
Educação, poder e resistência na era digital
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v. 29, n. 3, Passo Fundo, p. 960-984, set./dez. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep
ou apenas restrita a instituições governamentais, uma vez que o poder está presente
onde se tecem relações humanas, “trate-se de comunicar verbalmente […], de relações
amorosas, institucionais ou económicas” (FOUCAULT, 1984, p. 720), e muito menos
uma conceção de poder enquanto “sistema de dominação que controla tudo e que não
deixa qualquer lugar à liberdade” (FOUCAULT, 1984, p. 721), como acontece na
visão tradicional do poder, mas uma conceção que vê o poder como “um tipo particular
de relações entre indivíduos” (FOUCAULT, 1981, p. 160) em que uns, por meio de
jogos estratégicos» (FOUCAULT, 1984, p. 727) e, eventualmente, com “requintes tec-
nológicos” (FOUCAULT, 1982, p. 240), procuram “determinar mais ou menos
inteiramente a conduta dos outros- mas nunca de maneira exaustiva ou coercitiva”
(FOUCAULT, 1981, p. 160). O poder, sempre presente nas relações humanas quer,
pois, significar, segundo Foucault (1984, p. 720), “a relação na qual alguém procura
dirigir a conduta de alguém”, quer dizer, encaminhá-la numa ou noutra direção se-
gundo os seus interesses ou propósitos.
A relação de poder, nesse quadro explicativo, e que interessa destacar para com-
preender o poder na era das plataformas digitais, é a ação de um agente sobre a ação de
alguém, em que um dos pólos procura conduzir a conduta do outro, mas sem anular
esse outro como sujeito de ação. Ademais, a relação de poder “é um modo de ação que
não age diretamente e imediatamente sobre os outros, mas age sobre a sua ação”
(FOUCAULT, 1982, p. 236). É uma ação sobre a ação, sobre ações eventuais, ou atu-
ais, futuras ou presentes, visando estruturar o campo de ação possível de alguém. A essa
luz, e em termos de governamentalidade, isto é, quanto à “maneira como se conduz a
conduta dos seres humanos” (FOUCAULT, 2004, p. 192), o poder atua desdobrando-
se nas seguintes ações: “ele incita, induz, desvia, facilita ou torna difícil, amplia ou
limita, torna mais ou menos provável; no limite, constrange ou limita absolutamente;
porém, é sempre uma maneira de agir sobre um ou sobre sujeitos agentes, e isso en-
quanto agem ou são suscetíveis de agir” (FOUCAULT, 1982, p. 237). Por
conseguinte, ou assim sendo, a governamentalidade é da ordem da afetação comporta-
mental e as suas categorias, eminentemente afetivas, remetem, entre outras, para o
incitamento, a estimulação, o direcionamento, a indução, o condicionamento, a deli-
mitação, o impedimento ou a facilitação.
Essa conceção de governamentalidade, naquilo que tem de mais essencial, é sur-
preendentemente atual para compreender a governamentalidade tecnodigital, própria
das grandes plataformas digitais e, especialmente, o momento que estas atravessam no
mercado das previsões comportamentais: um momento caracterizado por uma grande
concorrência pelos melhores modelos preditivos dos utilizadores dessas plataformas. A