no cenário que habitamos, notamos a crença
de que o médico assume uma posição de onipotência diante da doença do paciente,
sendo necessário que este se submeta à tutela daquele, muitas vezes incondicional-
mente. Isso é observável no contexto da saúde. As pessoas compreendem o poder do
profissional como algo necessário para a recuperação da própria saúde, tornando essa
prerrogativa inevitável. Por outro lado, presenciamos os insucessos dos tratamentos,
muitas vezes pela não aceitação de um plano de cuidado incompatível com a rotina de
vida, ou até mesmo pela falta de adesão ao tratamento proposto devido a dificuldades
de entendimento da informação.
Diante dessas constatações, surge a lembrança do que Paulo Freire mencionava
em seus escritos: a necessidade do sujeito na luta da sua própria autonomia e valoriza-
ção. A obra Pedagogia do Oprimido (2010), que se intitula como Justificativa da
Pedagogia do Oprimido, é onde Paulo Freire desenvolve tal discussão em torno da opo-
sição entre humanização e desumanização e da luta para recuperar a humanidade dos
oprimidos. Freire (2010) discute o processo de desumanização causada pelo opressor a
seus oprimidos. Relata também que a forma de imposição na qual o opressor envolve
o oprimido faz com que este se sinta inferiorizado, necessitando ter alguém que decida
por ele próprio. Nesse sentido, refletimos sobre a já mencionada impotência de muitas
pessoas em discutir ou propor uma sugestão de cuidado para seu tratamento que tenha
melhor adesão, pois ainda se tem em mente que o profissional de saúde, por possuir
instrução acadêmica e técnica, não deve ser questionado ou contrariado. Qual a dife-
rença entre um ou outro modo de tratamento? Talvez uma maior autonomia, respeito
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Educação e saúde: reflexões e possíveis olhares ao cuidado centrado no paciente em tempos de pandemia
273
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 265-283, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
e reconhecimento de que um saber sobre si nos ultrapassa, tampouco outra pessoa, por
mais diplomada que ela seja (MARTINS, 2004). Nesse sentido, surge a importância
da reflexão sobre poder e biopolítica. Esses conceitos são base para auxiliar a compre-
ensão das posturas dos pacientes submissão ou autonomia nos cenários da saúde.
O poder pode ser considerado como salutar, mas também deletério. Ter poder
significa que o indivíduo possui uma influência que poderá aparecer sobre o outro e,
geralmente, no ínterim que tratamos, esse domínio surge diante do conhecimento so-
bre determinado assunto. Para Nespoli (2014), o poder se associa ao saber e se torna
uma ferramenta política de regulação da vida. Por isso, não deve ser apreendido como
regra e proibição, mas como força, microfísica positiva que toma forma nas articulações
entre saberes e práticas. O poder sobre a vida direciona como administrar populações,
precisando levar em conta a realidade biológica. Diante disso, passamos a chamar esse
domínio de biopoder, o qual podemos considerar como práticas voltadas ao cuidado
da vida e direcionadas à população. O termo biopolítica refere-se ao que faz a vida
entrar no domínio dos cálculos explícitos, e faz do poder-fazer (biopoder) um agente
de transformação da vida humana (MELO, 2013).
Cabe ressaltar que biopolítica é o termo utilizado por Foucault (2014) para ex-
plicar a forma pela qual o poder tende a se modificar no final do século XIX e início
do século XX. As práticas disciplinares anteriormente utilizadas visavam governar o
indivíduo. Com a biopolítica, engloba-se a população como um todo (FERNANDES;
RESMINI, 2015). Os autores ainda mencionam que a biopolítica é a prática de bio-
poderes locais. No biopoder, a população é tanto alvo como instrumento em uma
relação de poder.
Com a mobilização desses conceitos, podemos entender por que nossos pacientes
(os quais possuem, na maioria dos casos, pouca instrução) deixam, em pleno século
XXI, que grupos de profissionais (médicos e enfermeiros) dominem seu plano terapêu-
tico sem que os sujeitos digam se estão de acordo. Essa prática, comum na área da
saúde, é uma relação de biopoder, ou seja, as pessoas que possuem conhecimentos sobre
determinado assunto têm maior capacidade de tomada de decisão, mesmo que não seja
a mais adequada naquele momento. Vamos exemplificar essa constatação com a classe
médica: está impregnado em nossa cultura que esses profissionais possuem tanto do-
mínio no quesito saúde que não observamos qualquer tipo de questionamento por
parte dos pacientes, os quais, anteriormente, caracterizamos como pacientes passivos
nos cenários das consultas.
Essa condição pode mudar, na medida em que os oprimidos, ou pacientes passi-
vos, se derem conta de que podem contestar, falar, opinar, buscar recuperar sua
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Nanci da Silva Teixeira Junqueira, Geraldo Antônio da Rosa, Terciane Ângela Luchese
274
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 265-283, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
humanidade, não se sentir idealisticamente submissos. Essa postura dialógica, respei-
tosa, de mútuo acordo constitui um avanço na luta por igualdade de opiniões e respeito
às diferenças econômicas e culturais. Se essas práticas acontecerem, serão, sem dúvida,
a restauração da humanidade e dignidade de ambas as classes.
Para Freire (2010), esse pensamento da libertação do estado de opressão é uma
ação social, não podendo, portanto, acontecer isoladamente. O homem é um ser social
e, por isso, a consciência e a transformação do meio acontecem em sociedade. Todavia,
como poderá o ser humano sair da opressão se os que nos ensinam são também aqueles
que nos oprimem? A educação tem um papel importante nesse processo de busca pela
liberdade e mudança de postura. Diante disso, o pensamento fundamental de Paulo
Freire reforça os conceitos pedagógicos aos quais o educador deve se direcionar para
uma transformação no contexto social de dominação que se dá através do processo de
educar (FREIRE, 2010). Cabe mencionar que na própria formação inicial e perma-
nente dos profissionais de saúde dicos, enfermeiros, técnicos é relevante que essa
postura de empatia, de diálogo e de acolhimento possa ser constituída.
Reconhecemos que a conscientização se dá por um processo gradual em que se
busca a liberdade sem produzir novos opressores e oprimidos. Freire, na sua Pedagogia
do Oprimido (2010), faz com que compreendamos a prática da liberdade como uma
nova pedagogia de ação reflexiva e crítica, abrindo espaços para o pensar no ser humano
através do diálogo.
É através dessas análises de Paulo Freire que podemos responder a algumas inda-
gações sobre posturas de pacientes e de profissionais de saúde já mencionadas no
decorrer deste texto, relacionadas à biopolítica. Essas pontuações são necessárias para
que possamos repensar as ações e as práticas dos profissionais da área da saúde, bem
como dos professores responsáveis pela formação acadêmica em saúde. Pensamos na
necessidade de levar essas discussões para as grades curriculares e oferecer espaço para
entendimento e reflexão sobre a temática. A educação continuada e permanente em
saúde se faz necessária para alcançarmos esses objetivos.
Educação permanente em saúde
A busca pela qualificação dos processos de trabalho, tanto nas instituições hospi-
talares quanto na educação em saúde nas comunidades, priorizando a aproximação dos
pacientes com o profissional da saúde, é um desafio constante, principalmente nos am-
bientes hospitalares em que existe um grande número de colaboradores, alta
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Educação e saúde: reflexões e possíveis olhares ao cuidado centrado no paciente em tempos de pandemia
275
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 265-283, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
rotatividade, fragilidade na aplicação de controles de segurança, esquecimento de regis-
tros e, muitas vezes, resistência em seguir protocolos de atendimentos. Quando se fala
em educação de saúde para a população, deparamo-nos, muitas vezes, com poucos pro-
fissionais para uma demanda grande de atendimento. Reflexo disso presenciamos
durante essa pandemia, através dos relatos constantes pelos meios de comunicação so-
bre a fragilidade técnica quanto ao manejo adequado de equipamentos assistenciais e
de proteção individual (EPIs) e demais materiais utilizados no cuidado ao paciente.
Verificamos que o Ministério da Saúde e instituições assistenciais realizaram inúmeras
capacitações com todos os profissionais da saúde e, mesmo assim, é a categoria com
mais alto índice de contágio por esse vírus.
Diante desse cenário, existem programas de educação permanente em institui-
ções que buscam diminuir essas possíveis fragilidades técnicas e educacionais em relação
a atualizações dos profissionais, tendo em vista o surgimento das novas doenças que
afetam o mundo todo. Por isso, ter instituída e organizada a prática de educação per-
manente torna-se imprescindível e necessário. O processo de aprender e ensinar
incorporado ao dia a dia dos serviços de saúde a partir das necessidades de saúde não
apenas locais (no interior de cada serviço), mas loco-regionais (por redes de serviços,
inclusive intergestores) (STÉDILE; TEIXEIRA, 2016).
Nesse sentido, Sardinha Peixoto et al. (2013) complementam que, entre os
fatores que influenciam na aprendizagem e nas mudanças educacionais, estão os
conhecimentos e as práticas atualizados. Por meio deles, criam-se, no colaborador,
necessidades de readaptação e reorientação no seu processo de trabalho, o que subsidia
a implantação da estratégia de educação permanente em saúde. Para esses autores, serão
nesses cenários de educação continuada que ocorrerão a manutenção, os aprimoramen-
tos e as atualizações dos processos de trabalho já instituídos.
Ainda, durante os encontros de formações institucionais será possível integrar as
várias equipes multiprofissionais, envolvidas no cuidado com os pacientes, bem como
os setores. Esses espaços se tornam fundamentais para que o trabalho seja adequada-
mente desenvolvido.
Martins (2004) menciona a necessidade de refletir se as práticas da medicina
atual apenas curam doenças ou tratam e reabilitam doentes. No último caso, deixa-se
de conceber como representante da verdade e aceitar as equipes de saúde em prol do
paciente, pois ainda assistimos a prática disciplinar do modelo médico centralizado, no
qual a autonomia do profissional torna-se inquestionável em muitos ambientes assis-
tenciais. A biopolítica afirma, como vimos anteriormente, que a força do biopoder
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Nanci da Silva Teixeira Junqueira, Geraldo Antônio da Rosa, Terciane Ângela Luchese
276
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 265-283, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
ainda está muito presente nas comunidades onde quem tem mais cultura e conheci-
mento tem por direito determinar condições aos demais seres humanos, o que resulta,
nas palavras de Freire (2010), em opressão.
Cabe ressaltar que a luta de igualdade pelo exercício profissional é algo que atu-
almente presenciamos com maior vigor. Levantamos a defesa de que cada profissional
tem uma expertise e que esse fato deve ser respeitado. São muitos os anos de estudos e
pesquisas para qualificar profissionais de áreas tais como enfermagem, fisioterapia, psi-
cologia, farmácia. Todos os profissionais da saúde, sem exceções, têm conhecimentos
consolidados para auxiliar nos planos terapêuticos do paciente e é certo que a organi-
zação de uma educação permanente se faz necessária.
A prática interdisciplinar ainda é um desafio frente ao modelo médico-centrado,
caracterizado pela divisão do trabalho, especialização e fragmentação do conhecimento.
Assim, um agir interdisciplinar exige que se tragam os saberes e as ações de todas as
áreas dos conhecimentos (STÉDILE; TEIXEIRA, 2016). Nesse sentido, os pacientes
ganharão em uma prestação de cuidado especializado mais bem qualificado, dimi-
nuindo, muitas vezes, a indicação de internações ou até mesmo uma alta mais rápida,
se assim for necessária a baixa hospitalar. Para Sardinha Peixoto et al. (2013), estabele-
cer um programa de educação continuada, tendo como base a interdisciplinaridade,
propicia maior interação na equipe de saúde, oportunizando a promoção da
aprendizagem e intercâmbio dos conhecimentos. Essa pandemia fez com que os
profissionais reavaliassem as práticas rotineiras da assistência e trouxe a necessidade de
interação multiprofissional, avaliando e refinando processos, adequando-os ao real
cenário. Esses processos, por vezes, estão alinhados com as boas práticas; mas, em outros
momentos, podemos presenciar situações caóticas devido à falta de materiais e
equipamentos como os respiradores artificiais ou tubos de oxigêncio, por exemplo.
Notoriamente, o Brasil é heterogêneo: ao passo que no sul do país a saúde está um
pouco mais organizada, verificamos que no norte e nordeste vários tipos de tecnologia
ainda são necessários.
Segundo o Ministério da Saúde, a Educação Permanente em Saúde (EPS) é
norteadora de novas práticas que orientam a reflexão sobre o trabalho e a construção
de processos de aprendizagem colaborativa e significativa, a partir dos principais
desafios identificados pelas equipes no cotidiano do trabalho (BRASIL, 2014, p. 6). É
uma educação que emerge, portanto, do cotidiano e seus problemas complexos, a partir
das necessidades evidenciadas pelas equipes de saúde, com o objetivo principal de
melhorar os processos de trabalho e a sua qualidade.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Educação e saúde: reflexões e possíveis olhares ao cuidado centrado no paciente em tempos de pandemia
277
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 265-283, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Diante disso, a educação permanente pode possibilitar a melhora no
relacionamento entre paciente, família e equipe de saúde, assim como a compreensão
da doença, devido ao encorajamento à aquisição de conhecimento, despertando o
autoconhecimento no profissional (SARDINHA PEIXOTO et al., 2013). Essas são
premissas de uma boa qualidade no atendimento ao paciente, uma boa relação entre
paciente e familiares e, principalmente, um dos critérios para estabelecer o cuidado
“centrado no paciente”, termo utilizado pelas organizações nacionais e internacionais
que trabalham a qualidade, a segurança e a organização dos processos assistenciais ao
cuidado do paciente.
Nesse sentido, faz-se necessário entendermos melhor a expressão “cuidado cen-
trado no paciente”, empregada na literatura com ênfase na ideia de parceria e
colaboração entre o paciente e o profissional de saúde. O Ministério da Saúde também
aborda esse tema através do Projeto Terapêutico Singular (PTS) (CARVALHO, 2012),
que é definido por:
conjunto de condutas/ações/medidas, de caráter clínico ou não, propostas para dialogar com as
necessidades de saúde de um sujeito individual ou coletivo, geralmente em situações mais com-
plexas, construídas a partir da discussão de uma equipe multidisciplinar (BRASIL, 2012, p. 10).
Diante do exposto, fica evidente que uma educação permanente se torna impres-
cindível em qualquer instituição, principalmente no âmbito hospitalar, onde existem
várias especificidades. Manter um elo de comunicação entre equipes de forma interdis-
ciplinar qualificará o atendimento aos pacientes e a familiares e manterá qualificados
os processos já instalados nas instituições.
A preocupação fundamental é buscar sempre a excelência no atendimento aos
pacientes com muito respeito e atenção, independentemente de estarem em organiza-
ções privadas ou públicas. Acredita-se que, ao final desta pesquisa, será aprofundada a
importância do cuidado centrado no paciente, e o entendimento da biopolítica e da
formação continuada se tornarão fundamentais para qualificar a assistência oferecida
aos usuários do SUS.
A obra Pedagogia da Autonomia (2015), de Paulo Freire, auxilia também nas
questões de análise das capacitações, ou seja, na educação continuada. É uma das obras
mais impactantes do referido autor, sendo a última publicada em vida, na qual ele faz
uma reflexão e apresenta orientações a respeito da compreensão da prática docente en-
quanto dimensão social da formação do ser humano. O autor relata a necessidade de o
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Nanci da Silva Teixeira Junqueira, Geraldo Antônio da Rosa, Terciane Ângela Luchese
278
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 265-283, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
professor assumir a postura de articulador de aprendizagem, colocando-se contra prá-
ticas de desumanização. Nesse sentido, contribui para a compreensão da postura dos
profissionais de saúde frente a um nova perspectiva de trabalho e atuação profissional.
No decorrer dessa obra, Paulo Freire reforça o pensamento de que o professor
não é o mais inteligente porque domina conhecimentos pelos quais o educando ainda
não transita, e esse aluno deve ser participante do processo da construção da aprendi-
zagem. O autor também menciona a necessidade de o educador desenvolver-se como
pesquisador, sujeito curioso, que busca o saber e o assimila de uma forma crítica, porém
não ingênua, com questionamentos, e orienta seus educandos a seguirem também essa
linha metodológica de estudar e entender o mundo, relacionando os conhecimentos
adquiridos com a realidade de sua vida, sua cidade, seu meio social. Segundo Ceccim e
Ferla (2008), para a educação permanente em saúde não existe a educação de um ser
que sabe para um ser que não sabe. O que existe, como em qualquer educação crítica e
transformadora, são a troca e o intercâmbio que causam estranhamento e reflexões.
Freire reforça que, para termos qualidade na educação no Brasil, é necessário que te-
nhamos discentes ativos, criadores, instigadores e curiosos, pois isso faz com que o
educador abandone o papel de apenas transmitir conhecimento e passe a assumir uma
postura progressista ou crítico-reflexiva (FREIRE, 2015). Como docentes universitá-
rios, cabe-nos o desafio de estimular a criticidade dos acadêmicos e, dessa forma,
conseguir capacitar um futuro profissional que seja autônomo, líder, criativo, mas,
principalmente, empático com o outro, que nesse contexto será seu paciente e familia-
res. Precisamos, além das técnicas, estimular a inserção de políticas de humanização
nos atendimentos ao público em qualquer momento da atuação prática, com ou sem
pandemia.
Crivari e Berbel (2008) apud Villardi, Cyrino e Berbel (2015) acrescentam que
a formação necessita centrar-se na promoção da saúde, entendida como qualidade de
vida; no processo de trabalho; na interdisciplinaridade; no desenvolvimento de habili-
dades para a ação social e na capacitação na educação em saúde, a fim de formar, ao
mesmo tempo, bons profissionais e bons cidadãos.
É essencial que, na atualidade, formemos profissionais embasados não somente
em conhecimentos advindos da literatura, que muitas vezes mostram a realidade de
outros países, principalmente dos Estados Unidos, mas também em conhecimentos
que nasceram da resolução de problemas de nosso próprio país e comunidade em que
estamos inseridos (VILLARDI; CYRINO; BERBEL, 2015).
No movimento formativo permanente dos profissionais da saúde, podemos con-
siderar o que Freire (2015) escreveu e faz todo o sentido - não há ensino sem pesquisa:
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Educação e saúde: reflexões e possíveis olhares ao cuidado centrado no paciente em tempos de pandemia
279
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 265-283, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
investiga-se para conhecer o que ainda não se sabe e comunicar ou anunciar o novo;
diz ainda que outro saber fundamental à experiência educativa diz respeito à sua natu-
reza, devendo, o profissional, compreender com clareza a sua prática e, ainda, que o ato
de ensinar exige comprometimento. Também exige comprometimento o ato de cuidar
da saúde do outro.
Wener et al. (2016) apud Fontana (2018) mencionam que as capacitações teóri-
cas que se utilizam somente de palestras e conferências são estratégias não tão seguras
para a educação em saúde para as pessoas. Em muitas situações e em muitos cenários
de ensino e educação em saúde, há necessidade de atitudes dinâmicas e de metodologias
ativas que possam envolver os atores de forma significativa e implicada com o compro-
misso social.
Conclusão
Essa pandemia emerge num contexto de fragilidade dos sistemas públicos de
saúde e trouxe instabilidade financeira e emocional, provocando a reflexão sobre o
contexto das nossas vidas e tantas outras ressonâncias que não cabe listar. A diminuição,
nos últimos anos, dos investimentos na saúde pública no contexto do Brasil fragilizou
o SUS e, em meio a uma condução duvidosa e nem sempre coerente do Ministério da
Saúde, as perdas têm sido recorrentes. Ultimamente, estávamos voltados para o eu,
num sentido do ser humano individual e egoísta, atribulados de afazeres diários. Não
podemos afirmar que mudamos, mas muitos se puseram a pensar mais sobre a nossa
finitude e o sentido de viver.
A morte por COVID-19 é uma metáfora para repensar a forma de vida e os
valores que sustentam os nossos modos de viver e de nos relacionarmos. O isolamento
social fez com que pensássemos sobre a real importância do ser humano com um todo
e, com isso, enfatizou o que precisamos modificar para sermos pessoas e profissionais
mais humanos e empáticos com o outro. É urgente “imaginar o planeta como a nossa
casa comum e a Natureza como a nossa mãe originária a quem devemos amor e res-
peito. Ela não nos pertence. Nós é que lhe pertencemos” (SANTOS, 2020, p. 32). A
família é um importante meio na construção do caráter e dos princípios dos seres hu-
manos, porém, nós, como docentes universitários, também podemos assumir esse
papel, propondo reflexões por meio de referências bibliográficas nas grades curriculares
que defendam a valorização do sujeito e da sua autonomia. Um exercício profissional
e uma atitude cidadã mais sensível, ética e coerente com o coletivo, com o bem-comum.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Nanci da Silva Teixeira Junqueira, Geraldo Antônio da Rosa, Terciane Ângela Luchese
280
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 265-283, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Diante disso, a leitura de obras de Paulo Freire (2010), Pedagogia do oprimido e
Pedagogia da autonomia (2015), tornaram-se extremamente relevantes para que se ti-
vesse a oportunidade de refletir sobre práticas e ações no cenário brasileiro. Conhecer
obras de um autor que é referência mundial na educação torna-se imprescindível a toda
população. A revisão de literatura auxiliou também a repensar as várias ações praticadas
constantemente por profissionais da área da saúde. Reforça-se que essas reflexões tam-
bém se tornam imprescindíveis aos professores em vários aspectos epistemológicos.
Entende-se que o sistema educacional de hoje também continua a disseminar a
opressão, não tanto em razão do professor, mas pelas condições de trabalho a ele im-
postas. O educador hoje é tão vítima como o oprimido, pois é meramente mais um
deles na prática: deveria haver colaboração e organização das classes populares, por meio
de movimentos, para uma verdadeira transformação. Após a leitura de Paulo Freire, o
qual reforça o cuidado com os alunos, o respeito e o saber ouvir são questões que ainda
estão muito ativas em campo prático. Ser professor não é tarefa tranquila. A todo mo-
mento estamos em busca de novas práticas, novos recursos metodológicos para ajudar
a aprendizagem dessa nova geração de jovens ativos, de internautas e de profissionais
ativos nos campos de atuação.
Paulo Freire trouxe à luz questões sobre as quais ainda precisamos refletir, ten-
tando promover mudanças de atitudes. Certamente ele é um autor atemporal e de
extrema significância para todos os educadores do mundo. Freire queria mais que alfa-
betizar pessoas: seus encontros não só promoviam a organização dos materiais didáticos
partindo das experiências dos alunos, mas incentivavam a percepção do mundo ao re-
dor, do contexto social em que estavam inseridos; estimulavam a criticidade da
população que, até então era justificadamente submissa ao governo, segundo o autor,
por sofrermos forte influência de um pensamento colonial ainda vigente.
Com a preocupação em manter os processos de trabalho qualificados, tanto nas
comunidades quanto nas instituições hospitalares, necessitamos trazer práticas de Paulo
Freire aos processos de atualizações profissionais. Por vezes, presenciamos resistência
em seguir novos protocolos de atendimentos e nos deparamos com poucos profissionais
para uma demanda grande de atendimento aos usuários. Quem sabe trazendo reflexões
e exaltando as experiências prévias possamos tocar os colaboradores das instituições?
Por que as diretrizes e protocolos de saúde pública, extremamente importantes
para garantir a prevenção e tratamento à população, não podem ter uma linguagem
mais facilitadora, linguagem e metodologias educacionais que os profissionais de saúde
pudessem utilizar com usuários? Metodologias freirianas que possam ser utilizadas pe-
los profissionais de saúde para, dessa maneira, chegar à população, com orientações
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Educação e saúde: reflexões e possíveis olhares ao cuidado centrado no paciente em tempos de pandemia
281
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 265-283, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
claras e precisas para proteção da saúde comunitária, mostram-se adequadas, bem como
linguagens e métodos por meio dos quais o sujeito se sinta importante e singular.
A pandemia do COVID-19 também traz o alerta de que precisamos refletir sobre
as práticas assistenciais, pois vivenciamos a dificuldade de alertar a população acerca
dessa inesperada pandemia em função de um vírus que, em dois meses, levou a óbito
milhares de pessoas. Precisamos ter políticas que, ao chamarem a população, possam
ser resolutivas. A ideia de aproximar os sujeitos nos processos de trabalhos assistenciais
é, sem dúvida, um grande desafio, importante para que condutas em saúde possam ser
realmente entendidas e adquiridas pelos sujeitos. Dessa maneira, é possível desenvolver
educação em saúde com foco no incentivo à consciência crítica com uso de diversas
metodologias que facilitem o empoderamento de cada pessoa, promovendo a autono-
mia do sujeito.
Referências
BRASIL. Ministério da Saúde. Educação Permanente em Saúde: um movimento instituinte de
novas práticas no Ministério da Saúde. Agenda 2014. Brasília, DF. 2014.
BRASIL, Portaria 467 de 20 de março de 2020. Disponível em:
<https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2020/prt0467_23_03_2020_extra.html>.
Acesso em: 09 maio 2020.
CARVALHO, Laura Graças Padilha de et al. A construção de um Projeto Terapêutico
Singular com usuário e família: potencialidades e limitações. O Mundo da Saúde, São Paulo,
2012;36(3):521-525. Disponível em:
<https://bvsms.saude.gov.br/bvs/artigos/mundo_saude/construcao_projeto_terapeutico_sing
ular_usuario.pdf>. Acesso em 09 maio 2020.
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM n. 2.227/2018. Brasília.
Disponível em: <https://portal.cfm.org.br/images/PDF/resolucao222718.pdf>. Acesso em:
09 maio 2020.
CECCIM, Ricardo Burg; FERLA, Alcindo Antônio. Educação e saúde: ensino e cidadania
como travessia de fronteiras. Trabalho, Educação e Saúde [online]. 2008, v. 6, n. 3
[Acessado 19 Junho 2020], pp. 443-456. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S1981-
77462008000300003>.
DWAMENA, Francesca et al. Interventions for providers to promote a patient-centred
approach in clinical consultations. Cochrane Database of Systematic Reviews, [S.l.], v. 12,
2012. Disponível em:
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Nanci da Silva Teixeira Junqueira, Geraldo Antônio da Rosa, Terciane Ângela Luchese
282
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 265-283, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
<http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/14651858.CD003267.pub2/abstract;jsessionid
=F4 C6CACAEA3CFC9C7E7194F6A2>. Acesso em: 12 nov. 2017.
FERNANDES, Daniel; RESMINI, Gabriela. Biopolítica. 2015. [online]. Disponível em:
<http://www.ufrgs.br/e-psico/subjetivacao/espaco/biopolitica.html>. Acesso em: 19 fev.
2020.
FONTANA, Rosane Teresinha. O processo de educação em saúde para além do hegemônico
na prática docente. Revista contexto e educação, Ijuí, n. 106, ano 33, set./dez. 2018.
FOUCAULT, Michel. A governamentalidade. In: FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 28.
ed. Rio de Janeiro: Graal, 2014.
FREIRE, Paulo. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 52. Ed. São
Paulo: Paz e Terra, 2015.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2010.
GATTI, Bernardete; ANDRÉ, Marli. A relevância dos métodos de pesquisa qualitativa em
Educação no Brasil. In: WELLER, Wivian, PFAFF, Nicolle (org.). Metodologia da pesquisa
qualitativa em Educação. 5. reimp. Petrópolis, RF: Vozes. 2013. p. 29-38.
GOMES, Ivan Marcelo et al. As práticas corporais no campo da saúde. São Paulo: Hucitec,
2013. p. 52-82.
GOMES, Patrícia Helena Goulart. O cuidado centrado no paciente (na pessoa?) nos serviços de
saúde: as estratégias utilizadas pelos governos. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) -
Fundação Oswaldo Cruz, FIOCRUZ, Rio de Janeiro. 2016.
MARTINS, André. Biopolítica: o poder médico e a autonomia do paciente em uma nova
concepção de saúde. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, v. 8, n. 14, p. 21-32, fev.
2004.
MELO, Lucas Pereira de. Análise biopolítica do discurso oficial sobre educação em saúde
para pacientes diabéticos no Brasil. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 22, n. 4, p. 1216-1225,
2013.
NESPOLI, Grasiele. Biopolíticas da participação na saúde: o SUS e o Governo das
Populações. In: GUIZARDI, Francini L.; NESPOLI, G.; CUNHA, M. L. (Org.). Políticas
de Participação e Saúde. Rio de Janeiro: EPSJV; Recife: UFPE. 2014. p. 59-90.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra, Portugal: Almedina.
2020.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Educação e saúde: reflexões e possíveis olhares ao cuidado centrado no paciente em tempos de pandemia
283
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 265-283, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
SARDINHA PEIXOTO, Leticia et al. Educação permanente, continuada e em serviço:
desvendando seus conceitos. Revista Enfermaria Global, n. 29, 2013.
STÉDILE, Nilva Lúcia Rech; TEIXEIRA, Nanci S. Educação permanente em saúde: do
conceito ao cotidiano dos serviços de saúde. In: THOFERN, Maira Buss (org.). Enfermagem:
manual de gerenciamento. Porto Alegre: Moriá. 2016, p. 47-69.
VIANA, Marcelo Ferreira. et al. Processo de acreditação: uma análise de organizações
hospitalares. RAHIS - Revista de Administração Hospitalar e Inovação em Saúde, n. 6, jul./dez.
2011.
VILLARDI, Marina Lemos; CYRINO, Eliana Goldfarb; BERBEL, Neusi Aparecida Navas.
A problematização em educação em saúde: percepções dos professores tutores e alunos. São
Paulo: Editora UNESP; Cultura Acadêmica. 2015. Disponível em: <http://books.scielo.org>.
Acesso em: 5 fev. 2020.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Este artigo está licenciado com a licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
284
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 284-304, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
A formão de professores no contexto da sociedade capitalista
neoliberal brasileira: primeiras (des)aproximações
1
Teacher education in the context of Brazilian neoliberal capitalist society:
first (dis)approximations
La formación de profesores en el contexto de la sociedad capitalista
neoliberal brasileña: primeras (des)aproximaciones
Andréia Aparecida Simão
*
Maria de Lourdes Pinto Almeida
**
Resumo
Esse artigo tem por objetivo refletir sobre a formação de professores no contexto brasileiro a partir
de aspectos históricos e teórico-contextuais. Trata-se de uma pesquisa exploratória e qualitativa, na
qual se articula aos procedimentos de investigação: pesquisa bibliográfica, documental e análise de
documentos. Os documentos são: Lei de Diretrizes e Bases da Educação - LDB (1996), Parâmetros
Nacionais Curriculares PCNs (1997), Lei 13005/2014 - Plano Nacional de Educação 2014 a 2024
PNE (2014), Base Nacional Comum Curricular BNCC (2018) e Educação um tesouro a des-
cobrir: relatório para a Unesco da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI
(DELORS, 1998). Os resultados mostram que o professor, no âmbito de sua formação, está impli-
cado: a) no entremeio das relações sociais e do trabalho pela instrução e educação; b) em uma
formação onde a prática se torna ponto efetivo de hegemonia; c) em relação a sua totalidade existen-
cial-profissional, no movimento do trabalho vivo.
Palavras-chave: formação de professores; educação e trabalho; políticas públicas educacionais.
Recebido em: 05/03/2022 Aprovado em: 23/06/2022
https://doi.org/10.5335/rep.v29i1.13386
ISSN on-line: 2238-0302
*
Possui graduação em Psicologia (1999) pela Universidade do Oeste de Santa Catarina. Mestre (2016) e Doutoranda em
Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação - (PPGEd) da Universidade do Oeste de Santa Catarina
Unoesc. E-mail: andreiasimao11@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7816-6199.
**
Graduação em Pedagogia pela Universidade Estadual de Campinas (1983). Graduada em História pela Faculdade de
Ciências e Letras Plínio Augusto do Amaral (1987). Mestrado em Filosofia, História e Educação pela Universidade Estadual
de Campinas (1995). Doutorado em Filosofia, História e Educação pela FE da Universidade Estadual de Campinas (2001).
Atualmente é Docente Pesquisadora do PPGE da UNOESC-SC na linha de pesquisa Educação, Políticas Públicas e
Cidadania. E-mail: malu04@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-8515-2908.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Andréia Aparecida Simão, Maria de Lourdes Pinto Almeida
285
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 284-304, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Abstract
This article aims to reflect on teacher education in the Brazilian context from historical and theoret-
ical-contextual aspects. It is an exploratory and qualitative research, in which two investigation
procedures are articulated: bibliographic research and documental research. The documents are: Law
of Directives and Bases of Education - LDB (1996); National Curricular Parameters PCNs (1997);
Law 13005/2014 - National Education Plan 2014 to 2024 PNE (2014); National Curricular
Common Base BNCC (2018) and; Education a treasure to discover: report to UNESCO by the
International Commission on Education for the 21st century (Delors, 1998). The results show that
the teacher, within the scope of his training, is involved: a) in the midst of social relations and work
for instruction and education; b) in a formation where the practice becomes an effective point of
hegemony; c) in relation to its existential-professional totality, in the movement of living work.
Keywords: Teacher education. Education and work. Educational public policies.
Resumen
Este artículo tiene como objetivo reflexionar sobre la formación de profesores en el contexto brasileño
a partir de aspectos históricos y teórico-contextuales. Es una investigación exploratoria y cualitativa,
en la que se articulan dos procedimientos de investigación: la investigación bibliográfica y la investi-
gación documental. Los documentos son: Ley de Directrices y Bases de la Educación - LDB (1996);
Parámetros Curriculares Nacionales PCNs (1997); Ley 13005/2014 - Plan Nacional de Educación
2014 a 2024 PNE (2014); Base Común Curricular Nacional BNCC (2018) y; La educación,
un tesoro por descubrir: informe a la UNESCO de la Comisión Internacional de Educación para el
siglo XXI (Delors, 1998). Los resultados muestran que el docente, en el ámbito de su formación, se
involucra: a) en medio de las relaciones sociales y el trabajo por la instrucción y la educación; b) en
una formación donde la práctica se convierte en un punto efectivo de hegemonía; c) en relación a su
totalidad existencial-profesional, en el movimiento de obra viva.
Palabras clave: Formación docente. Educación y trabajo. Políticas públicas educativas.
Introdução
A relação entre os intelectuais e o mundo da produção não é imediata, como é o
caso nos grupos sociais fundamentais, mas é ‘mediatizadora’, em diversos graus, por
todo o contexto social, pelo conjunto das superestruturas, do qual os intelectuais são
precisamente os funcionários. (GRAMSCI, 1995a, p. 10)
Esse artigo tem como objetivo compreender o delineamento da formação de pro-
fessores no contexto neoliberal brasileiro. O debate se situa a partir da década de 1990,
uma vez que a sociedade capitalista emerge neoliberal, chamada pela mundialização da
economia e redirecionando o comportamento econômico, político e social do país. O
período é reconhecido como década das transformações, pois foi época de transição,
ESPAÇO PEDAGÓGICO
A formação de professores no contexto da sociedade capitalista neoliberal brasileira
286
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 284-304, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
seja interna nas questões políticas ou externa em relação ao movimento da mundializa-
ção da economia e, consequentemente, no mundo do trabalho (GIAMBIAGI et al.,
2011). O período neoliberal e a mundialização vão impactar, profundamente, a forma-
ção do trabalhador e, logo, no trabalhador-professor, uma vez que a escola não mais
assegura a preparação de mão de obra a ocupar lugar em um mercado direcionado ao
pleno emprego (SAVIANI, 2013).
Em termos metodológicos, abordamos o problema de pesquisa a partir de pes-
quisa exploratória e qualitativa (MINAYO, 1996), articulando os procedimentos de
investigação: pesquisa bibliográfica, documental e análise de documento. Construímos
os argumentos pela análise de documentos utilizando as contribuições do marxismo,
pois, entendemos importante observar que: neles estão impressos por afirmação ou
elisão o conteúdo e o sentido do que deve ser internalizado, mistificadamente, pelos
sujeitos sociais, transformando-se em sua visão de mundo, alienada e degradante”
(EVANGELISTA; SHIROMA, 2019, p. 84). Assim, nos aproximamos da compreen-
são da realidade complexa, desvelada na essência do discurso documental.
Os documentos inscritos para análise são: Lei de Diretrizes e Bases da Educação
- LDB (1996), Parâmetros Nacionais Curriculares PCNs (1997), Lei 13005/2014 -
Plano Nacional de Educação 2014 a 2024 (2014), Base Nacional Comum Curricular
BNCC (2018) e Educação um tesouro a descobrir: relatório para a Unesco da Co-
missão Internacional sobre Educação para o século XXI (DELORS, 1998). A
sistematização e análise de dados estarão na base dos pressupostos da análise de conte-
údo (BARDIN, 1977).
Em vista desse objetivo, o desenvolvimento do texto discorre nas seguintes se-
ções: na primeira, contextualizamos historicamente o tema da formação de professores
no Brasil, observando as várias mudanças ocorridas ao longo do tempo; a segunda
aborda a formação de professores imersa no contexto da sociedade capitalista neoliberal
brasileira, com demanda em preparar o trabalhador-professor pelas diretrizes das polí-
ticas educacionais, reordenadas de acordo com orientações de organismos multilaterais.
Na sequência desenvolvemos, nas considerações finais, síntese das análises e reflexões
desse cenário atual onde se introduz mudanças e transformações na formação do tra-
balhador docente.
Formação de Professores no Brasil: aspectos históricos
Observa-se que, ao longo dos anos, ocorreram várias alterações para o processo
de formação de professores, porém, descontínuas. Saviani (2009) ressalta que, ao final
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Andréia Aparecida Simão, Maria de Lourdes Pinto Almeida
287
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 284-304, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
dos períodos, identifica-se a precariedade e implementação das políticas para a forma-
ção de professores, não havendo um padrão mínimo que pudesse se impor ao
enfrentamento desse problema na educação brasileira. Porém, há que se examinar os
aspectos teóricos no anseio de encontrar caminhos para a questão da formação de pro-
fessores. Com o apoio de Saviani (2009) compreendemos a importância em conhecer
o enfoque teórico do ensino destinado à formação de professores e, também, a necessi-
dade de entender o processo estrutural dessa trajetória que está diretamente relacionada
às políticas públicas brasileiras.
Seguindo a linha histórica, traçada por Saviani (2009), percebe-se a inoperância
para manutenção de uma educação pública (des)etilizada, laica e gratuita. A qual passa
longe da viabilidade em alcançar ampliação da qualidade, com propostas pedagógicas
estruturadas em políticas públicas de longo prazo, com possibilidades concretas que
garantam a qualidade da formação de professores e a infraestrutura para atuação pro-
fissional.
Assim, percebemos que, sobre a formação de professores no Brasil, o que mais se
destaca é a ausência do Estado como força capaz de instituir uma educação de quali-
dade, que leve em consideração, tanto o conhecimento global, quanto o particular. Ao
contrário, as políticas públicas destinadas à educação, em especial à formação docente,
são direcionadas ao atendimento de exigências externas, provenientes da hegemonia do
capital. Nesse processo não está em jogo a reflexão e ação crítica quanto à realidade
vigente, mas, sim, quanto as necessidades de um sistema que valoriza a individualidade
daqueles que melhor desempenho possuem, no sentido de detentores dos princípios
básicos para exercer uma profissão e “se dar bem”. Aos que não se ajustam a esse quadro,
restam a exclusão e o abandono por parte do Estado e da sociedade como um todo.
Esse pensamento nos remete ao trabalho de Pablo Gentili - Neoliberalismo e educação:
manual do usuário com suas explicações sobre o porquê a sociedade capitalista, indi-
vidualista e negligente se perpetua.
A possibilidade de conhecer e reconhecer a discursiva do neoliberalismo obviamente não é sufi-
ciente para frear a força persuasiva de sua retórica. No entanto pode ajudar-nos a desenvolver
mais e melhores estratégias de luta contra as intensas dinâmicas de exclusão social promovidas
por tais políticas (GENTILI, 2008, p. 4).
A formação docente, ao longo de sua história, perpassa o tempo e se configura
na influência do Estado, da sociedade civil e na autonomia da comunidade acadêmica
em processo hegemônico. A formação de professores implica objetivos e competências
ESPAÇO PEDAGÓGICO
A formação de professores no contexto da sociedade capitalista neoliberal brasileira
288
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 284-304, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
específicas, tendo como resultante a estrutura organizacional, conjugada aos pensamen-
tos neoliberais, estando diretamente voltada ao cumprimento da formação. No
entanto, fundamenta-se possibilidades e riscos da formação de professores para a edu-
cação, na contraposição da expectativa de maior alicerce e preparo, com o risco do
modelo cultural-cognitivo
2
com exigências pedagógicas secundarizadas, onde as conse-
quências aparecem nas dificuldades de atendimento das necessidades específicas das
crianças da educação básica.
