ESPAÇO
PEDAGÓGICO
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PEDAGÓGICO
ISSN
on-line
2238-0302
v. 29, n. 3, set./dez. 2022
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Renata Maraschi - Pós-Doutorado
Thiago Radünz da Silva - Mestrado
Vanessa Salete Bicigo de Quadros - Mestrado
ESPAÇO
PEDAGÓGICO
Sumário
Editorial ................................................................................................................................... 746
Angelo Vitório Cenci
Telmo Marcon
Marcelo Doro
Dossiê
Homeschooling in the United States: An Overview of the Washington State Regulations and
Implementation........................................................................................................................ 752
Eliane Thaines Bodah
Direito à Educação no Brasil: subsídios para uma análise sobre a proposta da educação domiciliar
................................................................................................................................................ 769
Nilson Carlos da Rosa
Jaime José Zitkoski
A escola como espaço socializador: uma crítica aos limites do homeschooling .............................. 793
Telmo Marcon
Ivan Penteado Dourado
Luciane Spanhol Bordignon
As práticas de judicialização no cotidiano escolar: atravessamentos entre a escola e o conselho
tutelar ...................................................................................................................................... 817
Ingrid de Faria Gomes
Luiz Fernando Conde Sangenis
Pâmela Suélli da Motta Esteves
A juridificação da vida e o ensino domiciliar em questão ........................................................... 833
Carolline Septimio
Marcio de Souza Pessoa
Fluxo contínuo
A imagem no desenvolvimento de habilidades psíquicas na teoria de Lev Vygotsky, influenciadas
por Wundt, Köhler, Koffka e Wertheimer ................................................................................ 855
Maria do Socorro Batista de Jesus Cruz
Eudaldo Francisco dos Santos Filho
Maria Raidalva Nery Barreto
Trabalho docente de pedagogas(os) em licenciaturas de um Instituto Federal: entremeios e
desenvolvimento profissional .................................................................................................... 876
Cátia Keske
Maria Cristina
Pansera-de-Araujo
O cuidado com a escrita e a leitura para uma educação filosófica na escola ................................ 901
Betina Schuler
Ensino Remoto Emergencial no Brasil: reflexões teóricas à luz da teoria dos habitus de Pierre
Bourdieu .................................................................................................................................. 921
Hans Carrillo Guach
Andréa Vettorassi
O trabalho pedagógico pensado como práxis ............................................................................. 944
Ilsa do Carmo Vieira Goulart
Iduméa de Souza Fernandes Ramos
Educação, poder e resistência na era digital ............................................................................... 960
Manuel Gonçalves Barbosa
D
iálogo com educadores
Diálogo com educadores — Dra. Jaqueline Moll ...................................................................... 986
Jaqueline Moll
Angelo Vitório Cenci
Telmo Marcon
Resenha
Educação Domiciliar no Brasil: mo(vi)mento em debate ........................................................... 997
Camila Chiodi Agostini
*
Larissa Morés Rigoni
**
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v. 29, n. 3, Passo Fundo, p. 746-751, set./dez. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
ESPAÇO
PEDAGÓGICO
Editorial
Angelo Vitório Cenci
*
Telmo Marcon
**
Marcelo Doro
***
O terceiro número da revista Espaço Pedagógico de 2022 tem como tema do
dossiê Homeschooling e o direito à educação. A educação domiciliar (homeschooling) pre-
cisa ser analisada enquanto movimento, propostas, objetivos e estratégias mas, também,
por aquilo que indiretamente ela afronta: o direito à educação escolar e o dever do
Estado para com esta.
Como enunciado na ementa do dossiê, a educação como dever do Estado é muito
problemática no Brasil. Por mais de dois séculos a instrução e a catequese ficaram sob
a responsabilidade da Ordem Jesuítica que tinha uma proposta educacional calcada
numa pedagogia tradicional centrada, fundamentalmente, na memorização e na disci-
plina corporal. Uma breve leitura do Ratio Studiorum, publicado em 1599, também
conhecido como método Jesuítico, deixa clara a proposta que associa instrução com
catequese, ou seja, por mais de 200 anos a educação formal no Brasil ficou sob respon-
sabilidade de uma Ordem religiosa e não do Estado português. Com a independência
política de Portugal, em 1822, uma das iniciativas foi convocar uma Assembleia Cons-
tituinte com a função de elaborar o primeiro Ordenamento jurídico brasileiro. A
Assembleia foi dissolvida pelo Imperador Dom Pedro I por conta de conflitos e inte-
resses em disputa. A primeira Constituição brasileira, de 1824, enuncia num único
inciso o papel do Estado para com a educação: “Instrucção primaria e gratuita a todos
os Cidadãos”. Mesmo que esse enunciado tenha sido importante, na prática histórica
pouco se avançou e as aulas avulsas conviveram com as parcas iniciativas públicas leva-
das adiante.
*
Doutorado em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (2006). Graduação em Filosofia Licenciatura Plena pela
Universidade de Passo Fundo (1989). Professor da Universidade de Passo Fundo (UPF). Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0541-
2197. E-mail: angelo@upf.br. Organizador do Dossiê.
**
Doutor em História Social pela PUC de São Paulo. Pós-doutor em Educação intercultural pela UFSC. Professor, pesquisador e
orientador no Instituto de Humanidades, Ciências, Educação e Criatividade (IHCEC) da Universidade de Passo Fundo e do
PPGEDU/UPF. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-9110-3210. E-mail: telmomarcon@gmail.com.
***
Doutor em Educação pela Universidade de Passo Fundo (2019), Licenciado em Filosofia pela Universidade de Passo Fundo (2003).
Professor da Universidade de Passo Fundo (UPF). E-mail:
marcelodoro@upf.br.
Editor-chefe da Revista Espaço Pedagógico.
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Com a instauração da República, em 1889, a Educação não ganha, efetivamente,
centralidade. Enquanto vários países, tendo a França como referência, definem a edu-
cação como dever do Estado Republicano, laica e gratuita, no Brasil vive-se, ao longo
do século XX uma tensão entre a educação privada (confessional) e a educação pública.
Essa tensão transversaliza o processo constituinte de 1987-1988 e desemboca no texto
Constitucional com uma síntese precária, mas traduzindo o que foi possível. Conforme
refere o artigo 206 da Carta, a educação é dever do Estado e da família. A LDB, de
1996, reafirma essa premissa, mas inverte a ordem: a educação é dever da família e do
Estado. Qual é o problema de fundo? Um deles é o de que não chegamos a um mínimo
de consenso no Brasil sobre de quem é o dever de educar e, consequentemente, de
assegurar o direito à educação. Essa definição não suficientemente objetiva de quem é
o dever para com a Educação abre espaços para o avanço de grupos com interesses
estritamente empresariais, a expansão de escolas cívico-militares e, em 2022, com o PL
1.338/2022, a aprovação do projeto de educação domiciliar. Tais situações afrontam
os princípios básicos de uma educação republicana, tais como obrigatoriedade, laici-
dade e gratuidade.
Essas breves considerações históricas justificam a importância de pautar o tema
da educação domiciliar e o direito à educação. No entanto, outras razões de ordem
psicosociológica são fundamentais de serem postas. A constituição da personalidade e
a preparação para a vida em sociedade exigem a presença do outro. Inúmeros autores
argumentam em defesa de uma socialização significativa, especialmente para as crian-
ças. Privá-las de experiências múltiplas, que só podem ocorrer em espaços públicos, ou
seja, na convivência social, pode acarretar consequências de múltiplas naturezas. Nesse
aspecto reside o problema central que precisa ser posto para fundamentar uma crítica
à educação domiciliar. É na convivência com o diverso que aprendemos a apreciar o
quanto de riqueza as relações podem propiciar. Evidente que a convivência com o outro
pode gerar problemas e conflitos, mas dali derivam as possibilidades de crescimento,
aprendizagens e trocas significativas. Onde predomina realidades homogeneizantes a
tendência é de maior adequação, ou seja, de menos desafios colocados às crianças e
adolescentes e, pois, de processos de socialização mais heteronomizantes.
Entre os grandes desafios a serem enfrentados para a sustentação democrática nas
sociedades contemporâneas está o da formação para a democracia. Essa formação tem
formulações teóricas, mas precisa ocorrer na prática, ou seja, na convivência com outras
pessoas que pensam e tem pontos de vista distintos. A formação para um a convivência
na pluralidade, própria de toda sociedade complexa e democrática, passa pelo lento e,
por vezes, conflitivo, coletivo e necessário, processo de aprendizagem de compartilhar
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valores universalmente desejáveis, tais como a solidariedade, a cooperação e o respeito
mútuo. A escola é, sem dúvida, um espaço privilegiado para que essa formação ocorra.
Por vezes, ela se constitui no primeiro espaço em que a criança tem de confrontar va-
lores e contravalores privados e, impedi-la de realizar essa experiência, é afrontar os
direitos humanos e a capacidade indispensável de aprender construir com os outros um
mundo comum. Pode-se constatar não ser por acaso haver um grande esforço político
e pedagógico para a inclusão de pessoas com deficiências ocorra no espaço da escola
regular. Em havendo esse esforço para quem tem deficiências, por que privar outras
crianças da escola? Nesse sentido, não há qualquer argumento plausível que justifique
uma educação formal de crianças em espaços estritamente familiares. Evidente que a
família tem um papel importante de apoio, acompanhamento e sustentação dos pro-
cessos de aprendizagens das crianças. No entanto, a educação tem uma função pública
e a escola e o Estado têm um papel decisivo na sua efetivação.
Com efeito, também, a superação de dogmatismos, fanatismos, práticas autori-
tárias e fascistas ocorre pela mediação de uma educação capaz de promover uma
formação democrática e cidadã. A família tem, nesse sentido, limites. Uma escola crítica
e criativa abre um conjunto de possibilidades para que essa formação ocorra. A revista
Espaço Pedagógico quer contribuir com o debate dessas questões propiciando espaço
para a problematização da educação domiciliar e a progressiva corrosão do dever do
Estado para com a educação pública no Brasil e, por conseguinte, a crescente fragiliza-
ção do direito dos cidadãos a uma educação de qualidade em espaços públicos.
Para contribuir com o aprofundamento dessas questões contamos com a colabo-
ração de muitos pesquisadores. O primeiro artigo, intitulado Homeschooling nos Estados
Unidos: uma Abordagem dos Regulamentos e Implementação no Estado de Washington, de
autoria de Eliane Thaines Bodah, brasileira que cursou mestrado no PPGEdu da Uni-
versidade de Passo Fundo e deu continuidade aos estudos nos Estados Unidos, país
onde reside, analisa o homeschooling e a expansão dessa modalidade, especialmente no
Estado de Washington, bem como o crescente papel de pais e tutores na educação
formal das novas gerações. Através de uma revisão bibliográfica, dados estatísticos e
entrevistas, analisa como usuários desse sistema avaliam as vantagens e os desafios dessa
modalidade. As razões da expansão do homeschooling são múltiplas, mas destaca a fé e
a religião das famílias como decisivas. Evidente que a pandemia da Covid-19 contri-
buiu para a expansão dessa modalidade.
No artigo Direito à Educação no Brasil: subsídios para uma análise sobre a proposta
da educação domiciliar, Rosa e Zitkoski analisam como o homeschooling afronta o di-
reito à educação, fortalece a privatização da educação e compromete uma formação
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v. 29, n. 3, Passo Fundo, p. 746-751, set./dez. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
autônoma, crítica e dialógica dos indivíduos. Concluem afirmando que a relação indi-
víduo-sociedade é fundamental no ensino-aprendizagem, bem como para a integração
do indivíduo à sociedade.
Na sequência, o artigo de Marcon, Dourado e Bordignon, A escola como espaço
socializador: uma crítica aos limites do homeschooling, analisa a complexidade dos pro-
cessos socializadores e a importância da escola na formação individual e social. Com
base em referenciais bibliográficos e documentais fundamentam uma crítica à educação
domiciliar ao limitar o processo educativo formal ao espaço familiar. O argumento é
que a constituição do indivíduo ocorre nas interrelações que este estabelece com outras
pessoas, através dos processos de socialização. O artigo analisa as implicações pedagó-
gicas de uma educação circunscrita ao âmbito familiar e defende a tese da importância
do espaço público escolar na formação de sujeitos democráticos e cidadãos.
As práticas de judicialização no cotidiano escolar: atravessamentos entre a escola e o
conselho tutelar é o artigo de Gomes, Sangenis e Esteves. Os autores problematizam a
judicialização da vida escolar com base na análise de práticas e discursos pertinentes às
tensões entre a Escola e o Conselho tutelar. Pautam uma questão muito sensível que é
a do Conselho tutelar, um órgão não jurisdicional, “operar com base em lógicas judi-
cializantes, muitas vezes reguladas pela lógica penal”. O artigo concluiu que a lógica
judicializante e a capilarização do saber-poder jurídico geram, no espaço escolar, “ou-
tros modos de regulação e de controle”.
O artigo de Septimio e Pessoa, A juridificação da vida e o ensino domiciliar em
questão, reconhece que a educação domiciliar ganha força no Brasil atual, especialmente
com os movimentos que pleiteiam transformá-la numa política pública. Essa discussão
precisa pautar as condições da educação no país, além das premissas intrínsecas a esse
ideário. A crítica feita ancora-se em Honneth, especialmente no conceito de liberdade
e nas patologias modernas que decorrem de uma “má compreensão sobre tal conceito”.
O artigo conclui que a “prática do homeschooling não corresponde aos anseios da soci-
edade atual por se tratar de política que isola a criança e acentua as desigualdades sociais
do país, na medida em que gera um déficit no reconhecimento entre iguais”.
Na sequência, Cruz, Filho e Barreto contribuem com o artigo Lev Vygotsky: A
imagem no desenvolvimento de habilidades psíquicas influenciadas por Wundt, Köhler,
Koffka e Wertheimer. Nele, reforçam a ideia de que o conhecimento ocorre pela medi-
ação de interações e inter-relações dos indivíduos com os outros e com o ambiente.
Vygotsky é influenciado por vários pensadores e o artigo objetiva “evidenciar as con-
tribuições recebidas de outras correntes teóricas na abordagem Sociointeracionista de
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v. 29, n. 3, Passo Fundo, p. 746-751, set./dez. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Vygotsky, destacando-se a imagem como um elemento essencial na construção do co-
nhecimento”.
O artigo de Keske e Araújo, Trabalho docente de pedagogas(os) em licenciaturas de
um Instituto Federal: Entremeios e desenvolvimento profissional, aborda o papel dos Ins-
titutos Federais (IFs) na oferta de vagas para a formação inicial de professores e os
desafios na constituição profissional destes, especialmente na área da Pedagogia. Por
força da lei, os IFs precisam ofertar, pelo menos, 20% de suas vagas para a formação
inicial de professores. O estudo analisa os desafios da formação inicial, bem como as
implicações desta para a docência.
O artigo de Betina Schuler, O cuidado com a escrita e a leitura para uma educação
filosófica na escola, aborda uma temática complexa que é a relação entre a verdade e a
subjetivação a partir de Sêneca e Foucault. Como refere a autora, baseada na inspiração
da genealogia da subjetivação, “não se trata apenas de relações de conhece-te a ti
mesmo, cuida-te de ti mesmo ou domina-te a ti mesmo”. Há um deslocamento nas
práticas de si para o “desempenha-te a ti mesmo na stultitia” que reduz a objeto de troca
e a uma pobreza narrativa. Partindo dessa problematização propõe “uma educação fi-
losófica na escola por meio de práticas de leitura e escrita como resistência a um
presente neoliberal e neoconservador que limita tais práticas”.
Guach e Vettorassi pautam um tema atual e impactante que é o ensino remoto
emergencial, decorrente da Pandemia do Covid-19. Trazem para essa discussão as con-
tribuições de Pierre Bourdieu e elementos de uma pesquisa com alunos de graduação
na Universidade Federal de Goiás (UFG) que não tinham as mesmas condições que
outros de seus colegas para acompanharem as aulas. Reconhecem a contribuição de
Bourdieu e a necessidade de “aperfeiçoar a compreensão da relação entre sucesso esco-
lar, habitus e instituições educativas, especialmente a partir de realidades que não foram
consideradas por este autor”.
O trabalho pedagógico pensado como práxis, de Ramos e Goulart, objetiva analisar
o conceito de práxis em Adolpho Sanchez Vázquez e o de prática educativa e pedagógica
baseada em Freire, destacando as diferenciações, similaridades e indissociabilidades. As
autoras concluem que “a reflexão atribui visibilidade aos conceitos de práxis e prática,
colaborando para as discussões que delineiam a perspectiva de trabalho pedagógico
como atividade social transformadora, reflexiva, libertadora e predominantemente di-
alógica”.
Manuel Gonçalves Barbosa contribui com uma importante reflexão sobre Edu-
cação, poder e resistência na era digital. Baseado nas contribuições, especialmente de
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v. 29, n. 3, Passo Fundo, p. 746-751, set./dez. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Foucault, analisa a reconfiguração do poder na era digital e os riscos em termos indivi-
duais e sociais dessas transformações protagonizadas, basicamente, por grandes
plataformas de serviços digitais. Diante disso, problematiza o papel da educação na
construção de “atitudes defensivas relativamente a esse poder”.
Na sessão Diálogo com educadores contamos com a contribuição da educadora-
doutora Jaqueline Moll. Com uma longa trajetória no campo da educação, destaca
elementos que ressaltam a importância da criança estar na escola. Na contramão do
que propugnam os defensores da educação domiciliar, Jaqueline Moll tem uma vasta
contribuição teórico-prática vinculada à educação integral. Suas reflexões estão profun-
damente alinhadas às críticas feitas à educação domiciliar por obstaculizar que a criança
constitua-se como sujeito nas interações com outras crianças.
Por fim, apresentamos a resenha feita por Agostini e Rigoni da obra organizada
por Maria Celi Chaves Vasconcelos, Educação Domiciliar no Brasil: mo(vi)mento em
debate. Essa obra traz um conjunto de contribuições críticas(?) de educadores sobre a
educação domiciliar e o direito à educação. Essa discussão ganhou muitos adeptos no
contexto pandêmico mas, também, mostrou seus limites por conta das dificuldades
enfrentadas pelas famílias com o ensino remoto. São questões que precisam ser pauta-
das e aprofundadas com rigor acadêmico, bem como vinculadas às contribuições de
diferentes áreas do conhecimento.
Desejamos uma boa leitura.
Este artigo está licenciado com a licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
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Homeschooling in the United States: An Overview of the
Washington State Regulations and Implementation
Homeschooling nos Estados Unidos: uma Abordagem dos
Regulamentos e Implementação no Estado de Washington
Educación en el Hogar en los Estados Unidos: una Descripción
General de las Regulaciones e Implementaciones en el Estado de
Washington
Eliane Thaines Bodah
*
Abstract
In the past few years, there was a noticeable increase in homeschooling, parent or guardian-directed
education, in the United States. This work has as its main objective to increase awareness on the
topic using Washington State as a model. The methods were literature review, exploring State
regulations and qualitative interviews on implementation- in practice, sampling users of this system.
Challenges and advantages of this educational system were presented. The main reported benefits
were flexibility or freedom to choose the curricula, to change the schedule, to determine priorities,
as well as the direct involvement in their children’s education. Our results have shown that the
significant increase on homeschooling, in these past years, can be related to different reasons such as
faith-based or religious practices within the family, or as a product of the covid-19 pandemic, when
the majority of parents were required to become closer to their children’s learning process, without
in-person instruction.
Keywords: homeschooling; Washington State; North American Education.
Recebido em: 10.01.2023 Aprovado em: 03.03.2023
https://doi.org/10.5335/rep.v29i3.14388
ISSN on-line: 2238-0302
*
Bióloga, escritora e mestre em educação pela Universidade de Passo Fundo (2006), doutora em horticultura pela Universidade do
Estado de Washington (2014), com pós-doutorado em biostatística pela Universidade de Washington (2016). Em 2021 foi tutora de
suas filhas no sistema de homeschooling norte-americano. Atualmente é coordenadora e fundadora dos clubes de línguas ESL pelo
Thaines and Bodah Center for Education and Development e diretora de pesquisa para a Pureline Inc., ambos sediados no estado
de Washington, EUA. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9204-3080. E-mail: bodaheliane@gmail.com.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
A escola como espaço socializador
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v. 29, n. 3, Passo Fundo, p. 752-768, set./dez. 2022| Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Resumo
Nos últimos anos, observou-se um aumento no ensino domiciliar ou homeschooling, educação
dirigida por pais ou tutores, nos Estados Unidos. Este trabalho tem como principal objetivo
aumentar a conscientização sobre o tema utilizando o Estado de Washington como modelo. A
metodologia qualitativa partiu de uma revisão da literatura explorando a regulação estatal, bem como
entrevistas semiestruturadas sobre a implantação - na prática, utilizando uma amostragem de usuários
deste sistema na parte Central do estado. Desafios e vantagens desse sistema educacional foram
pesquisados e apresentados. Os principais benefícios relatados pelos entrevistados foram a liberdade
e flexibilidade para escolher os currículos, alterar horários de instrução, determinar prioridades, bem
como o envolvimento direto na educação dos filhos. Os resultados mostraram que o aumento
significativo do homeschooling nos últimos anos, pode estar relacionado a diferentes razões, sejam elas
enraizadas na fé ou religiosidade da família, ou um produto da pandemia de covid-19, onde a maioria
dos pais foram obrigados a estar mais próximos do processo de aprendizagem de seus filhos, sem a
instrução presencial.
Palavras-chave: Ensino Domiciliar, Estado de Washington, Educação Norte-americana.
Resumen
En los últimos años en los Estados Unidos hubo un aumento notable en la educación en el hogar,
debido a la educación dirigida por padres o tutores. Este trabajo tiene como objetivo principal
aumentar la conciencia sobre el tema utilizando el estado de Washington como modelo. Los métodos
fueron revisión bibliográfica, exploración de la normativa estatal y entrevistas cualitativas sobre la
implementación en la práctica, y muestreo de usuarios de este sistema. Se presentaron los retos y
ventajas de este sistema educativo. Los principales beneficios reportados fueron la flexibilidad o
libertad para elegir los planes de estudio, cambiar el horario, determinar prioridades, así como la
participación directa en la educación de sus hijos. Nuestros resultados han demostrado que el
aumento significativo de la educación en el hogar en los últimos años, puede estar relacionado con
diferentes razones, como prácticas basadas en la fe religiosa dentro de la familia, o como producto
de la pandemia de covid-19, cuando la mayoría de los padres estaban obligados a estar más cerca del
proceso de aprendizaje de sus hijos, sin instrucción en persona.
Palabras clave: Educación en el Hogar, Estado de Washington, Educación Norteamericana..
Introduction
Homeschooling is a legal parent or guardian - directed education modality with
increasing popularity in the United States (US). In all 50 States, homeschool is a valid
choice. Parents or guardians can take charge of their children’s education and provide
home-based instruction. Homeschooling can also have other definitions in the litera-
ture. For instance, according to Donnelly:
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Homeschooling in the United States
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depending on the philosophical underpinning, country of origin, and other factors,
homeschooling is also known as home-based education, home education, unschooling, home-
centered learning, home instruction, de-schooling, autonomous learning, and child-centered
learning (2012, p. 2).
Students in the US generally go through a basic education system that includes
pre-school, elementary, middle, and high school, in a total of 12 years of studies. In
the public school system, admission to elementary school is between five to six years of
age, with some exceptions. However, if the parents opt for homeschooling, they do not
need to report anything until child is eight years old. In the US, each state has inde-
pendent power to regulate basic education (BODAH; BODAH, 2017).
The Institute of Education Sciences (IES) defines that the following criteria for
a student to be considered homeschooled must be met: “notification by those respon-
sible to this choice rather than going to a public or private school; if enrolled in a
school, enrollment may not exceed 25 hours per week; cases of homeschooling only
due to temporary illness/disability are also not considered homeschool" (2019, p. 32).
The homeschooling movement in the US emerged in the 1970s, noting the im-
pact of political radicalism both right and left, feminism, suburbanization, and public-
school bureaucratization and secularization. It then describes how the movement, con-
stituted of left- and right-wing elements, collaborated in the early 1980s to contest
hostile legal climates in many states but was taken over by conservative. Despite inter-
nal conflicts, the movement’s goals of legalizing and popularizing homeschooling were
set during the mid-1990s (GAITHER, 2009).
Families might choose to homeschool for different reasons, freedom being one
of the top ones. Another reason can be faith-based because some families disagree with
contents taught in the public-school curricula, especially in religion or science (i.e.,
evolution and sexual education). Other families choose homeschooling when their chil-
dren have different learning capabilities due to medical conditions or group anxiety.
Keeping a controlled environment for instruction and flexibility on schedule can also
be viewed as benefits by parents or guardians.
Homeschooling policies vary from state to state in the US, setting a very hetero-
geneous scenario. The New York State, for example, has one of the strictest state laws
that regulate homeschooling. It requires notification to the superintendent of the
school district, lesson plans, cover required contents each school cycle, and student
enrollment in a degree-granting institution. The student should attend for 12 hours
every six months or equivalent every year. While in Texas, the second largest US state,
there are flexible requirements such as the instruction be of good faith (bona fides); the
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curriculum is in visual format; and that it includes the subjects of reading, spelling,
grammar, mathematics and good citizenship (VIEIRA, 2012)
In other states, parents or guardians that opt for homeschooling can receive free
resources that include guidelines, curricula, optional testing, and even financial com-
pensation. Parents or guardians can become the student’s tutor. It is important to note
that during the covid-19 pandemic, the concept of homeschooling has become ambig-
uous, as parents mix home, school, and online instruction, adjusting often to the twists
and turns of school closures and public health concerns (HAMLIN and PETERSON,
2022). Many families seem to have started explore homeschooling from then on.
There is no national requirement for the parents to have specific training before
start homeschooling but Washington State have specific ones discussed in the next
section. Upon completion of homeschooling a high school diploma can be symbolic
offer by the parents or the student can take an equivalent test to get a general education
diploma (GED). In this paper, we focused on the Washington State to understand and
increase awareness on this topic.
An Overview of the Homeschool Regulations in Washington
State
Parents can choose to purchase private curricula for homeschooling or just follow
guidelines provided by the government for subjects and contents similar to the public
system. In the State of Washington, homeschool regulations are specific. For instance,
there is a “home-based” instruction Law. The following statutes were amended to the
law on Chapter 441: RCW 28A.225.010 for attendance, mandatory age, and excep-
tions; RCW 28A.195.010 for extension programs for parents to teach children in their
custody, and scope of state control; and RCW 28A.150.350 for part-time students,
defined enrollment, authorized reimbursement for costs, funding, authority recogni-
tion, rules and regulations.
According to the Washington Homeschool Organization WHO, new sections
were added as well to Chapter 28A.225 RCW for compulsory school, attendance and
admission. The major homeschool organization, in addition WHO, is the Christian
Heritage Home Educators of Washington. The State Board of Education is authorized
to develop rules relating to the approval of private schools. The Office of Superinten-
dent of Public Instruction is responsible to implement the statute relating to part-time
attendance and high school equivalency GED certificates Rules and regulations gov-
erning extension programs in private schools and part-time attendance in the public
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schools of students receiving home-based instruction were adopted in 1987 (WHO,
2022).
To follow the State regulations, parents must meet qualifications to homeschool,
file notice of intent with local school superintendent, teach the required subjects,
choose curriculum that best meets their children needs, participate in annual assess-
ments, and keep records and ensure these include the student’s annual test scores. The
qualifications for parents or guardians are: to have earned 45 college quarter credits,
complete a parent qualifying course, work with a certified teacher one hour per week
minimum.
The legal age that parents or guardians need to report homeschooling for their
kids is between the ages of 8 and 18, and need to have covered 1,000 hours each aca-
demic year. RCW 28A.225.010 requires all parents of any child that is eight years and
under 18 years of age in this state to cause such children to attend the public school of
the district in which the child resides for the full time when the school is in session,
unless: The child is attending an approved private school or is enrolled in an extension
program of an approved private school; the child is receiving home-based instruction;
the child is attending an education center; the school district superintendent has ex-
cused the child from attendance because the child is physically unable (WHO, 2022).
Understanding homeschooling in practice
In regards to actually implementing homeschool in practice, a group of parents
and guardians (n=10) served as a sample and were interviewed in a central area of
Washington State. Following a qualitative approach, ten questions were used to guide
semi-structured interviews (Table 1).
Table 1. Guide qu estions for i nterviews
1
Introductions, disclosure and privacy choice.
2
Why did you choose homeschooling?
3
How many children do you homeschool currently or at a time in total?
4
Please describe your weekly routine in this system:
5
How are the curricula decided?
6
Are the students tested? If so, how?
7
Please list some challenges of homeschooling:
8
What are some advantages of homeschooling:
9
What are some future perspectives for this educational system?
10
Any other comments?
Fonte: Washington State: Selah, 2022.
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Introductions, disclosure and privacy choice were presented as question one,
along with the educational purposes of the interviews. A total of 60% of the interview-
ers opted to disclose their last name in this work. In addition, 10% were comfortable
with an interview number and 30% prefer not to be quoted, just having their contri-
butions listed in the groups.
On question two, it was determined that the range of students homeschooled
by the interviewed parents or guardians varied from two to 12 at a time, with two being
also the most frequent number (30%) of homeschool kids at the time.
Parents explained why they choose homeschooling on question three. A total of
70% of the interviewed parents chose homeschooling in order to have more control on
their children’s education. Some of the specific reasons listed were mistrust in the pub-
lic system, opportunity to choose curricula, lack of a good schools in the surroundings
(rural area or missionary field), flexibility for travels and vacations, and the fact that
their own families assumed it from the beginning.
Building a Christian- faith bond was also listed as an important reason. A parent
elaborates saying that “I chose because of the amount of time I could spend influencing
my children, building bonds of friendship with them, and teaching them about God
and the Bible” (RYAN, 2022). Other parent states that “being a Christian household,
it was very important to my family that our curriculum was free of overly worldly
material and we were given the opportunity to learn about our faith and other reli-
gions” (INT.TEN, 2022).
Keeping family traditions was also a reason to homeschool as noted:
I was homeschooled and I chose homeschooling for my kids because I want to be able to interact
to my children more. I also disagree with some of the teachings of the public school system. I
want to teach values and good education at the same time at home. I want them to get grounded
in our core values… then maybe go out (KLEMPEL C, 2022).
Some parents, simply want to stay longer with their children as noted:
Initially, we chose to homeschool when our local school district decided to go from half-day
kindergarten to full-day kindergarten… a week before school started. I was not prepared to send
my daughter away all day. We continued to homeschool because we enjoyed it so much and I
desire to build strong family roots, despite our busy schedules (DEPEW, 2022).
The covid-19 put the parents to test and give opportunity to explore home-based
education (note: the parent emphasized that it was not homeschooling, as in the tradi-
tional definition):
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It was required during the pandemic, the option for the in-person went away. The local schools
were scrambling. At the time I was not working. but the school district came up with lessons and
content. I just made sure they were on it. The quality was not near of the in-person education.
It was incredibly challenging for me and not pleasant at time. In the US it is illegal for children
not to be in enrolled in school, unless they are homeschooled… it was the only option (BODAH
B, 2022).
When asking to describe their weekly routine on question four, parents have
different answers. Only 10% of the interviewees stated they followed a routine deter-
mine by State guidelines, for example, the K-12 Stride Inc. grade-appropriate program.
Stride Inc. also provides home-based education through online/ virtual academies. The
Washington State Virtual Academy (WAVA) is free, including materials and supplies.
Lessons are uploaded daily and the parents just follow the given routine. Students meet
teachers for assessment and tests are periodically taken throughout the year.
The other 90% of the interviewed parents agreed to have a somewhat flexible
routine. Some involved beginning with the core subjects “we started with English, and
went through each subject, taking as much time as each child needed, sometimes I
needed to add more explanation” (WOODS, 2022). Another parent also prefers to
begin with the core subjects then move to “classical conversations - history, art, and
science. One day a week my mom helps them too, but I leave the lesson plan for that
day” (KLEMPEL C, 2022). Other parent prefers a rotating schedule where children
“work with me, work independently, and with each other. Chores and meals are a part
of the schedule” (DEPEW, 2022).
Overall, the routine reported by the parents included mostly 5 days a week. One
of the programs followed cited by different parents is called Classical conversations.
However, there is still a degree of flexibility on the subjects:
Every child works on reading, writing and math four days a week. They also work in Latin,
Math, English, Science, Geography, History. The fifth day of schooling we get together with
other friends to practice the work we have been doing, do a science project, an art project,
practice public speaking, and review the past seven weeks of memory work together. This
program is called Classical Conversations (RYAN, 2022)
Other interviewer, pointed out routine similarities when their homeschool rou-
tine was compared to a regular school:
I would say our weekly routine was very similar to that of a public or private school. In certain
days, we would study specific subjects, and this would all take place in a typical school week
(Monday through Friday). We typically started the school day at 7 or 8am and would finish
between 3 to 5pm. Homework was finished within the school day, since we were already at
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home and did not have to travel there to finish it! We would take occasional field trips and
perform science experiments as well, but obviously there would only be the school aged children
in the family participating instead of a whole class (INT. TEN, 2022).
On question five, all the interviewees reported that the curricula were decided
along with a qualified teacher or by the parents when they met the Washington State
qualifications mentioned earlier in this paper. Most families noted that they received
advice from friends and family members while choosing the curricula as well.
Regarding question six, when asked if the students were tested, all parents
(100%) answered yes, but most answers varied greatly on how testing occurred. Some
of the families “ordered State achievement tests every year, and then submitted the
results to the field counselor- board” (WOODS, 2022). Official testing generally
started when their children were at least eight years old: “in our State we do not have
to report our children as being homeschooled until third grade, which is the age of my
oldest. So, this year will be the first year he will be tested in the public school system”
(RYAN, 2022).
Some curricula used by the parents have tests included on them, depending of
the subject: “certain subjects like math have weekly tests, as well as unit tests. We also
have always requested to participate in local school testing and college entrance exams.
Our present state requires some form of independent testing each year as well”
(DEPEW, 2022).
Reflecting on his own experience on homeschooling, one parent comment about
testing:
We did not do testing often, at the end of a book there was testing. When I left the house at age
of 19, I needed a GED and I got a practice study book. I was going to escape, but my boss picked
me up and hauled me in. I took all in one sitting. Two weeks later, I received the noticed that I
passed. I guess the bar is not as high as it should be… always learning (KLEMPEL A, 2022).
The need for test standardization or regulations was also noted:
I think we should have exams in a testing center, like SAT and GRE requiring to proof id and
tests being proctored. I understand that in this country people take their freedoms very seriously,
but students should get a comparable way of education at home. So, students have to be in a
level of equity with other students from different systems. Also, the State should provide
materials. Education is funded by property taxes. You pay but you do not utilize some of that
money (BODAH B, 2022).
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On question seven on challenges of homeschooling the responses varied greatly
as well, from curricula to time. Some parents used to struggle themselves with a subject
“English was hard, vocabulary and pronouns, I was bored with that myself” (WOODS,
2022). Scheduling, balancing work and school, working with their unique kids’ per-
sonalities, some perfectionism, the need for reassurance were also listed as challenges.
Home and School or drawing the line between being a parent and a teacher, or
being a son/ daughter and a student can be another hard challenge:
I would say one of the biggest challenges… was the home life and school separation. Life still
continued even while we were studying, so it could be a bit distracting with the sounds and
routines found in a home. Our family also had the children help out with chores, so there would
be interruptions at time because of that. I would say that another challenge I am aware of is just
a particular parent's capacity to teach. There are some people (teachers) that are very well
rounded and can teach any subject matter with ease but many have their strengths and
weaknesses in particular subjects. This often results in needing to find someone to assist you in
teaching particular subject (INT. TEN, 2022).
Socialization was another factor that posed a challenge: “one challenge of home-
schooling is keeping your kids socialized and meeting up with others. We do that by
meeting with others weekly, participating in local sports, doing music lessons, and go-
ing to church” (RYAN, 2022). A total of 40% of the parents mentioned to participate
in a co-op.
Multiple children being homeschooling at the same time can impact learning, as
a parent drew from his own experiences:
The biggest challenge was consistency, my mom had 12 students and was managing a
household… She got overwhelmed at times… She is very detailed oriented person, so she built
a schedule for the whole family in a 15 min increment, but it can impossible to learn in that
system. It would be overwhelming for a week and then done. Setting goals is good but if you
cannot achieve them you should reach out (KLEMPEL A., 2022).
Financial and time investment can become challenging. Homeschooling de-
mands commitment, it was noted that:
Homeschooling is a huge time-commitment, especially as students get older. There are expenses
and often income sacrifices and financial difficulties. Space can be an issue as well and there are
extra materials to store and records to keep. More meals happen at home…and more messes!
Also, when you are home during the day, others expect you to be readily available, and there are
many distractions (DEPEW, 2022).
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The covid-19 pandemic also posed challenges without giving the time for parents
to prepare
Lots of challenges. From in-person to suddenly at home, looking at a screen… before the
pandemic there was a change in the Math learning system too. The way children learn right now
is different from when I learned. There was a conflict between what the schools wanted and what
the parents could do. Severe challenge to the students on the first year of covid. They basically
lost that year. Challenges to learn new online systems like zoom, google classroom and
connection dropping. It was very laborious to start, it took 5 to 10 min, and the student ended
up missing instruction and got lost. Also, there are many distractions at home, they would need
to be reminded to pay attention, and be looking at the other classmates on video, where teacher
might not have seen the screen. Extra help was limited by the teacher. The kids in the house all
day, managing two in school and a baby, keeping track of time… The students did not enjoy
the online system during the first year of covid but it was the only option (BODAH B, 2022).
On question eight, main advantages of homeschooling were reported: flexibility
or freedom to choose the curricula, to change the schedule, to determine priorities, as
well as to be involved with their children.
Choice of curriculum and having a flexible schedule are big advantages. Most rigorous
elementary age curriculums can be finished before lunch, allowing more time for free play and
the arts... The most beautiful advantages for us have been family closeness. My children get along
with each other and I am thankful that they spend so much time together (DEPEW, 2022).
Adjust schooling according to travel plans is another advantage related to flexi-
bility: “homeschooling often leaves one with more freedom for their schedule, so
people who have strenuous job situations, and would like to take vacations while school
is in session could find homeschooling to be a welcome freedom” (RYAN, 2022).
Parents are more involved with their children “staying focused on each child, no
need to do classroom management’ (KLEMPEL C, 2022). And education can become
personalized education as noted:
I would say one of the biggest advantages is the ability to teach each student one-on-one, and
executing the learning style best suited for them. This is huge because not everyone learns the
same way. Expecting students to excel with a one size fits all educational program can really set
a student for a tough road ahead. Another advantage I talked about earlier is having control over
what curriculum your child uses and the freedom to incorporate faith-based material in it if that
is something important to you. While homeschooling costs more out of pocket than public
school, it is an extremely affordable route to go especially if Christian or private school is out of
someone's means financially (INT. TEN, 2022).
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When interviewers were asked about the future perspectives for this educational
system on question nine. All of them, 100%, agreed that homeschooling is growing.
For instance:
In America homeschooling has been big but in the last couple of years, it is exploding. Parents
were able to watch what the school system was doing, teachers unions more concerned about the
teacher than the students (I understand that is their job though) … However, students are the
next generation so we need to prepare them. Washington State changed rules about attendance
that might encourage parents to keep their children at home (KLEMPEL A, 2022).
The pandemic was mentioned as a factor for the recent increase on homeschool-
ing:
I think this pathway to the educational system is going to continuously grow. As we saw with
the covid-19 pandemic, many parents faced the decision whether to send their children back to
school or homeschool them themselves. Early in the pandemic, many parents did not have the
option and had to start attempting to homeschool for the sake of their children's education! I
think some people actually preferred this route after trying it and want to continue
homeschooling as long as they can. Another dilemma with the public school system is the
curriculum that is used. Depending on a family's political and/or religious beliefs, some parents
are very worried about what their children are being taught (INT. TEN, 2022).
Some parents believe that having more recognition and support will encourage
the adoption of this system:
The cost per pupil in the states where my family has homeschooled is $13-$18,000+ per year.
There were years where sending my kids to school would have a price tag of about $50,000. I
am thankful to hear that there are now curriculum and activity reimbursement programs that
some families are able to participate in. I am sure that alleviates a lot of financial burdens and
believe much more of this should happen (DEPEW, 2022).
However, some parents point out that the increase might be limited to certain
areas “Homeschool is growing though but in specific communities… where parents
choose to leave some curricula. It is a way to control what is taught and keep their faith
as a priority” (BODAH B, 2022).
Finally, in question ten a total of 40% of the interviewers provided additional
information, commenting more on homeschooling. Some prefer homeschooling to
keep a better learning environment: “the school systems caused anxiety on my kids”
(WOODS, 2022). The importance of co-ops was reinforced “homeschooling is done
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best in community, even the most independent people need others support to thrive
while homeschooling” (RYAN 2022).
Advances in the overall educational system were also noted: “the State now al-
lows our homeschoolers to be part-time students and participate in band, sports... Our
present school district is especially welcoming, and this has been a blessing for our
family” (DEPEW, 2022).
Drawing from her own experiences in this system, an interviewer reported suc-
ceeding in homeschooling:
As someone who was homeschooled K-12, I would definitely recommend this route to any
parent looking for an alternative to public school. I had a very positive experience during my
school years and was successful in attending university and obtaining a bachelor of science degree
afterwards. There is a lot of good information online about this educational pathway and I
encourage you to read about it and consider this rewarding opportunity for your family (INT.
TEN, 2022).
Moreover, evidence suggests that homeschoolers perform equal to or better than
their conventionally schooled peers on measures of achievement and socioemotional
functioning, but methodological limitations, especially selection effects, make it prem-
ature to draw definitive conclusions (VALIENTE et al., 2022).
When we compare our study with others, we noted similar reasons why parent
homeschool, such as concern about the school environment such as safety, drugs or
negative pressure from colleagues, dissatisfaction with the academic background of
schools and desire to provide religious formation. Other motivations were children
with special needs other than physical or mental, desire for a non-traditional approach
in education, child with mental or physical health problems and desire to provide
moral education (IES, 2019).
Schafer and Khan (2016) conducted a comparison between homeschoolers,
flexi-schoolers, and enrolled students presenting a profile of prevalent homeschoolers
that were from skilled parents, in the higher income categories, owning their own home
and living at the same address for a considerable period. We have not performed socio-
economic analysis in this study; however, we understand that family structure and dy-
namics is vital to the success of homeschooling.
There is a common-sense critique that homeschooling isolates children from
mainstream society, depriving them of social experiences that they need to thrive as
adults. Some parents in our study try to be part of co-ops to address this concern.
Research shows that homeschooled children, for all or most of their K-12 education,
had less exposure to mainstream school-based social opportunities but reflected that
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homeschooling had not hindered their ability to navigate society effectively (HAMLIN
and CHENG, 2022).
The role of the covid-19 pandemic
The covid-19 pandemic significantly contributed to increase homeschooling
numbers. In the past two years, parents learned that they can keep their children safe
at home while contributing to their intellectual growth. A concern for these new fam-
ilies choosing homeschool could be the readaptation to the in-person system. The
Washington Office of Superintendent of Public Instructions reports that the 2021
homeschool enrollment count was about 32,000 students in 20,304 families. That is
nearly double from 2019 when there were 20,844 homeschoolers in 13,614 families
enrolled (MAJORS, 2022).
It is important to note though that the homeschooling enrollment numbers were
already growing. According to the Institute of Education Sciences, the number of
homeschool students increased from 850,000 in 1999 to 1,690,000 in 2016, and the
percentage of those who were homeschooled nearly doubled from 1.7% to 3.3% in the
same period (IES, 2019). These same figures differ from those raised by the National
Home Education Research, which estimated 1,000,000 in 1997 and 2.3 million para
2016 (RAY, 2022). Although there is great divergence in estimates, both institutions
show that the number of students in this modality has been growing every year.
During the pandemic and isolation period, many students transition to precari-
ous and hostile realities, without access to technological resources and without support.
There were few or no pedagogical support going to remote education. In addition, the
lack of investment in education, and continuing education programs for teachers, also
caused difficulties for teachers to adapt to the pandemic teaching scenario (AVELINO
and MENDES, 2020).
Another problem refers to the boundary between school and home, which used
to be physical and then became symbolic. Even if momentarily, the end of the auton-
omous construction of subjectivity can result in a lack of engagement with learning
(SOUZA, 2021). The consequences of the pandemic on education are yet to be fully
measured. Many problems not only extend from a pre-pandemic scenario, but are ex-
acerbated by it.
In the readaptation process to return to school levels of indiscipline have also
noticeably increased. It is inconvenient because it breaks the stability of an environ-
ment conducive to learning. The family structure is fundamental while preparing the
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children to school, having a significant impact on the learning process (NAZARIA et
al, 2020).
Although there is no evidence to show that homeschoolers have compromised
academic or socio-emotional outcomes (VALIENTE et al, 2022) but experience diver-
sity might be limited. In the same line, despite the fact that education without school
produces good academic results, it might deny the possibility of living with a plurality
of people, values and worldviews. (PICOLI, 2020).
Parents and guardians must find ways to address the concerns above through
other activities that present an inclusive environment such as co-ops, community
groups, church and other associations. Otherwise, the lack of exposure might result in
problematic experiences later on (ARENDT, 2016). Regulations are also important
because “growing up in a family environment has positive effects on development and
well-being, but for many children this arrangement is unstable” (KVC, 2017, p. 54).
Overall, homeschooling can provide a healthier learning environment due to the
possibility of focusing on areas of interest that take into account the subjectivity of each
individual. Conducting the learning process with greater freedom and focus on the
children’s needs is important. Cogan noted that:
Descriptive analysis reveals homeschool students possess higher ACT scores, GPAs and
graduation rates when compared to traditionally-educated students. In addition, multiple
regression analysis results reveal that students, at this particular institution, who are
homeschooled, earn higher first-year and fourth-year GPAs when controlling for demographic,
pre-college, engagement, and first-term academic factors (2010, p. 24)
Final Considerations
Homeschooling is a legal education modality in all states of the US, with increas-
ing number of registered families. In this paper, we looked at Washington State
regulations as well as implementation in practice by surveying parents and guardians.
There are many challenges and advantages described by the families while homeschool-
ing.
The main reported benefits were flexibility or freedom to choose the curricula,
to change the schedule, to determine priorities, as well as the direct involvement in
their children’s education. Our results have shown that the significant increase on
homeschooling, in these past years, is related to different reasons such as faith-based or
family religious practices, and a product of the covid-19 pandemic.
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With the pandemic, many families were forced to be at home with their children
and realized that they could explore homeschooling from then on. Overall, the heter-
ogeneity in the US homeschooling, ruled differently in each State, can cause difficulties
in summarizing the topic and provide straight-forward guidelines or national regula-
tions.
Acknowledgements
We would like to thank Álvaro Moro de Quadros for his valuable contributions
on the literature review sections of this work as well as for new ideas on the topic.
Álvaro has a B.S. in Chemistry and is a research collaborator at the Thaines and Bodah
Center for Education and Development. We also want to express sincere gratitude to
all the families who participate in the interviews and thus contributed to increase
homeschooling awareness in the Americas.
References
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Direito à Educação no Brasil: subsídios para uma análise sobre
a proposta da educação domiciliar
Right to Education in Brazil: subsidies for an analysis of the
proposal for home education
Derecho a la Educación en Brasil: subsidios para un análisis de la
propuesta de educación en el hogar
Nilson Carlos da Rosa
*
Jaime José Zitkoski
**
Resumo
Este artigo tem por objetivo analisar a Educação de forma geral e ao Ensino Básico de forma mais
específica, no qual se acentua o movimento homeschooling no Brasil, frente aos desafios e
possibilidades do Direito à Educação perante a disputa de grupos com interesses privado-empresarial
sobre a Educação em nosso país. Analisou-se esse tema inicialmente através de um resgate histórico
da Educação brasileira, a partir da Constituição Federal de 1988 aos dias atuais, na sequência
desenvolveu-se acerca da educação domiciliar em nosso país. A metodologia utilizada é uma
abordagem qualitativa de cunho hermenêutico, com procedimento bibliográfico e documental
visando uma interpretação crítica. Percebeu-se o inexorável entendimento da Educação como
Direito indispensável à formação de indivíduos autônomos, críticos e dialógicos mediante os
conteúdos e experiências de convivialidade propiciados no âmbito social das Instituições de Ensino.
Desse modo, entende-se que a relação individual e coletiva nos percursos do processo de ensino-
aprendizagem é indispensável à formação humana e profissional na contemporaneidade, bem como
à integridade do indivíduo na sociedade.
Palavras-chave: educação; direito à educação; homeschooling.
Recebido em: 04.10.2022 Aprovado em: 18.02.2023
https://doi.org/10.5335/rep.v29i3.13876
ISSN on-line: 2238-0302
*
Doutorando em Educação no PPGEDU/UFRGS, sob orientação do Prof. Dr. Jaime José Zitkoski. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-
5885-3554. E-mail: nifilo7@yahoo.com.br.
**
Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS (1999). É professor Associado 4 com dedicação
exclusiva na UFRGS. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-1266-2039. E-mail: jaime.jose@ufrgs.br.
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Abstract
This article aims to analyze Education in general and Basic Education in a more specific way, in
which the homeschooling movement in Brazil is accentuated, facing the challenges and possibilities
of the Right to Education in the face of the dispute of groups with private-business interests over
education in our country. This theme was analyzed initially through a historical rescue of Brazilian
Education, from the Federal Constitution of 1988 to the present day, in the sequence it was
developed about home education in our country. The methodology used is a qualitative approach
of a hermeneutic nature, with a bibliographic and documentary procedure aiming at a critical
interpretation. It was noticed the inexorable understanding of Education as an indispensable right
to the formation of autonomous, critical and dialogic individuals through the contents and
experiences of conviviality provided in the social scope of Educational Institutions. In this way, it is
understood that the individual and collective relationship in the paths of the teaching-learning
process is essential for human and professional training in contemporary times, as well as for the
integrity of the individual in society..
Keywords: education; right to education; homeschooling.
Resumen
Este artículo tiene como objetivo analizar la Educación en general y la Educación Básica más
específicamente, en la que se acentúa el movimiento homeschooling en Brasil, enfrentando los
desafíos y posibilidades del Derecho a la Educación frente a la disputa de grupos con intereses
privado-empresariales por la educación en nuestro país. Este tema fue analizado inicialmente a través
de un rescate histórico de la Educación Brasileña, desde la Constitución Federal de 1988 hasta la
actualidad, en la secuencia que se desarrolló sobre la educación en el hogar en nuestro país. La
metodología utilizada es un enfoque cualitativo de naturaleza hermenéutica, con un procedimiento
bibliográfico y documental que busca una interpretación crítica. Se constató la inexorable
comprensión de la Educación como Derecho indispensable para la formación de sujetos autónomos,
críticos y dialógicos a través de los contenidos y experiencias de convivencia brindados en el ámbito
social de las Instituciones Educativas. Así, se entiende que la relación individual y colectiva en los
caminos del proceso de enseñanza-aprendizaje es fundamental para la formación humana y
profesional en la contemporaneidad, así como para la integridad del individuo en la sociedad.
Palabras clave: educación; derecho a la educación; educación en el hogar.
Introdução
Neste artigo analisam-se os desafios e possibilidades do Direito à Educação diante
à disputa de grupos com interesses privado-empresarial sobre a Educação em nosso
país. Para isso, observamos a Educação de forma geral e analisamos o Ensino Básico de
forma mais específica, no qual se acentua o movimento homeschooling no Brasil.
A metodologia utilizada é através de uma abordagem qualitativa de cunho her-
menêutico, com procedimento bibliográfico e documental que tem por propósito uma
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interpretação crítica acerca do tema em discussão. Desse modo, num primeiro mo-
mento destaca-se por um resgate histórico atinente à educação brasileira, no que se
denomina de educação básica, no recorte de tempo a contar mais precisamente a partir
da Constituição Federal de 1988. Com essa abordagem realizada neste ínterim se tem
o propósito de observar como se dá ao que se busca entender como Direito à Educação.
Na sequência, são apresentados os conceitos de homeschooling, destacando suas
origens e contextualizando-o no cenário brasileiro e suas implicações na discussão refe-
rente ao ensino básico nacional. Por fim, propõe-se lançar luzes para que se alcance
alternativas salutares a uma educação garantidora do direito à aprendizagem dos alunos
e contribuam não somente no acúmulo de saberes, mas igualmente nas possíveis vivên-
cias e experiências socializadoras desses mesmos conhecimentos, em que o lócus axial
do seu desenvolvimento está na Instituição Escola.
Educação básica no Brasil à luz do Direito à Educação
A educação básica no Brasil alcança maior projeção social a partir da Constitui-
ção Federal de 1988, aprovada em Assembleia Nacional em 22 de setembro de 1988 e
promulgada em 5 de outubro daquele mesmo ano. Nela está presente do Artigo 205 a
214 assuntos pertinentes à educação em seus diferentes níveis e modalidade, esten-
dendo-se igualmente à iniciativa privada de ensino, desde que cumprida às exigências
constitucionais.
Na Constituição de 1988 ficou garantido o princípio da universalização da Edu-
cação, da gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais, ensino
fundamental obrigatório e gratuito, expansão do ensino obrigatório e gratuito, progres-
sivamente, ao ensino médio, atendimento em creche e pré-escolas às crianças de 0 a 6
anos.
Entende-se a partir dessa Constituição de 1988 o ensino obrigatório e gratuito
como direito subjetivo. Faz valer a valorização dos profissionais do ensino, através da
formação continuada, o qual os Estados devem adotar e expandi-la progressivamente.
Há a exigência da aplicação anual pela União de nunca menos de 18%, e pelos Estados,
Distrito Federal e Municípios de 25%, no mínimo da receita resultante de impostos,
na manutenção e desenvolvimento do ensino. Ademais, institui-se que o Plano Nacio-
nal de Educação (PNE) seja decenal, visando à articulação e ao desenvolvimento do
ensino em seus diferentes níveis. Além disso, através do PNE seja previsto recursos
financeiros de percentual do Produto Interno Bruto (PIB), direcionado à Educação.
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Soma-se a isso, o Plano deve também tentar programar medidas para resolver proble-
mas como: evasão escolar, analfabetismo, repetência, qualidade do ensino, etc. Cria-se
com base também nesses aspectos, no ano de 1990, o Sistema Nacional de Avaliação
da Educação Básica (Saeb), “com o objetivo de identificar fatores que incidem no pro-
cesso de aprendizagem com vistas à melhoria na qualidade do ensino” (MEC, 2020).
Nesse sentido cabe considerar, o que afirma Sofia Lerche Vieira:
Somente em 1996, contudo, a educação iria passar a conviver com novos dispositivos legais, com
a aprovação da segunda Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e de medidas que vieram
a instituir o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização
do Magistério (Fundef), através da Lei n° 9.424/96. Posteriormente, em 2006, em substituição
ao Fundef foi aprovado o Fundeb, com vigência a partir de 1° de janeiro de 2007 (VIEIRA,
2015, p. 21)
Portanto, na sequência do contexto histórico da Educação brasileira, em 20 de
dezembro de 1996 é promulgada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDB) através da Lei nº 9. 394, a qual “estabelece normas para todo o sistema educa-
cional, da educação infantil à educação superior, além de disciplinar a Educação Escolar
Indígena. A nova LDB substitui a Lei nº 5.692 de 1971 e dispositivos da Lei nº 4.024,
de 1961, que tratavam da educação” (MEC, 2020). Inclui-se a esse feito a aprovação
da “Emenda Constitucional nº 14, regulamentada pela Lei nº 9.424, de 24 de dezem-
bro de 1996, que institui o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino
Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef)” (MEC, 2020). Já em 28 de
maio de 1998 é criado, através da Portaria nº 438 o Exame Nacional do Ensino Médio
(ENEM), o qual serve “como instrumento de avaliação do desempenho dos alunos e
das escolas. Na sua quarta edição, em 2001, passou a ser aceito como teste válido para
o acesso ao ensino superior, de modo isolado ou combinado ao vestibular tradicional”
(MEC, 2020).
A utilização do conceito Educação Básica, toma corpo e forma com a constitui-
ção da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB/9.394/96), o que esclarecemos neste
momento. Segundo Dermeval Saviani:
[...] o conceito de educação básica adotado implica não apenas uma reordenação do ensino
fundamental, mas o empenho decidido em universalizar o ensino médio na perspectiva de uma
escola unificada, capaz de articular a diversidade de experiências e situações em torno do objetivo
de formar seres humanos plenamente desenvolvidos e, pois, em condição de assumir a direção da
sociedade ou de controlar quem dirige (SAVIANI, 2016, p. 233).
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Da mesma forma, sobre a conceituação da educação básica, Jamil Cury apre-
senta:
A Constituição Federal de 1988, no capítulo próprio da educação, criou as condições para que a
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 9.394/96, assumisse esse conceito já no
§ único do art. 11 ao assinalar a possibilidade de o Estado e os municípios se constituírem como
um sistema único de educação básica. Mas a educação básica é um conceito, definido no art. 21
como um nível da educação nacional e que congrega, articuladamente, as três etapas que estão
sob esse conceito: a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio (CURY, 2002, p.
169).
Ainda, segundo esse mesmo autor:
A própria etimologia do termo base nos confirma esta acepção de conceito e etapas conjugadas
sob um só todo. Base provém do grego básis, eós e significa, ao mesmo tempo, pedestal, suporte,
fundação e andar, pôr em marcha, avançar. A educação básica é um conceito mais do que
inovador para um país que, por séculos, negou, de modo elitista e seletivo, a seus cidadãos o
direito ao conhecimento pela ação sistemática da organização escolar (CURY, 2002, p. 170).
Podem-se observar, nesse novo contexto, avanços significativos no atinente à
educação básica ao estabelecer por meio da lei e seus preceitos a obrigatoriedade e a
gratuidade do ensino oficial público às crianças, adolescentes e jovens, nos diferentes
níveis e modalidade do processo de ensino-aprendizagem. Tais medidas contemplam a
real necessidade daquilo que é necessário e substancial à vida formativa de todo e qual-
quer pessoa, de modo a possibilitar o seu desenvolvimento cognitivo, social e cultural
e alcançar melhores condições de vida e igualmente lidar com as diferentes circunstân-
cias pelas quais poderá passar no percurso da sua vida. Nesse sentido, entende-se à
educação, sobretudo a básica como um direito subjetivo dos indivíduos constituintes
da nossa sociedade. Segundo Marilena Chauí:
A prática de declarar direitos significa, em primeiro lugar, que não é um fato óbvio para todos os
homens que eles são portadores de direitos e, por outro lado, significa que não é um fato óbvio
que tais direitos devam ser reconhecidos por todos. A declaração de direitos inscreve os direitos
no social e no político, afirma sua origem social e política e se apresenta como objeto que pede o
reconhecimento de todos, exigindo o consentimento social e político (CHAUÍ, 1989, p. 20).
A obrigatoriedade da educação básica torna-se um direito subjetivo, e como di-
reito subjetivo público permite que todo cidadão possa reclamar, pois se trata de um
direito social, constitucional, o qual se espera o cumprimento pelo Estado, nas suas
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diferentes esferas (União, Estado, Distrito Federal e Municípios). Uma vez que a edu-
cação estende-se a uma participação massiva e ativa da população, esta terá
possibilidade de formar uma compreensão crítica que permitirá melhor entender-se a
si e à realidade em que ela vive, e a partir disso buscar alcançar condições salutares de
vida, sobretudo por ter conseguido o acesso à Educação. No entanto, esse processo não
se realiza automaticamente, exige a cooperação constante entre todos os entes envolvi-
dos, seja o Estado pelo dever de cumprir as legislações, sejam os cidadãos no
cumprimento das suas obrigações, o que só se efetiva à medida que há a tomada de
consciência de cada um dos implicados em tal sociedade.
Diante do contexto da educação como direito em 14 de setembro de 1999, por
meio do Parecer nº 14/99, foram aprovadas as Diretrizes Curriculares Nacionais da
Educação Escolar Indígena pela Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de
Educação. Em 9 de janeiro de 2001 é aprovado o Plano Nacional de Educação (PNE),
à luz da Lei nº 10.172, com duração de 10 anos. Conforme o sítio do MEC (2020),
este tem por objetivo estabelecer que os Estados e Municípios, com essa medida ficam
responsáveis e incumbidos de elaborar os planos decenais correspondentes aos seus lo-
cais. Da mesma forma estabelece que seja de responsabilidade da União instituir o
Sistema Nacional de Avaliação, através do qual fixará os mecanismos necessários ao
acompanhamento das metas constantes no Plano Nacional de Educação (PNE). Nesse
mesmo ano ainda, foi criado o Programa nacional de Renda Mínima vinculada à Edu-
cação, o denominado Bolsa-Escola Federal, por meio da Lei nº 10.219, de 11 de abril
de 2001. Este programa visava estimular crianças e jovens carentes de 6 e 15 anos a
acessar e participar da educação, e com isso romper com a situação de miserabilidade
social à qual se encontra, uma vez que as mães dessas crianças e adolescentes recebiam
um cartão magnético para usar junto às Agências da Caixa Econômica Federal e obter
benefícios liberados pelo Ministério da Educação (MEC), como forma de subsidiar em
suas necessidades essenciais de vida.
Nos anos subsequentes os governos brasileiros buscaram realizar ações de maior
impacto no aspecto de inclusão no ensino básico, com isso observa-se a tentativa de
universalização do ensino básico à população brasileira, conforme proposto pela Cons-
tituição Federal de 1988, e reforçada pela LDB 9.393/96. Isso se faz perceptível quando
em 8 de setembro de 2003 é criado o Programa Brasil Alfabetizado através da Decreto
nº 4.834, que tem por objetivo, de acordo com o documento, promover a alfabetização
de jovens acima de 15 anos e adultos excluídos da escola antes de aprender a ler e a
escrever. Soma-se a essas medidas a ampliação do Programa Nacional de Livro Didático
(PNLD) para atender a todos os alunos do ensino fundamental, e escolas especiais,
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tanto públicas quanto privadas, desde que, essas últimas sejam filantrópicas. Nesse
mesmo ano, em 9 de janeiro, por meio da Lei nº 10.639 é tornado obrigatório o ensino
da temática História e Cultura Afro-Brasileira no currículo oficial escolar das escolas
públicas de ensino básico. Bem como, naquele período foi ampliado o Programa Na-
cional de Alimentação Escolar (PNAE) que passa a atender crianças matriculadas nas
creches públicas e filantrópicas que antes não se encontravam incluídas nesse tipo de
atendimento. Ações essas caracterizam a compreensão acerca da inclusão e universali-
zação do ensino básico em nosso país.
A inclusão refere-se não somente ao acesso dos alunos à escola, como por exem-
plo, a instituição do Programa Nacional de Apoio ao Transporte Escolar (PNATE),
com o propósito de oferecer transporte escolar aos alunos da educação básica pública
residentes em áreas rurais através da Lei nº 10.880, de 9 de junho de 2004, mas igual-
mente de conteúdos que dizem respeito à realidade da sociedade brasileira, portanto
fundamentais ao aprendizado das crianças, adolescentes e adultos, que além dos conhe-
cimentos gerais básicos ao processo de ensino-aprendizagem para uma formação
integral do indivíduo, possibilitar igualmente o aprendizado de uma profissão através
de regulamentos oficiais conforme previsto no Decreto nº 5.154, de 23 de julho de
2004, o qual considera que em observância as diretrizes curriculares nacionais definidas
pelo Conselho Nacional de Educação, desenvolva-se por meio de cursos e programas a
qualificação profissional, inicial e continuada de trabalhadores, da mesma maneira que
se realize educação profissional técnica de nível médio, entre outros aspectos condizen-
tes às prerrogativas dessa Lei. Pode-se considerar também que a universalização do
ensino não deve ficar restrita ao acesso das pessoas às instituições do ensino, sim de
igualmente garantir sua permanência, e para isso ocorrer torna-se necessário cumprir,
principalmente por parte dos gestores públicos em parceria com outros entes sociais,
muitos dos desafios e das possibilidades para a concretização de tais medidas, que são
socialmente exigíveis num contexto dispare e imenso quanto o é o Brasil.
Entre outros aspectos importantes de mudanças, inclusão e transformação da
educação brasileira está a obrigatoriedade de ofertar aos alunos, principalmente do en-
sino médio, e a esses facultativos em se matricularem para aprenderem além da sua
língua vernácula, línguas estrangeiras como o espanhol e o inglês, conforme a Lei nº
11.161, de 05 de agosto de 2005. Todavia, essa Lei é alterada em 16 de fevereiro de
2017, pela Lei nº 13. 415, em seu Art. 35-A§ 4º, quando afirma que o ensino da língua
inglesa é obrigatório nos currículos do ensino médio, e ao mesmo tempo faculta como
optativa a oferta de outras línguas estrangeiras, contudo, mantendo a preferência, entre
essas, do ensino preferencial do espanhol.
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Em 6 de fevereiro de 2006, por meio da Lei nº 11.274 é instituído o ensino
fundamental de 9 anos, com matrícula obrigatória aos 6 anos de idade. Nesse ano
ainda, em 13 de julho, foi criado o Programa Nacional de Integração da Educação
Profissional com a Educação Básica, na Modalidade de Ensino de Jovens e Adultos
(Proeja), em que o Decreto nº 5.840, tem por objetivo permitir que os alunos da Edu-
cação de Jovens e Adultos (EJA) aprendam uma profissão enquanto realizam seus
estudos no nível fundamental ou médio.
Posteriormente, em 20 de junho de 2007, com a Lei nº 11.494 é regulamentado
o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos
Profissionais da Educação (FUNDEB), o qual foi instituído pela Emenda Constituci-
onal nº 53, de 19 de dezembro de 2006 que altera a redação dos Artigos 7º, 23, 30,
206, 208, 211 e 212 da Constituição Federal, bem como o art. 60 do Ato das Dispo-
sições Constitucionais Transitórias. De acordo com Art. 2º, da Lei 11.494, “os fundos
destinam-se a manutenção e a o desenvolvimento da educação básica pública e à valo-
rização dos trabalhadores em educação, incluindo sua condigna remuneração”. Nota-
se que com essa regulamentação contempla-se todo o ensino básico, pois anteriormente
tínhamos o Fundef que atendia parte do ensino básico, uma vez que a lei estava restrita
apenas ao ensino fundamental.
Em consequência das políticas de fomento à educação básica são instituídos sis-
temas de acompanhamento e avaliação, respectivamente, o Censo Escolar - principal
instrumento de coleta de informações da educação básica, coordenado pelo INEP - e
o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), através dos quais se obtém dados
que reunidos constituirão os indicadores do Índice de Desenvolvimento da Educação
Básica (IDEB), este, por sua vez, serve de importante condutor das políticas pública
em prol da educação de qualidade, com o propósito de alcançar metas estabelecidas
pelo sistema de ensino brasileiro atinente à educação básica. Além disso, esses dados
servirão de referência para as metas do Plano Nacional de Educação (PNE) e podem
ser acompanhados pelo Observatório do PNE, que tem a função de um instrumento
de controle social acerca das políticas públicas educacionais.
Outras medidas realizadas pelo Ministério da Educação se referem ao Programa
mais Educação. Por meio da Portaria Interministerial nº 17 de 24 de abril de 2007
busca-se “fomentar a educação integral de crianças, adolescentes e jovens, por meio do
apoio de atividades sócio-educativas no contraturno escolar”. Além dessa Portaria apre-
senta-se o Decreto nº 6.093, também de 24 de abril de 2007, o qual “dispõe sobre a
reorganização do Programa Brasil Alfabetizado, no intuito de universalizar a alfabeti-
zação de jovens e adultos de quinze anos ou mais e de outras providências”. Soma-se a
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isso, o lançamento do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE). Este versa sobre
um plano coletivo de médio e de longo prazo, com o objetivo de melhorar a qualidade
da educação no país, com ênfase na educação básica. De acordo com sítio do MEC
(2020), trata-se de uma “política que reforça a visão sistêmica da educação, com ações
integradas com o objetivo de melhorar a educação no Brasil, em todas as suas etapas,
em um prazo de 15 anos, com prioridade para a educação básica”.
Com o objetivo de fortalecer os sistemas de ensino dos Estados e do Distrito
Federal através de propostas curriculares inovadoras nas escolas de ensino médio não
profissional foi instituído pelo Ministério da Educação (MEC) o Programa Ensino Mé-
dio Inovador (ProEMI), através da Portaria nº 971 de 9 de outubro de 2009, que em
seu Art. 2º, Parágrafo único apresenta os objetivos do Programa Ensino Médio Inova-
dor (2009), dentre os quais destacamos os cinco primeiros:
I - expandir o atendimento e melhorar a qualidade do ensino médio;
II - desenvolver e reestruturar o ensino médio não profissionalizante, de forma a combinar
formação geral, científica, tecnológica, cultural e conhecimentos técnicos- experimentais;
III - promover e estimular a inovação curricular no ensino médio;
IV - incentivar o retorno de adolescentes e jovens ao sistema escolar e proporcionar a elevação da
escolaridade;
V - fomentar o diálogo entre a escola e os sujeitos adolescentes e jovens (BRASIL, 2009).
O Programa caracteriza-se por uma rede de interação entre os diferentes sistemas
de ensino, nas distintas esferas institucionais (União, Estados e Municípios), cujo ob-
jetivo está em buscar obter uma educação básica que contemple as emergências da
realidade atual da sociedade por meio do processo de ensino-aprendizagem. Evidencia-
se também por através do ProEMI a tentativa de universalização do ensino médio com
ações que permitam aos jovens das diferentes condições sociais, sobretudo dos de cate-
gorias mais vulneráveis socialmente, de baixa renda, poder realizar seus estudos por
meio de conhecimentos que os habilite alcançar melhores condições de vida em todos
os seus aspectos.
Em afinidade às políticas educacionais de inclusão e universalização, por parte
do Ministério da Educação (MEC), está igualmente o Programa Nacional de Acesso
ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), por meio da Lei nº 12.513, de 26 de outubro
de 2011, entre outros objetivos, de acordo com Art. 1º, Parágrafo único: “III - contri-
buir para a melhoria da qualidade do ensino médio público, por meio da articulação
com a educação profissional”.
Em 2014 é aprovado o Plano Nacional de Educação por meio da Lei nº 13.005,
de 25 de junho de 2014, com diretrizes, metas e estratégicas para a educação, com
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vigência por 10 anos, a contar da data da sua publicação. O Plano Nacional de Educa-
ção tem como função articular os esforços nacionais em regime de colaboração entre
os entes da federação (União, Estado e Municípios) para efetivar o processo de univer-
salização da oferta do ensino na etapa obrigatória (de zero a 17 anos), com isso, elevar
o nível de escolaridade da população, aumentar o percentual de alfabetização, e melho-
rar a qualidade da educação básica e superior brasileira, de acordo com o que está
apresentado neste documento como metas a serem alcançadas.
Esse documento, em forma de Lei, está exposto dez (10) diretrizes com objetivo
de guiar a educação brasileira neste período e igualmente estabeleceu vinte (20) metas
a serem cumpridas em igual espaço de tempo, com o objetivo de aprimorar a educação
brasileira em todas as etapas e modalidades do ensino. Portanto, trata-se de um grande
desafio para todos os gestores da educação brasileira, onde quer que atuem nos seus
diferentes lugares e contextos. Conforme o Art. 2º são essas as diretrizes do PNE:
I - erradicação do analfabetismo;
II - universalização do atendimento escolar;
III - superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na
erradicação de todas as formas de discriminação;
IV - melhoria da qualidade da educação;
V - formação para o trabalho e para a cidadania, com ênfase nos valores morais e éticos em que
se fundamenta a sociedade;
VI - promoção do princípio da gestão democrática da educação pública;
VII - promoção humanística, científica, cultural e tecnológica do País;
VIII - estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em educação como proporção
do Produto Interno Bruto - PIB, que assegure atendimento às necessidades de expansão, com
padrão de qualidade e equidade;
IX - valorização dos (as) profissionais da educação;
X - promoção dos princípios do respeito aos direitos humanos, à diversidade e à sustentabilidade
socioambiental (BRASIL, 2014).
Em 2015 é Lançada a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento
que define o conjunto de aprendizagens essenciais no percurso da educação básica. A
BNCC está prevista no Art. 210 da Constituição Federal de 1988, o qual diz “serão
fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar forma-
ção básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais”,
Logo, nota-se que o mesmo prevê a criação de uma base nacional comum curricular
para o ensino fundamental. Da mesma forma, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
(LDB 9.394/96), em seu Art. 26, determina também a adoção de uma Base Nacional
Comum Curricular para a educação básica, avança em relação à Constituição Federal,
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pois acrescenta ao ensino fundamental, a educação infantil e o ensino médio. Esse do-
cumento LDB 9.9394/96, Art. 26 diz:
Os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio devem ter base
nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento
escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade,
da cultura, da economia e dos educandos (Redação dada pela Lei nº 12.796, de 2013) (LDB
9.9394/96).