O discurso neoliberal, no campo educacional, afeta em amplitude a escola, os
sujeitos (professores e alunos) e a sociedade. Pois, se o foco é somente especializar o
professor em disciplinas específicas, teremos uma formação rasa, declaradamente insti-
tuída para manutenção do capitalismo. Nos preâmbulos do sistema neoliberal, o qual
centra na individualização, responsabilização do sujeito pelo seu desenvolvimento e
aprendizado, a formação de professores é só mais um argumento para um pequeno
grupo hegemônico conjecturar identidades para os sistemas de educação, em âmbito
de correlações econômicas e políticas. Não podemos contar com uma estrutura que
suporte o desenvolvimento humanizado e extrapole o contexto limitado de educação
quantitativa e meritocrática voltada para o mercado.
A ótica neoliberal, é importante lembrar, não é contra a escola, nem mesmo com
a formação, pelo contrário, ela exige cada vez mais qualificação profissional para que
um indivíduo seja inserido no mercado de trabalho, fim único da educação sob a lógica
do capital. Para Gentili, essa situação é decorrente de uma hegemonia construída sobre
as bases de “tecnocracias neoliberais”. Por isso, o autor argumenta que: “[...] atual-
mente, inclusive nos países mais pobres, não faltam escolas, faltam escolas melhores;
não faltam professores, faltam professores mais qualificados; não faltam recursos para
financiar as políticas educacionais, ao contrário, falta uma melhor distribuição dos re-
cursos existentes” (GENTILI, 2008, p. 5). O que nos resta é uma intensa luta na
tentativa de uma educação desburocratizada, não-hegemônica, sem retrocessos, em que
possamos ter clarividência teórico-prática para o enfrentamento dessa realidade em
constante contradição.
A realidade da escola não pode ser explicada unicamente pela crise, sem que se
avaliem seus atores e se compreenda que, ao fim e ao cabo, professores, alunos, dirigen-
tes, enfim, toda a comunidade escolar, transmite e recebe aquilo que lhe é ditado pelo
processo hegemônico de comercialização de saberes e de indivíduos, qual seja, a lógica
do capital. Direcionando nosso olhar para a questão da formação de professores, a rea-
lidade vivenciada na maioria das instituições de ensino superior, sejam elas públicas ou
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Andréia Aparecida Simão, Maria de Lourdes Pinto Almeida
289
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 284-304, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
privadas, é fruto do sistema desigual que estabelece diferenças e necessita de um pro-
cesso formativo rápido e econômico que capacite pessoas para atender aos interesses do
mercado.
Nesse sentido, ao procurarmos compreender o contexto neoliberal brasileiro,
onde surge a LDB principalmente, nos colocamos, não apenas num lugar de escuta,
mas, prioritariamente, de execução dos parâmetros econômico e político. De acordo
com Gentili (1996, p. 2), “os governos neoliberais não só transformam materialmente
a realidade econômica, política, jurídica e social, também conseguem que esta transfor-
mação seja aceita como a única saída possível (ainda que, às vezes, dolorosa) para a
crise”. Logo, percebemos o rebaixamento teórico da formação em crescente desqualifi-
cação e desprofissionalização docente.
No contexto teórico e político, as perspectivas e propostas neoliberais se apresen-
tam entre o final da década de 1980 e meados de 1990. O Brasil é o último país da
América Latina a implantar um projeto neoliberal, pelas dificuldades de unir interesses
no Modelo de Substituições de Importações (MSI) e o vigoroso desenvolvimento po-
lítico das classes trabalhadoras (FILGUEIRAS, 2006).
3
A Inglaterra, os Estados Unidos
e outros países da América Latina já vinham referenciando suas experiências neolibe-
rais. Outrossim, as recomendações dos organismos multilaterais, como Fundo
Monetário Internacional (FMI), vinham enfatizando a necessidade de estruturar e di-
namizar o modelo neoliberal. Porém, o Estado brasileiro foi implementando o
programa político, no andar das disputas políticas entre classes e, de acordo com Fil-
gueiras (2006), o projeto neoliberal não foi elaborado ou analisado com antecipação,
mas sim resultado da luta de classes.
Em 1989, representantes dos EUA, países da América Latina, Central e Caribe,
bem como integrantes do Instituto de Economia Internacional de Washington, do
Banco Mundial (BM), do Banco Internacional de Desenvolvimento (BID) e do FMI;
participaram de uma reunião que teve, como principal pauta, discutir a economia do
continente. O resultado dessa reunião se deu no levantamento de dez medidas sob a
denominação de Consenso de Washington, que visava o crescimento econômico desses
países. Essa foi a forma pela qual o neoliberalismo chegou ao Brasil e ganhou a maior
parte da América Latina, pelo discurso econômico, através da renegociação da dívida
externa e o político, pela aceitação das condições e das políticas e reformas econômicas
impostas pelos credores.
O dogmatismo neoliberal, presente no capitalismo, permeado de múltiplas con-
tradições econômicas, sociais e políticas, nos remete a fortes indícios de uma crise
estrutural marcada por falsas esperanças, enquanto se acentuam as desigualdades sociais
ESPAÇO PEDAGÓGICO
A formação de professores no contexto da sociedade capitalista neoliberal brasileira
290
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 284-304, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
e o desemprego em massa. O capitalismo, desse modo, pauta na ideia de que o trabalho
é um modo de redenção humana, ou seja, através dele se constitui o indivíduo e ele
pode se realizar. Cabe lembrar que a Inglaterra foi o primeiro país capitalista a implan-
tar o neoliberalismo, na década de 1980, seguido pelos Estados Unidos e por outros
países do continente europeu que aderiram à política neoliberal, estendendo aos conti-
nentes americano e asiático. De acordo com Anderson:
O que demonstravam estas experiências foi a hegemonia alcançada pelo neoliberalismo como
ideologia. No início, somente governos explicitamente da direita radical se atreveram a pôr em
prática políticas neoliberais; depois qualquer governo, inclusive os que se autoproclamavam ou
se acreditavam de esquerda, podia rivalizar com eles em zelo neoliberal (ANDERSON, 1995, p.
12).
A retórica liberal tenta opor tendências de mercado como extremos irreconciliá-
veis: “fundamentalmente só há dois meios de coordenar as atividades econômicas de
milhões. Um deles é a direção central utilizando a coerção - a técnica do Exército e do
Estado totalitário moderno. O outro é a cooperação voluntária dos indivíduos - a téc-
nica do mercado” (FRIEDMAN, 2014, p. 21). No tocante ao liberalismo, este tem
encontrado defesas radicais no sentido de se fazer valer a maravilha do mercado. Pode-
se destacar, como fonte desse radicalismo, o princípio da redução máxima do papel do
Estado. Os liberais surgiram em contraposição às doutrinas mercantilistas que, mesmo
admitindo a limitação das regulamentações internas, eram mais favoráveis a uma polí-
tica governamental ativa, destinada a aumentar a participação nacional nos mercados
internacionais. Os liberais, a partir dos fisiocratas e de Adam Smith, radicalizaram o
princípio da liberdade interna e, ainda mais, na esfera externa.
Dessa forma, vale relembrar que, as políticas públicas para a educação nacional,
há tempo vem se delineando nas discussões estabelecidas por diferentes setores da soci-
edade civil e política. No entanto, embora as discussões travadas em diversas instâncias,
bem como nas lutas dos educadores por políticas que atendam às necessidades básicas
de uma educação libertadora, nos leva a observar que a legislação brasileira caminha no
sentido contrário a essa meta, uma vez que o Estado se exime de sua condição de pro-
vedor de uma educação de excelência em todos os níveis de ensino.
De acordo com Saviani, não é possível que, numa sociedade classificada como
sociedade do conhecimento, cientes da importância da educação e, por consequência, da
formação de professores, as políticas públicas estejam, dia após dia, buscando a redução
de custos. É necessário, segundo o autor, delegar à educação sua devida importância e
recursos compatíveis com ela, de maneira a:
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Andréia Aparecida Simão, Maria de Lourdes Pinto Almeida
291
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 284-304, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
[...] eleger a educação como máxima prioridade, definindo-a como o eixo de um projeto de de-
senvolvimento nacional e, em consequência, carrear para ela todos os recursos disponíveis. Assim
procedendo, estaríamos atacando de frente, e simultaneamente, outros problemas do país, como
saúde, segurança, desemprego, pobreza, infraestrutura de transporte, de energia, abastecimento,
meio ambiente etc. Infelizmente, porém, as tendências que vêm predominando na educação bra-
sileira caminham na contramão dessa proposta (SAVIANI, 2009, p. 153).
Diante de tudo isso, as políticas de formação docente passam a crescer de uma
forma assustadora na América Latina. Não com o sentido de politizar o docente, mas
sim, de o alienar diante das mazelas do mercado. A prática docente passa a ser valorizada
em detrimento da teoria na formação dos professores, uma vez que, a técnica vale mais
do que a fundamentação teórica sólida e consistente. Logo, a inversão de valores passa
a ser a realidade histórica almejada.
Sociedade capitalista neoliberal no contexto da formação de
professores
A partir dos anos de 1990, emerge demanda em preparar o trabalhador para o
mundo do trabalho, pois, os modelos de gestão neoliberais, exigem do trabalhador
competências, incluindo formação e atitudes voltadas para a competitividade, produ-
tividade e agilidade na execução dos processos produtivos. Observa-se um
reordenamento das relações educativas através da noção de competências dispostas pe-
las relações de produção centralizadas na empregabilidade e flexibilidade dos processos.
A noção de competências atende três possíveis desígnios, de acordo com adapta-
ções em Ramos (2001): 1) o reordenamento para compreensão da relação trabalho
docente-educação, com foco na subjetividade do sujeito; 2) institucionalização de no-
vas formas de educar, formar o docente e gerir o trabalho internamente nas escolas,
com reorganização da carga horária, novos contratos profissionais, a exemplo de con-
tratos temporários em que se estabelecem novas relações contratuais de carreira e de
salários; 3) formulação de padrões para identificar a capacidade do trabalhador-profes-
sor para as estruturas pré-determinadas pelas políticas nacionais, a exemplo da LDB e
da BNCC embarcadas nas orientações de organismos multilaterais.
Ramos (2001, p. 39) identifica que, no processo de competências, há desvio de
“foco do emprego, das ocupações e das tarefas para o trabalhador em suas implicações
subjetivas com o trabalho”. Porém, apresenta-se, nesse momento, o trabalhador do-
cente tomado da captura de sua subjetividade com capacidade de moldar e direcionar
ação e pensamento (ALVES, 2011), em conformidade com a racionalização inscrita
ESPAÇO PEDAGÓGICO
A formação de professores no contexto da sociedade capitalista neoliberal brasileira
292
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 284-304, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
nas competências socioemocionais que estão na BNCC. Esta, conceitua competências
como “a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (prá-
ticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas
complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho”
(BRASIL, 2018, p. 8). Assim como, as definições de Ramos (2001) sobre competên-
cias, a norma regulamentadora curricular sugere sobredeterminação
4
que, pelo
imperativo socioemocional, se torna mais fácil e prático adaptar o sujeito aos meandros
do século XXI, bem como formar o professor para ser atuante e complacente da meri-
tocracia imposta pela hegemonia capitalista.
A relação das competências socioemocionais presentes na BNCC com os quatro
pilares da educação (DELORS, 1998), estão nas bases do aprender a ser e aprender a
conviver. Assim como, as competências cognitivas estão de acordo com aprender a fazer
e aprender a aprender. Conforme o relatório da Unesco, as bases das competências do
futuro são os saberes e saber-fazer evolutivo, com orientações para projetos de desenvol-
vimento individuais e coletivos nos preâmbulos das competências cognitivas. Em
múltiplas referências, os quatro pilares da educação trazem o prolongamento: aprendi-
zagem ao longo da vida, em que o indivíduo possa concretizar seu pertencimento como
membro da sociedade aprendente e economicamente ativo, intensificando o pressu-
posto da Unesco pela autenticidade e harmonia do desenvolvimento humano para
eliminar a pobreza e a exclusão social.
Ao analisarmos o terceiro ponto proposto por Ramos, identificamos que, para a
manutenção do capital, há necessidade de padronização para verificar as competências
do professor em nível de descoberta do potencial criativo que ultrapasse a instrumen-
talidade da educação. Esta, considerada pela Unesco “como a via obrigatória para obter
certos resultados (saber-fazer, aquisição de capacidades diversas, fins de ordem econô-
mica)” (DELORS, 1998, p. 90), que uma vez transposta “se passe a considerá-la em
toda a sua plenitude: realização da pessoa que, na sua totalidade, aprende a ser”
(DELORS, 1998, p. 90). O que queremos pontuar são as relações advindas de orga-
nismos multilaterais nesse contexto neoliberal. Uma vez que, a formação do professor
se encontra em constante agitação, numa complexidade extrema, para além da frag-
mentação, separação das dimensões cognitiva e emocional (SMOLKA et al, 2015).
Essas necessidades estão relacionadas às competências do profissional, exigidas para a
formação do trabalhador-professor pelas vias do capital, o qual nos faz acreditar que o
efêmero
5
é propício à mudança.
Na nova lógica de busca de informação, de conhecimento e qualificação, preva-
lece o aprender a aprender o qual objetiva a atualização constante “exigida pela
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Andréia Aparecida Simão, Maria de Lourdes Pinto Almeida
293
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 284-304, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
necessidade de ampliar a esfera da empregabilidade” (SAVIANI, 2013, p. 432), res-
ponsabilizando o professor na condução dessa formação mercantilizada. Diferente do
que se processou nos séculos XI a XVII com as corporações de ofício, onde prevalecia
o processo aprender fazendo, em que as instituições de ensino, que se dedicavam as artes
intelectuais por oposição ao sistema manual ou as artes mecânicas, formavam os profes-
sores das escolas inferiores ao lhes ensinar os conhecimentos que deveriam transmitir
no momento (SAVIANI, 2009).
Tais orientações são evidenciadas nos Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCNs) propostos pelo MEC em 1997, visando alargar a esfera da educação com mai-
ores exigências para a escola. É o momento de “capacitar para adquirir novas
competências e novos saberes” (SAVIANI, 2013, p. 433). Os PCNs fundamentam o
princípio de que:
[...] a formação dos estudantes em termos de sua capacitação para a aquisição e o desenvolvimento
de novas competências, em função de novos saberes que se produzem e demandam um novo tipo
de profissional, preparado para poder lidar com novas tecnologias e linguagens, capaz de respon-
der a novos ritmos e processos. Essas novas relações entre conhecimento e trabalho exigem
capacidade de iniciativa e inovação e, mais do que nunca, “aprender a aprender” (BRASIL, 1997,
p. 27, grifos do documento).
Percebemos a relação dos Parâmetros Curriculares com as competências cogniti-
vas e socioemocionais identificadas na Unesco e BNCC e, de acordo com Smolka et al.
(2015), pela separação das dimensões cognitiva e emocional para incorporarem outros
conjuntos de providências. Estes, a exemplo do desenvolvimento de competências so-
cioemocionais nos seus cinco constructos
6
(amabilidade, conscienciosidade, abertura
ao novo, extroversão, estabilidade emocional) que trazem a partir de processo de avali-
ação em larga escala - Projeto SENNA
7
(PRIMI; SANTOS, 2014) - a análise separada
em processo reduzido de poucos traços da personalidade.
Nesse âmbito, formar o professor pelas competências e habilidades socioemoci-
onais, para em seguida as desenvolver em seus alunos, remete a formação simplificada
no âmbito de matrizes de competências instituídas para professores. Essa reorganização
na formação de professores se projeta nos perímetros do reducionismo, seja pelo par-
celamento causando precarização em conteúdos formativos, seja diminuindo qualidade
e eficiência a que se propõe para essa formação proferindo profissionalização que se
justifica no discurso neoliberal incorporado ao eixo mercadológico. Presenciamos ce-
nários da reforma educativa em diferentes contextos, sejam estimulados por organismos
internacionais em discursos deterministas, sejam aprovados pelos governos ao tornarem
ESPAÇO PEDAGÓGICO
A formação de professores no contexto da sociedade capitalista neoliberal brasileira
294
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 284-304, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
normativos os quais invocam a responsabilidade em obter a qualidade no ensino pro-
pondo realidades negligenciadas através políticas públicas. A influência das políticas
educacionais brasileiras, sobre a formação de professores, estabelecidas na Lei de Dire-
trizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei n. 9.394 de 20 de dezembro de 1996,
foram propostos pelos ideais neoliberais recomendados pela Declaração Mundial sobre
Educação para Todos (Conferência de Jomtien, 1990). Esta por sua vez trata no capí-
tulo VII: “os professores em busca de novas perspectivas” (DELORS, 1998, p. 152), a
responsabilização do professor em relação a sua atuação e formação, assim como na
formação do jovem para enfrentar e construir o futuro com determinação e responsa-
bilidade. Segundo o documento, “os professores têm um papel determinante na
formação de atitudes, positivas ou negativas perante o estudo. Devem despertar a curi-
osidade, desenvolver a autonomia, estimular o rigor intelectual e criar as condições
necessárias para o sucesso da educação [...]” (DELORS, 1998, p. 159). Logo, é neces-
sário realizar de forma efetiva o recrutamento, a formação, o estatuto social e as
condições de trabalho dos professores.
A LDB, nos artigos 61 e 65, sobre a formação dos profissionais da educação,
estabelece-se que:
Art. 61 [...] Parágrafo único. A formação dos profissionais da educação, de modo a atender às
especificidades do exercício de suas atividades, bem como aos objetivos das diferentes etapas e
modalidades da educação básica, terá como fundamentos:
I a presença de sólida formação básica, que propicie o conhecimento dos fundamentos cientí-
ficos e sociais de suas competências de trabalho;
II a associação entre teorias e práticas, mediante estágios supervisionados e capacitação em
serviço;
III o aproveitamento da formação e experiências anteriores, em instituições de ensino e em
outras atividades.
Art. 65. A formação docente, exceto para a educação superior, incluirá prática de ensino de, no
mínimo, trezentas horas. (BRASIL, 1996)
É nesse cenário que as sucessivas mudanças são introduzidas na formação de pro-
fessores, no intuito de equacionar, de forma consciente, teoria e prática, pois o mercado
de trabalho convoca os trabalhadores do conhecimento, por conseguinte, evoca a res-
ponsabilidade dos governos em obter a qualidade do ensino, porém, com predomínio
no campo acadêmico da análise da degradação profissional (MORGENSTERN,
2010). A tônica prevalecente no capitalismo atual com a acumulação, pois é necessário
somente uma pequena força de trabalho qualificada para gerir e inovar em escala global.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Andréia Aparecida Simão, Maria de Lourdes Pinto Almeida
295
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 284-304, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Essa força de trabalho qualificada pressupõe mais-valor (MARX, 2013), que en-
riquece o capital pelo processo produtivo. Será então o professor, no contexto
neoliberal, um formador da força de trabalho para reproduzir mercadorias? É um mo-
vimento que vimos presenciando, nesse momento, ao circundar graus de
desenvolvimento e transformar o trabalho docente em “trabalhadores da servidão e da
coação corporativa” (MARX, 2013, p. 962). Uma vez que trabalhar as competências
cognitivas e socioemocionais são propostas resultantes das políticas neoliberais, as quais
incitam questionamento sobre o controle do conhecimento em direção ao monopólio
burguês. A expropriação do conhecimento, pela especulação mercantilizada
(MORGENSTERN, 2010), assume modelo empresarial ao trabalhar cada vez com
convicção nesses termos, sendo definidos por produtividade, eficácia, trabalho em
equipe, qualidade e outros.
A formação docente está implicada na perspectiva da formação do trabalhador
em dois aspectos: o próprio docente como trabalhador e o aluno a ser formado por ele
para atuar no mercado de trabalho, logo, consistem em um ponto de vista comum: são
formados para o capital. O valor do conhecimento pouco atua nessa “gestão do sa-
ber/conhecer”, pois aponta para uma formação instrumentalizada, longe de se obter
uma formação sólida (MORGENSTERN, 2010), direcionadas para trabalhadores fle-
xíveis, os quais compõem novos perfis para o mercado de trabalho.
A abordagem da atual conjuntura, recorre ao processo de formação de professores
por vias descontínuas, precárias em suas políticas educacionais. Estas, orientadas pela
dominação e determinação sistemática de organismos multilaterais em pôr a educação
a serviço do mercado. Para equilibrar suas lutas e se manter em ascensão, a lógica mis-
tificadora do capital precisa da ação meritocrática, tecnocrática, do processo
mercadológico e empresarial imbricados numa pedagogia do aprender a fazer o tec-
nicismo (SAVIANI, 2013; MÉSZÁROS, 2008).
Segundo Saviani há mecanização do processo produtivo a partir da “proliferação
de propostas pedagógicas tais como o enfoque sistêmico, o microensino, o tele ensino,
a instrução programada, as máquinas de ensinar” (2013, p. 382), o ensino híbrido, a
educação à distância. No entanto, a formação de professores implica objetivos e com-
petências específicas, resultando como consequência a estrutura organizacional
diretamente voltada ao cumprimento da formação para o contexto da empregabilidade.
Outro ponto, no debate sobre a formação para a profissão docente, é a inserção
no mercado de trabalho educacional, no sentido da formação, somente para ser empre-
gável. Morgenstern (2010) traz a reflexão que não há consciência e esforço para obter
formação sólida e de qualidade, mas a preparação prática para a empregabilidade, a
ESPAÇO PEDAGÓGICO
A formação de professores no contexto da sociedade capitalista neoliberal brasileira
296
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 284-304, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
partir de conhecimentos técnicos e o desenvolvimento de habilidades gerais em con-
texto do trabalhador flexível, ou seja, a prática do ensino integra as profissões para o
mercado de trabalho. A autora chama a atenção para a análise sobre degradação profis-
sional, que alcança níveis consideráveis de intensificação e empobrecimento, porém,
havendo abandono da profissão mesmo no mundo desenvolvido, estabelecendo a vul-
nerabilidade da profissionalização docente. Essa perspectiva vai ao encontro da Meta
16 do PNE, a qual propõe a formação em programas de especialização lato sensu para
professores da educação básica.
Formar, em nível de pós-graduação 50% (cinquenta por cento) dos professores da educação bá-
sica, até o último ano de vigência deste PNE, e garantir a todos (as) os (as) profissionais da
educação básica formação continuada em sua área de atuação, considerando as demandas e con-
textualizações dos sistemas de ensino (BRASIL, 2014).
A educação para a empregabilidade estampa e mobiliza as políticas públicas/edu-
cacionais como estratégias governamentais para alavancar o processo capitalista. Elas
vão além de um processo pedagógico articulado ao conjunto das relações sociais. Insti-
tuem-se no princípio do mercado, na combinação e execução de elementos formativos,
os quais tomam para si, abstraindo do sujeito a subjetividade e coletividade. Estabelece,
dessa forma, o declive profissional a partir dos meandros neoliberais, colocando em
questão o controle do conhecimento na rapidez em obter a formação no êxito do em-
prego, submetendo o docente à dependência de uma formação rasa, degradada e
vulnerável.
A Lei 13005/2014 que aprova o Plano Nacional de Educação PNE em seu
artigo 2º, trata das diretrizes do PNE. A diretriz IX sobre “valorização dos (as) profis-
sionais da educação” está articulada à Meta 17, que propõe a valorização dos (as)
profissionais do magistério da educação básica e pública em relação à remuneração e
equiparação de forma a igualar aos dos(as) demais profissionais com escolaridade equi-
valente (BRASIL, 2014). A expressa valorização fica no nível de vulnerabilidade que se
encontra a profissão, uma vez que incide nos créditos de formação, seja de graduação e
pós-graduação como anuncia o PNE na Meta 16, seja nos planos de Carreira pela Meta
18. Institui-se processos de exploração do trabalho docente, uma vez que a normativa
traz perspectiva de piso salarial, porém, os contratos, em sua grande maioria, são tem-
porários, com carga horária alta e constituídos por contratação em caráter precário.
Nessas análises se identifica, “possibilidades como um coletivo que está estrate-
gicamente localizado no cerne da reprodução social e cujas práticas são importantes
para a construção da hegemonia” (MORGENSTERN, 2010, p. 20). Assim se explica
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Andréia Aparecida Simão, Maria de Lourdes Pinto Almeida
297
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 284-304, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
a negligência das políticas públicas em relação a educação, em contradição ao discurso
que estabelece a preparação para a sociedade do conhecimento e as circunstâncias reais
no desenvolvimento do trabalho docente.
A educação representa a grande transformação social para romper com a “inter-
nalização predominante nas escolhas políticas”, argumenta Mészáros (2008, p. 61).
Para além da expropriação do trabalho docente, as políticas públicas são normatizado-
ras e atuam como alienantes na ordem existente. Elas tornam inevitável que o sujeito-
professor seja objeto do sistema dominante, deixando de lado a “universalização da
educação e a universalização do trabalho como atividade humana autorrealizadora”
(MÉSZÁROS, 2008, p. 65), passando a reprodutor dessa sociedade por uma formação
progressiva, extinguindo como sujeito histórico.
Conforme texto da BNCC, orientado pela LDB, em relação às aprendizagens
essenciais, para além dos conteúdos mínimos (BRASIL, 2018), o foco dos fundamentos
pedagógicos da BNCC é no desenvolvimento de competências. Dessa forma, aumenta
o controle do que se ensina e como se ensina no Brasil, numa visão gerencialista, com
padronização do trabalho docente. Segundo o documento, uma das ações é “criar e
disponibilizar materiais de orientação para os professores, bem como manter processos
permanentes de formação docente que possibilitem contínuo aperfeiçoamento dos pro-
cessos de ensino e aprendizagem” (BRASIL, 2018, p. 17). É uma formação pragmática,
técnico-instrumental do professor, com aumento do controle do conteúdo, assinalando
o rebaixamento teórico da formação pelas matrizes de competências.
As situações ou circunstâncias atuais, consideradas contrárias e desfavoráveis, le-
vam o trabalho docente a se expor às tendências mercantilizantes do modelo pós-
fordista, com segmentação de mercados para a educação, aumentando a dualização so-
cial, o que implica uma diferenciação interna do coletivo e a erosão de uma cultura de
serviço. No entanto, as relações com os pais, sindicatos, movimentos sociais, municí-
pios e redes internacionais podem criar condições contingentes para gerir outra
micropolítica escolar, fortalecendo identidade em que os docentes se assumam como
agentes chaves na governabilidade das instituições, no desenvolvimento do conheci-
mento e não, necessariamente, as tendências mercadológicas como determinantes.
(MORGENSTERN, 2010)
De acordo com Saviani (2009), percebe-se a ausência de ação para manutenção
de uma educação igualitária, com liberdade de expressão, uma escola pública, demo-
cratizada e gratuita, a qual passa longe da viabilidade em alcançar ampliação da
qualidade com propostas pedagógicas estruturadas em políticas públicas de longo prazo
e possibilidades concretas que garantam a qualidade da formação de professores, além
ESPAÇO PEDAGÓGICO
A formação de professores no contexto da sociedade capitalista neoliberal brasileira
298
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 284-304, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
da infraestrutura para atuação profissional. É nesse ambiente dramático que se incor-
poram modificações na formação de professores, pelas ações e visibilidade do mercado
com o intuito de equacionar, de forma consciente teoria e prática, invitando e respon-
sabilizando os trabalhadores do conhecimento a obter e manter a qualidade do ensino.
As responsabilizações enfrentadas pelos professores estão ao par da materialidade
humana que, segundo a análise de Marx por Vázquez (1977), transforma o mundo
natural e social. Assim, Vázquez (1977, p. 4), ao utilizar o termo práxis, procura dis-
tanciar o conceito de prática do uso cotidiano, que corresponde ao de atividade prática
humana no sentido utilitário de expressões, “homem prático, resultado práticos, pro-
fissão prática”. O termo “praxis” é utilizado para atividade humana que produz objetos.
Assim, a atividade própria do homem faz parte, essencialmente, da atividade da cons-
ciência como produção de conhecimentos, em forma de conceitos, hipóteses, teorias
ou leis; mediante os quais o homem conhece a realidade.
Para Vázquez (1977), a atividade própria do homem faz parte essencialmente da
atividade da consciência e se desenvolve como produção de conhecimentos através de
conceitos, hipóteses, teorias ou leis. Já Gramsci (1979, p. 130) entende essa atividade
como atividade teórico-prática, ou seja, “o trabalho como princípio educativo imanente
à escola”. O que faz com que o professor esteja nesse meio das relações sociais e do
trabalho, entre instrução e educação. De acordo com Gramsci (1979, p. 131), a ligação
instrução-educação é representada pelo “trabalho vivo do professor”, onde este tem
consciência dos contrastes da sociedade neoliberal da aceleração da formação. Im-
plica o ato de trabalhar, o responsabilizar subjetivamente com as relações educacionais,
contrapondo ao mecanicismo, tendo consciência e clareza de sua atuação teórico-prá-
tica.
A formação e profissionalização de professores, neste contexto neoliberal, implica
objetivos e competências específicas, conectando teoria e prática, fornecendo subsídios
para equilibrar a “prática, na medida em que a teoria, como guia da ação, molda a
atividade do homem, [...] na medida em que esta relação é consciente” (VÁZQUEZ,
1977, p. 109). O professor, pelo seu “trabalho vivo” (MARX, 2013; GRAMSCI,1979),
deveria ter, na sua base cultural e científica, a consciência das exigências pedagógicas a
serem atendidas pelas escolas, cada vez mais voltadas a formação profissional. No en-
tanto, fica justaposta a “tarefa de formar os novos professores: o domínio dos conteúdos
específicos da área a ser ensinada” (SAVIANI, 2009, p. 150). Eis os processos conteu-
distas, que estão dispostos e determinados nas políticas educacionais.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Andréia Aparecida Simão, Maria de Lourdes Pinto Almeida
299
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 284-304, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Considerações finais
As análises realizadas apontam que a formação de professores está atravessada
pelas regulamentações de políticas educacionais, as quais só fazem contemplar os dile-
mas enfrentados e expressados pelos docentes. Tais dilemas são coadjuvantes de
negligências das políticas públicas e suas contradições nos discursos que apontam à
preparação para a sociedade do conhecimento e as circunstâncias em que se encontram
o trabalho docente: vulnerável, raso, desvalorizado e ampliado na atuação para educa-
ção mercadológica (MORGENSTERN, 2010). A vulnerabilidade da profissão docente
está presente em alguns pontos: seja na formação rasa, por competências, seja na remu-
neração e contratação em caráter precário. Acusa a degradação profissional, expressa
pela abstração da subjetividade e coletividade do sujeito, buscando a simplificação das
matrizes pelas competências socioemocionais, as quais estão entrelaçadas à formação
hegemônica do capital.
Para que se desenvolva uma educação diferente da praticada nas escolas brasilei-
ras, que privilegia as desigualdades, que semeia e reproduz uma ideologia que
mercantiliza tudo, até mesmo os processos educacionais, Mészáros (2008) entende que
se deve manter, sob a ótica de ir além do capital, um processo de formação constante,
por requerer tempo e atualização de atores, uma vez que a sociedade, as ideologias e o
conhecimento estão em constante transformação. Assim, para esse autor:
Uma concepção oposta e efetivamente articulada numa educação para além do capital não pode
ser confinada a um limitado número de anos na vida dos indivíduos mas, devido a suas funções
radicalmente mudadas, abarca-os a todos. A “autoeducação de iguais” e a “autogestão da ordem
social reprodutiva” não podem ser separadas uma da outra. A autogestão pelos produtores li-
vremente associados das funções vitais do processo metabólico social é um empreendimento
progressivo e inevitavelmente em mudança. O mesmo vale para as práticas educacionais que
habilitem o indivíduo a realizar essas funções na medida em que sejam redefinidas por eles pró-
prios, de acordo com os requisitos em mudança dos quais eles são agentes ativos. A educação,
nesse sentido, é verdadeiramente uma educação continuada (MÉSZÁROS, 2008, p. 74, grifos do
autor).
Esta concepção, trazida por Mészáros, vai de encontro à educação entendida
como uma condição regulada e subordinada às necessidades do capital. Como prática
social, atividade humana e histórica, se reduz a processos educativos, que visam doutri-
nar, domesticar e treinar homens, aptos para o desenvolvimento de suas tarefas laborais,
tendo como parâmetro:
ESPAÇO PEDAGÓGICO
A formação de professores no contexto da sociedade capitalista neoliberal brasileira
300
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 284-304, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
De um lado, a ideologia da globalização e, de outro, a perspectiva mistificadora da reestruturação
produtiva embasam, no campo educativo, a nova vulgata da pedagogia das competências e a
promessa de empregabilidade. Ao individualismo do credo neoliberal somam-se os argumentos
fundados no credo do pós-modernismo que realçam as diferenças (individuais) e a alteridade.
Neste particular a diferença e a diversidade, dimensões importantes da vida humana, mascaram
a violência social da desigualdade e afirmam o mais canibal individualismo (FRIGOTTO, 2005,
p. 71).
É reconhecendo o significado de suas ações, num processo de buscar explicações,
estabelecer relações e, simultaneamente, trabalhar e aprender; que acontece a formação
docente que se espera. Para isso, este aprender não é aquele pautado nas intenções da
classe dominante, do capital, mas aquele que “empodera”, que move e promove a mu-
dança.
Ao estudarmos, por outro lado, a prática do intelectual como inserido no con-
texto histórico mais amplo, novos elementos se apresentam. Entre estes, se destacam as
opções e as posições do intelectual frente à correlação de forças políticas. Nesse âmbito,
interessa a análise das concepções ideológicas inerentes às práticas dos intelectuais. Ide-
ológico, no sentido de visão de mundo, de sociedade e, sobretudo, do papel da ciência.
Aqui se exige um posicionamento político do professor. Esse posicionamento pode ser
tácito ou confesso. Nisso reside o aspecto ideológico, uma vez que estamos no campo
da persuasão. Para Gramsci (2011), as lutas sociais e políticas, nas sociedades atuais, se
dão menos contra o Estado do que no Estado. Este se apresenta como instância medi-
adora de interesses de classes, em vez de um mero representante da classe dominante.
Nele, portanto, os antagonismos se manifestam. O papel do intelectual orgânico é o de
organizar, conduzir e persuadir as massas, produzindo consensos. Ao ampliar o Estado,
ele amplia, também, o papel do intelectual.
No entanto, devemos lembrar que o embate hegemônico em Gramsci (1995b,
p. 270), supõe que a verdadeira práxis “não é o instrumento de governos ou de grupos
dominantes para obter o consentimento e exercer a hegemonia sobre as classes subal-
ternas”. Afirmamos, ao contrário, que a práxis é expressão das classes subalternas que
querem educar a si mesmas na arte do governo e que tem interesse em conhecer todas
as verdades inclusive as desagradáveis e evitar enganos. Com a hegemonia maciça
do liberalismo, esse enfoque pode parecer anacrônico.
Dessa forma, considerando a realidade posta, o exercício da formação docente
com vistas à promoção e à participação efetiva de sujeitos, ainda é o caminho para a
superação das desigualdades, capaz de enfrentar os desmandos autoritários e políticos
que vivenciamos no Brasil desde sempre, mais acentuadamente e de forma irracional,
a partir de 1º de janeiro de 2019, com a posse de Jair Bolsonaro. Prova disso é que,
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Andréia Aparecida Simão, Maria de Lourdes Pinto Almeida
301
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 284-304, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
mesmo que as práticas neoliberais estejam arraigadas de ilusões, considerando o mer-
cado financeiro como o “salvador do mundo”, é fato que essas não apenas fracassam
nas questões sociais, mas geram sérios comprometimentos econômicos, resultando em
outra crise do modelo capitalista, sinalizando que mais um ciclo chega ao fim.
A formação docente, voltada para o mundo do trabalho e não para o mercado
capitalista, é um dos caminhos para a reconstrução daquilo que se perdeu, ou melhor,
talvez nunca conseguimos ter efetivamente: liberdade e igualdade dos cidadãos por
meio da educação. Nesse sentido é necessário questionar: “como transformar o mundo
dos homens, como vislumbrar a emancipação humana?” (ROIO, 2014, p. 129). O
ponto de partida, segundo este autor, é a superação da cultura burguesa e a promoção
de um significativo progresso intelectual, o qual levará o homem à emancipação. Este
processo se dará pela educação enquanto instrumento de luta, de desenvolvimento so-
cial e humano.
Vale a pena destacar que, diante de tudo isso, a força que move a formação do-
cente tem suas raízes na base social econômica e isto não pode ser esquecido,
principalmente, quando se discutem reformas educacionais escolares. Para construir-
mos uma análise ou mesmo uma crítica, temos que as fazer inseridas em um quadro de
forças reguladoras, pensando na luta de classes dentro desse quadro, nunca negando a
força da História.
Parafraseando Marx: “Professores do mundo…. uni-vos”.
Notas
1
Pesquisa com financiamento CAPES.
2
O modelo dos conteúdos culturais-cognitivos na formação do professor possui ênfase na cultura geral
e no conteúdo específico da disciplina a ser ministrada (SAVIANI, 2009).
3
Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), criação da Central Única dos Trabalhadores (CUT)
e do Partido dos Trabalhadores (PT).
4
Utilizamos o termo a partir de Freud contextualizado em Marx, no sentido de que diversos fato-
res/múltiplos elementos podem se organizar “em sequências significativas diferentes” (LAPLANCHE;
PONTALIS, 1992, p. 488) estando todos em interação e contradição. Ou seja, as múltiplas determi-
nações que constam na BNCC em relação às competências socioemocionais buscam instrumentalizar
o professor, sendo este o objeto e não sujeito histórico, constituindo a urgência em formar seu próprio
capital do conhecimento.
5
Nos referimos às competências socioemocionais.
6
Com base no documento: Estudos da OCDE sobre competências: competências para o progresso so-
cial: o poder das competências socioemocionais (OCDE, 2015).
ESPAÇO PEDAGÓGICO
A formação de professores no contexto da sociedade capitalista neoliberal brasileira
302
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 284-304, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
7
Social and Emotional or Non-cognitive Nation wide AssessmentSENNA.
Referências
ALVES, Giovanni. Trabalho e subjetividade: o espírito do Toyotismo na era do capitalismo
manipulatório. São Paulo: Boitempo, 2011.
ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, Emir; GENTILI, Pablo.
(Org.). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1995.
BARDIN, L. Análise de conteúdo. Press Universitaire de France, 1977.
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: introdução aos parâmetros curriculares nacio-
nais. Brasília, DF: MEC/SEF, 1997. 126p. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro01.pdf. Acesso em: 15 jun. 2019.
BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional. Brasília, 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/cci-
vil_03/leis/l9394.htm. Acesso em: 21 out. 2021.
BRASIL. Lei n. 13.005 de 25 de junho de 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação - PNE
e dá outras providências. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Brasília, DF, 2014. Disponível em:
http://pne.mec.gov.br/. Acesso em: 31 ago. 2021.
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2018. Disponível
em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br. Acesso em: 10 abril. 2019.
EVANGELISTA, Olinda; SHIROMA, Eneida. Subsídios teórico-metodológicos para o
trabalho com documentos de política educacional: contribuições do marxismo. In: Geórgia
Cêa; Sonia Rummert. Leonardo Gonçalves (Org.). Trabalho e Educação: interlocuções
marxistas. Rio Grande: Editoria da FURG, 2019, p. 83-120.
FILGUEIRAS, Luiz. O neoliberalismo no Brasil: estrutura, dinâmica e ajuste do modelo
econômico. In: BASUALDO, E. M.; ARCEO, E. Neoliberalismo y sectores dominantes.
Tendencias globales y experiencias nacionales. CLACSO. Buenos Aires, 2006. Disponível
em: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/grupos/basua/C05Filgueiras.pdf. Acesso
em: 21 jan. 2019.
FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e Liberdade. Rio de Janeiro: LTC Editora, 2014.
FRIGOTTO, Gaudêncio. Os delírios da razão: crise do capital e metamorfose conceitual no
campo educacional. In: GENTILI, Pablo (Org.). Pedagogia da exclusão. São Paulo: Vozes,
1995. p. 77-107.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Andréia Aparecida Simão, Maria de Lourdes Pinto Almeida
303
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 284-304, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
GENTILI, Pablo. Neoliberalismo e educação: manual do usuário, 2008. Disponível em:
https://barricadasabremcaminhos.files.wordpress.com/2010/06/neoliberalismo-e-
educacao.pdf. Acesso em: 12/05/2020.