Ao encontro dessas mesmas leis estão as Diretrizes Curriculares Nacionais
(DCN), as quais dão estrutura à BNCC, que por sua vez detalha as habilidades e com-
petências que todos os alunos de todas as escolas em nosso país devem aprender. Essas
diretrizes apresentadas na Resolução CNE/CEB nº 4, de 13 de julho de 2010, define
as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação. Em seu Cap. II trata
acerca da formação básica comum e parte diversificada. Ao observarmos, mais precisa-
mente, o Art. 14 do referido documento CNE/CEB, lê-se:
Artigo 14. A base nacional comum na Educação Básica constitui-se de conhecimentos, saberes e
valores produzidos culturalmente, expressos nas políticas públicas e gerados nas instituições
produtoras do conhecimento científico e tecnológico; no mundo do trabalho; no
desenvolvimento das linguagens; nas atividades desportivas e corporais; na produção artística; nas
formas diversas de exercício da cidadania; e nos movimentos sociais (CNE/CEB, 2010).
Do documento das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) foram elaborados
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). Esses são um referencial para a educação,
com o objetivo de orientar, mas não determinar, por meio de normatizações de alguns
aspectos fundamentais referentes a cada componente curricular para os professores que
atuam no ensino básico de escolas públicas e particulares, podendo eles adaptar tais
sugestões à sua realidade de sala de aula e ao contexto político, social, econômico e
cultural no qual se encontra e realiza a sua atividade docente, sem com isso faltar para
com os seus aprendizes, com os conhecimentos reconhecidos como necessários para o
exercício da cidadania.
No ano de 2016 é criado o Programa de Fomento à Implementação de Escolas
de Ensino Médio em Tempo Integral (EMTI) Portaria 1.145, de 10 de outubro de
2016, que visa apoiar a implementação da proposta pedagógica de escolas de ensino
médio em tempo integral das redes públicas dos Estados e do Distrito Federal. Nesse
mesmo ano, é criado o MedioTec, uma ação do Programa Pronatec, que passa a ofertar
vagas em cursos de educação profissional técnica de nível médio, de forma concomi-
tante, para os estudantes matriculados no ensino médio regular em escolas públicas,
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permitindo obter duas certificações, e consequência disso, encontrar-se apto para se
inserir no mundo do trabalho e renda. Essa propositiva, segundo o MEC (2016), “é
executado em parceria com a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tec-
nológica (RFEPCT) e as Redes Públicas Estaduais e Distritais de Educação (RPEDE),
além das instituições privadas de ensino técnico de nível médio”.
Em 16 de fevereiro de 2017 é criada a Política de Fomento à Implementação de
Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral através da Lei nº 13.415, a chamada Lei
da Reforma do Ensino Médio. Com ela foi estabelecidas uma série de mudanças na
estrutura do ensino médio: ampliou o tempo mínimo do estudante na escola, definiu
uma organização curricular mais flexível, com a oferta de diferentes itinerários forma-
tivos. A esse processo se soma o Decreto nº 9.204 com o objetivo de apoiar a
universalização do acesso à internet de alta velocidade e fomentar o uso pedagógico de
tecnologias digitais na educação básica.
Homeschooling em face ao contexto brasileiro
Como o próprio termo se apresenta homeschooling, nota-se sua origem não ser
brasileira. Tal movimento, ao se fazer um resgate de literatura no concernente tema,
sabe-se da procedência advir dos Estados Unidos. Caracteriza-se em uma modalidade
de ensino em que os pais buscam ensinar seus filhos no âmbito doméstico, junto à sua
família. Todavia, o termo assim como sua dinâmica tem alcançado adeptos de diferen-
tes países, entre eles o Brasil, mais precisamente a partir dos anos de 1990, que tentam
aderir a esse modelo de ensino.
Em análise a esse assunto, Cury assim define:
A denominada homeschooling ou educação do lar, ou mesmo educação doméstica, é um
movimento por meio do qual os pais de família, alegando insatisfação com a educação escolar
ofertada nos estabelecimentos públicos ou privados, pleiteiam transmissão dos conhecimentos a
ser dada em casa. Esse movimento já possui vários adeptos no Brasil e seus seguidores vêm
pressionando os poderes públicos, em especial os Tribunais, no sentido de legitimar tal opção,
inclusive por meio de uma legislação regulamentadora (CURY, 2019, p. 2).
Observa-se que as justificativas tomadas pelas famílias interessadas nesse modelo
de ensino se centram na questão da qualidade do ensino ofertada pelas escolas e nas
situações de violências, preconceitos e bullying. Além disso, divergem da forma como
os conteúdos são apresentados no processo de ensino-aprendizagem em relação as suas
crenças e pressupostos religiosos e morais que essas professam deliberadamente. Em
2010 surge no Brasil a Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANED), uma
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instituição sem fins lucrativos e de iniciativa de um grupo de famílias, que fazem apo-
logia ao que denominam autonomia educacional da família. Além disso, afirmam que
os pais, uma vez terem o dever de educar seus filhos, têm o direito de fazer a opção pela
modalidade de ensino dos mesmos.
Os motivos que levam os pais a optarem pela educação domiciliar, conforme
consta no sítio da Associação Nacional de Educação Domiciliar, são:
A maioria dos pais retira os filhos da escola pelo desejo de oferecer aos filhos uma educação
personalizada que possa explorar o potencial, os dons e os talentos de cada criança ou adolescente.
Essa personalização costuma revelar-se tão eficaz que 2 horas de atividades por dia equivalem a
mais de 5 horas na escola (ANED, 2022).
E como benefício, destaca a Associação, que há pesquisas e estudos científicos em
vários outros países, onde se comprova que a educação domiciliar proporciona maior
amadurecimento, desenvolve a disciplina de estudo e o gosto pelo aprendizado. Além
disso, afirmam que facilita o emprego de novas estratégias de aprendizado, favorece o
empreendedorismo, e gera adultos seguros com potencial de excelentes resultados aca-
dêmicos. Em consequência disso, segundo a ANED (2022), há o número reduzido de
alunos em relação à escola. Com isso, pode-se ter o desenvolvimento de forma perso-
nalizada do potencial, dons e talentos de cada aluno. Entendem, dessa forma, que a
educação domiciliar faculta ensinar conforme o ritmo e o estilo de aprendizado de cada
aluno, dando possibilidades de fazer a integração entre conhecimentos de áreas diversas,
além de trabalhar num ambiente seguro, com liberdade para acertar e errar e os pais
terem maior tempo de convivência com os filhos.
Segundo Barbosa (2016), apesar de homeschooling ser um movimento frequente-
mente associado ao movimento da school choice na América do Norte, é possível avaliar
que seu crescimento encontra-se relacionado com os interesses do mercado das refor-
mas educacionais. À medida que há a reivindicação de algumas famílias para a
realização do estudo domiciliar, manifestam-se interesses em encontrar subsídios peda-
gógicos, entre outras coisas, para essa forma de ensino, e isso abre brechas para a maior
inserção comercial de materiais didáticos, que muitas vezes centram-se muito mais no
horizonte da mercantilização do ensino, baseado na lei da oferta e da procura, do que
no compromisso de um ensino comprometido com a formação atinente às necessidades
de saberes que promovam conhecimentos salutares ao desenvolvimento cognitivo, afe-
tivo, psicológico, sociocultural dos estudantes possibilitando-os na compreensão e no
diálogo com a realidade, na qual se encontram inseridos e para além dela. Diferente-
mente desse processo, haverá, muito provavelmente a reificação de uma “lógica na qual
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se insere o homeschooling, como o mais expressivo segmento da escolarização privada”
(AURINI; DAVIES, 2005).
Entretanto, considerando a realidade brasileira é importante destacar, primeira-
mente, o que considera Barbosa:
[...] o estudo sobre a possibilidade de prática e de normatização do ensino em casa no Brasil
requer uma análise dos aspectos jurídicos que envolvem o tema, suscitando a compreensão do
que estabelece a legislação, do impacto das decisões judiciais já existentes sobre o tema, da
repercussão dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil, assim
como da pressão exercida pela população e pelas associações em prol do movimento (BARBOSA,
2016, p. 155-156).
Ao encontro dessa discussão, faz-se necessário relembrar o que traz a Constitui-
ção Federal (CF) de 1988 em seu Artigo 205. “A educação, direito de todos e dever do
Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade,
visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania
e sua qualificação para o trabalho.” Em consonância a isso, cabe ressaltar que o Código
Penal em seu artigo 246, do Decreto Lei nº 2.848 de 7 de dezembro de 1940, assim
diz: “Deixar sem justa causa, de prover a instrução primária de filho em idade escolar:
Pena detenção, de quinze dias a um mês, ou multa.” Observa-se que à época, já havia
essa instrução, embora, diferentemente de hoje, não havia escolas suficientes para aten-
der a demanda de alunos nessa fase inicial dos estudos escolares, nem mesmo
professores com a formação esperada para esse ofício, quando desses se exigia um grau
mínimo de instrução, em muitos casos de terem ao menos o ensino fundamental com-
pleto. Atualmente, soma-se a esse Decreto Lei, a Emenda Constitucional n.º 59 de
2009(NÃO ESTÁ NA REFERÊNCIA), a qual exara em seu Artigo 1º, no qual os
incisos I e VII do Artigo 208 da Constituição Federal contêm as seguintes alterações:
assim em seu inciso “I - educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17
(dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a
ela não tiveram acesso na idade própria;” por conseguinte, o inciso “VII - atendimento
ao educando, em todas as etapas da educação básica, por meio de programas suplemen-
tares de material didático escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde."
Em análise a esses aspectos, entende-se que, embora o Art. 205 da Constituição
Federal (2021) não proíbe explicitamente a educação domiciliar, ou doméstica, de todo
modo, no § 3º do Art.208 do mesmo documento ratifica que “cabe ao Poder Público
recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos
seus pais ou responsáveis, pela frequência escolar”. Portanto, é dever do Estado e dos
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responsáveis pelos seus filhos garantir-lhes o acesso, a permanências e condições salu-
tares para a realização do processo de ensino-aprendizagem em ambiente escolar, seja
ela a instituição pública, ou privada.
No atinente “a educação escolar no terreno do privado goza de liberdade nos
termos da lei, o que, no caso, implica a autorização de funcionamento e o respeito à
legislação educacional” (CURY, 2019). Sabe-se nesse sentido, no âmbito dos poderes
públicos, quaisquer que sejam eles, é lícito fazer o que está na lei, enquanto na esfera
privada é permitido tudo o que a lei não proíbe.
Em consonância à análise acima, convém considerar o que diz o Estatuto da Cri-
ança e do Adolescente (ECA), Lei 8069/90, quanto a esse tema. O Art. 55 da Lei 8.069
de 13 de julho de 1990 diz: “Os pais ou responsáveis tem a obrigação de matricular
seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino”. A Lei de Diretrizes e Bases da Edu-
cação Nacional (LDB Lei nº 9.394/96) apresenta em seu “Art. 1 A educação abrange
os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana,
no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organiza-
ções da sociedade civil e nas manifestações culturais.” Todavia, no § 1º desse igual
artigo diz que “Esta lei disciplina a educação escolar, que se desenvolve predominante-
mente, por meio do ensino, em instituições próprias”. Ainda no que confere a esse
documento, o Art. 6º diz: “É dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula das
crianças na educação básica a partir dos 4 (quatro) anos de idade”. E o Art.7 - A, des-
taca, “Ao aluno regularmente matriculado em instituição de ensino pública ou privada,
de qualquer nível, é assegurado, no exercício da liberdade de consciência e de crença,
[...]”.
Em alusão a esses princípios, o Plano Nacional de Educação (PNE), Lei n.º
13.005 de 2014, prevê, para os educandos de quatro a dezessete anos, metas e estraté-
gias para a universalização das etapas da Pré-Escola, do Ensino Fundamental e Médio.
Já, em 2000 o relator da Câmara da Educação Básica (CEB) do Conselho Nacional de
Educação, órgão normativo da educação por lei federal, através do Parecer n.º 34/2000
afirmou que não há “abertura para que se permita a uma família não cumprir a exigên-
cia da matrícula obrigatória”, com base no que consta nos documentos oficiais
apresentados neste texto.
Apesar da contrariedade do que está estabelecido em lei ao homeschooling no Bra-
sil ainda há famílias brasileiras que insistem na legalização dessa prática. No entanto, já
em 2001, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já havia rejeitado o homeschooling em
decorrência de um mandado de segurança (Mandado de Segurança n.º 7.407 DF
2001/0022843-7) advindo de família adepta a esse modelo de ensino. O Decreto n.º
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5.622 de 2005, em Art.30 regulava a educação à distância, da mesma forma estabelecia
condições de sua realização em “situações emergenciais”, sobretudo nos ensino funda-
mental e médio.
Contudo, em 2017, a partir do Decreto n.º 9.057/17, em seus Art.8º e 9º man-
têm as condicionalidades do Decreto anterior, mas flexibiliza a sua oferta o que pode-
se observar no Art. 9º:
A oferta de ensino fundamental na modalidade a distância em situações emer-
genciais, previstas no § 4º do art. 32 da Lei nº 9.394, de 1996 , se refere a pessoas que:
I - estejam impedidas, por motivo de saúde, de acompanhar o ensino presencial;
II - se encontrem no exterior, por qualquer motivo;
III - vivam em localidades que não possuam rede regular de atendimento escolar presencial;
IV - sejam transferidas compulsoriamente para regiões de difícil acesso, incluídas as missões
localizadas em regiões de fronteira; ou
V - estejam em situação de privação de liberdade (BRASIL, 2017).
Ainda, no que diz respeito à tentativa dos pais querer ensinar seus filhos em casa,
a ANED acionou o Superior Tribunal Federal (STF) e este debateu o tema no ano de
2018, algo que se repetiu nos anos posteriores quando de requerimentos de algumas
famílias de diferentes lugares do Brasil. O argumento quase unânime dos Ministros foi
o de que essa modalidade de ensino é ilegal por não estar prevista na Constituição.
Ademais, consideram o que consta na Constituição Federal em seus artigos 205, 226 e
227 indicam a solidariedade entre Estado e família no dever de cuidar da educação das
crianças, bem como da liberdade aos pais para o planejamento familiar, e competindo
ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito.
No Congresso Nacional, há vários projetos em tramitação (em torno de quinze)
sobre o ensino doméstico (homeschooling). De acordo com o noticiado em 26 de maio
de 2022 pela Agência de Notícias do Senado Federal “chegou ao Senado nesta semana
o projeto que autoriza a educação domiciliar, conhecida como homeschooling, no Brasil.
O PL 1.388/2022 foi aprovado pela Câmara no dia 19 de maio (como PL 3.179/2012)
e já está na Comissão de Educação (CE) do Senado”. No âmbito do Senado há argu-
mentos contra e favoráveis à regulamentação da educação domiciliar.
A discussão ainda pertinente a esse tema volta-se a um contexto mais amplo que
diz respeito à educação como bem público. Pois, do contrário, o que hoje é direito de
cada cidadão segundo nossa legislação, poderá descambar para um viés essencialmente
mercadológico (CHAUÍ, 2003). Para tanto, faz-se necessário considerar algumas con-
cepções atinentes aos estudiosos que abordam sobre o referido tema. Entre outros,
destacamos Lubienski (2000, p. 175), para o qual, “o homeschooling como parte de uma
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das maiores tendências, presente em muitos países, de privatização de partes da vida
social que anteriormente foram pensadas como pertencentes à esfera pública”. Por sua
vez, Ranieri (2009, p.390), ao referir-se a esse assunto, diz que é temerário priorizar, “o
campo das ações individuais em detrimento das normas [...] e dos valores, dos laços
tradicionais de solidariedade e da complementaridade entre o público e o privado”.
Igualmente, Michel Apple (2003) entende que o movimento homeschooling reflete o
crescimento da consciência privatizada em outras áreas da sociedade, sobretudo em
relação aos espaços que antes públicos, agora vão sendo cercados, a exemplo, de praças,
condomínios urbanos em cidades, como se os cidadão não fizessem mais parte da
mesma, mesmo que vivem às cercanias da mesma. Nas palavras de Barbosa (2016,
p.160), “o homeschooling é avaliado como a forma mais radical de privatização de um
bem público, dado que os pais focam somente nos benefícios de seus próprios filhos,
em detrimento os interesses e responsabilidades públicas e privatizando os aspectos so-
ciais da educação”.
Nesse sentido, pode-se entender a educação sendo levada ao limbo, uma vez que
estará à mercê dos interesses e vontades particulares, que poderão nem sempre estar em
consonância com os princípios de cidadania e agir democrático, à medida que se res-
tringe à esfera particular e privada do ensino.
Considerações finais
Pode-se entender que nos últimos anos o contexto histórico da Educação básica
em nosso país foi caracterizado por uma série de Programas de governo, em que cada
um, a seu modo, implantou seu ideário atinente a essa realidade do ensino, muitas vezes
sem considerar o que já vinha sendo realizado em prol das políticas educacionais. Ob-
serva-se que nem todos esses programas foram suficientes para superar os empecilhos
que travam o desenvolvimento da qualidade do ensino e a valorização das condições
profissionais dos educadores (FREIRE, 1996).
Entretanto, reconhece-se que algumas políticas educacionais dos últimos 30 anos
atingiram certos avanços em relação a amplitude do direito à educação, mesmo que de
forma insuficiente. Portanto, há de convir, nesse sentido, que a qualidade do ensino
não depende apenas de resultados obtidos por meio de provas atinentes aos conteúdos,
mas igualmente de possibilitar aos cidadãos condições de liberdade, diálogo, criativi-
dade, interações sociais, criticidade e aptidões que os habilite exercer sua cidadania e
realizar-se humanamente numa sociedade democrática de direitos e deveres. Nesse sen-
tido, cabe-nos lembrar do que explicitou o insigne educador brasileiro, Paulo Freire:
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Os homens, pelo contrário, ao terem consciência de sua atividade e do mundo em que estão, ao
atuarem em função de finalidades que propõem e se propõem, ao terem o ponto de decisão de
sua busca em si e em suas relações com o mundo, e com os outros, ao impregnarem o mundo de
sua presença criadora, através da transformação que realizam nele, na medida em que dele podem
se separar-se e, separando-se, podem com ele ficar, os homens, ao contrário do animal, não
somente vivem, mas existem e sua existência é histórica (FREIRE, 2014, p. 124).
Deste modo entendemos que, para uma sociedade alcançar os objetivos que a
coloquem em patamares avançados em relação a si própria no atinente à educação, faz-
se imprescindível igualmente contar com a capacidade de um povo que exija e lute por
seus direitos, do contrário ficará a mercê das façanhas de detentores das políticas ideo-
lógicas, que incidem nas decisões das políticas educacionais. Estas, nem sempre
contemplam as necessidades da realidade social brasileira.
Portanto, entende-se que, mais do que programas, no que concerne à educação
básica em nosso país, é fundamental um projeto educacional que acolha a realidade
brasileira. Nessa direção, em diálogo com Biesta (2020, p.191) podemos afirmar que,
educar é mais uma questão de criar espaços onde os alunos podem ser livres para apren-
der, livres para pensar, livres para compreender e, assim, poderão construir a sua
liberdade e encontrar seu caminho que “ninguém mais pode fazer no seu lugar”, uma
vez que visa à liberdade enquanto sujeito, sobretudo, e não objeto do seu vir a ser no
processo de ensino-aprendizagem.
Por tais razões, entende-se que, diante dos desafios futuros da sociedade brasi-
leira, a educação não pode ser tratada como uma questão privada, de interesse apenas
familiar. Pois, ela consiste em um dos fundamentos para o futuro de uma Nação e
jamais pode ser concebida como algo secundário, sem planejamento de políticas públi-
cas republicanamente discutidas e efetivadas, ou relegada ao espontaneísmo das
vontades subjetivas de cunho familiar, na esfera da vida privada apenas. Além disso,
diante das enormes desigualdades que temos no Brasil, o Estado é o responsável para
uma maior equidade dos serviços públicos a serem prestados para a maior parte da
população brasileira, carente de recursos privados para conseguir manter uma educação
de qualidade em seus próprios domicílios.
Nesse horizonte acima, a escola precisa ser concebida como um espaço privilegi-
ado e, talvez, seja um lugar ímpar para milhões de crianças e adolescentes brasileiros,
para sua formação humana e socialização. Se estes não tiverem a escola não será em suas
casas, onde muitas vezes faltam os recursos e materiais, ou equipamentos da era digital
para acessarem um nível de qualidade equitativo com os tempos atuais. Conforme bem
ESPAÇO PEDAGÓGICO
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nos coloca Santos (2007), o espaço da comunidade é a dimensão mais enfraquecida da
sociedade contemporânea e, possivelmente, a educação escolar tem uma relação direta
com essa crise, pois na vida escolar reside um grande potencial na formação cidadã e
na socialização da pessoa enquanto ser junto com os outros. Questiona-se: que educação
as escolas estão oportunizando? e, igualmente, o homeschooling teria de fato condições
melhores no processo de socialização, ou agravaria ainda mais essa crise?
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ESPAÇO PEDAGÓGICO
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educação nacional, dispondo sobre a duração de 9 (nove) anos para o ensino fundamental,
com matrícula obrigatória a partir dos 6 (seis) anos de idade. Brasília, 6 de fevereiro de 2006.
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Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da
ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Educação - FUNDEB, de que trata o art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias; altera a Lei n
o
10.195, de 14 de fevereiro de 2001; revoga dispositivos das Leis
n
os
9.424, de 24 de dezembro de 1996, 10.880, de 9 de junho de 2004, e 10.845, de 5 de
março de 2004; e dá outras providências. Brasília, 20 de junho de 2007.
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de 1990, que regula o Programa do Seguro-Desemprego, o Abono Salarial e institui o Fundo
de Amparo ao Trabalhador (FAT), nº 8.212, de 24 de julho de 1991, que dispõe sobre a
organização da Seguridade Social e institui Plano de Custeio, nº 10.260, de 12 de julho de
2001, que dispõe sobre o Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior, e nº
11.129, de 30 de junho de 2005, que institui o Programa Nacional de Inclusão de Jovens
(ProJovem); e dá outras providências. Brasília, 26 de outubro de 2011.
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de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e 11.494, de
20 de junho 2007, que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da
Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, a Consolidação das Leis do
Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e o Decreto-
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prever a obrigatoriedade do ensino de quatro a dezessete anos e ampliar a abrangência dos
ESPAÇO PEDAGÓGICO
A escola como espaço socializador
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A escola como espaço socializador: uma crítica aos limites do
homeschooling
The school as a socializing space: a criticism of the limits of
homeschooling
La escuela como espacio socializador: una crítica a los límites de la
educación en el hogar
Telmo Marcon
*
Ivan Penteado Dourado
**
Luciane Spanhol Bordignon
***
Resumo
A Educação Domiciliar vem se expandindo em diferentes contextos e ganhando adeptos, mas
também sofrendo muitas críticas. O presente artigo, de natureza bibliográfica e documental, objetiva
reunir argumentos para fundamentar uma crítica aos limites político-pedagógicos do homeschooling
na medida em que delimita a educação ao âmbito familiar. Esse projeto afronta princípios básicos da
formação de sujeitos democráticos possibilitados pela escola enquanto espaço público. Para tanto, o
artigo inicia com uma problematização do tema, estabelece um diálogo com Durkheim e Norbert
Elias, dois clássicos da Sociologia que pensam a socialização e a individualização e destacam a
importância do espaço público na constituição individual e social dos sujeitos, segue com a análise
de alguns princípios do homeschooling no Brasil e reúne argumentos relativos às implicações
pedagógicas de uma educação circunscrita ao âmbito familiar e conclui defendendo a tese da
importância do espaço público escolar na formação de sujeitos democráticos e cidadãos.
Palavras-chave: Educação pública. Homeschooling. Socialização. Escola. Democracia.
Recebido em: 09.02.2023 Aprovado em: 20.02.2023
https://doi.org/10.5335/rep.v29i3.14302
ISSN on-line: 2238-0302
*
Doutor em História Social pela PUC de São Paulo. Pós-doutor em Educação intercultural pela UFSC. Professor, pesquisador e
orientador no Instituto de Humanidades, Ciências, Educação e Criatividade (IHCEC) da Universidade de Passo Fundo e do
PPGEDU/UPF (mestrado e doutorado). Orcid: https://orcid.org/0000-0002-9110-3210. E-mail: telmomarcon@gmail.com.
**
Doutor em Educação pela UPF. Professor, pesquisador da Universidade de Passo Fundo e professor colaborador do PPGCiamb/UPF
(mestrado). Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4529-831X. E-mail: ivandourado@upf.br.
***
Doutora em Educação pela UFRGS. Coordenadora Pedagógica do Curso de Pedagogia do Instituto de Humanidades, Ciências,
Educação e Criatividade (HCEC) da Universidade de Passo Fundo. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-1620-0288. E-mail:
lucianebordignon@upf.br.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Telmo Marcon, Ivan Penteado Dourado, Luciane Spanhol Bordignon
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v. 29, n. 3, Passo Fundo, p. 793-816, set./dez. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Abstract
Home education has been expanding in different contexts and gaining supporters, but also suffering
a lot of criticism. This article, of a bibliographical and documental nature, aims to gather arguments
to support a critique of the political-pedagogical limits of homeschooling insofar as it delimits
education to the family sphere. This project confronts basic principles of the formation of democratic
subjects made possible by the school as a public space. To this end, the article begins with a
problematization of the theme, establishes a dialogue with Durkheim and Norbert Elias, two classics
of Sociology who think about socialization and individualization and highlight the importance of
the public space in the individual and social constitution of the subjects, continues with the analysis
of some principles of homeschooling in Brazil and brings together arguments related to the
pedagogical implications of an education limited to the family environment, and concludes by
defending the thesis of the importance of the public school space in the formation of democratic
subjects and citizens.
Keywords: Public education. Homeschooling. Socialization. School. Democracy.
Resumen
La educación domiciliar viene expandiéndose en distintos contextos y ganando adeptos, pero
también sufriendo muchas críticas. El presente artículo, de carácter bibliográfico y documental, tiene
por objetivo reunir argumentos para fundamentar una crítica a los límites político pedagógicos de la
educación en el hogar en la medida en que delimita la educación familiar. Ese proyecto acomete
principios básicos de la formación de sujetos democráticos posibilitados por la escuela, mientras tanto
por el espacio público. Con cuanto, el artículo empieza con una problematización del asunto,
establece un diálogo con Durkheim y Norbert Elias, dos clásicos de la Sociología que piensan en la
socialización y la individualización y apuntan la importancia del espacio público en la constitución
individual y social de los sujetos, sigue con el análisis de algunos principios de la educación en el
hogar en Brasil y reúne argumentos relativos a las implicaciones pedagógicas de una educación
limitada al ámbito familiar y concluye garantizando la tesis de la importancia del espacio público
escolar en la formación de sujetos democráticos y ciudadanos.
Palabras clave: Educación pública. Educación en el hogar. Socialización. Escuela. Democracia.
1. Considerações iniciais
Quando se trata de educação não faltam opiniões. Profissionais de todas as áreas
do conhecimento têm alguma sugestão ou ideia para resolver problemas educacionais.
O mesmo problema foi observado por Norbert Elias ao analisar as representações sobre
a sociedade (1994, p. 13. Grifo do autor) quando afirma: “todos sabem o que se pre-
tende dizer quando se usa a palavra ‘sociedade’, ou pelo menos todos pensam saber”.
Partindo dessa constatação, surge a questão: qual a concepção de educação que temos
e usamos? Os desdobramentos dessa argumentação certamente não confluem para o
mesmo ponto. Mas não é apenas uma questão conceitual de educação que aqui nos
ESPAÇO PEDAGÓGICO
A escola como espaço socializador
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v. 29, n. 3, Passo Fundo, p. 793-816, set./dez. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
interessa. A educação é, acima de tudo, um processo de formação num duplo movi-
mento: a constituição do sujeito enquanto indivíduo e, concomitantemente, a
formação de um sujeito social. São duas dimensões de um mesmo processo formativo
que nem sempre conseguem encontrar um ponto de equilíbrio. Quando um dos extre-
mos domina, o outro torna-se frágil.
A socialização é, ao mesmo tempo, um processo simples e complexo. Simples
pelo fato de nascermos em determinados contextos e, neles, aprendermos as questões
básicas para a sobrevivência que são transmitidas de maneira espontânea. Aprendemos
a falar, reconhecer e compartilhar certos valores, dizer sim ou não para determinadas
situações, seguir conselhos dos adultos, identificar e assumir determinados papéis soci-
ais etc. Concomitantemente, experienciamos limites ao que desejamos e projetamos
frente aos demais sujeitos, ou seja, estabelecemos relações com outros indivíduos ou
mesmo coletividades sociais, com as quais nem sempre estamos em pleno acordo. Nes-
sas tensões e contradições é que nos constituímos como indivíduos socializados, ou seja,
como sujeitos capacitados para viver em sociedade. Neste sentido, a constituição das
identidades individuais é condição fundamental para a vida social, assim como as iden-
tidades sociais são essenciais para a constituição dos sujeitos coletivos.
O que estamos a defender é que nos constituímos como indivíduos socializados
em meio às tensões e contradições sociais, nas disputas entre o ‘eu’ e o ‘nós’. A escola
tem, nesses processos, um papel fundamental. A vida social é, por natureza, conflitiva,
tensa e permeada por disputas e contradições. É evidente que, em alguns contextos,
essas tensões são mais complexas e indefinidas. Daqui, emerge a crítica que fundamen-
taremos aos defensores da Educação Domiciliar no Brasil que privam os filhos de
experiências que a escola possibilita. Como criar as condições para que as crianças ex-
perienciem as situações contraditórias, conflitivas e tensas que os cotidianos da vida
social impõem? Quais as implicações para a formação identitária das crianças que não
experienciam o espaço público escolar e nem o convívio com os grupos sociais diversos
que se fazem presentes na escola?
Essas questões não permitem respostas simples e nem universalizantes. A escola
não pode tudo como observam Laval (2004) e Simons e Masschelein (2017), mas ela
pode formar cidadãos democráticos (DEWEY, 1979; BENEVIDES, 1996). A forma-
ção de um sujeito capaz de conviver, interagir socialmente e socializar-se implica,
necessariamente, em estabelecer inter-relações sociais e a escola é um lócus privilegiado
para tanto. Isso não significa dizer que a escola está conseguindo dar conta desse desa-
fio, mas sem ela, certamente, as possibilidades ficam reduzidas. A escola é desafiada a
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contribuir na formação intelectual, cidadã e profissional dos estudantes, ou seja, a de-
senvolver capacidades individuais tanto para formação para a vida em sociedade quanto
para o trabalho. Quando um desses pilares não for contemplado ao longo da formação
dos sujeitos é porque há problemas e limites. É evidente que não existem barreiras in-
transponíveis e poderá haver situações em que crianças estudem em casa e desenvolvam
capacidades para conviverem socialmente, assim como poderá haver crianças que vão
para a escola e não consigam desenvolver a dimensão da sociabilidade e encontrem
dificuldades para a convivência social. O que se está propondo, aqui, é uma reflexão
sobre a importância da socialização e da individualização das crianças para que possam
exercer seus direitos de cidadania de forma democrática e respeitosa. Os processos edu-
cativos formais precisam contribuir para que as crianças, adolescentes e jovens
aprendam a conviver com a diversidade e a pluralidade em todas as dimensões da vida
social. Como define Durkheim (1967), não nascemos seres sociais, mas nos constituí-
mos socialmente por meio das interações, ou seja, da socialização.
No decorrer do artigo, pretendemos fundamentar uma crítica aos pressupostos
do homeschooling no Brasil e sobre como a estrutura socioeconômica, política e cultural
brasileira cria obstáculos à implementação de projetos dessa natureza. Para tanto, ini-
ciamos com uma reflexão a respeito da compreensão de socialização e individualização
em estudos de Durkheim (1967) e Elias (1994); seguimos com a reconstituição de
elementos presentes nos discursos e nas legislações relativas à Educação Domiciliar,
além de alguns dados estatísticos do número de famílias que defendem esse ideário e as
implicações pedagógicas de uma educação circunscrita ao âmbito familiar. Nas consi-
derações finais, retomaremos a tese enunciada no resumo de que a escola ainda é, na
contemporaneidade, um espaço fundamental de formação crítica do cidadão na pers-
pectiva de Masschelein e Simons (2017) e de Dewey (1979). A vida em sociedade
demanda uma formação social.
2. Individualização e socialização: contribuições de Durkheim e
Norbert Elias
As contribuições dos dois sociólogos Durkheim e Elias - o, ainda, extrema-
mente relevantes e atuais. Pretendemos, aqui, recuperar apenas alguns elementos da
vasta produção acadêmica de Durkheim, no final do século XIX e início do século XX,
e de Norbert Elias, na segunda metade do século XX. As contribuições que nos inte-
ressam aqui dizem respeito aos processos de socialização e de individualização. Esses
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autores possuem diferenças importantes, mas também elementos que dialogam e aju-
dam-nos a compreender melhor a importância das relações e interações sociais na
constituição de sujeitos capacitados para viverem socialmente.
a) A socialização em Durkheim
Durkheim define-se como um autor positivista e assume que seu método é con-
servador: “nosso método nada tem, pois, de revolucionário. Num certo sentido é até
essencialmente conservador, pois considera os fatos sociais como coisas cuja natureza
não é passível de modificação fácil, por mais dúctil e maleável que seja” (1987, p. XVI-
XVII). Esse reconhecimento é importante porque estamos tratando de um pensador
que é conservador, mas, ao mesmo tempo, coloca questões que desafiam as sociedades
contemporâneas, assim como projetos reacionários
1
como o da Educação Domiciliar.
Seu grande esforço intelectual é de transformar a Sociologia em ciência, mas também
de pensar a importância da educação na produção da coesão social. Ele reconhece que
a coesão social foi produzida, historicamente, pelas religiões, mas, com os processos de
industrialização e urbanização, na virada do século XIX para o XX, as religiões perde-
ram essa hegemonia e a educação deveria, segundo Durkheim, contribuir para a
produção dessa coesão social e, por conseguinte, superando a anomia social
2
.
Interessa-nos, para este artigo, recuperar de Durkheim a perspectiva da educação
republicana e a necessidade da produção de consensos sociais, condição para a própria
existência social. Durkheim defende a tese de que não nascemos seres sociais, mas ego-
ístas e, por meio da educação, vamos nos socializando, ou seja, nos apropriando de
valores, normas e regras que possibilitam viver em sociedade. Daí a importância da
socialização que deriva da sua compreensão de educação. Na obra Educação e sociologia
(1967), ele vai construindo um conjunto de argumentos que resultam na definição
clássica de educação compreendida como a ação exercida “pelas gerações adultas, sobre
as gerações que não se encontram ainda preparadas para a vida social; tem por objeto
suscitar e desenvolver, na criança, certo número de estados físicos, intelectuais e morais,
reclamados pela sociedade política...” (1967, p. 41). Nessa definição, a educação tem
um papel fundamental na constituição do ser social, ou seja, ele compreende a educação
em sua função socializadora.
O conceito de socialização ganha, nas reflexões de Durkheim, um lugar central.
Ele chega a essa conclusão observando o papel que a educação desempenhou ao longo
da história. Critica tradições filosóficas que pensaram a educação enquanto dever ser,
visto que sua compreensão de ciência apoia-se na história, na qual identifica como os
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fatos efetivamente ocorreram e não como deveriam ser. Reconhece os elementos cons-
titutivos dos fatos sociais
3
que se sustentam numa base epistêmica positivista, ancorada
na observação, experimentação e comprovação. A educação, o autor conclui, é um fato
social por atender as três grandes características que o define: “O fato social é reconhe-
cível pelo poder de coerção externa que exerce ou é suscetível de exercer sobre os
indivíduos; e a presença deste poder é reconhecível, por sua vez, pela existência de al-
guma sanção determinada, seja pela resistência que o fato opõe a qualquer
empreendimento individual que tenda a violentá-lo” (1987, p. 8).
Quais as contribuições de Durkheim para pensar as novas formas de coesão so-
cial, para além das formas tradicionais assentadas na tradição e no papel preponderante
das gerações adultas? Oriundo de uma família judia, profundamente religiosa,
Durkheim vai construindo referenciais baseados no método científico e numa compre-
ensão de educação laica e republicana. Desde jovem, foi um opositor da educação
religiosa e defensor do método científico, tensão crescente na Europa desde o século
XVIII. O contexto que ele experiencia é de profundas transformações decorrentes da
passagem de uma estrutura social e econômica essencialmente agrária, com uma forte
coesão social produzida pelas religiões para uma crescente urbanização. As cidades pos-
sibilitam a emergência de novos referenciais éticos, políticos, sociais, culturais, estéticos
e epistêmicos. Em meio à crise dos valores tradicionais e da emergência de novos parâ-
metros políticos laicos, Durkheim faz avançar sua compreensão de ciência, bem como
da definição de educação laica e republicana, fundamental para produzir uma nova
coesão social.
Na obra Educação e sociologia, Durkheim (1967) reflete sobre a natureza social
da educação, ou seja, vai tirando conclusões a partir dos pressupostos sobre ciência e
analisa a educação como fato social. A educação, de acordo com o autor, está presente
em todas as sociedades, tem exterioridade na medida em que, em todas elas, existem
sistemas educativos concretos e essa materialidade dá condições para uma análise obje-
tiva, assim como possui universalidade na medida em que não é um fenômeno restrito
a uma região ou país. A educação impõe-se coercitivamente e o indivíduo não tem
outra opção a não ser ‘submeter-se’ aos processos educativos que são reconhecidos
como válidos por uma determinada sociedade. Entende, desse modo, que a educação é
múltipla e uma, ou seja, é múltipla na medida em que existem muitas formas de edu-
cação de acordo com as diferenças sexuais, econômicas, de grupos e classes sociais. Por
outro lado, em todas as sociedades, os processos educativos e religiosos produziram
coesão social, condição para a existência da própria sociedade. “Se, por um lado, exis-
tem tantas espécies de educação quanto meios sociais, por outro, todos os sistemas
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educativos difundem certos ideais e sentimentos comuns a todos os grupos sociais
(VARES, 2011, p. 32). Dessa compreensão, deriva o caráter social da educação.
Durkheim parte do princípio de que o ser humano só se tornou humano porque tor-
nou-se sociável, ou seja, foi capaz de aprender hábitos e costumes característicos de seu
grupo social, condição para conviver e sobreviver. A esse processo de aprendizagem, ele
denomina socialização. Através da socialização constitui-se uma consciência coletiva
que agrega tudo aquilo que habita as mentes e orienta-nos em relação ao nosso ser,
sentir e agir.
Como Durkheim concebe a socialização? Após analisar muitas experiências his-
tóricas, ele conclui que, em todas as sociedades, as gerações adultas e as instituições
sociais desempenharam um papel fundamental na socialização por meio da ação sobre
as gerações ainda não preparadas para a vida social. Distintamente de outras tradições
que acentuam a atividade do indivíduo, para Durkheim, a sociedade sobrepõe-se ao
indivíduo que ingressa no mundo e precisa adaptar-se às estruturas socioculturais exis-
tentes.
Ao discutir a “missão social do mestre”, Vares (2011, p. 37) ressalta que a com-
preensão de educação em Durkheim contrapõe-se aos determinismos biológicos, ou
seja, “o desenvolvimento depende de circunstâncias externas”, portanto, sociais e cul-
turais. A constituição do ser social é a finalidade última da educação e o ser social que
a educação propicia, segundo Durkheim (1967, p. 42), “não nasce com o homem, não
se apresenta na constituição humana primitiva, como também não resulta de nenhum
desenvolvimento espontâneo”. A conclusão a que chega é de que a ação exercida pela
sociedade, especialmente pela educação, “não tem por objeto, ou por efeito, comprimir
o indivíduo, amesquinhá-lo, desnaturá-lo
4
, mas ao contrário engrandecê-lo e torná-lo
criatura verdadeiramente humana” (1967, p. 46-47).
No bojo dessa compreensão de ser humano como ser social, Durkheim pensa a
função do Estado em relação à educação. É aqui que se situa a tese fundamental que
nos interessa de modo peculiar para fundamentar uma crítica à Educação Domiciliar
no Brasil. Ele parte da constatação de que há uma tensão entre família e Estado: “Opõe-
se ao Estado, quase sempre, os direitos da família. Diz-se que a criança é, antes de tudo,
de seus pais; a estes, pois, e a mais ninguém, incumbe a direção de seu desenvolvimento
intelectual e moral” (1967, p. 47). Essa compreensão de educação é essencialmente
privada e doméstica. Por isso, ele pondera e afirma que a educação “não pode ser intei-
ramente abandonada ao arbítrio dos particulares” (1967, p. 48), ou seja, “a escola não
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pode ser propriedade de um partido; e o mestre faltará aos seus deveres quando empre-
gue a autoridade de que dispõe para atrair seus alunos à rotina de seus preconceitos
pessoais, por mais justificados que eles lhe pareçam” (1967, p. 49).
Nesse contexto, Durkheim pensa no papel do mestre educador como “um tra-
balho de autoridade”. A autoridade, por sua vez, não age pela violência, mas consiste
“numa ascendência moral” que, por sua vez implica em disposição e confiança do mes-
tre que deve ter consciência dessa autoridade. “A autoridade é uma força que ninguém
pode manifestar, se efetivamente não a possui. (...) Não é de fora que o mestre recebe
a autoridade: é de si mesmo” (1967, p. 55).
Os valores morais construídos e partilhados socialmente não se constituem em
referências individuais, mas sociais. O mestre tem de partilhar esses valores com as cri-
anças. Assim, Durkheim conclui que: “ao contrário da opinião muito difundida de que
a educação moral deveria competir à família, acredito que o papel da escola na educação
é e deve ser da mais alta importância. Existe toda uma parte da cultura, sua parte mais
elevada, que não pode ser transmitida em outro lugar” (2008, p. 34-35).
b) Individualização e socialização em Norbert Elias
Norbert Elias (1994) tem, como foco de suas investigações, a relação entre indi-
víduo e sociedade. Como sociólogo, destaca, em suas reflexões, a complexidade das
relações interpessoais e as interações sociais que resultam nos processos de socialização.
É nas interações com os outros que os indivíduos constituem suas identidades. Ao in-
troduzir conceitos como o de teias de relações, de rede ou figuração, salienta que as
interações não são processos simples, ao contrário, são extremamente complexos.
Elias afirma que existem duas grandes tradições que tentam explicar a relação
indivíduo e sociedade: uma destaca a ação dos indivíduos e a outra acentua o papel das
estruturas sociais. Ele critica essas duas perspectivas porque elas não dão conta das com-
plexas relações indivíduo-sociedade. Em relação à primeira assinala que: “parte das
pessoas aborda as formações sócio-históricas como se tivessem sido concebidas, plane-
jadas e criadas, tal como agora se apresentam ao observador retrospectivo por diversos
indivíduos ou organismos” (1994, p. 13). Essa tradição defende que as ações são resul-
tantes de decisões racionais de indivíduos isolados, mas, segundo o autor, ela apresenta
inúmeros problemas. Uma segunda tradição criticada por Elias despreza o papel do
indivíduo na sociedade e nas decisões sociais e políticas. Essa tradição baseada em mo-
delos extraídos das ciências naturais, especialmente, da Biologia, defende que a
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sociedade é uma entidade orgânica, supra individual. Elias faz a seguinte crítica a res-
peito dessas duas tradições:
Enquanto para os adeptos da convicção oposta (individualista), as ações sociais se encontram no
centro do interesse e qualquer fenômeno que não seja explicável como algo planejado e criado
por indivíduos mais ou menos se perde de vista, aqui, neste segundo campo, são os próprios
aspectos que o primeiro julga inabordáveis os estilos e as formas culturais, ou as formas e as
instituições econômicas que recebem maior atenção (1994, p. 15).
Na tentativa de superar esses limites, Elias chama a atenção para a ausência de
modelos conceituais, assim como uma visão global que possibilite compreender como
um “grande número de indivíduos compõe entre si algo maior e diferente de uma co-
leção de indivíduos isolados: como é que eles formam uma sociedade e como sucede a
essa sociedade poder modificar-se de maneiras específicas, ter uma história que segue
um curso não pretendido ou planejado por qualquer dos indivíduos que a compõem”
(1994, p. 16). Neste sentido, Elias acentua que não são os indivíduos isolados (môna-
das) que constituem a sociedade. Para superar essa tradição, ele lança mão de analogias:
afirma que uma casa não é resultado de pedras isoladas, assim como uma música não é
a soma de notas isoladas. Ambas somente existem quando constituírem um conjunto
de relações. O mesmo ocorre com os indivíduos e a sociedade. Ambos implicam rela-
ções. Elias questiona-se: “como é possível que a existência simultânea de muitas pessoas,
sua vida em comum, seus atos recíprocos, a totalidade de suas relações mútuas deem
origem a algo que nenhum dos indivíduos, considerado isoladamente, tencionou ou
promoveu, algo que ele faz parte, querendo ou não, uma estrutura de indivíduos inter-
dependentes, uma sociedade?” (1994, p. 19). A partir dessa interrogação, ele
fundamenta sua tese básica: “Não há dúvida de que cada ser humano é criado por
outros que existiam antes dele; sem dúvida, ele cresce e vive como parte de uma asso-
ciação de pessoas, de um todo social, seja qual for. Mas isso não significa que o
indivíduo seja menos importante que a sociedade, nem que ele seja um meio e a socie-
dade, fim. A relação entre a parte e todo é uma certa forma de relacionamento, nada
mais, e como tal, sem dúvida, já é bastante problemática” (1994, p. 19).
A abordagem sociológica de Elias é processual, ou seja, não existe nenhum tipo
de predeterminação do ser humano. Ele não vive sem o outro, mas, ao mesmo tempo,
não é determinado e nem igual ao outro. O que existe são relações de interdependência
ou como pontua: “teias de relações”. Entende que a constituição do sujeito ocorre atra-
vés das inter-relações que estabelece e daí a necessidade de ambientes adequados para
que as crianças, especialmente, desenvolvam experiências socializadoras construtivas.
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Elias é pós-metafísico e critica a ideia de essência ou de natureza humana pré-definida.
Neste sentido, não existe no humano, diferentemente de outros animais, uma pré-or-
ganização instintiva. Como não existe uma essência a ser desenvolvida (desabrochada),
o ser humano precisa constituir-se como tal. Faz isso por meio das interações que esta-
belece com as instituições sociais e políticas e com os outros. Socializar-se implica, neste
sentido, construir interrelações com os outros e, nesses processos, que são tensos e dia-
léticos, constituir-se como tal, bem como constituir a sociedade. Elias usa metáforas
para mostrar como ocorrem as inter-relações sociais, bem como que elas não são defi-
nidas a priori: dança de salão, jogos, redes. Essa ideia está expressa na frase: “é necessário
desistir de pensar em termos de substâncias isoladas únicas e começar a pensar em ter-
mos de relações e funções” (1994, p. 25).
Os conceitos de interação e relação são centrais no pensamento de Elias. É o que
se deduz da afirmação: “ao nascer, cada indivíduo pode ser muito diferente, conforme
sua constituição natural. Mas é apenas na sociedade que a criança pequena, com suas
funções mentais maleáveis e relativamente indiferenciadas, se transforma num ser mais
complexo” (1994, p. 27). Essa tese tem suas implicações e consequências: tornamo-nos
humanos desenvolvidos somente nas relações com outras pessoas e com o ambiente
social que preexiste à vinda da criança ao mundo. “Somente ao crescer num grupo é
que o pequeno ser humano aprende a fala articulada. Somente na companhia de outras
pessoas mais velhas é que, pouco a pouco, desenvolve um tipo específico de sagacidade
e controle dos instintos” (1994, p. 27).
Para Elias, existem os processos sociais (sociogênese) e os processos mentais indi-
viduais (psicogênese). Ambos se entrecruzam e, por isso, não há indivíduo fechado em
si mesmo (homo clausus) e nem uma determinação do social sobre o indivíduo. Essa
perspectiva é interessante porque permite pensar nas mudanças, mesmo quando pare-
cem impossíveis. Através das interações, os indivíduos e as diferentes gerações vão se
constituindo e constituindo a sociedade. É assim que Elias pensa o processo educativo
com crianças:
a criança não é apenas maleável ou adaptável em grau muito maior do que os adultos. Ela precisa
ser adaptada pelo outro, precisa da sociedade para se tornar fisicamente adulta. Na criança, não
são apenas as ideias ou apenas o comportamento consciente que se veem constantemente
formados e transformados nas relações com o outro por meio delas (ELIAS, 1994, p. 30).
Concluindo, é possível afirmar que essa compreensão de indivíduo e de sociedade
em Norbert Elias traz relevantes implicações para a ação das instituições sociais, espe-
cialmente a escola, no sentido de propiciar interações positivas entre os indivíduos; a
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importância de valorizar cada indivíduo e as múltiplas interações que ele estabelece
cotidianamente. Possibilita, ainda, questionar as múltiplas formas de individualismo
que vivemos hoje, assim como as interações que não contribuem para um desenvolvi-
mento construtivo do próprio indivíduo e, por conseguinte, na constituição da
sociedade. “Os seres humanos são parte de uma ordem natural e de uma ordem social
(1984, p. 41).
3. Princípios básicos da Educação Domiciliar
Quando tratamos de Educação Domiciliar, é importante não confundir com o
Ensino Remoto, vivido durante a pandemia. Em contexto de pandemia, a modalidade
remota foi uma imposição para todo o mundo. Foi uma forma precária e limitada para
reduzir a exposição dos estudantes e, consequentemente, suas famílias ao vírus da
COVID 19. Não foi uma modalidade pensada com a finalidade de substituir a presen-
cialidade e nem defendida como uma medida capaz de qualificar os processos de
ensino-aprendizagem. A Educação Domiciliar é anterior à pandemia, cuja discussão
começou no início dos anos 2000 no Brasil, apresentada como uma modalidade de
educação para crianças em casa como desejo dos pais, não necessariamente das crianças.
Sendo assim, a Educação Domiciliar necessita ser discutida de forma mais ampla e
profunda, já que seus defensores pensam a educação fora do espaço formal de ensino
sob a supervisão e acompanhamento dos pais ou responsáveis. É de fundamental im-
portância resgatar as bases desse modelo de educação. Quando mapeamos textos,
artigos e o próprio movimento do homeschooling
5
, identificamos o direito às liberdades
individuais como princípio basilar em contraposição aos direitos sociais e ao interesse
público. Expresso em outros termos, o direito de cada família responsabilizar-se pela
educação dos filhos, sem a interferência direta do Estado, como forma de materializar
a liberdade individual dentro do espaço familiar e da criação e educação dos filhos sem
os problemas e as críticas que a escola recebe. Essa proposta aponta para um rompi-
mento profundo não apenas com os limites físicos do espaço escolar, mas acompanha,
em nível mais profundo, a ruptura com o modelo de escolarização, retirando o papel
dos professores na condução do ensino formal. Ao defender a educação no espaço do-
méstico
6
, coloca-se em xeque o modelo de escolaridade obrigatória definido pela
legislação educacional brasileira.
Ao realizarmos um levantamento de pesquisas sobre o tema, o país com maior
concentração de pesquisas sobre homeschooling é os Estados Unidos. Conforme Kunz-
man e Gaither (2013, p.31), esse processo deve-se a uma série de fatores, entre eles, o
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de que o referido país possui o maior número de homeschoolers (estudantes em ho-
meschooling) do mundo. Esse tema nunca foi aprovado na suprema corte americana.
O que efetivamente ocorreu foi que diversos estados americanos receberam autorização
legislativa para essa modalidade, principalmente, em casos de motivação religiosa das
famílias demandantes.
Além dos EUA, alguns países europeus também vivem experiências de homes-
chooling. Nas comunidades belgas de língua francesa e holandesa, na Dinamarca, na
Inglaterra, na Finlândia, na França, na Alemanha, na Irlanda, na Itália, na Holanda,
na Noruega, em Portugal e na Suécia, existe essa modalidade de ensino, mas, com pro-
fundas diferenças de práticas, legislações e casos específicos em que essa modalidade é
permitida. Em alguns casos, há um amplo poder do Estado para acompanhar e avaliar
a qualidade e os critérios dessa modalidade e, em outros, esse processo não é de avalia-
ção estatal (ANDRADE, 2017).
No caso brasileiro, não existe um ordenamento jurídico a respeito da Educação
Domiciliar, o que impediria que existissem casos dessa modalidade de ensino de forma
legal e pública. Existem, na realidade, regulamentações legais que determinam a matrí-
cula de crianças e adolescentes na escola, ou seja, “lugar de criança é na escola”
7
. No
contexto brasileiro atual, é dever do Estado e de seus agentes e órgãos competentes,
juntamente com os pais ou responsáveis, matricular os filhos na escola em caráter obri-
gatório a partir dos quatro anos.
Esse entendimento era ponto pacífico até pouco tempo atrás. Mas, ao recupe-
rarmos na esfera legislativa, a tramitação na Câmara dos Deputados da PEC n.
444/2009 (BRASIL, 2009), juntamente com processos no Supremo Tribunal Federal,
objetivaram legalizar a promoção da educação em caráter desescolarizado. A Emenda
Constitucional n. 444 de 2009 propunha acrescentar um parágrafo ao art. 208 da
Constituição Federal, definindo que o Poder Público teria a responsabilidade de regu-
lamentar a Educação Domiciliar “assegurado o direito à aprendizagem das crianças e
jovens na faixa etária da escolaridade obrigatória por meio de avaliações periódicas sob
responsabilidade da autoridade educacional”
8
. Posteriormente, com maior destaque
nos meios de comunicação, tivemos o Projeto de Lei n. 3.261/2015 (BRASIL, 2015)
do deputado Eduardo Bolsonaro, que previa a matrícula de estudantes domiciliares,
dando um tratamento diferenciado para estes, obrigados a cumprirem apenas o calen-
dário de provas e avaliações, sem a necessária frequência e nem a carga-horária prevista
legalmente.
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Esse movimento legislativo ganhou força com a posse de Jair Messias Bolsonaro
em primeiro de janeiro de 2019 que trazia, entre outras propostas, o Ensino Domici-
liar. Com a posse de ministros como Damares Regina Alves e Abraham Bragança de
Vasconcellos Weintraub, respectivamente, nos Ministérios da Mulher, Família e Di-
reitos Humanos e da Educação, um ambiente favorável foi consolidado. A proposta
dessa modalidade de ensino constava na lista de prioridades dos primeiros 100 dias do
governo. No entanto, foi somente em 2022, ano eleitoral que culminou com a derrota
do então presidente Jair Messias Bolsonaro, que ocorreu uma intensa movimentação
para tentar aprovar o Projeto de Lei 3179/2012 (BRASIL, 2012), inicialmente, pro-
posto pela deputada Luisa Canziani (PSD-PR), atualizado pelo deputado Lincoln
Portela (PL-MG) e, novamente, submetido à apreciação. O projeto visava alterar a leis
número 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional), e a de número 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do
Adolescente), para dispor sobre a possibilidade de oferta domiciliar da educação básica.
Esse projeto foi aprovado, com alterações, na Câmara dos Deputados em dezenove de
maio de 2022 e até o início de 2023 aguarda tramitação no Senado, ainda sem data
prevista para votação.
Essas pautas e demandas são também debatidas fora de espaços legislativos. Exis-
tem grupos que defendem o ensino domiciliar, assim como grupos que criticam essa
modalidade de educação no Brasil. Um ponto importante a ser destacado é que os
grupos que defendem a Educação Domiciliar estão alinhados política e ideologica-
mente a grupos conservadores e reacionários de direita ou de extrema-direita que
possuem pautas como o combate à ideologia de gênero e Escola Sem Partido
(MARCON; DOURADO, 2021, p. 1-19), assim como outras pautas que emergem
dentro dessa lógica conservadora. Para esses grupos, a escola não cumpriria seu papel,
além de desvirtuar os jovens dos valores que suas famílias defendem.
Movimentos conservadores que defendem a Educação Domiciliar tem, no site
Brasil Paralelo, um ponto de ancoragem. Devemos levar em conta que esse conteúdo
analisado por um olhar científico e crítico cumpre, na maioria das postagens, um papel
de desinformação com notícias falsas sobre diversos temas. Porém, possui uma ampla
inserção e influência social, pautando questões de interesses conservadores da direita
brasileira, apresentando matérias que defendem claramente a modalidade de Educação
Domiciliar. Em uma das matérias intitulada: O que é homeschooling e como funciona? 8
benefícios em relação às escolas
9
, são listados nomes de intelectuais que receberam sua
educação no espaço doméstico, entre os quais: Albert Einstein; Benjamin Franklin;
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Thomas Edison; Erwin Schroedinger; Willard Boyle e Soichiro Honda. Essas informa-
ções são ‘jogadas’ sem contextualizar o período histórico em que cada um deles estudou
e o que explicaria o ensino domiciliar, em alguns casos, em condições anteriores ao
ensino público escolar acessível para todos. Além disso, o texto divulga materiais didá-
ticos para os pais utilizarem
10
, junto com indicações de obras complementares, como:
A Mente Bem Treinada; Homeschooling Católico, entre outras. Esses conteúdos, entre
outros, circulam de forma muito forte no público que compartilha essa posição política,
ilustrando as formas de comunicação e convencimento das ideias desse segmento polí-
tico/ideológico.
Além dessas iniciativas de comunicação e divulgação, existem também inúmeras
entidades que representam os interesses da Educação Domiciliar. A Associação Brasi-
leira de Defesa e Promoção da Educação Familiar (ABDPEF), a Homeschool Legal
Defefense Association (HSLDA), entidade internacional, bem como, a Associação Naci-
onal de Educação Domiciliar (ANED). Esta última refere, em seu site
11
, a parceria com
a Associação dos Juristas Evangélicos (ANAJURE), apresentando algumas pautas que
são comuns aos grupos conservadores.
A Associação Nacional da Educação Domiciliar (ANED) apresenta dados sobre
a modalidade de educação domiciliar no Brasil, sem afirmar as fontes e a forma com
que eles foram obtidos. Afirma que temos 35 mil famílias que já vivem esse modelo,
espalhadas nas 27 unidades da federação, com um crescimento de 55% ao ano, envol-
vendo 70.000 estudantes entre quatro e 17 anos. Outra pesquisa realizada pela ANED,
sem fontes ou metodologias, datada de 2017, traz os seguintes dados: de 285 famílias
homeschooling no Brasil, 34% delas o pai ou a mãe possuem ensino superior completo
e, em 74% das famílias, um dos pais já frequentou ou frequenta uma Universidade.
Essa associação tem como compromisso a defesa do “direito da família à Educação
Domiciliar no Brasil, através da representação coletiva dos seus associados junto às au-
toridades, órgãos e entidades pertinentes”.
Entre os argumentos utilizados pelos defensores do ensino domiciliar está o des-
crédito das famílias em relação à educação escolar, os baixos resultados nas avaliações
externas, as altas taxas de evasão e os inúmeros casos de violência e bullying nas escolas.
A baixa qualidade das escolas públicas é o argumento principal na defesa da Educação
Domiciliar, além da liberdade das famílias em educarem seus filhos. Ao mesmo tempo,
cabe ressaltar, segundo Vasconcelos (2017), que as camadas da população que estudam
majoritariamente na escola pública não são as mesmas que formam o público principal
da escolarização fora da escola.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Ao analisarmos o Projeto de Lei 2401-2019 (BRASIL, 2019), juntamente com
o alinhamento dos grupos anteriormente citados, temos alguns pontos fundamentais
para serem apresentados. Não tanto na forma de regulamentação dessa modalidade,
que aponta para a forma de cadastramento das famílias, envio de documentos, formas
de acompanhamento e sanções nos casos que descumprimento dos pontos definidos,
inclusive vedando os pais ou responsáveis nessa modalidade, se eles estiverem cum-
prindo pena em razão de determinados crimes. Mas, na Exposição de Motivos do
projeto n°.19/2019 os Ministros Alves e Weintraub fazem uma defesa da educação
domiciliar que nos ajuda na compreensão das bases e concepções presente nessa pro-
posta. Eles iniciam argumentando que o Ensino Domiciliar já é uma realidade em
inúmeros países e que, juntamente com o reconhecimento das entidades nacionais e
internacionais que lutam por essa causa e que foram ouvidas, alinham-se às discussões
realizadas no âmbito político do Congresso Nacional. Dizem, ainda, que a Educação
Domiciliar “consiste no regime de ensino de crianças e de adolescentes, dirigido pelos
pais ou por responsáveis” (2019, p. 7). Essa definição estaria respaldada no artigo 26,
inciso terceiro da Declaração Universal dos Direitos Humanos que diz: “os pais têm
prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus fi-
lhos”. A dimensão de liberdade de escolha é colocada como argumento fundante, além
de defenderem que o investimento em educação é gasto (2019, p. 8).
Nessa exposição de motivos, Alves e Weintraub insistem na urgência da aprova-
ção do Projeto e da regulamentação da Educação Domiciliar visto que o Supremo
Tribunal Federal, com base no Recurso Extraordinário nº 888.8815-RS, julgou in-
constitucional essa modalidade e muitas famílias foram denunciadas e julgadas por
adotarem essa prática:
a situação de insegurança jurídica atual, especialmente na perspectiva de pais que têm sido
processados por educarem seus filhos em casa, após a conclusão do julgamento do Supremo
Tribunal Federal e a publicação do acórdão, aponta para a urgência da matéria, justificando que
seja tratada por Medida Provisória (2019, p. 9).
Na contramão do movimento em defesa da Educação Domiciliar foi publicado,
em maio de 2022, o Manifesto Contra a Regulamentação da Educação Domiciliar e em
Defesa do Investimento nas Escolas Públicas
12
. Foram mais de 400 entidades, incluindo
universidades, redes de ensino, fóruns, sindicatos e organizações da sociedade civil que
assinaram esse documento e manifestaram uma clara oposição ao projeto da Educação
Domiciliar.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Nessa linha crítica, destacam-se, também, as contribuições do Centro de Estudos
e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (CENPEC), que, em inúmeras
publicações sobre a Educação Domiciliar, assinala que essa proposta fere o direito da
criança e do adolescente de estarem na escola. Aponta, inclusive, o respaldo popular
em pesquisas realizadas sobre o tema da Educação Domiciliar que indicam que essa
modalidade é rejeitada por oito em cada 10 brasileiras(os). Os dados foram obtidos por
meio de uma pesquisa nacional intitulada: Educação, Valores e Direitos, coordenada
pelo Cenpec e pela Ação Educativa, em parceria com o Datafolha e o Centro de Estu-
dos de Opinião Pública (CESOP/Unicamp), em março de 2022.
13
Mesmo com críticas ao ideário da Educação Domiciliar, há avanços dessas pro-
postas que estão conquistando espaços políticos na sociedade brasileira. Assim, urge
uma discussão cuidadosa e fundamentada que seja capaz de apontar os limites desse
modelo de ensino no contexto educativo, social e cultural brasileiro. A Educação Do-
miciliar é uma modalidade de ensino em que pais ou tutores responsáveis assumem o
papel de professores de seus filhos. Assim sendo, o processo de aprendizagem dessas
crianças é feito fora de uma escola. Essa opção de escolarização, segundo Barbosa e
Oliveira (2017), envolve mais de dois milhões de norte-americanos e, ainda que isso
represente aproximadamente 4% dos estudantes estadunidenses, está longe de ser um
fenômeno de massa.
No Brasil, como observado, há organizações que defendem posições pró-homes-
chooling, tanto em nível político quanto jurídico, no apoio ao desenvolvimento de
materiais pedagógicos e nas estratégias educativas para essa opção educacional. Segundo
a ANED, as nações que adotam o ensino domiciliar no mundo como modalidade edu-
cativa com reconhecimento legal incluem: África do Sul (África); Austrália e Nova
Zelândia (Oceania); Filipinas e Japão (Ásia); EUA e Canadá (América do Norte); Co-
lômbia, Chile Equador e Paraguai (América do Sul); Portugal França, Itália, Reino
unido, Suíça, Bélgica, Holanda, Áustria, Finlândia, Noruega e Rússia (Europa).
4. Questões pedagógicas que desafiam a Educação Domiciliar
O Projeto de Lei da Educação Domiciliar
14
prevê a obrigatoriedade dos pais ou
responsáveis legais apresentarem um plano pedagógico individual sobre o que ensinarão
aos filhos em casa. Isso implica planejamento. Segundo Vasconcellos (2004, p. 79):
Planejar é antecipar mentalmente uma ação a ser realizada. O planejamento é uma mediação
teórico-metodológica para a ação, que, em função de tal mediação, passa a ser consciente e
intencional. Tem por finalidade (...) fazer acontecer, concretizar, e para isso é necessário amarrar,
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condicionar, estabelecer condições, objetivas e subjetivas, prevendo o desenvolvimento da ação
no tempo (o que vem primeiro, o que vem em seguida), no espaço (onde será feita) e as condições
materiais (que recursos, materiais, equipamentos serão necessários) e políticas (relações de poder,
negociações, estrutura , bem como a disposição interior (desejo, mobilização) para que aconteça.
Neste sentido, elaborar um plano implica um processo de planejamento, uma
ferramenta viabilizadora da implementação de políticas públicas. Constitui-se, então,
o ato de regulamentar o planejamento como um elemento integrante da ação do Es-
tado. Dessa forma, é pertinente analisar criticamente o Projeto Pedagógico da
Educação Domiciliar. Segundo Porto e Mutim (2020), esse projeto representa um pen-
samento conservador e precisa ser questionado para que a democracia e os direitos
fundamentais dos estudantes não sejam violados.
Um plano pedagógico trata de questões curriculares que, segundo Porto e Mutim
(2020), precisa de trato profissional. O currículo da Educação Básica brasileira é regido
pela LDB (1996) e pela BNCC (2018), porém, o Projeto de Lei da Educação Domi-
ciliar não faz referência à BNCC para a construção do documento do Projeto Político
Institucional (PPI). Só faz alusão à BNCC no que se refere à avaliação.
A certificação da aprendizagem terá como base os conteúdos referentes ao ano escolar
correspondente à idade do estudante, de acordo com a Base Nacional Comum Curricular, com
possibilidade de avanço nos cursos e nas séries, nos termos do disposto na Lei nº 9.394, de 20 de
dezembro de 1996 (BRASIL, 2019).
É relevante destacar, ainda, que é imprescindível a elaboração de estratégias de
acompanhamento do processo pedagógico em curso e a construção de mecanismos de
controle da frequência do estudo. Neste sentido, há uma redução do papel do Estado,
bem como o esvaziamento da criticidade, da pluralidade, da socialização e de experiên-
cias educativas enriquecedoras, o que contraria a própria BNCC. “As restrições da
formação ao ambiente familiar, ou homeschooling, denota a perda do potencial for-
mativo inerente à interação e ao encontro com o outro, significando um estreitamento
do processo educacional” (CASAGRANDE; HERMANN, 2020, p. 1).
Há de se considerar também o rito de passagem da vida familiar e privada para
a coletiva, por meio da escolarização, envolvendo questões que dizem respeito à diver-
sidade e à sociabilidade. A escolaridade carrega consigo a “convivência” que, segundo
Cury (2019, p. 6. Grifos do autor),
reabre uma nova tensão: os diferentes se encontram em um espaço comum a fim de conhecerem
e praticarem ‘as regras do jogo’. Os diferentes se encontram para que haja um reconhecimento
recíproco da igualdade, da igualdade essencial entre todos os seres humanos. Os diferentes se
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encontram para, em base de igualdade, reconhecer e respeitar as diferenças. É nesse ir e vir de
conhecimento comum, de aprendizado das regras do jogo, da consciência da igualdade e do
reconhecimento do outro como igual e diferente que se efetiva a ‘dignidade da pessoa humana’,
princípio de nossa Constituição.
Cury (2019) salienta, ainda, que a homeschooling, em que pese sua crítica a as-
pectos existentes na escola, essa crítica deve ser um alerta para os gestores empenharem-
se na solução de problemas e na defesa da liberdade civil, correndo o risco de, perigo-
samente, escorregar para um isolamento, um fechamento para o outro, dentro da
família, reduzindo o campo de compartilhamento convivial e de transmissores não li-
cenciados. A escola praticamente tornou-se o último bastião institucional de uma
convergência entre o “todos” e o “comum”. A escola, ainda segundo Cury (2019), tem
uma institucionalidade permanente, sistemática, sistêmica, ao exigir a presença do edu-
cando pelo menos cinco dias da semana. Além da presença do educando, há o docente,
o profissional preparado para articular o processo de ensino e aprendizagem.
Arendt (2016) define o papel do educador e, consequentemente, da escola
nessa tensa e aparente (apenas aparente) ambiguidade que compreende o que a autora
chama de “caráter conservador da Educação”: o educador está aqui em relação ao jovem
como representante de um mundo pelo qual deve assumir a responsabilidade. Essa res-
ponsabilidade não é imposta arbitrariamente aos educadores; ela está implícita no fato
de que os jovens são introduzidos por adultos em um mundo em contínua mudança.
A qualificação do professor consiste em “conhecer o mundo e ser capaz de ins-
truir os outros acerca deste, porém, sua autoridade assenta-se na responsabilidade que
ele assume por este mundo. Face à criança, é como se ele fosse um representante de
todos os habitantes adultos, apontando os detalhes e dizendo à criança: “isso é o nosso
mundo” (ARENDT, 2016, p. 239). A ambiguidade da dimensão conservadora da
Educação é apenas aparente porque o mundo que se quer preservar é o mundo en-
quanto espaço público e, portanto, marcado pelas inúmeras manifestações de
humanidade. Isso significa afirmar que, ao apresentar o mundo, não se apresenta ape-
nas uma perspectiva (ou a perspectiva hegemônica) do que é o mundo, mas seus
conflitos, seus projetos, suas utopias e seus problemas (SAVATER, 1998). Trata-se da
conservação do mundo, não das coisas como elas estão dispostas no mundo. Assim
sendo, do próprio mundo como um lugar dinâmico, como o lugar da pluralidade, ha-
bitado pelos homens e pelas mulheres no plural (ARENDT, 2016), e que, por isso,
precisa, constantemente, ser renovado e, mesmo, transformado, para oferecer aos que
estão por vir as condições favoráveis à natalidade, que, para Arendt, significa o ingresso
do novo.
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Outro ponto importante a ser criticado no ensino domiciliar diz respeito à des-
construção da profissão doente. Nessa perspectiva, Rosa [et al.] afirmam que
O homeschooling além de aviltar o trabalho do professor a dispensar tacitamente a formação
profissional, introduz a possibilidade de se converter em justificativa para a ausência do Estado
no provimento da educação escolar. Uma tensão em relação aos saberes que afeta o trabalho
docente e o direito a educação desde sua base (2019, p. 5).
Casanova e Ferreira (2020) sinalizam que corremos riscos de criarmos sociedades
paralelas, com ataques cada vez maiores ao currículo e à cultura escolar, contra a de-
mocracia dos conhecimentos científicos, contra professores como intelectuais e a escola
pública e gratuita e outras formas de repressão. Daí a urgência de pautar discussões
críticas e reflexivas sobre essa situação.
Rosa e Camargo (2020) advertem que, no processo de análise da visibilidade da
regulamentação do homeschooling, observem-se suas implicações, considerando que a
educação básica requer o desenvolvimento de papéis colaborativos e não concorrentes
entre família e Estado. Além disso, é fundamental considerar o espaço social como pa-
râmetro para o desenvolvimento das crianças e dos adolescentes e que, nesse processo,
ressaltando a função social da escola, reconheça-se a profissionalização e o exercício
legítimo da docência e não relegando esse processo a qualquer profissional não docente.
5. Considerações finais
Nessas breves reflexões, intentamos fundamentar uma crítica ao movimento em
defesa da Educação Domiciliar e os limites que esse projeto de educação tem em relação
à socialização, à individualização, bem como à concepção reducionista de educação.
Como bem observam Durkheim e Elias, a socialização e a individualização não ocor-
rem fora de contextos sociais e de relações entre as pessoas e das inter-relações que
estabelecem. A vida social é, por natureza, complexa, tensa e contraditória. A criança
ingressa num mundo já existente que tem regras, valores e normas estabelecidas e reco-
nhecidas socialmente. É nas relações que esse sujeito vai estabelecer, nos diferentes
espaços e instituições, que irá desenvolver-se como ser social e como indivíduo. A tese
central que esses autores defendem é de que somente nos constituímos como seres so-
ciais nas relações que estabelecemos com os outros. Daqui deriva a tese básica que
fundamenta a crítica ao projeto de Educação Domiciliar: não é privando o indivíduo
da convivência com o outro que haverá um desenvolvimento equilibrado e maduro.
Dessa tese, decorre outra: a experiência de educação escolar não pode ser limitada à
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apropriação de informações e saberes. A escola tem de propiciar experiências de convi-
vência entre diferentes, de socialização e de individualização. Nessas interações, que
podem ser tensas e conflitivas, que os sujeitos constituem-se como tal. Não é isolando
as crianças dos espaços sociais, privando-as dessas experiências que contribuiremos para
uma sociedade plural e democrática.
A concepção de educação e de relação pedagógica inerente à proposta de Educa-
ção Domiciliar é profundamente restritiva, limitada e reducionista. A ideia de
construção do conhecimento fica limitada à instrução no sentido de apropriação de
informações. A noção de formação e de construção do conhecimento é muito mais
complexa do que o domínio de informações. Isso implica debates, confrontos, refle-
xões. Há um discurso crítico em relação à escola que tem embasamento real, mas que
incorre numa simplificação perigosa. O docente precisa de uma preparação densa e
qualificada em relação aos conteúdos, mas também uma preparação pedagógica para
trabalhar com os alunos na construção de conhecimentos. Como tudo isso vai ser de-
senvolvido no âmbito familiar? Quem elaborará a proposta pedagógica? Quem irá
implementá-la? Qual o papel do Estado? Como fica a socialização e a individualização
de crianças e adolescentes privados das relações interpessoais? São questões complexas
que precisam ser levadas a sério. É fundamental que se coloque em pauta os direitos
das crianças e adolescentes a uma educação escolar de qualidade, além de atentar para
os riscos de aprofundamento das desigualdades já existentes tanto na sociedade quanto
na escola. São questões desafiadoras que precisam ser pautadas. Certamente, os defen-
sores da Educação Domiciliar não estão contribuindo para qualificar a educação escolar
e nem superar os limites da escola pública.
Notas
1
É importante distinguir conservador de reacionário. O conservador tende a defender certos valores
herdados da tradição e resistir às mudanças. O reacionário tende a defender ideias e propostas que
implicam retrocessos em relação aos avanços conquistados historicamente.
2
O autor entende a anomia social como ausência de normas que produzem a coesão social. Uma
sociedade sem um mínimo de normas compartilhadas socialmente tende a desintegrar-se.
3
Para Durkheim, o objeto da Sociologia é o fato social. Ele desenvolve um conjunto de argumentos na
obra As regras do método sociológico (1987), detalhando o que entende por fato social e os
procedimentos científicos a respeito. Define fato social a partir de três características fundamentais:
exterioridade, generalidade e coerção. Fato social, conforme Durkheim, não é todo fenômeno que se
passa no interior da sociedade, mas o que possui Exterioridade (o fato social é exterior ao indivíduo
porque existe independentemente da vontade e da consciência individual, ou seja, tem materialidade),
possui generalidade (o fato social não está circunscrito a uma determinada experiência, mas é geral e
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comum à humanidade ou às sociedades) e tem poder de coerção (o fato social impõe-se sobre os
indivíduos, independente das suas vontades).
4
Uma das críticas feitas à compreensão de educação em Durkheim é que ela negaria a liberdade do
indivíduo. Essa tese não se sustenta, segundo Vares, visto que, para Durkheim, a “autoridade que o
meio social exerce é condição sine qua non para o desenvolvimento de uma personalidade autônoma”
(2001, p. 34).
5
Denominação referenciada internacionalmente para o fenômeno dos pais que promovem diretamente
a educação de seus filhos, no Brasil, mais conhecido como educação domiciliar.
6
O Projeto de Lei n. 2401/2019 (BRASIL, 2019), acompanhado da EMI 19/2019, aponta que: “a
expressão ‘educação domiciliar’ pode induzir a uma interpretação equivocada, com foco no local onde
a educação ocorre, como se fosse restrita ao ambiente do lar. Na verdade, o processo de formação dos
estudantes de famílias que optam por esse tipo de educação costuma ser realizado em locais diversos e
inclui, com frequência, visitas a bibliotecas públicas, a museus, passeios pela cidade e pela região, em
áreas urbanas ou rurais. Desse modo, é importante adotar-se o conceito baseado em seu aspecto
essencial: educação domiciliar consiste no regime de ensino de crianças e de adolescentes, dirigido
pelos pais ou por responsáveis”. Porém, essa afirmação não leva em conta as condições locais de acesso
a esses espaços e a existência deles.
7
Fundamentadas nos artigos 205 a 210 da Constituição Federal (BRASIL, 1988), artigos 1.º a 7.º da
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996) e os artigos 1.º ao 6.º e 93 a 97, do
Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990). Que definem como e o local em que a educação
será realizada.
8
Fonte: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor
=723417&filename=PEC+444/2009>. Acesso em: nov. 2022.
9
Disponível em: https://www.brasilparalelo.com.br/artigos/o-que-e-homeschooling. Acesso em: nov.
2022.
10
Disponível em: https://edbrasil.org/material-didatico-para-homeschooling/. Acesso em: 25 nov. 2022.
11
Disponível em: https://www.aned.org.br/index.php. Acesso em: 25 nov. 2022.
12
Disponível em: https://www.cenpec.org.br/wp-content/uploads/2022/05/Manifesto-17mai22-
corrigido.pdf. Acesso em: nov. 2022.
13
Disponível em: https://www.cenpec.org.br/noticias/nao-a-educacao-domiciliar. Acesso em: 23 nov.
2022.
14
Projeto de Lei número 2.401 de 2019 que dispõe sobre o exercício do direito à educação domiciliar,
altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), e a Lei nº 9.394,
de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional.
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As práticas de judicialização no cotidiano escolar:
atravessamentos entre a escola e o conselho tutelar
Prácticas de judicialización en la vida diária escolar: relaciones
entre la escuela y el consejo tutelar
Judicialization practices in school daily life: crossings between
school and tutelary council
Ingrid de Faria Gomes
*
Luiz Fernando Conde Sangenis
**
Pâmela Suélli da Motta Esteves
***
Resumo
O artigo tem como objetivo problematizar o processo de judicialização da vida escolar, na
contemporaneidade, a partir da análise das práticas e dos discursos produzidos nos atravessamentos
entre a escola e o conselho tutelar. Apesar de o conselho tutelar ser um órgão não jurisdicional, esses
atravessamentos têm sido operados por lógicas judicializantes, muitas vezes reguladas pela lógica
penal. Sob a orientação metodológica da pesquisa-intervenção, inspirada no método da cartografia,
e tendo como contexto de pesquisa o município de São Gonçalo (RJ), coloca-se em análise essas
relações sem o intuito de proferir juízos ou parâmetros de verdade. Para tanto, foi realizado
entrevistas semiestruturadas com conselheiros/as tutelares e pedagogas que atuam no conselho
tutelar, e observação do cotidiano de uma escola pública estadual, localizada no mesmo município,
acompanhada da tessitura do diário de campo. Com esses analisadores, destaca-se um conjunto de
forças presente para discutir a lógica judicializante e processo de capilarização do saber-poder jurídico
no espaço escolar que geram outros modos de regulação e de controle. Por fim, no exercício de
tensionar essas produções, convocam-se brechas que possam trazer à tona insurgências pela afirmação
da vida como potência.
Palavras-chave: judicialização; escola; conselho tutelar.
Recebido em: 15.05.2020Aprovado em: 18.02.2023
https://doi.org/10.5335/rep.v29i3.11023
ISSN on-line: 2238-0302
*
Doutoranda em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), bolsista Capes. Bacharela e Licenciada
em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0005-6920. E-mail:
ingridfgomes@gmail.com.
**
Doutor em Educação pela UFF, Professor Associado da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro - FFP/UERJ. https://orcid.org/0000-0002-2833-0365. E-mail: lfsangenis@gmail.com.
***
Doutora em Ciências Humanas e Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-RJ. Professora adjunta do
Departamento de Educação da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - FFP/UERJ.
Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação, Comunicação em Periferias Urbanas - PPGECC - UERJ/FEB. Orcid:
https://orcid.org/0000-0002-9555-2099. E-mail: pamelasme84@gmail.com.
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Abstract
The article aims to problematize the process of judicialization of school life in contemporary times
from the analysis of practices and discourses produced in the crossings between the school and the
tutelary council. Although the tutelary council is a non-jurisdictional body, these crossings have been
operated by judicializing logic, guided by criminal logic. Under the methodological orientation of
intervention research, inspired by the cartography method, and having the municipality of São
Gonçalo (RJ) as the research context, these relationships are analyzed without the intention of
making judgments or parameters of truth. For that, semi-structured interviews were carried out with
guardianship counselors and pedagogues who work in the guardianship council, and observation of
the daily life of a state public school, located in the same municipality, accompanied by the fabric of
the field diary. With these analyzers, a set of forces stand out to discuss the judicializing logic and
the capillarization process of legal knowledge-power in the school space that generate other modes
of regulation and control. Finally, in the exercise of tensioning these productions, gaps are called for
that can bring up insurgencies for the affirmation of life as a power.
Keywords: judicialization; school; tutelary council.
Resumen
El artículo tiene como objetivo problematizar el proceso de judicialización de la vida escolar en la
contemporaneidad a partir del análisis de prácticas y discursos producidos en los cruces entre la
escuela y el consejo tutelar. Si bien el consejo tutelar es un órgano no jurisdiccional, estos cruces han
sido operados por la lógica judicializadora, guiada por la lógica penal. Bajo la orientación
metodológica de la investigación de intervención, inspirada en el método de la cartografía, y teniendo
como contexto de investigación el municipio de São Gonçalo (RJ), estas relaciones son analizadas
sin la intención de hacer juicios o parámetros de verdad. Para ello, se realizaron entrevistas
semiestructuradas a orientadores de tutela y pedagogos que actúan en el consejo de tutela, y
observación del cotidiano de una escuela pública estadual, ubicada en el mismo municipio,
acompañada del tejido del diario de campo. Con estos analizadores, se destaca un conjunto de fuerzas
para discutir la lógica judicializadora y el proceso de capilarización del saber-poder jurídico en el
espacio escolar que generan otros modos de regulación y control. Finalmente, en el ejercicio de
tensionar estas producciones, se convocan resquicios que pueden suscitar insurgencias por la
afirmación de la vida como poder.
Palabras clave: judicialización; escuela; consejo tutelar.
A lógica de judicialização da vida e a produção de controles no espaço
escolar
A judicialização da vida vem se intensificando no cenário contemporâneo brasi-
leiro, marcando modos de convivência e afirmando práticas de julgamento e de
criminalização das condutas em diferentes esferas sociais, inclusive, no campo da Edu-
cação. Diante disso, algumas indagações provocam a pensar: como se configura a
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judicialização da vida escolar hoje? Como se tornou um tema em voga no nosso tempo
presente? Quais forças seguem atuando nesse processo? Que significações e efeitos isso
produz?
Uma das âncoras, talvez, com maior visibilidade e expressividade da judicializa-
ção é a tendência em associar, estritamente, o conceito judicialização com a ideia de
encaminhamento de situações-problema da vida cotidiana para instituições superiores
especializadas que prezam por preceitos legalistas, afirmando/fiscalizando condutas em
nome da lei, para proferir uma sentença final diante de um “caso”.
Para estender esse fio condutor, é possível problematizar a lógica judicializante
percebendo-a o quanto está presente em nós, de forma naturalizada, quando nossos
atos são conduzidos por vertentes de enquadramento, de classificação, de punição, de
denúncia, de julgamento de si e dos outros. Tal lógica, marcada por modelos judiciá-
rios, se espraia nos espaços da vida social, como nas escolas. O clamor social
reivindicando, constantemente, por justiça, por castigos, por leis, por práticas punitivas
constituem a “adesão subjetiva à barbárie” (BATISTA, 2012, p. 308) que capilariza o
funcionamento de procedimentos judiciários no tecido social, perpetuando um modo
de policizar/legislar/tribunalizar a vida humana.
Com Nascimento (2014, p. 460), entendemos a judicialização da vida como
“[...] uma construção subjetiva que implanta a lógica do julgamento, da punição, do
uso da lei como parâmetro de organização da vida”. Por essa via de pensamento, a
judicialização opera como um modo subjetivo impulsionado por um conjunto de for-
ças que engendra e conforma a gestão da vida, sob a égide hegemônica da lei. Há uma
proliferação do exercício de tribunais cotidianos que conjuga a tríade vítima, cul-
pado/a e juiz para deliberar uma sentença, com base nos preceitos de uma lógica
judiciária e nas práticas de julgamento moral, de tal modo “fazendo-nos ora juízes, ora
acusados, algozes e vítimas, alimentando um sem fim de repetições modorrentas que se
espelham e reproduzem as práticas do tribunal” (AUGUSTO, 2012, p. 33).
A racionalidade jurídica se expande produzindo práticas ditas protetivas, que
operam pela regulação e culpabilização das condutas. A judicialização, sustentada por
forças que convocam e moldam modos de existir, produz subjetividades judicializadas,
institucionalizando-as. Ao ser aplicada a lei, num movimento atrelado ao enquadra-
mento, há o acionamento de uma forma padronizada, regulando desejos e definindo
modelos como, por exemplo: a definição do papel da família, das práticas disciplinares
dentro da escola, do que se entende como justo, enfim. Dessa forma, a lei instaura uma
concepção naturalizada de vida judicializada. Em outras palavras, a judicialização de-
fine modos de vida e de existência no bojo da tradição legalista.
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Há uma participação coletiva na cultura da vigilância, do julgamento e na busca
por culpados/as disseminada no espaço escolar, que não é protagonizada apenas pela
gestão da escola, mas clamada por estudantes e suas famílias. “O sistema de punições e
recompensas se ampliou com uma nova e mais eficiente linguagem de normas e leis,
tornando, com isso, menos nítida sua face temerosa, pelo estímulo à participação
(PASSETTI; AUGUSTO, 2008, p. 88). Nesse modo mais sofisticado, as práticas
dos/as estudantes se alinham ao governo das condutas sob o regime da norma e da lei
(FOUCAULT, 2010), fazendo funcionar o constante controle no espaço da escola. De
maneira capilar nesse fluxo, o controle se horizontaliza naturalizando a judicialização
da vida. As câmeras e os procedimentos que subjazem a ela compõem mais um espectro
na arte do enquadramento.
A instituição escolar segue ocupando um lugar estratégico nos processos de regu-
lamentação da vida, operando como dispositivo com suas práticas judicializantes.
Conforme Heckert e Rocha (2012, p. 86), “A escola constitui-se como um dos dispo-
sitivos do poder disciplinar, atuando de forma estratégica no aumento da capacidade
produtiva dos corpos e de sua capacidade política de resistência”.
Na obra Microfísica do poder, Foucault (1979, p. 244) define o dispositivo como:
A intervenção está associada à construção e/ou utilização de analisadores, conceito-ferramenta,
formulado no percurso do institucionalismo francês, que funcionam como catalizadores de
sentido, desnaturalizando o existente e suas condições e realizando a análise (ROCHA; AGUIAR,
2003, p. 71).
Nessa linha metodológica, colocamos em análise os efeitos das práticas e dos dis-
cursos dos/as conselheiros/as tutelares que atuam no município de São Gonçalo,
localizado no estado do Rio de Janeiro, a partir da realização de entrevistas semiestru-
turadas
2
com os/as mesmos/as, em 2017. O roteiro das entrevistas direcionados aos/às
conselheiros/as foi formulado a partir de cinco blocos temáticos, sendo eles: 1) trajetó-
ria profissional dos/as entrevistados/as; 2) o contexto dos conselhos tutelares de São
Gonçalo (RJ); 3) a relação do conselho tutelar com as escolas no município; 4) a com-
preensão sobre judicialização; 5) considerações finais. Assim, buscou-se identificar
aspectos que colaborassem para compreender os motivos pelos quais as escolas acio-
nam/encaminham demandas ao conselho tutelar, bem como compreender a concepção
dos/as conselheiros/as e das pedagogas diante dessas demandas.
O processo de escolha dos/as sujeitos/as entrevistados/as se deu por conveniência.
O primeiro contato se deu presencialmente, com ida aos conselhos tutelares sendo,
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ao todo, três unidades em São Gonçalo (RJ) que atendem as diferentes áreas de abran-
gência do município , junto com uma Carta de Apresentação, concedida pela
coordenação do programa de pós-graduação ao qual a pesquisa estava vinculada, para
marcar agendamento com conselheiros/as e pedagogas. Tal procedimento se estabele-
ceu de acordo com a disponibilidade e predisposição do/a conselheiro/a e pedagoga,
que estava presente no dia da visita, a conceder a entrevista em outra data, a ser agen-
dada. A princípio, o interesse era entrevistar somente conselheiros/as, mas a ideia de
entrevistar pedagogas decorreu de sugestões dos/as próprios conselheiros/as por se tra-
tar de questões vinculadas às escolas.
Foram entrevistados/as um membro de cada conselho tutelar após agendamento
prévio. Todas as entrevistas foram realizadas nas salas de atendimento do conselho tu-
telar, com duração de aproximadamente 1 hora, registradas em gravação de áudio.
Posteriormente, as entrevistas foram transcritas na íntegra e revisadas. Asseguramos os
preceitos da ética da pesquisa, com destaque para o Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido que foi firmado em comum acordo entre a pesquisadora e os/as entrevista-
dos/as, garantindo o anonimato e a confidencialidade.
Para tanto, ressaltamos que o interesse aqui não é o de colocar em questão a
validade do que foi dito nem proferir juízos, mas sim desdobrar o que isso possibilita
como problematização na produção de rupturas, de implicações e de atravessamentos
nesses territórios. De antemão, algumas questões nos instigaram: quais demandas das
escolas chegam ao conselho tutelar? Como o conselho tutelar se posiciona diante dessas
demandas e que formas de encaminhamentos são ativadas? Quais produções de subje-
tividades circulam nesses territórios com os indivíduos que ali habitam? O que por
entre as vias e os entrelaçamentos entre a escola e o conselho tutelar torna-se judiciável?
Com essas inquietações e tendo como objetivos compreender as relações entre
a escola e o conselho tutelar tendo em vista a produção da judicialização; e problema-
tizar como se configuram as práticas judicializantes na escola, também buscamos
aproximação com a escola, e não no sentido de descobrir uma fonte de verdade entre
essas instituições. Para isso, também foi realizado a observação do cotidiano de uma
escola pública estadual de São Gonçalo (RJ), acompanhada da tessitura do diário de
campo.
As práticas cotidianas do conselho tutelar e da escola, assim como, as relações
que se atravessam entre esses dois territórios produzem efeitos e subjetividades que estão
continuamente em processos. Tais processos não estão dados, fechados nem completos,
mas sendo construídos historicamente ao longo dos tempos.
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Atravessamentos entre a escola e o conselho tutelar: as práticas
de judicialização
A partir da promulgação da lei 8.069 de 13 de julho de 1990, que dispõe sobre
o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), foi impulsionado um processo de rup-
tura com a histórica trajetória de autoritarismo adotado nas políticas públicas brasileiras
voltadas para a infância e juventude. Prezou-se pela descentralização do poder político-
administrativo e por princípios participativos, com a cooperação da sociedade civil.
Nesse contexto de abertura de espaços democráticos, temos o caso inovador da pro-
posta de criação do conselho tutelar com atuação direta no município, articulado por
cinco conselheiros/as eleitos/as pelo voto popular. O conselho tutelar representa um
órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, cujas funções correspondem à pro-
teção e à garantia integral do cumprimento dos direitos legais previstos no ECA em
toda a sociedade.
Com efeito, a ideia da criação desse órgão executivo municipal pautou-se em
uma prática não judiciária do atendimento de direitos individuais ou coletivos violados
(ou sob ameaça de violação) atinente ao referido público. Pois o poder de representação
cabe aos/às conselheiros/as tutelares, eleitos/as pela sociedade civil através do voto po-
pular para atuarem com autonomia nas práticas de garantia de direitos infantojuvenis.
Cabe ao conselho tutelar receber denúncias (muitas das vezes, anônimas) e reali-
zar os encaminhamentos das respectivas notificações, quando necessários, aos órgãos
de assistência, ao Juizado da Infância e da Juventude, ao Ministério Público ou a qual-
quer outro órgão que dispõe de serviços à sociedade para que os direitos sejam
garantidos. Em contrapartida, a lei prescrita está vinculada com as práticas do Poder
Judiciário, “[...] como um dispositivo produtor de discursos, de verdades, de domina-
ção, de possibilidades virtualidades constituintes de novas formas de subjetividades”
(SCHEINVAR, 2009, p. 73). Quem, pretensamente, não se enquadra à lei, ao violar
preceito legal, é passível de sofrer as punições previstas, o que corresponderia à aplicação
da justiça. A lei para ser aplicada reclama as práticas do poder judiciário. Tal perspectiva
também se torna corolária às práticas do conselho tutelar. Diante disso, como seria a
atuação deste órgão para aplicar a lei desvinculando-se das práticas do Judiciário? Ape-
sar de ser um órgão não jurisdicional, muitas das práticas dos sujeitos que ali atuam se
revelam pautadas na lógica jurídica, conforme afirmam, Nascimento e Scheinvar
(2007), sobre a juridicialização das práticas, que a:
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[...] presença de modelos de atuação característicos do Poder Judiciário, que acabam sendo
adotados, mesmo em espaços que não detêm tal poder, mas que, por serem revestidos de certa
autoridade e terem como fundamento para a sua prática o termo da lei, assumem tais formas
como as adequadas para o seu exercício. Do nosso ponto de vista, é esta a lógica que tem pautado
algumas das práticas dos conselhos tutelares (NASCIMENTO; SCHEINVAR, 2007, p. 153).
A criação do conselho tutelar remete à tentativa de desjudicialização, tendo os
seus agentes nomeados pela sociedade civil, para garantir a proteção de direitos às cri-
anças e adolescentes. O que se apresenta, porém, é um conjunto de procedimentos
regulamentadores da vida escolar que enquadram os conflitos em legislações e norma-
tizações construídas fora do espaço escolar, fortalecidas pela lógica judicializante. O
conselho tutelar é uma ponte entre a escola e as instâncias jurídicas no caminho da
judicialização. Há um entrelaçamento do campo pedagógico com o campo jurídico,
mediante ações de tecnologias de coerção e vigilância das ações infantojuvenis. Por essa
ponte, algumas situações tomam relevo na discussão.
Um dos encaminhamentos mais notórios realizado pela escola ao conselho tute-
lar é a comunicação de infrequência, através da nomeada FICAI (Ficha de
Comunicação de Aluno Infrequente), que se refere aos/às estudantes ausentes às aulas,
com um sucessivo número de faltas. As escolas, paradoxalmente, têm recorrido aos
conselhos tutelares, não apenas com o intuito de informar as faltas reiteradas de seus
alunos, mas também de atribuir ao órgão municipal a tarefa de perquirir as famílias
sobre as causas das referidas faltas das/os estudantes. Não obstante realizarem essa ta-
refa, os/as conselheiros/as entrevistados/as afirmam que a atribuição dessa tarefa, antes,
caberia com maior propriedade às escolas e não ao conselho. Trata-se de exemplo des-
crito pelos/as conselheiros/as da patente abdicação que fazem as escolas em cumprir o
seu papel pedagógico. O recurso ao conselho significa que as questões intraescolares,
ainda que atinjam aos/às responsáveis dos/as estudantes e a comunidade, deixam de ser
resolvidas pelas dinâmicas particulares da instituição escolar, privando-as de trato mais
adequado e eficiente. Diante da FICAI, o procedimento acionado pelo conselho tutelar
se dá através de advertências aos/às responsáveis sob a justificativa de que todos/as fi-
lhos/as em idade escolar devem obrigatoriamente frequentar a escola. Nas palavras da
conselheira Rosana
3
durante a entrevistada, é afirmado:
E evasão escolar também é muito alta, que a gente chama aqui de FICAI (Ficha de Aluno
Infrequente), que essa ficha a escola encaminha pra gente. A gente vai até a residência, a gente
notifica os responsáveis pra saber o porquê essa criança ou adolescente não está indo. Que às
vezes eles mudam de bairro, de escola e não avisa. Aí, por isso que a estatística acaba aumentando
muito e às vezes nem é a realidade. Mas a evasão escolar aqui é muito alta. (conselheira Rosana).
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O procedimento pautado na notificação aos/às responsáveis se apresenta como
um mecanismo de fiscalização. Dependendo da quantidade de notificações, a punição
é agravada. A culpa recai sobre os/as responsáveis que não se encarregam dessa atribui-
ção. Na mesma perspectiva de garantir a obrigatoriedade de frequência à escola, outra
demanda que chega ao conselho tutelar, por parte das famílias, é a falta de vagas na
escola.
[...] o responsável vai até a escola, fala que não tem vaga. Não tem vaga. Então, se
ele ficar nessa que não tem vaga, ele volta pra casa e a criança não estuda. Aí,
quando vem aqui, a gente faz uma solicitação porque é garantia de direito. A gente
tá aqui pra garantir o direito da criança e do adolescente estudar. Não era pra ser
assim, eles não precisavam ter vindo aqui, né, mas como a gente tá aqui pra
garantir, a gente vai, faz a solicitação, aí consegue a vaga pra pessoa que veio aqui.
Só que, geralmente, às vezes, não é perto de casa, como manda o estatuto,
também. Às vezes, consegue garantir o direito de estudar, mas não na escola mais
próxima. (conselheira tutelar Rosana).
É uma das atribuições do conselho tutelar assegurar o direito à educação. Con-
tudo, no mesmo momento em que o direito à educação é instituído, paradoxalmente,
ele é obstaculizado por barreiras que impedem o/a estudante de matricular-se em uma
escola próximo à sua residência. A distância de casa exige que o/a estudante dependa
de transporte público, não raro necessitando de duas conduções para realizar um dos
traslados até a escola. São notórias as condições dos transportes públicos na cidade de
São Gonçalo, restritas ao transporte rodoviário realizado por ônibus: atrasos nos horá-
rios, longos intervalos, poucos veículos circulando dependendo da linha. Segundo o
IBGE, São Gonçalo, a segunda cidade mais populosa do estado do Rio de Janeiro, tem
o maior fluxo de trabalhadores do estado e o segundo do Brasil. Cerca de 120 mil
trabalhadores se deslocam diariamente em direção a Niterói e ao Rio de Janeiro, de
modo a provocar engarrafamentos diários e ônibus superlotados (G1, 2015). Em espe-
cial, os que têm direito à gratuidade, como no caso dos/as estudantes da rede pública
de ensino, muitas vezes, são ignorados/as nos pontos de ônibus ou enfrentam outras
dificuldades no embarque, a exemplo da citada superlotação. Para além do direito à
educação, aqui, nos deparamos com o problema da restrição ao direito à cidade para
pessoas com menor poder aquisitivo. É preciso colocar em questão: trata-se de uma
forma efetiva de direito à educação ou mais uma produção de controle? O que significa
ser sujeito de direitos diante da ausência de igualdade de condições sociais para perma-
nência na escola?
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A afirmação de que todos/as devem frequentar obrigatoriamente a escola advém
de um momento histórico em defesa da suposta democratização da educação. É um
dos direitos assegurados na Constituição Federal do Brasil de 1988. O que estaria im-
plicado na justificativa da imposição pela cobrança da frequência regular à escola? Mais
uma questão entra nesse embate: o sentido da cobrança seria, de fato, uma forma de
garantir e assegurar um direito legal ou se trataria de mais um dos procedimentos de
controle e vigilância sobre a escola e as relações entre famílias e estudantes, segundo
interesses do Estado, por meio do ECA e da Constituição?
Há um flagrante descompasso entre a afirmação do “direito à educação” e a rea-
lidade do cotidiano das escolas. No espaço escolar, há estudantes em séries destoantes
do seu nível de aprendizagem. O/a estudante segue avançando nas séries, mas não al-
cança o conhecimento considerado básico da leitura e da escrita. A escola projeta a
carga da dificuldade de aprendizagem sobre o/a próprio/a estudante, culpabilizando-
o/a e fazendo-o/a sentir-se incompetente. Essa estratégia exime a responsabilidade de
dimensão social, política e econômica, ao passo que produz no/na próprio/a estudante
o sentimento de culpa e incompetência. O que se destaca é a prioridade na promoção
e não na aprendizagem.
À escola é atribuída a função de servir de espaço de socialização e lugar de prepa-
ração dos estudantes para a inserção no mercado de trabalho, por meio do controle das
condutas, de modo que se tornem produtivos/as na sociedade capitalista. A garantia do
sucesso parece depender da inserção no mercado de trabalho, mesmo que seja em con-
dições precarizadas, situação que certamente minora a cobrança social da qualificação
do processo de ensino-aprendizagem na formação escolar.
A escola e o conselho tutelar configuram territórios que Foucault (2003) definiu
como instituições de sequestro, ou seja, que controlam os corpos e o tempo em nome
da força produtiva. Conforme afirma: “Que o tempo de vida se torne tempo de traba-
lho, que o tempo de trabalho se torne força produtiva; tudo isto é possível pelo jogo de
uma série de instituições que esquematicamente, globalmente, as define como institui-
ção de sequestro” (FOUCAULT, 2003, p. 122).
Em entrevistas realizadas com conselheiros/as, foi informado que muitos enca-
minhamentos das escolas ao conselho tutelar estavam relacionados com casos de
bullying, como mencionado neste trecho relatado:
Agora, assim, bullying sempre existiu. Só que agora tá em alta, né? Virou moda.
Então, tem muitos casos de bullying na escola, muita coisa. [...] É, porque ela não
aguentava mais a colega falar sobre algo no corpo dela, e aquilo foi passando. Foi
passando, até que um dia ela projetou que aquilo ia acabar. Como que acabaria
isso? Ela machucando a colega. Graças a Deus, não chegou até o final.
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Contaram. Alguma coleguinha contou pra professora, a coordenadora, não recordo,
que fulano estava com algo cortante na mochila. Aí, elas não podem mexer, né. E
aí, ela foi chamada na secretaria. A menina mesmo mostrou que estava. E aí, a
ronda escolar junto com a direção, mais a família vieram aqui no conselho. [...]
Graças a Deus que a outrazinha que se sentia ameaçada, que levou o canivete, não
conseguiu chegar até o final com o tal do canivete. [...] A gente ouve. A gente quer
saber o que tá desencadeando isso na cabeça de uma criança, de uma adolescente
dessa. Chegar ao ponto, né. Antigamente, briga era o quê? Puxar o cabelo, gritar.
Hoje, não. Hoje já partem pra arma mesmo, né, porque isso é uma arma, arma
branca. E aí, nós chamamos a família, notificamos a família, as duas famílias, né,
são ouvidas. Passamos, aí vai pra pedagoga, vai pro psicólogo, se precisa de
acompanhamento. Tudo aqui dentro. Se a psicóloga avaliar que precisa estender
esse acompanhamento, ela vai dar o encaminhamento e a família vai dar, mas a
gente tá por trás, e a escola junto com a gente, sempre. Não é chegar aqui e toma.
(conselheira tutelar Helene).
O termo bullying, tão presente na voz dos/as profissionais da educação e dos/as
estudantes, também é evocado pelos/as conselheiros/as como um dos exemplos de en-
caminhamentos acionados pela escola e pelas famílias dos/as estudantes. A lógica
naturalizada do termo é reproduzida pelos discursos generalizados da mídia que o faz
funcionar como parâmetro de verdade. A banalização do termo se materializa com as
expressões “agora tá em alta” e “virou moda”. Refere-se às situações de violências, hu-
milhação, enfrentamentos e comportamentos rotulados como agressivos que ocorrem
no espaço escolar entre as/os estudantes. Que modos de subjetivação são produzidos
por esses discursos naturalizados? Quais as implicações e os efeitos disso?
Há um efeito de verdade construído por esses discursos traduzido na naturaliza-
ção do bullying no espaço escolar. A ênfase no termo traz à cena o sujeito marcado
como vítima ou agressor: os chamados violentos, agressivos, de um lado, e do outro,
como vítimas ou coitados. Assim, para o agressor, o procedimento é o da punição e
para vítima, o da proteção. Deste modo, a escola é estigmatizada como espaço de vio-
lência, de perigo e de risco que necessita de intervenção dos conselhos tutelares, da
Ronda Escolar
4
e da justiça para lidar com essas situações. Nas palavras de Marafon
(2013, p. 113):
Junto à afirmação de bullying, afirmam-se lugares estanques, essencializados e
opostos, tais como as noções de criança vítima e agressor, as quais, por sua vez,
retroalimentam a lógica binária que as sustenta, pois são constantemente evocadas
para legitimar e comprovar a existência de bullying (já sob um enquadre estanque
e restrito).
O episódio narrado acima trata de uma situação de risco iminente à integridade
física de uma adolescente que poderia ser atingida por um canivete por outra colega de
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classe. Uma estudante estava sofrendo de forma recorrente com comentários sobre o
seu corpo feitos por uma colega de classe. Depois disso acontecer de forma insistente,
ela reagiu com um ato violento, com a tentativa do uso de um canivete. A reação da
estudante não significa que ela em si seja rotulada como violenta. O auge da insupor-
tabilidade por ser atacada verbalmente conduziu a sua reação. A situação tomou
proporções que fizeram a escola acionar a Ronda Escolar, o conselho tutelar e a família.
Após o ocorrido, essas instâncias foram acionadas para buscar soluções. Não nos inte-
ressa aqui problematizar o ocorrido por um viés de prevenção ou de prestar alguma
solução, mas questionar lógicas impregnadas. Chama-nos atenção o interesse “em saber
o que tá desencadeando isso na cabeça de uma criança, de uma adolescente dessa” (con-
selheira Helene). Por essa ótica, parece que o problema é de dimensão
psicológica/neurológica. Busca-se a causa de um modo individualizado. Não foi colo-
cada em questão a contínua perturbação que a adolescente vinha sofrendo com o seu
corpo. A situação ficou focada na reação da adolescente que usou o canivete, num en-
quadramento de bullying. Para as consideradas vítima e agressora, é comum o
encaminhamento a profissionais especialistas de tratamento psicológico e/ou psiquiá-
trico.
Outro aspecto relevante diz respeito às culpabilizações e às rotulações sobre as
famílias dos/as estudantes, sendo comumente chamadas como “desestruturadas” e/ou
“negligentes”.
[...] que que tá acontecendo hoje que eu percebo, nós percebemos no conselho.
Tudo começa na família, né. Uma família que não tá estruturada, você acaba
trazendo uma criança, um adolescente não estruturado e aí acaba berrando. E aí,
não é transferência de papel, mas aí a família não consegue, joga pra escola ou pra
igreja, que seja, mas aqui [na entrevista] o foco é escola. A escola, hoje em dia,
mais ainda, está cada vez mais se sentindo limitada, né, e por pouco, por pouco que
consegue já joga pro conselho, né. (conselheira tutelar Helene)
Uma forma da gente ter de ajudá-los [criança e adolescente], muitas das vezes, a
sair dessa situação de agressão, de drogas, de abandono, né, porque muita das
vezes, os pais são mais negligentes que os filhos. (conselheiro tutelar Tadeu)
Os discursos das/o conselheiras/o são um modo simplista de categorizar a origem
de algum problema que chega ao conselho tutelar, estigmatizando as famílias que não
correspondem ao modelo hegemônico estabelecido na sociedade capitalista, com con-
dições socioeconômicas definidas como inadequadas. A falta de responsabilização da
família é o alvo para justificar a conduta desviante do/a estudante. Por esse modelo, se
entende que a conduta é desviante porque a família não soube cuidar, desconsiderando
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o seu contexto social enquanto problema estrutural. A todo instante a cobrança recai
sobre a família (idealizada) por não ter se responsabilizado pela educação de seus/suas
filhos/as. Cabe também questionar o que significa família e a composição idealizada de
família no ECA. Afinal, quais parâmetros enquadram o que se chama de família na
perspectiva de atuação do conselho tutelar, da escola e do Estado?
Sendo este “ideal” de família,
“[...] calcado no modelo burguês-cristão que prima pelas boas condições financeiras, morais e
religiosas [...] o processo de desqualificação das famílias pobres que, pela condição de
miserabilidade em que vivem, perdem a tal dignidade por se encontrarem, na maioria das vezes,
distantes do referido ‘padrão ideal” (BARBOSA et al., 2002, p. 202).
Portanto, é um ideal de família que atende aos interesses do Estado.
Esse modo de operar na interlocução do conselho tutelar entre a escola e a família
é o que compreendemos como “individualização das questões sociais
(NASCIMENTO; SCHEINVAR, 2010, p. 27), ou seja, um modo de intervenção com
referência na competência técnica: “[...] o conselheiro se apega à sua autoridade, às suas
verdades particulares, aos seus princípios morais, por serem as únicas possibilidades ou
os recursos disponíveis” (NASCIMENTO; SCHEINVAR, 2010, p. 29). Por esse
modo se produz a desqualificação da família pobre/vulnerável e a sua negação enquanto
uma outra possibilidade de configuração familiar.
O conselho tutelar opera pela regulação, disciplinarização e controle das condu-
tas das famílias que recorrem ao órgão ou que são encaminhadas pelas escolas por meio
de mecanismos de enquadramento. A lógica dos direitos prescritos no ECA é uma es-
tratégia de controle da vida das crianças, dos/as adolescentes e de suas famílias,
sobretudo pobres, aos interesses do Estado. Há uma ampliação de forças que fortalece
o Estado como interventor na regulação das vidas na sociedade capitalista. As técnicas
disciplinares se expandem na sociedade de controle travestidas por discursos de segu-
rança e proteção.
O discurso pautado na moralização das condutas familiares (e da sua condição
de pobreza) reproduz as mesmas lógicas de controle que são operadas pelo conselho
tutelar. “Entender a família como um espaço instrumental é uma maneira de despo-
tencializar o seu conteúdo político, a dimensão política inscrita tanto na relação interna
da família, quanto na relação que as formas de gestão política estabelecem com a famí-
lia” (SCHEINVAR, 2008, p. 2).
O recurso da judicialização das relações escolares despotencializa a instituição
escolar, provocando um esvaziamento da autonomia da escola quando episódios de
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conflitos e de outras naturezas entre estudantes ou entre estudantes e profissionais da
educação se deslocam cada vez mais do campo pedagógico para o campo (não) jurídico,
mediante a ações de tecnologias de coerção, vigilância e criminalização das ações infan-
tojuvenis. O conselho tutelar acaba apresentando-se como uma instituição punitiva
que consolida a lógica homogeneizadora da escola e desqualifica a sua função de acon-
selhamento.
Percebemos o temor que existe por parte dos/as estudantes e das famílias em
relação ao conselho tutelar devido ao caráter punitivo, como é caracteristicamente re-
conhecido. Essa observação se fez presente em todas as entrevistas. Enfatizam o medo
sentido pelas pessoas quando se fala sobre conselho tutelar ou quando veem os/as con-
selheiros/as ou sua equipe técnica.
Até porque quando chega o conselho [na escola], o conselho [tutelar] tem uma
imagem às vezes ruim pra criança e adolescente. Ela acha que ele vai chegar e vai
prender eles. E que não é esse, a gente tá lá pra garantir o direito deles. É o
contrário.
A gente chega na porta da escola com o carro escrito “conselho tutelar”, pra eles é
um pavor. E, na verdade, a gente tá ali a favor dele [estudante]. Não tá ali contra
ele, entende? Às vezes, a gente tenta reverter essa história porque quando a criança
e o adolescente tá fazendo alguma coisa em casa, e fala assim: ‘olha, eu vou
chamar o conselho tutelar pra te levar’, que não é verdade. Conselho tutelar não
leva ninguém. (conselheira tutelar Rosana)
Tal narrativa aborda as referências que a população tem sobre o conselho tutelar:
terror, medo, prisão, denúncia, punição, etc. É instigante pensar sobre essas impressões
acerca do órgão, uma vez que o sentido de punição e de criminalização se afasta da ideia
do conselho tutelar como um lugar de condição para o aconselhamento, para a reivin-
dicação ou para a luta de um direito violado.
Considerações finais
No nosso tempo presente, o clamor social por punição e castigo e práticas de
denúncia e vigilância, com a crença na lei como referência da vida, têm conduzido o
processo de judicialização da vida como produção subjetiva. Com um conjunto de for-
ças atuantes, percebemos a expansão capilarizada, com ênfase nos territórios da escola
e do conselho tutelar, dos procedimentos análogos aos tribunais no cotidiano da vida
humana, que ditam a regulação e o controle das condutas.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Tendo em vista a reprodução análoga aos tribunais que operam com discursos e
práticas moralizantes, com sanções e com assujeitamentos diante desses fluxos cotidia-
nos nos mais diversos espaços da vida social, tivemos como interesse desdobrar as
problematizações e os efeitos nos atravessamentos entre a escola e o conselho tutelar,
percebendo a produção de posturas policialescas calcadas na lógica penal, com ênfase
nos trajetos de judicialização. Para além do reconhecimento de técnicas procedimen-
tais, como o encaminhamento de “casos” para instituições jurídicas, buscou-se
problematizar as lógicas judicializantes acionadas diante das questões escolares. Tais
lógicas endossam respostas por meio de práticas com base na ordem que pretende en-
quadrar a conduta de estudantes e de suas famílias. Contraditoriamente, a escola abre
mão de suas funções precípuas, ao transferir suas responsabilidades a agências externas,
prática que a despotencializa de sua autonomia no trato das questões pedagógicas, ao
mesmo tempo que enfraquece a dimensão política da instituição familiar.
Apostar na recusa à judicialização da vida nos convoca a abrir outras brechas,
pensar em outros planos de análise e reinvenções do conjunto de forças que permeia o
cotidiano escolar, rompendo, assim, com as capturas para mirar outros modos de exis-
tência que possam trazer à tona insurgências pela afirmação da vida como potência.
Notas
1
Segundo Lobo (2012), o conceito judiciável aparece em um artigo, pouco conhecido, intitulado “A
redefinição do judiciável”, produzido por Michel Foucault, e originalmente publicado em 1977, na
revista francesa “Justice”, referente a palestra realizada no Sindicato da Magistratura, no mesmo ano.
Por ocasião dos 20 anos da morte de Foucault, o texto foi reproduzido pela Revista Vacarme, em
2004.
2
As entrevistas foram realizadas no âmbito da pesquisa de mestrado intitulada “Educar e punir: a
judicialização da vida escolar” (GOMES, 2019).
3
Para garantir o anonimato dos/as entrevistados/as, foram dados nomes fictícios a todos/as os/as
conselheiros/as tutelares.
4
“O Grupamento da Ronda Escolar (GRE) foi criado no dia 11 de novembro de 1998, [...] para dar
proteção às escolas da rede municipal de ensino”. Disponível em:
https://www.rio.rj.gov.br/web/gmrio/ronda-escolar. Acesso em: 22 jan. 2020.
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Este artigo está licenciado com a licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
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A juridificação da vida e o ensino domiciliar em
questão
The juridification of life and homeschooling in question
La juridificación de la vida y la educación en el hogar en cuestión
Carolline Septimio
*
Marcio Pessoa
**
Resumo
Sabendo que o discurso em prol da prática dos pais em educar as crianças em um ambiente doméstico
ganha força no contexto educacional brasileiro, este artigo objetiva analisar as questões imanentes à
temática do ensino domiciliar como uma política pública educacional. O estudo é marcado por
análise da realidade brasileira, decompondo-se tanto em uma crítica social quanto uma investigação
sobre as premissas e condições da educação no país. Metodologicamente, o texto é dirigido mediante
análise qualitativa realizada em razão de pesquisa bibliográfica sobre os temas homeschooling e
escolarização, com ênfase na análise da evolução histórica feita por Honneth (2001; 2009; 2015) em
relação ao conceito de liberdade, bem como na análise sobre as patologias modernas decorrentes da
adoção de uma má compreensão sobre tal conceito. Chega-se à conclusão de que a prática do
homeschooling não corresponde aos anseios da sociedade atual por se tratar de política que isola a
criança e acentua as desigualdades sociais do país, na medida em que gera um déficit no
reconhecimento entre iguais.
Palavras-chave: homeschooling; educação; juridificação da vida; liberdade.
Recebido em: 15.10.2020Aprovado em: 18.02.2023
https://doi.org/10.5335/rep.v29i3.13901
ISSN on-line: 2238-0302
*
Professora Adjunta na Faculdade de Educação na Universidade Federal do Pará - (UFPA).
Doutora em Educação pelo Programa de
Pós-Graduação em Educação - (PPGE-2019) na linha Educação, Comunicação e Tecnologia da Universidade do Estado de Santa
Catarina (UDESC- 2015). Orcid: https://orcid.org/0000-0003-2669-3119. E-mail: carolpedagoga@yahoo.com.br.
**
Procurador da Universidade do Estado do Pará/UEPA. Mestre em Direito pelo Centro Universitário do Estado do Pará/CESUPA.
Orcid: http://orcid.org/0000-0002-3058-7792. E-mail: marciospessoa@gmail.com
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Carolline Septimio, Marcio Pessoa
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Abstract
Knowing that the discourse in favor of parents' practice of educating children in a domestic
environment gains strength in the Brazilian educational context, this article aims to analyze the issues
immanent to the theme of homeschooling as a public educational policy. The study is marked by an
analysis of the Brazilian reality, decomposing both a social critique and an investigation of the
premises and conditions of education in the country. Methodologically, the text is guided by
qualitative analysis carried out due to bibliographic research on homeschooling and schooling
themes, with emphasis on the analysis of the historical evolution made by Honneth (2009; 2015;
2001) in relation to the concept of freedom, as well as in the analysis about the modern pathologies
resulting from the adoption of a misunderstanding about this concept. It comes to the conclusion
that the practice of homeschooling does not correspond to the desires of today's society because it is
a policy that isolates the child and accentuates the country's social inequalities, insofar as it generates
a deficit in recognition among equals.
Keywords: homeschooling; education; juridification of life; freedom.
Resumen
Sabiendo que el discurso a favor de la práctica de los padres de educar a los hijos en el ámbito
doméstico cobra fuerza en el contexto educativo brasileño, este artículo tiene como objetivo analizar
las cuestiones inherentes al tema de la educación en el hogar como política educativa pública. El
estudio está marcado por un análisis de la realidad brasileña, descomponiendo tanto una crítica social
como una investigación de las premisas y condiciones de la educación en el país. Metodológicamente,
el texto se guía por el análisis cualitativo realizado a partir de la investigación bibliográfica sobre la
educación en el hogar y los temas de la escolarización, con énfasis en el análisis de la evolución
histórica realizado por Honneth (2009; 2015; 2001) en relación con el concepto de libertad, así
como como en el análisis sobre las patologías modernas resultantes de la adopción de un
malentendido sobre este concepto. Se llega a la conclusión de que la práctica del homeschooling no
corresponde a los anhelos de la sociedad actual porque es una política que aísla al niño y acentúa las
desigualdades sociales del país, en la medida que genera un déficit de reconocimiento entre iguales.
Palabras clave:
educación en el hogar; educación; juridificación de la vida; libertad.
Introdução
O presente trabalho tem como escopo analisar particularmente dois fenômenos:
a juridificação da vida e o homeschooling
1
no Brasil. A ideia inicial era trabalhar unica-
mente com a segunda temática, em uma perspectiva multidisciplinar. Ocorre que no
decorrer dos estudos nos pareceu evidente que a vontade das pessoas de praticarem o
ensino domiciliar como alternativa à crise vivenciada pelas escolas regulares decorre, ex
ante, de um processo muito maior, cunhado por Axel Honneth (2015) como a juridi-
ficação da vida.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Em nosso entender, a juridificação da vida retratada por Honneth significa o ato
de pautar, se não todas ou a maioria, mas pelo menos as decisões mais importantes do
cotidiano (ou, ao contrário, às vezes até atitudes triviais do dia a dia) com base em
postulados normativos criados e estabelecidos pelo Direito. Mal comparando, é como
se associássemos sempre o conceito de boa saúde e bem-estar às técnicas desenvolvidas
pela medicina tradicional, sobretudo a alopática, que se vale de vias medicamentosas
para curar desde as mais graves até as mais simples doenças vivenciadas pelas pessoas,
relegando em segundo plano outros conhecimentos e práticas do mundo da vida (como
a realização de exercícios físicos, a alimentação equilibrada, a higidez mental, a sociabi-
lidade e até mesmo outros tipos de técnicas terapêuticas).
E como o Direito moderno encontra na liberdade um de seus fundamentos de
validade, é comum que o conceito desse importante valor venha sendo alargado ou
tergiversado para legitimar alguns comportamentos puramente egoísticos ou para ga-
rantir privilégios indevidos sob a rubrica de direitos. Por outro lado, sabe-se que o
contrato social moderno defere ao Poder Judiciário a competência para dirimir os con-
flitos sociais, valendo-se para tanto dos ditos direitos estabelecidos pelo povo, motivo
pelo qual não é de se estranhar que fenômenos como a judicialização ou o ativismo
judicial estejam em moda, pois na verdade são substratos de todo esse processo denun-
ciado por Honneth.
Portanto, se por um lado o processo de juridificação da vida se compara à asso-
ciação da boa saúde à ciência médica, a judicialização é o ato de procurar o profissional
médico com frequência para se alcançar a boa saúde, no mais das vezes valendo-se de
remédios poderosos (como antibióticos) para resolver problemas menores ou até
mesmo sem problema nenhum, gerando patologias como a hipocondria ou a depen-
dências química medicamentosa.
No caso em análise, a hipótese é que a juridificação da vida e o homeschooling
sejam temas interligados a uma mesma patologia social típica da pós-modernidade,
qual seja, uma má compreensão da noção de liberdade pelo homem pós-moderno. A
discussão sobre homeschooling parece passar por esse caminho. Não é por outro motivo
que um dos principais argumentos da família homeschoolers é justamente a preservação
da “liberdade das famílias” na criação dos seus filhos. Da mesma forma, como não se
obtém consenso sobre o assunto no parlamento (justamente porque nesse lócus não
deve prevalecer a linguagem do direito posto já que ali se “cria o direito”, e sim de
todos os saberes que estão envoltos ao tema), não é de se estranhar que a controvérsia
sobre homeschooling tenha chegado ao órgão mais importante do Judicrio pátrio.
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Esse nos parece ser o ponto de partida. Com efeito, do ponto de vista epistemo-
lógico, a discussão poderia ser fundamentada por diversas perspectivas: histórica,
filosófica, política, econômica, sociológica, sistêmica, jurídica, entre outras.
Por opção metodológica, em um primeiro momento, optou-se por analisar os
temas sob uma perspectiva filosófica, escolhendo como referencial teórico o filósofo e
sociólogo alemão Axel Honneth (2009; 2015), em especial nas suas obras “Luta pelo
reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais”, na qual o autor constrói o
arquétipo de esferas de reconhecimento para o desenvolvimento da cidadania e “O
Direito da Liberdade”, quando desenvolve sua teoria de justiça contemporânea.
A escolha por Honneth se deu por várias razões: a uma, porque a obra do autor,
tido como sucessor de Jürgen Habermas entre os filósofos da Teoria Crítica, consoli-
dou-se como referência na filosofia política contemporânea, exercendo papel de
relevância no mundo ocidental, estando apta a ser utilizada para analisar as questões
sociais e públicas mais importantes da sociedade moderna. A duas, porque Honneth
elege justamente o valor da liberdade como central para o desenvolvimento de sua te-
oria da justiça em “O Direito da Liberdade”, o que por si só o credenciaria a dar o
suporte teórico a este trabalho. Mas o principal motivo é, sem dúvida, a sua precisão.
Honneth é um filósofo que busca, a todo o momento, a união da teoria com a prática,
sendo cirúrgico quando diagnostica as patologias da sociedade contemporânea decor-
rentes de uma compreensão insuficiente da dimensão do conceito de liberdade, o que
coincidirá diretamente com as nossas conclusões sobre o tema. A partir dos ensinamen-
tos de Honneth, será tematizado o problema da “juridificação” das questões sociais e
os reflexos desse fenômeno na sociedade, dando ancoragem ao debate central, a saber,
a prática do ensino domiciliar.
A questão sobre a liberação do homeschooling denota muito mais do que uma
simples discussão sobre os limites da autonomia privada das famílias ou mesmo sobre
a importância da escola, podendo desvelar uma má compreensão sobre as liberdades
individuais, resultando em uma série de problemas, incluindo patologias sociais e até
mesmo a má utilização do sistema político e de justiça.
Portanto, o artigo tem como objetivo geral analisar a teoria desenvolvida por Axel
Honneth e seus reflexos na discussão sobre a juridificação da vida privada e do homes-
chooling no Brasil. Como objetivos específicos, pretende-se: estudar a evolução do
conceito de liberdade em Axel Honneth e tematizar os problemas decorrentes da má
compreensão da liberdade (juridificação) sobre a questão do homeschooling no Brasil.
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Dito isso, o problema de pesquisa posto é: qual a relação entre as patologias so-
ciais identificadas por Axel Honneth na pós-modernidade com a atual discussão do
homeschooling como política pública?
Do embasamento teórico em Axel Honneth
Axel Honneth é um filósofo e sociólogo alemão, nascido em 1949, formado pela
Universidade de Bonn, na Alemanha, e atualmente professor na Universidade da Co-
lumbia, nos Estados Unidos e Diretor do Instituto para Pesquisa Social da
Universidade de Frankfurt (FUHRMANN, 2013), na Alemanha. De 1982 a 1983, foi
pesquisador bolsista junto a Jürgen Habermas, no Instituto Max Planck de Ciências
Sociais, em Munique e desde abril de 2001 é diretor científico do Instituto para Pes-
quisa Social da Universidade Johann Wolfgang von Goethe, Frankfurt.
Honneth integra a terceira geração de pensadores da Escola de Frankfurt, orbe
que difundiu um modo de pensar no início do século XX, chamado de Teoria Crítica
da Sociedade, que encontra em Max Horkheimer um dos seus primeiros idealizadores.
Integraram também o movimento nomes como Erich Fromm, Theodor Adorno, Leo
Löwenthal, Walter Benjamin, Herbert Marcuse, Jürgen Habermas, entre outros.
A Escola da Teoria Crítica nasceu com um viés nitidamente ideológico, de cunho
“esquerdista”, já que as principais referências de estudo eram as obras de autores comu-
nistas, como Karl Max, e seus objetivos iniciais eram explicar como se dava o modo de
organização e a consciência dos trabalhadores industriais dentro do modelo capitalista,
que era a principal instituição a ser criticada naquele momento.
Por conta disso é comum nos depararmos com críticas a esses pensadores sob a
acusação de que se trata de filósofos pessimistas, que buscam um “assenhoramento” do
conceito de verdade para “destruir o capitalismo” e consequentemente a sociedade con-
temporânea, supostamente em nome da bandeira do marxismo ou do comunismo.
Com efeito, pode-se destacar que a produção científica do investigador crítico é
imanente à realidade social. Dito de outra forma, o conhecimento deve ser produzido
sempre numa perspectiva de realização através da ação humana, que, em última análise,
significa dizer que o investigador tem um compromisso também enquanto agente so-
cial. A orientação para a emancipação é o que permite compreender a sociedade em seu
conjunto (NOBRE, 2009). Por isso, o teórico crítico ancora sempre suas investigações
em elementos vivos que determinam as relações e ações coletivas, com objetivo claro
de intervenção.
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Portanto, são essas as razões (uso do discurso racional e o compromisso com a
análise da realidade social) que animam a utilização da teoria crítica e, principalmente,
a escolha de um referencial teórico como Axel Honneth, para a análise da questão do
homeschooling nos dias atuais.
Sim, porque o fenômeno educacional, enquanto processo criado pelo homem,
está intimamente ligado a forma como as pessoas se relacionam e ao modelo de socie-
dade que as pessoas idealizam. Daí porque foi tematizado em paralelo a questão da
“juridificação da vida”, visto se tratar de uma relação instrumento-fim.
A juridificação da vida e o ensino domiciliar em questão
Há um debate importante na sociologia para se definir o momento histórico em
que se encontra a humanidade. De um lado, os defensores de que ainda estamos na
modernidade. De outro, os que acreditam que estamos vivendo um novo período en-
tendido, entre outras designações, como “pós-moderno”, “modernidade tardia”, “pós-
estruturalista” ou “supermodernidade”.
Entende-se por modernidade o período inaugurado pelo Iluminismo em que o
desenvolvimento do conhecimento humano passou a ter por base a razão, especial-
mente na sua dimensão instrumental, e a ciência moderna, que surge a partir dos
séculos XVI e XVII, integrando-se às esferas econômicas, política, cultural e social.
Giddens (1991) define que a modernidade “refere-se a estilo, costume de vida ou or-
ganização social que emergiram na Europa a partir do século XVII e que ulteriormente
se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência” (GIDDENS, 1991, p. 11).
Por outro lado, no final do século XX, vários autores afirmaram que a moderni-
dade estaria dando lugar à pós-modernidade, quando as formas sólidas (em alusão às
grandes narrativas) seriam rejeitadas e substituídas por formas líquidas (em alusão às
teorias contingentes e localizadas). Nesse novo mundo, nossos atos atingem uma soli-
dez de obviedade “a ponto de já não serem conscientemente notados e não precisarem
de nenhum esforço ativo, nem mesmo o de decifrá-los” (BAUMAN, 1998, p. 17).
Independente do lado a se perfilhar, fato é que o século XXI deveria ser um pe-
ríodo de consolidação do desenvolvimento humano, principalmente porque se tem a
oportunidade de apropriação das conquistas obtidas no século passado e das lutas rei-
vindicatórias ali travadas. Contudo, alerta Giddens (1991, p.12), “a condição da pós-
modernidade vê uma pluralidade de reivindicações heterogêneas de conhecimento, na
qual a ciência não tem um lugar privilegiado”.
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De fato, a pós-modernidade rejeita toda possibilidade de unidade e objetividade
para qualquer verdade, perspectiva ou narrativa. Consoante ao que compreende Gid-
dens (1991) entende-se nesta escrita que a pós-modernidade não se configura como
ruptura geral da modernidade ou sua suplantação, mas um novo desenho do desenvol-
vimento social que nos mobiliza a uma consciência da fé no progresso planejado
humanamente. Nas palavras do autor:
A pós-modernidade refere-se a algo diferente, ao menos como eu defino a noção.
Se estamos nos encaminhando para uma fase de pós-modernidade, isto significa que a
trajetória do desenvolvimento social está nos tirando das instituições da modernidade
rumo a um novo e diferente tipo de ordem social (GIDDENS, 1991, p. 56).
É que se vive em uma Era de desenvolvimento tecnológico insinuante; de um
sistema econômico consolidado, ainda que se reconheçam as mazelas sociais que impõe
o capitalismo; de formas de governo sólidas, nas quais boa parte dos países do globo
vive em regimes democráticos; de sistemas jurídicos relativamente estruturados, com
instituições em funcionamento regular, ao menos do ponto de vista formal; de medi-
cina estável, de técnicas educacionais bem conhecidas e experimentadas, de pensadores
relevantes em quase todas as áreas do conhecimento. Principalmente, vive-se em uma
Era na qual a liberdade individual é valor inestimável no meio social e protegida pelas
leis contra intervenções arbitrárias do Estado e dos demais cidadãos.
Deveríamos, então, enquanto humanidade, estar esperançosos em um porvir vir-
tuoso, no qual as experiências humanas seriam maximizadas e a felicidade fosse objetivo
alcançável com relativa facilidade.
Paradoxalmente, não é esse o cenário que se constata nesses quase vinte anos de
novo século. Ao revés, o que se observa é que o homem pós-moderno vive cada vez
mais ensimesmado, imerso em um profundo mal-estar ante aos desafios e dificuldades
que se revelam no cotidiano do mundo pós-modernidade (BAUMAN, 1998).
Inúmeras causas podem justificar esse fenômeno. Evidentemente, o próprio de-
senvolvimento tecnológico traz consigo uma nova forma de se relacionar, na qual o
comportamento dialógico e presencial nem sempre é exigido.
A pós-modernidade, por outro lado, vive num estado de permanente pressão para
se despojar de toda interferência coletiva no destino individual, para desregulamentar
e privatizar. Tende, pois, a fortalecer-se contra aqueles que- seguindo suas intrínsecas
tendências ao descompromisso, à indiferença e livre competição- ameaçam exibir o po-
tencial suicida da estratégia, ao estender sua implementação ao último grau da lógica.
(BAUMAN, 1998, p. 26)
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Mas, certamente, a discussão não se reduz a isso. Há em curso uma latente (ou
talvez até patente) mudança comportamental dos indivíduos que a nosso ver se mate-
rializa em três enfermidades contemporâneas: “i” a inexistência de uma ética no agir;
“ii” a perda da capacidade de se relacionar com o semelhante; “iii” a perda da capaci-
dade de resolver problemas.
A questão tratada como exemplo não é a tecnologia em si, mas os efeitos da so-
ciedade moderna na lógica liberal. Se há um desequilíbrio fiscal, por exemplo,
resultante de compras on-line, medidas de compensação e/ou desoneração tributária
são adotadas; se há desconfiança do consumidor em compras virtuais, criam-se regras
jurídicas que confiram mais proteção a esse tipo de negócio e assim sucessivamente.
Parece haver uma batalha de que os romanos há muito forneceram modelo pa-
radigmático: de um lado a leitura humanizadora de sociedade; de outro, uma batalha
militar onipenetrante e espetaculizada. Manutenção e transformação; avanço e retro-
cesso (SANTAELLA, 2010).
O que Honneth (2015) taxou como patologia social foram os sintomas relacio-
nados a uma adoção equivocada ou insuficiente da noção de liberdade por uma lógica
liberal, denominada pelo sociólogo como liberdade jurídica. Essa debilidade atinge vá-
rios campos da sociedade moderna: o uso da tecnologia, o fenômeno educacional e
principalmente as relações privadas, com implicações como a “juridificação” das rela-
ções sociais. São, pois, problemas de mesma ordem, insertos num contexto maior: o
individualismo imposto pelo pensamento liberal.
Das hierarquias dominadoras do poder patriarcal à pós-modernidade, novos ele-
mentos foram ganhando corpo na estruturação da sociedade do ciberespaço. Tais
ganhos de liberdade carregam consigo a crise de identidades unas e a emergências do
múltiplo, do instável, aparentemente livre das amarras institucionais (SANTAELLA,
2010). Nesse novo paradigma, o hibridismo que coloca o indivíduo em qualquer ser-
viço, a qualquer momento e em qualquer lugar parece não dar conta de algumas
questões há muito questionadas, a exemplo, a educação escolarizada.
No âmbito educacional, juntamente com os colégios confessionais dirigidos,
crescem correntes de pensamento que advogam pela edição de lei restritiva aos discursos
tidos com ideológicos, como a “Escola sem partido”, a determinação de ordem de re-
tirada de objetos religiosos das escolas com a justificativa da laicização das escolas
públicas, e pelo fomento ao estudo ministrado em casa, chamado homeschooling.
Na verdade, o que se percebe é que esse sistema, protegido e incentivado por uma
lógica própria, demanda postulados normativos específicos para seu desenvolvimento
sustentável. Assim, se no âmbito da escola predomina um discurso contrário à ideologia
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da família, exige- se lei que proíba a “doutrinação” ao invés de incrementar o espaço
dialógico de aprendizado. Se existem escolas com crucifixos ou adereços de outras reli-
giões, busca-se a esterilização/neutralização do espaço, ao invés do estímulo à tolerância
às insígnias de todas as religiões. Por fim, se há problemas na educação formal, parte
da sociedade busca a liberação do ensino domiciliar como uma espécie de “proteção”
de suas crianças das mazelas da educação formal.
Como visto, em razão das violações ocorridas no mundo moderno no âmbito das
relações de amor (intimidade), respeito (direito) e estima (fraternidade), para Honneth
(2015), há um fenômeno bem claro em curso em relação à forma como o homem
moderno se relaciona, ou melhor, na forma como resolve seus conflitos e atende seus
anseios, o que o autor chama de “processo crescente de juridificação de setores da vida,
que outrora se organizavam de maneira completamente comunicativa” (HONNETH,
2015, p. 163).
Em linhas gerais, tal fenômeno pode ser entendido como a eleição da gramática
normativa como principal farol a ser utilizado no contexto social. Segundo a premissa
pressuposta nesse trabalho, é a ocupação pela ciência do Direito do espaço deixado pela
ausência de outras instituições que no passado exerceram essa função na sociedade,
como a família e a religião, por exemplo.
E sendo o Brasil um país decorrente da escola do civil law, é a prevalência da lei
escrita, normalmente positivadas em códigos, regimentos e estatutos sobre qualquer
outro tipo de construção social argumentativa válida. Como consectário lógico desse
constructo, os atores que protagonizam esse processo ganham destaque na sociedade
moderna, como juízes, promotores, defensores, procuradores e advogados, levando a
impressão de que a Justiça passa necessariamente pelas mãos desses personagens.
Entretanto, em uma sociedade bem regulada e ajustada, essa engrenagem é utili-
zada apenas em último caso (ou pelo menos moderadamente), de forma que as próprias
instituições sociais não jurídicas atendam os interesses de seus membros prioritaria-
mente, relegando a estrutura judiciária apenas os casos excepcionais.
Não se está discutindo questões limítrofes, como se o Poder Judiciário detém ou
não a legitimidade para decidir sobre os “desacordos morais razoáveis” da sociedade,
fenômeno igualmente muito criticado pela filosofia política contemporânea
(WALDRON, 2003).
Do ponto de vista sistêmico a questão se revela complexa. Isso porque de um
lado não é lícito ao Judiciário negar a jurisdição (não julgar determinadas causas) e por
outro lado o acesso à justiça é um direito fundamental garantido tanto pela CF/88 (art.
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5o, XXXV)
2
, quanto pelos tratados internacionais que versam sobre os direitos huma-
nos (artigo 8o da 1a Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos de São José
da Costa Rica)
3
, de forma que esse cenário se revela o quadro perfeito para ensejar a
hipertrofia do Poder Judiciário. (BRASIL, 1988)
Esse embate pode ser percebido claramente quando se tematiza a questão do ho-
meschooling, já que a discussão nasce prioritariamente como uma forma de
justicialização, uma vez que através das lutas sociais se procura estabelecer novos direi-
tos não previstos expressamente na Constituição, e termina, invariavelmente, com a
judicialização do tema junto ao órgão máximo do Poder Judiciário, o Supremo Tribu-
nal Federal.
A questão do homeschooling
A relação de um tema ligado à educação (homeschooling) com um tema de filoso-
fia política (concepções de liberdade e sistema de justiça) pode ser, a princípio, de
alguma dificuldade de ser conjugado.
Entretanto, como em “Emílio”, de Rousseau (2014), a ideia do "bom cidadão"
é o ponto de união entre teoria educacional e teoria do governo, entre concepção de
educação e filosofia política ou de justiça. Isso porque sem um, o outro não seria pos-
sível, pois, para uma comunidade democrática, ambos representam condições que não
podem existir independentemente
.
Nas palavras de Celso de Mello, “o acesso à educação é uma das formas de reali-
zação concreta do ideal democrático” (MELLO FILHO, 1986, p. 533). No mesmo
sentido, o filósofo espanhol Savater (2015) afirma:
O que fica evidente é que a educação deve ser uma preocupação pública, porque não é um
problema de pai, mãe, menino e menina, mas um problema da sociedade. As sociedades
democráticas educam em autodefesa, isto é, para se protegerem: se uma sociedade não cria
cidadãos capazes de viver harmoniosamente, se não cria o tipo de cidadão capaz de participar de
forma crítica e construtiva nas instituições, está condenado a não ser mais do que uma democracia
de fachada ou nome, mas não uma democracia real, porque estes exigem democratas e os
democratas não são plantas selvagens que nascem entre as pedras por acaso, mas algo que tem
que ser cultivado socialmente pelos modos de educação (SAVATER, 2015).
Assim, a pedagogia tem sido entendida como uma irmã gêmea da teoria da de-
mocracia, porque sem instruções equilibradas sobre como despertar na criança
sentimentos de autonomia e tolerância dificilmente se edifica uma condição para for-
mação da ideia de autodeterminação democrática. Logo, o conceito de "bom cidadão"
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é um desafio prático que necessariamente exige a tematização de métodos escolares e
de ensino.
Portanto, não causa espécie que uma sociedade em crise sobre a forma de se re-
lacionar e resolver seus problemas e, principalmente, que tenha dificuldade em
assimilar a verdadeira dimensão do valor liberdade, questione a forma de se educar suas
crianças e seus jovens, depositando na prática (e consequentemente na regulamentação)
do homeschooling a esperança de um novo povir. É com esse desafio que nos deparamos:
analisar a questão do homeschooling e confrontar as suas premissas frente à teoria desen-
volvida por Honneth (2015).
A educação é um processo complexo e multifacetário e ao mesmo tempo de ex-
trema importância ao desenvolvimento de qualquer cidadão. Não se duvida que uma
sociedade que esteja comprometida com o porvir deva concentrar esforços para pro-
mover o acesso à educação a todos os seus membros.
Segundo Piaget (1978), o direito à educação é o direito que tem o indivíduo de
se desenvolver normalmente, em função das possibilidades de que dispõe, e a obrigação,
para a sociedade, de transformar essas possibilidades em realizações efetivas e úteis.
Sensível a essa necessidade, a CF/88 trouxe em seu art. 6o a educação como um
direito social, assentando em seu art. 205 de que se trata de um “direito de todos e
dever do Estado e da família, devendo ser promovida e incentivada com a colaboração
da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício
da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (BRASIL, 1988).
Sua proteção tem, pois, uma dimensão que ultrapassa a consideração de interes-
ses meramente individual. Assim, embora a educação, para aquele que a ela se submete,
represente uma forma de inserção no mundo da cultura e mesmo um direito individual,
para a sociedade que a concretiza, ela se caracteriza como um bem comum, já que
representa a busca pela continuidade de um modo de vida que se escolhe desenvolver.
Nas palavras de Jaeger (1989):
(...) a educação não é uma propriedade individual, mas pertence por essência à comunidade. O
caráter da comunidade imprime-se em cada um de seus membros e é no homem, muito mais do
que nos animais, fonte de toda a ação e de todo comportamento. Em nenhuma parte, o influxo
da comunidade nos seus membros tem maior força que no esforço constante de educar, em
conformidade com seu próprio sentir, cada nova geração. A estrutura de toda a sociedade assenta
nas leis e normas escritas e não escritas que a unem e unem seus membros (JAEGER, 1989, p.
4).
Além da previsão constitucional, o ordenamento jurídico pátrio contempla ainda
várias outras normas relevantes a respeito do direito à educação, tais como o Pacto
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Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, promulgado pelo De-
creto Legislativo no 592 (BRASIL, 1992) ; a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional, Lei 9.394 (BRASIL, 1996), o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei
8.069 (BRASIL, 1990), o Plano Nacional de Educação, Lei 10.172 (BRASIL, 2001),
o próprio Código Penal, art. 246 (BRASIL, 1940) entre outros.
Por seu turno, o ensino domiciliar refere-se a um modelo de ensino contínuo,
no qual os pais (ou a família) se dispõem a presidir diretamente o processo de ensino-
aprendizagem de crianças e adolescentes até o final do ensino médio, sem necessaria-
mente se submeter à supervisão de uma instituição de ensino oficial.
No Brasil, ainda que existam expressas vedações no ordenamento infraconstitu-
cional, art. 246 do Código Penal
4
e art. 55 do ECA
5
, no âmbito legislativo
6
, inúmeras
famílias continuam ensinando clandestinamente seus filhos em casa (ANDRADE,
2014).
A prática clandestina do homeschooling é justificada pelas famílias por diversas
razões: liberdade religiosa, insatisfação com currículo posto, distância entre escolas e
residência, baixa qualidade do ensino ou pela simples liberdade individual
(MOREIRA, 2008).
Nesse contexto, a decisão do Supremo Tribunal Federal no bojo do Recurso Ex-
traordinário no 888.815/RS (BRASIL, 2012), tratou de um mandado de segurança
impetrado por uma família no Rio Grande do Sul a qual reclamava o direito ao ensino
domiciliar.
Após esse julgamento
7
, duas interpretações foram possíveis: a primeira é que a
prática do homeschooling seria possível desde que fosse regulamentada em âmbito infra-
constitucional. A segunda, baseada na análise dos votos dos ministros, é a de que a
única possibilidade de se praticar o ensino domiciliar no Brasil é na modalidade “utili-
tário”, regulamentado na legislação específica, sendo todas as outras vedadas.
O governo do presidente Jair Bolsonaro se comprometeu a tratar a regulamenta-
ção da matéria como uma das metas prioritárias dos 100 primeiros dias do seu
governo
8
. Tais fatos contribuíram para a celeridade na tramitação do Projeto de Lei
(PL) no 3179 (BRASIL, 2012), que propôs o acréscimo de parágrafo ao art. 23 da
LDB, para dispor sobre a possibilidade de oferta domiciliar da educação básica.
Caminhando a passos largos, o projeto do homeschooling no Brasil teve seu Pro-
jeto de Lei nº 1338 aprovado em 19 de maio de 2022. Na ocasião, o plenário da
Câmara dos Deputados aprovou o PL que autoriza o ensino domiciliar no Brasil, mo-
dalidade que permanece proibida pelo STF. Não nos cabe aqui aprofundamento na
análise do PL 1338 (BRASIL, 2019), mas salientar a necessidade do posicionamento
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da comunidade acadêmica e sociedade tendo em vista os perigos que a aprovação do
ensino domiciliar apresenta no contexto da pós-modernidade e da interpretação equi-
vocada do conceito de liberdade, bem como das patologias modernas decorrentes da
adoção de uma má compreensão sobre tal conceito. Diante disso, afirmamos que a
prática do homeschooling não corresponde aos anseios da sociedade atual por se tratar
de política que isola a criança e acentua as desigualdades sociais do país, na medida em
que gera um déficit no reconhecimento entre iguais.
Homeschooling: uma questão de liberdade?
Como se vê, a questão do homeschooling é, com frequência, associada a uma dis-
cussão sobre os limites da liberdade, já que em última análise estaria sendo discutido
até que ponto o Estado poderia interferir na liberdade da família em decidir qual a
melhor forma de educação dos seus filhos.