GENTILI, Pablo. Neoliberalismo e educação: manual do usuário. In: SILVA, Tomaz Tadeu
da. & GENTILI, Pablo. (Orgs.). Escola S.A.: quem ganha e quem perde no mercado
educacional do neoliberalismo. Brasília, DF: CNTE, 1996, p. 9-49.
GIAMBIAGI, Fábio et al. Economia brasileira contemporânea: 1945 2010. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2011.
GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e as organizações da cultura. 3ª ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira. 1979.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. v. 3 - Maquiavel: notas sobre o estado e a política.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. 9. ed. Rio de Janeiro: Editora
Civilização Brasileira, 1995a.
GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1995b.
LAPLANCHE, Jean; PONTALIS, Jean-Bertrand. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo:
Martins Fontes, 1992.
MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro I. São Paulo: Boitempo, 2013.
MÉSZÁROS, István. Educação para além do capital. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2008.
MORGENSTERN, Sara. Reflexiones sociológicas em torno a los docentes. La paradoja entre
su vulnerabilidad y su potencialidad profesional. In: Nuevas regulaciones educativas em
América Latina: políticas y processos del trabajo deocente. 1 ed. Lima, Peru. Asociación Civil
Universidad de Ciencias y Humanidades, Fondo Editorial, 2010.
OCDE. Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Estudos da OCDE
sobre competências: competências para o progresso social: o poder das competências
socioemocionais. São Paulo: Fundação Santillana, 2015. Disponível em:
https://institutoayrtonsenna.org.br/. Acesso em: 10 mar. 2019.
PRIMI, Ricardo.; SANTOS, Daniel. Desenvolvimento socioemocional e aprendizado escolar:
uma proposta de mensuração para apoiar políticas públicas. São Paulo. IAS, 2014.
RAMOS, Marise Nogueira. A pedagogia das competências: autonomia o adaptação? São Paulo:
Cortez, 2001.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
A formação de professores no contexto da sociedade capitalista neoliberal brasileira
304
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 284-304, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
DEL ROIO, Marcos. A educação como forma de reprodução da hegemonia e seu avesso. In:
SCHLESENER, Anita. (Org.). Filosofia, Política e Educação: leituras de Antônio Gramsci.
Curitiba: UTP, 2014.
SAVIANI, Dermeval. História das ideias pedagógicas no Brasil. 4. ed. Campinas: Autores
Associados, 2013.
SAVIANI, Dermeval. Formação de Professores: aspectos históricos e teóricos do problema no
contexto brasileiro. Revista Brasileira de educação. v. 14, n. 40 jan./abr. 2009. p. 143-155.
Disponível em:
https://www.scielo.br/j/rbedu/a/45rkkPghMMjMv3DBX3mTBHm/?format=pdf&lang=pt.
Acesso em: 11 nov. 2018.
SMOLKA, Ana Luiza Bustamante; LAPLANE, Adriana Lia Friszman de.; MAGIOLINO,
Lavinia Lopes Salomão; DAINEZ, Débora. O problema da avaliação da habilidades
socioemocionais como política: explicitando controvérsias e argumentos. Educação e
Sociedade. Campinas: São Paulo, v. 36, nº 130, p. 219-242, jan.-mar, 2015. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/es/a/WTmS8JRvXxwRQZKjB7GdLJH/?format=pdf&lang=pt.
Acesso em: 02 fev. 2019.
VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da Práxis. 2ª ed. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1977.
Este artigo está licenciado com a licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
305
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 305-330, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Ocupações escolares em Francisco Beltrão-PR: contribuições
para a formação dos jovens
School occupations in Francisco Beltrão, Paraná: contributions for youth
education
Ocupación escolar en Francisco Beltrão-PR: contribuciones para la
formación de los jóvenes
Franciele Maria David
*
Suely Aparecida Martins
**
Resumo
Nos anos de 2015 e 2016, em reação às reformas educacionais neoliberais, estudantes brasileiros
ocuparam escolas e universidades públicas. Este artigo reflete sobre estas ocupações secundaristas,
destacando aquelas ocorridas em 2016, no Paraná, especialmente no município de Francisco Beltrão,
tendo como objetivos historicizá-las e destacar seu caráter formativo. A pesquisa foi qualitativa e,
além de revisão bibliográfica, recorreu à análise de documentos (jornais e páginas do Facebook) e a
entrevistas semiestruturadas feitas com onze estudantes participantes das ocupações em Francisco
Beltrão. Como aporte teórico, baseou-se em Snyders (2005) para o entendimento da escola e do
movimento estudantil como inserido na luta de classes, e na concepção libertadora de educação de
Freire (1987). O texto apresenta o processo das ocupações escolares no país entendidas a partir da
categorização temporal proposta por Groppo (2018) e mostra como este processo foi vivenciado em
Francisco Beltrão, revelando o seu potencial formativo. Ao final, salienta o teor formativo das ocu-
pações em Francisco Beltrão, observadas na auto-organização dos secundas, no ensaio de formas de
participação mais horizontais, no tensionamento da forma escolar capitalista e como marco para a
reorganização do movimento estudantil no município.
Palavras-chave: ocupações escolares; movimento estudantil; ensino médio.
Recebido em: 16/02/2020 Aprovado em: 02/07/2022
https://doi.org/10.5335/rep.v29i1.10629
ISSN on-line: 2238-0302
*
Graduada em Pedagogia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (2004), mestre em Educação pela Universidade
Estadual do Oeste do Paraná (2019). Atualmente é professora pedagoga da Secretaria Estadual de Educação, e professora
colaboradora da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. E-mail: david_fran@hotmail.com. Orcid:
https://orcid.org/0000-0003-3812-2807.
**
Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina (1996), mestrado em Sociologia pela
Universidade Estadual de Campinas (2000) e doutorado em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina
(2009). Atualmente é professora adjunta da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. E-mail: martins_sue@hotmail.com.
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-7876-6634.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Franciele Maria David, Suely Aparecida Martins
306
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 305-330, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Abstract
In 2015 and 2016, Brazilian students, reacting to neoliberal reforms in education, occupied public
schools and universities. This article reflects on high school occupations that took place and
highlights those occurred in 2016, in the state of Paraná, particularly in the city of Francisco Beltrão.
It aims to historicize and single out its educational nature. It is a qualitative study and, along with a
bibliographic review, it used document analysis (papers and Facebook pages) and semi-structured
interviews carried out with 11 respondents involved in Francisco Beltrão occupations. Our
theoretical framework is based on Snyders (2005), when it comes to understand schools and student
movement as part of class struggles and a liberation conception of education as in Freire (1987). We
present the school occupation process in Brazil using Groppo’s (2018) temporal categorization and
how the process was experienced in Francisco Beltrão, disclosing its educational power. Finally, we
highlight the educational content of Francisco Beltrão occupations seen in students’ self-
organization, in their more horizontal forms of participation, capitalist school form tensioning, and
as a milestone for student movement reorganization in the city.
Keywords: school occupations; students’ movement; high school.
Resumen
En los años de 2015 y 2016, en reacción a las reformas educativas neoliberales, estudiantes brasileños
ocuparon escuelas y universidades públicas. Este artículo refleja sobre estas ocupaciones de los alum-
nos de la secundaria, destacándose aquellas ocurridas en 2016, en el Paraná, especialmente en el
municipio de Francisco Beltrão, se plantea como objetivos historiarlas y destacar su carácter forma-
tivo. La investigación fue cualitativa y, además de la revisión bibliográfica, se recorrió a la análisis de
documentos (periódicos y páginas del Facebook) y la entrevista semiestructurada hecha con once
estudiantes participantes de las ocupaciones en Francisco Beltrão. El aporte teórico se basó en Sny-
ders (2005) para la comprensión de la escuela y del movimiento estudiantil como inseridos en la
lucha de clases, y en la concepción libertadora de educación de Freire (1987). El texto presenta el
proceso de las ocupaciones escolares en el país entendidas a partir de la categorización temporal
propuesta por Groppo (2018) y enseña como este proceso fue vivenciado en Francisco Beltrão, des-
velando su potencial formativo. Al fin, se subraya el aspecto formativo de las ocupaciones en
Francisco Beltrão, en el autoorganización de los secundarios, en el ensayo de formas de participación
más horizontales, en el tensionamiento de la forma escolar capitalista y como marco para la organi-
zación del movimiento estudiantil en el municipio.
Palabras clave: ocupaciones escolares; movimiento estudiantil; enseño medio.
Introdução
Em outubro de 2016, foi proposta a reforma do ensino médio, tendo sido anun-
ciada em caráter de urgência para aprovação pelo então presidente da República Michel
Temer, por meio da medida provisória n.º 746/2016 (BRASIL, 2016a), sancionada
em fevereiro de 2017 pela lei n.º 13.415 (BRASIL, 2017). No mesmo período estava
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Ocupações escolares em Francisco Beltrão-PR: contribuições para a formação dos jovens
307
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 284-304, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
em curso a proposta de congelamento dos gastos públicos com saúde e educação. A
carta tramitou na mara dos Deputados e no Senado Federal como Projeto de
Emenda Constitucional (PEC),
1
sendo aprovada como Emenda Constitucional n. 95
(BRASIL, 2016b). Diante deste cenário nacional, estudantes organizaram-se, ocu-
pando escolas públicas, núcleos regionais de educação e espaços públicos.
Considerado por muitos educadores como a primavera estudantil, este movi-
mento começou no Paraná em 3 de outubro de 2016. A primeira instituição a ser
ocupada foi o Colégio Estadual Padre Arnaldo Jansen, na periferia de São José dos
Pinhais, região metropolitana de Curitiba. Em poucos dias, o movimento se estendeu
por todo estado, chegando a cerca de 850 escolas ocupadas e quatorze universidades.
Também chegou a outros estados, culminando em 1.197 escolas ocupadas em todo o
país, conforme foi contabilizado pela União Brasileira dos Estudantes Secundaristas
(UBES). (ZINET apud BOUTIN; FLACH, 2017, p. 432)
Em Francisco Beltrão, município do sudoeste paranaense, as ocupações começa-
ram em 11 de outubro de 2016. Este município agrega dezesseis colégios estaduais,
sendo que onze foram ocupados. Estas instituições escolares localizam-se em bairros
centrais e periféricos, havendo apenas uma escola do campo.
2
Em Francisco Beltrão, o primeiro colégio ocupado está localizado na periferia,
em um dos bairros mais pobres, como ocorrido no início do movimento, na periferia
de São José dos Pinhais. Houve ainda ocupações e protestos nas duas universidades
públicas da cidade. Na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), os
estudantes, principalmente dos cursos de Pedagogia e Geografia, ocuparam o campus,
aderindo ao movimento dos secundaristas. No entanto, o grupo enfrentou resistência
por parte dos estudantes dos cursos de Direito e Medicina. Os estudantes da Universi-
dade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) protestaram em frente à universidade e
promoveram discussões públicas sobre diversos temas, como a PEC dos gastos, o pro-
jeto Escola Sem Partido, diversidade e gênero.
O presente artigo busca historicizar o processo das ocupações estudantis e a forma
como elas ocorreram em Francisco Beltrão, de modo a revelar o seu caráter formativo.
Além de revisão bibliográfica, é feita uma análise de documentos, que conta com re-
portagens de um jornal local e com postagens na rede social Facebook, criadas pelos
estudantes durante as ocupações. Foram realizadas também onze entrevistas semiestru-
turadas
3
com jovens de todas as escolas ocupadas, sendo que, das onze escolas em
Francisco Beltrão, só não realizamos entrevistas em uma escola do campo e em outra
urbana.
4
Como aporte teórico, esta reflexão ancora-se em autores como Snyders
(2005), Freire (1987) e Groppo (2018).
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Franciele Maria David, Suely Aparecida Martins
308
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 305-330, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
O texto está organizado em três partes: a primeira destaca o processo das ocupa-
ções escolares no país, entendidas como primeira e segunda ondas. A primeira onda,
mais longa, começa em 2015 e termina em meados de 2016, com pautas mais direcio-
nadas às políticas educacionais neoliberais de seus respectivos estados. Na segunda
onda, destaca-se a pauta nacional e o afunilamento das políticas neoliberais. Sobre a
primeira onda, Groppo afirma:
Pode ser interessante separar o movimento das ocupações em duas ondas. A primeira, mais longa,
vai de dezembro de 2015 a julho de 2016. Caracteriza-se por ações de caráter estadual, cada qual
com seu próprio ciclo, em oposição às políticas educacionais de seus governos estaduais. Foi
restrita a alguns estados São Paulo, Goiás, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, e Ceará , e as
ocupações, com poucas exceções, se deram apenas em escolas públicas estaduais do Ensino Médio
(GROPPO, 2018, p. 91).
Já a segunda onda de manifestação ocorreu em 2016, entre outubro e dezembro,
começando no Paraná e estendendo-se para os demais estados e Distrito Federal. Neste
momento, o Brasil se encontra em outro momento político “já consolidado o golpe
institucional que resultou no impeachment de Dilma Rousseff, vivia-se plenamente o
novo tempo de brutais ataques aos direitos sociais que marca o governo de Michel
Temer” (COSTA; GROPPO, 2018, p. 91). Portanto, as pautas estudantis eram de
âmbito nacional, como a Medida Provisória n.º 746 (BRASIL, 2016a), da reforma do
ensino médio, e a PEC dos gastos, que congelou investimentos em educação, saúde e
segurança por vinte anos.
A segunda parte do artigo historiciza o processo das ocupações escolares no mu-
nicípio de Francisco Beltrão-PR e salienta o seu caráter formativo, evidenciado a partir
das experiências dos jovens. A terceira parte são as conclusões alcançadas.
Compreende-se que a categoria juventudes está sempre inserida numa realidade
concreta sendo, portanto, produto desta. As juventudes são entendidas como resultante
das relações sociais, de gênero, etnias, geracionais, econômicas, estruturais e de classe.
É o que destacam Margulis e Urrestim (1996, p. 14-15), quando escrevem: “Entonces,
acompañar la referencia a la juventud con la multiplicidad de situaciones sociales en que
esta etapa de la vida se desenvulve, presentear los marcos sociales históricamnete desarrolla-
dos que condicionan las distintas manera de ser joven”.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Ocupações escolares em Francisco Beltrão-PR: contribuições para a formação dos jovens
309
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 284-304, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
A categoria juventudes
[…] só existe na realidade social e, assim, deve figurar na análise sociológica em combinação com
outras categorias estruturantes modernas. Acaba tornando-se realmente estéril uma análise soci-
ológica dessa etapa da vida que não considere tal princípio: a existência, na prática social, de
juventudes, nunca de uma juventude isolada das outras experiências sociais e das outras categorias
modernas (GROPPO, 2005, p. 18).
Os jovens participantes das ocupações escolares em 2016 são sujeitos que têm
rostos definidos, que em sua maioria “pertencem à classe ou fração de classe de filhos
de trabalhadores assalariados ou que produzem a vida de forma precária por conta pró-
pria, no campo e na cidade, em diversas regiões e com particularidades socioculturais e
étnicas” (FRIGOTTO, 2004, p. 181). Ao fazer este recorte de classe, concorda-se com
Frigotto, autor segundo o qual
[…] poderemos levar em conta particularidades e até aspectos singulares sem cair numa perspec-
tiva atomizada. Os sujeitos jovens (ou as juventudes) teimam em ser uma unidade do diverso
econômico, cultural, étnicos, de gênero, de religião etc (FRIGOTTO, 2004, p. 181).
Em sua maioria, os jovens secundaristas que participaram das ocupações escolares
provêm das classes populares. São sujeitos que diariamente enfrentam as dificuldades
impostas pela sociedade capitalista. Eles e elas vivem um período de afunilamento das
políticas neoliberais, com o agravamento da crise do emprego, a retirada de direitos
com constantes ataques à educação pública. Esses jovens lutam para manter os poucos
direitos a eles assegurados e utilizaram-se da tática de ocupar para tencionar as estrutu-
ras sociais na busca de garantir um futuro com mais possibilidades.
Enfim, o movimento das ocupações secundaristas é entendido como estando in-
serido na luta de classes da sociedade capitalista. Nesse sentido, ele é expressão de suas
contradições. Ao mesmo tempo que a escola pública é estendida às classes populares
5
,
atendendo as exigências do capitalismo, ocorre uma ampliação para menos, já que é de
pouca qualidade e busca adequar os estudantes aos interesses dominantes
(ALGEBAILE, 2009). Todavia, a escola abriga interesses divergentes, apresentando
tensões e conflitos próprios da sociedade de classes. Como diz Snyders,
A escola não é o feudo da classe dominante; ela é terreno de luta entre a classe dominante e a
classe explorada […]. A escola é, simultaneamente, reprodução das estruturas existentes, correia
de transmissão da ideologia oficial, domesticação mas também ameaça à ordem estabelecida e
possibilidade de libertação (SNYRDERS, 2005, p. 105-106).
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Franciele Maria David, Suely Aparecida Martins
310
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 305-330, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
É assim que as ocupações estudantis são entendidas, como parte das tensões entre
as classes sociais no capitalismo. Nesse sentido, os estudantes, ao ocuparem as institui-
ções de ensino, ousaram disputar a escola pública, debatendo e resistindo às políticas
neoliberais.
Movimentos dos secundaristas: as ocupações escolares em 2015
e 2016
As ocupações escolares de 2016 são entendidas dentro de seu tempo histórico.
Tanto como a categoria juventudes, inserida numa realidade concreta e, portanto, pro-
duto refletido deste momento vivido, “a consciência emerge do mundo vivido,
objetiva-o, problematiza-o compreende-o como projeto humano” (FREIRE, 1987, p.
46). É dessa forma que se pode dizer que os estudantes secundaristas participantes das
ocupações têm o rosto marcado são filhos e filhas de trabalhadores e trabalhadoras.
Não fazem parte da classe média, sendo que estes foram protagonistas das lutas estu-
dantis em décadas passadas. Foram, por exemplo, estes jovens que se organizaram e
lutaram por reformas educacionais e sociais na sociedade brasileira e, depois, contra a
ditadura militar nas décadas de 1960 e 1970. Envolvidos na luta de classes do seu
tempo histórico, estes jovens aliaram-se às lutas das classes trabalhadoras. Já no con-
texto das ocupações escolares de 2015 e 2016, foram os jovens pertencentes, na sua
maioria, à classe trabalhadora os principais protagonistas e, consequentemente, trouxe-
ram consigo uma outra condição socioeconômica e cultural:
Cresceu o número de jovens que participam de “trabalhos” ou atividades dos mais diferentes
tipos, como forma de ajudar seus pais e compor a renda familiar. E isso não é uma escolha, mas
uma imposição de um capitalismo que rompe com elos contratuais coletivos e reduz a contratos
individuais e particulares (FRIGOTTO, 2004, p. 197).
Groppo (2018) escreve sobre o movimento das ocupações escolares e o separa
em primeira e segunda ondas, não como processos distintos, mas com pautas, inicial-
mente, localizadas, e depois, em âmbito nacional, unificados pela tática de ocupar e
pela rapidez, força e potência organizativa dos secundaristas.
A primeira onda começa entre o final de 2015 e início de 2016 em estados como
São Paulo, Rio de Janeiro, Goiás, Ceará e Rio Grande do Sul. Teve como pauta o
afunilamento de políticas educacionais neoliberais levadas a cabo por governos estadu-
ais. A segunda onda é caracterizada por ocupações escolares, iniciadas em outubro de
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Ocupações escolares em Francisco Beltrão-PR: contribuições para a formação dos jovens
311
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 284-304, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
2016, por estudantes secundaristas do Paraná e logo se estenderam a estudantes uni-
versitários e de outros estados. Importa destacar a rapidez e a força organizativa neste
momento, pois, dos 26 estados da Federação, em 22 houve ocupações escolares, além
do Distrito Federal. A pauta era de âmbito nacional e unificava os secundaristas contra
a reforma do ensino médio e a PEC dos gastos.
A primeira onda de ocupações escolares começou em São Paulo, quando este
anunciou, em 26 de outubro de 2015, a proposta da reorganização escolar. A Secretaria
de Educação divulgou o fechamento de 94 escolas, e os estudantes seriam remanejados
para unidades no entorno.
A SEE-SP utilizou dois argumentos centrais para justificar a necessidade da reorganização: a pos-
sível diminuição do número de matrículas e um estudo responsável por indicar que os/as
alunos/as de escolas de ciclo único teriam uma melhora de 10% em seu desempenho
(CORSINO; ZAN, 2017, p. 27).
Vale lembrar que, antes de 2015, as grandes capitais do país vivenciaram as Jor-
nadas de Junho.
6
Essas jornadas levaram muitos jovens à experiência das grandes
manifestações, antes observadas somente no período de redemocratização do país. Este
acontecimento enunciou, a muitos jovens, a possibilidade de mudança nas estruturas
do país por meio da ação direta e desobediência civil.
Em meio à resistência contra a brutal reação estatal que se seguiu, e sob a influência das periódicas
jornadas de luta contra os aumentos das tarifas do transporte público, que sempre contaram com
grande participação de secundaristas, os estudantes realizaram uma série de ações unificadas e
também descentralizadas, incluindo travamentos, marchas, e ações de agitação e propaganda,
sempre com forte conteúdo simbólico e mobilizando habilmente as chamadas redes sociais, com
que lograram reunir um grande apoio às suas reivindicações (CATINI; MELLO, 2016, p. 1180).
No documentário ACABOU A PAZ. Isto aqui vai virar o Chile! Escolas Ocupadas
em SP (PRONZATO, 2016), os estudantes que participaram das manifestações de ju-
nho levariam para as ocupações a experiência da organização política, as formas de
mobilização pelas redes sociais e a experiência da repressão da polícia.
A primeira a reagir ao plano desorganizador’ – como chamado pelos estudantes
foi a Escola Estadual Diadema, no ABC Paulista, em 9 de novembro de 2015, cerca
de um mês após as primeiras declarações da secretaria. No dia seguinte, a Escola Fernão
Dias, em Pinheiros, na Zona Oeste de São Paulo, foi tomada por estudantes, tornando-
se uma espécie deocupação modelo’.
Na sequência, as ocupações passaram a se capilarizar de maneira não ordenada e
extremamente rápida por todo estado. Norteados por palavras de ordem Não fechem
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Franciele Maria David, Suely Aparecida Martins
312
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 305-330, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
nossa escola!–, os estudantes ocuparam as unidades de ensino trancando portões,
vigiando janelas e acessos, encastelando-se nas unidades e fazendo uma defesa radical
pela sobrevivência do espaço escolar, agora em disputa (PAES; PIPANO, 2017, p.
11).
Rapidamente, em menos de um mês, mais de duzentas escolas foram ocupadas,
totalizando 213. Além disso, muitos estudantes que tinham evadido do espaço escolar
agora adentravam os portões para participar e defender este espaço, muitas vezes por
eles desconsiderados. O formato de como as ocupações eram organizadas permitia a
participação efetiva deles em todas as tarefas, a possibilidade de construir um currículo
que respondesse às reais necessidades, de temas e conteúdos pertinentes à realidade so-
cial, “as decisões são polifônicas e compartilhadas. Tudo ocorre na esteira do diálogo
como instrumento político” (PAES; PIPANO, 2017, p. 16).
“Escola ocupada não é escola paralisada” e, ao invés das aulas tradicionais motivo de muitas
queixas por parte dos alunos optou-se por novos formatos, dentre estes, as oficinas. Esses novos
formatos permitiram experimentações mais democráticas, como eram as próprias ocupações.
Também era liberado uma verdadeira “demanda represada” de pessoas e grupos com propostas
diversas de oficinas como música, ioga, dança, ecologia, debates sobre gênero e questões raciais,
entre outros (COSTA; GROPPO, 2018, p. 102).
Este formato democrático de discussões entre os estudantes e a planificação da
pirâmide estrutural do sistema de ensino possibilitaram uma ampla participação dos
alunos e alunas nas decisões das ocupações. Por exemplo, na escolha de temas para os
‘aulões’ e na efetiva presença em todas as atividades, o que espelhou “o tipo de organi-
zação interna das ocupações, que foi marcada pela estratégia da autogestão, com
assembleias diárias, nas quais as responsabilidades eram divididas a partir de discussões
e encaminhamentos coletivos, sem hierarquização entre os que ocuparam as escolas”
(MARTINS et al., 2016, p. 231). Este tipo de organização permitiu aos estudantes de
ensino médio “[…] experienciarem outras formas de relações dentro da escola, normal-
mente distante do dia a dia do processo formal de ensino-aprendizagem,
recorrentemente orientado pelo formalismo e autoritarismo das pedagogias de tipo tra-
dicional(MARTINS et al., 2016, p. 243-244).
A auto-organização, a autogestão, a ampla participação estudantil estão presentes
nas ocupações da primeira e da segunda onda, em 2015 e 2016. Os estudantes busca-
vam autonomia das ações e identidade. Por mais que algumas instituições, como
partidos políticos, coletivos e sindicatos, declarassem apoio às ações estudantis, estes
procuravam a construção autônoma do movimento.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Ocupações escolares em Francisco Beltrão-PR: contribuições para a formação dos jovens
313
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 284-304, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Além disso, os estudantes usaram as redes sociais como instrumento ágil e de
organização das manifestações e divulgação das atividades, enquanto o governo se uti-
lizava dos meios de comunicação tradicionais para enfraquecer o movimento. Os
estudantes utilizavam as mídias alternativas, aparelhos celulares, páginas de Facebook e
grupos de WhatsApp para demonstrar suas demandas. Carneiro, com base em Ortel-
lado, destaca:
Não apenas seriam estas ferramentas mais comuns de comunicação que essa geração domina, mas
também tendo em conta o cenário opressor e de vigilância das escolas estes seriam meios de
comunicação importantes em uma instituição avessa à assembleia, grêmios estudantis, conselhos
de escola de fato etc. Meios de comunicação subterrâneos em uma instituição contrária a comu-
nicação que não venham das instâncias do poder oficial, bem como esvaziadas de espaços públicos
de decisão. Enfim, uma escola em que espaços democráticos são dissolvidos no burocrático das
instituições. É contra essa escola que os estudantes investem suas forças e, não à toa, multiplicam
nos aplicativos e nas redes sociais suas demandas e, nesse meio, organizam suas batalhas para fazer
da escola algo melhor, ou seja, democrática (CARNEIRO, 2017, p. 140).
As páginas de Facebook e os vídeos compartilhados nas redes sociais foram ferra-
mentas de disputa contra o poder estatal instituído e contra a hegemonia da imprensa
tradicional. Dessa maneira, os estudantes encontraram instrumentos alternativos para
expressar e divulgar suas pautas. As mídias foram utilizadas também para divulgar a
opressão do poder estatal sobre os estudantes. Em todo enfrentamento com a polícia,
com representantes do estado ou mesmo com pessoas contrárias ao movimento, o ce-
lular estava presente para gravar e divulgar os atos. Com isso, os estudantes buscaram
dar ouvidos àqueles que, por décadas, foram receptores de informações, sem poder
questioná-las. Assim, seus corpos falavam e expressavam suas angústias e revoltas.
Nas diversas atividades dos estudantes nos ocupas, observa-se um questiona-
mento relativo à estrutura escolar vigente pautada numa pedagogia bancária (FREIRE,
1987). Ao mesmo tempo, estes estudantes não negam sua importância. Ao contrário,
eles a reafirmam:
Uma instituição que é vista (e com certa razão) como responsável por normatizar, cristalizar,
petrificar desejos e devires. Por outro lado, esta mesma escola, que é alvo de críticas e comumente
tomada como cenário dos mais “falidos”, viu-se defendida e valorizada por aqueles que são seus
atores centrais: os estudantes. Se não a escola que conhecemos, certamente a escola como utopia,
como espaço de invenção de si e do mundo, de criação coletiva, do saber como experiência, da
alteridade e da escuta (PAES; PIPANO, 2017, p. 8).
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Franciele Maria David, Suely Aparecida Martins
314
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 305-330, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Dessa forma, os jovens das ocupações paulistas, tanto quanto os outros movi-
mentos dos ocupas ocorridos no país, sentem, refletem, visualizam sua realidade social
e não a aceitam mais este formato estabelecido. Querem e exigem mudança.
Se é da igualdade entre os desiguais que trata a cidadania, a luta de ocupação das escolas públicas
aponta para outro processo de politização. Desse ponto de vista, ela não se limita a evidenciar o
conflito entre os que formulam as políticas educacionais e os que sofrem suas consequências; ao
contrário, ela escancara que não estão em jogo simples “diferenças” de nascimento, educação e
posição social, mas sim profundas desigualdades. A luta contra a reorganização mobilizou os
filhos e filhas de trabalhadores e trabalhadoras, pois afetou exclusivamente a escolarização desse
segmento da sociedade. E ao assumir a posição de resistência e confronto com a política
educacional atual, os secundaristas esboçam uma noção de educação política voltada para as
condições concretas de formação de classe (CATINI; MELLO, 2016, p. 137).
As manifestações estudantis se estenderam para outros estados brasileiros:
As ações coletivas enfrentavam, notadamente, políticas educacionais de acento neoliberal mar-
cando as gestões do PSDB […] à frente dos Estados de São Paulo, Goiás e Rio Grande do Sul
[No entanto,] houve rechaço à precarização da educação pública mantida no Rio de Janeiro (ges-
tão do PMDB […]) e no Ceará (na gestão do PT […]) (GROPPO, 2018, p. 94).
O avanço das políticas neoliberais e a constante precarização do ensino levaram
estudantes de Goiás a ocupar suas escolas. A principal pauta de luta era a revogação da
decisão do governador de entregar a gestão das escolas para organizações sociais, o que
significaria repasses de dinheiro público para entidades filantrópicas. Os estudantes
goianos começaram a ocupar entre dezembro de 2015 e janeiro de 2016. O número de
escolas ocupadas chegou a 27.
Inspirados no movimento estudantil paulista, estes estudantes usaram o mesmo
formato de organização interna nos ocupas. Apesar da repressão governamental e da
truculência policial, eles conseguiram se manter organizados ocupando dezesseis uni-
dades escolares durante dois meses. Estudantes foram agredidos, e professores foram
presos por defenderem seus alunos. Mesmo diante deste cenário, os estudantes perma-
neceram nas ocupações, conquistando a revogação do decreto do governador,
sobretudo
[...] as forças resistentes, portanto, são sempre duplas: são combativas, uma vez que enfrentam e
recusam determinadas relações de poder, mas, sobretudo criativas, já que incessantemente pro-
põe, de forma autônoma, a reorganização das relações sociais, não somente desafiando as normas
instituídas, como também propondo novas formas de convívio, amor e de maquinação comum
(ALVIM; RODRIGUES, 2017, p. 78).
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Ocupações escolares em Francisco Beltrão-PR: contribuições para a formação dos jovens
315
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 284-304, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
A potência criativa e organizativa das ocupações revela a busca pela construção
de um novo espaço escolar, onde a participação na construção deste mesmo espaço
esteja presente o sujeito aluno e onde uma pedagogia mais libertadora possa ser inau-
gurada (FREIRE, 1987).
No Rio de Janeiro, os estudantes, ainda no final de fevereiro de 2016, iriam ade-
rir à greve dos professores, “contra as condições precárias do sistema estadual de
educação, as ameaças de mais cortes nas verbas da educação dada a crise fiscal do estado
– e o autoritarismo da gestão de escolas e da crise da Secretaria Estadual de Educação”
(GROPPO, 2018, p. 95). Os professores reivindicavam um reajuste salarial, mudanças
nos calendários de pagamentos e melhores condições trabalhistas. A esta pauta os estu-
dantes acrescentaram a diminuição de alunos por sala de aula e melhorias na
infraestrutura.
A partir da iniciativa estudantil no Colégio Estadual Prefeito Mendes de Moraes, no período
entre abril e junho de 2016 mais de 70 escolas no Estado do Rio de Janeiro foram ocupadas em
defesa de uma educação pública e de qualidade e como instrumento de denúncia sobre a degra-
dação da educação pública no Rio de Janeiro (SILVA; MELO, 2017, p. 120).
Outras importantes manifestações estudantis aconteceram no Brasil, como no
Rio Grande do Sul, estado onde os estudantes, entre os meses de maio e julho, ocupa-
ram mais de 150 escolas, sendo 41 delas em Porto Alegre:
As motivações declaradas pelos estudantes eram variadas, girando em torno do apoio aos profes-
sores naquele momento, em forte mobilização devido aos parcelamentos de salários, não
pagamento do piso nacional e outras pautas, que levariam à decretação de uma greve a partir do
dia 16 de maio , da retirada de projetos de leis entendidos como nocivos, em tramitação na
Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul (ALERS); e da falta de investimentos
financeiros em educação por parte do governo do estado, o que estava impactando fortemente
no cotidiano escolar em virtude da precarização da estrutura de ensino como um todo (SEVERO;
SEGUNDO, 2017, p. 74-75).
Logo no início, os estudantes buscaram se manter abertos ao diálogo, porém o
governo mostrou-se alheio ao movimento, pois acreditava que as direções das escolas
conversariam com os alunos e resolveriam a questão. No entanto, a partir da terceira
semana o movimento se fortaleceu e outras escolas foram ocupadas. O então secretário
de Educação Vieira da Cunha, que estava de férias, ao retornar visita as escolas e senta-
se para conversar com alguns estudantes. Neste mesmo dia, porém, o secretário deixaria
o cargo.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Franciele Maria David, Suely Aparecida Martins
316
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 305-330, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
As manifestações se intensificaram, e a tentativa de negociação com o novo se-
cretário somente aconteceu quando mais de setenta alunos ocuparam a Assembleia
Legislativa, em 13 de junho de 2016:
Após um dia de ocupação na Assembleia Legislativa e pressão para as negociações, os estudantes
desocuparam o espaço com a promessa de um acordo que seria firmado entre o governo e os
jovens secundaristas. Na quarta-feira foi realizado o acordo (SILVA, B.; SILVA, E., 2017, p.
240).
No entanto, algumas escolas o aceitaram o acordo e continuaram ocupadas
alegando que faltaram mais discussões coletivas sobre o acordo firmado, sendo que estas
escolas seriam desocupadas em 24 de junho de 2016.
No Ceará, entre maio e agosto de 2016, estudantes secundaristas ocuparam es-
colas em apoio à greve dos professores. A paralisação durou 107 dias e, neste ínterim,
mais de sessenta escolas foram ocupadas. Apesar da intensa mobilização, os professores
terminariam a greve sem nenhum ganho para a categoria. Os estudantes reivindicavam
melhorias na qualidade do ensino, na infraestrutura e merenda. No entanto, o governo
buscou criminalizar o movimento, abrindo um inquérito policial contra 320 alunos,
alegando supostos danos ao patrimônio público. No Espírito Santo, cerca de cinquenta
escolas foram ocupadas em menos de duas semanas:
A disseminação dos “ocupas” não estava desconectada da rede de resistências secundaristas que
já operava por meio de protestos, movimentos, coletivos e até mesmo tentativas abortadas de
auto-organização que vinham fazendo a geografia escolar oscilar (ALVIM; RODRIGUES, 2017,
p. 86).
Os estudantes capixabas ocuparam as escolas contra as medidas governamentais,
mas também contra as relações de poder instauradas nas instituições de ensino, que
cerceiam suas liberdades. É o que registram Alvim e Rodrigues (2017, p. 89) quando
escrevem: “Estamos vivenciando um processo de resistências, no sentido forte do
termo. São movimentos contra as discriminações, as abordagens tendenciosas das mí-
dias tradicionais, a centralização administrativa das escolas, a mercantilização da
educação e a certas propostas de lei governamentais”.
As ocupações estudantis sofreram repressão policial e intimidação do estado. Em
Porto Alegre, por exemplo, em 17 de maio os estudantes foram violentamente agre-
didos e retirados da Secretaria de Fazenda. Os menores de idade foram encaminhados
a Delegacia de Polícia para Crianças e Adolescentes e os maiores de idade chegaram a
passar horas no presídio central” (SILVA, B.; SILVA, E., 2017, p. 241). Em São Paulo,
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Ocupações escolares em Francisco Beltrão-PR: contribuições para a formação dos jovens
317
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 284-304, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
havia pessoas seguindo os jovens, principalmente viaturas da polícia, que ficavam ron-
dando a escola o tempo inteiro. Um dos alunos ressaltou que foi seguido, abordado
pela Força Tática da Polícia Militar de São Paulo e questionado se era ocupante. O
rapaz negou. (CORSINO; ZAN, 2017).
A forma repressiva como o estado utiliza o aparato jurídico-policial e a imprensa
tradicional dimensiona a força e a potência do movimento das ocupações:
A resistência é essa luta constante das comunidades pela sua existência, pelo direito ao território,
às identidades e as culturas, constituindo-se em um devir [assim] é na esperança e na luta que
aparecem as brechas para a educação conscientizadora e serão palco para as vivências emancipa-
tórias (LARCHERT, 2017, p. 15).
Portanto, na reflexão a partir do meio em que estão inseridos os secundaristas
encontram formas de insurgirem e construírem estratégias de luta e resistência com
inventividade nas suas práticas:
[…] ou sua capacidade de fugir do script tantas vezes encenado. Se o movimento manteve, em
grande medida, sua autonomia, superando a submissão esperada pelas organizações políticas tra-
dicionais, é porque respondia a uma necessidade histórica tanto pela forma quanto pelo
conteúdo da luta (CATINI; MELLO, 2016, p. 1182).
Após esta primeira onda de ocupações, os estudantes retomariam esta tática de
luta, agora contra a MP 746 (BRASIL, 2016a) e a PEC dos gastos de 2016. Como já
dito, esta medida estabeleceu o congelamento por vinte anos dos investimentos em
saúde e educação. Além disso, reagiam ao projeto Escola Sem Partido (BRASIL,
2016c). Esta proposta trata do cerceamento nas salas de aulas brasileiras de discussões
no campo político e a exclusão de debates sobre gênero, raça, sexualidade e religião nas
escolas. O Escola Sem Partido parte da ideia de que há, na escola brasileira, a “prática
de doutrinação política e ideológica” (SILVA; MELO, 2017, p. 122).
Groppo (2018) entende as ocupações no segundo semestre de 2016 como um
processo distinto, mas não isolado das outras manifestações estudantis no país. Além
disso, o fazer-se das juventudes e dos movimentos estudantis permaneceria ativo na
constituição do levante estudantil da segunda onda, em 2016.
A segunda onda das ocupações tem pautas nacionais a contrarreforma do en-
sino médio e a PEC dos gastos. Vale lembrar que estas ações autoritárias aconteceram
na sequência de um golpe jurídico, parlamentar e institucional, legitimado pela im-
prensa hegemônica do país, que destituiu a presidenta eleita Dilma Rousseff (PT),
assumindo em seu lugar o então vice-presidente Michel Temer (MDB).
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Franciele Maria David, Suely Aparecida Martins
318
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 305-330, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
A segunda onda se inicia em contexto em que o golpe institucional se consolidou. Ela contesta
as primeiras medidas do governo Temer com o anunciado acento neoliberal stricto sensu. As ocu-
pações passam a ser a resistência e luta contra a regressão de direitos sociais, regressão anunciada
pelo caráter não-dialógico da edição da MP 746 e pelas regressivas dessa mesma MP, consolidada
com a aprovação da PEC 142/55, que claramente privilegia a destinação dos recursos públicos
socialmente angariados para interesses particulares, em especial do capital financeiro, princi-
palmente o especulativo (GROPPO, 2018, p. 111).
As ocupações escolares da segunda onda começaram em outubro de 2016. A ur-
gência para aprovação das medidas anunciadas e a falta de debates com professores,
estudantes e sociedade organizada suscitaram nos estudantes secundaristas, primeira-
mente, e nos estudantes universitários, por conseguinte, um levante estudantil
envolvendo mais de 1.200 escolas, 139 universidades em 22 estados e Distrito Federal.
Destas, 850 escolas e quatorze universidades são do Paraná, e ainda três núcleos regio-
nais de educação.
As ocupações de escolas ocorridas no ano de 2016 foram, sem sombra de dúvidas, um dos mais
impactantes eventos, no território nacional, em defesa da educação como direito na história
recente da educação pública, gratuita e de qualidade. Mais do que isso: teve como protagonistas
jovens secundaristas, que conseguiram pautar politicamente o problema das contrarreformas na
educação, impondo à mídia e à sociedade a reflexão sobre a necessidade de discutir o desmonte
da educação pública no Brasil (ALMEIDA; MARTINS, 2018, p. 175).
Importa, aqui, destacar que muitos alunos participantes dos ocupas no Paraná
estiveram presentes nas greves dos professores em 2015 neste estado. Isto pode ser ob-
servado no relato da entrevistada Maria: Sim eu participei da greve dos professores
que teve um ano antes se não me engano, e pra mim fez uma diferença muito grande,
tanto na forma de pensar e de defender o que eu penso(MARIA, entrevistada em
2018). Os professores lutavam contra os ataques à previdência e ao atraso no repasse
de verbas, entre outras pautas da categoria.
Em 29 de abril de 2015, professores, funcionários e demais categorias mobiliza-
ram-se em frente à Assembleia Legislativa do Paraná tensionando a retirada do projeto
de lei que alterava o Fundo Previdenciário. O então governador Carlos Alberto Richa
(PSDB), juntamente com secretário de segurança Fernando Francischini, jogaram os
policiais da tropa de choque para cima dos manifestantes, massacrando-os com balas
de borrachas, sprays de pimenta e bombas de gás lacrimogêneo. Foram mais de duas
horas de ataque, sendo que aquela tarde jamais será esquecida pelos professores e fun-
cionários estaduais. Será lembrada como “O massacre do dia 29”.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Ocupações escolares em Francisco Beltrão-PR: contribuições para a formação dos jovens
319
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 284-304, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
A participação de muitos estudantes no massacre de 29 de abril “serviu para ama-
durecer a experiência política de jovens que nunca tinham participado de outros
movimentos sociais” (BRAGA, 2017, p. 237). Os estudantes sentiram a força e repres-
são estatal, tanto na forma física quando na forma simbólica.
Nas ocupações de 2016, os estudantes revelam um formato de organização e
construção das ocupações que busca, nos movimentos anteriores, inspiração e modelo.
Assim, para as ocupações iniciarem, eles faziam assembleias para decidir coletivamente
sobre ocupar ou não as escolas. Todos os estudantes poderiam se manifestar e opinar,
decidindo em conjunto. É importante destacar que, em algumas escolas, os grêmios
estudantis foram imprescindíveis para a organização. Em outras, porém, os alunos se
organizaram independentemente das entidades representativas.
Dentro dos ocupas, os estudantes elegiam comitês de organização: “A gente tinha
essa divisão para não ficar muito sobrecarregado também porque precisávamos nos or-
ganizar, a gente tinha que se manter(LUIZA, entrevistada em 2018).
No formato democrático e horizontal das tomadas de decisão, as pautas eram
amplamente discutidas em assembleias quase diárias, e comissões eram criadas para
cumprir tarefas. Havia certa sociabilidade na divisão de funções, desconstruindo este-
reótipos e discursos de capacidade de gênero. Segundo Prates et al. (2017, p. 47), “o
que interessava mesmo era a constituição de um espaço político, muitas vezes público,
dos dois gêneros ou nenhum, tamanha era a diversidade”.
Os jovens também buscaram o distanciamento das formas tradicionais de reivin-
dicação lideradas por partidos políticos, sindicatos ou movimentos religiosos,
caracterizando independência e autonomia. Estas juventudes se afastaram da estrutura
organizativa mais verticalizada presente nas instâncias representativas tradicionais do
movimento estudantil. Prates et al. (2017, p. 9) reiteram esta ideia nos seguintes ter-
mos: “Assim, colocava-se à sociedade a necessidade de compreender os impactos dessa
nova configuração (constituída de jovens auto-organizados) tomando decisões compar-
tilhadas e sem tutela deresponsáveis[...] enfim independentes!”
Com ações internas nas ocupações, os estudantes buscaram demarcar seu territó-
rio, com autonomia e clareza em seus objetivos. Em muitos cartazes, eram perceptíveis
os recados: ‘Ocupado, porém não desocupados! ou: ‘Não temos o direito de abrir mão
de nossos direitos!’. Em vários momentos, o movimento foi acusado de ser manipulado
pela esquerda política ou pelo sindicato dos professores do Paraná.
Em Francisco Beltrão, as ocupações começaram em 11 de outubro de 2016 no
Colégio Estadual Léo Flach, na periferia do município. Após a primeira ocupação, ou-
tros dez colégios foram ocupados, sendo o segundo na região central: o Colégio
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Franciele Maria David, Suely Aparecida Martins
320
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 305-330, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Estadual Mário de Andrade. Porém, por ofertar três cursos profissionalizantes e o en-
sino médio regular, este colégio atende estudantes de todos os bairros da cidade e
muitos vêm das cidades vizinhas.
As ocupações em Francisco Beltrão
Assim como aconteceu no restante do Paraná, as ocupações em Francisco Beltrão
foram procedidas de acontecimentos importantes que impactaram para que as ocupa-
ções se realizassem no município, e que demonstram um processo participativo e de
envolvimento de jovens secundaristas. Jovens beltronenses estiveram presentes na greve
dos professores em 2015. Nesse município, a greve teve adesão de mais de 95% dos
professores e funcionários da educação. Foi um momento importante para a categoria,
com várias passeatas pela cidade, debates e aulõespúblicos para estudantes e comuni-
dade na praça central. Em tal processo, houve a participação dos jovens, conforme visto
a seguir:Sim eu participei de manifestações como as greves dos funcionários públicos
do Estado do Paraná(LUCAS, entrevistado em 2019). Sim eu participei da greve
dos professores que teve um ano antes, se não me engano(LUIZA, entrevistada em
2018).
Muitos dos jovens que participaram das ocupações estiveram em outras manifes-
tações anteriores ocorridas em Francisco Beltrão, como as manifestações pelos direitos
das mulheres, contra o feminicídio, contra o machismo e contra a homofobia, e a par-
ticipação em atividades contrárias à Lei da Mordaça. Para os jovens entrevistados, a
participação nestas manifestações foi significativa: “[...] porque nos ajudaram a criar
uma resistência antes das ocupações(LUIZA, entrevistada em 2018). Teve aquela do
começo do ano da mordaça que deu dois mil e poucos alunos que foi bem relevante
sabe, porque quando você participa desses movimentos você tem um crescimento pes-
soal” (PAULO, entrevistado em 2018).
Considera-se importante a participação de muitos estudantes em manifestações
anteriores às ocupações. Isso revela uma experiência formativa e o envolvimento polí-
tico destes jovens, que ficariam mais explícitos com as ocupações.
Interessa destacar também que, no período das ocupações no Paraná, os educa-
dores novamente entraram em greve. Ela começou em 11 de outubro de 2016, após
deliberação em assembleia. A principal pauta era o pagamento da data-base, que mais
uma vez o governo estadual de Beto Richa se recusava a pagar. Os professores se man-
tiveram em greve por quinze dias e declararam apoio às ocupações estudantis, assim
como os estudantes declaram apoio à greve dos professores. Mas, diferentemente da
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Ocupações escolares em Francisco Beltrão-PR: contribuições para a formação dos jovens
321
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 284-304, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
greve anterior, nesta a adesão dos docentes foi menor, gerando vários impasses entre os
que defendiam a greve e os que eram contrários.
As ocupações começaram no Paraná em 3 de outubro de 2016. A primeira ins-
tituição a ser ocupada foi o Colégio Estadual Padre Arnaldo Jansen, na periferia de São
José dos Pinhais, município localizado na região metropolitana de Curitiba. Esta ocu-
pação desencadeou uma onda de ocupações por todas as regiões do estado. A cada
instante uma nova escola era ocupada. Os estudantes beltronenses acompanhavam pe-
las redes sociais o processo de ocupação:
A minha indignação, porque quando começou a onda das ocupações eu percebi que era algo
muito importante e que a gente deveria tomar frente e começar também em Beltrão (PAULO,
entrevistado em 2018).
motivados pelas ocupações que aconteciam no estado, os jovens participaram
de rias atividades realizadas no município tendo como pauta as reformas que vinham
sendo encaminhadas pelo governo Temer. No domingo de 9 de outubro de 2016,
estudantes secundaristas e universitários, assim como lideranças de entidades de traba-
lhadores, reuniram-se para discutir e debater a MP 746/2016 (BRASIL, 2016a).
No dia seguinte, estudantes secundaristas organizaram uma passeata contra a re-
tirada das quatro disciplinas do Ensino Médio (Filosofia, Sociologia, Artes e Educação
Física), como previsto na medida provisória, conforme publicação do Jornal de Beltrão:
“Ontem de manhã, centenas de estudantes de vários colégios estaduais participaram de
caminhadas pelas ruas, portando cartazes e entoando palavras de ordem contra a MP.
No calçadão eles fizeram um ato público” (PEDRON, 2016, p. 2). A mobilização co-
meçou com o grêmio estudantil do Colégio Estadual Mario de Andrade (CEMA),
envolvendo os grêmios estudantis de outras escolas.
Em 11 de outubro de 2016, aconteceu a primeira ocupação em Francisco Bel-
trão, no Colégio Estadual Leo Flach:
Na noite anterior às ocupações os alunos discutiram o tema com o professor de filosofia, logo
após começamos a discutir com os outros estudantes do colégio. Na manhã seguinte, quando a
direção, professores e funcionários chegaram, a escola já estava ocupada (ERNESTO, entrevis-
tado em 2019).
Depois foi a vez de os alunos do Colégio Estadual Mario de Andrade realizar a
ocupação desta escola, que foi registrada na página do Facebook Ocupa Paraná. Aí, os
secundaristas assinalavam cada colégio que era ocupado e, ao mesmo tempo, reforça-
vam as hashtags #ForaTemer, #ForaMendonça, #ForaRicha.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Franciele Maria David, Suely Aparecida Martins
322
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 305-330, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Um elemento que merece destaque nas ocupações escolares no Paraná, tendo
sido observado em Francisco Beltrão, foi a utilização das redes sociais. Esse instrumento
foi utilizado na pré-organização dos ocupas e na manutenção das atividades. Foi usado
também após as ocupações, como forma de manter vínculos entre os participantes. Os
secundaristas utilizariam as redes sociais como uma forma organizativa velada ou como
“meios de comunicação subterrâneos em uma instituição contrária a comunicados que
não venham das instancias do poder oficial, bem como esvaziada de espaços públicos
de decisão” (CARNEIRO, 2017, p. 140). Ao usar os meios de comunicação virtual, os
‘secundas’ (estudantes secundaristas) se distanciavam dos meios de comunicação tradi-
cionais e faziam a própria divulgação do movimento quanto a suas ações e objetivos,
muitas vezes contrapondo-se ao que era divulgado pela imprensa tradicional.
No processo de ocupação, uma das principais dificuldades encontradas pelos es-
tudantes foi garantir a alimentação:
Quando a gente entrou não tínhamos nada. Eu falei como a gente vai viver? A gente se organizou,
pegamos umas folhas sobre a impressão da Reforma do Ensino Médio, sobre a PEC, e a gente
foi de mercado em mercado, aí teve um mercado que deu uma caixinha de bolacha, teve um
mercado que deu uma caixinha de leite em todos os mercados da região (PAULO, entrevistado
em 2018).
Os estudantes se organizaram para buscar ajuda na comunidade, ao mesmo
tempo que explicavam os motivos das ocupações. Além disso, o auxílio na alimentação
e em outros materiais necessários vinha, em muitos momentos, das próprias famílias e
dos professores que apoiavam a iniciativa.
Além disso, os estudantes utilizaram-se de comissões para organizar e estruturar
os ocupas, de forma semelhante aos estudantes nas demais ocupações de 2015 e 2016:
A organização de uma comissão de responsável por essa parte, tanto para o controle
do estoque de mantimentos [quanto para a] preparação de refeições e organização de
pedidos e solicitações de doações” (SILVA; SILVA, 2017, p. 236).
Na maioria das escolas, havia um cartaz expondo as regras: falar sobre a ocupação;
depredar patrimônio público é crime; respeitar a todos, professores, funcionários e alu-
nos; colaborar com os colegas; colocar o lixo no lixeiro; não desperdiçar água, comida,
tempo e nem energia; evitar brincadeiras de mau gosto, xingamentos e palavrões. Para
que estas regras fossem postas em prática e com responsabilidade, os ocupas organiza-
vam assembleias e dividiam as tarefas de cozinha, limpeza, segurança e formação.
Conforme Paes e Pipano (2017, p. 16),
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Ocupações escolares em Francisco Beltrão-PR: contribuições para a formação dos jovens
323
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 284-304, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
As ocupações nos mostram, contudo, e a produção de diferentes formas de gestão da estrutura e
dos códigos escolares. Como se o poder, não mais hierarquizado, se esvaziasse em função de
molecularização de suas operações. Um poder que não mais encarna na figura de um chefe ou de
um líder, tampouco do carrasco ou de outros símbolos que representam o opressor. Mas que,
ainda assim, tolera a organização, a divisão do trabalho, a rotina, o lazer, etc.
Nos ocupas, é possível reconhecer a dissolução dos poderes hierarquizados pre-
sentes na gestão e na organização escolares atuais. Isso revela a construção efetiva de
uma forma escolar horizontalizada, que aponta os anseios estudantis por participação
direta nas decisões e na estruturação do espaço escolar.
Então sempre tinha alguém, por exemplo: o que a gente tinha que fazer de almoço hoje? A gente
tinha ali mais ou menos as pessoas que se organizavam [...] A gente também cuidava das próprias
doações que a gente recebia, então a gente conseguia ter um caixa mais ou menos ali para a gente
comprar para a gente: “Ah precisa comprar pão, precisa comprar café”, e a gente conseguia ter
essa divisão e a organização [...]. Então, a gente sempre se dividia (CARLOS, entrevistado em
2019).
A adoção de escalas e a divisão das tarefas demonstram uma articulação do mo-
vimento em âmbito estadual e com as manifestações da primeira onda. Conforme
reportagem em CartaCapital, “Todos reproduzem um sistema parecido. Os ocupantes
dividem-se em comissões de comunicação, segurança e cozinha, entre outras. Cada qual
fica responsável por atividade de uma área” (TRUFFI, 2016, s.p.).
Os secundaristas se preocupavam em tornar os ocupas espaços de aprendizado e
debates entre os jovens, especialmente em relação às reformas que vinham acontecendo
no país. Nesse sentido, via Facebook, eles organizaram uma ficha em que convidavam
pessoas para contribuírem para as atividades nas escolas, através de iniciativas formati-
vas e culturais. Assim, rodas de conversas, palestras e debates, saraus e oficinas fizeram
parte das atividades dos jovens no período das ocupações:
A gente abriu um link para que as pessoas realmente se voluntariassem pra dar aula, pra dar curso,
pra fazer debates com a gente. Então, estava aberto o diálogo […] geralmente os minicursos eram
no período da tarde e da noite (FERNANDO, entrevistado em 2018).
Algumas destas atividades foram abertas para a participação da comunidade ex-
terna, conforme evidenciado em convite feito por alunos ocupados do Colégio Estadual
Suplicy e citado por Martins (2018, p. 159-160): “Aproveitamos este para convidar
toda a comunidade escolar para uma palestra e debate onde debateremos a PEC 241, a
MP 746 e as ocupações nas escolas que ocorrerá domingo às 19h30min, no Colégio
Suplicy. Sua presença é muito importante!”.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Franciele Maria David, Suely Aparecida Martins
324
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 305-330, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
De certa maneira, este formato organizativo revela que também, em Francisco
Beltrão, os estudantes experienciavam formas autônomas e democráticas de organiza-
ção.
Outro elemento importante nas ocupações em Francisco Beltrão foram as rela-
ções conflitantes estabelecidas com a comunidade externa. Aqui, vale lembrar que “a
ideia de autoformação não prescinde jamais do conflito e da relação com o outro, re-
presentado seja por uma classe, ou seja, por indivíduos tomados isoladamente” (FARIA
FILHO, 2008, p. 250). Assim, embora contassem com o apoio de pais e professores,
os estudantes também eram pressionados por pais, professores e alunos contrários ao
movimento, pela imprensa local e pelo Estado, representado na cidade pelo Núcleo
Regional de Educação e pela Justiça.
Conforme Martins (2018), à semelhança de outros lugares, uma das principais
reclamações dos estudantes dizia respeito à falta de debates e participação dos interes-
sados em relação à reforma do ensino médio. Para conter as ocupações e demonstrar
que o governo estava aberto ao diálogo com os estudantes, em 13 de outubro de 2016
foi organizado pelos núcleos regionais de educação paranaenses um debate sobre a re-
forma. Em Francisco Beltrão, a atividade aconteceu no Anfiteatro da UNIOESTE,
reunindo professores e estudantes. Seguindo a decisão da maioria do estado, a proposta
da reforma foi rejeitada.
Por sua vez, durante as ocupações os estudantes enfrentaram pais e professores
contrários, e houve ameaças nas redes sociais:
Nós tivemos alguns embates de frente, mas tudo foi resolvido. Alguns professores tentaram
confrontar, arrombar a escola para tentar dar aula. Os pais, eu lembro, teve um movimento dos
pais que eram contra as ocupações, eles iam na frente das escolas reivindicar. (MARIA,
entrevistada em 2018)
Eu recebi ameaças no meu Facebook, que eu participei de algumas entrevistas e o meu
WhatsApp, o meu Facebook, tinha ameaça de gente falando que ia mandar a política me bater
(LUIZA, entrevistada em 2018).
Esta reação de parte da sociedade contra as ocupações ficou mais explícita a partir
da campanha Desocupa, reunindo pais, alunos, diretores e professores, e amplamente
divulgado pelos meios de comunicação locais. A campanha aconteceu em todo o Pa-
raná contando com o apoio do governo estadual e suas respectivas lideranças nos
municípios, assim como chefes dos núcleos regionais de educação.
Em Francisco Beltrão, o noticiário local cobriu, com detalhes, todos os movi-
mentos organizativos da campanha Desocupa. Os integrantes se reuniram com a chefe
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Ocupações escolares em Francisco Beltrão-PR: contribuições para a formação dos jovens
325
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 284-304, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
do Núcleo Regional de Educação para discutir e foram na frente das escolas acompa-
nhados do jornal, rádio e de advogados para pressionar os participantes a terminarem
com o movimento. Não obtendo êxito, juntamente com a promotoria pública, pro-
moveram um debate para desmobilizar o movimento. Porém, apesar da pressão, os
estudantes anunciaram que só saíram das escolas por meio de uma medida judicial. E
foi o que aconteceu: no dia seguinte da audiência com a promotora, os estudantes re-
ceberem o mandado de reintegração de posse e, assim, desocuparam as escolas.
A experiência das ocupações, no seu processo organizativo, nas relações estabele-
cidas com a comunidade externa, nos conflitos internos e externos vivenciados, foi
importante para os aprendizados dos jovens em Francisco Beltrão:
O que eu aprendi? Eu aprendi o que eu precisava, eu aprendi muito mais que eu esperava. Co-
nhecendo a PEC a MP, estudando, fazendo textos, fomos conhecer a faculdade Unioeste,
ouvimos várias opiniões diferentes, aprendi muita coisa. Aprendi o convívio com pessoas, eu
aprendi a ser uma prioridade no estudo, eu aprendi como dar o primeiro passo para viver, é isso
que eu aprendi. O primeiro passo para viver é o esforço, a dedicação, a luta. Sem sofrimento não
há vitória, sem luta não há conquista, sem suor não há gratidão. Então, o primeiro passo da vida
é ser firme e forte para vencer amanhã. Esse é o primeiro passo (ERNESTO, entrevistado em
2019).
O homem se constitui em ação dialógica com seus pares e seu meio social, sendo
na palavra, no trabalho, na ação-reflexão que os homens se fazem como práxis num
processo formativo mediatizados pelo mundo (FREIRE, 1987). Portanto, a participa-
ção dos secundaristas nas ocupações concretiza a possibilidade de estes jovens se
perceberem como sujeitos capazes de desvelar a realidade objetiva e agir reflexivamente,
buscando sua transformação.
Tal afirmação pode ser corroborada se o ressurgimento da luta estudantil no mu-
nicípio após as ocupações for considerado, o que pode ser observado pela reativação da
União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES) beltronense, da União da Ju-
ventude Socialista (UJS), do Coletivo Juventude de Luta FB e dos coletivos de alguns
partidos, como o PT e Psol. Isso fica evidenciado também nas diversas atividades orga-
nizadas pelos estudantes no município após as ocupações: o congresso que elegeu a
chapa ‘Vem Quem Tem Coragem’ (2017); o projeto ‘Doe uma Aula’, preparando os
estudantes para o Exame Nacional do Ensino Médio (2017); a participação no 42.
o
Congresso da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (CONUBES), em Goiâ-
nia (2017); o protesto do desfile de 7 de Setembro (2017); a discussão do projeto Escola
Sem Partido na câmara municipal de Francisco Beltrão (2018); o 3.
o
Encontro Regio-
nal de Grêmios Estudantis (2018); o apoio aos professores de Curitiba em 30 de agosto
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Franciele Maria David, Suely Aparecida Martins
326
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 305-330, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
(2018); a participação no 53.
o
Congresso da União Paranaense dos Estudantes Secun-
daristas (CONUPES), em Guarapuava (2019); a audiência pública sobre o projeto
Escola 2030 (2019); a participação na Marcha das Mulheres, em 8 maio (2019); a
participação na 11.
a
Bienal da UNE (2019); a organização e participação no ato contra
os cortes na educação (2019); entre outras atividades desenvolvidas pelos jovens e que
são indicativos da importância formativa das ocupações para eles.
Conclusão
As ocupações em Francisco Beltrão duraram quinze dias, porém possibilitaram
aos estudantes secundaristas a compreensão de que a escola é um direito social e um
território em disputa. Snyders (2005) afirma, com razão, que o caráter reprodutivo da
escola não anula as possibilidades de sua participação nos processos de transformação
social. “Pelo contrário, marca o combate a ser travado, a possibilidade desse combate
que foi desencadeado e que é preciso continuar. É esta dualidade, característica da
luta de classes, que institui a possibilidade objetiva da luta” (SNYDERS, 2005, p. 103).
A luta de classes se faz presente no movimento estudantil
7
, seja nas lutas travadas na
ditadura militar, seja nas diversas mobilizações em defesa da educação pública, por po-
líticas inclusivas e contra as políticas neoliberais que vêm sendo implantadas no Brasil
desde 1990, mas que se acentuam a partir de 2015.
Além disso, as ocupações revelam que, apesar de todas as dificuldades da escola
pública, esta, como espaço de domesticação/libertação, ainda possibilita a reflexão do
ser humano no mundo (FREIRE, 1987). Com base em Freire (1987), compreende-se
que o ser humano, ao sair da sua condição de oprimido, modifica o ser social, e este,
ao ser modificado, também modifica a forma de se relacionar com o mundo, em todas
suas dimensões. Assim, a escola como espaço em disputa também possibilita mudanças
significativas na formação do ser humano. Nas ocupações aqui analisadas, a transfor-
mação pessoal ficou perceptível, pois muitos secundaristas revelaram aprendizados
políticos diante do que acontecia. Ao se apropriarem deste local de fala e do campo em
disputa, muitos jovens foram modificados em seu ser social, o que possibilitou uma
nova experiência de se relacionar com o outro e com o mundo.
Nas entrevistas, esta percepção é aprofundada:
O que me levou foi à vontade de ser ouvida, estava vendo muita coisa acontecer que eu não
concordava [...] Você quer ser ouvido você precisa participar. A gente participa quando a gente
não concorda com o que está acontecendo (LUIZA, entrevistada em 2018).
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Ocupações escolares em Francisco Beltrão-PR: contribuições para a formação dos jovens
327
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 284-304, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
O caráter formativo das ocupações se constitui na luta dos estudantes por uma
escola pública e de qualidade, também por ensaiarem um novo formato escolar nos
ocupas a partir da auto-organização dos jovens, o que possibilitou aos estudantes vi-
venciarem a experiência de uma democracia ampliada, na qual todos os sujeitos
envolvidos agem efetivamente no processo, potencializando o caráter formativo neste
transcurso. É nesse sentido que as assembleias, as divisões de tarefas, os turnos de tra-
balho, o currículo alternativo, com palestras, minicursos, saraus de música, poesia,
dança, tornar-se-iam uma característica distinta dos ocupas, revelando uma alternativa
para a forma escolar e marcando a experiência formativa dos sujeitos. Logo, é possível
afirmar que o movimento das ocupações, em Francisco Beltrão, foi significativo para o
processo formativo dos jovens envolvidos direta ou indiretamente nelas, tendo também
reflexos na reorganização do movimento estudantil na cidade.
Notas
1
Utilizamos a nomenclatura PEC dos gastos, como também foi denominada no período.
2
Importa referir que a Escola do Campo Paulo Freire, que foi ocupada, localiza-se em um assentamento
do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), conhecido por Assentamento Missões,
no interior de Francisco Beltrão.
3
Este trabalho de pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética da UNIOESTE, sob o Parecer n.°
2.828.179. Os nomes dos entrevistados foram alterados de modo a preservar suas identidades.
4
Na escola do campo, dada a localidade, tivemos dificuldade para estabelecer contato e, na escola loca-
lizada no perímetro urbano, os jovens, quando procurados, não se dispuseram a participar.
5
Vale lembrar que, após a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 (cf.
BRASIL, 1998) e com a universalizão do acesso escolar, crianças e jovens das classes populares que
se encontravam fora do espaço escolar adentram o sistema de ensino e ocupam seus lugares.
6
No Brasil, em 2013, aconteceram as Jornadas de Junho que começaram em São Paulo a partir da
manifestação de jovens universitários integrantes do Movimento Passe Livre. Se, inicialmente, a ques-
tão do transporte público foi a causa fundamental das manifestações, na medida em que elas
espontaneamente se espalharam pelo país, conseguindo a adesão de diferentes segmentos da sociedade
a maioria jovem , o movimento foi tendo uma pluralidade de reivindicações com pautas difusas e
variadas, as quais já evidenciavam a polarização político-ideológica que tomou conta do país a partir
de 2015 (MARTINS, 2018).
7
Entendemos que o movimento estudantil não é homogêneo, mas resultado das contradições da socie-
dade capitalista. Logo, em seu interior podemos observar interesses e posições políticas e ideológicas
divergentes e contraditórias. Aqui, destacamos as lutas que se alinham aos interesses das classes traba-
lhadoras.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Franciele Maria David, Suely Aparecida Martins
328
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 305-330, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Referências
ALGEBAILE, Eveline. Escola pública e pobreza no Brasil. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009.
ALMEIDA, Jane Barros; MARTINS, Marcos Francisco. As ocupações das escolas no Paraná:
elementos para a retomada da grande política e dos novos projetos societários. In: COSTA,
Adriana Alves Fernandes; GROPPO, Luís Antonio (Org.). O movimento de ocupações estudantis
no Brasil. São Carlos: Pedro & João Editores, 2018. p. 175-224.
ALVIM, Davis Moreira; RODRIGUES, Alexsandro. Coletivos, ocupações e protestos
secundaristas: a fênix, o leão e a criança. ETD Educação Temática Digital, Campinas, v. 19,
p. 75-95, 11 mar. 2017.
BOUTIN, Aldimara; FLACH, Simone. O movimento de ocupações de escolas públicas e suas
contribuições para a emancipação humana. Inter Ação. Goiania, v. 42, n. 2, p. 429-446,
mai./ago. 2017. Disponível em: https://revistas.ufg.br/interacao/article/view/45756. Acesso
em: 13 set. 2022.
BRAGA, Ruy. A rebeldia do precariado: trabalho e neoliberalismo no sul global. São
Paulo: Boitempo, 2017.
BRASIL. Lei de diretrizes e bases da educação: lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Rio de
Janeiro: DP&A, 1998.
BRASIL. Medida Provisória n. 746, de 22 de setembro de 2016a. Presidência da
República. Secretaria-geral. Diário Oficial da União, 23 de setembro de 2016. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/Mpv/mpv746.htm.
Acesso em: 22 jun. 2022.
BRASIL. Emenda Constitucional n. 95, de 15 de dezembro de 2016b. Altera o Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias, para Instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras
Providências. Diário Oficial da União, Seção 1, p. 2-3, Brasília, DF, de 16 dez. 2016.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/
Emendas/Emc/emc95.htm#art1. Acesso em: 5 jan. 2017.
BRASIL. Projeto de Lei n° 193, de 2016 de 3 de abril de 2016c. Inclui entre as diretrizes e
bases da educação nacional, de que trata a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, o
Programa Escola sem Partido”. Brasília: Senado Federal, 3 de abril 2016. Disponível em:
https://bit.ly/3y1naMp. Acesso em: 22 jun. 2022.
BRASIL. Lei n. 13.415/2017, de 16 de fevereiro de 2017. Presidência da República.
Secretaria-geral. Diário Oficial da União, 17 de fevereiro de 2017. Brasília Disponível em:
https://bit.ly/3y1n47v. Acesso em: 29 jul. 2021.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Ocupações escolares em Francisco Beltrão-PR: contribuições para a formação dos jovens
329
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 284-304, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
CARNEIRO, Silvio. Ocupar, resistir e a luta nas redes sociais. Comunicações, Piracicaba, v. 24
n. 2, p. 137-150, maio-agosto 2017. Disponível em: https://bit.ly/3AeCvvP. Acesso em: 20
maio 2019.
CATINI, Carolina de Roig; MELLO, Gustavo Moura de Cavalcanti. Escolas de luta, educação
política. Educação & Sociedade, [s.l.], v. 37, n. 137, p. 1177-1202, dez. 2016.
CORSINO, Luciano Nascimento; ZAN, Dirce Djanira Pacheco e. A ocupação como processo
de descolonização da escola: notas sobre uma pesquisa etnográfica. ETD Educação Temática
Digital, Campinas, v. 19, n. 1, p. 26-48, 11 mar. 2017.
COSTA, Adriana Alves Fernandes; GROPPO, Luís Antonio (Org.). O movimento de ocupações
estudantis no Brasil. São Carlos: Pedro & João Editores, 2018.
FARIA FILHO, Luciano Mendes de. Fazer história da educação com E.P. Thompson:
trajetórias de um aprendizado. In: FARIA FILHO, Luciano Mendes de. (Org.). Pensadores
sociais e história da educação. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p. 247-264.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
FRIGOTTO, Gaudêncio et al. (Org.). Juventude, trabalho e educação no Brasil:
perplexidades, desafios e perspectivas. In: NOVAES, Regina; VANNUCHI, Paulo. (Org.).
Juventude e sociedade: trabalho, educação, cultura e participação. São Paulo: Fundação Perseu
Abramo, 2004. p. 180-2016.
GROPPO, Luís Antonio. O novo ciclo de ações coletivas juvenis no Brasil. In: COSTA,
Adriana Alves Fernandes; GROPPO, Luís Antonio (Org.). O movimento de ocupações estudantis
no Brasil. São Carlos: Pedro & João Editores, 2018. p. 85-117.
GROPPO, Luís Antonio. Uma onda mundial de revoltas: movimentos estudantis de 1968.
Piracicaba: Unimep, 2005.
LARCHERT, Jeanes Martins. Cala boca menino! O menino não cala, resiste. ETD Educação
Temática Digital, Campinas, v. 19, p. 1-22, 11 mar. 2017.
MARGULIS, Mario; URRESTI, Marcelo. La juventud es más que una palabra. In:
MARGULIS, Mario. (Ed.) La juventud es más que una palabra. Buenos Aires: Biblos, 1996. p.
13-30.
MARTINS, Marcos Francisco et al. (Org.). As ocupações das escolas estaduais da região de
Sorocaba/SP: falam os estudantes secundaristas. Revista Crítica Educativa, São Carlos, v. 2, n.
1, p. 227-260, 17 ago. 2016.
MARTINS, Suely Aparecida. O fazer político dos jovens das classes populares: as ocupações
estudantis paranaenses. Revista Pedagógica, Chapecó, v. 20, n. 43, p. 143-167, 2018.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Franciele Maria David, Suely Aparecida Martins
330
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 305-330, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
OCUPAPARANÁ. [Sem título]. Disponível em: https://ocupaparana.spks.xyz/. Acesso em: 13
maio 2018.
PAES, Bruno Teixeira; PIPANO, Isaac. Escolas de luta: cenas da política e educação. ETD
Educação Temática Digital, Campinas, v. 19, n. 1, p. 3-25, 11 mar. 2017.
PEDRON, Flavio. Estudantes protestam contra a retirada de quatro disciplinas do Ensino
Médio. Jornal de Beltrão, Francisco Beltrão, p. 1-27. 11 out. 2016.
PRATES, Georgia; RUGGI, Lennita Oliveira; SILVA, Mônica Ribeiro da; MACHADO,
Valeria Floriano. Ocupar e resistir: memórias de ocupação Paraná 2016. Curitiba: UFPR, Setor
de Educação, 2017.
PRONZATO, Carlos. Acabou a paz. Isto daqui vai virar o Chile: escolas ocupadas em São
Paulo. La Ameztisa Audiovisual, 2016. Disponível em: https://bit.ly/39ZGiT1. Acesso em: 3
mar. 2019.
SEVERO, Ricardo Gonçalves; SEGUNDO, Mario Augusto Correia San. OCUPATUDORS:
socialização política entre jovens estudantes nas ocupações de escolas no Rio Grande do Sul.
ETD Educação Temática Digital, Campinas, v. 19, n. 1, p. 73-98, 11 mar. 2017.
SILVA, Andréa Villela Mafra da; MELO, Keite Silva de. #OCUPAISERJ: estratégias
comunicacionais do movimento de ocupação do instituto superior de educação do Rio de
Janeiro. ETD Educação Temática Digital, Campinas, v. 19, n. 1, p. 119-140, 11 mar. 2017.
SILVA, Bárbara Virgínia Groff da; SILVA, Eduardo Cristiano Hass da. Uma pá de ocupação:
ocupações escolares e atuação juvenil no Rio Grande do Sul (2016). Revista Teias, Rio de
Janeiro, v. 18, n. 50, p. 228-244, 22 maio 2017.
SNYDERS, Georges. Escola e luta de classes. São Paulo: Centauro, 2005.
TRUFFI, Renan. Sob pressão da justiça, secundaristas completam um mês de ocupações nas
escolas. Carta Capital, São Paulo, 4 de novembro de 2016. Disponível em:
https://bit.ly/3OMy6o0. Acesso em: 20 nov. 2016.
Este artigo está licenciado com a licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
331
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 331-352, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Livros de ocorrências: características e contribuições para o
desenvolvimento moral dos alunos
Occurrence books: an analysis of their characteristics and contributions
for student’s moral developments
Libros de ocurrencias: características y contribuciones para el desarrollo
moral de los alumnos
Viviane Terezinha Koga
*
Ademir José Rosso
**
Resumo
Este artigo apresenta características dos livros de ocorrências (LO) em quatro escolas estaduais da
cidade de Ponta Grossa/PR frente o processo de desenvolvimento moral. Os pressupostos teóricos
estão embasados em trabalhos de Piaget (1994) e Puig (2004) sobre a moralidade e as práticas morais.
Foram analisadas 90 ocorrências, utilizando a análise de conteúdo coadjuvada pelo software Alceste.
Os resultados indicam que os registros possuem conteúdo moral relacionados à indisciplina, ao de-
sinteresse e ao desrespeito. Os encaminhamentos consistem em repassar os conflitos para a instância
familiar e as práticas morais estão na condução verbal. A pesquisa conclui que os LO relatam conflitos
escolares normativos e morais dissociados do desenvolvimento de práticas educativas promotoras da
construção de valores e da moralidade autônoma.
Palavras-chave: escola; livros de ocorrência; moral; regras.
Recebido em: 14/05/2020Aprovado em: 07/06/2022
https://doi.org/10.5335/rep.v29i1.11020
ISSN on-line: 2238-0302
*
Licenciada em Ciências Biológicas (2008), Mestre (2012) e Doutora em Educação (2017), na linha de Pesquisa Ensino e
Aprendizagem, pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. Professora Colaboradora na mesma Universidade, na disci-
plina de Estágio Curricular Supervisionado, no curso de Licenciatura em Ciências Biológicas. E-mail:
vivianekoga@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0726-3906.
**
Doutor em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professor no Programa de Pós Graduação da Universi-
dade Estadual de Ponta Grossa. Email: ajrosso@uepg.br. Orcid: http://orcid.org/0000-0002-7143-0433.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Viviane Terezinha Koga, Ademir José Rosso
332
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 331-352, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Abstract
This article reveals characteristics of occurrence books in four State schools in Ponta Grossa/PR
before the moral development process. Theoretical assumptions are base on Piaget (1994) and Puig
(2004) works on morality and moral practices. Ninety occurrences were analyzed by employing
content analysis aided by the ALCESTE software. The results pointed out that reports have moral
content related to indiscipline, disinterest and disrespect. Referrals consist in hand down the conflicts
to the families and moral practices are in verbal conduct. The research concludes that occurrence
books report normative and moral school conflicts dissociated of development of educational prac-
tices that promote building autonomous values and morality.
Keywords: school; occurrence books; moral; rules.
Resumen
Este artículo presenta características de libros de ocurrencias (LO) em cuatro escuelas estaduales de
la ciudad de Ponta Grossa/PR frente al proceso de desarrollo moral. Los supuestos teóricos están
basados en trabajos de Piaget (1994) y Puig (2004) sobre la moralidad y las prácticas morales. Fueron
analizadas 90 ocurrencias, utilizando el análisis de contenido ayudada por el software Alceste. Los
resultados indican que los registros poseen contenido moral relacionados con indisciplina, desinterés
y falta de respeto. Las acciones consisten en pasar los conflictos para la instancia familiar y las prác-
ticas morales son de conducta verbal. La investigación concluye que los LO reportan conflictos
escolares normativos y morales disociados del desarrollo de prácticas educativas que promueven la
construcción de valores y la moralidad autónoma.
Palabras clave: escuela; libros de ocurrencias; moral; reglas.
Introdução
Os livros de ocorrência (LO) surgiram no estado do Paraná no início do século
passado com a aprovação do Decreto 135 que, em 1924, validou o Regulamento das
Escolas Normais Primárias. No artigo 75, esse documento estabelece que todas as in-
frações e penas impostas no âmbito escolar deveriam ser registradas em um ‘livro
próprio’, que ficaria de posse da secretaria das escolas. Os LO foram criados, portanto,
com base no referido Decreto, sendo usados com diferentes denominações: Livro de
Penalidades e Sanções, Livro de Suspensão, Livro de Advertências, entre outras. Con-
tudo, eles exibem muitas semelhanças na aparência, pois são livros numerados, de capa
dura e com a tonalidade escura, de onde vem a razão de serem chamados de “Livro
Negro” ou “Livro Preto” (BRAGA, 2014).
Os LO caracterizam-se como instrumentos institucionais utilizados pelas escolas
para o registro de acontecimentos relacionados ao comportamento dos alunos
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Livros de ocorrências: características e contribuições para o desenvolvimento moral dos alunos
333
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 331-352, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
(BRAGA, 2014). Entre suas funções, destacam-se: a) o registro de ocorrências discipli-
nares consideradas “disfuncionais e/ou desagregadoras do funcionamento regular das
salas de aula ou do próprio estabelecimento escolar” (AQUINO, 2011, p. 463); b) o
relato de ‘desvios de condutas com o objetivo de controlar, punir os alunos reinciden-
tes e encaminhá-los para as instâncias superiores (GAMA, 2009) e c) a vigia da conduta
dos alunos e, ao mesmo tempo, a imposição das normas de comportamento (GAMA,
2009). Enquadram-se, portanto, como um instrumento autoritário (RATTO, 2007)
em que se registram, na maioria das vezes, conflitos “de indisciplina e de violência es-
colar” (BRAGA, 2014, p. 49).
Não há uma formatação oficial para a construção dos LO e cada escola tem suas
regras específicas (BRAGA, 2014). Em geral, as ocorrências estão organizadas em três
partes principais: 1) identificação dos alunos envolvidos pelo nome, a série e os profes-
sores responsáveis pela turma na ocasião; 2) narrativa do conflito ocorrido, a infração
cometida com os indícios ou as provas, tais como: testemunhos, confissões, acareações,
dentre outros e 3) as consequências e os encaminhamentos dados pela escola (RATTO,
2002). Normalmente, ainda constam nas ocorrências a data, que pode estar no início
ou no final da narrativa; a assinatura do relator do registro (equipe pedagógica/direção);
a assinatura dos pais e/ou responsáveis pelos alunos envolvidos e, em alguns casos, a
assinatura do próprio aluno infrator. Apesar de os LO serem documentos da escola,
geralmente, os pais são convocados para tomar ciência dos fatos (RATTO, 2002).