Com efeito, é comum que se vincule a prática desse tipo de educação a uma
decorrência lógica da autonomia privada, que é expressão da própria liberdade na or-
dem civil, limitada quase sempre pelo princípio da legalidade. De uma forma bem
simples, os problemas relacionados à autonomia privada são aqueles relativos ao reco-
nhecimento jurídico de efeitos produzidos pela vontade particular.
Trata-se de uma espécie de “espaço vazio”, que o ordenamento jurídico deve
preservar para que possa vir a ser preenchido individualmente, de acordo com as idios-
sincrasias do indivíduo, podendo se expressar de várias formas. Seriam os chamados
“espaços de não direito”.
Podemos afirmar, então, que a autonomia privada é a capacidade do sujeito de
autodeterminar-se, ou de determinar seu próprio comportamento individual. Por sua
natureza, a autonomia privada é quase sempre limitada negativamente, isto é, a partir
da definição, pela ordem jurídica, do que não se pode fazer.
Nesse sentido, qualquer país que se arvore a ser tido como democrático deveria
reconhecer a necessidade de se preservar as liberdades individuais, mormente aquelas
inerentes ao poder familiar.
Por outro lado, tal proteção não pode representar um xeque em branco às famí-
lias para agirem como bem entenderem, pois há um relativo consenso nas sociedades
modernas no sentido de que é indispensável a edição de determinadas regras pelo Es-
tado para a convivência pacífica entre as pessoas, em especial quando envolve crianças.
Essa limitação não é algo incomum nessa seara de proteção. Na verdade, todas
as regras tolhem em alguma medida a liberdade individual, sem que por si só haja
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qualquer arbitrariedade ou paternalismo nisso. Do conflito entre autonomia privada e
a pública, Habermas ressalta a complementariedade:
Dessa maneira, a autonomia privada e a pública pressupõe-se mutuamente, sem que os direitos
humanos possam reivindicar um primado sobre a soberania popular, nem essa sobre aquele. A
intuição expressa-se, por um lado, no fato de que os cidadãos só podem fazer um uso adequado
de sua autonomia pública quando são independentes o bastante, em razão de uma autonomia
privada que esteja equanimemente assegurada; mas também no fato de que só poderão chegar a
uma regulamentação capaz de gerar consenso, se fizerem uso adequado de sua autonomia política
enquanto cidadãos do Estado. Essa coesão interna entre Estado de direito e democracia foi
suficientemente encoberta pela concorrência dos paradigmas jurídicos dominantes até hoje
(HABERMAS, 2002. p. 293-294).
Com efeito, é natural que os indivíduos abram mão de uma parcela de sua liber-
dade e submetam-se as regras gerais criadas pelo Estado ainda que dentro do ambiente
familiar, seja de forma voluntária ou não. Por isso, a principal questão é como compa-
tibilizar essa intervenção estatal com a necessidade de garantir a liberdade dos
indivíduos. Em outras palavras, até que ponto o Estado pode intervir no seio familiar
em favor da defesa dos interesses da criança sem que isso se revele uma conduta mera-
mente paternalista?
John Stuart Mill (2014), em Sobre a liberdade, parece tentar responder a esse
questionamento. Ele argumenta que as pessoas devem ter liberdade para definir seu
próprio comportamento, mesmo quando, no olhar de outros, eles estejam prejudi-
cando a si mesmos. Sustentam tal posição argumentos relacionados à incerteza sobre a
verdade, ao caráter educativo do erro e ao privilégio epistêmico do indivíduo, o único
capaz de aferir de forma segura seu próprio bem-estar (MILL, 2014).
Para Mill, há dois tipos principais de exceção à aplicação da regra. A primeira é
que ela só se aplica aos adultos, já que as crianças seriam, por definição, incapazes de
exercer a autonomia. O paternalismo, enquanto tal, consiste exatamente na ação dos
pais para tomar as decisões em nome dos filhos e, assim, protegê-los de sua própria
racionalidade deficiente. A posição antipaternalista engloba, dessa forma, a noção de
que é necessário presumir que todos os adultos são mais ou menos equivalentes no uso
da razão.
Por todo o exposto, resta concluir que a análise da questão do homeschooling não
deve ser analisada sob a ótica pura e simples do direito privado (autonomia da vontade),
pois subjaz a discussão interesse de uma pessoa incapaz de decidir o que é melhor para
si (criança) cujos pais tem justamente o “poder dever” de, dentro do possível (e não do
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que entender pessoalmente) fazer o melhor para defender o seu interesse, em uma lógica
bem parecida com o direito público.
Com efeito, não basta perquirir se a Constituição proíbe a prática do homescho-
oling e sim examinar se o constituinte original autorizou tal prática, analisando todas
as suas consequências tanto para o sistema educacional, como para as crianças envolvi-
das neste processo.
Compreender a escola enquanto uma invenção humana e que não está desde
sempre aqui no mundo permite entender como as coisas chegaram a ser como são e os
pequenos deslocamentos produzidos para que sejam de outro modo, pois assim como
a lógica é reproduzida, pode também ser transformada.
No pensamento de Foucault (2008), há um conjunto de relações possíveis de
determinada época, a partir de coações e limitações impostas pelo discurso. Tais rela-
ções direcionam as práticas humanas em determinado momento histórico, uma certa
estrutura de pensamento da qual os homens de uma época não podem escapar. A partir
dessa ideia, buscou- se compreender o processo histórico de formação da educação es-
colarizada.
No final do período medieval e início da modernidade, a escola não tinha im-
portância reconhecida. A educação formal só é constituída e ampliada a partir da
disputa entre protestantes e católicos em torno de fiéis. Esse fato já esclarece a ligação
entre pedagogia e religião, as quais caminham juntas rumo à massificação e naturaliza-
ção da escola até as políticas forjadas no século XX e suas implicações nos dias atuais
que giram em torno da “Educação para todos”.
No discurso “Uma prédica para que mandem seus filhos à escola”, redigido em
1530, Lutero empreende um esforço argumentativo demonstrando os prejuízos à soci-
edade quando as crianças não frequentam a escola, uma vez que já sabia que a retirada
das crianças do ambiente doméstico significava perda no orçamento familiar, pois li-
mitaria as horas de trabalho dos filhos para sustento da casa (GAUTHIER, 2010).
No século XVII, a preocupação com formas específicas de ensinar tem início com
o nascimento da pedagogia. Comenius defende o ideal democratizante de ensinar tudo
a todos por meio de uma escolaridade universal. Comenius argumenta a favor da ali-
ança família-escola a fim de que a família compreenda a importância de enviar seus
filhos para a escola e também de seu papel complementar na educação dos pequenos
(GAUTHIER, 2010).
A estatização da escola só tem início na segunda metade do século XX, impulsi-
onada pela ascensão do capitalismo e a crescente industrialização que necessita de mão-
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de-obra qualificada, não apenas tecnicamente como também doutrinada para manu-
tenção da ordem social democrática instalada. Como escreve Popkewitz (1997, p.64)
“a escolarização era vista como uma parte do desenvolvimento democrático da socie-
dade”. A defesa da escola obrigatória garante a retirada das crianças pobres das ruas e
do trabalho infantil, assegurando a frequência e o aprendizado de temas relevantes no
contexto educativo e social.
No Brasil, a difusão do movimento “escola novista”, a partir de 1930, reivindi-
cava “os fins da educação (aspecto filosófico e social) e da aplicação (aspecto técnico)
dos métodos científicos aos problemas da educação” (AZEVEDO et al., 2010, p. 34).
As ideias da Escola Nova trazem duras críticas à escola reclamando uma educação pú-
blica e única para todas as classes sociais. No Manifesto dos Pioneiros da Educação
Nova, afirma-se “a educação nova não pode deixar de ser uma reação categórica, inten-
cional e sistemática contra a velha estrutura do serviço educacional, artificial e
verbalista, montada para uma concepção vencida” (AZEVEDO et al., 2010, p. 45).
O princípio da Escola Nova, inspirada em Rousseau, era tornar a escola um es-
paço atrativo para as crianças, que satisfizesse as necessidades do indivíduo e que
diferenciasse a infância da vida adulta. Tal preceito em Rousseau dará origem à psico-
logia de desenvolvimento, fundamentada em Piaget no século XX.
Já no final do século XX, as políticas educacionais são marcadas por projetos de
inclusão e de uma educação que envolvesse a todos. A garantia de minorias, grupos
historicamente excluídos, pobres, trabalhadores migrantes, povos indígenas, refugia-
dos, pessoas com deficiência, apresenta um avanço nas políticas de acesso e
permanência na educação.
Documentos importantes, como a Declaração Mundial de Educação para Todos
(UNESCO, 1990) apontam para a necessidade do desenvolvimento de políticas que
traduzam a aprendizagem para todos com qualidade, pela universalização do acesso à
educação. Nesse caminho, a escola consolida-se como a grande verdade à qual todos se
curvam permeada por princípios como a livre concorrência e a responsabilização de
cada indivíduo para que se torne apto a concorrer no jogo imposto pelo mercado. No
interior dos processos sociais fundamenta- se uma grande verdade que se naturaliza: a
verdade da escola.
Com isso, não se defende aqui uma educação neutra e despretensiosa. É sabido
que a educação escolarizada foi destinada a poucos e sua expansão e obrigatoriedade
configuram-se como um projeto para dar conta de uma massa, para operar enquanto
“instituição de sequestro por onde todos devem passar” (VEIGA-NETO, 2003).
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No século XXI, parece inquestionável a frequência de todas as crianças em insti-
tuições escolares. Portanto, a escola opera na individualidade dos sujeitos, capturando
o maior número de crianças e transformando-as em alunos, cumprindo papel decisivo
na sociedade moderna e pós-moderna, garantindo a vigilância de todos no mesmo es-
paço e tempo.
Sendo assim, advoga-se que a escola carrega consigo singularidades e uma com-
plexidade de disputa de poder. Ela reproduz e ressignifica; vigia e iguala; sequestra e
socializa. O projeto da modernidade perpassa a própria história da institucionalização
e expansão da educação que traz consigo um território de desafios marcados por con-
tradições.
Ainda assim, sabe- se que a educação em espaço familiar de modo algum é livre
do poder disciplinar e das tecnologias de manutenção e controle social. Foucault (2008)
ainda destaca que a formação do capital humano tem relação direta com o tempo que
os pais dedicam com atividades escolares, o nível de cultura familiar e o conjunto de
estímulos recebidos que constituirão a formação do capital humano.
O objeto de discussão sobre a educação desescolarizada cinge-se à educação bá-
sica. É bem verdade que muitos adeptos do homeschooling projetam o exercício de suas
liberdades em detrimento até mesmo das Universidades, mas o foco principal da mili-
tância é sem dúvida alguma contra as escolas.
A verdade é que o ataque as escolas não é sintoma contemporâneo: as virtudes da
prática escolar sempre foram questionadas desde o surgimento das primeiras escolas
gregas. Nessa época, a escola era frequentemente acusada por más-ações, sobretudo re-
lacionada por supostamente se revelar instrumento para consecução dos interesses dos
grupos dominantes (MASSCHELEIN; SIMONS, 2017).
Para Rancière (2014) a escola é proeminentemente o lugar da igualdade, o marco
da democracia nos sistemas da economia moderna e do estado. O filósofo francês es-
creve que a escola promove a não convergência entre forma/lógica e a forma/lógica do
mercado. Portanto, pode-se contar a história da escola e da escolarização como uma
invenção democrática, uma invenção de um espaço de igualdade, espaço público que
deve ser definido como um marco da democracia, a escola pode ser vista como lugar
de emancipação e igualdade.
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Considerações finais
Sabendo que o discurso em prol da prática dos pais em educar as crianças em um
ambiente doméstico ganha força no contexto educacional brasileiro, este texto debru-
çou-se sobre a análise das questões imanentes à temática do ensino domiciliar como
uma política pública educacional.
Decompondo-se tanto em uma crítica social quanto uma investigação sobre as
premissas e condições da educação no país, este escrito foi dirigido sobre os temas ho-
meschooling e escolarização, com ênfase na análise da evolução histórica feita por
Honneth (2009, 2015, 2001) em relação ao conceito de liberdade, bem como na aná-
lise sobre as patologias modernas decorrentes da adoção de uma má compreensão sobre
tal conceito.
O discurso em prol da prática dos pais em educar as crianças em um ambiente
doméstico ganha força no contexto educacional brasileiro numa tentativa de tornar o
homeschooling uma política pública educacional. Neste artigo, compreendemos que o
Poder Judiciário, por sua vez, passou a interferir cada vez mais na vida das pessoas,
usando para isso a gramática que lhe é peculiar, que é a normativa, em fenômeno cu-
nhado como juridificação da vida.
É nessa interseção entre crises (pós-modernidade, no sistema representativo, na
educação e no sistema de justiça) que a questão do ensino doméstico (homeschooling)
ganha corpo. Ocorre que resolver um problema de cunho social, que é a educação, sob
uma ótica unicamente liberal pode produzir várias consequências nefastas. A primeira
delas é pensar a educação enquanto mero instrumento.
É que, na verdade, a escola é muito mais do que um simples local de aprendizado,
é o marco da socialização das crianças e adolescentes; um espaço de sociabilidade e da
inserção no âmbito da esfera pública, construindo uma linguagem pública. É também
um espaço de autorreconhecimento, de coexistência com o outro, com as diferenças, e,
sobretudo, de superação dessas diferenças. As pessoas com quem o educando passa a
conviver são limitadas e muitas vezes escolhidas a dedo, o que significa dizer que há
uma clara perda da vivência comum ou coletiva, gerando prejuízo do sentido de hori-
zonte comum e de cidadania.
O ensino domiciliar, ao contrário, promove o isolamento do educando e o torna
vulnerável a discursos homogêneos, estritamente vinculados a algum tipo de ideologia,
seja dos pais ou de grupos em que estes estejam inseridos (religiosos, partidários, etc.),
sem o crivo do contraditório ou outra instância crítica.
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Notas
1
Registra-se, desde já, que este trabalho usará as expressões “ensino domiciliar”, “ensino doméstico”,
“educação familiar desescolarizada” e “homeschooling” como sinônimos, não obstante reconhecer que
existam trabalhos que diferenciam as expressões (ANDRADE, 2014).
2
Art. 5o Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros
e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder
Judiciário lesão ou ameaça a direito.
3
Art. 8o. Toda pessoa tem direito de ser ouvida, com as garantias e dentro de um prazo razoável, por
um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na
apuração de qualquer acusação penal contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações
de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer natureza.
4
Art. 246 - Deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em idade escolar: Pena -
detenção, de quinze dias a um mês, ou multa.
5
Art. 55. Os pais ou responsável têm a obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rede regular
de ensino.
6
Projeto de Lei (PL) no 4657/94, de autoria do Dep. João Teixeira; PL 6.001/01, de autoria do Dep.
Ricardo Izar; PL 6.484, de 2002, de autoria do Dep. Osório Adriano; PL 3.518/08, de autoria do
Dep. Henrique Afonso e Miguel Martini e o PL 4.122, de autoria do Dep. Walter Brito Neto.
7
Processo transitado em julgado no qual o Tribunal, por unanimidade, rejeitou os embargos de
declaração opostos por uma das partes, nos termos do voto do Relator. Plenário, Sessão Virtual de
26.4.2019 a 3.5.2019.
8
Ver: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2019/01/23/regulamentar-a-educacao-domiciliar-e-
uma- das-metas-prioritarias-dos-100-primeiros-dias-do-governo-bolsonaro.ghtml
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Este artigo está licenciado com a licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
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A imagem no desenvolvimento de habilidades psíquicas na
teoria de Lev Vygotsky, influenciadas por Wundt, Köhler,
Koffka e Wertheimer
The image in the development of psychic abilities in Lev
Vygotsky's theory, influenced by Wundt, Köhler, Koffka and
Wertheimer
La imagen en el desarrollo de las capacidades psíquicas en la teoría
de lev Vygotsky, influenciada por Wundt, Köhler, Koffka y
Wertheimer
Maria do Socorro Batista de Jesus Cruz
*
Eudaldo Francisco dos Santos Filho
**
Maria Raidalva Nery Barreto
***
Resumo
Este artigo reforça a importância dos processos mentais e a aquisição de habilidades psíquicas de cada
indivíduo, ressaltando-se a presença dos signos na apreensão do conhecimento humano em todas as
fases de seu desenvolvimento. Demonstra-se a partir das concepções de Vygotsky que o
conhecimento ocorre através de interações e inter-relações pessoais dos indivíduos com seus pares e
com o ambiente do qual eles compartilham suas experiências individuais e em grupo que geram
mudanças psíquicas e comportamentais. Vygotsky defende que o uso de instrumentos amplia o leque
de atividades sobre os quais as funções psicológicas superiores produzem transformações nos sujeitos.
Destacam-se as influências de Wundt (1902), dos psicólogos gestaltistas, Köhler (1938a, 1938b),
Koffka (1922, 1935) e Wertheimer (1938a, 1938b) na teoria proposta por Vygotsky, referentes aos
estudos empíricos sobre a cognição. O objetivo deste trabalho é evidenciar as contribuições recebidas
de outras correntes teóricas na abordagem Sociointeracionista de Vygotsky, destacando-se a imagem
como um elemento essencial na construção do conhecimento. A metodologia adotada utiliza uma
abordagem qualitativa, exploratória e bibliográfica. Concluiu-se que o trabalho desse teórico está
alicerçado na imagem como um elemento essencial na apreensão do conhecimento, pois, há
evidências da presença e utilização dos signos no cotidiano das pessoas.
Palavras-chave: cognição; aprendizagem; conhecimento; signo; imagem.
Recebido em: 13.05.2022Aprovado em: 11.01.2023
https://doi.org/10.5335/rep.v29i3.13504
ISSN on-line: 2238-0302
*
D
o
utoranda no Programa de Pós-Graduação em Difusão do Conhecimento pelo IFBA (UFBA/UNEB/UEFS/LNCC/SENAI-CIMATEC).
Orcid: https://orcid.org/0000-0003-2577- 1971. E-mail: help.cruz@hotmail.com.
**
Doutor em Difusão do Conhecimento pela Universidade Federal da Bahia UFBA. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-5904-3262. E-
mail: eudaldofilho@gmail.com.
***
Doutora em Educação e Contemporaneidade pela UNEB (2017). Orcid: https://orcid.org/0000-0002-9225-4758. E-mail:
raibarreto@gmail.com.
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Maria do Socorro Batista de Jesus Cruz, Eudaldo Francisco dos Santos Filho, Maria Raidalva Nery Barreto
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Abstract
This article reinforces the importance of the processes of mental development and the acquisition of
psychic abilities of each individual, highlighting the presence of signs in the apprehension of human
knowledge in all phases of development. It is demonstrated from Vygotsky's conceptions that
knowledge occurs through personal interactions and interrelationships of individuals with their peers
and with the environment from which they share their individual and group experiences that
generate psychic and behavioral changes. Vygotsky defends that the use of instruments broadens the
range of activities on which the higher psychological functions produce transformations in the
subjects. The influences of Wundt (1902) and of the gestalt psychologists, Köhler (1938a, 1938b),
Koffka (1922, 1935), and Wertheimer (1938a, 1938b) on the theory proposed by Vygotsky,
referring to empirical studies on cognition. The objective of this work is to highlight the
contributions received from other theoretical currents in Vygotsky's Social Interactionist approach,
highlighting the image as an essential element in the construction of knowledge. The adopted
methodology uses a qualitative, exploratory, and bibliographic approach. It was concluded that the
work of this theorist is based on the image as an essential element in the apprehension of knowledge,
because there is evidence of the presence and use of signs in people's daily lives.
Keywords: cognition; learning; knowledge; sign; image.
Resumen
Este artículo refuerza la importancia de los procesos de desarrollo mental y la adquisición de
capacidades psíquicas de cada individuo, destaca la presencia de los signos en la aprehensión del
conocimiento humano en todas las etapas del desarrollo. Desde las concepciones de Vygotsky se
demuestra que el conocimiento se produce a través de las interacciones personales y de las
interrelaciones de los individuos con sus compañeros y con el entorno en el que comparten sus
experiencias individuales y grupales que generan cambios psíquicos y conductuales.Vygotsky
defiende que el uso de instrumentos amplía la gama de actividades en las que las funciones
psicológicas superiores producen transformaciones en los sujetos. Destacan las influencias de Wundt
(1902) y de los psicólogos gestálticos, Köhler (1938a, 1938b), Koffka (1922, 1935) y Wertheimer
(1938a, 1938b) en la teoría propuesta por Vygotsky, em relación com los estúdios empíricos sobre
la cognición. El objetivo de este trabajo es resaltar las aportaciones recibidas de otras corrientes
teóricas en el enfoque sociointeraccionista de Vygotsky, destacando la imagen como elemento
esencial en la construcción del conocimiento. La metodología adoptada utiliza un enfoque
cualitativo, exploratorio y bibliográfico. Se concluyó que la obra de este teórico se basa en la imagen
como elemento esencial en la aprehensión del conocimiento, porque hay evidencia de la presencia y
uso de signos en la vida cotidiana de las personas.
Palabras clave: cognición; aprendizaje; conocimiento; signo; imagen.
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Introdução
O artigo apresentado tem por finalidade destacar pontos importantes na aquisi-
ção e desenvolvimento de habilidades psíquicas do indivíduo, especialmente,
demonstrar através da acepção de Vigotski
1
(2007, 2014) a presença da representação
simbólica no processo de aprendizagem de qualquer sujeito. Assim como, as influências
trazidas por outros pesquisadores, tais como: Wundt (1902), primeiro professor a es-
tabelecer um laboratório de psicologia experimental em 1890 e promover o movimento
de introspeção. Köhler (1938a), Koffka (1922, 1935) e Wertheimer (1938a), com os
estudos da percepção e construção da teoria da Gestalt, conhecida como teoria da
forma.
O aporte metodológico se constitui de natureza qualitativa, compondo-se de pes-
quisa exploratória e bibliográfica, pois, concentra-se nas pesquisas desenvolvidas por
Vygotsky e seus colaboradores, além de outros teóricos que referenciam a sua produção
científica, dentre as quais se destacam os livros e artigos disponibilizados por meio físi-
cos e virtuais. As compilações teóricas apresentadas ao longo de sua vida evidenciam as
descobertas em relação ao modo como ocorre a aprendizagem e o desenvolvimento
humano. O seu estudo está baseado em quatro planos genéticos: a filogênese (debruça-
se sobre estudo das espécies), a ontogênese (aborda a história do desenvolvimento de
cada indivíduo), a sociogênese (concentra-se na história da cultura) e a microgênese
(dedica-se sobre a história dos processos e funções psíquicas elementares).
Para Vygotsky, o ser humano incorpora novos conhecimentos, adquire valores e
expressa atitudes, estas características o difere dos outros animais. Deste modo, as es-
pecificidades de cada indivíduo se transformam, passando este a pertencer a um grupo
composto por concepções culturais advindas de interações múltiplas que decorrem de
suas relações sociais com outras pessoas e com meio de convívio.
Portanto, compreende-se que a criação da teoria sociointeracionista apresentada
por Vygotsky recebe inúmeras influências ao longo de seu processo formativo, eviden-
ciando-se por meios e fenômenos cognitivos de natureza, forma e suporte díspares. Tal
processo se manifesta principalmente, a partir da interação dos indivíduos com seu
meio de convívio social, tendo os fatores sensoriais papéis fundamentais e imprescindí-
veis no desenvolvimento psíquico do sujeito.
Diante do exposto, recorre-se às ideias difundidas acerca do desenvolvimento
mental do indivíduo e das funções psicológicas superiores, concepções adotadas e dis-
seminadas nos trabalhos desenvolvidos por Vigotski (2007), Vigotski, Luria e Leontiev
(2014), que denotam a relevância dos signos, principalmente, pela representação de
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imagens (figuras, imagem mental, fotografia, quadro, desenho (rabiscado ou impresso),
etc.), na apreensão do conhecimento. No contato com o mundo o ser humano sempre
experimentou uma relação intrínseca com a imagem, enquanto suporte e meio comu-
nicacional, tornando-se um elemento agregador entre raciocínio, conhecimento e
comunicação.
A representação da imagem é um componente presente no contexto social, seja
na forma verbal, na representação gráfica, na manipulação de qualquer objeto ou na
recordação de alguma situação vivenciada. Uma fotografia, uma roupa, um nome, uma
música, um cheiro, por exemplo, podem remeter a um momento especial que ficou
guardado na memória de determinadas pessoas. Assim sendo, a representação simbólica
pode estar presente quando se pretende ressaltar aspectos pertinentes ao desenvolvi-
mento cognitivo dos indivíduos.
Vigotski (2007) recorre à teoria marxista da sociedade proposta por Marx (2017),
cujas mudanças históricas na sociedade e na vida produzirão transformações físicas e
psicológicas nos indivíduos. Ele considera que todo fenômeno tem a sua história e esta
é caracterizada por mudanças que podem ser tanto qualitativas quanto quantitativas,
alterando o comportamento do indivíduo e do próprio ambiente. Entretanto, o espaço
de convívio social atua sobre o sujeito, promovendo outras mudanças, quer atitudinais
ou psíquicas.
O processo de incorporação dos sistemas de signos produzidos culturalmente
provoca transformações comportamentais, estabelecendo uma ligação entre as formas
iniciais e profundas do desenvolvimento de cada ser humano. Logo, isto evidencia que
as mudanças individuais ao longo da vida estão fixas na sociedade e na cultura. Por-
tanto, pretende-se que o sujeito passe a ter ideias e pensamentos que favoreçam a
ampliação das suas funções psicológicas, de tal maneira, que se perceba as peculiarida-
des existentes nas experiências e fases cognitivas perante o objeto, bem como no seu
ambiente de convívio e interação interpessoal.
A Escola da Gestalt na vida de Lev Semenovich Vygotsky
A Teoria da Gestalt foi inicialmente abordada por Ehrenfels (1890), quando este
questionou a relação direta existente entre a sensação, percepção e atenção, acreditando
que esses princípios não eram adequados para garantir as abrangências dos fenômenos
mentais. Alguns anos depois Wertheimer (1938a) criou a Escola da Gestalt que se ori-
ginou a partir de seus experimentos sobre a percepção no início do século XX,
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apoiando-se no campo da investigação, abrangendo-se a experimentação, as sensações,
as percepções individuais, e sistematizando os principais conceitos da teoria da forma.
A psicologia da Gestalt é uma teoria que se predispõe a compreender as leis en-
volvidas na capacidade de adquirir, manter e organizar percepções significativas no
processo de conhecimento (Wertheimer, 1938a). O foco central se estabelece na auto-
organização da mente, dado que o comportamento total não se determina por elemen-
tos individuais, estes são determinados pela captação da natureza intrínseca do todo.
A Gestalt está alicerçada no isomorfismo que supõe que a estrutura de uma uni-
dade é composta de partes relacionadas com o todo e está caracterizado por
propriedades como fechamento, simetria e regularidade dos pontos que compõem a
forma. A percepção resulta de interações complexas entre os vários estímulos encontra-
dos no meio ambiente e a resposta encontrada pelo indivíduo.
No desenvolvimento das suas investigações, Köhler (1938a, 1938b) e Koffka
(1922; 1935) desenvolveram o princípio da Gestalt ao observarem que a mente hu-
mana tem um comportamento padronizado ao se perceber as formas em objetos,
pessoas e/ou lugares. De acordo com eles, o modo como combinamos as coisas, a rela-
ção com outras pessoas ou mesmo a observação de uma reportagem (anúncio,
propaganda) recebe influências dessa teoria. Seguindo essa lógica, Wertheimer (1938a)
se dedicou ao estudo do processo psicológico da aprendizagem, tendo iniciado com a
experiência sobre o movimento das luzes intermitentes. Baseado neste experimento,
-se sentido as suas investigações, quando ao observar o apagar e acender das luzes
numa estação de trem, tinha-se a percepção de movimento, que se apresentava como
se fosse uma única luz que atravessava o espaço de uma lâmpada à outra.
Diante desta observação, ao acender uma luz em um ponto x e depois em outro
ponto y, ele criou uma variação nos intervalos de tempo entre a piscada de uma lâm-
pada e de outra, constatando que se o resplandecer das luzes fosse de 200 milissegundos
o indivíduo tinha a percepção de que elas acendiam de forma alternada e simultanea-
mente. Assim, se o tempo fosse 30 milissegundos, a percepção seria de que as luzes
acendiam simultaneamente e, se alterasse para 60 milissegundos, havia o entendimento
de uma única luz se movimentada entre os pontos x e y. Em decorrência desse experi-
mento, Wertheimer (1938a) apresenta o fenômeno do movimento aparente, ou
fenômeno Phi. Neste caso, a ilusão seria dependente do balanço temporal entre a apre-
sentação do primeiro e do segundo estímulo, conforme destacam Castro e Gomes
(2015).
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O fenômeno Phi é apenas um processo, uma transição, é um evento dinâmico não estático na
natureza e não pode ser derivado dos conteúdos ópticos usuais. […] indica a hegemonia da
expressão global do sujeito na percepção do movimento: primeiro o indivíduo enxerga o
movimento, e não um objeto que primeiro está em um lugar e depois em outro. O que rege a
sensação de movimento é a dinâmica de transição e ritmo entre elementos semelhantes, mas não
necessariamente idênticos (CASTRO; GOMES, 2015, p. 408).
As características do fenômeno Phi podem ser constatadas na Figura 1 que se
encontra logo abaixo. Nesta imagem o indivíduo visualiza de imediato o movimento
e, posteriormente, identifica os objetos que constituem o todo.
Figura 1Demons tra o M ovimento Ap arente
Fonte: Proverbio (2018)
2
Na Figura 1 acima, tem-se a impressão de que as formas geométricas que as com-
põem estão em um movimento constante. Para Wertheimer (1938a), esse fenômeno
depende de determinado intervalo crítico de tempo e não poderiam ser explicados a
partir de elementos sensoriais isolados, bem como, de quaisquer outros aspectos psico-
lógicos.
Para a psicologia da Gestalt, a mente configura todos os elementos em contato
com sua estrutura, devido à ação da percepção e de todo o acervo em sua memória. O
todo é apreendido de forma imediata, pela reconstrução do campo perceptual (insight).
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Assim sendo, pode-se inferir sobre alguns ensaios realizados pelos gestaltistas com base
teórica e experimental para sustentar e investigar a hipótese de que tais experimentações
têm validade na aquisição do conhecimento humano nos moldes contemporâneos.
O método introspectivo de Wilheim Wundt
Em 1902, Wundt realizou um experimento com uso da luz e, sua preocupação
era quantificar o tempo em que uma pessoa demorava após receber algum estímulo
para desenvolver uma reação voluntária e para isso, utilizou inúmeros instrumentos
para medir com precisão essas reações. O pesquisador desejava saber o que havia em
comum nos eventos dos participantes e nas aparentes diferenças individuais de cada
sujeito, criando as sensações puras que continham parâmetros de qualidade, intensi-
dade e modalidade dos sentidos.
Dentre as construções teóricas e experimentais do pesquisador ressaltamos inves-
tigações que concluem que o movimento de introspecção ou auto-observação é o ato
em que o sujeito reconhece e registra os eventos internos, como pensamento e senti-
mentos, a partir da observação de seus próprios estados mentais resultantes na
experiência sensorial como objeto de estudo. Esse foi o método utilizado para analisar
os componentes mentais, de modo que explorava os processos inferiores e os elementos
da experiência.
O movimento da introspecção foi rejeitado por correntes psicológicas expressi-
vas, como o behaviorismo e a Gestalt, mesmo que estas o apoiassem em determinados
princípios. O behaviorismo se colocava contra o método introspectivo por acreditar ser
este um método insuficiente e a Gestalt também não admitiu a introspecção nos parâ-
metros praticados na psicologia do século XIX pelos apoiadores de Titchener (1912)
no século XX.
Wundt (1902) foi o primeiro pesquisador a sugerir que os processos inferiores
estavam relacionados à psicologia fisiológica, enquanto os processos superiores estariam
direcionados ao caráter antropológico. O seu objeto de pesquisa era a experiência ime-
diata
3
dos sujeitos através da introspecção, da experimentação e da análise dos
fenômenos culturais.
Uma das ideias difundidas por Wundt (1902, p. 176) demonstra que os conte-
údos psíquicos mais simples sempre pressupõem como substratos fisiológicos.
Processos nervosos complexos resultantes da cooperação de outras partes elementares
que podem se manifestar na própria observação psicológica e nenhum processo psí-
quico pode ser imaginado sem que sua origem esteja relacionada a muitas peças
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funcionalmente conectadas. Assim, quando os processos psicológicos superiores sur-
gem e se transformam ao longo do aprendizado e do desenvolvimento, a psicologia terá
condições de entendê-lo em sua totalidade, desde que se predisponha a encontrar sua
origem e traçar a sua história.
Muitos pesquisadores, como Köhler (1938a) e Lewin (18901947) exerceram
importantes influências na formação e base teórica da produção científica de Vigotski
(2007), Vigotski, Luria e Leontiev (2014), principalmente na questão que envolvia as
relações com a experimentação e processo de aquisição de informação e formulação de
conhecimento. O século XIX foi um período que reuniu inúmeros psicólogos com o
intuito de conceber a psicologia como uma prática científica. Esta psicologia científica
era constituída pela descrição dos elementos da experiência imediata e, por indivíduos
treinados em introspecção. O processo de investigação através de experimentos se mos-
trou eficaz desde os primeiros relatos de psicólogos e estudiosos sobre a mente humana.
A teoria evolutiva entre animais e homens de Darwin (2000, 2004) mostra que
as expressões emocionais apresentadas pelas pessoas compartilham aspectos herdados
de antepassados primitivos, tanto humanos, quanto de outros animais. Apesar de Pa-
vlov (1927) e Darwin (2000, 2004) proporem teorias distintas, estes concordam em
especificar as regras pelas quais os elementos se combinam para produzir fenômenos
mais complexos. Sobretudo, os pesquisadores se concentraram nos processos psicoló-
gicos compartilhados tanto por animais quanto por homens, preterindo os processos
psicológicos superiores, como o pensamento, a linguagem e o comportamento volitivo.
(VIGOTSKI, 2007, p. XX).
A psicologia da Gestalt valoriza a forma e a percepção do movimento, surge a
partir da formação de um grupo de psicólogos que questiona a validade de se analisar
os processos psicológicos em seus constituintes básicos. Para os gestaltistas os fenôme-
nos intelectuais, como os estudados por Köhler (com macacos antropoides) e os estudos
dos fenômenos perceptuais por Wertheimer (sobre o movimento de luzes intermiten-
tes), não podem ser explicados pela postulação de elementos básicos da consciência,
nem pelas teorias comportamentais baseadas em estímulo-resposta. Eles se recusam a
aceitar a ideia de que os processos psicológicos simples podem explicar os mais com-
plexos.
As Leis da Gestalt
A construção da teoria da Gestalt guarda no seu bojo algumas conclusões que
favorecem o estudo da captação e funcionalidade que pode ter os estímulos sensoriais
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externos na mente humana. Wertheimer (1938b) e Koffka (1935) descreveram as suas
leis ou princípios da Teoria da Gestalt. Assim, há condições de inferir como funciona
uma imagem e sua relação com a mente humana, trazendo elementos de compreensão
de quais características e atributos estas têm que possuir para despertar determinadas
reações na captação do estímulo visual pelo indivíduo. A Gestalt, a partir de seus expe-
rimentos, encontrou algumas leis que regem a percepção humana das formas e, que
decorrem do comportamento do cérebro diante dos processos perceptivos. Destacam-
se: continuidade, segregação, proximidade, semelhança, pregnância, unidade e fecha-
mento.
As leis supracitadas e seus pareceres extraídos desde os experimentos gestaltistas
são como a descrição do comportamento sensorial face a fomentos externos, apresen-
tam a apreensão do indivíduo quando são estimulados externamente. As reações e
compreensões dos estímulos são verificações e constatações das experiências da teoria
proposta. Em função da proposição de trabalho e natureza da pesquisa se elegeu uma
perspectiva específica da teoria, um campo singular que contempla as incursões dessa
investigação, especialmente os achados científicos da experiência que investiga o estí-
mulo visual, suas características e comportamento.
Assim sendo, a teoria da Gestalt oferece substrato teórico quando se refere ao
estímulo visual e leis aplicadas à imagem. Deste modo, se estes princípios são aplicados
exclusivamente, ao fenômeno perceptivo da imagem podem elevar a densidade, a cla-
reza na aplicação, na análise e no funcionamento, a saber. A Continuidade é uma
característica que afirma que os atributos da imagem podem funcionar como fatores
que confiram continuidade ao conjunto ou a configuração das formas no sistema. Na
segregação se assegura que construções imagéticas de sistemas de informações que pri-
vilegiem um bom contraste entre figura e fundo terá um poder de alto distanciamento
e, consequentemente, trará clareza na comunicação da imagem.
Consoante a lei da Proximidade, os elementos visuais de uma composição guar-
dam entre si distâncias menores, outras situações envolvendo a forma de imagens não
preserva tal característica, estas são atribuídas por um esqueleto estrutural que favorece
seu entendimento como grupos comunicacionais ou subsistemas de informação com
conceitos e funções definidas. Na Semelhança se encontram atributos de similitudes
como cor, forma, configuração, tons e dimensão que podem funcionar como grupos e
terem valores comunicacionais deliberados por conceito prévio na produção do sistema
de informação.
No princípio da Pregnância, figuras regulares e simples, como as construções da
geometria euclidiana ou de reconhecimento empírico e popular, podem ser facilmente
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reconhecidas e memorizadas por mais tempo. Deduz-se que ocorre o mesmo com cores
e configurações de espaço. O princípio da Unidade garante que o reconhecimento da
forma ocorrerá, no seu todo, após as unidades estarem agregadas visualmente, mesmo
que visualizados detalhes, atributos específicos ou partes. Imagens com conteúdo e
construções mais pregnantes conseguem de ter unidade. Na lei do Fechamento se ob-
serva que algumas formas são construídas no sentido de propiciar um entendimento
que garanta ao cérebro completar uma figura, mesmo que esta não esteja aparente na
sua totalidade. Tem-se abaixo a Figura 2, em que configuram os princípios descritos
acima.
Figura 2 - Leis ou Pri ncípios da Ges talt
Fonte: Paula (2015)
4
Na imagem acima estão reunidas todas as leis da Gestalt, nela se observa cada um
dos sete princípios da teoria da forma acima descritos.
A trajetória de Lev Semenovich Vygotsky e sua relação com a
imagem
Vygotsky nasceu em 17 de novembro de 1896 em Orsha na Bielo-Rússia e, fale-
ceu aos 38 anos na cidade Moscou no dia 11 de junho de 1934, vítima de uma
tuberculose. Estudou Filosofia e História, concluindo seus estudos em Direito e Filo-
logia na Universidade de Moscou, em 1917. Posteriormente estudou Medicina e
começou a lecionar psicologia e pedagogia em Moscou e Lenigrado. Nas décadas de
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1924–1934, ele cria sua teoria histórico-cultural dos fenômenos psicológicos, conhe-
cida por ontogênese mental.
Os seus escritos foram ignorados no Ocidente por anos, tendo as publicações de
suas obras suspensas na União Soviética por um período de 20 anos, entre 1936–1956,
escreveu, cerca de, 200 produções textuais, das quais algumas se perderam. No entanto,
ganhou destaque na psicologia americana em 1962, quando da publicação de sua mo-
nografia, Pensamento e Linguagem.
Vygotsky recebeu influência de muitos psicólogos, dentre os quais Wundt
(1902), fundador da psicologia experimental que criou uma escola de psicologia em
1890, e o movimento de introspecção. O seu método analisava os vários estados da
consciência em seus elementos constituintes, definido como sensações simples. Para a
introspeção, os processos independentes como, ideia individual, o processo afetivo in-
dividual e o ato voluntário são interconectados e interdependentes. Assim, as abstrações
se aproximam dos fenômenos concretos.
Uma ideia isolada, uma ideia que é separável dos processos de sentimento e vontade, não existe
mais do que toda força mental isolada de "entendimento". Por mais necessárias que sejam essas
distinções, nunca devemos esquecer que elas são baseadas em abstrações que elas não carregam
consigo nenhuma separação real de objetos. Objetivamente, podemos considerar os processos
mentais individuais apenas como elementos inseparáveis de todos interconectados (WUNDT,
1902, p. 12, tradução nossa).
A psicologia experimental almejava eliminar a introspeção na forma auto-obser-
vação profissional. Todavia, acreditava-se que poderia chegar à caracterização exata dos
fatos mentais sem uma assistência adicional e, isso a colocava exposta às diversas emo-
ções e descontentamentos. O procedimento experimental tinha por objetivo substituir
esse método subjetivo de auto-observação por uma introspecção verdadeira e confiável,
era preciso trazer “a consciência sob condições objetivas ajustáveis com precisão”
(WUNDT, 1902, p. 5, tradução dos autores).
As investigações de Vygotsky sugerem que o desenvolvimento da linguagem se-
gue o mesmo percurso, obedecendo às leis idênticas do progresso mental que envolve
a utilização de signos, seja em uma atividade de contagem, de memorização ou qual-
quer outro tipo relacionado à capacidade cognitiva. Desta forma, verifica-se que estas
operações se desenvolvem em quatro estágios, descritos a seguir:
1.º Estágio primitivo ou natural discurso pré-intelectual e pensamento p-verbal;
2.º Estádio da psicologia ingênua formado pelas experiências das crianças;
3.º Estádio domínio das operações externas se distingue por sinais externos e operações
externas;
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4.º Estádio de crescimento interno as operações externas interiorizam-se e sofrem
transformações (VIGOTSKI, 2008, p. 4849).
No primeiro estágio as operações se apresentam do mesmo modo como se de-
senvolveram, pois, descreve a fase primitiva do comportamento. No segundo, as
crianças vivenciam estágio as experiências físicas de seu próprio corpo, dos objetos que
a cercam e aplicação dessa experiência ao uso de instrumentos. Esta fase antecede às
operações lógicas, nela a criança domina a sintaxe da linguagem muito antes da sintaxe
do pensamento.
No terceiro estágio a criança tem o domínio das operações externas utilizadas
para solucionar os problemas internos. Esta é a fase em que a criança recorre a auxiliares
mnemônicos com objetivo de ajudar na resolução de problemas. O quarto estágio se
caracteriza pela transformação que as operações externas passam ao serem interioriza-
das. Então, a criança começa a utilizar a memória lógica fazendo cálculos mentais e
utilizando signos.
Os primeiros passos rumo à sua teoria
Ao apresentar a palestra ‘Consciência’ como um Objeto da Psicologia do Com-
portamento no segundo encontro de neuropsicologia em 1924, Vigotski destaca que
“[…] não se conseguirá atribuir ao conceito de consciência uma função na atividade
humana, como também não se conseguirá atribuir ao conceito de consciência um papel
na ciência psicológica” (VIGOTSKI, 2007, p. XXII). Entende-se que para o autor su-
pramencionado a consciência é independente e sua abrangência impede que se possa
ter o controle sobre ele, assim como não se consegue ter domínio pleno sobre os pro-
cessos internos da mente.
Vigotski (2007) corrobora às críticas geradas pelos gestaltistas no que se refere à
análise psicológica que reduzia todos os fenômenos a um conjunto de pequenos ele-
mentos psicológicos. Por outro lado, ele também não acreditava que os psicólogos da
Gestalt conseguiriam ultrapassar a descrição de fenômenos complexos. Assim, os apoi-
adores da Gestalt consideravam os fenômenos psicológicos como autônomos,
indivisíveis e articulados, quanto a sua organização, configuração e lei interna, ou seja,
o todo é mais que a soma das partes, denotando-se, dessa forma, uma concepção de
complexidade.
Conforme Vygotsky, os grupos de teóricos não podiam, a partir da descrição de
fenômenos complexos, ultrapassar a barreira da explicação. À vista disso, mesmo acei-
tando as críticas da psicologia da Gestalt às demais abordagens, a crise persistiria, pois,
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a psicologia estaria dividida em duas partes discordantes: uma com características de
ciência mental que descreve as propriedades emergentes dos processos psicológicos su-
periores e, outra, de ciência natural, que explica os processos elementares sensoriais e
os reflexos.
Nenhuma das escolas de psicologia existentes fornecia as bases firmes necessárias para o
estabelecimento de uma teoria unificada dos processos psicológicos humanos. […] ao mesmo
tempo, ele produziu uma crítica devastadora das teorias que afirmam que as propriedades das
funções intelectuais do adulto são resultados unicamente da maturação ou, em outras palavras,
estão de alguma maneira pré-formadas na criança, esperando simplesmente a oportunidade de se
manifestarem (VIGOTSKI, 2007, p. xxiii-xxiv).
Vygotsky desejava apresentar uma abordagem que descrevesse e explicasse as fun-
ções psicológicas superiores (FPS), em termos aceitáveis para as ciências naturais, de
forma que: incluísse a identificação dos mecanismos cerebrais subjacentes a uma deter-
minada função; estabelecesse as relações entre formas simples e complexas daquilo que
aparentava ser o mesmo comportamento e incorporasse a especificação do contexto
social em que ocorreu o desenvolvimento do comportamento.
Vygotsky teceu críticas à noção de que a compreensão de funções psicológicas
superiores humanas poderia ser atingida por multiplicação e complicação de princípios
que derivam da psicologia animal, dos princípios que representam combinações mecâ-
nicas de leis do tipo estímulo-resposta (VIGOTSKI, 2007, p. xxiv). Todavia, sua
concepção de experimento divergia da maioria dos psicólogos americanos existentes
naquela época. Visto que, acreditava-se que “ao experimento cabia o importante papel
de desvendar os processos que estão comumente encobertos pelo comportamento ha-
bitual” (VIGOTSKI, 2007, p. xxxii–xxxxiii).
Dessa forma, Vygotsky mostrava que a importância do experimento ultrapassava
a simples função de evidenciar as respostas obtidas por determinados estímulos atribu-
ídos a uma situação diversa, o que poderia criar uma teoria de aprendizagem, a partir
de experimentos realizados.
Essa teoria pretendia analisar as formas superiores de comportamento, mas para
isto ocorrer, necessitava-se de uma discussão detalhada da abordagem proposta, de
modo a evitar que a mesma permanecesse em um campo mais específico, restringindo-
se a exemplos particulares. Além disso, a suas concepções estão fundamentadas nas
ideias de muitos pesquisadores que contribuíram de forma positiva no arcabouço da
teoria formulada e apresentada durante sua breve trajetória de vida. Considera-se rele-
vante que todos os processos sejam estudados como fenômenos em movimento.
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Em decorrência das apreensões acumuladas de diferentes concepções epistemo-
lógicas e ideias comprovadas por outros pesquisadores, Vygotsky formula uma teoria
que prestigia o desenvolvimento mental baseado nas interações interpessoais entre os
sujeitos, entre este e o ambiente de convívio social. Entretanto, o processo de apreensão
do conhecimento se projeta na aquisição de habilidades e competências pelo indivíduo
ao longo de sua vida. A cada nova etapa, o sujeito incorpora outros elementos, eviden-
ciando-se que para se atingir as funções psíquicas superiores, necessariamente, transitar-
se-á por atividades elementares.
Todo o processo envolvido é composto por funções complexas que proporcio-
nam modificações contínuas e cíclicas, demonstrando que em cada nova etapa o
conhecimento adquirido se incorporará aos processos recentes, gerando um sistema que
se auto-organiza de forma independente. Portanto, para que os processos psicológicos
elementares sejam transformados em complexos, faz-se necessário considerar sua histó-
ria e como estão caracterizadas as mudanças qualitativas (mudanças de forma, estrutura
e características elementares), além das quantitativas.
O uso de signos (imagens), fala e instrumentos no
desenvolvimento mental humano
Vigotski (2007) também se dedica a entender o papel comportamental e de suas
características. Isso motivou os estudos empíricos que objetivava entender como os usos
de instrumentos e signo estão ligados.
Os instrumentos que o homem usa para dominar seu ambiente foi criado e aper-
feiçoado ao longo de sua história social. Por fim, é um estudo de psicologia
‘instrumental’, visto que se refere à natureza mediadora de todas as funções psicológicas
complexas (VIGOTSKII; LURIA; LEONTIEV, 2014).
Instrumentos culturais especiais, como a escrita e aritmética, expandem enormemente os poderes
do homem, tornando a sabedoria do passado analisável no presente e passível de aperfeiçoamento
no futuro. […] o adulto não apenas responde aos estímulos apresentados por um experimentador
ou por seu ambiente natural, mas também altera ativamente aqueles estímulos e usa suas
modificações como um instrumento de seu comportamento (VIGOTSKII; LURIA;
LEONTIEV, 2014, p. 2627).
Percebe-se que o uso de signo é utilizado para representar um sentimento, ou
algo a que se queira referir. Mesmo antes da fala e escrita, as crianças se utilizam de
objetos para demonstrar que querem uma determinada coisa. Tem-se como exemplo,
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a criança que ainda não sabe falar, mas está com sede, ela gesticula indicando para a
geladeira, o copo ou o garrafão de água. Algumas crianças quando estão querendo ma-
mar e ainda não falam, indicam os seios da mamãe ou puxam a blusa para indicarem
que estão com fome. Portanto, em seu percurso investigatório em relação à formação
de conceitos, Vigotski, Luria e Leontiev (2014) enfatizam a importância do signo como
parte essencial do processo.
Para Vygotsky, muitas vezes é possível se utilizar os signos como forma auxiliar
do processo de memorização. Entretanto, isso não garante ao indivíduo que com essa
ação ele consiga lembrar de algo ou alguma situação ocorrida, em que ele esteja envol-
vido. Eles são usados para solucionar determinados problemas psicológicos, tais como:
lembrar, relatar, comparar, escolher. Essas ações são semelhantes ao uso de instrumen-
tos, apenas ocorrem no campo psicológico.
Entretanto, os instrumentos são mediadores da relação entre o sujeito e o meio,
servindo de elo entre esses dois elementos, tendo em vista que é no ambiente que está
o objeto desejado pelo sujeito. Tem-se como exemplo a seguinte situação hipotética:
João precisa comprar um livro na loja virtual ‘Minhas leituras’, logo para conseguir
efetivar sua compra, ele necessita de um meio que o ligue à loja. Neste caso, João pode
telefonar para loja, acessar site da mesma via notebook, PC, tablet ou smartphone. Logo,
os veículos de comunicação (telefone/smartphone, notebook, PC, tablet) são os possíveis
instrumentos que João poderá utilizar para alcançar seu objetivo que é comprar o livro.
Atenta-se ao fato de que os signos, são os sinais das coisas ou objetos, pois, repre-
sentam a sua presença no momento acionado. Estes elementos nos fazem retomar à
determinada situação ou objetos, por vezes utilizados como imagens. Ao se observar
uma fotografia, por exemplo, não se vê ou tem a pessoa, objeto ou lugar naquele mo-
mento, mas a partir deste elemento, recorda-se algo que foi visto ou vivenciado
anteriormente. Outras vezes, é a imagem mental de um objeto, um cheiro, uma música
que nos faz rememorar algo que foi de algum modo importante e, que está sendo lem-
brado naquele instante.
Vigotski (2007) se empenhou em entender o papel comportamental do signo, se
aprofundando nos estudos empíricos, de modo a saber como o uso de instrumentos e
signos estão ligados. Assim, ele usa “o termo função psicológica superior, ou compor-
tamento superior com referência à combinação entre o instrumento e o signo na
atividade psicológica” (VIGOTSKI, 2007, p. 55). Posteriormente, ele descreve as fases
operacionais que os indivíduos apresentam ao longo de seu desenvolvimento físico e
cognitivo.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Dessa maneira, na fase inicial a criança depende dos signos externos. Contudo, a
partir de seu desenvolvimento, as operações com signos passam por mudanças, servindo
de base para a transformação de atividades psicológicas que constituem a internalização
de formas culturais de comportamento (VIGOTSKI, 2007).
As mudanças nas operações com signos durante o desenvolvimento são semelhantes àquelas que
ocorrem na linguagem. Aspectos tanto da fala externa ou comunicativa como da fala egocêntrica
"interiorizam-se", tornando-se a base da fala interior. A internalização das atividades socialmente
enraizadas e historicamente desenvolvidas constitui a aspecto característico da psicologia
humana; é a base do salto qualitativo da psicologia animal para a psicologia humana. Até agora,
conhece-se apenas um esboço desse processo (VIGOTSKI, 2007, p. 58).
As transformações que ocorrem a partir do processo de internalização, suscitam
no desenvolvimento de funções, tais quais: a inteligência prática, a atenção voluntária
e da memória. As funções superiores se originam de situações sociais criadas a partir da
interação entre os indivíduos, levando-se em conta as suas concepções individuais.
A própria escrita, “pressupõe o uso funcional de certos objetos e expedientes
como signos e símbolos. […] uma pessoa escreve-a, registra-a fazendo um rabisco que,
quando observado, trará de volta à mente a ideia registrada” (VIGOTSKII; LURIA;
LEONTIEV, 2014, p. 99). Em seguida, a habilidade de registro por intermédio de
signos, objetos e símbolos se desenvolverá na criança.
A proposta de Vigotski (2007), Vigotskii, Luria e Leontiev (2014) demonstra a
presença e importância da imagem para o processo de desenvolvimento psicológico,
sociocultural e histórico do indivíduo, e por vezes se confunde com o signo. Essa cons-
tatação ficou evidenciada em experimentos produzidos e acompanhados tanto por
Vygotsky, quanto por seus colaboradores.
Ao se observar uma criança de três a quatro anos brincando e registra algo que
não quer esquecer, verifica-se ali uma ação ainda não consolidada em sua mente, “a
habilidade de auxiliar sua memória com alguma anotação ou marca, […] está ausente
na criança neste nível de desenvolvimento” (VIGOTSKII; LURIA; LEONTIEV,
2014, p. 99). Assim, as crianças se utilizavam de mnemotécnicas primitivas e formas
descritivas diversas para realizarem suas anotações.
Segundo Vigotski (2007), quando a criança conseguir perceber a relação funcio-
nal existente entre ela e as coisas, situações e/ou objetos inseridos no seu ambiente de
convívio e as relações se tornarem diferenciadas, as complexas formas psíquicas do com-
portamento humano também sinalizarão o seu desenvolvimento.
Köhler (1938b) afirma que o uso de instrumentos materiais também é observável
nos macacos. Ele constatou que, “sob certas condições, as coisas podem adquirir um
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significado funcional para os macacos, passando a desempenhar um papel instrumen-
tal. […] O animal começa a se adaptar à situação dada não de forma direta, mas com
o auxílio de certos instrumentos” (VIGOTSKII; LURIA; LEONTIEV, 2014, p. 145).
Em um conceito mais geral de atividade indireta (atividade mediada), pode-se expressar
a relação lógica entre o uso de signos e de instrumentos, conforme a Figura 3.
Figura 3 - Relação lógica: signo e in strument os
Fonte: os autores (2021)
5
Os sistemas de signos criados pela sociedade ao longo da vida dos seres humanos
moldam a forma social, bem como o nível de desenvolvimento cultural. As operações
com signos surgem a partir do desenvolvimento de transformações qualitativas na vida
das crianças. Dessa forma, essas transformações criam condições para os próximos es-
tágios, enquanto estão condicionadas aos estágios precedentes.
Quando um indivíduo permanece segurando algo em uma das mãos por deter-
minado tempo, ou amarra uma fita em um dos dedos para lembrar-se de alguma
situação considerada importante, ela está construindo um processo de memorização.
Ao transformar um objeto externo em um elemento que o traga recordações, este ato
transforma o processo de lembrança em uma atividade externa. “A verdadeira essência
da memória humana está no fato de os seres humanos serem capazes de lembrar ativa-
mente com a ajuda de signos” (VIGOTSKI, 2007, p. 3738). Esta afirmação configura
centralmente a relação da mente com a imagem, com os estímulos exteriores, ratifi-
cando que os fatores imagéticos são preponderantes no processo de construção e difusão
do conhecimento.
Entende-se que a utilização de meios imagéticos, que estiveram presentes no pro-
cesso de desenvolvimento cognitivo humano e subsidiaram os vários experimentos
ESPAÇO PEDAGÓGICO
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desenvolvidos pelos gestaltistas, corrobora o trabalho apresentado por Vygotsky na
apresentação de sua teoria sociointeracionista.
Considerações Finais
O trabalho desenvolvido por Vygotsky ao longo de sua curta e produtiva traje-
tória de vida evidencia o quanto este teórico se dedicou às pesquisas científicas, assim
como, ao estudo do desenvolvimento dos processos psíquicos das mentes das crianças
e dos adultos. Neste contexto, verificou-se que suas concepções foram influenciadas
por diversos pesquisadores da mente e do comportamento humano. Destacam-se, o
empirismo de Wundt (1902) com o estudo do comportamento dos seres vivos focado
na experiência imediata dos sujeitos através da introspecção (auto-observação), método
experimental e análise dos fenômenos culturais.
Vygotsky captou algumas concepções propostas pelo behaviorismo e a Teoria da
Gestalt, embora ele não concordasse plenamente com as concepções propostas por essas
correntes. Então, da teoria do comportamento, ele trouxe a experimentação e a análise
dos fenômenos culturais, em que o estudo do processo deve ser evidenciado. Da Teoria
da Gestalt, o pesquisador apreendeu as propriedades emergentes dos processos psicoló-
gicos superiores, assim como ampliou a concepção de interação entre o indivíduo e o
seu meio de convívio.
A teoria proposta por Vygotsky defende que o desenvolvimento mental ocorre,
a partir do movimento de interações de sujeito para sujeito, deste para com o ambiente
social e, da tomada de consciência de que todo o processo provocará mudanças, tanto
nos indivíduos, quanto no ambiente ao qual ele está inserido. A partir das transforma-
ções ocasionadas, as funções elementares se constituirão em funções psicológicas
superiores.
Os gestaltistas estipularam que a percepção é o resultado de interações complexas
entre alguns estímulos encontrados no meio ambiente e a resposta encontrada pelo
indivíduo. Os pesquisadores da Teoria da Gestalt, Wertheimer (1938a, 1938b), Koffka
(1922, 1935) e Köhler (1938a, 1938b) também dispensaram parte de suas vidas a en-
tender e conhecer como o conhecimento se processa e, como outros fatores motivaram
a aquisição e alcance das funções psicológicas superiores.
Vygotsky considera que os sistemas de signos produzidos culturalmente provo-
cam transformações comportamentais, estabelecendo uma ligação entre as formas
iniciais e profundas do desenvolvimento de cada ser humano. As mudanças individuais
ao longo da vida estão fixas na sociedade e na cultura.
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A participação dos signos no processo de desenvolvimento humano é bastante
recorrente, tudo se inicia a partir dos signos que estão presentes no cotidiano das pes-
soas. Pois, mesmo antes de falar, a criança se utiliza desse meio para estabelecer a
comunicação com seus pares. Os instrumentos intermedeiam o domínio da passagem
das funções elementares para àquelas consideradas superiores, tais como: raciocínio,
pensamentos e tomadas de decisões que requerem mais entendimento.
Verificou-se que todo o seu trabalho está alicerçado nos signos, os quais enten-
demos que, por vezes, podem ser representados por imagens. Inclusive, ele e seus
colaboradores realizaram um estudo em crianças de outras formas de atividades que
utilizam signos, destacam-se o desenho, a escrita, leitura, o uso de sistema de numera-
ção, uma imagem, etc., visando observar outras operações que não estivessem
relacionadas ao desenvolvimento ao intelecto prático. Portanto, considera-se que o uso
da imagem tem um aporte consistente no entendimento e apreensão do conhecimento,
em todas as instâncias de aprendizagem na qual os indivíduos estejam inseridos.
Notas
1
A forma usual neste trabalho será Vygotsky, exceto as citações e referências, as quais serão escritas
conforme a grafia do texto original.
2
Imagem publicada pela neurocientista Alice M. Proverbio em seu Twiiter: (@AliceProverbio) no dia
12 out. 2018. 5:59. De acordo com Alice Proverbio, a imagem é estática. A área cortical V5 do nosso
cérebro é dedicada ao processamento do movimento, enquanto que V4 é dedicada ao processamento
da cor e da forma. Porém, com a saturação de V4, V5 acaba sendo enganado e entende que existe um
movimento. Disponível em: https://twitter.com/AliceProverbio. Acesso em: 06 mar. 2023.
3
A experiência imediata precede a intervenção da reflexão e, se constitui de vivências, são divididas em
três elementos: sentimento, volição e sensação.
4
Imagem retirada do Blog HellerHauss. “Gestalt: Um resumo das oito leis da psicologia da forma”. Por
Heller de Paula em 23 fev. 2015. https://www.hellerhaus.com.br/gestalt/.
5
Imagem reelaborada pela Autoria a partir da Figura 4 apresentada na obra “A formação social da
mente” de Lev Semenovich Vigotski (2007, p. 54).
ESPAÇO PEDAGÓGICO
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WUNDT, Wilhelm Maximilian. Principles of Physiological Psychology. York University,
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Este artigo está licenciado com a licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
876
v. 29, n. 3, Passo Fundo, p. 876-900, set./dez. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Trabalho docente de pedagogas(os) em licenciaturas de um
Instituto Federal: entremeios e desenvolvimento profissional
Teaching work of pedagogues in teaching degrees at a Federal
Institute: in between and professional development
Trabajo docente de pedagogas(os) en licenciaturas de un Instituto
Federal: entremedios y desarrollo profesional
Cátia Keske
*
Maria Cristina Pansera-de-Araujo
**
Resumo
Os Institutos Federais de Educação Profissional, Técnica e Tecnológica (IFs) buscam ofertar 20%
de suas vagas para a formação inicial de professores, em cumprimento à Lei n. 11.892/2008. Nesse
desafio, vivem questões comuns a outras instituições de ensino. Neste texto, busca-se compreender
algumas das que dizem respeito ao trabalho docente e à constituição profissional dos professores,
mais especificamente na área da Pedagogia. Situado no campo da pesquisa qualitativa, o estudo é
guiado pelas premissas da Análise Textual Discursiva (ATD). Dessa perspectiva, são descritos e
analisados, fenomenológica e hermeneuticamente, entendimentos sobre a Pedagogia e a atuação
profissional de docentes dessa área em licenciaturas de um IF, elaborados por indivíduos que
possuem relação direta com esse lócus: docentes da Pedagogia, coordenadores de cursos e sujeitos em
devir docente, estudantes de 7º e 8º semestres. Em meio aos processos de unitarização, categorização
e construção do metatexto, identifica-se a coexistência de elementos em contexto amplo, no âmbito
de “vivências comuns” à formação inicial de professores e à docência em cursos de licenciatura, e
também de elementos de natureza mais específica, singulares ao trabalho docente em um IF: os
primeiros, constitutivos do desenvolvimento profissional docente; os segundos, entremeios do
trabalho docente em um IF.
Palavras-chave: Pedagogia; profissionalização docente; análise textual discursiva.
Recebido em: 07.06.2022 Aprovado em: 02.03.2023
https://doi.org/10.5335/rep.v29i3.13643
ISSN on-line: 2238-0302
*
Doutorado em Educação nas Ciências pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (2022). Mestrado
em Educação nas Ciências - Unijuí, bolsista CAPES (2011). Orcid: https://orcid.org/0000-0002-3700-8634. E-mail:
catia.keske@iffarroupilha.edu.br.
**
Doutorado em Genética e Biologia Molecular pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1997). Professora titular da
Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Orcid: http://orcid.org/0000-0002-2380-6934. E-mail:
pansera@unijui.edu.br.
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Cátia Keske, Maria Cristina Pansera-de-Araujo
877
v. 29, n. 3, Passo Fundo, p. 876-900, set./dez. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
Abstract
The Federal Institutes of Professional, Technical and Technological Education (FIs) seek to offer
20% of their vacancies for initial teacher training, in compliance with Law n. 11,892/2008. In this
challenge, common issues exist to other educational institutions. In this text, we seek to understand
some of those related to teaching work and the professional constitution of teachers, more specifically
in the area of Pedagogy. Situated in the field of qualitative research, the study is guided by the
premises of Textual Discursive Analysis (TDA). From this perspective, phenomenological and
hermeneutically understandings of Pedagogy and the professional performance of professors in this
area are described and analysed, developed by individuals who have a direct relationship with this
locus: Pedagogy professors, course coordinators and subjects in becoming-professor, the students of
the 7th and 8th semesters. Amidst the processes of unitarization, categorization and construction of
the metatext, the coexistence of elements in a broad context is identified, within the scope of
"common experiences" in initial teacher education and teaching in undergraduate courses, as well as
elements of nature more specifically, unique to the teaching work in an FI: the former, constitutive
of professional teacher development; the second, in between the teaching work in an IF.
Keywords: Pedagogy; teacher professionalization; discursive textual analysis.
Resumen
Los Institutos Federales de Educación Profesional, Técnica y Tecnológica (IFs) buscan ofrecer un
20% de sus plazas a la formación inicial de profesores, cumpliendo la Ley n° 11.892/2008. En ese
desafío, viven cuestiones comunes a otras instituciones de enseñanza. En este texto, se busca
comprender algunas de las relacionadas al trabajo docente y a la constitución profesional de los
profesores, más específicamente en el área de la Pedagogía. Situado en el campo de la investigación
cualitativa, el estudio es guiado por las premisas del Análisis Textual Discursivo (ATD). De esa
perspectiva, se describen y se analizan, fenomenológicamente y hermenéuticamente, entendimientos
acerca de la Pedagogía y la actuación profesional de docentes de estas áreas en licenciaturas de un IF,
elaborados por individuos que poseen una relación directa con ese locus: docentes de Pedagogía,
coordinadores de cursos y sujetos en devenir-docente, estudiantes del 7º y del 8º semestre. En medio
a los procesos de unitarización, categorización y construcción del metatexto, se identifica la
coexistencia de elementos en un contexto amplio, en el ámbito de “experiencias comunes” a la
formación inicial de profesores y a la docencia en cursos de licenciatura, y, también, de elementos de
naturaleza más específica, singulares al trabajo docente en un IF: los primeros, constitutivos del
desarrollo profesional docente; los segundos, los entremedios del trabajo docente en un IF.
Palabras clave: Pedagogía; profesionalización docente; análisis textual discursivo.
Introdução
Instituídos a partir da transformação ou integração de Escolas Técnicas e Agro-
técnicas Federais e dos Centros Federais de Educação Tecnológica, uma das novidades
trazidas pela configuração administrativo-pedagógica singular aos Institutos Federais
ESPAÇO PEDAGÓGICO
Trabalho docente de pedagogas(os) em licenciaturas de um Instituto Federal
878
v. 29, n. 3, Passo Fundo, p. 876-900, set./dez. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) é a oferta de, minimamente, 20% de suas
vagas para a formação inicial de professores (BRASIL, 2008). Apesar de distintos de
qualquer outra institucionalidade nacional ou estrangeira (PACHECO, 2020), nos de-
safios dessa oferta, os IFs encontram dificuldades comuns a outras instituições de
ensino, tanto no contexto brasileiro como no de outros países. Como destacam Tardif
e Lessard, na educação, assim como nos outros campos da vida social, “sente-se hoje a
necessidade de ir além do quadro nacional e levar em conta a experiência coletiva das
outras sociedades”, pois “[…] os sistemas educativos da maior parte das sociedades oci-
dentais sofrem atualmente evoluções comuns ou, pelo menos, amplamente
convergentes” (2014b, p. 7). As implicações desse processo de evolução, embora lento,
são sentidas e vividas por professores e professoras de diferentes lugares, em tempos
distintos.
A conjuntura, neste texto problematizada, diz respeito à implicações teórico-prá-
ticas do trabalho docente de pedagogas(os) e da Pedagogia em cursos de licenciatura
do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Farroupilha (IFFar), fenômeno
investigado em pesquisa de Doutorado. Situados no campo da pesquisa qualitativa,
cujas compreensões ocorrem, hermenêutica e fenomenologicamente, guiadas pela Aná-
lise Textual Discursiva (ATD) (MORAES; GALIAZZI, 2016), nesse texto objetivamos
identificar e analisar concepções docentes e discentes acerca da contribuição da Peda-
gogia ao processo de constituição docente na formação inicial de professores em cursos
da referida instituição. Pedagogia compreendida como Ciência da Educação
(FRANCO, 2008; FRANCO, 2021; LIBNEO, 2021; SAVIANI, 2012), que tem a
educação como objeto de estudo e cujas especificidades devem ser estudadas em pers-
pectiva crítica considerando a multiplicidade e complexidade social, características da
contemporaneidade.
Apresentamos, inicialmente, compreensões teóricas que evidenciam deslocamen-
tos na concepção do ensinar e da Pedagogia, provocados por três discursos que se
entrelaçam nas atuais práticas profissionais docentes. De forma dialogada, entrelaçamos
compreensões de autores nacionais e internacionais que estudam a profissionalização
docente, movimento esse que, nas últimas quatro décadas, tem contribuído tanto para
o processo de ensino como um todo, quanto, especialmente, para a constituição do-
cente, no âmbito da formação inicial e continuada.
Na sequência, descrevemos e analisamos entendimentos sobre a temática, elabo-
rados por docentes da Pedagogia, por coordenadores de cursos e por sujeitos em devir
docente, estudantes de 7º e 8º semestres. Estes são os três grupos de sujeitos que pos-
suem relação direta aos cursos de Licenciatura, na área de Ciências Naturais do IFFar
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lócus do estudo, parte do mundo-vida do fenômeno investigado. Assim fazemos dado
o interesse quanto às implicações da Pedagogia na constituição docente durante a for-
mação inicial de professores, bem como do trabalho docente de profissionais da área,
no contexto dos Institutos Federais. Por fim, compartilhamos as compreensões emer-
gentes em um metatexto, construído em um movimento espiralado e de retorno aos
entendimentos dos interlocutores teóricos e empíricos (apresentados e mostrados até
então no texto), que nos levaram, em novos entendimentos, a aprender sobre o trabalho
docente de pedagogas(os) em licenciaturas de um Instituto Federal.
1. Discursos constitutivos da pedagogia e da prática profissional
docente compreensões teóricas
Desde o século 17, a Pedagogia vem constituindo-se como ordem de discursos e
de práticas, em momentos fundadores (GAUTHIER; TARDIF, 1997; GAUTHIER
et al., 2013). Distintos quanto à sustentação teórica e também quanto aos seus desdo-
bramentos nas práticas pedagógicas, são três os discursos constitutivos que podem ser
identificados no movimento de deslocamento, ampliação e significação da Pedagogia:
o saber-fazer vocacional orientado pela religiosidade, o saber-fazer técnico à luz da ci-
entificidade e o saber-fazer prático e reflexivo, desenvolvido e subsidiado pelos
movimentos individual e coletivo de profissionalização. Historicamente, como desta-
cam Gauthier e Tardif, “o pedagogo, assim como sua atividade, têm sido
sucessivamente assimilados ao artesão, ao técnico e ao prático, cada um possuindo um
saber específico” (1997, p. 48). Trata-se, contudo, de uma evolução não linear, dada a
conjugação das formas antigas à forma recente (TARDIF, 2013). Como problemati-
zam Gauthier et al., atualmente
se permanecermos durante algum tempo no domínio das representações, poderá ser útil encarar
o ensino atual como uma composição dessas três concepções, que não se apresentam mais como
uma sucessão de etapas históricas, mas como reveladoras das dimensões fundamentais do trabalho
docente, permanentemente redefinidas e recompostas em função das pressões e das condições em
que se exerce esse trabalho (2013, p. 256).
Para evidenciar as implicações de cada um dos discursos constitutivos do ensino
e da Pedagogia e, consequentemente, dos pensares e fazeres dos profissionais da área,
nos valemos das elaborações de Gauthier e Tardif (1997), Gauthier et al. (2013) e de
Tardif (2013) para o reconhecimento do caminho percorrido até as discussões sobre o
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trabalho docente na atualidade. Entrelaçamos a tais compreensões as problematizações
feitas por Tardif e Lessard (2014a, 2014b), Saviani (2012) e Gatti (2017), que contri-
buem para situar a atualidade do trabalho docente. Se os autores referem-se a “modos
de fundação da Pedagogia” (GAUTHIER; TARDIF, 1997), “idades do Ensino”
(TARDIF, 2013) e “erros-obstáculos e possibilidade” (GAUTHIER et al., 2013), na
Figura 1, apresentamos uma síntese na qual estabelecemos as relações entre religiosi-
dade, cientificidade e profissionalidade, como tônicas discursivas de cada um dos três
momentos constitutivos do ensino e da Pedagogia, em uma tentativa de dialogar entre
os diferentes arranjos linguísticos que, para nós, são discursos constitutivos.
Figura 1 Constituição do ensi no e da Pedagogia
Fonte: Dados da Pesquisa.
Apesar da nomeação distinta usada por cada um dos autores, de forma geral trata-
se da caracterização do deslocamento de um inicial saber de experiência vocacional e
“quase que artesanal”, passando do saber científico a um saber reflexivo. Como desta-
cam Gauthier e Tardif (1997), inicialmente fundada sobre uma ordem divina, a
pedagogia assume uma natureza profana, abandonada, posteriormente, de forma inte-
gral à investigação científica, até uma pedagogia fundada na atitude discursiva de um
profissional que, trabalhando em situações complexas, desenvolve sua prática com base
numa pluralidade de saberes (GAUTHIER; TARDIF, 1997).