Alguns autores, em sua maioria com o enfoque teórico foucaultiano (RATTO,
2002; 2006; 2007; GAMA, 2009; AQUINO, 2011; RATUSNIAK, 2012; BRAGA,
2014; FONSECA, SALES, SILVA, 2014), vêm tecendo investigações sobre os LO em
diferentes graus e instituições de ensino e com distintas abordagens metodológicas.
Ratto (2002) propõe uma reflexão sobre as dimensões criminosas e pecaminosas pre-
sentes no LO de uma escola pública da cidade de Curitiba/PR. Ao analisar 517
ocorrências dos anos de 1998 e 1999, a autora concluiu que os livros funcionam como
prova, considerada sob dois pontos de vista: o interno e o externo. No âmbito interno,
as provas ou indícios são marcas de agressão física, testemunhos, confissões, acareações,
dentre outros; no âmbito externo, a prova é o esforço da escola para encaminhar as
devidas soluções, seja na forma de uma ameaça do que será feito em caso de reincidência
ou na forma da providência presente, isto é, da medida que a escola efetivamente en-
caminha diante da situação registrada.
Ratto (2006) focaliza as relações estabelecidas entre as autoridades escolares e os
pais no campo disciplinar. Ela ressalta que, ao acionar os pais ou os responsáveis, a
escola não apenas cobra que eles garantam o tipo de controle exigido, mas também os
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Viviane Terezinha Koga, Ademir José Rosso
334
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 331-352, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
insere na lógica disciplinar presente nos LO. A partir de narrativas registradas em LO
dos anos iniciais do Ensino Fundamental, a autora problematiza a vigilância exercida
pelas escolas, articulando-a com a tradição pedagógica e cultural, ainda muito presente
no cotidiano escolar. Tal articulação mostra “que busca disciplinar as crianças e, diante
das dificuldades, aciona os responsáveis cobrando que eles garantam o tipo de controle
e de resultados que ela não conseguiu garantir” (RATTO, 2006, p. 14). Ratto (2007)
ainda defende que tal tradição, apoiada em pressupostos de infantilização, gera a ne-
cessidade de constante vigilância e controle sobre os alunos.
Gama (2009), ao analisar as ocorrências de uma escola pública da cidade de Nova
Andradina/MS, aponta para a violência simbólica contra os alunos, “pois os mesmos
são pressionados a aceitar as normas que lhe são estabelecidas, através de uma vigilância
constante” (GAMA, 2009, p. 110). Aquino (2011), baseado em registros disciplinares
de alunos do Ensino Médio de uma escola pública de São Paulo/SP, destaca que os LO
parecem ser, de um lado, solidários a uma espécie de esgarçadura do modus operandi
escolar; e, de outro, assinalam para a invasão de modos sutis de controle das condutas.
Ratusniak (2012) considera que o LO funciona como uma prática disciplinar
que controla e governa os alunos e as suas famílias, tendo como escopo reestabelecer a
ordem e moralizar os sujeitos. Para a autora, o LO ainda assume o estatuto de defesa
da escola contra possíveis omissões, constituindo-se como prova de que nela se res-
guarda o direito dos alunos. Braga (2014), ao analisar 31 ocorrências, relata as
violências de natureza homofóbica que se desenvolvem no espaço escolar. Segundo a
autora, esse tipo de violência ocorre a partir da injúria. As vítimas e agressores são os
alunos e professores e os principais encaminhamentos consistem em advertir verbal-
mente e comunicar aos pais.
Conflitos escolares, práticas morais e desenvolvimento moral
dos alunos
Os conflitos deixaram de ser um evento esporádico e particular das escolas para
se tornarem um dos maiores obstáculos pedagógicos que, acompanhados da indisci-
plina, da violência e do bullying, constituem-se hoje como grandes desafios no
cotidiano escolar (NOGUEIRA, SOARES, 2015; ALVES, 2016). Eles são responsá-
veis pela desmotivação de 77,7% dos professores, contrapõem-se aos simbolismos da
docência relacionados aos processos de socialização familiar, escolar, profissional
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Livros de ocorrências: características e contribuições para o desenvolvimento moral dos alunos
335
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 331-352, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
que interpenetram o trabalho (ROSSO, CAMARGO, 2013), causam desgaste e sofri-
mento (ROSSO, CAMARGO, 2011), além de interferir e perturbar o trabalho
docente (PREDIGER, BERWANGER, MÖRS, 2009).
Diante desse cenário, os docentes sentem-se despreparados e inseguros e acredi-
tam que trabalhar com os conflitos não integra suas funções. Na tentativa de resol-
los, empregam, na maioria das vezes, estratégias que transitam entre as intervenções
para evitá-los, intervenções para contê-los e ausência de intervenção frente aos conflitos
(VINHA, 2013). As intervenções para impedir os conflitos caracterizam-se como as
mais frequentes, nelas há sempre uma regulação externa, expressa em regras, câmeras,
etc. Nas intervenções para conter os conflitos, o medo da punição está sempre presente.
Há a imposição de soluções prontas e o repasse do conflito para outras instâncias. Em-
pregam-se punições e ações unilaterais; a delação e a culpabilização são incentivadas.
Por fim, na ausência de intervenção, os professores consideram que a resolução dos
conflitos não faz parte do seu trabalho e, dessa forma, desenvolvem ações pontuais que,
na prática, têm pouco efeito (VINHA, 2013).
Ao contrário, a ação docente deveria ser empregada para que os alunos aprendes-
sem por meio dos conflitos, buscassem soluções aceitas pela maioria e respeitassem
todas as partes envolvidas. Assim, uma resolução eficaz é aquela que minimiza ou eli-
mina as causas que geram os conflitos e/ou os problemas (VINHA, 2013). Nesse
sentido, a ênfase não está na resolução do conflito em si − no produto −, mas no pro-
cesso, pois o que faz a diferença é a forma pela qual os problemas são enfrentados.
O desenvolvimento moral passa pela relação existente entre a prática e a teoria,
em um processo no qual a primeira não é decorrente da segunda. Muitos professores
pensam ser suficiente falar sobre moral para os seus alunos, como se o ensinamento
verbal fosse a garantia para a ação moral. Ao contrário, a prática é a base da moralidade:
primeiro vem a ação; depois, a tomada de consciência (abstração das práticas). O aluno
é, pois, agente do processo moral, “age primeiro para depois compreender que as regras
contêm possibilidades de serem modificadas e criadas” (SOUZA, VASCONCELOS,
2009, p. 344). No momento em que o aluno age e modifica as regras, ele se torna
legislador delas. Em outras palavras, a cooperação supera a coação, a regra torna-se,
então, uma lei moral efetiva, e o aluno toma consciência da razão de ser das leis, sendo
essa ação a condição necessária para o entendimento das regras (PIAGET, 1994, p. 65).
Para a aquisição das noções morais, o respeito é fundamental, podendo-se dis-
tinguir dois tipos de respeito: a) o unilateral, que implica em uma desigualdade e está
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Viviane Terezinha Koga, Ademir José Rosso
336
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 331-352, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
baseado em relações de coação que conduzem ao sentimento de dever, em circunstân-
cias nas quais a regra é exterior; e b) o mútuo, baseado em relações de cooperação que
conduzem ao sentimento do bem. Nele, os indivíduos consideram-se como iguais e
respeitam-se reciprocamente, em situações em que a regra passa a ser interna. Ambos
têm efeitos sobre a personalidade, a responsabilidade e a justiça, além de conduzirem
às morais heterônoma e autônoma, respectivamente (PIAGET, 1996).
O aluno não é um sujeito autossuficiente: está imerso em um meio sociocultural,
do qual necessita para edificar as suas condutas morais, ao mesmo tempo em que as
partilha com os elementos presentes em seu meio. Em decorrência, a educação moral
depende da construção de um ambiente educacional que expresse valores que condu-
zam e envolvam os alunos. Nesse sentido, “os alunos não são inteiramente produtores
de seus atos, nem tampouco totalmente determinados pelas forças sociais” (PUIG,
2004, p. 36). Assim, a prática moral não é individual, preexistente no indivíduo, nem
tampouco coletiva, determinada pelas estruturas sociais. É no espaço das práticas que
se cruzam as estruturas e os agentes em um ‘curso de acontecimentos mais ou menos
estabelecido de antemão, do qual participam os indivíduos (PUIG, 2004). Um cami-
nho traçado onde se cruzam ações de alunos e professores. Um traço que estabelece a
direção e encaminha ações para que elas aconteçam conforme o roteiro previsto.
As práticas morais são fenômenos observáveis e possuem natureza complexa, uma
vez que são construídas por múltiplas ações. Quanto maior a variedade de ações por
parte dos envolvidos, maior será sua força educacional. Em seu curso incorporam va-
lores que, por vezes, as definem. Nesse sentido, caracterizam-se como “um caminho ou
uma trilha de valores convertidos em comportamentos” (PUIG, 2004, p. 60). Envol-
vem a cooperação, a rotinização e a construção de hábitos e são formas ritualizadas de
resolver situações moralmente relevantes. Portanto, um ambiente educacional ideal é
aquele em que se constroem práticas educacionais nas quais alunos e professores são
protagonistas e recriadores (PUIG, 2004). Logo, a educação moral ativa supõe que o
aluno possa vivenciar as experiências morais. Assim, “não se constitui como uma ma-
téria especial de ensino, mas como um aspecto particular da totalidade do ensino”
(PIAGET, 1996, p. 20), em que os alunos possam vivenciá-la em todos os aspectos e
ambientes da escola.
Considerando os estudos já realizados, os conflitos escolares, bem como a sua
forma de resolução, entendendo que o LO é carregado de valores e traduz aspectos
importantes das práticas existentes nas escolas, e que a sua análise traz informações
significativas sobre o sistema disciplinar empregado pelas escolas, seja ele preventivo ou
punitivo, este artigo tem por objetivo apresentar características dos registros presentes
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Livros de ocorrências: características e contribuições para o desenvolvimento moral dos alunos
337
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 331-352, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
em LO de quatro escolas estaduais da cidade de Ponta Grossa/PR e analisar sua contri-
buição para o desenvolvimento moral dos alunos. A fundamentação teórica está nos
conceitos da Teoria do Desenvolvimento Moral, de Piaget (1994), e nas Práticas Mo-
rais, de Puig (2004).
Delineamento metodológico
Os registros dos LO foram coletados em quatro escolas estaduais localizadas em
bairros periféricos da cidade de Ponta Grossa/PR. Por motivos éticos, foi suprimido o
nome das escolas, as quais são denominadas ao longo da pesquisa de escolas A, B, C e
D. A escolha dessas escolas está no fato delas apresentarem problemas morais e não
terem nenhum projeto e/ou iniciativa em desenvolvimento para prevenir ou combater
esses problemas.
Esse dado é oriundo de um estudo exploratório realizado no ano de 2015, em
72% das escolas estaduais da cidade, em que, ao questionar as pedagogas, verificou-se
que os problemas morais estão presentes em todas as escolas investigadas, ao mesmo
tempo em que suas pedagogas reconhecem a importância da escola trabalhar com o
desenvolvimento moral dos alunos. Mesmo assim, nessas escolas não havia projetos ou
iniciativas elaborados por elas seu corpo docente em parceria com a coordenação
pedagógica e a comunidade escolar e que façam parte do cotidiano escolar dos alunos
para a educação moral e a construção de valores.
No ano de 2015, a cidade de Ponta Grossa/PR tinha uma população de 341.130
habitantes (IBGE, 2017) e contava com 43 escolas estaduais que ofereciam os anos
finais do Ensino Fundamental. Considerando esse segmento de ensino, no referido ano
as escolas estaduais da cidade de Ponta Grossa/ PR tiveram 20.095 alunos matriculados
em 658 turmas. As quatro escolas investigadas tiveram um total de 2494 alunos matri-
culados, subdivididos em 80 turmas, sendo 21 delas na escola A, 28 na escola B, 11
turmas na escola C e 20 na escola D (PARANÁ, 2017). Cada turma era composta, em
média, por 30 alunos, distribuídos de maneira equitativa quanto ao gênero.
A coleta dos dados foi realizada no ano de 2015, mediante o consentimento da
direção e da equipe pedagógica das quatro escolas, as quais forneceram os LO e assina-
ram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Optou-se por coletar todos os
registros que constavam nos livros, os quais foram elaborados nos anos de 2014 e 2015.
Para facilitar a coleta, fez-se o registro fotográfico desse material e, posteriormente, a
transcrição literal para a construção do banco de dados, excluindo-se apenas o nome
dos sujeitos e das instituições, as abreviações, os erros gramaticais e de ortografia. Após
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Viviane Terezinha Koga, Ademir José Rosso
338
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 331-352, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
a transcrição, os 90 registros foram organizados em um banco de dados, separados por
uma linha de comando composta pelas variáveis: número do texto, número da ocor-
rência, ano, escola e conteúdo.
Para a coleta e análise dos dados adotou-se a abordagem quali-quantitativa, por
entendermos que ela propicia maior cientificidade à investigação e confere uma visão
mais ampla e esclarecedora do objeto em estudo (FLICK, 2009). Para a análise, foram
utilizados os pressupostos da análise de conteúdo (BARDIN, 2011), coadjuvada pelo
software Alceste. Esse software, amplamente utilizado na análise de banco de dados tex-
tuais, realiza a análise lexicográfica mostrando as unidades de contexto elementar
(UCEs) caracterizadas pelas palavras e por segmentos de textos que compartilham essas
palavras. Assim, o programa efetua a leitura e a classificação das palavras de acordo com
suas ocorrências, colocando-as em classes que podem indicar os agrupamentos de con-
teúdos sobre determinados objetos.
O emprego do Alceste justifica-se pela sua aproximação com os pressupostos da
análise de conteúdo, a qual consiste em “um conjunto de técnicas de análise textual,
por meio de procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo
(BARDIN, 2011, p. 44). O interesse na utilização dessa metodologia de análise não
está apenas na descrição das informações contidas nos LO, mas na interpretação crítica
delas, a fim de realizar inferências sobre as características dos LO analisados e sua con-
tribuição para o desenvolvimento moral dos alunos. Portanto, procura-se conhecer
aquilo que está por trás do significado das palavras, bem como as condições de produ-
ção/recepção delas.
Esta pesquisa teve a aprovação do Conselho de Ética da Universidade Estadual
de Ponta Grossa em 08 de maio de 2015 (Parecer de Aprovação nº 1.064.148).
Resultados e discussão
Das 90 ocorrências analisadas, 26 eram da escola A, 24 da escola B, 20 da escola
C e 20 da escola D, sendo 26,6% produzidas no ano 2014 e 73,4% em 2015. A partir
da análise de conteúdo, foram evidenciadas duas categorias temáticas: a primeira e mais
frequente, com 75 ocorrências (83,33%), apresenta conteúdo moral; a segunda e me-
nos frequente, com 15 ocorrências (16,67%), tem conteúdo pedagógico. Considerando
a elevada frequência de problemas morais registrados nas escolas investigadas e o des-
gaste e sofrimento docente causados por eles (ROSSO, CAMARGO, 2011), é
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Livros de ocorrências: características e contribuições para o desenvolvimento moral dos alunos
339
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 331-352, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
necessário e urgente que as escolas trabalhem com esses temas, realizando ações insti-
tucionais que contribuam para o desenvolvimento moral dos alunos e, por conseguinte,
minimizem sua presença no âmbito escolar.
Nos registros com conteúdo moral (A) foram identificadas cinco categorias dis-
tintas (A1, A2, A3, A4 e A5). A categoria A1, denominada desrespeito’, teve a maior
frequência, concentrando 30% do total de ocorrências analisadas. Nela estão os casos
de desrespeito dos alunos com os seus colegas, envolvendo provocações, ameaças (ver-
bais e pela internet), atos de preconceito, intimidações, calúnias, apelidos, fofocas e
intrigas. A frequência dessa categoria confronta o estudo realizado por Tognetta
(2013), o qual destaca que situações envolvendo bullying e desrespeito com os colegas,
na maioria das vezes, passam despercebidas nas escolas por não envolver a relação pro-
fessor-aluno.
A categoria A2, denominada desinteresse e indisciplina’, contemplou 28,88%
do total de ocorrências, e nela estão os casos de desinteresse, indisciplina e descaso
frente às atividades escolares. Enquadram-se ainda nessa categoria, os registros de brin-
cadeiras durante as aulas e tumultos em geral. Juntas, as categorias A1 e A2 somam
mais de 50% das ocorrências analisadas e incluem o desrespeito, a indisciplina e o de-
sinteresse dos alunos. Esses três elementos juntos formam “um conjunto bastante trivial
de ações onde os alunos, por um lado, rejeitam circunstancialmente as normas opera-
cionais stricto sensu e, por outro, ferem as expectativas de um tipo de convívio
predeterminado em sala de aula” (AQUINO, 2011, p. 469).
A categoria A3, denominada violência, concentrou 10% do total de ocorrências
analisadas e compreende casos de agressão física entre os próprios alunos, como tapas,
chutes e socos. Para Galinkin, Almeida e Anchieta (2012), a escola é palco de diversos
tipos de violência, reconhecidamente multifacetada (GIORDANI, SEFFNER,
DELL’AGLIO, 2017), e percebida em ações físicas contra si e contra o outro, e em
agressão física e verbal entre professor-aluno.
Já na categoria A4 (7,77%), denominada desacato aos funcionários públicos,
estão os registros relativos a casos de agressões verbais, afrontas e insultos a professores
e a outros funcionários da escola. Por fim, na categoria A5 (6,66%), denominada des-
cumprimento das regras escolares’, as mais citadas são as que dizem respeito ao
uniforme, ao celular e ao horário.
Nos registros com conteúdo pedagógico houve duas categorias (B1 e B2). A ca-
tegoria B1, denominada ‘frequência escolar, compreende 10% dos registros em que os
pais são chamados à escola a fim de serem notificados sobre a recorrência de faltas e
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Viviane Terezinha Koga, Ademir José Rosso
340
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 331-352, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
advertidos em relação à perda de benefícios, como a Bolsa Família. Também são aler-
tados sobre a possibilidade de reprovação, caso o aluno não tenha o mínimo de 75%
de presença ao longo do ano.
Na categoria B2 (6,66%), denominada ‘acompanhamento pedagógico, estão os
registros que se referem ao desempenho e ao rendimento escolar dos alunos. Os pais
são convocados a fim de tomarem conhecimento dos casos em que seus filhos se recu-
sam a fazer atividades por preguiça ou porque apresentam dificuldades de
aprendizagem. Ressalta-se a importância do acompanhamento familiar, presentes nas
categorias B1 e B2, e seu impacto na permanência do aluno na escola, evitando a evasão
e a repetência escolar. Contudo, ele deve ser realizado como parte de um projeto insti-
tucional que envolva a comunidade escolar, mediante a reflexão, o diálogo e o
compromisso ativo da construção de hábitos de estudo e valores, e não como algo pon-
tual e momentâneo que somente terceiriza e informa.
No que se refere ainda às categorias B1 e B2, a frequência escolar e o acompa-
nhamento do desempenho e do rendimento escolar dos alunos são aspectos relativos à
organização escolar e à orientação pedagógica, respectivamente. Todavia, a análise de
conteúdo evidencia que o tratamento que lhes é dado nos LO descaracteriza essas suas
funções pedagógicas e lhes atribui somente sentidos de moralização, de imposição de
atitudes consideradas ‘melhores’ e ‘mais adequadas’ segundo a concepção escolar.
Considerando as ocorrências com conteúdo moral e pedagógico, bem como suas
respectivas categorias, nota-se que os problemas presentes nas escolas investigadas dife-
rem em faltas leves e faltas graves. Casos de indisciplina, de brincadeiras nas aulas,
chegada atrasada à escola, falta do uniforme, fala nos corredores, entre outros, consti-
tuem faltas leves. Já as faltas graves compreendem o desacato aos professores, o
desrespeito ou a agressão aos colegas, entre outras. Entretanto, não há uma diferencia-
ção entre elas no momento em que são registradas nos LO. Isso expressa uma inversão
de valores, ou que, por vezes, essas questões podem estar sendo priorizadas de forma
equivocada pelas escolas, pois regras convencionais (incluindo organizacionais) e as re-
gras morais são registradas da mesma forma. Assim, são colocadas no mesmo patamar
(TOGNETTA, VINHA, 2007), impactando negativamente no comportamento e no
desenvolvimento moral dos alunos.
Outo fato que chama atenção na análise das ocorrências, é que todos os registros
têm somente características descritivas: apenas apresentam os problemas sem expor so-
luções. Nesse sentido, o LO parece ter pouca efetividade no que diz respeito à
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Livros de ocorrências: características e contribuições para o desenvolvimento moral dos alunos
341
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 331-352, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
aprendizagem e ao desenvolvimento cognitivo e moral dos alunos em direção à auto-
nomia, exercendo somente a função de disciplinamento e normatização (FONSECA,
SALES, SILVA, 2014). Faltam ações e práticas morais envolvendo a comunidade es-
colar e a família de forma ativa para o enfrentamento dos problemas educativos,
visando à construção de valores e da autonomia moral.
Nas ocorrências aparecem encaminhamentos que, para as escolas, se constituem
como ‘soluções’, mas, do ponto de vista moral, não se caracterizam como tal. Houve
diversas ocorrências que apresentaram mais de um encaminhamento; portanto, a fre-
quência foi contabilizada de forma individual. Em ordem decrescente, os
encaminhamentos consistem em: a) ligar para os pais e/ou responsáveis (54 registros);
b) advertir o aluno verbalmente (31 registros); c) acionar a patrulha escolar
1
(11 regis-
tros); d) fazer o boletim de ocorrência (7 registros); e) conduzir o aluno para o conselho
tutelar (6 registros) e f) encaminhar o aluno para o médico (4 registros).
Atenta-se para o significativo número de ocorrências em que se solicita a presença
dos pais e/ou responsáveis. Esse encaminhamento funciona como uma ameaça para os
alunos e sinaliza a existência de uma parceria entre a escola e a família nos esforços
disciplinares (RATTO, 2006). A maioria dos encaminhamentos evidenciados caracte-
riza-se como ações pontuais, temporárias e punitivas, que não envolvem a escola como
um todo. Logo, pouco influenciam na aquisição de competências morais e de valores
(PUIG, 2004). São, portanto, procedimentos disciplinares que terceirizam os conflitos,
encaminhando-os para outras instâncias, como a família, o conselho tutelar e a patrulha
escolar. Em outras palavras, as escolas adotam uma metodologia de ‘empurra-empurra’.
Entretanto, esse método não resolve problemas, os quais voltam a se repetir, sendo
comum, nesses casos, a criação de uma nova norma ou um novo procedimento na
tentativa de minimizá-los ou resolvê-los (TOGNETTA, VINHA, 2007).
Diante da situação exposta, os alunos pouco aprendem com tais encaminhamen-
tos ou procedimentos disciplinares. Ao serem advertidos verbalmente ou encaminhados
para a patrulha escolar, não “desenvolvem estratégias mais cooperativas e justas para
resolver os seus conflitos” (VINHA, 2013, p. 65). Ao contrário, os procedimentos em-
pregados pelas escolas investigadas colaboram para a formação de alunos moral e
intelectualmente heterônomos, que seguem as regras por prudência ou conformidade,
e que dependem sempre de uma regulação externa: em alguns contextos seguem deter-
minadas regras e, em outros, não (PIAGET, 1994). Para Botler (2016), a pobreza
desses encaminhamentos decorre da falta de clareza das escolas a respeito das possíveis
formas de ação diante dos conflitos escolares, limitando a capacidade de intervenção e
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Viviane Terezinha Koga, Ademir José Rosso
342
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 331-352, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
levando muitas escolas a adotarem práticas pautadas no senso comum que, do ponto
de vista moral, são pouco eficientes.
Ainda com base na análise de conteúdo, foi possível evidenciar os personagens
envolvidos nas ocorrências. O relato da maioria dos registros foi realizado pela equipe
pedagógica (41 registros), seguido pela direção (17 registros) e pelos professores (11
registros). Houve, também, seis registros de autoria da equipe pedagógica junto com o
professor, cinco registros da equipe pedagógica junto com o diretor e três registros da
direção junto com o professor. Essas três instâncias juntas equipe pedagógica, direção
e professor respondem pela autoria de 83 das 90 ocorrências analisadas.
Verificou-se, ainda, a ocorrência de três registros com autoria dos pais e quatro
registros com autoria dos alunos. Percebe-se que os alunos, em geral, não procuram as
pedagogas por vontade própria, pois, na maioria das vezes, eles são trazidos pelos ins-
petores ou por professores que, ao não conseguirem resolver os problemas em suas
instâncias de atuação, procuram uma instância superior. Portanto, pode-se afirmar que
há, nas escolas, uma hierarquia de disciplinamento e, no caso dos LO, “as pedagogas
parecem ocupar a posição do tribunal superior de justiça” (RATTO, 2002, p. 99).
Em todos os registros analisados, os alunos são os alvos das ocorrências. Em 57
registros, o alvo é um aluno em especial, enquanto nas outras 33 ocorrências, o alvo é
constituído por um grupo de alunos − em geral dois ou três, às vezes, mais. Houve
ocorrências em que todos os alunos de uma mesma sala estavam envolvidos. De acordo
com Ratto (2002), esse cenário evidencia que existe, nas escolas, um regime de liber-
dade vigiada, uma vez que ocupar a posição de aluno é estar na condição de
potencialmente culpado, pois, até mesmo os que nunca estiveram ou nunca estarão nos
LO, vivem sob sua constante ameaça.
Após a análise de conteúdo, o corpus contendo as 90 ocorrências ainda foi anali-
sado com o auxílio do software Alceste. A partir do relatório fornecido pelo Alceste,
verifica-se que o corpus foi dividido em 233 UCEs, das quais 84,12% foram conside-
radas na classificação hierárquica descendente (CHD), formando quatro classes. Na
Figura 1, apresenta-se o dendrograma que mostra a organização do corpus e as relações
entre as quatro classes.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Livros de ocorrências: características e contribuições para o desenvolvimento moral dos alunos
343
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 331-352, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Figura 1: Dendrograma das classes estáveis do corpus Ocorrências
Corpus Ocorrências, 233 UCEs, 84,12%
Classe 2, 43 UCEs, 18,45%
Rendimento e frequência
Classe 4, 38 UCEs, 16,31%
Encaminhamentos
Classe 1, 101 UCEs, 43,35%
Comportamento em sala
Classe 3, 51 UCEs, 21,89%
Acompanhamento familiar
Palavras
Freq.
Palavras
Freq.
Palavras
Freq.
Palavras
Freq.
Matriculado
12
55,9
Medidas
8
42,51
Aula
33
27,95
Menino
11
24,82
Apresenta
8
22,6
Tipo
9
41,57
Professora
34
27,4
Mãe
25
23,39
Primeira
5
22,58
Patrulha
13
38
Sala
37
22,67
Precisa
8
20,64
Série
5
22,58
Encaminhamento
7
37,03
Alunos
34
17,13
Acompanhar
5
18,23
Ata
7
21,89
Providências
8
36,13
Orientados
10
13,66
Responsabilidade
7
17,1
Período
7
21,89
Responsáveis
11
31,47
Advertidos
9
12,23
Filha
9
15,66
Responsável
7
21,89
Orientação
15
30,44
Educação
9
12,23
Avó
8
14,84
Pai
15
21,29
Tutelar
7
25,92
Atividades
11
12,03
Casa
7
14,15
Compareceu
17
20,84
Conselho
8
23,51
Uso
11
9,55
Fazer
7
14,15
Ano
22
17,81
Situação
9
22,42
Brincadeira
7
9,43
Procedimentos
6
13,67
Direção
11
17,65
Tomadas
4
20,88
Inadequado
7
9,43
Ameaçando
9
11,86
Manhã
5
17,23
Cabíveis
5
20,27
Celular
9
9,26
Entrar
6
10,98
Pedagoga
18
16,28
Conflito
5
20,27
Jogou
9
9,26
Fato
6
10,98
Senhor
9
14,49
Conversa
12
12,2
Desrespeitando
8
7,91
Saída
6
10,98
Rendimento
5
13,46
Deverá
4
11,44
Comportamento
18
6,76
Escola
22
10,96
Ciência
8
12,96
Telefone
4
11,44
Atrapalhando
5
6,68
Irá
5
10,36
Dia
7
9,85
Ocorrência
9
9,74
Chutes
5
6,68
Vai
5
10,36
Referida
4
9,51
Deve
5
8,69
Trouxe
5
6,68
Ações
4
10,09
Ocorrido
7
8,48
Necessárias
5
8,69
Utilização
5
6,68
Ficar
10
8,94
Diretora
9
5,73
Boletim
4
6,89
Respeito
13
6,62
Vem
7
8,22
Advertido
5
5,59
Levou
4
6,89
Atitudes
8
5,72
Auxílio
4
7,22
Convocado
5
5,59
*Escola A
17
10,1
Chamado
12
5,54
Postura
4
7,22
Cabeça
4
5,48
Ambos
4
5,32
Veio
4
7,22
Frequência
4
5,48
Artigo
4
5,32
Contato
4
5,25
Equipe
6
4,95
Boné
4
5,32
Família
4
5,25
Faltas
9
4,49
Consequências
4
5,32
*Escola D
33
34,94
Reunião
4
4,2
Machucou
4
5,32
*Conteúdo 2
14
12,7
Proibido
4
5,32
*Escola C
17
12,28
Regimento
4
5,32
Colocou
5
4,01
Participação
5
4,01
Pedir
5
4,01
*Escola B
37
14,29
*Conteúdo 1
95
11,52
Fonte: A autora
A classe 1 (101 UCEs, 43,35%), Comportamento em sala, foi a mais significa-
tiva e teve uma contribuição diferenciada dos registros com conteúdo moral da escola
B. Os sujeitos dessa classe são a professora e os alunos. Entre os substantivos nela pre-
sentes, estão: sala, aula, educação, participação, respeito, comportamento, atividades,
atitudes, brincadeira, utilização, celular e boné. Como ações, destacam-se: trazer, colo-
car, jogar, machucar, desrespeitar, atrapalhar, orientar e advertir. Entre os adjetivos
têm-se: inadequado, proibido.
Nos registros que compõem essa classe, os alunos são orientados e advertidos
verbalmente acerca do mau comportamento em sala, do desrespeito, da indisciplina,
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Viviane Terezinha Koga, Ademir José Rosso
344
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 331-352, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
do desinteresse frente às atividades e das brincadeiras inapropriadas. Logo, há proximi-
dade da classe 1 com as categorias A1 (desrespeito) e A2 (desinteresse e indisciplina),
evidenciadas na análise de conteúdo.
De acordo com os registros, esses comportamentos inadequados atrapalham as
aulas e desrespeitam os professores. Estes, por sua vez, ao não conseguirem resolver os
mencionados problemas em sala, encaminham para as pedagogas os alunos que ‘tumul-
tuam’ a realização de atividades (RATTO, 2007), bem como aqueles que não
participam das aulas. Para Fonseca, Sales e Silva (2014), esses registros do mau com-
portamento dos alunos (desrespeito, indisciplina e desinteresse) podem se constituir
como uma medida preventiva da escola e dos professores, caso a instituição tenha que
adotar uma medida mais extrema. Abaixo estão alguns extratos das ocorrências que
entraram na composição dessa classe.
Registramos que conversamos com os alunos [...] e [...], do nono ano, sobre comportamento
inadequado em sala na aula de matemática, em que estavam jogando aviãozinho e andando pela
sala sem prestar atenção na atividade que a professora [...] estava passando, mesmo sendo cha-
mada a atenção, os alunos não atenderam (Texto_55, Ocorrência_33, Ano_2015, Escola_1,
Conteúdo_1).
A professora [...] trouxe à equipe pedagógica os alunos [...] e [...], porque os dois estavam jogando
bolinhas de papel durante a explicação da professora, e mesmo após terem a atenção chamada,
os alunos persistiram na brincadeira. Foram advertidos e se comprometeram a mudar de com-
portamento (Texto_64, Ocorrência_49, Ano_2015, Escola_1, Conteúdo_1).
Nota-se, ainda, a presença das expressões os alunos foram advertidos’, ‘os alunos
foram orientados’, as quais se caracterizam como procedimentos verbais de educação
moral. Nas escolas investigadas se pensa ser suficiente falar sobre moral para os seus
alunos, como se o ensinamento verbal fosse uma garantia para a ação moral (PIAGET,
1994), conforme já exposto. Ao contrário, o investimento das escolas para a resolução
desses conflitos deveria acontecer por meio de práticas morais pautadas na cooperação,
na rotinização e na participação ativa dos alunos (PUIG, 2004), como argumentado
anteriormente. A formação integral do aluno, para além da obtenção de conhecimentos
específicos, necessita da valorização da sua participação não apenas no processo peda-
gógico, mas também na construção de modos de resolução dos conflitos escolares
(BISPO, LIMA, 2014).
Ligada à classe 1 aparece a classe 3 (51 UCEs, 21,89%), denominada Acompa-
nhamento familiar. Esta classe teve uma contribuição diferenciada dos registros feitos
na escola D. Entre os sujeitos nela citados, destacam-se: menino, filha, mãe e avó. A
família, a casa e a escola constituem os locais indicados e as ações em destaque são as
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Livros de ocorrências: características e contribuições para o desenvolvimento moral dos alunos
345
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 331-352, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
seguintes: acompanhar, fazer, entrar, ir (irá), ficar e vir (veio). Nota-se, nessa classe, a
predominância de ocorrências em que a escola solicita a presença da família (represen-
tada, na maioria das vezes, pela figura da mãe ou da avó) para que compareça à escola,
tome conhecimento dos fatos e assuma sua responsabilidade no acompanhamento es-
colar, auxiliando na resolução dos problemas.
Responsabilidade, procedimentos, auxílio, postura e contato são os substantivos
em evidência na classe 3. Destaca-se, ainda, a presença da forma verbal precisa. Ao
definir a família como responsável pelas situações subsequentes, a escola protege-se de
possíveis acusações futuras, posto que ela também passa por constante vigilância, nor-
malização, avaliação e julgamento (RATTO, 2006).
Pedimos que a mãe o leve novamente ao psicólogo e a escola, se necessário, fará um relatório de
acompanhamento pedagógico. Explicamos para a mãe que seu filho precisa de determinadas re-
gras e limites, tanto no ambiente escolar quanto no ambiente familiar (Texto_2,
Ocorrência_531, Ano_2015, Escola_4, Conteúdo_2).
Os policiais [...] e [...] orientaram o pai do aluno [...] que o traga, ou seja, que acompanhe a
entrada e a saída do menino no colégio. A mãe do aluno [...] também compareceu e recebeu as
orientações sobre a postura de agressividade entre os alunos, e que eles serão encaminhados para
a delegacia caso isto ocorra novamente (Texto_14, Ocorrência_569, Ano_2015, Escola_4, Con-
teúdo_1).
A aluna relatou que saía de casa todos os dias e gazeava aula, passeava pela biblioteca e pelo centro.
Os procedimentos assumidos pela família consistem em ligar toda sexta-feira para a escola, com-
parecer uma vez por mês para acompanhar a frequência e o rendimento escolar, e assinar o termo
de compromisso e responsabilidade do colégio (Texto_35, Ocorrência_37, Ano_2014, Escola_3,
Conteúdo_2).
Para Dessen e Polonia (2007), a família e a escola constituem os dois principais
ambientes de desenvolvimento humano nas sociedades ocidentais contemporâneas. A
colaboração entre essas duas instâncias não deveria ocorrer somente no sentido de to-
mar conhecimento dos fatos, descaracterizando as funções pedagógicas desse
acompanhamento. Ao contrário, faz-se necessário que a escola valorize, reconheça e
trabalhe com as práticas educativas familiares, utilizando-as como recursos nos proces-
sos de aprendizagem e desenvolvimento cognitivo e moral dos alunos. No entanto, essa
colaboração deve levar em conta as diferenças culturais, a formação para a cidadania e
a valorização de ações e de decisões coletivas (DESSEN, POLONIA, 2007).
Do outro lado, a classe 2 (43 UCEs, 18,45%), denominada ‘Rendimento e Fre-
quência, teve uma contribuição diferenciada dos registros com conteúdo pedagógico
da escola C. Novamente, aponta-se para a complementariedade na análise de conteúdo,
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Viviane Terezinha Koga, Ademir José Rosso
346
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 331-352, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
uma vez que a classe 2 corrobora com as categorias B1 (frequência escolar) e B2 (acom-
panhamento pedagógico). Entre os sujeitos mencionados nessa classe, destacam-se três:
pai, pedagoga e diretora. As ações consistem em apresentar e comparecer. Já os adjetivos
são os seguintes: responsável, convocado, advertido, matriculado e referida. Constata-
se, também, a presença dos substantivos série, período, manhã, dia, ano, direção, ren-
dimento, faltas, frequência, ciência e reunião.
Essa classe evidencia as ocorrências em que são feitos os comunicados às famílias,
referentes à frequência e ao desempenho escolar dos alunos, a fim de compartilhar com
eles essa responsabilidade. Os comunicados têm, também, o propósito de isentar a es-
cola desse encargo, caso o aluno venha a reprovar. Essas narrativas servem para proteger
a escola de uma eventual culpabilização, funcionando como prova externa de que se
tomou ciência e se encaminharam as devidas providências em relação a cada caso
(RATTO, 2007). É “uma forma de o professor proteger-se a si mesmo e a escola, cons-
truindo um dossiê do aluno” (FONSECA, SALES, SILVA, 2014, p. 40). Nota-se que
a escola precisar cercar-se de todo tipo de precaução para que não venha a ser acusada
de negligência. Um dos motivos para esse cerceamento está relacionado “às garantias
legais relacionadas ao direito ao ensino fundamental e à obrigatoriedade do Estado em
garanti-lo” (RATTO, 2006, p. 1267). Contudo, quando a família vem à escola, o dis-
curso não é de orientação e acompanhamento pedagógico dos alunos, mas de
advertência, de controle e de imposição de atitudes e condutas, descaracterizando suas
funções pedagógicas e morais.
A seguir são apresentados três extratos de texto dos registros que entraram na
composição da classe 2: 1) “Realizou-se, na sala da pedagoga, a reunião com a tia da
aluna [...], matriculada no nono ano, com o objetivo de alertar e advertir sobre suas
faltas sem justificativa” (Texto_26, Ocorrência_13, Ano_2015, Escola_3, Conte-
údo_2); 2) “Compareceu à escola a mãe e responsável pelo aluno [...], matriculado na
primeira série, a qual tomou ciência das suas faltas consecutivas desde o dia dezesseis
de maio do corrente ano” (Texto_31, Ocorrência_24, Ano_2014, Escola_3, Conte-
údo_2) e 3) “Compareceu ao colégio o senhor [...], responsável pela aluna [...],
matriculada no nono ano. A diretora encaminhou as orientações do cumprimento das
normas do colégio, horário, uniforme, atrasos, faltas e rendimento escolar” (Texto_33,
Ocorrência_29, Ano_2014, Escola_3, Conteúdo_1).
Ao identificar os fatores de risco relacionados ao rendimento e à repetência dos
alunos, é necessário que a escola adote medidas pedagógicas para sua superação, como
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Livros de ocorrências: características e contribuições para o desenvolvimento moral dos alunos
347
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 331-352, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
o acompanhamento desses alunos, o investimento na criação de hábitos de estudo, ofe-
recendo-lhes reforço educativo, implementando políticas para a correção da defasagem
idade-série, dentre outras.
Ligada à classe 2 aparece a classe 4 (38 UCEs, 16,31%), denominada ‘Encami-
nhamentos’. Esta classe teve uma contribuição diferenciada dos registros da escola A e
trata das providências ou procedimentos adotados pelas escolas diante dos conflitos.
Destacam-se nela a patrulha escolar, o registro de boletim de ocorrência e a condução
do caso para o conselho tutelar. Entre os substantivos citados, sobressaíram-se: medi-
das, tipo, conflito, encaminhamento, providências, orientação, conversa e telefone.
Como ação, o verbo dever e as conjugações deve e deverá. Já entre os adjetivos, desta-
cam-se: necessárias, cabíveis e responsáveis.
Na classe 4, complementar à análise de conteúdo no que se refere aos encami-
nhamentos, notam-se as instâncias de terceirização dos problemas nas escolas. Essas
instâncias empregam punições e ações unilaterais, bem como incentivam a delação e a
culpabilização. Tais medidas não contribuem para o desenvolvimento moral dos alunos
em direção à autonomia e nem mesmo para a resolução dos conflitos escolares, pois
servem apenas como uma forma de controle do comportamento que colabora para a
formação de indivíduos moralmente heterônomos, que seguem as regras por medo e
que dependem sempre de uma regulação externa.