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1.1 O saber-fazer vocacional orientado pela religiosidade
Gauthier e Tardif (1997) atribuem o nascimento da Pedagogia à criação de um
método e de um conjunto de regras e conselhos, a fim de que o mestre pudesse melhor
ensinar seus estudantes, ao que nomeiam discurso religioso tradicional. Pela primeira
vez na história, no século 17, fatores como a necessidade de cada um poder interpretar
textos religiosos e a atenção à infância e para com aquele que se ensina, foram eviden-
ciadas. Correspondente ao discurso religioso elaborado por Gauthier (GAUTHIER;
TARDIF, 1997), Tardif (2013) nomeia esse movimento discursivo inicial do ensino
como a idade da vocação. Nela está o surgimento do ensino escolar tal como o conhe-
cemos hoje, situado inicialmente na Europa nos séculos 17 e 18, no contexto da
reforma protestante e da contrarreforma católica, com o advento e multiplicação de
pequenas escolas e colégios, estabelecimentos privados colocados sob a tutela das igrejas
e das comunidades locais (TARDIF, 2013).
O discurso e a prática deslocam-se do estudar “tudo”, na perspectiva de Rabelais,
para o ensinar “tudo a todos”, com base na Didática Magna do Comenius, e sob essa
intenção o ensino passa a ser um problema na escola, visto que não era possível que os
alunos se comportassem mal ou aprendessem pouco (GAUTHIER; TARDIF, 1997).
Emerge, então, a elaboração de obras católicas e protestantes sobre a boa maneira de
ensinar. Nesse cenário, são definidos diferentes mecanismos de controle da sala de aula,
constitutivos de um método para resolver os problemas de ensino com os quais o do-
cente se defrontava no período em questão, e que permeiam a organização das escolas
até os dias de hoje. Trata-se de: o controle do espaço, do grupo, dos deslocamentos, da
postura e dos saberes (GAUTHIER; TARDIF, 1997).
Segundo Tardif (2013), nesse contexto, o ensino é “profissão de fé”, e professar
é tanto exercer uma atividade em tempo integral, quanto exprimir e tornar pública a
por meio da conduta moral como professor. Considerado como uma vocação às mu-
lheres, o ato de ensinar correspondia ao cumprimento de uma importante missão junto
às crianças, a de moralizá-las e mantê-las na fé em Deus, ensinando o controle do corpo
e fazendo do ensino um trabalho moral. Como a formação era quase inexistente, apenas
in loco pela experiência e imitação, as “virtudes femininas tradicionais” eram valoriza-
das, e as condições de trabalho ficavam em segundo plano, mantendo as professoras
sujeitas a várias formas externas de controle, com rara autonomia, delineada pelo poder
dos religiosos, dos homens, dos pais, dos superiores e daqueles que as pagavam
(TARDIF, 2013, p. 554-555).
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Gauthier et al. (2013), por sua vez, nomeiam esse discurso constitutivo do ensino
e da Pedagogia como ofício sem saberes, dado os equívocos paradoxais que sustentaram
a crença de que para ensinar basta ou conhecer o conteúdo, ou ter talento, ou ter bom
senso, ou seguir a intuição, ou ter experiência ou, ainda, ter cultura. Tais ideias contri-
buíram e ainda contribuem, sobretudo, para o “enorme erro de manter o ensino numa
cegueira conceitual” (GAUTHIER et al., 2013, p. 20).
1.2 Saber-fazer técnico à luz da cientificidade
Em resposta ao código uniforme do saber-fazer cristalizado a partir da vocação
orientada pela religiosidade, a Pedagogia, como “repertório artesanal de ações a repetir
sem muito pensar”, foi denunciada veementemente na primeira metade do século 20,
conforme pontuam Gauthier e Tardif (1997). Segundo os autores, universitários da
época, responsáveis pela articulação do novo discurso pedagógico, desejavam que a pe-
dagogia “contivesse, dali em diante, um conjunto de saberes positivos e de um saber-
fazer advindo da verificação científica” (GAUTHIER; TARDIF, 1997, p. 44), dei-
xando de ser cópia fiel dos ditames religiosos de seus fundadores. O fundamento da
Pedagogia passa, então, de projeto divino a projeto experimental, e como a técnica é o
prolongamento natural da ciência, como referem Gauthier e Tardif, “é fácil imaginar
que a função do pedagogo corresponda àquele de técnico que aplica, na sua sala de
aula, leis da pedagogia descobertas pela ciência” (1997, p. 45).
Instaura-se, assim, o discurso científico, como nomeiam Gauthier e Tardif
(1997), a idade do ofício, para Tardif (2013), que destaca que a relação das professoras
com o trabalho deixou gradualmente de ser vocacional para se tornar contratual e sala-
rial. Surgido no século 19, no processo de desconfessionalização e estatização das
sociedades ocidentais, quando os Estados ascendem e, lentamente, separam-se das Igre-
jas, o ensino como ofício atinge o seu apogeu após a Segunda Guerra Mundial, “como
parte de um processo de democratização escolar sem precedente que vê nascer vastos
sistemas escolares estabelecidos sob a direção dos Estados” (TARDIF, 2013, p. 557).
Dessa forma, criadas as primeiras redes escolares públicas e laicas, a presença das crian-
ças na escola passa a ser obrigatória e o contexto educativo implica na integração da
profissão de docente às diferentes estruturas do Estado.
Nessa conjuntura, a idade do ofício exige das mulheres um investimento inicial,
a formação, que provocou, ainda no século 19, a difusão de escolas normais, tornadas
obrigatórias a quem fosse ensinar no século 20, nas quais “o aprendizado da profissão
passa pela prática, pela imitação e pelo domínio das rotinas estabelecidas nas escolas
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pelas professoras experientes, bem como pelo respeito às regras escolares” (TARDIF,
2013, p. 557). Certa relação com a idade da vocação? Em meio ao processo da separa-
ção Estado-Igreja, o estatuto de funcionário público conferido a quem fosse ensinar e
estivesse habilitado para tal, garante certa autonomia pedagógica e proteção contra os
antigos controles externos. Junto a esse status, as professoras passam a ser responsáveis
por suas classes, pela gestão dos alunos, pelas escolhas pedagógicas relacionadas à ma-
téria, pelas atividades de aprendizagem e pela disciplina, entre outros aspectos.
Gauthier et al. (2013) destacam, por sua vez, o quanto se tentou transformar a
Pedagogia em uma ciência aplicada com base na Psicologia, reconhecida como ciência
pura, a fim de formalizar a atividade docente, ideia antiga que vinha tomando corpo
desde o fim do século 19. Na prática, esse projeto de ciência da educação deu corpo
aos saberes sem um ofício, capaz de colocá-los em prática, que foi criticado pelos pro-
fessores, dada sua dimensão de não pertinência prática. Assim, apesar de os saberes
sobre o ensino advindos da cientificidade terem pertinência em si mesmos, acabaram
“‘amputados’ de seu objeto real: um professor, numa sala de aula, diante de um grupo
de alunos que ele deve instruir e educar de acordo com determinados valores”
(GAUTHIER et al., 2013, p. 27).
1.3 Saber-fazer profissional e reflexivo, desenvolvido nos movimentos
individual e coletivo de profissionalização
A problematização do quanto o ensino tarda a refletir sobre si mesmo e não tem
definido os saberes envolvidos no exercício do seu ofício ocorre desde seu início, na
Antiguidade, e assim o é ainda, sem interrupção. Gauthier et al. (2013) defendem a
necessidade de uma teoria geral da Pedagogia, identificando dois obstáculos que, his-
toricamente, se interpõe à ela: o ofício sem saberes e os saberes sem ofício. Ao analisar
os momentos discursivos anteriores, os autores evidenciam que, assim como os saberes
sem ofício acabaram por formalizar o ensino até sua não correspondência ao contexto
real e esvaziados do contexto concreto do exercício do ensino, o ofício sem saberes
cristalizou ideias pré-concebidas, levando a cegueiras conceituais. Como problemati-
zam os autores, na tentativa de fugir de um mal, caiu-se num outro, sendo os dois
prejudiciais para o “desabrochar de um saber desse ofício sobre si mesmo”
(GAUTHIER et al., 2013). Em uma proposição de superação de tais obstáculos, de-
fendem um ofício feito de saberes, que considere a mobilização de vários saberes
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constitutivos de um “[...] reservatório no qual o professor pode se abastecer para res-
ponder a exigências específicas de sua situação concreta de ensino” (GAUTHIER et
al., 2013, p. 28).
Examinando sobre “onde estamos hoje”, Gauthier e Tardif (1997) destacam o
discurso profissional contemporâneo, justificando a existência, por algumas décadas,
de um questionamento importante acerca dos esforços de fundação da Pedagogia sobre
a ciência e a tecnologia. Defendem, então, uma terceira via ao discurso religioso e ao
discurso científico, sob a pretensão de “ultrapassar, ao mesmo tempo, tanto a perspec-
tiva que procura fundar-se na verdade divina quanto aquela que postula a ciência com
fundamento do agir do pedagogo” (GAUTHIER; TARDIF, 1997, p. 46). Por esse
viés,
conceber o docente como um profissional significa compreendê-lo como alguém dotado de
saberes e que, confrontado com uma situação complexa na qual torna-se impossível utilizar estes
saberes conforme eles deveriam ser aplicados diretamente, deve, por conseguinte, deliberar,
refletir sobre a situação e decidir (GAUTHIER; TARDIF, 1997, p. 46).
Correlata a essa elaboração, Tardif (2013) nomeia o momento atual como a
idade da profissão, destacando que a profissionalização do ensino representa uma ten-
dência que atravessa todo o século 20. Embora tenha sido na idade do ofício que as
professoras passaram a trabalhar para construir uma carreira e obter um salário, é so-
mente a partir dos anos de 1980 que se pode identificar o movimento de
profissionalização em contornos de movimento social. Os objetivos da profissionaliza-
ção estão, sobretudo, relacionados à melhoria do desempenho do sistema educativo, ao
deslocamento do estatuto de ofício do ensino para o de profissão em sua integralidade
e à construção de uma base de conhecimento (knowledge base) para o ensino (TARDIF,
2013).
Nesse processo, surgiu a necessidade de uma formação universitária baseada em
conhecimentos científicos sem, no entanto, limitar a pesquisa à produção de conheci-
mentos teóricos ou básicos e, sim, colocando-a “a serviço da ação profissional”, o que
resultou em um “aumento das competências práticas dos professores” (TARDIF,
2013). Se antes as escolas e os cursos normais eram o espaço-tempo para tal formação,
o movimento de profissionalização levou ao seu prolongamento até o nível superior.
Intimamente ligado à universitarização, esse processo conduziu a mudanças nas uni-
versidades e nas organizações escolares de diferentes países, especialmente pela
mediação da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)
(TARDIF, 2013) que, junto a outros organismos internacionais, propiciou a circulação
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de políticas itinerantes de educação que têm provocado a reestruturação da profissão
docente (OLIVEIRA, 2020), muitas vezes, como se “a imagem de professor(a) fosse
um cata-vento que gira à mercê da última vontade política” (ARROYO, 2013, p. 24).
A profissionalização do ensino leva, contudo, ao reconhecimento dos professores
como especialistas da Pedagogia e da aprendizagem, que baseiam suas práticas em co-
nhecimentos científicos e, ao mesmo tempo, induz a uma visão reflexiva do ato de
ensinar, uma vez que “o ensino não é mais uma atividade que se executa, mas uma
prática na qual devemos pensar, que devemos problematizar, objetivar, criticar, melho-
rar” (TARDIF, 2013, p. 561). Como elaboram Gauthier e Tardif (2014),
profissionalizar a formação dos docentes significa: realçar a cultura dos professores por
meio da sua integração nas universidades; enriquecer os seus conteúdos pela incorpo-
ração dos resultados de pesquisas; reservar maior espaço para a formação prática; avaliar
não somente o conhecimento dos estudantes, mas sua aplicação no ensino; e, valorizar
a visão reflexiva do ensino e de práticas inovadoras que priorizem a aprendizagem dos
alunos.
Não parecendo-nos tarefa fácil esse processo, nomeamos, por fim, a problemati-
zação que Tardif (2013) faz em relação à idade da profissão, ao caracterizar o
desenvolvimento do processo de profissionalização docente num ritmo a cada dois pas-
sos para frente, três para trás.
[…] é importante lembrar que a profissionalização da docência origina-se de um ideal
tipicamente americano, uma espécie de mito estadunidense que se exporta para todo o planeta
há trinta anos. Na América Latina e no Brasil, não deveríamos começar a desconfiar deste mito
e a criticá-lo? Na realidade, há três décadas, muitos professores sentem que os ganhos obtidos
durante a idade do ofício […] estão atualmente ameaçados e sendo substituídos por uma
profissionalização que rima com concorrência, prestação de contas, salário segundo o mérito, a
insegurança no emprego e no estatuto. Na verdade, a profissionalização parece combinar hoje
com uma proletarização de uma parte dos professores. É por isso que a transição entre a idade do
ofício e a idade da profissão suscita resistência significante entre os professores da maioria dos
países (TARDIF, 2013, p. 569).
Cientes que cada um dos discursos-idades-erros (Figura 1), em maior ou menor
intensidade, vem sendo vivido de forma singular em nosso país, as compreensões teó-
ricas apresentadas fazem-nos pensar sobre o que se entende no que respeita à Pedagogia
no atual contexto da formação inicial de professores, em cursos de licenciatura brasilei-
ros: A docência no Ensino Superior é reconhecida como constituída por tais discursos?
E a docência dos professores que atuam na formação inicial de outros (futuros) profes-
sores? E o docente da área da Pedagogia? Segundo Gatti,
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vivemos tensões nas propostas e concretizações da formação inicial de professores, não só no
Brasil como em muitos outros países. Aqui vivenciamos padrões culturais formativos arraigados,
estruturados em nossa história educacional desde os inícios do século XX, padrões que se
mostram em conflito com o surgimento de novas demandas para o trabalho educacional, as quais
se colocam em função de contextos sociais e culturais diversificados, após cem anos de trajetória
histórico-social e cultural (2017, p. 723).
Saviani (2012), ao historicizar e teorizar a Pedagogia no Brasil, destaca que o
espaço permanente ocupado pela área na estrutura do Ensino Superior desde os anos
de 1930, foi marcado pela precariedade, dada sua limitação à provisão de disciplinas
como garantia da formação de determinados profissionais da educação. O resultado?
Um ensino “pouco consistente teórico-cientificamente, tornando a área pedagógica
‘objeto de certo estigma, reforçado pelo baixo status social da profissão docente’”
(SAVIANI, 2012, p. 61). Como destaca Franco, “a Pedagogia realmente não se encaixa
nos cânones da ciência moderna. [...] talvez tenha de, em sua perspectiva ontológica,
debater sobre si própria e resistir a determinada forma de ciência” (2021, p. 147).
Retomando o objetivo de identificar e analisar concepções docentes e discentes
acerca da contribuição da Pedagogia ao processo de constituição docente na formação
inicial de professores em cursos de Licenciatura do IFFar, voltamo-nos às questões: O
que podemos compreender como implicações da atividade e do trabalho docente do
profissional professor(a) pedagoga(o) nesse espaço-tempo? O que é que se mostra e se
revela nos discursos dos sujeitos co-presença da pesquisa sobre as práticas profissionais
do Docente da Pedagogia em Cursos de Licenciatura do IFFar? Sendo essas as pergun-
tas fenomenológicas que nos acompanham, a seguir descrevemos o processo de Análise
Textual Discursiva realizado na busca de respostas.
2. Pedagogia nas licenciaturas do IFFAR o que se “mostrou
na pesquisa
De natureza qualitativa e inserida no campo da educação, buscamos manter na
pesquisa um viés fenomenológico, com orientação pela Análise Textual Discursiva para
a compreensão do fenômeno. Para tanto, as elaborações estão subsidiadas em Moraes
e Galiazzi (2016) e Bicudo (1994). Esses autores inspiram a termos, na fenomenologia,
o desafio para pensar a realidade de modo rigoroso e, na ATD, o modo pelo qual agi-
mos para perseguir a compreensão sobre a Pedagogia e o trabalho docente de
Pedagogas(os) em Licenciaturas do IFFar. Com base em suas premissas, reconhecemos
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na ATD um movimento interpretativo de caráter hermenêutico e assim tentamos
apresentá-la nesse texto.
Inicialmente, organizamos um corpus textual singular, constituído de textos pro-
duzidos especificamente no contexto da pesquisa, por três grupos de sujeitos envolvidos
com/co-presença no fenômeno investigado, nas condições de: (i) sujeito em devir do-
cente, licenciandos concluintes; (ii) coordenador de curso; e (iii) docente da Pedagogia
atuante em curso de Licenciatura da área das Ciências Naturais. O critério para defini-
ção do lócus da pesquisa diz respeito a esta ser a área de conhecimento com maior oferta
na Instituição, num total de 17, em 9 dos 10 campi do IFFar, 10 são na área das Ci-
ências Naturais, sendo as demais em Matemática (5/17) e em Computação (2/17). Vale
destacar que, em nosso entendimento, essa opção institucional revela a proposição de
cumprir o percentual determinado na Lei de Criação da RFEPCT (BRASIL, 2008).
Ao todo, são 50 sujeitos que fazem/faziam parte do universo “Cursos de Licen-
ciatura na área de Ciências Naturais ofertados pelo IFFar”. Pertencentes a 6 dos 10
campi do IFFar, os grupos podem ser assim descritos:
(i) Docentes da Pedagogia: 14 docentes, todos ingressantes na EBTT após a cri-
ação da RFECT, dos quais a maioria possui Doutorado em Educação (9 de 14,
perfazendo 64,3%) e é efetivo do quadro de servidores do IFFar, sendo que apenas um
deles é professor substituto. No contexto da ATD, os códigos de Unidades de Origem
(UO) atribuídos a eles são DP1 a DP14, sendo as letras a representação de Docente da
Pedagogia, e os algarismos, o indicativo da ordem temporal de participação na pesquisa.
(ii) Coordenadores de Curso: seis docentes, todos ingressantes na EBTT após a
criação da RFECT e efetivos do quadro de servidores do IFFar, compartilham da pre-
missa de que os Docentes da Pedagogia “buscam desenvolver suas práticas em
consonância com as orientações teóricas que defendem” (Questão 6). As Unidades de
Origem desse grupo foram codificadas por meio das letras CC, representando a condi-
ção de Coordenação de Curso, seguidas dos algarismos de 1 a 6, atribuídos conforme
a ordem temporal de participação na pesquisa.
(iii) Sujeitos em Devir Docente: 30 estudantes de 7º ou 8º semestre, 27 da Li-
cenciatura em Ciências Biológicas e 3 da Licenciatura em Química. A metade (15 de
30) é aluno(a) do Campus Panambi, 1/4 (8 de 32) é do Campus Santo Augusto, 5 são
do Campus Santa Rosa e 2 são do Campus Júlio de Castilhos. Os Códigos das Unida-
des de Origem atribuídos a eles são as letras SDD, representando a condição sujeito
em Devir Docente, enumeradas de 1 a 30 conforme a ordem temporal de participação
na pesquisa.
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Cada um dos sujeitos desses três grupos respondeu, individualmente, a um con-
junto de perguntas no Google Forms, no período de janeiro a maio de 2020,
consentindo para com as questões éticas subjacentes ao estudo por meio de Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido. Importante destacar que, correspondendo ao mo-
vimento de “iniciar a pesquisa”, para subsidiar a produção de textos-discursos pelos
quais os sujeitos co-presença na pesquisa compartilhariam entendimentos sobre o fe-
nômeno investigado, tais perguntas foram elaboradas a partir de cinco categorias
definidas a priori. Nesse texto, contudo, compelidas pelo questionamento sobre “o que
é que se mostra e se revela nos discursos sobre as práticas profissionais do Docente da
Pedagogia de Cursos de Licenciatura do IFFar”, analisamos textos-discursos vinculados
a duas categorias iniciais: (i) Atividades e experiências profissionais e (ii) Implicações
da atuação docente profissional da(o) pedagoga(o) e da Pedagogia nas Licenciaturas do
IFFar.
1
Importante destacar ainda que, assim como os textos-discursos analisados aqui
não correspondem à totalidade dos dados produzidos para a pesquisa, tais questões
não correspondem à totalidade dos questionamentos feitos aos sujeitos co-presenças
da pesquisa e sim àquilo que, em nosso entendimento, contribui e responde a referida
interrogação sobre a qual nos questionamos nesse momento da pesquisa.
Vale indicar ainda que, para as respostas às perguntas que fizemos, atribuímos
Unidades de Significado (US) ao encontro do processo fenomenológico de redução,
realizando, dessa forma, o processo desconstrutivo de unitarização da ATD. Como uma
explosão de ideias que encaminha a uma leitura aprofundada e compreensiva
(MORAES; GALIAZZI, 2016), a unitarização é um processo recursivo de mergulho
nos significados dos textos-respostas dos DPs, dos CCs e dos SDDs. É desmembrar um
texto, “[...] transformando-o em unidades elementares, correspondendo a elementos
discriminantes de sentidos, significados importantes para a finalidade da pesquisa, de-
nominadas de unidades de significado” (MORAES; GALIAZZI, 2016, p. 71).
Embora não sejam apresentadas todas as US, destacamos o conjunto reconhecido
como discursos que levaram à emergência de categorias finais e que permitiram novas
compreensões. Vale destacar que cada fragmento produzido observa o critério de rela-
ção com o fenômeno investigado, refletindo os objetivos do estudo e, embora balizada
por um referencial teórico a priori, como assim sugerem Moraes e Galiazzi (2016), é o
caminho para uma compreensão mais ampla sobre a Pedagogia e o trabalho docente de
pedagogas(os) em Licenciaturas do IFFar.
Este a priori está ao encontro de premissas como a docência como trabalho hu-
mano (TARDIF; LESSARD, 2014a) e de atividade profissional (TARDIF; LESSARD,
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2014b) que vem se constituindo pelo movimento de profissionalização (TARDIF,
2013; GAUTHIER; TARDIF, 1997; GAUTHIER et al., 2013). Somada à elas, a
compreensão dos IFs como política educacional “com uma proposta singular de orga-
nização e gestão, no diálogo com as realidades regional e local e em sintonia com o
global” (PACHECO, 2010, p. 26).
Vinculadas as atividades e experiências profissionais do docente da Pedagogia no
IFFar, reconhecemos relações profissionais dos DPs em quatro âmbitos: (A) do(s)
curso(s) em que atuam; (B) das questões discentes; das relações (C) com os demais
professores formadores e (D) com a coordenação do curso. No Quadro 1, mostramos
parte das US atribuídas, observando o critério da complementaridade e não da repeti-
ção.
Quadro 1 ntese das Unidades de Signif icado iden tificadas nos textos sobre
Relações Profissionais
Unidades de Significado - DP
Unidades de Significado - CCs
“[...] construção coletiva. Sinto-me acolhida e
à vontade para realizar o trabalho.” (DP2)
“Me envolvo em todas as atividades possíveis,
desde seleção de professor, perpassando por
auxílio em reformulação de PPC, semanas
acadêmicas.” (DP9)
“Procuro me envolver com a tríade ensino-
pesquisa-extensão.” (DP8)
(A) Curso(s) de
atuação
“Todos os docentes se envolvem da
mesma forma.” (CC3)
“Ativos e querendo ajudar na construção e
melhora constante das disciplinas que
oferecem, estágios, etc.” (CC5)
“Participam e
sempre contribuem no
colegiado e NDE do curso.” (CC6)
“Tenho uma postura de escuta.” (DP9)
“Sempre tive dificuldades em separar a vida
privada da profissional. Sou aquela docente
disponível 99% do tempo.” (DP8)
“Relações estritamente profissionais,
constituídas pelo amálgama dos saberes
necessários ao trabalho docente, voltados
para a formação humana.” (DP7)
(B) Questões discentes
“A atuação é direta e bem conduzida pelas
pedagogas, que auxiliam muito os
estudantes na prática docente, como o
desenvol
vimento de oficinas, aulas,
planejamentos, escritas de artigos, entre
outros, principalmente dentro dos
estágios, PeCCs e Residência
Pedagógica” (CC4)
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“[...] procuro priorizar: diálogo com pares mais
próximos da área de pedagogia para que eu
me sinta cada vez mais pertencente a esse
espaço de trabalho”. (DP4)
“A parceria com os pares é muito prazerosa
em meu ambiente de trabalho” (DP8)
“Procuro manter uma boa relação e sempre
dialogar, trazer minhas proposições ao grupo,
mesmo que causem estranhamento a alguns.”
(DP3)
“Através dos colegiados e NDE temos uma
interação muito boa.” (DP13)
(C) Professores formadores
“Como docente, me enquadro na área
específica e observo que as visões do que
é importante e objeto de aprendizado são
bem distintas entre os profes
sores da
formação pedagógica e os professores da
formação específica. Porém, penso que é
nessa diversidade de ideias e visões que
nos fortalecemos enquanto curso.” (CC5)
“É corriqueiro a participação em projetos e
disciplinas em conjunto com os demais
professores.” (CC1)
“Me sinto parte dos cursos, mas vejo que me
sinto mais parte em uns do que de em outros.
Essa aproximação vai da gestão do curso,
como ela compõe ou distancia, se ela
considera o docente pedagogo membro da
equipe ou não. Já vivi momentos de conflitos
no qual tive que impor minha presença como
docente do curso, isso é muito ruim para os
alunos que também enxergam a gente parte
ou não parte.” (DP12)
“Possuo uma boa relação com as
coordenadoras dos cursos em que atuo, em
função do reconhecime
nto do trabalho
prestado na área da Pedagogia (não me refiro
somente a mim, mas também aos meus
pares).” (DP8)
(D) Coordenação do Curso
“As professoras em questão são
protagonistas no NDE e colegiado sempre
contribuindo para o crescimento da nossa
Licencia
tura, o mesmo ocorrendo com
demandas específicas da coordenação.
(CC1)
“Recebo na sala de coordenação de curso
vários colegas com sugestões ou críticas
para a melhora de algum aspecto do
curso. [...] Como coordenação, várias
reuniões de Colegiado, NDE, estágios são
conduzidas, e nesses espaços os colegas
têm a chance de inserir suas ideias,
anseios, dúvidas.” (CC5)
“Proximidade atrelada à proximidade
física das salas de trabalho.” (CC2)
Fonte: Dados da Pesquisa.
Por fim, reconhecemos percepções acerca das Implicações da Pedagogia e da(o)
docente da Pedagogia, identificando responsabilidades profissionais dos docentes da Pe-
dagogia no processo de formação inicial de professores. Pelo processo de unitarização
dos textos constituídos pelas respostas, identificamos um conjunto de US, sendo que
apresentamos parte dele, por meio de um conjunto de orações (frases que contêm verbo
ou locução verbal) que representam a nossa síntese das ações-responsabilidades atribu-
ídas ao docente da pedagogia (Figura 2). É importante observar que trabalhamos com
a ocorrência de verbos e complementos verbais cuja análise se dá, semanticamente, na
aproximação aos discursos constitutivos do ensino e da Pedagogia, apresentados ante-
riormente no texto e na Figura 1.
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Figura 2 Síntese das US identificadas como Responsabilida des Profissionais da
Pedagogia n as Lice nciaturas d o IFFar n os textos d os sujei tos co-presenç a na pesquis a
Fonte: Dados da Pesquisa (2021).
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Encerrado o processo de unitarização da ATD, com o qual reconhecemos e en-
tendemos partes do fenômeno investigado, passamos à categorização, ao movimento
de síntese e reconstrução da pesquisa pelo qual construímos e estruturamos novas for-
mas de compreensão sobre a Pedagogia e o trabalho docente de Pedagogas(os) em
Licenciaturas do IFFar. No movimento de categorização, incorremos a elaboração de
regiões de generalidades compreendidas e estudadas no âmbito do estudado
(BICUDO, 1994). Em uma construção desde o corpus textual, o encaminhamento foi
do geral ao específico, sendo essa uma das formas de categorizar no contexto da ATD
(MORAES; GALIAZZI, 2016). Para além de reunir o que é semelhante, ao aprender
sobre o fenômeno investigado, constituímos um “mosaico”, dado que a expressão e
comunicação das novas compreensões foram produzidas ao mesmo tempo em que fo-
ram concretizadas (MORAES; GALIAZZI, 2016, p. 114). Assim, na aproximação do
conjunto de textos-discursos analisados (que respondiam ao questionamento que aqui
nos fazemos), chegamos a outras duas categorias: (i) relações profissionais dos DPs e
(ii) responsabilidades profissionais dos docentes da Pedagogia no processo de formação
inicial de professores. Como parte constitutiva da ATD, a categorização possibilitou a
sistematização de estruturas discursivas que nos levaram à emergência de duas catego-
rias finais, sintetizadas na Figura 3.
Figura 3 Síntese da categ orização por meio de ATD
Fonte: Dados da Pesquisa (2021).
Elaborado pelo movimento de interpretação e de construção de um mosaico
(MORAES; GALIAZZI, 2016), na sequência apresentamos o metatexto, em que nos
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desafiamos a comunicar e a revelar o que aprendemos e temos a dizer sobre o fenômeno
investigado, para além do redizer entendimentos-US e de somar categorias.
3 Desenvolvimento profissional e entremeios do trabalho
docente de pedagogas(os) no IFFAR: novas compreensões do/no
metatexto
Se inicialmente nos esforçamos para reconhecer os deslocamentos da concepção
de ensinar durante o processo de constituição da Pedagogia, vale indicar que assim
fizemos na tentativa de evidenciar a essência do fenômeno, de mostrar “as raízes, os
fundamentos primeiros do que é visto (compreendido)” (BICUDO, 1994, p. 20). Na
continuidade, os processos de unitarização e de categorização foram desenvolvidos e
apresentados como “cuidado com cada passo dado na direção da verdade (‘mostração’
da essência)” (idem). Agora, a intenção é compartilhar nossos entendimentos emergi-
dos a partir dessas percepções, em um metatexto. Chegar a ele, porém, não é tarefa
fácil, pois, como destaca Bicudo: “O mostrar-se ou o expor-se à luz, sem obscuridade,
não ocorre em um primeiro olhar o fenômeno, mas paulatinamente, dá-se na busca
atenta e rigorosa do sujeito que interroga e procura ver além da aparência, insistindo
na procura do […] essencial” (BICUDO, 1994, p. 18).
Ao iniciar este metatexto, partimos de um questionamento que emerge na apro-
ximação e contrastação do referencial teórico e do corpus textual (dados empíricos da
pesquisa): O atual discurso constitutivo do ensino e da Pedagogia de profissionaliza-
ção docente é a atualidade vivida no contexto das licenciaturas dos IFs? Ou melhor:
como pode ser compreendido o mostrado e revelado nas concepções docentes e discen-
tes acerca da contribuição da Pedagogia ao processo de constituição docente na
formação inicial de professores em cursos de licenciatura do IFFar, no contexto de des-
locamento dos momentos-discursos da Pedagogia e do ensino?
Embora criados numa conjuntura de atualidade, com pouco mais de uma dé-
cada, o estudo nos leva à compreensão de que os profissionais pedagogas(os) que atuam
no IFFar vivem um entrelaçamento de orientações teórico-práticas. Coexistem elemen-
tos que podem ser situados em contexto amplo, no âmbito de “vivências comuns” à
formação inicial de professores no Brasil e à docência em cursos de licenciatura, e em
elementos de natureza mais específica, singulares ao trabalho docente em um IF. En-
tendemos que os primeiros são constitutivos do desenvolvimento profissional docente;
os segundos, como entremeios do trabalho docente em um IF.
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3.1 Constituição e desenvolvimento profissional docente
Na compreensão desse contexto amplo, Arroyo (2013) contribui com a discus-
são, ao partir da premissa de não ser possível que a identidade de trabalhadores e de
profissionais apague os traços de uma imagem social, construída historicamente. Nas
palavras do autor, “onde todos esses fios se entrecruzam. Tudo isso sou. Resultei de
tudo” (ARROYO, 2013, p. 33). A esse encontro, Gatti enfatiza que “redes educacio-
nais e escolas são instituições integrantes da sociedade e, como tal, nelas se encontram
os mesmos traços característicos das dinâmicas sociais, aí incluídas tensões e conflitos de
uma dada conjuntura” (2017, p. 722, grifo nosso). No IFFar há, contudo, uma atuação
docente singular, ao encontro da configuração administrativo-pedagógica singular dos
IFs, ao mesmo tempo que estabelecida por traços comuns ao desenvolvimento profis-
sional no Ensino Superior, como evidenciamos no texto.
Se entre as US identificadas nos textos dos DPs quase não há elementos vincula-
dos ao ensino como vocação, e estes dizem muito mais da docência como profissão,
entre os CCs e os SDDs há tanto percepções vinculadas à vocação, quanto situadas
entre o ofício e a profissão, como é possível visualizar na Figura 2. Essa constatação,
contudo, nos permitiria avaliar o quanto profissionalizam ou não os cursos lócus da
pesquisa? Entendendo que não, ratificamos o já expresso no texto, mas nos valendo de
Tardif e Lessard: “a evolução não é mais percebida como unidimensional e unidirecio-
nal; ela aparece, antes, como um processo de complexificação e de recomposição de um
trabalho que tenta reconhecer e incorporar dimensões de certo modo intrínsecas à ati-
vidade docente” (2014b, p. 256).
Existem, sobretudo, elementos que correspondem à “atualidade”, conforme
apresentamos na Figura 2. Nesse raciocínio, nos questionamos sobre o quanto a parti-
lha de percepções permitiu, não somente a nós pesquisadoras, mas também aos sujeitos
envolvidos, a vivência da experiência de perceber partes da essência do fenômeno in-
vestigado, pelo movimento reflexivo que, desvendado à consciência, leva à ampliação
do horizonte compreensivo. O conjunto de US por nós atribuídos aos DPs, profissio-
nais da área da pedagogia que atuam na formação inicial de professores em cursos de
licenciatura e, portanto, professores do Ensino Superior, levam àquilo que Pimenta e
Anastasiou (2011) defendem como desenvolvimento profissional dos professores do
Ensino Superior em IES
2
, termo tomado por nós como adequado para expressarmos
uma das categorias finais a que chegamos. Isso porque, para as autoras,
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a docência na universidade configura-se como um processo contínuo de construção da identidade
docente e tem por base os saberes da experiência, construídos no exercício profissional mediante
o ensino dos saberes específicos das áreas do conhecimento. Para que a identidade de professor
se configure, no entanto, há o desafio de pôr-se, enquanto docente, em condições de proceder a
análise crítica desses saberes da experiência construídos nas práticas, confrontando-os e
ampliando-os com base no campo teórico da educação, da pedagogia e do Ensino (PIMENTA;
ANASTASIOU, 2011, p. 88).
Um processo de constituição docente dessa natureza, diferentemente da vivida
pelos SDD bem como para todo e qualquer aluno de curso de licenciatura , confi-
gura uma identidade epistemológica (decorrente de seus saberes científicos e os de
ensinar) e, ao mesmo tempo, profissional, “ou seja, a docência constitui um campo
específico de intervenção profissional na prática social”, envolvendo “ações e programas
quer de formação inicial quer de formação em serviço” (PIMENTA; ANASTASIOU,
2011, p. 88). Dentre os entendimentos compartilhados conosco pelos DPs envolvidos
na pesquisa, reconhecemos um conjunto que dá corpo ao desenvolvimento profissio-
nal, tal qual concebem Pimenta e Anastasiou (2011). Em nossa leitura, são os princípios
indicados como balizadores da prática docente que movimentam e constituem as ati-
vidades profissionais por eles desenvolvidas.
Conforme Tardif (2013), os professores reconhecem seus conhecimentos em sua
experiência de vida no trabalho, na medida em que reinterpretam os conhecimentos
externos (de sua formação, da pesquisa ou de outras fontes de conhecimento) em razão
das necessidades específicas de seu trabalho. Da mesma forma, Pimenta e Anastasiou
(2011) destacam a consciência sobre as práticas de sala de aula e da instituição de ensino
como um todo, como condição para transformação das práticas docentes. E isso, con-
forme as autoras, “pressupõem os conhecimentos teóricos e críticos sobre a realidade”,
uma vez que “ao confrontar suas ações cotidianas com as produções teóricas, impõe-se
a revisão de suas práticas e das teorias que as informam, pesquisando a prática produ-
zindo novos conhecimentos para a teoria e a prática de ensinar” (PIMENTA;
ANASTASIOU, 2011, p. 89).
Esse processo constitui um “voltar-se sobre si mesmo”, movimento não muito
tranquilo aos professores, como destacado por Arroyo (2013), mas que faz pensar e
aprender mais sobre si mesmo do que sobre conteúdos ou métodos, mesmo que isso
implique em “uma mirada carregada de sentimentos desencontrados, apaixonados”.
Segundo o autor,
problematizar-nos a nós mesmos pode ser um bom começo, sobretudo se nos leva a desertar das
imagens de professor que tanto amamos e odiamos, que nos enclausuram, mais do que nos
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liberta. Porque somos professores. Poucos trabalhos e posições sociais podem usar o verbo ser de
maneira tão apropriada [...] carregamos angústias e sonhos na escola para casa e de casa para a
escola não damos conta de separar esses tempos porque ser professores e professoras faz parte de
nossa vida pessoal. É o outro em nós (ARROYO, 2013, p. 27).
Em meio à contribuição de Arroyo (2013), a premissa de humana docência tam-
bém dialoga com nossas compreensões sobre o desenvolvimento profissional. Como
defende o autor, “[…] educar é revelar saberes, significados, mas antes de mais nada,
revelar-nos como docentes educadores em nossa condição humana. É nosso ofício. É
nossa humana docência” (ARROYO, 2013, p. 67). Em diálogo a essa concepção, nos
valemos de Nóvoa, na bela elaboração de que:
[…] a maneira como cada um de nós ensina está diretamente dependente daquilo que somos
como pessoa quando exercemos o ensino [...]. Eis-nos de novo face à pessoa e ao profissional, ao
ser e ao ensinar. Aqui estamos. Nós e a profissão. E as opções que cada um de nós tem de fazer
como professor, as quais cruzam a nossa maneira de ser com a nossa maneira de ensinar e
desvendam a nossa maneira de ensinar, a nossa maneira de ser. É impossível separar o eu
profissional do eu pessoal (2013, p. 17).
Para além do entrelaçamento dessas concepções sobre desenvolvimento profissi-
onal, reconhecido no corpus textual em um sentido mais amplo, compreendemos, com
a segunda categoria final a que chegamos pela ATD, a existência de singularidades no
trabalho docente dos profissionais da área da Pedagogia no IFFar.
3.2 Entremeios do trabalho docente
As singularidades do trabalho docente em um IF dizem respeito, desde a proxi-
midade física de salas de trabalho de professores, à opção por uma proposta pedagógica
que busca romper com os balizadores da racionalidade técnica (especialmente pelo for-
mato de oferta de suas práticas profissionais, destacado por participantes da pesquisa e
que em outro texto analisamos). É Gatti, contudo, quem nos subsidia na concordância
desse “exaltar da proposta pedagógica” dos cursos lócus da pesquisa, quando ela sugere
que
para se conseguir nas instituições instauração de um novo modo de pensar a formação de
docentes, […] há a necessidade de haver de um lado, consciência de que chegamos a uma situação
totalmente insatisfatória nessa formação, e portanto insustentável, e, de outro, possibilidade de
criação de alguma ação coletiva que permita trazer à tona contribuições fundantes originárias do
campo das Teorias Pedagógicas e da Didática ao Conjunto de Áreas que são objeto dessa
formação e da especialização de docentes (2017, p. 734-735).
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Dentre o conjunto de US atribuídas ao corpus textual, há ainda outras singulari-
dades que podem ser compreendidas, especialmente, pelas relações profissionais
estabelecidas pelos DPs e os CCs (Quadro 1), que revelam quanto ao pertencimento
institucional dos profissionais da Pedagogia bem como das demais áreas. Não havendo
a oferta de Pedagogia como licenciatura, os DPs circulam e interagem com pares de
sua área e entre as diferentes áreas de conhecimento que compõem os currículos dos
três cursos: Licenciatura em Física, Licenciatura em Química e Licenciatura em Ciên-
cias Biológicas. A característica institucional singular aos IFs de não
departamentalização dos profissionais das diferentes áreas de conhecimento permite o
diálogo entre professores físicos, químicos, biólogos, das linguagens, da educação espe-
cial, da sociologia, da filosofia, entre outras áreas, especialmente nos espaços-tempos
institucionais de planejamento e discussão sobre os cursos em questão e sobre os Nú-
cleos Docentes Estruturantes e Colegiados, como destacado por diferentes sujeitos DPs
e CCs.
Buscando compreender tais singularidades, aproximamo-nos das compreensões
de Nóvoa (2013, 2019), não somente quanto à relação pessoal e profissional, mas tam-
bém quanto ao conceito de entremeios, atentos para os entremeios do trabalho docente
no IFFar, isto porque, ao enfatizar a relação pessoal e profissional, Nóvoa (2013) ela-
bora o conceito de um espaço entre-dois, entre a formação inicial do professor (sua
Graduação e/ou Pós-Graduação) e a sua atuação profissional em uma instituição de
ensino. Trata-se de um espaço de entremeio pelo e no qual “verdadeiramente, nos tor-
namos professores, que adquirimos uma pele profissional que se enxerta na nossa pele
pessoal” (NÓVOA, 2019, p. 207). Nesse entremeio (NÓVOA, 2019), a colegialidade,
decisões, ações e o trabalho coletivo são valorizados, potencializando a corresponsabi-
lidade para a formação profissional. E nesse processo, os professores, adquirem um
corpo em que a profissão é inextricável do ser e o trabalho em rede é potencializado.
Por fim, considerando a docência em cursos de formação inicial de professores
em instituições de ensino cuja identidade ainda pode ser caracterizada como indeter-
minada (FRIGOTTO, 2018), em construção, para nós, os entremeios se estendem: à
institucionalidade inédita dos IFs e às organizações existentes no Brasil até então, o que
exige uma constituição identitária, numa equação entre as fragilidades que historica-
mente marcam os cursos de licenciaturas e um fazer institucional diferente, para além
delas; ao trabalho desenvolvido em cada um dos IFs que compõe a RFEPCT e ao tra-
balho em rede, a ser ainda potencializado no país, pois, embora existam fóruns das
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licenciaturas de diferentes IFs, não há articulação do todo; e, a esse encontro, o desen-
volvimento de ações e práticas institucionais autônomas e, ao mesmo tempo,
vinculadas ao projeto societário que deu vida aos IFs.
Compreensões finais
Guiadas pela ATD, o que identificamos, nessa descrição e interpretação de parte
do corpus textual de nossa pesquisa? Premissas do discurso profissional contemporâneo
(GAUTHIER; TARDIF, 1997), da idade da profissão (TARDIF, 2013) se fazem pre-
sente na docência das(os) pedagogas(os) do IFFar, entrelaçados, entretanto, à elementos
discursivos dos momentos anteriores a ele. No IFFar há singularidades no processo de
profissionalização docente, sendo que a recente constituição da RFEPCT não garantiu
cursos de licenciatura “isentos” dos discursos constitutivos do ensino e da Pedagogia
até mesmo porque, como evidenciado no texto, isso não seria possível. Entre o que se
mostrou na pesquisa e nossas compreensões, as palavras de Arroyo (2013) fazem inter-
locução direta: “carregamos todos uma história feita de traços comuns no mesmo
ofício”.
Ratificamos a ideia de Gauthier et al. (2013) sobre quão necessário é às práticas
institucionais de licenciatura o estabelecimento de um ofício feito de saberes. Nas sin-
gularidades ou nas vivências comuns, sejam em IFs ou outras IES, parece-nos que o
reconhecimento da Pedagogia que se quer como referência para o trabalho docente dos
profissionais da área em cursos de formação inicial de professores, ainda é desafio. Em
nosso entendimento, o lugar ou não-lugar da Pedagogia em cursos de formação inicial
de professores para a Educação Básica (que não de Pedagogia como curso de ensino
superior, requisito para atuação profissional na Educação Infantil e nos anos iniciais do
Ensino Fundamental, como previsto na LDB) ainda carece de estudos e discussões.
Por fim, destacamos que há uma diversidade de implicações teórico-práticas do
trabalho docente de pedagogas(os) e da Pedagogia nos cursos de licenciatura do IFFar,
lócus do estudo. Diversidade essa que, desde a constituição profissional aos entremeios
do desenvolvimento profissional, entendemos estar ao encontro das idas e vindas
quanto as “atribuições” da Pedagogia como ciência da educação e, consequentemente,
da(o) pedagoga(o).
Notas
1
Para além das duas categorias citadas, as outras três são: Princípios da prática docente de Pedagogas(os);
Identidade da docência no IFFar; e, Conhecimento de Professor / Saberes da Docência. O conjunto
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de textos-discursos produzidos para elas são analisadas em exercício de ATD posterior ao apresentado
no texto.
2
De forma distinta, ao invés de usarmos docência na universidade, como assim fazem Pimenta e
Anastasiou (2011), usamos a expressão docência em IES, dado haver outros tipos de instituição de
ensino superior que podem ofertar cursos de graduação de formação inicial de professores, pedagogia
ou demais licenciaturas, e não somente as IES cuja organização administrativa e pedagógica se dá como
universidade. Nos referimos, assim, à IES de forma contemplar tanto ela, como também os Centros
Universitários, as Faculdades e os Institutos.
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O cuidado com a escrita e a leitura para uma educação
filosófica na escola
The care of writing and reading for philosophical education at
school
Cuidados de la escritura y la lectura para la educación filosófica em
la escuela
Betina Schuler
*
Resumo
Este ensaio teórico objetiva problematizar as relações entre a verdade e a subjetivação a partir de
Sêneca e Foucault, com foco nas práticas de leitura e escrita na escola. Com inspiração na genealogia
da subjetivação, entende-se que não se trata apenas de relações de conhece-te a ti mesmo, cuida-te
de ti mesmo ou domina-te a ti mesmo. Vivemos um importante deslocamento nas práticas de si,
podendo-se nom-las como desempenha-te a ti mesmo na stultitia contemporânea que vivenciamos,
em que o conhecimento se reduz a objeto de troca e a uma pobreza narrativa. Para tal
problematização, toma-se a potência de uma educação filosófica na escola por meio de práticas de
leitura e escrita como resistência a um presente neoliberal e neoconservador que limita tais práticas
a um pragmatismo instrumental e a índices de avaliação.
Palavras-chave: Escrita. Leitura. Subjetivação. Educação filosófica. Escola.
Abstract
This theoretical essay aims to problematize the relations between truth and subjectivation
considering Seneca and Foucault studies. Based on Foucault’s genealogy of subjectivation, the
relation between truth and subjectivation in the present involves more than knowing the self, taking
care of the self, or controlling the self. I argue that, we live an important displacement of the practices
of the self, which can be called perform the self in the contemporary stultitia. In such displacement,
knowledge is reduced to an exchanged object and a poor narrative. Thus, the potentiality of
philosophical education at school through practices of writing and reading is taken as resistance
against a neoliberal and neoconservative present that limits these practices to an instrumental
pragmatism and assessment rates.
Keywords: Writing. Reading. Subjectivation. Philosophical education. School.
Recebido em: 15.08.2022 Aprovado em: 11.01.2023
https://doi.org/10.5335/rep.v29i3.13776
ISSN on-line: 2238-0302
*
Professora na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), Escola de Humanidades, Programa de Pós-Graduação em
Educação. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-2424-7601. E-mail: betinaschuler@hotmail.com.
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Resumen
Este ensayo teórico pretende problematizar la relación entre verdad y subjetivación a partir de Séneca
y Foucault, con enfoque en las prácticas de lectura y escritura en la escuela. Inspirándose en la
genealogia de la subjetivación, se entiende que no se trata solo de relaciones como conócete a ti
mismo, cuídate a ti mismo, o domínate a ti mismo. Vivimos un cambio importante en las prácticas
de sí, pudiendo nombrarlas como desempéñate a ti mismo en la stultitia contemporánea que
vivenciamos, donde el conocimiento se reduce a un objeto de intercambio y a una pobreza narrativa.
Para tal problematización, se toma el poder de una educación filosófica en la escuela a través de
prácticas de lectura y escritura como resistencia a un presente neoliberal y neoconservador que limita
tales prácticas a un pragmatismo instrumental y a índices de evaluación.
Palabras clave: Escritura. Lectura. Subjetivación. Educación filosófica. Escuela.
Introdução
1
Toda filosofia constituiu-se também, e de certa forma essencialmente, em crítica da
razão, ou seja, em cuidadoso processamento crítico da(s) racionalidade(s) vigentes
em uma determinada época, desde a percepção qualificada e situada em um
determinado
locus
cultural específico que, não obstante, resgata arqueológica e
genealogicamente o passado e abre efetivas possibilidades compreensivas-
propositivas ao futuro (SOUZA, 2018, p. 43).
Roger Waters
2
, no refrão da música Amused to death, a qual compõe o álbum que
leva o mesmo nome, traz uma espécie que se entreteve até a morte sem mais lágrimas
para chorar, sem pensamentos para pensar, celebrando a juventude em cada vez mais
telas , o que nos faz pensar sobre o entupimento de informações e a decadência hu-
mana. A escolha de iniciar um texto com arte fala da tomada de posição de pensar a
relação entre o sujeito e a verdade no recorte das práticas de leitura e escrita, assim
como da potência, ainda, da escola pública no encontro com a filosofia e com a arte
para continuarmos respirando outras possibilidades de vida e de pensamento.
O que podem a leitura e a escrita na escola para aprendermos, não doutrinas,
mas modos de existência? Vivemos ataques paradoxais no que se refere à leitura e à
escrita na escola no presente. Ora são tachadas de inúteis, obsoletas, ora são acusadas
de perigosas à constituição das infâncias e isso em meio a todo um léxico empresarial
que reduz essas práticas a ferramentas utilitaristas, a serviço de uma aplicação pragmá-
tica.
Com o deslocamento para o capitalismo contemporâneo, as linguagens da pro-
dução tomam força, embasando como, por que e para que se lê e se escreve na escola,
a partir de uma pragmática instrumental e do monitoramento de indicadores. Será que,
paradoxalmente, a escola ainda não poderia ser um espaço de resistência e de suspensão
desses modos usuais de comunicação e expressão que tomam os espaços públicos?
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Em tempos em que a leitura e a escrita vêm sendo assumidas naturalmente sob a
perspectiva da avaliação, perguntar pela formação humana parece inaudível, e talvez
daí a força dessa questão junto às escolas para ainda exercermos o poder da problema-
tização. Neste presente neoliberal e neoconservador, a resposta do capitalismo sobre os
modos de vida opera a partir da lógica de um “comércio de vidas”, em que cada pessoa
consome o que lhe convém. Mas o que poderiam a escrita e a leitura, tomadas pela
perspectiva de uma educação filosófica na escola, na problematização dessa stultitia
contemporânea, que cultua a espetacularização da vida em redes sociais, a aceleração, o
superdesempenho e a concorrência com os demais e consigo mesmo?
A partir de tal questão, que guia esta escrita, outras ainda se desdobram. Como
podemos passar tanto tempo dentro das escolas, lendo e escrevendo, e essas práticas
não produzirem nada em nós? Como, o quê e por que as crianças e jovens estão lendo
isso, e não outras coisas? Como a resistência à barbárie dos nossos tempos e a busca por
certa dignidade humana poderiam passar por essas práticas como um cuidado especí-
fico com a vida?
Em tempos de pobreza narrativa, superaceleração, precarização dos laços, frag-
mentação e esmaecimento da memória, adultização das infâncias, infantilização dos
adultos, opinião que substitui o exercício do pensamento e tagarelice valorada como
“estudo”, aí está a potência de tomar as práticas de leitura e escrita na escola pública,
que atende crianças e jovens mais vulneráveis em se tratando das desigualdades sociais
e econômicas no nosso país, como atividade crítica em relação a si mesmo, aos outros,
ao seu mundo cultural.
Faz-se importante retomar que grande parte das crianças e jovens não tiveram
acesso à educação escolarizada no Brasil em função da pandemia de Covid-19 desde
março de 2020. Destaca-se, igualmente, que muitas dessas crianças das escolas públicas
acessam a leitura por meio de livros físicos retirados nas bibliotecas escolares. Enfatiza-
se, também, o quanto a figura do professor pode ser a de adulto de referência que, nesse
espaço escolar, ainda consegue exercitar o cuidado e o pensamento em tempos de des-
moronamento da cultura letrada. Isso nos provoca a perguntar: o que pode o encontro
entre um professor, alunos e um texto? Para o que estamos conduzindo? Isso porque,
quando falamos de escola, a questão sempre envolve o modo de condução que se pratica
e com quais materialidades.
Por isso, tem-se uma investigação que busca realizar uma ontologia do presente
como postura intelectual que parte da questão nietzschiana e foucaultiana o que es-
tamos nos tornando no presente , regressando a alguns textos clássicos como modo
de atualizá-los para pensar o presente.
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Assim, podemos tomar a escola como essa instituição que vem entregando as
cartas, geração a geração, fazendo outras coisas a partir delas, desde esse grande-pe-
queno encontro entre palavras, pessoas e sentidos. Se hoje nos deparamos com práticas
de negacionismo da ciência, necropolítica e naturalização das desigualdades, o que pode
uma educação filosófica e literária que busque outras experimentações com a leitura e
a escrita na escola pública como resistência à barbárie? Daí a defesa da escola pública
como esse lugar possível, esse campo pedagógico de uma amizade intelectual e afetiva
pela palavra do outro, como uma forma de cuidado, de equipagem de si. E porque este
é um problema sério e difícil, não pode servir de pretexto para não o tomarmos para
pensar junto com aqueles que vivem nas escolas, de modo a alargar a envergadura do
nosso pensamento e da nossa existência, tal como uma arte a ser elaborada.
Práticas de leitura e escrita na escola: um possível diagnóstico
Desde Platão, já podemos traçar uma arquegenealogia, partindo-se do perigo que
estava na leitura dos poetas, que deveriam ser expulsos da cidade, por seus textos não
serem da verdade e colocarem os jovens frente à tragédia, à comoção, ao abismo do
fundo. Já nos estoicos, o perigo vai aparecer vinculado à agitação permanente, ao que
chamavam de stultitia (FOUCAULT, 2011a), ou seja, a desatenção de quem não con-
segue colocar-se frente a frente consigo mesmo, justamente para deslocar-se de si, para
transfigurar-se, daí a importância da leitura como desaprendizagem (perspectiva que
muito interessa a este texto). Mais adiante, já no Medievo, a relação do perigo com a
escrita e a leitura será enfocada a partir da ameaça que poderiam representar leituras
pagãs, leituras do pecado, ou seja, o que não fossem as sagradas escrituras. Lutero, to-
mado como um “alfabetizador”, discutia o perigo de não acessar as sagradas escrituras
por si mesmo. Já Comenius, no século XVII, aparecerá com o livro didático, enfati-
zando a dificuldade na lidação com textos não escritos na língua materna das crianças
e enfadonhos demais para prenderem sua atenção.
Muitos pensadores iluministas mencionarão a necessidade de estudo da Antigui-
dade greco-romana, em especial, dos textos de filosofia moral e literatura, apontando
para o perigo vinculado ao abandono dos clássicos. Desse modo, “[...] o aluno devia
saber capturar este ou aquele autor, esta ou aquela temática para a fazer variar, rodopiar,
relacionar. Para a continuar por si próprio. As tecnologias escolares de então estavam
dirigidas para incentivarem o aluno a experimentar o mais cedo possível o lugar e a
posição do escritor” (Ó, 2017, p. 133).
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Kant, no século XVIII, enfatizará, em Sobre a Pedagogia, o perigo da falta de
disciplina e instrução, que constituirão a formação, assim como chamava já a atenção
para as diferenças entre educação pública e educação privada. Já a psicologia experi-
mental do final do século XIX e início do século XX falará sobre o problema de a
criança não ser o centro do processo educativo e de uma crescente necessidade de ob-
servação e registro de seu desenvolvimento (Ó, 2003).
Trata-se, pois, de diversos enunciados que vinculam leitura, escrita e perigo, de
diferentes perspectivas. Com esses deslocamentos na noção de perigo aliada à leitura e
à escrita, especificamente em nosso país, no início do Brasil Colônia, temos o enunci-
ado do perigo de um povo sem lei, sem fé e sem rei que deveria ler e escrever em
português como forma de colonização. Com as reformas pombalinas, ocorre a expulsão
dos jesuítas, com a acusação da inutilidade de seus métodos, também de leitura e es-
crita. No final do século XIX e início do século XX, quando o país buscava modernizar-
se, vemos uma grande escassez de materiais impressos no Brasil e a necessidade de pro-
duzir textos da escola e para a escola, começando no início do século o investimento
modesto em livros didáticos (SCHULER, 2017).
Assim, somos herdeiros de um país que teve a proibição da tipografia no século
XVIII e que ainda condenava escritos, tipificando-os como crime no século XIX, sendo
que “[…] os principais crimes deste tipo eram a blasfêmia, ataques à religião católica,
violação da moral cristã, difamação do ministro-chefe e incitamento à rebelião”
(HALLEWELL, 1985. p. 42). Já no período da ditadura na Era Vargas e na ditadura
civil-militar a partir de 1964, tivemos diversos livros proibidos. Na ditadura Vargas,
houve perseguição e prisão de autores, e incineração de livros. Na ditadura cívico-mi-
litar, ao longo dos dez anos e 18 dias de vigência do AI-5, em torno de 200 livros foram
alvos da censura (VENTURA, 1988, n.p.). Segundo Heleno Cláudio Fragoso (apud
GASPARI 2014, n.p.), aproximadamente 17 mil exemplares de 35 obras foram apre-
endidos ao longo desse período, além de autores terem sido perseguidos, torturados,
presos e mortos. O decreto lei n.º 1.077 de 1970 trazia a ideia de não tolerar publica-
ções “contrárias à moral e aos costumes”, para proteger a instituição da família e seus
valores e garantir uma “formação sadia e digna da mocidade”, criminalizando as publi-
cações que servissem “a um plano subversivo que põe em risco a segurança nacional”.
Com a abertura democrática no Brasil, tivemos um incremento das políticas de
fomento à leitura, destacando-se o Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE)
como o maior programa em aportes financeiros, que atravessou três diferentes gover-
nos, tendo sido criado em 1997 (CORDEIRO, 2018). O Programa contava com a
distribuição de acervo literário, material de apoio didático e atualização profissional
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para as escolas públicas brasileiras. Ainda vinculado a ele, foi criado o Projeto Literatura
em Minha Casa, que possibilitava que os alunos levassem livros para casa. O PNBE foi
extinto em 2017, e nosso país ficou anos sem uma política séria de potencialização dos
acervos das bibliotecas nas escolas públicas e sem investimento na formação de profes-
sores para as práticas de leitura e escrita.
No contemporâneo, especialmente no Brasil, mas com força em muitos outros
países, se fortalece uma onda neoconservadora que se alia ao neoliberalismo na preca-
rização do trabalho, na diminuição de direitos humanos, no negacionismo científico,
em racismos e preconceitos de toda ordem e no desmonte de políticas públicas. Tal
cenário agrava-se com a crise sanitária gerada pela pandemia de Covid-19 a partir de
2020, desencadeando uma crise política e econômica, além de intensificar as já tão
amplas desigualdades econômicas, sociais e educacionais em nosso país.
Temos, portanto, um longo histórico que alia perigo e práticas de leitura e escrita
no Brasil, com a falta de políticas públicas sérias de fomento à leitura e o agravamento
no acesso, em se tratando da população mais carente economicamente. Podemos citar,
apenas como alguns exemplos, as notícias de quando Crivella
3
, então prefeito do Rio
de Janeiro, determinou o recolhimento do livro Os vingadores na Bienal, por ter na capa
dois rapazes se beijando. Pode-se destacar também o acontecido em Rondônia, em que
a Secretaria de Educação buscou recolher mais de 40 obras das escolas, voltando atrás
na decisão
4
. Há, ainda, a tentativa do atual Ministério da Economia de abrir caminho
para a volta na taxação de livros.
5
Como um último exemplo, podemos citar a fala da
então Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, quando afirmou que estava
sendo distribuído para crianças no Nordeste um manual sobre prática de bruxaria.
6
Soma-se a isso um temor de boa parte dos professores em propor leituras, tendo em
vista as reações conservadoras de algumas famílias. Entre tantos outros acontecimentos
que poderíamos citar em nosso país nos últimos anos em tempos de desmantelamento
de políticas públicas de fomento à leitura, se pensarmos na extinção do PNBE em 2017,
nosso maior programa de fomento à leitura, precisamos questionar esse regime de ver-
dade que fala sobre a crise da escola a partir do enunciado neoliberal da eficiência e de
escola por resultados.
A filosofia, a literatura, as artes, as humanidades em geral e, inclusive, as escolas
vêm sendo denunciadas ora como inúteis e obsoletas, ora como perigosas, a partir de
uma lógica tecnicista e de um inovismo por inovismo. Tal como a metrópole vestida
sempre de novidade, como relata Calvino (2015) em As cidades invisíveis, uma vez jo-
gadas fora as coisas, ninguém mais pensa sobre elas; precisamos conjecturar o que esses
sintomas nos falam do nosso presente e de nossos modos de existência.
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A partir disso, podemos retornar à clássica questão de Adorno (2020) sobre a
educação política e a necessidade de elaborar o passado, na procura de interromper a
barbárie e dizer o indizível, para que não tenhamos uma humanidade sem memória, o
que muito nos remete à realidade brasileira contemporânea uma necessidade de me-
mória na perspectiva de Walter Benjamin (2012), de uma memória ativa que modifica
o presente. Assim, “quem escreve com essa responsabilidade que essa atividade gravís-
sima significa, necessita e exige precisa, antes de tudo, subverter a lógica dos tempos da
leviandade, em cada época” (SOUZA, 2018, p. 77).
No presente, diversos pronunciamentos de autoridades brasileiras ligadas ao Go-
verno Federal e divulgações na internet utilizando fake news falam do perigo dos livros,
associando seu uso a professores doutrinadores, ao comunismo e à incitação da sexua-
lidade desviante. Com isso, cada vez mais, podemos perceber o quanto as discussões
sobre as práticas de leitura e escrita na escola têm sido atravessadas pelo enunciado do
perigo seja por força de doutrinação, seja por “inutilidade” e “perda de tempo” , em
uma lógica em que os alunos são transformados em clientes consumidores de informa-
ções. A partir dessa lógica, serão valoradas as habilidades de conexão e navegação na
internet bem desenvolvidas, sem que necessariamente esses signos passem pelo corpo,
alterando radicalmente nossa atenção e possibilidades de expressão (BERARDI, 2020).
E aqui, talvez, possamos dizer que estamos vivendo um importante deslocamento nas
relações que estabelecemos com nós mesmos, com os demais e com os saberes.
Além desses apontamentos, é importante salientar o quanto as políticas públicas
de fomento à leitura vêm sendo desmontadas em nosso país e o quanto as escolas pú-
blicas estão desabastecidas (CORDEIRO, 2018). Além da extinção do PNBE em
2017, houve a inclusão de livros literários no Plano Nacional do Livro Didático, mu-
dando substancialmente a qualidade das produções. Ainda, pode-se citar o Programa
Nacional de Alfabetização, aqui buscando um pequeno recorte no Programa Conta pra
Mim
7
(2019), apenas como um exemplo de discursos neoconservadores que vêm se
fortalecendo. Enquanto nas últimas décadas tivemos fortes investimentos financeiros
em livros e na formação de professores, ou seja, investimentos no espaço público e
coletivo, com este programa, vê-se todo um deslocamento do investimento para o es-
paço privado e para relações individualizadas. Isso porque tal programa é voltado para
o que se tem chamado de “literacia familiar”, destinada à formação de leitores pelos
espaços privados das famílias, colocando os pais e responsáveis como mediadores, a
partir de livros (até agora) somente digitais (sendo que o período da pandemia já evi-
denciou a falta de acesso à internet de grande parte da população brasileira).
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Com a pandemia de Covid-19, pudemos perceber o tamanho da desigualdade
social e educacional em nosso país, quando grande parte das crianças e jovens não tive-
ram acesso às aulas remotas por não terem internet que assim permitisse. Desse modo,
se um grande número de famílias não têm acesso à internet, como ficaria esse acesso
aos livros? Quais as diferenças entre práticas públicas de leitura na escola e leituras pri-
vadas na família (e aqui não se discute a importância disso; trata-se somente de entender
o deslocamento do foco)? Quem são as famílias que leem para seus filhos? Soma-se a
isso a questão de que, dentre as obras digitalizadas pelo Programa Conta pra Mim,
estão contos de fadas, que já nasceram para a moralização das infâncias, sendo ainda
modificados em prol da “proteção” da infância.
Outro sintoma a ser destacado é o crescimento de práticas de leitura pautadas
por plataformas digitais, que gamificam a leitura literária a partir de textos pobres em
se tratando de narrativa, focando na acumulação de pontos e na lógica do desempenho.
Além disso, a maior pesquisa sobre leitura do Brasil, “Retratos da Leitura no Brasil”
8
,
produzida pelo Instituto Pró-Livro, vem fazendo parcerias com instituições financeiras
desde o ano passado, pautando a temática da leitura nas avaliações de larga escala (e
aqui reconhecendo a importância dessa pesquisa).
Tal mapeamento nos faz levantar importantes questões. Pode-se salientar o fun-
cionamento das relações entre a verdade e a subjetivação por meio das práticas de leitura
e escrita na escola, agora funcionando fortemente mediante o entupimento de opiniões
a serem performadas. Em uma época em que se pergunta pela utilidade pragmática dos
currículos escolares, da avaliação escolar, da formação de professores e, principalmente,
pela utilidade da leitura e da escrita na escola em tempos do elogio à rapidez e utilita-
rismos de toda ordem, neste ensaio teórico, opta-se por tomar uma postura filosófica e
perguntar pela finalidade. Mas aqui não interessa o final alcançado, na lógica de alcan-
çar resultados verificáveis, mas perguntar pelo propósito de se ler e escrever na escola
nesse tempo. Como podemos, no presente, apagar a dimensão ética, estética e política
da leitura e da escrita, em nome de uma suposta instrumentalização rasa para acessar
informações e registrar funções mais básicas dessas práticas? E como, no presente, a
partir de um discurso higienista e moralizante, em nome justamente de uma suposta
eficiência técnica, os enunciados do presente têm circulado na defesa da proteção das
crianças contra uma leitura que seria nefasta, ideológica, contaminada e sexualizada? Se
o enunciado do perigo, no presente, vincula-se à leitura e escrita na escola pelas questões
de “proteção da infância” e da “proteção do conteúdo útil”, como podemos, ainda,
perguntar pela possibilidade de certa estetização da existência em tempos de superpro-
dução, aceleração e ataques frequentes a escolas e universidades?
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Trata-se, pois, de um diagnóstico do desinvestimento na leitura e na escrita como
práticas formativas, produzindo sujeitos dispersivos nessa crescente barbarização cultu-
ral que vivemos. E como podemos atualizar Sêneca e Foucault para perguntarmos pelo
perigo contemporâneo e por nossos modos de escravidão no presente no Brasil? Nos
estoicos antigos, o perigo vai aparecer vinculado à agitação permanente, ao que chama-
vam de stultitia, ou seja, a desatenção às práticas de cuidado consigo e com os demais.
A partir daí, interessa-me perguntar novamente pela questão ética, em se tratando das
práticas de leitura e escrita na escola pública, e como a composição entre filosofia e
literatura poderia funcionar como uma insurreição, uma conspiração, um motim con-
tra a fragmentação, a aceleração, o produtivismo, a precarização dos laços sociais, a
agitação e a falta de cuidado consigo, com os outros e com o mundo.
Daí a importância de voltarmos a Sêneca, que já no século I alertava para que se
ficasse atento às servidões da época. Em tempos de um capitalismo financeirizado, de
tagarelice midiática e de fragmentação dos laços sociais, Lazzarato (2014, p. 39) con-
temporaneamente ajuda-nos a perguntar: “podem-se construir novos territórios
existenciais a partir do combate às servidões e ao contexto desterritorializado de tecno-
logia”?
Conversações entre Sêneca e Foucault: possibilidades de uma
educação filosófica na escola
Sloterdijk (2018) vai trazer a potência da filosofia como longas cartas escritas
para amigos, talvez ainda nem nascidos. Veem-se as cartas de Sêneca a Lucílio como
cartas endereçadas mais uma vez a nós, para tomarmos este presente, quando o filósofo
nos convoca a pensar na formação humana, nos modos de servidão do nosso tempo, e
nos deixa importantes pistas sobre a potência das práticas de escrita e leitura como
motor de ação ética e política.
Da mesma forma, faz-se necessário interrogar sobre a relação do sujeito com a
verdade, realizando um pequeno recorte a partir da leitura que Foucault realiza de Sê-
neca, para que tenhamos condições de produzir um diálogo crítico-criativo com o
campo da educação. Mas poderíamos questionar: por que retornar aos clássicos?
Gessinger (2022) pensará essa relação entre passado e presente a partir das teori-
zações de Walter Benjamin, quando este problematiza o conceito de atualidade não
como presentificação, ou seja, como esse olhar anacrônico sobre o presente, que busca
explicações no passado para nossas questões contemporâneas, mas mais vinculado ao
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conceito de vir a ser, como potência. Essa potência diria respeito à lidação com os clás-
sicos a partir de certa subversão ativa: “[...] encontro entre momentos já esquecidos do
passado com momentos imprevisíveis no presente possibilitaria uma interpelação mú-
tua capaz de criar uma nova intensidade no modo de se relacionar com o tempo e com
a história” (GESSINGER, 2022, 123-124).
Recorre-se, então, a Foucault (2011a), no curso A Hermenêutica do Sujeito, no
qual discorre sobre três movimentos do cuidado de si. O primeiro movimento é o so-
crático-platônico, cuja finalidade seria superar uma pedagogia ruim e atingir o governo
da cidade, em que conhecemos por rememoração e nos preparamos para um futuro,
conforme a popularização desse pensamento pelo cristianismo, renunciando a nós mes-
mos em nome de valores superiores. Já se destaca aqui, porém, a importância do diálogo
e da figura do mestre. Na Obra A coragem da Verdade: o governo de si e dos outros II,
Foucault (2011b) marcará duas diferentes perspectivas na relação entre o sujeito e a
verdade, a partir dos diálogos socráticos escritos por Platão, exemplificando o quanto
na obra Alcibíades o foco do cuidado será a alma, portanto, uma perspectiva metafísica,
e a obra Laques, trazendo que o objeto de cuidado é a própria vida, o modo de se
conduzir. Essas perspectivas atravessarão todo o pensamento ocidental e também se
compõem de diversas maneiras. Trago tais questões para tomarmos as práticas de lei-
tura e escrita quando pensadas de uma perspectiva doutrinal e quando pensadas da
perspectiva de uma equipagem, uma armadura para a constituição dos modos de vida.
Foucault desdobrará essa questão da verdade não somente associada ao logos, mas tam-
bém ao eros, a partir do conceito de vida verdadeira na escola cínica, o que aqui, neste
momento, não será desdobrado.
O segundo movimento, chamado por Foucault de “a era de ouro do cuidado de
si”, será operado principalmente nos dois primeiros séculos de nossa era e exigirá todo
um trabalho sobre si mesmo na constituição de um corpo, em que o fim último será a
criação de uma bela existência. Esse funcionamento não pressupõe um sujeito interno
de conhecimento e uma consciência dada. Pelo contrário, há uma constante necessi-
dade de exercício sobre si, atravessada pela relação com o mestre na problematização
dos valores vigentes, a exemplo de Sêneca, buscando diminuir a escravidão dos outros
e a escravidão
9
que exercemos sobre nós mesmos. Nessa perspectiva, ainda segundo
Sêneca (2018), úteis são os saberes que transformam a existência; portanto, não é pos-
sível acessar a verdade sem se transformar. Essa relação consigo e com os saberes,
Foucault chamará de Meditação, a partir da descrição dos funcionamentos das filosofias
epicuristas, cínicas e estoicas.
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O terceiro movimento, por sua vez, marcado pela perspectiva cartesiana, denun-
ciará o cuidado de si como egoísmo e como impeditivo de uma moral coletiva, discurso
esse que vem se fortalecendo desde a ascensão do cristianismo. Conforme essa lógica
racionalista, é possível conhecer, acessar a verdade, sem necessariamente se transformar
e Foucault marcará essa relação consigo e com os saberes como Método.
Tomam-se esses estudos para pensar o presente, perguntando-se sobre a relação
consigo e com os saberes, atravessada, especificamente, pelas práticas da leitura e da
escrita na escola, quando estão fortemente vinculadas com a performance nas avaliações
em larga escala, que colocam as crianças para competir com os outros e consigo mesmas
nesta sociedade do superdesempenho. Os alunos tornam-se, pois, usuários midiáticos,
e professores são transformados em entretenimento para o prazer daqueles, em exercí-
cios que enfatizam a conectividade, a aceleração e a dispersão.
Assim, podemos perguntar quais seriam nossas escravidões contemporâneas que
precisamos combater. Em meio a escritas e leituras que ainda operam por recognição
ou de forma mecanizada, como a habilidade de conectividade, superaceleração e dis-
persão ganha espaço nas práticas escolares contemporâneas? Que modos de relação
consigo, com os outros e com o mundo estamos produzindo?
Gostaria de defender o argumento de que não se trata mais de uma relação – não
apenas de conhece-te a ti mesmo, cuida-te de ti mesmo ou domina-te a ti mesmo.
Defendo o argumento de que vivemos outro pequeno deslocamento nas práticas de si,
podendo-se nomear como desempenha-te a ti mesmo na stultitia contemporânea em que
vivemos, em que o conhecimento se reduz a objeto de troca e medição. Não se trata de
uma substituição da rememoração, pela meditação, pelo método, pelo desempenho,
mas de um acoplamento desses funcionamentos no contemporâneo com diferentes for-
ças.
Uma das questões importantes a destacar é que, pensando na recognição platô-
nica, na meditação estoica ou no método cartesiano, a figura do professor ainda se fazia
forte como alguém que propõe e provoca sentidos junto aos alunos, mesmo que em
perspectivas diferentes. Todavia, no presente, podemos perceber todo um esmaeci-
mento da figura do professor por meio do discurso do interesse infantil (que não é
recente), que no presente se fortalece em uma perspectiva neoliberal, transformando
alunos em clientes que precisam ter seus interesses contemplados e que possam saber
como aplicar imediatamente os saberes com os quais estão lidando.
Podem-se apontar, então, alguns sintomas levantados em nosso grupo de pes-
quisa mediante diversas investigações em diferentes níveis e modalidades de ensino em
escolas públicas brasileiras, tais como: contação de histórias se faz importante somente
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para as crianças que ainda não sabem ler; a maioria dos textos literários trabalhados
com as crianças ainda são os contos de fadas clássicos; a literatura é reduzida à utilidade
pragmática de aplicação em projetos; as professoras em cursos de formação inicial aban-
donam os clássicos para lerem manuais de como produzir leitores nas escolas; políticas
curriculares trazem a infância vinculada ao interesse como o outro do exercício de pen-
samento; referências literárias sendo aconselhadas por youtubers; redução das práticas
de leitura e escrita ao reconhecimento dos gêneros textuais, com ênfase nos textos pu-
blicitários; tempo acelerado, com entupimento de atividades; descontinuidade e
redução, no presente, de políticas públicas de fomento à leitura nas escolas.
Temos condições, a partir disso, de sintomatologizar as relações entre a verdade
e a subjetivação por meio das práticas de leitura e escrita na escola, agora funcionando
de modo espetacularizado (espetáculo do marketing, e não da arte), ora com uma lite-
ratura da bajulação, do prazer imediato e da autoajuda, ora com um entupimento de
opiniões a serem performadas em avaliações cada vez mais recorrentes.
Opta-se, dessa maneira, por perguntar pela finalidade da escrita e da leitura na
escola a partir de uma educação filosófica, tendo-as como possíveis operadoras de al-
guma constituição de si. O que poderiam uma leitura e uma escrita mais filosóficas na
escola que colocam outras perguntas na constituição das infâncias, servindo-se da lin-
guagem para ampliar a envergadura de si e do mundo nessa coletividade que é a sala de
aula, nessa conversação que pode dar-se entre os mortos e os vivos no encontro com os
textos?
Poderíamos tomar de Foucault o conselho de ficarmos atentos aos perigos que
rondam nossas vidas atualmente. Poderíamos, a partir de Sêneca, filósofo da Antigui-
dade romana que operou com a prática da escrita de cartas e de máximas como práticas
possíveis do cuidado de si
10
, perguntar pelas ferramentas possíveis para combate a essa
stultitia contemporânea da superaceleração, da opinião que assume o lugar do exercício
do pensamento, do registro e da simples comunicação, que reduzem a potência da lei-
tura e da escrita. Talvez esse seja um dos perigos que nos rondam no presente: essa
pobreza de experiência, essa falta de narratividade, essa stultitia espetacularizada. Não
se trata, todavia, de denúncia da escola; pelo contrário, trata-se de pensar possibilidades
da potência da leitura e da escrita que ainda ocorrem nas escolas na constituição de
uma relação mais ética consigo. E de que modos a lidação que faz encontros com a
filosofia, com a arte, com a literatura, poderia ainda funcionar como prática de proble-
matização de nossos valores e modos de existência?
A filosofia não é aqui tomada como uma disciplina a ser ensinada para as crianças
e jovens, mas como uma possibilidade de pensarmos coletivamente, na escola, o nosso
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contemporâneo, o que nos passa, como nos relacionamos com nós mesmos e com os
demais. Assim, trata-se de pensar a filosofia com crianças e jovens da escola pública,
pensar a formação com professores e professoras por meio de práticas de leitura e es-
crita, como esse paradoxo de fazer algo durar, de deixar marcas, justamente para nos
movermos, como um modo de crítica em relação a si mesmo, aos outros, ao seu mundo
cultural. Entende-se, portanto, uma educação filosófica, uma educação filoliterária na
escola na produção da amizade intelectual e afetiva por meio da leitura e da escrita, pela
palavra do outro, como uma forma de equipagem de si, como resistência aos horrores
da necropolítica do nosso tempo. Para Foucault (2011a, p. 15), “chamemos ‘filosofia’
a forma de pensamento que se interroga sobre o que permite ao sujeito ter acesso à
verdade, forma de pensamento que tenta determinar as condições e os limites do acesso
do sujeito à verdade”.
Tomar filosoficamente as práticas de leitura e escrita na escola poderia significar
trazer as dimensões irredutíveis do saber, do poder e da ética sempre interligadas ou,
melhor dizendo, interrogando-se pela verdade a partir da problematização das condi-
ções de possibilidade desse dizer verdade, dos modos de governo aí implicados e da
dimensão do ethos (FOUCAULT, 2011b). Trata-se de tomar a filosofia como modo
de vida na criação de uma bela existência, de uma vida outra, que para Foucault passaria
sempre pela dimensão da diferença.
Essa postura não significa buscar na Antiguidade greco-romana ou na sociedade
francesa da metade do século XX as respostas para uma problemática dos nossos tem-
pos, mas pegar emprestadas algumas ferramentas conceituais de Sêneca e Foucault e
“tropicalizá-las” com autoras e autores brasileiros e latino-americanos para pensarmos
as práticas escolares além de uma perspectiva romântica, salvacionista, mostrando seu
funcionamento para inventarmos fissuras de criação com aqueles que habitam os espa-
ços das escolas públicas. A inspiração arquegenealógica nos faz perguntar pelo presente
e tomar essas ferramentas conceituais com as lutas sociais contemporâneas para pensar
a formação humana e o perigo do espetáculo quando todos querem ser espetáculo,
considerando-se este presente de esmaecimento da figura do professor, de dispersão
hiperconectada e de pobreza narrativa. Portanto, não se trata de um elogio idealizado
à sociedade greco-romana, absurdamente desigual, que promovia o desprezo pelo ou-
tro. Também não se trata do retorno a um sujeito essencializado, mas produzido por
técnicas de si historicamente referenciáveis. Daí a potência de tomar a leitura e a escrita,
buscando entender como estão funcionando em seus efeitos de verdade e modos de
subjetivação nas escolas brasileiras no presente.
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A força com a qual Foucault (2011a) busca o conceito do cuidado de si em Sê-
neca ajuda-nos no diagnóstico do presente, quando as práticas de leitura e escrita são
vistas meramente por seu caráter instrumental e de registro, precisando ser imediata-
mente aplicáveis de maneira pragmática. Sêneca já alertava sobre o perigo de uma
educação apenas com muita assimilação de informação, sem que se fosse educado nesse
processo, uma vez que somente acessaria a verdade quem se modificasse por meio dela.
Por isso a potência do pensamento de Sêneca para uma educação filosófica na escola,
entendida como problematização dos nossos modos de escravidão, equipando-nos de
saberes necessários para realizarmo-nos e participarmos da vida pública.
Sêneca, um dos grandes nomes do estoicismo
11
, força-nos a pensar sobre os mo-
dos de escravidão do nosso presente e a formação moral no tempo que nos cabe viver.
O estoicismo, que também foi se modificando com o passar dos anos, trazia a força do
logos para viver como se deve, para ser sujeito de uma ação reta. Portanto, somente
acessa a verdade quem se modifica por meio dela. Não se trata de uma preparação para
uma vida em um mundo que viria depois, mas de equipar-se para viver uma bela exis-
tência, para produzir um corpo.
Sêneca dividiu sua vida entre a filosofia e a política, argumentando ser possível
exercitar o ócio com a vida produtiva. Este ensaio teórico retoma a obra Cartas a Lucí-
lio, por seu caráter pedagógico e pela defesa de uma educação que passe pela formação
a partir de conhecimentos úteis, que, segundo o filósofo, seriam os saberes que trans-
formam a existência. Haveria, assim, uma educação filosófica entendida como
problematização dos nossos modos de escravidão, equipando-nos de saberes necessários
para realizarmo-nos e participarmos da vida coletiva, pública. Como se trata de uma
filosofia entendida como um modo de existência, que vai buscar funcionar como equi-
pagem para assuntos mais cotidianos, entende-se a importância vital de tomarmos a
vida e a morte como questões para o pensamento por meio das práticas de leitura e
escrita das escolas públicas como uma possibilidade de resistência a esse presente neo-
liberal e neoconservador, como um modo de cuidado de si e do outro. É um cuidado
que passa pela problematização de si e do outro e que pede sempre a figura de um
mestre.
A obra Cartas a Lucílio (SÊNECA, 2018) oferece-nos pistas importantes e mostra
algumas regularidades que podem ser tidas como ferramentas conceituais potentes para
pensarmos em como tomar a leitura e a escrita na escola na dimensão de uma educação
filosófica. Tal como um ensaio aforístico, poderíamos citar: munir-se de um arsenal de
máximas; repelir a “eloquência balofa”, o ruído, a tagarelice; perguntar sobre a intenci-
onalidade pedagógica, indo além do repasse de informações e tendo em vista como as
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questões implicam a formação moral; tomar o paradoxo entre fazer algo durar e a ne-
cessidade do deslocamento para sair do estado de stultitia; entender que a sabedoria não
é da ordem da inspiração, mas de trabalho e exercício sobre si, estudo e partilha com o
outro; operar com o ensino e a aprendizagem vinculadas mais à transfiguração do que
à correção; produzir a necessidade de pausas e da desaceleração para pensar, falar, ler e
escrever; aprender em comunidade; ler e escrever para aprender a viver e a morrer;
aprender como uma viagem com riscos; ensinar como quem atira sementes; exercitar a
potência do ócio estudioso; valorar o mestre que dá testemunhos de uma vida.
Essas máximas são tomadas de empréstimo para uma problematização do pre-
sente, o que não significa queixa, denúncia ou ressentimento, mas desmonte desses
sintomas para ainda criar outras possibilidades nas escolas como espaços públicos onde
aprendemos a ser um tipo de pessoa na relação com o outro. Como nos ensina Fou-
cault, tornar difíceis os gestos fáceis demais, mostrando seu funcionamento e seus
efeitos de verdade e de subjetivação. Nos estudos nietzschianos e foucaultianos, que
muito buscaram em Sêneca, é apontado um importante deslocamento na nossa tradi-
ção ocidental, dizendo-se que o conhecimento não é da ordem da natureza humana,
do bem, de uma estrutura mental, mas de relações de forças na imposição de sentidos.
E são essas forças que se pretende mostrar, para podermos criar outras, em outros sen-
tidos e com outros valores e pesos.
Daí a possibilidade e a necessidade de termos a leitura e a escrita na escola como
práticas possíveis do cuidado, de fortalecimento da figura do professor como a referên-
cia que apresenta textos aos mais novos, que lhes mostra os grandes mestres. Isso,
porém, não na perspectiva de desenvolver habilidades e competências instrumentais,
mas para que fiquem atentos às barbáries do nosso tempo, a serem problematizadas,
tais como nosso presente pandêmico, que no Brasil se desdobra em uma necropolítica,
aprofundando desigualdades. Tem-se um exercício de criação de problemas para con-
jecturar pensamento e cultura, e não uma empresa que busca o entretenimento e as
simples aptidões técnicas de registrar e comunicar.
É preciso considerar uma educação filosófica, uma educação que une filosofia e
literatura, filosofia e arte, para experimentarmos a escola como um tempo-espaço de
transmitir todo um repertório cultural aos recém-chegados e, ao mesmo tempo, pro-
duzir outros sentidos e possibilidades a partir disso. Trata-se, pois, do saber, tanto como
um exercício de transmissão e acumulação, quanto como um exercício de pensamento
vinculado com o acontecimento, com o sentido e com a problematização (LÓPEZ,
2008). Isso exige um tipo de responsabilidade pedagógica radical, uma temporalidade
outra e a pergunta pelas relações entre a verdade e os modos de subjetivação neste
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tempo que nos coube viver. Tempo esse de aceleração dos processos de interpretação,
que forçam os estudantes a detectarem e interpretarem signos rapidamente, pouco dei-
xando para o exercício do pensamento e para a composição (que difere da conexão),
como essa forma compartilhada de respirar outras coisas (BERARDI, 2020). Portanto,
“[...] lutar atualmente, no Brasil, mas também no mundo, pela educação pública sig-
nifica manter acesa a chama, para as gerações futuras, de formas plurais e democráticas
de vida e, com isso, a perspectiva aberta de mais justiça social” (DALBOSCO;
SALOMÃO, DORO, 2021, p. 166).
Considerações finais
A operação mais filosófica com a leitura e a escrita na escola estaria fortemente
implicada na constituição de uma educação mais democrática. Entendo a potência des-
sas práticas como acesso a um patrimônio cultural que é direito de todos e, ao mesmo
tempo, como uma equipagem para resistir a processos de precarização tão fortes no
nosso presente; para termos condições de pensar mais criticamente nosso tempo; para
encontrarmos palavras inéditas; para confrontarmo-nos com nós mesmos e com os ou-
tros; para inventarmos nosso lugar no mundo, indo além do uso meramente utilitário
da linguagem. Por isso, ler e escrever na escola poderia ser experimentado como esse
lugar do entre que o estoicismo nos ensina com a figura do pórtico: entre a nossa inti-
midade e o compartilhar com o outro; entre o lembrar e o criar; entre o esquecer e o
problematizar como vestígios que vamos lendo e escrevendo a partir da pegada de
outros, que, como apontava Sêneca (2018), não são nossos donos, mas nossos guias.
Talvez um livro ensine mais que um professor, mas, sem professores, muitos livros
seriam esquecidos, nem teriam sido apresentados e não teriam a potência de marcar
profundamente a existência.
Talvez ensinar outro modo de ler, escrever, contar, escutar, possa implicar outros
modos de pensar e de existir. Como diz Sêneca (2018), lemos para recolher e dispor,
para que não nos contentemos com nós mesmos e, em tempos de elogio à opinião,
esse já seria um importante movimento. Tomando a figura do pórtico dos estoicos,
podemos retomar essa linda imagem de fronteira para pensar o que se dá no encontro,
no entre, para tomar a leitura e a escrita como esse limítrofe, essa linha, esse desloca-
mento, essa entrada.
Tem-se, portanto, a ideia da composição de um pensamento pedagógico to-
mando de empréstimo os conceitos de cuidado de si e as práticas de leitura e escrita em
Sêneca e Foucault, não para convertê-las em um método, mas em um movimento de
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sintomatologização do presente, inventando-se outros encontros entre professores, alu-
nos, escolas e textos a partir de uma educação filosófica. Ler e escrever na escola poderia,
pois, implicar uma aprendizagem de certa atenção, em que nos ocupamos de nós e dos
outros, em uma posição de escuta, de questionamento dos modos de governo na cons-
tituição de uma vida mais afirmativa.
Se estamos sendo cantados pela banda Pink Floyd desde o início dos anos 1990
como uma espécie que se mantém entretida até a morte nesse espetáculo acelerado da
concorrência no contemporâneo, desatento ao que se passa, tomar a escrita e a leitura
na escola a partir de um modo estudioso, cuidadoso com a vida, poderia funcionar
como uma dobradiça capaz de vincular um diagnóstico do presente e a criação de outras
possibilidades de vida e pensamento. Uma dobradiça capaz de compor um modo de
dizer a verdade, de conduzir-se e de conduzir os demais. Coragem que vincula escrita,
leitura, professores, alunos, exame e os textos a serem mais uma vez lidos na afirmação
de certos modos de existência. Ter como finalidade máxima não o desenvolvimento de
habilidades e competências, mas que tais práticas possam funcionar como uma pedra
de toque para pensarmos em como estamos vivendo as nossas vidas e o que já estamos
deixando de ser.
Por isso a defesa, o manifesto por uma atitude filosófica frente à leitura e à escrita
na escola, para que não nos descuidemos do que importa, como já alertava Sócrates em
suas derradeiras e testemunhais palavras. Práticas tomadas a partir da filosofia como
modo de existência que pede por uma vida examinada, refletida, que está sempre no
processo de busca, colocando-se à prova e colocando os demais a se examinarem, tendo
como fim último a bíos, a maneira de viver. Modos de tradicionalidade que a escola
coloca em funcionamento: tanto uma tradicionalidade conceitual que busca transmitir
saberes por medo do esquecimento, quanto uma tradicionalidade da existência, como
diria Foucault (2011b), que busca exercitar os modos de vida em um uso público da
razão para se agir no coletivo. Tais tradicionalidades na escola não são excludentes, mas
necessárias em um mundo onde rui a sabedoria e que pede por uma política de pensa-
mento que desnaturalize as evidências e que potencialize a vida de si e dos demais. Por
que, então, ler e escrever ainda na escola? Para equiparmo-nos, para armarmo-nos, para
transformarmos nossas vidas nesse cenário de excesso de desigualdades que vivemos.
Em um mundo de tamanha insegurança que nos oferece a leitura e a escrita como
manuais, talvez haja necessidade de fazer pequenas brechas para continuar nos exami-
nando e criando questões. Isso porque tais práticas são tomadas não meramente como
uma mídia de comunicação e registro, mas como exercícios ainda possível de subjeti-
vação. E. quando um antropólogo alienígena
12
perguntar pelo nosso fim com base nos
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vestígios que deixarmos, talvez possa haver outras respostas que não uma espécie que
se entreteve até a morte comprando e vendendo no funcionamento do desempenha-te a
ti mesmo.
Notas
1
Foram considerados os procedimentos éticos para realização dessa pesquisa, a qual dá origem a este
artigo em forma de ensaio teórico. Do mesmo modo, considera-se uma postura ética importante em
nosso presente, perguntar mais uma vez pela leitura e pela escrita na escola desde sua potência formativa
e a possibilidade de alargar a dignidade humana.
2
Músico, cantor, compositor e ativista social inglês. Foi um dos fundadores da banda de rock
progressivo Pink Floyd.
3
https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/09/05/crivella-pede-para-recolher-livro-dos-
vendido-na-bienal.ghtml
4
https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2020/02/governo-de-ro-manda-recolher-macunaima-e-
mais-42-livros-e-depois-recua.shtml
5
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/07/reforma-de-guedes-abre-caminho-para-volta-da-
tributacao-de-livros.shtml
6
https://gauchazh.clicrbs.com.br/politica/noticia/2019/05/escolas-do-nordeste-ensinam-manual-
pratico-para-ser-bruxa-diz-ministra-damares-cjvyk0geh06p701pen3ne20uk.html
7
O Programa Conta pra Mim é uma iniciativa do governo federal para difundir a prática de literacia
familiar, conforme a perspectiva apresentada pelo Plano Nacional de Alfabetização (PNA). Disponível
em: <https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-421-de-23-de-abril-de-2020-253758595>.
8
“Retratos da Leitura” é uma pesquisa de escala nacional que procura identificar os hábitos do leitor
brasileiro. O escopo do projeto permite avaliar os resultados das políticas públicas de fomento à leitura.
Desde 2007 é realizada pelo Instituto Pró-Livro, sendo que desde 2019 conta com o patrocínio do
Itaú Cultural. Encontra-se atualmente na 5ª edição. Disponível em:
<http://plataforma.prolivro.org.br/retratos.php>.
9
Conceito operado por Sêneca na obra Cartas a Lucílio.
10
Na obra Escrita de si, Foucault (2004) desenvolve o conceito da leitura e da escrita como formas de
vida, muito fortemente operando com Sêneca, a partir da descrição de duas práticas na Antiguidade:
os hupomnêmatas, que seriam cadernos de notas nos quais são recolhidos fragmentos de falas, escritas,
tal como um guia de conduta, como princípios de ação; e também as correspondências, que vão realizar
a dupla função de instruir os demais e de auto instruir-se. Essas práticas aparecem como tipos de
exercícios de atenção e cuidado vinculados à formação de si mesmo, tal como uma armadura na
constituição de uma arte da existência.
11
O estoicismo (filosofia do Pórtico) foi criado por Zenão de Cítio, em Atenas, por volta do ano 300
a.C., inspirado especialmente em Heráclito e Sócrates. Zenão foi um jovem de origem semítica, escravo
que buscou Atenas pela filosofia. Como era um estrangeiro, não poderia ter um prédio. Assim, fornecia
suas aulas em um pórtico. Em grego, pórtico se diz stoá, daí os chamados de estoá ou os do pórtico,
os estoicos (BRUN apud VITO, 2016). Com o domínio romano sobre o mundo grego, o pensamento
filosófico ampliou-se em Roma, marcando aí o advento da cultura greco-romana, que influenciou e
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ainda influencia o mundo até hoje. Nessa prática estoica da Antiguidade, podemos citar filósofos
escravos, como Epitecto, e o filósofo Imperador, como Marco Aurélio.
12
Referência à música Amused to death, citada no início deste artigo.
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Ensino Remoto Emergencial no Brasil: reflexões teóricas à luz
da teoria dos habitus de Pierre Bourdieu
Emergency Remote Teaching in Brazil: theoretical reflections in
the light of Pierre Bourdieu's theory of habitus
Aprendizaje Remota de Emergencia en Brasil: reflexiones teóricas a
la luz de la teoría del habitus de Pierre Bourdieu
Hans Carrillo Guach
*
Andréa Vettorassi
**
Resumo
Dentre os muitos impactos da pandemia global da COVID-19 nos anos de 2020 e 2021, destacam-
se os referentes à suspensão dos calendários acadêmicos nos mais diferentes níveis de formação. Nas
universidades brasileiras, o Ensino Remoto Emergencial foi adotado como possibilidade de
permanência das atividades de ensino durante o isolamento social. Nesse contexto, o objetivo geral
do artigo é o de trazer reflexões, à luz da teoria do habitus de Pierre Bourdieu, sobre o impacto que
a implementação do Ensino Remoto Emergencial teve no processo de ensino-aprendizagem em
cursos de graduação da Universidade Federal de Goiás (UFG). O principal pressuposto é que a teoria
de Bourdieu é pertinente para analisar dinâmicas educacionais, no entanto, pelo menos no contexto
institucional antes referido, esta modalidade de ensino também tem condicionado processos de
ensino-aprendizagem que revelam a necessidade de aperfeiçoar a compreensão da relação entre
sucesso escolar, habitus e instituições educativas, especialmente a partir de realidades que não foram
consideradas por este autor. Do ponto de vista metodológico, o artigo se baseia em uma abordagem
exploratória, bem como na aplicação de métodos empíricos como a revisão bibliográfica, documental
e a observação participante.
Palavras-chave: Ensino remoto emergencial; Habitus; Bourdieu; Ensino-aprendizagem.
Recebido em: 30.11.2022 Aprovado em: 11.02.2023
https://doi.org/10.5335/rep.v29i3.14155
ISSN on-line: 2238-0302
*
Doutor em Ciências Sociais com ênfase em Estudos Comparados sobre as Américas, pelo Departamento de Estudos Latino-
americanos (ELA) da Universidade de Brasília (UnB), Brasil (2017). Professor Adjunto vinculado ao Departamento de Sociologia da
Faculdade de Ciências Sociais (FCS), da Universidade Federal de Goiás (UFG). Orcid: https://orcid.org/0000-0002-5002-3601. E-mail:
hanscarrillo@ufg.br.
**
Doutorado em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professora adjunta, orientadora e pesquisadora da
Faculdade de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás (UFG). Orcid:
https://orcid.org/0000-0002-5615-4100. E-mail: avettorassi@ufg.br.
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Abstract
Among the many impacts of the global pandemic of COVID-19 in the years 2020 and 2021, those
referring to the suspension of academic calendars at the most different levels of training stand out.
In Brazilian universities, Emergency Remote Teaching was adopted as a possibility of permanence
of teaching activities during social isolation. In this context, the general objective of the article is to
identify, in the light of Pierre Bourdieu's theory of habitus, the impact that the implementation of
Emergency Remote Teaching had on the teaching-learning process in undergraduate courses at the
Federal University of Goiás (UFG). The main assumption is that Bourdieu's theory is relevant to
analyze educational dynamics, however, at least in the aforementioned institutional context, this
teaching modality has also conditioned teaching-learning processes that reveal the need to improve
understanding the relationship between school success, habitus and educational institutions,
especially from realities that were not considered by this author. From a methodological point of
view, the article is based on an exploratory approach, as well as on the application of empirical
methods such as bibliographic and documentary review and participant observation.
Keywords: Emergency remote teaching; Habitus; Bourdieu; Teaching learning.
Resumen
Entre los múltiples impactos de la pandemia mundial del COVID-19 en 2020 y 2021, se destacan
los referidos a la suspensión de los calendarios académicos en los más distintos niveles educativos. En
las universidades brasileñas, la Enseñanza Remota de Emergencia fue adoptada como posibilidad de
permanencia de las actividades docentes durante el aislamiento social. En ese contexto, el objetivo
general del artículo es traer reflexiones, a la luz de la teoría del habitus de Pierre Bourdieu, sobre el
impacto que tuvo la implementación de la Enseñanza Remota de Emergencia en el proceso de
enseñanza-aprendizaje en los cursos de pregrado de la Universidad Federal de Goiás (UFG). El
supuesto principal es que la teoría de Bourdieu es relevante para analizar la dinámica educativa, sin
embargo, al menos en el contexto institucional mencionado, esta modalidad de enseñanza también
ha condicionado procesos de enseñanza-aprendizaje que revelan la necesidad de mejorar la
comprensión de la relación entre el éxito escolar, el habitus e instituciones educativas, especialmente
de realidades que no fueron consideradas por este autor. Desde un punto de vista metodológico, el
artículo se basa en un enfoque exploratorio, así como en la aplicación de métodos empíricos como
la revisión bibliográfica y documental y la observación participante.
Palabras clave: Enseñanza remota de emergencia; Hábito; Bourdieu; Enseñanza-aprendizaje.
Introdução
A COVID-19 se alastrou por todo o planeta e impôs o isolamento social em
milhares de cidades como principal medida para diminuir o contágio acelerado da do-
ença. De acordo com relatórios da Organização Mundial da Saúde (OMS), em abril
de 2020, quatro em cada seis habitantes do mundo estavam em isolamento social total
e forçado.
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Dentre os impactos que decorreram dessa medida, destacam-se a suspensão dos
calendários acadêmicos nos mais diversos níveis (desde o berçário ao ensino superior)
e, posteriormente, a adoção de alternativas para retomar e manter as diferentes ofertas
escolares. A principal alternativa universalmente implementada para estes fins foi a edu-
cação a distância (EaD).
No Brasil, a maioria das instituições de ensino permaneceu com atividades pre-
senciais canceladas de março a setembro de 2020. Nesse período, as instituições
também recorreram a atividades que se convencionou chamar de Ensino Remoto
Emergencial (ERE). Essas atividades buscam os recursos da educação a distância, mas
diferem dela sobretudo pelas limitações estruturais, de formação dos docentes e discen-
tes, bem como pelo caráter emergencial e não planejado.
Não só a própria estrutura da socialização formal foi posta em xeque em face do
caos social como o habitus (BOURDIEU, 1989) dos envolvidos, sejam eles os docentes,
os discentes ou os responsáveis pelos discentes em seus primeiros anos escolares. Como
mencionado em outros estudos, similar à educação através de vínculos presenciais, as
práticas educativas no contexto do ERE também devem ser pensadas enquanto ações
dialógicas em relacionamentos horizontais e de compartilhamento de ideias, ancoradas
na reflexividade e no pensamento crítico, político e ativo que transversalizam processos
sócio históricos e simultâneos de exteriorização e interiorização das realidades internas
e externas respectivamente (VETTORASSI, 2021). No entanto, cabe ressaltar que,
para que os discentes caminhem nessa direção, é necessário que estejam envolvidos em
uma ação baseada no diálogo com o docente e com os demais envolvidos no processo
educacional, de forma que, mesmo nesse contexto de ERE, possa-se construir favorá-
veis processos afetivos e de construção coletiva de conhecimentos. Quer dizer, as novas
propostas de representações sociais no ERE, por meio das tecnologias digitais, pressu-
põem a construção de um modelo comunicacional numa “via de mão dupla”: qual seja,
no sentido de uma aprendizagem colaborativa, num processo de parceria e coautoria,
sendo o docente mediador e orientador das atividades de aprendizagem desenvolvidas,
a priori, pelo discente.
Nesse contexto, quais são os impactos do ERE na transmissão, correlação e ab-
sorção de conhecimentos por parte dos discentes? O ERE é uma modalidade de ensino
que reelabora o habitus nos processos de ensino-aprendizagem e, com isso, ameniza as
desigualdades que existem entre diferentes classes de discentes no interior desses pro-
cessos?
Questionamentos como esses são os que sustentam o presente artigo, cujo obje-
tivo geral é identificar, à luz da teoria do habitus de Pierre Bourdieu, o impacto que a
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implementação do Ensino Remoto Emergencial (ERE) tem tido no processo de ensino-
aprendizagem no âmbito dos cursos de graduação na Universidade Federal de Goiás
(UFG). Porém, as reflexões que oferecemos aqui com base em tais interrogantes não
necessariamente constituem respostas a cada uma delas. Estas apenas almejam assinalar
realidades que permitem chamar a atenção sobre peculiaridades que poderiam ter ad-
quirido as relações entre habitus e instituições escolares, a partir de circunstâncias
educativas tão específicas como foram o ERE.
O principal pressuposto do qual partimos é que a teoria de Bourdieu é pertinente
para analisar dinâmicas educacionais como as desenvolvidas no ERE, por sua ênfase e
seu sucesso na análise da reprodução das desigualdades sociais em instituições educati-
vas e, particularmente, nos aprendizados escolares. No entanto, pelo menos no
contexto institucional antes referido, esta modalidade de ensino também tem condici-
onado processos de ensino-aprendizagem que, ao contrastar com algumas ideias de
Bourdieu, revelam a necessidade de aperfeiçoar ainda mais a compreensão da relação
entre sucesso escolar, habitus e instituições educativas, especialmente a partir de reali-
dades que não foram consideradas pelo autor no caso, o ERE em Instituições de
Ensino Superior (IES) no Brasil.
O artigo tem como metodologia uma abordagem exploratória, bem como a apli-
cação de técnicas como a revisão documental, bibliográfica e a observação participante.
A primeira dessas técnicas foi útil para examinar textos científicos e diagnósticos reali-
zados pela UFG sobre o impacto da situação de isolamento social em estudantes de
graduação. São relatórios de natureza quantitativa aplicados ao longo do primeiro se-
mestre de 2020, cujo objetivo era mapear as condições econômicas, estruturais e
psíquicas dos discentes durante o isolamento social e a suspensão das aulas. Em uma
perspectiva qualitativa, a observação participante foi aplicada isoladamente por cada
um/a de nós e por diferentes discentes e docentes especificamente do curso de Ciências
Sociais, no qual atuamos na condição de docentes. Nesta ocasião, aplicamos questio-
nários semiabertos entre os discentes das disciplinas que atuamos com a finalidade de
receber retornos sobre a experiência do ensino remoto, seus prós e contras. A observa-
ção participante foi realizada entre agosto de 2020 e janeiro de 2022, ao ministrarmos
aulas remotas em nível de graduação e pós-graduação no curso de Ciências Sociais da
UFG, utilizando plataformas como o Google Meet e o Moodle. A troca de experiências
entre os outros docentes foram feitas em reuniões como as de Conselho Diretor, todas
de forma remota por conta do isolamento social. Ao final das disciplinas, um questio-
nário semiaberto foi aplicado com o objetivo de receber retornos dos discentes
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concernentes às novas dinâmicas de ensino e aprendizagem proporcionadas pelo En-
sino Remoto Emergencial.
Ensino remoto emergencial à luz da teoria do habitus de Pierre
Bourdieu: apontamentos necessários para um exame empírico
A teoria sociológica de Pierre Bourdieu se caracteriza por vários aspectos. Um
deles é a ênfase em compreender a sociedade a partir de posturas epistemológicas que
transcendam as dicotomias conceituais comuns no período clássico do pensamento so-
ciológico. As dicotomias podem ser observadas nas teorizações sobre indivíduo
sociedade, subjetivo objetivo, realidades micro macrossociais e ação estrutura,
dentre outras (DURKHEIM, 2001; WEBER, 2015; PARSONS, 1968; MERTON,
2002).
Embora Bourdieu trabalhe com várias ferramentas conceituais que revelam cla-
ramente essa postura mais dialética entre pares conceituais dicotômicos, há um
conceito que resulta uma peça central nesse arcabouço teórico. É o conceito de habitus,
o qual representa uma clara ruptura com os dualismos da sociologia clássica, ao permi-
tir, de acordo com Wacquant (2004), aproximações aos modos como se produzem
processos simultâneos de interiorização da exterioridade e de exteriorização da interio-
ridade.
Para Bourdieu, o habitus molda a ação social e envolve uma natureza dinâmica e
multidimensional. Dinâmica porque se refere a relações dialéticas entre mundos subje-
tivos e objetivos a partir de uma ótica que reconhece a transversalidade, nestas relações,
de conexões entre diferentes contextos históricos. Multidimensional porque a dialética
implica a inter-relação entre múltiplos componentes desses mundos objetivos e subje-
tivos. Dentre esses podem-se destacar a linguagem, as formas de vestir, de andar e
jantar; as percepções, classificações, crenças e motivações; os conhecimentos, valores e
significados.
Consequentemente com a anterior noção, o habitus é entendido por Bourdieu
(1997) como um processo simultâneo de internalização de estruturas, instituições e
práticas externas, bem como de externalização das realidades internas: cognitivas, sim-
bólicas e afetivas. Assim, o conceito faz referência às estruturas mentais socialmente
constituídas, através das quais os agentes sociais lidam com as relações em sociedade.
Enquanto processo simultâneo de internalização externalização, o habitus alude
a um sistema de disposições para agir, perceber, sentir e pensar diante de determinadas
circunstâncias, cuja conformação responde aos históricos processos de aprendizagem
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por parte dos agentes sociais, segundo suas respectivas posições na sociedade. As dispo-
sições entendidas por Bourdieu (1997) como modos de ser, propensões ou
inclinações práticas e/ou subjetivas manifestam-se como sentidos práticos que resul-
tam constitutivos e constituintes de estratégias sociais.
2
Por estratégias, Bourdieu (2002, p. 95-165) entende o conjunto de ações ou prá-
ticas realizadas pelos agentes no contexto de um campo específico, visando manter ou
mudar sua posição na estrutura social e/ou se adaptar às diferentes circunstâncias pro-
duzidas (aspirações realistas, oportunidades objetivas etc.). Essas ações não implicam
necessariamente a efetivação das suas intenções, porque elas são influenciadas pela ma-
neira como se estruturam as relações sociais no próprio campo social e na sociedade
como um todo. Tanto as ações em si como suas intenções se manifestariam a depender
das inter-relações entre o habitus individual historicamente adquirido nas posições dos
agentes (habitus diretamente associado à posição ou à classe) e o habitus coletivo (regras,
valores, conhecimentos etc.) que fundamenta as relações no interior de um campo so-
cial concreto. Igualmente, essas inter-relações são transversalizadas pelo volume e pela
estrutura dos recursos relevantes (capitais) que, no campo social, esses agentes possam
ter para desenvolver tais estratégias. Ou seja, os campos são relacionados pelas relações
de força, que são irredutíveis às intenções dos agentes individuais ou mesmo às intera-
ções diretas entre os agentes (BOURDIEU, 1989, p. 134).
O conceito de espaço social em Bourdieu é importante para a compreensão dos
campos sociais (dentre eles o campo educacional) e tem diversas dimensões. Bourdieu
rompe com a representação unidimensional do mundo social (a visão dualista marxista
que reduz a estrutura social à oposição entre os proprietários dos meios de produção e
os vendedores de força de trabalho). O espaço social é multidimensional, um conjunto
aberto de campos relativamente autônomos e subordinado a transformações. Os ocu-
pantes das posições dominantes e dominadas estão envolvidos em lutas de diferentes
formas, mas não constituem necessariamente grupos antagonistas. Tudo dependerá de
seu habitus e aquisição de capitais para a aquisição de forças diversas.
De acordo com as ideias anteriores, o habitus tem uma natureza duradoura, sis-
temática, dinâmica, dialética e evidentemente social; já que constitui um produto das
relações sociais e, concomitantemente, orienta a ação dos agentes de acordo com suas
posições, com vistas a reproduzir e/ou transformar as próprias relações que o geram.
Conforme expressa Bourdieu, o habitus é respectivamente uma estrutura estruturante
e uma estrutura estruturada que “organiza as práticas e a percepção das práticas”, ao
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tempo em que institui “o princípio de divisão em classes lógicas que organiza a percep-
ção do mundo social” e “o produto da incorporação da divisão em classes sociais”
(BOURDIEU, 2007, p. 164).
O habitus, enquanto ferramenta teórico-conceitual, tem sido central na análise
sociológica desenvolvida por Bourdieu sobre diferentes contextos sociais. A Educação
tem sido um desses contextos em que, justamente, se vislumbra esta centralidade e o
significativo potencial analítico que esta ferramenta tem.
Uma das principais particularidades do pensamento sociológico de Bourdieu
aplicado à educação diz respeito ao entendimento das relações entre instituições esco-
lares e desempenho escolar. Após os anos 60 do século XX, desenvolveram-se
movimentos acadêmicos que questionavam a natureza neutral e as concepções otimistas
das instituições escolares que, até esse momento, prevaleciam no âmbito das Ciências
Sociais. Essas concepções entendiam as escolas como instituições que difundem conhe-
cimentos racionais e objetivos e, portanto, impactam favoravelmente na superação do
atraso econômico e das desigualdades, bem como na construção de sociedades mais
justas (meritocráticas), modernas (centrada na razão e nos conhecimentos científicos)
e democráticas (fundamentada na autonomia individual) (NOGUEIRA;
NOGUEIRA, 2002).
Diante do quadro otimista a respeito das instituições escolares, autores como
Bourdieu (1998) demostraram que essas na verdade contribuíam para reproduzir desi-
gualdades escolares ao não conseguir atender eficientemente os impactos que as origens
sociais dos/as estudantes (etnia, sexo, classe social, raça, gênero etc.) têm nos seus de-
sempenhos escolares. Contrário ao que se pensava, as escolas, mesmo podendo ser
públicas e gratuitas, são culturalmente parciais e não garantem aos cidadãos uma igual-
dade de oportunidades de sucesso escolar nem de ascendência social. Tampouco
baseiam as avaliações em critérios justos, associados necessariamente aos dons indivi-
duais e às capacidades cognitivas inatas dos/as alunos/as. Na verdade, estas constituem
instituições a partir das quais se reproduzem e legitimam as desigualdades sociais e os
privilégios das classes dominantes, já que representam e exigem dos/as estudantes fun-
damentalmente pautas cognitivas e culturais dessas classes.
Na compreensão dessas relações entre instituições escolares e desempenho aca-
dêmico, as noções sobre o habitus cumprem um papel relevante. É a partir delas que se
pode entender como Bourdieu (1998) assume que os/as estudantes não competem em
condições relativamente igualitárias na escola, porque eles são agentes socialmente
constituídos segundo suas trajetórias históricas.
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Essas trajetórias estruturam uma bagagem social e cultural diferenciada nos alu-
nos, nos quais influenciam as maneiras como lidam satisfatoriamente ou não com os
processos educativos e aproveitam seus conteúdos. Assim, para Bourdieu (1998), o su-
cesso escolar não deve ser explicado apenas pela existência de dons biológicos e
psicológicos dos/as estudantes, visto que suas origens sociais determinam consideravel-
mente suas condições favoráveis ou não para cumprir com as exigências que
fundamentam seus êxitos.
É nessa compreensão sobre o aproveitamento acadêmico em que o conceito de
habitus anteriormente explicado tem um papel relevante. Com base nesse conceito,
reconhece-se que agentes sociais como, por exemplo, os discentes da UFG que focali-
zam as presentes reflexões têm estruturado suas subjetividades mediante a incorporação
de disposições para a ação social, em dependência das suas posições e trajetórias histó-
ricas. Essas disposições implicam um conjunto de conhecimentos práticos que dizem
respeito à relação dinâmica entre preferências, aptidões, comportamentos, experiências,
habilidades, sentimentos, aspirações, conhecimentos e valores, os quais determinam as
maneiras como os agentes lidam com diversos cenários sociais ao longo das suas vidas.
Cabe afirmar que, dentre esses cenários, se encontram os processos de aprendizagem
em instituições escolares como a própria UFG.
Com base nessa perspectiva, compete entender que os discentes não são plena-
mente conscientes dos conhecimentos práticos ou disposições que influenciam suas
estratégias e ações acadêmicas. Assim, Bourdieu compreende que os processos de apren-
dizagem por parte dos discentes estão inseridos em relações formalmente igualitárias
que também implicam direitos, deveres e cobranças igualitárias, mas que, na prática,
reproduzem e legitimam as desigualdades históricas e os privilégios das classes superio-
res.
Na reprodução das desigualdades históricas que implicam os processos de apren-
dizagem, os docentes cumprem funções vitais; os quais transmitem ideias e
conhecimentos de forma homogênea, sem reestruturar eficientemente seus discursos
em função das diferenças dos discentes, a respeito de seus instrumentos de decodifica-
ção dessas mensagens. O aprendizado dos conteúdos escolares seria um processo mais
confortável para aqueles discentes das classes superiores que tenham adquirido uma
bagagem cognitiva e cultural mais próxima aos códigos e às condutas próprias do am-
biente escolar.
Tais diferenças nos processos de aprendizado não são suficientemente claras para
os agentes envolvidos nessas relações: docentes discentes. O melhor ou pior aprovei-
tamento desses conteúdos são vistos como meras diferenças de capacidades
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psicológicas: inteligência, vontade etc. Assim, os insucessos ou as dificuldades escolares
são tomadas como inferioridades inatas, e não às desigualdades históricas dos discentes
que implicam facilidades para alguns e dificuldades para outros no cumprimento das
exigências escolares.
Para Bourdieu (1998), tais desigualdades sociais e escolares são legitimadas atra-
vés de dois mecanismos essencialmente. O primeiro deles é o desconhecimento dos
privilégios culturais dos alunos pertencentes às classes dominantes. O segundo é a im-
posição de códigos culturais aos estudantes pertencentes às classes populares, bem como
a reprodução e a legitimação de distinções entre grupos de discentes.
A reprodução da legitimação das desigualdades escolares, especialmente das dis-
tinções dos discentes, está ao mesmo tempo relacionada a duas principais realidades.
Por um lado, Bourdieu reconhece a existência de um grupo de estudantes desvalorizado
nessa distinção hierárquica, aos quais é atribuído o dever-ser de se esforçarem e se dedi-
carem arduamente aos estudos, a fim de compensar a distância de seus habitus em
relação à cultura escolar, entendida como legítima referência. Um segundo grupo, mais
favorecido na hierarquia, carrega sentidos associados ao talento, à inteligência e à habi-
lidade, já que seu habitus historicamente configurado lhes facilita atender mais
facilmente às diversas exigências escolares.
De acordo com Bourdieu (1998), as instituições escolares, essencialmente nos
níveis superiores, valorizariam e cobrariam a segunda tipologia de estudantes anterior-
mente descrita. Especialmente nas avaliações formais ou informais, por exemplo, as
provas orais em que as instituições exigiriam, por meio de seus docentes, muito mais
do que o domínio do conteúdo transmitido. Nesse caso, exigiriam destreza discursiva
e atitudes que só poderiam ser atendidas pelos estudantes com habitus mais próximos
à cultura dominante que permeia tais instituições.
Ao aplicar essas ideias de Bourdieu no âmbito concreto que pretendemos analisar
no presente texto no caso, os processos de ensino-aprendizagem no âmbito do ERE,
tendo como referência realidades do curso de graduação em Ciências Sociais da UFG
parece que essa modalidade constitui mais um processo educativo que reforça a na-
tureza de dominação das instituições escolares. O ERE implicou vários desafios que
exigiram maiores destrezas das pessoas envolvidas.
O ERE constitui mais um processo transversalizado pelas interações entre dis-
centes e docentes com base nos seus respectivos habitus. Isso significa que as estruturas
mentais socialmente constituídas desses agentes influenciam as formas como lidam com
esta modalidade de ensino. Modos de ser e inclinações práticas e/ou subjetivas, depen-
dentes das posições sociais dos discentes e docentes, conformam os sentidos práticos
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que resultam constitutivos e constituintes da interiorização e exteriorização de conteú-
dos no contexto dos processos de ensino-aprendizagem. Mas, como se dão as interações
entre habitus individuais e coletivos, representando, os últimos, as lógicas do campo da
educação no âmbito do ERE implementado no curso de Ciências Sociais na UFG?
Por enquanto não temos suficientes argumentos para sustentar que, através do
ERE, a UFG exemplificaria a natureza neutral atribuída comumente às instituições
escolares no pensamento otimista dos anos 1960. Pelo contrário, seguindo as ideias de
Bourdieu, esta modalidade de ensino vislumbra uma aproximação mais clara ao fato de
que a dita instituição implementa apenas outro mecanismo para a reprodução das de-
sigualdades escolares e das hierarquizações das origens sociais dos estudantes.
Através do ERE, tornou-se mais difícil ainda atender eficientemente os impactos
que as origens dos discentes têm no desempenho escolar. Dessa forma, a UFG não está
isenta da tendência a ser entendida como instituição que reproduz e legitima as desi-
gualdades sociais e os privilégios das classes dominantes. Seus docentes, similar ao que
acontece na interação física em sala de aula, transmitem ideias e conhecimentos sem
reestruturar eficientemente seus discursos em função das capacidades de decodificação
de seus discentes, historicamente constituídas em formas de habitus. Assim, através da
cobrança de pautas cognitivas e culturais que fazem os docentes neste contexto do ERE,
também se acaba desconsiderando as influências das origens histórico-sociais dos estu-
dantes na adaptação às novas circunstâncias e, por extensão, no cumprimento
satisfatório às exigências das aprendizagens.
O aprendizado dos conteúdos escolares seria um processo mais confortável para
aqueles discentes das classes superiores que tenham adquirido mais experiência com as
tecnologias aplicadas no ERE (computadores, videoconferências Google Meet, leitura
de textos em meios digitais, sistemas internos de gerenciamento da aprendizagem etc.)
e absorvido mais habilidade com o estudo individual. Quer dizer, aqueles discentes que
adquiriram uma bagagem cognitiva e cultural mais próxima aos códigos e às condutas
próprias do ambiente escolar e dos meios digitais. Porém, essa realidade não seria sufi-
cientemente transparente para os discentes nem para os docentes, de modo que o
sucesso no aproveitamento dos conteúdos socializados também seria visto como sim-
ples diferenças de capacidades psicológicas: inteligência, vontade, capacidade de
adaptação e concentração, dentre outras.
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Ensino remoto emergencial e realidades discentes na
UFG: aproximações descritivas a um objeto de estudo
Com o início do isolamento social decretado em março de 2020, em decorrência
da pandemia da COVID-19, a vida da comunidade universitária no mundo todo so-
freu radicais transformações. Neste sentido, a UFG não foi diferente, embora seja
lógico assumir que cada transformação vivida por diferentes comunidades acadêmicas
em distintos países e regiões no Brasil teve certos graus de peculiaridade, a depender de
diferentes fatores: desenvolvimentos tecnológicos, urbanísticos, políticas adotadas pelas
instituições escolares, dentre outros.
No caso específico desta IES, várias experiências podem nos relatar alguns dos
principais desafios enfrentados por suas comunidades durante este período de calami-
dade pública. Uma dessas experiências é o levantamento de dados por meio de
questionário online, realizado pela Comissão de Gestão da Escola de Engenharia Civil
e Ambiental (EECA) COVID 19. Esses dados deram lugar a vários relatórios como
o que interessa destacar aqui: o “Diagnóstico da situação de ISOLAMENTO SOCIAL
Discentes GRADUAÇÃO”, o qual recompilou informações dos/as estudantes dos cur-
sos de graduação em Engenharia Civil (EC) e em Engenharia Ambiental e Sanitária
(EAS), no período de 23 a 29 de abril de 2020. Além desse relatório, outras experiências
foram o nosso próprio envolvimento nessa modalidade de ensino, particularmente no
curso de Ciências Sociais (CS) da Faculdade de Ciências Sociais (FCS), nos períodos
de agosto de 2020 a fevereiro de 2021 e dezembro de 2021 a abril de 2022.
De acordo com o Diagnóstico da EECA, o questionário aplicado foi respondido
por 48% dos/as estudantes da EC e 57% dos/as estudantes da EAS. Desse total, 14 a
15% pertenciam a grupos considerados vulneráveis economicamente, já que a maioria
declarou ter a renda familiar reduzida. Igualmente, uma porcentagem significativa des-
ses estudantes alegou ter uma renda familiar de até 3 salários-nimos: 38 % do curso
de EC e 55% do curso de EAS.
Além do anterior, cabe ressaltar que entre os dois cursos se visualiza uma signifi-
cativa dificuldade para o acesso ao ERE, seja por causa da conexão à internet, pela
ausência de equipamentos necessários, como computadores, seja pelas características
das plataformas a serem utilizadas. Além de que vários/as estudantes declararam ter
acesso à internet apenas pelo celular, em que o sinal foi considerado péssimo por 4% e
regular por 27% dos estudantes do curso de EC, enquanto no curso de EAS 6% e 40%
dos estudantes declararam ter um sinal de internet péssimo e regular, respectivamente
(UFG, 2020a, p. 22). Igualmente, no primeiro curso, 34% dos/as estudantes informaram
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não ter computador individual, enquanto no segundo essa realidade atingia 26% dos estu-
dantes. Para o caso de estudantes com computadores compartilhados com outros membros
familiares, foi destaque o fato de que o uso do equipamento poderia conflitar com os ho-
rários de aula. No geral, as dificuldades com a conectividade indicavam uma necessidade
de priorizar a implementação do ERE, o uso de plataformas com menor consumo de trans-
missão de dados, o que não necessariamente coincidia com as ferramentas mais conhecidas
tanto por discentes quanto por docentes.
Os dados citados são corroborados por um segundo relatório, mais completo e rea-
lizado pela Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis (PRAE), em que a pesquisa realizada entre
julho e agosto de 2020 contou com a resposta de 2.259 estudantes de todas as unidades
acadêmicas da UFG (UFG, 2020b). No contexto de aplicação do questionário havia a
implementação de políticas acadêmicas para a facilitação de acesso à internet e bons com-
putadores para a permanência nos cursos.
De acordo com as experiências que individualmente conseguimos constatar no caso
da Graduação em CS
3
, algumas realidades desse curso parecem coincidir com as anterior-
mente descritas referentes aos cursos de EC e EAS. A turma da graduação em CS analisada
teve inicialmente 32 discentes matriculados/as, e apenas 21 permaneceram participando
ativamente até a finalização da disciplina. Desse total foi possível recompilar informações
de pelo menos 18 estudantes. Desistências ao longo das disciplinas são relatadas por todos
os docentes ouvidos em reuniões de Conselho Diretor e outras instâncias da vida acadê-
mica.
Na referida turma, constatou-se que a maioria dos/as discentes (55,6%) tem uma
renda familiar que não ultrapassa o valor de 2 salários-mínimos e mora em residências onde
não possuem algum cômodo ou quarto específico para estudar (66,7 %). O Gráfico 1, a
seguir, ilustra as informações sobre a renda dessa turma:
Gráfico 1 Renda fa miliar de estudant es de gradu ação em C iências S ociais
Fonte: questionário aplicado pelos autores (2021).
ESPAÇO PEDAGÓGICO
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Nos cursos de EC e EAS, a maioria dos estudantes teve uma renda familiar re-
duzida, e uma parte significativa deles pertencia a grupos de baixa renda: até 3 salários-
mínimos. No curso de CS, segundo as turmas analisadas, não foi possível conferir se
houve redução da renda familiar, mas constatamos nesse item econômico um aspecto
comum com os outros cursos: maioria dos discentes (55,6%) tinha baixa renda, com
valores que não ultrapassam os 2 salários-mínimos. Os dados são compatíveis com os
índices gerais da universidade constatados pelo relatório da PRAE (UFG, 2020b).
Além dessas semelhanças na renda dos três cursos, algumas diferenças podem ser
mostradas. No momento em que tivemos informações sobre a realidade das turmas do
curso em CS aqui analisadas, a maioria dos/as estudantes tinha equipamentos como
computadores e/ou celular com internet, o que lhes facilitava aproveitar as disciplinas
em ERE. Porém, não foi possível identificar quais desses equipamentos tinham sido
adquiridos através de, por exemplo, o Plano Emergencial de Conectividade para estu-
dantes da UFG, que teve como objetivo contribuir com o acesso dos estudantes de
baixa renda à internet e permitir o uso das Tecnologias Digitais de Informação e Co-
municação (TDICs) em atividades acadêmicas no contexto da pandemia.
Considerando as realidades socioeconômicas que foram levantadas pela Pró-Reitoria
de Assuntos Estudantis (UFG, 2020b) que incentivaram este programa social da UFG
inclusive declaradas na Resolução CONSUNI/UFG nº 27/2020 junto à maior
porcentagem de discentes de baixa renda no curso de CS, suspeitamos de que, para
uma parte significativa desses estudantes, foram imprescindíveis os equipamentos para
conseguir desenvolver suas atividades acadêmicas.
Apesar das pequenas semelhanças e diferenças até aqui apontadas, identificamos
outra realidade comum que resulta central para os fins analíticos do presente artigo,
fundamentados na perspectiva teórica de Bourdieu. Essa realidade diz respeito ao im-
pacto emocional e cognitivo que o ERE teve na maioria dos discentes dos cursos de EC
e EAS (UFG, 2020a), mas que também coincidem com alguns fatos apontados pelos/as
estudantes das turmas analisadas do curso de CS.
Do ponto de vista do impacto emocional, para parcelas significativas de discentes
dos cursos de EC e EAS, suas relações com o ERE estiveram mediadas por sentimentos
de ansiedade, falta de paciência, angústia e nervosismo. Os dados levantados pela
PRAE, no que se referem à saúde mental dos estudantes da UFG, igualmente demons-
tram altos índices de ansiedade e profundas dificuldades enfrentadas no início da
pandemia. São eles:
ESPAÇO PEDAGÓGICO
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95% estavam em isolamento social no momento de aplicação do questionário
(julho e agosto de 2020);
33% fazem uso de medicação (ansiedade, depressão, anticonceptivos e outros);
38% relatam violência doméstica/sexual;
51% tiveram um familiar ou amigo que adoeceu por COVID-19;
13% tiveram um familiar ou amigo que faleceu por COVID-19;
52% dormem menos que de costume;
66% sentem-se mais nervosos/as e tensos/as;
40% têm menos prazer nas atividades do dia a dia;
48% se sentem infelizes e deprimidos;
44% perderam a confiança em si mesmos;
43% se sentem inúteis;
38% se sentem ultrapassados pelos acontecimentos e incapazes de superar suas
dificuldades;
19% usam medicamento, álcool e outras drogas para aliviar desconfortos e so-
frimentos;
44% se sentem menos seguros que de costume com a rede de apoio;
74% têm preocupações com recursos financeiros.
Esses elementos sustentam dificuldades no aproveitamento acadêmico, que fo-
ram reveladas de forma explícita pelos dados levantados pela PRAE (UFG, 2020b). No
que diz respeito aos dados dos cursos de engenharia e ciências sociais, a maioria dos
discentes de ambos os cursos conseguiu desenvolver poucas atividades acadêmicas,
como projetos de pesquisa, Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC) e consulta aos
sistemas internos de gerenciamento das atividades acadêmicas. Porém, ao que tudo in-
dica, a maioria conseguiu estudar bastante, mesmo tendo estabelecido pouco contato
com os docentes (11% e 12% dos discentes dos cursos de EC e EAS estiveram respec-
tivamente em contato com docentes), e mesmo tendo olhado muito pouco o Sistema
Integrado de Gestão de Atividades Acadêmicas (SIGAA), sendo essa a principal plata-
forma utilizada na UFG durante o ERE para orientar atividades e disponibilizar textos,
segundo o próprio relatório (UFG, 2020a). Isso sugere que, ainda que a leitura fosse
uma das atividades mais desenvolvidas pelos discentes durante o isolamento social, es-
pecialmente no caso do curso de EAS (68%), essas leituras poderiam não se referir
especificamente ao conteúdo das disciplinas ofertadas pela UFG.
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Nas turmas da CS, o impacto emocional não foi muito diferente ao dos cursos
antes referidos, em relação às limitações para aproveitar conteúdos acadêmicos. Conse-
guimos identificar que, de 18 estudantes, 88,2% deles/as afirmaram ter dificuldades
para se concentrar nos estudos, enquanto 41,2% relataram sentir pouca motivação para
dialogar na sala de aula virtual. Igualmente, um 55,6% relataram insegurança diante
dos debates realizados em sala de aula, além de empolgação (88,9%) e curiosidade
(66,7%). Os Gráficos 2 e 3 ilustram esses dados:
Gráfico 2 Dificuldades para compreen der o conteú do da disciplina
Fonte: questionário aplicado pelos autores (2021).
Gráfico 3 Principais emoções diante dos debates no decorrer da disciplina
Fonte: questionário aplicado pelos autores (2021).
Apesar dos dados anteriores, a maioria dos/as discentes expressou sentir satisfação
com a aprendizagem no decorrer da disciplina, mesmo no contexto do ERE. Especifi-
camente, 61,1% desses declararam sentir níveis de satisfação de mais de 80%, conforme
ilustra o Gráfico 4:
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Gráfico 4 - Nível de satisfação com aprendizage m em disciplina Cultura, P oder e
Relações Raciais
Fonte: questionário aplicado pelos autores (2021).
De acordo com os depoimentos de vários discentes, a compreensão dos conteú-
dos da disciplina e, em decorrência disso, os níveis de satisfação com o aprendizado
previamente informado, relacionam-se com as maneiras de interação social e pedagó-
gica entre discentes e docentes. Dos/as 18 estudantes da turma de CS com os/as quais
interagimos, conseguimos 15 declarações que constatam essa argumentação. Algumas
destas são as seguintes:
[...] a interação com os colegas e professor em momentos fora da aula”. Exposição do
professor… e discussão em sala”. “Explicação do professor e temas abordados.
“Interações entre os discentes”. “[...] ambiente tranquilo e amistoso, clareza das
apresentações e diálogos harmónicos”. “Maneira do professor e sua dedicação”.
“Motivação do professor, interação e inclusão em todos os debates, liberdade de escolha
e expressão nas aulas, compreensão das dificuldades de cada aluno com o apoio do
professor”. “A leveza do professor facilitou bastante entender e compreender o conteúdo”
“linguagem de fácil compreensão.
Os dados acima abrem caminhos para a compreensão de outras possíveis manei-
ras de apreensão da relação entre discentes e instituições escolares a partir da perspectiva
teórica de Bourdieu.
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Ensino remoto emergencial em cursos de graduação na UFG:
leituras à luz da teoria do habitus de Pierre Bourdieu
Conforme apontamos em seções anteriores, uma das principais características do
pensamento de Bourdieu sobre a relação entre estudantes e instituições escolares diz
respeito ao papel que estas instituições cumprem na reprodução, isto é, a legitimação
das distinções hierárquicas entre discentes e das desigualdades escolares que estas im-
plicam. Essa distinção tem na sua base a existência de estudantes respectivamente
favorecidos e desfavorecidos, aos quais se lhes atribuem sentidos e deveres. O primeiro
grupo de estudantes, associado ao talento e à habilidade supostamente inata – nunca a
uma ideia de favorecimento sociohistórico , determina a norma, o academicamente
correto em termos de exigências escolares. Assim o dever atribuído se relaciona com a
manutenção dessas habilidades. Simultaneamente, o segundo grupo, associado à ideia
de limitações escolares, mas com a capacidade de chegar aos patamares escolares de
referência caso se esforce, carrega o dever de se dedicar arduamente aos estudos para
compensar suas distâncias em relação à cultura (conhecimentos escolares, mas também
formas de interação e de linguagem) legítima no âmbito escolar (BOURDIEU, 1998).
Ainda que essas ideias sejam pertinentes para pensar diferentes contextos escola-
res, a conjuntura atual do ERE no Brasil especificamente no âmbito dos cursos de
graduação aqui analisados oferece caminhos para outras possíveis leituras. O ERE
trouxe uma relativa flexibilização das hierarquizações dos estudantes por parte das ins-
tituições e dos/as docentes e, portanto, nos sentidos e deveres atribuídos a estes
estudantes. Diferentes experiências de docentes da UFG, entre estas, as nossas, revelam
que esta modalidade não necessariamente esteve marcada pelo privilégio de grupos de
estudantes. Isto se deveu a vários motivos.
O ERE se caracterizou por reproduzir uma interação em sala de aula exclusiva-
mente de forma virtual e sem a obrigatoriedade dos/as discentes ligarem suas câmeras.
Esta modalidade implicou várias dificuldades para avaliar o aprendizado como um todo
(conteúdos, destrezas discursivas, atitudes) e colocou barreiras para a construção de
estereótipos por parte dos agentes sociais envolvidos (docentes/discentes). Igualmente,
a mudança repentina das dinâmicas de ensino-aprendizagem decorrente da passagem
do ensino presencial para o ERE, a urgência de ter que lidar com as plataformas online,
além das mencionadas dificuldades, acarretaram maior insegurança nos docentes (em-
bora reconheçamos que tal insegurança é heterógena a depender das trajetórias sócio-
históricas de cada qual). Assim, todos esses elementos confluíram para influenciar a
flexibilização de exigências por parte dos/as docentes diferente como era comumente
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feito no âmbito presencial , fazendo com que o conteúdo transmitido passasse a ter
mais importância nas cobranças acadêmicas, em detrimento das posturas, atitudes e
destrezas discursivas. Os métodos didáticos mais comuns para materializar as cobranças
foram as avaliações através de resenhas de textos e debates coletivos.
Levando em consideração que o campo acadêmico se caracteriza pela valorização
de habitus que dizem respeito à valorização de volumes significativos de capitais cultu-
rais incorporados (Bourdieu, 1989), aparentemente, a experiência do ERE, em
conjunto com os elementos anteriormente mencionados, influenciou a flexibilização
de exigências acadêmicas que derivam desta valorização. Os/as docentes diferente-
mente do que era comumente feito no âmbito presencial , sentiram-se mais
inclinados/as a que o conteúdo escolar passasse a ser transmitido priorizando maior
empatia com as limitações e dificuldades dos/as discentes (transversalizadas por seu ha-
bitus), diminuindo, assim, as preocupações por cobranças de posturas, atitudes e
destrezas discursivas, conforme críticas realizadas por Bourdieu (1998) sobre institui-
ções escolares e as relações de poder que as constituem.
Por outro lado, o cansaço psicológico resultante das situações anteriormente re-
latadas também repercutiu no desenvolvimento dos processos de ensino, no sentido de
limitar a produção de distinções hierárquicas entre discentes por parte de docentes.
Estes últimos se sentiram mais sensíveis diante dos grandes esforços que teriam que
fazer os estudantes para cumprir com as tarefas acadêmicas, porque para eles/as também
era desafiador lidar com as novas dinâmicas impostas pelo isolamento social e pelo
ERE. Desta forma, o habitus dominante que permeia a UFG enquanto instituição de
ensino superior não foi tão estritamente exigido. Um exemplo desses argumentos, que
demonstram alguns dos impactos que o ERE tem tido, por exemplo, na transmissão
de conhecimentos, são as seguintes expressões referentes ao compartilhamento de ex-
periências que tivemos com outros docentes da UFG:
Não tenho coragem para exigir de meus estudantes aquilo que nem para mim está sendo
fácil fazer, como: escrever um artigo como trabalho final, exigir uma resenha de texto toda
semana ou orientar leituras sistemáticas que sejam longas e densas. Se eu fizer isso, sinto
que estaria contribuindo para uma existência acadêmica mais tediosa dos discentes, com
possibilidades de maiores impactos negativos em grupos de estudantes vulneráveis do
ponto de vista socioeconômico e da saúde.
A forma como o cansaço psicológico influenciou os processos de ensino não se
sustenta somente através da figura dos/as docentes e suas atitudes de flexibilização nas
exigências. Os/as estudantes também se sentiram afetados/as, limitando suas disposi-
ções para lidar com os conteúdos ministrados em sala de aula, independentemente de
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suas origens socioeconômicas e seu habitus socialmente adquirido. No entanto, isto não
significa alguma universalidade nas maneiras como estas disposições foram influencia-
das por tal cansaço psicológico. Entendemos que, se bem a maioria ou todos/as
discentes sofreram este cansaço, existem diferenças no que se refere aos modos como
distintos grupos de estudantes (de baixa e alta renda) lidaram com este cansaço -em
termos de atitudes e ações diante dos processos de ensino-aprendizado- e com a interi-
orização de conteúdos escolares, de acordo com suas condições socioeconômicas
historicamente constituídas.
4
Um exemplo desta realidade, que no caso revela alguns
impactos do ERE nos processos de ensino-aprendizado é o fato de que a maioria dos
grupos de estudantes (considerando os de baixa e alta renda) revelaram ter tido dificul-
dades para se concentrar e estudar. O relato abaixo ilustra bem essas relações:
A UFG me pergunta se tenho condições estruturais para me manter no curso. E eu tinha!
Tenho computador, boa conexão de Internet. Mas descobri que eu permanecia na
faculdade para estar com as outras pessoas. Para olhar no olho do professor e para tomar
um café com a turma no intervalo. Eu nem tinha ideia do quanto essa parte era importante
em meu aprendizado (estudante do terceiro período do curso de Ciências Sociais da UFG).
Eu tenho a estrutura necessária para estudar, mas não tenho o psicológico para fazer isso
sozinho em casa. E por isso eu tranquei minha matrícula (estudante do terceiro período
do curso de Ciências Sociais da UFG).
O fato de que estudantes de diferentes classes sociais tenham tido as mesmas
dificuldades de concentração nos estudos também abre espaços para repensar as supos-
tas facilidades que o aprendizado dos conteúdos escolares teria para as classes
privilegiadas. Bourdieu (1998) entendia que o aprendizado seria mais confortável para
os discentes das classes superiores que tenham adquirido uma bagagem cognitiva e cul-
tural mais próxima aos códigos do ambiente escolar. Porém, a nossa experiência do
ERE na UFG, junto ao fato assinalado ao início deste parágrafo, parece indicar que a
questão emocional tem tido um impacto significativo nessas facilidades, sem desapre-
ciar as questões cognitivas e culturais. Os estudantes mais favorecidos, com habitus
culturais incorporados e objetivados (computadores, celulares) mais próximos aos con-
teúdos e às exigências escolares se sentiram limitados para lidar com os processos de
ensino-aprendizado de forma similar aos grupos menos favorecidos? O fator emocional
foi um fator decisivo nestas limitações? O apoio material (habitus culturais objetivados)
que receberam os discentes de grupos menos favorecidos socialmente, com habitus cul-
turais incorporados menos familiarizados com os conteúdos e as exigências escolares,
constituíram incentivos que equilibraram as dificuldades entre os diferentes grupos de
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discentes para lidar com os processos de ensino-aprendizado? Embora se deva aprofun-
dar melhor essas questões, com base em análises da maneira como o habitus dos
diferentes grupos de estudantes influenciou o desenvolvimento de estados emocionais
e as formas como estes, em conjunto, repercutiu no relacionamento com os conteúdos
acadêmicos, cabe um certo ceticismo sobre o impacto que as facilidades dos aprendiza-
dos teriam nos instrumentos de decodificação historicamente adquiridos pelos distintos
discentes em formas de habitus.
5
À guisa de conclusão
No contexto do ERE não se pode afirmar que os docentes deixaram de transmitir
ideias e conhecimentos de forma homogênea, indo de contramão ao que afirma Bour-
dieu (1998). Mas, nesse contexto se desenvolveram dinâmicas de ensino-aprendizagem
que, se bem tem sido possível analisar através da perspectiva deste autor, algumas das
suas caraterísticas não foram suficientemente consideradas por ele.
Em primeiro lugar, como bem foi dito anteriormente, a interiorização dos con-
teúdos acadêmicos não necessariamente foi mais fácil para os discentes de classes
superiores, por causa do grande peso que o isolamento social teve na estrutura emoci-
onal dos discentes de diferentes classes, ainda que possamos dizer que cada grupo lidou
com a situação de forma diferente a depender de suas respectivas condições sociais e
históricas. Em segundo lugar, em alguma medida (que também precisaria ser consta-
tada mediante outros estudos) o ERE parece ter impactado no processo de transmissão
de ideias e conhecimentos e de exigência de aprendizados por parte dos docentes. Este
impacto teria na sua base uma flexibilização nas maneiras de transmitir e avaliar os
conhecimentos, mais propensas a diálogos e negociações e muito mediadas pela empa-
tia com o outro por meio das circunstâncias de um estresse coletivo.
Por outro lado, as reflexões até aqui mostradas permitem dialogar com a ideia de
que o sucesso escolar não deve ser explicado através de supostos dons biológicos e psi-
cológicos dos/as estudantes, porque suas origens sociais determinam suas condições
favoráveis ou não para o cumprimento das exigências escolares (BOURDIEU, 1998).
Também dialogam com noções de privilégios das classes sociais superiores que trans-
versalizam os processos de ensino-aprendizagem, seja pelo desconhecimento dos
privilégios culturais das classes dominantes, seja pela imposição de códigos culturais aos
estudantes das classes populares.
A maneira como ditas reflexões dialogam com tais ideias de Bourdieu é reconhe-
cendo que estas últimas ainda persistem, mesmo em contexto tão diferente como foi o
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ERE na UFG. Porém, as formas de existência destas realidades têm potencial para com-
plementar as noções bourdieusianas que guiaram a análise, até aqui realizada, sobre as
relações entre instituições escolares, docentes e estudantes nos processos de ensino-
aprendizagem.
O ERE, ao exigir modificações comportamentais de docentes e discentes (senti-
dos e práticas de acordo com Weber e Bourdieu), exaltou a necessidade de transcender
o reconhecimento dos privilégios culturais e valorizar outras formas culturais e de inte-
ração, diante das transformações sociais e profissionais às quais estiveram acometidos
os/as discentes e docentes. Dito isso, não é possível afirmar que a imposição de códigos
culturais das classes dominantes foi eliminada porque ela continuou, por exemplo, nos
currículos e avaliações, mas com dinâmicas diferentes em sala de aula que precisam de
outras pesquisas para serem mais profundamente compreendidas. Assim, uma das rea-
lidades que mais contribuiu para outras dinâmicas é o fato dos/as próprios/as docentes
também estarem mais expostos a fragilidades e cobranças por parte dos discentes a res-
peito das suas formas de lidar com o ERE. Diante das novas realidades do ERE houve
uma negociação tácita entre discentes e docentes que sustentou outras dinâmicas de
interação nem sempre transversalizadas pela hierarquização do habitus dos/as estudan-
tes.
A partir das reflexões que temos apresentado até o momento, ainda não é possível
oferecer respostas decisivas a essa interrogante. Por enquanto, apenas temos mostrado
algumas possibilidades de caminhos analíticos que, além de ratificarem a pertinência
da teoria do habitus de Bourdieu para o exame de processos de ensino-aprendizagem,
também poderiam aprofundar a compreensão desses processos a partir da aplicação
desta proposta teórica em contextos diferentes daqueles que a sustentaram.
Notas
1
Dados disponíveis no site https://www.who.int/eportuguese/countries/bra/pt/. Acesso em 22 de abril
de 2020.
2
As estratégias e ações sociais possuem significativas possibilidades de estarem objetivamente de acordo
com os interesses dos membros do campo social onde se desenvolvam, sem que necessariamente
tenham sido expressamente concebidas para este propósito.
3
Os dados apresentados não se referem a todos/as estudantes do curso no geral, apenas ilustram as
realidades de várias turmas em níveis diferentes e a partir de respostas dadas a questionários semiabertos
no período de conclusão das disciplinas, bem como observação participante dos docentes realizada
entre agosto de 2020 e janeiro de 2022.