Dentre os extratos que entraram na composição dessa classe, foram selecionados
três: 1) “A mãe vai registrar boletim de ocorrência e passaremos o caso para a patrulha
escolar, que tomará as medidas cabíveis” (Texto_41 *Ocorrência_2 *Ano_2015 *Es-
cola_1 *Conteúdo_1); 2) “Registramos que passamos aos patrulheiros [...] e [...] a
situação de ameaça pelo facebook, sofrida pela aluna [...], do nono ano, para orientação
e tomada das medidas cabíveis, bem como o registro de ocorrência na delegacia de
polícia” (Texto_42, Ocorrência_3, Ano_2015, Escola_1, Conteúdo_1); 3) “Vamos
conversar com a aluna e notificar sua mãe para as medidas cabíveis, a fim de que não
se repita este tipo de situação. Esta ocorrência será repassada, também, à patrulha esco-
lar para orientações” (Texto_43, Ocorrência_4, Ano_2015, Escola_1, Conteúdo_1).
Considerando os extratos da classe 4, nota-se o respeito unilateral e as relações
de coação em que as normas são impostas de fora, pela patrulha escolar, pelo conselho
tutelar e por meio do boletim de ocorrência. Vale ressaltar que, para a resolução dos
conflitos, as normas devem ser construídas dentro da escola, com a participação da
comunidade escolar. Isso supõe que o aluno possa vivenciar práticas morais em todos
os aspectos e ambientes da escola (PUIG, 2004), contudo, estes encaminhamentos não
foram identificados em nenhum registro analisado.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Viviane Terezinha Koga, Ademir José Rosso
348
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 331-352, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Considerações finais
A partir da análise de conteúdo, é possível afirmar que 83,33% das ocorrências
analisadas possuem conteúdo moral e estão relacionadas, principalmente, a casos de
desinteresse, indisciplina e desrespeito; 16,66% possuem conteúdo pedagógico, relaci-
onadas à frequência e ao desempenho escolar dos alunos. Os registros têm somente
características descritivas, tendo os alunos como os alvos e os professores, diretores e
coordenadores pedagógicos como relatores. A metodologia adotada pelas escolas é de
‘empurra-empurra’, na medida em que repassa a culpa de uma instância para outra, o
que não contribui para a resolução dos problemas morais e pedagógicos vivenciados e
não avança na formação moral e intelectual dos alunos em direção à autonomia.
As práticas morais estão na condução verbal e na terceirização dos problemas,
evidenciando uma crença na regulação externa e na transmissão como suficientes para
a formação moral dos alunos. Não foi identificado, em nenhuma ocorrência, o registro
de ação ou espaço de sociabilidade, envolvendo a cooperação ou favorecendo a partici-
pação ativa dos alunos e que, portanto, pudesse ser considerado positivo para o
desenvolvimento moral e para a construção de valores nas escolas investigadas.
Com o auxílio do Alceste, evidenciou-se a formação de quatro classes distintas,
complementares às categorias da análise de conteúdo, que, em ordem decrescente, tra-
tam do comportamento dos alunos em sala, do acompanhamento familiar, do
rendimento e frequência e dos encaminhamentos dados pela escola em casos de confli-
tos.
A análise de conteúdo coadjuvada pelo software Alceste reitera o estudo realizado
por Ratto (2002) na medida em que os LO analisados funcionam como prova, no que
se refere aos pontos de vista interno e externo. Internamente, registram-se indícios,
como testemunhos, confissões, acareações dos alunos; e, externamente, atesta-se que a
escola encaminhou todas as soluções possíveis. A família é inserida nessa lógica disci-
plinar da escola quando lhe cobram o controle e os resultados que ela mesma, como
agente educativo qualificado, não conseguiu garantir (RATTO, 2006). De tal modo,
os LO analisados constituem-se como práticas de controle e governança dos alunos e
de suas famílias, visando à ordem e à moralidade dos sujeitos, associadas aos aspectos
pedagógicos (RATUSNIAK, 2012).
Neles relatam-se os conflitos escolares normativos e morais sem o devido desen-
volvimento de práticas promotoras da construção de valores e da moralidade
autônoma. As regras convencionais e morais são colocadas no mesmo patamar, expres-
sando uma inversão de valores ou uma priorização errônea das escolas. A ênfase está no
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Livros de ocorrências: características e contribuições para o desenvolvimento moral dos alunos
349
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 331-352, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
conflito em si e não no processo de resolução ou na elaboração de práticas coletivas que
expressem valores. Para os alunos, isso é de pouca valia, uma vez que é no momento
em que eles participam dessas práticas morais que constroem o significado e/ou sentido
das regras. Portanto, a palavra-chave para a construção dos LO e, consequentemente,
para a resolução dos conflitos escolares deveria ser a participação ativa da comunidade
escolar, aspecto que não é evidenciado pelas análises realizadas.
Os achados desta pesquisa avançam ao apontar aspectos importantes da prática
pedagógica existente nas escolas no que diz respeito ao sistema disciplinar empregado
pelos LO. Além disso, reitera a literatura existente sobre o tema e ressalta a necessidade
de mudança das práticas escolares frente aos problemas morais e pedagógicos, pois não
basta apenas que eles sejam identificados, registrados, comunicados aos pais e encami-
nhados para as instâncias superiores.
Ainda nessa direção, os registos do LO possuem indícios importantes, que po-
dem subsidiar a escola na análise da sua proposta pedagógica, tendo em vista o
desenvolvimento cognitivo e moral dos alunos. Nesse sentido, precisam ser considera-
dos como oportunidades de reflexão e tomada de consciência. Só assim a escola deixará
de constatar, registrar e queixar-se para assumir o papel educativo do qual não poderia
declinar. Tal papel somente poderá ser realizado por meio do diálogo, da participação
ativa e de negociações que favoreçam as relações de cooperação na comunidade escolar,
sendo essas condições imprescindíveis para o desenvolvimento cognitivo e moral autô-
nomo.
Notas
1
A Patrulha Escolar é um programa da Polícia Militar em parceria com a Secretaria Estadual de Educa-
ção que atende todas as escolas estaduais do Paraná e busca reduzir a violência e a criminalidade nas
escolas e nas suas proximidades.
Referências
ALVES, Marina Gaio. Viver na escola: indisciplina, violência e bullying como desafio
educacional. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 46, n. 161, p. 594-613, jul./set. 2016.
Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/198053143679>. Acesso em: 13 maio 2020.
AQUINO, Julio Gropa. Da (contra) normatividade do cotidiano escolar: problematizando
discursos sobre a indisciplina discente. Cadernos de pesquisa, São Paulo, v. 41, n. 143, p. 456-
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Viviane Terezinha Koga, Ademir José Rosso
350
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 331-352, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
484, maio/ ago. 2011. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0100-
15742011000200007>. Acesso em: 13 maio 2020.
BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo, SP: Edições 70, 2011.
BISPO, Fábio Santos; LIMA, Nádia Laguárdia de. A violência no contexto escolar: uma
leitura interdisciplinar. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 30, n. 2, p. 161-180,
abr./jun. 2014. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0102-46982014000200008>.
Acesso em: 13 maio 2020.
BOTLER, Alice Miriam Happ. Injustiça, conflito e violência: um estudo de caso em escola
pública de Recife. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 46, n. 161, p. 716-732, jul./set. 2016.
Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/198053143676>. Acesso em: 13 maio 2020.
BRAGA, Keith Daiani da Silva. Homofobia na escola: análise do livro de ocorrência. 2014.
Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de
Ciências e Tecnologia, Presidente Prudente, 200 f. 2014. Disponível em:
<http://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/113831/000802257.pdf?sequence=1&i
sAllowed=y>. Acesso em: 13 maio 2020.
DESSEN, Maria Auxiliadora; POLONIA, Ana da Costa. A Família e a Escola como
contextos de desenvolvimento humano. Paidéia, Ribeirão Preto, v. 17, n. 36, p. 21-32,
jan./abr. 2007. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0103-863X2007000100003>.
Acesso em: 13 maio 2020.
FLICK, Uwe. Introdução à pesquisa qualitativa. Tradução de José Elias Costa. 3 ed. Porto
Alegre: Artmed, 2009.
FONSECA, Débora Cristina; SALLES, Leila Maria Ferreira; SILVA, Joyce Mary Adam de
Paula e. Contradições do processo de disciplinamento escolar: os “Livros de Ocorrências” em
análise. Psicologia Escolar e Educacional, São Paulo, v. 18, n. 1, p. 35-44, jan./abr. 2014.
Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/pee/v18n1/v18n1a04.pdf>. Acesso em: 13 maio
2020.
GALINKIN, Ana Lúcia; ALMEIDA, Angela Maria de Oliveira; ANCHIETA, Vânia
Cristine Cavalcante. Representações Sociais de Professores e Policiais sobre Juventude e
Violência. Paidéia, Ribeirão Preto, v. 22, n. 53, p. 365-374, set./dez. 2012. Disponível em:
<http://dx.doi.org/10.1590/S0103-863X2012000300008>. Acesso em: 13 maio 2020.
GAMA, Anailton de Souza. Livros de Ocorrência: da prática do Vigiar e Punir aos 'recursos
para o bom adestramento'. Web-Revista Discursividade: Estudos Linguísticos, Paranaíba, v. 1,
p. 95-120, 2009. Disponível em:
<http://www.discursividade.cepad.net.br/EDICOES/04/Arquivos04/09.pdf>. Acesso em: 13
maio 2020.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Livros de ocorrências: características e contribuições para o desenvolvimento moral dos alunos
351
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 331-352, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
GIORDANI, Jaqueline Portella; SEFFNER, Fernando; DELL’AGLIO, Débora Dalbosco.
Violência escolar: percepções de alunos e professores de uma escola pública. Psicologia Escolar
e Educacional, São Paulo, v. 21, n. 1, p. 103-111, jan./abr. 2017. Disponível em:
<http://dx.doi.org/10.1590/2175-3539201702111092>. Acesso em: 13 maio 2020.
IBGE. Consulta cidades, 2017. Disponível em: <https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pr/ponta-
grossa/panorama>. Acesso em: 13 maio 2020.
NOGUEIRA, Eliete Jussara; SOARES, Maria Lúcia de Amorim. Desafios educacionais na
modernidade líquida: cotidiano, medo e indisciplina. Revista Educação e Cultura
Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 12, n. 27, p. 153-174. 2015. Disponível em: <h
http://periodicos.estacio.br/index.php/reeduc/article/view/354/631>. Acesso em: 13 maio
2020.
PARANÁ. SEED em números: consulta às escolas. 2017. Disponível em:
<http://www4.pr.gov.br/escolas/numeros/>. Acesso em: 24 jul. 2017.
PIAGET, Jean. O juízo moral na criança. (Elzon Leonardon, Trans.). São Paulo, SP:
Summus, 1994.
PIAGET, Jean. Os procedimentos da Educação Moral. In: MACEDO, L. de (Org.), Cinco
estudos de Educação Moral. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo, 1996, p.1-36.
PREDIGER, Juliane; BERWANGER, Luana; MÖRS, Marlete Finke. Relação entre aluno e
matemática: reflexões sobre o desinteresse dos estudantes pela aprendizagem desta disciplina.
Revista Destaques Acadêmicos, Lajeado, v. 1, n. 4, p. 23-32. 2009. Disponível em:
<http://univates.br/revistas/index.php/destaques/article/view/39>. Acesso em: 13 maio 2020.
PUIG, Josep Maria. Práticas Morais: uma abordagem sociocultural de educação moral.
Tradução de Cristina Antunes. São Paulo: Moderna, 2004.
RATTO, Ana Lúcia Silva. Cenários criminosos e pecaminosos nos livros de ocorrência de
uma escola pública. Revista Brasileira de Educação, Brasília, n. 20, 95-106. maio/ ago. 2002.
<http://dx.doi.org/10.1590/S1413-24782002000200008>. Acesso em: 13 maio 2020.
RATTO, Ana Lúcia Silva. Disciplina, infantilização e resistência dos pais: a lógica disciplinar
dos livros de ocorrência. Educação & Sociedade, Campinas, v. 27, n. 97, p. 1259-1281.
set./dez. 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/es/v27n97/a09v2797.pdf>. Acesso
em: 13 maio 2020.
RATTO, Ana Lúcia Silva. Disciplina, vigilância e pedagogia. Cadernos de Pesquisa, São
Paulo, v. 37, n. 131, p. 481-510. maio/ago. 2007. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/cp/v37n131/a1237131.pdf>. Acesso em: 13 maio 2020.
RATUSNIAK, Célia. A história de uns e não de outros: o caderno de ocorrências e a
constituição das práticas disciplinares, de controle e de governo das crianças em uma escola
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Viviane Terezinha Koga, Ademir José Rosso
352
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 331-352, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
pública de anos iniciais. 2012. 167 f. Dissertação (Mestrado em Educação) Universidade
Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil. 2012. Disponível em:
<https://repositorio.ufsc.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/99380/313760.pdf?sequenc
e=1&isAllowed=y>. Acesso em: 13 maio 2020.
ROSSO, Ademir José; CAMARGO, Brigido Vizeu. As representações sociais das condições
de trabalho que causam desgaste aos professores estaduais paranaenses. Educação Temática
Digital, Campinas, v. 13, n. 1, p. 269-289. jul./dez. 2011. Disponível em:
<https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/etd/article/view/1180>. Acesso em: Acesso
em: 13 maio 2020.
ROSSO, Ademir José; CAMARGO, Brigido Vizeu. As representações sociais do desgaste no
trabalho a partir dos simbolismos associados à docência. Educação Temática Digital,
Campinas, v. 15, n. 1, p. 163-184. jan./abr. 2013. Disponível em:
<http://dx.doi.org/10.20396/etd.v15i1.1301>. Acesso em: 13 maio 2020.
SOUZA, Leonardo Lemos de; VASCONCELOS, Mario Sergio. Juízo e ação moral: desafios
teóricos em psicologia. Psicologia e Sociedade, Florianópolis, v. 21, n. 3, p. 343-352. set./dez.
2009. Disponível em: <
https://www.scielo.br/j/psoc/a/m5FrbzqKgVt9RpJ6gJtQHXC/?lang=pt>. Acesso em: 13
maio 2020.
TOGNETTA, Luciene Regina Paulino; VINHA, Telma Pileggi. Quando a escola é
democrática: um olhar sobre a prática das regras e assembléias na escola. Campinas: Mercado
das Letras, 2007.
TOGNETTA, Luciene Regina Paulino. Bullying na escola: o olhar da psicologia para o
problema moral. In: GARCIA, Joe; TOGNETTA, Luciene Regina Paulino; VINHA, Telma
Pileggi. Indisciplina, conflitos e bullying na escola. Campinas: Mercado das Letras, 2013. p. 61-
90
VINHA, Telma Pileggi. Os conflitos interpessoais na escola. In: GARCIA, Joe;
TOGNETTA, Luciene Regina Paulino; VINHA, Telma Pileggi. Indisciplina, conflitos e
bullying na escola. Campinas: Mercado das Letras, 2013. p. 61-90.
Este artigo está licenciado com a licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
353
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 353-374, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
A organização de ensino em ciclo no munipio de Teixeira de
Freitas BA
The organization of cycle education in the city of Teixeira de Freitas
BA
Organización de la educación en ciclo en la ciudad de Teixeira de Freitas
– BA
Maria Elizabete Souza Couto
*
Priscila Alves Pereira
**
Resumo
Este artigo tem como objetivo compreender a organização de ensino sobre o regime de ciclos no
município de Teixeira de Freitas. A pesquisa desenvolvida foi de abordagem qualitativa e utilizou
como procedimento para a produção dos dados a entrevista com professores e a coordenadora da
escola e a análise dos seguintes documentos: Regimento Escolar Unificado das Escolas Municipais
de Teixeira de Freitas BA (2011), versão preliminar das Diretrizes Curriculares Municipais para o
Ciclo de Alfabetização (DCMA), bem como a legislação nacional e municipal que contempla a or-
ganização de ensino em ciclo. A partir de uma análise descritiva com o material produzido na
entrevista e nos documentos foi possível inferir que o ciclo de aprendizagem é a forma que mais se
aproxima da organização de ensino na rede pesquisada, tendo como finalidade garantir o fluxo esco-
lar, minimizar os índices de reprovação e promover a criação de vagas para matrícula na escola, o que
parece continuar sendo os principais motivos que justificaram a adesão do governo municipal a essa
organização do sistema de ensino, embora não esteja clara uma referência sobre a valorização da
infância e uma aprendizagem autônoma para a formação da cidadania.
Palavras-chave: ciclo de alfabetização; progressão continuada; organização do ensino.
Recebido em: 24/10/2019Aprovado em: 27/06/2022
https://doi.org/10.5335/rep.v29i1.10122
ISSN on-line: 2238-0302
*
Doutora em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (2005). Professora na Universidade Estadual de Santa Cruz
e credenciada no programa de Pós-Graduação em Educação Matemática (PPGEM) e no Programa de Pós-Graduação em
Educação (PPGE). Orcid: https://orcid.org/0000-0002-0026-5266. E-mail: melizabetesc@gmail.com.
**
Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação e Contemporaneidade da Universidade do Estado
da Bahia (UNEB). É professora efetiva da rede pública municipal de ensino da cidade de Teixeira de Freitas BA. Atua
também como professora substituta no Departamento de Educação do Campus X da Universidade do Estado da Bahia.
Orcid: https://orcid.org/0000-0003-1672-1833. E-mail: priscilaalvespereira@gmail.com.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Maria Elizabete Souza Couto, Priscila Alves Pereira
354
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 353-374, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Abstract
This article aims to understand the organization of teaching on the cycle regime in the municipality
of Teixeira de Freitas. The research developed was of a qualitative approach and used as a procedure
for the production of data the interview with teachers and the school coordinator and the analysis
of the following documents: Unified School Regiment of Municipal Schools of Teixeira de Freitas -
BA (2011), preliminary version of the Municipal Curriculum Guidelines for the Literacy Cycle
(DCMA), as well as the national and municipal legislation that contemplates the organization of
teaching in a cycle. From a descriptive analysis with the material produced in the interview and in
the documents it was possible to infer that the learning cycle is the form that is closest to the teaching
organization in the researched network, with the purpose of guaranteeing school flow, minimizing
failure rates and promoting the creation of vacancies. for enrollment in school, which seems to con-
tinue to be the main reasons that justified the adhesion of the municipal government to this
organization of the education system, although there is not a clear reference on the appreciation of
childhood and autonomous learning for the formation of citizenship.
Keywords: organization of education; literacy cycle; continued progression.
Resumen
Este artículo tiene como objetivo comprender la organización de la enseñanza sobre el régimen de
ciclo en el municipio de Teixeira de Freitas. La investigación desarrollada fue de abordaje cualitativo
y utilizó como procedimiento para la producción de datos la entrevista con docentes y el coordinador
de la escuela y el análisis de los siguientes documentos: Regimiento Escolar Unificado de Escuelas
Municipales de Teixeira de Freitas - BA (2011), versión preliminar de los Lineamientos Curriculares
Municipales para el Ciclo de Alfabetización (DCMA), así como la legislación nacional y municipal
que contempla la organización de la enseñanza en un ciclo. A partir de un análisis descriptivo con el
material producido en la entrevista y en los documentos fue posible inferir que el ciclo de aprendizaje
es la forma más cercana a la organización docente en la red investigada, con el propósito de garantizar
el flujo escolar, minimizar las tasas de reprobación y promover la creación de vacantes para la esco-
larización, que parecen seguir siendo las principales razones que justificaron la adhesión del gobierno
municipal a esta organización del sistema educativo, aunque no hay una referencia clara sobre la
valorización de la niñez y el aprendizaje autónomo para la formación de la ciudadanía.
Palabras clave: organización de la educación; ciclo de alfabetización; progresión continua.
Introdução
[...] o que os melhores e mais inteligentes pais querem para seu próprio filho, deve
ser o que a comunidade quer para todas as suas crianças.
John Dewey (1929)
Desde o ano de 2014, a rede municipal de ensino da cidade de Teixeira de Frei-
tas, Bahia optou pelo formato de ciclo de alfabetização para organizar o funcionamento
das turmas de 1º ao 3º ano do Ensino Fundamental. De maneira geral, essa forma de
organização prevê a progressão continuada dos estudantes no ciclo e tem como objetivo
ESPAÇO PEDAGÓGICO
A organização de ensino em ciclo no município de Teixeira de Freitas BA
355
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 353-374, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
garantir o direito das crianças em relação ao seu processo de alfabetização e letramento,
bem como o desenvolvimento dos alunos nas diferentes áreas do conhecimento, a di-
minuição das desigualdades sociais existentes entre as crianças das classes populares que
estudam em escolas públicas e das injustiças que existem nas sociedades, contribuindo,
assim, para o desenvolvimento e valorização da infância, bem como a formação de ci-
dadãos críticos e emancipados.
Sendo assim, este artigo tem como objetivo compreender a organização de ensino
sobre o regime de ciclos no município de Teixeira de Freitas. Para compreendê-la apre-
sentaremos os aspectos históricos, legais e conceituais relacionados a organização escolar
em ciclo, bem como a análise dos documentos referentes à implantação do ciclo de
alfabetização no município de Teixeira de Freitas Bahia e, por fim, as considerações.
1 Aspectos históricos
Desde o início do período republicano no Brasil, por volta de 1890, quando o
sistema escolar começa a ser sistematizado, o modelo seriado predomina como forma
convencional de organização das escolas. Esse modelo deixou como marcas um alto
índice de reprovação que, por sua vez, só contribuiu para uma imagem negativa da
educação brasileira no cenário mundial, traduzido, por exemplo, em baixos índices de
escolaridade, visto que era ofertado a mesma “educação que é rotineiramente disponi-
bilizada a outros que são economicamente mais privilegiados (ZEICHNER, 2008, p.
14). Na tentativa de equilibrar esse quadro e diminuir as desigualdades, uma nova
forma de organização escolar ganha destaque nas redes de ensino do país: a organização
escolar em ciclos.
Segundo Barreto e Mitrulis (2001, p. 103) “os ciclos compreendem períodos de
escolarização que ultrapassam as séries anuais, organizados em blocos cuja duração va-
ria, podendo atingir até a totalidade de anos prevista para um determinado nível de
ensino”. Ao estabelecer uma duração maior do período de aprendizagem, não mais
recortando-o ano a ano, os ciclos mostram-se como uma alternativa viável a um dos
grandes vilões da educação brasileira: a reprovação. Isso parece ser possível porque, em
uma organização em ciclos, a reprovação pode ocorrer ao final de cada ciclo (que com-
preende um período flexível de anos, normalmente, entre dois ou quatro) ou, apenas,
ao final da etapa de ensino. Isso acontece, por exemplo, quando o Ensino Fundamental
é organizado em ciclos, mas a reprovação só é permitida no último ano dessa etapa.
A organização escolar em ciclos, como é conhecida hoje, tem seus fundamentos
em experiências vivenciadas desde a época da transição entre a sociedade feudal para a
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Maria Elizabete Souza Couto, Priscila Alves Pereira
356
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 353-374, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
sociedade capitalista. Sendo assim, os primeiros indícios desse tipo de organização da
escola foram encontrados na França, pós período da Revolução Francesa (1789), jus-
tamente em uma época em que os princípios da liberdade, igualdade e fraternidade
ganhavam destaque em uma nova sociedade que estava surgindo (SILVA, 2006 apud
MAINARDES, 2009). Nesse período, era interesse dos responsáveis pela educação que
o acesso à escola fosse gratuito e oportunizado a todos. Entretanto, os filhos da classe
operária e dos camponeses nem sempre conseguiam cursar os níveis subsequentes ao
ensino primário. Essas crianças representavam uma mão de obra importante e as con-
dições para prosseguir nos estudos ficavam ligadas à necessidade de trabalho imposta
pelo empregador.
Com esse cenário, é possível perceber que essa abertura da escola não passou de
uma jogada burguesa em que é oferecida aos mais pobres uma possibilidade de conti-
nuidade nos estudos e, consequentemente, de melhoria das condições de vida, mas que,
na prática, o privilégio de continuar estudando ainda ficava restrito à elite da sociedade.
Para Mainardes (2009, p. 24), “[...] essas evidências históricas são fundamentais para
compreender que a ideia de flexibilização da escolarização, já na sua origem, estava
estreitamente relacionada às determinações econômicas e de classe social”. Essa pre-
missa propõe uma nova organização escolar para atender às demandas de um
determinado contexto social, na tentativa de minimizar a exclusão vivida pelos que são
desfavorecidos na sociedade e, ainda hoje, permeia as justificativas utilizadas para a im-
plantação do ciclo em uma rede de ensino.
A flexibilização do tempo de aprendizagem, característica da organização escolar
em ciclos, já estava presente desde o século XVIII, mas é em meados do século XX
(entre 1946 e 1947) que a escola em ciclos se apresenta de forma mais substancial. Isso
se deu com o Plano de Reforma Langevin-Wallon. Esse plano foi escrito pelos autores
que tiveram seus nomes incluídos no título da proposta (Paul Langevin e Henri Wal-
lon) e foi criado para uma reorganização completa no ensino da França, pós Segunda
Guerra Mundial. Nesse novo plano, o ensino contemplava o 1º ciclo, composto por
alunos de 7 a 11 anos, o 2º ciclo, chamado de ciclo de orientação, para alunos de 11 a
15 anos e o 3º ciclo ou ciclo de determinação, com alunos de 15 aos 18 anos, com os
seguintes princípios: “[…] o princípio da justiça, a democratização do ensino, a valori-
zação das aptidões individuais, o desenvolvimento de uma cultura sólida e o
aperfeiçoamento contínuo do cidadão e do trabalhador” (MAINARDES, 2009, p. 26).
Apesar de nunca ter sido efetivado na prática, esse plano foi considerado um marco e
ESPAÇO PEDAGÓGICO
A organização de ensino em ciclo no município de Teixeira de Freitas BA
357
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 353-374, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
uma referência para a organização escolar em ciclos, pois os ideais ali expressos per-
meiam, ainda hoje, os documentos oficiais de várias redes de ensino que optaram por
essa organização.
Ainda no cenário mundial, pode-se destacar o Canadá e a Suíça, como apresenta
Mainardes (2009, p. 27), com experiências bem sucedidas da organização escolar em
ciclos e nelas, “a implantação dos ciclos também foi justificada pela necessidade de se
respeitar os ritmos diferenciados e evitar o fracasso escolar”. Enquanto estes aspectos
indicam uma preocupação inerente à qualidade do desenvolvimento da criança, com
foco nas questões pedagógicas, no Brasil, pode-se dizer que os aspectos políticos impul-
sionaram a implantação dos ciclos. Entre estes aspectos, destacam-se: a diminuição da
taxa de reprovação, a garantia do fluxo escolar, o não desperdício do dinheiro público
e a valorização da infância.
Assim, o regime seriado ganhou forças no Brasil nos anos de 1890. Entretanto,
no período entre 1910 e 1920, as taxas de reprovação já assustavam os governantes. Na
tentativa de minimizar esses índices, garantir o fluxo escolar e, consequentemente, a
existência de vagas nas escolas, algumas medidas foram tomadas e a mais conhecida foi
a promoção em massa.
De acordo com os estudos de Mainardes (2007), desde 1930, no Brasil, com a
Reforma Francisco Campos e, entre 1942 e 1946, com a Reforma Capanema, o termo
“ciclo” já era utilizado para fazer referência “ao agrupamento dos anos de estudos”
(MAINARDES, 2007, p. 53-54). Posteriormente, a literatura apresenta indícios de
que em 1958, no Estado do Rio Grande do Sul, havia uma proposta de organização
escolar que priorizava a não-reprovação entre as séries, característica inerente ao ciclo,
mas, só a partir de 1984, com a implementação do Ciclo Básico de Alfabetização
(CBA), no estado de São Paulo, que o ciclo é validado como forma de organização
escolar.
Essa ação, porém, causou grande debate no meio educacional nas décadas se-
guintes (1950 e 1960). Anísio Teixeira e Juscelino Kubitscheck eram ávidos defensores
da promoção automática, usando, como justificativa, que “a adoção desse novo sistema
reduziria a seletividade da escola e o desperdício de recursos financeiros
(MAINARDES, 2007, p. 59). Além disso, a redução dos índices de reprovação e evasão
e a garantia de novas vagas se somavam às justificativas utilizadas pelos que eram favo-
ráveis à promoção automática.
Nos anos seguintes, o termo “promoção automática” foi evitado pelos que se
propunham a apostar na escola em ciclos. Segundo Mainardes (2007, p. 62), termos
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Maria Elizabete Souza Couto, Priscila Alves Pereira
358
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 353-374, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
como “avanços progressivos”, “organização em níveis”, “promoção por rendimento efe-
tivo” ganharam destaque. Assim, o conceito de promoção automática estava ligado à
queda da qualidade de ensino, uma vez que, de acordo com essa ideia, o importante
era a aprovação, independente se o aluno houvesse alcançado a aprendizagem esperada
ou não.
Entre 1958 e 1984, o Distrito Federal e estados das regiões Sul (Rio Grande do
Sul e Santa Catarina), Sudeste (São Paulo e Rio de Janeiro) e Nordeste (Pernambuco)
desenvolveram diversas políticas de não-reprovação entre as séries escolares. Apesar de
diferenças na organização, essas políticas privilegiavam a não reprovação nas séries ini-
ciais do ensino, buscavam homogeneizar as turmas e, em algumas dessas experiências,
eram ofertadas classes de aceleração àqueles que não conseguiam o rendimento espe-
rado.
Contudo, essas experiências não tiveram uma longa duração (exceto no estado
de Santa Catarina) e a não continuidade dos programas estava relacionada a vários fa-
tores (MAINARDES, 2007). Entre eles, destacam-se a forma autoritária de
implementação dessas experiências, a pouca e ineficiente formação oferecida aos pro-
fessores e a inadequada estrutura de muitas escolas que prejudicavam a sua organização.
Após tantas tentativas de melhorar os índices de aprovação e garantir a aprendi-
zagem, foi implantado, em 1984, no estado de São Paulo, o Ciclo Básico de
Alfabetização (CBA), que representou um divisor de águas quanto à política de orga-
nização escolar em ciclos, uma vez que estava ligado à mudança que o iminente governo
democrático estava vivendo.
Além de extinguir a reprovação, o CBA permitia o remanejamento e o respeito
às diferenças individuais dos alunos (MAINARDES, 2007). Identifica-se, nessa pro-
posta, uma preocupação centrada na aprendizagem dos alunos, em detrimento dos
aspectos administrativos e financeiros. É evidente a valorização da ampliação do tempo
para aprender, bem como há um cuidado maior com a forma de ensinar, de modo que
a criança se torne o centro do processo de aprendizagem.
Por esses motivos e com a continuidade de funcionamento, a experiência do CBA
influenciou a inclusão da organização escolar em ciclos na Lei de Diretrizes e Bases da
Educação nº 9.394/1996. A partir desta lei, documentos importantes, como os Parâ-
metros Curriculares Nacionais (PCN), privilegiavam o ciclo como referência na
organização do currículo. Em seguida, outras capitais, como Belo Horizonte (Escola
Plural - 1995), Porto Alegre (Escola Cidadã - 1996) e Belém (Escola Cabana - 1997)
passaram a ser referências na organização da escola em ciclos. Atualmente, o Ciclo de
ESPAÇO PEDAGÓGICO
A organização de ensino em ciclo no município de Teixeira de Freitas BA
359
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 353-374, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Alfabetização (ou ciclo da Infância), também, compreende características inspiradas no
CBA (MAINARDES, 2007).
2 Aspectos legais
Recentemente, a organização em ciclos alcança um grande número de escolas
brasileiras e, apesar de indícios dessa organização existir desde o final da década de
1950, é com a implantação do Ensino Fundamental de nove anos e a inserção da cri-
ança de seis anos no 1º ano que a organização em ciclo ganha destaque no cenário
educacional brasileiro.
Na tentativa de atender às demandas das redes de ensino que estavam passando
por adaptações e mudanças no sentido de se adequarem às orientações previstas na lei,
o Governo Federal decide estabelecer a Resolução nº 7 de 14 de dezembro de 2010
com diretrizes para nortear o funcionamento do Ensino Fundamental de nove anos.
Uma das mudanças fixadas pela Resolução, no Artigo 30, inciso 1, diz respeito à orga-
nização dos três primeiros anos dessa modalidade de ensino em regime de ciclo
sequencial ou bloco pedagógico. Ainda, cabe a esse ciclo ou bloco, garantir: a alfabeti-
zação e o letramento; o aprendizado nas diversas áreas da educação e também a
continuidade dos estudos no ciclo, garantindo, assim, o direito das crianças e, ainda,
considerando que a reprovação nessa fase inicial do Ensino Fundamental pode ser pre-
judicial à vida escolar. Uma proposta que visa a diminuição das desigualdades sociais
contribuindo, assim, para a valorização da infância e a formação de cidadãos com au-
tonomia.
Este ciclo é denominado como ciclo da infância
1
, mas, ficou conhecido como
ciclo de alfabetização
2
a partir da criação do Programa Nacional pela Alfabetização na
Idade Certa (PNAIC) em 2012. O programa propõe ações como o investimento na
formação continuada dos professores alfabetizadores, disponibilização de materiais di-
dáticos, livros de literatura infantil e tecnologias educacionais, avaliação e gestão,
controle e mobilização social. Além disso, o PNAIC representou uma das principais
ações do governo federal na busca pelo cumprimento da meta 5 do atual Plano Nacio-
nal de Educação (PNE), que prevê “alfabetizar todas as crianças até os oito anos de
idade”, ou seja, até o 3° ano do Ensino Fundamental. (BRASIL, 2014).
Atualmente, o desafio presente na meta 5 do PNE (2014) e objetivado por meio
das ações do PNAIC foi motivo de críticas no meio educacional, fazendo referências
ao estabelecimento de uma data de corte para o início e o fim da alfabetização (dos 6
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Maria Elizabete Souza Couto, Priscila Alves Pereira
360
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 353-374, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
aos 8 anos de idade), uma vez que essa limitação tende a desconsiderar o desenvolvi-
mento cognitivo e linguístico da criança que varia a depender de vários fatores (acesso
à cultura escrita, incentivo familiar, ingresso precoce à escola, não acesso à educação
infantil, problemas neurológicos, entre outros). Soares (2016, p. 345, grifo da autora)
chama a atenção para “o uso do advérbio até, que ressalta que se determina um tempo
máximo, não se impõe um tempo necessário”. Compreende-se que essa meta pretende
garantir que a aquisição de um direito básico à cidadania, o domínio da leitura e da
escrita, seja efetivado por aqueles pertencentes, principalmente, às camadas populares
da sociedade, vítimas de desigualdades.
Nesse sentido, é preciso considerar a desigualdade de oportunidades inerente aos
aspectos histórico, social, político, econômico, cultural e educacional no Brasil e, mais
uma vez, Soares (2016) faz um alerta quanto às
[...] razões de natureza social e política para determinar não propriamente o términodesse
processo, mas o nível mínimo de domínio da escrita que os sistemas devem assegurar às crianças
a fim de que tenham condições de prosseguir em sua escolarização e, sobretudo, em sua formação
para a cidadania, para a vida social e profissional assegurar a sua entrada no mundo da cultura
escrita (SOARES, 2016, p. 345, grifo da autora).
Dessa forma, definir um período de três anos para que as crianças se apropriem
do Sistema de Escrita Alfabética (SEA) é uma maneira de minimizar a desigualdade em
relação à autonomia do cidadão em uma sociedade letrada, ou seja, garantir que,
minimamente, as crianças das camadas populares tenham domínio da escrita e da
leitura para inserção nas práticas sociais que exigem o uso dessas habilidades.
Atualmente, com a aprovação da Base Nacional Curricular Comum (BNCC), a
proposta contida no documento seria a redução do tempo previsto para a alfabetização
de três para dois anos:
Nos dois primeiros anos do Ensino Fundamental, a ação pedagógica deve ter como foco a
alfabetização, a fim de garantir amplas oportunidades para que os alunos se apropriem do sistema
de escrita alfabética de modo articulado ao seu envolvimento em práticas diversificadas de
letramento (BRASIL, 2017, p. 55).
Essa ainda é uma orientação que demandará um tempo de adaptação das redes
de ensino quanto à organização do ciclo de alfabetização, em relação ao currículo. Per-
cebe-se que de 2012 até o momento, os sistemas de ensino estão sendo submetidos a
várias mudanças na tentativa de melhorar o processo de alfabetização. Entretanto, a
não consolidação de práticas pedagógicas inerentes a essas mudanças apresenta-se como
fator preocupante quanto à aprendizagem das crianças.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
A organização de ensino em ciclo no município de Teixeira de Freitas BA
361
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 353-374, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
3 Aspectos conceituais
Um ciclo é compreendido como um agrupamento de séries, organizadas de
forma que a reprovação não exista (PERRENOUD, 2004). Esse conceito, inicial-
mente, parece limitado em relação à proposta de melhoria da qualidade da educação;
proposta essa que é característica inerente à organização escolar em ciclos. De acordo
Silva (2017, n. p.), “utiliza-se na educação brasileira a palavra ciclo para designar cada
um dos níveis em que se divide o tempo do ensino público”. Dessa forma, um ciclo
alia a proposta de ampliação e flexibilização do tempo de aprendizagem, bem como
mudanças quanto à concepção de ensino e aprendizagem, currículo e avaliação escolar,
ou seja, fatores que vão além da simples extinção da reprovação.
Os ciclos que compõem o sistema educacional brasileiro podem ser de dois tipos:
ciclos de aprendizagem ou ciclos de formação humana. Há, ainda, o Regime de Pro-
gressão Continuada, que é considerado como uma organização em formato de ciclo e,
por isso, suas características são contempladas nesse texto (MAINARDES, 2007).
Perrenoud (2004, p. 35) parte do conceito de ciclo de estudos para, posterior-
mente, definir um ciclo de aprendizagem. Segundo ele, “um ciclo de estudos é
concebido como uma sequência de séries (ou níveis) anuais formando um todo”. A
partir dessa compreensão, um ciclo de estudos integra o currículo escolar, de modo que
haja um mesmo direcionamento na proposição das metas a serem alcançadas, das dis-
ciplinas a serem cursadas e da forma de ensino pela qual os professores deverão optar.
Seguindo essa lógica, apresenta uma definição básica que compreende que “um ciclo
de aprendizagem é um ciclo de estudos no qual não há mais reprovação”
(PERRENOUD, 2004, p. 35). Esse conceito sugere que os ciclos de aprendizagem
promovam uma evolução do sistema escolar como um todo: desde o progresso do tra-
balho docente até o respeito aos diferentes tempos de aprendizagem de cada indivíduo.
Segundo Mainardes (2007, p. 73), “nos ciclos de aprendizagem a organização
dos grupos e a promoção dos alunos baseiam-se na idade dos alunos. Ao final dos ciclos
de dois ou três anos de duração, os alunos que não atingiram os objetivos do ciclo
3
podem ser reprovados”. Assim, os ciclos de aprendizagem são organizados em períodos
mais curtos e propõem mudanças mais discretas no funcionamento escolar, relaciona-
das, principalmente, ao currículo e à avaliação. Além disso, no ciclo de aprendizagem,
a reprovação é permitida após um certo período de estudos, porém, não mais ano a
ano, como acontecia no regime seriado.
Já os ciclos de formação ou ciclo de formação humana se apresentam como uma
proposta comprometida com o direito ao desenvolvimento humano (ARROYO,
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Maria Elizabete Souza Couto, Priscila Alves Pereira
362
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 353-374, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
1999). Nesse caso, é proposta uma “mudança na concepção e na prática de educação
básica”, levando em conta os artigos 2º e 22º da LDB 9.394/96 que asseguram o pleno
desenvolvimento dos educandos como finalidade da educação. Arroyo conceitua ciclo
como uma
[...] procura, nada fácil, de organizar o trabalho, os tempos e espaços, os saberes, as experiências
de socialização da maneira mais respeitosa para com as temporalidades do desenvolvimento
humano. Desenvolver os educandos na especificidade de seus tempos-ciclos, da infância, da
adolescência, da juventude ou da vida adulta (ARROYO, 1999, p. 158).
Os ciclos de formação humana têm fundamentos da Psicologia, “baseiam-se nos
ciclos de desenvolvimento humano (infância, puberdade, adolescência) e propõem mu-
danças mais radicais no sistema de ensino e organização escolar” (MAINARDES, 2007,
p. 73). O desenvolvimento humano na infância seria a fase para construção dos conhe-
cimentos sociais, cognitivos e afetivos. E a escola é o local para sistematizar esses
conceitos que já começaram a ser construído nos espaços sociais como a família.