4
Não foi possível identificar nesta pesquisa diferenças ou semelhanças concretas nos processos de
interiorização de conteúdos escolares por parte os/as discentes (uma das dimensões do habitus)
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atreladas às suas condições sócio-históricas. Esta seria uma das pendências analíticas que derivam das
reflexões aqui apresentadas. O que mais se identificou foram semelhanças entre diferentes grupos de
discentes (de acordo com suas condições econômicas) nos processos de exteriorização de realidades
internas como as emoções (outra dimensão do conceito de habitus). Estas formas de exteriorização se
manifestam nas dificuldades para se dedicarem aos estudos.
5
Não pretendemos com esta ideia fazer alusão a uma independência no interior dos habitus dos
componentes cognitivos, simbólicos e afetivos. Reconhecemos a interdependência entre esses
elementos. Porém, a partir das experiências apresentadas no âmbito do ERE, é possível conjeturar que
a questão emocional (também constitutivos e constituintes de conhecimentos e significados
historicamente apreendidos, segundo as posições dos estudantes) tem tido um peso significativo na
maneira como os agentes se têm envolvido com as dinâmicas de ensino-aprendizado.
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Este artigo está licenciado com a licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
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O trabalho pedagógico pensado como práxis
The pedagogical work thought as praxis
El trabajo pedagógico pensamiento como praxis
Iduméa de Souza Fernandes Ramos
*
Ilsa do Carmo Vieira Goulart
**
Resumo
Este texto tem como proposta apresentar uma diferenciação entre práxis e prática pedagógica, na
dimensão do trabalho educativo. Ambos os termos são empregados como equivalentes no contexto
educacional, o que se denota desconhecimento de seus reais significados e das implicações de
sentidos. Para tanto, o artigo objetiva refletir sobre a concepção de Adolpho Sanchez Vázquez quanto
à filosofia da práxis, bem como os conceitos de prática educativa e pedagógica, em correlação com o
trabalho docente, numa tentativa de apresentar definições, diferenciações, similaridades e
indissociabilidade. Por conseguinte, a partir de uma pesquisa bibliográfica, de abordagem qualitativa,
o texto propõe uma reflexão teórica em interlocução com as considerações sobre o trabalho docente,
delineando-o, na perspectiva da práxis pedagógica, entendendo ser essa uma ação educativa que se
espera para uma educação dialógica e emancipadora. O embasamento teórico das abordagens
realizadas, quanto a educação emancipadora, pauta-se na pedagogia Freiriana, principalmente na
obra “Pedagogia do Oprimido”. A reflexão atribui visibilidade aos conceitos de práxis e prática,
colaborando para as discussões que delineiam a perspectiva de trabalho pedagógico como atividade
social transformadora, reflexiva, libertadora e predominantemente dialógica.
Palavras-chave: Práxis pedagógica. Prática pedagógica. Trabalho pedagógico.
Recebido em: 28.03.2020 Aprovado em: 14.02.2022
https://doi.org/10.5335/rep.v29i3.10769
ISSN on-line: 2238-0302
*
Mestre em Educação. Prefeitura Municipal de Heliodora (MG). Orcid: https://orcid.org/0000-0003-1733-566X. E-mail:
idumea46@gmail.com.
**
Estágio Pós-doutoral pela Universidade de Barcelona. Doutora em Educação. Departamento de Gestão Educacional, Teorias e
Práticas de Ensino (UFLA. Programa de Pós-Graduação em Educação (UFLA). Núcleo de Estudos em Linguagens, Leitura e Escrita
(NELLE). Orcid: http://orcid.org/0000-0002-9469-2962. E-mail: ilsa.goulart@ufla.br.
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Abstract
This text aims to present a differentiation between praxis and pedagogical practice, in the dimension
of educational work. Both terms are used as equivalent in the educational context, which denotes
ignorance of their real meanings and meaning implications. To this end, the article aims to reflect
on the Conception of Adolpho Sanchez Vázquez as to the philosophy of praxis, as well as the
concepts of educational and pedagogical practice, in correlation with teaching work, in an attempt
to present definitions, differentiations, similarities and indissociability. Therefore, based on a
bibliographical research, with a qualitative approach, the text proposes a theoretical reflection in
interlocution with the considerations on teaching work, outlining it, from the perspective of
pedagogical praxis, understanding that this is an educational action that is expected for a dialogical
and emancipatory education. The theoretical basis of the approaches carried out, regarding
emancipatory education, is based on Freiriana pedagogy, especially in the work “Pedagogia do
Oprimido”. The reflection attributes visibility to the concepts of praxis and practice, collaborating
for the discussions that outline the perspective of pedagogical work as a transformative, reflective,
liberating and predominantly dialogical social activity.
Keywords: Pedagogical praxis. Pedagogical practice. Pedagogical work.
Resumen
Este texto pretende presentar una diferenciación entre la praxis y la práctica pedagógica, en la
dimensión del trabajo educativo. Ambos términos se utilizan como equivalentes en el contexto
educativo, lo que denota ignorancia de sus significados reales e implicaciones de significado. Para
ello, el artículo pretende reflexionar sobre la Concepción de Adolfo Sánchez Vázquez y la filosofía
de la praxis, así como los conceptos de práctica educativa y pedagógica, en correlación con la labor
docente, en un intento de presentar definiciones, diferenciaciones, similitudes e inseparabilidad. Por
lo tanto, sobre la base de una investigación bibliográfica, con un enfoque cualitativo, el texto propone
una reflexión teórica en interlocución con las consideraciones sobre la labor docente, esbozándola,
desde la perspectiva de la praxis pedagógica, entendiendo que se trata de una acción educativa que
se espera para una educación dialogante y emancipadora. La base teórica de los enfoques llevados a
cabo, en materia de educación emancipadora, se basa en la pedagogía freiriana, especialmente en la
obra "Pedagogía de los Oprimidos". La reflexión atribuye la visibilidad a los conceptos de praxis y
práctica, colaborando para los debates que describen la perspectiva del trabajo pedagógico como una
actividad social transformadora, reflexiva, liberadora y predominantemente dialogante.
Palabras clave: Praxis pedagógica. Práctica pedagógica. Trabajo pedagógico.
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Considerações iniciais
Indecisa, apenas articulada, se despierta la palabra.
No parece que vaya a orientarse
nunca en el espacio humano,
que va tomando posesión del ser que despierta lenta o
instantáneamente.
Pues que si el despertar se da en un instante, el espacio le acomete como
si ahí le hubiese estado aguardando para definirle,
para hacerle saber que es un ser humano sin más.
(ZAMBRANO, 1986, p. 8)
As palavras como forma de expressividade da linguagem, sejam escritas ou orali-
zadas, adquirem sentidos na discursividade. Parafraseando a epígrafe, ainda que não
pareça que as palavras consigam orientar-se no contexto humano, ocorre que estas bus-
cam possuir àqueles que se predispõem a aceitá-las, seja de forma lenta ou
abruptamente, encontram ali um espaço para que reconheçam o que é humanizar.
Nessa vertente, busca-se uma reflexão do trabalho pedagógico na perspectiva da lingua-
gem como ação discursiva, que dinamiza, promove, orienta, dispersa, unifica, planeja
e opera em espaços de relações interpessoais, que toma uma posição de um ser em
atividade de expressividade, de direcionamento, de empoderamento, ao articular e mo-
bilizar pensamentos, ações e modos de interação.
Na esfera educacional, as palavras compreendidas como modo de configuração
da linguagem adquirem facetas determinantes nas relações procedimentais e atitudi-
nais, ao instituir, apregoar e/ou demarcar perspectivas ideológicas e posicionamentos
teórico-metodológicos, o que reflete no desencadeamento de determinados fazeres pe-
dagógicos.
Embasado na premissa da linguagem como forma de expressividade e de intera-
ção, no caso pelas palavras (verbal ou não-verbal), o presente texto abre um espaço de
diálogo tendo como centralidade as palavras práxis, prática educativa e pedagógica, tra-
balho docente, articulando discussões legitimadas sob a ótica argumentativa de
Vázquez (2007) e Freire (1981; 1987; 1996; 2009), em interlocução com a concepção
de Gutiérrez (1988), Nóvoa (1995), Tardif (2014), Tardif e Lessard (2014), entre ou-
tros autores que discutem a temática da prática educativa e do trabalho pedagógico.
A palavra práxis é empregada com frequência no meio educacional para designar
o trabalho pedagógico. No entanto, há de se considerar que pouco se sabe sobre o
termo, quando se observa seu emprego nos discursos pedagógicos. Os vocábulos práxis
e prática, apesar de empregados como sinônimos, ambos se constituem termos com
significados distintos. Práxis traz em seu bojo concepções marxistas, aspectos relacio-
nados ao conhecimento, à atividade humana transformadora, com objetivos definidos,
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que se materializam na construção da própria história dos sujeitos da ação. De acordo
com Vázquez (2007, p. 219) “[...] toda práxis é atividade, mas nem toda atividade é
práxis”.
Assim, a partir de uma pesquisa bibliográfica, de abordagem qualitativa, o texto
propõe uma reflexão teórica sobre o sentido de práxis tomando como embasamento a
obra de Vázquez (1977), “Filosofia da Práxis”, especificamente o capítulo “O que é
Práxis”, intenta-se uma reflexão conceitual, de modo a definir e a apreender seu signi-
ficado.
Ao apresentar a práxis como ação dinâmica e transformadora, da atuação do ho-
mem com e sobre o mundo, longe se ser uma atividade reduzida aos pragmatismos,
mas de uma atividade prática sustentada pela reflexão, este artigo objetiva refletir sobre
as ideias de Adolpho Sanchez Vázquez quanto à filosofia da práxis. Para isso, busca-se
uma definição de práxis, bem como os conceitos de prática educativa e pedagógica em
correlação com o trabalho docente, numa tentativa de apresentar diferenciações, simi-
laridades e indissociabilidade. As discussões têm por finalidade delinear o trabalho
docente na perspectiva de uma práxis pedagógica, qual seja, transformadora, tomando
como referência a proposta de educação assinalada por Paulo Freire, na obra “Pedago-
gia do Oprimido”.
Para melhor organização da reflexão proposta, o texto se organiza em seções que
se desdobram na definição de práxis e prática pedagógica, no delineamento do trabalho
docente como práxis pedagógica, com a intencionalidade de compreender e diferenciar
terminologias, de modo a direcionar um olhar ao trabalho docente subsidiado pelo viés
argumentativo de uma ação pedagógica transformadora, dialógica, interativa, reflexiva
e, consequentemente, emancipadora.
Práxis e prática: compreendendo os conceitos
Os estudos de Vázquez (2007) ao tecer as concepções de Marx sobre a Práxis,
que se pauta na argumentação de que filosofia ganha seu significado quando integra a
ação das pessoas, orientando o processo de compreensão da realidade. Desse modo, a
‘matéria’ passa a ser objeto essencial para a ‘razão’, de modo que se ela fosse inexistente,
a ‘razão’ não teria estímulos que a fizessem propor preceitos e conceitos, conforme des-
tacam Pereira, Rocha e Chaves (2016). Tal proposição subsidia a afirmação que toda
práxis é atividade, porém nem toda atividade é considerada práxis, visto que compre-
ende uma forma de atividade específica, apesar de ter atividades vinculadas a ela. Nessa
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perspectiva, Vázquez (2007, p. 219) traz o sentido de atividade “[...] como um con-
junto de atos em virtude dos quais um sujeito ativo (agente) modifica uma matéria-
prima dada”. A atividade prática dissolve-se, como uma simples atividade no plano
teórico, ao contrário da práxis, que se solidifica na concreticidade da transformação.
Segundo Bottomore (1997) práxis pode ser definida como uma atividade livre,
universal, criativa e autocriativa, por meio da qual o homem cria, produz e transforma
(conforma) seu mundo humano, social e histórico, e a si mesmo. Entretanto, de acordo
com o material de estudo da Escola de Gestores da Educação Básica, disponibilizado
pelo Ministério da Educação e Cultura (BRASIL, 2010), a prática é entendida como
uma atividade de caráter utilitário-pragmático, relacionada às necessidades imediatas
de prática educativa. A verdadeira práxis se mostra exercida com embasamento teórico,
porém, trata-se de uma atividade transformadora, real, efetiva e até mesmo revolucio-
nária, entendida e desenhada como uma atividade prática social que modifica a
natureza, em que o homem se firma como homem, transforma o meio natural e sua
própria natureza, objetivamente para sua satisfação.
Depreende-se pela leitura que a práxis trata-se de uma atividade cognoscente,
inseparável de toda verdadeira atividade humana, cujos fins e produção do conheci-
mento apresentam-se em íntima unidade. De acordo com Vázquez (2007, p. 224) “[...]
a relação entre o pensamento e a ação requer a mediação dos fins que o homem pro-
põe”.
Dessa maneira, como toda ação humana, a atividade prática que se manifesta por
meio do trabalho, da atuação, das atividades artísticas ou da práxis revolucionária, se-
gundo Vázquez (2007) constitui-se por uma atividade adequada a fins, cujo
cumprimento, exige certo exercício cognoscitivo.
A atividade corresponde a algo propriamente humana, que é exercida pelo ho-
mem sobre determinado objeto ou meio natural e que tem a capacidade de projetar a
obra que constrói. O homem se apodera dos materiais naturais para produzir algo útil
para sua vida, para um determinado fim. No entanto, essa ação sobre o objeto envol-
vendo desejo, vontade ou conformação da matéria, exige conhecimento,
discernimento, o que implica saber como fazer, saber o que utilizar para transformá-la,
saber quais os objetos necessários e as possibilidades positivas ou não para a realiza-
ção. Desse modo, nesse processo da ação “[...] as atividades cognoscitiva e teleológica
da consciência, se encontram em uma unidade indissolúvel”, como descreve Vázquez
(2007, p. 225).
Assim, a atividade da consciência, mantém íntima relação com o conhecimento,
com ciência da finalidade da ação, porque fazer, que por sua vez, tem caráter teórico
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que possibilita a transformação de uma realidade social ou natural pelo homem, que
age conhecendo o que faz e se conhece na ação. Toda sua atividade prática encontra-se
sustentada a fins, a propósitos e, cujo cumprimento, exige exercício do próprio ato de
conhecer, do aprender, do aprimorar, do envolver-se corporalmente e estar teorica-
mente embasado.
Isto posto, cabe acrescentar que se nem toda atividade é considerada práxis trans-
formadora, nem toda teoria, como conhecimento solitário e isolado, constitui-se em
práxis, segundo aponta Vázquez (2007). Práxis não se resume a um mero fazer por
fazer, por puro pragmatismo, sem um fim real, objetivo. Isso configura-se apenas em
prática. Práxis trata-se de um modo de ser que, por meio da ação objetiva e real, trans-
forma uma realidade natural ou social em uma nova realidade, ou seja, se a ação se
objetiva materialmente, conforma e transforma uma realidade para atender suas neces-
sidades humanas.
De acordo com os estudos de Vázquez (2007), a teoria contribui para transfor-
mar a realidade, para transformar a prática em práxis, haja vista que, por meio da práxis,
o homem objetiva-se produzindo seu contexto sócio-histórico e cultural. Por isso, trata-
se da configuração ontológica, como elemento essencial na constituição do ser humano,
o possibilita ser o que é hoje, ao longo de milhares de anos, conforme destacam Pio,
Carvalho e Mendes (2014).
Mediante as afirmações sobre a relação entre teoria, prática e práxis, percebe-se
que correspondem a dimensões que são indissociáveis. Desta forma, tais conceitos en-
contram-se interligadas, são interdependentes, conforme assinala Freitas (2005, p. 138)
“[...] para fazer distinguir a práxis das atividades meramente mecânicas, repetitivas, ali-
enadas”, ao dialogar com o que afirma Konder:
A práxis é a atividade concreta pela qual os sujeitos humanos se afirmam no mundo, modificando
a realidade objetiva e, para poderem alterá-la, transformando-se a si mesmos. É a ação que, para
se aprofundar de maneira mais consequente, precisa da reflexão, do autoquestionamento da
teoria; e é a teoria que remete à ação, que enfrenta o desafio de verificar seus acertos e desacertos,
cotejando-os com a prática (KONDER, 1992, p. 115, apud FREITAS, 2005, p. 138).
A teoria empodera os sujeitos para atuar de maneira reflexiva sobre determinado
objeto ou realidade natural, proporciona conhecimentos para atuar com discernimento
sobre determinada realidade. E, para complementar a reflexão sobre práxis e prática, no
contexto da ação transformadora, corrobora-se com a reflexão “[...] a prática pedagó-
gica é uma atividade que gera cultura, à medida que é praticada, portanto, a prática
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docente em movimento é produtora de conhecimento, ela é práxis” (GIMENO
SACRISTÁN, 1991, p. 83).
A teoria fundamenta a prática e contribui para a reflexão sobre a realidade a ser
transformada. A práxis, portanto, define-se em uma atividade prática que se sustenta
na reflexão teórica. A contraposição teoria-prática não se fundamenta. Uma ação com-
plementa a outra para conceder validade à prática. Vázquez (2007) para descrever sua
concepção pauta-se nas ideias de Marx, ao tratar da atividade prática existente na práxis
da seguinte maneira:
Marx enfatiza o caráter real, objetivo, da práxis, na medida em que transforma o mundo exterior
que é independente de sua consciência e de sua existência. O objeto da atividade prática é a
natureza, a sociedade ou os homens reais. O fim dessa atividade é a transformação real, objetiva,
do mundo natural ou social para satisfazer determinada necessidade humana (VÁZQUEZ, 2007,
p. 226).
Portanto, o que se constrói a partir da atividade objetiva, concreta, transforma-
dora, fundamentada teoricamente é uma nova realidade, que assim realizada, constitui-
se práxis. Para Vázquez (2007) incide diferentes níveis de práxis, o que está correlacio-
nado ao grau de consciência do sujeito no curso da prática e com o grau de criação com
que transforma a matéria, convertendo-a em produto de sua atividade prática. Con-
forme o grau de consciência e de criatividade se abalizam manifestações distintas, de
um lado a práxis criadora e a reiterativa ou imitativa e, de outro, a práxis reflexiva e a
espontânea. O que compõe os quatro níveis da práxis: a produtiva, a artística, a experi-
mental e a política.
A práxis produtiva está relacionada com a atividade prática produtiva transfor-
madora que o homem estabelece mediante o trabalho com a natureza. Por meio do
trabalho o homem transforma objetos com relação a um fim determinado. Já a artística
trata-se de uma atividade que possibilita a produção ou criação de obras de arte. Da
mesma maneira que a práxis produtiva, a artística consiste na transformação de uma
matéria, não por necessidade prático-utilitária, mas sim por uma necessidade geral hu-
mana de se comunicar e se expressar. A perspectiva produtiva ou criadora supõe relação
mais intrínseca entre as dimensões subjetivas e objetivas, em outras palavras, entre
aquilo que planejamos e realizamos. Criar significa idealizar e realizar o pensado, por-
que nela o ser humano se complementa, pois produz objetos que satisfazem suas
necessidades, humaniza-se, transforma o meio e a si mesmo.
Práxis experimental satisfaz às necessidades de investigação teórica e, de acordo
com Vázquez (2007, p. 230), em particular às de comprovação de hipóteses. O fim
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principal é teórico, quando se leva “[...] a cabo o experimento para provar uma teoria
ou determinados aspectos dela”.
E por fim, a práxis política é apresentada por Vázquez (2007) como a práxis que
o homem é sujeito e objeto dela; configura-se em ação em que o homem atua sobre si
mesmo. Dentro da perspectiva política pode se refletir sobre a práxis social e práxis
revolucionária. A práxis social toma por objeto, não um indivíduo, mas um grupo ou
classes sociais. E a revolucionária é a forma mais alta de práxis política enquanto prática
transformadora.
Vázquez (2007, p. 232) afirma que “[...] se o homem existe, enquanto tal, como
ser prático, isto é, afirmando-se com sua atividade prática transformadora diante da
natureza exterior e diante da própria natureza, a práxis revolucionária e a práxis produ-
tiva constituem duas dimensões essenciais de seu ser prático”.
Porém, tanto uma como as demais formas de práxis são apontadas como formas
específicas concretas de práxis total humana “[...] graças a qual o homem como ser
social e consciente humaniza os objetos e se humaniza a si mesmo”. Em suma, a defi-
nição de práxis apresentada nos estudos de Vázquez (2007, p. 237) trata-se de “[...]
uma atividade material, transformadora e adequada a fins”, o que contribui para pensar
a educação como uma ação transformadora, intencional, respaldada na prática teórica
para a conquista dos objetivos.
Segundo Freire (1987, p. 52) a práxis refere-se a “[...] uma reflexão e ação dos
homens sobre o mundo para transformá-lo. Sem ela, é impossível a superação da con-
tradição opressor-oprimido”. A reflexão do autor, demonstra que a ação crítica do
sujeito sobre a realidade torna-se fundante para nela atuar e superar as desigualdades.
Nessa perspectiva, a inserção crítica se faz por meio da práxis, pois nenhuma realidade
se transforma por si mesma.
Uma prática pedagógica vazia teoricamente, inviabiliza a reflexão sobre a própria
prática e a realidade existente e, por conseguinte, não gera transformação, o que discu-
tiremos na próxima seção.
Delineando o trabalho docente na perspectiva da práxis
pedagógica na concepção Freiriana
A prática pedagógica se configura a partir de intencionalidades, as quais necessi-
tam partir da construção coletiva de diretrizes com princípios axiológicos, do
fortalecimento de laços de solidariedade, de respeito e de valoração mútua, de modo a
privilegiar o desenvolvimento da pessoa humana. Desse modo, posicionamentos éticos,
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críticos, reflexivos se mostram capazes de provocar mudanças na sociedade, tendo em
vista que se trata de ações que se fazem presente na interioridade de cada sujeito. A ação
docente trata-se de uma prática essencialmente política, na perspectiva de que o sujeito
se constitui pela transformação da interioridade a partir das relações construídas na
exterioridade, num movimento dinâmico e dialógico.
A educação nessa dimensão do trabalho docente é problematizadora, não uma
educação bancária, a qual é refutada por Freire (1987) e expressada como alienante da
ignorância. Na educação bancária o educador será sempre o que sabe, enquanto os
estudantes os que não sabem. A educação neste prisma fundamenta-se na compreensão
dos homens como seres vazios e que precisam ser preenchidos de conteúdos. O que se
espera da educação é pensar nos sujeitos “[...] como “corpos conscientes” e na consci-
ência como consciência intencionada no mundo. Não pode ser a do depósito de
conteúdos, mas a da problematização dos homens em suas relações com o mundo”
(FREIRE, 1987, p. 94).
Assim, na concepção de Freire (1987) a educação é vista como ação transforma-
dora da realidade social e cultural, a prática pedagógica nela inserida deve estar
fundamentada na satisfação das necessidades da pessoa humana, enquanto ser sócio-
histórico-cultural, de modo a tornar-se práxis, compreendendo-a como capacidade hu-
mana de transformar-se e transformar a natureza e a sociedade. A práxis educativa na
concepção Freiriana se pauta na reflexão e ação dos homens sobre o mundo para trans-
formá-lo, modificá-lo, humanizá-lo.
O embate dialético entre ação-reflexão, presente neste método, favorece a mu-
dança da consciência humana com relação à estrutura social, aproximando-o da
realidade estudada de maneira crítica e reflexiva. Na percepção de Freire (1987) a práxis
é a pedagogia dos homens empenhados na luta por liberdade, uma pedagogia huma-
nista e libertadora. Nessa proporção, a educação viabilizada por uma práxis
transformadora possibilita aos sujeitos saírem de sua condição de oprimidos para a
construção de um mundo mais humanizado.
O homem constrói conhecimentos que lhe propicia satisfazer-se, transformar o
meio em que vive e a si próprio. A educação, portanto, na sua tarefa básica da formação
humana, fomentada no exercício da prática pedagógica, fornece subsídios para a cons-
trução do conhecimento que permite ao ser humano intervir na realidade de maneira
real e concreta. A práxis neste contexto é a construção de conhecimentos válidos, que
são concretizados, experimentados na vida real, cotidianamente, no contexto em que
os sujeitos estão inseridos, no sentido de promover a libertação.
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Entretanto, Freire (1987, p. 30) esclarece que ações diversas atuam de maneira
opressora neste processo, como a injustiça, a exploração, a opressão, a violência, a in-
diferença, a impaciência, o desprezo, a raiva, a falta de diálogo, entre outras, que,
segundo o autor, negam a vocação a que fomos chamados: a vocação a ser homem.
Percebida como a ação de latrocínio da humanidade, a desumanização refere-se às “[...]
próprias atitudes dos sujeitos que retiram dele a condição de ser humano”, conforme
salienta Goulart (2016, p. 714).
Nesse sentido, Freire (1987, p. 69) destaca que “[...] ninguém liberta ninguém,
ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão”. É na relação dialó-
gica, no diálogo crítico e libertador, ou seja, na dialogicidade da educação, que Freire
descreve e sustenta seu método educativo. Para o autor, é na comunhão, por meio do
diálogo como fenômeno particularmente humano, que os homens se pronunciam uns
aos outros, pois “[...] não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no
trabalho, na ação-reflexão” (FREIRE, 1987, p. 69).
A perspectiva de Freire (1987) abre duas vertentes argumentativas que, embora
distintas, estão intimamente inter-relacionadas, uma refere-se ao diálogo como uma
exigência existencial, como caminho pelo qual os homens ganham significação en-
quanto homens. Trata-se da palavra enquanto linguagem, modos de expressividade que
remete ao encontro “[...] em que se solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos ende-
reçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um ato e
depositar ideias de um sujeito no outro, nem tampouco tornar-se simples troca de ideias
a serem consumidas pelos permutantes” (FREIRE, 1987, p. 109).
Entretanto, deve ser uma troca dialética do conhecimento, de saberes, de experi-
ências. Nessa perspectiva, o trabalho docente precisa primar o diálogo, não como
simples troca de ideias, mas como uma necessidade humana fundada no amor, na hu-
mildade, na fé nos homens, ancorados na confiança e na esperança. A compreensão de
esperança não se refere a uma ação de indiferença, de impassibilidade, de cruzar os
braços e esperar, visto que, para Freire (1987, p. 82), representa vivacidade, em que
“[...] movo-me na esperança enquanto luto e, se luto com esperança, espero”.
Assim, depreende-se pelo discurso de Freire (1987) que a verdadeira educação é
firmada no diálogo, na superação da contradição entre educandos-educador, partindo
sempre das experiências, conhecimentos dos educandos, para a construção de novos
conhecimentos vinculados a sua cultura, mediatizados pelo mundo.
A verdadeira educação autêntica, conforme propõe Freire (1987, p. 84) “[...] não
se faz de A para B ou de A sobre B, mas de A com B, mediatizados pelo mundo”. As
considerações de Freire (1981; 1987) assinalam que nenhuma prática educativa ocorre
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de forma aleatória, mas mediante a um contexto concreto, histórico, social, cultural,
político e econômico.
Nesse contexto, Freire (1996, p. 136) considera que “[...] sujeito que se abre ao
mundo e aos outros inaugura com seu gesto uma relação dialógica”, o que se constitui
a partir da inquietação e da curiosidade. Freire (1996) destaca a inquietação indagadora
como parte vital da prática educativa. Na mesma vertente, as proposições de Pérez Ferra
(2013) a respeito da “indagación como actitud”, apresenta uma concepção de como
uma atitude questionadora, possibilita aos professores posicionarem-se frente aos pos-
síveis dilemas que poderão surgir no desempenho da função docente, e, também, frente
às mudanças constantes no processo educativo, político-social.
A atitude indagadora da realidade educacional, no contínuo decurso do que se
compreende por docência, segundo Goulart (2016), se estrutura em atos e ações dos
sujeitos em seu processo formativo, que acontecem em movimentos circulares e em
constantes retomadas de posições, os quais integram a dialogicidade como o ato refle-
xivo, o ato de encantar-se com o fazer pedagógico e o ato de empatia.
Outra vertente argumentativa proposta por Freire (1987) remete ao ato de refle-
xão da ação, entendendo que por meio das ações os sujeitos agem e interagem sobre o
mundo, de modo que se cria, que se potencializa o domínio sobre a cultura e a história.
É nessa perspectiva que se configuraram sujeitos da práxis, descrita por Freire (1987, p.
92) como um ato de reflexão da ação “[...] transformadora da realidade, é fonte de
conhecimento reflexivo e criação”.
Nessa direção, pode-se correlacionar à concepção de reflexão-na-ação, conforme
apregoa Schön (2000, p. 32), que refere à vinculação entre o conhecimento e a reflexão,
visto que a é possível “[...] refletir no meio da ação, sem interrompê-la. Em um pre-
sente-da-ação, um período de tempo variável com o contexto, durante o qual ainda se
pode interferir na situação em desenvolvimento, nosso pensar serve para dar nova
forma ao que estamos fazendo, enquanto ainda o fazemos”. O que o autor ressalta é
que ocorre um movimento de reflexão-na-ação, pois “[...] tem uma função crítica,
questionando a estrutura de pressupostos do ato de conhecer-na-ação” (SCHÖN,
2000, p. 33).
Zeichner (1993) expõe a concepção de prática reflexiva a partir de três aspectos:
o primeiro de que a atenção do professor se volta para sua própria ação; o segundo
referente ao carácter político e emancipatório da reflexão da prática, o terceiro aponta
o compromisso da reflexão enquanto caráter social. Em estudos posteriores Zeichner
(2008) aponta a necessidade de se reconhecer que a ‘reflexão’ por si mesma não tem
significação, visto que todos os professores são reflexivos de alguma forma, por isso
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destaca a importância de se considerar o que se pretende que os professores reflitam e
como se efetivará tal reflexão.
Portanto, o trabalho pedagógico pensado como práxis pedagógica é capaz de de-
senvolver um ser humano em todas as suas potencialidades, pois deve estar apoiada na
filosofia da educação reflexiva, dialética, dialógica, problematizadora, libertadora e nas
diversas formas de práxis, citadas por Vázquez (2007), como a experimental, a produ-
tiva, a artística, a política, a teórica que possibilitam a reflexão sobre a realidade,
permitindo aguçar o olhar sobre o contexto educativo, social, cultural e tudo que a
envolve. Quando o sujeito se encontra preparado nesta dimensão da práxis pedagógica,
ao analisar as práticas educativas pela ótica reflexiva, permite-se pensar nas mudanças,
nas transformações da realidade vivenciada, bem como nas possibilidades e limitações
de atuação, construindo um mundo mais humanizado e livre para todos.
O trabalho pedagógico e a relação com a práxis
Ao considerar a relação entre a práxis e o trabalho docente adentramos numa
reflexão sobre as relações construídas com e pelas atividades pedagógicas. Se por um
lado o trabalho docente no contexto educativo aventa discussões sobre a relação entre
teoria e prática, por outro tem-se a preocupação da dicotomia entre didática e pedago-
gia. Segundo Tardif (2014) a organização do trabalho docente tem natureza que se
emana tanto de organizações consideradas estáveis, solidificadas por normativas e re-
gulamentações institucionais, quanto das interações construídas entre professores,
alunos, funcionários. Diante dessa perspectiva dual, o fazer docente parte da ideia de
que o conhecimento curricular não existe sem correlação ao contexto interativo e dia-
lógico, a prática pedagógica demonstra a concepção teórica e metodológica que o
professor apresenta sobre o processo de ensino e aprendizagem, ou melhor, sobre a
prática educativa.
Ao discorrer sobre a prática educativa, Tardif e Lessard (2014) a identificam a
partir de três concepções, decorrentes da cultura escolar, uma que relaciona a prática a
uma atividade artesanal, outra que se direciona à técnica sedimentada em valores e
crenças, e ainda, outra que inclina à ideia de interação. Os estudos de Tardif e Lessard
(2014) apresentam a perspectiva de prática como atividade artesanal que consiste numa
das concepções mais antigas a respeito do fazer docente, advém da concepção e educa-
ção como arte proposta pelos gregos, o que se estendeu às demais civilizações. Parte da
ideia de uma atividade específica, em “[...] a arte se baseia em disposições e habilidades
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naturais, em habitus específicos, em disposições desenvolvidas e confirmadas pela prá-
tica e pela experiência de uma arte específica” (TARDIF; LESSARD 2014, p. 157).
A prática como técnica guiada por valores, segundo Tardif e Lessard
(2014) trata-se de uma concepção que oscila entre a objetividade e a subjetividade, ou
seja, de ações que remetem àqueles que exercem a função da docência, aos saberes que
advém de um conhecimento objetivo, de ações técnicas, de orientações normativas,
sedimentadas por atuações guiadas seja pela ordem de valores ou de interesses. Para o
autor tal ideia mobiliza duas formas de ação, “[...] por um lado, é uma ação guiada por
normas e interesses que se transformam em finalidades educativas, por outro uma ação
técnica e instrumental que busca se basear no conhecimento objetivo” (TARDIF;
LESSARD, 2014, p. 163).
A terceira concepção de prática educativa concerne na ideia de interação, que diz
respeito à atividade em que as pessoas agem em função de outrem. Uma proposição
que se põe em proximidade com o conceito de ato responsivo, da concepção de lingua-
gem enunciativa-discursiva, segundo Bakhtin (2010) a questão da filosofia do ato em
interface com o processo de formação docente, o que remete à compreensão da atitude
de reflexão do fazer, visto que a ação do pensamento é considerada um ato, porque para
“[...] cada pensamento meu, junto com seu conteúdo, é um ato ou ação que realizo
meu próprio ato ou ação individualmente responsável” (BAKHTIN, 2010, p. 21).
Tendo em vista que o trabalho docente acontece mediante à uma prática educa-
tiva orientada e movida por pessoas, em que ao agir interativo se emolda pela dialógica
e pela atitude responsiva. O fazer docente tramita entre saberes temporais, plurais e
heterogêneos, personalizados e situados, que segundo Tardif (2000) e Tardif e Lessard
(2014), carrega em si as marcas do seu objeto que é o próprio ser humano. Diante
disso, tem-se ação com e para o outro, o agir interativo que, de acordo com Tardif e
Lessard (2014), não privilegia o controle ou manipulação de objetos, nem de pessoas,
mas promove o confronto, adaptando a diferentes modos ou modulações conforme o
objetivo proposto. As práticas educativas desenvolvidas compreendem o trabalho do-
cente e sua atuação sobre os objetos, abrangem interações entre os sujeitos, estruturadas
por relação, descritas por Tardif e Lessard (2014), ora como “lado a lado”, em a ênfase
ocorre em colaboração entre os pares e na coordenação de ações para realização em
conjunto; ora como “face a face” em que a evidência está na interação com o outro que
mais se destaca na ação. Em suma, a proposição se distingue pela ideia de interação
com base social do agir educativo.
Ao considerar que o trabalho docente se constitui num movimento dinâmico,
intenso e contínuo de ações e de atuações, reporta-se à concepção de Freire (1987, p.
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78) de que a práxis envolve ‘dialogicidade’, porque a formação humana não se restringe
aos atos silenciados ou isolados, mas antes de uma dinamicidade das ações como pro-
cesso de interação entre os sujeitos envolvidos, haja vista que é “[...] na palavra, no
trabalho, na ação-reflexão”, na interlocução que se viabiliza o ato formativo.
Considerações finais
A práxis se mostra um conceito central nos estudos de Vázquez (2007), o que
corrobora para o pensar e o repensar sobre a prática pedagógica no contexto social
contemporâneo, como processo objetivo, real, libertador, transformador da realidade
sócio-histórico-cultural.
Assim, a compreensão do seu significado, sua implicação nas concepções de prá-
tica pedagógica, observando a íntima relação existente entre a teoria, prática e práxis,
possibilita uma tomada de consciência do ato realizado para não cair na mera teoriza-
ção, no pragmatismo ou, simplesmente, no praticismo, permitindo que se promova
uma reflexão-ação e vice-versa sobre a própria prática pedagógica.
Considerando, portanto, os conceitos trazidos por Vázquez (2007) sobre a práxis,
pode-se dizê-la uma ação transformadora sobre a realidade, apoiada na reflexão-ação e
sustentada pela teoria, sem a qual não há fundamentação. Diante disso, o trabalho pe-
dagógico deve ser traçado com fins claros, objetivos, numa dimensão dialógica
conforme é concebido por Freire (1981; 1987).
O processo educacional, na perspectiva de Freire (1987), mostra-se como uma
educação para a superação das desigualdades, construída na dialogicidade e na ação
problematizadora, por meio da qual o educador e educando se encontram dialetica-
mente na prática de liberdade. Longe de ser uma liberdade oca, esvaziada de sentidos,
espaço desocupado em que se depositam ‘coisas’, deve, antes, ser autêntica e humani-
zante. Para Freire (2017, p. 93) a libertação autêntica “[...] é práxis, que implica a ação
e a reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo”. Nessa perspectiva educa-
cional, Freire (1987, p. 167-168) aponta como práxis o agir consciente, uma vez que
os homens são seres do “quefazer” e que, sendo, seu fazer ação e reflexão se constitui
em teoria e prática, ou seja, em práxis, por compreender um ato de transformação dos
sujeitos e do mundo.
Em suma, depreende-se que prática e práxis possuem concepções distintas, po-
rém se imbricam no trabalho pedagógico mediado pela teoria, que fornece subsídios
para pensá-la com coerência e fazer a educação autêntica, dialógica, transformadora e
libertadora. Na concepção de Freire (1987) “[...] a palavra verdadeira, que é trabalho,
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que é práxis, é transformar o mundo”, porque o ato dialógico não é privilégio, mas é
visto como direito. A prática educativa torna-se um ato de palavra, de expressividade,
de interação, de reflexão, pois, enquanto atividade transformadora do mundo, consti-
tui-se em práxis.
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Este artigo está licenciado com a licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
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Educação, poder e resistência na era digital
Education, power and resistance in the digital age
Educación, poder y resistencia en la era digital
Manuel Gonçalves Barbosa
*
Resumo
Este artigo tem o duplo objetivo de analisar a reconfiguração do poder na era digital e discutir, tendo
em conta as suas perigosas consequências em termos individuais e sociais, o papel da educação na
construção de atitudes defensivas relativamente a esse poder, hoje essencialmente protagonizado pelas
grandes plataformas de serviços digitais. A opção metodológica consiste em aproveitar, para esses
propósitos, não apenas um vasto acervo de obras recentes como algumas referências históricas
importantes, nomeadamente foucaultianas. A estrutura organizativa do artigo inclui três secções: na
primeira, aborda-se a reconfiguração do poder na era da transição digital; na segunda, analisa-se o
modus operandi desse novo poder fazendo emergir, em toda a sua estranheza e complexidade, a
categoria de governamentalidade tecnodigital; na terceira e última secção coloca-se a questão da
resistência a essa insidiosa governamentalidade da era digital e o eventual contributo da educação
nesse sentido, considerando as ações que se afiguram pedagogicamente pertinentes na instituição
escolar.
Palavras-chave: educação; poder; resistência; plataformas digitais.
Abstract
This article has the dual objective of analyzing the reconfiguration of power in the digital age and
discussing, taking into account its dangerous consequences in individual and social terms, the role
of education in the construction of defensive attitudes towards that power, that today is essentially
carried out by the great digital service platforms. The methodological option consists of taking
advantage, for these purposes, not only of a vast collection of recent works but also of some important
historical references, namely foucauldian ones. The organizational structure of the article includes
three sections: the first deals with the reconfiguration of power in the era of digital transition; in the
second one, the modus operandi of this new power is analyzed, in order to bring out, in all its
strangeness and complexity, the category of technodigital governmentality; the third and last section
poses the question of resistance to this insidious governmentality of the digital age and the possible
contribution of education in this sense, considering the actions that seem pedagogically relevant in
the school institution.
Keywords: education; power; resistance; digital platforms.
*
Doutor em Educação pela Universidade do Minho-Portugal e atualmente Professor Associado no Departamento de Teoria da
Educação e Educação Artística e Física do Instituto de Educação da Universidade do Minho. Membro Integrado do Centro de
Investigação em Educação da Universidade do Minho. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-8728-6667. E-mail:
mbarbosa@ie.uminho.pt.
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Recebido em: 13.12.2022 Aprovado em: 11.01.2023
https://doi.org/10.5335/rep.v29i3.14185
ISSN on-line: 2238-0302
Resumen
Este artículo tiene el doble objetivo de analizar la reconfiguración del poder en la era digital y discutir,
teniendo en cuenta sus peligrosas consecuencias en términos individuales y sociales, el papel de la
educación en la construcción de actitudes defensivas respecto a ese poder, hoy mayormente
representado por las grandes plataformas de servicios digitales. La opción metodológica consiste en
aprovechar, para estos fines, no solo un vasto acervo de obras recientes, sino algunas referencias
históricas importantes, en particular foucaultianas. La estructura organizativa del artículo incluye tres
secciones: en la primera, se aborda la reconfiguración del poder en la era de la transición digital; en
la segunda, se analiza el modus operandi de ese nuevo poder haciendo surgir, en toda su extrañeza y
complejidad, la categoría de gubernamentalidad tecnodigital; en la tercera y última sección se plantea
la cuestión de la resistencia a esa insidiosa gubernamentalidad de la era digital y la posible
contribución de la educación en este sentido, considerando las acciones que parecen
pedagógicamente pertinentes en la institución escolar.
Palabras clave: educación; poder; resistencia; plataformas digitales.
Introdução
A era digital, agora com mais intensidade, altera significativamente os estilos de
vida e dá seguramente mais protagonismo a empresas da internet, seja na área do co-
mércio e dos serviços, seja nos domínios da comunicação, da busca de informação e
dos relacionamentos sociais. Se esse papel central e ascendente das empresas tecnológi-
cas nada tivesse a ver com relações de poder e com novas e insidiosas formas de exercer
esse poder, a chamada ‘transição digital’ poderia avançar em piloto automático e nós,
abençoando a oportunidade de viver esse exaltante momento da humanidade, poucas
razões teríamos para duvidar das grandes plataformas da internet, da extração de dados
dos nossos traços digitais, das análises preditivas, da construção de perfis comporta-
mentais e da própria modificação do nosso comportamento para que esses perfis,
aproximando-se da certeza, sejam mais atrativos em termos comerciais.
Tudo seria simples, e de resto sem contestação, se essas operações, assegurando a
proteção de dados, a vontade individual e uma rigorosa ética de serviço comunitário,
se destinassem a melhorar a qualidade dos resultados das pesquisas de informação ou a
facilitar o acesso a pessoas, redes, bens e serviços, sem favoritismos, enviesamentos e
oportunismos. Na prática, infelizmente, não é assim. Essa mediação informática, pro-
tagonizada pelas grandes plataformas da internet, e assistida pela vigilância apertada
dos comportamentos online, é basicamente uma grande indústria de apropriação, pro-
cessamento e monetarização de dados pessoais, atuando dissimuladamente para se
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esquivar à nossa perceção consciente e, assim, a uma eventual indignação e protesto. O
que essas plataformas fazem, nos seus processos de renderização de dados pessoais, não
é vender os dados em bruto, sem mais especificações, mas oferecer produtos preditivos
extraídos desses dados, ou seja, apresentar previsões sobre o nosso comportamento.
assim são interessantes para os anunciantes, para os agentes que, querendo influenciar
as nossas decisões no mercado das ideias, dos bens e dos serviços, apostam tudo na
publicidade comportamental, isto é, na publicidade individualizada, personalizada ou
em função do perfil de consumo de cada indivíduo. É assim que os dados pessoais se
transformam na galinha de ovos de ouro dos gigantes da internet (entre eles: Google,
Meta, Uber, Amazon, Microsoft, Apple, Twitter, Baidu, TikTok, WeChat) e nós em
fontes de matéria-prima gratuita dessa nova lógica de acumulação: a economia dos da-
dos ou o comércio de informação relativa às pessoas.
Essa economia dos dados, também chamada “capitalismo de plataformas
(SRNICEK, 2017), ou “capitalismo da vigilância” (ZUBOFF, 2020), não coloca ape-
nas em evidência um negócio parasitário que vive à custa dos nossos dados pessoais.
Também faz vir ao de cima uma nova forma de poder, o “tecnopoder digital”, isto é,
um poder tecnológico que assenta na soberania dos dados e é assistido por algoritmos
cada vez mais “inteligentes”, os denominados “algoritmos evolutivos ou de aprendiza-
gem automática” (DOMINGOS, 2017). Estamos perante uma reconfiguração do
poder cuja intenção, por vias pacíficas, e de maneira indolor, é exercer influência com-
portamental, incitando, induzindo e seduzindo para produtos, serviços e,
inclusivamente, para crenças e ideologias, no caso dos anúncios que remetem para essa
esfera. O tecnopoder digital, baseado em operações algorítmicas sobre informação di-
gitalizada a nosso respeito, ambiciona conduzir as nossas condutas, em estruturar o seu
campo de possíveis, em moldar a sua direção ou orientação para benefício de entidades
terceiras: as plataformas digitais, antes de mais e, depois, os anunciantes, isto é, os seus
verdadeiros clientes.
A era digital não acaba, pois, com o poder. Antes o reconfigura ou lhe dá uma
nova forma. É um poder sem recurso à violência pura e dura, como nos poderes tota-
litários, mas ainda assim omnipresente e influente nas nossas vidas, crescentemente
híbridas, tanto online como offline. Podemos fazer de conta que não existe ou que é
demasiado soft para nos afetar a conduta, mas o facto é que, sendo lúcidos e críticos, e
além disso preocupados com a defesa da agência humana, ela própria essencial para
viver em democracia, talvez devêssemos dar atenção ao modo como esse poder é exer-
cido e se lhe podemos opor resistência, não obstante a sua ubiquidade, invisibilidade e
relativa ilegibilidade. Se a estas enigmáticas características acrescentarmos a vertigem
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provocada pela sua surpreendente complexidade, quer isso dizer que estamos condena-
dos a ficar presos nas suas garras e a desconhecer as suas manobras? Ou será que a
educação, através de exercícios de consciencialização e, mais além, de capacitação para
o envolvimento em ações de contestação, pode ajudar a fazer frente a esse hegemónico
poder?
As questões são desafiantes e a sua abordagem pode seguir vários roteiros. Aqui,
a opção metodológica é delinear um discurso de resposta a essas questões tendo por
base um acervo significativo de obras recentes, sem esquecer referências históricas im-
portantes, como o pensamento do “último” Foucault acerca dos jogos de poder entre
sujeitos envolvidos em relações estratégicas e segundo categorias eminentemente afeti-
vas, como o incitar, o induzir, o desviar, o tornar fácil ou difícil, o alargar ou limitar, o
tornar mais ou menos provável, ou o empurrar numa determinada direção, precisa-
mente com o objetivo de melhor ilustrar a natureza do tecnopoder da era digital. A
estrutura organizativa do artigo, essa, desenvolve-se em três secções: na primeira
aborda-se a reconfiguração do poder na era da transição digital; na segunda analisa-se
o modus operandi desse novo poder fazendo emergir, em toda a sua estranheza e com-
plexidade, a categoria de governamentalidade tecnodigital, inspirada em textos
foucaultianos; na terceira e última secção coloca-se a questão da resistência a essa insi-
diosa governamentalidade da era digital e o eventual contributo da educação nesse
sentido, considerando as ações que se afiguram pedagogicamente pertinentes na insti-
tuição escolar.
A era do tecnopoder digital
À medida que se vai aprofundando a compreensão da era digital e, portanto, do
ecossistema da internet, torna-se evidente que o poder não desapareceu de cena e que,
ao invés das promessas iniciais (MCCHESNEY, 2015), não se verificou o empodera-
mento dos utilizadores das plataformas digitais. Essa ideia segundo a qual as pessoas
passariam a usufruir de um poder sem precedentes, capaz de resolver muitos dos seus
problemas em diferentes áreas, vai-se dissolvendo no ar perante a descoberta de um
inédito sistema de poder que se apropria indevidamente de dados pessoais, e que os
explora comercialmente, depois de os submeter a complexas operações algorítmicas. O
poder, como sintética e acutilantemente faz notar Josep Burgaya, “apenas muda de mão
e de forma” (2021, p. 21). “Muda de forma”, porque é agora um poder tecnológico
baseado em informação digital a nosso respeito e em complexas operações de trata-
mento automático ou semiautomático dessa informação. E “muda de mão”, porque os
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verdadeiros senhores desse “tecnopoder digital” são os grandes players da economia dos
dados, ou seja, e nas palavras de Shoshana Zuboff, “os capitalistas da vigilância” (2020,
p. 22).
A revolução digital em curso e, de resto, o tecnopoder digital, não se compreen-
deriam adequadamente sem a referência a esses agentes protagonistas da nova lógica de
acumulação capitalista, uma lógica que começa por transformar a experiência humana
em dados comportamentais e em retirar desses dados produtos preditivos para venda.
A situação atual, num contexto de grande concorrência pelos melhores produtos pre-
ditivos, entretanto, já vai além disso, como aliás é mostrado por Zuboff:
À medida que a competição se intensifica, os capitalistas da vigilância aprendem que não lhes
basta extrair as experiências humanas. As matérias-primas mais preditivas surgem quando se
intervém na nossa experiência, moldando o nosso comportamento em prol dos resultados
comerciais dos capitalistas da vigilância. Concebem-se novos protocolos automatizados que
influenciam e modificam o comportamento humano em larga escala, ao mesmo tempo que os
meios de produção se subordinam aos novos, e mais complexos, meios de modificação
comportamental (2020, p. 34).
O que guia essa nova lógica económica não é apenas o tratamento de informação
a nosso respeito com base na nossa pegada digital, o que, só por si, e sem autorização
prévia, já é problemático. Despudoradamente, e no meio de uma grande opacidade de
procedimentos, o que se leva a cabo é a deliberada intervenção no nosso comporta-
mento por forma a dirigi-lo numa determinada direção e assim maximizar, em termos
financeiros, o rótulo que nos é colado para fins comerciais. A certeza das previsões sobre
os consumidores depende cada vez mais dessas intrusões comportamentais, desses ges-
tos performativos de condutas, precisamente a partir de informações digitais, o que
vem mostrar, por um lado, que “a melhor maneira de prever o futuro é inventá-lo”,
como se diz hoje em dia entre engenheiros informáticos (DOMINGOS, 2017, p. 320),
e que, por outro lado, o poder na era digital se define tendo em conta a previsão, a
influência e os dados pessoais: “O poder na era digital é, por excelência, o poder de
prever e influenciar a partir de dados pessoais” (VÉLIZ, 2021, p. 67).
Esse poder, como teremos ocasião de analisar na próxima secção, resgatando al-
guns textos do “último” Foucault, é seguramente uma relação na qual alguém procura
dirigir a conduta de alguém recorrendo a meios tecnológicos que surpreenderiam esse
autor, tal é o seu grau de sofisticação computacional e algorítmica. Sendo basicamente
uma tentativa de estruturar o campo de ação possível de alguém em termos comerciais,
ou de conduta mercantil no mercado das ideias, dos produtos e dos serviços, o poder
digital tem uma identidade (rostos e nomes bem conhecidos do grande público), certas
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condições de possibilidade (técnicas, sociais, políticas) e, por último, mas não menos
importante, determinados propósitos ou finalidades.
Começando pelos rostos e pelos nomes, e só para dar exemplos de grandes pla-
taformas digitais, ou “plataformas de rede”, como preferem outros autores
(KISSINGER; SCHMIDT; HUTTENLOCHER, 2021), temos a Ocidente a Google,
a Meta (englobando Facebook, Instagram e WhatsApp), o Twitter, a Uber, a Amazon,
a Apple e a Microsoft. A Oriente, contam-se, entre outras: WeChat, TikTok, Baidu,
DidiChuxing. São plataformas de serviços digitais que usam cada vez mais Inteligência
Artificial para conhecerem os seus utilizadores, para desenharem os seus perfis de per-
suasão e para lhes fazerem insinuações (as famosas recomendações), preferentemente
em função dos seus estados emocionais (MELHADO; RABOT, 2021). Algumas des-
sas plataformas participam ativamente no denominado “mercado de futuros
comportamentais” (ZUBOFF, 2020), vendendo os seus produtos preditivos a anunci-
antes, inclusivamente da área política, como se verificou em recentes campanhas
eleitorais. É hoje comum e amplamente admitido que essas plataformas, transformadas
em lucrativas indústrias do tratamento massivo de dados, “reúnem agora mais poder e
influência do que muitos Estados soberanos” (KISSINGER; SCHMIDT;
HUTTENLOCHER, 2021, p. 56). Para todos os efeitos, e especialmente no âmbito
deste artigo, podem ser considerados gigantes do ecossistema da internet que tudo fa-
zem para proteger o seu principal modelo de negócio: a publicidade.
Relativamente às condições de possibilidade do tecnopoder digital, o acento tó-
nico pode ser colocado, antes de mais, nos processos e nos dispositivos de datavigilância
(dataveillance), os quais permitem, desde múltiplas fontes, o rastreamento das pessoas
em tempo real e as análises preditivas do seu comportamento. O tecnopoder digital
não existiria sem matérias-primas, quer dizer, sem informações retiradas das impressões
que deixamos online, e essa extração, quantas vezes à margem da legalidade, não obs-
tante pomposas políticas de privacidade, só ocorre porque os ‘abutres de dados’
(VÉLIZ, 2021), isto é, plataformas de redes sociais e de múltiplos serviços digitais,
desenvolvem em larga escala, e secretamente, uma vigilância intensiva dos nossos mo-
vimentos digitais, como podem ser as pesquisas através de motores de busca, a consulta
de sites, as comunicações não encriptadas e as postagens de vídeos, fotos e textos.
As maiores e as mais influentes dessas plataformas não atingiriam lucros estratos-
féricos se não vigiassem permanentemente os seus utilizadores e se, para o efeito, não
adotassem formas panóticas de arrecadação de dados pessoais: “As grandes plataformas
chegaram a dominantes através da vigilância exaustiva dos utilizadores, do controlo
absoluto das suas atividades e dos seus dossiês, cada vez mais volumosos” (BURGAYA,
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2021, p. 86). A vigilância panótica é verdadeiramente essencial para o modelo de ne-
gócio dessas corporações tecnológicas digitais, ente as quais se destacam, em termos de
‘panóptico digital’ (HAN, 2014), e um pouco por todo o mundo, a Google e o Face-
book. É com base nesse tipo de vigilância que se capturam furtivamente informações
dos utilizadores, que se ensaia a modificação do seu comportamento e a elaboração de
perfis preditivos para depois os colocar à venda nos mercados de futuros comporta-
mentais. Essa vigilância tem os seus suportes técnicos e um deles é, seguramente, o
smartphone. Espécie de “totem da atual civilização” (BURGAYA, 2021, p. 125), o
smartphone, mais do que um instrumento de comunicação, é um gerador e um coletor
de dados que nos acompanha por todo o lado e a todas as horas do dia, pelo menos
entre os mais viciados na sua utilização. A sua arquitetura serve essencialmente para
vigiar e armazenar dados a nosso respeito, e nisso são fundamentais as Apps, isto é,
programas informáticos que permitem realizar uma variada gama de funções. Ora, essas
aplicações, “mais do que promoverem a nossa atividade […] conduzem-nos, limitam-
nos e condicionam-nos” (BURGAYA, 2021, p. 83).
Juntamente com os cookies (rastreadores da nossa navegação online), as Apps são
autênticos instrumentos de espionagem ao serviço das plataformas da internet, especi-
almente as que, pela sua grandeza, dimensão e avanço tecnológico, possuem sofisticados
algoritmos para tirar partido das informações recolhidas por essas vias, e antes de mais
através do smartphone. O entrelaçamento das nossas vidas com esse dispositivo torna-o
especialmente apetecível para a vigilância panótica, ou não fosse ele “um informador
muito eficiente que vigia em permanência o seu utilizador” (HAN, 2022, p. 32). Como
esclarece esse autor:
Quem está a par do que se passa no seu interior algorítmico, tem razão em sentir-se perseguido
por ele […]. Não somos nós que utilizamos o smartphone, mas o smartphone que nos utiliza a
nós. É ele o verdadeiro ator. Ficamos à mercê desse informador digital, atrás de cuja superfície
diferentes atores nos controlam e distraem (2022, p. 32).
Esses atores são, evidentemente, e sem sombra de dúvidas, os grandes players da
economia dos dados, quer dizer, os capitalistas mais bem-sucedidos do maravilhoso
mundo da internet. Em suas mãos, o smartphone é um maná de preciosas informações
digitais, potencialmente de todos nós, revelando-se fundamental nas manobras de ex-
tração de dados pessoais, tanto mais quanto já transformamos esse dispositivo num
‘confessionário portátil’ (HAN, 2022), ou, se se quiser, em ‘confessionário eletrónico’
da era da vigilância líquida (BAUMAN; LYON, 2013).
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A vigilância panótica através de meios digitais, hoje otimizada na Internet das
Coisas e, seguramente, nos smartphones de última geração, é condição técnica essencial
do tecnopoder digital, porém, não passa disso mesmo: é apenas uma das suas condições.
Não menos essencial, para a viabilidade desse poder, é a produção social de informações
pessoais resultante do nosso envolvimento com as plataformas digitais, quer involun-
tariamente, ou a isso sendo obrigados, quer voluntariamente, ou de forma deliberada.
No primeiro caso, temos a informação retirada das nossas pesquisas através de motores
de busca, eventualmente dos nossos e-mails, e de transações comerciais induzidas pela
crescente digitalização da atividade económica. Convém não esquecer, como refere Do-
mingos, que “Todas as transações funcionam em dois níveis: o que elas fazem por nós
e o que elas ensinam ao sistema com o qual acabámos de interagir” (2017, p. 70), e
que, como assinala Véliz, “se não dás o teu consentimento para certas formas de recolha
de dados, não poderás usar os serviços que te proporcionam gigantes tecnológicos,
como a Google e o Facebook” (2021, p. 35). De resto, mesmo que se resista a fornecer
dados pessoais, não é garantido que se preserve a intimidade, ou se defenda o santuário
da vida privada, tal é o secretismo da captura ilegítima de informações digitais sobre a
conduta online.
Essa produção social de dados pessoais abrange ainda, para gaudio das platafor-
mas digitais, a “exposição deliberada de si mediante comentários ou fotografias relativas
ao seu trabalho, aos seus interesses, aos seus estados de alma, às suas férias, aos seus
filhos, à decoração do seu quarto de dormir” (SADIN, 2015, p. 176), ou seja, e só para
atender ao indivíduo, abrangendo o desnudamento de si mesmo sem coação externa.
Uma porção significativa da população, dando por certo que “a transparência é sempre
uma virtude” (VÉLIZ, 2021, p. 132), tal como é sugerido pelas grandes tecnológicas
na expressão, “se não fazes nada de mal não tens nada a esconder”, acaba por confiar às
plataformas dessas empresas informações que dificilmente forneceria às pessoas mais
próximas em outros tempos. A cultura da exposição online, para essa população, já está
naturalizada, induzindo ao exibicionismo dos aspetos mais íntimos das existências in-
dividuais, particularmente nas plataformas de redes sociais. É assim que os indivíduos
se entregam, sem vergonha ou pudor, ou talvez inconscientemente, como por vezes
acontece, ao olhar panótico das grandes plataformas da internet, as quais não perdem
a oportunidade de transformar esses dados em novos ativos comerciais: as e-commodities
comportamentais.
Antes mesmo da referência aos seus propósitos ou finalidades, importa sublinhar
que o tecnopoder digital depende de condições políticas específicas, ou de um quadro
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político favorável, nomeadamente em termos regulatórios. Foi precisamente a insufici-
ência ou a abstinência de regulação que catapultou esse poder para os patamares onde
se encontra hoje. Durante muito tempo, se olharmos para os danos provocados no
direito à soberania dos dados, os governos democráticos, ou renunciaram a legislar so-
bre as operações centrais do tecnopoder digital, como, por exemplo, a apropriação de
informações digitais pessoais e a sua comercialização, ou só timidamente definiram en-
quadramentos normativos para essas ações. É verdade que a situação está a mudar,
designadamente na União Europeia, com o Regulamento Geral sobre a Proteção de
Dados, já em vigor, e com a Lei de Serviços Digitais, esta em processo de aprovação
nas instâncias europeias. Mas até há pouco tempo o que predominava eram os baixos
padrões regulatórios das plataformas digitais, como se essas empresas tecnológicas fos-
sem demasiado grandes para serem reguladas pelos poderes públicos.
Reconhecidamente, e devido à utilização, por essas plataformas, de operações es-
tratégicas bem-sucedidas, não tem sido fácil elevar esses padrões de regulação. Por um
lado, as operações de ocultação, cobrindo com um manto de invisibilidade as ações
extrativas e preditivas desses players da internet, não só perante os seus utilizadores, a
fim de evitar contestações contra a pirataria de dados pessoais e as influências compor-
tamentais, como também perante governos e entidades reguladoras emergentes. Por
outro lado, as operações lobistas dos grandes rostos do tecnopoder digital junto de ór-
gãos legisladores, mormente a Google (ZUBOFF, 2020) e o Facebook (FRENKEL;
KANG, 2022), visando condicionar a sua ação no sentido de não elevarem demasiado,
ou para além de certos limites, os parâmetros reguladores dos negócios digitais. O que
subjaz a esta última estratégia, na verdade, não é o respeito sincero, e muito menos
reverencial, do poder político e das suas funções de regulação em áreas tão sensíveis
como a proteção de dados pessoais, a tributação fiscal e as concentrações monopolísti-
cas, mas a tentativa, até agora relativamente bem-sucedida, de minimizar a intrusão
desse poder no modelo de negócio das grandes plataformas digitais. O poder político,
cumprindo com o seu papel, é uma ameaça a essas empresas, e só pode ser visto com
desprezo (SADIN, 2015). O sonho dos gigantes da internet é poderem atuar sem in-
terferências estatais e no desconhecimento dos seus utilizadores. É assim que ganham
poder e é também desse modo que colocam esse poder ao serviço dos seus propósitos
ou finalidades: a recolha massiva de dados a nosso respeito, a sua transformação em
modelos comportamentais previsíveis a breve trecho e, claro, a venda desses modelos
no apetecido, amplo e multifacetado mercado dos anúncios.
Essa é a nova lógica de acumulação que o novo poder da era digital se encarrega
de garantir, promover e florescer, mesmo que isso implique o impensável, pelo menos
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até há pouco tempo: a modificação comportamental dos utilizadores das plataformas
digitais. Assim, o negócio dos dados já não se limita a usar conhecimento diretamente
retirado do comportamento online e, portanto, das impressões deixadas pela nossa na-
vegação, mas a intervir “nos próprios comportamentos, tentando ajustá-los, persuadi-
los, afiná-los e conduzi-los para resultados mais lucrativos” (ZUBOFF, 2020, p. 22),
precisamente, e como veremos adiante, através de processos conduzidos por algoritmos
‘inteligentes’, dando corpo a uma forma de governamentalidade que, por ser inédita e
surpreendente, requer desde já uma análise exploratória.
Governamentalidade tecnodigital: uma análise exploratória
Apesar de agir na obscuridade e de se refugiar na suposta neutralidade dos algo-
ritmos, o poder tecnológico das grandes plataformas da internet é bem real e já exerce,
diretamente ou por interposta pessoa, uma “influência insidiosa nas nossas existências”
(SADIN, 2018, p. 106), ameaçando capacidades e comprometendo alguns direitos in-
dividuais fundamentais, como os direitos à privacidade, à intimidade, à decisão e à
autodeterminação. Esse poder, mais além das suas condições de possibilidade, entre-
tanto analisadas, tem um modo específico de atuar ou operar, isto é, de se exercer e
desenvolver, requerendo, portanto, e a partir de agora, uma atenção especial, quanto
mais não seja para identificar a sua forma de governamentalidade, usando nesse parti-
cular a linguagem e alguns conceitos dos últimos escritos de Michel Foucault (entre
eles: 1981; 1982; 1984), por se revelarem bastante úteis, ainda hoje, numa démarche
exploratória do modus operandi do poder que emergiu com as grandes plataformas da
internet.
É verdade que as considerações foucaultianas sobre governamentalidade, especi-
almente as de Naissance de la biopolitique- Cours au Collège de France, 1978-1979, e as
dos escritos acima mencionados, não podiam antecipar, em toda a sua extensão e com-
plexidade, nem o “capitalismo cognitivo de plataformas” (LASSALLE, 2019), ou
capitalismo dos dados, nem a governamentalidade assistida por algoritmos, embora se
deva referir, quanto a este último aspeto, que Foucault admitiu (1982) que o exercício
do poder, em função da certeza do resultado e da eficácia dos instrumentos utilizados,
poderia valer-se de mais ou menos requintes tecnológicos. Seja como for, essas consi-
derações são um interessante ponto de partida para esclarecer o eixo central da
governamentalidade tecnodigital e, de resto, da conceção de poder que lhe anda asso-
ciada: não uma conceção estática e substancialista de poder, pois “o poder só existe em
ato” (FOUCAULT, 1982, p. 236) e é suscetível de modificação (FOUCAULT, 1984),
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ou apenas restrita a instituições governamentais, uma vez que o poder está presente
onde se tecem relações humanas, “trate-se de comunicar verbalmente […], de relações
amorosas, institucionais ou económicas” (FOUCAULT, 1984, p. 720), e muito menos
uma conceção de poder enquanto “sistema de dominação que controla tudo e que não
deixa qualquer lugar à liberdade” (FOUCAULT, 1984, p. 721), como acontece na
visão tradicional do poder, mas uma conceção que vê o poder como “um tipo particular
de relações entre indivíduos” (FOUCAULT, 1981, p. 160) em que uns, por meio de
jogos estratégicos» (FOUCAULT, 1984, p. 727) e, eventualmente, com “requintes tec-
nológicos” (FOUCAULT, 1982, p. 240), procuram “determinar mais ou menos
inteiramente a conduta dos outros- mas nunca de maneira exaustiva ou coercitiva”
(FOUCAULT, 1981, p. 160). O poder, sempre presente nas relações humanas quer,
pois, significar, segundo Foucault (1984, p. 720), “a relação na qual alguém procura
dirigir a conduta de alguém”, quer dizer, encamin-la numa ou noutra direção se-
gundo os seus interesses ou propósitos.
A relação de poder, nesse quadro explicativo, e que interessa destacar para com-
preender o poder na era das plataformas digitais, é a ação de um agente sobre a ação de
alguém, em que um dos pólos procura conduzir a conduta do outro, mas sem anular
esse outro como sujeito de ação. Ademais, a relação de poder “é um modo de ação que
não age diretamente e imediatamente sobre os outros, mas age sobre a sua ação”
(FOUCAULT, 1982, p. 236). É uma ação sobre a ação, sobre ações eventuais, ou atu-
ais, futuras ou presentes, visando estruturar o campo de ação possível de alguém. A essa
luz, e em termos de governamentalidade, isto é, quanto à “maneira como se conduz a
conduta dos seres humanos” (FOUCAULT, 2004, p. 192), o poder atua desdobrando-
se nas seguintes ações: “ele incita, induz, desvia, facilita ou torna difícil, amplia ou
limita, torna mais ou menos provável; no limite, constrange ou limita absolutamente;
porém, é sempre uma maneira de agir sobre um ou sobre sujeitos agentes, e isso en-
quanto agem ou são suscetíveis de agir” (FOUCAULT, 1982, p. 237). Por
conseguinte, ou assim sendo, a governamentalidade é da ordem da afetação comporta-
mental e as suas categorias, eminentemente afetivas, remetem, entre outras, para o
incitamento, a estimulação, o direcionamento, a indução, o condicionamento, a deli-
mitação, o impedimento ou a facilitação.
Essa conceção de governamentalidade, naquilo que tem de mais essencial, é sur-
preendentemente atual para compreender a governamentalidade tecnodigital, própria
das grandes plataformas digitais e, especialmente, o momento que estas atravessam no
mercado das previsões comportamentais: um momento caracterizado por uma grande
concorrência pelos melhores modelos preditivos dos utilizadores dessas plataformas. A
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afetação de condutas, nessa nova forma de governamentalidade, continua a ser o ponto
central, pois, “a forma mais segura de prever o comportamento passa por intervir na
sua origem e pelo poder de o moldar” (ZUBOFF, 2020, p. 228). Nesse sentido, a
governamentalidade que recorre a algoritmos, seja na monitorização das pessoas a partir
dos dados de navegação nos websites (dataveillance), seja nas operações de análise e
prospeção de dados pessoais (datamining), seja ainda na construção de perfis digitais
comportamentais, também se rege pelas categorias foucaultianas do incitamento, da
indução e da direção de condutas, uma vez que são decisivas, à sua maneira, e dentro
de uma conceção soft ou ligeira de intervenção comportamental, para alcançar as pre-
visões mais procuradas nos mercados de futuros comportamentais individuais.
A governamentalidade tecnodigital, a essa luz, pode ser considerada uma gover-
namentalidade smart, não só pelo facto de operar com sofisticados algoritmos, isto é,
com códigos informáticos apetrechados das mais diversas instruções, mas também por
funcionar de modo permissivo e, portanto, à margem da repressão e da coação. Com a
sua “inteligência algorítmica”, a governamentalidade tecnodigital:
Não nos torna submissos, mas dependentes e viciados. Em vez de quebrar a nossa vontade, atende
às nossas necessidades. Quer agradar-nos […]. Não nos impõe o silêncio. Em vez disso, convida-
nos e estimula-nos permanentemente a partilhar as nossas opiniões, preferências, necessidades e
desejos, e até a contar a nossa vida (HAN, 2022, p. 33).
Essa ‘simpática’ governamentalidade, na sua demanda de retratos comportamen-
tais cada vez mais previsíveis, já não se contenta com a agregação e o tratamento
algorítmicos de grandes quantidades de dados (big data) dos frequentadores das plata-
formas digitais. Se é verdade que essa informação ajuda a desenhar o seu perfil
comportamental, nomeadamente em termos de consumo, também é certo que fica
aquém do desejado, pois não pode fornecer previsões comportamentais robustas. Esse
resultado, efetivamente, apenas se alcança forjando o próprio comportamento: “Uma
das razões pelas quais as empresas tecnológicas conseguem prever tão bem a nossa con-
duta é porque, em parte, a estão forjando” (VÉLIZ, 2021, p. 90).
Além da enorme ousadia que isso implica, pois significa interferir, abusivamente,
com os nossos direitos à decisão e à autodeterminação, mesmo na qualidade de meros
consumidores, um tal resultado também exige elevadas doses de engenho informático
para criar, operar e dissimular os algoritmos que presidem à modificação comporta-
mental, tal como acontece, desde há alguns anos, e de maneira exemplar, nas
plataformas de redes sociais. O modo como estas plataformas conduzem condutas, ou
estruturam o campo de ações possíveis dos seus utilizadores, é de facto revelador, a
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vários títulos, do savoir-faire da governamentalidade tecnodigital, precisamente num
tempo em que o Santo Graal da economia dos dados é, como já dissemos, a posse e a
venda de perfis comportamentais digitais aproximando-se da certeza.
Podemos apreciar esse modo de atuação da governamentalidade tecnodigital, es-
pecialmente protagonizada pelas arquiteturas algorítmicas das grandes plataformas de
redes sociais, em três domínios muito próximos e mutuamente implicados: a esfera da
atenção, o campo da reação e a área da modificação propriamente dita. Se o objetivo é,
em última instância, forjar a conduta dos utilizadores dessas plataformas, torna-se im-
perioso, como primeiro ato, mantê-los ativos nesses espaços de intermediação social,
sequestrando, antes de mais, e por diversos meios, a sua atenção: ora estimulando a
utilização de novos botões e novas funcionalidades, como fez o Facebook com os botões
dos “likes” e do “partilhar”, e bem assim com as novas opções no Feed de Notícias, ora
fornecendo, nesse espaço, os conteúdos que os algoritmos aprenderam a personalizar
em função das apetências dos utilizadores. Isso mesmo é evidenciado por Frenkel e
Kang em suas análises da evolução dessa rede em busca de ‘poder absoluto’:
Com o passar dos anos, os algoritmos da plataforma haviam adquirido maior sofisticação a
identificar o material que mais atraía os utilizadores e davam-lhe prioridade no topo dos seus
feeds. O Feed de Notícias operava como um mostrador regulado com enorme precisão, sensível
à fotografia em que um utilizador mais se demorava ou ao artigo que passava mais tempo a ler.
A partir do momento em que determinara que o utilizador era mais propenso a visualizar um
certo tipo de conteúdo, fornecia-lho tanto quanto possível (2022, p. 223).
Outro tanto se diga, dentro dessa estratégia de captação da atenção, e não só
nessa rede, a metódica divulgação de conteúdos incendiários e sensacionalistas nos
Feeds de Notícias, funcionando esses conteúdos como verdadeiro íman da perceção
ativa dos utilizadores.
Os mesmos conteúdos bombásticos, viralizados nas redes sociais, e não só por
ação dos utilizadores, mas antes de mais por efeito de amplificação algorítmica dessas
redes, também se revelam ‘úteis’ para desencadear reações nos frequentadores das pla-
taformas de interação social, como é frequentemente o caso das shitstorms, isto é, das
tempestades de injúrias e indignação a propósito de notícias e opiniões. As próprias
opções disponíveis nos Feeds de Notícias (“Queremos mais coisas assim”. “Não quere-
mos mais coisas assim”), nomeadamente no Facebook, são em si mesmas um
engenhoso indutor de reações comportamentais a que nem sempre se dá a devida im-
portância. Finalmente, e ainda acerca desse campo da reação, é de referir uma estratégia
transversal a todas as redes sociais verdadeiramente impactantes nas nossas vidas digi-
tais: a contínua estimulação da comparação social, desencadeando, por reação, a
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“inflação do perfil pessoal” (ZUBOFF, 2020, p. 511), isto é, a multiplicação de ele-
mentos de autoapresentação, como a informação biográfica, as fotografias, os vídeos e
as correspondentes atualizações, para que tudo pareça fantástico, sedutor e maravilhoso
nessa espécie de ‘teatro de sonhos’ em que se transformaram algumas redes sociais,
designadamente o Instagram.
As áreas da atenção e da reação, já reveladoras de alguma interferência das redes
sociais no direcionamento de condutas, não esgotam, contudo, o que essas redes fazem
em termos de modificação comportamental. Importa ainda referir, por ser relevante
para os clientes dessas plataformas, a ‘produção de afetos’ (MELHADO; RABOT,
2021), ou de emoções, visando criar o ‘perfil de persuasão’ (BURGAYA, 2021) do
utilizador das redes sociais, seja introduzindo determinados anúncios nos Feeds de No-
tícias, seja divulgando, nesses mesmos espaços, e para provocar contágio emocional, as
preferências comerciais dos nossos ‘amigos’ e daqueles que seguimos como modelos ou
exemplos de pessoas bem-sucedidas na vida híbrida dos tempos atuais. Mas, afinal, que
perfil é esse? Um perfil de persuasão é “Um perfil que se cria sem que o saibas e sem
que conheças o seu conteúdo, porém, o que se pretende é conhecer o teu estado emo-
cional em cada momento, os teus sentimentos, sabendo-se que na esfera comercial o
estado psicológico é determinante em relação a certas compras” (BURGAYA, 2021, p.
90-91). Também aqui, a melhor forma de obter um bom perfil de persuasão é criá-lo
ou produzi-lo, nomeadamente com algoritmos de análise de afetos, emoções e senti-
mentos e, se for preciso, com mensagens geradoras de contágio, idealmente entre os
que usam as redes sociais de modo aditivo ou compulsivo, dada a sua especial vulnera-
bilidade à manipulação.
O resultado mais esperado de todas essas manobras algorítmicas são produtos
com enorme capacidade preditiva e, por isso mesmo, muito desejados pelos clientes das
plataformas digitais. Com esses produtos (previsões comportamentais melhoradas), os
anunciantes não só podem entrar, de maneira mais eficaz, no jogo da governamentali-
dade tecnodigital, como podem, usando o microtargeting (direcionamento
microscópico das mensagens publicitárias através de algoritmos), otimizar o seu poder
de influência sobre as condutas dos destinatários, ajustando a publicidade e, inclusive,
a propaganda política, às suas preferências e estados emocionais.
Quer no fabrico de previsões comportamentais, quer na sua utilização, designa-
damente pelos anunciantes, o exercício do tecnopoder digital é muito smart e muito
matreiro: age dissimuladamente e evita, glamourosamente, os mandatos, as prescrições,
as proibições, a pressão e a repressão, para não parecer duro, feio e execrável. A essa luz,
e tendo ainda em conta a sua complexidade, sofisticação e difícil legibilidade, parece
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que estamos fadados a ser as suas vítimas enquanto utilizadores das plataformas digitais.
Será mesmo assim, ou podemos fazer-lhe frente, na suposição, foucaultiana, de que o
poder, mesmo exercido com requintes tecnológicos, não anula a possibilidade de resis-
tência? Seguindo na peugada desse interessante princípio, apenas concebível no âmbito
de uma teoria em que o outro da relação de poder é sempre um sujeito de ação eventual
ou potencial (FOUCAULT, 1982), e pensando na eficácia das ações de oposição ao
tecnopoder digital, conviria averiguar se a educação, intencional, programada e insti-
tucional, tem algum papel a desempenhar na insurgência contra esse poder e na
construção de resistências para conter os seus excessos, não obstante os condicionalis-
mos desencorajadores e os enormes diferenciais de poder e conhecimento em presença.
Face ao poder digital: educação, insurgência e resistência
Não é preciso grande animosidade relativamente ao tecnopoder digital para re-
conhecer que os seus principais agentes se colocaram numa posição merecedora de
reprovação, repúdio, indignação e da mais firme contestação, inclusive através da edu-
cação, por várias ordens de razões: em primeiro lugar, porque se julgam no direito de
atentar contra direitos essenciais, como os direitos à privacidade, à intimidade, à decisão
e à autodeterminação, e ainda por cima de maneira furtiva, tentando escapar à nossa
perceção consciente. Sabendo que o êxito do poder “é proporcional à sua habilidade
em esconder os seus próprios mecanismos” (FOUCAULT, 1976, p. 113), procuram
contornar esses direitos agindo na obscuridade “como serviços secretos” (HAN, 2016,
p. 87), na presunção de que não vamos colocar areia nas suas maquinações digitais, seja
através de cookies, apps, filtros algorítmicos ou de anúncios em função da personalidade
de cada um. Sem grande alarido, e escudando-se em labirínticas políticas de privaci-
dade, invadem o nosso santuário individual, apropriam-se da informação que lhes
interessa e transformam-na imediatamente em ativos comerciais visando lucros cres-
centes e exponenciais.
Esse “assalto ao eu pessoal” (ZUBOFF, 2020, p. 524), fazendo tábua rasa de
alguns direitos fundamentais, tem como resultado, em segundo lugar, a fragilização,
senão mesmo a subversão, da nossa agência, isto é, a capacidade de fazer escolhas autó-
nomas e razoavelmente independentes. Essa é outra das razões que levam a contestar o
tecnopoder digital, uma vez que nos tornamos vulneráveis aos seus impercetíveis man-
datos, inclusivamente políticos, como foi revelado no escândalo Facebook-Cambridge
Analytica. O que se procura, por via dessa fragilização, é eliminar o impulso interior
no sentido da autonomia e da tarefa difícil e estimulante da afirmação de um “eu”
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autónomo como fonte de juízo e de autoridade morais, capaz de se insurgir contra
grosseiros abusos de poder, como é o caso das grandes plataformas.
Um terceiro motivo de contestação do tecnopoder digital e da sua governamen-
talidade deriva, precisamente, dessa perigosa degradação da agência humana, uma vez
que assim se compromete a própria sobrevivência da democracia: “O autogoverno de
uma comunidade política depende dos indivíduos serem autónomos; se a autonomia
individual diminui, também diminui o autogoverno coletivo. Para que uma democra-
cia seja democracia, os seus cidadãos têm que ter o poder sobre as suas próprias vidas”
(VÉLIZ, 2021, p. 90). Caso contrário, e sem agência, nomeadamente política, a de-
mocracia rapidamente se transforma numa farsa.
A essas razões de queixa e de justa indignação contra o tecnopoder digital acres-
centa-se uma outra, não menos importante pelas suas implicações: a ingerência
exorbitante desse poder nas nossas vidas, seja em termos de vigilância, escrutinando e
monitorizando até à exaustão os nossos movimentos, principalmente online, seja en-
trando na zona perigosa da engenharia comportamental, uma vez que esse novo poder
da era digital já não se contenta com a construção de perfis digitais através da recolha
e tratamento de informação a nosso respeito. Agora, os seus agentes querem fabricar o
nosso comportamento para o tornar mais previsível e também mais ajustado aos seus
propósitos. É assim que se pode dizer, com Zuboff, que “Os interesses dos capitalistas
da vigilância transitaram do uso de processos automáticos que conhecem o nosso com-
portamento para processos automáticos que moldam o nosso comportamento segundo
os seus interesses” (2020, p. 376). Abusivamente, os agentes do tecnopoder digital não
só querem saber tudo sobre nós, revelando uma ambição de omnisciência digital que
ridiculariza o panótico de Jeremy Bentham, como querem a modificação do nosso
comportamento, mostrando que aspiram à pilotagem das nossas ações e, portanto, à
prévia escrita algorítmica daquela que deve ser, na sua ótica, a linha da nossa conduta.
Uma vez de mãos dadas com a valorização individual e social do ser humano,
como é do seu timbre desde os tempos modernos, a educação só pode reagir com vee-
mência a essas derivas do tecnopoder digital incentivando, por um lado, o
inconformismo, nomeadamente com análises rigorosas do que está em jogo tanto a
nível individual como social e, por outro, definindo uma agenda que possibilite a cria-
ção de resistências, não obstante as dificuldades que se colocam à partida. Desde logo,
a nossa dependência digital e tudo o que isso implica: colaboramos na nossa própria
vigilância e, de maneira ativa, também colaboramos com os agentes do poder tecnoló-
gico na nossa própria exploração comercial. Um olhar pessimista, subestimando as
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capacidades de insurgência e de resistência do homo digitalis, diria que “Estamos dema-
siado dominados pela droga digital, pela embriaguez da comunicação, para que se oiça
um “Basta!”, para que se erga uma voz de resistência” (HAN, 2022, p. 33). Descon-
tando o exagero, denunciado há alguns lustros por Gary Marx (2006), não deixa de ser
verdade o incómodo que isso coloca à educação, derivando daí a necessidade de se
promover, designadamente nos espaços das escolas, uma verdadeira ‘desintoxicação’
(BURGAYA, 2021) das plataformas digitais, mormente das redes sociais, como condi-
ção necessária, ainda que insuficiente, de uma relação lúcida e crítica com os principais
protagonistas da governamentalidade tecnodigital.
Uma dificuldade que por vezes se esquece, principalmente quando se acusa os
indivíduos de cegueira voluntária em ambientes digitais, tem a ver com a ocultação,
essa sim, deliberada, das operações praticadas pelas grandes plataformas digitais, desig-
nadamente as operações de engenharia comportamental. Sabe-se, pelo que surge a lume
(FRENKEL; KANG, 2022), que essas plataformas, por razões de eficácia, mas também
por questões legais, recorrem frequentemente ao secretismo, à opacidade e à indecifra-
bilidade para esconderem do olhar crítico as suas operações mais questionáveis.
Produzem deliberadamente ignorância para serem indetetáveis no enviesamento dos
comportamentos, inclusive eleitorais, como parece ter acontecido no já referido escân-
dalo Facebook- Cambridge Analytica. Assim, mais do que acusações infundadas, ou
manifestamente exageradas, de cegueira voluntária, talvez mereça a pena, através da
educação, um exercício de desmistificação das plataformas que procuram modificar
secretamente a conduta dos seus utilizadores, quanto mais não seja como passo prévio
à insurgência e à construção de alguma resistência contra essas plataformas.
A essas várias dificuldades, incómodas, mas não insuperáveis, acrescentam-se as
grandes assimetrias de poder e de conhecimento entre nós, simples utilizadores das
plataformas de serviços digitais, e eles, os agentes da governamentalidade tecnodigital,
apoiados num arsenal de sofisticados algoritmos e de operações de mineração de dados
(datamining). Com esses meios, eles conseguem o que nós não alcançamos, e por razões
óbvias: conseguem reunir quantidades imensas de informação a nosso respeito, até ao
mais ínfimo pormenor, e abrangendo o mais recôndito do nosso ser, e com esse saber
tornam-se capazes, se assim o desejarem, de moldar a nossa conduta em função dos
seus interesses, ou, no mínimo, de a guiarem numa determinada direção. É assim que
possuir mais saber equivale a possuir mais poder, e isso tem consequências: “Quanto
mais alguém sabe sobre nós, mais pode prever os nossos movimentos e influenciar-nos”
(VÉLIZ, 2021, p. 66). Os que sabem muito a nosso respeito podem, pois, encaminhar-
nos para as escolhas do seu agrado, criando a ilusão, ironicamente enganadora quando
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se fala em empoderamento digital, de que decidimos livres de condicionamentos, de
entraves e de enviesamentos: “acreditamos que estamos tomando decisões voluntárias,
porém, outros atores que nem sequer conhecemos influem nelas sem que o saibamos”
(MOROZOV, 2015, p. 382-383). Esse não-saber agudiza as assimetrias entre nós e
eles e é por isso que a sublevação contra os agentes da governamentalidade algorítmica,
ou tecnodigital, requer investimento educativo em ações de consciencialização, ao
mesmo tempo que não descura, para suscitar resistência, a politização do relaciona-
mento com esses agentes.
Essa é, em substância, a agenda da educação que estamos a precisar para fazer
frente ao tecnopoder digital, depois de remover as dificuldades acima tratadas, sabendo
de antemão que esse poder tem pés de barro: depende absolutamente da nossa coope-
ração, do nosso consentimento e dos nossos dados. Só um pensamento derrotista,
ignorando a capacidade humana de insurgência e resistência, pode dizer que não se
pode fazer nada. Mas para fazer alguma coisa de sério e significativo faz falta o contri-
buto da educação, nomeadamente em duas áreas prioritárias de intervenção. Por um
lado, a consciencialização, no pressuposto de que a resistência, alicerçada na consciência
lúcida e crítica, é mais efetiva na reação à exploração das plataformas: sabendo como
nos espiam, nos influenciam, nos sugam dados e nos catalogam para exploração comer-
cial melhor podemos reagir e resistir às manobras do tecnopoder digital. Por outro lado,
e como segunda área, a sensibilização política, não apenas para politizar a relação dos
internautas com esse poder, uma vez que “o tecnológico é político” (BURGAYA, 2021,
p. 299), mas também para abraçar uma “política de legítima defesa” (SADIN, 2018,
p. 106), incluindo, nas duas faces da mesma moeda, a reivindicação de medidas políti-
cas concretas para disciplinar o poder digital e o alargamento, ou simplesmente a
ampliação, de uma “nova geração de direitos fundamentais” (LASSALLE, 2019, p.
140), os direitos cibernéticos ou digitais.
O que se espera da ação educativa de consciencialização, precisamente no quadro
da insurgência e da resistência contra a nossa exploração, é que forneça a largas faixas
da população, designadamente escolares, uma noção tão aproximada quanto possível
dos termos em que se realiza essa exploração, desde as invasões da privacidade à elabo-
ração de perfis de persuasão, passando pelas manobras de direção e modificação
comportamental num tempo de afanosa procura de produtos preditivos com resultados
garantidos. Dentro dessa noção cabe, primeiramente, a sinalização da apropriação in-
devida de dados pessoais pelas plataformas digitais, não obstante a solene promessa de
os respeitar, tal como consta, com pompa e circunstância, nas suas obscuras políticas
de privacidade, e o carácter falacioso, para não dizer impraticável, de certas opções,
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como as dos cookies. É certo que podemos não aceitar os cookies ou, pelo menos, uma
parte deles, mas, na prática, “um mero formalismo, pois o que provoca é que façamos
clique de maneira irrefletida” (BURGAYA, 2021, p. 136). A solução mais realista pa-
rece ser a proibição pura e simples desses ‘espiões’ da navegação online, mas essa é uma
questão que fica em aberto, pois o que verdadeiramente interessa nesta fase da inter-
venção educativa é salientar o valor da privacidade:
A privacidade importa porque a sua ausência dá a outros poder sobre ti. Talvez
penses que não tens nada a esconder ou a temer. Estás enganado, a não ser que sejas
um exibicionista com desejos masoquistas de sofrer roubos de identidade, discrimina-
ção, desemprego, humilhações públicas e totalitarismos, entre outras desgraças
(VÉLIZ, 2021, p. 62).
E não só individuais, porque a privacidade é assunto que diz respeito a outra
gente, nomeadamente familiares, próximos e amigos, caso apareçam nas nossas publi-
cações.
Assim, e ainda nessa primeira fase de consciencialização, é justo alertar para “os
riscos de partilhar demasiado” (FRENKEL; KANG, 2022, p. 92), convocando exem-
plos da comunicação social, e inclusive de premir compulsivamente o botão “Gosto”
das redes sociais, pois “Alguns likes no Facebook dão para saber muito sobre nós, muito
mais do que imaginamos” (BURGAYA, 2021, p. 304). A crença de que as redes sociais
são apenas espaços de liberdade, de expressão e de comunicação só pode agravar a situ-
ação e, por isso, impõe-se mostrar que o seu modelo de negócio as transforma em
‘abutres de dados’ (VÉLIZ, 2021) que depois são transformados em e-commodities, em
ativos digitais comerciais, disponíveis para ávidos anunciantes.
Numa segunda fase de consciencialização sobre a instrumentalização do homo
digitalis, isto é, sobre o utilizador da internet e das plataformas digitais, convém abordar
a criação, por essas plataformas, de perfis de persuasão, de retratos que explicitamente
sinalizam onde somos mais sensíveis e influenciáveis. O que os clientes das plataformas
tecnológicas mais desejam, precisamente para venderem os seus produtos, os quais
tanto podem ser bens e serviços como ideias, votos e doutrinas, é saber como nos po-
dem influenciar da maneira mais certeira e, para isso, não se poupam a gastos na compra
desses perfis de persuasão, uma vez que são determinantes para saber como entrar no
nosso santuário interior, para lhe conhecer o estado de ânimo e o explorar nos pontos
de maior vulnerabilidade: “Buscam os nossos pontos débeis para os explorar” (VÉLIZ,
2022, p. 33). É assim que uma tendência recente, baseada na análise algorítmica de
sentimentos (MELHADO; RABOT, 2021), nos expõe às investidas do tecnopoder
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digital, merecendo toda a atenção para lhe fazer frente em nome da nossa integridade
moral.
O que também merece atenção, na ação de consciencialização, é a menção ao uso
matreiro da personalização (de Feeds de Notícias, de dietas informativas, de mensagens,
de anúncios) para fins de manipulação dos utilizadores das grandes plataformas, isto é,
potencialmente todos nós: “A personalização soa a tratamento VIP, até te dares conta
de que não é mais do que uma forma de designar técnicas desenhadas para manipular
as mentes singulares de cada um de nós” (VÉLIZ, 2021, p. 78). Esse mecanismo, ma-
nifestamente essencial na modificação comportamental, dado permitir inocular
decisões nas mentes dos utilizadores, não é apenas malicioso por ameaçar a “integridade
moral do indivíduo autónomo” (ZUBOFF, 2020, p. 33), o que, só por si, já é uma
tragédia. Ademais, e por extensão, perfeitamente compreensível, também coloca em
risco a própria democracia, uma vez que a base deste regime é a autonomia individual
a qual, na prática, é um poder ou uma capacidade de autogoverno e de autodetermina-
ção.
Assim, e atendendo a mais essa elucidação, compreende-se melhor o tecnopoder
digital, mas o trabalho educativo, visando precaver-nos desse poder, não se restringe a
ações de consciencialização. É ainda necessário, para circunscrever e limitar esse poder,
pelo menos nos seus aspetos mais perniciosos, e sem doutrinações disfarçadas de prele-
ções, motivar para publicamente defender novos direitos digitais e novas medidas
governamentais no quadro da vocalização de “uma política de legítima defesa”
(SADIN, 2018, p. 106) de todas as plataformas que, no universo da internet, usam e
abusam do seu poder de influência sobre os utilizadores.
A pública vocalização dessa política, nomeadamente através das redes sociais, mas
também através de petições junto de órgãos de soberania, como os parlamentos, vai
exigir a discussão argumentada das medidas e dos direitos que, na situação atual, e
considerando os avanços já alcançados por vários países, podem eventualmente integrar
essa política cidadã da era digital, sendo de valorizar, nessa situação, o interessante papel
da escola e, em particular, as aulas de cidadania, por se revelarem pedagogicamente
apropriadas para debates sobre questões de sociedade, como são, presentemente, e com
todo a propriedade, os debates sobre novas regulações políticas e jurídicas do digital e
do poder envolvido na sua trama algorítmica.
Assim, e apenas para ilustrar alguns assuntos a incluir nesses debates, poder-se-ia
equacionar a proibição pura e simples dos cookies, a não ser que legalizemos a pirataria”
(BURGAYA, 2021, p. 301), e bem assim o uso dos perfis personalizados a fim de aca-
bar com a personalização de anúncios, pois seria “uma forma de restringir o poder das
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grandes plataformas tecnológicas que tanto dependem deles” (VÉLIZ, 2021, p. 148).
Por outro lado, e de forma mais radical, seria pertinente discutir a eventual interdição
da comercialização de dados pessoais e a sua inferência a partir dos nossos traços digi-
tais, admitindo, com Véliz, que esses dados “não devem ser algo que se possa comprar,
vender ou partilhar para os explorar com fins de lucro” (2021, p. 149). A outro nível,
e já numa área de grande proximidade com as preocupações mais imediatistas das jo-
vens gerações, conviria discutir as formas de impedir os efeitos nocivos das redes sociais
sobre as crianças, colocando também o foco na responsabilidade dessas redes, e, ainda,
o reforço da proteção da privacidade dos mais novos, dado ser fundamental, por duas
ordens de razões: em primeiro lugar, porque se diminui o risco de um futuro compro-
metido pelo acesso a informações perfeitamente escusadas sobre saúde, escola ou
amigos; em segundo lugar, porque a intromissão excessiva na vida dos mais novos pre-
judica o seu crescimento: “quando supervisionamos demasiado os jovens, prejudicamos
o processo pelo qual se tornam adultos responsáveis que não precisam de supervisão”
(VÉLIZ, 2021, p. 184). Reconhecidamente, a questão é polémica, mas fica bem dis-
cuti-la no âmbito da aprovação de medidas que também se destinam a cercear a
vigilância digital.
A par de medidas que se podem equacionar para travar o tecnopoder digital, pelo
menos neste momento, pois a realidade desse poder é dinâmica e cheia de surpresas,
convém acrescentar, também para discussão e configuração de uma política de legítima
defesa dos cidadãos, direitos de uma nova geração que ainda há pouco tempo começa-
ram a ser formulados: os direitos digitais ou cibernéticos. Entre eles, e à cabeça, o
“direito ao futuro, o qual abrange a nossa vontade de querer, a nossa autonomia, os
nossos direitos à decisão, a nossa privacidade e, seguramente, as nossas naturezas hu-
manas” (ZUBOFF, 2020, p. 384). Depois, e só para trazer à colação prerrogativas
jurídicas insuficientemente contempladas em Cartas de Direitos Digitais, o direito a
inspecionar e a alterar o perfil digital que as plataformas constroem a nosso respeito,
tanto mais quanto esse perfil é cada vez mais decisivo no âmbito da ‘economia da re-
putação’ (BURGAYA, 2021), pois dele depende pagar mais ou menos por bens e
serviços, ou simplesmente não ter acesso a eles, já para não falar o quanto a reputação
digital, associada a esse perfil, se revela importante na seleção para um emprego.
Por outro lado, e como inovação, seria de levar em consideração um direito de
proteção da nossa agência, especialmente da ‘faculdade de julgar’, considerada por
Arendt “a mais política das aptidões mentais” (2005, p. 213), na medida em que de-
termina a possibilidade de ações individuais e coletivas recusando normatividades
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infundadas e jogos de poder ilegítimos. Por fim, e como contraponto à ênfase das tec-
nológicas nos direitos de propriedade dos algoritmos, um direito de propriedade do eu
digital, dando razão a estas palavras: “O que nós realmente queremos é um eu digital
do qual sejamos o proprietário exclusivo e ao qual os outros possam aceder apenas se-
gundo os nossos termos” (DOMINGOS, 2017, p. 299). O que está em causa, neste
último caso, é a reivindicação, no quadro da política de legítima defesa, de um direito
que permita decidir, sem reservas, sobre a utilização dos perfis digitais, tanto por nós
construídos e atualizados, como sobretudo pelas plataformas, com ou sem consenti-
mento explícito.
Esses são alguns dos direitos que se podem acrescentar a cartas de direitos huma-
nos na era digital, entre as quais a portuguesa, recentemente aprovada e já em vigor,
dado serem fundamentais, só pelo facto de serem direitos intransponíveis, para fixar
limites e não deixar embalar o tecnopoder digital. Teve razão Foucault ao afirmar que
“Ao poder é sempre preciso opor leis inultrapassáveis e direitos sem restrições” (1979,
p. 794). É provavelmente a única forma de lhe colocar freios, mas isso não é fácil,
sobretudo quando se trata do poder da economia de plataformas: “a economia de pla-
taformas engendra umas dimensões corporativas que torna quase impossível o seu
controlo social e político” (BURGAYA, 2021, p. 237). Ainda assim, nunca é demais
lembrar que o poder das plataformas tem pés de barro, visto depender dos nossos dados,
e que as regulações estão surtindo algum efeito, nomeadamente na União Europeia, na
sequência do clamor dos cidadãos e de algumas organizações defensoras dos seus direi-
tos. Assenta bem nas atribuições da educação, nomeadamente escolar, reforçar esse
claim-making da sociedade civil, pois, em derradeira instância, tudo depende de mu-
danças legislativas e, portanto, da nossa pressão estruturada sobre os representantes
políticos.
Conclusão
Como procurarmos ilustrar e argumentar ao longo do artigo, a era digital assiste
à emergência de um poder que já é dominante no ecossistema da internet e que, se não
lhe opusermos resistência, vai continuar a violar direitos individuais fundamentais e a
ameaçar, a breve trecho, as próprias bases do sistema democrático. Os efeitos pernicio-
sos desse poder fazem dele uma questão política-chave do nosso tempo que deve ser
afrontada com lucidez, determinação e espírito crítico, além de requerer criatividade
nas respostas. A educação, como mostramos, pode ser útil a esse propósito, investindo,
por um lado, na construção de uma visão lúcida e crítica das maquinações algorítmicas
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do tecnopoder digital e, por outro, na discussão e na vocalização de uma política de
legítima defesa dos utilizadores das plataformas onde esse poder opera, equacionando
novos direitos cibernéticos e algumas medidas políticas.
O que está em causa, na verdade, é passar para a política institucional um novo
lote de regulações políticas e jurídicas capazes de travar os perigosos avanços desse poder
nas plataformas de serviços digitais. Pode-se dizer que a tarefa não se afigura fácil, pois
o tecnopoder foge das regulações como o diabo da cruz, e por uma razão muito simples:
as regulações podem comprometer os seus resultados financeiros e, no limite, a própria
economia dos dados, relativamente à qual é o seu fiel servidor. Seja como for, e se não
lhe fizermos frente, as perspetivas não são as melhores, quer para as sociedades demo-
cráticas, inviáveis sem a autodeterminação dos indivíduos, quer para os nossos direitos
à privacidade, à intimidade, à decisão e, last but not least, o direito a uma voz política
sem entraves à contestação.
Não é com alguns tuits explosivos e esporádicos, próprios dos ‘enxames digitais
(HAN, 2016), que vamos fazer recuar esse poder das plataformas tecnológicas da era
digital. A resistência a um poder tão amplo e tão invasivo, sem autolimitações visíveis,
exige uma luta continuada e sem tréguas: “Só quando a resistência se torna persistente
se consegue que as grandes tecnológicas deem um passo atrás” (VÉLIZ, 2021, p. 153).
É por isso que faz falta a educação, considerando, como inspiração, as áreas abordadas
neste artigo. O que é verdadeiramente importante é que esse trabalho educativo, feito
nomeadamente nas escolas, tenha repercussões públicas, pois, “Numa sociedade demo-
crática, o debate e a contestação proporcionados por instituições ainda saudáveis pode
fazer a opinião pública mover-se e adotar uma atitude de oposição, que abrirá caminho
a uma legislação e a uma jurisprudência posteriores” (ZUBOFF, 2020, p. 579). Esse é
seguramente um sinal de esperança e, de resto, uma merecida recompensa para os edu-
cadores que, especialmente nas instituições escolares, e nas aulas de cidadania, não
perdem a oportunidade de debater o novo poder da era digital.
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VÉLIZ, C. Datos, vigilancia y libertad en la era digital. Barcelona: Debate, 2021.
ZUBOFF, S. A era do capitalismo da vigilância: a disputa por um futuro humano na nova
fronteira do poder. Lisboa: Relógio D’Água, 2020.
ESPAÇO
PEDAGÓGICO
Diálogo com Educadores
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Diálogo com educadores Dra. Jaqueline Moll
Jaqueline Moll
*
Angelo Vitório Cenci
**
Telmo Marcon
***
A revista Espaço Pedagógico (REP) do Programa de Pós-Graduação em Educa-
ção do Instituto de Humanidades, Ciências, Educação e criatividade (IHCEC) da
Universidade de Passo Fundo tem uma seção denominada Diálogo com Educadores e,
para cada número, há um convite dirigido a um(a) pesquisador(a) afinado com a te-
mática do dossiê. O presente dossiê trata da do direito à educação e os riscos desse
direito por conta da expansão da educação domiciliar (homeschooling). Desde que foi
criada a seção, inúmeros pesquisadores contribuíram com suas experiências e conheci-
mentos para enriquecer o próprio dossiê. Nesse contexto, gostaríamos de formular
algumas questões sobre o tema do dossiê e as polêmicas que ele gera. Para tanto, nada
melhor do que alguém que conhece profundamente as estruturas da educação brasileira
e do Ministério da Educação e que vem batalhando há anos em defesa de uma educação
integral de qualidade. Vamos conversar com a doutora Jaqueline Moll, nossa convi-
dada, sobre questões de políticas educacionais públicas em confronto com a educação
domiciliar.
Recebido em: 01.03.2023 Aprovado em: 01.03.2023
https://doi.org/10.5335/rep.v29i3.14384
ISSN on-line: 2238-0302
*
Professora titular da Faculdade de Educação e colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências da UFRGS e
professora titular do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das
Missões, Câmpus Frederico Westphalen. Graduada em Pedagogia pelo Centro de Ensino Superior de Erechim; Especialização em
Alfabetização pela PUC/RS; Especialização em Educação Popular pela Unisinos; Mestrado em Educação pela PUC/RS e Doutorado
em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5465-178X. E-mail:
jaquelinemoll@gmail.com.
**
Graduado em Filosofia pela UPF, mestre em Filosofia pela PUC/RS. Doutorado em Filosofia pela Unicamp, pós-doutorado pela
Unicamp/Cebrap. Professor e pesquisador junto ao PPGEDU/UPF na linha de Fundamentos da Educação. Orcid:
https://orcid.org/0000-0003-0541-2197. E-mail: angelo@upf.br.
***
Graduado em Filosofia e Teologia. Mestre em educação pela Universidade de Passo Fundo, doutor em História Social pela PUC/SP,
pós-doutorado pela UFSC. Professor e pesquisador junto ao PPGEDU/UPF na linha de Políticas educacionais. Orcid:
https://orcid.org/0000-0002-9110-3210. E-mail: telmomarcon@gmail.com.
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REP Em linhas gerais, como descreverias sua trajetória como educadora-pesquisa-
dora no âmbito do debate educacional brasileiro?
Jaqueline Moll (JM) Agradeço, em primeiro lugar, o convite para dizer minha pa-
lavra nessa revista tão importante para a educação brasileira que vem de uma longa
história e de uma longa tradição no debate democrático. Eu, nesse ano de 2023, com-
pleto 40 anos de vida na educação pública. Com 18 anos comecei como professora
primária. Foi importante recuperar isso no meu memorial para professora titular na
URGS onde abordei exatamente o que vou contar aqui agora rapidamente. Eu me
torno professora aos 18 anos. Tinha feito várias experiências de pré-estágio, fiz o curso
normal, na época de ensino médio, segundo grau. A minha vida como educadora e
pesquisadora nasce da perplexidade com a diferença que havia entre a escola privada e
a escola pública. Eu tinha estudado e comecei a atuar como professora na educação
básica, primeiro ano do ensino fundamental, no segundo ano do ensino fundamental,
no terceiro ano do ensino fundamental e, também, trabalhei no quarto ano do ensino
fundamental. Tinha experiências variadas e fortes que nasceram da perplexidade frente
às condições de vida das crianças na escola privada e as crianças na escola pública. Já
no meu estágio no curso normal, mas também nos pré estágios, esse mergulho na rea-
lidade da escola pública foi me mostrando que havia ali uma diferença que não era dada
pela capacidade das crianças. Anos mais tarde através das leituras de Maria Helena
Souza Patto, já fazendo o mestrado, em 1987, vou entender toda essa visão psicologi-
zante, biologizante, que vai culpabilizando as crianças e as famílias de que eles são
pessoas com menos capacidade. Ao contrário, eram crianças ávidas por conhecer temas,
livros, literatura, mas a limitação do ambiente, dos professores e da vida delas é que
impunha um obstáculo quase intransponível. Eu acho importante recuperar isso por-
que eu vou me fazendo e me tornando professora e pesquisadora pela perplexidade que
eu enxergo como normalista, nos pré estágios, nos estágios. Eu vou trabalhar numa
escola privada e reacendo todas as minhas memórias. Eu fiz o ensino médio numa es-
cola pública, mas o fundamental eu fiz numa escola católica na minha cidade. Era uma
escola de irmãs franciscanas porque eu sou de uma família que tem duas tias que são
irmãs franciscanas, uma delas ainda vive em Passo Fundo na comunidade franciscana
de Maria Auxiliadora, a irmã Maria Estelita Tonial, mestra de noviças. Eu vim dessa
tradição. A minha família fez um grande esforço e eu estudei nessa escola. Então a
diferença era muito grande nos materiais, na sala de aula, na formação dos professores,
nas relações, bem como, no trato com as pessoas e o desrespeito que eu assistia na escola
pública em relação às crianças e o que eu vivia na escola pública era algo que eu jamais
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tinha visto. É isto que me faz ser pesquisadora, isto me transformou em pesquisadora
e foi me fazendo desenvolver esta perspectiva de pergunta pelos porquês. A ciência
nasce das perguntas. Essa realidade não era dada por Deus, pelo infortúnio, pela sorte.
Era uma realidade historicamente construída. E o meu curso de pedagogia no Centro
de Ensino Superior de Erechim, não era ainda a Universidade Regional Integrada
(URI), Erechim, foi muito dialógico. Professores que vinham de uma tradição do ma-
terialismo histórico, o estudo das estruturas da sociedade, cheios de porquês. O estudo
das estruturas da sociedade e junta com isso toda a militância na juventude, nas pasto-
rais, tudo isso foi desenvolvendo uma perspectiva de perguntas sobre o mundo. A
realidade não é, mas, está sendo construída. Eu diria que isso marcou a minha vida
como pesquisadora. Daí faço o mestrado e o doutorado (minha dissertação e tese estão
publicadas), sempre discutindo a educação pública e a possibilidade de transformação
de estruturas não só desfavoráveis, mas estruturas excludentes, seletivas. Isso foi me
fazendo pesquisadora e daí está o Lattes com toda a produção desses anos todos e sem-
pre me colocando em vários lugares, como professora da educação básica, como
formadora de professores da educação básica, como gestora pública na prefeitura de
Porto Alegre e depois no Ministério da Educação de 2005 a 2013, como professora
universitária. Enfim, esses diferentes lugares foram me fazendo pesquisadora, exata-
mente ao encontro com essa realidade tão desigual e a capacidade que vai sendo
desenvolvida em mim de não naturalizar, mas de questionar as estruturas.
REP A educação pública no Brasil tem sido, de um modo geral, muito maltratada.
Do seu ponto de vista, quais são as principais razões que obstaculizam a efetivação de
uma educação pública de qualidade no país?
JM Também aqui poderíamos discorrer longamente, mas eu parto daquilo que é o
princípio que é a estrutura desigual da nossa sociedade, a estrutura escravocrata. Nós
nunca desenvolvemos,, como sociedade brasileira, a ideia de que nós somos iguais, de
que temos direitos iguais e que o direito a dignidade humana é para todas, todos e todes
e, seguramente a educação é uma das políticas fundamentais para a construção de so-
ciedades democráticas que foi embebida dessa matriz. Nós podemos ver isso no fracasso
escolar naturalizado no Brasil, as repetências, as multi repetências, as retenções, as ex-
clusões e a evasão que são naturalizadas. Milhares e milhões de meninos e meninas são
levados a reprovarem e a repetirem o ano seguinte, quando não ‘evadem’. A evasão não
é um ato voluntário. A evasão é resultado de um conjunto de fatores sociais, internos e
externos à escola. Então eu diria que o grande elemento de fundo que obstaculiza a
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efetivação de uma educação pública de qualidade é essa estrutura de sociedade, essa
sociedade que nós não conseguimos modificar.
Nós avançamos, avançamos no direito à educação, mas não avançamos naquilo
que está posto em nossa Constituição como o primeiro princípio da educação brasileira
que são as condições de igualdade para acesso e permanência na escola. Aquilo que eu
me referi na questão anterior está presente hoje. É ir para uma escola de periferia, em-
bora tenha avançado muito e as redes municipais avançaram muito, as escolas que
atendem as classes populares, trabalhadoras e pobres, não recebem do ponto de vista
da sua trajetória educativa, formativa, as mesmas condições que os filhos das classes
médias e altas recebem no Brasil. Aliás, há um fosso entre a escola pública e a escola
privada e a reforma do ensino médio mostra isso: a tentativa de manter essa dualidade,
essa diferença profunda. No entanto, do ponto de vista das razões que obstaculizam
para além desse panorama de fundo que se a gente não aborda, não avança, nós pode-
mos falar de outros elementos importantes.
A descontinuidade das políticas de educação é outro problema. Não somos ca-
pazes de avaliar para avançar. Os governos sempre recomeçam, ignorando,
desmontando, destruindo. Claro que nós tivemos um período distópico nesses últimos
quatro anos (2019-2022) que foram terríveis. Eu acho que é uma exceção. Nem o
regime militar que foi também um período terrível da história do Brasil foi tão violento
contra a educação pública quanto os últimos quatro anos, mas, na história da educação
brasileira as descontinuidades são profundas. A questão do financiamento é outro obs-
táculo porque no Brasil é preciso reconstruir a rede física ampliando sua perspectiva.
Não é possível que a gente siga no século XXI achando que dá para fazer educação
pública numa escolinha com algumas salas, sem biblioteca, sem laboratórios de ciência,
sem salas de artes, sem espaços de esportes. Então, a questão do financiamento é outro
ponto crucial. Claro que todas as dimensões dialogam entre si.
A questão da formação de professores é outra questão seríssima porque ela exige
esta relação orgânica com as práticas, com o cotidiano, com as escolas. Tivemos algu-
mas experiências no Pibid, algumas experiências na residência pedagógica, mas ainda
temos uma relação muito vertical da Universidade com as escolas e com a educação
básica. A educação básica ainda é vista como um espaço em que outros pensem para
que os que estão na escola apliquem. Essa é uma visão vertical, de algum modo ilumi-
nista, onde alguém pensa e os outros executam e isso vai aparecer no modus operandi
das políticas. Não tem como mudar as escolas desde dentro dos gabinetes. A experiência
ampla que fizemos com o Mais Educação mostrou a vitalidade quando essa relação é
orgânica, quando as escolas participam, fazem escolhas, se auto-organizam, chamam a
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comunidade e se abrem para essa perspectiva contemporânea, para esse novo para-
digma. Eu tenho falado em novo paradigma que é a construção de territórios
educadores e por aí vai. Acho que de um modo geral é isso.
REP Do seu ponto de vista que razões justificam a expansão do ideário em defesa
da educação domiciliar e que setores estão à frente desse projeto no Brasil?
JM Penso que é a mesma matriz conservadora e, no limite, reacionária, que embe-
beu a sociedade brasileira nos últimos anos. A negação de que nós precisamos aprender
a viver juntos, a negação da perspectiva de que os direitos são para todos, de que nós
somos todos iguais. A negação de tudo isso é a matriz dessa ideia de que os filhos devem
ser educados no âmbito estrito dos valores internos das famílias. O que eu diria é que
é o princípio da destruição da nossa própria possibilidade de viver em sociedade, com
a diversidade que caracteriza as sociedades. As sociedades ocidentais são muito marca-
das por perseguições profundas, violentas a tudo aquilo que não corresponde ao ideário
normativo. Nós somos sociedades abastecidas por uma visão branca, masculina, cristã,
católica, até mais estrito agora. Então, são essas as matrizes de pensamento que tenta
afastar os meninos e meninas entre si. Eu vivi uma situação muito séria no Conselho
Estadual de Educação entre 2014 e 2018. Eu estive lá e fui surpreendida quando numa
situação específica uma outra colega conselheira disse que não dava para misturar os
filhos dos pobres com os filhos dos ricos. Esse pensamento está muito presente dentro
de nós. E a educação domiciliar vai mais fundo: não dá nem para misturar eles entre si;
nem os pobres entre si e nem os ricos entre si. Portanto, uma sociedade segregada.
Então, as razões que justificam a expansão desse ideário têm a ver com essa perspectiva
não democrática e que no último domingo (08.01.2023) tomou proporções nunca vis-
tas no Brasil. Não sei se outro país viveu a destruição que nós vivemos. A destruição
física, material, daquilo que representa o poder instituído, os três poderes que são a
base da república. É por aí.
REP Que valores efetivamente mobilizam famílias a acreditarem que a educação
domiciliar vai resolver os problemas educacionais?
JM A própria negação da educação pública, a negação da possibilidade que as pes-
soas convivam com as suas diversidades. É o desejo de manter um purismo. Isso me
leva ao próprio ideário do nazismo. Como é que você mantém ‘pura’ essa sociedade.
Isso é absoluta ilusão. Quanto mais as estruturas societárias voltam-se para si mesmas e
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se fecham para as convivências, menos oxigenação elas têm. Quanto menos diversidade,
até geneticamente isso pode ser pensado, as famílias reais tendo filhos entre primos, vai
ter problemas. Evidente que não se transpõe isso para o tecido social, mas grosso modo
se pode dizer que se as pessoas só conviverem entre si, elas vão ser incapazes de produzir
qualquer tipo de empatia com o que é diferente delas. Então acho que tem mais do que
resolver problemas educacionais porque esse ideário não surge nas classes populares.
Claro que isso vai sendo disseminado quando assusta as pessoas. A escola passa a ser
vista como lugar de perigo ideológico e sexual. Evidente que há problemas na escola,
mas quanto mais público e quanto mais profissionais estiverem com as crianças, quanto
mais elas conviverem entre si, desenvolvendo valores e possibilidades de viverem juntos,
menos problemas a gente vai ter. Então esse ideário segregador é baseado numa ideia
de purismo. As crianças não serão contaminadas por ideologias, visões diferentes das
famílias. Aí entra todo esse debate sobre ideologia de gênero, que tem a ver com a
incapacidade de conviver com a diferença. Jamais em nenhum documento do Minis-
tério da Educação, em nenhuma prática do MEC nos anos que estive lá e daquilo que
estudo da educação brasileira, jamais se induziu as pessoas a essa ou aquela opção sexual,
jamais, jamais. A escola é um lugar de convivência democrática. Para mim no âmago
dessas razões está a incapacidade de viver uma experiência democrática.
REP Na sua avaliação como as religiões, particularmente as neopentecostais, inter-
ferem nos discursos em defesa da família e da educação domiciliar?
JM Eu sempre que penso nisso, nessa varredura que a sociedade brasileira vai vi-
vendo, me remeto aos anos de 1980, ao fim da teologia da libertação, a perseguição às
comunidades eclesiais de base, a punição que Leonardo Boff recebe do recém falecido,
cardeal Ratzinger, depois papa Bento XVI, ex-papa, papa emérito. É importante obser-
var o quanto essas religiões constroem um ideário antidemocrático. Eu não conheço
em profundidade as teorias que embasam o neopentecostalismo, embora na especiali-
zação em educação popular que fiz na Unisinos em 1987 e 1988 estudamos com José
Ivo Follmann que é Jesuíta, estudamos um pouco dessas religiões, mas eu não tenho
um conhecimento mais profundo para uma resposta mais robusta. O que eu entendo
das reflexões a partir das práticas dessas religiões é a perspectiva antidemocrática, pers-
pectiva acusatória em relação à escola pública, a perspectiva de heteronormatividade,
de normatividade sobre os padrões de comportamento das pessoas em relação ao vestir,
os cabelos, as práticas diárias. Creio que há uma relação muito direta de um modus
operandi antidemocrático com esse ideário religioso que começa a aparecer nas famílias.
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Mas famílias de classe popular não têm efetivas condições de ficar com seus filhos em
casa. Acho que a pandemia da Civid-19 foi uma escola, inclusive nesse sentido. A pan-
demia demonstra que é necessário que as crianças convivam entre si. O atraso cognitivo
que as crianças brasileiras foram submetidas é um atraso que se aprofunda, que não é
biológico, mas é exatamente a falta de ambiência com as coisas da escola, com as coisas
da aprendizagem que vai apontar para nós que o caminho necessário é de que as crian-
ças vivam juntas. Os pobres precisam trabalhar. Se as famílias de classe média e média
alta podem ficar com seus filhos, que não acredito que possam, e a pandemia mostrou
isso, as famílias de classe popular que estão nesse circuito de religiões neopentecostais
não tem condições de ficar com seus filhos em casa. Não tem porque trabalham todo
dia e, lógico, sabemos que precisa de um saber especializado para que possamos avançar
nas agendas educacionais e nas capacidades dessas crianças não só viverem juntas num
mundo com muitos desafios mas de se prepararem para a vida democrática, cidadania
e o mundo do trabalho.
REP Como explicar as contradições existentes no Brasil entre uma concepção de
educação cidadã e democrática, presente nas legislações pós-Constituição de 1988
sobretudo as formuladas até 2016 - e a visão de educação domiciliar?
JM Acho que essa resposta foi sendo desenvolvida nas outras questões. Essa questão
tem a ver com o problema estrutural da sociedade brasileira que tem a ver com a matriz
escravocrata, a forma como a colonização se deu desde 1500 e como as colonialidades
perpetuaram e perpetuam esse modus operandi de uma sociedade calcada nas desigual-
dades. O convencimento sobre a educação domiciliar corresponde, para quem
consegue ter um olhar macro, a perspectiva de que cada família dê para seus filhos o
stricto capital cultural com o qual convive. Não só as visões de mundo, mas os saberes
específicos que as famílias são capazes. Pensem numa tragédia dessas numa sociedade
em que milhões de jovens e adultos não concluíram sequer o ensino fundamental, nem
falo do médio.
REP Em sua avaliação quais os principais limites da educação domiciliar?
JM Aqui é importante fazer uma distinção. A Constituição é clara: a educação é
dever do Estado e das famílias. As famílias têm um papel muito importante na articu-
lação com a escola, na presença na escola, no acompanhamento de seus filhos. É lógico
que se os pais são analfabetos ou pouco escolarizados isso afeta essa relação. Os pais tem
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um papel fundamental na construção de valores, enfim, todos nós temos como refe-
rência nossos pais. Eu quando penso no meu pai, que há 30 anos não está conosco, eu
penso na honestidade, na organização, no jeito de ser, no hábito de tomar chimarrão
com ele. Foi com ele que aprendi a tomar chimarrão. Isso me acompanha, me constitui.
Então, uma coisa é o papel das famílias, que é fundamental porque nós nos construímos
a partir dessa relação. Quanto a psicanálise e a psiquiatria nos ajudam a entender os
problemas decorrentes da desestruturação nessas relações entre pais e filhos, famílias,
irmãos. Então, uma coisa é o papel que a família cumpre, mas outra coisa é a educação
domiciliar que restringe as possibilidades de interações pedagógicas e curriculares em
relação àquilo que o ambiente familiar é capaz de dar. Os limites da educação domici-
liar são muitos, sendo o principal deles, a incapacidade de preparar as crianças para a
vida em sociedade, para a vida democrática em sociedade, para os valores da vida em
sociedade, ou seja, a capacidade para resolver problemas e de estabelecer diálogo com
aqueles que são diferentes, a incapacidade de ajudar as crianças a perceberem as riquezas
do mundo cultural, étnica, estética. Então são muitos os limites.
REP Quais os principais riscos da educação domiciliar, caso os projetos dessa natu-
reza sejam aprovados em diferentes esferas (municipal, estadual e federal)?
JM Eu tenho grande esperança que os posicionamentos do Supremo Tribunal Fe-
deral (STF) sejam definidores dessa perspectiva. Acho que não se pode no âmbito
municipal ou estadual legislações que afrontem posições do STF que é, de qualquer
modo, guardião da nossa constituição. Eu penso que a retomada da democracia, a re-
tomada de um ambiente de diálogo, de convivência, o fim das exortações diárias ao
conflito que nós vivemos com o ex-presidente nos últimos quatro anos, ajude a trazer
luz para essa questão, embora eu tenha falado antes do iluminismo, acho que ele não
pode existir como parte do método da gestão das políticas públicas, mas há questões
que trazem luz sobre outras, aí usei em outro sentido isso. Acredito que vá arrefecendo
esse ânimo de uma educação domiciliar que era mantida viva e acesa por uma perspec-
tiva antidemocrática de vida em sociedade. Mas, caso avançar, os riscos são muitos e
ameaçam a própria democracia, quer dizer, necessitaríamos viver em grupos segregados
e entre grupos que não se colocam entre si.
REP Do seu ponto de vista, qual deveria ser o papel da escola no contexto brasileiro
atual?
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JM A escola no contexto atual e histórico tem como papel e função constituir um
lugar e possibilidades de vivermos juntos. Nós temos a constituição de 1988 que é clara
em relação ao pleno desenvolvimento da pessoa. O papel da escola é de ajudar a nos
desenvolvermos no âmbito das nossas diferentes dimensões. A dimensão cognitiva que,
infelizmente, está muito reduzida na escola, reduzida a uma perspectiva instrucional de
alguns conteúdos. Retomar a perspectiva do desenvolvimento cognitivo, ético, estético,
moral e político no sentido profundo de vida na polis, como repeti antes, a capacidade
de vivermos juntos. A escola é a nossa primeira república. Os franceses tem essa refe-
rência. A escola é a primeira república, a primeira experiência de vida em comunidade.
A gente saí da vida da família. Imagina na educação domiciliar você não sai nunca da
vida da família. Esse é o risco. A escola é o lugar onde aprendemos a viver juntos e nela
aprendemos a desenvolver as condições para entrar no mundo do trabalho com altivez
para resolver problemas da vida cotidiana, entender o mundo onde vivemos, para co-
nhecer as matrizes históricas da nossa civilização, para conhecer e desfrutar as belezas
do mundo, as obras de arte, para valorizar a cultura popular. A escola é o lugar dessa
construção. A nossa constituição define como objetivo da educação o desenvolvimento
pleno da pessoa e da cidadania, assim como, a preparação para o mundo do trabalho.
É disso que se trata. O trabalho nos hominiza, mas não o trabalho repetitivo e sim o
trabalho que possa criar, o trabalho em que possamos nos construir como pessoas. E
ele sempre vai se dar num ambiente de diversidade. É por isso que a educação domici-
liar impacta exatamente nos grandes objetivos da educação nacional. Eu não posso
desenvolver cidadania se eu só convivo com os meus. Eu desenvolvo cidadania nessa
convivência cidadã com os outros.
REP Como recolocar ou ressituar a questão da educação integral frente ao desmonte
educacional levado adiante por Michel Temer e pelo governo de extrema-direita de Jair
Bolsonaro?
JM É uma pergunta super relevante. Quando o governo Lula começa se reorganizar,
a andar, apesar dos episódios do último domingo (08.01.2023) com um golpe na ten-
tativa de destituir o Estado Democrático de Direito, tudo isso nos impacta e impacta a
administração federal, mas eu diria que ressituar ou recolocar a educação integral im-
plica em retomar as experiências que vinham sendo construídas e que não começaram
agora. Eu tenho insistido que sejam retomados os ideários, desde o Manifesto dos Pio-
neiros da educação nova (1932) que já marca na educação brasileira a perspectiva
democrática porque ali nós tínhamos conservadores, liberais e progressistas e que vai
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passar pela obra de Anísio Teixeira, assassinado pela ditadura militar, em 1971. Anísio
Teixeira vai propor as escolas classe, as escolas parques, com toda uma perspectiva hu-
manista, urbanística. Situemos Anísio Teixeira nas lutas democráticas tanto antes do
Estado Novo (1937-1945) quanto antes da ditadura militar de 1964. Ele é uma figura
muito importante. Paulo Freire é o patrono da educação brasileira e Anísio Teixeira
haverá de ser patrono da escola pública brasileira porque ele vai dar essa grande contri-
buição. Ele pensa uma escola grande com dia letivo completo e currículo integral. Tem
gente aí que acha que ampliando o tempo na escola e fazendo as mesmas coisas é edu-
cação integral, mas não é. Trabalhamos com esse binômio trazido por Anísio Teixeira:
o dia letivo completo e o currículo integral. Então, retomar as experiências históricas e
aqui coloco também Darcy Ribeiro com os Centros integrados de educação pública;
Maria Nilde Mascelani com os ginásios vocacionais; Paulo Freire com a ideia dos Cír-
culos de Cultura que são fundamentais. Para uma educação integral a leitura do mundo
precede a leitura da palavra. É disso que nós estamos falando. Isso constitui estrutural-
mente a educação integral. E as experiências recentes: o Programa Mais Educação que
foi uma ação indutora muito importante, entendida por alguns hoje como uma política
indutora, inclusive vai fazer uma meta no Plano Nacional de Educação. Então, é pre-
ciso retomar essas matrizes, fazer um mapeamento do que está sendo feito no Brasil
hoje, tem muitas experiências Brasil afora. Em todos os estados tem escolas com muita
riqueza pedagógica e é preciso retomar o diálogo com as comunidades. Nós não mu-
daremos as escolas públicas desde dentro das Universidades e nem de dentro dos
gabinetes das secretarias ou dos ministérios. É preciso que os gabinetes e as Universi-
dades se abram para essa riqueza que é a vida nas escolas brasileiras. Enfrentamos
mazelas e problemas porque as escolas seguem reproduzindo o próprio discurso de pa-
tologização da pobreza e de naturalização do fracasso escolar. Construir uma educação
integral implica em pensar uma escola que vive e se constrói e que incida exatamente
na construção de uma sociedade democrática, uma escola que se faz para uma sociedade
democrática, com consciência de quanto a sua ação é determinante para o jeito de como
a sociedade se organiza. Então, manter uma escola excludente e seletiva retroalimente
uma sociedade excludente e seletiva. É preciso que a escola nos ajude a construir essas
respostas juntos, juntas.
ESPAÇO
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Resenha
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Educação Domiciliar no Brasil: mo(vi)mento em debate
1
Camila Chiodi Agostini
*
Larissa Morés Rigoni
**
Resenhar uma obra consiste em uma tarefa de duplo caminho: o primeiro indica
a proposta de sintetizar e apresentar os principais conceitos do autor (es) e o segundo,
talvez mais profundo, indica a imersão no conhecimento profetizado no livro, no ca-
minho idealizado pelo (s) autor (es) e, se deixar invadir pelo novo. Não passamos
incólumes na leitura de um livro: ingressamos de uma forma, saímos providos de mais
saber e reenergizados. Na obra em questão, organizada pela professora titular na Uni-
versidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e pós doutora em Educação, Maria Celi
Chaves Vasconcelos, intitulada como “Educação domiciliar no Brasil mo(vi)mento em
debate”, lançado em 2021, pela Editora CRV, de Curitiba PR, o conhecimento ad-
vém da reunião de pesquisas, planejado no âmbito do Programa de Auxílio Cientista
do Nosso Estado, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro
(Faperj). A coletânea está dividida em duas partes: a primeira intitulada como ‘Tensões
legais, conceituais, políticas e profissionais’ em que conta com sete capítulos, que pos-
suem como foco a legislação e as controvérsias conceituais que envolvem a educação
domiciliar, bem como as políticas e suas práticas. Na segunda parte, intitulada como
‘Tensões contextuais, institucionais, filosóficas e confessionais’ apresenta como eixo
principal a discussão dos aspectos motivacionais, institucionais, filosóficos e religiosos
da educação domiciliar, contando com mais sete capítulos. O principal objetivo da
obra, organizada em quatorze capítulos, é trazer perspectivas plurais sobre o homescho-
oling, que é traduzido pelos autores como educação domiciliar, educação doméstica ou
educação familiar desescolarizada. O tema, que tem retornado a cena de discussão nos
últimos anos, por alterações e propostas legislativas em curso, é alvo de controvérsias e
discussões, e vem ganhando notoriedade acadêmica por produções como a aqui anali-
sada.
Recebido em: 13.10.2022 Aprovado em: 13.12.2022
https://doi.org/10.5335/rep.v29i3.13893
ISSN on-line: 2238-0302
*
Graduada em Pedagogia pela Universidade Anhanguera - Unidade Passo Fundo/RS. Graduada em Direito pela Universidade
Luterana do Brasil. Mestre Interdisciplinar em Ciências Humanas pela UFFS, Campus Erechim/RS. Doutoranda em Educação pelo
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Passo Fundo - UPF/RS. Pós-graduada em Direito Público pela IMED -
Passo Fundo/RS. Servidora pública federal junto a Universidade Federal da Fronteira Sul - UFFS, Campus Passo Fundo/RS. Orcid:
https://orcid.org/0000-0002-7501-9553. E-mail: camila.chiodi.agostini@gmail.com.
***
Graduação em Pedagogia Licenciatura Plena pela Universidade de Passo Fundo. Especialização em Gestão Escolar e mestranda em
Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Passo Fundo - UPF/RS. Orcid: https://orcid.org/0000-
0001-9466-1595. E-mail: moreslarissa@gmail.com.
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No primeiro capítulo da primeira parte da obra, ‘Homeschooling: um desafio
legal’, o professor Carlos Roberto Jamil Cury, apresenta o contexto histórico da educa-
ção domiciliar no Brasil em tempo de Pandemia do coronavírus, em que as escolas
invadiram as casas, o que trouxe problemas na adaptação de um ensino em casa. Traz
no decorrer do capítulo conceitos para poder apresentar melhor o homeschooling, indica
num primeiro momento o que não é, trazendo o conceito de unschooling, indicando
que a educação domiciliar não é a desescolarização, tradução do termo em inglês. Apre-
senta algumas leis sobre direitos e deveres da educação, apresentando o histórico
caminho da educação em casa no Brasil, bem como a obrigatoriedade da matrícula na
escola. Na conclusão, instiga o pensamento sobre a possibilidade da vida coletiva, sendo
os indivíduos ao mesmo tempo iguais e diferentes, onde o caminho da vida comum
parece ser o mais acertado.
Sob o título ‘Homeschooling e redefinições no processo de escolarização e no tra-
balho docente’, o segundo capítulo, das pesquisadoras Ana Claudia Ferreira Rosa e
Arlete Maria Monte de Camargo, promovem uma discussão acerca do ensino domici-
liar num contexto pandêmico, indicado como de crise, o qual limita o exercício de um
ensino domiciliar, e que repercute na reconfiguração do trabalho docente, das políticas
educacionais além de repercussões na atualidade. O estudo de caráter emergencial, se
utiliza da metodologia bibliográfica, das condições históricas e de estudos em grupo
realizados no período. O texto problematiza o contexto atual pandêmico de desigual-
dades, que exacerbou problemas do ensino em casa, mas também foi estopim para o
reforço da retórica do homeschooling. Segue com análise das condições históricas de
emergência da escolarização obrigatória e da especialização do trabalho docente e suas
alterações na pandemia. Analisa, na última seção, os limites da educação no lar na pan-
demia, frente a condições objetivas e materiais da sociedade, com os cortes limites
frente a grande parte da população que implicam no exercício do direito à educação.
As autoras concluem que, embora a pandemia tenha exigido medidas emergenciais, o
ensino domiciliar apenas escancarou ainda mais as desigualdades sociais, que repercu-
tem no exercício do direito à educação da maioria dos brasileiros, apresentando-se esse
como um limite ao homeschooling.
O terceiro capítulo, também apresenta discussão sobre o trabalho docente, cujo
título é ‘Maternidade e docência no contexto da Educação Domiciliar’, escrito pelas
pesquisadoras Luciane Muniz Ribeiro Barbosa e Vitória Maria Terra. O objetivo é des-
vendar os desafios da substituição dos docentes pelos pais para as famílias a optarem
pelo homeschooling, sobretudo para as mães, que passam a ser professoras de seus filhos.
Com análise bibliográfica nacional e internacional, e com a utilização de entrevistas
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semiestruturadas de mães estadunidenses incumbidas no homeschooling de seus filhos,
elas também discutem a implicação da atribuição de professora dessas mães para a pro-
fissão docente. Após análise fundamentada das referências, com também dos relatos da
entrevista, as autoras concluem que a educação domiciliar pode indicar uma ameaça à
profissão docente, porque desconsidera a formação e profissionalização necessária para
exercer a educação de cunho escolar. As novas tecnologias de ensino são apenas recursos
pedagógicos que não dispensam a atuação docente especializada. Os ataques conserva-
dores aos docentes não são suficientes para a defesa da educação no lar, assim como a
realidade desigual do país cria grandes entraves a sua concretização.
De autoria da advogada e professora Fabiana Ferreira Pimentel Kloh e do defen-
sor público e professor Cleber Francisco Alves, o quarto capítulo ‘“Conselho Tutelar
diz que aulas presenciais violem direitos das crianças”: o relativismo na obrigatoriedade
da frequência à Escola e a opção pela Educação Domiciliar’. O objetivo do texto é
analisar, dentro do contexto pandêmico, o afastamento das responsabilidades da escola
no quesito garantia de convivência social, o que deu margem a declarações como as do
Conselho Tutelar que se inserem no título, como também a relativização da regra jurí-
dica de frequência obrigatória escolar. Os autores concluem que, diante do contexto e
das mudanças aceleradas pela pandemia, a frequência escolar como forma de garantia
do acesso à educação pode ser reavaliada, sendo o homeschooling uma possibilidade exe-
cutável.
Intitulado como ‘Reflexões acerca da Educação Domiciliar e da desescolarização
a partir do cenário de pandemia’, de autoria dos pesquisadores Aline Lyra e Antônio
Jorge Gonçales Soares, o quinto capítulo pondera sobre as propostas do homeschooling
e do unschooling (desescolarização), surgidos com o cenário da pandemia, com base em
análise da literatura sobre o tema. Com um resgate histórico e conceitual, os autores
apresentam diversos escritores que já trabalharam sobre os dois conceitos, indicando
que ambos apontam a existência do protagonismo do educando, considerando que o
debate que surge sobre essa forma de educação se origina na forma com que a educação
escolarizada é efetuada na atualidade. Sustentam, por fim, a necessidade de diálogo
entre as formas de educar.
Trazendo a mesma linha, o sexto capítulo aborda a diferença entre educação e
escola. Apresenta como título ‘Homeschooling e Unschooling: alternativas à escolariza-
ção?’, escrito pela pesquisadora Gabriele Nigra Salgado, através de discussão teórica,
advinda de tese de doutorado, como também com base em entrevista cedida por mãe
optante pelo unschooling. A autora se propõe a analisar o processo de escolarização posto
em debate diante do homeschooling e do unschooling. Tem também como objetivo,
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“apresentar os interesses, os conflitos e as contradições inerentes à emergência da insti-
tuição escolar, bem como a produção de sentidos e de significados que até hoje se colam
a ela e criam associações contingentes que definem a vida das pessoas inseridas nas
sociedades escolarizadas” (p. 144). Em suas conclusões, a autora sustenta a perspectiva
de uma educação que o apenas efetue um processo de escolarização das crianças, mas
que as eduque em seu sentido mais amplificado, sendo que para isso é necessário re-
pensar e reinventar o tempo e o espaço escolar.
Finalizando a primeira parte, é apresentado o sétimo capítulo, de autoria da pes-
quisadora Gabriela Freitas de Almeida, intitulado como ‘A escolarização do lar e a
desescolarização da escola’ no qual, com base no materialismo histórico dialético e te-
oria marxista, o conceito de desescolarização de Illich é analisado como sustentáculo da
proposta de educação defendida hoje no país. Outrossim, ela também pondera, de
forma breve, as relações existentes entre a teoria da desescolarização e a escola do tra-
balho. Como forma de conclusão, podemos destacar que ela avalia que o homeschooling,
enquanto desescolarização e a escola do trabalho possuem aproximações nas práticas
pedagógicas, onde o conhecimento se dá no espaço social, como um espaço de apren-
dizado. Mas, as diferenças aparecem quando a escola defende um processo coletivo,
enquanto o homeschooling transfere as questões sociais para o espaço privado, o que não
beneficia as disputas e discussões sociais para as futuras gerações.
Iniciando a segunda parte, temos o primeiro capítulo intitulado como ‘A Edu-
cação Domiciliar e suas motivações: elos que se desfazem e refazem’, de autoria da
pesquisadora e organizadora do livro, Maria Celi Chaves Vasconcelos. A autora analisa
as principais motivações para que haja uma educação domiciliar, entendida essa como
a modalidade educacional que ocorre na casa dos alunos, sob responsabilidade dos pais,
ainda que sua prática ainda não seja permitida, salvo autorizações legais específicas ou
locais. Após a conceituação teórica, ela apresenta a análise de dados de uma pesquisa
qualitativa, baseada na observação, no depoimento e em entrevistas estruturadas rela-
cionadas ao cotidiano de duas famílias adeptas a modalidade. Com o estudo, ela afirma
que fica claro que não há uma motivação que possa inserir o grupo de famílias optantes
e que se delimite por questões empíricas, ideológicas ou religiosas. O modelo brasileiro
parece acompanhar o modelo norte-americano, mas do qual possui apenas inspiração,
se adequando a realidade local do Brasil. Os optantes, segundo, ela, não representam
uma classe social específica. Por fim, considera que o que deve ser reforçado pós pan-
demia é a importância do cotidiano comum escolar, da interação, embora a opção do
homeschooling seja dos pais, os quais devem ser instigados a pensar nessa relação família
e escola.
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Adultez e responsabilidade: reflexões sobre educação, escola e homeschooling a
partir de Biesta, Levinas e Arendt’, é o tema que encabeça o segundo capítulo, escrito
pelo professor Bruno Antonio Picoli. O ensaio, busca investigar qual seria a principal
demanda da educação nos dias de hoje com base nos ensinamentos de Gert Biesta. A
fundamentação teórica ainda contou com os escritos de Levinas e Arendt. O objetivo
também se localizou em analisar a possibilidade ou impossibilidade da família, em ter-
mos educacionais, ocupar o lugar da escola. Em suas conclusões, o autor afirma que a
educação ocupa papel de destaque na formação do indivíduo, tanto no pertencimento
social e reconhecimento do outro como na necessidade de se viver em pluralidade.
Manter as crianças em local privado é extirpar da esfera de convivência o outro plural
e por isso, para ele, a educação em casa não seria educação, por privar a convivência
com o diferente, negando a possibilidade do surgimento do eu ético do indivíduo.
Baseando-se na Teoria das Representações Sociais de Serge Moscovici (2015), o
terceiro capítulo apresenta o estudo realizado acerca de ‘Moderna defesa do passado,
criativa defesa da tradição’, de autoria do professor Adalberto Carvalho Ribeiro. No
texto, o autor apresenta bases teóricas científicas que fundamentam o pensamento dos
adeptos ao homeschooling. Apresenta, ainda, uma relação de causalidade entre as con-
cepções conservadoras às famílias homeschoolers, em que ele analisa o discurso e
metodologias. Percebe-se a insegurança dos pais em socializar seus filhos com a socie-
dade, preferindo educá-los na família. Também afirma que o pensamento dos adeptos
e defensores do homeschooling indica a percepção do mundo de forma individualista e
conservadora, sendo este um público conservador-liberal, predominando o conserva-
dorismo. O autor busca responder no decorrer do texto as questões: O que pensam os
homeschoolers? Por que assim eles pensam? Quais fundamentos teóricos os influen-
ciam? Quais significados são mais caros a eles? Conclui respondendo essas questões, e
informando que pais educadores carregam sim, um conservadorismo ao pensar na for-
mação de seus filhos, pois “conservar, para eles, é mais importante do que expandir.
Limitar rede de relações sociais é mais seguro do que aumentar a rede indiscriminada-
mente. Preferem a dor à excitação da novidade” (p. 274).
No quarto capítulo sob o título ‘“Interesses naturais” ou vantagens de classe?
Desigualdade invisível e construções da “educação ideal” em famílias “homeschoolers”’,
escolhido pelo pesquisador André de Holanda Padilha Vieira, apresenta a sua pesquisa
realizada em 2012, com 62 famílias homeschoolers, bem como entrevistas com pais edu-
cadores. O autor analisa a condição socioeconômica das famílias e como essa reflete na
forma de aprendizado dos adeptos à educação domiciliar. Para ele, são famílias, em que
os pais são mais escolarizados do que a média do país, possuem renda elevada e possuem
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poucos filhos. Sendo assim, conseguem dirigir mais recursos para a educação dos filhos,
bem como conseguem estar mais presentes no processo, constituindo-se essa uma es-
tratégia utilizada para retirar seus filhos da escola, apresentando maiores vantagens. As
famílias adotam um estilo de “cultivo orquestrado”, delimitando e controlando os es-
paços de socialização, bem como toda a rede de apoio necessária.
O quinto capítulo é escrito pelos pesquisadores Mayara Lustosa Silva Pessoa e
Alexsandro Vieira Pessoa, cujo título se apresenta como ‘Homeschooling e o debate sobre
os movimentos sociais’. O conceito movimento social é apresentado de acordo com
diferentes perspectivas e o relacionam com o homeschooling, com o objetivo de identi-
ficá-lo ou não como um movimento social. Ao concluir, o texto apresenta a vertente
de que, embora a educação domiciliar apresenta uma grande mobilização no Brasil,
tendo uma aparência de movimento social, tem suas particularidades e não pode ser
confundida com os movimentos sociais tradicionais, devido aos projetos apresentados
por seus adeptos envolvidos.
O advogado e pesquisador Édison Prado de Andrade apresenta seu texto, no
sexto capítulo, ‘A Educação Domiciliar e a Religião', e desafia-se em discutir sobre a
religiosidade nas famílias adeptas ao homeschooling. Ao optar por educação em casa, os
pais e o grupo de convívio, se orientam pelo viés do que acreditam e o que tem por
verdade, como valores, religião, crenças, etc. Isso resulta em uma educação tradicional,
forjando uma cultura moderna. As famílias, ao se oporem a educação na escola, estão
optando pelos fundamentos antigos com ligação forte à religião, privando-os dos ideais
naturalistas e darwinistas que estão presentes em sistema público ou privado de ensino.
O último texto, o qual fecha a segunda parte da Coletânea, sendo o sétimo capí-
tulo, ‘Evolução Biológica: crença religiosa ou patrimônio científico-cultural da
humanidade?’, de autoria dos professores Nelio Bizzo, Luís Bizzo e Pedro Ramos, apre-
senta uma contestação acerca de um dos principais argumentos que defendem o ensino
em casa. O texto, de início, pondera sobre a teoria evolutiva proposta inicialmente por
Charles Darwin, realizando um contraponto com as crenças criacionistas. Ao concluir,
os autores discorrem sobre a importância da liberdade acadêmica que garante o exercí-
cio da razão, e que o pensamento crítico só é possível a partir da liberdade. Citam as
palavras do ministro Barroso para fechar o capítulo “[...] O excesso de proteção não
emancipa, o excesso de proteção infantiliza” (p. 378).
Os quatorze capítulos apresentados no decorrer da Coletânea, trazem uma temá-
tica de destaque e conseguem debater e se complementar, em alguns momentos, sobre
a educação domiciliar, trazendo uma literatura profunda e atual. Com o intuito de
apresentar os fundamentos e pressupostos, os autores trouxeram ricas informações que
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provocam questionamentos e posicionamentos sobre o homeschooling. Fica claro da lei-
tura, ainda, que a proposta educacional se resinificou após a pandemia COVID-19 que
assolou o Brasil nos anos de 2020 e 2021, embora antes mesmo desse evento, diversos
Projetos de Lei foram propostos e até mesmo aprovados no país. O livro apresenta a
educação na escola contrapondo-se e complementando, por vezes, com a educação no
lar e, esta, por vezes, representando como a evolução futura da educação.
O fato é que a temática repercute e sustenta ainda as diferentes visões de mundo,
da sociedade e do ser em si que convivem no país, como também proposições de dife-
rentes formas construção e exercício de políticas educacionais. Para além de uma
composição maniqueísta, é preciso pôr em tela de discussão a proposta do homescho-
oling e, através de fundamentos científicos, apresentar seus prós e contras, para que se
possa avaliar a sua futura efetivação, caso ocorra. Outrossim, é preciso também levar
em consideração que a modalidade não existe no sistema educacional atual, o que, por-
tanto, dificulta a verificação efetiva de como a mesma vai funcionar em um país de
profundas desigualdades sociais e econômicas como o Brasil, onde o pleno acesso edu-
cacional presencial ainda é um desafio. Da mesma forma que, é preciso pensar a quem
essa modalidade atende, visto que com base nas leituras, verifica-se, por exemplo, que
a modalidade depende de um aparato pedagógico específico para aplicação, realidade
que não parece ser passível de ser alcançada pela maioria da população brasileira.
Por fim, é preciso externar que a obra em tela deu um passo substancial na apre-
sentação de fundamentos e análises potentes para que possamos avaliar a temática.
Trata-se de um início de fôlego, com aporte suficiente e instigador, para que se possa
deliberar, de forma centrada, sobre o homeschooling.
Nota
1
Resenha da obra de VASCONCELOS, Maria. C. C. (org). Educação Domiciliar no Brasil:
mo(vi)mento em debate. Curitiba: CRV, 2021. 398 p.
Referência
VASCONCELOS, Maria. C. C. (org). Educação Domiciliar no Brasil: mo(vi)mento em
debate. Curitiba: CRV, 2021. 398 p.