As mudanças a que o autor se refere dizem respeito a não reprovação de alunos
ao longo de todo o Ensino Fundamental (ou todo o período que o ciclo durar) e uma
nova forma de estruturação curricular, baseada, normalmente, em projetos temáticos,
agrupando os alunos a partir das etapas do desenvolvimento humano.
Outra forma de organização escolar é o Regime de Progressão Continuada, que
ganhou espaço quando foi contemplado no artigo 32, inciso segundo da LDB 9394/96
quando sugere que “Os estabelecimentos que utilizam progressão regular por série po-
dem adotar no ensino fundamental o regime de progressão continuada, sem prejuízo
da avaliação do processo de ensino-aprendizagem, observadas as normas do respectivo
sistema de ensino”. (BRASIL, 1996). Dessa forma, as redes de ensino podem optar pela
aprovação dos alunos entre as séries, garantindo-lhes a participação em processos de
avaliação que têm, como objetivo, identificar o nível de aprendizagem das crianças, sem
lhes atribuir uma nota ou outro parâmetro que fosse indicador de sua aprovação ou
reprovação.
O Regime de Progressão Continuada recebe críticas por revelar uma política que:
a) propõe uma ruptura apenas parcial com o modelo da escola seriada; b) propõe alterações pouco
substanciais no currículo, na avaliação, na organização da escola, na formação continuada dos
professores; c) em algumas redes parece ter sido implantada com o objetivo de diminuir a
reprovação e evasão e acelerar a passagem dos anos no Ensino Fundamental; d) tem gerado novas
formas de exclusão no interior da escola (MAINARDES, 2009, p. 66).
ESPAÇO PEDAGÓGICO
A organização de ensino em ciclo no município de Teixeira de Freitas BA
363
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 353-374, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Das críticas apresentadas, a última chama a atenção. Isso porque as primeiras já
aparecem em diferentes graus nas outras formas de organização em ciclo apresentadas
e se relacionam com os pressupostos que sustentaram a implantação dos ciclos na edu-
cação brasileira. Entretanto, é preciso atentar para as “novas formas de exclusão” que
não só o regime de progressão continuada tem gerado, mas a organização em ciclos
como um todo. Essa exclusão pode ser compreendida, por exemplo, quando se depara
com uma quantidade significativa de alunos com distorção idade/ano que permanecem
por mais de um ano na última etapa do ciclo de alfabetização. Tal situação constitui-se
uma ‘bola de neve’. Parece que essa condição de aprovar sem que a criança da classe
popular adquira os conhecimentos necessários de aprendizagem vem se constituindo
uma nova forma de exclusão e desigualdades.
De forma geral, os objetivos que fundamentaram a implantação dos ciclos, seja
de aprendizagem, de formação humana ou no regime de progressão continuada, estão
relacionados à diminuição das taxas de reprovação e evasão escolar, à continuidade do
processo de aprendizagem e à melhoria da qualidade do ensino (MAINARDES, 2007),
não sendo uma fase de passagem na escolarização e na escola. Na maioria dos casos de
implantação dos ciclos, o primeiro objetivo relatado recebe maior atenção por parte
dos órgãos governamentais responsáveis e ganha lugar nas pesquisas ligadas às políticas
educacionais, mas não nos processos de aprendizagem das crianças. Assim, o investi-
mento na melhoria e na qualidade do trabalho pedagógico, em grande parte das redes
de ensino, foi visto como consequência e não como prioridade na educação.
4 Metodologia
Este artigo é parte de uma pesquisa mais ampla, de abordagem qualitativa, visto
que lidamos com “o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e
atitudes, o que compreende a um espaço mais profundo de relações” (MINAYO, 2002,
p. 21) para compreender os motivos e decisões tomadas para a organização do ensino
em ciclo no município de Teixeira de Freitas-Bahia.
O desenvolvimento da pesquisa teve como procedimento de coleta de dados a
entrevista e a análise de documentos. A entrevista foi realizada com três professores e
uma coordenadora pedagógica que trabalham na Escola Prepara. A escola e os partici-
pantes foram identificados com nomes fictícios para preservar a identidade. Todos
assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Os documentos analisados foram: (i) Resolução 001/2014; (ii) Regimento Esco-
lar Unificado; e (iii) versão preliminar das Diretrizes Curriculares Municipais (DCMA)
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Maria Elizabete Souza Couto, Priscila Alves Pereira
364
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 353-374, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
para o Ciclo de Alfabetização. Neste momento, apresentamos a organização do ciclo
no município de Teixeira de Freitas - BA a partir da leitura e análise dos mesmos.
Para leitura dos documentos foi elaborada uma ficha para anotar as pistas que
indicavam como a escola, no município de Teixeira de Freitas BA, estava sendo orga-
nizada em ciclo de alfabetização. Uma análise documental é representada por
“quaisquer materiais escritos que possam ser usados como fonte de informação [...]”
(PHILIPS, 1974, apud LÜDKE; ANDRÉ, 2014, p. 45) acerca de um objeto de estudo.
Para análise foi adotada uma análise descritiva tendo como categoria a organiza-
ção do ensino em ciclo, o que possibilitou a compreensão da organização do ciclo no
município.
5 A organização do ciclo no município de Teixeira de Freitas
BA: entre aspectos históricos, legais e conceituais
Desde a implantação do Ensino Fundamental de nove anos no município, em
2006, e, em consequência, a inclusão da criança de seis anos nessa etapa da Educação
Básica, que a rede de ensino, por meio da Secretaria Municipal de Educação e Cultura
(SMEC), vem fazendo ajustes quanto à sua organização. Isso inclui, não apenas o au-
mento na oferta de matrículas, como, também, adaptações das propostas curriculares,
espaços, tempos, gestão, avaliação e formação dos profissionais envolvidos.
De acordo com o documento preliminar que estabelece as Diretrizes Curriculares
Municipais para o Ciclo de Alfabetização (DCMA) no município, o projeto de im-
plantação do Ensino Fundamental de nove anos já contemplava o 1º e 2º anos,
organizados em formato de ciclo. Entretanto, na prática, o que estava estabelecido era
o regime de progressão continuada entre essas séries/anos, pois, não havia referência à
organização desses anos em ciclo nem mesmo no Regimento Escolar Unificado (2011).
Ao tratar da organização do Ensino Fundamental, o artigo 50 do referido Regi-
mento estabelece que “O Ensino Fundamental com duração de nove anos estrutura-se
em 02 (dois) blocos: anos iniciais e anos finais, com a seguinte organização: I. 1º ao 5º
ano, com início aos 6 anos de idade; II. 6º ao 9º ano” (TEIXEIRA DE FREITAS,
2011). Porém, não há referência ao regime de ciclos aprendizagem ou formação hu-
mana - ou às suas características, havendo a menção a “blocos”, fator que permitiria
uma compreensão equivocada de que os anos iniciais do Ensino Fundamental seriam
organizados a partir de dois ciclos (um de 1º ao 3º ano e outro de 4º e 5º anos). Con-
tudo, a nomenclatura utilizada apenas faz jus à organização pedagógica, a fim de
ESPAÇO PEDAGÓGICO
A organização de ensino em ciclo no município de Teixeira de Freitas BA
365
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 353-374, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
facilitar o acompanhamento sistemático dos anos que compreendem o Ensino Funda-
mental.
Ainda, o Regimento, no seu capítulo X, trata da avaliação do processo de ensino
aprendizagem, contemplando, no parágrafo 2º do Artigo 91, que, para os alunos ma-
triculados no 1º ano do Ensino Fundamental de nove anos, “a avaliação não assume
caráter promocional, havendo progressão continuada do aluno ao final do ano letivo
(TEIXEIRA DE FREITAS, 2011). Mais uma vez, não há clareza na referência apre-
sentada em relação à proposta de organização em ciclos pela qual o município optou
por trabalhar.
Em continuidade, o mesmo documento estabelece que a retenção de alunos só é
permitida por desempenho (notas) a partir do 2º ano. Dessa forma, para os alunos que
cursam o 1º ano, o critério estabelecido para a retenção era apenas o não cumprimento
de 75% de frequência. Com a regulamentação do ciclo básico de alfabetização em
2014, essa progressão foi estendida, também, do 2º para o 3º ano, permitindo a repro-
vação apenas ao final do ciclo, ou em qualquer uma das turmas, quando não observada
a exigência de frequência mínima de 75% das aulas.
Considerar apenas progressão continuada como um critério que define o regime
de ciclo é um equívoco que a rede de ensino pode cometer. Embora tal situação possa
ser justificada na LDB 9.394/1996 (MAINARDES, 2007). Entretanto, Mainardes
(2007) chama atenção às diferenças que se estabelecem entre essas formas de organiza-
ção escolar. Na progressão continuada, as séries (no caso, ano letivo, como é chamado
no regime de ciclos) são mantidas e a reprovação deixa de existir em algumas delas,
como do 1º para o 2º ano, como acontecia em Teixeira de Freitas antes da aprovação
do ciclo de alfabetização.
Já os ciclos, seja de aprendizagem ou de formação humana, trazem consigo alte-
rações, já especificadas anteriormente, que têm relação quanto ao currículo, avaliação,
formação e organização escolar.
Em 2014, com a aprovação da Resolução nº 001/2014, o município de Teixeira
de Freitas BA legaliza a regulamentação do Ciclo Básico de Alfabetização. No seu
texto, a Resolução garante a progressão sem interrupção no ciclo, admitindo a repro-
vação apenas ao final do 3º ano ou caso os alunos apresentem a quantidade excedente
de 25% de faltas em qualquer ano do ciclo. Nesse contexto, há uma crítica à progressão
continuada, visto que essa organização apenas está relacionada à diminuição das taxas
de reprovação e evasão e ao fluxo dos alunos durante o Ensino Fundamental. Se é, que
houve diminuição!!! Aliás, é importante lembrar que esses foram os fatores que serviram
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Maria Elizabete Souza Couto, Priscila Alves Pereira
366
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 353-374, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
de motivação inicial para o surgimento da proposta de ciclos no Brasil e para o desen-
volvimento dos conceitos de eliminação adiada e exclusão branda (BOURDIEU;
CHAMPAGNE, 1998) no interior dos ciclos, isto é, os alunos permanecem na escola,
sendo aprovados ano a ano, ainda que sem aprender os conceitos básicos para avançar
no seu processo de escolarização. Dessa forma, pode-se pensar que, talvez, a qualidade
da aprendizagem não seja a mola propulsora da organização escolar vigente.
Ainda no documento preliminar que estabelece as diretrizes para o ciclo de alfa-
betização (DCMA), é encontrado o percurso vivenciado pela rede de ensino no
caminho para a implantação do ciclo de alfabetização. Essa trajetória contou com mo-
mentos de estudo sobre a organização escolar em ciclos com os coordenadores
pedagógicos e professores alfabetizadores, além de reuniões em parceria com o Conse-
lho Municipal de Educação (CME), sindicato de professores (APLB) e representantes
do setor pedagógico da Secretaria Municipal de Educação e Cultura (SMEC).
Apesar da menção da participação dos professores no processo de implantação
do ciclo, a oportunidade da discussão sobre o tema ficava restrita aos encontros de
formação do PNAIC (Programa Nacional de Alfabetização na Idade Certa) e nas AC
4
(Atividades Complementares). A discussão era conduzida pelo coordenador pedagó-
gico, como mediador, e, em alguns casos, esse profissional não teria acesso a momentos
significativos de aprofundamento teórico/legal sobre o tema. Assim, a organização em
ciclo é implantada sem a efetiva participação dos professores e esse fator é evidenciado
por meio de narrativas de professores alfabetizadores, que atuam na rede e foram par-
ticipantes da pesquisa, no que se refere ao processo de alfabetização e aos
conhecimentos que o aluno precisa aprender para avançar no processo de escolarização.
A gente tem noção dos descritores, a gente sabe dos descritores, mas quando a gente vai aplicar
mesmo, tem muitos descritores que na realidade não compete com a realidade que a gente usa
dentro da sala, [bem como] não é passado pra gente como é que esses alunos são pra poder a
gente fazer um preparo melhor das atividades, das tarefas pra eles. É como se a gente tivesse
descobrindo de novo (Professora Ana, Entrevista).
A organização da escola em ciclo indica uma mudança curricular que requer uma
base de conhecimento sobre o processo de alfabetização, mas também, a avaliação, con-
cepção de currículo e encaminhamento de ações que valorize a infância e a formação
de cidadãos com autonomia, considerando uma proposta de educação que não seja
igual àquela que é oferecida a alunos que são economicamente mais privilegiados.
(ZEICHNER, 2008).
ESPAÇO PEDAGÓGICO
A organização de ensino em ciclo no município de Teixeira de Freitas BA
367
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 353-374, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
O documento dos Direitos de Aprendizagem (BRASIL, 2012) prevê objetivos
de aprendizagem para cada uma das áreas de conhecimento que devem ser abordadas
no currículo do ciclo de alfabetização. Entre essas áreas, há a defesa da integração das
aprendizagens, de modo que os conteúdos de cada área tenham relação entre si e essa
integração também pode acontecer entre os conteúdos previstos para as turmas do ci-
clo, uma vez que esse movimento favorece a continuação da aprendizagem, em um
movimento que promova o processo de alfabetização. Entretanto, percebe-se que, con-
siderando a realidade dos alunos que são matriculados no 3º ano, o foco de trabalho
dos professores, de fato, continua sendo a Língua Portuguesa e a Matemática. Esse é
um aspecto preocupante, pois, além da negação de um direito da criança e da infância,
não se verifica uma melhoria significativa nos índices de alfabetização, mesmo com o
trabalho pedagógico priorizando a leitura, a escrita e a aprendizagem dos números e
operações básicas.
No contexto, parece que a exclusão branda (BOURDIEU; CHAMPAGNE,
1998) se efetiva de diversas maneiras, nesse caso, quando se privilegia Língua Portu-
guesa e Matemática, retratado na fala dos professores. As demais disciplinas (História,
Geografia, Ciências, Artes...) parecem ficar em segundo plano. Formalmente, essas dis-
ciplinas fazem parte do currículo e têm uma carga horária pré-determinada, mas não
efetivada.
Um outro aspecto que apareceu nos dados foi que em cada ano do ciclo (1º, 2º
e 3º anos) os alunos estudam com um professor diferente e não há uma troca de saberes
entre eles como indicativo de orientação sobre os conhecimentos que aqueles alunos já
adquiriram. Ana chama a atenção para a necessidade da continuidade do trabalho ao
longo do ciclo, inclusive fazendo circular entre os professores essas informações, que
facilitariam o conhecimento da situação de aprendizagem de cada criança, bem como
o planejamento de situações didáticas que viabilizem o avanço, considerando os descri-
tores, referindo-se à planilha com habilidades que é preenchida a cada bimestre e indica
a aprendizagem que já foi consolidada por cada aluno. Em relação a aprendizagem na
alfabetização, Carlos e Maria mencionam que:
Mesmo que haja uma reforma curricular e puxe muito mais para a leitura de mundo, pra que a
criança saiba um pouquinho de tudo, eu acho que o básico de português e matemática, a gente
não pode deixar nunca de ensinar. Porque é o que eles usam no dia a dia.
[...]
Se não tiver [apoio], a gente tem que dar os nossos pulos. Não adianta eu condenar: foi de Fulano,
o professor não deu conta. Jamais eu penso assim. Hoje ele é meu e a partir do momento que eu
recebo, né, nessas mínimas condições, sabendo ler e escrever, eu preciso dar conta dele (Professor
Carlos, Entrevista).
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Maria Elizabete Souza Couto, Priscila Alves Pereira
368
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 353-374, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Eu acredito que o aluno [para] estar alfabetizado, ele tem que ter domínio das quatro operações,
multiplicação também, agora divisão, aquele início, né? Pelo menos a noção da divisão, eu
acredito que sim. [...]. Lendo e escrevendo, lendo convencionalmente e escrevendo também.
Devia, né? (Professora Maria, Entrevista, grifo nosso).
Ao analisar o eixo Apropriação do SEA (BRASIL, 2012), os descritores relativos
ao domínio do sistema de escrita são indicados para serem consolidados ainda no pri-
meiro ano do ciclo e aos anos seguintes é reservado o trabalho mais ampliado com os
outros eixos da Língua Portuguesa. Isso significa que alguns alunos precisarão de mais
tempo para se apropriar da escrita e isso poderá ocorrer até o terceiro ano, mas esse é
um caso que deveria ser exceção e não fazer parte da situação comum porque passam
as turmas do final do ciclo. Parece que, ainda, é necessário que os docentes compreen-
dam o que é ser alfabético e alfabetizado. Nesse sentido, Claudia infere que:
[Alfabetizado] é aquele que domina a leitura, a interpretação e a escrita com autonomia. Eu fiz
um diagnóstico com os alunos de uma das turmas de terceiro ano e observei o seguinte: o aluno
está alfabetizado dentro da hipótese, mas ele não está alfabetizado com autonomia
(Coordenadora Cláudia, Entrevista).
Analisando o que está proposto nos descritores de aprendizagem usado na rede,
nem sempre há clareza do conteúdo implícito a cada habilidade que precisa ser desen-
volvida em cada um dos anos do ciclo. Cláudia chama a atenção para quando o aluno
chega à hipótese de escrita alfabética e para o conceito de estar alfabetizado, ou seja, ter
consolidado as habilidades previstas para o final do terceiro ano. Acontece que esse
conhecimento nem sempre está claro para o professor.
De fato, o ideal é que os alunos tenham se apropriado do SEA ao chegarem ao
terceiro ano e nessa fase se dediquem as outras habilidades inerentes à consolidação da
escrita, leitura e oralidade. Compreende-se que um aluno é considerado alfabetizado
quando faz uso da língua dentro do contexto em que está inserida com autonomia,
visto que a escrita é uma invenção cultural e sua construção não depende apenas de
uma visualização dos sons da fala (SOARES, 2016), os alunos não nascem sabendo
como funciona o sistema de escrita, sendo esse um saber que precisa ser ensinado na
escola. Para os professores, o trabalho sobre os níveis da escrita, consagrado na Psico-
gênese da Língua Escrita por Ferreiro e Teberosky (1999), vem contribuir para a
compreensão do processo de alfabetização, no que se refere à condição de como o aluno
aprende (MORAIS, 2012).
ESPAÇO PEDAGÓGICO
A organização de ensino em ciclo no município de Teixeira de Freitas BA
369
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 353-374, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Assim, quando o aluno é considerado alfabetizado, já compreende a língua e seu
uso a partir da função social, a leitura e escrita são realizadas com autonomia, como
dizem Carlos e Cláudia, isto é, o que fazem com as habilidades e conhecimentos de
leitura e escrita, no seu cotidiano, e a relação que estabelece entre essas habilidades e
conhecimentos e as necessidades e as práticas sociais (SOARES, 2013). Por isso, chegar
à fase alfabética não quer dizer que está alfabetizado (MORAIS, 2012). Há uma passa-
gem de uma condição a outra, que, para alcançar, é preciso de um trabalho sistemático
com os aspectos conceituais do SEA. Ana e Maria tratam do processo, mas ainda em
desenvolvimento.
Nesse contexto de discussões sobre a implantação do ciclo no município, entre a
organização e uma base conceitual, apesar de algumas opiniões avessas à proposta de
alfabetização, o Núcleo de Apoio Pedagógico aos Anos Iniciais (NAPE) encaminhou
ao CME o documento que sistematizava a organização do 1º, 2º e 3º anos em formato
de ciclo. Apesar de iniciar o ano letivo funcionando no regime de ciclo, conforme ori-
entação da SMEC, é em julho de 2014 que a Resolução é aprovada e publicada pelo
órgão competente. Os anos posteriores do Ensino Fundamental no município (4º ao
9º ano) continuaram funcionando seguindo a lógica do regime seriado.
Embora a organização em ciclos do 1º ao 3º ano seja recente no município, não
havia, até meados de 2016, um documento que estabelecesse as especificidades da sua
organização e funcionamento. É apenas com a adesão ao Pacto Estadual pela Alfabeti-
zação na Idade Certa (PACTO BAHIA)
5
, programa da Secretaria do Estado da Bahia,
motivada pelo movimento de ações integradas entre o Pacto Estadual (conhecido como
Pacto Bahia) e o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC), que é
implantado o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alfabetização e Letramento (NALFA).
O NALFA é o núcleo responsável pelo acompanhamento das ações relacionadas
ao ciclo de alfabetização no município. Sua criação está pautada na Portaria Municipal
nº 28 de 25 de maio de 2016, e tem como objetivo o fortalecimento da política de
garantia do direito à alfabetização com letramento, ou seja, o trabalho do NALFA está
diretamente ligado à promoção de ações que visem o alcance da meta 5 do PNE: alfa-
betizar todas as crianças até o 3º ano do Ensino Fundamental.
Com a criação do NALFA, foram realizadas diversas reuniões para estudo, dis-
cussão e construção das Diretrizes Curriculares Municipais para o Ciclo de
Alfabetização (DCMA). A proposta de construção dessas Diretrizes era norteada e su-
pervisionada pelas orientações oriundas da coordenação regional do PACTO/PNAIC.
Durante esse processo, a pesquisadora participou das reuniões a convite da coordena-
dora municipal como representante de professores. Na oportunidade, discutiu-se a
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Maria Elizabete Souza Couto, Priscila Alves Pereira
370
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 353-374, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
necessidade da implantação de ações na tentativa de favorecer o avanço da aprendiza-
gem no ciclo de alfabetização.
O documento que traz as Diretrizes (DCMA) teria a função de apresentar ori-
entações gerais para a organização e o funcionamento do ciclo de alfabetização e, para
tanto, deveria contemplar aspectos relacionados a: critérios para ingresso e permanência
com sucesso dos alunos no percurso do ciclo, concepção e organização do currículo,
definição das práticas pedagógicas que serviriam de base à organização do trabalho pe-
dagógico no ciclo, contemplando os direitos e objetivos de aprendizagem, a
interdisciplinaridade e a diversidade, além do trabalho a partir de sequências e projetos
didáticos. Além disso, deveria estar presente nas Diretrizes a Matriz Curricular proposta
para o ciclo, as especificidades na organização do trabalho pedagógico por área do co-
nhecimento e o processo de avaliação.
Contudo, apesar dos esforços e envolvimento da equipe responsável pela cons-
trução dessas Diretrizes, o documento não pôde ser finalizado em 2016, como previa
a meta da coordenação regional do PACTO/PNAIC, e, desde 2017, aguarda orienta-
ções da nova equipe de governo, responsável pelo núcleo na SMEC. De acordo com as
informações da equipe da SMEC, não há previsão para a continuidade dos estudos e
construção das Diretrizes, nem mesmo sobre a continuidade da existência e funciona-
mento do NALFA. Embora o município tenha elaborado uma proposta de
alfabetização, diante do contexto há certa marca da descontinuidade dos programas em
andamento no município, quando se muda a gestão municipal, que não continua com
o processo formativo dos professores alfabetizadores e, consequentemente, com a polí-
tica de alfabetização.
Não há, no documento, uma consideração sobre o conceito de ciclo de alfabeti-
zação. A referência indica que o ciclo compreende as turmas do 1º ao 3º ano, buscou-
se um conceito que apresentasse uma definição mais próxima do que se efetiva na rede
de Teixeira de Freitas. Esta foi encontrada no Dicionário do Centro de Alfabetização,
Leitura e Escrita (CEALE).
O ciclo de alfabetização nos anos iniciais do Ensino Fundamental é compreendido como um
tempo sequencial de três anos, ou seja, sem interrupções, por se considerar, pela complexidade
da alfabetização, que raramente as crianças conseguem construir todos os saberes fundamentais
para o domínio da leitura e da escrita alfabética em apenas um ano letivo (CEALE, 2007, n. p.).
Esse conceito retoma a importância da continuidade dos estudos para que haja
progressão da aprendizagem, no caso, o desenvolvimento das habilidades de leitura e
ESPAÇO PEDAGÓGICO
A organização de ensino em ciclo no município de Teixeira de Freitas BA
371
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 353-374, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
escrita, bem como das outras áreas do conhecimento. As Diretrizes (DCMA) não in-
dicam o tipo de ciclo que está sendo organizado no município, mas, partindo dos
estudos realizados até aqui e do conhecimento do funcionamento da rede, pode-se in-
ferir que se trata de um ciclo de aprendizagem baseado nas seguintes justificativas: o
tempo de duração do ciclo é curto (três anos), há reprovação no final do ciclo (3º ano),
e a inclusão do documento que estabelece objetivos de aprendizagem (descritores) junto
a proposta curricular e alterações no processo de avaliação (valorização dos aspectos
qualitativos sobre os quantitativos).
Embora o município de Teixeira de Freitas tenha avançado com a elaboração de
uma proposta pedagógica para o ciclo de alfabetização, compreende-se, porém, que a
rede municipal ainda há muito que estudar a fim de que as características do ciclo de
aprendizagem sejam incorporadas por toda a equipe que atua no ciclo de alfabetização.
Considerações
A partir da pesquisa realizada identificou-se uma compreensão equivocada refe-
rente ao conceito de ciclo. Nem mesmo a Secretaria Municipal de Educação e Cultura
do município demonstra um conhecimento aprofundado acerca de qual tipo de ciclo
pode ser relacionado à proposta. De maneira geral, percebe-se que, para os professores,
o ciclo de alfabetização representa um regime seriado, sem reprovação. Essa ideia que
predomina no contexto local pouco colabora para as possibilidades de trabalho advin-
das da organização escolar em ciclo, bem como não se encontra referência sobre a
valorização da infância e uma aprendizagem autônoma para a formação da cidadania.
O sistema de ensino organizado em ciclo, no município, tem as mesmas bases de
organização parecidas com as demais cidades do país, tendo como finalidade garantir
o fluxo escolar, minimizar os índices de reprovação e promover a criação de vagas para
matrícula na escola (MAINARDES, 2007), o que parece continuar sendo os principais
motivos que justificaram a adesão do governo municipal a esse movimento. Vale des-
tacar que essa adesão aconteceu tardiamente, apenas em 2014, quando se compara a
realidade da cidade de Teixeira de Freitas à de outros municípios próximos. Um mu-
nicípio em crescimento que precisa compreender que os pais/famílias das classes
populares desejam aos seus filhos o que a comunidade, em geral, deseja a todas as cri-
anças (DEWEY, 1929).
Essa situação, também, demonstra a resistência da rede em incorporar os princí-
pios da organização em ciclos à sua vivência. Atualmente, apenas as turmas de 1º ao 3º
ano estão organizadas no regime de ciclo, enquanto que do 4º ao 9º ano prevalece a
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Maria Elizabete Souza Couto, Priscila Alves Pereira
372
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 353-374, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
seriação. Vale ressaltar que o ciclo de alfabetização passará em breve por uma reestru-
turação a fim de se adequar a proposta da BNCC (BRASIL, 2017).
Notas
1
Parecer n° 4 de 20 de fevereiro de 2008, que orienta sobre os três anos iniciais do Ensino Fundamental
de nove anos (BRASIL, 2008).
2
Portaria nº 867, de 4 de julho de 2012, que institui o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade
Certa e as ações do Pacto e define suas diretrizes gerais (BRASIL, 2012).
3
Objetivos do ciclo ou objetivos de final de ciclo, como se refere Perrenoud (2004), podem ser consi-
derados como pontos de referência que permitem à equipe pedagógica planejar situações didáticas que
favoreçam o desenvolvimento e acompanhamento da progressão da aprendizagem dos alunos ao longo
do ciclo. No caso do ciclo de alfabetização, tais objetivos são conhecidos como direitos de aprendiza-
gem.
4
Atividades Complementares (AC) corresponde ao tempo destinado ao planejamento individual e co-
letivo das atividades desenvolvidas na escola, semanalmente.
5
O Pacto Estadual Pacto pela Educação / Bahia (2010) teve como objetivo garantir a alfabetização
de todas as crianças até o terceiro ano do Ensino Fundamental. Disponível em: <http://www.todos-
pelaeducacao.org.br/educacao-na-midia/indice/33185/pacto-pela-educacao-lancado-programa-que-
visa-mudar-educacao-da-bahia/> Acesso: 14.dez.2016. (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2015).
Referências
ARROYO, Miguel G. Ciclos de desenvolvimento humano e formação de educadores.
Educação e Sociedade, Campinas, n. 68, p. 143-162, 1999.
BARRETO, E. S. S.; MITRULIS, E. Trajetória e desafios dos ciclos escolares no país. Revista
de Estudos Avançados, São Paulo, USP, v. 15, n. 42, p. 105-142, 2001.
BOURDIEU, Pierre; CHAMPAGNE, Patrick. Os excluídos do interior. Trad. Magali de
Castro. In: Escritos de Educação, Petrópolis: Vozes, 1998.
BRASIL. Lei n. 13.005 de 25 de junho de 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação -
PNE e outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13005.htm Acesso em: 16
fev. 2017
BRASIL. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional. Presidência da República, Casa civil, Subchefia para assuntos jurídicos,
Brasília, DF, 20 dez. 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/cci-
vil_03/leis/L9394.htm Acesso em: 16 fev. 2017
ESPAÇO PEDAGÓGICO
A organização de ensino em ciclo no município de Teixeira de Freitas BA
373
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 353-374, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Proposta final. Terceira
versão revista. Brasília: MEC, 2017. Disponível em:
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_publicacao.pdf. Acesso em: 25 jul.
2017
BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Elementos Conceituais e Metodológicos para
Definição dos Direitos de Aprendizagem e Desenvolvimento do Ciclo de Alfabetização (1º, e
anos) do Ensino Fundamental. Brasília: MEC, 2012.
BRASIL. Câmara de Educação sica do Conselho Nacional de Educação, Brasília, DF. Ori-
entação sobre os três anos iniciais do Ensino Fundamental de nove anos. Parecer4/2008,
aprovado em 20 de fevereiro de 2008. Relator: Murílio de Avelar Hingel. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/2008/pceb004_08.pdf> Acesso em: 16 de fev.
2017.
BRASIL. Câmara de Educação sica do Conselho Nacional de Educação. Resolução
7/2010. Fixa Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental de 9 (nove) anos,
aprovado em 14 de dezembro de 2010b. Brasília, DF. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/rceb007_10.pdf. Acesso em: 16 de fev. 2017
CEALE. Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita. Faculdade de Educação/UFMG. Coleção
Instrumentos da Alfabetização. Belo Horizonte, 2007.
DEWEY, John. Vida e Educação.
Tradução e estudo preliminar por Anísio S. Teixeira. ed,
São Paulo: Edições Melhoramentos, 1929.
FERREIRO, Emilia; TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da Língua Escrita. Trad. Diana Myriam
Lichtenstein, Liana di Marco, Mário Corso. Porto Alegre: Artmed, 1999.
DKE, Menga; ANDRÉ, Marli E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas.
ed. Rio de Janeiro: E.P.U., 2014.
MAINARDES, Jeferson. Escola em ciclos: fundamentos e debates. São Paulo: Cortez, 2009.
MAINARDES, Jeferson. Reinterpretando os Ciclos de Aprendizagem. São Paulo: Cortez, 2007.
MINAYO, M. C. Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. Petrópolis, Vozes, 2002.
MORAIS, Artur Gomes de. Sistema de Escrita Alfabética. São Paulo: Editora Melhoramentos,
2012.
PERRENOUD, Philippe. Os ciclos de aprendizagem: um caminho para combater o fracasso
escolar. Trad. Patrícia Chittoni Ramos Reuillard. Porto Alegre: Artmed, 2004.
SILVA, Ceris Salete Ribas da. Ciclo de Alfabetização. In: Glossário Ceale. Termos de
alfabetização, leitura, escrita para alfabetizadores. Disponível em:
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Maria Elizabete Souza Couto, Priscila Alves Pereira
374
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 353-374, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/verbetes/ciclo-de-alfabetizacao.
Acesso em: 01 fev. 2017.
SOARES, Magda. Alfabetização: a questão dos todos. São Paulo: Contexto, 2016.
SOARES, Magda. Alfabetização e Letramento. 6ª edição. 5ª reimpressão. São Paulo:
Contexto, 2013.
TEIXEIRA DE FREITAS. Regimento Interno Unificado das Unidades Escolares da Rede
Pública Municipal de Ensino.
Secretaria Municipal de Educação e Cultura. Teixeira de
Freitas, 2011.
TEIXEIRA DE FREITAS. Resolução 001/2014
, de 29 de julho de 2014.
Regulamentação do Ciclo Básico de Alfabetização Anos Iniciais. Teixeira de Freitas,
2014.
TEIXEIRA DE FREITAS. Portaria 28/2016
de 25 de maio de 2016. Caderno 1, nº
2446. Diário Oficial do Município. Teixeira de Freitas, BA, 2016.
TODOS PELA EDUCAÇÃO. Lançado programa que visa mudar a educação da Bahia. 31
mar. 2015 Disponível em: <http://www.todospelaeducacao.org.br/educacao-na-midia/in-
dice/33185/pacto-pela-educacao-lancado-programa-que-visa-mudar-educacao-da-bahia/>
Acesso em: 14. dez. 2016.
ZEICHNER, Kenneth Madison. Forma
ção de professores para justiça social em tempos
de incerteza e desigualdades crescentes. In: DINIZ-PEREIRA,lio Emílio;
ZEICHNER, Kenneth Madison.
Justiça Social: desafio para a formação de professores.
Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
ESPAÇO
PEDAGÓGICO
Diálogo com Educadores
Este artigo está licenciado com a licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
376
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 376-383, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Diálogo com a Dra. Tatiana Bolívar Lebedeff
Rosimar Serena Siqueira Esquinsani
*
O primeiro número da Revista Espaço Pedagógico do Programa de Pós-Gradu-
ação em Educação (PPGEdu) da Universidade de Passo Fundo (UPF) de 2022 tem
como tema do dossiê Políticas de educação especial inclusiva que vem ganhando des-
taque nas políticas de educação, sobretudo, nas últimas três décadas. Para contribuir
com o debate sobre o tema contamos com as reflexões e experiências da professora-
doutora Tatiana Lebedeff, atualmente vinculada à Universidade Federal de Pelotas.
Com um profundo conhecimento na área e uma vasta experiência profissional, traz
elementos para aprofundar questões pertinentes ao tema do dossiê. A Revista Espaço
Pedagógico agradece as contribuições da professora Tatiana e ao trabalho da professora-
doutora Rosimar Serena Siqueira Esquinsani do PPGEdu da Universidade de Passo
Fundo na construção desse diálogo.
REP Qual a sua história com a educação especial? Qual a origem do seu encanta-
mento pelo tema e da pauta que defende?
Dra. Tatiana Bolívar Lebedeff Eu estava prestes a prestar vestibular, era o ano de
1984 e eu precisava decidir “o que fazer e para onde ir”, já que na minha cidade não
tínhamos Universidade. Minha primeira opção era Psicologia. Entretanto, a única ins-
tituição pública que ofertava o curso no Rio Grande do Sul era a UFRGS e, na época,
meu pai achava a cidade muito violenta para uma menina de 17 anos. Estudando as
opções acabei me interessando pelo Curso de Licenciatura em Educação Especial, da
UFSM. Posteriormente ingressei em Psicologia na UFF e, depois, pedi transferência
Recebido em: 25/05/2022 - Aprovado em: 05/06/2022
https://doi.org/10.5335/rep.v29i1.13866
ISSN on-line: 2238-0302
*
Possui graduação em História pela Universidade de Passo Fundo (1993); graduação em Pedagogia pela
Faculdade Anglo-Americano de Chapecó/SC (2016); Mestrado em Educação pela Universidade de Passo
Fundo (2000); Doutorado em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos / UNISINOS (2004) e
Pós-Doutorado em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2010). É professora Titular III da
Universidade de Passo Fundo, atuando no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Passo
Fundo.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Rosimar Serena Siqueira Esquinsani
377
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 376-383, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
para a UPF. Acabei desistindo do curso e ingressei no Doutorado em Psicologia do
Desenvolvimento da UFRGS. A Educação de Surdos e a pesquisa na área que eu de-
senvolvia tinham uma interface com a Psicolinguística, mas, não significava que eu
precisava mudar o rumo da formação inicial.
Quando iniciei o curso na UFSM nós éramos ensinadas a oralizar os surdos, e a
língua de sinais (naquele tempo não usávamos o nome Libras) era uma língua marginal,
proibida nas salas de aula, utilizada apenas nos recreios entre as crianças e no calçadão
da cidade, nos encontros marcados pelos adolescentes e jovens, antes da era digital. Eu
ficava incomodada com aquela restrição e acabei pagando um estudante surdo, da Uni-
versidade, para me dar aula de Língua de Sinais. Eram aulas particulares, meio que às
escondidas.
Quando compreendi o potencial da língua e o que ela me permitia, comecei a
estudar e a pesquisar mais sobre a educação de surdos tendo como língua de instrução
a Libras. No início de minha carreira acadêmica trabalhei com orientação sexual e,
posteriormente, letramento.
REPComo observa o cenário educacional atual, em relação a educação especial na
perspectiva da educação inclusiva?
Dra. Tatiana Bolívar LebedeffA Educação Inclusiva é necessária, indispensável, é
um direito do cidadão. Infelizmente, o atendimento em Educação Especial ainda é
muito fragilizado. Temos poucas salas de recursos, poucos professores de Atendimento
Educacional Especializado, poucos professores auxiliares e poucos e mal capacitados
monitores nas escolas. A escola antigamente sobrevivia apenas com o professor regente.
Era a escola para poucos. Hoje a escola para todos exige uma configuração que ainda
não foi implementada, porque requer investimento e o gestor público ainda não acor-
dou para o impacto da educação inclusiva em todos os setores da sociedade, inclusive
para a economia. Tem estudos da década de 70, realizados nos Estados Unidos, que
mostram que cada dólar investido em Educação Especial (na época não tínhamos o
conceito de Educação Inclusiva, utilizava-se o conceito de Mainstreamming) revertia,
posteriormente, em 6 dólares, pois tanto o estudante teria condições posteriores de
inserção no mercado de trabalho como liberava, durante o processo de escolarização, o
adulto cuidador (geralmente a mãe) para trabalhar também. Era uma percepção bem
neoliberal, mas, atrativa para gestores. Infelizmente o Brasil não incorporou essa pers-
pectiva. Eu acredito em um trabalho de equipe: professor de sala de aula em interação
com o professor do Atendimento Educacional Especializado, com o professor auxiliar
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Diálogo com educadores
378
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 376-383, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
ou Atendente Terapêutico e, com o monitor. Essa equipe precisa de tempo de reunião
para planejar, implementar e avaliar. Além disso, precisam estar conectados com os
profissionais de fora da escola que também atuam com o estudante, ou seja, a médica,
a psicóloga, a fonoaudióloga, a fisioterapeuta, entre outros. Pode ser utópico. Mas,
precisamos sonhar para não desesperançar. Cabe ressaltar que só tenho visto salas de
recursos em Escolas Públicas, a Rede Privada geralmente não oferta este serviço e, na
maioria das vezes, os salários dos monitores específicos para uma criança com deficiên-
cia são divididos entre família e instituição.
REP Quais seriam os principais pontos a serem trabalhados na formação de profes-
sores - tanto na formação inicial, quanto continuada -, para a educação especial na
perspectiva da educação inclusiva?
Dra. Tatiana Bolívar LebedeffPercebo nos cursos de licenciatura uma tendência a
teorizar mais do que praticar. Tenho uma parceira de pesquisa que é professora do
Curso de Matemática na UFPEL, ela trabalha de maneira maravilhosa com produção
de materiais didáticos e laboratório de experimentação desses materiais, é “didática
raiz”! Não digo que termos que parar de teorizar, pelo contrário, mas creio que damos
pouquíssimo espaço às experimentações didáticas, que não poderiam ocorrer apenas
em estágios curriculares. A experimentação, na minha opinião, deveria ser entre os co-
legas: experimentando, questionando, problematizando, estabelecendo relações com a
teoria. Tenho visto formação de licenciados que saem da universidade como excelentes
Historiadores, Geógrafos, Filósofos, Linguistas, entre outras formações, mas, não tem
nenhuma pista em como ensinar sua disciplina para o quinto ano do fundamental.
Então eles entram na escola, iniciam o trabalho com o quinto ano e lá na sala de aula
tem um aluno com TDAH, outro com Deficiência Intelectual, mais meia dúzia em
vulnerabilidade econômica, entre outros fatores de heterogeneidade. Esse universo re-
quer uma prática que não sai da cartola. Quando esse universo foi problematizado e,
se problematizado, quais as alternativas de desenvolvimento de trabalho que foram dis-
cutidas? Por outro lado, a Educação Especial e a Educação Inclusiva nem fazem parte
da formação inicial, com raríssimas exceções! Na minha instituição, temos apenas 2 ou
3 cursos com a disciplina de Educação Inclusiva como obrigatória. Apenas duas pro-
fessoras concursadas na área para todas as Licenciaturas. Os alunos aprendem sobre
Educação Inclusiva nos estágios, na prática. A disciplina de Libras não dá conta da
Educação inclusiva, pois é uma disciplina muito específica para dar conta do ensino de
uma língua e, muitas vezes, aborda tangencialmente a educação de surdos. Toda hora
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Rosimar Serena Siqueira Esquinsani
379
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 376-383, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
o MEC está solicitando reformulação curricular das Licenciaturas, os cursos optam por
colocar mais disciplinas teóricas das suas especificidades e não inserem Educação In-
clusiva na formação inicial, infelizmente. Então, penso que temos que discutir a
inserção da disciplina nos currículos, criar brechas nas trincheiras que são os colegiados
de cursos.
REP A avaliação tem sido um ‘Calcanhar de Aquiles’ na educação básica esco-
lar. Quais as propostas de uma avaliação consistente no campo da educação especial,
na perspectiva da educação inclusiva?
Dra. Tatiana Bolívar Lebedeff A avaliação é um problema porque queremos sempre
avaliar pelo parâmetro de um aluno padrão. A avaliação, na minha opinião, é dura e
elitista, privilegia poucos. Vou contar uma historinha. Em 2007 tive a oportunidade
de conhecer Jerome Bruner, na Universidade de Nova Iorque. Ele me contou que nas-
ceu com catarata congênita e foi cego até os três anos de idade, quando fez uma cirurgia
que lhe devolveu a visão. Posteriormente, no processo de escolarização, a escola avisou
seus pais que provavelmente ele tinha deficiência intelectual, pois era muito atrasado e
não era para esperarem muito dele. O pai de Bruner falou na escola que não se preo-
cupassem, que ele preferia que o filho continuasse frequentando a escola, mesmo
aprendendo pouco. Contou Bruner que o pai não deu muita bola e lia para ele todas
as noites. Bruner, infelizmente já falecido, é hoje considerado um dos grandes pesqui-
sadores da Psicologia do Desenvolvimento, um autor lido em praticamente todo o
planeta. O que eu quero dizer com isso? Que a avaliação não pode ser preditora. O que
aconteceria se os pais de Bruner tivessem se resignado com o vaticínio da escola? A
avaliação é um retrato daquele momento, daquela hora, e depois? E em outras condi-
ções? Quando falam em avaliação sempre penso em Vygotsky. Sei que as avaliações são
uma ferramenta para gestores, ferramentas para políticas públicas, entre outros. Mas,
precisamos estar atentos para não frustrar as crianças “não padrão” pelo uso inadequado
dessas ferramentas.
Antigamente tínhamos a possibilidade da Terminalidade Específica, que é uma
polêmica: a Terminalidade Específica pode, se mal utilizada, prejudicar o desenvolvi-
mento dos estudantes, pela lógica de que “qualquer coisa” pode compor o currículo do
aluno, uma perspectiva do “mínimo”. Por outro lado, poderia ser um ótimo instru-
mento de validação das potencialidades dos alunos. Para o MEC a Terminalidade
Específica não tem mais validade, em função da Política de Educação Inclusiva. Entre-
tanto, sei de vários Municípios que ainda utilizam a Terminalidade Específica. Ou seja,
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Diálogo com educadores
380
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 376-383, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
é uma situação bem complexa e delicada, e mostra um pouco a fragilidade da orientação
e implementação das políticas.
REP O que uma escola que se propõe inclusiva deve observar?
Dra. Tatiana Bolívar Lebedeff Quando eu me formei a Educação especial tinha um
viés muito corretivo, compensatório. Hoje, ainda bem, a Educação Especial busca com-
preender quais são as habilidades, os potenciais das crianças. Nesse sentido, a Escola
Inclusiva deveria olhar para o aluno pensando nas potencialidades dele, não pautar pela
falta, pela ausência, pela dificuldade... buscar incentivar as habilidades do aluno, res-
peitar seu ritmo, seu tempo. Descobrir caminhos, junto com o aluno e com a equipe
que é responsável pelo aluno. Nesse sentido, outra questão tem a ver com o “pertenci-
mento” ou “territorialidade” da educação especial. A criança que foi incluída na escola
é de responsabilidade de toda a escola, e não apenas da professora do AEE.
Nós vimos, durante a pandemia, como a escola e a avaliação são tradicionais,
duras.... Vi crianças com TDAH serem cobradas a assistir aulas das 13:30 às 18:00
pelas telas. Uma corrida desenfreada pelo preenchimento dos livros e apostilas. Nem
toda criança se beneficiou com o ensino remoto, teve muito sofrimento, mesmo assim
a Escola não se flexibilizou. Talvez tenha sido por falta de orientação, de direciona-
mento do MEC. O fato é que são inúmeros relatos de falta de recursos tanto materiais
quanto pedagógicos de acessibilidade para a inclusão dos alunos durante a pandemia.
Nesse sentido, acredito que a escola precisa conhecer seus alunos. Não falo de
um laudo, falo do aluno também, seus gostos, suas linguagens, suas expectativas, suas
fragilidades e potencialidades. Minha área é a educação de surdos, e a questão mais
delicada no caso das crianças surdas tem a ver com a língua compartilhada. Muitas
vezes os estudantes surdos são “entregues” aos Intérpretes de libras e é só com os Intér-
pretes que as crianças se comunicam. Já vi casos em que o aluno se forma no nono ano
com a mesma turma e os colegas não sabem dizer nem “OI” em Libras. Para mim isso
é o retrato do fracasso do sistema, isso não é inclusão, é número de matrícula. Conheci,
em uma cidade do interior do RS uma escola com sala de recursos para surdos. A escola
se queixava que uma aluna não queria frequentar a sala de aula e ficava apenas na sala
de recursos, quando a professora do AEE não estava na escola a menina não queria
entrar, a queixa toda em cima do comportamento da aluna. O detalhe era que fora os
colegas surdos e as eventuais Intérpretes, a professora era a única pessoa da escola que
se comunicava em Libras com o grupo de estudantes surdos.... ninguém mais interagia
com eles. É uma situação que se encontra reiteradamente, infelizmente.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Rosimar Serena Siqueira Esquinsani
381
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 376-383, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
REP Quais seriam e qual a origem das maiores resistências dos professores em aco-
lher a educação especial na perspectiva da educação inclusiva?
Dra. Tatiana Bolívar Lebedeff Acho que as resistências estão ancoradas, por um
lado, na falta de formação, na ausência de uma disciplina curricular que estabeleça as
relações do que significa planejar e ensinar para uma turma repleta de diferenças. Além
disso, o professor está muito sozinho em sala de aula. Poucas vezes o professor tem com
quem conversar, trocar ideias, planejar. Tem professor que precisa parar a aula para
levar criança em banheiro. Óbvio que com condições tão precárias assim, teremos re-
sistências. Como eu já comentei, a inclusão é um trabalho de equipe. Temos que ver
também, que o professor é preparado para esperar uma aprendizagem padrão, o aluno
que não dá conta da aprendizagem pode gerar frustração no professor, baixa autoes-
tima, porque parece que “não soube ensinar”. Essa é uma percepção difícil de lidar,
mas o professor não foi ensinado na formação inicial e nem orientado, dentro da escola,
a compreender essas diferenças e a planejar e avaliar para essas diferenças. Os cursos
também não podem ser apenas para apagar incêndios, é necessário um acompanha-
mento longitudinal dos estudantes e dos professores. Promover estudos de casos,
proporcionar discussões sobre os alunos que não podem ser apenas nos conselhos de
classe.
REP Apoiar o professor, em suas angústias e dúvidas, parece essencial para a educa-
ção especial. Como a escola e, sobretudo, os administradores da educação (secretários
municipais, estaduais, ministro) podem agir nesta direção?
Dra. Tatiana Bolívar Lebedeff Acho que a palavra de ordem é investimento. É
necessário investir em profissionais, tanto na ampliação de número de profissionais
como na diversificação da atuação em sala de aula. Além disso, os salários precisam ser
dignos. Professores estão trabalhando 60 horas para poder dar conta do orçamento. Em
que momento vão planejar? Desenvolver materiais? Pesquisar? Eu visitei muitas escolas
nos Estados Unidos e na Inglaterra, sempre tentando observar qual era o diferencial.
Para minha surpresa o diferencial nunca esteve na tecnologia, nos recursos materiais.
Eu compreendi que o diferencial estava, nas escolas em que observei inclusão, na pro-
posta pedagógica individualizada e na equipe de apoio aos docentes.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Diálogo com educadores
382
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 376-383, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
REP A partir de sua experiência, quais os aspectos da pesquisa científica (objetos,
abordagens) ainda não foram suficientemente explorados sobre a educação especial na
perspectiva da educação inclusiva?
Dra. Tatiana Bolívar Lebedeff Vou falar da minha experiência de trabalho com
Educação de Surdos. Acho que precisamos de mais pesquisas sobre educação de surdos
com outras especificidades, ou seja, o surdo com autismo, o surdo com TDAH, surdo
com Trissomia do 21. Enfim, onde estão esses alunos e quais são as abordagens que
estão sendo trabalhadas. Além disso, sinto falta de pesquisas sobre leitura e produção
escrita no Fundamental II. Pesquisa-se muito sobre o período de alfabetização dos sur-
dos, mas não sobre o quinto ano em diante. Mais recentemente o Município de São
Paulo lançou o Currículo da Cidade, no qual curriculariza Libras e Português para
Surdos. Nesse currículo novo a Libras, compreendida como Língua Materna, ganha
um espaço nunca antes conquistado. Então, tudo que é visto em Libras no 1º ano do
Fundamental, é visto em Língua Portuguesa no 2º ano do Fundamental. A criança
primeiro vê os conteúdos escolarizados da sua língua e, no ano subsequente, os conte-
údos em Língua Portuguesa. É uma proposta Bilíngue. Estou ansiosa para que sejam
realizados estudos acadêmicos longitudinais sobre essa experiência.
REP Juntando a teoria e a prática. Quais autores e abordagens recomendaria a
leitura para aprofundamento do tema?
Dra. Tatiana Bolívar LebedeffPosso dar sugestões da área da Educação de Surdos,
na perspectiva que eu estudo. Primeiro vou sugerir que os leitores conheçam o Grupo
de Pesquisa do qual faço parte, o Grupo de Pesquisa Interinstitucional em Educação
de Surdos (GIPES). No nosso site (https://www.ufrgs.br/gipes/) tem muitas sugestões
de publicações, tem as lives do período da pandemia e, os nomes dos participantes, que
são pesquisadores maravilhosos. Colocando os nomes no Google Acadêmico você pode
ver a produção dos pesquisadores e encontrar mais material. Outro site muito bom é o
do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES). No site do INES
(https://www.gov.br/ines/pt-br) é possível encontrar muito material produzido pela
instituição e, os impressos podem ser solicitados gratuitamente, pois o INES é uma
autarquia do MEC. Quero destacar a Revista Espaço, do INES
(https://www.ines.gov.br/seer/index.php/revista-espaco/index) que é muito impor-
tante para divulgação de pesquisas na área da Educação de Surdos. Com relação a
periódicos, muitas revistas publicam sobre a temática da Educação Especial, mas, sugiro
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Rosimar Serena Siqueira Esquinsani
383
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 376-383, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
duas bem específicas: Revista de Educação Especial da UFSM
(https://periodicos.ufsm.br/educacaoespecial) e a Revista Brasileira de Educação Espe-
cial (https://www.scielo.br/j/rbee/).
REP Que conselhos daria a um jovem pesquisador sobre o tema?
E a um professor de educação básica que está iniciando a carreira e se depara com a
realidade da educação especial? Vou dar uma sugestão que cabe aos dois: perguntem.
Perguntem sempre, não deixem morrer a curiosidade pelo humano. Não se contentem
com o pouco: o pouco que o laudo diz, o pouco que está no primeiro texto que foi
lido, o pouco de informação que foi passada pela coordenação.
ESPAÇO
PEDAGÓGICO
Resenha
Este artigo está licenciado com a licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
385
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 385-394, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Por uma ética da interdependência: reflexões sobre A força da
o violência, de Judith Butler
Marcelo Ricardo Nolli
*
Mariana Motta Klein
**
A trajetória da filósofa norte-americana Judith Butler não é fácil de classificar;
sua obra é vasta e trata de distintas áreas do conhecimento, com o horizonte sempre
presente das ideias de emancipação, autonomia crítica e luta política. No entanto, uma
característica que podemos considerar comum a seu pensamento desde suas primeiras
publicações é a preocupação com o lugar da diferença. As diferenças se constituirão
como um dos fundamentos que sustentam sua reflexão, desde a questão de gênero na
década de 1990 e o surgimento da teoria queer, até sua discussão sobre o direito ao luto
e a crítica política da violência. Isto porque Butler opera ao lado e junto das minorias.
Poderíamos dizer que sua obra fornece a possibilidade de pensar desde a perspectiva de
um devir-minoritário, em que os não-adaptados são vistos com potencial político e
crítico de transformação do mundo; ou, tal como na perspectiva benjaminiana, ao pro-
curar se aliar aos vencidos, e escrever a história do seu ponto de vista.
Em seu livro mais recente, publicado em Inglês, em 2020, pela Verso, sob o título
The force of nonviolence: an ethico-political bind e em Português do Brasil, em 2021,
pela Boitempo, com o título A força da não violência: um vínculo ético-político, Butler
propõe refletir sobre os modos com que podemos pensar uma ética e agir politicamente
por meio da não violência. Em suas palavras, a ideia é de situar a violência conceitual-
mente, compreendendo-a como parte de um jogo de forças e de oscilações em quadros
políticos, bem como quadros de referências que a nomeiam. Neste caso, trata-se de um
pensamento na encruzilhada entre filosofia moral e política, entre psicanálise e teoria
social. Se a violência, aqui, se constitui como uma questão filosófica, não poderia ela
ser pensada também como um problema educativo e formativo?
Recebido em: 30/09/2022 Aprovado em: 30/09/2022
https://doi.org/10.5335/rep.v29i1.13882
ISSN on-line: 2238-0302
*
Graduado em Psicologia (2018) pela Universidade de Passo Fundo. Mestre em Educação pelo PPGEdu/UPF-RS (2021).
Doutorando em Educação pelo PPGEdu/UPF-RS (Bolsista CAPES). E-mail: marcelo_nolli@hotmail.com. Orcid:
https://orcid.org/0000-0001-8760-7822.
**
Graduada em Pedagogia (2019) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Graduanda em Letras pela UFRGS.
Mestranda em Educação pela UFRGS. E-mail: mottakleinm@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-6084-8797.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Por uma ética da interdependência: reflexões sobre
A força da não violência
, de Judith Butler
386
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 385-394, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Estender a compreensão de vida partindo da reflexão sobre aqueles que são
reconhecidos em vida e que em morte serão lamentados, e aqueles que são invisíveis,
esquecidos, excluídos, a quem seu desaparecimento não causará nenhuma comoção
é o que se propõe Butler, visando alcançar inclusive a todos os seres vivos, desde os seres
humanos e os animais, até o Planeta Terra. No fundo desta reflexão se encontra a noção
de ‘interdependência’ capaz de realizar uma crítica política da violência. Dependemos
uns dos outros na medida em que somos, cada um, constituídos pelo outro e o carre-
gamos junto conosco.
Contra a concorrência generalizada, individualista do Eu soberano e forte pro-
posta pelo neoliberalismo, é fundamental, para Butler, afirmar a não violência, uma
ética da interdependência que seja reconhecedora da precariedade do ser humano e de
sua fragilidade. Trata-se de questionar a ética desde outra perspectiva epistemológica,
ao dizer que, por vezes, aquilo que sustenta uma reflexão ética ou moral pode estar
erigido sob fundamentos que reproduzem modos violentos de relação entre os seres
humanos e a vida, de submissão e de tirania. Por isso, o estofo da ética que Butler lança
mão aqui é oposto a uma ideia universalista de ser humano baseada em natureza ou
essência a crítica se direcionará, precisamente, à filosofia política e à antropologia
modernas. A nosso ver, esta obra é mais um esforço que se segue após o direcionamento
para a reflexão sobre o luto. Iniciada em 2004, com a obra Vida precária, a crítica da
violência e a igualdade radical no direito ao luto serão constantes em seus trabalhos até
aqui.
A obra A força da não violência é composta pelo prefácio, escrito pela pesquisa-
dora Carla Rodrigues, introdução, quatro capítulos e pós-escrito. Na introdução,
Butler expõe de modo enfático que a “a violência é sempre interpretada” (BUTLER,
2021, p. 28). Portanto, não é algo que independe dos esquemas de referência que a
nomeiam. Sua discussão procura desconstruir os modos com que se diz que algo é vio-
lento ou não, permitindo um trabalho hermenêutico mais cuidadoso sobre a própria
ideia de violência, bem como sobre o que significa uma política e uma ética não vio-
lentas. Isto porque, se se entende a não violência como passividade ou benevolência, se
está longe do que Butler aqui propõe.
Neste sentido, se “[a] interdependência social caracteriza a vida” (BUTLER,
2021, p. 29), a violência é um ataque a essa interdependência; um ataque contra os
laços sociais. Não é exagero, diz Butler, recorrer aqui à ideia de que esta violência nega
e fere com o princípio da igualdade social. Todos os seres dependem entre si.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Marcelo Ricardo Nolli, Mariana Motta Klein
387
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 385-394, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Do que cada um depende e o que depende de cada um é variável, uma vez que não se trata apenas
de outras vidas humanas, mas de outras criaturas sencientes, meio ambientes e infraestruturas:
nós dependemos de tudo isso, e tudo isso, por sua vez, depende de nós para manter um mundo
habitável (BUTLER, 2021, p. 29).
Portanto, a igualdade não poderia se reduzir a um cálculo que concede a cada
pessoa abstrata o mesmo valor, pois a igualdade entre pessoas tem de ser pensada pre-
cisamente em termos de interdependência social. Referências iguais de manutenção da
vida tornam-se fundamento dessa proposição de igualdade.
Quais ‘si mesmos’ são dignos de defesa, ou seja, são elegíveis para a autodefesa
significa se perguntar que desigualdades sociais e históricas estabelecem pessoas visíveis,
passíveis de luto, e outras não enlutáveis, invisíveis. No entanto, esse quadro de refe-
rências sobre as desigualdades não diz, nas palavras de Butler, nada sobre o valor
intrínseco da vida. Pois do que se trata quando se fala sobre estas desigualdades é sobre
o modo de legislar e determinar modos desiguais de vida e também modos desiguais
de direito ao luto. A diferença se encontra no sentido de quais vidas são ‘enlutáveis’ (e
por isso reconhecidas, visíveis e dignas de serem mantidas) ou não enlutáveis (perdidas,
fáceis de destruir ou expor às forças da destruição, deixando-as à mercê de si mesmas).
Butler pretende tirar a discussão sobre a não violência de uma perspectiva moral,
ou instrumental, tal como a compreensão de que é utilizada por ‘indivíduos’ em relação
a um campo de ação possível. Neste sentido: 1) Pretender afirmar a não violência como
uma prática social e política que busca maneiras de resistir às formas sistêmicas de des-
truição, com o objetivo de firmar compromisso coletivo com a criação de um mundo
que seja interdependente, livre e igualitário dos pontos de vista econômicos, sociais e
políticos; 2) Procura mostrar que a não violência não é correlata a uma visão mística de
lugar pacífico ou tranquilo da alma; ao contrário, sua antropologia de base aqui vai da
compreensão psicanalítica até a compreensão social da interdependência: razão pela
qual compreende a agressividade como parte constitutiva do ser humano. Daí, a não
violência não significa renúncia à agressividade e completa inércia diante das injustiças;
é agressividade ativa, que vê força na não violência para resistir a todas as formas de
destruição, violência e desigualdade. Ao tomar como exemplo Mahtma Gandhi, argu-
menta que a “prática da não violência agressiva não é uma contradição em termos”
(BUTLER, 2021, p. 33), pois é uma renúncia que possui força por insistir na verdade,
na verdade dos excluídos, dos perdedores, dos expropriados e despossuídos; 3) A não
violência precisa de uma constante readequação diante das injustiças, pois pode facil-
mente tornar-se violenta e cometer, ela mesma, injustiça. Por isso, requer a constante
análise e crítica da ambiguidade desta prática, assim como a ambiguidade psíquica do
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Por uma ética da interdependência: reflexões sobre
A força da não violência
, de Judith Butler
388
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 385-394, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
próprio ser humano; 4) “Não existe prática de não violência que não envolva negocia-
ção de ambiguidades éticas e políticas fundamentais. Isso significa que ‘não violência’
não é um princípio absoluto, mas o nome de uma luta contínua” (BUTLER, 2021, p.
34). A renúncia a definir um ‘farol’ ou estandarte infalível e imbatível diante do qual
temos, sempre, que recorrer é o que faz Butler aqui propor esta prática da não violência
juntamente desta ética como algo a ser sempre construído, como uma ‘luta con-
tínua’, e não como um princípio a priori definidor de todos os caminhos.
No primeiro capítulo, intitulado “Não violência, direito ao luto e crítica ao in-
dividualismo”, Butler introduz a ideia da não violência como um compromisso político
com a igualdade. Vidas não têm igual valor no mundo contemporâneo. Propor a igual-
dade, assim, é agir por meio da não violência de forma insubmissa, para que todas as
vidas tenham igual direito a serem valorizadas e salvaguardadas.
[c]omo sabemos, [...] o clamor de que [pessoas] não sejam feridas ou assassinadas nem sempre é
registrado. E uma das razões disso é que essas vidas não são consideradas dignas de luto, enlutá-
veis. Os motivos são muitos e incluem racismo, xenofobia, homofobia e transfobia, misoginia e
negligência sistêmica em relação às pessoas empobrecidas e despossuída (BUTLER, 2021, p. 38).
Neste capítulo, ao tratar do individualismo, realiza uma crítica aos fundamentos
da compreensão política moderna de sociedade amparada na ideia do “estado de natu-
reza”, dirigindo-se sobretudo a Hobbes, Locke e Rousseau. Toma como exemplo o
personagem Robinson Crusoé, do romance de Daniel Dafoe, de 1719, retrato exem-
plar do self-made man autossuficiente, figura-síntese do homem natural. Butler aqui
busca realizar uma crítica a essa concepção antropológica de ‘homem’ (o gênero no
universal já revela, inclusive, do que se trata), entendido por ela como uma ficção mo-
derna. Para Butler, esta ficção moderna produz (pois o contém em seu bojo) o
indivíduo, o sujeito soberano. Propõe pensar estes mitos como fantasmas que se não
elaborados tendem a produzir a repetição da violência e a repetição da tirania. Sob quais
condições históricas essas ficções se desenvolveram e se cristalizaram é o que pergunta.
Neste sentido:
[a] dependência é, por assim dizer, eliminada da imagem do homem original. De alguma maneira
e desde o princípio, ele já se encontra sempre em postura ereta, capaz, sem nunca ter sido susten-
tado por ninguém, sem ter se agarrado a outro corpo para se equilibrar, sem nunca ter sido
alimentado quando não podia se alimentar sozinho, sem nunca ter sido agasalhado por alguém
para se aquecer (BUTLER, 2021, p. 44).
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Marcelo Ricardo Nolli, Mariana Motta Klein
389
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 385-394, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
A tese que opõe à hipótese do estado de natureza é a de que nenhum corpo pode
sustentar-se por si mesmo. A violência inaugural deste fantasma, em sua compreensão,
é a de exclusão do diferente, que é parte constitutiva, inclusive, do próprio self.
O que temos aqui é uma tentativa de reinterpretar a violência por meio da des-
construção dos mitos fundantes da racionalidade moderna; isto para que a afirmação
da não violência possa ser de fato realizada. Butler defende que precisamos de uma não
violência agressiva, ou seja, “aquela que emerge em meio ao conflito, que se instala no
próprio campo de força da violência” (BUTLER, 2021, p. 46). Essa não violência
agressiva só pode ser proposta por meio de uma crítica do individualismo, pois o que
nos faz negar a interdependência entre os seres vivos seria, em partes, uma base antro-
pológica de fundo individualista, baseada na força, soberania, autossuficiência e na
retidão (que Butler localiza no bojo do projeto moderno). No entanto, tal leitura, se-
gundo Butler, pode ser admoestada por ser excessivamente ingênua ou até mesmo levar
água ao moinho do relativismo. Contra isto, coloca como condição que, para que a
imaginação não emperre, é preciso empurrá-la para além dos limites do possível:
“Quero sugerir que uma nova ideia de igualdade só pode emergir de uma interdepen-
dência mais plenamente imaginada, uma imaginação que se desdobra em práticas e
instituições, em novas formas de vida cívica e política”. “Tenho afirmado que a tarefa,
como a imagino, não é superar a dependência para alcançar a autossuficiência, mas
aceitar a interdependência como condição de igualdade” (BUTLER, 2021, p. 51).
Não se trata de se emancipar no sentido da maioridade kantiana, tal como está
posta na perspectiva do Esclarecimento, pois esta é aquela que coloca como base a ideia
de dependência da criança, não esclarecida e pueril, em relação ao adulto, esclarecido
o primeiro homem fantasmático do estado de natureza reaparece aqui, nesta sepa-
ração. Segundo Butler, esta lógica é a mesma que foi utilizada na relação entre
colonizador e colonizado e entre nações, e foi utilizada como justificativa para a própria
colonização. Sem essa dependência, o colonizador perde seu poder. Por isso, antes de
afirmar a dependência, a interdependência precisa ser uma saída. Todos dependem-se
entre si. Se importar com a precariedade não precisa ter sua justificativa em razões pa-
ternalistas ou de caridade, mas no fato de que “habitamos o mundo juntos, em relação
de independência. O destino de cada um de nós está, por assim dizer, nas mãos dos
outros” (BUTLER, 2021, p. 53).
Ainda no primeiro capítulo, Butler propõe a seguinte reflexão: o que constitui o
‘si mesmo’ da autodefesa, justificativa para perpetrar violência, seja nas formas milita-
ristas em que o ataque é a melhor defesa, seja no clamor dos ‘cidadãos de bem’ por
‘mais armas’ para defender a si e aos seus? Butler, em outras palavras, pergunta: quem
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Por uma ética da interdependência: reflexões sobre
A força da não violência
, de Judith Butler
390
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 385-394, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
e o que é a parte do ‘Eu’ que somos, e quais relações estão incluídas na rubrica do ‘Eu’
a se defender, que tem direito à legitima defesa? (BUTLER, 2021, p. 54). A ambigui-
dade da palavra autodefesa perde um pouco do seu escopo do original no inglês: self-
defense também pode ser ‘defesa do si mesmo’, defesa do self. Qual é o self que se quer
defender, o que o constitui? Qual é este auto, da ‘autodefesa’? Qual o estatuto da alte-
ridade, qual o seu lugar, diante desse self? Qual o estatuto deste ‘próximo’ que não é
‘Eu’? De acordo com essa lógica, a violência da autodefesa ou em defesa das pessoas
que pertencem a um regime mais amplo do eu se torna ‘justificável’, com as quais a
identificação é possível ou que são reconhecidas como constituinte de um domínio
social ou político:
[...] a norma que invocamos para distinguir as vidas que estamos dispostos a defender daquelas
que, não prática, são dispensáveis faz parte de um funcionamento mais amplo do biopoder que,
de modo injustificável, distingue entre vidas enlutáveis e vidas não enlutáveis” (BUTLER, 2021,
p. 56-57).
No segundo capítulo, intitulado “Preservar a vida de outrem”, Butler procura
explicitar o que entende pela noção de interdependência e como esta noção se constitui
como central para a afirmação de um imaginário político e ético que procure proteger
e salvaguardar vidas. Segundo Butler, há uma diferença, no entanto, entre salvaguardar
e proteger; a proteção se dá no presente (e infere um caráter paternalista, que também
é necessário), enquanto a salvaguarda infere um caráter de futuro. Não se trata apenas
de direito a lamentar perdas, apesar de a autora considerar isso importante; trata-se,
sobretudo, de que as pessoas comportem em vida o direito ao luto. O caso aqui é con-
dicional, pois “as pessoas não enlutáveis são aquelas cuja perda não deixaria rastro ou,
talvez, mal deixasse rastro”; já, pessoas “enlutáveis seriam lamentadas pelo luto se sua
vida fosse perdida” (BUTLER, 2021, p. 70). Desta forma, para Butler, dizer que uma
vida é enlutável significa que antes mesmo de ser perdida, essa vida é merecedora do
luto, visto que “a vida tem valor em relação à mortalidade” (BUTLER, 2021, p. 70)
pois somos finitos, precários. A igualdade radical do direito ao luto não deve ser
pensado de modo diádico (entre duas pessoas numa relação de troca instrumental), mas
como políticas sociais, instituições e vida política. Tal proposição só poderia, para Bu-
tler, se constituir como efetiva se formos capaz de empurrar e formular um novo
imaginário social não violento. Pois para ela, “[u]ma aspiração normativa desta obra é
contribuir para a formulação de um imaginário político de igualdade radical no direito
ao luto” (BUTLER, 2021, p. 70).
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Marcelo Ricardo Nolli, Mariana Motta Klein
391
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 385-394, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Neste mesmo capítulo, Butler trata da noção de substitutibilidade a partir do
pensamento moral (especificamente Immanuel Kant) e coloca a teoria psicanalítica a
serviço de uma compreensão ainda impossível de sociedade (mas que chama à imagi-
nação política) na qual salvaguardar vidas implica na afirmação da negatividade dos
laços sociais, o que torna estes interdependentes e implicados entre si. "Há uma ma-
neira pela qual residimos um no outro" (BUTLER, 2021, p. 87) o que ecoa o célebre
verso de Rimbaud, o “Eu é um outro”. A interdependência implica numa certa depen-
dência, que se dá institucional e politicamente. Contra a lógica da guerra e do
triunfalismo de um Eu soberano (His Majesty the baby), Butler propõe uma ética da
não violência que tome como ponto de partida a ambivalência dos laços sociais e a
negatividade que os une (amor e ódio) a partir das teorias de Melanie Klein e Sigmund
Freud. O eu aqui não é senão o outro que ao sermos violentos também ferimos; há,
então, uma ideia de substitutibilidade inerente a essa compreensão, no qual o impulso
destrutivo não é negado, mas canalizado para formas de afirmação da reciprocidade, de
empatia (muito embora Butler não use este termo) e recusa veemente e ativa da violên-
cia. Neste sentido, ferir ao outro é ferir a mim mesmo. Negar a violência é não apenas
adotar o consequencialismo com fins utilitários, mas a substitutibilidade entre eu e o
outro. "Isso reverbera por toda a vida adulta: eu amo você, mas você já é eu, carregando
o fardo de meu passado não reparado, minha privação e minha destrutividade"
(BUTLER, 2021, p. 85). Negociar a agressividade e a ambivalência é, portanto, um
imperativo da prática da não violência e de uma ética do direito ao luto, explicitados
neste capítulo.
No terceiro capítulo, intitulado “A ética e a política da não violência”, a autora
se baseia em Michel Foucault e Frantz Fanon, bem como em Étienne Balibar e Walter
Benjamin, para discutir os diferentes tipos de fantasmas que povoam tacitamente os
discursos estatais e públicos sobre a violência. Certamente é um choque quando atos
não violentos que procuram reivindicar a igualdade radical, a tolerância, a esperança e
o respeito, são chamados de ‘atos violentos’, ou quando povos procuram legitimamente
se revoltar contra a desigualdade crescente que sofrem e são chamados, pelo Estado, de
violentos e são brutalmente reprimidos. A nomeação pelo Estado sobre aquilo que é
violento ou não violento, para Butler, dissimula sua própria violência. Por isso, a recu-
peração de “fantasmas populacionais” e “fantasmas raciais” terá como eixo central esta
reflexão diante do Estado, e a nomeação da violência instituidora de sua soberania, no
regime da soberania, e da biopolítica, no regime das formas de exercício de poder nas
sociedades modernas. Walter Benjamin e seu texto “Crítica do poder como violência”,
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Por uma ética da interdependência: reflexões sobre
A força da não violência
, de Judith Butler
392
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 385-394, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
de 1921, é uma referência fundamental aqui, muito embora Butler não tome a saída
da “violência divina”, que segundo ela acaba por ser excessivamente anarquista.
Este capítulo questiona que éticas e políticas podem se contrapor a um modo
violento de conceber a justiça e o Direito, e, essencialmente, o próprio Estado. Há uma
severa crítica à violência sancionada pelo Estado neste capítulo, bem como a uma visão
de direito positivo que busca tão somente reforçar a lei como forma de ‘conter’ a vio-
lência que o ameaça. Não é, no entanto, inusitado que o violento será nomeado como
aquele externo, o diferente, o imigrante, o marginal figuras fantasmáticas que rever-
beram a ideia de ‘outro’ e que povoam o imaginário social de modo essencialmente
paranoico.
A tarefa, consiste, portanto, em investigar os padrões pelos quais a violência tenta nomear como
violento aquilo que resiste a ela e como o caráter violento de um regime legal é exposto quando
este reprime a divergência pela força, pune trabalhadores e trabalhadoras que recusam condições
de exploração, isola grupos minoritários, encarcera seus críticos e expulsa potenciais rivais
(BUTLER, 2021, p. 111).
É claro que, neste caso, Butler não busca compreender a dimensão somente física
da violência, mas propõe ver que violência é esta que é nomeada pelos de cima, e que
violência é aquela do racismo, do machismo, linguística, violência emocional, institu-
cional e econômica naturalizada e perpetuada pelo próprio Estado e pela sociedade.
A questão não é aceitar um relativismo generalizado, mas antes analisar e expor a oscilação dos
quadros referenciais nos quais ocorrem as práticas de nomeação [do que é violência]. Pois so-
mente então torna-se possível garantir nossa compreensão do que é não violência e o que ela
envolve (BUTLER, 2021, p. 113).
Questionar a legitimidade, inconformar-se com as figuras do poder, exigir a al-
teração do status quo, podem facilmente ser compreendidos como atos violentos e
normalmente o são. Por isso, esta tarefa é exercício decisivo do pensamento crítico.
Butler (2021, p. 114), no entanto, toma precaução ao relembrar que: “[...] a
operação de crítica não pode impedir o compromisso e o juízo”. O que significa dizer
que é preciso assumir e se comprometer diante de um quadro de referências. Sem ele
não é possível de exercer a própria tarefa da crítica. E, neste caso, Butler afirma que a
violência sempre age como uma intensificação da desigualdade social. A não violência
age a favor do compromisso da igualdade radical é veemente contra, portanto, todas
as formas de desigualdades, simbólicas ou materiais. “A crítica da violência precisa ser
uma crítica radical da desigualdade” (BUTLER, 2021, p. 116).
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Marcelo Ricardo Nolli, Mariana Motta Klein
393
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 385-394, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Diante dessa discussão, Butler conclui o capítulo buscando afirmar a igualdade
e a convivência em novos termos, partindo da ideia de que todas as vidas são igualmente
enlutáveis. Isso implica em reconhecer que todas as vidas merecem um futuro, que não
pode ser previsto nem prescrito com antecedência. Por isso, reconhecer essa igualdade
significa salvaguardar o futuro de uma vida, significa manter em aberto as formas con-
tingentes e imprevisíveis que as vidas podem assumir, sem prefixá-la teleologicamente
ou seja, sem finalidade ou telos predefinido que necessária e automaticamente se
realizará. Isso é bastante diferente da ‘obrigação’ de preservar a si mesmo e ‘somente’ a
sua própria comunidade à custa dos outros.
A não violência não é um meio de atingir um objetivo ou um objetivo em si. Ao contrário, é uma
técnica que excede tanto a lógica instrumental quanto o esquema teleológico de desenvolvimento
é uma técnica não governada ou, pode-se dizer, inegovernável. É contínua, aberta, e portanto,
o que Benjamin chama de ‘fim puro’ outro nome para a noção de crítica como modalidade
ativa de pensamento ou compreensão, sem limites impostos pela lógica instrumental e teleológica
(BUTLER, 2021, p. 104).
“Se a destrutividade é uma pulsão ou uma característica das relações sociais, essa
é uma questão para a qual ainda não temos resposta” (BUTLER, 2021, p. 119). A
questão seria: como esta discussão contribui para a crítica política da violência? “É pre-
cisamente porque podemos destruir que temos a obrigação de saber por que não
devemos destruir e evocar os contrapoderes que freiam essa capacidade de destruição
(BUTLER, 2021, p. 119).
Esta última afirmação indica a linha argumentativa que se seguirá no capítulo 4,
intitulado “Filosofia política em Freud: guerra, destruição, mania e capacidade crítica”.
Talvez este é o capítulo mais interessante, sobretudo porque aqui está formulado de
um modo mais direto o que Butler compreende pela ambivalência psíquica do ser hu-
mano, e onde repousa o fundo educativo da luta contra a violência. A discussão se
centra em torno do desenvolvimento da noção de pulsão de morte na obra freudiana,
mostrando como o contexto histórico e social influenciou decisivamente os rumos que
algumas de suas ideias tomaram.
O objetivo deste capítulo consiste em discutir como o impulso autodestrutivo do
ser humano importa à reflexão política e social, e reforça a tese de que não é desejável
a saída de que para contermos a destrutividade devemos buscar ‘reforçar’ o Supereu ou
a ‘moral’ das pessoas, tendo em vista que o próprio Supereu se articula perfeitamente
bem à pulsão de morte. Diante de um Supereu rígido, se a destrutividade não se volta
para fora, ela se volta para dentro. Butler recorre a uma citação, de modo algo curioso,
em que Freud desqualifica a “força do Supereu” contra a destrutividade, e em que
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Por uma ética da interdependência: reflexões sobre
A força da não violência
, de Judith Butler
394
v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 385-394, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
afirma a mania como força que poderia fazer frente à tirania do Supereu para com o
Eu. Recorre, por isso, ao texto Luto e melancolia, em que Freud discute sobre a distinção
entre a posição melancólica, a lutuosa e a maníaca. Na interpretação de Butler (2021,
p. 132),
[a] mania é, por assim dizer, o protesto do organismo vivo contra a perspectiva de ser destruído
por um superego descontrolado. Assim, se o superego é a continuação da pulsão de morte, a
mania é o protesto contra a ação destrutiva contra o mundo e contra si mesmo.
A mania pergunta: ‘Existe algum caminho para sair desse círculo vicioso em que
a destrutividade é contra-atacada pela autodestrutividade?’. Tal afirmação da mania,
segundo Butler, pode dar pistas de um tipo diferente de resistência contra a destruição
que não seja a mais pura autodestruição. Ela é análoga à capacidade crítica na medida
em que depõe toda forma de tirania, de sustentação de vínculos de poder e de submis-
são. Não fica muito claro, no entanto, como articular essa compreensão da mania a
práticas efetivas de não violência, isto é, o que seria de fato uma desidentificação e o
que ela implica ao indivíduo? Certa dose de identidade não seria necessária? Para Butler
(2021, p. 133): [n]a medida em que aqueles que seguem o tirano louco identificam-
se com seu desprezo deliberado pela lei e por qualquer limite imposto a seu poder e sua
capacidade destrutiva, o movimento contrário deve se basear na desidentificação”.
No pós-escrito “Repensando a vulnerabilidade, a violência e a resistência”, Butler
conclui seu percurso nesta obra, ao retomar o sentido que normalmente se dá à noção
de vulnerabilidade, e argumentar que não se pode compreendê-la tão somente de um
ponto de vista de “fraqueza” e incapacidade. Pois ali onde há vulnerabilidade há tam-
bém resistência ativa e agressiva, que luta pela vida e pela afirmação de que tais vidas
são enlutáveis e têm o direito de viver. Tomando como exemplo diferentes formas de
luta feminista, antirracista e pontos de resistência no mundo, conclui afirmando um
vínculo baseado no “amor furioso, pacifismo militante, não violência agressiva e per-
sistência radical” (BUTLER, 2021, p. 155). Se alguém pode entender tais discussões
como irrealistas ou inúteis, Butler afirma que de fato o são; mas é precisamente do
irrealismo de tal de imaginário que se extrai sua força utópica.
Referências:
BUTLER, Judith. A força da não violência: um vínculo ético-político. Tradução de
Heci Regina Candiani. Prefácio de Carla Rodrigues. São Paulo: Boitempo, 2021. p.
155.